Você está na página 1de 214

UNIVERSIDADE 

FEDERAL DE MINAS GERAIS
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS­GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

ciência, objeto da história

Gabriel da Costa Ávila

Belo Horizonte
2015
Gabriel da Costa Ávila

ciência, objeto da história

Tese apresentada ao Programa de Pós­Graduação em 
História  da  Universidade  Federal  de  Minas  Gerais, 
como parte dos requisitos necessários à obtenção do 
título de Doutor em História.

Linha de Pesquisa: Ciência e Cultura na História

Orientador: Prof. Dr. Mauro Lúcio Leitão Condé

Belo Horizonte
2015
112.1
A958c
2015 Ávila, Gabriel da Costa
     Ciência, objeto da história [manuscrito] / Gabriel Ávila. ­ 
2015.
     213 f. 
     Orientador: Mauro Condé. 
 
     Tese (doutorado) ­ Universidade Federal de Minas 
Gerais, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. 
      Inclui bibliografia
  
      1. História – Teses. 2. Ciência – História ­ Teses. 3 
Historiografia ­ Teses. I. Condé, Mauro Lúcio Leitão. II. 
Universidade Federal de Minas Gerais. Faculdade de 
Filosofia e Ciências Humanas. III. Título.

 
Não  afirmamos,  por  exemplo,  que  Aristóteles 
é  tão  bom  quanto  Einstein;  o  que  se  afirma  e 
argumenta  é  que  “Aristóteles  é  verdadeiro”  é 
um  juízo  que  pressupõe  certa  tradição,  é  um 
juízo  relacional  que  pode  mudar  quando  a 
tradição  subjacente  for  mudada.  Pode  existir 
uma  tradição  para  a  qual  Aristóteles  é  tão 
verdadeiro  quanto  Einstein,  mas  existem 
outras tradições para as quais Einstein é muito 
desinteressante e não merece ser examinado.
Paul Feyerabend, 1978
AGRADECIMENTOS

Escrever  os  agradecimentos  é  uma  tarefa  árdua  para  quem  não  é  poeta  (nem 
comerciante,  que  “Agradece  ao  amigo  cliente  pela  preferência”).  Agradecer 
devidamente  fica  mais  difícil,  pois  demanda  tempo  e  inspiração.  Por  isso  agradeço 
como quem se desculpa por não poder agradecer melhor aos que são mais importantes. 
Agradeço  imensamente  a  Mauro  Lúcio  Leitão  Condé  pela  orientação  atenta  e 
pelas  intervenções  preciosas.  A  confiança  que  Mauro  me  transmitia  garantiu  a  essa 
pesquisa  uma  segurança  talvez  impossível  de  ser  conquistada  sem  o  seu  inestimável 
apoio. Ao professor Carlos Maia, um entusiasta das nossas investidas pela teoria e pela 
historiografia das ciências e fonte inesgotável de energia intelectual.
Xs  professorxs  e  colegas  do  Scientia  –  em  especial  Anny  Jackeline,  Betânia 
Gonçalves,  Bernardo  Jefferson,  Carol  Vimieiro  e  Reinaldo  Bechler  –  que  mostraram, 
desde a minha chegada à UFMG em 2009, que um grupo de pesquisa pode ser um local 
de  intensas  trocas  intelectuais  e  afetivas.  Uma  bolsa  da  CAPES  (Comissão  de 
Aperfeiçoamento  de  Pessoal  de  Nível  Superior)  financiou  essa  pesquisa  durante  seus 
primeiros três anos. Sem ela, talvez esta tese fosse apenas uma expectativa. Justamente 
enquanto  acabo  de  escrevê­la  os  cortes  se  abatem  sobre  essa  política  pública, 
comprometendo  o  projeto  de  inclusão  social,  formação  cidadã  e  produção  de 
conhecimento  –  um  projeto  que  está  ele  mesmo  imbricado  em  algumas  questões  que 
surgem  na  tese.  Ele  herda  a  ambição  da  utopia  Iluminista,  pensa  assim  garantir  o 
progresso da ciência e da sociedade. Agradeço a Edilene Oliveira, que teve participação 
decisiva no sucesso de empreitadas como o ENAPEHC e o EPHIS. 
Xs professorxs Yurij Castelfranchi, Patrícia Kauark, José Newton Coelho, Kátia 
Baggio,  Regina  Horta  e  Miriam  Hermeto,  que  ajudaram  a  tornar  a  FAFICH  a  minha 
segunda  casa  em  Belo  Horizonte.  Essa  casa  estava  sempre  habitada  por  amigxs  e  foi 
muitas vezes o ponto de partida para aventuras nas Minas Gerais. Agradeço a Adriano, 
Douglas, Fabi, Georginho, Mariana, Raul, Rodrigo Osório e Warley. Pezzonia, Katy e 
Anita  deixaram  saudade  e  a  vontade  de  se  ver  de  novo,  em  Campinas  ou  em  Lisboa. 
Fran, Paloma e Valéria, Barudinha, Ju e Gu reforçaram sempre a certeza de que amar é 
um ato político nessa vida ordinária que a gente leva. 
À  Universidade  Federal  do  Recôncavo  da  Bahia  e  aos  colegas  do  Centro  de 
Artes,  Humanidades  e  Letras,  que  me  acolheram  nas  margens  do  Paraguaçú. 
Especialmente  aos  amigos  Antonio  Liberac,  Denis  Correa,  Eliazar  da  Silva,  Nuno 
Gonçalves,  Roberto  Duarte,  Sérgio  Guerra  e  Wellington  Castellucci.  Xs  alunxs  que 
torceram pelo sucesso desta tese. 
Xs  amigxs  soteropolitanxs  Fábio  Freitas,  Dimitri  Marques,  Dimitri  Tavares, 
Juliana e Rafael.
Xs que respeitaram minha angústia com o fim da tese e que me fizeram rir dela 
com elxs. Marcelinho, Julienne e Pi, Rodrigo e Raquel, Wolninho, Augusto e Fernanda, 
Rafa, Costinha, Rita e Giuia. Marcelo e Adelma, Nice, Heleni e Roberto, Paulo.
A  Ana  Marília,  cuja  importância  quando  medida  em  léguas  marítimas  seria 
suficiente para atravessar algumas vezes o Atlântico. Cujo amor não pode ser medido de 
nenhuma maneira linear.
Resumo

Esta  tese  se  ocupa  de  um  exame  historiográfico  da  história  das  ciências  ao  longo  dos 
últimos  cem  anos,  aproximadamente.  Tal  percurso  segue  a  tensão  entre  os  fatores 
“internos” e “externos” como formas de organizar a narrativa histórica sobre a ciência, 
de  demarcar  a  fronteira  entre  ciência  e  não­ciência,  de  compreender  a  dinâmica  da 
mudança  científica  e  de  articular  as  suas  funções  sociais.  Este  texto  está  também 
interessado  nas  relações  que  se  estabeleceram  entre  os  modos  de  produção  do 
conhecimento científico, as Políticas de Ciência e Tecnologia e a escrita da história das 
ciências.  Tendo  essas  frentes  de  investigação  como  guia,  o  trabalho  destaca  quatro 
períodos  históricos  apontando  para  as  suas  principais  características  historiográficas  e 
para  as  maneiras  que  atitudes  distintas  em  relação  ao  passado  da  ciência  legitimam 
determinados  pactos  entre  ciência,  Estado  e  sociedade  (mas  também  resistem  e 
contestam  outros).  Primeiro,  o  período  clássico  da  “querela  do  internalismo  versus 
externalismo” entre os anos 1930 e 1960. O segundo momento é o surgimento de uma 
“tradição kuhniana”, isto é, a profundidade e a direção das transformações sofridas pela 
história das ciências sob o impacto do célebre ensaio de Thomas Kuhn, A estrutura das 
revoluções  científicas.  Os  dois  últimos  períodos  são  abordados  através  da  análise  de 
dois livros representativos de movimentos mais amplos. O Leviathan and the air­pump 
de  Simon  Schaffer  e  Steven  Shapin  foi  tomado  como  um  exemplo  da  historiografia 
produzida nos anos 1980, momento de amplas transformações nas relações entre ciência 
e Estado e de intenso diálogo com os science studies e com o conceito de tecnociência.  
Finalmente,  o  livro  Objectivity,  de  Lorraine  Daston  e  Peter  Galison,  serviu  de  suporte 
para  uma  análise  dos  principais  elementos  da  historiografia  das  ciências  na  virada  do 
século XX para o XXI – destacando como esse livro propõe a historicidade radical da 
ciência.  A  pesquisa  do  processo  de  disciplinarização  da  história  das  ciências  lida 
simultaneamente  com  a  transformação  da  ciência  em  objeto  da  história  e  as  suas 
implicações.

Palavras­chave: História das Ciências, História da historiografia, Século XX. 
Abstract

This thesis examines the historiography of sciences in the last hundred years or so. Such 
trajectory will follow the tensions between “internal” and “external” factors as ways to 
organize the historical narrative about science, to demarcate between science and non­
science,  to  understand  the  dynamics  of  scientific  change,  and  to  articulate  its  social 
functions.  This  text  is  also  interested  in  the  relations  stablished  between  the  modes  of 
production of scientific knowledge, the Science and Technology Policy, and the writing 
of  the  history  of  sciences.  Being  guided  by  these  research  goals,  the  work  highlights 
four historical periods pointing to their main historiographical characteristics and to the 
ways  that  different  attitudes  about  the  past  of  science  legitimize  certain  agreements 
between  science,  State,  and  society  (but  also  resist  and  contest  others).  First,  the 
classical  period  of  the  “internalist  versus  externalist  quarrel”  from  the  1930’s  to  the 
1960’s. The second moment is the rising of the “Kuhnian tradition”, that is, the depth 
and direction of the changings suffered by the history of sciences under the impact of 
Thomas  Kuhn’s  famous  essay  The  structure  of  the  scientific  revolutions.  The  two  last 
periods  are  seen  through  the  analyses  of  two  books  that  represent  wider  movements. 
Simon  Schaffer  and  Steven  Shapin’s  Leviathan  and  the  air­pump  was  taken  as  an 
example  of  the  historiography  produced  in  the  1980’s,  a  moment  of  huge 
transformations  in  the  relations  between  science  and  the  State  and  of  intense  dialogue 
with  the  science  studies,  and  with  the  concept  of  technoscience.  Finally,  the  book 
Objectivity, by Lorraine Daston and Peter Galison, served as a stand to an analysis of 
the  main  outlines  of  the  historiography  of  sciences  at  the  turn  of  the  twentieth  to  the 
twenty­first century – stressing how this book proposes the radical historicity of science. 
The  research  over  the  process  of  disciplinarization  of  the  history  of  sciences  deals 
simultaneously  with  the  transformation  of  science  in  an  object  of  history  and  their 
implications. 

Keywords: History of sciences, History of historiography, Twentieth Century. 
Sumário

Introdução.......................................................................................................................9

Parte I. A ordem dos fatores........................................................................................20

1. A centralidade da teoria...................................................................................20

2. Ordem social, ordem cognitiva........................................................................49

Parte II. Da Big Science à tecnociência......................................................................77

3. A comunidade científica como solução política..............................................77

4. O passado da tecnociência.............................................................................101

5. O self e a comunidade....................................................................................142

Conclusão ou ciência, objeto da história...................................................................186

Referências Bibliográficas..........................................................................................199
Introdução

Uma das estratégias recorrentes de deslegitimação dos discursos com pretensão 
à  verdade,  na  Modernidade  Ocidental,  é  o  “desmascaramento  ideológico”.  Trata­se  de 
revelar,  na  “essência”  de  um  discurso  –  por  baixo  da  “mera  retórica”  de  veracidade, 
necessidade ou cientificidade –, um argumento de fundo teológico ou (como ocorre com 
mais  frequência  na  contemporaneidade)  político.  Obedece  à  estratégia  da  denúncia, 
voltada  para  os  inimigos  e  apontando  para  as  “imposturas  intelectuais”.  Pauta­se  no 
vocabulário  do  desvio,  do  erro,  da  distorção;  trata­se,  em  uma  palavra,  de  uma 
abordagem  assimétrica,  na  definição  de  David  Bloor  (2009).  Nesta  pesquisa,  evito  ao 
máximo essa assimetria.
Nesta  tese,  parto  do  pressuposto  que  toda  obra  de  história  das  ciências  guarda, 
em  seu  discurso,  um  conteúdo  de  Política  de  Ciência  e  Tecnologia.  Todo  texto  de 
história  das  ciências  endossa,  critica  ou  propõe  um  pacto  entre  a  ciência  e  o  Estado; 
estabelece  um  modo  de  relação  entre  a  ciência  e  a  sociedade.  Como  toda  história,  a 
história das ciências fala do seu tempo e para ele; sua condição política não pode (e nem 
deve)  ser  eliminada,  não  é  um  motivo  para  queixumes  ou  tentativas  de  correção  em 
busca da “objetividade” e da “neutralidade”. Ressaltar essa condição não significa, para 
a  perspectiva  adotada,  apontar  para  uma  fonte  de  perturbação  na  produção  do 
conhecimento histórico. Esse é um ponto de partida: é dele que se seguirão as análises 
desenvolvidas  aqui.  A  leitura  das  tensões  entre  “fatores  internos”  –  racionais, 
cognitivos, intelectuais – e “fatores externos” – sociais, culturais, econômicos, políticos 
– na história das ciências será feita a partir desse registro.
A  definição  do  que  vem  a  ser  ciência,  incluindo  aí  o  que  foi  a  ciência  no 
passado, é sempre uma definição política com sérias implicações. Tal definição autoriza 
e  legitima  certas  práticas  discursivas  e  epistêmicas,  ao  mesmo  tempo  em  que  nega  e 
proíbe  outras;  inclui  e  exclui  sujeitos  e  grupos;  delega  direitos  e  deveres;  impõe 
condutas e estabelece relações de força; garante acesso a recursos. Enfim, instaura um 
campo  de  positividades  específicas  de  cada  definição.  Mesmo  a  historiografia  das 
ciências mais recente, que evitou uma definição rigorosa e sistemática do seu objeto, o 
fez tomando uma posição neste embate. Com efeito, a falta de uma definição clara já se 
configurava como uma tomada de posição. Ao negar as variadas definições – que, como 
veremos, quase nunca concordavam entre si – formuladas na primeira metade do século 
9
XX  e  substituí­las  por  um  conjunto  de  proposições  que  deixa  em  aberto  pontos  antes 
considerados fundamentais, a historiografia contemporânea dilui a rigidez das fronteiras 
entre  o  “interno”  e  o  “externo”  na  ciência;  põe  em  xeque  essa  divisão  e,  com  ela, 
modelos de história e filosofia das ciências que a criaram e a legitimavam. Os critérios 
que  garantem  cientificidade  a  uma  prática  social  são  buscados  cada  vez  menos  em 
epistemologias  normativas  ou  logicistas  e  cada  vez  mais  na  cultura  e  na  história.  A 
recusa  a  uma  definição  formal  de  ciência  é  acompanhada  de  uma  guinada  em  direção 
aos usos locais e condicionamentos pragmáticos. Com isso, visavam intervir em certos 
circuitos  políticos  e  estruturas  sociais  nos  quais  essa  imagem  de  ciência  circulava 
(STENGERS, 2002; LAKATOS, 1998; PESTRE, 1996).
Não seria um exagero muito grande afirmar que a questão da demarcação entre 
ciência  e  não­ciência  figurou  como  o  principal  problema  da  filosofia  das  ciências  na 
primeira  metade  do  século  XX.  A  busca  por  critérios  satisfatórios  para  estabelecer  os 
fundamentos  da  ciência  e  sua  distinção  de  outros  campos  da  vida  social  alimentou 
algumas  das  mentes  mais  poderosas  do  século  e  fundou  as  principais  correntes 
filosóficas  do  período.  Foi  também  em  torno  desse  problema  que  muito  do  debate 
crítico se desenvolveu. A corrente principal da nascente sociologia da ciência dedicou­
se a estabelecer os critérios que diferenciavam a ciência de outras esferas da vida social 
e  garantiam  a  sua  autonomia  em  relação  a  elas.  Na  historiografia,  o  problema  da 
demarcação também conheceu a sua forma de manifestação, sob a rubrica da “querela 
internalismo x externalismo”. Como pretendo apontar adiante, essa historiografia não é 
apenas fruto da discussão filosófica; em ambos os campos esse debate surge a partir da 
mesma configuração histórica e, em especial, da condição da ciência e sua relação com 
o  Estado  em  dois  momentos  distintos:  na  euforia  epistemológica  da  virada  do  século 
XIX  para  o  século  XX  e  na  consolidação  da  Big  Business  Science  após  1945. 
Obviamente, os desenvolvimentos na filosofia, na sociologia e na história das ciências 
se retroalimentavam na forma de convergências ou acalorados contrapontos. 
A demarcação do campo da ciência não é uma preocupação exclusiva dos seus 
analistas.  Ela  interessa  diretamente  aos  próprios  cientistas  e  aos  formuladores  e 
administradores de Políticas de Ciência e Tecnologia. Esses grupos gastam grande parte 
do seu tempo com esforços para garantir a especificidade da ciência em relação a outras 
atividades  técnicas  ou  intelectuais  e  proteger  as  fronteiras  do  seu  território  social  e 
epistêmico.  Parte  expressiva  da  historiografia  das  ciências  nas  últimas  décadas  tem 
10
refletido sobre as formas através das quais os atores sociais envolvidos na produção de 
conhecimento  científico  desenham  os  contornos  de  um  espaço  no  interior  do  qual  a 
prática  da  ciência  é  possível1.  Isso  explica,  em  parte,  o  sucesso  da  expressão 
comunidade  científica  na  historiografia  e  em  várias  modalidades  de  discursos  sobre  a 
ciência. No entanto, não acredito que devamos insistir em dois tipos de demarcação: o 
analítico,  sustentado  por  filósofos,  historiadores,  sociólogos,  e  o  prático,  fruto  da 
atividade dos próprios cientistas (GIERYN, 1983). O trabalho analítico é uma atividade 
prática.  Em  algumas  circunstâncias,  visa  endossar  e  reforçar  a  visão  dos  cientistas, 
garantindo­lhe  outras  instâncias  de  legitimidade,  outros  conjuntos  de  argumentos  de 
defesa; em outras, visa criticá­las, atacá­las, substituí­las, reformá­las.
Vista  sob  esse  ângulo,  a  história  da  demarcação,  a  história  da  delimitação  e 
atribuição de funções aos fatores “internos” e “externos” da ciência é um aspecto crucial 
da história do conceito de ciência. No entanto, não será através da análise conformada 
pelos  métodos  dessa  disciplina  venerável  que  é  a  história  dos  conceitos,  à  maneira  de 
Koselleck  (2006),  que  prosseguirei.  Apesar  disso,  prossigo  achando  profundamente 
inspiradora a ideia de que “na multiplicidade cronológica do aspecto semântico reside 
[...] a força expressiva da história” (KOSELLECK, 2006, p. 101). O jogo entre o espaço 
de experiência e o horizonte de expectativa se realiza também no discurso, essa trama 
heterogênea eivada pelas relações de força que atravessam o tempo no qual é criado e 
consumido. Como prossegue o autor: “[o]s momentos de duração, alteração e futuridade 
contidos em uma situação política concreta são apreendidos por sua realização no nível 
linguístico”  (KOSELLECK,  2006,  p.  101).  O  reconhecimento  da  pertinência  desses 
argumentos não significa uma adesão a essa perspectiva, nem nos impede de criticar a 
persistência  da  polarização  entre  linguagem  e  mundo  presente  na  concepção  de 
Koselleck,  que  implica  na  cisão  tão  marcada  entre  história  dos  conceitos  e  história 
social (embora, de acordo com o autor, uma se sirva da outra). De qualquer modo, esta 
não é uma história do conceito de ciência, embora me utilize fartamente dessa história e 
pretenda contribuir para algum aspecto da sua compreensão.
Ainda tratando da relação entre a dimensão simbólica e a dimensão material, é 
preciso  aqui  realizar  a  crítica  da  perspectiva  de  certa  vulgata  marxista,  fundada  na 
divisão  rígida  e  estreita  entre  base  e  superestrutura.  Nesta  versão  mecanicista,  as 

1Esse é um aspecto muito importante do livro de Simon Schaffer e Steven Shapin, Leviathan and the air­
pump, que será abordado no quarto capítulo deste trabalho.  
11
manifestações linguísticas, assim como os demais “produtos intelectuais” (arte, cultura, 
ideias)  –  excetuando­se,  na  maioria  das  vezes,  as  ciências  naturais  –  fazem  parte  da 
superestrutura,  vista  como  mero  epifenômeno,  determinado  pela  base,  que  seria  a 
organização  material  da  vida  e  da  sociedade,  a  esfera  das  forças  produtivas 
(WILLIAMS, 2005). Assim, o discurso seria mero reflexo de uma estrutura econômica 
e  social  que  o  ultrapassa  e  o  determina.  O  marxismo  vulgar  guarda  um  curioso 
paradoxo:  se  trata  de  um  pensamento  social  que  afirma  a  irrelevância  de  todo 
pensamento  social,  sendo  a  superestrutura  apenas  um  reflexo  ideológico  do  modo  de 
produção  dominante.  Daí  deriva  parte  da  insistência  radical  desse  marxismo  na  sua 
“dimensão científica” (mais precisamente, cientificista), colocando­se em contraposição 
ao pensamento de caráter ideológico e mistificador e à “ciência burguesa”.
Essa visão, da qual parecemos já ter nos livrado há muito tempo, ainda aparece 
para nos assombrar.
É  evidente  que  o  materialismo  histórico  acentua  o  caráter  historicamente 
dependente  do  pensamento,  como  também  a  sua  dimensão  prática.  “A  produção  das 
ideias,  das  representações,  da  consciência  está  em  princípio  diretamente  entrelaçada 
com a atividade material e o intercâmbio material dos homens, linguagem da vida real” 
(ENGELS e MARX, 2009, p. 31). No entanto, nesse último caso, não se trata de uma 
redução do pensamento a um efeito da estrutura social. Encarada de forma a repelir todo 
mecanicismo  e  todo  dogmatismo,  o  materialismo  histórico  torna­se  uma  tese 
sociológica extremamente fértil, que ocupará uma posição importante na nossa tradição 
intelectual e que servirá de inspiração constante neste trabalho.
Teria muitas outras dívidas teóricas para confessar. Essa digressão, no entanto, 
não  serve  apenas  para  prestar  um  tributo,  mas  para  ressaltar  a  concepção  do  discurso 
como  uma  prática  social.  Como  um  campo  de  batalhas.  Um  lugar  demarcado  por  sua 
própria  ordem,  mas  que  não  escapa  à  historicidade.  É  desta  maneira  que  o  discurso 
histórico sobre as ciências será visto neste texto. É assim que os textos de história das 
ciências  aqui  analisados  serão  lidos,  obras  entrelaçadas  com  o  seu  tempo,  expressão 
semântica  da  historicidade  e  práticas  de  intervenção  na  realidade  social  (CERTEAU, 
2006;  FOUCAULT,  2012).  Esta  perspectiva,  obviamente,  nutre­se  da  história  da 
historiografia. É nesse campo que procuro me inscrever, oferecendo um olhar reflexivo 
sobre  as  obras  de  história  das  ciências  e  enfatizando  a  condição  de  historicidade 
presente  nessas  obras.  A  reflexividade,  no  entanto,  não  pode  ser  sinônimo  de  auto­
12
referência,  de  isolamento  circular.  Assim,  procuro  nesta  tese  cobrir  o  percurso  da 
história das ciências durante grande parte do século XX e adentrar na primeira década 
do  XXI.  Essa  abertura  cronológica,  contudo,  será  contrabalançada  pelos  recortes 
temáticos  e  bibliográficos.  O  problema  que  tratarei  aqui  será  referente  aos  “fatores 
internos” e “externos” na explicação da dinâmica da ciência, é em torno desse recorte 
que  gira  a  maior  parte  das  preocupações  teóricas  que  serão  abordadas.  Este  trabalho 
propõe  uma  nova  cronologia  para  o  debate  entre  internalismo  e  externalismo,  o  que 
implica uma visão um pouco diferente do material avaliado. Em relação a ele, a escolha 
feita nesta tese foi a de priorizar alguns livros específicos (especialmente na medida em 
que  a  discussão  avança)  e  restringir  o  debate  a  uma  tradição  específica  no  interior  da 
história  das  ciências;  os  livros  analisados  aqui  participaram  daquilo  que  chamei  de 
“tradição kuhniana” e foram influenciados pelos desenvolvimentos dos science studies.
Esta tese procura também se engajar no combate por uma história das ciências 
efetivamente  histórica,  um  projeto  que  acompanha  a  guinada  historicista  na 
epistemologia  e  que  implica  necessariamente  na  historicidade  da  ciência.  Felizmente, 
nos últimos anos, esse movimento tem crescido em quantidade e qualidade. Em muitos 
livros e artigos que têm sido publicados no Brasil e fora dele, especialmente nas últimas 
duas décadas, ressalta­se a impossibilidade de produzir conhecimento fora da história, a 
dependência da ciência em relação à história, a dimensão constitutiva da historicidade 
para  os  saberes.  Posturas  semelhantes  às  que  defendo  nesta  tese.  Beneficiei­me  muito 
dessa  bibliografia,  incluindo  aí  trabalhos  que  surgiram  enquanto  essa  pesquisa  era 
desenvolvida.  Em  especial,  destaco  aqui  o  livro  ainda  inédito  de  Mauro  Condé  (No 
prelo),  “Um  papel  para  a  história”,  que  destaca  a  emergência  da  historicidade  das 
ciências e os obstáculos à efetivação desse processo em diferentes momentos e tradições 
intelectuais  do  século  passado  e  situa  no  encontro  entre  Ludwik  Fleck  e  Ludwig 
Wittgenstein uma chave frutífera para compreender a ciência em sua historicidade sem 
recorrer  às  soluções  relativistas.  É  preciso  também  ressaltar  que  este  trabalho  se 
desenvolve  em  constante  diálogo  com  o  projeto  levado  a  cabo  há  muitos  anos  pelo 
professor  Carlos  Alvarez  Maia,  principalmente  seus  dois  últimos  livros,  História  das 
ciências: uma história de historiadores ausentes (2013) e Estudios de historia, ciencias 
y  lenguaje  (2011),  este  último  vertido  para  o  português  quando  esta  tese  já  se 
encontrava  em  sua  fase  final  de  escrita.  A  “história  da  história”  proposta  por  Maia 

13
realiza  um  esforço  relevante  para  afirmar  a  plena  historicidade  da  ciência  e  integrar  a 
história das ciências ao território disciplinar da história. 
Além  dessas  referências  mais  próximas,  dois  trabalhos  se  aproximam  daquilo 
que pretendi fazer aqui. Primeiro, a Introduction à la philosophie des sciences, de Hans­
Jörg  Rheinberger  (2014)  que,  apesar  do  nome,  é  um  ensaio  sobre  a  historicização  da 
epistemologia no século XX. Em segundo lugar, o livro Making natural knowledge, de 
Jan  Golinski  (2005),  que  oferece  um  balanço  temático  das  contribuições  da  nova 
historiografia  das  ciências  e  do  papel  do  construtivismo  de  uma  maneira  bastante 
simpática  às  posições  apresentadas.  Por  fim,  é  preciso  fazer  menção  ao  livro  A  nice 
derangement  of  epistemes,  de  John  Zammito  (2003),  um  trabalho  que  cobre 
praticamente  o  mesmo  período  abarcado  nesta  tese  e  lida  com  autores  e  problemas 
bastante  semelhantes,  embora  defenda  uma  posição  muito  diferente  da  que  os  autores 
listados acima apoiam e se esforce em mostrar as fraquezas filosóficas dos argumentos 
dos estudos sobre a ciência “pós­positivistas”  e os seus perigos intelectuais, defendendo 
a necessidade de um conhecimento objetivo na ciência e na sua história.
Ao  contrário  da  maioria  dessas  obras,  no  entanto,  não  pretendo  aqui  sugerir 
como a história das ciências deve ser praticada para garantir a consecução dos objetivos 
que defendo. O texto não tem caráter propositivo, nem há nenhum modelo que possa ser 
retirado  dele. Nos  capítulos  a  seguir,  tento  traçar  a  história  da  disputa  entre 
internalismo  e  externalismo,  extrapolada  para  além  dos  limites  tradicionalmente 
imputados a ela (embora não se opondo a eles). Ao longo dos anos 1970 parece haver 
uma superação da “querela internalismo x externalismo” com a ascensão de uma nova 
historiografia das ciências. O tópico passa a ser tema de curiosidade historiográfica. O 
processo  de  pacificação  da  disputa  a  partir  da  obra  de  Thomas  Kuhn,  A  estrutura  das 
revoluções científicas, encerrou a polarização entre os grupos. Não há mais internalistas 
ou externalistas2. Defendo que as questões em jogo na disputa não foram efetivamente 
superadas na historiografia até o começo do século XXI.
Em publicação anterior, havia dado pouca atenção à querela, me referindo a ela 
como  meramente  submissa  ao  que  chamei  de  estratégia  positivista,  seguindo  a 
formulação de Alan Chalmers (1994). Afirmava ainda que a disputa se restringia a um 
espaço  epistemológico  extremamente  limitado  e  que  ambos  os  lados  em  disputa 

2  Pelo  menos,  não  no  mainstream  da  História  das  Ciências.  A  adesão  a  uma  dessas  correntes,  hoje,  é 
interpretada como sinal de amadorismo (SHAPIN, 1992).
14
concordavam  em  pontos  cruciais  sobre  o  papel  da  história  na  explicação  do 
conhecimento científico. Localizava as principais contribuições teóricas do período fora 
da  disputa  e  não  advindas  dela.  Por  fim,  considerava­a  superada  pela  renovação 
historiográfica  dos  anos  1970  (ÁVILA,  2013).  Embora  não  fosse  equivocada  em  sua 
tese geral, essa descrição era apressada e simplista, não era o meu objetivo explorar essa 
historiografia.  Neste  texto,  tenho  a  possibilidade  de  rever  com  mais  vagar  esse  tema, 
tornando mais complexa a sua interpretação.
O  meu  principal  desiderato,  aqui,  é  explorar  os  papéis  desempenhados  pela 
articulação entre “fatores internos” e “fatores externos” na historiografia contemporânea 
das ciências. Essa consideração deve levar em conta como as transformações na visão 
dessa questão se relacionam diretamente com o ambiente no qual a história das ciências 
é  produzida,  os  públicos  a  quem  se  destina  o  seu  consumo,  as  formas  de  circulação 
desses  discursos.  Como  já  afirmei  acima,  a  investigação  é  conduzida  a  partir  do 
pressuposto  que  a  história  das  ciências  não  se  contenta  em  explicar  o  passado,  mas 
responde também a questões colocadas pelo presente. O recorte escolhido não perde de 
vista uma preocupação mais geral dessa pesquisa, que é a de compreender as diferentes 
maneiras  pelas  quais  as  ciências  foram  tomadas  como  objeto  da  história  nas  últimas 
décadas do século XX. 
Para  realizar  o  que  aqui  se  propõe,  o  texto  se  dividirá  em  duas  partes.  Na 
primeira  parte,  composta  por  dois  capítulos,  realizo  uma  leitura  dos  modos  de 
delimitação e articulação dos fatores internos e externos na vigência da querela entre o 
internalismo  e  o  externalismo  em  sua  datação  clássica.  A  releitura  da  querela  será 
pautada  pela  “função  política”  da  história  das  ciências  em  um  momento,  entre  as 
décadas de 1930 e 1950, de afirmação da importância da ciência no interior dos Estados 
nacionais.  O  primeiro  capítulo  tratará  das  principais  características  historiográficas  e 
ideológicas  do  internalismo  em  meio  a  discussões  sobre  as  nascentes  Políticas  de 
Ciência  e  Tecnologia.  O  internalismo  será  analisado  como  uma  forma  de  historiar  as 
ciências  que  rejeitava  a  postura  positivista  dos  primeiros  praticantes  da  disciplina  no 
final do século XIX e início do XX. É certo que os historiadores adeptos dessa corrente 
concebiam a ciência como teoria, como uma aventura intelectual; mas eles apontavam 
para  uma  compreensão  das  teorias  do  passado  em  seus  próprios  termos  e  assim 
reivindicavam o combate à teleologia e ao anacronismo. Não se trata de medir o grau de 

15
historicidade conferido à ciência por tal ou qual corrente, mas de perceber as condições 
específicas de historiar as ciências possível em cada configuração histórica.
No Capítulo 2, complementando a leitura iniciada no capítulo anterior, abordarei 
o  externalismo.  Aqui,  destaco  duas  principais  vertentes,  com  relevantes  diferenças 
historiográficas  e  ideológicas.  A  primeira,  mais  antiga  e  também  mais  duradoura,  é  a 
interpretação marxista da história das ciências. Tratava­se, naquele período, de um tipo 
de abordagem que visava construir um modelo interpretativo para a história das ciências 
capaz não apenas de explicar essa história, mas de utilizá­la para a apropriação social da 
ciência e para a transformação profunda do mundo. A história dessa vertente não pode 
ser devidamente examinada sem uma avaliação conjunta das disputas ideológicas que se 
agudizam  depois  do  surgimento  da  União  Soviética.  O  externalismo  marxista  se  opõe 
tanto ao positivismo quanto ao internalismo. A história social das ciências que emerge 
daí estará profundamente comprometida com esses debates. 
A  sociologia  de  Robert  Merton  será  a  matriz  da  segunda  vertente  de 
externalismo  abordada  no  capítulo.  Formulada  nos  EUA  no  final  dos  anos  1930  e 
exerceu  domínio  na  sociologia  das  ciências  até  os  anos  1960  e  influenciou 
decisivamente a história das ciências no período. Essa abordagem ofereceu resistência 
ao marxismo e à sociologia do conhecimento teutônica das primeiras décadas do século 
passado.  A  partir  de  uma  perspectiva  funcionalista  e  inspirada  em  Weber,  o 
externalismo mertoniano restringiu o acesso de qualquer elemento externo ao interior do 
conhecimento científico, que permaneceria autônomo. As famosas normas mertonianas, 
que formavam o ethos do cientista, serviam para organizar socialmente a pesquisa, não 
tendo  qualquer  interferência  no  resultado  cognitivo  daquilo  que  era  produzido.  A 
avaliação  do  internalismo  e  do  externalismo  realizada  nesses  dois  capítulos  será 
vinculada  a  outras  disputas,  em  especial  à  tensão  entre  liberalismo  e  socialismo  (sem 
que uma se reduza à outra). Pretendo aqui mostrar a formação clássica da querela.
A  Parte  II  aborda  o  aspecto  mais  original  dessa  pesquisa.  Nela,  ressalto  a 
sobrevivência  e  as  transformações  das  dimensões  interna  e  externa  na  nova 
historiografia.  Essas  transformações  ocorrem  em  contato  com  um  novo  modo  de 
produção  do  conhecimento  científico  e  com  um  novo  ambiente  social,  econômico  e 
político no qual as críticas à ciência vão crescer na mesma medida em que cresce a sua 
importância. No Capítulo 3, trato do surgimento de uma “tradição kuhniana” na história 
das  ciências.  Para  isso,  será  preciso  realizar  uma  leitura  da  principal  obra  de  Thomas 
16
Kuhn,  A  estrutura  das  revoluções  científicas,  e  de  algumas  das  suas  apropriações.  O 
texto  de  Kuhn  será  lido  a  partir  de  dois  aspectos  principais.  Um  desses  aspectos  é  a 
vinculação  da  teoria  da  ciência  elaborada  por  Kuhn  ao  complexo  industrial­militar­
científico  que  caracterizou  a  Big  Science  no  pós­guerra  (em  especial  nos  EUA).  A 
autonomia  garantida  à  comunidade  científica  será  o  elo  entre  essas  duas  esferas.  O 
segundo aspecto será a alegada superação da disputa entre internalismo e externalismo 
realizada  por  Thomas  Kuhn.  A  dialética  entre  “ciência  normal”  e  “ciência 
revolucionária”  será  avaliada  como  uma  espécie  de  combinação  entre  momentos 
internalistas  (embora  a  noção  de  paradigma  seja  mais  ampla  que  a  de  teoria)  e 
momentos  externalistas,  de  abertura  para  a  confluência  de  fatores  extracientíficos  que 
ajudam a forjar um novo paradigma. Em seguida, tento avaliar a apropriação da obra de 
Kuhn  pela  sociologia  e  pela  história  das  ciências  das  décadas  de  1970  e  1980.  Uma 
apropriação  que  não  se  dá  pela  replicação  de  um  modelo,  mas  pela  adesão  a  certos 
insights  sociológicos  presentes  na  abordagem  kuhniana  que  fez  com  que  a  ideia  de 
atribuir  “um  papel  para  a  história”  na  explicação  do  desenvolvimento  da  ciência  se 
tornasse um dos princípios da historiografia que emerge no final da década de 1970.  
No  Capítulo  4,  a  análise  será  centrada  no  livro  de  Steven  Shapin  e  Simon 
Schaffer, Leviathan and the air pump. Esse livro, publicado originalmente em 1985, foi 
escolhido  pela  sua  importância  para  o  desenvolvimento  da  historiografia  e  pela  sua 
preocupação explícita com a superação da divisão das causas explicativas das mudanças 
nas ciências em internas e externas, uma das tônicas da produção do período que viu a 
ascensão  meteórica  dos  science  studies  ao  posto  de  fonte  prioritária  de  análises  das 
ciências.  O  sucesso  do  Leviathan  em  um  momento  de  profundas  transformações  na 
historiografia  das  ciências  –  mudanças  para  as  quais  colaborou  diretamente  –  será 
comparado com as transformações no modo de produção de conhecimento científico e 
suas relações com o Estado em um período de ascensão do modelo neoliberal. Pretendo 
retomar algumas injunções que marcam o período e conformam a história das ciências: 
a  hegemonia  dos  science  studies,  o  fim  da  polarização  geopolítica  e  ideológica  do 
período  da  Guerra  Fria  e  a  consolidação  do  capitalismo  em  escala  global  (e  suas 
implicações para a relação entre ciência e Estado). Ao contar a história da emergência 
da  ciência  moderna  no  século  XVIII  através  de  uma  série  de  tecnologias  (social, 
material,  literária),  os  autores  acionam  dispositivos  discursivos  similares  aos  que  são 
utilizados  para  explicar  a  tecnociência,  a  fusão  entre  ciência,  tecnologia,  economia  e 
17
governamentabilidade  típica  do  final  do  século  XX.  Aproximam  duas  temporalidades 
distintas e usam o presente como chave de compreensão do passado. Assim, ao abordar 
período  marcado  pela  consolidação  da  nova  historiografia  e  pelo  fim  do  pacto 
representado  pela  obra  de  Kuhn,  o  capítulo  deverá  ressaltar  como  as  abordagens 
surgidas nos anos 1980 se apropriam da história das ciências e a reconfiguram.
O quinto capítulo deverá avançar em direção a um período ainda mais recente. 
Avança  para  a  última  década  do  século  XX  e  avalia  o  peso  que  a  “ressaca”  que  as 
Guerras  da  Ciência  produziram  na  escrita  da  história  das  ciências  depois  da  euforia 
epistemológica  advinda  das  décadas  de  1970  e  1980.  O  acirramento  dos  debates  e  a 
seriedade  das  acusações  dirigidas  aos  pressupostos  que  guiavam  a  nova  historiografia 
das ciências gerou um momento de reflexão, uma crise interna, uma suspeita em torno 
dos  fundamentos  que  legitimavam  as  abordagens  mais  influentes.  Em  face  das 
transformações produzidas nesse cenário, qual o destino dos fatores internos e externos? 
A  resposta  será  buscada  através  da  análise  de  outra  obra  considerada  relevante: 
Objectivity,  de  Lorraine  Daston  e  Peter  Galison.  Esse  livro,  publicado  já  na  segunda 
metade  da  década  de  2000,  será  o  fio  que  conduzirá  na  jornada  por  essa  complexa 
trama, chegando por fim a uma visão das coordenadas historiográficas que localizam a 
atual  produção  da  história  das  ciências.  Nesse  capítulo,  a  questão  da  historicidade  do 
conhecimento  científico  será  avaliada  a  partir  das  opções  teóricas  e  narrativas  que 
informam o Objectivity. Por se tratar de uma obra muito recente, o seu exame será feito 
a  partir  de  uma  perspectiva  um  pouco  diferente  daquela  presente  nos  capítulos 
anteriores.  Ainda  não  sabemos  os  desdobramentos  que  ela  produzirá,  ainda  não  é 
possível medir plenamente o seu impacto. A hipótese que sustento é que o livro marca o 
fim de uma maneira de escrever a história das ciências. Isso terá reflexos na forma como 
os  fenômenos  internos  e  externos  aparecem  e  se  relacionam.  Poderíamos  colocar  o 
problema  da  seguinte  maneira:  se  a  historiografia  das  ciências  obteve  finalmente 
sucesso  em  incorporar­se  à  historiografia  tout  court,  a  discussão  sobre  a  demarcação 
pode  ser  abandonada,  não  faz  mais  sentido  falar  em  fatores  internos  e  externos.  A 
ciência é compreendida como uma expressão cultural completamente imersa no tecido 
social.
Ao examinar diversas soluções para a questão da historicidade do conhecimento 
científico  experimentadas  ao  longo  do  século  XX,  não  pretendo  escrever  uma  história 
teleológica  da  gradual  incorporação  das  ciências  ao  campo  dos  objetos  da  história 
18
através  da  evolução  das  técnicas  de  análise  dos  historiadores  das  ciências, 
progressivamente libertados da visão de uma ciência ahistórica, abstraída da corrosão da 
temporalidade  pelas  mãos  da  lógica  e  da  racionalidade  universais.  Pretendo  que  o 
tratamento historiográfico dado às ciências em determinado momento e por determinado 
autor  ou  grupo  de  autores  seja  entendido  como  produto  das  suas  condições  sócio­
históricas específicas.
Desse modo, esta tese pretende se configurar como uma análise das formas pelas 
quais a história das ciências – em sua conformação disciplinar ao longo do século XX e 
início do XXI – forjou o seu objeto em constante tensão com o ambiente intelectual e 
político  que  estava  imersa.  Sem  dúvida  uma  pretensão  um  tanto  ambiciosa  que  exige 
um  olhar  panorâmico;  no  entanto,  a  opção  por  examinar  obras  específicas 
(especialmente na Parte II) reduz sensivelmente o alcance dos argumentos que defendo. 
Grande parte da historiografia das ciências produzida no período será deixada de fora do 
texto.  Pretendo  que  esta  tese  seja  (a  começar  pelo  título)  mais  uma  afirmação  da 
capacidade  dos  argumentos  de  tipo  histórico  contribuírem  para  uma  leitura  do 
conhecimento científico. Uma leitura que apenas a história das ciências pode fornecer e 
que considero indispensável (embora não seja excludente, nem possua o monopólio da 
explicação)  para  a  compreensão  efetiva  da  atividade  científica  e  o  exercício  da 
cidadania em tempos de sociedade do conhecimento.

19
Parte I: A ordem dos fatores

1. A centralidade da teoria

Louis Pasteur morreu, em 1895, como um herói nacional francês, com direito a 
funeral de Estado e enterro na catedral de Notre Dame de Paris. Um ano depois da sua 
morte,  no  entanto,  seus  restos  mortais  foram  transferidos  para  a  cripta  construída  no 
subsolo  da  ala  oeste  da  mansão  onde  residiu  e  onde  funcionava  o  seu  famoso 
laboratório3.  Esse  aposento  fornece  um  material  extremamente  relevante  para 
compreender o imaginário sobre a ciência na Europa da segunda metade do século XIX 
–  um  imaginário  que  se  estende  às  primeiras  décadas  do  século  XX.  Trata­se  de  um 
pequeno salão de teto abobadado, suas paredes estão cobertas com mosaicos em estilo 
bizantino  cujas  figuras  narram  episódios  da  vida  do  grande  gênio  ou  objetos  que 
simbolizam as suas conquistas científicas. Um homem segura um cão raivoso ao lado de 
seringas,  microscópios  e  bactérias;  à  esquerda  e  à  direta,  uma  lista  das  suas  grandes 
realizações;  no  alto,  três  anjos  exibem  as  virtudes  teologais  –  “fé”,  “caridade”, 
“esperança”  –  enquanto  um  quarto  traz  consigo  “ciência”4.    No  centro  desse  espaço, 
uma  tumba  de  mármore  liso  e  negro  guarda  o  corpo  do  Dr.  Pasteur.  Ao  fundo,  num 
pequeno  altar,  estão  sepultados  os  corpos  da  sua  esposa,  Marie  Pasteur,  e  de  seu 
colaborador  e  sucessor,  Émile  Roux.  Um  visitante  distraído  poderia  imaginar  que  se 
trata de um espaço religioso, um local de culto e adoração. Ali está o corpo do santo, 
nessas paredes, os milagres que operou em vida e os pios valores que pregava. Talvez o 
engano seja apenas o de identificar o catolicismo como essa religião. Pois é o progresso 
a religião do século XIX.
É  nesse  século  que  um  dos  mais  célebres  adeptos  da  religião  do  progresso,  o 
filósofo Auguste Comte5, propõe um programa para o estudo das sucessivas realizações 
do  espírito  humano  na  conquista  de  conhecimentos  positivos,  a  história  das  ciências 

3 Essa casa abriga hoje o Museu Pasteur e está localizada no centro do enorme Instituto Pasteur de Paris. 
O laboratório localizado no subsolo foi permanentemente modernizado e continua em funcionamento.
4Foi, charité, espérance e science, em francês.
5 É significativo dessa atitude “religiosa” que Comte seja autor do Catecismo positivista e fundador da 
Igreja Positivista (ou Religião da Humanidade).
20
(COMTE,  2008).  O  surgimento  da  história  das  ciências  está  ligado  a  essa  visão  de 
progresso.  Esse  primeiro  período  não  deve  ser  negligenciado  ou  tratado  meramente 
como  uma  “pré­história”  da  disciplina,  como  um  momento  de  tentativas  cegas  de 
estabelecer  linhas  de  investigação.  Também  não  é  necessário  –  para  atingir  os 
propósitos  dessa  tese  –  recuar  indefinidamente  em  busca  dos  “pioneiros”,  dos 
“precursores”  ou  das  “origens”  desse  movimento.  A  minha  intenção  aqui  é  apontar 
como  essa  etapa  lança  bases  que  não  serão  abandonadas  facilmente,  como  algumas 
características  definidas  ainda  no  século  XIX  permanecem  na  história  das  ciências 
praticada  posteriormente.  Farei  isso  assinalando  um  ponto  que  reaparecerá  diversas 
vezes ao longo desse estudo, em suas várias manifestações.
A história das ciências se estabelece fora da história tout court. Esse aspecto será 
um dos traços definidores da nossa disciplina. Conquanto hoje essa característica possa 
desempenhar  um  papel  extremamente  benéfico  ao  situar  a  história  das  ciências  na 
confluência  entre  diversos  saberes,  produzido  em  uma  encruzilhada  institucional  e 
epistemológica  e  constituindo­se  em  um  dos  seus  pontos  fortes,  ela  representava  uma 
das principais fontes de agitação, de críticas e tentativas de “refundação”. Entre o final 
do século XIX e as primeiras décadas do seguinte, a história das ciências não exibia essa 
componente  multifacetada  que  adquiriria  ao  longo  da  construção  da  sua  identidade 
disciplinar. Algumas das limitações epistemológicas que identificamos nesse período (e 
que se incorporam em certas tradições dessa disciplina) estão diretamente relacionadas a 
essa condição. Não ignoramos que a corrente principal da historiografia no século XIX 
– ocupada em construir a ciência da história – certamente considerava incluir a ciência 
no  rol  das  histórias  que  deveriam  ser  escritas,  seguindo  a  recomendação  feita  por 
Francis Bacon no começo do século XVII (KOSELLECK, 2013, p. 187). No entanto, os 
historiadores profissionais deram pouca atenção ao tema, se é que deram alguma.
Essa  “história  de  historiadores  ausentes”  –  na  expressão  do  professor  Carlos 
Maia (2013) – foi uma criação de filósofos. Comte, na França, e William Whewell, na 
Inglaterra,  são  os  nomes  tradicionalmente  associados  a  essa  fase6.  Este  último  foi 
suficientemente claro ao afirmar que não se trata de “uma simples narração dos fatos da 
história da Ciência, mas [de] uma base para a Filosofia da Ciência” (WHEWELL, 1875, 
p.  8)7.  Ela  não  é  um  fim  em  si  mesma.  Claro  que  o  campo  da  filosofia  é  grande  o 

6  Não  custa  lembrar  que  foi  Whewell  que  cunhou  o  termo  scientist,  em  1833.  O  surgimento  “tardio” 
dessa palavra aponta para a efetiva centralidade da ciência na vida cultural e intelectual moderna como 
um fenômeno do século XIX.
21
suficiente para admitir posturas diversas, às vezes opostas e irreconciliáveis. Seria útil 
perguntar que tipo de filosofia engendra a história das ciências. De maneira geral, esses 
sistemas filosóficos possuíam um compromisso com a ciência que será transferido para 
a  história  das  ciências.  Ela  existe  em  função  do  seu  objeto.  Sobre  isso,  Paul  Tannery 
escreve em 1904: 
Na vida da humanidade, a ciência desempenha doravante um tal papel 
que  sua  história  merece  evidentemente  ser  estudada  e  ensinada  da 
mesma maneira que o são, por exemplo, a história da arte ou aquela da 
literatura.  A  evolução  de  um  modo  especial  da  atividade  do  espírito 
humano  não  pode,  com  efeito,  ser  negligenciada  vis­à­vis  outras, 
considerando  que  esse  modo  foi,  desde  a  origem,  um  dos  fatores 
essenciais para o progresso da civilização. (TANNERY, 2008, p. 67)8.
Essas  duas  marcas  de  nascença,  autonomia  em  relação  à  comunidade  dos 
historiadores  profissionais  e  compromisso  com  a  ciência,  ecoarão  por  muito  tempo. 
Como resume Carlos Alvarez Maia, apontando para a conexão constitutiva entre elas:
Em linhas gerais, o distanciamento disciplinar da história das ciências 
do continente História ocorreu graças a uma contaminação sofrida por 
sua  proximidade  com  as  ciências  historiadas.  E  esse  contágio 
propagado  pelas  ciências  naturais  contamina  também  a  disciplina 
história, porém produzindo um movimento na direção oposta. Se, por 
um lado, a história das ciências aproxima­se das ciências e incorpora 
os seus mitos, por outro lado, a história afasta­se dessas ciências, e o 
faz  incorporando  também  os  mesmos  mitos.  [...]  O  resultado  dessa 
incorporação da mitologia cientifista é que a história não toma para si 
as  ciências  naturais  por  considerá­las  como  não­históricas  (MAIA, 
2013, p. 12).
Se  tanto  historiadores  das  ciências  quanto  historiadores  tout  court  colaboraram 
para  a  ausência  da  historicidade  no  estudo  das  ciências  (por  respeito  à  metafísica 
cientificista),  não  seria  suficiente  (nem,  talvez,  necessário)  ela  ser  praticada  por 
historiadores. É necessário um abalo nessa metafísica para possibilitar o surgimento de 
uma  “história  histórica  das  ciências”  e  para  o  seu  alojamento  na  historiografia 
profissional.  A  possibilidade  de  conferir  historicidade  às  ciências  não  foi  sempre  uma 
preocupação  para  seus  historiadores,  ela  surge  em  um  momento  específico  e  sofre 
diversas  transformações  (CONDÉ,  2015).  O  exame  desse  processo  mostra  como  a 
história  das  ciências  participa  ativamente  na  construção  das  condições  históricas  que 

7 No original: “not merely a narration of the facts in the history of Science, but a basis for the Philosophy 
of Science”. Tradução minha. 
8  No  original:  “Dans  la  vie  de  l’humanité,  les  sciences  jouent  desórmais  un  tel  rôle  que  leur  histoire 
mérite évidemment d’être étudiée et ensignée au même titre que le sont, par example, l’histoire de  l’art 
ou celle de la littérature. L’évolution d’un mode spécial de l’activité de l’esprit humain ne peut, en effet, 
être  négligée  vis­à­vis  dês  autres,  alors  que  ce  mode  a  été,  dês  l’origine,  un  des  facteurs  essentiels  du 
progrès vers la civilisation”. Tradução minha.
22
permitem  o  seu  exercício  pleno,  pelo  menos  de  acordo  com  as  formas  que  hoje 
aceitamos  coletivamente  como  os  critérios  de  pertencimento  ao  campo.  Mas  ela  não 
realiza  esse  movimento  sozinha,  se  insere  em  uma  textura  social  complexa  na  qual  a 
historicidade da ciência emerge como fenômeno. As condições para a ocorrência desse 
processo só terão lugar a partir dos anos 1970, como tentarei mostrar na Parte II desta 
tese.
Mas  não  anteciparei  essa  história.  Por  enquanto,  retomarei  o  fio  da 
historiografia, enfocando o primeiro movimento bem sucedido de institucionalização e 
disciplinarização  da  história  das  ciências,  que  ocorre  por  volta  da  Primeira  Guerra 
Mundial9.  George  Sarton,  que  foi  o  seu  primeiro  personagem  de  destaque,  via  na 
história da ciência (e, nesse caso, o uso do singular é fundamental) a história de toda a 
humanidade,  uma  história  cujo  escopo  cronológico  e  geográfico  se  estendia  quase 
indefinidamente  por  todas  as  eras  e  civilizações.  Principalmente,  seguindo  a  filosofia 
positiva  de  Auguste  Comte,  identificava  a  história  das  ciências  com  o  progresso  da 
humanidade;  a  ciência  seria  o  mais  poderoso  fator  de  evolução  humana10.  E 
estabeleceu para ela um programa que priorizava o conteúdo cognitivo11. Nos Estados 
Unidos em 1915, por exemplo, a história das ciências era uma atividade regular, embora 
não  constituísse  propriamente  uma  disciplina  acadêmica.  Já  existiam  nesse  país  pelo 
menos 176 cursos nessa área, espalhados em 113 instituições. Em sua grande maioria, 
se tratavam de cursos sobre ciências particulares, ministrados por cientistas amadores no 
campo  da  história  e  voltados  para  a  formação  dos  novos  membros  de  determinada 
especialidade  (MERTON  e  THACKRAY,  1972,  p.  483).  O  que  faltava,  lá  como  em 
todo  lugar  nessa  época,  era  um  esforço  de  sistematização  desse  conhecimento  e  de 
profissionalização dessa atividade. Coube a Sarton levar essa tarefa adiante.
O propósito dessa história é o de investigar os fatos e ideias científicas, retraçar 
o progresso da mente humana (SARTON, 1948, pp. 29­55). Ao mesmo tempo em que 
enfatizava a humanidade como personagem, seu foco estava nos “grandes heróis”, nos 
gênios,  homens  à  frente  do  seu  tempo,  cujos  sacrifícios  serviram  ao  avanço  da 
civilização (SARTON, 1918, p. 197). É significativo que, para Sarton, a Introdução aos 

9  Não  podemos  esquecer  a  criação  de  uma  cátedra  de  Histoire  Générale  des  Sciences  no  Collège  de 
France, em 1892 (LAFFITTE, 2008).
10  Para  Sarton,  seria  Comte  o  fundador  da  história  das  ciências  e  o  que  primeiro  forneceu  à  expressão 
uma “conception claire et précise, sinon complète” (SARTON, 1913, p. 9). 
11  Apesar  de  ser,  por  vezes,  considerado  um  representante  da  vertente  externalista.  Cf.  MARKOVA, 
1977, p. 21. 
23
estudos históricos de Langlois e Seignobos, representantes máximos da escola metódica 
na França, figure entre os grandes tratados sobre o método histórico (SARTON, 1952, 
p.  72).  De  outra  parte,  Sarton  (1948,  pp.  32­40)  não  hesitava  em  ressaltar  o  aspecto 
“orgânico”  do  desenvolvimento  da  ciência,  querendo  com  isso  dizer  que  as  interações 
contínuas  entre  a  ciência  e  a  arte,  a  tecnologia,  a  religião,  o  direito,  a  política  e  a 
indústria  produziam  influências  recíprocas.  Apesar  disso,  insistia  ao  historiador  das 
ciências que “o objetivo do seu trabalho é essencialmente estabelecer as conexões entre 
as ideias científicas” (SARTON, 1948, p. 33)12.
Ainda  em  1919,  na  revista  Isis,  da  qual  é  o  fundador,  o  historiador  belga 
escreveu uma espécie de apelo ao mundo do pós­guerra no qual a história das ciências 
ocupava um papel fundamental. É nessa disciplina que se baseava sua proposta de um 
“Novo Humanismo”, na medida em que a ela poderia proporcionar uma mistura entre o 
“espírito histórico” e o “espírito científico”, entre vida e conhecimento, entre beleza e 
verdade (SARTON, 1919, p. 319). A história das ciências, nesse texto emblemático que 
é  War  and  civilization,  seria  uma  das  curas  para  o  abatimento  moral  e  o  ceticismo 
provocados pela guerra. Ao ressaltar a neutralidade da ciência através do exame da sua 
história,  poderíamos  livrá­la  da  acusação  de  crimes  de  guerra  e  atribuir  essa 
responsabilidade à sociedade. Poderíamos também retomar a história da civilização em 
seus  momentos  mais  elevados,  aqueles  das  grandes  realizações  científicas.  Por  fim,  o 
alegado espírito da troca livre e desinteressada da ciência, da colaboração internacional 
em busca da verdade independentemente das colorações políticas, cabia na imagem de 
um mundo que buscava reconciliação e reconstrução (SARTON, 1919).
Ao  compartilhar  certa  concepção  de  ciência  e  fazer  a  sua  história,  Sarton  se 
integrava  em  um  projeto  intelectual  em  curso,  mas  também  mirava  o  futuro.  Ao 
incorporar  toda  a  civilização  em  um  grande  encadeamento  intelectual  progressivo,  em 
um esforço coletivo de buscar a verdade que superava as divisões étnicas, nacionais e 
políticas  e  as  integrava  (sem,  contudo,  apagá­las),  essa  história  das  ciências  projetava 
um futuro diferente do mundo despedaçado e em conflito que havia atingido o seu ápice 
na  Primeira  Guerra  Mundial  (ou  assim  parecia,  antes  do  profundo  trauma  que  seria  a 
Segunda Grande Guerra).

12  No  original:  “the  aim  of  his  work  is  essentially  to  establish  the  connecting  links  between  scientific 
ideas”. Tradução minha.
24
O  maior  esforço  de  George  Sarton,  contudo,  não  foi  o  de  fundar  um  estilo  de 
escrita  da  história  das  ciências,  mas  o  de  inaugurar  propriamente  uma  disciplina.  Ele 
forneceu  uma  identidade  profissional  e  cognitiva  para  o  campo  (MERTON  e 
THACKRAY,  1972).  Criou  as  instituições,  as  carreiras,  os  temas  de  pesquisa,  as 
ferramentas  intelectuais.  Imaginou  uma  função  social  e  intelectual  para  a  sua 
empreitada.  Foi  um  incansável  propagandista  da  causa  da  história  das  ciências. 
Paradoxalmente, falhou em fazer com o que o seu programa de pesquisa fosse levado 
adiante. Não deixou seguidores ou criou uma “escola”13. Seu legado foi o de criar um 
ambiente para o desenvolvimento da história das ciências, especialmente nos EUA.
O  surgimento  dessa  disciplina  na  paisagem  de  divisão  intelectual  do  trabalho 
relaciona­se  à  vertiginosa  ascensão  da  ciência  ao  posto  de  fundamento  máximo  da 
Modernidade Ocidental, que ocorre entre meados do século XIX e início do século XX 
e  da  qual  emana  a  euforia  epistemológica  e  o  cientificismo  que  marcam  algumas  das 
mais  relevantes  investigações  sobre  a  ciência  no  período14.  À  história  das  ciências 
cabia, assim, legitimar o papel central desempenhado pela ciência, identificá­la com o 
progresso e com o que há de mais fundamental e precioso no projeto de Modernidade 
do  Ocidente.  Um  tipo  de  legitimação  diferente  daquele  desempenhado  pela  filosofia, 
que estava, nesse momento, empenhada em dissecar a linguagem da ciência e depurá­la 
da  metafísica  através  da  análise  lógica  dos  enunciados  científicos,  em  busca  de  um 
fundamento  filosoficamente  rigoroso  para  o  conhecimento  científico.  A  história  das 
ciências recorre à forma narrativa para relatar a trajetória épica dos heróis do saber, os 
grandes homens, responsáveis por conduzir a tocha do progresso e afastar a escuridão. 
Ela “internalizou os valores e reproduziu os ideais metafísicos dessas ciências” (MAIA, 
2013, p. 13). Se a história é responsável por, entre outras coisas, forjar subjetividades, 
construir a identidade dos homens e mulheres em relação à temporalidade, a história das 

13 Na sua famosa entrevista, Thomas Kuhn relata o isolamento de Sarton em Harvard e o modo como ele 
afastava  qualquer  interessado  em  pesquisar  a  história  das  ciências,  exigindo  um  grau  de  erudição 
absurdamente elevado, uma disciplina férrea e um compromisso monástico.
14  Sentimento  semelhante  pode  ser  identificado  também  em  relação  às  realizações  técnicas  (e 
tecnológicas) do período. As profundas transformações decorrentes do mundo industrial afetam todas as 
áreas da vida. Os diversos relatos de observadores e pensadores da época sobre as incríveis mudanças nas 
comunicações e nos transportes, cujo emblema é o sistema de ferrovias em rápida expansão por todo o 
mundo  ocidental,  estão  quase  sempre  impregnados  de  “excitação,  autoconfiança  e  orgulho” 
(HOBSBAWM, 2005, p. 97). Não foi à toa que a locomotiva se tornou um dos símbolos do progresso. 
Mesmo  críticos  desse  projeto  de  modernidade,  como  Marx  e  Engels,  não  deixaram  de  reconhecer  os 
espantosos progressos da “civilização burguesa”. Esse movimento arrastou também os Estados europeus, 
que  investiam  na  construção  de  obras  faraônicas  na  área  de  infra­estrutura,  embora  com  implicações 
diferentes daquelas que avaliamos aqui para a Política de Ciência e Tecnologia.
25
ciências  não  escapa  a  esta  sina.  Ela  seleciona  um  determinado  aspecto  da  identidade 
coletiva  no  tempo,  a  relação  com  o  conhecimento  científico,  e  constrói  daí  a  sua 
identidade.
Simultaneamente,  esse  processo  de  afirmação,  legitimação  e  cristalização  da 
posição  epistemologicamente  privilegiada  da  ciência,  “coincide”  com  a  expansão  de 
sistemas  baseados  na  ciência  no  interior  dos  Estados  nacionais.  Justamente  por  essa 
época  começa  a  se  configurar  um  movimento  que  buscava  instaurar  um  novo  pacto 
entre ciência e Estado. Inaugura­se um processo de construção da Política de Ciência e 
Tecnologia  como  parte  das  obrigações  inegociáveis  do  Estado,  processo  que  se 
aceleraria enormemente após o fim da Segunda Guerra Mundial. 
A prevalência de dois modelos ideais e opostos de escrita da história das ciências 
é uma característica que dominou a paisagem intelectual desse campo disciplinar entre 
as décadas de 1930 e 1970. Esses dois modelos, internalismo e externalismo, travaram 
uma  intensa  disputa  na  qual  colocavam  em  questão  as  condições  que  tornavam 
possíveis  uma  narrativa  histórica  sobre  as  ciências.  Ao  iniciado  no  ofício,  cabia 
posicionar­se em um dos lados da disputa. 
Nesse período, parecia bastante evidente aquilo que pertencia ao âmbito interno 
das ciências e aquilo que se chamava de externo. O “lado de dentro” das ciências seria 
composto por pensamento e ideias, teorias e teoremas, fórmulas e conceitos, hipóteses e 
leis, resultados experimentais. Em suma, o conteúdo cognitivo. Do “lado de fora”, por 
sua  vez,  fariam  parte  as  instituições  de  pesquisa,  as  agências  de  fomento  e  o  suporte 
material  no  qual  o  conteúdo  se  expressa  (periódicos  especializados,  livros),  as 
comunidades científicas e suas normas, as formas de sociabilidade e comunicação dos 
resultados; mas também a estrutura econômica e social, os regimes políticos, a cultura, a 
religião, as artes. Em uma palavra, o contexto.
Para  interpretar  algumas  das  marcas  distintivas  da  identidade  disciplinar  da 
história  das  ciências  na  primeira  metade  do  século  XX,  quero  destacar  aqui  a  sua 
relação  com  esse  projeto  global  para  a  ciência.  Quero  conectar  as  práticas  intelectuais 
desses historiadores ao conjunto de práticas sociais em relação às ciências. Para tanto, é 
preciso dar um passo arriscado – que poderia cair na perspectiva assimétrica que tanto 
evito – e recolocar algumas questões estratégicas. O que se ganha com a concepção que 
emerge  do  internalismo?  Quem  se  beneficia  do  externalismo?  Que  modelos  de  pacto 

26
entre  ciência  e  Estado  são  construídos,  sancionados,  reforçados  e  que  modelos  são 
criticados e denunciados pela história das ciências de uma ou de outra matriz? 
Não se trata de uma simples redução da perspectiva internalista, de uma história 
intelectual  das  ciências,  aos  valores  do  liberalismo  e  da  lógica  do  mercado;  ou  da 
história social das ciências, externalista, ao socialismo e à planificação. Não se trata de 
perceber  essas  vertentes  como  mero  verniz  historiográfico  de  atitudes  ideológicas  em 
relação às ciências. Trata­se de perceber como essas correntes emergem no interior de 
um  campo  de  possibilidades  específico,  como  elas  são  fruto  de  configurações  sócio­
históricas que as determinam e com a qual estabelecem variadas formas de relação, que 
podem ser de reforço ou de contestação.
Para  isso,  é  preciso  apontar  para  os  principais  traços  que  caracterizavam  a 
relação  entre  a  ciência  e  o  Estado  nas  primeiras  décadas  do  século  XX  de  modo  a 
conectá­la  a  esse  projeto  global  para  as  ciências  do  qual  a  historiografia  das  ciências 
também faz parte.
No  período  anterior  à  Segunda  Guerra  Mundial,  ciência  e  tecnologia  não  eram 
objeto de políticas públicas sistemáticas. Obviamente, são bem conhecidos os esforços 
que  fizeram  os  Estados  nacionais  para  financiar  e  apropriar­se  dos  conhecimentos 
científicos  em  áreas  estratégicas,  principalmente  desde  o  final  do  século  XVIII,  e  os 
esforços  de  filósofos  naturais  e  cientistas  para  tornar  estratégicas  suas  ciências  e 
arregimentar  o  Estado  para  a  sua  causa.  “A  ‘racionalização’  progressiva  da  sociedade 
depende  da  institucionalização  do  progresso  científico  e  técnico”,  afirma  Habermas 
(1987,  p.  45,  grifo  meu)15.  No  entanto,  não  devemos  superestimar  o  lugar  da  ciência 
nos  projetos  de  organização  do  Estado  antes  do  século  XX,  mesmo  em  países  de 
capitalismo  mais  avançado,  como  Inglaterra,  Prússia,  Alemanha  (depois  de  1871)  e 
França.  A  literatura  que  trata  das  Políticas  de  Ciência  e  Tecnologia  geralmente  marca 
em  1945  o  início  dessa  atividade  (ABIR­AM,  1982;  MOSELEY,  1978;  SALOMON, 
1977; VELHO, 2011)16.
Russel  Moseley  descreve  minuciosamente,  por  exemplo,  os  arranjos  instáveis 
que  acompanharam  a  instalação  e  consolidação  do  National  Physical  Laboratory,  do 

15  O  tom  desse  famoso  ensaio,  Técnica  e  ciência  como  “ideologia”,  é  de  crítica  à  função  dessa 
racionalização no interior das sociedades capitalistas industriais. O trecho citado aparece logo no primeiro 
parágrafo para resumir a posição de Max Weber em relação à modernização; Habermas não compartilha 
integralmente da posição de Weber, mas parece concordar com essa afirmação.
16 Ver também a revista Science and Public Policy.
27
Reino  Unido,  nos  primeiros  anos  do  século  XX  (o  laboratório  foi  fundado  em  1900). 
Mostra  como  vários  personagens  históricos  –  indivíduos  e  instituições  –  foram 
arregimentados  e  se  comportaram  em  relação  ao  papel  do  Estado  na  condução  da 
pesquisa científica. O Estado não foi iluminado pelo espírito do progresso e passou a ter 
fé  na  ciência.  Havia  várias  forças  sociais  em  disputa,  manifestações  de  interesses 
variados e argumentos conflitantes, vitórias e derrotas no âmbito dos projetos sociais (e 
intelectuais) em jogo. 
Os  esforços  de  um  grupo  coeso  e  importante  de  físicos  (apoiados  pela  Royal 
Society,  por  exemplo),  que  manipulava  basicamente  dois  tipos  de  argumentos  para 
justificar  o  investimento  dos  fundos  públicos  britânicos  em  uma  “instituição  de 
pesquisa”.  De  um  lado,  ressaltavam  o  papel  fundamental  da  ciência  para  a  atividade 
industrial, destacando a produção de padrões de medida rigorosos, o estabelecimento de 
constantes físicas precisas e a execução de testes das propriedades físicas de materiais 
comumente  utilizados  na  indústria.  De  outro  lado,  citavam  frequentemente  as 
experiências internacionais (especialmente na Alemanha) e a suposta velocidade com a 
qual outros países adquiriam vantagens industriais e econômicas resultantes da pesquisa 
científica,  explorando  o  clima  de  preocupação  com  a  competição  industrial 
internacional (MOSELEY, 1978). 
Mediavam,  assim,  uma  ligação  entre  a  pesquisa  de  ligas  metálicas,  calor  e 
eletromagnetismo e a posição ocupada pelo Reino Unido no quadro do desenvolvimento 
das nações.
De  outra  parte,  esse  projeto  encontrava,  quando  foi  inicialmente  apresentado, 
pouca receptividade e resistências declaradas. O governo reclamava insistentemente dos 
custos  e  se  resguardava  na  ortodoxia  liberal  (que  começava  a  mostrar  suas  primeiras 
fissuras),  encontrando  eco  em  setores  influentes  da  “opinião  pública”.  Os  laboratórios 
privados e as Universidades pediam a limitação clara das atividades da nova instituição, 
preocupados  com  a  sobreposição  de  funções  e  a  disputa  por  espaço  social.  Nesse 
conjunto  intrincado,  o  projeto  de  um  laboratório  público  de  física  foi  aos  poucos 
ganhando  terreno,  aliando­se  a  setores  influentes  do  governo  (MOSELEY,  1978).  As 
frequentes  dificuldades  na  liberação  de  recursos  para  o  National  Physical  Laboratory, 
no  período  compreendido  entre  1900  e  1914  “refletiam  a  inabilidade  do  governo  de 
apreciar o valor da pesquisa orientada para a indústria” (MOSELEY, 1978, p. 238, grifo 
meu)17.  Não  seria  o  caso  de  perguntarmos  pelos  motivos  históricos  dessa 
28
“inabilidade”? A história das ciências não deve tomar como problemático algo que hoje 
nos  parece  evidente,  a  necessidade  de  se  investir  recursos  públicos  na  pesquisa 
científica?
Situação  semelhante  foi  descrita  para  o  Império  Germânico  quando  da  criação 
do Instituto Imperial de Física e Tecnologia (Physikalisch­Technische Reichsanstalt) em 
188718, após um longo processo de propostas e contrapropostas que durou quase quinze 
anos  (PFETSCH,  1970).  Apesar  da  existência  de  um  número  considerável  de 
“instituições  científicas”  bancadas  pela  Prússia  ou  pelos  pequenos  estados  que 
formavam a Confederação Germânica e que foram mantidas com subsídio estatal depois 
da  unificação  alemã  de  1871,  a  criação  de  uma  instituição  pública  com  o  objetivo  de 
centralizar a padronização de medidas e a engenharia de precisão encontrou resistências 
importantes.  Setores  liberais  do  governo  imperial  se  mostravam  contra  a  ideia  de  um 
organismo  público  voltado  a  corrigir  as  imperfeições  do  setor  industrial  privado.  Ao 
mesmo  tempo,  um  grupo  de  cientistas  via  com  receio  a  criação  do  Instituto,  pois 
percebiam  sua  função  centralizadora  como  uma  ameaça  à  liberdade  de  pesquisa,  além 
de  uma  possível  sobreposição  de  funções  que,  segundo  esse  grupo,  poderiam  ser 
supridas pelas instituições já existentes (especialmente as universidades) ou pela própria 
iniciativa privada que tivesse interesse no estabelecimento de padrões mais rigorosos.
Os defensores do projeto – uma aliança inusitada de forças políticas comumente 
em  conflito  (industriais,  trabalhistas  e  monarquistas  conservadores)  –,  por  sua  vez, 
afirmavam que o desempenho da economia alemã seria positivamente impactado, que a 
manutenção da ortodoxia liberal frente ao novo contexto internacional seria um erro e 
que o Estado poderia exercer uma intervenção compensatória e reguladora em casos de 
cenários  negativos  e  como  prevenção  a  estes.  Aos  cientistas  descontentes,  respondiam 
argumentando que atribuir ao governo imperial a obrigação da manutenção de pesquisa 
orientada  para  a  indústria  (e  a  economia,  de  modo  mais  geral)  liberaria  forças  para 
serem alocadas em outros tipos de investigação nas universidades, além de tratarem de 
problemas  cujos  investimentos  necessários  ultrapassavam  as  possibilidades  da  grande 
maioria das instituições envolvidas em pesquisa científica à época (PFETSCH, 1970).

17  No  original:  “reflected  the  inability  of  the  government  […]  to  appreciate  the  value  of  industrially 
oriented research”. Tradução minha.
18  Esse  instituto  serviu  constantemente  de  modelo  de  sucesso  para  o  National  Physical  Laboratory 
britânico, já citado, e para o National Bureau of Standards dos Estados Unidos, fundado em 1901.
29
Os  princípios  liberais  poderiam  ser  reforçados  por  membros  do  governo 
contrários à proposta – que pregavam maior rigor nos gastos públicos e condenavam a 
natureza  centralizada  da  instituição  proposta  –,  ou  flexibilizados  por  alguns  dos  seus 
frequentes defensores, como os capitães da indústria, por perceber em instituições desse 
tipo uma forma de fazer com que o Estado assumisse os custos de conduzir pesquisas 
que  poderiam  ter  resultados  benéficos  para  as  suas  empresas.  O  grande  inventor  e 
industrial  Werner  Von  Siemens,  por  exemplo,  escreveu  um  memorando  para  o 
parlamento  Imperial,  em  1887,  no  qual  explicita  a  relação  linear  entre  pesquisa 
científica,  progresso  tecnológico,  melhoramento  da  indústria  e  avanço  econômico 
(PFETSCH, 1970, p. 571­572). Assim, a promoção da ciência era apresentada por seus 
defensores como meio para um fim, a manutenção da posição de destaque econômico 
do  Império  Germânico  no  mercado  mundial.  O  sucesso  no  estabelecimento  dessa 
instituição foi, em parte, resultado do sucesso desse argumento.
Uma  variação  um  pouco  mais  sofisticada  dessa  ideia  foi  utilizada  também  nas 
tentativas  de  estabelecimento  de  um  sistema  de  financiamento  público  da  pesquisa 
científica na França do período entre guerras. Lá, uma campanha orquestrada a partir do 
começo dos anos 1920 por cientistas de prestígio – como Marie Curie e sua filha Irène, 
Frédéric  Joliot­Curie,  Paul  Langevin  e  Jean  Perrin  –  tentava  convencer  o  governo  da 
necessidade  de  investir  seus  recursos  na  pesquisa.  A  educação  superior  e  as 
Universidades já contavam com apoio estatal desde meados do século XIX, garantindo 
a formação superior, especialmente voltada para as áreas economicamente estratégicas 
(assim  como  na  maioria  dos  países  europeus  no  período).  No  entanto,  os  cientistas 
formados  nessas  instituições  tinham  poucas  opções  para  viver  de  ciência,  escolhendo 
entre a docência ou a indústria. As pesquisas conduzidas nesse período eram bancadas 
por  meio  de  atividades  filantrópicas  ou  com  fundos  pessoais  de  cientistas  mais 
abastados. Esse sistema era considerado insuficiente e responsável pela má situação da 
ciência francesa, que via seus históricos rivais, Inglaterra e Alemanha, ultrapassarem­na 
(WEART, 1979).
O apoio à ciência não surgia como uma necessidade apenas para os liberais que 
buscavam reverter os investimentos em benesses econômicas para a iniciativa privada. 
A defesa das aplicações práticas da ciência nas atividades econômicas, no caso francês, 
fazia  parte  de  uma  ideologia  de  esquerda  mais  ampla,  explícita  nesse  grupo  de 
cientistas,  que  herdara  do  Iluminismo  uma  forte  crença  na  ciência  como  maior 
30
expressão  do  espírito  humano  e  possuía  um  componente  utópico  expresso  na 
possibilidade  da  ciência  produzir  riqueza  e  bem­estar  suficientes  para  acabar  com  as 
desigualdades  (desde  que  gerenciada  para  tanto).  Essa  visão  encontrou  espaço  no 
governo  com  a  vitória  do  Cartel  des  Gauches,  uma  coalizão  de  várias  tendências  da 
esquerda francesa, nas eleições de 1932. Esse novo ambiente político preparou o terreno 
para a criação do CNRS em 1935, na época chamado Caisse Nationale de La Recherche 
Scientifique19, uma instituição de escopo bem mais amplo do que o National Physical 
Laboratory  ou  o  Instituto  Imperial  de  Física  e  Tecnologia,  que  empregou  várias 
centenas  de  cientistas  envolvidos  apenas  em  atividades  de  pesquisa  antes  da  Segunda 
Guerra  Mundial  (WEART,  1979).  Com  a  ascensão  da  Alemanha  nazista  e  o  início  da 
guerra,  no  entanto,  esses  argumentos  se  tornam  praticamente  irrelevantes.  A  ciência 
tinha  caráter  de  urgência  e  seus  recursos  provinham  agora  das  verbas  militares  e  de 
defesa.  
Do outro lado do Atlântico Norte, a situação era consideravelmente distinta. O 
sistema  de  patronagem  privada  foi  extremamente  bem  sucedido  entre  1900  e  1939  – 
com as instituições filantrópicas que retiravam recursos das fortunas dos Rockefeller e 
dos Carnegie, por exemplo – e garantia a maior parte do financiamento da ciência nos 
Estados Unidos (KOHLER, 1991).
Foram  as  transformações  estruturais  que  ocorreram  nas  ciências  e  nos  Estados 
nacionais entre o último quartel do século XIX e o fim da Segunda Guerra Mundial que 
modelaram uma nova forma de articulação entre o poder público e a pesquisa científica 
e  levaram  à  substituição  da  antiga  “patronagem”  estatal  por  aquilo  que  se  pode 
propriamente  chamar  de  Política  de  Ciência  e  Tecnologia  (ABIR­AM,  1982,  p.  342). 
Ao  fim  da  Segunda  Guerra  Mundial,  o  Estado  estava  iluminado  pelo  espírito  do 
progresso  e  exibia,  orgulhoso,  a  sua  fé  na  ciência.  Essas  transformações  não  atingem 
apenas  os  Estados,  mas  também  o  mercado.  O  crescimento  dos  setores  farmacêutico, 
elétrico e químico, baseados em conhecimentos técnicos e científicos, era marcante nas 
economias  mais  dinâmicas  do  período,  beneficiando­se  do  rápido  crescimento  do 
número de profissionais especializados (fruto das políticas educacionais desses Estados 
desde  a  segunda  metade  do  século  XIX)  e  demandando,  por  sua  vez,  um  maior 
investimento na ciência e na tecnologia.    

19  O  CNRS  assumiu  a  atual  nomenclatura  em  1939,  após  a  sua  fusão  com  o  Centre  National  de  la 
Recherche Scientifique Appliquée.
31
A  consolidação  dessa  nova  situação  passa  pela  consideração  da  ciência  como 
uma ferramenta indispensável para o progresso material, uma concepção que já estava 
disponível e frequentava os circuitos eruditos há vários séculos. 
A  articulação  da  ciência  como  um  “saber­fazer”,  que  visava  não  apenas  o 
conhecimento  da  natureza,  mas  o  seu  domínio  e  transformação  é  um  dos  mitos  de 
fundação da Modernidade, inaugurado na filosofia de Francis Bacon. “Conhecimento é 
poder” é o slogan desse programa que aproxima ciência e técnica, verdade e utilidade. 
Essa locução destacada vincula­se à ascensão de valores ligados à burguesia mercantil, 
como  a  valorização  de  uma  dimensão  mais  ativa  diante  do  mundo,  seja  através  da 
recuperação  das  artes  mecânicas  como  fonte  de  conhecimento,  seja  pelo 
estabelecimento do trabalho como fundamento legítimo do poder econômico e político, 
em  contraposição  aos  direitos  de  berço  e  aos  privilégios  nobiliárquicos  (OLIVEIRA, 
2010; JAPIASSÚ, 2001; ROSSI, 1989; ZILSEL, 2000). 
A ciência não comporta apenas essa dimensão ativa, de dominação da natureza 
(o  deslizamento  da  forma  inquérito  do  domínio  jurídico  para  o  científico, 
magistralmente explorado por Foucault [1999], aponta para uma postura quase tirânica 
frente  à  natureza).  Existe  outra  dimensão  de  importância  capital  que  opera 
discursivamente  na  chave  da  pureza,  da  ingenuidade  e  do  arrebatamento  diante  da 
natureza. Nesse modo, o cientista se transfigura em uma criança curiosa que brinca e se 
encanta  com  fenômenos  naturais  (CASTELFRANCHI,  2008,  pp.  189­190).  Qualquer 
aspiração  ao  poder  e  à  dominação  é  aí  uma  invasão,  um  atentado  à  liberdade  da 
pesquisa.  Esses  dois  modos  de  caracterizar  a  atividade  científica  estiveram 
constantemente imbricados em um tipo de relação que não é meramente de legitimação 
mútua  (do  tipo:  “deixe­me  brincar,  pois  o  resultado  será  importante”  ou  “não  me 
envolva  em  questões  políticas,  estou  apenas  exercendo  a  pura  curiosidade”).  Muitas 
pesquisas  foram  efetivamente  guiadas  por  um  princípio  (um  ethos?)  de  pureza  e 
desinteresse.  Essa  duplicidade  é  uma  das  responsáveis  pelo  sucesso  da  ciência  em 
conquistar  a  hegemonia  ideológica  na  Modernidade.  É  também  responsável  por  gerar 
certo  sentimento  de  ambiguidade  e  contradição,  como  expressou  Irène  Joliot­Curie 
(S/D, p. 19) em uma emissão radiofônica no final dos anos 1930:
Creio  que  o  que  caracteriza  realmente  um  trabalho  de  Pesquisa 
Científica  é  que  ele  destina  a  satisfazer  uma  curiosidade 
desinteressada;  circunstância  paradoxal,  é  também  esse  gênero  de 

32
trabalho  que  tem,  finalmente,  as  consequências  práticas  mais 
sensacionais.20 
A  guinada  operativa  da  ciência,  no  entanto,  não  conseguiu  se  estabelecer  para 
além das práticas discursivas de cientistas e filósofos. É só a partir da segunda metade 
do  século  XIX  que  as  promessas  dessa  ideologia  científica  começam,  timidamente,  a 
frutificar21.  Nesse  período,  então,  ela  pode  ser  atualizada,  articulada  a  novos 
argumentos e evidências e reconfigurada para que funcione no novo contexto social. A 
ciência liberava a sua potência e se qualificava para ocupar uma nova posição, central, 
na estrutura social.
O  suporte  a  esse  novo  lugar  social  da  ciência  vem  das  rápidas  mudanças 
atravessadas desde meados do século XIX – como a utilização significativa de insumos 
químicos na indústria, a utilização da eletricidade, os avanços médicos proporcionados 
pela  microbiologia.  Nos  primeiros  anos  do  século  XX,  a  euforia  epistemológica 
alcançava  patamares  elevados  com  as  revoluções  que  ocorriam  naquela  que  era  a 
ciência  paradigmática  por  excelência,  a  Física.  A  física  quântica  e,  principalmente,  a 
teoria  da  relatividade  levaram  os  temas  esotéricos  da  pequena  comunidade  científica 
para audiências mais amplas. Não havia, aparentemente, como ficar imune à sedução da 
ciência, aos seus poderes. Finalmente, as promessas de abundância pareciam prestes a 
se concretizar. A qualquer momento, o antigo desejo dos alquimistas se realizaria pelas 
mãos dos seus (pretensos) inimigos ideológicos22.
Os  poderosos  Estados  nacionais  europeus  não  seriam  convencidos  apenas  por 
bons  argumentos.  Era  preciso  que  a  materialidade  das  lâmpadas  elétricas,  micróbios  e 
radiografias fossem arregimentados para as fileiras da campanha da ciência. Ao mesmo 

20 No original: “Je crois que ce qui caractérise réellement um travail de Recherche Scientifique, c’est 
qu’il est destine à satisfaire une curiosité désintéressée; circonstance paradoxale, c'est aussi ce genre de 
travail qui a finalement les conséquences pratiques les plus sensationnelles”. Tradução minha.
21  O  termo  “ideologia”  não  aparece  aqui  no  sentido  que  alguns  marxistas  lhe  atribuem,  como  “falsa 
consciência”;  está  mais  próximo  de  um  estilo  de  pensamento  ligado  a  uma  posição  social,  como  na 
definição de Karl Mannheim (1986). Ao reduzir a ideologia ao seu caráter ilusório, mistificador, submisso 
aos critérios do falso e do verdadeiro, a sua capacidade de mobilização do mundo se enfraquece. Contudo, 
é preciso notar certa ambiguidade do termo na obra do sociólogo húngaro. Ideologia aparece como: a) um 
sentido mais restrito, sistema de representação “conservador”, destinado à manutenção da ordem social, 
em oposição à utopia, que é um conjunto orientado para o futuro, para a mudança social, contendo uma 
função  transformadora;  e  também  b)  uma  dimensão  já  referida  de  visão  de  mundo  socialmente 
dependente,  a  “ideologia  total”,  que  engloba  ideologias  e  utopias  particulares  (MANNHEIM,  1986; 
LÖWY, 2000).    
22  Claro  que  essa  leitura  do  processo  revolucionário  no  âmbito  das  ciências  físicas  no  período 
compreendido entre 1895 e 1905 parte de uma concepção simultaneamente racionalizada e mitificada de 
um processo que se desenvolve de maneira mais complexa, recalcitrante e devedora de desenvolvimentos 
anteriores do que a imagem de uma revolução profunda nas maneiras como vemos o Universo (KRAGH, 
1996, p. 61)
33
tempo,  é  muito  provável  que  tais  “evidências”  não  tivessem  tanto  impacto  caso  não 
fossem articuladas por um imaginário tão poderoso, que por tanto tempo fermentou na 
mentalidade ocidental.
Esse  imaginário  adquire  uma  expressão  radical  no  cientificismo.  É  preciso 
realizar  aqui  um  breve  desvio  para  explicar  esse  conceito.  O  cientificismo  pode  ser 
definido  a  partir  de  algumas  características:  1)  a  identidade  entre  ciência  e 
conhecimento,  que  concebe  a  ciência  como  a  única  forma  possível  de  conhecer  o 
mundo,  a  única  ferramenta  intelectual  preparada  para  atingir  a  verdade;  2)  do  ponto 
anterior decorre a concepção da ciência como uma forma epistemologicamente superior 
a outros tipos de interpretação ou explicações da realidade; 3) outra decorrência é que a 
ciência, e apenas ela, é capaz de explicar toda a realidade – não há nada digno de valor 
epistemológico fora da ciência; 4) por ser a única expressão intelectual verdadeira (ou, 
ao  menos,  capaz  de  atingir  a  verdade),  a  ciência  é  a  única  forma  de  nos  guiar 
objetivamente na realidade e, por isso, tem garantida também uma superioridade moral. 
Esse  último  ponto  é  muito  relevante,  pois  ele  se  vincula  a  uma  concepção  da  função 
social  da  ciência.  Como  veremos  no  Capítulo  5  desta  tese,  os  “defensores  da  ciência” 
nos  anos  1990  vão  interpretar  os  “ataques  à  ciência”  como  “ataques  à  civilização 
ocidental”. 
O cientificismo é uma atitude filosófica que atribui certa onipotência à ciência, 
outorgando­lhe  o  domínio  completo  do  campo  intelectual  e  um  forte  componente  de 
autoridade moral. Peter Schöttler (2013) traça uma genealogia política desse conceito e 
identifica  seu  surgimento  no  terço  final  do  século  XIX.  Concentrando  sua  análise  no 
espaço  discursivo  francês,  esse  historiador  vai  analisar  a  emergência  do  conceito  no 
interior das disputas entre ciência e religião que se acirram às vésperas do século XX e 
se espraiam até o começo da Primeira Guerra Mundial. A acepção pejorativa do termo 
já data desse momento e uma das tarefas dos propagandistas de uma visão científica do 
mundo  foi  a  de  incorporar  o  termo  ao  seu  vocabulário  e  conferir­lhe  um  significado 
positivo.  A  invenção  do  cientificismo  era,  assim,  uma  reação  conservadora,  tentando 
mostrar  que  a  ciência  não  era  capaz  de  suprir  a  humanidade  de  certas  necessidades 
espirituais  e  que  ela  não  poderia  responder  a  determinadas  questões  existenciais  de 
cunho metafísico. A sua incorporação ao vocabulário dos cientistas e seus partidários e 
publicistas  não  conseguiu  esvaziar  o  conceito  do  seu  conteúdo  pejorativo,  seu  uso 

34
permanece tendo, quase sempre, um tom de denúncia dos abusos da ciência, indicando 
uma postura dogmática. 
Apesar disso, essa atitude perante o mundo teve imenso sucesso no século XX, 
será um dos traços da visão de mundo hegemônica. Ele surge ora como um otimismo 
exagerado em relação ao potencial da ciência em resolver os problemas sociais (muitas 
vezes  problemas  gerados  pela  própria  ciência),  ora  como  um  dos  fundamentos  da 
tecnocracia  e  de  totalitarismos.  O  cientificismo  surgirá  nesta  tese  como  um  “desastre 
ideológico”  (MAIA,  2013,  p.  30),  um  elemento  que  aparecerá  frequentemente  não 
apenas como um obstáculo à transformação da ciência em objeto da história, mas como 
uma ameaça à democracia e ao pleno exercício da cidadania.   
Retornando  à  corrente  principal  da  narrativa,  é  fundamental  notar  que 
disciplinarização e a institucionalização da história das ciências ocorre simultaneamente 
à transição entre esses modelos e a organização da Política de Ciência e Tecnologia, no 
seio da reativação desse imaginário sobre a ciência.
Analistas  da  Política  de  Ciência  e  Tecnologia  têm  ressaltado  as  formas  pelas 
quais  a  concepção  dominante  de  ciência  “modela”  as  relações  entre  ciência  e  Estado 
(VELHO,  2011).  A  história  das  ciências  seria  um  dos  agentes  de  transformação  dessa 
concepção da qual essas políticas seriam o resultado. Escolher uma maneira de escrever 
a história das ciências é uma forma de atuar politicamente, interferir na agenda pública. 
No  entanto,  não  devemos  supervalorizar  o  papel  da  história  das  ciências  nessa 
transformação que ocorre entre fins do século XIX e início do XX. Em primeiro lugar, 
porque  o  seu  surgimento  como  disciplina  autônoma  é  concomitante  às  mudanças  às 
quais tenho me referido; em segundo lugar, porque a sua produção não circulava muito 
além  do  seu  próprio  campo  e  áreas  intelectuais  afins,  ela  não  possuía  (e  ainda  não 
possui)  capilaridade  suficiente  para  influenciar  decisivamente  na  alteração  da  imagem 
da ciência em todo o corpo social ou mesmo nos grupos responsáveis pelas tomadas de 
decisão, capazes de alterar a Política de Ciência e Tecnologia.
As  apropriações  e  releituras  que  caracterizam  a  ideologia  da  ciência 
normalmente  acabam  por  remeter­se  a  um  tipo  de  visão  do  passado  das  ciências 
incessantemente  criticada  por  Thomas  Kuhn:  a  imagem  “de  manual”,  utilizada  como 
ilustração  com  fins  pedagógicos  e  que  transmite  uma  imagem  oficial,  anacrônica  e 
hagiográfica  do  empreendimento  científico.  De  qualquer  maneira,  a  maioria  dos 
historiadores das ciências atuantes à época não estava muito disposta a apresentar uma 
35
imagem  diferente  dessa.  A  relevância  funcional  dessa  mitologia  para  o  edifício 
científico  foi  enfatizada  pelo  próprio  Thomas  Kuhn  (2001,  pp.  173­182).  A  alegação 
frequente  de  desmistificação  da  ciência  não  passava  de  correções  pontuais  que 
mantinham intacta essa estrutura narrativa e, principalmente, a imagem de ciência dela 
decorrente.  Como  já  afirmei  acima,  a  história  das  ciências  nesse  período  não  foi 
praticada por historiadores profissionais, sendo muitas vezes uma atividade diletante de 
cientistas ou realização de filósofos (KUHN, 2011a, p. 127; MAIA, 2013). 
Por  ora,  é  importante  considerar  que  a  história  das  ciências  não  é  apenas 
produtora  de  uma  imagem  da  ciência,  ela  é  também  consumidora  de  concepções  que 
circulam  em  determinada  configuração  sócio­histórica,  funcionando  como  espaço  de 
reverberação,  formulação  e  legitimação  de  certos  interesses  sociais.  A  história  das 
ciências, nessa perspectiva, passa de agente de transformação da imagem da ciência no 
tecido  social  para  uma  posição  mais  passiva,  de  reprodutora  de  imagens  e  valores 
produzidos alhures.
Por  outro  lado,  apesar  dessas  ressalvas,  poderíamos  argumentar  que  a  história 
das  ciências  fornece  um  dos  únicos  acessos  “autorizados”  para  a  ciência  do  passado, 
através  do  uso  controlado  e  sistemático  das  fontes  originais,  o  que  pretensamente 
garantiria  precisão  e  objetividade.  Desse  modo,  o  surgimento  da  história  das  ciências 
como  disciplina  autônoma  e  regida  por  normas  de  erudição  e  coerção  do  discurso 
responde  à  participação  cada  vez  maior  da  ciência  na  construção  da  “identidade 
ocidental” a partir de meados do século XIX. A ciência, não estando mais restrita aos 
seus  praticantes,  mas  espraiando­se  por  todas  as  esferas  da  sociedade,  precisa  ter  seu 
desenvolvimento  histórico  compreendido,  domesticado  e  regulado  por  formas 
socialmente  sancionadas  de  discurso.  A  escrita  da  história  das  ciências  seria  um 
exercício reflexivo, de auto­conhecimento, uma racionalização de certas características 
do sujeito moderno com vias à tomada de consciência e ao auto­controle. 
A  história  das  ciências  realiza  a  seu  tempo  aquilo  que  Reinhart  Koselleck 
apontou em sua análise do surgimento da ciência da história. A conquista da autonomia 
intelectual  da  história,  das  suas  condições  de  cientificidade  e  da  sua  função  no 
vocabulário político se constroem simultaneamente e “a gênese do moderno conceito de 
História coincide com a sua função social e política” (KOSELLECK, 2013, p. 186)23. 

23  A  sequência  dessa  passagem  citada  é  significativa  da  postura  do  historiador  alemão  em  relação  à 
determinação  social  do  conhecimento,  uma  postura  diversa  da  que  adoto  aqui.  Para  ele,  “a  gênese  do 
36
Mais adiante nesse texto, o autor enfatiza que:
Nações, classes, partidos, seitas e outros grupos de interesse podiam – 
e  até  deveriam  –  recorrer  à  História,  na  medida  em  que  a  derivação 
genética da posição que o respectivo grupo defendia lhe dava o direito 
à  existência  dentro  do  campo  de  ação  político  ou  social 
(KOSELLECK, 2013, p. 188). 
Assim,  a  produção  de  sentido  e  a  orientação  temporal  se  apresentam  como 
funções fundamentais (embora não exclusivas) na emergência da história das ciências. 
Duas  formas  de  encarar  essa  disciplina  –  como  interferência  política  e  como  reflexão 
identitária – estão entrelaçadas.
Tendo ressaltado isso, pretendo investigar de que maneiras a historiografia – ao 
avaliar  a  ciência  do  passado  –  dialogou  com  o  seu  presente?  Como  a  historiografia 
transitava  entre  duas  imagens  de  ciência  e  as  colocava  em  diálogo  por  meio  da  sua 
narrativa,  as  aproximava  e  distanciava,  enxergava  traços  de  continuidade  e  pontos  de 
ruptura,  intercambiava  valores  e  objetivos,  projetava  expectativas  e  experiências? 
Especificamente,  para  o  que  aqui  me  interessa,  como  a  articulação  entre  fatores 
“internos”  e  “externos”,  a  demarcação  do  espaço  epistêmico,  social  e  institucional  da 
ciência se relacionava com a condição da ciência no presente da escrita? 
Antes de prosseguir a análise com uma leitura do modo internalista de escrever 
história da ciência, é preciso tecer duas considerações. Em primeiro lugar, a questão não 
pode  ser  posta  na  forma  de  uma  redução.  Interpretações  internalistas  admitem  a 
relevância de fatores externos e vice­versa. Essas duas formas de encarar a história das 
ciências estão completamente de acordo no estabelecimento das fronteiras entre o que é 
intrínseco  à  ciência  e  aquilo  que  lhe  é  estranho,  exterior.  No  entanto,  o  ponto  no  qual 
essas  correntes  divergem  se  dá  na  relação  estabelecida  entre  os  fatores,  no  papel  que 
cada tipo de fator desempenha no “resultado”, no conhecimento científico efetivamente 
produzido.  Quem  é  o  motor  das  transformações  da  ciência,  o  “conteúdo”  ou  o 
“contexto”? 
Em  segundo  lugar,  não  pretendo  fazer  um  inventário  de  autores  em  seus 
respectivos  grupos.  No  início  desse  capítulo,  caracterizei  o  internalismo  e  o 
externalismo como “modelos ideais”, o que acarreta em uma posição que não considera 
os  historiadores  como  pertencendo  completamente  a  uma  ou  outra  dessas  correntes. 

moderno conceito de História coincide com a sua função social e política – sem naturalmente se limitar a 
ela”.  Com  isso,  ele  entendia  certa  validade  duradoura  das  formulações  teórico­científicas  da  história  à 
despeito da sua vinculação a um lugar social de produção.
37
Assim,  o  foco  da  minha  investigação  estará  nos  argumentos  mobilizados  em  favor  de 
uma  ou  outra  vertente,  na  forma  como  esses  tipos  de  visão  conformam  uma  narrativa 
histórica  e  como  eles  constituem  práticas  discursivas  que  emergem  em  diálogo  com 
outras  formas  de  considerar  o  lugar  da  ciência  na  trama  histórica  que  chamamos  de 
sociedade.  Obviamente,  me  servirei  de  exemplos  que  se  utilizam  efetivamente  desses 
argumentos para a explicação da história das ciências; esse corpus textual, no entanto, 
não nos permite rotular os autores.
Comecemos  então  por  aquele  que  considero  o  argumento  axial  da  explicação 
internalista: a centralidade da teoria. Herbert Butterfield caracteriza a ciência moderna 
como  uma  nova  “atividade  mental”  conduzida,  em  seus  traços  essenciais,  por  homens 
sem  acesso  a  novas  observações  ou  novas  evidências,  mas  que  estavam  dispostos  a 
pensar  de  maneira  diferente  sobre  dados  já  conhecidos,  situá­los  diante  de  um  novo 
enquadramento  teórico  (BUTTERFIELD,  1982,  p.  11­12).  Ao  examinar  a  história  da 
química  com  vistas  a  estabelecer  as  razões  que  retardaram  a  sua  entrada  no  rol  das 
ciências  modernas,  o  professor  Butterfield  assevera  que  “a  experimentação  e  nem 
mesmo  os  progressos  da  técnica  foram  suficientes  por  si  sós  para  estabelecer  a  base 
sobre  a  qual  se  pudesse  construir  o  que  chamamos  ‘ciência  moderna’” 
(BUTTERFIELD, 1982, p. 193)24. Assim, a explicação para a derrocada da alquimia se 
dá  pelo  seu  fracasso  em  se  adaptar  à  estrutura  de  pensamento  da  nova  ciência  e  a 
química  do  flogisto  é  apresentada  como  uma  teoria  conservadora,  que  usou  diversos 
malabarismos intelectuais para adequar­se aos dados conflitantes de modo a retardar o 
surgimento  de  um  corpo  teórico  condizente  com  a  nova  “estrutura  mental”  que  já 
revolucionara  áreas  como  a  mecânica  e  a  astronomia  (BUTTERFIELD,  1982,  193­
210)25. O grande professor de Harvard, Bernard Cohen, que sempre valorizou o lugar 

24  No  original:  “La  experimentación  e  incluso  los  progresos  de  la  técnica  no  fueran  suficientes  por  si 
solos  para  estabelecer  la  base  sobre  la  que  se  pueda  construir  lo  que  llamamos  ‘ciencia  moderna’”. 
Tradução minha.
25  Certamente,  Herbert  Butterfield  é  um  personagem  que  ainda  não  recebe  o  merecido  destaque  na 
historiografia  das  ciências.  Ele  é  corretamente  reconhecido  pelas  suas  críticas  ao  “presentismo”  do  que 
chamou  de  história  whig  (uma  tese  que  discutirei  logo  adiante).  No  entanto,  ele  é  um  dos  primeiros 
historiadores  de  formação  a  encarar  seriamente  a  história  das  ciências  e  seu  papel  no  estabelecimento 
desse  campo  do  conhecimento  como  uma  disciplina  autônoma  na  Inglaterra  é  pouco  conhecido  e 
frequentemente  ignorado.  Assim  como  a  sua  defesa  –  que  se  liga  diretamente  à  sua  crítica  teórica  ao 
“presentismo” – de que a história das ciências fosse praticada por pessoas com formação em história. O 
domínio dos conteúdos científicos não garante aos historiadores das ciências a perícia necessária para a 
sua  prática.  O  conhecimento  histórico  é  também  essencial  e  exige  o  domínio  de  técnicas  e  ferramentas 
intelectuais tão sofisticadas e complexas como aquelas da ciência. Conversamente, ele chama a atenção 
para  a  importância  de  estudar  a  ciência  (em  especial  a  revolução  científica)  como  exigência  para 
compreender a história da Europa (BUTTERFIELD, 1950; MAYER, 2000). 
38
da  experimentação  na  nova  física  dos  séculos  dezesseis  e  dezessete  enfatiza  que  “a 
importância  do  pensamento  abstrato  [...]  foi  muito  mais  revolucionário  para  a  ciência 
que  o  telescópio”  (COHEN,  1988,  p.  114).  Para  esse  autor,  apesar  da  relevância  das 
experiências efetivas levadas a cabo por Galileu ou Tycho Brahe, foram as experiências 
de  pensamento  que  criaram,  em  última  instância,  a  moderna  ciência.  Mesmo  Thomas 
Kuhn  –  que  mais  tarde  será  responsável  pela  pretensa  superação  da  polarização  entre 
internalismo  e  externalismo  na  história  das  ciências  –  insere  o  seu  primeiro  livro,  A 
revolução  copernicana,  de  1957,  no  rol  dos  estudos  de  história  intelectual  sobre  a 
ciência dando clara ênfase às teorias, valores e conceitos científicos, considerando que a 
“Revolução Copernicana foi uma revolução de ideias” (KUHN, 1990, p. 19).   
Os exemplos com variações desse argumento poderiam se estender longamente. 
Não  é  o  caso.  Creio  ser  fundamental  apenas  apontar  para  a  formulação  mais  direta  e 
mais  consistente  desse  argumento,  uma  formulação  que  encontramos  enunciada  e 
defendida convictamente por Alexandre Koyré. 
O  historiador  russo­francês,  grande  entre  os  grandes,  que  participara,  em  sua 
terra  natal,  da  revolução  de  1905  e  da  revolução  de  fevereiro  de  1917,  insiste  em 
diversas  ocasiões  que  a  história  das  ciências  é  a  história  do  pensamento  humano,  um 
movimento  de  ideias.  Ele  considera,  na  sua  interpretação  anti­positivista  (e, 
consequentemente,  anti­empirista),  a  predominância  da  razão  sobre  a  experiência, 
chegando a afirmar que a filosofia experimental não conduz a parte alguma (KOYRÉ, 
2011b)26.  Advogado  da  descontinuidade,  ele  assevera  que  “as  grandes  revoluções 
científicas do século XX, tanto quanto as revoluções do século XVII ou do século XIX, 
embora  naturalmente  assentadas  sobre  a  descoberta  de  fatos  novos  –  ou  na 
impossibilidade de verificá­los –, são fundamentalmente revoluções teóricas” (KOYRÉ, 
2011b, p. 80). No seu texto fundamental sobre as Perspectivas da história das ciências 
o  nosso  autor  afirma,  em  tom  de  polêmica  com  as  posições  externalistas  (que  serão 
discutidas adiante), que “não é a estrutura social do século XVII que nos pode explicar 
Newton,  nem  é  a  da  Rússia  de  Nicolau  I  que  pode  lançar  alguma  luz  sobre  a  obra  de 
Lobatchevski”  (KOYRÉ,  2011e,  p.  424).  E  o  autor  prossegue  (assumindo  o  idealismo 
que lhe cabe): 
a  ciência,  a  ciência  de  nossa  época,  como  a  dos  gregos,  é 
essencialmente theoria, busca da verdade e que, por isso, que ela tem 

26 Lembremo­nos também da leitura que o autor faz das relações entre técnica e ciência, especialmente 
quando se refere ao surgimento do telescópio e do relógio (KOYRÉ, 1990, pp. 59­89).
39
e  sempre  uma  teve  vida  própria,  uma  história  imanente,  e  que  é 
somente  em  função  de  seus  próprios  problemas,  de  sua  própria 
história,  que  ela  pode  ser  compreendida  por  seus  historiadores 
(KOYRÉ, 2011e, p. 424). 
Na  chave  com  que  os  homens  do  começo  do  século  XX  liam  a  história  da 
ciência  moderna,  a  da  oposição  entre  empirismo  e  racionalismo,  o  internalismo  se 
inscreve  explicitamente  na  tradição  desse  último.  O  foco  na  teoria  não  é  apenas  uma 
questão  metodológica,  não  estamos  simplesmente  diante  da  escolha  de  um  olhar  que 
poderia  ser  diferente  e  que  é  complementar  com  outras  abordagens  –  como  alguns 
autores quiseram nos fazer crer. Trata­se de uma concepção de ciência que se relaciona 
com outros argumentos importantes.
Um desses argumentos, fundamental nas explicações de viés internalista, surge 
do esforço de evitar estabelecer uma linearidade evolutiva entre as ciências do passado e 
as  do  presente.  Thomas  Kuhn  parece  encontrar  aí  o  principal  traço  que  define  essa 
perspectiva, “o historiador [de tendência internalista] deveria pôr de lado a ciência que 
conhece.  A  sua  ciência  deveria  ser  apreendida  dos  livros  e  revistas  do  período  que 
estuda,  e  deveria  dominar  estes  e  as  tradições  intrínsecas  que  exibem”  (KUHN,  1989, 
pp. 148­149). 
Penso  que  existem  duas  fontes  principais  para  essa  postura  na  história  das 
ciências. 
Na  Inglaterra,  o  influente  ensaio  de  “psicologia  dos  historiadores”  (que 
chamaríamos hoje de teoria da história) escrito em 1931 por Herbert Butterfield sobre a 
interpretação  whig  da  história  desempenhou  um  papel  decisivo27.  Nesse  livro,  a 
concepção  de  história  qualificada  como  whiggish  é  saturada  de  julgamentos  de  valor, 
pensada  a  partir  dos  termos  do  presente,  descontextualizada  do  seu  próprio  tempo 
(BUTTERFIELD, 1931). O processo histórico é narrado pela via da polarização entre os 
heróis  (que  supostamente  defenderiam  posições  mais  progressistas,  próximas  às  do 
historiador)  e  os  vilões  (agentes  da  reação,  obstáculos  à  efetivação  de  forças 
irrefreáveis). Seria, em suma, uma historiografia teleológica e anacrônica. Em seu lugar, 
Butterfield propõe aos historiadores que analisem o passado em seus próprios termos, os 
problemas  do  passado  são  problemas  postos  pelas  circunstâncias  específicas  de  cada 

27  Na  Inglaterra,  desde  meados  do  século  XVII,  o  vocabulário  da  polarização  político­ideológica  se 
articula através dos termos Tory, tendência conservadora e Católica, e Whig, mais liberais e de religião 
protestante. A sobrevida dessas denominações no Reino Unido ainda é forte. No começo do nosso século, 
o então primeiro­ministro Tony Blair (do Partido Trabalhista, que acolhe muitos whigs) foi jocosamente 
apelidado, por críticos à esquerda, de Tory Blair devido à suposta guinada conservadora do seu governo.   
40
tempo histórico. Avaliando a Reforma Protestante, o autor explica que “a questão entre 
protestantes e católicos no século XVI foi uma questão do mundo deles e não do nosso 
mundo” (BUTTERFIELD, 1931, p. 23)28. 
Embora  não  tratasse  especificamente  de  história  das  ciências,  as  lições  de 
Butterfield  foram  bastante  assimiladas  e  discutidas  nesse  campo.  Para  os  seus 
defensores,  elas  deveriam  implicar  num  tratamento  que  não  visse  as  realizações 
científicas  do  passado  como  desenvolvimentos  em  direção  ao  conhecimento 
contemporâneo; não devemos procurar, por exemplo, sinais de uma Ciência ou de um 
Método  Científico  latente  em  pensadores  do  passado,  como  se  essas  “entidades” 
possuíssem  existência  transhistórica  e  apenas  esperassem  pela  sua  completa  libertação 
do obscurantismo e da ignorância (BUCHDAHL, 1962, pp. 71­72). Alguns críticos, por 
sua  vez,  vêem  um  componente  whiggish  indissociável  da  escrita  da  história  das 
ciências. Argumentam que o progresso da ciência só pode ser avaliado corretamente a 
partir de uma dimensão presentista e anacrônica que julga os avanços do conhecimento 
em termos qualitativos (sabemos “mais” e “melhor” que antes) (ALVARGONZÁLEZ, 
2013).  
A  segunda  fonte,  desenvolvida  na  França  e  transferida  para  os  EUA,  é  o  anti­
positivismo  historiográfico  e  filosófico  de  Alexandre  Koyré.  Também  ele  insistiu  no 
princípio  de  que  a  ciência  do  passado  deve  ser  compreendida  e  explicada  nos  seus 
próprios  termos.  Ao  comentar  esse  aspecto  da  obra  de  Koyré,  Georges  Canguilhem 
(2012, p. 7) aponta que “a história das ciências não é progresso das ciências derrubado, 
isto é, a colocação em perspectiva de etapas ultrapassadas cuja verdade de hoje seria o 
ponto  de  fuga”.  Em  diversas  passagens,  Koyré  reforça  esse  argumento  e  convida  os 
historiadores a não tomar como evidente o conhecimento que possuem da ciência. Pelo 
contrário, a atitude do historiador deve ser a de enxergar as transformações na ciência 
como  um  gesto  difícil  e  doloroso  de  destruição  de  determinada  visão  de  mundo.  Sua 
crítica às traduções das obras de Copérnico e Galileu, por exemplo, se dá nesse registro, 
e  o  autor  enfatiza  os  perigos  de  projetarmos  os  nossos  hábitos,  nosso  valores,  nossas 
concepções  (através  da  nossa  linguagem)  em  um  texto  produzido  sob  a  égide  de 
concepções  bastante  diversas  (KOYRÉ,  2011d,  p.  283).  A  ciência  é  engendrada  em 
conjunto  com  uma  visão  de  mundo,  “todo  método  científico  implica  uma  base 

28  No  original:  “The  issue  between  Protestants  and  Catholics  in  the  sixteenth  century  was  an  issue  of 
their world and not of our world”. Tradução minha.
41
metafísica  ou,  pelo  menos,  alguns  axiomas  sobre  a  natureza  da  realidade”  (KOYRÉ, 
2011b, p. 62).
Um antecedente notável desse princípio é o famoso livro As bases metafísicas da 
ciência moderna, que tem a sua primeira edição publicada nos Estados Unidos em 1925 
e no qual o filósofo Edwin Burtt parte da filosofia para fazer uma leitura histórica sobre 
os fundamentos da moderna concepção de mundo não em sua filosofia moral ou ético­
social,  mas  em  seus  filósofos  naturais,  questionando  como  o  pensamento  e  a  obra  de 
personagens como Copérnico, Kepler, Descartes, Boyle, Galileu e Newton contribuíram 
para  moldar  a  corrente  principal  do  pensamento  moderno  (BURTT,  1983).  Alexandre 
Koyré e Thomas Kuhn reconheceram o débito que possuíam com esse trabalho.
Esse  princípio  de  investigação  afasta  uma  concepção  redutora  do  internalismo 
como  uma  história  da  marcha  das  ideias  científicas  “puras”  (que  caracterizaria  mais 
apropriadamente uma versão do positivismo). Certamente, o foco do internalismo está 
no  pensamento,  nas  ideias,  é  uma  história  intelectual.  Está  longe,  no  entanto,  de  ser 
apenas um conjunto de narrativas cientificistas, herméticas, ensimesmadas nos aspectos 
técnicos.
Consideremos,  por  exemplo,  Alexandre  Koyré,  que  passou  para  a  tradição 
historiográfica  –  em  parte  devido  a  sua  própria  auto­identificação  –  como  internalista 
(talvez  o  maior  representante  desse  grupo)  e  que,  certamente,  apresenta  uma  das 
melhores defesas dessa perspectiva. No entanto, para Koyré (mas não apenas para ele), 
a ciência está em constante intercâmbio com o contexto intelectual – religião, filosofia, 
metafísica, estética (ideias transcientíficas, de acordo com Koyré) – formando um corpo 
indissociável de conhecimento, uma visão de mundo, que tem na ciência um dos seus 
aspectos  centrais  e  deve  ser  levado  em  consideração  pelo  historiador  interessado  em 
compreender  a  ciência  moderna  (KOYRÉ,  1991,  pp.  201­214).  A  professora 
Francismary Alves da Silva chama a atenção para a forma como o autor dos Estudos de 
História  do  Pensamento  Científico  conecta  as  ideias  científicas  com  outras  dimensões 
da vida social através do conceito de unidades (ou estruturas, ou estilos) de pensamento 
(SILVA, 2013, pp. 161­166).
Esse  sistema  deve  ser  considerado  em  sua  integridade,  reforçando  o  papel  dos 
“erros” em determinada concepção de ciência e explicando a sua incidência em termos 
históricos,  como  parte  de  uma  estrutura  mental  auto­limitada,  nas  quais  as 
possibilidades  de  explicação  do  mundo  natural  não  são  indefinidas.  Os  erros  que 
42
parecem evidentes ao observador contemporâneo são, muitas vezes, frutos da natureza e 
dos  limites  da  visão  de  mundo  na  qual  determinada  ciência  se  desenvolveu  ou  certa 
descoberta  foi  realizada,  não  podem  ser  tomados  automaticamente  como  sinais  de 
incapacidade  ou  incompetência  dos  cientistas  da  época  (KOYRÉ,  2011;  RUPERT 
HALL,  1988).  Foi  através  de  um  gigantesco  esforço  do  pensamento  humano,  em  luta 
contra  concepções  poderosas,  que  essas  noções  tomadas  como  “simples”  ou  naturais 
puderam  ser  assim  percebidas,  em  processos  de  reforma  ou  revolução  no  qual 
participaram homens (e aqui o marcador de gênero é muito importante) que construíram 
o  universo  mental  da  Modernidade.  Assim,  o  estudo  cuidadoso  e  que  suspende  os 
julgamentos  de  valor  em  relação  às  ciências  do  passado  fornece  um  acesso  precioso 
para a compreensão da visão de mundo na qual esses conhecimentos emergem e do qual 
eles fazem parte. A história das ciências não deveria focar meramente naqueles pontos 
dos  conhecimentos  passados  que  são  transmitidos  às  novas  gerações  e  que  chegam  à 
nossa cultura científica como “verdades” (STUMP, 2001, p. 244).  
Trata­se,  digamos,  de  uma  “contextualização  de  primeiro  grau”  de  uma 
consideração  de  “historicidade  parcial”  do  conhecimento  científico,  solidário  com 
outros  produtos  do  pensamento,  mas  não  com  “fatores”  sociais,  econômicos  ou 
políticos.
Essa  consideração  encaminha  a  questão  para  a  relação  entre  fatores  internos  e 
externos  na  explicação  da  história  das  ciências  que  as  abordagens  internalistas  nos 
proporcionam.  Trata­se  do  problema  da  causalidade  histórica:  quais  as  causas  para  as 
transformações  (ou  para  as  permanências)  da  ciência?  Esse  não  é,  evidentemente,  um 
problema  menor  e  não  receberá  aqui  o  tratamento  exaustivo  e  minucioso  que  o  tema 
merece. Não retomarei toda a tradição que (desde Aristóteles) considerou em detalhe os 
diversos tipos de causas, nem tampouco abordarei a acidentada e vacilante trajetória da 
causalidade na teoria da história. Meu interesse está nas formas específicas como essa 
vertente  historiográfica  abordou  a  questão  e  propôs  (muitas  vezes  implicitamente)  um 
modelo  de  explicação,  focando  na  emergência  dos  fatores  intrínsecos  e  extrínsecos  à 
ciência na construção desse modelo.
A historiografia desse período possuía uma fixação na revolução científica dos 
séculos  XVI  e  XVII.  Mais  propriamente,  ela  constituiu  esse  objeto  da  forma  como  o 
conhecemos.  Apesar  da  ocorrência  eventual  da  expressão  desde  o  século  XVIII,  o 
conceito  de  revolução  científica,  seus  principais  personagens,  suas  principais 
43
características  e  sua  posição  na  história  da  “civilização  ocidental”  são  uma  invenção 
(heterogênea  e  conflituosa)  da  historiografia  das  ciências  desenvolvida  em  meados  do 
século XX (COHEN, 1989; SILVA, 2015; SHAPIN, 1998). A revolução científica é um 
conceito  historiográfico.  Ele  opera  como  um  marcador  do  surgimento  da  ciência 
moderna. E é principalmente à explicação desse objeto que o internalismo irá se voltar, 
se dedicando a compreender esse fenômeno no tempo em que ocorreu (entre os séculos 
XVI e XVIII) e no lugar que ocorreu (a Europa Ocidental) ao mesmo tempo em que o 
construíam.
Já  sabemos  que,  segundo  essa  abordagem,  a  ciência  moderna  é  um  fenômeno 
predominantemente teórico e sistemático, uma nova concepção de mundo que engloba 
uma metafísica subjacente. Resta saber quais as suas origens, de onde ele teria surgido, 
o que teria provocado tamanha transformação? Em uma palavra: quais são as causas da 
revolução  científica?  Essa  é  uma  questão  que  praticamente  não  aparece  de  forma 
explícita,  deve  ser  buscada  indiretamente  (o  externalismo,  como  veremos,  fará  dessa 
exploração das causas uma divisa mais evidente).  
A ciência moderna é um produto da gradual, lenta e difícil destruição do sistema 
filosófico dominante na Idade Média, o sistema aristotélico e escolástico, a passagem, 
nos  diz  Koyré  repetidas  vezes,  do  “Mundo  do  ‘mais  ou  menos’  ao  Universo  da 
precisão”. De forma sucinta, define­se a nova física a partir de duas características: em 
primeiro  lugar,  trata­se  da  destruição  da  imagem  (de  origem  grega)  do  Cosmos 
hierárquico, ordenado, dividido em supralunar e sublunar, animista, colocando em seu 
lugar a ideia de um Universo aberto, homogêneo, mecanicista no qual a astronomia (que 
lidava com os corpos celestes) e a física (dos corpos terrestres) podem se unir em torno 
de um mesmo empreendimento; em segundo lugar, abandona­se uma física “sensível”, 
preocupada com os fenômenos imediatos, com os fatos do “senso comum” em prol de 
uma  ciência  que  exige  abstração,  de  fenômenos  que  ocorrem  no  espaço  abstrato  da 
geometria euclidiana, instaura­se a matematização da natureza e, portanto, da ciência. 
Essa substituição não representa, no entanto, apenas a criação de uma nova visão 
de  mundo,  mas  a  recuperação  de  certas  tradições  da  antiguidade  clássica  –  sobretudo 
aquela  derivada  de  Platão,  mas  também  Arquimedes,  Euclides  e  todo  um  conjunto  de 
acepções  filosóficas  mais  matematizante  (além  de  Galeno,  para  a  medicina)  –  e  a 
permanência  de  alguns  desenvolvimentos  intelectuais  que  tiveram  lugar  na  Europa 
desde o século XIII – como os estudos sobre o movimento e a elaboração da teoria do 
44
impetus. Ao mesmo tempo, isso não impede que os historiadores continuem falando em 
revolução,  uma  revolução  “intelectual”  ou  do  “espírito”,  transformação  profunda  nas 
“estruturas  mentais”  ou  nos  “sistemas  de  pensamento”.  A  mente  humana  está 
completamente transformada em seus fundamentos depois da revolução científica. 
Sabemos que as tradições e as influências nunca são tomadas da mesma forma 
como  se  manifestavam  em  sua  formulação  “original”,  são  sempre  adaptadas  ao  novo 
ambiente  no  qual  se  manifestam,  transformadas  de  acordo  com  novas  necessidades  e 
interesses, utilizadas de forma mais ou menos flexível. Assim, a revolução científica é 
narrada  como  uma  constante  tensão  entre  continuidade  e  ruptura,  permanência  e 
mudança. 
Koyré  parece  representar  bem  essa  tensão:  critica  duramente  a  tese  continuísta 
de  Pierre  Duhem  e  Alistair  Crombie,  considerando  a  revolução  científica,  acima  de 
tudo,  uma  ruptura  com  o  mundo  medieval  e  antigo  (KOYRÉ,  2011b),  afirma  que 
“Galileu  é  impossível  antes  de  Arquimedes”  (KOYRÉ,  1990,  p.  59).  Nessa  mesma 
passagem, Koyré faz uma afirmação que nos soa completamente anti­histórica: 
Podemos, sem duvida, interrogar­nos por que razão a antiguidade não 
produziu  um  Galileu...  Mas  isso  equivale  a  retomar  o  problema  da 
paragem,  tão  brusca,  do  magnífico  ímpeto  da  ciência  grega:  por  que 
motivo  cessou  o  seu  desenvolvimento?  Por  causa  da  ruína  da  polis? 
Da  conquista  romana?  Da  influencia  cristã?  Talvez.  Todavia,  nesse 
intervalo,  Euclides  e  Ptolomeu  puderam  muito  bem  viver  e  trabalhar 
no  Egipto.  Realmente,  nada  se  opõe  a  que  Copérnico  e  Galileu  lhes 
tivessem sucedido directamente (KOYRÉ, 1990, p. 60).
No entanto, a elucidação do problema das causas da mudança científica parece 
explicar  esse  trecho.  O  que  está  em  jogo  é  a  retomada  de  certas  atitudes  intelectuais 
presentes  na  ciência  grega  (em  parte  dela,  pelo  menos)  e  o  seu  desenvolvimento  e 
elaboração em direções específicas. O contexto social, político e econômico não fazem 
mais que o papel de um meio no qual se propaga o pensamento; meio que pode ser um 
obstáculo  ou  que  pode  favorecer  o  seu  desenvolvimento.  Os  mais  de  mil  anos  que 
separam  Arquimedes  da  Renascença  não  tiveram  outro  papel,  segundo  essa 
interpretação, senão o de impedir o avanço do pensamento matemático sobre a natureza 
(eventualmente,  reconhece­se  a  pequena  contribuição  de  certos  desenvolvimentos 
técnicos medievais). O domínio completo de uma corrente de pensamento que associava 
aristotelismo  e  cristianismo  foi  um  fato  paralisante  de  uma  linha  que,  em  outras 
condições  intelectuais,  poderia  ter  se  estendido  muitos  séculos  antes.  O  caráter 
fundamentalmente qualitativo e impreciso da ontologia e da metafísica hegemônicas do 
45
medievo impediu mesmo de perceber a quantificação, a matematização e o domínio da 
precisão como ferramentas intelectuais válidas para o estudo da natureza.
Desse modo, a revolução científica é, nas interpretações internalistas, resultado 
da  destruição  da  ontologia  aristotélica,  um  processo  que  se  inicia  no  Renascimento  – 
mas que apenas se completará no século XVII, com Descartes, Galileu e Newton (que 
as  substituirão  por  outro  sistema)  –,  fruto  da  revolta  contra  a  escolástica  e  da 
insatisfação  com  a  autoridade  constituída.  O  humanismo  renascentista  fornecerá  um 
ponto de partida crucial, posto que “a grande inimiga da Renascença, do ponto de vista 
filosófico e científico foi a síntese aristotélica e pode dizer­se que sua grande obra foi a 
destruição  dessa  síntese”  (KOYRÉ,  2011a,  p.  44).  O  processo  que  conduz  à  ciência 
moderna se origina de uma reação às concepções medievais dominantes e um retorno à 
“civilização clássica” (é o que o Renascimento fará no mundo das letras e das artes, mas 
não no da ciência) e, sobretudo, da possibilidade de pôr em questão essa autoridade que 
conseguiu se impor durante mais de um milênio.  
Ao mesmo tempo esse primeiro passo, destrutivo, era uma condição necessária, 
mas não suficiente. Entre a destruição do antigo sistema e a elaboração de um novo foi 
preciso  recorrer  a  referências  intelectuais  diversas  daquelas  que  sustentavam  a 
concepção  até  então  dominante.  Por  isso,  outro  fator  decisivo  foi  o  acesso  a  uma 
“biblioteca maior, mais variada e mais excitante”, como nos diz Rupert Hall (1988, pp. 
48­49). A redescoberta da tradição a que fiz referência acima foi certamente decisiva e 
não  é  em  vão  que  Koyré  considera  Galileu  um  platônico  e  a  revolução  científica  a 
“desforra de Platão”. Apesar disso, a ciência moderna não é arquimediana ou platônica, 
mas cartesiana, galileana e newtoniana. Como pertinentemente nos lembra Koyré (2006, 
p. 9):
Não podemos esquecer, ademais, que a “influência” não é uma relação 
simples;  pelo  contrário,  é  bilateral  e  muito  complexa.  [...]  Em  certo 
sentido,  talvez  o  mais  profundo,  somos  nós  mesmos  que 
determinamos as influências a que nos submetemos... 
Os homens que começaram o processo de construção de uma nova metafísica, da 
qual  sairia  uma  nova  ciência  –  homens  como  Nicolau  de  Cusa,  Giordano  Bruno  e 
Copérnico  –  não  estavam  apenas  seguindo  a  pista  deixada  por  autores  antigos.  Eles 
estavam  buscando  nesses  autores  elementos  para  situar  uma  insatisfação  que  tem 
origens  muito  mais  teológicas  (que  é,  por  sua  vez,  uma  das  bases  fundamentais  da 
metafísica  medieval)  que  científicas.  O  novo  Universo  que  constroem  é  erigido 

46
inicialmente em nome de uma nova concepção da divindade, nasce de uma ideia sobre 
Deus (KOYRÉ, 2006).  Assim, os fatores aventados para explicar as transformações no 
nosso  conhecimento  são  de  ordem  intelectual.  De  certa  maneira,  é  uma  afirmação  da 
tese de que a filosofia engendra ciência. Questões teológicas, ontológicas e metafísicas 
estiveram  na  base  da  construção  de  um  novo  modo  de  produção  do  conhecimento 
científico.  As  causas  da  revolução  científica  não  são  apenas  científicas,  mas  não 
poderiam sê­lo, já que um dos princípios interpretativos fundamentais do internalismo é 
a sua consideração da ciência no interior de um sistema de pensamento mais amplo.
Porém,  restam  perguntas  subsequentes:  por  que  o  aristotelismo  durou  tanto 
tempo?  Por  que  foi  destruído  e  substituído  nessa  época?  Por  que  escolher  essas 
influências  (Platão,  Arquimedes,  Pitágoras,  etc.)  e  não  outras  disponíveis?  Perguntas 
que  o  internalismo  (como,  de  resto,  qualquer  concepção  informada  por  uma  filosofia 
idealista da história) não poderia responder. Para fazê­lo teria que recorrer a explicações 
positivistas (“porque essas teorias se mostraram corretas, passaram no teste empírico”) 
ou  sócio­políticas  (“porque  respondiam  a  questões  demandadas  pela  estrutura  política 
do  período,  se  relacionavam  com  a  estrutura  social  na  qual  aparecem”).  Em  resumo, 
quando perguntado “de onde vem as ideias?”, o internalismo se cala.      
A  caracterização  do  internalismo  a  partir  dos  argumentos  apontados  acima  me 
parece  mais  próxima  da  prática  efetiva  dessa  historiografia  do  que  uma  definição 
redutora  que  circulou  amplamente  –  seja  durante  a  vigência  da  querela,  por  seus 
detratores, seja depois, quando o pequeno interesse em compreender o tema para além 
da mera menção como corrente historiográfica superada deixava pouco espaço para uma 
leitura mais atenta. Nessa acepção, o internalismo seria a um tipo de história cujas ideias 
científicas  seriam  consideradas  em  si  mesmas.  Seria  algo  próximo  da  “reconstrução 
racional”,  colocando  a  história  das  ciências  em  uma  posição  completamente  submissa 
em  relação  à  filosofia,  que  forneceria  “metodologias  normativas  segundo  as  quais  o 
historiador reconstrói a ‘história interna’ e desse modo fornece uma explicação racional 
do desenvolvimento do conhecimento objectivo” (LAKATOS, 1998, p. 21). A história 
das  ciências  seria  o  “laboratório  da  epistemologia”,  um  conhecimento  instrumental 
(embora  importante)  a  serviço  de  problemas  formulados  alhures  pela  filosofia  da 
ciência. No entanto, o próprio Lakatos sabia que essa sua definição de história interna 
não estava de acordo com o que geralmente faziam os historiadores (LAKATOS, 1998, 
p. 63). 
47
Com  efeito,  tal  concepção  tem  pelo  menos  um  problema:  ela  não  poderia  ser 
encontrada nas narrativas do período, não há mais do que vestígios historiográficos que 
teriam  que  ser  isolados  e  descontextualizados  para  que  essa  proposição  faça  sentido. 
Trata­se  de  um  “espantalho”  facilmente  atacável  por  aqueles  que  se  opõem  ao 
internalismo  e  que  é  utilizado  muitas  vezes  por  defensores  dos  argumentos  elencados 
acima para fugirem de certa carga negativa que o termo recebeu depois dos anos 1970, 
uma  tentativa  de  “salvar”  esses  autores  e  argumentos,  como  faz,  por  exemplo,  James 
Stump (2001) em relação a Alexandre Koyré. 
Penso  que  os  argumentos  internalistas  não  precisam  ser  salvos,  mas 
compreendidos  como  uma  contribuição  crucial  para  a  consolidação  teórica  e 
institucional  da  história  das  ciências  e  como  um  conjunto  de  práticas  intelectuais 
dotadas  de  historicidade,  produtos  do  seu  tempo.  Foi  Koyré  quem  forneceu  o  modelo 
intelectual  de  história  das  ciências  que  cresceria  aproveitando  os  espaços  intelectuais 
abertos  por  George  Sarton.  O  seu  modo  de  interpretação,  conscientemente  limitado, 
coloca  os  “fatores  internos”  no  centro  da  explicação  histórica,  já  que  são  eles  que 
definem  a  ciência  e  que  ela  possui  uma  lógica  imanente.  A  ciência  não  pode  ser 
explicada por algo que não a constitui, deve ser buscada naquilo que ela é e não naquilo 
que ela não é. 
Manterei em suspenso, por enquanto, a discussão sobre o modo como percebo as 
condições  específicas  de  historicidade  do  internalismo  e  me  voltarei  para  o 
externalismo.  No  próximo  capítulo,  depois  de  analisar  essa  vertente  da  história  das 
ciências  como  um  campo  plural,  retornaremos  ao  problema  das  correlações  entre  a 
escrita da história das ciências e as formas de organizar a ciência na trama social a partir 
da querela entre explicações “internas” e “externas”.

2. Ordem social, ordem cognitiva

O  externalismo  será  dividido  em  dois  grandes  grupos:  marxista  e  mertoniano. 


Dedicarei mais atenção ao primeiro tipo, que oferece uma oposição – teórica e política – 

48
mais interessante ao internalismo e à filosofia das ciências do período e que me parece 
mais influente nos desenvolvimentos posteriores da história das ciências. Além disso, o 
modelo marxista é mais antigo. A versão elaborada por Merton, cujo sucesso não deve 
ser menosprezado, será abordada em seguida. Defenderei que ela se propõe a combater 
mais  o  marxismo  que  o  internalismo.  Assim,  duas  formas  diferentes  interpretar  os 
fatores  externos  são  colocadas  em  disputa  –  uma  disputa  centrada  no  papel  que  a 
“dimensão  social”  exerce  na  determinação  (ou  não)  do  conteúdo  da  ciência,  mas  que 
guarda um consenso em relação ao que conta como “fator externo”. 
Ao ressaltar a tensão entre a sociologia da ciência mertoniana e a histórial social 
das  ciências  de  inspiração  marxista,  apontarei  para  o  entrelaçamento  entre  posturas 
políticas  e  filiações  ideológicas,  atribuições  quanto  às  funções  sociais  da  ciência  e 
atitudes  metafísicas  diante  dela,  argumentos  epistemológicos.  Esses  elementos  não 
podem – é importante que se repita – sujeitar­se à mera redução da ciência à política sob 
a pena de oferecer uma interpretação insuficiente do processo que pretendemos analisar. 
Não  há  como  identificar  onde  reside  definitivamente  o  fundamento  do  conhecimento 
científico, não há como definir um ponto fixo a priori (“a” sociedade ou “a” ideologia, 
de um lado; “a” natureza ou “as” ideias, de outro) de onde podemos derivar as demais 
características da ciência como mera expressão, como efeito. 
Por fim, esse se capítulo se encerra com uma aproximação entre o internalismo e 
o  externalismo  para  ressaltar  as  suas  diferenças  e,  principalmente,  apontar  para  a 
existência  de  uma  concepção  de  ciência  que  é  –  em  aspectos  determinantes  –  comum 
aos dois modos de explicação discutidos.
A história da emergência da interpretação marxista da história das ciências e do 
seu  texto  fundador  já  está  bem  estabelecida.  Trata­se  da  participação  da  delegação 
soviética  liderada  pelo  destacado  teórico  marxista  e  revolucionário  russo  Nikolai 
Bukharin  no  II  Congresso  Internacional  de  História  da  Ciência  e  da  Tecnologia, 
ocorrido  em  Londres  em  1931.  Os  textos  dos  autores  soviéticos  foram  publicados  na 
Inglaterra  logo  após  o  evento  na  coletânea  Science  at  the  crossroads  e  tiveram  um 
impacto  decisivo  sobre  alguns  cientistas  próximos  ao  marxismo  interessados  em 
questões históricas e políticas da ciência. Alguns desses jovens cientistas se tornariam 
depois importantes representantes da vertente externalista, como John Bernal ou Joseph 
Needham. O texto mais influente desse livro foi, sem dúvida, The social and economic 

49
roots of Newton’s Principia, comunicação apresentada naquele congresso pelo físico e 
historiador soviético Boris Hessen29. 
O  propósito  do  texto  é  a  “aplicação  do  método  do  materialismo  dialético  e  da 
concepção  do  processo  histórico  criado  por  Marx  para  analisar  a  gênese  e  o 
desenvolvimento  da  obra  de  Newton,  em  relação  com  o  período  em  que  viveu  e 
trabalhou” (HESSEN, 1985, p. 31). Para isso, nosso autor se apóia principalmente nos 
escritos  do  jovem  Marx  e  na  interpretação  que  lhes  dá  Lênin.  Porém,  sabemos  que  as 
interpretações e os usos da concepção materialista da história são – como em qualquer 
grande  sistema  filosófico  –  bastante  variáveis.  O  rótulo  “marxista”  não  explica  muito 
sobre um texto ou sobre um personagem, especialmente no clima turbulento da União 
Soviética  dos  nos  1920  e  1930.  Desde  os  primeiros  anos  do  século  XX,  os  marxistas 
russos já haviam produzido um considerável volume de reflexões sobre a lição do velho 
mestre, segundo a qual a estrutura social determina as formas de consciência. Diversos 
autores,  entre  eles  Lênin  e  Plekhanov  –  filosoficamente  mais  sofisticado  e 
historiograficamente mais relevante –, discutiram e ampliaram a concepção materialista 
da  história.  O  marxismo  soviético  dos  anos  1920  estava  particularmente  interessado 
nessa  temática,  em  busca  de  interpretações  para  a  própria  história  da  Rússia  e  da 
revolução  (nos  anos  1930  a  situação  era  consideravelmente  diferente,  como  mostrarei 
adiante). 
Diante  disso,  devemos  nos  perguntar  que  usos  Hessen  fez  desse  instrumental, 
como realizou a sua leitura e o que isso significava para a história das ciências?  
Para a consecução do seu objetivo, Hessen parte de uma análise dos problemas 
de ordem técnica impostos pela transição do feudalismo para o mercantilismo na Europa 
(seleciona  três  eixos  principais:  transporte,  indústria  e  guerra)  e  se  pergunta  quais  os 
problemas científicos que estão na base das questões da época. Estes seriam problemas 
de mecânica, justamente a área mais importante das ciências físicas no período. Diante 
disso:
Comparando os principais problemas técnicos e físicos da época com 
os  das  investigações  que  dominavam  a  física  no  período  em  que 
estudamos,  chegamos  à  conclusão  de  que  estes  temas  eram 
determinados, principalmente, pelas tarefas econômicas e técnicas que 
a  burguesia  em  ascensão  colocava  em  primeiro  plano  (HESSEN, 
1985, p. 44, grifo meu).

29  Ambos,  Hessen  e  Bukharin,  foram  figuras  notáveis  na  vida  intelectual  soviética  dos  anos  1930.  Os 
dois foram presos e executados (em 1936 e 1938, respectivamente) pela ditadura stalinista. 
50
Não  devemos,  de  acordo  com  o  autor,  precipitarmo­nos  na  crítica  fácil  ao 
“determinismo econômico” dessa abordagem. Algumas páginas depois, ele nos lembra 
que 
Seria, entretanto, uma grande simplificação, e mesmo vulgarização, de 
nosso  objeto  se  deduzíssemos  diretamente  da  economia  e  da  técnica 
cada problema que tenha sido estudado por um físico, cada tarefa que 
tenha resolvido (HESSEN, 1985, p. 53).
Os determinantes – termo fundamental para o marxismo – são de várias ordens: 
religiosos, políticos, jurídicos, filosóficos etc. Assim, passa a examinar a luta de classes 
na  Inglaterra  na  época  de  Newton  para  deduzir  que  o  pertencimento  do  eminente 
cientista à determinada classe social (filho de pequenos fazendeiros, protestante, whig) 
teve  influência  direta  no  seu  sistema  filosófico,  impedindo­o  adotar  um  materialismo 
consequente  e  levando­o  a  adotar  preceitos  idealistas  e  teológicos  na  explicação  do 
mundo  físico.  Da  mesma  forma  explica  a  incapacidade  de  Newton  de  deduzir,  do  seu 
próprio sistema de mecânica, a lei da conservação da energia. Apesar de reconhecer a 
concorrência de outros fatores que não os econômicos, Hessen o faz a partir da rígida e 
esquemática divisão entre a “base” e a “super­estrutura”; entre a economia e os produtos 
culturais  e  intelectuais,  política,  direito,  arte,  ciência.  Uma  interpretação  típica  do 
marxismo soviético dos anos 1920 (HESSEN, 1985, p. 53; FREIRE, 1993).
Em sua análise, Boris Hessen coloca a ciência não apenas como um produto do 
seu  tempo,  mas  também  como  um  elemento  fundamental  na  evolução  das  forças 
produtivas,  determinado  pela  classe  que  dirige  a  mudança  na  estrutura  do  modo  de 
produção  (HESSEN,  1985,  p.  79).  O  capitalismo  mercantil  dos  séculos  XVI  e  XVII, 
com  a  sua  sociedade  burguesa  nascente  só  poderia  ter  criado  uma  ciência  preocupada 
em favorecer os interesses da sua classe. É por isso que – por exemplo – essa ciência se 
desenvolve  fora  das  Universidades  e  contra  elas,  que  ainda  mantinham  uma  postura 
reacionária, aristotélica e aristocrática, praticando uma “ciência oficial”, visto que eram 
“centros  científicos  do  feudalismo,  não  apenas  portadoras  das  tradições  feudais  como 
também  suas  ativas  defensoras”  (HESSEN,  1985,  P.  44).  Do  ponto  de  vista 
historiográfico  temos  aí  duas  teses  fundamentais  para  o  desenvolvimento  da  corrente 
externalista.  A  primeira  nos  informa  que  as  demandas  técnicas  de  uma  época  criam 
conhecimento científico, os problemas de ordem prática que tem que ser resolvidos pela 
sociedade (ou pelas classes dominantes) em determinado período pautam as atividades 
dos  filósofos  naturais  e  cientistas  (ao  menos,  ditam­lhe  o  rumo).  A  segunda  tese, 

51
consequência da anterior, encerra a ciência no horizonte da sua época, enquadrando­a na 
necessidade  histórica  ditada  pelas  formas  de  intercâmbio  material  dos  homens  em  um 
momento  histórico  específico,  da  qual  se  torna  uma  forma  específica  de  consciência 
histórica atuando no interior de limites estruturais últimos (MÉSZÁROS, 2009, pp. 9­
19;  FREUDENTHAL  e  MCLAUGHLIN,  2009,  pp.  1­41).  A  ciência  é  uma  atividade 
altamente carregada de ideologia (no sentido marxista do termo).
“Apenas  na  sociedade  socialista  a  ciência  se  tornará  patrimônio  de  toda  a 
humanidade”  (HESSEN,  1985,  p.  85).  Somente  o  proletariado,  que  não  tem  nada  a 
perder (“a não ser os seus grilhões...”) e não precisa ocultar a realidade, pode criar uma 
“história verdadeira e genuína da natureza e da sociedade” (HESSEN, 1985, p. 32)30. 
Essa  perspectiva  abrirá  caminho  para  que,  no  Ocidente,  os  historiadores  marxistas 
possam  analisar  a  ciência  do  passado  nesses  termos  e  também  projetar  as  ciências  do 
futuro por meio da planificação.
Contudo,  a  história  que  nos  conta  Hessen  não  avança  nas  relações  entre  o 
conteúdo cognitivo da física newtoniana e as determinações históricas da sua produção, 
apesar  de  apontar  as  relações  entre  a  visão  filosófica  de  Newton  e  seus  pressupostos 
religiosos  e  políticos.  As  afirmações  genéricas  sobre  o  problema  e  a  questão  da 
impossibilidade  da  formulação  do  princípio  da  conservação  da  energia  estão  muito 
distantes da grandiosidade científica da obra de Newton, não atingem o seu núcleo. Pelo 
contrário,  Hessen  parece  se  contentar  em  apontar  as  correlações  entre  os  temas  dos 
Principia e os problemas técnico do período, deixando intactas as soluções específicas 
adotadas  e  como  elas  poderiam  se  relacionar  quando  analisadas  do  ponto  de  vista  do 
materialismo  dialético  (HESSEN,  1985,  pp.  50­53;  FREIRE,  1993,  1954).  Será  que 
Hessen  foi  incapaz  de  ir  mais  longe?  Será  que  não  é  possível  atacar  os  problemas 
técnicos  de  uma  teoria,  relacionando­os  com  as  forças  produtivas,  as  classes 
dominantes, a luta de classes etc.? O conteúdo técnico é intransponível e, no limite, a­
histórico? 
Muitos  críticos  do  artigo  de  Hessen,  dentro  e  fora  do  espectro  do  marxismo, 
julgaram  corretamente  encontrar  aí  a  sua  grande  limitação31.  No  entanto,  em  seu 

30 Essa visão, apesar de tudo, não carrega o otimismo exagerado de Lênin que, analisando a “crise das 
ciências” nos primeiros anos do século XX, afirmara que “a física contemporânea está a dar à luz. Está a 
dar à luz o materialismo dialético” (LÊNIN, 1982, p. 237).
31 O próprio Marx escreveu muito pouco sobre as ciências naturais (sabemos da sua grande admiração 
por Charles Darwin e, através das correspondências trocadas principalmente com Engels, do seu interesse 
eventual  por  astronomia).  Em  uma  de  suas  passagens  mais  conhecidas  sobre  o  tema,  no  Capital,  ele 
52
brilhante  artigo  The  social­political  roots  of  Boris  Hessen,  o  professor  Loren  Graham 
nos  fornece  uma  interpretação  muito  perspicaz  e  profunda  sobre  esse  trabalho, 
inserindo­o no contexto mais amplo das discussões sobre a ciência na União Soviética e 
sobre a posição que nela se encontrava Boris Hessen. Graham recupera a trajetória de 
Hessen  no  período  anterior  à  viagem  à  Londres  em  1931  e  explica  como  suas 
preocupações  se  voltavam  principalmente  para  a  defesa  da  teoria  da  relatividade  e  da 
mecânica quântica nos circuitos científicos soviéticos. No entanto, essa havia se tornado 
uma atividade realmente perigosa, visto que a classe dirigente emergente após a guerra 
civil russa (1918­1921) – que começava a vasculhar as teorias científicas em busca de 
ideologias  burguesas  em  seu  projeto  de  reconstrução  total  da  ciência  a  partir  do 
materialismo – considerava essas teorias como fruto da ciência burguesa e imperialista. 
Não apenas julgavam­nas equivocadas do ponto de vista científico, mas interpretavam­
nas  como  filosoficamente  e  politicamente  danosas,  abstrações  vazias  carregadas  de 
misticismo burguês, montadas para destruir o materialismo. Após 1929, o cerco se fecha 
sobre os defensores de Einstein e Bohr, muitos são perseguidos, expurgados, presos.
Hessen,  um  defensor  de  primeira  linha  da  revolução,  estava  sob  suspeita.  Em 
seus  textos,  ele  buscava  reconciliar  o  marxismo  com  a  física  contemporânea. 
Concordava  com  as  origens  imperialistas  e  burguesas  dessas  teorias  e  com  as 
implicações  filosóficas  anti­materialistas  que  elas  acarretavam,  mas  defendia  que 
deveria haver uma separação entre esses aspectos da ciência e seu valor de verdade; o 
reconhecimento  das  origens  filosóficas  e  sociais  não­materialistas  dessa  ciência  não 
deveria  ser  motivo  para  descartar  o  seu  conteúdo  físico.  Essa  posição  colocava­o  em 
dificuldade, tendo sido censurado publicamente, em 1930, por suas ideias “metafísicas” 
e “idealistas”. Assim, para Graham, a participação de Hessen no Congresso de Londres 
foi uma chance de se redimir, assumindo uma posição mais ortodoxa, mais próxima do 
“marxismo oficial” e, ao mesmo tempo, inserir uma mensagem sutil. Por isso ele retoma 
Newton,  tido  em  alta  conta  nos  círculos  científicos  dominantes  da  União  Soviética  e 
demonstra  como  o  seu  programa  de  pesquisas  estava  diretamente  vinculado  aos 

indica que: “A necessidade de calcular os movimentos do Nilo gerou a astronomia egípcia e com ela o 
domínio da casta sacerdotal como dirigente da agricultura” (MARX, 1996, p. 142, grifos meus). Assim, 
ele apenas reconhece a capacidade das questões práticas de engendrar certos tipos de conhecimento e de 
propor temas à investigação do mundo natural, mas não ataca a questão do conteúdo desse conhecimento 
e sua relação com esses mesmos problemas. É nas suas análises mais metodológicas sobre a relação entre 
estrutura  social  e  formas  de  consciência  ou  sobre  a  concepção  materialista  da  história  que  os  marxistas 
encontram chaves analíticas para avançar nesse problema. 
53
interesses  da  burguesia  mercantil  e  como  a  sua  filosofia  estava  eivada  de  idealismo  e 
teologia, reflexos da luta de classes na época da Revolução Inglesa e da posição adotada 
por Newton nessa conjuntura.  
Hessen procede em relação a Newton como esperava que seus colegas, de volta 
à União Soviética, procedessem em relação a Einstein e Bohr. Por isso ele evita associar 
o conteúdo da física newtoniana à sua posição na luta de classes e nas relações sociais 
de produção, recusa­se a considerá­lo mera ideologia. Ao analisar em bases marxistas a 
mecânica clássica, ele não retira as mesmas conclusões que seus pares da intelligentsia 
soviética  retiravam  para  a  análise  que  faziam  da  relatividade  e  da  mecânica  quântica. 
Assim,  o  famoso  ensaio  de  Hessen  adquire  um  significado  bastante  diferente.  Ele 
continua sendo um marco para as interpretações marxistas (Hessen era efetivamente um 
marxista  militante)  da  história  das  ciências,  mas  deve  ser  visto  também  como  uma 
estratégia de defesa diante das acusações que sofria na União Soviética, ao assumir um 
tom  mais  próximo  daquele  que  era  esperado  dos  intelectuais  comprometidos  com  o 
novo regime, e como um recurso à história para elaborar um argumento que tornassem 
viáveis as suas posições científicas. A separação do valor de verdade de uma teoria dos 
seus condicionamentos históricos e sociais – que surge, em uma primeira leitura, como 
uma limitação involuntária – se torna, depois da cuidadosa avaliação do contexto da sua 
produção levado a cabo por Loren Graham, uma atitude deliberada (GRAHAM, 1985, 
pp. 705­722).
Sabemos  que  todo  esse  contexto  permaneceu  desconhecido  durante  mais  de 
cinquenta anos e que o texto de Boris Hessen passou à tradição e influenciou toda uma 
geração  de  historiadores  da  ciência  no  Ocidente  que  ignorava  a  maior  parte  dessas 
condições  de  produção.  Por  outro  lado,  era  bem  conhecida  a  assombrosa  ascensão  da 
União Soviética. Desde 1917, o espectro de uma Modernidade alternativa assombrava a 
Europa, afirmando­se como uma sociedade superior à civilização capitalista e destinada 
a  triunfar  sobre  esse  sistema.  O  surgimento  desse  colosso  oriental  –  que  prometera 
realizar para a humanidade aquilo que a Revolução Francesa havia deixado inacabado e 
que transformara um país com uma estrutura econômica e social extremamente arcaica e 
um  governo  nos  moldes  do  Absolutismo  em  uma  potência  industrial  aparentemente 
imune à grande depressão que assolara os países capitalistas – causou preocupação nas 
potências  europeias  ao  mesmo  tempo  em  que  atraiu  uma  parcela  significativa  da 

54
juventude  universitária  do  continente  para  as  fileiras  do  comunismo  (HOBSBAWM, 
2006, pp. 63­89; HILL, 1967)32. 
O  regime  instaurado  após  a  revolução  de  outubro  na  Rússia  tinha  grande 
interesse  no  campo  das  Políticas  de  Ciência  e  Tecnologia.  De  acordo  com  Loren 
Graham,  “nenhum  governo  anterior  na  história  foi  tão  abertamente  e  energicamente  a 
favor  da  ciência”  (GRAHAM,  1967,  pp.  32­33)33.  Os  soviéticos  apostaram  na 
modernização  do  país  com  uso  das  ciências  naturais  e  no  seu  poder  de  transformar 
radicalmente a sociedade soviética, não apenas através do uso da tecnologia e da ciência 
na indústria e na economia, mas também na construção de uma cultura despida de todo 
“misticismo”,  de  um  “novo  homem”.  Não  só  a  direção  da  economia  devia  ser 
organizada  com  base  em  princípios  científicos,  mas  toda  a  vida  social  deveria  ser 
“racionalizada”. 
Por  outro  lado,  a  própria  atividade  científica  deveria  ser  reorganizada  para  se 
adequar  aos  moldes  do  comunismo  e  à  construção  da  nova  sociedade.  Assim,  nos 
últimos anos da década de 1920 é implementado na URSS um processo de planificação 
do  trabalho  científico  com  vistas  a  aperfeiçoar  a  utilização  dos  seus  recursos.  Esse 
fenômeno  ocorre  quase  em  simultaneidade  com  o  fim  da  Nova  Política  Econômica 
(NEP,  na  sigla  em  russo)  adotada  após  a  guerra  civil  e  o  início  da  coletivização  e  da 
industrialização  forçada  que  marca  a  ascensão  de  Stalin  ao  poder.  Essas  mudanças 
acabaram dando fim a um período, entre 1922 e 1928, de relativa liberdade de pesquisa. 
A  íntima  relação  entre  técnica  e  ciência  defendida  pelo  marxismo  oficial,  o  pavor  à 
abstração  vazia  e  a  ênfase  na  ciência  como  peça  importante  na  estrutura  produtiva 
colocavam o controle da ciência como uma atividade prioritária para o Estado soviético. 
Além disso, a convicção de que a ciência era fruto dos interesses da classe dominante e 
uma  expressão  do  estado  das  forças  produtivas  –  ligada  ao  domínio  da  necessidade  – 
fazia  com  que  ela  fosse  vista  como  socialmente  dirigida  e,  portanto,  dirigível 
(GRAHAM, 1967, pp. 32­79).

32 É verdade que a Rússia, desde a década de 1860, se inseria timidamente no processo de modernização, 
com  o  surgimento  de  algumas  indústrias,  a  construção  de  ferrovias  e  instalação  de  linhas  de  telégrafo 
financiadas  por  capital  estrangeiro.  A  distância  para  as  economias  mais  dinâmicas  da  Europa  era, 
contudo,  gigantesca.  Em  relação  à  estrutura  política,  o  czar  Nicolau  II  repetia  frequentemente  que 
governava por “direito divino” e repelia qualquer tentativa de ampliação da participação da sociedade nas 
decisões estatais.
33 No original: “No previous government in history was so openly and energetically in favor of science”. 
Tradução minha.
55
Isso  explica  também  porque  o  controle  da  ciência  tinha  como  um  objetivo 
fundamental  a  destruição  da  “ciência  burguesa”  e  a  edificação  de  uma  “ciência 
socialista”,  que  passava  pela  recuperação  de  uma  suposta  tradição  genuinamente 
materialista presente na ciência moderna.
Esses  objetivos,  porém,  não  estavam  apenas  restritos  aos  interesses  oficiais  da 
URSS.  Espraiaram­se  para  além  de  Moscou  e  fizeram  parte  das  aspirações  de  diveros 
historiadores das ciências de matriz marxista. Entre eles, um dos mais importantes foi o 
inglês  John  Desmond  Bernal.  Como  muitos  historiadores  das  ciências  da  sua  geração, 
Bernal era um cientista natural de formação. E um dos grandes, tendo trabalhado com os 
principais nomes da ciência do seu tempo e circulado pelas instituições científicas mais 
importantes da Grã­Bretanha, como a Royal Society, da qual foi membro desde 1937. É 
considerado uma das figuras capitais da ciência britânica do século XX. Suas pesquisas 
na  área  de  cristalografia  foram  fundamentais  para  os  desenvolvimentos  da  físico­
química e da bioquímica posteriores, fornecendo algumas das técnicas utilizadas ainda 
hoje  e  possibilitando  as  pesquisas  que  conduziriam,  por  exemplo,  à  dupla  hélice  do 
DNA.  Em  1945,  recebeu  a  Royal  Medal,  maior  condecoração  da  ciência  britânica  por 
suas  contribuições  à  cristalografia,  e  o  Prêmio  Stalin  da  Paz  (depois  rebatizado  de 
Prêmio Lênin da Paz, em meio ao processo de desestalinização do período Khrushchev) 
em  1953  (HODGKIN,  1980).  Especula­se  que  o  prêmio  Nobel  não  lhe  foi  concedido 
por suas convicções ideológicas. 
Segundo  Gary  Werskey  (2007,  pp.  404­405),  foi  o  impacto  causado  pela 
delegação soviética no já mencionado Congresso de História da Ciência e da Tecnologia 
que possibilitou a conversão de Bernal e de um grupo de jovens cientistas ao marxismo. 
Eles faziam parte de uma geração de desiludidos com o capitalismo liberal na esteira do 
fim da Primeira Guerra Mundial e da crise de 1929 e com a incapacidade desse modelo 
político e econômico de utilizar a ciência em benefício da sociedade. Em oposição ao 
pessimismo  britânico,  os  soviéticos  anunciavam  uma  sociedade  que  não  havia  sido 
afetada pela crise e na qual a ciência estaria alcançando seu auge e direcionando seus 
esforços  para  o  bem­estar  coletivo.  Essa  perspectiva  implicava  em  uma  nova  abertura 
para  as  Políticas  de  Ciência  e  Tecnologia,  fortemente  influenciada  em  uma  leitura 
sociológica  e  embasada  em  um  conceito  de  história  (e  de  história  das  ciências) 
completamente diferente daquele a que estavam acostumados os intelectuais ocidentais. 
Não  tratarei  aqui  da  sociologia  da  ciência  inaugurada  por  Bernal  no  seu  clássico  de 
56
1939,  The  social  function  of  science.  Lidarei  prioritariamente  com  a  sua  grande 
compilação  de  história  das  ciências  elaborada  após  a  Segunda  Guerra  Mundial  e 
publicada pela primeira vez em 1954 sob o título de Science in history.
Bernal  chegou  à  história  (e  também  à  sociologia)  das  ciências  através  da 
militância política. Utilizava deliberadamente a história das ciências, como Hessen antes 
dele  e  como  muitos  marxistas  do  seu  tempo  e  depois,  para  afirmar  a  incapacidade 
estrutural  do  capitalismo  de  distribuir  igualmente  as  riquezas  e  proporcionar  uma 
sociedade mais justa. Sua interpretação prioriza as interferências mútuas entre ciência e 
sociedade,  inscrevendo­se  no  campo  da  história  social  –  que  já  possuía  uma  larga 
tradição na Inglaterra e que justamente nesse período se renovava à luz do materialismo 
histórico e se agrupava em torno da New Left Review34. 
A  história  social  das  ciências,  distintiva  da  corrente  externalista,  mantinha  seu 
foco  nas  maneiras  como  a  ciência  servia  antes  de  tudo  à  transformação  do  mundo 
material. A abordagem de Bernal dá um tom funcionalista ao processo, a ciência possui 
um  papel  social  a  desempenhar,  surge  como  uma  demanda  derivada  de  problemas  de 
ordem  técnica  e  econômica,  está  sempre  à  serviço  de  um  modo  de  produção.  Desse 
modo,  o  autor  critica  duramente  a  noção  de  “ciência  pura”  e  a  ênfase  nas  suas 
características abstratas:
De fato, o ideal da ciência pura – a busca da Verdade por si mesma – é 
a  afirmação  consciente  de  uma  atitude  social  que  fez  muito  para 
impedir o desenvolvimento da ciência e ajudou a colocá­la nas mãos 
de obscurantistas e reacionários (BERNAL, 1954, p. 17)35.
Assim, o papel da história das ciências é o de desvendar a dimensão social das 
teorias, expor as correlações entre estas e a estrutura social vigente, inserindo a ciência 
na função que lhe cabe em determinado momento histórico. Ao longo de toda a história 
humana,  da  Idade  da  Pedra  à  Era  Atômica,  Bernal  constrói  um  padrão  de 
desenvolvimento  da  ciência.  Os  longos  períodos  de  relativa  inatividade  entrecortados 
por surtos de transformação intensa não estão associados ao surgimento de indivíduos 
capazes  de  revolucionar  o  conhecimento  disponível,  elevando­o  a  outro  patamar,  não 

34  Esse  grupo,  que  incluía  autores  da  importância  de  Eric  Hobsbawm,  Edward  Thompson,  Christopher 
Hill,  Raymond  Willians  e  Perry  Anderson,  se  tornaria  a  maior  força  de  renovação  da  historiografia 
inglesa do século XX. Sua relação com essa história das ciências que se desenvolvia, apesar da afinidade 
ideológica,  não  era  muito  próxima.  Christopher  Hill  tratou  do  papel  da  ciência  no  seu  livro  Origens 
intelectuais da revolução inglesa e Hobsbawm, em parte por sua relação pessoal com Joseph Needham, 
incluiu capítulos sobre ciência nas suas Eras.
35 No original: “Indeed, the ideal of pure science – the pursuit of Truth for its own sake – is the conscious 
statement of a social attitude which has done much to hinder the development of science and has helped 
to put it into obscurantist and reactionary hands”. Tradução minha.
57
são gênios “à frente do seu tempo”. Os saltos que ocorrem no conhecimento da natureza 
estão  diretamente  ligados  à  criação  de  novos  modos  de  produção,  à  ascensão  de  uma 
nova classe dominante e ao surgimento de novas demandas técnicas e econômicas (para 
o  favorecimento  dessas  classes  e  não  da  sociedade  como  um  todo).  A  ciência  não  é  a 
busca pela verdade, mas a busca por soluções.
O  caráter  classista  da  ciência  é  explicado  não  apenas  em  termos  de  domínio 
político  e  econômico,  mas  pela  própria  maneira  como  a  ciência  e  a  sociedade  se 
estruturam  historicamente.  Devido  ao  seu  caráter  formal  e  à  exigência  de  domínio  de 
certas habilidades intelectuais – leitura e escrita, matemática – restritas a certas camadas 
da  sociedade,  a  ciência  não  poderia  ser  praticada  indistintamente.  Além  disso,  a 
possibilidade de dedicar tempo às atividades científicas antes da sua profissionalização 
na  segunda  metade  do  século  XIX  era  um  privilégio  das  camadas  dominantes.  Dessa 
característica  seguem  dois  resultados.  Em  primeiro  lugar,  isso  implica  em  um  avanço 
mais  lento,  já  que  muitos  dos  que  poderiam  contribuir  com  o  seu  talento  para  o 
desenvolvimento  do  conhecimento  são  excluídos  da  prática  da  ciência.  Em  segundo 
lugar,  o  conhecimento  produzido  e  (mais  importante)  as  suas  aplicações  práticas 
tendiam  a  aumentar  a  exploração  (BERNAL,  1954,  p.  394).  Segundo  o  autor,  os 
períodos  mais  frutíferos  de  desenvolvimento  científico  ocorrem  justamente  quando  a 
barreira entre classes sociais diferentes diminui ou é abolida (BERNAL, 1954, pp. 867­
873).  
Dessa  concepção  conclui­se  que  a  ciência  é  regida  por  fatores  externos,  as 
causas  das  suas  transformações  escapam  ao  seu  alcance,  residem  na  tensão  dialética 
entre  forças  produtivas  e  relações  de  produção,  embora  ela  possa  retroalimentar  essa 
tensão  (e  geralmente  o  faz).  A  história  das  ciências  seria  a  história  de  como  o 
conhecimento  da  natureza  se  acomoda  a  uma  nova  situação  histórica,  como  ele  é 
moldado por forças estruturais às quais ela não pode controlar, das quais participa como 
expressão  super­estrutural  e  como  parte  integrante  da  reprodução  de  certos  modos  de 
produção.  A  função  social  da  ciência  lhe  é  determinada  de  fora.  É  um  instrumento 
essencial  para  a  manutenção  (ou  transformação)  das  estruturas  sociais.  Desse  modo,  a 
melhor  alternativa  para  o  desenvolvimento  da  ciência  é  a  planificação  (defendido  por 
Hessen e aparentemente bem sucedido na URSS entre os anos 1930 e 1950). O modelo 
de  ciência  planificada  só  encontraria  oposição  das  classes  dominantes  e  seus 
representantes  intelectuais  (que,  de  acordo  com  essa  perspectiva,  já  dirigia  a  ciência 
58
para  os  seus  interesses)  ou  por  aqueles  que,  sob  o  impacto  traumático  da  utilização 
maciça  de  ciência  e  tecnologia  nos  esforços  de  guerra  e  incapazes  de  imaginar  uma 
sociedade  diferente,  viam  o  planejamento  apenas  como  gerador  de  sofrimento  e 
destruição (BERNAL, 1954, pp. 582­585). 
No entanto, a narrativa produzida por Bernal parece não conseguir demonstrar o 
efeito  dos  fatores  externos,  da  estrutura  econômica  e  social  de  determinada  época 
histórica,  na  sua  respectiva  estrutura  cognitiva  –  assim  como  Boris  Hessen,  com  a 
diferença  significativa  de  que  o  físico  russo  evitou  esse  passo  deliberadamente, 
enquanto Bernal se esforça para demonstrar essa dependência. Com a exceção de alguns 
exercícios pouco satisfatórios, como a relação entre o lugar central ocupado pelo Sol na 
astronomia copernicana e a metáfora do le Roi Soleil das monarquias absolutas36, ou, o 
que me parece bastante interessante, embora incompleto, a associação entre a estrutura 
rígida,  hierárquica,  fechada  e  imobilista  da  astronomia  aristotélica  com  a  sociedade 
feudal  e  a  nova  imagem  do  universo  indefinido,  aberto,  dinâmico  e  homogêneo 
vinculada  a  uma  sociedade  capitalista;  em  ambos  os  casos,  as  formações  sociais 
poderiam  ser  definidas  quase  nos  mesmos  termos  das  suas  concepções  astronômicas 
(BERNAL, 1954, pp. 279­344). De maneira geral, as mudanças econômicas e técnicas 
indicam  a  direção  que  deve  ser  seguida  pela  ciência,  mas  não  o  ponto  no  qual  ela 
chegará. Para Bernal, e esse é um argumento decisivo para a concepção externalista da 
história  das  ciências,  o  que  há  de  mais  importante  para  se  compreender  na  ciência 
encontra­se  do  lado  de  fora  das  mentes  dos  cientistas.  Não  se  busca  a  abstração  (o 
método), mas as suas origens materiais.
De  qualquer  modo,  será  apenas  nos  anos  1970  e  1980  que  a  historiografia 
começará  a  avançar  nesse  problema,  partindo  sobretudo  de  estudos  de  caso  mais 
detalhados.  
Ao  mesmo  tempo,  na  descrição  apresentada  para  o  método  da  ciência,  Bernal 
mantém  uma  postura  bastante  tradicional,  próxima  de  abordagens  empiristas 
filosoficamente  pobres.  Embora  considere  que  o  método  científico  seja  uma  abstração 
da  forma  de  organização  institucional  da  ciência,  o  autor  limita­se  a  considerar  o 
método  científico  como  um  caso  especial  das  operações  do  senso  comum,  requeridas 
não  mais  em  situações  cotidianas  de  sobrevivência  e  intercâmbio  material,  mas  nas 

36 Embora a referência explícita a este epíteto só tenha sido utilizada no reinado de Luis XIV, um século 
após a publicação do De revolutionibus orbium coelestium.
59
situações  específicas  de  investigação  dos  fenômenos  naturais.  Assim,  observações  e 
experimentos,  leis,  hipóteses  e  teorias,  aparelhos,  classificação  e  medição  e  mesmo  a 
linguagem da ciência são derivadas do uso comum. A diferença entre as suas utilizações 
habituais e científicas está simplesmente no maior controle às quais essas operações são 
submetidas.  A  justificável  preocupação  com  a  afirmação  de  uma  história  social  das 
ciências e a óbvia impossibilidade de tratar de todos os temas relevantes em uma mesma 
obra – além da necessidade de uma definição que seja elástica o suficiente para permitir 
falar  de  ciência  em  todas  as  épocas  históricas  –  parece  resultar  na  pouca  atenção 
dedicada aos procedimentos internos da ciência.
No  entanto,  as  grandes  críticas  ao  projeto  de  Bernal  não  decorrem  da  sua 
abordagem  historiográfica,  mas  da  opção  política  que  a  informa.  Foi  a  defesa 
intransigente da planificação como única forma de garantir o progresso – o que na Grã­
Bretanha ficou conhecido como “bernalismo” – que provocou as mais acesas reações. Já 
em  1938,  um  grupo  de  cientistas  britânicos  liderados  por  Michael  Polanyi  –  um 
polímata húngaro que emigrara para a Europa ocidental depois da anexação da Hungria 
à URSS – e John Baker criou a Society for Freedom in Science (SFS) como resposta ao 
surgimento, no interior da British Association for the Advancement of Science, de uma 
divisão  dedicada  a  fornecer  orientações  sociais  para  o  progresso  da  ciência.  Para  os 
líderes da SFS, o “bernalismo” constituía, do ponto de vista teórico, um ataque à ciência 
pura  –  já  que  a  nobre  ciência  seria  reduzida  apenas  à  busca  um  tanto  mesquinha  por 
necessidades econômicas e materiais – e, de uma perspectiva mais prática, um perigo à 
autonomia  intelectual  e  à  liberdade  dos  cientistas  de  decidirem  o  tópico  das  suas 
pesquisas  e  a  maneira  adequada  de  conduzi­las  (FULLER,  2007;  POLANYI,  1964; 
WERSKEY, 2007, pp. 412­413).  
As fortes contradições que polarizavam a Europa naqueles anos imediatamente 
anteriores à Segunda Guerra (e que foram momentaneamente suspensos na união contra 
o  inimigo  comum,  o  nazi­fascismo)  ainda  não  haviam  alcançado  a  escala  global  que 
marcariam  o  período  da  Guerra  Fria,  mas  já  se  manifestavam  claramente  na  ciência  e 
nas formas de interpretar a sua história. O próprio Polanyi, por exemplo, insistiria que 
existem certos elementos na ciência que são tácitos, não são passíveis de sistematização 
ou formalização e dependem profundamente de julgamentos e compromissos pessoais. 
Essa  tese  servia  imensamente  na  batalha  pela  “liberdade”  contra  a  planificação.  A 
dimensão  tácita  impede  a  compreensão  completa  de  todas  as  operações  envolvidas  na 
60
criação  científica.  Essa  compreensão  parcial,  por  sua  vez,  impede  o  controle  dessas 
operações e a sua devida planificação. A inserção de um componente impossível de ser 
racionalizado não visava atacar a racionalidade da ciência, mas as pretensões socialistas 
de “racionalização da sociedade”. A ideia de uma dimensão tácita na atividade científica 
seria depois parcialmente apropriada por outros autores, como Thomas Kuhn ou Harry 
Collins.
Outro  autor  da  “tradição  marxista”  que  devemos  mencionar  aqui,  por  sua 
importância  na  formulação  de  uma  explicação  da  ciência  que  leve  em  conta  a  sua 
dimensão social, é Edgar Zilsel37. Em trabalho recente, Mauro Condé (2015, pp. 35­42) 
toma  a  chamada  “tese  de  Zilsel”  como  uma  síntese  da  corrente  externalista.  A 
elaboração  dessa  tese  se  dá  de  maneira  fragmentária,  uma  vez  que  trajetória  pessoal 
desse historiador e filósofo austríaco (participou do Círculo de Viena) que migrou para 
os Estados Unidos com a ascensão do nazismo e a iminente anexação da Áustria pela 
Alemanha,  não  permitiu  uma  sequência  na  sua  carreira  acadêmica.  Ao  contrário  de 
outros  intelectuais  que  fugiram  do  nazismo,  Zilsel  teve  dificuldades  em  encontrar  um 
posto em uma universidade norte­americana, tendo conseguido produzir alguns artigos 
durante  o  período  que  contou  com  uma  bolsa  de  estudos.  Cometeu  suicídio  em  1944. 
Deixou  uma  produção  relativamente  pequena,  composta  principalmente  de  textos 
curtos.  Minha  análise  estará  fundada  em  uma  breve  exploração  da  “tese  de  Zilsel”  a 
partir  de  dois  artigos:  The  sociological  roots  of  modern  science  e  The  Genesis  of  the 
concept of physical law, ambos publicados em 1942.
Nesse  último  texto,  o  autor  faz  uma  história  da  criação  do  conceito  de  “lei 
natural”  passando  em  revista  uma  vasta  literatura.  Atravessa  toda  a  cultura  ocidental, 
usando  fontes  da  antiguidade  –  escritos  tão  diversos  quanto  Anaximandro  e  a  Bíblia, 
com  citações  marginais  ao  monoteísmo  egípcio,  mas  também  Platão,  Aristóteles  e 
Arquimedes  –,  abordando  a  concepção  medieval  e  chegando,  finalmente,  aos 
fundadores da ciência moderna. Ao longo desse percurso, a apresentação das ideias dos 
autores é eventualmente pontuada com observações sobre a “importância das mudanças 
sociais para a história das ideias” (ZILSEL, 1942, p. 267, n. 79)38. O objetivo central 
do  texto  é  mostrar  que  o  conceito,  embora  apareça  de  forma  embrionária  em  alguns 

37  Diferentemente  de  Boris  Hessen  ou  John  Bernal,  Zilsel  não  pretendia  “aplicar”  o  materialismo 
histórico  marxista  à  análise  das  ciências.  A  sua  história  social  das  ciências  é  tributária  direta  da 
interpretação marxista sem, contudo, resumir­se a ela.
38 No original: “the importance of social changes to the history of ideas”. Tradução minha.
61
textos e possua certas raízes antigas cuja origem pode ser traçada, vai adquirir a forma 
atual  a  partir  da  combinação  de  elementos  que  somente  se  torna  possível  em 
determinado contexto social. 
A transformação da metáfora jurídica e teológica em um conceito central para a 
moderna concepção de ciência, a transformação de uma noção vaga e ambígua em um 
conceito denso e preciso é obra de um novo ambiente social. O difícil deslocamento do 
terreno  da  teologia  para  o  terreno  da  filosofia  natural  é  uma  tarefa  que  se  inicia  em 
Descartes, se prolonga na primeira geração da Royal Society e ganha com Newton uma 
forma mais precisa. É a partir da imensa repercussão da obra de Newton que o conceito 
de  “lei  natural”  se  instala  definitivamente  na  concepção  de  natureza  e  a  metáfora 
jurídica  é  abandonada  em  favor  de  uma  noção  estritamente  científica  (ZILSEL,  1942, 
pp. 267­274). O entrelaçamento desses campos discursivos (teologia e filosofia natural) 
é  uma  marca  desse  período;  com  efeito,  poderíamos  dizer  que  a  divisão  entre  esses 
campos  e  a  sua  autonomização  também  é  uma  marca  desse  período,  algo  que  para  a 
sociedade  moderna  parece  bem  estabelecido  e  evidente.  No  caso  do  conceito  de  “leis 
naturais”, esse processo pode ser expresso na visão de Deus como um legislador que, no 
momento  da  criação  do  mundo,  enunciou  as  leis  que  regem  a  natureza  e  que  ela  é 
obrigada e obedecer. 
Depois de se ocupar ao longo de trinta páginas com a descrição dessa trajetória, 
Zilsel  propõe  explicar  porque  esse  conceito  surgiu  em  determinado  tempo  e  lugar  e 
assumiu  determinada  forma.  Antes  de  passar  à  explicação,  ele  afirma  que  não  é 
suficiente  apontar  para  a  força  da  tradição  religiosa  como  fonte  de  concepções 
metafísicas presentes na ciência. Afinal de contas, a noção de “lei natural” não decorre 
diretamente  da  experimentação  e  da  percepção  de  regularidades  nos  fenômenos;  pelo 
contrário, ela é anterior e imprime na observação a busca incessante por regularidades, 
por vezes difíceis de constatar, exigindo soluções matemáticas complexas. Se não basta 
recorrer  à  teologia  (ou  ao  domínio  das  ideias,  em  geral),  como  podemos  explicar  o 
surgimento desse conceito? É aí que Zilsel expõe a sua interpretação externalista. É na 
configuração do Estado que devemos buscar a solução. A forma política do capitalismo 
nascente,  o  Absolutismo,  necessita  de  uma  concepção  diferente  de  lei  e  fornece  o 
modelo  para  a  noção  de  natureza.  A  própria  noção  religiosa  do  “reino  de  Deus”  – 
inspiração  teológica  para  a  ciência  moderna  –  decorre  dessa  transformação  do  Estado 
feudal  pulverizado  e  dos  laços  sociais  que  o  sustentam  para  o  Estado  moderno 
62
centralizado. O domínio da lei racional é uma necessidade do capitalismo mercantil e do 
Estado moderno, ele determina a visão de mundo dos filósofos naturais desse período. 
Essa explicação macro­sociológica da noção de “lei natural” é um exemplo do projeto 
mais amplo desenvolvido por Zilsel. A sua expressão geral será desenvolvida no texto 
que passo agora a analisar: The sociological roots of science.
O  problema  que  motiva  esse  artigo  é  comum  à  grande  parte  da  história  e  da 
sociologia  das  ciências  dos  anos  1930  e  1940.  Por  que  a  ciência  só  se  desenvolve 
plenamente na Europa Moderna? Que motivos impedem a realização completa de uma 
atividade científica em outras civilizações? Distanciando­se do positivismo, o autor faz 
uma importante ressalva: 
Estamos  muito  inclinados  a  considerar  a  nós  mesmos  e  a  nossa 
civilização  como  o  auge  natural  da  evolução  humana.  Dessa 
pressuposição  se  origina  a  crença  de  que  o  homem  simplesmente  se 
torna  mais  e  mais  inteligente  até  que  um  dia  alguns  grandes 
investigadores e pioneiros apareceram e produziram a ciência como o 
último  estágio  de  uma  ascensão  intelectual  linear.  Portanto,  não  se 
percebe  que  o  pensamento  humano  se  desenvolve  de  maneiras 
variadas e divergentes – entre as quais uma é científica. Esquecemos 
como  é  extraordinário  que  a  ciência  tenha  surgido  especialmente  em 
certo período e sob certas condições sociológicas (ZILSEL, 2000, p. 
936, grifo meu).39 
De  acordo  com  esse  argumento,  a  principal  tarefa  da  pesquisa  histórica  das 
ciências  é  investigar  quais  são  essas  condições  e  como  elas  determinam  as  formas  de 
conhecimento  necessárias  e  possíveis.  Em  Zilsel,  essas  condições  dizem  respeito  – 
como já apontei em relação ao conceito de “lei natural” – à estrutura social do início da 
Era Moderna. Dois conjuntos principais de argumentos são mobilizados. Em um plano, 
se  encontram  as  profundas  mudanças  sociais  que  marcam  a  passagem  do  feudalismo 
para o capitalismo: as cidades se tornam os centros de produção de cultura; a tecnologia 
se  desenvolve  rapidamente,  acarretando  na  maior  utilização  de  máquinas  para  a 
produção e para a guerra; a competição econômica estimula o individualismo e a crítica 
da  autoridade  constituída;  o  restabelecimento  da  atividade  mercantil  impõe  a 
necessidade  de  contar  e  calcular,  obriga  a  retomada  da  matemática  e  da  racionalidade 
quantitativa  para  fins  práticos;  essa  racionalidade  dissolve  os  antigos  vínculos 

39 No original: “We are only too inclined to consider ourselves and our own civilization as the natural 
peak of human evolution. From this presumption the belief originates that man simply became more and 
more intelligent until one day a few great investigators and pioneers appeared and produced science as the 
last stage of a one­line intellectual ascent. Thus it is not realized that human thinking has developed in 
many and divergent ways – among which one is the scientific. One forgets how amazing it is that science 
arose at all and especially in a certain period and under special sociological conditions”. Tradução minha.
63
tradicionais e cria novas formas de interação social monetizadas, mediadas pelas trocas 
mercantis  (ZILSEL,  2000,  pp.  936­938;  CONDÉ,  2015,  pp.  37­38).  A  despeito  da 
validade  dessas  asserções  –  a  bibliografia  das  décadas  posteriores  aos  textos  de  Zilsel 
tem reavaliado, por exemplo, a importância das cidades ou a extensão do renascimento 
comercial para a formação do mundo moderno (WOOD, 2001, pp. 21­35) –, o que deve 
ser ressaltado é a conexão necessária que o autor estabelece entre as estruturas sociais e 
as  formas  de  produzir  conhecimento.  Apesar  de  reconhecer  que,  nesse  tipo  de  leitura, 
determinada  visão  das  características  da  sociedade  moderna  implicará  em  uma  noção 
específica  de  que  tipo  de  conhecimento  pode  ser  produzido,  o  que  nos  importa  aqui  é 
perceber uma estratégia narrativa e explicativa.
Em  outra  escala,  uma  mudança  complementar  criará  as  demandas  sociais  e  as 
condições  de  emergência  da  ciência  moderna.  Classes  sociais  que  mobilizavam 
racionalidades distintas vão se colocar em contato e produzir um tipo de prática social 
que  identificamos  com  a  ciência.  Ao  analisar  as  transformações  ocorridas  entre  os 
séculos  XIV  e  XVII,  Zilsel  vai  mostrar  como  o  estabelecimento  de  uma  sociedade 
burguesa  irá  romper  com  certas  barreiras  sociais  e  intelectuais  que  impediam  a 
realização  da  ciência.  Em  especial,  sua  atenção  se  volta  para  as  formas  de  interação 
entre três “estratos sociais” produtores de formas diferentes de conhecimento. O saber 
da escolástica, encastelado nas universidades e solidamente fundado sobre a autoridade 
de autores antigos (Aristóteles, principalmente) e dos “Doutores da Igreja” (Agostinho 
de  Hipona,  Tomás  de  Aquino).  O  humanismo  renascentista,  que  se  volta  contra  a 
escolástica e propõe uma retomada de certas tradições antigas esquecidas ou proibidas 
pelo  saber  oficial.  Sua  condição  social  e  profissional  difere  do  primeiro  grupo:  esses 
autores  surgem  nas  cidades  italianas  nos  séculos  XIV  e  XV,  muitos  são  funcionários 
letrados  das  cortes  ou  da  administração  pública  ou,  em  um  período  posterior,  literatos 
que vivem do patronato de nobres ou famílias abastadas. Da sua posição social deriva – 
afirma Zilsel – os seus objetivos intelectuais. A sua sobrevivência depende, em grande 
medida,  do  sucesso  dos  seus  escritos,  da  força  dos  seus  argumentos;  é  através  desses 
escritos  que  os  patronos  ampliam  sua  fama  e  mantém  o  apoio  às  atividades  desses 
homens. Esses dois grupos, apesar de opostos, compartilham posturas fundamentais. No 
âmbito da cisão entre artes liberais e ofícios mecânicos, entre atividades intelectuais e 
trabalhos  manuais,  eles  se  posicionam  fortemente  a  favor  da  proeminência  das  artes 
liberais.  Essa  é  também  uma  divisão  de  classes,  já  que  o  trabalho  manual  era 
64
considerado  menor,  inapropriado  para  a  nobreza  e  as  classes  dominantes.  O  terceiro 
grupo  é  o  representante  do  “saber  fazer”,  dos  ofícios  mecânicos.  São  os  artesãos, 
marinheiros,  carpinteiros,  arquitetos,  escultores,  mineiros,  construtores  de  navios, 
barbeiros,  cirurgiões,  boticários,  ourives  etc.  Esses  inventores  com  pouca  educação 
formal  (muitas  vezes  analfabetos)  desenvolveram  diversas  técnicas,  artefatos  e 
“trabalharam em silêncio pelo avanço da tecnologia e da sociedade moderna” (ZILSEL, 
2000, p. 941)40. Dentre estes, Zilsel (2000, pp. 940­941) destaca um grupo superior de 
artesãos  que  demandava  maiores  conhecimentos,  são  os  “artistas­engenheiros”,  cujo 
maior representante é Leonardo da Vinci. Esses seriam os “predecessores imediatos dos 
cientistas” (ZILSEL, 2000, p. 942)41. 
Pra  que  os  predecessores  se  tornassem  cientistas,  era  preciso  fazer  confluir 
características desses diferentes grupos; isso é, era necessário o surgimento de um novo 
grupo  capaz  de  realizar  essa  aproximação.  A  questão  é  resumida  por  Zilsel  (2000,  p. 
945):
No  geral,  a  ascensão  dos  métodos  dos  trabalhadores  manuais  às 
fileiras dos scholars academicamente treinados no final do século XVI 
é  o  evento  decisivo  na  gênese  da  ciência.  O  estrato  superior  poderia 
contribuir com formação lógica, erudição e interesse teórico; o estrato 
inferior  acrescentou  espírito  causal,  experimentação,  medição,  regras 
quantitativas  de  operação,  negligência  à  autoridade  escolar  e 
cooperação objetiva.42    
Esse é um processo sociológico. As barreiras que precisavam ser rompidas para 
produzir esse novo conhecimento eram barreiras sociais. A pergunta inicial (“por que a 
ciência  só  se  desenvolve  na  Europa  Moderna?”)  se  transforma  em  outra  questão:  que 
condições  sociais  existiam  nesse  ambiente  social  que  permitiram  o  surgimento  de  um 
programa  científico  pleno?  A  busca  por  condições  externas  ao  desenvolvimento  das 
ideias  é  o  motor  da  explicação.  A  “tese  de  Zilsel”  então,  é  que  as  relações  sociais  de 
produção  no  capitalismo  tornam  possível  a  emergência  da  ciência  (CONDÉ,  2015,  p. 
40;  ZILSEL,  2000,  p.  946).  “A  ascensão  da  ciência  é  normalmente  estudada  por 
historiadores  que  estão  interessados  principalmente  na  sucessão  temporal  das 

40 No original: “worked in silence on the advance of technology and modern society”. Tradução minha.
41 No original: “the immediate predecessors of science”. Tradução minha.
42  No  original:  “On  the  whole,  the  rise  of  the  methods  of  the  manual  workers  to  the  ranks  of 
academically  trained  scholars  at  the  end  of  the  sixteenth  century  is  the  decisive  event  in  the  genesis  of 
science. The upper stratum could contribute logical training, learning, and theoretical interest; the lower 
stratum  added  causal  spirit,  experimentation,  measurement,  quantitative  rules  of  operation,  disregard  of 
school authority, and objective co­operation”. Tradução minha.
65
descobertas  científicas.  Mas  a  gênese  da  ciência  pode  ser  estudada  também  como  um 
fenômeno sociológico” (ZILSEL, 2000, p. 946)43.  
Em meio à tão vigorosa oposição e mesmo depois da crise do marxismo no final 
da  década  de  1950,  o  insight  da  leitura  marxista,  que  se  contrapunha  tanto  ao 
positivismo  quanto  ao  internalismo,  foi  extremamente  importante  para  o 
desenvolvimento  da  história  das  ciências.  A  tese  geral  de  que  a  ciência,  em  seus 
aspectos  mais  teóricos  ou  técnicos,  é  um  produto  do  meio  social  se  tornaria  um  dos 
princípios  da  historiografia  das  ciências  nas  décadas  seguintes  e  seria  reelaborada  por 
diversos autores e correntes teóricas.
No  entanto,  os  marxistas  não  foram  os  únicos  que  contribuíram  para  a 
apreciação  mais  cuidadosa  dos  fatores  externos  à  ciência.  Outra  grande  contribuição 
veio  dos  escritos  do  sociólogo  Robert  King  Merton,  considerado  o  fundador  da 
sociologia da ciência nos Estados Unidos. Seu programa de investigação foi dominante 
entre  o  final  dos  anos  1930  e  os  anos  1960,  justamente  no  período  que  se  atribui  à 
vigência  da  querela  entre  o  internalismo  e  o  externalismo.  As  famosas  normas 
mertonianas e o seu papel na formação do ethos da ciência são objeto de debate, crítica 
e  revisão  por  parte  de  estudiosos  da  ciência  ainda  hoje.  Entre  1938  e  1942,  Merton 
publicou  três  textos  que  rapidamente  inauguraram  uma  nova  área  de  pesquisa  e  se 
tornaram referências obrigatórias para as discussões sobre ciência e sociedade: são eles 
Science, technology and society in Seventeenth Century England, A ciência e a ordem 
social e A ciência e a estrutura social democrática.   
O modelo elaborado por Merton era em grande medida uma tentativa de refutar 
simultaneamente  a  história  marxista  das  ciências  e  a  sociologia  do  conhecimento 
praticada  na  Alemanha  e  que  teve  Karl  Mannheim  como  um  dos  principais 
representantes. Essas duas interpretações possuem em comum a tentativa de relacionar 
ordem social e ordem cognitiva.
Em uma série de artigos escritos desde a metade dos anos 1920 e especialmente 
no  seu  Ideologia  e  utopia,  publicado  em  alemão  em  1929,  o  sociólogo  de  origem 
húngara formulou uma análise sociológica do pensamento e desenvolveu uma teoria da 
determinação  social  do  conhecimento  explorando  a  relação  entre  conhecimento  e 
existência  de  forma  bastante  sofisticada.  Mannheim  se  voltou  contra  a  epistemologia 

43 No original: “The rise of science is usually studied by historians who are primarily interested in the 
temporal  succession  of  the  scientific  discoveries.  Yet  the  genesis  of  science  can  be  studied  also  as  a 
sociological phenomenon”. Tradução minha.
66
tradicional  e  sua  forma  de  interpretar  o  conhecimento  de  forma  independente  do  seu 
contexto  de  produção;  tentou  demonstrar  que  o  conhecimento  não  se  desenvolve  de 
forma autônoma a partir da “natureza das coisas” ou de uma “lógica interna”, mas que 
sofre  influência  decisiva  de  fatores  externos,  inclusive  no  seu  conteúdo,  alcance  e 
intensidade  (MANNHEIM,  1986,  pp.  289­290).  Como  sabemos,  Mannheim  preservou 
as  ciências  naturais  dessa  leitura,  que  se  aplicaria  ao  pensamento  social,  às  teorias 
políticas,  às  “ciências  culturais”  (na  terminologia  alemã)  e  à  filosofia.  No  entanto, 
apontou para as limitações na epistemologia praticada no mundo germanófono dos anos 
1920 e 1930 – criticando as suas pretensões fundacionalistas – e apontando um caminho 
para  a  investigação  sociológica  do  pensamento.  Para  Karl  Mannheim,  era  ingênua  a 
pretensão da epistemologia de se constituir como um conhecimento anterior à ciência, 
que  lhe  ditaria  os  limites  e  lhe  estabeleceria  as  bases.  A  epistemologia  está  sempre 
atrasada  e  se  constrói  a  partir  dos  princípios  valorizados  por  determinado  conjunto  de 
conhecimentos. Ela é a justificação filosófica a posteriori (ÁVILA, 2012; MAIA, 1992, 
2013; MANNHEIM, 1952, 1986).
A  distinção  entre  sociologia  da  ciência  e  sociologia  do  conhecimento  não  é 
apenas uma questão semântica. Em 1937, Merton publicou um artigo sobre a sociologia 
do conhecimento na revista Isis. Nesse texto, o sociólogo recenseia uma série de livros 
sobre  o  tema  (embora  concentrado  nos  trabalhos  de  Mannheim),  fazendo­lhes  severas 
críticas.  Essa  perspectiva  estaria  levando  as  implicações  epistemológicas  da 
dependência  do  conhecimento  em  relação  à  posição  social  a  um  “nível  excessivo  e 
estéril”  (MERTON,  2013,  p.  95).  Tal  programa  –  indica  Merton,  recorrendo  a  um 
argumento que seria repetido ao longo do século XX – terá que lidar com o problema da 
verdade da própria perspectiva. “Como pode então Mannheim reivindicar validade para 
seu próprio pensamento?” (MERTON, 2013, p. 105). Se se afirma que todo pensamento 
social é dependente do grupo social que o gerou e corresponde a uma racionalização dos 
interesses  desse  grupo,  como  garantir  a  verdade  dessa  afirmação?  “A  racionalidade 
circular  dessas  doutrinas  é  clara”  (MERTON,  2013,  p.  98).  Alcançamos  assim  o  que 
imagina ser o ponto fraco de todo relativismo, a ausência de um ponto axial exterior ao 
discurso  no  qual  ele  possa  estar  fundado,  que  possa  garantir­lhe  sustentação.  Esse 
critério  fundacionalista,  no  entanto,  é  justamente  aquilo  que  a  sociologia  do 
conhecimento (e muitas outras abordagens que compartilham as premissas “relativistas” 
ou “historicistas”) toma por problemático.
67
A  disciplina  “fundada”  por  Merton,  por  sua  vez,  não  pretendia  tornar  o 
pensamento  objeto  de  investigação  sociológica.  O  principal  pressuposto  dessa 
sociologia da ciência é examinar como as diferentes ordens sociais interferem no ritmo 
do  desenvolvimento  da  ciência  (MERTON,  2013,  p.  159).  A  ciência  só  teria  sucesso 
quando  praticada  em  determinadas  condições  sociais,  quando  combinada  com 
instituições  que  não  atentem  contra  o  seu  avanço.  A  compreensão  desses  processos  é 
vista como essencial para garantir a construção de um programa de ação em defesa do 
desenvolvimento  do  conhecimento  científico  autônomo.  De  modo  a  realizar  esse 
objetivo,  a  ciência  era  analisada  em  seus  aspectos  institucionais,  para  os  quais  a 
contribuição de Merton e dos seus partidários foi enorme. Em seu estudo seminal sobre 
a ciência inglesa do século XVII, originalmente produzido como tese de doutorado na 
Universidade de Harvard, o sociólogo explora essa relação entre o desenvolvimento da 
ciência  e  a  estrutura  social  em  busca  dos  elementos  que  forneceram  as  condições 
culturais  e  materiais  favoráveis  à  atividade  científica  naquele  contexto  (MERTON, 
1970).
No  que  tange  ao  último  conjunto  de  condições  (que  já  eram  objeto  de 
investigação  de  “materialistas”),  Merton  reconhece  uma  importância  relativa  –  e 
quantitativa – das demandas técnicas, econômicas e militares para o direcionamento da 
ciência. “De modo geral, entre 30 e 60 por cento das pesquisas da época [o século XVII 
inglês]  parecem  ter  sido,  direta  ou  indiretamente,  influenciadas  desse  modo” 
(MERTON,  2013,  p.  90).  Seguindo  bastante  de  perto  a  correlação  aventada  por  Boris 
Hessen  entre  problemas  técnicos  e  problemas  científicos  e  desdobrando  alguns 
apontamentos  indicados  em  The  social  and  economic  roots  of  Newton’s  Principia  ao 
longo  de  vários  capítulos  do  seu  livro,  Merton  enfatiza  também  a  distância  entre  as 
conclusões do físico russo e as suas, quando lidando com questões muito semelhantes. 
A  racionalização  que  permeia  o  capitalismo,  defende  o  sociólogo,  é  um  estímulo  à 
ciência e à tecnologia que está ausente de outros tipos de sociedade (MERTON, 1970, 
p.  142­143).  Nessa  passagem,  Merton  não  se  refere  diretamente  à  URSS,  mas  a 
necessidade de marcar o limite da influência do “provocativo ensaio” de Hessen no seu 
próprio trabalho indica a plausibilidade dessa inferência.
Além  da  clara  diferença  ideológica  (ou  por  causa  dela),  há  uma  substancial 
diferença de interpretação. Em primeiro lugar, Merton insiste na existência de uma larga 
parcela da atividade científica que se desenvolve de forma completamente independente 
68
das  pressões  práticas,  a  “ciência  pura”  (expressão  que  o  autor  ajudou  a  difundir).  Ela 
seria  estatisticamente  dominante  e  ocuparia  uma  posição  de  destaque  intrínseca  no 
desenvolvimento da ciência (MERTON, 2013, pp. 81­91). A hipótese defendida pelos 
marxistas, de que a ciência seria totalmente ou predominantemente o fruto de pressões 
sociais,  é  classificada  como  “extremista”  (MERTON,  2013,  p.  81).  Além  disso,  em 
segundo  lugar,  mesmo  onde  a  importância  dos  fatores  extrínsecos  é  reconhecida,  a 
forma como ela se relaciona com o conteúdo da ciência é substancialmente diferente. 
Quanto  ao  conjunto  de  condições  culturais,  que  havia  sido  tratado  por  autores 
que interpretavam a história de forma “idealista”, Merton analisa detidamente a conexão 
entre  ethos  protestante  e  ciência  moderna  (as  semelhanças  com  Max  Weber  são 
conscientes  e  declaradas),  tomando  como  objeto  privilegiado  a  formação  da  Royal 
Society  na  segunda  metade  do  século  XVII44.  Trata­se  da  parte  mais  original  do  seu 
livro e uma de suas grandes contribuições ao estudo histórico e sociológico das ciências. 
A  análise  detida  dos  valores  que  compõem  a  base  teológica  da  visão  de  mundo 
protestante  aponta  para  uma  correlação  direta  e  não  acidental  com  aspectos 
fundamentais do espírito científico que emerge na época moderna (MERTON, 1970, pp. 
55­79).  A  combinação  de  racionalismo  e  empirismo  seria  encontrada,  articulada  e 
justificada  de  modo  quase  idêntico  na  religião  reformada  e  na  investigação  do  mundo 
natural; a concepção de que o conhecimento de Deus se daria através do conhecimento 
do  mundo,  que  é  a  sua  obra,  marcava  fortemente  os  escritos  de  teólogos  e  filósofos 
naturais; a defesa da capacidade individual e do livre exame do texto sagrado contra as 
interpretações  baseadas  na  autoridade  da  Igreja  era  simétrica  à  defesa  da  livre 
investigação  da  natureza  em  detrimento  da  autoridade  da  doutrina  aristotélica.  A 
integração  valorativa  entre  protestantismo  e  ciência  é  evidenciada  em  praticamente 
todos  os  pontos  que  as  definem.  Além  disso,  Merton  investiga  a  filiação  religiosa  dos 
membros da Royal Society (e do “colégio invisível” que a antecedeu) de forma bastante 
perspicaz e fundamentada não se contentando apenas com uma mera filiação nominal, 
mas  observando  a  ocorrência  de  aspectos  doutrinários  nos  escritos  desses  autores 
(MERTON, 1970, pp. 112­136).

44 É importante notar que Merton não é meramente um weberiano. A sua sociologia da ciência é bastante 
eclética e incorpora contribuições metodológicas de diversos autores cujas ideias circulavam em Harvard 
nos  anos  1930,  como  o  italiano  Vilfredo  Pareto  e  sociólogo  russo,  fundador  do  Departamento  de 
Soiologia da Universidade de Harvard, Ptirim Sorokin (SHAPIN, 1988).
69
Essa análise, contudo, é fortemente marcada pela circunscrição da pesquisa aos 
aspectos  institucionais  da  ciência.  O  protestantismo  seria  um  dos  responsáveis  pelo 
aumento  do  interesse  pela  ciência  e  à  sua  valorização  na  Inglaterra.  A  emergência 
desses valores daria um ímpeto à investigação do mundo natural, mas não determinaria 
a  sua  forma  ou  conteúdo  (MERTON,  1970;  SHAPIN,  1988,  p.  595).Eles  são  a  base 
historicamente  necessária  (mas  não  indispensável)  para  a  emergência  da  ciência.  De 
maneira  semelhante  ao  que  faria  Alexandre  Koyré  uns  poucos  anos  depois,  Merton 
considera que a visão de mundo religiosa fornecia uma metafísica adequada para a nova 
filosofia  natural.  A  referência  bibliográfica  comum,  que  parece  ser  a  fonte  dessa 
concepção  em  Merton  e  Koyré  (que  aprofunda,  refina  e  complexifica  bastante  essa 
tese),  é  o  livro  de  Edwin  Burtt  (1983).  Na  ética  protestante,  a  ciência  encontraria  as 
suposições  básicas  na  qual  pode  erigir  o  seu  sistema  de  conhecimentos.  No  entanto,  a 
sua influência se encerra nisso. 
Avaliando  essa  tese,  Steven  Shapin  (1988)  desenvolve  o  argumento  de  que  o 
protestantismo  desempenhava,  na  obra  de  Merton,  um  papel  funcional  no 
desenvolvimento  da  ciência;  um  papel  que  poderia  ser  ocupado  por  outros  “fatores 
culturais” e que não era exclusivo do ethos protestante.  Ao enfatizar o funcionalismo e 
o ecletismo dessa abordagem, Shapin tenta proteger Merton do estigma de externalista. 
No  entanto,  essa  leitura  parece  enfraquecer  a  originalidade  da  posição  mertoniana  ao 
ignorar  deliberadamente  a  dimensão  da  integração  valorativa  entre  ciência  e 
protestantismo.  
Na versão mertoniana do externalismo, os fatores externos só podem ser a causa 
da  dimensão  social  da  ciência.  E  o  papel  dessa  dimensão  social  é  deliberadamente 
restringido:  a  sociedade  funciona  apenas  como  facilitadora  ou  inibidora  do 
desenvolvimento  de  ideias  que  possuem  uma  dinâmica  própria.  Há  uma  interdição 
consciente  e  explícita  das  tentativas  de  utilizar  fatores  externos  para  explicar  aspectos 
internos  da  ciência  (MARCOVICH  e  SHINN,  2013;  MERTON,  2013,  pp.  126­145, 
SHAPIN, 1988, pp. 594­596). A ciência só é objeto de sociologia naquilo que ela tem 
de  instituição  social.  Definida  como  conhecimento,  ela  está  fora  do  alcance  do 
sociólogo,  o  seu  aparato  conceitual  é  da  alçada  do  epistemólogo.  Merton  não  se 
preocupa  em  fornecer  uma  definição  tipicamente  sociológica  para  o  conhecimento 
científico,  aceita  aquela  formulada  pelo  positivismo  lógico,  se  posiciona 
confortavelmente  em  relação  à  divisão  entre  “contexto  da  descoberta”  e  “contexto  da 
70
justificação”  como  fora  estipulada  por  Hans  Reichenbach  (ÁVILA,  2012;  MAIA, 
2013).
Terry  Shinn  e  Pascal  Ragouet  (2008)  descrevem  a  sociologia  da  ciência  “pré­
kuhniana”  derivada  dos  trabalhos  de  Merton  como  “diferenciacionista”.  É  um  tipo  de 
abordagem que enfatiza a diferença entre a ciência e outras dimensões da vida social, 
considerando­a uma entidade epistemologicamente superior. Trata­se de uma sociologia 
que  compartilha  com  a  ciência  muitas  pressuposições  metafísicas  típicas  da  primeira 
metade do século XX. Essa avaliação poderia facilmente ser estendida para setores da 
história das ciências praticadas à época. A sua tarefa seria demarcar as diferenças entre 
o  conhecimento  científico  e  outros  produtos  intelectuais  e  investigar  as  condições 
sociais  que  garantem  a  manutenção  dos  valores  supostamente  necessários  para  o  seu 
progresso. Com efeito, a própria discussão sobre as relações entre ciência e sociedade – 
quando  não  pautadas  pela  via  dos  benefícios  sociais  da  ciência  e  da  tecnologia,  vista 
como  seu  produto  direto  –  seria  sintoma  de  que  algo  está  errado  nessa  relação.  A 
sociologia da ciência seria uma espécie de “disciplina de crise”: necessária somente para 
explicar  o  que  vai  mal,  como  certas  influências  sociais  conduzem  a  ciência  ao  erro, 
como determinados tipos de sociedade impedem o avanço do conhecimento (por mais 
que, formalmente, se esforcem em promover a ciência) e como restabelecer o virtuoso 
caminho da pureza, da separação, da autonomia.
É  imbuído  desse  objetivo  que  Merton  analisa  a  ciência  moderna  de  modo  a 
depreender  dela  o  seu  ethos,  as  prescrições  morais  e  técnicas  que  derivariam  dos 
métodos  da  ciência  e  se  estabeleceriam  como  um  costume  cuja  função  seria  a  de 
garantir  a  eficiência  da  investigação  (MERTON,  2013,  pp.  181­185).  Como  sabemos, 
esse  ethos  é  composto  basicamente  por  quatro  imperativos  institucionais:  o 
universalismo  é  a  submissão  dos  enunciados  científicos  a  critérios  impessoais  de 
avaliação  e  a  completa  recusa  de  vincular  a  fonte  de  produção  de  uma  alegação  de 
verdade à sua validade (não pode haver “ciência nacional”, nem “ciência proletária”); o 
comunismo é a noção de que as descobertas científicas não pertencem ao cientista que a 
nomeia, o conhecimento científico é patrimônio comum de toda a comunidade científica 
e de toda a humanidade (o que entra em conflito com o processo de patentes e direitos 
autorais que começava a ter um papel importante na época em que Merton escrevia); o 
desinteresse,  garantido  pelo  caráter  público  da  ciência  e  pela  responsabilidade  dos 
cientistas diante dos seus pares, não deve ser confundido com um altruísmo ou com um 
71
alto padrão moral que supostamente caracterizaria os cientistas, mas é uma norma cuja 
função é assegurar a estabilidade institucional; por fim, o ceticismo organizado é uma 
estratégia  metodológica  e  existencial  de  suspensão  do  julgamento,  é  o  exercício  da 
dúvida  e  da  imparcialidade  diante  dos  fatos,  a  negação  de  suposições  a  priori 
(MERTON, 2013, pp. 181­198). 
Assim, tanto os estudos de sociologia histórica quanto as proposições de caráter 
mais  normativo  de  Merton  visam  expurgar  das  análises  histórico­sociológicas  sobre  a 
ciência  quaisquer  tentativas  de  atacar  o  conteúdo  da  ciência.  Não  se  trata  apenas  da 
circunscrição  disciplinar  da  sociologia  e  da  história  das  ciências,  da  divisão  social  do 
trabalho intelectual que traça os limites de determinado campo de investigação; trata­se 
também  da  demarcação  simultânea  do  próprio  objeto  de  pesquisa.  O  conhecimento 
científico  não  pode  ser  tratado  sociologicamente  nem  historicamente  posto  que  ele  é 
independente do seu contexto. Em resumo: a ciência, naquilo que ela tem de essencial, 
não é objeto da história. 
Esse  argumento,  tornado  mais  explícito  nos  trabalhos  de  Robert  Merton, 
acompanha todo o desenrolar do processo de formulação das diretrizes programáticas da 
história das ciências na primeira metade do século passado. O momento de cristalização 
dessa disciplina se dá sob a égide desse princípio e a própria formulação do vocabulário 
do internalismo e externalismo nesse campo é fruto dessa escolha. A esse respeito, faço 
duas observações.
Em primeiro lugar, a ideia de uma prática autocentrada e mais ou menos infensa 
às perturbações de outros fenômenos não é exclusividade da ciência ou da sua história. 
Na literatura, nas artes, no direito e na filosofia, o problema de compreender a relação 
entre o conteúdo da produção e o seu contexto teve um papel importante. De forma mais 
geral, o trabalho de estabelecimento de fronteiras é vital para a individuação de qualquer 
prática  cultural.  Estipular  o  que  é  intrínseco  e  o  que  é  extrínseco  é  um  mecanismo  de 
definição  generalizado.  Isso  pode  explicar  em  parte  porque  o  problema  adquiriu  a 
centralidade das discussões teórico­metodológicas da história das ciências precisamente 
no momento da sua afirmação no rol das especialidades do saber humano. O discurso 
das fronteiras, do interno e externo, é um discurso que lida com uma dupla legitimidade: 
a da disciplina (a história das ciências) e a do objeto (as ciências). 
No entanto, além da forma genérica do papel da linguagem da diferenciação em 
diversas  atividades  socialmente  organizadas,  existem  as  evidentes  singularidades  que 
72
marcam cada processo, determinadas pelas especificidades de cada campo. No caso da 
história  das  ciências,  falamos  da  necessidade  de  afirmação  da  própria  ciência  nas 
sociedades  contemporâneas,  a  emergência  de  uma  série  de  discursos  que  articularam 
uma  poderosa  rede  cujo  nó  central  que  supostamente  mantinha  firme  a  civilização 
ocidental era a ciência moderna. A supremacia do cientificismo.
Em  segundo  lugar  (e  fruto  desse  processo  de  afirmação  das  ciências  no  século 
XX), a forma assumida pela historiografia das ciências não foi “natural” ou meramente 
“inevitável”. Ela é fruto da seleção de um repertório de possibilidades de enunciação. O 
que,  por  sua  vez,  implica  na  interdição  de  certas  iniciativas  que  desviavam  desse 
projeto. É o caso da já mencionada sociologia do conhecimento de Karl Mannheim e da 
epistemologia histórica de Ludwik Fleck. O itinerário dessas propostas e o papel ativo 
da afirmação da polarização entre internalismo e externalismo como modos válidos de 
análise  da  história  das  ciências  em  detrimento  de  outras  possibilidades  narrativas  foi 
primorosamente analisado em um trabalho recente de Carlos Alvarez Maia (2013). As 
tentativas de adicionar historicidade ao conteúdo cognitivo da ciência foram duramente 
combatidas,  derrotadas  e  condenadas  a  um  silêncio  do  qual  só  foram  resgatadas  três 
décadas mais tarde. Elas ressurgirão a partir da inflexão gerada pelo surgimento do livro 
de  Thomas  Kuhn  em  1962  e  do  “programa  forte”  da  sociologia  do  conhecimento 
científico em meados dos anos 1970. 
Apesar  da  importância  dessas  contribuições,  tomadas  como  um  dos  problemas 
centrais da análise de Carlos Maia, devemos atentar para os significados da hegemonia 
das  explicações  a­históricas  da  história  das  ciências,  para  os  motivos  da  vigência 
daquilo  que  esse  autor  chama  de  hiato  historiográfico.  A  manutenção  dessas 
interpretações  não  é  um  erro  histórico,  fruto  da  incompetência  dos  autores  que 
produziam no período (nem dos que defendiam a historicidade por não conseguir com 
que ela vingasse, nem dos que a negavam). Se uma dimensão mais normativa da teoria 
da história não pode se furtar a recriminar essas formas historiográficas (internalistas e 
externalistas)  por  manterem  –  de  forma  deliberada  ou  inconsciente  –  a  historicidade 
apenas  do  lado  de  fora  da  ciência  ou  por  se  contentarem  com  uma  forma  parcial  de 
historicidade (por exemplo, uma relação direta da produção de conhecimento científico 
com  a  temporalidade  dos  produtos  cognitivos  combinada  com  uma  independência  em 
relação  aos  “fatores  externos”),  uma  das  tarefas  de  uma  história  da  historiografia  é 
compreender porque a história das ciências assumiu aquela configuração no período.
73
Seria  um  equívoco  negar  à  história  das  ciências  praticada  sob  as  rubricas  de 
externalismo ou internalismo a condição de história, seja através da justificativa de que 
elas negam a historicidade do seu próprio objeto, seja porque não há uma “comunidade” 
dos  historiadores  da  ciência,  um  circuito  profissional  de  praticantes.  Essa  postura 
empobrece  o  debate  e  reforça  os  argumentos  dos  que  defendem  que  a  história  das 
ciências  não  é  história,  mas  um  campo  à  parte  epistemologicamente  e 
institucionalmente,  posto  que  comprometido  com  os  valores  do  objeto  historiado.  Ao 
reconhecer nessas correntes o estatuto de conhecimento histórico (sem a arrogância de 
quem  “garante”  as  condições  ou  estipula  os  critérios  definidores  do  estatuto 
epistemológico de certa prática intelectual) e avaliar as condições que possibilitaram o 
surgimento e a estabilização de certos tipos de discurso sobre o passado das ciências (ou 
sobre  as  ciências  do  passado,  o  que  não  é  a  mesma  coisa)  estamos  reforçando  a 
historicidade  da  própria  história,  a  transitoriedade  dos  critérios  através  dos  quais  se 
julga o trabalho historiador.
O  vocabulário  teórico  utilizado  pela  história  das  ciências  entre  as  décadas  de 
1930 e 1970 foi forjado em meio à ampla afirmação da ciência como expressão máxima 
da  civilização  e  o  seu  cultivo  como  obrigação  do  Estado,  uma  noção  que  crescia  no 
imaginário ocidental desde meados do século anterior. Corresponde a uma necessidade 
de demarcação e criação identitária exigida por setores da sociedade que percebiam na 
ciência,  cada  vez  mais,  uma  dimensão  importante  da  sua  constituição  e  que  se 
articulavam  em  torno  de  um  projeto  de  difusão  dessa  concepção  da  ciência  e  da  sua 
relevância  fundamental.  As  transformações  desse  ideal  científico  após  a  Segunda 
Guerra  Mundial  –  como  a  percepção  do  potencial  destrutivo  da  ciência  e  o 
recrudescimento  de  grupos  que  se  opunham  à  forma  como  se  organizou  o  complexo 
militar­industrial­científico nos anos subsequentes ao conflito (em especial nos EUA) – 
repercutiram  de  forma  mais  consequente  na  historiografia  apenas  a  partir  dos  anos 
196045.
Nesse sentido, no curso de um processo de divisão social do trabalho intelectual, 
a  história  das  ciências  supre  pelo  menos  duas  funções  de  importância  capital  para  o 
projeto de consolidação de certo ideal de ciência. Em primeiro lugar, institucionaliza­se 

45 A historiografia do final dos anos 1940 e dos anos 1950 não deixou de referir­se à ameaça nuclear, 
porém, em geral, sua resposta era pela necessidade de mais história das ciências como forma de educar o 
público  e  os  decision­makers  para  reforçar  a  divisão  entre  ciência  pura  e  ciência  aplicada  e,  com  isso, 
fazer com que utilizassem a tecnologia da “melhor forma possível”.
74
como  uma  disciplina  com  um  forte  interesse  na  compreensão  do  papel  da  ciência  na 
modernidade  ocidental  (daí  a  sua  ênfase  na  revolução  científica)  e  na  criação  de  um 
passado  que  legitimasse  o  seu  lugar  privilegiado  na  paisagem  dos  saberes.  Embora 
considerassem  científicas  quaisquer  tentativas  de  apreender  a  “natureza”  que  fossem 
(alegadamente)  racionais  e  sistemáticas  (como  a  astronomia  das  antigas  civilizações 
babilônicas ou egípcias), esses autores estavam diretamente preocupados com o suposto 
salto  qualitativo  ocorrido  na  forma  de  compreender  a  natureza  durante  a  revolução 
científica na Europa dos séculos XVI e XVII, ou seja, no estabelecimento do “método 
científico”.  Essa  história  das  ciências  expressava  a  profunda  crença  não  apenas  na 
existência do método científico como também na sua prioridade epistêmica sobre outras 
formas de investigação acerca do mundo natural. 
Ainda nesse processo, era importante recuperar o viés crítico, aberto e libertador 
que  a  ciência  possuía  nos  séculos  XVI,  XVII  e  XVIII,  geralmente  tratando­o  como 
essencial à própria definição de ciência e identificando­o com o método científico. No 
entanto,  trata­se  agora  de  um  contexto  completamente  diferente,  de  uma  configuração 
histórica  na  qual  a  ciência  começa  a  ocupar  o  lugar  de  hegemonia  (se  não  de 
monopólio)  no  interior  dos  Estados  do  capitalismo  desenvolvido  (e  na  URSS).  O 
recurso à história da ciência moderna e o reforço da imagem (já há muito transformada) 
da  ciência  como  permanentemente  dinâmica  e  aberta  a  contestações,  avessa  a 
argumentos de autoridade (baseando as suas afirmações em “verdades”), essencialmente 
antidogmática, servia para legitimar o seu lugar de fundamento da organização da vida 
social.  Elas  cristalizam,  entre  o  público  erudito  (mas  não  só  para  esse  grupo),  certos 
estereótipos sobre a ciência e os cientistas e se aproximam sobremaneira das narrativas 
míticas que julgam destruídas pela ciência que veneram.
Possui  também  uma  função  teórica  (sobre  a  qual  as  posições  conflitantes 
efetivamente divergem). Nem o internalismo e nem o externalismo se preocuparam em 
fornecem  uma  concepção  completa  de  história  ou  uma  teoria  exaustiva  da  ciência. 
Transpuseram para a forma de conhecimento que desenvolviam uma série de conceitos 
e valores elaborados em outros ambientes intelectuais (especialmente na filosofia ou nas 
próprias  ciências,  de  onde  saíram  muitos  autores  que  produziram  no  período), 
adaptando­os  aos  seus  padrões  intelectuais.  Isso  não  significa  que  repetiam 
acriticamente  noções  estranhas  à  sua  forma  de  produção  de  conhecimento,  mas  que 
compartilhavam  essas  noções,  tomavam  como  não­problemáticos  certos  valores  em 
75
relação à ciência. Mais do que isso, a história das ciências era um participante ativo no 
processo  de  consolidação  e  capilarização  de  uma  determinada  imagem  de  ciência.  O 
ponto  em  disputa  encontra­se  justamente  naquilo  que  esse  corpus  textual  produziu  de 
mais original: teorias da mudança científica. É o ponto de fuga para o qual convergem 
questões de teoria da história, de teoria da ciência e da própria ordem social em torno do 
problema  da  causalidade.  Qual  a  causa  de  uma  nova  teoria,  de  um  novo  objeto  de 
pesquisa, de uma nova técnica de medição astronômica? Em suma: qual a causa de uma 
transformação histórica? Não é difícil perceber, ao final desse percurso, em que diferem 
as interpretações que tem nos ocupado ao longo desses dois capítulos. 
Ao  ressaltar  essa  perspectiva,  endosso  o  argumento  de  que  as  formas  de  lidar 
com  questões  de  ciência  são  também  formas  de  encarar  a  sociedade  e  as  disputas 
políticas.  Como  já  afirmei,  a  história  das  ciências  é  sempre  um  empreendimento 
engajado  nas  causas  do  seu  tempo.  Embora  as  escolhas  teóricas  sejam  por  vezes 
influenciadas  pelas  divisões  entre  os  dois  grandes  sistemas  político­econômicos  do 
século XX, o socialismo e o liberalismo (com o eco das polarizações de outras ordens, 
como entre idealismo e materialismo ou entre iluminismo e romantismo), as propostas 
não  são  meras  reelaborações  das  filiações  políticas  dos  seus  autores.  Para  além  das 
discussões  ideológicas,  entre  a  “liberdade  individual”  do  cientista  e  a  necessidade  de 
planejar o avanço da ciência de acordo com os “interesses da sociedade”, há um grande 
consenso ideológico (e metafísico) em torno do cientificismo. Nenhuma agenda política 
poderia vingar (talvez sequer ser concebida) sem o apelo à autoridade da ciência.

Parte II: Da Big Science à tecnociência

76
3. A comunidade científica como solução política

Conforme  aprendemos  com  a  narrativa  padrão  da  historiografia  das  ciências,  a 


querela  entre  o  internalismo  e  o  externalismo  foi  supostamente  ferida  de  morte  pela 
proposta teórica apresentada por Thomas Kuhn e agonizou até morrer esquecida no final 
da  década  de  197046.  De  Bourdieu  a  Latour,  as  tentativas  de  teorizar  as  ciências  em 
décadas  mais  recentes  têm  oferecido  alternativas  à  velha  dicotomia,  sempre  tentando 
superar  ou  ultrapassar  a  divisão  entre  externo  e  interno,  considerada  superficial  e 
infrutífera  para  a  compreensão  dos  fenômenos  que  designamos  por  ciência.  O  que 
ofereço  aqui,  no  entanto,  não  é  nem  uma  descrição  do  cortejo  fúnebre,  nem  uma 
autópsia dos fatores internos e externos. Pelo contrário, minha intenção é perseguir os 
seus traços; perceber como eles foram reconfigurados pela historiografia contemporânea 
em um momento de profundas transformações no capitalismo, nas ciências e nas formas 
de interpretá­las.
Meu ponto de partida é a publicação de A estrutura das revoluções científicas; 
com  isso,  a  escolha  metodológica  está  demarcada,  pois  é  a  historiografia  que  se 
enquadra  na  “tradição  kuhniana”  que  será  o  alvo  das  análises  empreendidas  nos 
próximos capítulos desta tese. Por “tradição kuhniana” entendo a produção histórica que 
– realizando uma leitura eminentemente sociológica da contribuição de Thomas Kuhn – 
tomou para si a herança de estabelecer “um papel para a história” na explicação efetiva 
das ciências. Como ficará mais claro no decorrer dos capítulos, os historiadores (em sua 
grande maioria) não seguiram o modelo de história das ciências delineado na Estrutura, 
a obra não se tornou um manual de como abordar o passado das ciências47; não se pode 

46  Até  os  anos  1980,  proliferam  as  análises  que  consideram  a  contribuição  kuhniana  um  ponto  de 
inflexão não apenas para a história das ciências, mas para a filosofia das ciências (REISCH, 1991) e para 
a  sociologia  das  ciências  (MARTINS,  1972).  A  partir  da  década  de  1990,  começam  a  surgir  mais 
fortemente as abordagens que reconsideram o alcance da ruptura efetuada por Kuhn e passam a buscar – 
como  é  o  caso  aqui  para  a  questão  dos  fatores  internos  e  externos  –  continuidades  com  a  tradição 
historiográfica e filosófica anterior (REISCH, 1991; FULLER, 1992; MAIA, 1996). Na seção especial da 
revista Social Studies of Science dedicada ao cinquentenário da Estrutura, a maioria dos autores ressalta a 
importância da obra ao mesmo tempo em que a identifica como uma reelaboração (por vezes ingênua) das 
ideias  de  Fleck,  Polanyi,  Conant,  Wittgenstein,  Koyré  ou  Peter  Winch  (Cf.  COLLINS,  2012;  DEAR, 
2012; PICKERING, 2012; TURNER, 2012; SISMONDO, 2012). Há mesmo quem julgue que o principal 
feito  de  Kuhn  foi  colaborar  (involuntariamente)  com  a  epistemologia  popperiana  (SPRINGER  DE 
FREITAS, 1998).
77
falar  de  uma  “historiografia  kuhniana”  do  mesmo  modo  que  se  fala,  por  exemplo,  de 
uma “historiografia marxista”. Por isso a escolha da expressão “tradição kuhniana”, que 
deve  refletir  mais  uma  inspiração,  um  tipo  de  leitura  conscientemente  enviesado  e 
seletivo.  Que  incluí  certamente  a  apropriação  de  certos  princípios  metodológicos,  mas 
que  se  atém  principalmente  à  proposta  de  elaboração  de  uma  nova  imagem  para  a 
ciência e para o papel da história nesse processo.
Supostamente,  essa  historiografia  recusava  a  divisão  entre  internalismo  e 
externalismo e, principalmente, o lugar secundário reservado para a história das ciências 
na  estratégia  determinada  pelo  positivismo  lógico  do  Círculo  de  Viena  desde  os  anos 
1920 e 1930; uma posição que a historiografia produzida sob a égide da divisão entre 
internalismo  e  externalismo  não  conseguiu  romper48.  Especificamente,  tratarei  dessa 
historiografia a partir de dois livros.  No capítulo seguinte deste trabalho, o foco será o 
texto de Simon Schaeffer e Steven Shapin, Levianthan and the Air­pump, publicado em 
1985. Serão os problemas historiográficos apontados por essa obra que nos servirão de 
guia. A partir deles, abrirei espaço pela historiografia das ciências da década de 1980 e 
da  primeira  metade  dos  anos  1990,  inserindo  na  discussão  e  na  análise  autores  que 
compartilham  sensibilidades  historiográficas  e  que  forjaram  parte  importante  (talvez 
hegemônica) da disciplina nesse período. No capítulo 5, que encerra a Parte 2, realizarei 
uma  leitura  similar  tendo  como  foco  o  livro  Objectivity,  de  Lorraine  Daston  e  Peter 
Galison.
De  modo  a  avaliar  a  inovação  proporcionada  pela  interpretação  kuhniana  em 
relação  ao  problema  dos  fatores  internos  e  externos,  seus  possíveis  contatos  com  o 
modo  de  produção  das  ciências  no  período  em  que  foi  escrito  e,  posteriormente,  o 
quanto  a  historiografia  que  reivindicou  a  sua  herança  constituiu  também  uma  ruptura 
com  essa  interpretação,  farei  uma  breve  incursão  pela  contribuição  kuhniana.  A 
intenção  aqui  não  é  desenvolver  uma  interpretação  original  da  Estrutura  ou  do 
momento  de  sua  produção;  apenas,  de  forma  mais  modesta,  retomar  alguns  dos 
argumentos oferecidos por autores que realizaram importantes leituras da contribuição 

47 Felizmente, levando em consideração as críticas que Kuhn dirige aos manuais.
48  Para  esses  autores,  Kuhn  conseguiu  derivar  diretamente  da  avaliação  das  práticas  científicas  do 
passado uma nova imagem da ciência, mais “relativista”, embora, simultaneamente, mais “realista”. Seus 
críticos  irão  alegar,  pelo  contrário,  que  ele  partiu  de  uma  concepção  filosófica  relativista  em  relação  às 
ciências e tentou aplicá­la ao material histórico (sobre a distinção entre relativismo aplicado e relativismo 
derivado, cf. OLIVA, 2012). 
78
de Kuhn à historiografia das ciências, ressaltando aqueles aspectos mais relevantes para 
o propósito desta pesquisa49.
Um dos pontos que diversos autores enfatizam – com certa ironia – ao relatar o 
surgimento da obra de Kuhn é que A estrutura das revoluções científicas foi concebida 
para  figurar  na  International  Encyclopedia  of  Unified  Sciences,  um  projeto  editorial 
idealizado por Otto Neurath no final dos anos 1930 e organizado primordialmente por 
membros do Círculo de Viena que haviam emigrado para a Inglaterra e os EUA com a 
ascensão  do  nazismo  na  Áustria.  O  Comitê  Organizador  (Committee  of  Organization) 
incluía,  entre  outros,  Otto  Neurath  (editor­chefe),  Rudolf  Carnap  e  Phillip  Frank.  No 
Comitê  Consultivo  (Advisory  Committee),  nomes  como  Hans  Raichenbach50  e  Herbert 
Feigl,  além  de  Niels  Bohr,  Bertrand  Russel,  Alfred  Tarski  e  Ernest  Nagel  e  outros 
importantes filósofos e cientistas da época51.
O  ambicioso  projeto  foi  publicado  entre  1938  e  1970,  ano  em  que  foi 
interrompido  e  permaneceu  incompleto.  Bem  ao  espírito  do  empirismo  lógico,  a 
enciclopédia  pretendia  contribuir  para  a  compreensão  dos  mais  diversos  campos 
científicos, da sua história, sociologia e fundamentos filosóficos, além de ditar­lhes um 
plano  geral  de  desenvolvimento  (REISCH,  1994)52.  A  estrutura  das  revoluções 
científicas  correspondia  ao  segundo  número  do  segundo  volume,  dedicado  aos 
Fundamentos  da  Unidade  da  Ciência.  Talvez  essa  inserção  explique  em  parte  o 
didatismo e esquematismo da obra e também a surpresa do autor, explícita no posfácio à 
segunda  edição,  ao  rebater  as  leituras  que  consideravam  sua  aproximação  relativista. 
Kuhn  pensava  o  seu  trabalho  como  internalista  no  campo  da  historiografia  e, 

49 Como sabemos, a bibliografia sobre Kuhn e, especificamente, sobre a Estrutura, é assustadoramente 
gigantesca (uma busca por “Thomas Kuhn” no Google Scholar, por exemplo, retorna aproximadamente 
51.800  resultados;  se  usarmos  “The  structure  of  scientific  revolutions”  como  palavras­chave  da  busca, 
62.400  resultados.  Para  efeito  de  comparação,  uma  busca  por  “The  logic  of  scientific  discovery”  gera 
18.600 resultados). Aqui sigo parcialmente os argumentos historiográficos desenvolvidos pelo professor 
Carlos Alvarez Maia (1996; 2001; 2013), especialmente em dois aspectos: a) o papel desempenhado pela 
nova forma de gestão estatal da ciência e da tecnologia nos EUA na concepção de história das ciências 
presente  na  obra  de  Thomas  Kuhn  e  b)  a  consequência  de  “domesticação”  e  subordinação  da  atividade 
historiadora que essa nova estrutura científica acarretou. Devo muitas das ideias presentes nessa seção aos 
estudos de Steve Fuller (1992; 1997; 2000) sobre a obra de Thomas Kuhn e sua relação com os problemas 
da science policy estadunidense do pós­Guerra. 
50 Que não foi membro do Círculo de Viena, mas de sua “filial” alemã, o Círculo (ou Escola) de Berlim, 
e cujas influências decisivas no programa do positivismo lógico são inegáveis.
51 A lista completa dos membros foi consultada na edição norte­americana de 1970 de A estrutura das 
revoluções científicas. Cf. KUHN, 1970.
52  O  projeto  da  enciclopédia  foi  sempre  inconstante,  repleto  de  atrasos,  interrupções  e  toda  ordem  de 
problemas. Ele nunca conseguiu se firmar como uma série coerente de publicações, a maioria do que foi 
produzido acabou tendo vida própria na forma de monografias (como foi com A estrutura das revoluções 
científicas).
79
filosoficamente,  como  uma  continuidade  em  relação  ao  projeto  do  positivismo  lógico, 
embora seguindo uma direção diferente53.
A leitura da obra de Kuhn como um manifesto revolucionário em favor de uma 
imagem  de  ciência  diametralmente  oposta  à  oferecida  pelo  empirismo  lógico  foi 
formulada à revelia do autor. Essa é, obviamente, uma chave de leitura possível – e não 
temos  nenhuma  razão  para  atribuir  ao  próprio  Kuhn  qualquer  tipo  de  prioridade 
interpretativa sobre a sua obra, a auto­exegese é uma avaliação entre outras – que serviu 
para ancorar as pretensões de ruptura da geração subsequente à de Kuhn (especialmente 
a  sociologia  do  conhecimento  científico  e  a  “guinada  pragmática”  da  filosofia  da 
ciência)54.  A  contribuição  original  e  transformadora  da  teoria  kuhniana  da  ciência  não 
pode  ser  descartada.  Neste  trabalho,  a  obra  de  Kuhn  é  tomada  como  um  ponto  de 
inflexão, uma abertura para novas formas de investigação histórica das ciências que, ao 
mesmo  tempo,  traz  consigo  marcas  de  velhas  formas  supostamente  abandonadas.  A 
dinâmica  histórica  permite  o  convívio,  nem  sempre  pacífico,  de  continuidades  e 
rupturas.  Como  conceber  a  história  sem  encarar  a  presença  das  tradições  mortas  – 
sempre apropriadas, reelaboradas – a oprimir o cérebro dos vivos?
Tão importante quanto perceber a inserção da Estrutura em um poderoso projeto 
intelectual  é  apontar  as  condições  históricas  da  sua  produção.  Perceber  a  combinação 
entre a tradição filosófica do positivismo lógico e as profundas transformações sociais 
do período pós­guerra talvez ajude a compreender a posição ambígua de Thomas Kuhn, 
a tensão presente na sua obra que possibilitava leituras tão díspares. 
O livro de Kuhn foi gestado nos anos posteriores à Segunda Guerra Mundial e 
nos primeiros anos da Guerra Fria, quando a forma geral do capitalismo consolidava sua 
feição  keynesiana.  A  reestruturação  dos  Estados  nos  países  centrais  buscava  soluções 
tanto para a falência do liberalismo clássico (experimentada duramente durante a crise 
dos  anos  1930),  quanto  para  a  alternativa  comunista  que  assomava  no  leste  (DAHL  e 
LINDBLOM, 1971). Assim, o que se seguiu foi uma combinação de Estado, mercado e 
instituições  democráticas  que  variou  de  formas  de  “liberalismo  embutido”  até  bem 

53  A  correspondência  trocada  entre  Carnap  e  Kuhn,  por  ocasião  do  convite  para  contribuir  para  a 
Encyclopedia of Unified Sciences, mostra como o principal filósofo do Círculo de Viena concordava com 
grande parte da teoria da ciência esboçada na Estrutura (REISCH, 1991). 
54  Steve  Fuller  (1992)  traça  brevemente  a  trajetória  dessa  interpretação  a  partir  da  primeira  resenha 
publicada sobre a obra de Kuhn, ainda em 1964. Muitos autores destacaram a contrariedade de Thomas 
Kuhn em ter sido tomado como precursor do construtivismo, da sociologia do conhecimento científico e 
dos science studies (CONDÉ e OLIVEIRA, 2004; GOLINSKI, 2005; ZAMMITO, 2004).  
80
sucedidas  experiências  de  Estados  de  bem­estar  social,  conferindo  taxas  elevadas  de 
crescimento  aos  países  desenvolvidos  com  relativa  distribuição  da  riqueza  em 
praticamente todo o mundo desenvolvido. Essa forma “híbrida” de organização política 
e econômica dos Estados teve também impacto nas Políticas de Ciência e Tecnologia. 
Com  efeito,  a  ciência  desempenhou  um  papel  fundamental  no  sucesso  da  manutenção 
do bom desempenho da economia capitalista global no período e também se beneficiou 
desse  crescimento.  Segundo  Carlos  Alvarez  Maia  (2013,  p.  41):  “Uma  fórmula  que 
resume  bem  as  mudanças  historiográficas  nesse  quadro  seria:  ‘existe  uma  história  das 
ciências para 0,2% do PIB e outra para 2,7%’”. 
O novo pacto entre ciência e Estado – formulado nos EUA ainda em meados dos 
anos 1940 e largamente exportado – foi tão bem sucedido porque conseguiu sintonizar­
se  com  a  virada  em  direção  a  um  Estado  de  bem­estar  social,  no  qual  o  confortável 
crescimento permitia financiar a ciência a taxas crescentes baseado na confiança de que 
ela  proporcionaria  ainda  mais  bem­estar,  sem  exigências  imediatas.  Em  um  livro 
marcado pelo excessivo otimismo em relação ao papel da ciência (não apenas na criação 
de “produtos” capazes de resolver os problemas sociais, mas na forma de organização 
da ciência como modelo que torna obsoletas as instituições democráticas modernas), o 
cientista político Don K. Price afirma que “a ciência está começando a alterar a relação 
básica entre o poder político e econômico” (PRICE, 1965, p. 24)55. 
Apesar  dessa  confiança,  é  preciso  notar  que  o  monstruoso  aparato  científico­
militar­industrial  montado  pelos  EUA  para  o  esforço  de  guerra  gerava  todo  o  tipo  de 
sentimento  duvidoso,  desde  o  orgulho  nacionalista  até  o  pânico  das  teorias  da 
conspiração  caipiras56.  Obviamente,  essas  reações  não  eram  sem  propósito.  Os 
acontecimentos  de  Auschwitz  e  Hiroshima  dependiam  diretamente  da  participação  de 
cientistas  e  engenheiros.  No  mesmo  ano  que  A  estrutura  das  revoluções  científicas  é 
publicada,  a  Crise  dos  Mísseis  de  Cuba  reacende  nos  corações  e  mentes  de  todo  o 
mundo  a  paranoia  nuclear  e  o  medo  do  holocausto  global  pelas  mãos  dos  governos 
armados de tecnologias de destruição em massa57.

55  No  original:  “science  is  beginning  to  alter  the  basic  relation  of  political  and  economic  power”. 
Tradução minha. 
56 Lembremos, por exemplo, da adaptação da Guerra dos Mundos por Orson Welles, que levou milhares 
de  pessoas,  que  acreditavam  estar  ouvindo  a  transmissão  real  de  uma  “invasão  marciana”,  à  histeria 
coletiva em 1938.
57 O historiador Eric Hobsbawm resumiu formidavelmente esse espírito: “Nenhum período da história foi 
mais penetrado pelas ciências naturais nem mais dependente delas do que o século XX. Contudo, nenhum 
81
Depois  da  guerra,  essa  imensa  estrutura  foi  mantida  e  redirecionada  para  a 
pesquisa  básica  em  praticamente  todas  as  áreas,  com  óbvia  predileção  para  “setores 
estratégicos”. A Guerra Fria foi decisiva para manter essa mentalidade e sustentar essa 
agenda  política.  O  principal  documento  para  compreender  esse  processo  de 
reorganização no âmbito das Políticas de Ciência e Tecnologia é o chamado “Relatório 
Bush”,  encomendado  diretamente  pelo  presidente  Franklin  D.  Roosevelt  ao  físico  e 
engenheiro  Vannevar  Bush  ainda  em  1944,  já  com  o  objetivo  de  planejar  o 
direcionamento  dessa  estrutura  após  o  fim  da  guerra  (CASTELFRANCHI,  2008,  pp. 
29­36;  STOKES,  2005,  pp.  16­25).  Quando  da  encomenda,  Bush  ocupava  uma 
importante posição na administração e formulação de Políticas de Ciência e Tecnologia 
e já estivera à frente de diversas instituições de pesquisa ligadas ao governo. Durante a 
Segunda  Guerra,  ele  foi  um  dos  responsáveis  por  formular  as  diretrizes  que 
aproximaram  pesquisa  científica  e  esforço  bélico,  ocupando  um  papel  decisivo  no 
Projeto  Manhattan  e  dirigindo  o  Office  of  Scientific  Research  and  Development 
(Escritório de Pesquisa e Desenvolvimento Científico). Suas credenciais e sua posição 
privilegiada o tornavam apto para uma tarefa de tamanha envergadura. Mobilizando o 
aparato que estava ao seu alcance, Vannevar Bush instituiu comissões que o ajudaram a 
compor o relatório.
Obviamente, o sucesso dessa empreitada não pode ser atribuído exclusivamente 
à competência do Dr. Bush ou da sua equipe, mas às condições históricas singulares que 
conformavam  as  Políticas  Públicas  de  Ciência  e  Tecnologia  após  a  Segunda  Guerra 
Mundial.  
Sugestivamente  intitulado  Science  –  The  endless  frontier,  o  relatório  ficou 
pronto em julho de 1945, depois da morte do presidente Roosevelt (foi entregue ao seu 
sucessor, Henry Truman) e poucos meses antes do fim da guerra. De forma exemplar, 
ele sintetizou a mentalidade científica do período e definiu as linhas gerais da Política 
de  Ciência  e  Tecnologia  que  seria  seguida  pelos  EUA  e  copiada  por  vários  países  do 
Ocidente. Uma análise desse importante documento me parece útil para enraizar o livro 
de  Thomas  Kuhn  em  sua  historicidade;  afinal,  é  contra  esse  pano  de  fundo  que  ele 
emerge  e  ganha  notoriedade.  O  objetivo  não  é  a  comparação  desses  dois  textos,  tão 
distintos  nos  seus  objetivos,  públicos,  espaços  de  circulação  e  apropriação,  mas  uma 

período,  desde  a  retratação  de  Galileu,  se  sentiu  menos  à  vontade  com  elas”  (HOBSBAWM,  2006,  p. 
504).
82
avaliação das visões de ciência que eles apresentam. Se, em grande parte, o trabalho de 
Kuhn  pretendia  utilizar  a  história  das  ciências  contra  a  visão  dominante  de  ciência  à 
época, não só nos debates filosóficos, mas entre cientistas e no “senso comum”; se, da 
mesma forma, tal conceito de ciência tinha “implicações profundas no que diz respeito à 
sua natureza e desenvolvimento” (KUHN, 2001, p. 20), devemos perceber essa imagem 
de ciência em sua expressão política mais efetiva. 
Nesse  sentido,  o  texto  do  Dr.  Bush  não  pretende  apresentar  nenhuma  grande 
novidade  no  que  tange  especificamente  à  imagem  da  ciência58.  Ele  capturou  ideias 
relativamente  consolidadas  e  se  aproveitou  de  um  momento  extremamente  propício. 
Yurij Castelfranchi caracteriza esse personagem como um dos principais representantes 
da “visão cowboy” da ciência. Um modelo no qual “cabe ao Estado estimular a abertura 
de  novas  fronteiras  do  conhecimento  científico,  enquanto  a  iniciativa  privada  tem  o 
papel  de  colonizar  os  novos  faroestes  cognitivos  e  torná­los  produtivos” 
(CASTELFRANCHI, 2008, p. 29)59.
Um golpe certeiro. O presidente dos Estados Unidos da América, o país que saiu 
da Segunda Guerra Mundial como o mais poderoso do mundo, entregou­lhe de bandeja 
a  oportunidade  para  que  ele,  Bush,  colocasse  a  ciência  no  centro  desse  império.  De 
maneira  quase  inocente,  o  presidente  Roosevelt  pergunta,  na  carta  que  solicita  o 
relatório:  como  a  experiência  acumulada  pelos  institutos  de  pesquisa  criados  para  a 
guerra  poderia  servir,  em  tempos  de  paz,  para  incrementar  a  saúde  da  Nação,  gerar 
novos empregos e elevar o padrão de vida (ROOSEVELT, 1944)? Ora, tudo que uma 
pessoa  na  posição  de  Vannevar  Bush  poderia  querer  se  realizava  e  a  resposta  não 
poderia ser outra: dê­nos o recurso que a ciência fará o resto! Para isso, no entanto, era 
preciso recorrer a uma poderosa retórica, já há muito versada em cantar a superioridade 
da ciência e dar­lhe nova roupagem. Não era preciso, a aquela altura do século XX, criar 
novos argumentos para convencer quem quer que fosse que a ciência era importante e 
poderosa e que o progresso científico era essencial para o bem estar da população e a 
segurança  nacional.  O  que  era  preciso  era  criar  um  argumento  inescapável  que 
mostrasse  como  a  ciência  era  uma  responsabilidade  social  direta  do  Estado  e, 

58 De acordo com David Hollinger (1990, p. 902), “Bush was merely codifying two popular beliefs that 
dominated American discourse about science and society in the 1920s and 1930s”. Poderíamos estender 
esse argumento e afirmar que Bush manipulava argumentos muito mais antigos e geograficamente difusos 
presentes na “tradição Ocidental”. 
59  O  vocabulário  do  faroeste  já  estava  presente  nos  documentos  que  compõem  o  Relatório  Bush,  com 
referências aos “pioneiros” e as “fronteiras” (ROOSEVELT, 1944; BUSH, 1945).
83
simultaneamente,  como  não  se  poderia  interferir  na  autonomia  da  pesquisa  científica; 
isso foi feito de maneira irretocável.
A ciência deveria ser maciçamente financiada pelo Estado seja pela formação de 
instituições  próprias  (no  caso  americano,  muitas  delas  ligadas  ao  Departamento  de 
Defesa e ao Pentágono) ou pelo apoio à iniciativa privada (universidades e institutos de 
pesquisa).  Seu  desenvolvimento  ocorre  de  maneira  lenta  e  desinteressada  por  meio  da 
pesquisa  básica  (qualquer  semelhança  com  o  ethos  mertoniano  não  é  coincidência).  O 
estudo  de  temas  e  fenômenos  aparentemente  distantes  da  experiência  cotidiana  pode 
trazer  benefícios  inesperados  e  deve  ser  preservado.  A  liberdade  de  pesquisa  e  a 
autonomia  dos  pesquisadores  é  um  valor  supremo.  O  progresso  da  ciência  é  fruto  da 
atividade  livre  de  intelectos  livres,  trabalhando  em  áreas  de  sua  própria  escolha  e 
predileção.  Além  disso,  o  incentivo  deve  ser  constante  para  que  as  novas  gerações 
ingressem,  em  número  cada  vez  maior,  em  carreiras  científicas.  A  pena  para  o 
desrespeito a esses princípios poderia ser altíssima, colocando em risco a soberania e a 
segurança  nacional  e,  em  última  instância,  o  futuro  da  humanidade;  afinal,  “sem 
progresso  científico  nada  que  for  conquistado  em  outras  direções  poderá  assegurar 
nossa  saúde,  prosperidade  e  segurança  enquanto  nação  no  mundo  moderno”  (BUSH, 
1945).
Outro  ponto  fundamental  é  a  cadeia  linear  seguida  pelo  desenvolvimento  da 
ciência. A pesquisa básica leva à ciência aplicada e essa leva à tecnologia. Ao travar a 
busca  desinteressada  e  curiosa  pela  verdade,  onde  quer  que  ela  leve,  interrompe­se  o 
fluxo  natural  do  desenvolvimento  que  tem,  no  seu  extremo,  os  avanços  necessários  à 
saúde, à indústria, etc. Para garantir o bem­estar público, a ciência deve ser preservada e 
incentivada  em  seu  percurso  de  desenvolvimento.  O  determinismo  do  relatório  é 
impressionante,  com  sua  insistência  na  relação  automática  entre  as  três  “fases”  do 
desenvolvimento científico e delas para a promoção do bem comum. A citação seguinte 
é bastante representativa do tom da argumentação e do seu conteúdo:
Os avanços na ciência, quando colocados em prática, significam mais 
empregos,  salários  maiores,  jornadas  de  trabalho  menores,  colheitas 
mais  abundantes,  mais  tempo  para  a  recreação,  para  o  estudo,  para 
aprender a viver sem o trabalho mortalmente fatigante que tem sido a 
sina do homem comum há eras. Os avanços na ciência também trarão 
padrões  de  vida  mais  elevados,  levarão  à  prevenção  ou  à  cura  de 
doenças,  permitirão  a  preservação  dos  nossos  recursos  naturais,  que 
são  limitados,  e  nos  darão  meios  de  nos  defender  de  agressões.  Mas 
para  atingir  esses  objetivos  –  garantir  um  alto  nível  de  emprego, 

84
manter  uma  posição  de  liderança  mundial  –  o  fluxo  de  novos 
conhecimentos  científicos  deve  ser  contínuo  e  substancial  (BUSH, 
1945).
Para  que  o  automatismo  derivado  dessa  concepção  não  acarretasse  em  um 
controle direto da atividade científica por parte da burocracia estatal desejosa de novas 
aplicações práticas dos avanços científicos em ritmo cada vez maior (o que geraria, por 
sua  vez,  índices  cada  vez  maiores  de  frustração  com  a  incapacidade  da  ciência  de 
responder  na  velocidade  necessária  aos  incessantes  problemas  sociais),  era  preciso 
limitar o controle externo ao mínimo possível60. A proposta de Vannevar Bush prescreve 
a criação de um órgão central de administração da pesquisa científica controlado pelos 
próprios cientistas (chamada no relatório de National Research Foundation e que seria 
criada, depois de uma intensa disputa política travada no parlamento americano, sob o 
nome  de  National  Science  Foundation  [NSF]).  Carlos  Alvarez  Maia  (2013)  mostra 
como  essa  disputa,  que  se  arrastou  ao  longo  de  cinco  anos,  gira  primordialmente  em 
torno  do  poder  de  decisão  no  interior  da  futura  NSF61.  O  desenrolar  desse  processo 
evidencia “a difusão do mito da ciência ‘pura’, no qual a ciência teria um crescimento 
dependente só de seus parâmetros internos” (MAIA, 2013, p. 44). E o autor prossegue, 
afirmando que:
Esse  mito  traz  como  corolário  uma  ciência  ‘neutra’,  que  não  deveria 
sofrer coerções sociais. Decorre daí a ação política dos cientistas em 
luta  corporativa  pelo  poder  de  gerir  sua  autonomia.  Nessa  luta,  os 
cientistas  atuam  sob  o  modelo  de  uma  ‘comunidade’:  uma 
fraternidade de iguais (MAIA, 2013, pp. 44­45).
A comunidade científica deve ser “protegida” da sociedade, que aparece apenas 
como  uma  fonte  de  atrasos  para  o  avanço  da  ciência.  Qualquer  intromissão  de  não 
cientistas nos assuntos da ciência é visto como potencialmente danoso ao progresso que 
os cientistas tão diligentemente lutam para atingir em benefício dessa mesma sociedade 
(HOLLINGER, 1990, p. 902).
Um  exemplo  bem  acabado  dessa  visão  apareceu  na  revista  Science  em  sua 
edição  de  janeiro  de  1961.  The  moral  un­neutrality  of  science,  transcrição  de  um 
discurso  proferido  por  Charles  Pierce  Snow  (famoso  por  sua  reflexão  sobre  as  “duas 

60  A  discrepância  entre  as  promessas  de  progresso  ilimitado  e  a  capacidade  limitada  da  ciência  em 
fornecer  respostas  efetivas  levou  a  muito  descontentamento  e  frustração  em  certos  setores  sociais.  Nas 
ocasiões mais delirantes, às suposições de que “o governo” ou “os militares” mantinham em segredo as 
realizações  tecnológicas  relevantes  (armamentos  absurdamente  poderosos,  vírus  mortais  e  coisas  do 
gênero). 
61Segundo Donald Stokes (2005, p. 86): “o projeto organizacional de Bush foi derrotado, ao passo que a 
sua ideologia triunfou”.
85
culturas”)  na  reunião  anual  de  1960  da  American  Association  for  the  Advancement  of 
Science  (AAAS)62.  O  tom  do  texto  é  o  da  polarização  entre  os  cientistas  (“o  grupo 
profissional mais importante do mundo atual” [SCIENCE, 1961, p. 256]63) e o “resto 
do mundo”. O seu objetivo é retirar os cientistas da posição subalterna de “soldados sem 
uniforme”  no  sistema  de  Pesquisa  &  Desenvolvimento  da  Big  Science  eivada  pelas 
tensões  da  Guerra  Fria  e  colocá­los  no  topo  da  cadeia  de  comando.  Esse  período  é 
marcado  pelos  debates  em  torno  das  atribuições  de  autoridade  e  poder  decisório  no 
âmbito  da  pesquisa  científica.  De  um  lado,  alguns  setores  do  establishment  político  e 
econômico  –  diante  da  centralidade  da  ciência  nos  projetos  de  poder  dos  Estados 
nacionais  –  passam  a  considerar  a  ciência  “importante  demais  para  ser  deixada  aos 
cientistas”  (CASTELFRANCHI,  2008,  p.  36).  Do  outro  lado,  os  cientistas  buscavam 
operações  discursivas  que  legitimassem  a  sua  autonomia  e  a  sua  autoridade  exclusiva 
para legislar e julgar sobre temas de ciência. A transformação do cientista (e do físico, 
em especial) em “recurso militar” e a subsequente sujeição à regras externas de conduta, 
à  disciplina  militar  de  obediência  e  hierarquia,  seria  um  abandono  (imperceptível)  da 
plenitude  da  vida  científica.  Embora  Snow  enfatize  que  não  há  distinção  conceitual 
entre  produzir  armas  de  destruição  em  massa  ou  medicamentos  –  a  diferença  é 
estritamente  moral  (SCIENCE,  1961,  p.  258)64.  A  estratégia  que  o  autor  emprega  é 
uma aguerrida defesa da disciplina moral dos cientistas que dispensaria qualquer tipo de 
controle externo65. São duas as fontes dessa moral: a busca da verdade como motor da 
investigação e, uma vez bem sucedida essa busca, a certeza do conhecimento66. Tudo 
que a sociedade deve fazer em retribuição pelo gesto abnegado de altruísmo – além do 
pagamento de vultosas somas de dinheiro público – é simplesmente deixar com que os 
cientistas resolvam por si mesmos como gerir os seus recursos.

62  Sobre  o  papel  da  AAAS  na  domesticação  da  história  das  ciências  nos  EUA,  ver  MAIA,  2001.  Os 
cientistas  radicais  dos  anos  1970,  de  modo  a  marcar  o  caráter  elitista  e  corporativista  dessa  instituição, 
apelidaram­na de AAA$ (LÉVY­LEBLOND e JAUBERT, 1973, p. 20). 
63 No original: “the most important occupational group in the world today”. Tradução minha.
64 Esse ponto ecoa a seguinte questão: existe moral dos cientistas, mas não moral da ciência.
65 Um exemplo curioso (para nós, pelo menos) que Snow utiliza para defender a virtude dos cientistas é a 
sua convicção de que os cientistas se divorciam menos do que outros grupos profissionais com o mesmo 
nível de educação e renda (SCIENCE, 1961, p. 256)
66  Aqui,  Snow  recorre  a  um  procedimento  logicamente  inconsistente  (especialmente  para  alguém  tão 
imbuído  de  cientificismo),  mas  sociologicamente  recorrente  e  revelador:  a  passagem  da  denotação  à 
prescrição.  Mesmo  que  aceitemos  que  os  cientistas  sejam  capazes  de  enunciar  verdades  sobre  certos 
aspectos  da  realidade,  não  teremos  nenhuma  garantia  lógica  que  essa  verdade  nos  ajude  a  agir  sobre  a 
realidade. Essa conexão só funciona no interior de uma cultura cientificista, em que a moral é percebida 
como decorrente da “verdade” e essa, por sua vez, é independente da moral.

86
Apontar  para  a  relação  entre  a  mitologia  cientificista  da  “comunidade”  e  a 
posição  política  da  ciência  nos  EUA  do  pós­guerra  é  fundamental  para  uma 
compreensão  historiográfica  da  obra  de  Kuhn  (e  terá  um  papel  relevante  no  problema 
dos fatores internos e externos, com os quais estamos preocupados aqui). 
Outra  fonte  importante  para  a  compreensão  do  ambiente  no  qual  é  forjado  o 
discurso kuhniano sobre as ciências é a sua atividade docente no interior do programa 
de  General  Education  in  Science  da  Universidade  de  Harvard.  Foi  através  desse 
programa que Kuhn afastou­se da sua formação original (nessa época ele já finalizava o 
seu doutoramento em física), teve contato com a história das ciências e desenvolveu as 
ideias que dariam origem à Estrutura (que ele chega a descrever, defensivamente, como 
“uma  tentativa  de  explicar  a  mim  mesmo  e  a  amigos  como  me  aconteceu  de  ter  sido 
lançado  da  ciência  para  a  sua  história”  [KUHN,  2001,  p.  10]).  Esse  novo  plano  de 
ensino  de  ciências  foi  elaborado  sob  o  comando  do  químico,  historiador  da  ciência, 
administrador  e  policy  maker  James  Bryant  Conant67.  Ao  mesmo  tempo  em  que  a 
proposta de uma nova Política de Ciência e Tecnologia era elaborada, uma tentativa de 
transformação  na  educação  científica  no  ensino  superior  dos  EUA  reforçava  o 
argumento da centralidade da ciência na promoção de progresso social – a Universidade 
de  Harvard  foi  o  centro  irradiador  dessa  iniciativa  (em  grande  parte  frustrada).  Nesse 
modelo, todas as formações superiores deveriam receber cursos básicos de ciências para 
incutir  nas  novas  gerações  uma  imagem  de  respeito  e  admiração  pelas  ciências  e 
determinado conjunto de valores que se supunha ser parte da visão científica de mundo. 
Em suma: era preciso imbuir a elite intelectual americana de certo “espírito científico”. 
Conant tinha a firme convicção de que o estudo histórico das ciências deveria ser parte 
integrante  desse  esforço  de  criação  de  uma  cultura  científica.  Especialmente  após  a 
Segunda  Guerra  Mundial,  essa  seria  uma  das  formas  de  combater  o  medo  e  a 
desconfiança  contra  a  ciência,  fomentando  uma  atitude  positiva.  Sabendo  que  a  elite 
formada por Harvard seria responsável pelos grandes cargos administrativos nas esferas 
pública  e  privada,  Conant  pretendia  criar  “especialistas  em  julgar  especialistas” 

67Conant  teve  uma  carreira  múltipla  e  bem  sucedida.  Foi  presidente  da  Universidade  de  Harvard  entre 
1933  e  1953,  trabalhou  na  administração  dos  laboratórios  federais  durante  a  Segunda  Guerra  Mundial 
(estando envolvido inclusive com o Projeto Mannhatan), foi enviado para a Alemanha Ocidental nos anos 
1950, desenvolveu projetos de avaliação da educação nos EUA e propôs diversas reformas (geralmente de 
cunho  liberal)  no  sistema  educacional.  Foi  também  autor  de  diversas  obras  de  história  das  ciências  e 
editor das importantes Harvard Case Studies in the History of Science. Além disso, Conant foi o mentor 
de Thomas Kuhn na sua transição da física para a história das ciências.
87
(CONANT  apud  FULLER,  2000,  p.  23)68.  Assim,  se  tratava  de  fornecer  uma  espécie 
bastante  particular  de  alfabetização  científica,  de  um  tipo  que  mantivesse  os  futuros 
financiadores  da  pesquisa  a  uma  distância  respeitosa  da  atividade  cotidiana  dos 
cientistas69.
Segundo Steve Fuller (2000), a teoria da ciência desenvolvida por Thomas Kuhn 
relaciona­se diretamente com a sua longa prática pedagógica nesse programa. A seleção 
cuidadosa de estudos de caso retirados preferencialmente do período anterior à metade 
do século XIX revelava uma tendência a distanciar­se da ciência contemporânea e tratá­
la como mera continuidade de um padrão estabelecido em qualquer atividade digna de 
ser  adjetivada  de  científica.  As  gigantescas  diferenças  de  organização  social,  impacto 
político e mobilização de recursos materiais envolvidas na prática da ciência no século 
XVII e no século XX eram virtualmente apagadas. A ciência normal, seja ela praticada 
por Newton ou por Bohr, é sempre resolução de quebra­cabeças. Isso não significa que 
Kuhn  desconsiderasse  a  existência  da  Big  Science  (ele  mesmo  foi  recrutado  para  um 
laboratório militar durante a Segunda Guerra Mundial); ela simplesmente não era levada 
em conta como relevante para a forma de produção de conhecimento científico.
A  elaboração  do  conceito  de  ciência  normal  parece  guardar  uma  imagem  de 
ciência como portadora de um modelo de desenvolvimento bastante estável ao longo de 
vários  séculos,  mas  que,  simultaneamente,  adapta­se  perfeitamente  ao  modo  de 
produção  de  conhecimento  científico  do  pós­guerra.  Assim,  uma  ciência  industrial  e 
especializada,  firmemente  apoiada  na  divisão  do  trabalho  intelectual  entre  as  diversas 
comunidades  de  especialistas,  mantém  as  características  “essenciais”  que  fazem  com 
que ela um empreendimento tão bem sucedido. Embora a mentalidade científica esteja 
sujeita  a  mudanças  radicais  por  meio  das  mudanças  de  paradigma,  a  estrutura  da 
comunidade científica permanece. E é a comunidade e não a mentalidade que garante o 
sucesso da ciência. 
O  par  conceitual  dominante  de  Kuhn,  “comunidade”  e  “paradigma”,  oferece 
uma superação bastante limitada para a questão dos fatores internos e externos. O que se 
apresenta  como  alternativa  –  o  “sincretismo”  da  obra  de  Kuhn  –  é  uma  “sociologia 
internalista”  (ou  uma  “história  social  dos  fatores  internos”)  na  qual  noções 

68 No original: “experts in judging experts”. Tradução minha.
69Carl Sagan nos relata a sua experiência com o currículo de educação integral inserido na reforma da 
Universidade  de  Chicago  no  começo  dos  anos  1950,  na  qual  “a  ciência  era  apresentada  como  parte 
integrante da magnífica tapeçaria do conhecimento humano” (SAGAN, 2006, p. 15).
88
“irracionalistas”  –  como  fé,  compromisso,  dogma  e  conversão  –  são  utilizados  para 
compreender uma organização e uma dinâmica social que se desenvolve exclusivamente 
no interior da comunidade científica70. Politicamente, podemos extrair dessa descrição a 
implicação  da  autonomia  radical  da  comunidade  científica  (FULLER,  1992,  p.  257; 
STENGERS, 2002, pp. 13­15). As influências externas seriam acionadas nos momentos 
de  crise,  nos  quais,  juntamente  com  o  novo  paradigma,  se  configura  uma  nova 
comunidade  que  é  forjada  em  meio  a  pressões  sociais,  culturais,  políticas  e  assimila 
questões  “externas”.  Na  Estrutura,  Kuhn  apenas  tangencia  esse  tema  e,  de  forma  não 
muito  diferente  do  que  encontramos  nas  descrições  de  alguns  autores  internalistas,  e 
oferece  um  tipo  de  justificativa  que  tem  a  seguinte  estrutura:  “os  fatores  externos 
participam  de  alguma  maneira,  mas  esse  trabalho  não  é  sobre  eles”.  Em  um  trecho 
largamente  citado,  ele  aponta  alguns  “elementos  históricos  significativos”  que 
contribuíram  para  a  crise  na  astronomia  ptolomaica  e  a  ascensão  do  paradigma 
copernicano  e  afirma  que:  “numa  ciência  amadurecida  [...]  fatores  externos  [...] 
possuem importância especial na determinação do momento de fracasso do paradigma” 
(KUHN, 2001, p. 97)71. 
Apesar  do  caráter  historiograficamente  e  filosoficamente  relevante  do  papel 
desempenhado  pelas  revoluções  na  abordagem  kuhniana,  é  a  ciência  normal  que 
desempenha um papel central na produção de conhecimento científico. Nos (geralmente 
longos) períodos de ciência normal é que as banais atividades de resolução de quebra­
cabeças  permitem  um  domínio  maior  do  terreno  coberto  pelo  paradigma.  É  durante 
esses períodos que há efetivamente progresso. 
Tratando  dessa  questão  no  último  capítulo  da  Estrutura,  ao  apresentar  a  sua 
conhecida  concepção  “darwiniana”  e  anti­teleológica  de  progresso72,  Kuhn  discute 
algumas definições do progresso científico e as suas possibilidades nos regimes normais 

70  Essa  “sociologia  internalista”  influenciou  decisivamente  a  configuração  do  campo  da  sociologia  do 
conhecimento  científico,  em  especial  a  primeira  geração  dos  “laboratory  studies”,  que  estudavam 
etnograficamente o trabalho dos cientistas, focando principalmente naquilo que eles fazem quando fazem 
ciência – nas práticas que delimitam a “comunidade”.  
71  Para  Kuhn,  esse  debate  não  diz  respeito  apenas  à  escolha  entre  internalismo  ou  externalismo  como 
eixo  explicativo  das  mudanças  científicas,  mas  também  à  discussão  positivista  da  distinção  entre 
“contexto  da  descoberta”  e  “contexto  da  justificação”,  que  Kuhn  classifica  como  “extremamente 
problemática” (KUHN, 2001, p. 28). O autor retornaria a essa discussão em um artigo do início da década 
de  1970  no  qual  tenta  esclarecer  justamente  esse  ponto  da  sua  argumentação  na  Estrutura  e  coloca  no 
centro do debate a resistência dos “contextos” a um teste empírico efetivamente histórico. Nesse texto, ele 
volta  a  afirmar  que  “outros  fatores  relevantes  [para  a  escolha  entre  teorias]  se  encontram  fora  das 
ciências” (KUHN, 2011, p. 344).  
72 De uma maneira bastante similar às “conjecturas e refutações” de Sir Karl Popper.
89
e revolucionários de atividade científica. Na ciência normal “o progresso parece óbvio e 
assegurado” e, mais do que isso, “a comunidade científica está impossibilitada de ver os 
frutos do seu trabalho de outra maneira” (KUHN, 2001, p. 205). Isso deriva diretamente 
das  especificidades  da  comunidade  científica,  que  lhe  garantem  maior  competência  e 
eficácia  na  resolução  dos  problemas  legítimos  postos  pelo  paradigma  e,  portanto, 
capacidade de progredir no interior daquilo que é percebido como prioridade. 
Durante  os  períodos  de  crise  e  revolução,  a  concepção  de  progresso  é  bastante 
diferente  e  depende  de  um  recurso  à  história  do  campo  de  conhecimento  em  questão. 
Uma  revolução  só  pode  ser  percebida  como  gerando  progresso  quando,  depois  de 
resolvida, os membros do novo paradigma dominante percebem­no como a única forma 
de  solucionar  uma  série  de  problemas  que  esse  próprio  paradigma  indica  como 
relevantes  (uma  “história  reescrita  pelos  poderes  constituídos”,  nas  palavras  de  Kuhn 
[2001,  p.  209]).  Retrospectivamente,  atribuem  às  suas  realizações  a  capacidade  de 
avançar onde seus antecessores estagnaram e traçam uma linha de evolução contínua e 
inexorável  da  sua  disciplina  desde  os  precursores  (geralmente  em  algum  lugar  da 
Antiguidade)  até  os  praticantes  contemporâneos.  A  única  forma  das  revoluções  serem 
vistas como progresso é negando a existência de revoluções tais como Kuhn as concebe 
e  apelando  para  a  imagem  teleológica  tradicional  de  ciência  que  a  sua  teoria  pretende 
substituir. Conforme afirma o autor em outra passagem:
Grande  parte  da  imagem  que  cientistas  e  leigos  têm  da  atividade 
científica  criadora  provém  de  uma  fonte  autoritária  que  disfarça 
sistematicamente – em parte devido a razões funcionais importantes – 
a existência e o significado das revoluções científicas (KUHN, 2001, 
p. 174. Grifo meu). 
Desse  modo,  Kuhn  não  vê  nenhum  problema  na  manutenção  dessa  imagem 
pelos praticantes de determinada ciência e a justifica pelo seu papel na manutenção da 
coesão da comunidade e na sua “utilidade pedagógica” (KUHN, 2001, p. 10). “É pelo 
fato de o paradigma não ser objeto de um recuo crítico que os cientistas abordam com 
confiança os fenômenos mais desconcertantes”, afirma Isabelle Stengers (2002, p. 14). 
O que aparenta ser um jogo equilibrado entre “interno” e “externo” é um juízo de valor 
bastante claro: ciência se produz apenas dentro da comunidade funcionando em regime 
normal. 
É  preciso  ressaltar  também  que  a  alegada  superação  “sincrética”  operada  por 
Thomas  Kuhn  não  questiona  a  definição  dos  fatores.  Pelo  contrário,  a  metáfora  da 
comunidade  garante  uma  delimitação  rigorosa  daquilo  que  é  do  âmbito  “interno”  e 
90
daquilo que é “externo”. O paradigma impõe rígidas fronteiras, sempre patrulhadas. O 
(pretenso)  isolamento  da  comunidade  em  relação  à  sociedade  –  resultado  da  forma 
específica como ela se configura – deve ser defendido e preservado, pois é o que garante 
à ciência a sua capacidade de progresso. Mesmo nos momentos em que estamos diante 
de  uma  situação  de  acúmulo  irreversível  de  “anomalias”  capazes  de  pôr  em  xeque  a 
viabilidade  de  um  paradigma  dominante,  a  especificidade  da  comunidade  científica 
justificaria  a  sua  exclusiva  autoridade  na  escolha  entre  teorias  rivais.  Kuhn  é  taxativo 
em  relação  a  esse  ponto  e  considera  que  “a  própria  existência  da  ciência  depende  da 
delegação  do  poder  de  escolha  entre  paradigmas  a  membros  de  um  tipo  especial  de 
comunidade” (KUHN, 2001, p. 210).   
A  vitória  da  comunidade  científica73,  expressão  cuja  popularização  devemos  a 
Michael  Polanyi  (e  que  está  ausente  do  relatório  Bush,  por  exemplo),  como  conceito 
explicativo  central  é  também  a  vitória  da  corporação  dos  cientistas  em  sua  luta  por 
afirmação e conquista do poder. A escolha de Thomas Kuhn por essa solução entre as 
formas possíveis de narrar a história das ciências marca a sua relação com o seu tempo 
histórico (MAIA, 2013, pp. 50­53). Considero que essa avaliação reforça a posição da 
história  da  historiografia  em  sua  busca  pelas  condições  de  produção  do  discurso 
histórico; especificamente, serve ao argumento que sustento nesta tese e que considera a 
história das ciências uma forma de intervenção política na arena pública. Obviamente, 
isso não significa que a obra de Kuhn é mera reprodução historiográfica da acomodação 
entre  esquerda  e  direita  no  âmbito  do  Estado  de  bem­estar,  como  uma  forma  de 
“internalismo  embutido”  que  projeta  inadvertidamente  no  passado  as  questões  do 
presente.  Essas  tensões,  embora  participem  da  construção  da  escrita  da  história,  não 
estão sozinhas. É preciso considerar que há um gesto ativo de interferência, uma espécie 
de  consciência  de  que  descritivo  e  normativo  não  são  tão  facilmente  discerníveis.  E 
claro, não há razão para que se deixe de lado o esforço legítimo de escrever o passado 
das  ciências  (se  estivermos  lidando  com  um  autor  sério).  Um  esforço  que  só  pode  se 
realizar  por  meio  da  mobilização  de  recursos  teóricos,  linguísticos  e  políticos  já 
disponíveis,  que  só  pode  ser  pensado  enquanto  participante  de  um  conjunto 

73 A origem da expressão “comunidade científica” é incerta. Alguns atribuem a sua cunhagem ao próprio 
Polanyi (FULLER, 1992, p. 260). David Hollinger (1990, p. 899) data o seu surgimento um século antes, 
sendo “comunidade científica” um conceito central na filosofia da ciência de Charles Pierce desenvolvida 
nos  anos  1860  e  1870,  embora  enfatize  o  seu  desaparecimento  do  vocabulário  das  discussões  sobre 
ciência nos EUA até o seu retorno (reconfigurado), na década de 1960, quando se torna uma expressão de 
circulação corriqueira.
91
considerável  de  normas  de  conduta  (intelectual,  diga­se)  socialmente  estabelecidas 
(embora  nem  sempre  com  a  participação  ou  anuência  de  todos  os  setores  sociais)  em 
meio a amplos processos de resistências, conflitos, negociações, imposições. 
Se  a  leitura  que  apresentei  de  Thomas  Kuhn  parece  tão  desfavorável  à  efetiva 
historicização  do  conhecimento  científico,  o  que  restou  do  “papel  para  a  história”? 
Como atribuir a esse autor um papel tão significativo na guinada que marcou a análise 
das ciências no último quartel do século XX? 
Por mais que os esforços de revelar uma continuidade entre a obra de Kuhn e a 
filosofia  do  Círculo  de  Viena  tenham  chegado  a  conclusões  importantes  e  que  devem 
ser levadas em conta, é fundamental retomar uma leitura “revolucionária” da sua obra. 
A  tentativa  de  posicionar  a  virada  em  direção  às  concepções  renovadas  de  ciência  em 
algum momento dos anos 1970 (ou nos anos 1930, com Fleck e Mannheim) – longe da 
influência direta de Thomas Kuhn – era um sinal de maturidade do campo dos science 
studies,  uma  tentativa  de  ocultar  a  figura  do  “precursor”  e  “andar  com  as  próprias 
pernas”.  Uma  avaliação  que  tem  por  objeto  a  história  da  historiografia,  contudo,  não 
pode realizar tal operação sob pena de não compreender o papel que a ambiguidade de 
Kuhn desempenhou em seus “discípulos”.
Kuhn  frequentemente  referiu­se  à  ambiguidade  na  leitura  da  Estrutura  a  um 
“mal  entendido”,  que  ele  tomava  como  indício  da  “comunicação  parcial”  entre 
paradigmas  incomensuráveis.  Ele  indica  esse  tipo  de  situação  tanto  em  relação  à 
filosofia  da  ciência  que  o  precedeu,  quanto  em  relação  aos  desdobramentos  na 
sociologia, na filosofia e na história das ciências que alegavam uma herança kuhniana. 
A resposta ao primeiro grupo aparece principalmente quando Kuhn reage às críticas que 
lhe  foram  dirigidas  por  Sir  Karl  Popper,  Stephen  Toulmin,  Paul  Feyerabend  e  outros 
importantes  filósofos  da  ciência  durante  o  famoso  Quarto  Colóquio  Internacional  de 
Filosofia da Ciência, em 1965. Nessa ocasião ele chega a “postular a existência de dois 
Thomas Kuhn” (KUHN, 2006, p. 156) que teriam escrito dois livros diferentes embora 
com o mesmo nome e utilizando as mesmas palavras. Em relação aos seus “seguidores”, 
Kuhn  parece  ainda  mais  impaciente,  considerando  muitas  das  ideias  surgidas  nas 
décadas posteriores à publicação da Estrutura e por ela influenciadas (especialmente o 
“programa forte”) como “inadmissíveis”, “desvairadas” e “absurdas” (KUHN, 2006, pp. 
115­151; CONDÉ E OLIVEIRA, 2002). 

92
Não  penso  que  as  ambiguidades  de  interpretação  da  obra  de  Kuhn  sejam  um 
mero  mal  entendido.  Não  precisaríamos  ir  muito  longe  nos  estudos  linguísticos,  na 
teoria  literária  ou  nos  debates  sobre  história  do  livro  e  da  leitura  para  afirmar  a 
centralidade do leitor nas práticas de leitura. As possibilidades de leituras diferentes de 
um  mesmo  texto  dependem  diretamente  de  quando  ele  é  lido,  por  quem  e  em  que 
condições. Não há uma essência única a ser extraída do texto, uma ideia transferida da 
mente  do  autor  para  o  papel  e  que  de  lá  só  poderia  ser  retirada  pela  correta 
interpretação74.  Dessa  forma,  não  acredito  ser  possível  julgar  como  maus  leitores 
aqueles que consideram a obra de Kuhn um ponto de inflexão na sociologia (que, com a 
ascensão da comunidade científica ao papel de grande unidade criativa, teria acesso ao 
interior da produção de conhecimento científico), na história (cujos argumentos seriam 
indispensáveis  para  a  compreensão  de  uma  atividade  científica)  e  na  filosofia  das 
ciências  (ela  também  obrigada  a  realizar  uma  “virada  historicista”  caso  quisesse 
continuar a entender a ciência).
Pelo contrário, acredito ser necessário entender a leitura que a geração posterior 
à  Kuhn  realizou  da  sua  obra  e  que  permitiu  que  essa  geração  se  considerasse 
representante da “tradição kuhniana” de análise da ciência. Como lidaremos largamente 
com a historiografia que se origina dessa tradição, apontarei aqui, apenas brevemente, 
como  a  filosofia  e  a  sociologia  das  ciências  reagiram  ao  aparecimento  de  A  estrutura 
das revoluções científicas e porque esse texto foi considerado relevante nessas áreas.
É  na  corporação  dos  filósofos  da  ciência  que  a  Estrutura  causa  o  primeiro 
impacto,  ainda  nos  anos  196075,  embora  não  se  tratasse  propriamente  de  um  livro  de 
filosofia  das  ciências.  Era  um  trabalho  que  pretendia  fornecer  subsídios  para  a 
renovação da filosofia das ciências e da epistemologia a partir de implicações teóricas 
retiradas  da  historiografia  das  ciências  produzida  nas  décadas  de  1940  e  1950 
(especialmente os escritos de Alexandre Koyré), uma abordagem capaz de modificar a 
imagem de ciência corrente à época (KUHN, 2001, pp. 19­22 e 27­28; 2011, pp. 27­44). 
Segundo  Paul  Hoyningen­Huene,  um  dos  mais  importantes  intérpretes  da  obra  de 
Thomas Kuhn, a Estrutura ganhou evidência entre os filósofos justamente por desafiar 

74 Do mesmo modo, não precisamos nos alongar na discussão sobre os limites da interpretação. Limites 
que não são dados pelo próprio texto. Se há, virtualmente, infinitas possibilidades de leitura de um texto é 
porque  as  possibilidades  de  injunção  entre  o  texto,  o  leitor  e  o  contexto  são  também,  virtualmente, 
infinitas.
75 Vide o já mencionado Quarto Colóquio Internacional de Filosofia da Ciência.
93
as convicções estabelecidas pela filosofia das ciências (HOYNINGEN­HUENE, 2013, 
p.  24).  O  autor  enumera  alguns  aspectos,  como:  a  crítica  da  ideia  teleológica  e 
cumulativa  do  progresso  das  ciências;  o  abandono  do  método  científico  como  um 
conjunto  coerente  de  critérios  a  partir  dos  quais  é  possível  a  prática  da  ciência;  a 
refutação  do  racionalismo  crítico  de  Popper  pela  ênfase  no  caráter  “tradicionalista”, 
“conservador” e “dogmático” da ciência normal; o deslocamento do agente produtor de 
conhecimento científico, que passa da dimensão individual, do cientista para a dimensão 
coletiva da “comunidade científica” (HOYNINGEN­HUENE, 2013, pp. 24­25)76.
No entanto, nesse momento, as contribuições kuhnianas não foram assimiladas, 
mas  atacadas,  rotuladas  de  relativistas,  irracionalistas  e  –  o  que  para  nós  é  muito 
relevante – historicistas (LAKATOS e MUSGRAVE, 1979; STENGERS, 2002, pp. 12­
13).  Na  filosofia  das  ciências,  a  obra  de  Thomas  Kuhn  é  a  maior  expressão  de  um 
movimento que causaria, nas palavras de Ian Hacking, uma “crise de racionalidade” na 
disciplina  (HACKING,  2012,  p.  59)77.  Essa  crise  seria  derivada  da  incapacidade  dos 
filósofos  de  perceberem  a  ciência  como  fruto  de  um  processo  histórico78.  Uma 
incapacidade que é decorrente da ênfase na ciência como um conhecimento que possui 
acesso privilegiado à realidade e segue certas regras, o método científico, que garantem 
o seu isolamento da sociedade. Sem a pretensão de reduzir um conjunto filosófico que é 
extremamente sofisticado, podemos afirmar que a ciência era vista como uma entidade 
epistemologicamente  superior,  um  conjunto  de  enunciados  objetivos  fundados  na 
observação  e  pairando  sobre  a  confusão  dos  assuntos  mundanos.  Essa  imagem  era 

76  É  preciso  esclarecer  dois  pontos  em  relação  a  esse  argumento.  Em  primeiro  lugar,  já  apontei  acima 
como  vários  estudos  tem  aproximado  as  concepções  kuhnianas  daquelas  elaboradas  pelos  empiristas 
lógicos  ou  pelos  popperianos.  Em  segundo  lugar,  outros  autores  haviam  produzidos  críticas 
filosoficamente  mais  substantivas  aos  pressupostos  da  filosofia  das  ciências  e  não  tiveram  o  mesmo 
impacto que Thomas Kuhn. Dez anos antes da Estrutura, em 1951, Quine (uma das grandes influências 
filosóficas  de  Kuhn)  publicou  o  seu  brilhante  ensaio  “Dois  dogmas  do  empirismo”,  no  qual  desmonta 
pacientemente um pressuposto básico da filosofia das ciências desde pelo menos meados do século XIX 
(transformado em bandeira filosófica pelo Círculo de Viena): a radical oposição entre ciência e metafísica 
(QUINE, 2010, p. 37­71). O seu trabalho, no entanto, não circulou para além dos ambientes profissionais 
da  filosofia  das  ciências  e  áreas  correlatas  e  não  provocou  escândalo.  O  impacto  de  Kuhn  parece  estar 
mais relacionado ao que ele propõe (vagamente) do que ao que ele critica. 
77 A obra de Kuhn é fruto de um amplo processo de transformação na compreensão das ciências. Não é 
um  evento  isolado.  Entre  outros  filósofos  preocupados  com  as  implicações  filosóficas  da  história  das 
ciências  nos  anos  1960,  podemos  citar  Stephen  Toulmin,  Paul  Feyerabend  e  Imre  Lakatos  (apesar  das 
evidentes  diferenças  entre  as  teorias  da  ciência  desenvolvida  por  cada  um  e  a  relação  entre  história  e 
filosofia da ciência nas respectivas teorias).
78  Esse  argumento  refere­se  muito  mais  à  filosofia  das  ciências  de  matriz  germânica  e  anglo­saxã,  na 
tradição que remonta à lógica, ao empirismo e ao pragmatismo. O caso francês, por exemplo, é bastante 
diverso.  Ao  sul  do  Canal  da  Mancha  e  Oeste  do  Reno,  a  relação  entre  filosofia  e  história  das  ciências, 
naquilo  que  se  chamou  de  epistemologia  histórica,  é  mais  antiga  e  mais  independente  da  inflexão 
kuhniana (fazem parte dessa tradição autores como Bachelard, Koyré, Canguilhem e Duhem).
94
incompatível com a noção de historicidade, uma vez que “as filosofias tanto de Carnap 
quanto  de  Popper  não  levam  em  consideração  nem  o  tempo  nem  a  história” 
(HACKING, 2012, p. 65).
Essa certamente seria uma imagem que agradaria Thomas Kuhn, posto que sua 
obra teria atingido o principal objetivo, o de modificar a imagem dominante de ciência 
de  uma  maneira  certamente  semelhante  à  descrição  do  processo  de  transformação  dos 
paradigmas. A estrutura das revoluções científicas pode ser lida como uma coleção de 
fragmentos  históricos  que  funcionam  como  anomalias,  desvios  na  imagem  cumulativa 
do  progresso  científico,  causando  uma  crise  no  modo  normal  de  operação  da  filosofia 
das  ciências.  Desse  modo,  a  geração  precedente,  presa  ao  antigo  modelo,  não  seria 
capaz de avaliar a profundidade das mudanças que ocorriam, cabendo à nova geração de 
filósofos a construção de um novo mundo para que pudessem habitar.
Não  devemos  levar  muito  longe  a  analogia  entre  a  teoria  kuhniana  do 
desenvolvimento  científico  e  a  trajetória  da  sua  própria  contribuição  à  filosofia  das 
ciências79.  A  insistência  nesse  procedimento  levaria  à  afirmação,  certamente 
insustentável, da existência de uma filosofia das ciências funcionando no interior de um 
paradigma80.  Aqui,  lanço  mão  dessa  imagem  apenas  para  reforçar  a  inflexão  causada 
nesse campo, a transformação em grande parte das pesquisas realizadas em filosofia das 
ciências,  que  se  desviam  do  seu  “curso  normal”  e  passam  a  ser  orientadas  de  modo  a 
refutar ou confirmar as teses levantadas na Estrutura81.
É  essa  a  contribuição  “revolucionária”  de  Kuhn  (mas  não  apenas  dele)  para  a 
filosofia:  a  passagem  de  uma  concepção  normativa  e  sincrônica  para  outra 
(pretensamente)  descritiva  e  processual  (HOYNINGEN­HUENE,  1992,  p.  487).  Ian 
Hacking,  um  importante  filósofo  das  ciências  contemporâneo,  é  um  dos  autores  que 
parece  bastante  convencido  de  que  a  intervenção  de  Thomas  Kuhn  teve  um  efeito 
profundo  na  filosofia  das  ciências.  “[V]ejam  só  como  nos  tornamos  historicistas”, 
afirma ele, com alguma satisfação, e prossegue asseverando que o “discurso da filosofia 

79Outros  autores  recorreram  à  metáforas  semelhantes,  citando  a  Estrutura  como  self­exemplifying 


revolutions  (LYNCH,  2012)  ou  como  uma  performance  do  próprio  argumento  central  (JASANOFF, 
2012).
80  Curiosamente,  alguns  dos  membros  influentes  do  Círculo  de  Viena  tentaram  dar  uma  feição 
“científica” à sua filosofia.
81 Alberto Cupani refere­se à inevitabilidade da obra de Kuhn na filosofia das ciências mesmo depois de 
passados tantos anos da sua publicação (CUPANI, 2013, p. 13).
95
da  ciência  foi  transformado  desde  a  obra  de  Kuhn.  Não  mais  demonstraremos  nosso 
respeito pela ciência destoricizando­a” (HACKING, 2012, p. 77).  
A  relação  entre  a  história  e  a  filosofia  das  ciências,  no  entanto,  nunca  foi  tão 
próxima  e  tão  consensual  como  sugeria  Hacking;  apesar  da  disseminação, 
especialmente  nos  Estados  Unidos,  de  programas  de  Pós­Graduação  em  História  e 
Filosofia das Ciências a partir dos anos 1970 e de alguns esforços para que se tornassem 
uma  disciplina  unificada.  O  próprio  Thomas  Kuhn  (2011,  p.  45)  posicionava­se 
favorável à manutenção da separação entre essas disciplinas, sugerindo um aumento na 
comunicação entre elas, mas não a sua fusão.
Essa tensão causada pela obra de Thomas Kuhn na filosofia das ciências causou 
desconforto  no  autor,  que  via  nos  filósofos  interlocutores  privilegiados  e  como  o 
público  preferencial  do  seu  livro  (que,  não  obstante,  era  um  livro  de  história  das 
ciências). Em parte devido a esse desconforto, Kuhn passou grande parte da sua carreira 
discutindo o seu próprio trabalho com filósofos, refinando seus argumentos a partir de 
leituras filosóficas, justificando as suas investigações históricas à luz de uma teoria do 
conhecimento mais abrangente (Cf. KUHN, 2006).
A  relação  de  Thomas  Kuhn  com  a  sociologia  das  ciências  é  sensivelmente 
diferente  –  embora  não  menos  desconfortável  e  ambígua.  Ao  citar  Fleck,  ainda  no 
“Prefácio”  da  Estrutura,  Kuhn  se  refere  à  necessidade  de  colocar  as  suas  ideias  no 
“âmbito da Sociologia da Comunidade Científica” (KUHN, 2001, p. 11, grifo meu). Já 
no  seu  famoso  posfácio  de  1969,  ao  tentar  esclarecer  a  confusão  causada  pela 
polissemia  do  conceito  de  paradigma  e  isolar  a  sua  ocorrência  em  dois  sentidos 
principais, o autor se refere explicitamente a um sentido sociológico do termo, definido 
como “toda constelação de crenças, valores, técnicas, etc..., partilhadas pelos membros 
de uma comunidade determinada” (KUHN, 2001, p. 218)82. Ao mesmo tempo, apesar 
de  ter  sido  educado  em  Harvard  e  da  sua  relativa  familiaridade  com  a  discussão 
mertoniana  sobre  a  sociologia  das  ciências,  essa  tese  não  parece  ter  exercido  grande 
influência  sobre  a  visão  kuhniana  da  ciência83.  A  forma  como  Kuhn  possibilitou  a 

82 Podemos também argumentar que o paradigma é a contrapartida epistemológica de um conceito mais 
claramente  sociológico  como  o  de  “comunidade  científica”  (cuja  importância  para  a  obra  de  Kuhn  está 
além de qualquer suspeita). Embora seja a partir desse conceito, como argumentei acima, que Kuhn isola 
a ciência da sociedade mais ampla, garante a sua autonomia e assegura o caráter “racional” da escolha de 
teorias. A comunidade científica kuhniana é o que permite à referida “sociologia internalista”.
83 Sal Restivo e Randall Collins (1983, pp. 190­191) consideram que Kuhn herdou o funcionalismo de 
Merton.
96
abertura de um novo campo de investigações para os sociólogos – apesar das indicações 
apontadas aqui – é algo mais ou menos oblíquo na sua obra. Como sabemos, o próprio 
Thomas  Kuhn  combateu  duramente  as  consequências  da  abertura  que  lhe  atribuíam 
(KUHN, 2006, pp. 133­151; CONDÉ e OLIVEIRA, 2002; OLIVEIRA, 2004). Apesar 
de  todos  esses  sinais  contraditórios,  não  é  possível  negar  que  a  obra  de  Kuhn 
representou uma inflexão na leitura sociológica das ciências84.
Ainda  no  começo  da  década  de  1970,  o  sociólogo  português  (radicado  na 
Inglaterra) Hermínio Martins chamava a atenção para a disjunção entre a sociologia da 
ciência, cuja matriz principal deriva de Robert Merton, e a sociologia do conhecimento, 
desenvolvida por Karl Mannheim, e tentava mostrar como a obra de Kuhn – vinda de 
fora  da  sociologia  –  contribuía  para  a  superação  dessa  fissura  e  para  a  reabertura  de 
problemas  propositalmente  abandonados  pelos  sociólogos  (MARTINS,  1972,  pp.  13­
19)85.  Já  neste  século,  Terry  Shinn  e  Pascal  Ragoeut  atribuíram  à  Kuhn  o  papel  de 
“autor  de  encruzilhada”,  sendo  responsável  por  empreender  um  duplo  ataque:  de  um 
lado, contra Merton e, de outro, contra o Círculo de Viena. Com isso, Kuhn iria detonar 
os fundamentos da perspectiva sociológica “diferenciacionista” – que, como já defini no 
capítulo  anterior,  enfatiza  a  superioridade  epistêmica  da  ciência  e  procura  explicar  os 
fatores institucionais e sociais (como o ethos mertoniano) capazes de criar ou preservar 
essa  especificidade  –  e  fornecer  subsídios  para  a  fundação  da  corrente 
“antidiferenciacionista” – que, como sugere o nome, tratam a ciência com uma atividade 
humana  entre  outras,  produto  da  cultura,  socialmente  construída,  sem  superioridade 
hierárquica em relação às diversas manifestações sociais (RAGOUET e SHINN, 2008, 
pp. 47­57). 
Assim, a “nova sociologia da ciência” retém alguns pontos da teoria da ciência 
de Thomas Kuhn, a saber:
(1) Que  as  comunidades  científicas  são  complexos  inseparavelmente 
sociais e cognitivos;
(2) Que  os  cientistas  são,  tal  como  todo  ator  social,  arraigados  a 
representações preconcebidas da natureza;

84 Esse ponto foi defendido, de forma independente, por autores escrevendo em situações diferentes, a 
partir  de  referenciais  teóricos  diferentes,  com  objetivos  diferentes  e  posturas  diferentes  em  relação  ao 
valor da contribuição kuhniana.
85 Sua avaliação, no entanto, parecia mais preocupada com o estatuto epistemológico da sociologia, a sua 
cientificidade,  diante  da  teoria  kuhniana  (ecoando  a  distinção  entre  “ciências  pré­paradigmáticas”  e 
ciências  “paradigmáticas”  e  a  existência  de  um  paradigma  monopolista  e  excludente  como  sinal  de 
maturidade de um campo científico).
97
(3) Que  eles  decidem  a  propósito  de  sua  adesão  paradigmática  em 
função de razões externas à lógica e
(4) Que  o  conhecimento  científico  não  pode  escapar  das  ciências 
sociais,  como  tinham  proposto  os  sociólogos  funcionalistas 
(RAGOEUT e SHINN, 2008, p. 56­57)
O mais notório expoente dessa nova sociologia da ciência é o programa forte da 
sociologia  do  conhecimento  científico,  proposto  na  segunda  metade  dos  anos  1970  no 
âmbito do Science Studies Unit da Universidade de Edimburgo86. Os principais autores 
envolvidos nesse projeto ressaltaram o impacto da abordagem kuhniana. Recentemente, 
David Bloor reconheceu a publicação da Estrutura como um importante estímulo para a 
renovação da sociologia das ciências e afirmou que “Kuhn contou a história da ciência 
em  termos  sociológicos”  (BLOOR,  2009,  p.  433)87.  A  melhor  caracterização  da 
herança  kuhniana  na  sociologia  das  ciências  da  década  de  1970  permanece  sendo 
Thomas  S.  Kuhn  and  Social  Science.  Essa  pequena  introdução  de  Barry  Barnes  é,  ao 
mesmo  tempo,  uma  defesa  da  teoria  kuhniana  da  ciência  (especialmente  contra  as 
filosofias de Lakatos e Popper) e um convite à sua utilização na sociologia (não apenas 
no estudo das ciências, mas na investigação mais ampla da cultura, do conhecimento e 
da  cognição).  Barnes  não  parece  ter  dúvida  do  papel  profundamente  renovador 
desempenhado por essa teoria.
Muitas  teorias  do  conhecimento  são  peças  morais  situadas  em  um 
cosmos  maniqueísta.  A  fonte  da  luz  é  a  experiência;  seu  agente,  a 
“razão”. A fonte da escuridão é a cultura; seu agente, a autoridade. [...] 
Verdade,  validade,  racionalidade,  objetividade  figuram  entre  os 
muitos  filhos  da  luz  vestidos  de  branco;  erro  e  irracionalidade, 
costume, convenção, dogma e muitos outros estão vestidos de preto. O 
princípio  motor  desse  drama  é  o  conflito  incessante  entre  as  duas 
forças opostas e irreconciliáveis. [...] Kuhn, no entanto, não é nenhum 
maniqueísta. (BARNES, 1982, pp. 22­23, grifo meu)88
Não,  Kuhn  não  é  maniqueísta  e  mostra  como  autoridade,  razão,  experiência  e 
dogma são todos elementos que desempenham papéis importantes no desenvolvimento 
do  conhecimento  científico;  a  boa  ciência  não  se  produz  sem  que  se  combinem  esses 
elementos  aparentemente  irreconciliáveis.  A  teoria  kuhniana  –  da  forma  como  foi 

86 Alguns autores referem­se a esse grupo como Escola de Edimburgo (Cf. PESTRE, 1996; GOLINSKI, 
2005)
87 No original: “Kuhn told the history of science in sociological terms”. Traduçãominha.
88 No original: “Many theories of knowledge are morality plays set in a Manichean cosmos. The source 
of light is experience; its agent ‘reason’. The source of darkness is culture; its agent authority. [...] Truth, 
validity, rationality, objecivity are to be seen among the many white­apparelled children of the light; error 
and irrationality, custom, convention, dogma and many others are dressed in black. The moving principle 
of the drama is the unremitting conflict of the two opposed and irreconcilable forces. [...] Kuhn, however, 
is no Manichean”. Tradução minha 
98
interpretada  por  Barnes  –  descreve  a  ciência  como  algo  que  é  convencional  e, 
simultaneamente, é uma forma de conhecimento da natureza. Assim, por exemplo, uma 
descoberta  científica  não  é  um  evento,  a  revelação  de  algo  que  estava  invisível  ou 
escondido, pronto e à espera do cientista; a descoberta é um processo que depende tanto 
da  natureza  (a  “coisa  a  ser  descoberta”)  quanto  da  sociedade,  que  transforma  o  seu 
modo de perceber o ambiente que a cerca. A noção da descoberta como evento, embora 
desempenhe  uma  função  na  pedagogia  científica,  estabelece  uma  violação  da  história 
das ciências89. A sociologia, por meio da análise do tipo de comunidade que realiza a 
descoberta,  é  requerida  para  dar  conta  de  uma  abordagem  mais  realista  das  ciências 
(BARNES, 1982, pp. 41­45). 
Finalmente,  quero  destacar  um  ponto  que  interessa  sobremaneira  à  discussão 
encampada nesta tese: o problema das fronteiras da ciência (que nos remete à questão 
do internalismo e externalismo). Aqui, o papel da sociologia ganha enorme relevância. 
A citação é bastante esclarecedora:
A  fronteira  entre  científico  e  não  científico  deve  ela  mesma  ser  uma 
convenção, gerada por processos sociais. Consequentemente, entender 
onde  essa  fronteira  realmente  incide  requer  não  a  formulação  de 
qualquer  princípio  de  demarcação,  mas  antes  o  estudo  empírico 
daqueles processos sociais que tornam a fronteira visível e a sustentam 
(BARNES, 1982, p. 90).90
Esse ponto deixa claro o tipo de leitura da obra kuhniana que foi realizado pela 
nova  sociologia  das  ciências.  Provavelmente,  Kuhn  tenderia  a  concordar  (não  sem 
ressalvas) com a primeira afirmação; dificilmente encamparia a segunda afirmação com 
os argumentos que lhe subjazem e o projeto sociológico que ela desenha. Essa, contudo, 
é  uma  das  novidades  da  sociologia  do  conhecimento  científico  no  que  diz  respeito  ao 
debate  entre  internalismo  e  externalismo,  ela  problematiza  mais  frontalmente  e  mais 
profundamente  essa  divisão,  não  toma  como  garantida  a  separação  entre  conteúdo  e 
contexto. Antes, passa a questionar essas categorias.
Para  concluir,  é  importante  ressaltar  dois  pontos.  Em  primeiro  lugar,  como 
espero ter deixado claro nas páginas precedentes, a formulação kuhniana não apresenta 

89 Apesar de notar para a importância da posição kuhniana, Barnes a considera extremamente cautelosa e 
conservadora, sugerindo que se abandone o conceito de descoberta caso o objetivo seja estudar 
efetivamente o funcionamento das ciências (BARNES, 1982, p. 45)
90 No original: “The boundary between the scientific and the non­scientific must itself be a convention, 
generated  by  social  processes.  Hence  to  understand  where  this  boundary  actually  falls  requires,  not  the 
formulation  of  any  principle  of  demarcation,  but  rather  the  empirical  study  of  those  social  processes 
whereby the boundary is made visible and sustained”. Tradução minha. 
99
mais do que breves sugestões sobre o tratamento sociológico para as ciências. Não há o 
desenvolvimento de diretrizes a serem seguidas ou de um programa de pesquisa. O que 
Kuhn  faz  é  chamar  a  atenção  para  a  importância  de  uma  abordagem  sociológica  do 
conhecimento científico, tarefa que será levada a cabo pela geração que surge na década 
de  1970.  Consequentemente,  em  segundo  lugar,  a  abertura  proporcionada  por  essa 
leitura  não  bastou  para  essa  sociologia,  ela  se  formou  na  confluência  de  diversas 
abordagens.  A  estrutura  das  revoluções  científicas  é  um  marco,  um  catalisador  de  um 
conjunto  de  condições  intelectuais  e  históricas  disponíveis  naquele  momento  – 
obviamente,  sem  a  sua  contribuição,  o  destino  dos  estudos  sociais  das  ciências  seria 
bastante diferente.

4. O passado da tecnociência

100
Neste capítulo, passarei à análise do Leviathan and the air­pump. O objetivo é 
perceber como as estratégias narrativas dos autores se conectam a um novo momento na 
produção da ciência, como a historiografia responde às transformações que marcaram os 
anos 1970 e 1980 e o fim do pacto cristalizado na solução proposta por Thomas Kuhn. 
O  livro  em  questão  foi  forjado  nesse  ambiente  e  guarda  fortemente  as  marcas  desse 
debate.  É  a  mais  importante  obra  historiográfica  a  incorporar  o  novo  modelo 
sociológico  desenvolvido  a  partir  daquilo  que  chamei  de  “tradição  kuhniana”.  Steven 
Shapin,  um  dos  autores  desse  livro,  fez  parte  do  Science  Studies  Unit  e  esteve 
diretamente  engajado  nos  debates  sobre  a  sociologia  o  conhecimento  científico.  Por 
isso,  as  questões  teóricas  e  implicações  políticas  desse  programa  serão  analisadas  em 
mais detalhe ao longo do texto. Como argumentarei adiante, o livro não é uma aplicação 
retrospectiva  da  sociologia  do  conhecimento  científico.  Trata­se  de  uma  obra  de 
história, o que implica uma especificidade que levaremos em conta. Para chegar a essas 
questões,  começarei  por  identificar  certo  mal­estar  intelectual  em  relação  às  ciências 
que surge no final da década de 1960 e se fortalece nos anos 1970.
Uma das condições históricas que contribuíram fortemente para o surgimento de 
disciplinas (ou a reconfiguração de disciplinas mais antigas) que se organizam em torno 
de uma nova visada teórica em relação às ciências – como a sociologia do conhecimento 
científico, os science studies e certa vertente da história das ciências – foi o crescimento 
(em quantidade e em intensidade) de atitudes críticas ao modo de produção de ciência 
após  a  Segunda  Guerra  Mundial.  E  o  pior,  essas  críticas  vinham  de  grupos  sociais 
anteriormente  alinhados  ao  establishment  científico:  filósofos,  intelectuais  e  até 
cientistas naturais. Essas críticas, por sua vez, identificavam uma mudança na estrutura 
das  ciências  com  a  formação  dos  complexos  industriais­militares­científicos  que 
caracterizaram  o  surgimento  da  Big  Science  e  direcionam­se  a  essa  estrutura91.  No 
entanto,  essa  crítica  não  pretendia  defender  a  neutralidade  do  conhecimento  científico 
em face dos interesses militares, geopolíticos ou econômicos – como fizeram Vannevar 
Bush  ou  C.  P.  Snow.  Com  efeito,  seu  interesse  é  o  oposto  disso,  uma  tentativa  de 

91 Do ponto de vista do “imaginário”, há também uma frustração evidente na geração criada na cultura 
científica  do  pós­guerra.  Todas  as  imagens  promissoras  de  maravilhas  tecnológicas  incessantemente 
bombardeadas  pela  indústria  cultural  de  massa  (da  Inteligência  Artificial  ao  Teletransporte)  não  se 
cumpriram e pareciam não figurar mais no horizonte de expectativa. Obviamente, elas tiveram um efeito 
importante de manter altas as taxas de adesão ao mito do progresso crescente e indefinido da ciência, à 
dimensão prometeica, à retórica do “milagre”.
101
desmascarar  o  discurso  da  neutralidade  como  uma  estratégia  ideológica.  Herbert 
Marcuse é bastante claro nessa questão afirmando que 
não existem dois mundos: o mundo da ciência e o mundo da política 
(e sua ética), o reino da teoria pura e o reino da prática impura – existe 
apenas um mundo no qual a ciência, a política e a ética, a teoria e a 
prática estão inerentemente ligadas (MARCUSE, 2009, p. 160).
Nesse  pequeno  texto,  convenientemente  intitulado  A  responsabilidade  da 
ciência,  o  filósofo  alemão  atinge  um  ponto  que  considero  central:  a  transformação  da 
função social da autonomia da ciência. Se no surgimento da ciência moderna a retórica 
da  cisão  entre  a  ciência  e  os  valores  sociais  tinha  uma  função  progressista  e 
emancipatória, no século XX esse procedimento acarretava numa posição conservadora, 
em  favor  de  um  aparato  repressivo  e  do  potencial  aniquilamento  da  espécie  humana. 
Essa  transformação  pode  ser  encarada  como  análoga  ao  processo  de  mutação  da 
burguesia, que passa de classe revolucionária (entre os séculos XVII e XIX) para classe 
conservadora (a partir de meados do século XIX).  Publicado originalmente em 1966, o 
texto  é  marcado  pelo  temor  de  uma  catástrofe  nuclear  de  grandes  proporções  –  uma 
preocupação onipresente no período. As duras críticas de Marcuse prosseguem.
Sua própria “indiferença quanto aos valores” torna a ciência cega para 
o  que  acontece  com  a  existência  humana.  Ou,  formulando  isso  de 
modo diferente, e um pouco menos caridosamente, a ciência livre de 
valores  promove  cegamente  certos  valores  políticos  e  sociais  e,  sem 
abandonar a teoria pura, a ciência sanciona uma prática estabelecida. 
O puritanismo da ciência transforma­se em impureza. E essa dialética 
levou  à  situação  na  qual  a  ciência  (e  não  apenas  a  ciência  aplicada) 
colabora na construção da mais eficiente maquinaria de aniquilamento 
da história (MARCUSE, 2009, p. 162).
No  entanto,  ainda  sobra  espaço  no  argumento  do  autor  –  talvez  o  ponto  de 
chegada  da  sua  reflexão  –  para  uma  valorização  da  ciência.  A  oposição  entre 
cientificismo  e  irracionalismo,  ou  entre  tecnofobia  e  tecnofilia,  é  simplesmente  falsa, 
embora  ela  tenha  um  valor  estratégico  para  aqueles  preocupados  em  conservar  a  sua 
posição de poder. Não se trata de uma reedição do luddismo com verniz acadêmico, mas 
de  uma  crítica  ao  modo  específico  de  produção  do  conhecimento  científico  –  que 
obedece a uma lógica imposta externamente92. Os traços iluministas de um projeto no 

92 Embora pareça claro que a ciência traz sempre consigo o seu oposto, que “Skepticism is the skeleton 
in  the  Western  rationalism’s  closet”  (WILLIAMS,  2001,  p.  5),  e  que  essa  é  também  uma  dimensão 
constitutiva da dinâmica científica, o ponto em questão não se refere à mera oposição, desafio, ceticismo; 
mas a construção de alternativas que recuperem para a ciência determinada função social emancipatória – 
embora isso demande uma crítica profunda da estrutura da ciência que soa como ceticismo aos ouvidos 
mais sensíveis do cientificismo. 
102
qual  a  ciência,  socialmente  transformada,  desempenha  um  papel  relevante,  são 
explicitados.  A  ciência  não  deve  ser  abandonada,  ela  deve  recuperar  o  seu  telos,  sua 
força progressiva, libertadora.
A ciência está ameaçada pelos seus próprios progressos, ameaçada por 
seu avanço como instrumento de um poder livre de valores, em vez de 
um  instrumento  de  conhecimento  e  verdade.  A  ciência,  como  todo 
pensamento crítico, tem sua origem no esforço de proteger e melhorar 
a vida humana em sua luta com a natureza; o telos interno da ciência 
não  é  nada  mais  que  a  proteção  e  o  melhoramento  da  existência 
humana.  Essa  tem  sido  a  razão  de  ser  da  ciência,  e  seu  abandono  é 
equivalente à ruptura entre a ciência e a razão. A ciência pode de fato 
continuar a crescer, em um sentido limitado, como uma técnica, mas 
perderá sua própria raison d´être.
A  ciência  como  um  esforço  humano  continua  a  ser  a  mais 
poderosa arma e o instrumento mais eficaz na luta por uma existência 
livre e racional. Esse esforço estende­separa além do estudo, além do 
laboratório,  além  da  sala  de  aula,  e  visa  a  criação  de  um  ambiente, 
tanto social quanto natural, no qual a existência pode ser libertada de 
sua  união  com  a  morte  e  a  destruição.  Tal  libertação  não  será  um 
objetivo externo ou subproduto da ciência, mas antes a realização da 
própria ciência. (MARCUSE, 2009, p. 164).
A  mensagem  é  ao  mesmo  tempo  nostálgica  e  utópica,  projeta  um  futuro 
alternativo recuperando uma dimensão (certamente ilusória) do passado.
Paul  Feyerabend  endereça  uma  crítica  semelhante,  sem  a  ilusão  de  um  telos 
intrínseco ou de uma razão de ser essencialista da ciência. Não há nada que garanta à 
ciência o papel de uma força de libertação social ou mental. Para Feyerabend (2011, p. 
94):
Esse tipo de atitude fazia sentido perfeito nos séculos XVII, XVIII e 
até  XIX,  quando  a  Ciência  era  uma  das  muitas  ideologias  que 
competiam  entre  si,  quando  o  Estado  ainda  não  tinha  se  declarado  a 
seu  favor  e  quando  sua  atividade  determinada  era  mais  do  que 
contrabalançada por visões e instituições alternativas. Naqueles anos a 
ciência  era  uma  força  libertadora,  não  porque  tivesse  encontrado  a 
verdade,  ou  o  método  certo  (embora  os  defensores  da  Ciência 
presumissem que essa era a razão), mas porque limitava a influência 
de  outras  ideologias  e,  com  isso,  dava  ao  indivíduo  espaço  para 
pensar.    
Nesse  mesmo  período,  entre  o  final  dos  anos  1960  e  meados  dos  anos  1970, 
vários  grupos  de  “cientistas  radicais”  começam  a  surgir93.  Ligados  ao  marxismo  e  às 

93A existência de organizações de cientistas que direcionam seus esforços coletivos para um tema social 
ou político (à direita e, especialmente, à esquerda) não era uma novidade, sobretudo em torno do debate 
entre  “liberdade”  versus  “planejamento”  (como  comentei  em  relação  à  polêmica  entre  Polanyi  e  o 
“bernalismo” no capítulo anterior) ou em relação às questões levantadas pela utilização bélica da ciência. 
No entanto, nesse período, o número de grupos é impressionante; citarei apenas os principais. Na França, 
as revistas Impascience e Labo­Contestation, o movimento Survivre, o Syndicat National des Chercheurs 
103
dissidências  de  esquerda  do  movimento  socialista  internacional,  rebentos  da  crise  dos 
partidos  comunistas  ocidentais  após  1956  e  1968  (embora  alguns  permaneçam 
vinculados aos partidos e à URSS), refletem sobre as condições da produção de ciência 
e suas relações com a ideologia, a economia, o poder e a política, os militares e a guerra, 
o ensino, o meio ambiente, a luta de classes e o “proletariado científico”, o racismo, o 
feminismo,  etc.  A  sua  produção  teve  uma  expressão  relevante,  sendo  algumas  obras 
publicadas  por  grandes  editoras  na  França,  no  Reino  Unido  e  nos  EUA.  Mas  não  era 
através das grandes edições que esses movimentos angariavam apoio e faziam as suas 
ideias  circularem,  o  principal  foco  e  meio  de  propagação  estava  na  publicação  de 
periódicos  baratos  e  de  produção  coletiva  –  ao  modo  do  it  yourself  da  contracultura  e 
dos fanzines – e na realização de workshops, conferências e encontros entre cientistas, 
trabalhadores  (especialmente  dos  setores  industriais  de  maior  insumo  tecnológico), 
comunidades  atingidas  por  sistemas  tecnológicos  nocivos  ou  de  risco  (como  usinas 
nucleares ou indústrias químicas altamente poluentes). 
No  plano  da  elaboração  sistemática  de  uma  crítica  à  ciência,  esses  grupos 
possuíam  grande  variedade  de  perspectivas  e  de  posicionamentos.  Acontece  que  essas 
divergências só podem se manifestar porque se assentam sobre uma base mais ou menos 
sólida  sobre  certos  entendimentos  fundamentais.  Como  o  meu  objetivo  não  é  fazer  a 
história  desses  movimentos,  nem  realizar  um  escrutínio  da  sua  diversidade  –  mas 
mostrar  como  eles  contribuíram  para  a  formação  de  um  ambiente  de  contestação  e 
crítica  da  ciência  que  não  se  confunde  com  antiintelectualismo  ou  irracionalismo  – 
utilizarei  materiais  nos  quais  há  um  esforço  programático  de  sistematização,  onde  se 
destacam os pontos comuns94. 

Scientifiques  (SNCS)  e  o  Centre  National  des  Jeunes  Scientifiques  (CNJS);  no  Reino  Unido,  a  British 
Society for Social Responsability in Science (BSSRS), os periódicos Radical Science Journal e Science 
for people; nos EUA, o Scientists and Engineers for Social and Political Action (SESPA) – que editava o 
importante periódico Science for the people, publicação quase artesanal que circulou entre 1970 e 1989 – 
e  o  Science  for  Vietnam,  além  de  grupos  na  Itália,  Espanha,  México  e  a  Federação  Mundial  de 
Trabalhadores  Científicos,  com  pretensões  internacionalistas  e  supra­sindicais  (LÉVY­LEBLOND  e 
JAUBERT, 1973; ROSE e ROSE, 1976a).  
94 Destaco aqui os dois volumes organizados na Inglaterra em 1976 por Hilary Rose e Steven Rose, The 
radicalisation  of  science  e  The  political  economy  of  science,  que  compartilham  o  mesmo  subtítulo, 
Ideology  of/in  the  natural  sciences,  os  mesmos  agradecimentos,  a  mesma  introdução  e  a  mesma, 
sintomática,  dedicatória:  “To  the  heroic  peoples  of  Indochina,  who  demonstrated  to  the  world  how  to 
struggle successfully against the science and technology of profit and opression” (ROSE e ROSE, 1976a, 
p.  v).  Vali­me  também  da  coletânea  francesa  (Auto)critique  de  la  science,  editada  em  1973  por  Alain 
Jaubert e Jean­Marc Lévy­Leblond.
104
Uma das questões centrais é que o marxismo oficial, ortodoxo, não dava conta 
do  tipo  de  crítica  que  se  pretendia  realizar.  Ele  era  cientificista  na  sua  veneração  pela 
objetividade  das  ciências  naturais  (que  deveria  ser  o  modelo  para  o  “socialismo 
científico”),  no  modo  de  gestão  tecnocrática  do  Estado  soviético,  nas  repetidas 
declarações de que é o avanço da ciência e da tecnologia que trará as contradições do 
sistema  capitalista  à  termo  (e  que,  no  limite,  o  socialismo  é  apenas  o  resultado  da 
evolução  tecnológica  ou,  na  fórmula  de  Lênin,  “socialismo  é  os  sovietes  mais 
eletricidade”).  A  visão  do  conhecimento  científico  como  um  saber  supra­ideológico, 
localizado acima dos interesses de classe paralisava qualquer tentativa de “recriar uma 
crítica  revolucionária  das  funções  sociais  efetivas  da  ciência  como  elas  existem 
atualmente  nas  sociedades  capitalistas  e  no  socialismo  de  Estado”  (ROSE  e  ROSE, 
1976a, p. xvi)95. 
Isso implicava em elaborar uma versão do socialismo (e do próprio marxismo) 
que incorporasse a visão crítica sobre as ciências. O ponto principal aqui seria atacar o 
problema das ciências a partir de duas direções intimamente ligadas. Duas faces de um 
mesmo processo histórico que transformou o “problema da ciência” no principal desafio 
para  a  construção  de  uma  nova  sociedade  (que  significava,  para  a  maior  parte  dos 
grupos  envolvidos  nos  movimentos  de  radical  science,  superar  o  capitalismo  e  o 
socialismo de Estado de tipo soviético).
De  um  lado,  digamos,  ideológico,  havia  a  tarefa  de  separar  ciência  e 
cientificismo  e  combater  duramente  este  último.  O  cientificismo  foi  descrito  como  a 
nova  religião  oficial  (SURVIVRE,  1973),  a  unir  capitalistas  e  comunistas  no  mesmo 
credo comum. Os seus princípios – identidade entre verdade e ciência, realidade como 
conjunto  “formalizável”,  neutralidade  axiológica  da  ciência,  privilégio  exclusivo  da 
ciência  e  da  tecnologia  na  solução  dos  problemas  humanos  (incluindo­se  aqui  aqueles 
causados pela própria tecnologia), necessidade de credenciais científica para a tomada 
de decisões, por exemplo – foram retratados como um conjunto de mitos cujas funções 
eram  garantir  a  autoridade  inconteste  do  discurso  científico  e  monopolizar  o  poder  de 
decisão  sobre  temas  científicos  e  tecnológicos  nas  mãos  dos  experts,  uma  “casta” 
diretamente  vinculada  às  elites  políticas  e  econômicas  (LÉVY­LEBLOND,  1976; 
SURVIVRE,  1973)96.  Esse  grupo  se  esforçou  por  denunciar  como  falsa  e  perigosa  a 

95 No original: “recreate a revolutionary critique of the actual social functions of science as they exist in 
today’s capitalist and state socialist societies”. Tradução minha.
105
associação  automática  entre  ciência  e  progresso  social;  o  cientificismo  consistiria  na 
maior  ameaça  ideológica  depois  de  1945.  A  eliminação  da  dimensão  ideológica  da 
ciência seria um passo decisivo para mostrar que a sua pretensão de neutralidade é uma 
estratégia política e que ela está a serviço da dominação capitalista97.
De outro lado, o segundo problema a ser enfrentado (depois de “retirado o véu 
ideológico”)  seria  explicitar  como  a  ciência  se  liga  constitutivamente  ao  capitalismo 
como  modo  de  produção  e  como  forma  social.  A  sua  etapa  mais  evidente  é  a 
incorporação da ciência à produção capitalista servindo como força produtiva direta no 
processo de renovação contínua requerido pelo modo de produção capitalista. A divisão 
entre  “ciência  pura”  e  “ciência  aplicada”  é  meramente  um  recurso  ideológico.  Na 
prática, esses dois campos estão intimamente conectados no seu objetivo de produzirem 
inovações  –  sejam  elas  conhecimentos,  técnicas  ou  produtos  –  para  abastecer  o 
capitalismo. A unidade entre ciência e tecnologia é realizada pela sua subordinação ao 
capital (ROSE e ROSE, 1976)98. Além de participar como força produtiva, a ciência se 
transforma, sob o capitalismo, em mercadoria; informações, conhecimentos e produtos 
são  postos  à  venda  e  produzidos  de  acordo  com  a  lógica  específica  do  mercado 
(CICCOTTI, CINI e MARIA, 1976).   
A  feição  geral  que  adquire  o  posicionamento  desses  autores  envolvidos  com  a 
radical  science  aponta  para  uma  “crise  da  ciência”,  que  estaria  tão  profundamente 

96 A relação entre ciência e religião tem sido exaustivamente mencionada a partir de diversos pontos de 
vista.  Duas  visões  predominam:  a)  o  surgimento  da  ciência  moderna  em  oposição  à  religião  entre  os 
séculos  XVI  e  XVIII  –  tendo  a  ciência  uma  função  “subversiva”,  “emancipatória”,  “progressista”  e 
“contra­hegemônica”,  liberando  a  nascente  sociedade  burguesa  da  “opressão  medieval”,  do 
“obscurantismo” e do “dogmatismo” da Igreja Católica (e os casos de Giordano Bruno e Galileu marcam 
o ápice desse processo); b) a substituição da religião pela ciência como o “quadro mental dominante”, a 
“principal referência cultural”, a “ideologia oficial” das sociedades ocidentais desde o século XIX e, de 
forma  mais  intensa,  no  XX  –  nesse  contexto,  a  ciência  passaria  a  desempenhar  algumas  das  funções 
sociais  que  haviam  sido  da  Igreja  Católica  nos  séculos  precedentes,  sendo  uma  força  conservadora  e 
impondo  o  seu  próprio  dogmatismo.  Essa  leitura  se  tornou  mais  complexa  no  interior  dos  campos 
acadêmicos  dedicados  ao  estudo  da  ciência  e  –  sem  desconsiderar  os  conflitos,  tensões  e  rupturas  –  as 
continuidades e interferências foram ressaltadas e a oposição radical entre os dois campos foi relativizada 
(CAMENIETZKI,  2000;  KOYRÉ,  2006;  MARICONDA,  2001;  ROSSI,  1992).  Defendendo­se  das 
críticas  à  sua  versão  da  sociologia  do  conhecimento  científico,  David  Bloor  recorreu  à  analogia  da 
sacralidade  da  ciência  e  comparou  o  “programa  forte”  a  uma  heresia,  a  uma  interpretação  desviante  do 
Texto Sagrado (BLOOR, 2010).
97 A despeito dos muitos debates que esses autores travam a respeito do conceito de ideologia, de todas 
as restrições que impõem ao seu uso dogmático, permanece latente (e às vezes explícito) a identificação 
do termo com a “mistificação da realidade”.
98  Nesse  ponto,  os  autores  endereçam  uma  dura  crítica  ao  “internalismo  acadêmico”  de  “historiadores, 
sociólogos e filósofos burgueses” que se interessariam pela ciência como um sistema autônomo de ideias 
e que colocariam ênfase em áreas cujo interesse teórico é grande, mas a relevância social seria pequena 
(ROSE e ROSE, 1976).
106
entranhada  na  sociedade  de  mercado  que  seus  interesses  se  confundiriam  com  os  do 
capitalismo e estariam distantes dos interesses da massa da população, dos “oprimidos”. 
Para construir uma “ciência para o povo”, os próprios cientistas deveriam tomar a frente 
da  ação,  reconhecendo  que  “a  ciência  é  inevitavelmente  política  e  que  [...]  contribui 
amplamente  para  a  exploração  e  opressão  da  maioria  das  pessoas”  (MEYERS, 
RADINSKY,  ROTHENBERG  e  ZIMMERMAN,  1973,  p.  66)99.  Em  seguida, 
estabelecer  uma  agenda  de  “pesquisa  socialmente  orientada”  com  vistas  ao 
empoderamento popular e à oposição ao sistema dominante de ciências.  
Essa  crítica  chega,  no  entanto,  em  um  momento  em  que  as  contradições  desse 
modelo  atingiam  um  ponto  insustentável  e  davam  lugar  a  uma  nova  forma  de 
organização  da  ciência  (em  coordenação  com  as  transformações  da  economia  e  do 
Estado). A década de crise econômica global que tem início em 1973 será determinante 
na formação de uma nova relação entre capitalismo, ciência e tecnologia. Paralelamente 
às  críticas  endereçadas  ao  sistema  da  Big  Business  Science  começam  a  surgir  análises 
que  apontam  para  a  sua  transformação  profunda.  Começam  a  circular  as  noções  de 
tecnociência,  capitalismo  cognitivo,  trabalho  imaterial,  entre  outras  expressões  que 
apontavam  a  tendência  das  próximas  décadas.  Essa  transformação  será  retomada  mais 
detidamente  adiante,  quando  será  confrontada  com  a  historiografia  das  ciências  no 
período. 
É certamente difícil avaliar até que ponto esse clima histórico teve participação 
direta na formação das críticas “profissionais”, de sociólogos ou historiadores, uma vez 
que  a  produção  da  radical  science  não  é  alvo  de  citação  ou  comentário  por  parte 
daqueles  que  encampam  as  novas  propostas  de  análise  das  ciências  (excetuando­se 
algumas  poucas  menções  feitas  por  Barry  Barnes  [1974]  aos  trabalhos  do  historiador 
Robert  Young,  figura  importante  do  radical  science  movement  britânico)  –  e  que,  de 
qualquer  modo,  não  compartilhavam  dos  princípios  ideológicos  que  norteavam  esse 
movimento.  O  cientista  social  Brian  Martin  (1993)  relata,  a  partir  da  sua  trajetória 
pessoal,  o  processo  de  migração  de  muitos  críticos  da  ciência  dos  anos  1970  de  uma 
posição  mais  “militante”  (especialmente  durante  os  primeiros  anos  de  carreira  como 
estudante  de  alguma  disciplina  das  ciências  naturais)  para  uma  crítica  “profissional”, 

99 No original: “la science est inévitablement politique et que[...] elle contribue largement à l’exploitation 
et à l’oppression de la majorité des gens”. Tradução minha.  
107
“acadêmica”  (mais  sofisticada  e  até  radical  do  ponto  de  vista  teórico,  embora  mais 
afastada dos movimentos sociais e da intervenção pública).
O que se pretende mostrar é que havia uma insatisfação em relação ao modo de 
produção  da  ciência  sendo  vocalizado  de  forma  bastante  radical  por  grupos  de 
cientistas. Com isso, tenderíamos a diminuir o caráter subversivo das novas disciplinas 
que surgem sob a rubrica de sociologia do conhecimento científico ou science studies? 
A  pretensa  subversão  proposta  por  esses  novos  modelos  de  análise  das  ciências  seria, 
como  em  Thomas  Kuhn,  domesticação?  Seria  mera  adequação  a  um  novo  modo  de 
produção do conhecimento científico? Uma crítica nostálgica a um modelo perdido de 
cientificidade? Estou convencido que a sociologia do conhecimento científico é filha da 
“sociedade  do  conhecimento”.  Bastarda  ou  pródiga?  E,  mais  importante  para  essa 
pesquisa, como a historiografia produzida em contato direto com essas disciplinas e sob 
as contradições impostas por essa configuração histórica reagiu?
Como bem aponta Mario Biagioli (1999), o extremo sucesso da ciência é motivo 
de força e de dificuldade em definir os science studies100. Seu objeto é sólido e vasto, 
porém  seus  princípios  metodológicos  são  extremamente  variados  e  seus  praticantes 
dispersos  em  diversos  campos  disciplinares,  instituições  e  departamentos.  Esse  campo 
emerge  nos  anos  1980,  a  partir  da  união  de  uma  série  de  esforços  relativamente 
independentes  levados  à  cabo  por  jovens  sociólogos,  historiadores,  antropólogos  e 
filósofos,  além  de  representantes  de  muitas  outras  disciplinas.  Tomados  em  conjunto, 
esses  autores  fazem  parte  de  uma  bibliografia  que  começava  a  se  tornar  disponível 
desde  meados  dos  anos  1970  e  que  encontrava  no  periódico  Social  Studies  of  Science 
um local de difusão e um espaço de identidade para esse grupo (que não era isento de 
disputas  internas).  O  primeiro  texto  canônico  foi  o  livro­manifesto  de  David  Bloor, 
Conhecimento  e  imaginário  social,  que  apresenta  as  primeiras  regras  de  método  em 
torno das quais os autores que viriam a formar a primeira geração dos science studies 
desenvolveriam um signo de identidade (PESTRE, 1996).
A viga mestra da arquitetura teórica blooriana será o seu princípio de simetria. A 
distinção  entre  verdade  e  erro  é  diluída,  ao  menos  sociologicamente.  As  explicações 
correntes  à  época  afirmavam  que,  quando  um  cientista  agia  corretamente,  nada  havia 
para ser explicado. Por outro lado, um erro deveria ser explicado em termos de desvios 

100 Para uma avaliação mais detalhada do surgimento dos science studies, Cf. GOLINSKI, 2005; 
BIAGIOLI, 1999; FULLER, 2006.
108
ideológicos ou psicológicos, influências externas etc. Seguindo o princípio de simetria, 
somos  compelidos  a  explicar  sociologicamente  ambas  as  situações.  Não  há  motivos 
para crer que as implicações ideológicas acarretarão apenas em má ciência. A sociologia 
pode, e deve, se ocupar de toda a trama da ciência em suas mais sutis tecnicidades. 
As  ressonâncias  desse  princípio  de  simetria  no  corpo  teórico  do  “programa 
forte” são significativas. Desse mesmo modo, a definição naturalista de conhecimento, 
como sendo “tudo aquilo que as pessoas consideram conhecimento” (BLOOR, 2009 p. 
18) ou definição de objetividade como crença institucionalizada criam uma situação de 
inversão da polarização ontológica entre natureza e cultura, mas não fogem do seu raio 
de  ação.  Ao  passo  que  o  realismo  criou  o  cientista  como  sujeito  neutro,  transparente, 
através  do  qual  o  “fato  fala  por  si”,  o  construtivismo  blooriano  criou  uma  imagem  da 
ciência  da  qual  a  natureza  não  participa.  Tudo  é  resolvido  por  acordos  sociais, 
negociações. 
Segundo Bloor (2009, p. 117), as teorias do conhecimento não são expressões do 
mundo objetivo e da forma de alcançá­lo, mas reflexos de ideologias sociais. As teorias 
científicas  e  mesmo  a  fria  matemática  são  artefatos  sociais,  que  seguem  protocolos 
linguísticos e culturais sociologicamente localizáveis e explicáveis. Explicar a ciência é 
explicar a sociedade. São as condições sociais de existência que moldam as imagens do 
mundo exterior possíveis em determinado contexto.
Essa ênfase em um relativismo metodológico se apresenta também na teoria da 
verdade esboçada por Bloor. Segundo o sociólogo, o indicador de verdade de uma teoria 
científica é sempre interno à coerência da própria teoria. Não há um modo de fixar de 
forma precisa as relações de correspondência entre teoria e realidade. Como as teorias 
são originadas de coerções sociais, a verdade é também uma forma de convenção social. 
Não há critérios suprassociais de estabelecimento da verdade. Os testes empíricos não 
são  neutros  e  se  dão  sempre  no  interior  de  um  arcabouço  teórico  pré­determinado. 
Embora não negue a existência da realidade, Bloor indica que ela não cumpre nenhum 
papel nas formulações teóricas ou no estabelecimento da verdade. Isso, no entanto, não 
retira  o  rigor  do  critério.  As  convenções  sociais  são  exigentes  e  se  apóiam  em  uma 
disciplina  severa,  não  são  “arbitrárias”.  Assim,  uma  análise  da  verdade  de  uma  teoria 
deve  buscar  as  causas  sociais  e  os  regimes  de  adaptação  às  condições  convencionais 
(BLOOR, 2009, pp. 64­75).

109
A  crítica  às  noções  tradicionais  de  conceitos  como  verdade  e  objetividade  e  o 
deslocamento  desses  conceitos  para  o  terreno  de  atuação  da  sociologia  marcam  a 
guinada  em  direção  a  uma  compreensão  da  ciência  a  partir  da  sua  historicidade,  dos 
protocolos  linguísticos  que  constitui  e  utiliza,  dos  acordos  sociais  que  regulam  a  sua 
prática.  De  modo  crescente,  com  o  surgimento  dos  science  studies,  a  ciência  será 
interpretada  como  uma  atividade  cultural  entre  tantas  outras,  como  um  complexo 
enredado na trama social e histórica. 
No entanto, esse projeto sofrerá duras críticas. Autores de uma geração anterior 
irão considerar o “programa forte” e seus correlatos como um desvario relativista, um 
exagero sociológico que encerra todas as questões sobre o conhecimento científico nas 
negociações  sociais.  O  próprio  Thomas  Kuhn  irá  endereçar  um  duro  ataque  a  esse 
grupo. A principal crítica de Kuhn (2006, p. 139) diz respeito ao caráter totalizante das 
explicações  sociais:  “a  própria  natureza,  seja  lá  o  que  for  isso,  parece  não  ter  papel 
algum  no  desenvolvimento  das  crenças  ao  seu  respeito”.Os  science  studies  e,  mais 
frequentemente,  a  sociologia  do  conhecimento  científico  foram  também  acusados  de 
incorrer  em  uma  paradoxal  incoerência:  não  levar  a  sério  o  princípio  da  reflexividade 
(proposto  por  David  Bloor  [2009]).  Esse  argumento  utilizado  pelos  críticos,  o 
argumento  da  “retorsão”  à  que  se  refere  Isabelle  Stengers  (2002),  pode  ser  assim 
resumido: “vocês afirmam que todo conhecimento é uma construção social, a sociologia 
do conhecimento científico é conhecimento, logo...” (MENDONÇA, 2008, pp. 48­55). 
Ao afirmar, com Barry Barnes (2011), que o relativismo metodológico é a realização do 
projeto  científico  (sua  continuidade)  ou  ao  Bloor  enunciar  a  pretensão  de  que  o 
“programa  forte”  poderia  dar  um  estatuto  científico  à  sociologia  da  ciência,  esses 
autores ajudaram a alimentar os críticos. 
Bloor foi vago ao responder à acusação de inconsistência, de ter “historicizado e 
sociologizado  as  ciências  naturais,  ao  alto  preço  de  ter  naturalizado  a  sociologia” 
(MENDONÇA,  2008,  p.  54).  Refletindo  sobre  um  ponto  semelhante  –  o  suposto 
obstáculo que a sociologia do conhecimento científico poderia oferecer à cientificidade 
da  sociologia  em  geral  –,  Steven  Shapin  recorre  a  Peter  Winch  e  afirma  que  a  sua 
“crítica  aos  empreendimentos  que  tentaram  basear  o  entendimento  da  ação  social  nos 
métodos  da  ciência  natural  foi  decisiva  para  vários  praticantes  da  sociologia  do 
conhecimento  científico”  (SHAPIN,  1995,  p.  295)101.  Para  tomar  a  ciência  como  um 

110
objeto de investigação, defende Shapin, as ciências sociais devem construir um modelo 
de  cientificidade  próprio,  possuindo  objetos  e  métodos  diversos  daqueles  das  ciências 
da natureza. Da minha parte, considero essas respostas insatisfatórias. A discussão sobre 
as  diferenças  entre  ciências  sociais  e  naturais  não  faz  parte  dos  fundamentos  da 
sociologia? Porque Winch resolveria essa questão de forma mais apropriada102?
O argumento da retorsão, no entanto, só parece ganhar força quando se atribui à 
sociologia do conhecimento científico algo que ela não se propõe a fazer: denunciar a 
influência  perversa  de  “fatores  sociais”  na  ciência  (numa  tentativa  de  resgatar  a  sua 
pureza),  estudar  a  “dimensão  social  da  ciência”  como  algo  a  ser  combatido  e 
minimizado. Se a ciência é constitutivamente uma atividade social e isso não significa 
fraqueza  nem  um  juízo  de  valor  negativo,  se  afirmar  que  a  ciência  é  uma  construção 
social não é uma forma de anticientificismo, então a crítica endereçada à reflexividade 
não deveria causar incômodos.
Assim, a primeira fase dos science studies foi marcada pelo viés sociológico. O 
“programa  forte”  foi  uma  das  suas  expressões,  provavelmente  a  mais  influente;  ao 
explicitar suas principais características, tentei explicitar a atitude geral dos praticantes 
engajados  nesse  campo103.  Nesse  período,  os  science  studies  tomam  de  assalto  os 
temas  da  epistemologia  e,  ao  contrário  de  Kuhn,  que  pedia  licença  a  cada  passo  que 
parecesse  muito  heterodoxo  para  essa  disciplina,  subverte  as  suas  posições  e  a 
transforma  radicalmente  tanto  do  ponto  de  vista  teórico  quanto  nas  suas  investidas 
empíricas.  Imbuídos  do  clima  geral  de  crítica  das  grandes  narrativas  do  Ocidente 
Moderno, embora sem citar diretamente a pós­modernidade ou o giro linguístico, essa 
nova perspectiva sobre a ciência tem como um dos principais legados teóricos a ideia da 
construção social do conhecimento científico104.
Levado  ao  seu  extremo,  o  argumento  construtivista  parece  esquizofrênico.  No 
momento  em  que  estamos  completamente  imersos  em  uma  sociedade  científica  e 
tecnológica,  a  saída  crítica  é  dizer  que  a  ciência  se  resume  a  negociações  sociais? 

101  No  original:  “critique  of  enterprises  that  tried  to  base  an  understanding  of  social  action  on  the 
methods of natural science was decisive for several practitioners of SSK”. Tradução minha.
102  Em  que  pese  a  importância  de  A  ideia  de  uma  ciência  social  e  sua  relação  com  a  filosofia, 
especialmente no que tange à aproximação do Programa Forte com a filosofia de Wittgenstein.
103 Pontos de vista semelhantes em sua atitude geral em relação à ciência (apesar dos intensos debates 
que geraram no interior dos sciences studies) podem ser encontrados, entre outros lugares, em BARNES 
E EDGE, 1982; BARNES, BLOOR E HENRY, 1996; COLLINS, 1981.
104 Marx, Durkheim e Mannheim já haviam mostrado como tratar as ideias como produtos sociais. No 
entanto, como ressaltado, eles nunca expandiram essas observações à ciência. O antecedente direto dessa 
perspectiva é o livro de Berger e Luckmann, A construção social da realidade, de 1967.
111
Acredita­se  piamente  na  força  das  coerções  e  das  normas  sociais,  mas  duvida­se  da 
“realidade”  dos  fatos  científicos?  Bruno  Latour  formulou  essa  crítica  nos  próprios 
termos do grupo. Não adianta propor uma simetria entre verdade e erro e manter uma 
assimetria  entre  Natureza  e  Cultura.  É  preciso,  diz  ele,  uma  segunda  simetria,  que 
considere não apenas a ciência, mas a própria sociedade como um construto (LATOUR, 
2008).  Ao  mesmo  tempo,  a  críticas  “conservadoras”  não  consideravam  essa 
possibilidade, mas apenas o retorno a uma sociologia mertoniana, a um respeito quase 
religioso com a epistemologia.
Considerar  o  conhecimento  científico  como  um  produto  cultural  que  não  tem 
prioridade  epistemológica  sobre  nenhuma  outra  manifestação  humana  possibilitou  à 
história  utilizar  o  mesmo  princípio.  Isto  é,  os  estudos  históricos  podem  investigar 
exaustivamente os modos através dos quais, no passado, certo tipo de conhecimento se 
entrelaçou  profundamente  com  as  condições  sociais  de  sua  produção.  Além  disso,  o 
princípio  da  simetria  também  poderia  ser  aplicado  às  realizações  científicas  passadas. 
Não apenas a “má ciência” pode ser investigada como influenciada por fatores sociais, 
mas  também  (e  principalmente)  a  “boa  ciência”,  o  conhecimento  vencedor.  Perguntas 
anteriormente sem sentido para a história das ciências se tornaram pertinentes e, mais do 
que  isso,  centrais  para  as  novas  abordagens.  Shapin  e  Schaffer  (2011,  p.  3)  puderam 
centrar  seu  estudo  na  seguinte  questão:  “Por  que  alguém  realiza  experimentos  para 
chegar  à  verdade  científica?”105.  Esse  tipo  de  interrogação  só  é  possível  quando 
abandona­se a visão que se acostumou a enxergar a história das ciências como a marcha 
irreversível do progresso, a paulatina conquista da racionalidade contra a ignorância, o 
mito e a superstição em direção à verdade e à realidade. Com essa visão, abandona­se 
também o necessário anacronismo que ela implica. Os atores históricos serão analisados 
por  seus  próprios  critérios,  pelas  condições  de  possibilidade  e  escolha  que  tinham 
disponíveis  em  determinadas  circunstâncias.  Ao  transferir  a  responsabilidade  da 
construção  do  conhecimento  científico  da  natureza  para  a  sociedade,  o  construtivismo 
social  possibilitou  não  apenas  a  renovação  da  história  das  ciências,  mas  tornou­a 
efetivamente histórica106. 
Essa renovação historiográfica se beneficiou também do abandono, por parte dos 
science  studies,  da  filosofia  e  do  imperativo  da  dimensão  normativa  e  prescritiva  que 

105 No original: “Why does one do experiments in order to arrive at scientific truth?”. Tradução minha.
106  Esse  é  o  argumento  central  de  Jan  Golinski  (2005)  para  explicar  o  sucesso  do  construtivismo  na 
historiografia das ciências.
112
caracterizou  a  primeira  metade  do  século  XX.  Essa  guinada  pragmática  possibilitou 
substituir uma busca pela definição de ciência por investigações variadas das múltiplas 
formas de práticas científicas107.Não se perguntava mais o que a ciência é, mas sim o 
que  a  ciência  faz.  O  vocabulário  desse  grupo  marcou  exemplarmente  essa  mudança, 
fala­se,  cada  vez  mais,  de  práticas  científicas,  atividade  científica,  ciência  tal  qual  se 
faz  (LATOUR,  2000;  PICKERING,  1992;  PESTRE,  1996).O  pretenso  abandono  da 
normatividade por parte dos historiadores da ciência, que deixaram de apontar para um 
“ideal de boa ciência” em nome da descrição da ciência do passado sem julgamentos de 
valor – um aspecto notado tanto por críticos (que veem como um equívoco), quanto por 
promotores da nova historiografia (que veem como um avanço teórico e historiográfico) 
– não é procedente. Pelo contrário, toda descrição pressupõe uma prescrição. No entanto 
–  e  tal  vez  seja  isso  que  os  historiadores  tentaram  ocultar  e  o  que  os  críticos  não 
conseguiram perceber – essa normatividade se dá sob novas bases, em nome de regras 
diferentes  daquelas  que  instituíam  o  ideal  de  boa  ciência  sacralizado  no  século  XIX  e 
reafirmado  por  parte  das  análises  da  ciência  da  primeira  metade  do  século  XX  (cujos 
representantes maiores seriam Robert Merton e Karl Popper). A boa ciência não é mais 
aquela  que  segue  o  método  científico  e  se  organiza  de  acordo  com  um  ethos 
comunalista, universalista, desinteressado etc. Nem mesmo aquela atividade intelectual 
essencialmente  crítica  e  aberta,  onde  a  vida  dos  enunciados  dependia  apenas  da  sua 
capacidade de sobrevivência a sucessivos testes. Para a nova historiografia, esse ideal é 
uma  ficção,  um  mito  de  criação.  A  boa  ciência  é  aquela  que  negocia  com  o  poder, 
procura  aliados  fortes,  insinua­se  na  estrutura  social,  modificando­a.  Aquela  que  se 
torna  dominante  não  por  ser  verdadeira,  mas,  ao  contrário,  se  torna  verdadeira  ao  se 
tornar  dominante.  A  boa  ciência  não  deve  ser  julgada  em  termos  morais  ou  ser 
considerada o estágio mais perfeito e elevado da consciência humana, mas em termos de 
desempenho, performance e eficácia e considerada uma “máquina de criar consensos” 
extremamente eficaz.
Steve  Fuller  (2006)  argumenta  que  a  negação  da  filosofia  fazia  parte  da 
estratégia  política  do  grupo  que,  interessado  em  criar  uma  identidade  própria  e  se 
estabelecer  como  uma  disciplina  autônoma,  rejeitou  aquilo  que  via  como  provável 
inimigo  às  suas  pretensões.  Porém,  ao  mesmo  tempo,  precisaram  constituir  uma  base 

107 Curiosamente, enquanto os science studies queriam se livrar da filosofia em nome de uma recusa da 
normatividade, a própria filosofia das ciências passava, desde os anos 1950, por uma guinada pragmática 
e historicista (HACKING, 2012; QUINE, 2010; RORTY, 1994; ZAMMITO, 2004).
113
filosófica  para  a  sua  prática,  “isso  envolveu  um  desvio  do  papel  do  filósofo  de 
legislador a subordinado” (FULLER, 2006. p. 45)108. Essa transição permitiu domesticar 
a filosofia e torná­la segura para a prática dos science studies.
Por  fim,  penso  que  não  é  possível  compreender  adequadamente  esse  campo 
disciplinar sem apontar alguns traços do momento histórico no qual ele emerge – traços 
que  ajudam  a  desenhar  as  feições  que  assumem  as  interpretações  das  ciências  nesse 
período.  
A passagem da década de 1970 para a década de 1980 é marcada pela ascensão 
do  neoliberalismo  como  política  econômica  hegemônica  de  algumas  das  principais 
potências  globais.Embora  os  fundamentos  da  teoria  neoliberal  tenham  surgido  como 
resposta  ao  new  deal  no  final  dos  anos  1940  na  Mont  Pelerin  Society  –  um  grupo  de 
intelectuais  liderados  por  Friederich  von  Hayek  e  que  contou  com  a  participação 
engajada  de  Karl  Popper  –,  a  sua  transformação  em  solução  para  os  problemas 
atravessados pelo capitalismo e pelo Estado Providência só ocorreria na esteira da crise 
do petróleo, que eclode em 1973109. As novas formas de organização do Estado e da 
economia (ou do Estado em função da economia) tiveram lugar de destaque e irradiação 
global  a  partir  das  administrações  de  Margaret  Thatcher  na  Grã­Bretanha  e  Ronald 
Reagan  nos  Estados  Unidos  da  América110.  Como  sabemos,  a  agenda  neoliberal 
implica  na  redução  da  participação  estatal  nas  atividades  econômicas,  no  incentivo  ao 
livre  comércio  e  na  liberação  dos  mercados  através  de  privatizações,  diminuição  das 
regulamentações,  flexibilização  de  direitos  trabalhistas  etc.  Segundo  o  argumento 
corrente  desde  meados  da  década  de  1970,  o  Estado  estava  fadado  a  tomar  decisões 
equivocadas  no  campo  econômico  devido  a  sua  fragilidade  diante  da  influência  de 
diversos grupos de pressão política e, principalmente, pela sua incapacidade de captar e 
gerir todas as informações necessárias para a condução da economia (HARVEY, 2013, 
p. 30). Há certa “teologia” neoliberal que propaga a superioridade absoluta do mercado 
em termos de eficácia e de capacidade de cálculo (PESTRE, 2014a, p. 263). Isso é mais 
forte no momento em que essas informações se tornam mercadorias sujeitas às regras do 
mercado.  No  entanto,  o  Estado  não  pode  ser  somente  reduzido,  deve  servir  a  novos 

108 No original: “this involves a shift in the role of the philosopher from legislator to underlaborer”. 
Tradução minha.
109 O documento de fundação do grupo não traz um programa econômico específico, se fundando na 
“preservação da sociedade livre”, na defesa dos “valores da civilização” e do “homem ocidental” 
(STATEMENT OF AIMS, 1947).
110 Com a importante e irônica experiência dos Chicago Boys na ditadura chilena do general Pinochet.
114
interesses:  é  responsável  por  incentivar  a  criação  de  mercados  em  setores  econômicos 
pouco atrativos, garantir o cumprimento dos contratos, proteger o direito à propriedade 
privada  etc.  Não  se  trata  apenas  de  “menos  Estado”,  mas  de  uma  readequação  das 
funções estatais. 
A função do Estado deve ser repensada também a partir do aprofundamento de 
dois processos interligados: a “financeirização” e a globalização (ou “mundialização”), 
processos  que  dependem  intensamente  do  desenvolvimento  de  tecnologias  de 
comunicação  e  transporte,  um  ponto  que  nos  interessa  diretamente  e  ao  qual 
retornaremos.
A “financeirização” se refere ao deslocamento da principal fonte de acumulação 
de  capital,  que  passa  da  produção  e  circulação  de  mercadorias  –  a  base  produtiva  ou 
“economia real” – para o “capital portador de juros” – a “economia fictícia” ou “virtual” 
(LAPYDA, 2011, p. 49).  Essa fase de valorização do capital monetário, da centralidade 
do  dinheiro  como  mercadoria  relativamente  autônoma  em  relação  ao  campo  da 
produção,  é  acompanhada  de  um  processo  de  “desterritorialização”.  A  economia 
globalizada  não  é  apenas  a  sequência  do  processo  de  integração  mundial  que  ocorre 
desde  o  início  da  Era  Moderna.  Mais  do  que  a  integração  entre  diferentes  regiões,  a 
globalização  (econômica)  se  refere  à  transformação  da  superfície  global  em  um  plano 
equivalente  onde  as  transações,  a  transferência  de  capital  e  mesmo  as  atividades 
industriais  podem  ser  livremente  (ou  quase)  transportadas  de  um  ponto  a  outro.  A 
transformação do planeta em unidade econômica (ao menos idealmente) ocorre com o 
apoio de uma forte base institucional de órgãos transnacionais ou multilaterais, como o 
Fundo  Monetário  Internacional  (FMI)  e,  posteriormente,  a  Organização  Mundial  do 
Comércio  (OMC),  cristalizado  em  1989  no  Consenso  de  Washington  (CHESNAIS, 
2008; PESTRE, 2014b, pp. 298­303). Com isso, os Estados nacionais redirecionam suas 
forças  diante  de  uma  forma  de  organização  econômica  que  não  se  limita  mais  por 
fronteiras  territoriais.  Isso  é  tanto  mais  sentido  em  países  periféricos,  já  que  aqueles 
Estados  localizados  no  centro  do  capitalismo  global  continuam  fazendo  valer  o  seu 
poder político (e bélico, quando necessário).
O  neoliberalismo  configura  “um  ponto  de  ruptura  revolucionário  na  história 
social e econômica do mundo”, na opinião do geógrafo David Harvey (2013, p. 11)111. 

115
Importa  perceber  que  esse  fenômeno  não  é  apenas  uma  nova  ideologia  ou  uma  nova 
ordem  econômica  global,  mas  uma  nova  formação  sócio­histórica.  As  transformações 
massivas  atravessadas  pela  economia  capitalista  desde  o  final  dos  anos  1970  são 
suficientes  para  caracterizar  um  novo  momento  histórico.  Como  resume  Dominique 
Pestre (2014a, p. 270):
Um momento que se segue a uma fase diversamente qualificada como 
keynesiana,  fordista  ou  do  Estado  social  e  que  começa  entre  os  anos 
de  1970  e  1980.  O  vocábulo  é,  então,  um  marcador  cronológico, 
caracterizando um tempo que repousa sobre o conjunto já evocado por 
nós  –  sobre  a  articulação  de  uma  teologia  messiânica,  de  novas 
tecnologias de governo, de uma globalização financeira e de mercado 
[...] O termo indica a substituição de um sistema de organização social 
por outro...112
Esse  momento  neoliberal  se  constitui  em  profunda  relação  com  a  ciência  e  a 
tecnologia.  Com  efeito,  ele  se  constitui  a  partir  dessa  relação,  se  define  pelo 
reposicionamento estratégico da ciência e da tecnologia no interior dessa estrutura.
Nessa nova etapa do capitalismo, o modelo de organização de ciência proposto 
por Vannevar Bush foi sendo desmontado e reconfigurado. Esse processo, que continua 
em  operação  e  cujos  resultados  definitivos  ainda  são  difíceis  de  medir,  tem  como 
direção principal a gradativa substituição do Estado e das universidades pelo mercado e 
centros  de  pesquisa  privados  como  locais  mais  importantes  para  a  produção  de 
conhecimento científico, bem como a formação de “parcerias estratégicas” entre centros 
tradicionais de pesquisa e a indústria. “Os pesquisadores universitários [...] empenham­
se,  em  legiões  cada  vez  maiores,  em  projetos  a  prazo  maior  ou  menor  que  refletem 
objetivos industriais explícitos” (FERNÉ, 1994, p. 365). Isso não significou o abandono 
das antigas estruturas, mas o deslocamento do seu centro dinâmico. 
Inovação  é  a  palavra  de  ordem.  Não  se  pode  mais  esperar  a  pesquisa  básica  e 
desinteressada  gerar  resultados  em  sua  exploração  aleatória,  é  preciso  direcionar 
fortemente  e  cobrar  os  resultados,  medir  a  produtividade  quantitativamente.  Os 
principais índices não são novas pesquisas, mas novas patentes. Grupos com interesses 

111  Yurij  Castelfranchi  (2008,  pp.  36­41)  não  toma  como  evidente  a  caracterização  do  neoliberalismo 
como  passagem  revolucionária  e  coloca  em  discussão  diferentes  opiniões  a  respeito  da  natureza  dessa 
nova etapa do capitalismo.
112 No original: “Un moment qui fait suite à une phase diversement qualifiée de keynesienne, fordiste ou 
à  État  social,  et  qui  commence  entre  les  années  1970  et  1980.  Le  vocable  est  alors  un  marqueur 
chronologique,  caractérisant  un  temps  qui  repose  sur  l’ensemble  de  ce  que  nous  avons  évoqué  –  sur 
l’articulation  d’une  théologie  messianique,  de  nouvelles  technologie  de  gouvernement,  d’une 
globalisation financiére et marchande [...] Le vocable signale le remplacement d’un régime d’organisation 
du social par un autre...”. Tradução minha.
116
distintos – sejam policy makers engajados em políticas de “transferência tecnológica”, 
cientistas saudosos de uma ilusória “era de ouro” da pesquisa ou sociólogos contrários à 
perversa  “apropriação  privada  do  conhecimento  publicamente  produzido”  –  debatem 
apaixonadamente  as  consequências  do  novo  modo  de  produção  da  pesquisa  científica. 
Algumas  perguntas  geram  ansiedade:  Uma  ciência  impulsionada  pelos  anseios  do 
mercado continuará seguindo os mesmos valores? O ideal de objetividade, por exemplo, 
pode  estar  em  risco  quando  o  cientista  não  é  mais  um  funcionário  do  Estado  ou  da 
universidade, cuja autonomia está garantida na pesquisa básica, mas um funcionário de 
uma  empresa  cujo  principal  objetivo  é  o  lucro  através  da  inserção  acelerada  de  novos 
bens  em  um  mercado  ou  mesmo  quando  ele  é  o  dono  da  sua  própria  companhia,  um 
empresário do mercado de bens científicos (ZIMMAN, 1996)? A ciência não é apenas 
um produto cultural como outro qualquer na sociedade, é também um bem econômico 
como outro qualquer no mercado. 
Para  alguns  analistas,  a  ciência  teria  se  tornado  “pós­acadêmica”  e  o  ethos 
mertoniano  (que  havia  funcionado  como  uma  espécie  de  horizonte  de  valores 
compartilhados  pelos  cientistas)  estaria  sendo  substituído  por  um  novo  conjunto  de 
valores  mais  apropriados  à  nova  configuração  da  ciência  e  ao  novo  papel  social 
desempenhado  pelos  cientistas  (CASTELFRANCHI,  2008;  ZIMAN,  2000).  O  que  ocorre 
desde os anos 1980 é que:
Um pouco por todo o mundo acadêmico ocidental, e especialmente na 
investigação  científica,  dentro  e  fora  das  universidades,  nos  âmbitos 
da  biotecnologia  e  de  outras  ciências  e  tecnociências  da  vida,  estão 
sendo  disseminados  os  traços  tipicamente  característicos  dos  campos 
comercial e empresarial (GARCIA e MARTINS, 2009, p. 83).
Isso tem implicações óbvias na sociologia e na filosofia das ciências: a própria 
forma  de  caracterizar  essas  mudanças  já  é  mediada  por  essas  abordagens 
(CASTELFRANCHI, 2008, p. 41).
A resposta veio através do conceito de tecnociência. Com essa expressão indica­
se não apenas a fusão e a diluição de fronteiras (tema que interessa especialmente a este 
trabalho) entre os campos da ciência e da tecnologia113, mas um emaranhamento, uma 
indistinção  entre  ciência,  tecnologia  e  capitalismo  neoliberal  (CASTELFRANCHI, 
2008,  p.  9).  Não  existe  mais  uma  grande  ruptura  entre  ciência  e  não­ciência,  mas  a 

113 Para alguns autores, a tecnociência se refere à “conexão fundamental entre a ciência e a tecnologia, 
que leva a que ambos os domínios possam ser pensados conjuntamente” (DAGNINO, 2008, p. 28). Como 
tento mostrar aqui, essa conexão – apesar de fundamental e necessária – não é suficiente para definir o 
fenômeno.
117
identidade radical entre esses três domínios anteriormente tratados como autônomos. O 
conceito  de  tecnociência  “sugere  que  não  há  barreiras  pré­determinadas  para  o  que 
constitui  tecnologia  ou  ciência,  o  social  ou  o  técnico,  ciência  ou  política”  (ASDAL, 
BRENNA  e  MOSER,  2007,  p.  8)114.  Essa  nova  configuração  sócio­histórica  (ou 
sociotécnica)  foi  apontada  como  uma  das  grandes  transformações  do  final  do  século 
XX.  Esse  fenômeno  impõe  novos  olhares,  dentre  os  quais  os  science  studies.  Não  é 
fortuita a associação que Paul Forman (2007) propõe entre a passagem da Modernidade 
à  pós­modernidade  e  a  proeminência  da  tecnologia  sob  a  ciência.  O  autor  é  incisivo 
quanto a este ponto: “a tese deste artigo é que modernidade é quando ‘ciência’ denota 
também  tecnologia;  pós­modernidade,  quando  tecnologia  denota  também  ciência” 
(FORMAN, 2007, p. 4)115.
Não  pretendo  subestimar  a  função  da  cultura  intelectual  pós­moderna  na 
conformação  de  uma  aventura  teórica  ousada  como  o  programa  forte  e  os  science 
studies. No entanto, não pretendo seguir de perto os padrões narrativos pós­modernos, a 
sua cronologia. Através do conceito de tecnociência, tentarei identificar certo ambiente 
simbólico­material  comum  à  emergência  do  neoliberalismo  e  dos  science  studies. 
Talvez  a  leitura  da  pós­modernidade  como  a  “lógica  cultural  do  capitalismo  tardio”, 
com todas as suas contradições e conflitos, poderia desenhar outra genealogia para esse 
campo interdisciplinar, alinhá­lo a determinada filiação epistemológica. 
A pós­modernidade é um fenômeno muitíssimo amplo, pulverizado e de difícil 
definição116.  Para  o  que  aqui  nos  interessa,  podemos  caracterizá­la  como  um 
movimento de recusa das categorias fundantes da Modernidade, especialmente aquelas 
tributárias  da  Ilustração  (LYOTARD,  2004).  As  grandes  narrativas  universalistas  do 
progresso, da verdade, da razão, da justiça, da liberdade, da história e da ciência (que se 
galvanizam  na  filosofia  hegeliana)  são  denunciadas  como  sendo  incapazes  de  cumprir 
as  suas  promessas  de  emancipação  da  humanidade,  meras  fachadas  retóricas  para  o 
exercício  de  um  eurocentrismo  tacanho  que,  em  nome  dos  universais,  subjugou 
violentamente grande parte do território global117. Alguns autores recuam até o final do 

114 No original: “suggests that there are no pre­determined boundaries for what constitutes technology or 
science, the social or the technical, science or politics”. Tradução minha.
115  No  original:  the  thesis  of  this  paper  is  that  modernity  is  when  ‘science’  denotes  technology  too; 
postmodernity, when ‘technology’ denotes science too”. Tradução minha.
116  Na  maior  parte  das  suas  apreciações,  ela  engloba  o  giro  linguístico,  o  relativismo,  a  política  das 
identidades etc.
118
século  XIX  para  marcar  a  primeira  inflexão  em  direção  à  pós­modernidade.  Segundo 
Jürgen  Habermas,  é  a  crítica  radical  à  razão  moderna  (e  seu  subsequente  abandono), 
levada  à  cabo  por  Nietzsche,  que  abre  a  trilha  pela  qual  caminhará  o  discurso  pós­
moderno (HABERMAS, 2007). Embora menos ressentido em relação ao abandono da 
razão  por  Nietzsche,  José  Carlos  Reis  faz  um  diagnóstico  semelhante  da  pós­
modernidade. Para o historiador, “Nietzsche foi um dos primeiros a recusar uma tirania 
da  Razão  sobre  o  sentido  histórico,  abrindo  outra  profunda  fissura  na  identidade 
ocidental” (REIS, 2006, p. 42). 
No entanto, a pós­modernidade não depende apenas de uma crítica filosófica do 
conceito de Modernidade ou das suas características centrais118. Foi com a ocorrência 
de uma série de mudanças profundas nas sociedades ocidentais após a Segunda Guerra 
Mundial que a percepção de falência do projeto Moderno tomou contornos firmes e foi 
possível pensar em uma etapa posterior à Modernidade. Passamos a viver em uma nova 
fase  do  capitalismo.  Nos  países  ricos,  esse  novo  capitalismo  foi  definido  como  “pós­
industrial”. Assim, a antiga produção baseada em fábricas que contavam com exércitos 
de operários foi substituída por processos cada vez mais automatizados e a mão­de­obra 
transferida  para  o  setor  de  “serviços”.  Isso  criou  também  uma  massa  de  profissionais 
com  alto  grau  de  treinamento,  preparados  para  lidar  com  máquinas  cada  vez  mais 
específicas  e  sofisticadas  em  uma  escalada  da  demanda  pela  “expertise”.  À  época, 
algumas avaliações otimistas viam essa transição como acarretando na redução drástica 
das jornadas e na possibilidade de exercício criativo e tempo ocioso. A capacidade de 
“pleno emprego”, utopia do início do século XX, foi substituída pela utopia do “fim do 
trabalho”. Na prática, o que ocorreu e ainda ocorre é um processo de “proletarização” de 
todas  as  esferas  produtivas  (inclusive  a  intelectual)  e,  mais  recentemente,  a  nefasta 
distopia do desemprego em massa119.
A tecnociência é uma entidade muitas vezes descrita como resultado da captura 
da  tecnologia  e  da  ciência  pelo  mercado  –  o  que  acarreta  mudanças  nos  próprios 
mecanismos  do  mercado.  Yurij  Castelfranchi  (2008)  utiliza  a  metáfora  do  líquen,  que 
remete  a  uma  relação  de  co­dependência  e  co­produdução,  não  a  simples  dominação 

117 Para uma perspectiva um pouco distinta da trajetória da “retórica do universalismo” ver, 
WALLERSTEIN, 2006.
118 Rousseau, por exemplo, fez duras críticas à associação automática entre Progresso e Ciência; Marx 
dirigiu seus esforços para uma reavaliação das categorias modernas. Isso não os fez abandonar o projeto 
Moderno.
119 Para uma visão bastante ácida dessa economia, ver GRUPO KRISIS, 2003.
119
exercida  pelo  mercado  impuro  contra  uma  ciência  pura.  Para  Michel  Callon  (1994,  p. 
78),  “a  técnica  constitui  um  dos  principais  recursos  na  guerra  a  que  se  entregam  os 
grupos industriais. [...] A inovação tecnológica é, hoje em dia, uma arma decisiva”. Para 
Laymert Garcia dos Santos (2003, p. 232, grifo meu), “o princípio da competitividade 
obriga a racionalidade econômica a atrelar­se à racionalidade científica, ao subordinar 
as decisões de investimento não às taxas de retorno, mas à dinâmica da inovação”. O rol 
de  citações  que  apontam  nesse  sentido  poderia  ser  ampliado.  Não  será  o  caso.  Mais 
importante  aqui  é  perceber  que,  ao  se  dotar  de  uma  identidade  tecnocientífica  e, 
simultaneamente,  do  controle  sobre  o  modo  de  produção  de  ciência  e  tecnologia,  o 
mercado (apesar das tensões internas) potencializa a sua inexorabilidade. Ao se colocar 
como  o  local  privilegiado  da  racionalidade,  ao  pautar  as  suas  ações  sob  a  égide  de 
técnica,  a  governamentabilidade  neoliberal  exclui  a  política  em  nome  de  decisões 
“neutras” e “objetivas”. Grande parte da produção crítica sobre esse fenômeno utilizou 
o conceito de tecnociência precisamente como uma ferramenta de combate, de oposição 
ao processo de gestão tecnocrática. Um dos objetivos explícitos é demonstrar que toda 
opção técnica é também opção política: carregada de interesses, negociações, jogos de 
poder. Despolitizadas, ciência e tecnologia estão à mercê dos grupos hegemônicos. Uma 
vez politizadas, é possível pôr em disputa o controle sobre elas.
É  preciso  perceber,  no  entanto,  que  a  tecnociência  não  se  restringe  a  um 
conjunto  de  mecanismos  de  exclusão  e  dinâmicas  de  controle.  Não  se  resume  à 
tecnocracia.  Não  devemos  ignorar  a  sua  dimensão  “interativa”  e  participativa,  a 
contrapartida de um mercado que não é apenas oferta, mas também é demanda120. Em 
função  disso,  a  pressão  por  inovação  e  por  resultados  práticos  para  as  pesquisas  é 
apresentada como “responsabilidade social dos cientistas” que devem prestar contas aos 
contribuintes  ou  aos  consumidores.  Essa  dimensão  não  é  apenas  um  disfarce  que 
garante o respaldo e a legitimidade da tecnociência, ela é constitutiva desse novo modo 
de produção do conhecimento. Segundo Yurij Castelfranchi (2008, p. 225):
No  discurso  da  tecnociência  atual  tecnocracia  e  retórica  da 
participação, delegação aos especialistas e slogans de uma democracia 
“de baixo para cima”, jargão e sensacionalismo convivem numa trama 
discursiva  e  numa  rede  de  práticas  em  que,  ao  lado  do  discurso  da 
necessidade, há uma necessidade do discurso. Junto com um discurso 
de inexorabilidade, há uma incessante produção de diálogos, em cada 
molécula do dispositivo.

120 Assim como o discurso da ciência entre meados do século XIX e meados do XX se constituiu de uma 
face baconiana, operativa e uma contemplativa, do arrebatamento diante das maravilhas da natureza.
120
Esse  novo  cenário  dominado  pela  tecnociência  engendra  uma  nova  Política  de 
Ciência  e  Tecnologia.  Donald  Stokes  (2005)  narra  com  certa  angústia  o  esgotamento 
das políticas públicas inspiradas no modelo delineado no Relatório Bush, caracterizando 
a década de 1980 como um período de “desordem”. Certamente, isso se deve ao forte 
compromisso  desse  autor  com  o  papel  do  Estado  na  promoção  e  no  financiamento  da 
ciência  e  da  tecnologia,  que  deveria  “manter  sob  controle”  os  “motores  da 
modernização” (STOKES, 2005, p. 15). Diante de tal objetivo; diante da visão do pacto 
entre ciência e Estado no qual cabia a este último, se não guiar o desenvolvimento da 
pesquisa,  fornecer  as  condições  materiais  e  os  enquadramentos  institucionais  para  o 
desenvolvimento da ciência, a situação desde final dos anos 1970 parecia. A Política de 
Ciência  e  Tecnologia  assume  características  bastante  peculiares  à  medida  que  se 
converte em Política de Tecnociência. O Estado se torna mais um agente em uma arena 
de  múltiplos  interesses.  A  ligação  orgânica  que  forma  a  tecnociência  retira  do  poder 
público  qualquer  centralidade  que  ele  porventura  possuíra  em  décadas  anteriores.  Ao 
identificar como seus os interesses do mercado, a ciência e a tecnologia fazem também 
deslizar a função do Estado, remodelando­a. 
Esse novo ambiente, esse novo arranjo societário que possibilita a emergência da 
tecnociência, essa trama complexa de ciência, tecnologia e capitalismo, faz implodir o 
modo  “tradicional”  de  contar  a  história  das  ciências,  coloca  novos  desafios  ao 
pensamento histórico, exige dele um novo esforço. A história se (re)escreve em função 
do presente, para dar sentido, profundidade e perspectiva a novos fenômenos. Diante de 
novos  problemas,  os  historiadores  imaginam,  fabricam,  reelaboram  um  novo 
passado.Como  o  passado  das  ciências  será  questionado  vis­à­vis  as  questões  que,  no 
presente,  motivam  essas  investigações?  Conhecemos,  por  exemplo,  as  mudanças  na 
história da escravidão e as transformações do escravo em um agente, sujeito econômico 
racional, quase à imagem do self­made man neoliberal (CHALHOUB E TEIXEIRA, 2009; 
REIS, 2012, pp. 124­138).
Para  enfrentar  essas  questões  –  não  para  resolvê­las  definitivamente,  mas  para 
sugerir  hipóteses,  ampliar  o  limite  das  explicações,  fazer  repensar  criticamente  esses 
temas  inquietantes  –  a  parte  final  desse  capítulo  será  dedicada  à  análise  do  Leviathan 
and  the  air­pump,  uma  das  mais  importantes  obras  de  história  das  ciências  do  último 
quartel do século XX. 

121
O  Leviathan  não  será  abordado  aqui  como  representando  apenas  uma  versão 
histórica  da  sociologia  do  conhecimento  científico.  É  evidente  que  essa  era  uma  das 
ambições  explícitas  dos  autores,  que  pretendiam  que  o  livro  fosse  “um  exercício  na 
sociologia do conhecimento científico” (SCHAFFER e SHAPIN, 2011, p. 15)121. Para 
isso, se valiam de princípios metodológicos desenvolvidos por Bloor e Barnes (e pelo 
próprio  Steven  Shapin),  do  estudo  das  controvérsias  científicas  da  forma  como  foi 
proposto  por  Harry  Collins,  da  etnometodologia  de  Harold  Garfinkel,  dos  estudos  de 
laboratório de Bruno Latour, do vocabulário do “segundo” Wittgenstein etc. Para John 
Zammito,  o  Leviathan  é  o  “grande  exemplar  do  Programa  Forte  [...].  Nenhum  outro 
texto no campo possui o status canônico – igualmente para amigos ou inimigos – que 
esse estudo assumiu” (ZAMMITO, 2004, p. 169, grifo no original)122. Como já afirmei 
acima, os autores não estavam apenas imersos nesse ambiente intelectual e institucional, 
eles possuíam um papel ativo na construção de uma nova visão sobre as ciências.
No entanto, a consecução plena do projeto de utilizar a história como campo de 
teste  empírico  para  teorias  sociológicas  é  inexequível123.  Não  estou  negando  que  os 
autores  utilizam  uma  rede  conceitual,  procedimentos  metodológicos  e  mesmo  um 
conjunto de questões provenientes da sociologia e dos science studies. Essa tese não se 
propõe  a  patrulhar  as  fronteiras  da  história  das  ciências,  mantê­las  sob  vigilância  e 
recriminar  os  membros  que  escapam  aos  seus  protocolos.  Pelo  contrário,  tenho 

121 No original: “an exercise in the sociology of scientific knowledge”. Tradução minha. Esse argumento 
é desenvolvido de forma mais alentada na longa introdução preparada pelos autores para a edição de 2011 
do Leviathan and the air­pump (SCHAFFER e SHAPIN, 2011, pp. xl­xliv).
122 No original: “the grand exemplar of the Strong Program […] No other text in the field has had the 
canonical status – for friends and foes alike – that this one study has assumed”. Tradução minha.
123  Para  Lakatos  (1998),  sob  o  imperativo  da  “reconstrução  racional”  a  história  das  ciências  seria  o 
“laboratório  da  epistemologia”.  Steven  Shapin  parafraseia  ironicamente  o  título  do  famoso  artigo  de 
Lakatos  (History  of  science  and  its  racional  reconstructions)  no  título  do  texto  no  qual  aborda  as 
possibilidades de tratamento empírico da sociologia do conhecimento científico (History of science and 
its sociological reconstructions). Embora Shapin (1982, p. 158) reconheça que tratar a literatura empírica 
como  mero  teste  de  algum  programa  teórico  seria  “quite  incorrect”  e  que  ela  deve  ser  avaliada  “on  its 
own terms”, ele não fornece nenhuma indicação de qual seriam os termos adequados para essa avaliação e 
insiste  na  sua  empreitada  de  avaliar  a  sociologia  do  conhecimento  através  de  trabalhos  históricos;  a 
dúvida  que  permanece  é  se  a  referência  ostensiva  a  Lakatos  por  meio  da  ironia  não  esconde,  mutatis 
mutandis,  certa  semelhança  de  programa  para  a  história  das  ciências  (isto  é,  ser  um  laboratório,  um 
exercício de modelos, conceitos e teorias elaborados em outros campos epistemológicos). Diversamente, 
Michel  de  Certeau  nos  fala,  em  relação  à  história  serial  dos  anos  1950  e  1960,  de  uma  intervenção  da 
história nos “modelos”, de uma experimentação crítica, da história como local de controle que coloca em 
evidência os limites do modelo. Restaria à história que perdeu a função que possuía até o século XIX, de 
“prover  a  sociedade  de  representações  globais  da  sua  gênese”  ou  “expressar  o  sentido”,  a  tarefa  de 
encontrar o seu lugar em meio às ciências sociais (CERTEAU, 2006, p. 80). Essas perspectivas parecem 
perder força à medida que a história cultural, o “retorno da narrativa” e, especialmente, as obras de Paul 
Ricoeur exploram a relação constitutiva entre história e narrativa.    
122
mostrado  como  o  estabelecimento  de  zonas  de  troca  é  constitutivo  da  história  das 
ciências.  A  relutância  da  corporação  dos  historiadores  em  assumir  as  ciências  como 
objeto  legítimo  fez  com  que  a  história  das  ciências  fosse  desenvolvida  à  margem  dos 
espaços  institucionais  da  história.  Assim,  a  história  das  ciências  foi  praticada  por 
cientistas  (como  Thomas  Kuhn),  filósofos  (como  Koyré)  e  constituiu  sua  tradição 
disciplinar,  seus  espaços  de  sociabilidade  institucional  e  mesmo  seus  critérios 
epistemológicos  alheios  à  historiografia  strictu  sensu  (MAIA,  2013).  Esta  situação 
forçou  a  história  das  ciências  a  criar  laços  institucionais  e  teóricos  com  outras 
disciplinas que estavam em torno do mesmo objeto, as ciências. Nessas zonas de troca, 
onde  as  barreiras  que  delimitam  as  disciplinas  estariam  abertas,  seria  possível  um 
intercâmbio de técnicas, conceitos, formas de abordagem e até de questões, que podem 
ser depois levadas para o interior dos domínios disciplinares. O fluxo entre os territórios 
é frequente, embora não de forma constante ou homogênea.
Os  science  studies  desempenharam,  nos  anos  1980,  um  papel  fundamental  no 
estabelecimento  de  uma  agenda  de  pesquisa,  na  forma  de  colocar  os  problemas,  nas 
ferramentas  conceituais  e  na  própria  concepção  de  ciência.  Grande  parte  da 
historiografia  do  período  não  pode  esconder  o  débito  que  contraiu  com  essa  empresa 
interdisciplinar124.  A  prática  da  história  social  (e  sociológica)  das  ciências  é 
plenamente  possível  e  desejável  –  revigora  o  conhecimento  histórico,  amplia  o  seu 
alcance. Negar as transformações sofridas pela história em contato com outras ordens de 
saber e, em especial, com as ciências sociais e o ideal de cientificidade que as informou 
desde  o  século  XIX,  seria  ignorar  a  história  da  historiografia125.  Contudo,  deslocar 
esses  elementos  em  direção  à  história  e  situá­los  nesse  campo  disciplinar  já  significa 
reconfigurá­los em função da especificidade dessa disciplina126. Contentemo­nos, por 
enquanto,  em  situar  essa  especificidade  no  papel  exercido  pela  narratividade  na 
“arquitetura  do  saber  histórico”  (RICOEUR,  2007,  p.  250)  e  especialmente  na  função 
que esse saber produzido sob o signo da narrativa desempenha na sociedade na qual se 
inscreve (e na qual escreve). Dito isto, avaliarei o Leviathan como uma obra de história 

124 Embora uma parte também significativa dos historiadores tenha mantido uma atitude de repúdio ou 
indiferença aos science studies.
125  Convém  evocar  novamente  aqui  Michel  de  Certeau  (2006,  p.  65),  para  quem  “cada  sociedade  se 
pensa ‘historicamente’ com os instrumentos que lhe são prórios”.
126 Não pretendo recolocar a eterna e provavelmente insolúvel questão “que é a história?”, nem refazer 
todo o percurso da filosofia crítica da história do século XX em busca da afirmação (e problematização) 
de uma identidade ou de uma essência da história. Interessa­me (evitando o essencialismo ontológico por 
vezes implicado no verbo “ser”) a sua correlata: “que é a história das ciências?”.
123
social  das  ciências  profundamente  marcada  pelo  convívio  com  a  sociologia  do 
conhecimento científico e com os science studies.
A  análise  que  empreenderei  tem,  acima  de  tudo,  um  objetivo  historiográfico: 
inscrever  essa  obra  (e  a  produção  histórica  mais  ampla  à  qual  ela  pertence)  na 
problemática  dos  fatores  internos  e  externos.  Ao  lado  dessa  leitura  que  incorpora  a 
historiografia dos anos 1980 na “tradição”, a pesquisa aponta também para aquilo que 
ela  tem  de  peculiar.  Joga  assim  com  as  continuidades  e  rupturas  na  historiografia  das 
ciências  e  se  interroga  reflexivamente  sobre  a  relação  entre  essa  historiografia  e  a 
configuração  sócio­histórica  na  qual  emerge.  Para  isso,  acompanharei  mais  de  perto  a 
urdidura do enredo, as estratégias narrativas e os argumentos mobilizados pelos autores 
para  reconstruir  a  polêmica  na  qual  emerge  a  “forma  de  vida  experimental”  como 
dimensão constitutiva da ciência moderna. 
A  trama  do  Leviathan  and  the  air­pump  é  bem  conhecida:  o  livro  se  debruça 
sobre  a  controvérsia  travada  na  Inglaterra  da  década  de  1660  entre  Robert  Boyle  e 
Thomas  Hobbes.  A  disputa  entre  essas  eminentes  figuras  dizia  respeito  ao  estatuto  do 
experimento  no  conhecimento  científico  e  à  capacidade  do  experimento  de  produzir 
fatos científicos127 seguros e confiáveis. Como resumem os autores, o estudo trata de 
“estratégias  conflitantes  para  a  geração  de  conhecimento  natural  na  Inglaterra  de 
meados  do  século  dezessete”  (SCHAFFER  e  SHAPIN,  2011,  p.  131)128.  Sobretudo, 
estavam em questão os experimentos pneumáticos realizados na bomba de ar construída 
por  Boyle  (também  chamada  de  bomba  de  vácuo  ou  máquina  boyleana  [machina 
Boyleana]). A centralidade da bomba de ar na narrativa é evidente. No título da obra, 
nas  detalhadas  descrições  presentes  ao  longo  do  livro,  no  interesse  em  cada 
componente,  nos  limites  do  seu  funcionamento,  na  circulação  desse  artefato 

127A expressão original utilizada pelos autores, matters of fact, é de difícil tradução. Na única tradução 
brasileira de textos de Steven Shapin preferiu­se manter maior literalidade, traduzindo­se a expressão por 
“matéria  de  fato”  (SHAPIN,  2013c,  p.  91);  uma  tradução  portuguesa  de  uma  conferência  de  Simon 
Schaffer  traduz  mais  simplesmente  como  “facto  científico”  (SCHAFFER,  1999,  p.  415);  a  edição 
argentina  do  Leviathan  escolheu  uma  via  econômica  e  traduz  por  “hecho”  (SCHAFFER  e  SHAPIN, 
1998).  No  trecho  em  que  Bruno  Latour  discute  o  Leviathan,  a  tradução  brasileira  de  Jamais  fomos 
modernos  manteve  –  provavelmente  seguindo  o  original  francês  –  a  forma  matters  of  fact  (LATOUR, 
1994, p. 23­27). Na primeira ocorrência, no entanto, Latour (1994, p. 23) explica a sua origem em uma 
“metáfora parajurídica” e traduz a expressão por “fato”, embora permaneça utilizando a forma em inglês. 
Edagr  Silsel  (1942)  também  utiliza  esse  conceito.  Optei,  quando  necessário,  por  traduzir  a  expressão 
como “fato científico” devido a sua maior recorrência tanto no vocabulário comum quanto na literatura 
especializada, eventualmente será mantida a forma original em inglês.  
128  No  original:  “conflicting  strategies  for  generating  natural  knowledge  in  mid­seventeenth­century 
England”. Tradução minha.
124
(SCHAFFER e SHAPIN, 2011, pp. 26­40, 225­282). “A bomba de ar é a ‘Big Science’ 
do século dezessete” (SCHAFFER e SHAPIN, 2011, p. 38)129. Em uma longa resenha 
da  segunda  edição  do  Leviathan,  Ian  Hacking  (1991,  pp.  235­241)  considera  esse 
instrumento  científico  o  protagonista  do  livro,  que  é  descrito  como  uma  biografia  da 
bomba de ar. De modo semelhante, Bruno Latour (1994, p. 22) considera a bomba de ar 
o “verdadeiro herói dessa história”130.
Grande  parte  das  análises  desse  livro  deu  ênfase  ao  argumento  que  conecta 
epistemologia e política (GOLINSI, 2005, pp. 21­27, 190­193; LATOUR, 1994, pp. 21­
35; SPRINGER DE FREITAS, 2003; ZAMMITO, 2004, pp. 171­181). Esse argumento, 
afirmado diversas vezes ao longo do livro, foi resumido na frase que abre a conclusão e 
que se tornou uma das passagens mais conhecidas e citadas da obra: “soluções para o 
problema  do  conhecimento  são  soluções  para  o  problema  da  ordem  social” 
(SCHAFFER  e  SHAPIN,  2011,  p.  332)131.  Assim,  as  propostas  rivais  de  Hobbes  e 
Boyle  eram  tanto  tentativas  de  fundamentar  a  filosofia  natural  (ou  filosofia 
experimental, como queriam os membros da Royal Society) quanto formas de organizar 
a  vida  social  na  Inglaterra  da  Restauração.  “Para  Boyle  e  seus  colegas  [na  Royal 
Society]  a  solução  experimental  para  o  problema  da  ordem  era  possível,  efetiva  e 
segura.  Sua  praticidade,  potência  e  inocuidade  dependiam  da  ereção  de  uma  barreira 
crucial ao redor das práticas da forma de vida experimental” (SCHAFFER e SHAPIN, 
2011, p. 80, grifo meu)132. Dessa maneira, “o matter of fact deve ser visto como uma 
categoria  tanto  epistemológica  quanto  social”  (SCHAFFER  e  SHAPIN,  2011,  p.  25, 
grifo meu)133. 
A  preocupação  com  esse  ponto  por  qualquer  autor  interessado  na  leitura  do 
Leviathan é completamente justificada – pela sua importância para a obra, mas também 
pelo impacto dessa fórmula, que se tornou um dos emblemas da nova historiografia. É 

129 No original: “the air­pump was seventeenth­century ‘Big Science’”. Tradução minha.
130  Em  certo  sentido,  a  leitura  realizada  por  Latour  (1994,  pp.  21­33)  cristalizou  uma  interpretação  da 
obra  de  Schaffer  e  Shapin,  não  apenas  conferindo­lhe  o  estatuto  de  clássico  e  situando­lhe  na  base  da 
nova  historiografia  da  ciência,  mas  atrelando  esse  livro  ao  programa  de  antropologia  simétrica  que  ele 
visava desenvolver, apesar das críticas que o intelectual francês dirige à conclusão demasiado blooriana 
do Levianthan. 
131 No original: “Solutions to the problem of knowledge are solutions to the problem of social order”. 
Tradução minha.
132  No  original:  “To  Boyle  and  his  colleagues  the  experimental  solution  to  the  problem  of  order  was 
possible,  effective,  and  safe.  Its  practicality,  potency,  and  innocuousness  were  dependent  upon  the 
erection of a crucial boundary around the practices of the experimental form of life”.Tradução minha.
133  No  original:  “the  matter  of  fact  is  to  be  seen  both  as  an  epistemological  and  a  social  category”. 
Tradução minha.
125
essa percepção que faz com que “a história das ciências ocupe o mesmo terreno que a 
história da política” (SCHAFFER e SHAPIN, 2011, p. 332)134. Apesar de reconhecer 
isso, não partirei aqui desse argumento para explicar o livro. Ele estará no horizonte dos 
questionamentos  que  levantarei  aqui  e  não  será  tomado  como  evidente,  apesar  do  seu 
extremo sucesso. O que pretendo é seguir a forma pela qual esses autores chegaram a 
essa  conclusão  (que  se  assemelha  a  um  princípio  heurístico,  um  a  priori  em  busca  de 
confirmação pelo estudo de caso, teste do modelo de explicação proposto da sociologia 
do  conhecimento  científico).  Voltarei  a  minha  sensibilidade  para  o  modo  como  a 
construção narrativa dos autores explora algumas técnicas de produção do espaço. 
O  livro  é  dominado  por  metáforas  espaciais,  geográficas.  Seu  enredo  se 
desenrola  ao  redor  (e  no  interior)  de  locais  muito  singulares,  cujos  limites  se 
constituíam através de um árduo processo e que demandavam constante manutenção e 
ajuste:  a  bomba  de  ar,  o  laboratório  e  a  Royal  Society  de  Londres.  A  metáfora  se 
expande  para  a  circulação:  circulação  dos  aparelhos  e  experimentos  científicos  (e  a 
prática  da  replicação  com  suas  muitas  dificuldades);  circulação  de  relatos  dos 
experimentos que criavam “testemunhas virtuais” (a partir de uma série de tecnologias 
literárias  que  serão  detalhadas  adiante).  E  também  para  o  controle  do  acesso  a  esses 
espaços, sobretudo através das normas que regulam a constituição de uma “comunidade 
de experimentalistas” na Europa setecentista. Além disso, o tema do espaço aparece de 
uma  forma  nada  metafórica  na  querela  entre  “vacuístas”  e  “plenistas”  que  agitava  o 
ambiente intelectual da época. 
É também com a metáfora do espaço (e suas correlatas) que lidamos ao tratar do 
internalismo  e  do  externalismo.  Aproveitando  essa  metáfora,  farei  duas  perguntas  de 
importância  capital.  Onde  está  localizada  a  ciência  no  modelo  proposto  por  essa  nova 
historiografia?  Como  o  Leviathan  se  posiciona  em  relação  ao  internalismo  e  ao 
externalismo? 
Nas  décadas  finais  do  século  XX,  o  problema  da  demarcação  se  relaciona 
diretamentecom a diluição da ciência no conjunto da sociedade, sintetizado no conceito 
de tecnociência. Comecei esse capítulo afirmando que o período posterior à publicação 
de  A  estrutura  das  revoluções  científicas  se  caracterizava,  entre  outras  coisas,  pelas 
tentativas  de  superação  da  divisão  da  história  das  ciências  entre  internalismo  e 
externalismo.  Defendi  também  que  essa  empreitada  não  havia  sido  bem  sucedida  ou, 

134 No original: “history of science occupies the same terrain as the history of politics”. Tradução minha.
126
pelo  menos,  não  tanto  quanto  os  principais  autores  das  décadas  de  1970  e  1980 
acreditavam, daí a necessidade de retornar a esse problema. Essa questão aparece para 
Schaffer e Shapin de modo explícito: a preocupação dos autores é com a construção das 
fronteiras entre ciência e não­ciência. Os autores tentam mostrar que essas fronteiras são 
erguidas  historicamente,  que  não  é  evidente,  óbvio  ou  natural  que  um  determinado 
conjunto  de  práticas  seja  considerado  ciência  e  outro  conjunto  seja  deslegitimado  e 
rebaixado à categoria de “opinião”. O argumento que sustenta essa aparente obviedade, 
dizem os autores, é o nosso pertencimento radical a uma cultura que naturalizou essas 
divisões.  Como  membros  dessa  comunidade,  não  enxergamos  certas  questões  como 
problemas.  A  solução  teórica  encontrada  é  a  de  “bancar  o  estrangeiro”,  exercitar  o 
estranhamento face ao que associamos ao comportamento normal da sociedade (ou da 
natureza).  “Nós  queremos  adotar  uma  suspensão  calculada  e  informada  das  nossas 
percepções  evidentes  das  práticas  experimentais  e  seus  produtos”  (SCHAFFER  e 
SHAPIN, 2011, p. 6)135.
Um dos pontos fortes da obra é justamente narrar o processo de construção do 
coletivo  de  produção  do  conhecimento,  das  suas  instituições  (a  Royal  Society,  o 
laboratório),  das  novas  práticas  e  conhecimentos  que  ela  cria  (a  nova  ciência),  dos 
novos  produtos,  da  nova  cultura  material  (a  bomba  de  ar),  como  sendo  o  mesmo 
fenômeno.  É  óbvio  que  essa  narrativa,  por  certa  persistência  do  vocabulário  da 
demarcação,  está  repleta  de  remissões  ao  antigo  estilo  que  visava  superar.  Essas 
passagens  de  certa  hesitação  são  significativas,  expressam  a  dificuldade  da  tarefa 
executada por essa historiografia. A insistência “do fenômeno” em se seccionar em “o 
social”  e  “o  natural”,  entre  o  “teórico”  e  o  “experimental”,  entre  o  “discurso”  e  a 
“realidade”, o “interno” e o “externo” se exibe muito evidente para um espírito formado 
na tradição filosófica da primeira metade do século XX136. 
É justamente nos momentos que essa vacilação relampeja na trama que se aguça 
o  interesse  do  historiador  preocupado  em  examinar  os  interstícios  dessa  escrita.  Para 
estimular  uma  leitura  que  privilegia  esses  momentos,  dividirei  essas  etapas,  tentando 
desvendar  as  formas  através  das  quais  os  autores  amarram  os  diversos  fios  dessa 

135  No  original:  “We  wish  to  adopt  a  calculated  and  informed  suspension  of  our  taken­for­granted 
perceptions of experimental practices and its products”. Tradução minha.
136  O  seguinte  trecho  fornece  um  exemplo  excelente:  “Now  that  we  understand    aspects  of    Hobbes 
condemnation of experimental practice we can parenthetically discuss his relations with the Royal Society 
as a corporate body” (SCHAFFER e SHAPIN, 2011, p. 131).
127
trama.Em cada um desses momentos, a atividade de produção de fronteiras (boundary 
work)  será  o  foco  principal  da  leitura  aqui  desenvolvida.  Não  pretendo  narrar 
novamente  a  história  da  disputa  entre  Hobbes  e  Boyle  recolocando  as  tradicionais 
polarizações,  tratando  as  diferentes  “dimensões”  como  fenômenos  distintos  que 
obedecem a lógicas próprias, mas ressaltar a especificidade dessa nova forma de narrar 
a história das ciências. 
A  primeira  etapa  que  abordarei  é  a  da  formação  do  corpo  social  da  ciência 
moderna,  responsável  pela  elaboração  coletiva  do  conhecimento  legítimo  –  a 
“comunidade  experimental”  ou  “moral”.  Os  autores  descrevem  a  construção  de  um 
espaço social regulado por uma série de predicados sociais e morais que construíam a 
identidade  do  filósofo  natural.  Essa  nova  configuração  que  emerge  no  início  da  Era 
Moderna representa a si mesma como uma atividade pública e se opõe simultaneamente 
ao  isolamento  do  alquimista  em  seu  gabinete  e  à  clausura  do  monge  em  sua  cela 
(SCHAFFER e SHAPIN, 2011, p. 57; SHAPIN, 2013d). “Boyle propunha que os fatos 
científicos fossem estabelecidos pela agregação de crenças individuais. Membros de um 
coletivo  intelectual  tinham  que  assegurar  mutuamente  a  si  mesmos  e  a  outros  que  a 
crença na experiência empírica estava garantida” (SCHAFFER e SHAPIN, 2011, p. 25, 
grifo no original)137. A atividade da ciência moderna é uma atividade coletiva, fruto de 
um processo de “re­localização da filosofia natural no espaço cívico” (SHAPIN, 2013d, 
p.  132).  Não  é  mais  a  reclusão  individual  que  produz  o  conhecimento  profundo  e 
verdadeiro, mas a submissão a normas sociais.
O  entendimento  humano  individual  precisava  ser  disciplinado  pelo 
método,  a  saber  um  instrumento  de  indução  verdadeira.  E  esse 
instrumento  foi  implementado  não  por  um  indivíduo,  e  sim  por  uma 
coletividade  organizada  de  forma  complexa  e  que  interagia  de  modo 
inacessível. (SHAPIN, 2013d, p. 132)138
Assim,  a  constituição  dessa  comunidade  se  refere  à  necessidade  de  certas 
qualidades morais, de certo conjunto de valores indispensáveis à boa prática da filosofia 
natural:  em  uma  palavra,  se  refere  ao  ethos  da  ciência  moderna.  Esse  ethos  não  se 

137  No  original:“Boyle  proposed  that  matters  of  fact  be  established  by  the  aggregation  of  individual’s 
beliefs. Members of an intellectual collective had mutually to assure themselves and others that belief in 
an empirical experience was warranted”. Tradução minha.
138 Nesse mesmo texto, Shapin (2013d, p. 132­139) aponta para a ambiguidade dos repertórios correntes 
em relação à identidade científica no século dezessete, mostrando a permanência da retórica do filósofo 
natural  como  “eremita”  e  “sacerdote  da  natureza”  em  figuras  importantes,  como  Robert  Boyle  e  Isaac 
Newton. O topos do cientista como um indivíduo isolado, à margem da sociedade (se não fisicamente, ao 
menos  intelectualmente,  voltado  para  os  seus  pensamentos)  ainda  é  forte  na  atual  imagem  social  do 
cientista.
128
identifica  com  as  prescrições  mertonianas  descritas  no  capítulo  anterior.  Os 
experimentalistas elaboram para si uma identidade ligada à sobriedade, à humildade, à 
modéstia. Esses valores garantiam aos praticantes dessa filosofia natural um estatuto de 
nobreza139  (SCHAFFER  e  SHAPIN,  pp.  65­76).  Esse  sistema  organizado  de 
distribuição  de  valores,  julgamentos  e  emoções  –  essa  economia  moral  da  ciência 
moderna  (DASTON,  2014)  –  regula  as  fronteiras  da  comunidade,  credencia  os 
legítimos participantes do coletivo de produção de conhecimento verdadeiro. Uma das 
formas utilizadas para delimitar esse espaço foi através da produção literária de relatos 
de  experimentos.  Esses  relatos,  descrições  minuciosas  das  atividades  empíricas, 
destinavam­se  a  ampliar  o  público  da  nova  filosofia  experimental  por  meio  de 
testemunhas  virtuais140.  Esses  relatos  deveriam  estabelecer  um  pacto  de  confiança 
entre  o  experimentalista  e  essas  testemunhas,  que  passariam  a  acreditar  e  validar  as 
performances  experimentais  e  os  seus  resultados  sem  ter  o  contato  direto  com  a 
operação da bomba de ar, por exemplo. Mais do que isso, os autores enfatizam o papel 
desses discursos na economia moral da comunidade. “A exposição literária de uma certa 
forma de moralidade era uma técnica na fabricação de fatos científicos” (SCHAFFER e 
SHAPIN, 2011, p. 65)141. Logo adiante esse ponto é aprofundado. 
A  tecnologia  literária  de  Boyle  dramatizava  as  relações  sociais 
apropriadas para uma comunidade de filósofos experimentais. Apenas 
estabelecendo regras corretas de discurso os fatos científicos poderiam 
ser gerados e defendidos e apenas constituindo esses fatos científicos 
como  as  fundações  acordadas  do  conhecimento  a  comunidade  moral 
de  experimentalistas  poderia  ser  criada  e  sustentada  (SCHAFFER  e 
SHAPIN, p. 69, grifos meus)142.

139 Efetivamente, a maioria dos praticantes da filosofia natural na Europa dos séculos XVII e XVIII era 
de famílias aristocráticas ou de ricos proprietários. 
140  O  caráter  público  da  experimentação  será  retomado  em  seguida,  quando  da  discussão  sobre  as 
instituições da ciência moderna.
141  No  original:  “the  literary  display  of  a  certain  sort  of  morality  was  a  technique  in  the  making  of 
matters of fact”. Tradução minha.
142 No original: “Boyle’s literary technology dramatized the social relations proper to a community of 
experimental  philosophers.  Only  by  establishing  right  rules  of  discourse  could  matters  of  fact  be 
generated  and  defended,  and  only  by  constituting  these  matters  of  fact  into  the  agreed  foundations  of 
knowledge  could  a  moral  community  of  experimentalists  be  created  and  sustained”.  Tradução  minha. 
Esse argumento é repetido ao longo o livro para se referir também à disputa entre tecnologias literárias 
diferentes  em  Boyle  e  Hobbes:  “in  both  Boyle’s  and  Hobbes’s  writings,  literary  structure  and  process 
dramatize  the  social  relations  and  practices  deemed  appropriate  to  the  production  of  knowledge. 
Differences  in  theories  of  knowledge­production  and  evaluation  are  displayed  in  different  literary 
technologies” (SCHAFFER e SHAPIN, 2011, p. 145).
129
Em  uma  versão  preliminar  do  segundo  capítulo  do  Leviathan,  texto  que  exibe 
pela  primeira  vez  o  uso  do  conceito  de  tecnologias  literárias,  Shapin  (2013b,  p.  91) 
enfatiza que:
A  produção  de  conhecimento  e  a  comunicação  de  conhecimento  são 
normalmente  consideradas  como  atividades  distintas.  Argumentarei 
em  contrário:  o  discurso  acerca  da  realidade  natural  é  um  meio  de 
gerar  conhecimento  acerca  da  realidade,  de  assegurar  a  garantia  para 
esse  conhecimento  e  de  determinar  os  domínios  de  certo 
conhecimento em relação a áreas de posição menos certa. Mostrarei o 
status  convencional  de  maneiras  específicas  de  se  falar  sobre  a 
natureza  e  o  conhecimento  natural,  e  examinarei  as  circunstâncias 
históricas  em  que  essas  maneiras  de  falar  foram  institucionalizadas. 
[...]  A  etimologia  de  alguns  de  nossos  termos  chave  é  pertinente:  se 
uma  comunidade  é  um  grupo  que  compartilha  uma  vida  em  comum, 
comunicação é um meio de tornar as coisas comuns.
As  fronteiras  dessa  comunidade  eram  estabelecidas  a  partir  da  distribuição 
desigual  das  qualidades  e  habilidades  necessárias  à  prática  da  filosofia  experimental. 
Embora, em princípio, o caráter público desse conhecimento fosse ressaltado, a função 
desse  público  seguia  uma  hierarquia  bem  definida,  ele  não  se  confundia  com  a 
comunidade.  Os  protocolos  estabelecidos  deveriam  construir  um  espaço  social  pronto 
para  superar  o  paradoxo  de  ser  simultaneamente  coletivo  e  isolado,  uma  vez  que  toda 
interferência  social  na  produção  de  conhecimento  era  percebida  como  uma  distorção. 
Desse  modo,  os  autores  apontam  para  a  “desconstrução”  da  imagem  da  ciência  como 
algo público, voltando sua atenção para uma estratégia dupla: de um lado, enunciar que 
o  conhecimento  científico  deve  ser  público,  aberto;  de  outro  lado,  como  contrapartida 
necessária, restringir o efetivo acesso público à ciência, regular o espaço social no qual 
a  ciência  é  praticada.  Todo  esse  esforço  de  regulação  e  criação  de  uma  comunidade 
dotada de autonomia é explicado como tendo a função de controlar as possibilidades de 
dissenso  e  consenso,  como  um  processo  de  criação  de  maneiras  apropriadas  de 
expressar  a  divergência  e  conduzir  as  controvérsias.  Essas  convenções  linguísticas  e 
sociais  deveriam  prevalecer  caso  os  experimentalistas  quisessem  efetivamente  fazer 
avançar o seu modo de produção do conhecimento, a sua “forma de vida” (SCHAFFER 
e SHAPIN, 2011, pp. 72­76, 151­154). 
No momento em que o processo de privatização do conhecimento se intensifica 
na  mesma  medida  em  que  as  decisões  se  baseiam  em  escolhas  tecnocráticas,  a 
preocupação  dos  autores  com  essa  dimensão  parece  extremamente  relevante,  pois 

130
aponta  para  o  caráter  histórico  e  contingente  dos  limites  da  participação  pública  na 
produção e no consumo da ciência.
Para  prosseguir  na  análise  dos  procedimentos  envolvidos  nessa  produção  de 
limites,  passarei  ao  exame  das  instituições  onde  a  filosofia  natural  era  praticada.  A 
ênfase nos “estudos de laboratório” é um lugar comum para aqueles familiarizados com 
a  trajetória  da  primeira  geração  dos  science  studies143.  Os  clássicos  A  vida  de 
laboratório,  publicado  originalmente  em  1979  por  Bruno  Latour  e  Steve  Woolgar,  e 
The  manufacture  of  knowledge,  que  Karin  Knorr­Cetina  publica  em  1981,  lançam  as 
bases  dessa  empreitada.  A  proposta  elaborada  por  esses  autores  se  distancia  das 
“histórias  de  instituições  científicas”  (laboratórios,  institutos  de  pesquisa,  sociedades 
científicas  etc.)  que  possuem  uma  larga  e  consolidada  tradição.  Esses  espaços  de 
produção  do  conhecimento  científico  não  são  vistos  como  “templos  do  saber” 
(eventualmente  esse  topos  aparece  de  forma  crítica  e  irônica),  mas  como  algo  que 
confere  à  ciência  um  caráter  radicalmente  situado,  local,  contingente  (GOLINSKI, 
2005,  pp.  80­81;  LATOUR,  1994,  pp.  26­31;  SHAPIN,  2013b).  O  Leviathan  and  the 
air­pump  se  tornou  uma  das  principais  fontes  históricas  para  esse  campo.  Essas 
instituições  que  se  tornaram  sinônimo  de  ciência  emergem  justamente  no  período 
tratado no livro e a escolha desse objeto é uma tentativa de atacar esses problemas antes 
da sua cristalização em entidades bem delimitadas, mostrando – para usar o vocabulário 
latouriano  –  a  ciência  em  ação.  “No  programa  de  Boyle,  deveria  haver  um  espaço 
especial  no  qual  a  filosofia  natural  experimental  seria  feita,  no  qual  os  experimentos 
seriam  realizados  e  testemunhados.  Esse  [espaço]  era  o  laboratório  nascente” 
(SCHAFFER  e  SHAPIN,  2011,  p.  334)144.  Assim,  o  trabalho  de  Simon  Schaffer  e 
Steven Shapin desempenha a função de reler o surgimento da ciência moderna com uma 
sensibilidade que agrada aos science studies.
O  laboratório  é  a  “casa  da  experiência”,  local  onde  são  arregimentados  os 
elementos  humanos  e  materiais  indispensáveis  à  prática  da  ciência  –  ou,  no  século 
XVII, da filosofia natural (SHAPIN, 2013b). É um espaço onde elementos heterogêneos 
convivem e ganham certa coesão: os instrumentos e máquinas, os técnicos que realizam 

143 Jan Golinski (2005, pp. 79­103) fornece uma perspectiva abrangente dos principais desenvolvimentos 
dos estudos de laboratório ao longo dos anos 1980 e 1990. 
144 No original:  “In Boyle’s programme there was to be a special space in which experimental natural 
philosophy  was  done,  in  which  experiments  were  performed  and  witnessed.  This  was  the  nascent 
laboratory”. Tradução minha.
131
o  trabalho  manual,  a  audiência  cuidadosamente  selecionada  e  os  filósofos  naturais, 
verdadeiros  produtores  do  conhecimento.  Mais  importante,  esses  elementos  são 
arranjados  segundo  uma  disciplina  estrita  e  exaustivamente  reiterada  através  de  vários 
dispositivos  que  Schaffer  e  Shapin  (2011,  pp.  18­25,  76­79)  chamam  de  tecnologias 
sociais. Esses dispositivos tinham como principal atribuição garantir a legitimidade do 
conhecimento produzido no interior do laboratório, mas também produzido em outros 
locais  menos  acessíveis  e  levados  ao  laboratório  para  que  lá  fossem  validados 
(GOLINSKI, 2005, pp. 84­94; SHAPIN, 2013b). Assim como no caso da elaboração de 
regras de conduta que garantiam o pertencimento à “comunidade experimental”, essas 
tecnologias  sociais  regulavam  uma  ecologia  do  laboratório,  distribuíam  papéis  sociais 
distintos,  organizam  convenções  e  protocolos.  A  emergência  dessas  instituições  se 
apropria de normas sociais já vigentes, recombinando­as, calibrando­as de acordo com 
as suas necessidades específicas. Ao explicar as fontes de legitimidade de um relato na 
Inglaterra  do  século  XVII,  Steven  Shapin  comenta  que  “de  modo  aproximado,  a 
distribuição  da  credibilidade  seguia  os  contornos  da  sociedade  inglesa  e  o  fazia  tão 
claramente que quase nenhum comentador sentia­se obrigado a especificar a base do seu 
valor  de  credibilidade”  (SHAPIN,  2013b,  p.  64).  A  autoridade  provinha  de  critérios 
sociais que circulavam ao longo do corpo social – o ideal de nobreza que indiquei como 
parte constitutiva da identidade do filósofo natural nesse período é sintomático. Ser um 
cavalheiro era tão determinante (ou talvez até mais, em meados do século XVII) do que 
ser versado em filosofia.
A espacialidade adquire no laboratório uma acepção mais literal. Trata­se de um 
ambiente, na maioria dos casos, especialmente construído ou adaptado aos propósitos da 
produção  de  conhecimento.  Mas,  assim  como  no  caso  de  suas  convenções  sociais,  as 
suas convenções arquitetônicas foram capturadas de outros espaços – como o teatro ou 
o  fórum.  As  escolhas  por  esses  modelos  derivavam  da  necessidade  de  replicar  no 
laboratório  não  apenas  os  fenômenos  naturais,  mas  as  condições  de  comportamento  e 
distribuição  social,  a  forma  como  os  grupos  sociais  que  frequentavam  o  laboratório 
percebiam os seus papéis e as normas de conduta (muitas vezes tácitas) que deveriam 
seguir. Como resume Jan Golinski (2005, p. 88): “o espaço físico do laboratório fornece 
meios  para  organizar  as  interações  entre  seus  habitantes  humanos  enquanto  eles  se 
engajam no trabalho experimental”145. 

132
Essa  série  de  questões  se  relaciona  diretamente  com  um  problema  decisivo  no 
estabelecimento  de  um  programa  experimental  de  filosofia  natural:  o  caráter  público 
desse  conhecimento.  “O  pouco  que  sabemos  sobre  os  espaços  experimentais  ingleses 
em  meados  do  século  dezessete  indica  que  o  seu  status  como  público  ou  privado  era 
intensamente  debatido”  (SCHAFFER  e  SHAPIN,  2011,  p.  335)146.  Esses  debates 
estavam no centro da controvérsia entre Hobbes e Boyle e do sucesso na sua resolução 
dependeria  o  sucesso  de  toda  nova  “forma  de  vida  experimental”.  As  operações 
retóricas  e  sociais  necessárias  a  essa  solução  eram  extremamente  sofisticadas  e 
dependiam de múltiplos recursos. Embora a dimensão pública da filosofia experimental 
fosse  ponto  chave  para  a  própria  legitimidade  desse  conhecimento  da  forma  como  o 
entendiam  Robert  Boyle  e  os  fundadores  da  Royal  Society,  a  “solitude”  e  a  reclusão 
(provavelmente  seria  anacrônico  falar  em  privacidade  antes  da  segunda  metade  do 
século XVIII) eram valores necessários à prática naturalista. Equacionar essas atitudes 
se  tornou  um  dos  pontos  principais  da  construção  desses  espaços  (físicos  ou  sociais), 
muito  do  trabalho  de  construção  de  fronteiras  se  dedicava  a  refinar  essas  noções  e 
superar o paradoxo entre público e privado. Para Schaffer e Shapin essa é também uma 
questão  extremamente  relevante.  “Um  modo  de  assegurar  a  multiplicação  de 
testemunhas  era  realizar  experimentos  em  um  espaço  social.  O  ‘laboratório’ 
experimental  era  contrastado  com  o  gabinete  do  alquimista  precisamente  por  que  do 
primeiro se dizia ser um espaço público e o último privado” (SCHAFFER e SHAPIN, 
2011,  p.  57)147.  Em  uma  passagem  mais  extensa,  os  autores  tentam  definir  o 
laboratório e as controvérsias em torno do seu caráter.
O espaço onde essas máquinas trabalhavam – o laboratório nascente – 
deveria  ser  um  espaço  público,  mas  um  espaço  público  restrito,  algo 
que  críticos  como  Hobbes  logo  apontaram.  Se  alguém  desejasse 
produzir  conhecimento  experimental  autenticado  –  matters  of  fact  – 
deveria  vir  a  esse  espaço  e  trabalhar  aqui  com  outros.  Se  alguém 
desejasse  ver  novos  fenômenos  criados  por  essas  máquinas,  deveria 
vir a esse espaço e vê­los com outros. Os fenômenos não estavam em 
exibição  em  qualquer  outro  lugar.  O  laboratório  era,  portanto,  um 
espaço disciplinado, onde práticas experimentais, discursivas e sociais 

145  No  original:  “the  physical  space  of  the  laboratory  provides  means  for  organizing  the  interactions 
among its human inhabitants as they engage in experimental work”. Tradução minha.
146  No  original:  “What  little  we  do  know  about  English  experimental  spaces  in  the  middle  part  of  the 
seventeenth  century  indicates  that  their  status  as  public  or  private  was  intensely  debated”.  Tradução 
minha.
147  No  original:  “In  experimental  practice  one  way  of  securing  the  multiplication  of  witness  was  to 
perform  experiments  in  a  social  space.  The  experimental  ‘laboratory’  was  contrasted  to  the  alchemist’s 
closet precisely in that the former was said to be a public and the latter a private space”. Tradução minha.
133
eram  coletivamente  controladas  por  membros  competentes.  Nesses 
aspectos,  o  laboratório  experimental  era  um  local  melhor  para  gerar 
conhecimento  autêntico  do  que  o  espaço  externo  no  qual  simples 
observações da natureza poderiam ser feitas (SCHAFFER e SHAPIN, 
p. 39)148.
Dessa maneira, a tensão entre interno e externo parece ter sido deslocada para a 
disputa sobre o caráter da prática científica: público ou privado. Para falar como Fleck 
(embora a analogia não seja completamente adequada), diríamos que se trata de um jogo 
entre circuitos “esotéricos” e “exotéricos”. Não se trata de dentro ou fora da ciência – 
conteúdo ou contexto –, mas de uma ciência praticada dentro ou fora da sociedade, de 
um  conhecimento  produzido  em  locais  sociais  e  físicos  especialmente  destinados, 
desenhados, protegidos, patrulhados para esse fim. Um conhecimento situado nos seus 
locais culturais de produção, coagido pelos arranjos que eles permitem e legitimam. 
Agora  que  sabemos  como  pertencer  à  comunidade  e  adentrar  o  laboratório, 
podemos ter acesso às máquinas. Neste caso, realizar experimentos na bomba de ar149. 
Como já indiquei acima, esse ponto adquire importância crucial no texto de Schaffer e 
Shapin.  A  bomba  de  ar  corporifica  a  filosofia  natural  da  forma  como  era  praticada  e 
professada por Robert Boyle e seus colegas. Discutindo o papel da máquina como um 
signo poderoso para aquele grupo, os autores examinam dois aspectos em especial.
Em primeiro lugar, a necessidade expressada por experimentalistas de que outros 
experimentos  e  dispositivos  ocupassem  o  lugar  da  bomba  de  ar  quando  ela  já  não 
conseguisse  mais  atrair  a  atenção  do  público.  Um  tema  relacionado  à  teatralidade 
envolvida  no  processo  de  experimentação  pública  e  aos  efeitos  dessa  teatralidade  nas 
tecnologias sociais, na manutenção das testemunhas necessárias à legitimação do saber 
ali  produzido.  A  escolha  do  que  exibir  dependia  de  uma  equação  que  havia  de  ser 
resolvida. De um lado, a satisfação de uma espécie de audiência que não fazia parte da 

148No original: “The space where these machines worked – the nascent laboratory – was to be a public 
space,  but  a  restricted  public  space,  as  critics  like  Hobbes  were  soon  to  point  out.  If  one  wanted  to 
produce authenticated experimental knowledge – matters of fact – one had to come to this space and to 
work in it with others. If one wanted to see the new phenomena created by these machines, one had to 
come  to  that  space  and  see  them  with  others.  The  phenomena  were  not  on  show  anywhere  at  all.  The 
laboratory was, therefore, a disciplined space, where experimental, discursive, and social practices were 
collectively controlled by competent members. In these respects, the experimental laboratory was a better 
space in which to generate authentic knowledge than the space outside it in which simple observations of 
natures could be made”. Tradução minha.
149  A  operação  efetiva  dos  instrumentos  era  realizada  por  “técnicos  invisíveis”.  Em  artigo  posterior  à 
publicação do Leviathan, Shapin (2013b, p. 80, grifo no original) explica: “Em sua maioria, contudo, a 
legião de ‘técnicos de laboratório’, ‘operadores’, ‘assistentes’ e ‘técnicos­químicos’ de Boyle eram atores 
invisíveis. Eles não faziam parte do público que dizia respeito a esses experimentos. Eles faziam com que 
as máquinas funcionassem, mas não podiam produzir conhecimento”. 
134
comunidade  experimentalista,  mas  enquadrava­se  nos  requisitos  sociais  e  morais  para 
participar  do  público  do  laboratório.  Esse  público  era  alimentado  com  novidades  e 
espetáculos,  não  estava  diretamente  interessado  na  repetição  exaustiva.  De  outro  lado, 
as exibições deveriam ser instrutivas, sóbrias e filosoficamente relevantes. Adequadas à 
tarefa  que  desempenhavam.  Elas  deveriam  expressar  a  identidade  e  os  valores  da 
comunidade, retratar as suas formas de conduta, de sociabilidade, sua existência como 
um  ente  (coletivo)  específico  no  corpo  social,  seu  lugar  na  hierarquia  da  produção  do 
conhecimento150.  Para  construir  essa  audiência,  eles  precisavam  domesticá­la,  não  se 
submeter  às  suas  vontades.  A  bomba  de  ar  conseguiu  manter  juntos  os  interesses  em 
conflito,  pois  satisfazia  a  ambos.  “Nenhum  equipamento  novo  tomou  o  lugar  da 
machina  Boyleana  como  um  emblema  do  programa  experimental  da  Royal  Society” 
(SCHAFFER e SHAPIN, 2011, p. 32).
O segundo aspecto é a exploração da fortuna iconográfica sobre a bomba de ar. 
As  gravações  e  desenhos  que  exibem  o  aparelho  são  os  pontos  de  interseção  entre 
tecnologias  materiais  e  literárias,  o  ponto  onde  máquina  e  discurso  se  confundem. 
Deslocando  a  perspectiva  da  questão,  podemos  dizer  que  é  onde  a  distinção  entre 
máquina e discurso não faz sentido. A intrincada configuração de figuras mitológicas, 
objetos  filosóficos,  olhares,  gestos  e  disposição  espacial  dos  elementos  seguia  um 
repertório que deveria ser compartilhado pelos experimentalistas (e pela cultura erudita 
em  geral).  A  construção  codificada  das  imagens  que  aparecem  nas  obras  de  filosofia 
natural  desempenhavam  um  papel  disciplinar.  Elas  não  são  meras  ilustrações,  são 
objetos constitutivos de uma forma específica de produzir e comunicar o conhecimento. 
As  representações  iconográficas  da  bomba  de  ar  (e  de  outros  elementos  desse 
programa),  a  difusão  dos  seus  modos  de  funcionamento  e  dos  seus  resultados  em 
imagens  detalhadas,  garantiam  a  ampliação  das  testemunhas  virtuais  necessárias  à 
legitimação desse saber, criavam uma camada mais distante de público. Um público que 
não  tem  acesso  ao  interior  do  laboratório,  mas  que  deve  ser  convencido  do  seu  poder 
por  meios  retóricos  e  pictóricos.  A  imagem  da  bomba  de  ar  é  poderosa,  captura  esse 
movimento complexo.
A  descrição  detalhada  da  máquina  era  um  recurso  literário  central  para  a 
estratégia  de  Boyle  e  é  parcialmente  reconstituído  no  Leviathan151.  Não  considero 

150 Steven Shapin (2013b) brinca com o trocadilho entre pump (bomba) e pomp (pompa) para assinalar 
essa correlação.
135
necessário  repetir  essa  descrição  para  explorar  a  estratégia  historiográfica  dos  autores, 
embora  devamos  notar  alguns  pontos  relevantes.  A  bomba  de  ar  era  um  aparelho 
composto  de  um  globo  de  vidro  assentado  sobre  um  suporte  que  continha  pistões, 
alavancas, cilindros, registros, válvulas e diversos componentes que permitiam bombear 
o  ar  para  fora  do  globo  (e  por  meio  dos  quais  a  bomba  poderia  vazar,  emperrar  ou 
apresentar  funcionamento  deficiente).  A  evacuação  da  bomba  servia  prioritariamente 
para  testar  a  natureza  do  ar  (peso,  elasticidade  etc).  Possibilitava  também  discussões 
sobre a existência do vácuo, sobre o éter, a composição da atmosfera. Na bomba de ar 
cabiam quase todas as questões da filosofia natural do século XVII. De dentro dela saia 
o principal fundamento da nova forma de produção de conhecimento científico, da nova 
“forma de vida experimental”. Além dos experimentos oriundos da própria operação da 
bomba, era possível realizar outros experimentos dentro do globo (como os testes com o 
mercúrio  de  Torricelli).  As  tarefas  de  construção  e  operação  da  bomba  de  ar  eram 
consideradas  extremamente  complicadas,  caras  e  delicadas.  De  forma  sintética,  três 
fatores justificavam a contínua preocupação com essa atividade árdua: “(1) que tanto a 
integridade do mecanismo quanto a seu vazamento limitado eram recursos importantes 
para Boyle na validação de suas descobertas pneumáticas e a interpretação apropriada 
destas; (2) que a integridade física da máquina era vital para a percepção de integridade 
do conhecimento que a máquina ajudava a produzir; (3) que a sua falta de integridade 
física  era  uma  estratégia  usada  por  críticos,  particularmente  Hobbes,  para  desconstruir 
as alegações de Boyle e substituí­las por relatos alternativos” (SCHAFFER e SHAPIN, 
30)152.
A  bomba  de  ar  fornece  também  espessura  e  materialidade  à  história  que  os 
autores  querem  contar.  Ela  resume  a  categoria  de  tecnologia  material,  que  participa 
ativamente na construção de um dos principais argumentos do livro. 
A  solução  dramática  encontrada  pelos  autores  é  deslocar  os  fatos  científicos 
para  fora  da  natureza,  situando­os  como  artifícios,  produtos  dessas  séries  de 
dispositivos,  dessas  três  tecnologias  (material,  social  e  literária).  “Ao  usar  tecnologia 

151 Um trecho da descrição presente no Capítulo 2 do Leviathan (SCHAFFER e SHAPIN, 2011, pp. 26­
30) aparece em português na tradução do artigo de Steven Shapin (2013b, pp. 93­94) que deu origem ao 
referido capítulo do livro.
152 No original: “(1) that both the engine’s integrity and its limited leakage were important resources for 
Boyle in validating his pneumatic findings and their proper interpretation; (2) that the physical integrity of 
the machine was vital to the perceived integrity of the knowledge the machine helped to produce; (3) that 
the lack of its physical integrity was a strategy used by critics, particularly Hobbes, to deconstruct Boyle’s 
claims and to substitute alternative accounts”. Tradução minha.
136
para  se  referir  às  práticas  literárias  e  sociais,  bem  como  a  máquinas,  nós  desejamos 
enfatizar que todas as três são ferramentas de produção de conhecimento” (SHCAFFER 
e  SHAPIN,  2011,  p.  25,  n.  4)153.  A  seguinte  citação,  embora  extensa,  elucida  essa 
questão.
Apesar  da  utilidade  de  distinguir  as  três  tecnologias  empregadas  na 
produção  de  fatos,  não  devemos  ter  a  impressão  de  que  estamos 
lidando com categorias distintas: cada uma delas incorpora as outras. 
Como veremos, as práticas experimentais que empregam a tecnologia 
material  da  bomba  de  ar  cristalizaram  formas  específicas  de 
organização  social;  essas  formas  sociais  valorizadas  eram 
dramatizadas  na  exposição  literária  de  descobertas  experimentais;  o 
relato  literário  das  performances  da  bomba  de  ar  estendiam  uma 
experiência que era considerada essencial à propagação da tecnologia 
material  ou  mesmo  como  um  substituto  válido  para  o  testemunho 
direto  da  exibição  experimental.  Se  quisermos  entender  como  Boyle 
trabalhou para construir fatos pneumáticos devemos considerar como 
cada  uma  das  três  tecnologias  eram  usadas  e  como  elas  se 
interpenetravam (SCHAFFER e SHAPIN, 2011, pp. 25­26)154.
Do  recurso  às  tecnologias  decorre  a  organização  do  enredo  e  a  composição  da 
estrutura narrativa. O fato científico, produto dessas atividades, não é uma apenas uma 
lei geral ou uma entidade. Ele é um artifício, uma peça em um jogo de linguagem. No 
entanto,  para  que  a  operação  funcione  ele  precisa  ser  autonomizado,  isolado  das  suas 
formas  de  produção.  Deve  apagar  os  traços  de  sua  construção  e  se  assemelhar  a  uma 
evidência.  Afinal,  contra  fatos  não  há  argumentos.  “Cada  uma  das  três  tecnologias  de 
Boyle  trabalhavam  para  alcançar  a  aparência  dos  fatos  científicos  como  itens  dados. 
Quer  dizer,  cada  tecnologia  funcionava  como  um  recurso  de  objetivação.  [...]  A 
objetividade do fato científico experimental era um artefato de certas formas de discurso 
e certos modos de solidariedade social” (SCHAFFER e SHAPIN, 2011, pp. 77­78). Os 
fatos  são  externos  às  vontades,  interesses  e  limitações  humanas.  Quando  o  aparato 
experimental opera corretamente, eles provêm da própria natureza, sem interferências. 

153 No original: “By using technology to refer to literary and social practices, as well as to machines, we 
wish to stress that all three are knowledge­producing tools”. Tradução minha.
154 No original: “Despite the utility of distinguishing the three technologies employed in fact­making, the 
impression should not be given that we are dealing with distinct categories: each embedded the others. As 
we  shall  see,  experimental  practices  employing  the  material  technology  of  the  air­pump  crystallized 
specific  forms  of  social  organizations;  these  valued  social  forms  were  dramatized  in  the  literary 
exposition  of  experimental  findings;  the  literary  reporting  of  air­pump  performances  extended  an 
experience that was regarded as essential to the propagation of the material technology or even as a valid 
substitute  for  direct  witness  of  experimental  display.  If  we  wish  to  understand  how  Boyle  worked  to 
construct pneumatic facts we must consider how each of the three technologies was used and how each 
bore upon the others”. Tradução minha.
137
A  comunidade,  o  laboratório  e  a  bomba  de  ar  são  apenas  meios  transparentes  para 
carregar um item de conhecimento ao longo de diversos circuitos sociais. 
Mas  os  autores  não  se  contentam  em  dissecar  a  natureza  convencional  desse 
processo, em apontar – por meio do estudo das dificuldades na circulação da bomba de 
ar  e  na  replicação  dos  experimentos  –  para  a  dimensão  radicalmente  local  desse 
conhecimento,  em  demonstrar  que  “o  fato  é  uma  categoria  constitutivamente  social” 
(SCHAFFER  e  SHAPIN,  2011,  p.  225).  Adotando  esse  tratamento  para  as  diversas 
operações de Boyle e os experimentalistas, os autores apontam para uma nova forma de 
encarar  historicamente  a  ciência.  Podemos  realizar  uma  leitura  que  encontra  paralelos 
com a interpretação de Paul Forman (2007), que demarca a passagem da Modernidade 
para a pós­modernidade a partir inversão da relação de proeminência entre a ciência e a 
tecnologia.  Se,  na  Modernidade,  argumenta  Forman,  a  ciência  incluía  também  a 
tecnologia, na pós­modernidade a tecnologia inclui a ciência. 
A  história  do  surgimento  da  “forma  de  vida  experimental”  e  do  triunfo  da 
ciência  moderna  no  século  XVII  é  recontada  como  um  processo  de  reconfiguração 
permanente de fatores disponíveis socialmente e postos em funcionamento para novos 
propósitos.  A  produção  de  dispositivos  sociotécnicos  não  é  uma  mutação  da  ciência 
contemporânea.  É  o  fruto  de  um  processo  que  define  a  ciência  moderna,  desde  a  sua 
emergência, como tecnociência. As duas camadas de temporalidade – uma situada em 
meados  do  século  XVII  e  a  outra  no  final  do  século  XX  –  se  superpõe.  A  nova 
historiografia das ciências reconstrói o passado e apresenta uma solução diferente para 
os  temas  contemporâneos.  É  claro  que  o  fato  científico  é  o  fundamento  do 
conhecimento,  mas  não  porque  ele  é  “neutro”  ou  independente  de  “questões  sociais”. 
Pelo  contrário,  ele  inventa  o  contexto,  o  conteúdo  e  a  demarcação  entre  os  dois  no 
mesmo processo. Ele fundamenta o conhecimento porque se converte em uma unidade 
de sentido histórico e social. Apesar de se valer do princípio de simetria para explicar a 
disputa entre dois modelos de filosofia natural, o livro (se) encerra (com) um juízo de 
valor: “Hobbes was right” (SCHAFFER e SHAPIN, 2011, p. 344). Não em sua filosofia 
natural,  mas  em  sua  teoria  das  ciências.  A  vitória  da  ontologia  proposta  pelos 
experimentalistas (e da epistemologia a ela associada) não resulta da maior capacidade 
desse programa em produzir conhecimento verdadeiro, mas do seu sucesso em produzir 
consensos sociais em torno dos itens de conhecimento e das formas de organizá­los.

138
Nem  o  nosso  conhecimento  científico,  nem  a  constituição  da  nossa 
sociedade,  nem  as  afirmações  tradicionais  sobre  as  conexões  entre  a 
nossa sociedade e o nosso conhecimento são mais dadas como certas. 
A  medida  que  reconhecemos  o  status  convencional  e  artefatual  das 
nossas  formas  de  conhecimento,  nos  colocamos  em  posição  de 
perceber  que  os  responsáveis  por  aquilo  que  sabemos  somos  nós  e 
não a realidade (SCHAFFER e SHAPIN, 2011, p. 344, grifo meu)155
.
A  cisão  entre  o  “externo”  e  o  “interno”  é  reposicionada,  saindo  do  campo  da 
realidade social para o campo das convenções culturais. O vocabulário da demarcação é 
herdeiro  da  tradição  fundadora  da  ciência  moderna  e  só  faz  sentido  nesse 
enquadramento.  Os  autores  refletem  sobre  a  sua  posição  a  respeito  dessa  divisão  na 
introdução preparada para a edição comemorativa de vinte e cinco anos de lançamento 
do  livro.  Afirmam  a  sua  insatisfação  com  o  debate  entre  “fatores  internos”  e  “fatores 
externos”  e  procuram  a  solução  justamente  na  problematização  das  fronteiras. 
Identificam  o  problema  nas  clivagens  ideológicas  que  dominaram  o  clima  cultural  do 
século XX (SCHAFFER e SHAPIN, 2011, pp. xiii­xvii). Assim, o que eles pretendem 
mostrar como saída não é uma tentativa de combinar as abordagens, mas uma forma de 
superá­las,  mostrando­as  como  efeito  de  um  processo  histórico.  Na  narrativa  do 
Leviathan,  os  fatores  internos  e  externos  são  tratados  como  objetos  históricos  e  não 
categorias historiográficas. 
Ao atacar a tradicional agenda de pesquisa da historiografia das ciências – uma 
agenda que já não possuía o mesmo poder de coerção desde Thomas Kuhn – os novos 
historiadores  supõem  reconfigurar  grande  parte  do  aparato  conceitual  que  utilizamos 
para  entender  a  ciência.  Esse  movimento  desloca  as  funções  sociais  e  políticas  da 
história  das  ciências:  a  nova  historiografia  contesta  frontalmente  o  espaço  de  ação 
política das ciências. As correlações de força envolvidas na produção dessas fronteiras 
são  focalizadas  e  cruelmente  exibidas  como  meras  formas  institucionalizadas  de  falar 
sobre  o  saber  e  de  praticar  a  ciência.  O  modo  encontrado  para  escapar  dessas 
convenções  foi  seguir  o  princípio  de  simetria  –  não  atribuindo  ao  conhecimento 
vitorioso  nenhum  privilégio  epistemológico,  nenhum  posto  superior  na  hierarquia  dos 
saberes.  Não  existe  triunfo  da  verdade  ou  marcha  do  progresso,  existem  formas  de 

155  No  original:  “Neither  our  scientific  knowledge,  nor  the  constitution  of  our  society,  nor  traditional 
statements  about  the  connections  between  our  society  and  our  knowledge  are  taken  for  granted  any 
longer. As we come to recognize the conventional and artifactual status of our forms of knowing, we put 
ourselves in a position to realize that it is ourselves and not reality that is responsible for what we know”. 
Tradução minha.  
139
conhecimento  que  se  estabilizam  e  se  cristalizam  ao  arregimentar  recursos  sociais  e 
materiais.
A  simetria  e  as  suas  implicações  filosóficas,  historiográficas  e  políticas  foram 
duramente combatidas. A pressuposição de equilíbrio entre as visões de Hobbes e Boyle 
a respeito do conhecimento é um dos pontos que ofereceu mais resistência a essa forma 
de  escrever  a  história  das  ciências.  Alguns  críticos  sugerem  uma  leitura  do  Leviathan 
and  the  air­pump  que  obedeça  a  uma  “estratégia  sanduíche”,  que  aproveite  as 
informações  que  o  livro  fornece  e  despreze  as  interpretações  e  explicações  que  ele 
supostamente  retira  dessas  informações;  isto  é,  “omita  a  introdução  e  a  conclusão,  o 
resto  é  simplesmente  história”  (ZAMMITO,  2004,  p.  169).  O  enorme  sucesso  dos 
science  studies  e  da  historiografia  associada  a  eles  foi  surpreendido,  na  passagem  da 
década  de  1980  para  a  década  de  1990,  por  um  ataque  vindo  prioritariamente  de 
cientistas  naturais  atentos  à  situação  das  novas  análises  das  ciências  (e  extremamente 
insatisfeitos com essas abordagens) e filósofos comprometidos com a objetividade. Essa 
reação, que marca o início das Guerras da Ciência, incide como um duro golpe nessa 
nova proposta. Em certo sentido, ela encerra um ciclo de expansão dessas abordagens e 
marca  o  início  de  um  período  de  reflexão,  dissidências,  meta­análises.  Essa  crise  não 
fará  morrer  a  nova  historiografia  das  ciências,  mas  serve  como  um  novo  ponto  de 
partida,  forçando  esse  grupo  a  repensar  alguns  de  seus  princípios  teóricos.  As 
implicações  das  Guerras  da  Ciência  servirão  também  de  ponto  de  partida  para  o 
próximo  capítulo  dessa  tese.  Prosseguindo  a  análise,  tentarei  perceber  como  essa 
ofensiva  foi  sentida  na  historiografia.  Por  enquanto,  ofereço  apenas  uma  pergunta 
provocativa e uma série de respostas evasivas.
Se essas novas análises explicam satisfatoriamente a ciência, porque os cientistas 
reagem? (“Porque elas não explicam satisfatoriamente coisa alguma!”, esbraveja Sokal, 
indignado.) Talvez porque a cripta de Pasteur permanece ao lado do laboratório. Porque 
esse  laboratório  –  por  sua  vez  –  não  foi  preservado  na  sua  monumentalidade  e  sim 
continuamente  modernizado  e  mantido  em  atividade  (o  laboratório  não  é  local  de 
passado,  mas  de  futuro,  não  é  local  de  história,  mas  de  progresso,  a  história  está  em 
volta, fora). Porque em uma pequena sala um simulacro reduzido do laboratório do Dr. 
Pasteur permanece em exibição como guardião de um modelo de narrativa da história 
das  ciências.  Porque  o  museu  Pasteur  permanece  no  centro  da  gigantesca  área  do 
instituto que o abriga. Falando em nome da ciência, certos grupos resistem em destruir 
140
seus  próprios  ídolos,  se  agarram  à  sua  metafísica.  A  proposta  de  uma  história  das 
ciências não é um problema, desde que ela reafirme e legitime os mitos do progresso. 
Desde  que  ela  cumpra  a  promessa  (feita  talvez  por  Comte  ou  Sarton)  de  garantir  a 
superioridade  epistemológica  e  moral  da  ciência,  de  ser  a  guardiã  das  suas  tradições, 
porta voz da sua identidade, narradora das suas vitórias. Para aqueles vinculados a uma 
defesa  do  cientificismo,  a  narrativa  histórica  apresentada  no  Leviathan  soa  como  uma 
profanação e uma traição.

141
5. O self e a comunidade

Este  capítulo  tentará  avaliar  a  configuração  da  historiografia  das  ciências  no 
início  do  século  XXI.  Esta  formação  será  encarada  como  uma  reação  a  um  novo 
ambiente  intelectual  e  político  que  dá  lugar  a  novas  injunções  entre  epistemologia  e 
política.  Continuarei  perseguindo  a  trajetória  dos  fatores  internos  e  externos  em  um 
momento  em  que  a  inutilidade  dessas  categorias  foi  novamente  declarada,  quando  a 
solução  encontrada  foi  propor  que  não  existem  fronteiras,  historicizando  o  próprio 
exercício  da  demarcação.  Essas  questões  serão  articuladas  especialmente  através  da 
discussão do livro Objectivity, publicado em 2007 por Lorraine Daston e Peter Galison. 
É  nessa  obra  que  buscarei  o  ponto  de  convergência  para  pensar  a  historiografia  das 
ciências  em  sua  forma  atual  e  para  amarrar  os  problemas  levantados  nos  capítulos 
anteriores.
Adotarei uma estratégia mais objetiva – com o perdão do trocadilho – passando 
diretamente  à  análise  do  livro.  À  medida  que  as  questões  relevantes  se  apresentem, 
realizarei  digressões  que  remetem  às  condições  de  produção  dessa  historiografia.  Este 
livro foi escolhido para ocupar um lugar tão destacado na estrutura narrativa da tese por 
vários  motivos.  Por  ser  um  trabalho  histórico  de  grande  qualidade,  é  óbvio.  Mas 
também  por  oferecer  uma  amostra  dos  possíveis  desdobramentos  da  tradição 
historiográfica  que  tenho  seguido  nos  últimos  capítulos,  por  abrir  essa  historiografia 
para  territórios  desconhecidos  ou  pouco  explorados.  Por  fim,  por  marcar  o  fim  de  um 
ciclo,  o  esgotamento  de  uma  maneira  de  contar  a  história  das  ciências.  Esse 
esgotamento,  como  veremos,  não  é  uma  ruptura  total,  uma  capitulação  diante  das 
críticas ou um retorno aos antigos modelos. É um processo de transformação que se dá 
sem  negar  completamente  os  avanços  decorridos  nas  últimas  décadas,  é  uma  tensão 
entre  a  continuidade  de  um  projeto  intelectual  e  a  negação  de  algumas  de  suas 
características e implicações.
O  livro  é  ambicioso  em  suas  pretensões.  Ele  pretende  realizar  uma  história  de 
uma  “virtude  epistêmica”,  a  objetividade,  e  também  uma  história  do  self  científico  ao 
longo de mais de dois séculos156. Na verdade, ele quer mostrar como esses dois tópicos 

156 O conceito de self é difícil de ser traduzido, especialmente quando não aparece como genitivo (casos 
em que geralmente é traduzido como “de si”). Seu uso tem crescido, especialmente na psicologia e áreas 
142
são objetos de uma mesma história traçando “como epistemologia e ethos emergiram e 
se  fundiram  ao  longo  do  tempo  e  contextualmente”  (DASTON  e  GALISON,  2010,  p. 
363)157. Ao mesmo tempo, ele consegue recortar muito claramente dentro de um tema 
que  parece  infinito.  Suas  fontes  são  as  imagens  produzidas  para  os  atlas  (de  diversas 
disciplinas, da botânica à astronomia) e a forma como as virtudes epistêmicas e o self 
científico modificam a produção das imagens que compõem esses atlas. “Nós queremos 
mostrar, antes de tudo, como virtudes epistêmicas podem ser inscritas em imagens, na 
forma  como  elas  são  feitas,  usadas  e  defendidas  contra  rivais”,  afirmam  Daston  e 
Galison (2010, p. 42)158. Já está claro que estamos diante de muitos problemas difíceis. 
As dificuldades não irão impedir os autores de perseguir esses problemas ao longo de 
mais de quatrocentas páginas.
Irei  acompanhar  essas  dificuldades  tentando  mostrar  como  essa  narrativa  lida 
com a historicidade da ciência. A chave parece estar na concepção da ciência como uma 
série  de  dispositivos  disciplinares,  à  maneira  de  Foucault,  que  constrangem  os  seus 
praticantes  e  forjam  uma  identidade  coletiva.  O  papel  da  produção  e  circulação  de 
imagens  é  destacado  pelos  autores,  mas  poderíamos  apontar  para  um  processo 
semelhante  focando  em  outras  práticas  científicas:  experimentação,  redação  de  livros, 
artigos  e  teses  etc.  O  deslocamento  para  a  prática  –  uma  característica  bastante 
propalada  da  nova  historiografia  das  ciências  desde  meados  dos  anos  1980  –  permite 
que  os  autores  narrem  a  história  de  um  conceito  que  parecia  imune  à  corrosão  pela 
temporalidade,  como  a  objetividade.  Mais  do  que  isso,  a  objetividade  não  é  tratada 
como um conceito, mas como um conjunto de gestos, técnicas, hábitos e temperamentos 
que são criados e reforçados pelo treino diário. A objetividade é reconstruída de baixo 
para cima, ela é o ponto final de uma cadeia de relações e não a operacionalização de 
um aparato conceitual abstrato.
Nesse  ponto,  interrompemos  a  descrição  da  obra  para  realizar  um  primeiro 
desvio.  Essa  digressão  será  fundada  na  seguinte  questão:  com  que  tradições 
historiográficas  os  autores  dialogam  para  elaborar  as  suas  reflexões?  Os  autores  são 
parte de uma geração de historiadores das ciências formados sob a influência decisiva 

correlatas. Frequentemente é usado sem tradução. De vez em quando é traduzido como “si”. Aqui, preferi 
manter a forma original. 
157  No  original:  “how  epistemology  and  ethos  emerged  and  merged  over  time  and  in  contexto”. 
Tradução minha. 
158 No original: “We want to show, first of all, how epistemic virtues com be inscribed in images, in the 
ways they are made, used, and defended against rivals”. Tradução minha.
143
dos  science  studies.  Ambos  possuem  formação  inicial  em  áreas  científicas  e  se 
dedicaram  à  história  já  na  pós­graduação  (o  que  não  é  nenhuma  novidade  no  nosso 
campo). Suas primeiras publicações relevantes aparecem em meados dos anos 1980 e já 
na  década  seguinte  os  dois  se  projetam  como  importantes  nomes  da  historiografia  das 
ciências. Enquanto Lorraine Daston se dedicava a pesquisar a história natural no início 
da Era Moderna, o surgimento da probabilidade e a autoridade moral da natureza; Peter 
Galison voltou sua atenção para a física do século XX, para a relação entre as diversas 
tradições  que  compõem  a  disciplina  e  para  a  Big  Science.  Essas  trajetórias  singulares 
encontram,  no  Objectivity,  um  campo  propício  para  a  fertilização  de  referências 
cruzadas.
Passando  das  trajetórias  às  referências  citadas  no  livro,  encontraremos  mais 
elementos.  Destaca­se  a  enorme  quantidade  e  diversidade  de  “fontes  primárias”: 
manuais  e  atlas  produzidos  em  locais  e  períodos  amplos  (do  século  XVIII  ao  XXI); 
memórias  publicadas  por  academias  científicas  de  toda  a  Europa;  correspondência; 
vasto  material  iconográfico;  cadernos  de  campo;  textos  filosóficos  clássicos  (Kant, 
Descartes, Goethe, Bacon...). A bibliografia secundária e as referências teóricas também 
são  de  um  volume  e  diversidade  impressionante  (o  que  mostra  o  tempo  investido  na 
preparação do texto). Referências filosóficas e históricas – clássicas e contemporâneas, 
canônicas  e  “marginais”  –  versando  sobre  temas  como  a  observação;  o  papel  da 
“visualidade” e da imagem na ciência; a disciplina (com notada presença de Foucault e 
Pierre Hadot); a psicologia do self e a sua formação; a construção da persona científica; 
toda  discussão  em  torno  da  objetividade  e  subjetividade,  obviamente.  Para  capturar  e 
avaliar os diálogos que o livro estabelece com diversas correntes intelectuais, não basta 
ser apresentado à trajetória dos autores ou folhear as referências bibliográficas (embora 
esses  dois  movimentos  sejam  necessários  e  retornarei  a  eles  adiante).  No  entanto,  me 
deterei  em  um  ponto  muito  relevante.  Mais  do  que  as  presenças,  uma  ausência  é 
bastante reveladora da nova configuração historiográfica com a qual nos defrontamos: 
não há qualquer menção à obra de Thomas Kuhn159.
Qual  a  razão  de  dois  historiadores  norte­americanos,  com  passagem  pela 
Universidade  de  Harvard  –  alma  mater  de  Kuhn  –,  não  mencionarem  um  autor 

159  Não  tão  importantes  são  as  ausências  de  quaisquer  referências  a  David  Bloor,  Barry  Barnes  ou  ao 
“programa forte” e a única referência a Bruno Latour – uma menção de um artigo que não forma o corpo 
principal  dos  escritos  do  autor  francês  como  sendo  parte  da  literatura  relevante  sobre  o  papel  da 
visualização na ciência (essa mesma nota cita Fleck como um clássico sobre o tema). 
144
considerado  incontornável  (mesmo  que  seja  para  ser  criticado  ou  corrigido)?  A 
“tradição  kuhniana”  se  exauriu?  A  função  de  fornecer  um  “papel  para  a  história”  na 
explicação  da  ciência  se  completou?  Uma  explicação  mais  singela  seria  dizer  que  o 
tema,  os  problemas,  o  objeto  e  o  recorte  não  necessitam  do  diálogo  com  a  teoria 
kuhniana  da  ciência.  Talvez  isso  seja  uma  parte  da  resposta,  não  por  falta  de 
necessidade, mas por uma opção dos autores em mover­se para longe dos debates e das 
implicações provocadas por ele. 
A narrativa oferecida no Objectivity poderia ser tratada em termos kuhnianos, e 
oferecer  algumas  saídas  a  problemas  encontrados  no  seu  esquema  de  explicação  do 
desenvolvimento da ciência em pelo menos um ponto fundamental. A história contada 
por Daston e Galison pauta­se em uma sucessão de virtudes epistêmicas que pautam as 
concepções  de  ciência  e  moldam  o  self  científico.  A  objetividade  (dividida  em 
objetividade mecânica e objetividade estrutural) é uma dessas etapas, sendo precedida 
pela  noção  de  verdade­para­a­natureza  (truth­to­nature)  e  sucedida  pelo  julgamento 
treinado.  Essas  virtudes  informam  as  práticas  científicas  de  muitas  maneiras,  algumas 
bastante  semelhantes  ao  que  Kuhn  chamou  de  paradigmas.  No  entanto,  a  sucessão 
desses “paradigmas” não implica na ocorrência de revoluções e a emergência de novas 
formas não causa o ostracismo de modelos mais antigos, tradições diferentes convivem, 
são apropriadas de outras formas, deslocam as suas funções, se submetem a uma nova 
hierarquia  e  a  uma  nova  economia  epistêmica.  “Novas  virtudes  epistêmicas  passam  a 
existir; as antigas não necessariamente desaparecem” (DASTON e GALISON, 2010, p. 
41)160.  Os  autores  discutem  as  questões  de  rupturas  e  continuidades,  evolução  e 
revolução, cumulatividade e incomensurabilidade, catastrofismo e uniformidade. 
No relato do Objectivity, “as virtudes epistêmicas não substituem umas às outras 
como  uma  sucessão  de  reis.  Em  vez  disso,  elas  se  acumulam  em  um  repertório  de 
formas possíveis de conhecimento” (DASTON e GALISON, 2010, p. 113)161. 
A mudança de valores epistêmicos é metaforicamente descrita a partir de alguns 
“fenômenos  naturais”  complexos.  Pode  ser  a  chegada  da  primavera,  que  causa  o 
derretimento  da  camada  de  gelo  que  estava  cristalizada  em  um  frio  rio  do  norte.  O 
processo  começa  com  algumas  rachaduras  e  estalos,  que  se  tornam  mais  fortes, 

160  No  original:  “New  epistemic  virtues  come  into  being;  old  ones  do  not  necessarily  pass  away”. 
Tradução minha.
161 No original: “Epistemic virtues do not replace one another like a succession of kings. Rather, they 
accumulate into a repertoire of possible ways of knowing”. Tradução minha.  
145
arremessando  pedaços  de  gelo  e  ecoando  pela  floresta.  O  encanto  causado  pela 
caudalosa correnteza que arrasta os resquícios do inverno não deve obscurecer a visão 
para as múltiplas origens locais do fenômeno (DASTON e GALISON, 2010, p. 124). A 
metáfora  pode  ser  a  da  avalanche.  Primeiro,  o  deslizar  de  pequenas  quantidades  de 
material relativamente isolado; depois, condições de instabilidade permitem que eventos 
individuais,  mesmo  pequenos,  disparem  a  precipitação  de  quantidades  monstruosas  de 
neve,  pedras,  terra  etc.  É  a  combinação  complexa  entre  condições  de  instabilidade  e 
circunstâncias  contingentes  que  vai  determinar  quando  uma  avalanche  ocorre,  ou 
quando uma nova virtude epistêmica emerge. O diálogo é explícito, mas o interlocutor é 
ocultado. Há, inclusive, uma menção sútil a um termo caro a Kuhn – em um contexto 
bastante revelador. “A objetividade não é o fruto de uma evolução incremental, nem de 
uma  explosão  súbita  na  cena  científica  –  nem  uma  mudança  repentina  de  Gestalt” 
(DASTON  e  GALISON,  2010,  p.  49,  grifo  meu)162.  Assim,  a  temática  kuhniana 
aparece  de  forma  central  na  obra,  por  que  não  citá­lo?  Em  um  texto  publicado  por 
ocasião  da  comemoração  de  cinquenta  anos  da  Estrutura  das  revoluções  científicas, 
Lorraine  Daston  (2012)  se  pergunta,  em  tom  levemente  irônico,  se  algum  historiador 
das  ciências  ainda  lê  Thomas  Kuhn  atualmente.  Esse  texto  foi  preparado  para  o 
seminário organizado pela Universidade de Chicago para comemorar o cinquentenário. 
A  conferência  de  Daston  levou  o  significativo  título  de  “History  of  science  without 
structure”163. 
O  longo  parágrafo  anterior  não  deve  ser  lido  como  uma  reprovação  feita  aos 
autores,  como  uma  cobrança.  Ele  é  uma  manifestação  de  estranhamento.  É  algo  que 
considero  que  deve  ser  explicado.  A  hipótese  que  sustento  é  a  de  que  uma  das 
características  da  nova  historiografia  foi  o  afastamento  de  correntes  que  sofreram  um 
grande desgaste após as críticas feitas contra elas desde o final dos anos 1980, entre eles 
a tradição historiográfica kuhniana e os science studies.
De  todo  modo,  a  interpretação  que  esboçarei  sobre  esse  período  não  terá  o 
mesmo  propósito  daquelas  apresentadas  nos  capítulos  precedentes.  Ao  descrever  o 
surgimento  da  querela  entre  o  internalismo  e  o  externalismo  na  primeira  metade  do 
século XX, já era possível conhecer os seus desdobramentos. Ao sugerir conexões entre 
a  leitura  da  história  das  ciências  proposta  no  Leviathan  and  the  air­pump  e  a 

162 No original: “Objectivity is neither the fruit of na incremental evolution nor a sudden explosion on 
the scientific scene – nor na all­at­once Gestalt switch”. Tradução minha.
163 O aúdio da conferência está disponível em: https://vimeo.com/72313904. Acesso em 26 abr 2015.
146
tecnociência,  estava  lidando  com  um  fenômeno  social  que  já  havia  tomado  enormes 
proporções. É possível escapar a esse anacronismo, a esse whiggismo? Agora, diante de 
uma temática cuja trajetória ainda está cercada de indeterminação, diante de um futuro 
em  aberto,  devo  assumir  uma  postura  diversa.  Apesar  do  seu  componente  de 
expectativa, a história não pode se lançar na investigação do futuro.
A  historiografia  recente  marcará  o  fim  de  um  ciclo,  o  esgotamento  de  uma 
maneira  de  contar  a  história  das  ciências.  Esse  esgotamento  não  é  uma  ruptura  total, 
uma capitulação diante das críticas ou um retorno aos antigos modelos. É um processo 
de transformação que se dá sem negar completamente os avanços decorridos nas últimas 
décadas,  é  uma  tensão  entre  a  continuidade  de  um  projeto  intelectual  e  a  negação  de 
algumas  de  suas  características  e  implicações.  Os  próprios  autores  envolvidos  na 
formulação da nova forma de compreender a ciência participarão da sua reelaboração.
Para explicar a hipótese levantada acima, é preciso alongar o desvio e entender 
um  aspecto  que  considero  relevante  na  transformação  da  configuração  histórica  que 
possibilita  a  escrita  da  história  das  ciências.  É  preciso  se  perguntar  pelos  motivos  que 
levaram à transformação da historiografia. Se, ao final dos anos 1980, os historiadores 
pareciam  tão  seguros  das  suas  propostas,  tão  convictos  da  força  da  sua  abordagem,  o 
que os fez mudar? O pedido de desculpas balbuciado por Bruno Latour para defender­se 
da acusação de ser um “inimigo da ciência” marcará o início dessa história. 
Estimulado pela interpelação de um cientista (um psicólogo) sobre a sua posição 
em relação à ciência e sobre o suposto ataque desferido contra ela pelos science studies, 
Latour irá alegar inocência.
A suspeita do psicólogo soou­me bastante injusta, pois ele não parecia 
compreender  que,  nesta  guerra  de  guerrilha  travada  na  terra  de 
ninguém  entre  as  “duas  culturas”,  nós  éramos  os  que  estavam  sendo 
atacados por militantes, ativistas, sociólogos, filósofos e tecnófobos de 
todos  os  naipes,  exatamente  por  causa  do  nosso  interesse  pelo 
funcionamento  interno  dos  fatos  científicos.  Quem  –  perguntei­me  – 
ama  mais  as  ciências  do  que  esta  minúscula  tribo  científica  que 
aprendeu a divulgar fatos, máquinas e teorias com todas as suas raízes, 
vasos sanguíneos, redes, rizomas e gavinhas? Quem acredita mais na 
objetividade  da  ciência  do  que  aqueles  que  insistem  na  possibilidade 
de transformá­la em objeto de pesquisa? (LATOUR, 2001, p. 15, grifo 
no original)  
147
Na  explicação  de  Latour,  a  suspeita  que  os  cientistas  alimentam  decorre  da 
forma como a divisão social do trabalho intelectual foi organizada, da maneira como a 
natureza  e  a  cultura  foram  cindidas  e  transformadas  em  polos  opostos.  Foram  os 
filósofos do começo da Modernidade – Descartes, Hume, Kant etc. – que deram forma a 
tal  projeto,  que  deram  feição  ao  “acordo  modernista”  (LATOUR,  2001,  pp.  21­30). 
Latour irá tentar demonstrar que esse acordo é obra de duas atividades combinadas, De 
um  lado,  o  processo  de  tradução  (ou  mediação)  que  cria  esses  híbridos  de  natureza  e 
cultura,  que  mistura  palavras  e  coisas,  que  confunde  ontologia  e  epistemologia.  De 
outro,  a  purificação,  que  trata  de  erigir  as  barreiras  entre  esses  campos,  esconder  as 
mediações, recortar objetos puros (LATOUR, 1994). 
Não  me  interessa  aqui,  no  entanto,  detalhar  a  proposta  de  Latour.  O  que  me 
interessa neste momento é a forma como ele constrói a sua defesa. A reação de Latour – 
que propõe uma leitura diferente para a história intelectual da modernidade e se coloca 
fora  dela  (a  si  mesmo  e  seus  companheiros  de  science  studies)  –  é  proporcional  ao 
tamanho da contenda que tomou o mundo acadêmico: as Guerras da Ciência.
As  Guerras  da  Ciência  foram  uma  série  de  disputas  intelectuais  entre  dois 
grupos,  que,  apesar  da  relativa  dispersão  interna,  se  identificavam  por  uma  atitude 
comum em relação à ciência e seu papel na modernidade164. De um lado, o grupo que 
se  considerou  pró­ciência,  formado  por  cientistas  e  filósofos;  do  outro  lado,  estavam 
cientistas  sociais,  historiadores  e  alguns  poucos  filósofos  que  pretendiam  analisar  a 
ciência  a  partir  de  perspectivas  mais  ou  menos  influenciadas  pelo  relativismo,  pelo 
sócio­construtivismo,  pelo  desconstrucionismo  ou  pelas  várias  formas  de  pós­
modernismo.  Estão  incluídos  aí  vários  autores  que  pertenciam  aos  science  studies  e  à 
nova historiografia das ciências descrita no capítulo anterior.
O  duelo  entre  “amigos”  e  “inimigos”  da  ciência  tem  uma  forma  um  tanto 
esquisita. Ao longo dos últimos anos da década de 1980 e primeiros da década de 1990, 
principalmente  nos  Estados  Unidos,  diversos  cientistas  começam  a  se  insurgir  contra 
certa  maneira  de  interpretar  a  ciência  que  provinha  de  áreas  da  história,  das  ciências 
sociais e da filosofia. Autores como Paul Gross, Norman Levitt, Lewis Wolpert, Susan 
Haack,  Alan  Sokal,  entre  outros,  passam  a  denunciar  contundentemente  essas  “novas 

164 A descrição e análise sobre as Guerra da Ciências que apresento a seguir são amplamente baseadas na 
pesquisa  que  realizei  para  a  dissertação  de  mestrado,  já  publicada  (ÁVILA,  2013).  Aqui  neste  texto, 
extrapolarei as conclusões e análises desenvolvidas para explicar a influência desse fenômeno na escrita 
da história das ciências nas últimas duas décadas.
148
interpretações”  como  charlatanismo,  relativismo  inconsequente,  solipsismo,  hipocrisia 
etc. Na narrativa que eles oferecem, trata­se de uma reação de um grupo preocupado em 
resguardar  a  ciência  e  a  civilização  ocidental  contra  os  ataques  que  vinham  sendo 
desferidos contra elas. Temas às vezes tão distantes quanto a sociologia da ciência “pós­
mertoniana”, o construtivismo social, a epistemologia feminista, a filosofia de Richard 
Rorty, a medicina alternativa, os estudos pós­coloniais, o “afrocentrismo” são tratados 
como ameaças à ciência e à razão. Como resumiu Mario Bunge (1996, p. 97) – em um 
texto no qual enaltece a intolerância contra o que considera charlatanismo na academia:
Os  inimigos  acadêmicos  da  própria  razão  de  ser  da  universidade 
podem  ser  agrupados  em  dois  bandos:  os  anticientistas,  que 
frequentemente  consideram­se  “pós­modernistas”,  e  os 
pseudocientistas165.   
A  querela  se  torna  um  espetáculo  midiático  a  partir  do  famoso  “caso  Sokal”, 
quando o físico norte­americano escreve um artigo parodiando o estilo “pós­moderno” e 
defendendo, a partir de tópicos retirados da ciência contemporânea, uma “ciência pós­
moderna  liberatória”  que  se  tornaria  “um  instrumento  concreto  para  a  práxis  política 
progressista”  (SOKAL,  1999,  pp.  231­273).  O  artigo  foi  publicado  em  uma  revista 
dedicada  aos  estudos  culturais  e  logo  desmascarado  como  uma  farsa,  montada  para 
exibir  a  incapacidade  do  “relativismo  pós­moderno”  de  possuir  critérios  minimamente 
rigorosos  a  partir  dos  quais  pudesse  julgar  a  validade  de  uma  afirmação  ou  de  uma 
teoria.  O  “caso  Sokal”  iria  supostamente  expor  ao  público  as  fragilidades  do  discurso 
“relativista”.  Ele  mostra  também  que  a  disputa  é,  acima  de  tudo,  política.  Trata­se  de 
uma defesa da ciência (e da visão científica do mundo, de modo mais geral) como forma 
privilegiada de ação. Como única forma capaz de compreender efetivamente a realidade 
e, assim, atuar sobre ela. Defender a autoridade da ciência é a mais importante tarefa do 
mundo civilizado, atacá­la (ou seja, dirigir­lhe críticas) significa escancarar os portões 
do  paraíso  para  as  hordas  de  bárbaros  que  nos  ameaçam.  Os  “defensores  da  ciência” 
reservam a capacidade de falar sobre a ciência para aqueles que compartilham de certa 
visão sobre ela. A história (ou sociologia, filosofia) das ciências pode ser escrita, desde 
que obedeça a uma série de concepções, desde que mantenha a ciência no seu pedestal, 
desde que contribua para aumentar o seu poder e a reverência que a ela dedicamos.  

165 No original: “The academic enemies of the very raison d’être of the university can be grouped into 
two  bands:  the  antiscientists,  who  often  call  themselves  ‘postmodernists’,  and  the  pseudoscientists”. 
Tradução minha 
149
Algumas questões se recortam ao fundo: será que apenas concepções teóricas e 
epistemológicas  “objetivistas”,  comprometidas  com  a  verdade  e  a  realidade  enquanto 
entidades  ahistóricas,  serão  capazes  de  nos  conduzir  a  uma  efetiva  atuação  política 
crítica?  Os  relativistas,  construtivistas  ou  outras  espécies  de  críticos  desse  modelo, 
serão sempre culpados de “quietismo” e, em último caso, de conivência com qualquer 
arbitrariedade,  simplesmente  porque  não  acreditam  na  existência  de  um  padrão 
universal  de  verdade  contra  o  qual  seja  possível  mensurar  diferentes  conjuntos  de 
asserções?
Essas  são  provavelmente  as  principais  implicações  que  se  apresentam  nas 
Guerras  da  Ciência,  mas  não  só  aí,  como  em  uma  enorme  variedade  de  controvérsias 
intelectuais travadas ao longo dos últimos anos. Elas trazem à tona questões candentes 
para a discussão em torno do conhecimento e da ciência e, sobretudo, para as diversas 
articulações  e  relações  entre  a  ciência  e  parcelas  mais  amplas  da  sociedade  e  da 
atividade  política.  E  guardam  um  paradoxo:  só  uma  ciência  livre  da  política  e 
independente da sociedade pode nos dar ferramentas para agir politicamente e intervir 
na sociedade. 
Acredito  que  esse  ponto  de  vista  é  equivocado  em  diversos  pontos,  mas  o  que 
está em jogo aqui é a forma como essas críticas foram recebidas e metabolizadas pela 
historiografia recente. Acima de tudo, os “defensores da ciência” desenham uma figura 
bastante  distorcida  das  abordagens  às  quais  se  opõem.  Muitas  vezes  são  feitas 
simplificações  grosseiras  e  interpretações  forçadas.  Ainda  assim,  o  ponto  fulcral  não 
reside aí. Há realmente uma dificuldade, tanto epistemológica quanto política, na adesão 
a  uma  perspectiva  que  recusa  a  objetividade.  E  foi  justamente  ao  enfrentar  essa 
dificuldade,  ou  seja,  ao  tentar  refutar  as  acusações  de  “quietismo”  político,  de 
conivência  e  (a  mais  radical)  de  cumplicidade  que  a  historiografia  se  deparou  com  a 
exigência de revisão de algumas das suas perspectivas.
Essa  questão  foi  atacada  tangencialmente  em  grande  parte  da  literatura  de 
análise sobre a ciência da segunda metade do século XX. Os autores mais sofisticados e 
consistentes não excluem a realidade (nem a objetividade e nem a verdade, mas esses 
são temas mais delicados) de suas formulações. Eles apenas não a enquadram mais em 
sua  moldura  clássica,  absolutamente  apartada  da  consciência,  do  conhecimento,  do 
discurso,  da  linguagem  e  da  história.  A  realidade  pode  ser  vista  muito  mais  como  um 
território em disputa, resultado de uma série de relações de força. Isso não os impede de 
150
agir sobre a realidade e, inclusive, de emitir juízos a seu respeito e às condutas de outras 
pessoas  ou  grupos.  Ainda  é  possível  justificar  argumentos  em  termos  de  abrangência, 
eficácia e, digamos, desempenho. E, o que é importante, é possível suspeitar sempre do 
enunciador, do “portador do discurso”. É possível, sobretudo, estar alerta para que tipos 
de organizações sociais dão origem e condições de possibilidade para certas construções 
cognitivas  e,  reciprocamente,  que  tipos  de  organizações  sociais  essas  construções 
cognitivas, permitem, legitimam, endossam e normatizam. 
Nesse sentido, a eficácia do discurso da ciência depende da completa correlação 
entre  ontologia  e  realidade.  Na  verdade,  na  convicção  de  que  apenas  uma  forma  de 
ontologia corresponde à realidade, e esta é a ciência. Todas as outras formas sociais de 
se relacionar com o ambiente são meras superstições, especulações metafísicas, desvios 
ideológicos.  A  historiografia  inspirada  na  “tradição  kuhniana”  e  associada  aos  science 
studies tentou, nos anos 1980, mostrar­nos que também a ciência não consegue capturar 
a  realidade  em  sua  ontologia.  Enquanto  a  visão  de  mundo  herdada  do  século  XIX 
afirmava  a  identidade  entre  o  conhecimento  científico  e  a  natureza,  a  história  das 
ciências declarava, conforme um trecho já citado, que “a medida que reconhecemos o 
status convencional e artefatual das nossas formas de conhecimento, nos colocamos em 
posição  de  perceber  que  os  responsáveis  por  aquilo  que  sabemos  somos  nós  e  não  a 
realidade” (SCHAFFER e SHAPIN, 2011, p. 344). 
Após  esse  período  e,  talvez,  sob  o  impacto  das  Guerras  da  Ciência,  a 
historiografia  adotou  outra  estratégia  usando  os  mesmos  materiais.  Ela  não  acredita 
mais que a natureza não participa do processo de construção do conhecimento, ela não 
duvida  da  existência  da  realidade.  As  questões  levantadas  nas  Guerras  da  Ciência 
provocaram  uma  reflexão  e  uma  revisão  cuja  profundidade  ainda  é  difícil  medir.  Mas 
essa será uma das tarefas desse capítulo. 
É  significativo  que  a  resposta  elaborada  por  Latour  –  tido  como  um  autor  dos 
mais “radicais” – tenha a forma de um pedido de desculpas, alegue certo mal­entendido, 
proponha  uma  reconciliação  (“estamos  do  mesmo  lado”,  ele  parece  dizer).  É  preciso 
observar que esse tipo de reação foi bastante comum, em conjunto com outra resposta 
recorrente que foi a esquiva, o não­reconhecimento nas críticas que eram dirigidas aos 
programas  intelectuais  encampados  pelos  science  studies  e  pela  historiografia  que 
frutificou em seu contato. Elas aparecem, por exemplo, na importante coletânea aditada 
por Harry Collins e Jay Labinger, The one culture. Nela, diversos autores de ambas as 
151
partes,  especialmente  os  acusados  de  atacar  a  ciência,  parecem  simular  um  consenso. 
No entanto, as questões mais centrais quase não são discutidas diretamente. Quando o 
são, não estabelecem diálogo com as posições opostas.
Obviamente,  os  estudos  coligidos  em  A  esperança  de  Pandora  (que  formam  a 
resposta de Bruno Latour à Guerra das Ciências) não propõem um recuo em relação às 
posições defendidas anteriormente. Pelo contrário, a sociologia das translações, a teoria 
ator­rede,  o  parlamento  das  coisas,  o  coletivo  de  humanos  e  não­humanos  simétricos 
tenta  substituir  “todo  o  artefato  da  epistemologia”  (LATOUR,  2001,  p.  338).  Assim, 
esse  difícil  equilíbrio  entre  preservar  os  avanços  das  décadas  anteriores  sem  “ferir  as 
sensibilidades” é uma das marcas importantes do período em questão. Ela não é apenas 
uma  estratégia  retórica  para  evitar  novos  escândalos.  Não  devemos  supor  que  a 
historiografia “se acovardou” diante das críticas. É uma fase de crítica externa e interna, 
de reflexões provocadas por motivos alheios aos dos historiadores, mas profundamente 
sentidos. A resposta de Latour é útil para o meu propósito por ainda mais dois motivos. 
Em  primeiro  lugar,  ele  aponta  a  dimensão  política  da  briga  entre  formas  de 
interpretar  a  ciência  de  forma  bastante  clara  (embora,  mais  uma  vez,  esquivando­se). 
Faz  parte  do  seu  argumento  central  a  ideia  de  que  todo  o  acordo  modernista  e  toda  a 
briga simulada pelos dois lados obedece a um desejo mais arraigado de silenciar o povo, 
se  constitui  como  um  “medo  do  governo  da  massa”,  é  uma  estratégia  para  deixar  a 
maioria  ausente  dos  jogos  de  poder.  Do  Filósofo­Rei  à  tecnocracia,  a  discussão  em 
torno  da  autoridade  da  ciência  tem  como  efeito  principal  a  criação  de  uma  arena 
decisória excludente.
O segundo ponto é a crítica à divisão da história das ciências em internalismo e 
externalismo  e  a  proposta  de  um  modelo  que  supere  a  querela.  A  ciência  não  é  um 
núcleo intelectual imerso em um contexto social, ela é uma forma de associar humanos 
e  não­humanos  e  arregimentar  recursos  em  múltiplos  locais,  uma  mediadora  de 
atividades  e  objetivos,  um  sistema  circulatório,  uma  rede  de  circuitos  que  conecta 
agentes diversos. Através dos exemplos de Pasteur ou Joliot, é possível ver o esforço do 
autor para oferecer uma saída à antiga dicotomia. A saída de Latour passa por mostrar 
que  não  há  como  determinar  se  uma  atividade  é  científica  a  priori.  Reunir­se  com 
políticos  e  bombardear  um  átomo  de  urânio  com  nêutrons  são  atividades  de  natureza 
indistinta. São duas formas de negociação necessárias à prática de determinada ciência 
em  determinado  momento.  A  historiografia  (e  mesmo  as  correntes  mais  simpáticas  a 
152
essa  visão)  não  encampou  incondicionalmente  nem  unanimemente  a  “ontologia  do 
termo  único”  de  Latour.  O  principal  aqui  é  perceber  que,  nesse  momento,  a  solução 
política passava por abandonar ou superar a divisão entre aquilo que é interno e aquilo 
que é externo à ciência.
Antes de prosseguir na avaliação das implicações das Guerras da Ciência para a 
historiografia, outro ponto é digno de nota. A disputa criou um espaço constante e não 
residual para uma literatura alinhada com os “defensores da ciência”. Ela mostrou que a 
interpretação  historiográfica  que  havia  se  tornado  hegemônica  estava  agora  sujeita  a 
críticas duras e constantes. É o caso, por exemplo, de Paul Boghossian (2012) em Medo 
do conhecimento. Nesse livro, publicado originalmente em 2006, o filósofo continua a 
pregação  contra  o  relativismo  e  o  construtivismo  aberta  nas  Guerras  da  Ciência. 
Boghossian  –  que  já  havia  saído  em  defesa  de  Sokal  nas  Guerras  da  Ciência  –  se 
empenha  em  refutar  cada  aspecto  do  “relativismo”,  de  Wittgenstein  a  Latour.  Sua 
conclusão  é  triunfante.  Para  ele,  “o  ponto  positivo  [da  sua  investigação]  é  que  não 
conseguimos  encontrar  nenhum  bom  argumento  para  as  teses  construtivistas” 
(BOGHOSSIAN,  2012,  p.181).  Outro  exemplo  dessa  literatura  é  o  livro  A  nice 
derangement  of  epistemes,  uma  história  intelectual  do  “pós­positivismo”  no  estudo  da 
ciências escrita por John Zammito (2004). É um texto que não pretende ser neutro em 
relação  às  questões  abordadas,  tomando  decididamente  a  defesa  da  objetividade  e  do 
empirismo  contra  o  exagero  e  a  extravagância  das  asserções  dos  “teóricos  pós­
modernos”.
Esses  dois  livros  parecem  ter  uma  motivação  comum,  apesar  das  grandes 
diferenças  (Zammito  segue  um  modelo  mais  narrativo  e  cronológico  enquanto 
Boghossian se vale de uma análise filosófica centrada em argumentos e refutações). Os 
autores se empenham em analisar em profundidade certas posições teóricas não porque 
elas oferecem um avanço na forma de compreender a ciência, não porque eles levam a 
sério as propostas que surgem nos meios “construtivistas” ou “relativistas”, mas porque 
essas propostas se tornaram muito influentes e passaram a ameaçar posições que esses 
autores  consideram  centrais  para  a  defesa  da  ciência  e  da  vida  política.  É  uma 
continuação  dos  argumentos  das  Guerras  da  Ciência,  agora  transpostos  das  polêmicas 
inflamadas  e  da  troca  de  acusações  para  a  análise  detida,  para  a  avaliação  mais 
demorada.  As  análises  da  ciência  vinculadas  ao  construtivismo,  como  é  o  caso  da 
historiografia  que  examino  aqui,  são  agora  alvo  permanente  de  crítica  externa.  Até  o 
153
final dos anos 1980, a rápida expansão desse grupo ocorreu fora de grandes circuitos, no 
interior de um grupo relativamente pequeno e marginal. O seu crescimento colocou­os 
no centro de uma grande polêmica e de debates intensos. Essa nova posição modifica a 
postura da historiografia das ciências, mas como?
A  própria  Lorraine  Daston  (2009)  discorda  desse  argumento.  Para  ela,  as 
Guerras  da  Ciência  foram  uma  tempestade  passageira.  As  causas  que  ela  atribui  à 
ruptura  entre  a  história  das  ciências  e  os  science  studies  são  de  outra  ordem.  O 
afastamento  provém  da  crescente  profissionalização  dos  historiadores  das  ciências, 
especialmente  na  Europa  e  nos  EUA,  que  vão  ocupar  posições  universitárias  em 
departamentos  de  história  e  desenvolver  relações  com  a  comunidade  mais  ampla  dos 
historiadores.  Em  segundo  lugar,  e  relacionado  a  isso,  esses  historiadores  passam  a 
buscar em outras fontes a solução dos seus problemas, na verdade, passam a formular os 
problemas  de  pesquisa  de  maneira  diferente  da  forma  como  os  formulava  os  science 
studies.  Os  interesses  dos  dois  grupos  profissionais  divergem.  Os  historiadores  das 
ciências  se  tornam,  definitivamente,  historiadores.  Não  discordo  completamente  dessa 
avaliação;  pelo  contrário,  considero  que  vários  argumentos  levantados  por  Daston  são 
centrais na explicação da nova historiografia. Voltaremos a eles. Mas considero também 
que a sua avaliação tem muito de desejo e expectativa e que o completo descrédito que 
ela  dá  às  Guerras  da  Ciência  como  uma  força  capaz  de  provocar  mudanças  profundas 
revela  uma  tentativa  de  racionalização  do  processo166.  Levarei  a  sério  a  sugestão  de 
Lorraine Daston – embora um pouco modificada. Ao invés de anunciar que a causa do 
afastamento entre os science studies e a história das ciências foi a maior aproximação 
dessa  última  com  a  história  tout  court,  considerarei  esta  aproximação  como  uma  das 
consequências.  O  que  isto  significa?  O  que  a  história  das  ciências  aprendeu  com  a 
história nas últimas duas décadas? Como isto se manifesta no Objectivity?
Após essa digressão, talvez longa demais, retorno ao ponto que a motivou. Uma 
das  consequências  da  transformação  foi  o  afastamento  da  história  das  ciências  da 
“tradição  kuhniana”  e  do  campo  dos  science  studies,  alvos  preferidos  dos  “defensores 
da ciência”. Os historiadores passaram a defender um programa próprio que não negava 

166  A  própria  trajetória  da  autora  e  de  Peter  Galison,  por  exemplo,  revela  a  distância  entre  história  e 
história das ciências mesmo nos EUA e na Europa. Enquanto Galison está no departamento de história da 
ciência  da  Universidade  de  Harvard  (muito  mais  ligado  ao  Instituto  de  Física  do  que  às  faculdades  de 
humanidades),  Daston  transita  entre  o  Instituto  Max  Planck  para  a  História  da  Ciência,  em  Berlin,  e  a 
Universidade de Chicago.
154
o diálogo e a influência dos science studies, mas que marcava uma diferença com ele. 
Isso  implica,  entre  outras  coisas,  em  uma  carga  menor  de  argumentos  teóricos 
generalizantes  presentes  nas  obras,  ou  mais  cuidado  na  enunciação  desse  tipo  de 
argumentos  (VAN  DAMME,  2014,  p.  13).  Essa  história  das  ciências  não  pretende 
oferecer  um  modelo  global  de  desenvolvimento  das  ciências,  não  é  uma  teoria  das 
ciências.  Parte  significativa  da  nova  produção  poderia,  inclusive,  ser  colocada  sob  a 
rubrica  de  “micro­história”  (se  fizermos  um  uso  pouco  rigoroso  do  termo,  já  que  a 
escala do objeto não inviabiliza, por princípio, a generalização da explicação). Mesmo 
em  um  livro  ambicioso  como  o  analisado  neste  capítulo,  os  autores  são  cautelosos 
quanto à universalidade do argumento: 
O escopo deste livro é amplo, mas não é abrangente. Ele não abrange 
toda  a  ciência,  todos  os  cientistas,  nem  mesmo  todas  as  imagens 
científicas  dos  lugares  e  períodos  que  trata.  Ele  é  sobre  uma  classe 
particular  de  imagens  a  serviço  de  um  aspecto  particular  da  ciência: 
atlas científicos como uma expressão de hierarquias de historicamente 
específicas de virtudes epistêmicas (DASTON e GALISON, 2010, p. 
48)167.
Esse  novo  programa  já  vinha  sendo  ensaiado  por  Peter  Galison  e  Lorraine 
Daston  de  maneiras  isoladas,  o  Objectivity  aparece  como  um  local  privilegiado  para 
percebê­lo em ação. Não é simples designar o tipo de história que os autores ajudaram a 
construir  desde  os  anos  1990  e  que  praticam  no  Objectivity,  mas  podemos  recorrer  a 
expressões  que  tiveram  larga  circulação  e  que  nos  ajudam  a  desbravar  esse  território 
historiográfico.  Podemos  então  falar  de  duas  correntes:  a  epistemologia  histórica  e  a 
história cultural das ciências. A primeira informa teoricamente a opção de lidar com o 
entrelaçamento entre ética e epistemologia, de perceber a conotação moral associada às 
práticas  cognitivas  e  de  relacionar  esses  tópicos  à  produção  de  um  self  científico 
historicamente localizado; já a história cultural das ciências vai se manifestar na escolha 
das  imagens  como  local  onde  buscar  por  essas  questões  teóricas  e  no  tratamento 
dispensado às fontes iconográficas. 
Se o livro tem como proposta realizar uma história da objetividade, não parece 
ser  difícil  afirmar  que  estamos  diante  de  uma  pesquisa  de  epistemologia  histórica.  É 
intenção  declarada  dos  autores  mostrar  os  itens  do  conhecimento  como  sujeitos  às 

167 No original: “The scope of this book is broad, but it is not comprehensive. It does not encompass all 
science,  all  scientists,  or  even  all  scientific  images  for  the  places  and  periods  it  treats.  It  is  about  a 
particular  class  of  images  in  the  service  of  a  particular  aspect  of  science:  scientific  atlases  as  an 
expression of historically­specific hierarchies of epistemic virtues”. Tradução minha.   
155
dinâmicas  históricas,  à  corrosão  das  temporalidades.  É  parte  do  argumento  defendido 
por  Galison  e  Daston  a  noção  segundo  a  qual  a  epistemologia  não  pode  abrir  mão  da 
historicidade, sob pena de deixar escapar uma parte fundamental da sua explicação. A 
objetividade  é  um  produto  da  história,  assim  como  outras  categorias  epistemológicas 
fundamentais. Os autores argumentam que a epistemologia foi imaginada para se opor 
aos vícios epistêmicos, tem como função primordial criar estratégias para combater os 
obstáculos ao conhecimento (DASTON e GALISON, p. 377). 
Toda  epistemologia  começa  no  medo  –  medo  de  que  o  mundo  seja 
muito labiríntico para ser trilhado pela razão; medo de que os sentidos 
sejam  muito  débeis  e  o  intelecto  muito  frágil;  medo  que  a  memória 
desvaneça,  mesmo  entre  passos  adjacentes  de  uma  demonstração 
matemática; medo de que a autoridade a convenção ceguem; medo de 
que  Deus  guarde  segredos  e  que  os  demônios  iludam  (DASTON  e 
GALISON, 2010, p. 372)168. 
O  recurso  à  história  fornece  perspectivas  diferentes,  coloca  novos  problemas. 
Não  estando  imbrincada  na  luta  contra  os  erros  que  bloqueiam  o  avanço  do 
conhecimento, a história pode se posicionar de forma a perceber que há uma disputa em 
curso; pode apontar para as diferentes configurações que essa disputa já assumiu; pode 
perceber o evolver da temporalidade como uma construção de alternativas.
Diante disto, ainda resta uma questão: o que diferencia a epistemologia histórica 
da história intelectual, da história dos conceitos ou da história das ciências? Uma breve 
história da expressão nos ajudará na resposta169.
A ideia de uma epistemologia histórica surge na filosofia de Gaston Bachelard e 
se estende nas reflexões sobre as ciências dos seus seguidores franceses, como Georges 
Canguilhem  e  Michel  Foucault170.  Nessa  versão,  o  uso  da  expressão  remete  a  uma 
tomada de posição contra a filosofia das ciências praticada pelo neopositivismo, com a 
sua tendência logicista, analítica, refratária à história. A epistemologia histórica lançava 
mão  de  estudos  de  caso  retirados  do  passado  da  ciência.  Chamava  a  atenção  para  a 
relação  necessária  entre  história  e  filosofia  das  ciências  (utilizavam  um  modelo  de 
história das ciências semelhante ao descrito no Capítulo 1 desta tese)171. Em seguida, 

168  No  original:  “All  epistemology  begins  with  fear  –  fear  that  the  world  is  too  labyrinthine  to  be 
threaded by reason; fear that the senses are too feeble and the intellect too frail; fear that memory fades, 
even between adjacent steps of a mathematical demonstration; fear that authority and convention blind; 
fear that God may keep secrets and Demons deceive”. Tradução minha.
169 Boa parte dessa história baseia­se na competente exposição de Yves Gingras (2010).
170 A expressão aparece pela primeira vez em francês no título de um livro de Dominique Lecourt sobre 
Bachelard  publicado  em  1969,  L’épistémologie  historique  de  Gaston  Bachelard.  O  próprio  Bachelard 
nunca utilizou a expressão (GINGRAS, 2010).
156
essa  tradição  francesa  se  encontra  com  o  marxismo  que,  talvez  em  analogia  com  o 
materialismo  histórico,  busca  elaborar,  desde  os  anos  1970,  uma  epistemologia 
histórica. Isto é, esses autores tentavam utilizar as reflexões elaboradas por Marx e pelo 
marxismo  para  compreender  como  as  formas  de  conhecimento  são  afetadas  pelo 
processo histórico. Em ambos os casos, no entanto, a referência à expressão significava 
atribuir  uma  qualidade  à  epistemologia,  que  se  torna  atenta  aos  processos  históricos  e 
sua  influência  no  desenvolvimento  do  conhecimento  em  oposição  às  formas  mais 
normativas. Trata­se aqui de uma forma de praticar a epistemologia, não de uma forma 
de praticar a história. De que maneira essa expressão foi se tornar uma das bandeiras de 
uma  renovação  na  história  das  ciências?  Uma  renovação  que  passava  por  assumir  a 
maior afinidade disciplinar da história das ciências com a história tout court?
Antes  de  responder  a  essas  questões,  é  preciso  lembrar  que  a  epistemologia 
histórica não é, atualmente, monopólio desse ramo da nova historiografia. Ela continua 
sendo usada por filósofos que seguem a tradição francesa, por epistemólogos marxistas 
contemporâneos e por uma diversidade de autores não necessariamente filiados a essas 
tradições (especialmente depois da popularização da expressão).
Ao  que  tudo  indica,  a  expressão  é  posta  novamente  em  circulação  a  partir  da 
criação do Instituto Max Planck para a História da Ciência, em 1994 (VAN DAMME, 
2014, p. 12). Lorraine Daston é convidada para ser uma das diretoras do recém­criado 
Instituto,  juntamente  com  Jürgen  Renn  e  Lorenz  Krüger.  O  primeiro  relatório  anual 
estabelece que: “o desenvolvimento de uma ‘epistemologia histórica’ é uma das metas 
de  pesquisa  centrais.  Ela  deve  incluir  uma  compreensão  histórica  do  desenvolvimento 
de  categorias  fundamentais  do  pensamento  científico.”  (FIRST  ANUAL  REPORT, 
1994)172.  Da  mesma  forma,  em  um  dos  primeiros  textos  publicados  pelo  Instituto, 
Jürgen  Renn  (1994)  propõe  uma  compreensão  da  ciência  que  integre  efetivamente  as 
estruturas  cognitivas  e  sociais  que  compõem  a  ciência.  Essa  tarefa  caberia  à 
epistemologia  histórica.  O  autor  critica  a  suposta  interdisciplinaridade  daquilo  que  foi 
designado  como  “História  e  filosofia  da  ciência”,  asseverando  que,  apesar  das 
tentativas,  os  dois  campos  permanecem  isolados  (a  mesma  crítica  já  havia  sido 

171 Também nos anos 1930, Ludwik Fleck realizou um movimento semelhante e colocou a história no 
centro  das  preocupações  da  sua  epistemologia.  As  citações  a  sua  obra  na  nova  historiografia,  quando 
aparecem, são sempre de forma marginal, sem diálogo efetivo.
172  No  original:  “The  development  of  an  ‘historical  epistemology’  is  a  central  research  goal.  It  should 
comprise  an  historical  understanding  of  the  development  of  fundamental  categories  of  scientific 
thinking”. Tradução minha.
157
formulada  por  Thomas  Kuhn  no  final  dos  anos  1960).  A  epistemologia  histórica  seria 
essa empreitada efetivamente interdisciplinar, que dá conta da complexidade da ciência. 
Para  o  autor,  essa  nova  “teoria  histórica  do  conhecimento  científico”  seria  mais 
competente para interpretar a realidade das ciências ao final do século XX e colaboraria 
para  reverter  a  tendência  dos  estudos  filosóficos  que  pensam  a  ciência  de  forma 
independente do seu contexto de produção e emergência (RENN, 1994). Assim, ela não 
se proporia a conjugar a história (para explicar as estruturas sociais) e a filosofia (para 
explicar  as  estruturas  cognitivas),  mas  realizaria  uma  análise  que  leva  em  conta  esses 
dois  conjuntos,  compreendendo­os  como  parte  de  um  mesmo  enquadramento.  As 
tensões  entre  as  análises  internalistas  e  “contextualistas”  (o  termo  é  do  autor)  seriam 
superadas  por  uma  teoria  que  lida  com  a  “a  emergência  do  pensamento  científico  em 
seu contexto cultural e social” (RENN, 1994, p. 4)173. A tentativa ainda preserva muito 
do vocabulário das correntes que pretende ultrapassar.
Como  podemos  perceber,  essa  é  uma  ação  coletivamente  organizada  em  torno 
do  Instituto  Max  Planck174.  O  esforço  na  consolidação  de  um  programa  de  pesquisa 
aparece  também  em  um  dos  primeiros  textos  de  Lorraine  Daston  sobre  a  história  da 
objetividade científica, no qual a autora propõe uma definição do que seja epistemologia 
histórica175. Apesar disso, a posição de Daston é significativamente diferente daquela 
defendida por seu colega.
O  que  compreendo  por  epistemologia  histórica  é  a  história  das 
categorias  que  estruturam  o  nosso  pensamento,  que  modela  a  nossa 
concepção da argumentação e da prova, que organiza nossas práticas, 
que certifica nossas formas de explicação e que dota cada uma dessas 
atividades de uma significação simbólica e de um valor afetivo. Essa 
epistemologia histórica pode (e de fato, ela deve) remeter­se à história 
das ideias e das práticas, assim como que à história das significações e 
dos  valores  que  constituem  as  economias  morais  das  ciências 
(DASTON, 2008, p. 367).176  

173 No original: “the emergency of scientific thinking within its cultural and social contexts”. Tradução 
minha.
174  Um  exemplo  mais  recente  mostra  a  vitalidade  e  a  amplitude  desse  projeto,  que  continua  sendo 
encampado ativamente pelo Instituto Max Planck. Em um livro sobre a história da filosofia das ciências 
no  século  XX  publicado  originalmente  em  2010,  Hans­Jörg  Rheinberger  (que  era,  à  época,  diretor  do 
Instituto) defende que a principal característica dessa disciplina ao longo do século passado foi justamente 
a historicização da epistemologia. De tal maneira que, para ele, a epistemologia pode ser definida (sem 
qualquer apelo a adjetivos) como “la réflexion qui porte [...] sur les conditions historiques sous lesquelles, 
et les moyens avec lesquels les choses sont transformées em objects de savoir” (RHEINBERGER, 2014, 
p. 5). Não por acaso, o ensaio foi intitulado originalmente como On historicizing epistemology.  
175 O texto foi publicado em 1995. Utilizo aqui a sua edição francesa, que apareceu em 2008. Em 1992, 
Daston  e  Galison  publicam  juntos  o  primeiro  texto  sobre  o  tema.  Ambos  retornariam  pontualmente  a 
tratar  a  questão  individualmente,  até  retornarem  ao  problema  para  trabalhar  no  que  se  tornaria  o 
Objectivity.
158
Essa  longa  citação  sintetiza  de  forma  exemplar  o  programa  levado  a  cabo  pela 
nova  historiografia  das  ciências.  Nela,  a  epistemologia  histórica  aparece  claramente 
como  história;  uma  história  que  mira  o  pensamento,  mas  também  as  práticas,  que 
engloba  a  razão  e  o  afeto,  que  se  preocupa  com  a  materialidade  e  a  significação.  Ao 
tratar  a  objetividade  como  uma  virtude  epistêmica,  Lorraine  Daston  e  Peter  Galison 
estão operando com maestria esse programa. Na verdade, os autores vão apontar como a 
objetividade  é  uma  das  formas  de  disciplina  do  self,  uma  maneira  particular  de 
constranger certos traços do sujeito do conhecimento ao mesmo tempo em que cultiva e 
ressalta  outras  características.  “De  sábio  a  trabalhador  a  expert  treinado;  de  imagem 
racionalizada a imagem mecânica a imagem interpretada. Esse epigrama, embora muito 
esquemático, liga a história epistemológica da imagem à epistemologia ética do autor­
cientista”  (DASTON  e    GALISON,  p.  357)177.  Esse  resumo  oferecido  pelos  autores 
explicita  bem  as  suas  pretensões.  Ele  parece  nos  levar  a  crer  que  a  historicização  da 
epistemologia  transforma  epistemologia  histórica  e  história  epistemológica  em 
expressões intercambiáveis. 
Para compreender melhor a forma como os autores historicizam a epistemologia, 
devo  retraçar  brevemente  a  história  narrada  no  livro.  Esse  percurso  permitirá  apontar 
para algumas das características dessa interpretação e retirar delas algumas implicações 
historiográficas.
Antes  da  emergência  da  objetividade,  outros  traços  de  personalidade  eram 
valorizados e percebidos como relevantes para retratar a natureza e descrever o mundo. 
Como já afirmei acima, antes da objetividade havia a verdade­para­a­natureza (truth­to­
nature).  “A  verdade­para­a­natureza,  como  a  objetividade,  era  historicamente 
específica. Ela emergiu em um tempo e um lugar particular e tornou possível uma forma 
particular  de  ciência  –  uma  ciência  sobre  as  regras  da  natureza  e  não  sobre  as  suas 
exceções”  (DASTON  e  GALISON,  2010,  p.  68)178.  A  objetividade  não  define  a 

176  No  original:  “Ce  que  j’entends  par  épistémologie  historique  est  l’histoire  des  catégories  qui 
structurent notre pensée, qui modèlent notre conception de l’argumentation et de la preuve, qui organisent 
nos  pratiques,  qui  certifient  nos  formes  d’explication  et  qui  dotent  chacune  de  ces  activités  d’une 
signification symbolique et d’une valeur affective. Cette épistémologie historique peut (et en fait, elle le 
doit)  renvoyer  à  l’histoire  des  idées  e  des  pratiques,  tout  autant  qu’à  l’histoire  des  significations  et  des 
valeurs qui constituent les économies morales des sciences”. Tradução minha.
177 No original: “Sage to worker to trained expert; reasoned image to mechanical image to interpreted 
image.  This  epigram,  albeit  too  schematic,  joins  the  epistemological  history  of  the  image  to  the  ethical 
epistemology of the author­scientist”. Tradução minha.  
159
ciência,  não  é  uma  condição  necessária  à  produção  do  conhecimento  científico,  sua 
emergência não foi inevitável. A ciência se tornou objetiva em meados do século XIX 
como resposta a demandas específicas que podem ser localizadas e explicadas. 
A  verdade­para­a­natureza  –  presente  nas  práticas  de  naturalistas,  anatomistas, 
botânicos e vários tipos de praticantes da ciência do século XVIII e da primeira metade 
do  XIX  –  era  “uma  tradição  rigorosa  e  progressiva  de  pesquisa  e  representação 
científica”  (DASTON  e  GALISON,  2010,  p.  197)179.  O  surgimento  de  uma  nova 
virtude  epistêmica  não  significa  o  fracasso  da  anterior  em  produzir  conhecimento 
científico, mas um fracasso em produzir sentido em uma nova configuração histórica. A 
verdade­para­a­natureza pregava um tipo de representação do mundo natural baseada na 
busca de arquétipos idealizados, o fenômeno puro e perfeito. Os espécimes particulares 
de  uma  planta  ou  um  animal,  por  exemplo,  eram  cheios  de  imperfeições  e 
particularidades  que  não  condiziam  com  a  busca  de  uma  essência  na  natureza.  A 
variabilidade  e  as  irregularidades  da  natureza  eram  considerados  desvios  e  eram  fonte 
de preocupação e “ansiedade epistêmica” (DASTON  e GALISON, 2010, p. 67). Assim, 
a atividade dos naturalistas poderia passar por corrigir e modificar deliberadamente as 
imperfeições  dos  exemplares  que  descreviam,  para  o  bem  da  ciência.  Descrever  a 
natureza fielmente, de maneira realista, exigia que se ultrapassasse a observação de um 
esqueleto  humano  particular  (por  exemplo)  e  se  atingisse  o  esqueleto  típico, 
característico,  essencial.  Esse  esqueleto  poderia  nunca  se  manifestar  em  um  espécime 
particular  (e  provavelmente  não  iria).  Isso  não  significava  ignorar  a  observação,  mas 
aperfeiçoá­la  exaustivamente  pela  repetição  e  pela  comparação  de  modo  que  fosse 
possível perceber o que era típico e o que era acidental em um dado objeto. A imagem 
era deliberadamente racionalizada (reasoned).
Para  uma  cultura  intelectual  moldada  pela  objetividade,  é  difícil  conceber  uma 
posição que pretende ser simultaneamente realista e idealista, que busca a fidelidade e 
que  aperfeiçoa  aquilo  que  descreve.  Essa  posição  parece  contraditória.  O  desafio  do 
Objectivity  é  mostrar  como  esse  tipo  de  prática  científica  era  não  só  possível,  mas 
plausível; desde que compreendida dentro de um enquadramento histórico específico. A 

178  No  original:  “Truth­to­nature,  like  objectivity,  was  historically  specific.  It  emerged  in  a  particular 
time and space and made a particular kind of science possible – a science about the rules rather than the 
exceptions of nature”. Tradução minha.  
179  No  original:  “a  rigorous  and  progressive  tradition  of  scientific  research  and  representations”. 
Tradução minha.
160
verdade­para­a­natureza será contestada e combatida com o advento dessa nova virtude 
epistêmica,  a  objetividade.  Essa  emergência,  como  já  vimos,  não  extingue  o  antigo 
modelo – apesar de se constituir em oposição a ele. O que ocorre é uma transformação 
da  verdade­para­a­natureza  no  panorama  das  “formas  epistêmicas  de  vida”  (epistemic 
ways of life). As suas funções, suas estratégias e o lugar que ela ocupa são deslocados 
no confronto com a objetividade (DASTON e GALISON, 2010, p. 113).
Ao  longo  da  segunda  metade  do  século  XIX  e  início  do  XX,  esse  novo  “ideal 
regulador” vai estruturar a atividade dos cientistas em diversos âmbitos. A objetividade 
mecânica  –  nome  dado  pelos  autores  para  essa  versão  da  virtude  epistêmica  que  se 
empenha em anular os efeitos do sujeito na produção do conhecimento – é um projeto 
inacabado.  Ela  é  uma  busca  constante,  fonte  de  debates  e  tensões.  Um  ponto  de 
referência  que  guiava  as  convicções  epistemológicas,  as  práticas  de  produção  de 
imagem  e  o  comportamento  moral  dos  cientistas  (DASTON  e  GALISON,  2010,  pp. 
115­123). “A objetividade era um desejo, um compromisso apaixonado de supressão da 
vontade,  o  ímpeto  de  deixar  o  mundo  visível  emergir  na  página  [de  um  atlas]  sem 
intervenção”  (DASTON  e  GALISON,  2010,  p.  143)180.  Ela  ambicionava  silenciar  o 
observador  para  que  a  natureza  pudesse  ser  ouvida.  “‘Deixe  a  natureza  falar  por  si 
mesma’  se  tornou  a  palavra  de  ordem  da  nova  objetividade  científica”  (DASTON  e 
GALISON, 2010, p. 120)181. 
A objetividade é uma novidade oitocentista. Ela surge como um contraponto de 
certos aspectos do self. Ela é conjurada para combater a subjetividade, percebida como 
perigosa  para  a  produção  do  conhecimento  científico.  Como  explicam  os  autores, 
objetividade  e  subjetividade  são  inseparáveis,  formam  um  par  conceitual 
interdependente.  A  história  dos  termos  é  retraçada,  remontando  ao  surgimento  do 
binômio  na  escolástica  da  baixa  Idade  Média.  Desse  período  até  o  início  da 
modernidade,  elas  significavam  quase  exatamente  o  oposto  do  seu  sentido 
contemporâneo.  Subjetivo  referia­se  às  coisas  em  si  mesmas,  enquanto  objetivo  dizia 
respeito  ao  modo  como  elas  se  apresentavam  à  consciência  (DASTON  e  GALISON, 
2010, p. 29). 

180 No original: “Objectivity was a desire, a passionate commitment to suppress the will, a drive to let 
the visible world emerge on the page without intervention”. Tradução minha. 
181  No  original:  “‘Let  the  nature  speak  for  itself’  become  the  watchword  of  the  new  scientific 
objectivity”. Tradução minha. 
161
A  transformação  do  sentido  medieval  e  a  aproximação  com  aquele  que  damos 
hoje a essas palavras deve­se a Kant, que as retirou do ostracismo a que foram relegadas 
juntamente com a escolástica e as colocou novamente em uso na filosofia moderna. A 
considerável  força  do  kantismo  na  vida  intelectual  europeia  do  século  XIX  ajudou  a 
difundir os conceitos em suas novas definições (DASTON e GALISON, 2010, pp. 28­
31;  205­207).  Cientistas  de  enorme  influência,  como  Claude  Bernard,  Thomas  Henry 
Huxley  e  Hermann  von  Helmholtz  apropriaram­se  do  par  subjetivo  e  objetivo  e  o 
instrumentalizaram.  Com  efeito,  a  utilização  desses  conceitos  como  operadores  de  um 
corte abrupto entre a mente e o mundo, entre o empírico e o racional ou entre o exato e 
o incerto estava distante das sutilezas da filosofia kantiana. Ela era uma adaptação aos 
propósitos  da  ciência  no  período  (DASTON  e  GALISON,  2010,  p.  205­210).  Essa 
interpretação  tendia  a  fundir  epistemologia  e  ética:  “ela  era  vista  –  e  sentida  –  como 
envolvendo uma batalha da vontade contra si mesma” (DASTON e GALISON, 2010, p. 
210)182.
A mesma subjetividade combatida na ciência era celebrada em outros contextos; 
como na arte do século XIX, onde a expressão dos traços individuais de personalidade, 
a  manifestação  da  singularidade  era  vista  como  uma  característica  louvável.  A 
objetividade cumpre assim uma série de funções específicas percebidas como relevantes 
e  necessárias  à  produção  do  conhecimento  científico.  A  principal  era  impedir  que 
aspectos pessoais perturbassem a ciência, comprometendo o resultado de uma pesquisa. 
Para apreender o mundo “como ele realmente é”, o sujeito deve se anular. A novidade 
da objetividade como virtude epistêmica e do tipo de ciência que demanda por ela e que 
é por ela possibilitada não deve levar à interpretação de que a ciência anterior não era 
objetiva  por  que  não  havia  descoberto  essa  possibilidade.  Em  outras  palavras,  a 
emergência  da  objetividade  não  deve  ser  vista  como  um  progresso  em  direção  a  uma 
descrição mais realista e exata do mundo. A objetividade, ou a verdade­para­a­natureza 
ou o julgamento treinado (que surgirá em meados do século XX) são formas históricas 
de articular ethos e episteme. Elas dependem da disponibilidade de materiais para serem 
construídas,  mas  também  de  escolhas.  Assim,  por  exemplo,  Lorraine  Daston  e  Peter 
Galison vão mostrar como algumas das características que compõem a objetividade já 
estavam disponíveis antes da sua emergência como uma virtude epistêmica plenamente 
articulada.  A  ideia  –  central  para  a  objetividade  –  de  uma  descrição  mimética  da 

182 No original: “It was seen – and felt – to envolve a battle of the will against itself”. Tradução minha.
162
natureza,  de  uma  representação  do  objeto  exatamente  como  ele  se  apresenta,  sem 
retoques  ou  aperfeiçoamentos,  era  bem  conhecida  no  século  XVIII.  “Havia 
representantes  setecentistas  da  alternativa  naturalística  na  ilustração  anatômica,  mas 
considerações tanto estéticas quanto de precisão determinavam suas escolhas explícitas” 
(DASTON e GALISON, 2010, p. 75)183.
Os autores não estão tão preocupados em perceber como a objetividade pode ser 
definida,  mas  em  como  ela  é  praticada,  como  ela  se  manifesta  na  produção  do 
conhecimento  científico  e  como  ela  molda  um  self  científico  historicamente 
contingente. Assim, o surgimento de procedimentos e protocolos, o uso de máquinas e a 
automatização  dos  gestos  humanos  através  do  treinamento  e  da  repetição  serão 
destacados; bem como as tecnologias de produção do self, as técnicas de construção de 
um certo tipo de cientista, a disciplina e o “cuidado de si” foucaultiano. Poucas décadas 
depois da sua emergência, a objetividade está no núcleo da definição de ciência e das 
suas  práticas.  “Ao  final  do  século  dezenove,  a  objetividade  mecânica  estava  instalada 
firmemente como um ideal orientador se não como o ideal orientador da representação 
científica através de um amplo espectro de disciplinas” (DASTON e GALISON, 2010, 
p. 125)184.
Um dos elementos centrais para esse processo foi a utilização cada vez maior de 
máquinas  para  realizar  o  trabalho  científico.  Em  vista  desse  papel  relevante  das 
máquinas,  Daston  e  Galison  vão  chamar  essa  primeira  fase  da  objetividade  de 
objetividade  mecânica.  Os  instrumentos  mecânicos  eram  confiáveis,  infatigáveis,  não 
sucumbiam  às  tentações  humanas,  não  cediam  a  interesses,  não  escorregavam  para  a 
imparcialidade. Eles espelhavam uma série de virtudes consideradas importantes para a 
produção  do  conhecimento  objetivo.  As  virtudes  das  máquinas  eram  um  exemplo  de 
como deveriam agir os cientistas. Embora, é claro, elas não pudessem ser moralmente 
valorizadas  por  essas  características;  a  virtuose  não  era  para  elas  uma  questão  de 
escolha.  Ainda  assim,  elas  serviam  de  metáfora  para  os  procedimentos  humanos,  que 
deveriam ser automatizados (DASTON e GALISON, 2010, pp. 138­140). 

183 No original: “There were eighteenth­century representatives of  naturalistic alternative in anatomical 
illustration,  but  it  was  considerations  as  much  of  aesthetics  as  of  accuracy  that  determined  their  quite 
explicit choices”. Tradução minha.
184 No original: “By the late nineteenth century, mechanical objectivity was firmly installed as a guiding 
if not the guiding ideal of scientific representation across a wide range of disciplines”. Tradução minha.
163
A objetividade mecânica é um fenômeno histórico produzido em um momento 
de  reconfiguração  daquilo  que  contava  como  boa  ciência  e  do  que  deveria  ser 
valorizado na formação do cientista. A eliminação da agência humana do processo de 
produção do conhecimento era a finalidade almejada por aqueles que professavam esse 
ideal  e  que  dele  imbuíam  as  suas  práticas.  Ela  não  é,  contudo,  o  ponto  final  dessa 
história; tampouco a única forma possível de objetividade. Ao longo desse processo, a 
objetividade expande o seu campo semântico e ultrapassa a metáfora do mecanismo. Ela 
passa a abarcar fenômenos e áreas da ciência que não eram contempladas quando da sua 
formulação.  Fenômenos  que  não  estão,  estritamente  falando,  na  esfera  do  visível.  Daí 
surge a objetividade estrutural, uma ampliação da ideia de objetividade para o estudo de 
estrutura invariantes que subjazem a objetos da matemática, da lógica, da linguística, da 
psicologia e mesmo da filosofia (DASTON e GALISON, p. 253­257).
Objetividade  mecânica  e  estrutural  não  são  apenas  extensões  da  mesma  noção, 
elas  diferem  em  muitos  aspectos.  A  objetividade  estrutural  é  um  produto  da  transição 
entre  os  séculos  XIX  e  XX.  Ela  guiou  a  prática  científica  de  importantes  cientistas  e 
filósofos do período, como Bertrand Russel, Max Planck, Henri Poincaré, Gottlob Frege 
e  Rudolf  Carnap185.  Autores  com  filiados  a  tradições  filosóficas  diversas  que  são 
reagrupados  em  torno  de  um  recorte  heterodoxo  a  partir  do  recurso  às  virtudes 
epistêmicas, que cria um arranjo histórico diferente do que costumeiramente organiza as 
narrativas  na  história  das  ciências  e  da  filosofia.  Para  os  proponentes  da  objetividade 
estrutural,  a  objetividade  científica  não  estava  na  reprodução  exata  do  mundo  como 
realmente  é.  Essa  era  uma  pretensão  impossível  de  ser  atingida  devido  às  próprias 
limitações do aparato sensorial humano. Essa “objetividade sem imagens” deverá então 
ter  aspectos  bastante  diferentes  da  objetividade  mecânica.  Galison  e  Daston  ressaltam 
como a objetividade estrutural cultiva e combate aspectos diferentes do self em relação 
à  sua  contrapartida.  Enquanto  a  última  se  opunha  à  interferência  da  ação  humana  na 
realidade e pretendia anular a sua individualidade e deixar com que natureza falasse por 
si,  a  primeira  tentava  preservar  a  consciência  e  a  razão  inclusive  dos  excessos  da 
natureza  e  da  particularidades  da  própria  experiência  sensorial  em  busca  de  estruturas 
fundamentais.  Essas  estruturas  não  se  assemelham  às  essências  buscadas  pelos 

185 Os autores se perguntam se Einstein era um objetivista estrutural (DASTON e GALISON, 2010, p. 
305).  E  respondem  “sim”  e  “não”.  Ele  incorporou  e  defendeu  alguns  aspectos  dessa  virtude  epistêmica 
(como  a  busca  de  estruturas  que  condicionam  os  sentidos)  e  deplorou  outros  aspectos  (como  a  redução 
lógica de uma teoria, preferindo uma versão mais holística).
164
naturalistas que se guiavam pela verdade­para­a­natureza. A diferença nos aspectos da 
personalidade que devem ser combatidos pode ser entendida como resultado da forma 
como  a  objetividade  estrutural  redesenha  a  linha  divisória  entre  subjetivo  e  objetivo, 
como  ela  mapeia  de  forma  diversa  o  território  de  ambos  os  lados.  As  sensações  são 
postas sob suspeita, e os fatos apreendidos pela experiência são tidos como dependentes 
de  características  subjetivas  particulares  de  cada  observador  (DASTON  e  GALISON, 
2010, pp. 257­260). 
As  diferenças  entre  objetividade  mecânica  e  estrutural  não  significava  o 
abandono  dos  seus  pressupostos;  mas,  para  muitos  dos  seus  praticantes,  uma 
radicalização da noção do que significa ser objetivo. “A objetividade estrutural era, em 
alguns  sentidos,  uma  intensificação  da  objetividade  mecânica,  mais  realista  que  o  rei” 
(DASTON e GALISON, 2010, p. 259)186. Isso tinha consequência na disciplina de si 
que  acompanhava  essa  virtude  epistêmica,  ela  levava  a  graus  extremos  a  repressão  da 
subjetividade  e  incorporava  uma  postura  ascética  em  relação  à  produção  do 
conhecimento científico.
A  objetividade,  de  acordo  com  os  estruturalistas,  não  se  tratava  de 
sensações ou mesmo de coisas; ela não tinha nada a ver com imagens, 
fabricadas  ou  mentais.  Ela  era  sobre  relações  estruturais  duradouras 
que  sobreviviam  às  transformações  matemáticas,  revoluções 
científicas,  mudanças  na  perspectiva  linguística,  diversidade  cultural, 
evolução  psicológica,  aos  caprichos  da  história  e  às  particularidades 
da fisiologia individual (DASTON e GALISON, 2010, p. 259).187 
O temor da variação individual levou essa vertente da objetividade a postular um 
conhecimento  rigorosamente  abstrato,  infenso  à  concretude.  Uma  ciência  realmente 
objetiva estaria praticamente circunscrita ao reino da lógica e das suas relações formais, 
comunicáveis com qualquer ser racional. Isso coloca problemas à dimensão empírica da 
ciência, uma vez que a ligação com a realidade se torna cada vez mais tênue e estreita. 
Não  é  por  acaso  que  os  autores  vão  usar  a  filosofia  do  Círculo  de  Viena  como  um 
exemplo  dessa  virtude  epistêmica.  Os  neopositivistas  visavam  tratar  ciência  como  um 
conjunto  de  enunciados  atômicos  e  logicamente  redutíveis;  depurar  a  linguagem 
científica  de  qualquer  traço  autoral  ou  metafísico;  transcender  as  idiossincrasias  da 

186 No original: “Structural objectivity was, in some senses, an intensification of mechanical objectivity, 
more royalist than the king”. Tradução minha.
187 No original: “Objectivity, according to structuralists, was not about sensations or even about things; 
it  had  nothing  to  do  with  images,  made  or  mental.  It  was  about  enduring  structural  relationships  that 
survived  mathematical  transformations,  scientific  revolutions,  shifts  of  linguistic  perspective,  cultural 
diversity,  psychological  evolution,  the  vagaries  of  history,  and  the  quirks  of  individual  physiology”. 
Tradução minha.
165
experiência  humana  individual.  O  neopositivismo  é  também  chamado  de  empirismo 
lógico, dado o seu esforço em preservar a relação com a experiência. Essa relação se dá 
com o estabelecimento das sentenças protocolares, a forma mais simples de expressar 
um fato empírico, desprovidas de juízos de valor, moduladores e quaisquer indicadores 
de  singularidades188.  A  ciência  não  seria  muito  mais  do  que  a  enunciação  lógica  de 
fatos empíricos encadeados e relacionados por meio de atribuições de causalidade. No 
que  diz  respeito  à  questão  tratada  por  Galison  e  Daston,  o  importante  é  destacar  que, 
para o Círculo de Viena, o problema do fundamento do conhecimento é deslocado para 
a  linguagem  (SCHLICK,  1959).  Assim,  o  neopositivismo  mantém  o  problema  da 
objetividade circunscrito à lógica e a correlação de estruturas fundamentais, sem perder 
o contato com a realidade.
A  objetividade  estrutural  foi  uma  tentativa  radical  de  eliminar  da  ciência 
qualquer  característica  que  pudesse  ser  considerada  local,  particular,  específica.  Só  as 
formas  lógicas  eram  passíveis  de  comunicação  irrestrita,  estavam  livres  dos  mal­
entendidos  causados  pelas  distorções  subjetivas.  Era  uma  busca  pelo  absoluto  que 
exigia, ou era assim retratado discursivamente, um enorme sacrifício de disciplina dos 
sentidos  e  de  cultivo  da  razão  em  direção  às  estruturas  lógicas  subjacentes  aos 
fenômenos. “Os objetivistas estruturais suspeitavam de uma objetividade fundamentada 
na referência e na experiência; preferiam relações vinculadas a estruturas que poderiam 
ser compartilhadas de maneira não problemática”189. Emergindo nas décadas finais do 
século  XIX,  a  objetividade  estrutural  teve  eco  em  diversos  campos  da  ciência  e  na 
filosofia ao longo de todo o século XX. 
No  entanto,  existem  disciplinas  científicas  para  as  quais  esse  modelo  é 
impossível,  disciplinas  que  dependem  da  produção,  circulação  e  consumo  em  larga 
escala  de  imagens.  É  com  essas  ciências  que  estão  preocupados  os  autores  do 
Objectivity, com esse largo campo que eles denominaram de “epistemologias do olho” 
(epistemologies  of  the  eye).  Essas  ciências  também  viram  a  emergência  de  uma  nova 

188  Essa  definição  se  baseia  principalmente  na  filosofia  de  Moritz  Schlick  (1959).  Contudo,  não  é 
possível tratar de forma homogênea todos os membros do Círculo de Viena. A definição e o papel das 
sentenças  protocolares  na  estruturação  do  conhecimento  objetivo  foram  alvos  de  intensos  debates  no 
grupo,  gerando  desacordos  entre  Schlick  e  Otto  Neurath  (ÁVILA,  2012;  CONDÉ,  1995).  A  ideia  de 
realizar  uma  análise  lógica  da  linguagem,  trazendo­a  para  o  centro  do  problema  do  conhecimento,  é 
compartilhada pelo grupo.
189 No original: “The structural objectivists were suspicious of an objectivity grounded in reference and 
experience;  they  preferred  relations  bound  into  structures  that  could  be  unproblematically  shared”. 
Tradução minha. 
166
virtude epistêmica ao longo do século XX. A objetividade mecânica foi complementada 
por uma nova forma de produção e interpretação de imagens científicas: o julgamento 
treinado. 
Essa nova virtude epistêmica rejeita regras e procedimentos mecânicos capazes 
de guiar o trabalho do cientista. Surgindo ao longo das primeiras décadas do século XX 
e  se  espalhando  para  uma  diversidade  de  campos  científicos  em  um  ritmo  cada  vez 
maior,  o  julgamento  treinado  se  funda  na  habilidade  do  especialista,  na  repetição 
exaustiva  de  uma  operação  que  não  pode  ser  formalizada,  mas  deve  ser  adquirida  às 
custas  de  uma  forma  diferente  de  cultivo  do  self  científico.  Aproxima­se  em  vários 
aspectos daquilo que Michel Polanyi chamou de “conhecimento tácito”. A objetividade 
estrutural  é  a  resposta  de  físicos,  matemáticos  e  filósofos  ao  que  consideravam 
limitações  da  objetividade  mecânica.  O  julgamento  treinado  é  também  uma  reação  a 
essa virtude epistêmica, uma reação que vem, dessa vez, do interior da comunidade de 
cientistas empíricos.
O grande sucesso científico não era mais essencialmente uma questão 
de  paciência  e  diligência,  mas  tampouco  era  a  dádiva  prometeica  do 
fogo  divino.  Embora  o  brilhantismo  não  possa  ser  ensinado,  o 
pensamento  intuitivo  pode,  mesmo  que  ninguém  entenda  exatamente 
como ele funcionava (DASTON e GALISON, 2010, p. 312)190.
O  julgamento  treinado  colocou  sob  fogo  cerrado  a  passividade  da  objetividade 
mecânica  diante  dos  fenômenos  retratados.  Para  essa  nova  virtude  epistêmica  –  que 
gerava novas necessidades, novos desejos e novas ansiedades – a própria mecanização 
da  produção  científica  demanda  um  olhar  especializado.  Ao  contrário  dos 
procedimentos de reprodução de objetos simples e relativamente próximos à experiência 
cotidiana,  cuja  transposição  da  natureza  para  o  papel  era  vista  como  não  muito 
problemática, os elementos complexos, produzidos por máquinas sofisticadas, exigiam 
uma capacidade de interpretação considerável por parte do cientista. As máquinas e os 
procedimentos  mecânicos  continuam  presentes  no  julgamento  treinado,  mais  do  que 
isso, o seu uso se intensifica e se diversifica. No entanto, para interpretar corretamente 
aquilo que era produzido por esses instrumentos, esse cientista deve tornar­se um expert 
em determinado tipo de fenômeno ou técnica de representação.

190  No  original:  “Great  scientific  accomplishment  was  no  longer  essentially  a  matter  of  patience  and 
industry,  but  neither  was  it  a  Promethean  gift  of  divine  fire.  Altough  brilliance  could  not  be  taught, 
intuitive thinking could, even if no one understood exactly how it funcnioned”. Tradução minha.
167
Nessa  nova  configuração,  a  produção  do  conhecimento  científico  através  da 
imagem se completa no leitor da imagem. A passividade diante do que foi produzido – 
presente  tanto  na  verdade­para­a­natureza,  com  sua  defesa  da  autoridade  cognitiva  de 
uma  imagem  aperfeiçoada  e  que  exibe  uma  verdade  que  de  outro  modo  permaneceria 
escondida,  quanto  na  objetividade  mecânica,  que  proclamava  anular  a  participação  do 
agente  humano  para  deixar  com  que  a  natureza  falasse  por  si  própria  –  não  é  mais 
possível.  É  preciso  uma  postura  mais  ativa,  um  exercício  hermenêutico  consciente 
(embora não formalizável) por parte daquele que recebe uma imagem produzida a partir 
desse  critério.  Para  ler  uma  radiografia,  um  eletroencefalograma  ou  um  mapa  de 
manchas  solares,  o  cientista  deve  dominar  um  vocabulário  e  uma  gramática  que  o 
permita  decifrar  as  imagens;  ele  deve  estar  munido  de  um  repertório  construído  no 
decorrer  do  seu  treinamento,  da  sua  formação,  que  o  habilita  a  enxergar  aspectos 
invisíveis ao olho leigo.
Além  das  novas  máquinas,  que  produzem  imagens  irredutíveis  à  apropriação 
pela  passividade  da  objetividade  mecânica,  o  início  do  século  passado  foi  também  o 
período  de  enorme  crescimento  na  quantidade  de  pessoas  envolvidas  na  produção  de 
ciência  (DASTON  e  GALISON,  2010,  pp.  326­327;  HOBSBAWM,  2006,  pp.  504­
508)191. Isso gerava uma série de problemas inéditos, em especial para a formação de 
novos cientistas. O aumento brutal na escala de treinamento exigia uma transformação 
no modelo de pedagogia científica. Isso indicava, entre outras coisas, “novas maneiras 
de  treinar  os  estudantes  avançados  de  ciência  para  ver,  manipular  e  medir  –  uma 
calibragem  da  cabeça,  mão  e  olho  talvez  sem  precedentes  em  seu  rigor  e  alcance” 
(DASTON e GALISON, 2010, p. 326)192. A padronização coletiva de um contingente 
cada  vez  maior  de  pessoas  constrói  uma  disciplina  mental  e  corporal  diferente, 
historicamente  específica,  molda  um  self  a  partir  do  cultivo  de  habilidades  diferentes, 
que possui uma postura mais ativa diante das imagens científicas.
É curioso perceber que parte da história e da sociologia das ciências produzida 
nesse período incorporou essas características como sendo parte essencial da ciência. A 
já  mencionada  ênfase  de  Polanyi  no  conhecimento  tácito,  mas  também  as  análises  de 

191 “Em 1910, todos os físicos e químicos alemães e britânicos juntos chegavam talvez a 8 mil pessoas. 
Em  fins  da  década  de  1980,  o  número  de  cientistas  e  engenheiros  de  fato  empenhados  em  pesquisa  e 
desenvolvimento experimental no mundo era estimado em cerca de 5 milhões” (HOBSBAWM, 2006, p. 
504, grifo do autor). 
192 No original: “new ways of training advanced science students to see, manipulate, and measure – a 
calibration of head, hand, and eye perhaps unprecedented in its rigor and range”. Tradução minha.
168
Fleck e de Thomas Kuhn sobre a pedagogia e a formação de cientistas, a centralidade do 
conceito de expertise para Harry Collins. Essas abordagens, entre tantas outras, utilizam 
metáforas  e  avaliações  que  parecem  muito  próximas  daquilo  que  Peter  Galison  e 
Lorraine  Daston  identificam  como  julgamento  treinado.  Uma  virtude  epistêmica  cujo 
ponto  de  emergência  pode  ser  historicamente  localizado  no  século  XX;  uma  maneira 
específica de se relacionar com os objetos da natureza, de produzir e consumir imagens 
científicas, de treinar cientistas, de disciplinar o olhar e a mente. Talvez a curiosidade se 
explique justamente pela origem científica de grande parte dos autores da história e da 
sociologia das ciências. Ao serem expostos a esse tipo de pedagogia ao longo de suas 
formações,  eles  naturalizaram  alguns  traços  dela  como  essenciais  à  formação  de 
cientistas em qualquer época, sob qualquer regime moral e cognitivo. Ao encadear essas 
características  à  longa  história  das  virtudes  epistêmicas,  Daston  e  Galison  abrem 
caminho para novas reflexões sobre a formação e a pedagogia científica. Não explorarei 
essa seara. Depois desta retomada da história das virtudes epistêmicas da forma como 
foi  contada  no  Objectivity,  passarei  a  considerações  mais  gerais  sobre  o  conceito,  em 
uma tentativa de entender como ele ocupa um lugar central na epistemologia histórica.
“As  virtudes  epistêmicas  são  virtudes  propriamente  ditas:  elas  são  normas  que 
são internalizadas e reforçadas através do apelo a valores éticos, bem como a eficácia 
pragmática em assegurar o conhecimento” (DASTON e GALISON, p. 40)193. Assim, 
os  autores  desafiam  a  separação  entre  fatos  e  valores,  entre  razão  e  emoção,  para 
mostrar  que  a  ciência  depende  de  uma  constelação  específica  de  emoções 
historicamente  determinadas.  Eles  não  se  limitam  em  dizer  que  os  valores  podem 
fornecer motivação para o trabalho científico, ou que as emoções podem se infiltrar sub­
repticiamente  nos  produtos  da  razão  e  desvirtuá­la.  Tentam  mostrar  como  diferentes 
códigos de conduta diante do conhecimento afetam a seleção dos objetos de pesquisa, 
os limites da representação da natureza, os métodos de investigação de um problema, os 
critérios de avaliação de resultados e tudo o que diz respeito ao que conta como “boa 
ciência”,  ou  mesmo  o  que  pode  ser  considerado  ciência.  Ao  tratar  das  virtudes 
epistêmicas,  os  valores,  as  emoções,  a  ética  e  as  normas  de  conduta  devem  ser 
consideradas  como  parte  integrante  e  importante  da  produção  do  conhecimento 

193 No original: “Epistemic virtues are virtues properly so called: they are norms that are internalized and 
enforced by appeal to ethical values, as well as to pragmatic efficacy in securing knowledge”. Tradução 
minha. 
169
científico  –  não  como  uma  essência  estática,  mas  como  uma  série  de  relações 
historicamente dependentes. 
As  normas  aqui  não  funcionam  como  para  a  sociologia  mertoniana,  que 
considerava que elas faziam parte do comportamento dos cientistas e que os capacitava 
para  produzir  conhecimento  científico,  mas  nada  poderiam  dizer  sobre  o  tipo  de 
conhecimento  produzido.  As  normas  eram  parte  da  “dimensão  social”  da  ciência,  dos 
seus  “fatores  externos”  e  o  máximo  que  ela  poderia  fazer  era  facilitar  ou  dificultar  a 
produção desse conhecimento. Outro ponto distancia as virtudes epistêmicas das normas 
mertonianas:  a  sua  historicidade.  Enquanto  que  o  sociólogo  americano  propunha  um 
conjunto de valores trans­histórico que deveria ser compartilhado por qualquer cientista 
interessado em produzir conhecimento científico relevante em qualquer época, Daston e 
Galison  vão  mostrar  que  essas  normas  são  dinâmicas  e  se  transformam  em  virtude  de 
novos contextos e novas demandas. 
Com  efeito,  Lorraine  Daston  já  sinalizava  para  essa  abordagem  em  um  artigo 
publicado  em  1995.  Na  época,  a  autora  falava  em  uma  economia  moral  das  ciências 
modernas194.  Seu  sentido  é  muito  próximo  daquilo  que  as  virtudes  epistêmicas 
expressam uma década depois. Para Daston,
Uma  economia  moral  é  um  tecido  de  valores  saturados  de  emoções 
que  se  ligam  e  funcionam  em  uma  relação  bem  definida  [...]  um 
sistema  equilibrado  de  forças  emocionais,  com  seus  pontos  de 
equilíbrio  e  de  limitações.  Embora  seja  uma  coisa  contingente  e 
maleável, sem necessidade, uma economia moral tem uma certa lógica 
em  sua  composição  e  suas  operações.  Com  efeito,  nem  todas  as 
combinações de emoções e valores são possíveis (DASTON, 2014, p. 
23)195.  

194  Nesse  texto  Lorraine  Daston  já  elenca  a  objetividade  como  um  exemplo  de  economia  moral, 
juntamente com a quantificação e o empirismo. Já surge aqui também a noção de objetividade mecânica 
que seria desenvolvida depois. Ao acompanhar a bibliografia da autora sobre a questão da objetividade 
(vários  deles  já  em  parceria  com  Peter  Galison),  é  possível  perceber  a  permanência  de  certas 
interpretações e a emergência de conceitos e argumentos. No começo dos anos 1990, a autora falava de 
uma objetividade “aperspectivista” (aperspectival) e já sinaliza para uma história moral da objetividade 
(DASTON, 1992). Em uma conferência proferida em Portugal na segunda metade da década de 1990, a 
autora  já  fala  em  várias  formas  de  objetividade,  entre  elas  a  “objetividade  mecânica”  e  já  se  refere  às 
“virtudes  epistêmicas”;  ela  também  já  utiliza  as  imagens  como  fontes  para  pesquisar  esses  temas 
(DASTON,  1999).  Outros  autores,  como  Robert  Kohler  (1999),  também  utilizavam  o  conceito  de 
economia moral para estudar a história das ciências. Kohler, contudo, retira a expressão da obra de E. P. 
Thompson e dá a ela um sentido próximo ao que Steven Shapin e Simon Schaffer chamam de tecnologia 
social.
195  No  original:  “Une  économie  morale  est  um  tissu  de  valeurs  saturées  d’affects  qui  se  tiennent  et 
foncionnent  dans  une  relation  bien  définie  [...]  un  système  équilibré  de  forces  émotionnelles,  avec  des 
points d’équilibre et des contraintes. Bien qu’elle soit une chose contingente et malléable, sans nécessité, 
une economie morale a une certaine logique dans sa compositions et ses operátions. En effet, toutes les 
combinaisons d’affects et de valeurs ne sont pas possibles”. Tradução minha.    
170
As ligações que se visa estabelecer para explicar a ciência não são mais aquelas 
entre  teoria  e  experiência  (que  não  são  abandonadas,  mas  redimensionadas  em  função 
das  novas  interpretações),  mas  entre  ética  e  epistemologia  e  entre  moral  e  prática 
científica.  A  epistemologia  precisa  de  uma  ética,  dizem  os  autores196.  Mesmo  a 
objetividade  mecânica,  com  toda  a  sua  discussão  sobre  neutralidade,  supressão  dos 
valores, passividade diante dos fatos, possui um poderoso código moral. Ele constrange 
os  cientistas  a  comportarem­se  de  determinadas  maneiras  e  se  insurge  vigorosamente 
quando  um  comportamento  desviante  é  flagrado.  Os  autores  fazem  uma  distinção 
conceitual entre ética – uma normatividade mais ligada a uma forma de vida coletiva e a 
uma maneira de estar no mundo que faz parte da disposição habitual de um grupo – e 
moral  –  regras  específicas  que  podem  ser  adotadas  ou  transgredidas  e  para  as  quais 
existem  sanções  sociais  determinadas  –,  mas  extrapolam  essa  distinção  e  utilizam 
muitas vezes moral e ética de forma intercambiável. De qualquer modo, o recurso a uma 
epistemologia  moralizada  fornece  uma  chave  de  compreensão  interessante  para  a 
discussão em torno da autoridade moral da natureza e do cientista. O ethos da ciência e 
as suas transformações históricas são estudados através da análise da produção de atlas 
e  manuais.  Eles  não  são  vistos  como  produtos  acabados,  mas  em  ação.  Há  um 
deslocamento  em  direção  à  prática  científica.  A  prática  não  é  entendida  como 
consequência  de  certas  ideias  morais  ou  de  certos  princípios  que  guiam  uma  virtude 
epistêmica, nem como a sua manifestação. Os elementos simbólicos e materiais não são 
tomados isoladamente como etapas lineares de um processo. Uma virtude epistêmica é 
fruto de uma co­produção simbólica e material, surge do entrecruzamento de preceitos 
morais  e  formas  concretas  de  ação  no  mundo.  Com  efeito,  a  dimensão  material  e  a 
simbólica  engendram­se  uma  à  outra  simultaneamente,  à  medida  que  constituem  uma 
forma  de  ciência.  Isso  torna  mais  complexas  as  relações  entre  saber  e  fazer,  entre 
representar o mundo e agir nele (MAIA, 2011, pp. 89­130).
Esse  mesmo  processo  constitui  também  o  self  científico.  As  virtudes 
epistêmicas, como todo código moral, exigem uma disciplina que marca profundamente 
o sujeito produtor de conhecimento. Parte fundamental do argumento do livro decorre 
da vinculação entre self e epistemologia. “As virtudes epistêmicas adquirem o direito de 
serem  chamadas  de  virtudes  moldando  o  self  e  as  maneiras  que  elas  fazem  isso  são 

196 Mas fazem uma ressalva quase popperiana: “It is perhaps conceivable that an epistemology without 
na ethos may exist, but we have yet to encounter one” (DASTON  e GALISON, 2010, p. 40). 
171
paralelas e sobrepostas às maneiras pelas quais a epistemologia é traduzida em ciência” 
(DASTON  e  GALISON,  2010,  p.  41)197.  Voltarei  a  esse  ponto  em  seguida.  Porém, 
antes  de  tratar  da  história  do  self,  e  para  possuir  mais  elementos  para  discutir  a  sua 
relevância para a história das ciências, devo voltar a um ponto que indiquei acima. 
Afirmei  que  o  Objectivity  estava  apoiado  principalmente  em  duas  tradições 
historiográficas, a epistemologia histórica e a história cultural das ciências. Nas páginas 
anteriores apontei como a epistemologia histórica é tratada no livro, utilizando a história 
das  virtudes  epistêmicas.  É  hora  de  se  voltar  para  a  segunda  corrente  e  completar  a 
estrutura  narrativa.  É  claro  que  a  minha  análise  desorganiza  a  forma  como  os 
argumentos  são  apresentados  e  defendidos  pelos  autores  em  prol  da  apresentação  e 
defesa dos meus argumentos. Não se trata, afinal, de reescrever o Objectivity.
A história cultural das ciências aparece no livro de duas formas principais. Uma 
primeira,  que  poderia  ser  considerada  mais  tradicional,  refere­se  à  escolha  das  fontes 
primárias: imagens. O trabalho com iconografia é um traço da história cultural desde a 
sua  formação  no  século  XIX.  O  segundo  ponto  tem  a  ver  com  uma  renovação  do 
conceito  de  cultura  utilizado  pelos  historiadores  ao  longo  das  últimas  três  ou  quatro 
décadas.  Uma  guinada  mais  antropológica  que  se  tornou  dominante  na  historiografia 
tout court e que teve importantes representantes na historiografia das ciências. Tratarei 
esses dois aspectos.
O  livro  estrutura­se  em  torno  de  imagens.  Poderíamos  dizer,  utilizando  um 
vocabulário que mistura os dois aspectos apontados acima, que ele trata de uma cultura 
visual da ciência. As imagens servem como representantes do esforço dos cientistas em 
produzir  “objetos  de  trabalho”  (working  objects)  capazes  de  organizar  um  campo 
disciplinar ou uma área de pesquisa. “Atlas são compilações sistemáticas de objetos de 
trabalho. Eles são os dicionários das ciências do olho” (DASTON e GALISON, 2010, p. 
22)198.  As  imagens  presentes  nesses  atlas  são  produtos  de  códigos  morais  e 
epistemológicos e servem para expandir o alcance desses códigos, treinar os praticantes 
de  determinada  área  do  conhecimento,  estabilizar  os  objetos  do  conhecimento  e  as 
formas de representá­los e interpretá­los. Os tipos diferentes de imagens são índices de 
virtudes  epistêmicas  diferentes,  de  formas  diferentes  de  compreender  a  natureza  e 

197 No original: “Epistemic virtues earn their right to be called virtues by molding the self, and the ways 
they do so parallel and overlap with the ways epistemology is translated into science”. Tradução minha.
198 No original: “Atlases are systematic compilations of working objects. They are the dictionaries of the 
sciences of the eye”. Tradução minha.
172
praticar  a  ciência.  As  ciências  se  transformam  historicamente,  as  imagens  se 
transformam  historicamente,  as  atitudes  científicas  em  relação  às  imagens  seguem  o 
mesmo  caminho.  Os  autores  pretendem  “mostrar,  acima  de  tudo,  como  as  virtudes 
epistêmicas  podem  ser  inscritas  em  imagens,  nas  maneiras  que  elas  são  produzidas, 
usadas  e  defendidas  de  seus  rivais”  (DASTON  e  GALISON,  2010,  p.  42)199.  As 
imagens tornam as virtudes epistêmicas visíveis. 
Essa  ambição  implica  uma  análise  iconográfica  que  se  aproxima  em  muitos 
momentos  daquela  produzida  pela  história  da  arte.  As  imagens  são  analisadas  como 
objetos  históricos,  frutos  de  um  determinado  contexto  de  produção,  que  circulam,  são 
utilizadas e consumidas, apropriadas e rejeitadas. A aproximação não se dá apenas pelo 
tratamento  das  fontes.  Mas  porque  lidam  com  um  problema  histórico  semelhante  e 
estreitamente  relacionado.  Desse  modo,  do  ponto  de  vista  da  produção  e  uso  de 
imagens,  o  regime  da  verdade­para­a­natureza  e  a  arte  produzida  em  seu  tempo 
“convergiam  em  julgamentos  intercruzados  sobre  verdade  e  beleza.  Os  produtores  de 
atlas  científicos  do  século  dezoito  se  referiam  explicitamente  e  repetidamente  aos 
gêneros  de  arte  e  à  sua  crítica  coevos”  (DASTON  e  GALISON,  2010,  p.  79)200.  As 
ilustrações, gravuras, pinturas e impressões compartilhavam técnicas, materiais, temas e 
topoi com as artes. Elas eram executadas por artistas a mando dos naturalistas. 
Esses  artistas,  embora  especializados  em  produzir  imagens  científicas  e  tendo 
seu  trabalho  largamente  reconhecido  e  disputado  por  produtores  de  atlas,  haviam  sido 
muitas  vezes  formados  nos  cânones  da  arte.  Eles  eram  indispensáveis  à  produção  de 
imagens  científicas,  mas  o  seu  relacionamento  com  os  naturalistas  era  frequentemente 
conflituoso,  eivado  de  “tensões:  sociais,  intelectuais  e  perceptuais”  (DASTON  e 
GALISON,  2010,  p.  88)201.  Essas  tensões  provinham  das  diferentes  concepções 
estéticas e epistêmicas que cada grupo ostentava. As queixas dos naturalistas – que se 
viam  durante  o  século  XVIII  na  posição  de  “mestres”  em  relação  aos  artistas  –  eram 
constantes.  Mesmo  o  melhor  e  mais  habilidoso  artista  precisava  estar  sob  constante 
vigilância  para  que  procedesse  de  acordo  com  os  critérios  científicos  de  produção  da 
imagem (DASTON e GALISON, 2010, pp. 84­98). 

199 No original:  “to show, first of all, how epistemic virtues can be inscribed in images, in the ways they 
are made, used, and defended against rivals”. Tradução minha. 
200 No original: “converged in intertwined judgements of truth and beauty. Eighteenth­century scientific 
atlas makers referred explicitly and repeatedly to coeval arts genre and criticism”. Tradução minha. 
201 No original: “tensions: social, intellectual, and perceptual”. Tradução minha.
173
No  cabo­de­guerra  visual  entre  o  naturalista  e  o  artista  do  Iluminismo,  o 
naturalista lutava pelo realismo dos tipos contra o artista, que se agarrava ao naturalismo 
das  aparências.  Porque  a  imagem  racionalizada  poderia  ser  vista  apenas  pelo  olho  da 
mente, os aspectos cognitivos e sociais da relação entre naturalista e artista se tornavam 
turvos (DASTON e GALISON, 2010, p. 86)202.
As  imagens  científicas  têm  a  sua  epistemologia,  a  sua  ética  e  a  sua  estética.  A 
interdependência desses três campos, no entanto, não permite que a imagem científica 
se  confunda  com  a  arte;  existem  interesses  e  hábitos  em  comum,  mas  os  dois 
permanecem  sendo  muito  diferentes.  A  relação  que  existe  é  de  afinidade  e  não  de 
identidade.  As  imagens  científicas  dos  atlas  setecentistas  obedecem  a  um  conjunto  de 
normas  específico,  apesar  do  seu  deslocamento  para  a  categoria  de  obra  de  arte  ou 
objeto  decorativo  depois  da  emergência  da  objetividade.  A  ilustração  botânica,  por 
exemplo, foi apreciada em seu valor estético fora da corporação dos cientistas enquanto 
ainda era amplamente utilizada como objeto de ciência, mas é no século XX que ela vai 
inundar  todos  os  fluxos  culturais,  desde  floras  ricamente  ilustradas  que  decoram 
consultórios médicos até a Panacea Phantastica de Adriana Varejão. 
Parece  mais  “natural”  para  o  nosso  modo  de  cognição  e  experiência  estética 
conceber a ilustração botânica, anatômica, zoológica ou astronômica como algum tipo 
de  obra  de  arte.  No  entanto,  as  imagens  produzidas  sob  o  regime  da  objetividade 
resistem.  Segundo  uma  parte  do  seu  discurso,  a  neutralidade,  imparcialidade  e 
automatismo da imagem lhe colocam em uma posição alheia a julgamentos estéticos. A 
fotografia  é  o  instrumento  emblemático  dessa  forma  de  vida.  Ela  exerceu  sobre  os 
cientistas do século XIX uma fascinação maior que qualquer outro novo invento203. Já 
em 1839, em uma apresentação do físico e astrônomo francês François Arago sobre as 
invenções de Daguerre para uma audiência composta – não por acaso – por membros da 
Académie  des  Sciences  e  da  Académie  des  Beaux­Arts,  os  cientistas  já  destacavam  as 
possibilidades  que  esses  novos  aparelhos  abriam  para  a  sua  prática  (DASTON  e 
GALISON, 2010, pp. 126­130). 

202  No  original:  “In  the  visual  tug­of­war  between  Enlightenment  naturalist  and  artist,  the  naturalist 
fought  for  the  realism  of  types  against  the  artist,  who  clung  to  naturalism  of  appearances.  Because  the 
reasoned image could be seen only by the mind’s eye, the social and cognitive aspects of the relationship 
between naturalist and artist blurred”. Tradução minha. 
203 Mais precisamente, “photography was not one but several inventions” desenvolvidas principalmente 
entre as décadas de 1820 e 1830 (DASTON e GALISON, 2010, p. 125).
174
A fotografia, assim como outras máquinas, fornecia a possibilidade de produzir 
imagens  intocadas  por  mãos  humanas.  Ela  era  uma  promessa  de  eliminação  das 
projeções, mesmo involuntárias, da vontade do artista ou do cientista sobre a imagem. A 
sua  dificuldade  de  operação  era  compensada  pelo  seu  automatismo.  No  entanto,  a 
fotografia não cria a objetividade mecânica (DASTON e GALISON, 2010, p. 197). Ela 
responde  de  modo  quase  perfeito  a  uma  demanda  por  formas  de  representação  da 
natureza  que  fossem  imunes  à  agência  humana  (a  fotografia  era  valorizada  mais  por 
essa sua capacidade do que por produzir imagens supostamente mais realistas), e desse 
modo  é  rapidamente  apropriada  e  extremamente  valorizada.  Mas  ela  não  cria  nos 
cientistas a necessidade de representar a natureza de forma mecânica. “Uma fotografia 
era considerada cientificamente objetiva porque ela se contrapunha a um tipo específico 
de  subjetividade  científica:  intervenção  para  estetizar  ou  teorizar  o  que  é  visto” 
(DASTON e GALISON, 2010, p. 135)204.
Apesar  dessas  promessas,  os  autores  não  se  submetem  às  expectativas  criadas 
por essa virtude epistêmica, não se fiam na versão da história contada pela objetividade. 
Ao  situar  a  emergência  da  fotografia  e  o  estabelecimento  das  suas  práticas  entre  a 
ciência e a arte, os autores mostram como a objetividade também possuía uma estética. 
Os  cientistas  se  confrontavam  cotidianamente  com  implicações  relativas  a  técnicas  de 
representação, a formas de manipulação da imagem e a considerações sobre o belo. No 
entanto,  é  claro,  tentavam  marcar  distância  das  especulações  estéticas.  Se  as  relações 
entre arte e ciência até o século XVIII eram tensas, porém próximas, a partir de meados 
do  século  seguinte  a  relação  passa  a  ser  de  oposição  aberta.  Enquanto  os  artistas 
valorizavam  cada  vez  mais  a  exibição  da  sua  personalidade  através  da  sua  obra,  os 
cientistas  exortavam  a  supressão  da  vontade  e  dos  traços  individuais.  A  “fotografia 
científica  era  apenas  uma  espécie  de  fotografia  oitocentista  e  a  fotografia  objetiva  era 
por  sua  vez  apenas  uma  variedade  da  fotografia  científica”  (DASTON  e  GALISON, 
2010,  p.  126)205.  No  entanto,  todas  as  espécies  e  variedades  de  fotografia  deveriam 
lidar  com  o  problema  do  limite  do  automatismo  e  da  inevitabilidade  do  recurso  à 
habilidade  (uma  característica  largamente  percebida  como  individual)  na  produção  de 
imagens fotográficas.

204 No original: “A photograph was deemed scientific objective because it countered a specific kind of 
scientific subjectivity: intervention to aestheticize or theorize the seen”. Tradução minha. 
205  No  original:  “scientific  photography  was  only  one  species  of  nineteenth­century  photography,  and 
objective photography was in turn only one variety of scientific photography”. Tradução minha.
175
Como já afirmei, não é apenas o trato com a imagem que aproxima a trama do 
Objecivity  da  história  cultural  das  ciências.  Existe  um  uso  da  noção  de  cultura  e  dos 
conceitos  que  habitam  o  seu  campo  semântico  semelhante  ao  que  tem  sido  proposto 
pela história cultural desde as últimas décadas do século passado. Essa noção alcançou 
um lugar de destaque nas transformações contemporâneas da historiografia tout court. 
Como  sabemos,  a  história  cultural  se  alçou  à  condição  de  espaço  de  recriação  do 
conhecimento histórico depois do colapso da União Soviética e do “fim da História”. As 
condições  para  interpretar  o  passado  eram  drasticamente  alteradas  e  a  guinada  a  uma 
versão  antropológica  da  história  soube  acomodar  a  formação  de  um  novo  espaço  de 
experiência  à  medida  que  se  construía  um  novo  horizonte  de  expectativa  em  um 
momento  em  que  bases  culturais  que  sustentavam  a  legitimidade  das  narrativas 
historiográficas  não  estavam  mais  disponíveis.  Nesse  período,  agitada  pela  força  dos 
eventos  e  pela  emergência  de  um  novo  ritmo  da  temporalidade,  a  história  abandona  a 
crença na sua capacidade de atingir um saber objetivo e assume o seu caráter narrativo 
(IGGERS, 2010; RICOEUR, 1994).
Nos anos 1990, a nova história cultural – sob a influência da antropologia e da 
micro­história  italiana  –  deslocou  a  sua  atenção  “das  estruturas  para  as  redes,  dos 
sistemas de posições para as situações vividas, das normas coletivas para as estratégias 
singulares” (CHARTIER, 1994, p. 98). O seu olhar agora se volta para a cultura como 
um campo que possibilita essas escolhas, embora não qualquer escolha; os seus objetos 
estão  localizados  entre  práticas  e  representações,  na  famosa  formulação  de  Roger 
Chartier206.  Ela  se  ocupa  da  linguagem  e  das  suas  margens,  do  discurso,  dos  rituais, 
das  mediações,  da  circularidade  e  do  consumo  de  cultura;  trabalha  com  o  corpo  e  os 
gestos, as sensibilidades, os locais sociais de produção cultural, como a imprensa e os 
meios  de  comunicação,  a  educação,  a  leitura  (HUNT,  2006).  Esses  temas  são 
investigados  como  vias  de  acesso  a  uma  cultura  estranha  ao  historiador,  à  alteridade. 
Com esse movimento, a história cultural dá sentido a práticas do passado que pareciam 
opacas,  ao  mesmo  tempo  em  que  problematiza  comportamentos  e  hábitos  tomados 
como naturais, no passado ou no presente. Essa guinada marcou a historiografia, mas o 
“relativismo” as suas “implicações radicais” para a produção do conhecimento histórico 
foram rejeitados ao longo dos primeiros anos do novo século. De maneira semelhante, 
Peter  Galison  e  Lorraine  Daston  marcam  a  sua  distância  em  relação  ao  relativismo. 

206 Essa fórmula parece ecoar o título do importante livro de Ian Hacking, Representar e intervir.
176
“Longe de relativizar essas virtudes [epistêmicas], a história exibe as suas razões, se não 
sua racionalidade transcendental” (DASTON e GALISON, 2010, p. 376)207.
A história cultural das ciências se informou nessa literatura para levar a cabo um 
propósito  específico  e  difícil:  tornar  a  ciência  um  fenômeno  cultural.  A  primeira 
dificuldade dessa tarefa é a de superar o estranhamento causado pela aproximação entre 
ciência  e  cultura,  que,  para  certa  tradição  intelectual  profundamente  enraizada,  soa 
como uma informação paradoxal e esquizofrênica. A ciência seria o campo da razão, da 
objetividade,  da  neutralidade,  o  conhecimento  sistemático  e  universal,  o  método.  A 
cultura, por sua vez, seria o terreno do subjetivo, do criativo, das artes, da emoção e do 
afeto.  Uma  divisão  que  espelharia  a  própria  constituição  do  mundo  e  a  cisão  entre 
natureza e cultura. Nesse sentido, a história cultural das ciências seria uma contradição 
em termos ou, na melhor das hipóteses, uma abordagem que trataria das dimensões ou 
dos  culturais  da  ciência  como  algo  que  não  pertence  ao  domínio  do  cognitivo,  do 
racional; trataria de algo que é acidental, que esta fora do que é essencial à ciência e a 
define  (PIMENTEL,  2010,  pp.  417­418).  Essa  tradição  nega  aquilo  mesmo  que  a 
história  cultural  das  ciências  se  propõe  a  afirmar,  que  a  ciência  é  cultura.  A  história 
cultural  das  ciências  levanta  contra  essa  objeção  dois  argumentos.  Primeiro,  a  noção 
antropológica  de  cultura  amplia  o  seu  significado  e  engloba  outras  possibilidades  de 
compreensão do conceito. Segundo, apesar do conceito de cultura não se resumir a essas 
características, a ciência possui várias delas (ou todas). A história cultural das ciências 
precisa  superar  o  abismo  criado  entre  as  “duas  culturas”  (SNOW,  1995),  precisa 
convencer cientistas e humanistas de que essa polarização é artificial e prejudicial.
Essa  posição  se  constituiu  desde  os  anos  1980  e  se  fortaleceu  na  década 
seguinte,  seguindo  uma  cronologia  próxima  da  história  cultural  tout  court.  Ela  se 
propunha  deliberadamente  a  superar  a  divisão  entre  internalismo  e  externalismo,  ao 
considerar  que  não  existiam  fatores  culturais  “fora”  da  ciência  e  fatores  cognitivos 
“dentro”  dela.  A  publicação  da  coletânea  editada  em  1992  por  Andrew  Pickering, 
Science as practice and culture, marca esse esforço. Embora o livro ainda esteja imerso 
no debate sobre as várias correntes em disputa no interior dos science studies, ele aponta 
para  o  que  parecia  ser  um  consenso  possível,  o  futuro  das  análises  sobre  a  ciência:  o 
deslocamento da compreensão da ciência em direção à cultura e à prática, duas noções 

207  No  original:  “Far  from  relativizing  these  virtues,  history  exhibits  their  rationale,  if  not  their 
transcendental rationality”. Tradução minha. 
177
estreitamente  relacionadas208.  Assim  como  na  historiografia,  esse  movimento  foi 
tributário da antropologia e de abordagens que utilizavam uma escala bastante reduzida 
de  análise,  principalmente  através  dos  estudos  de  laboratório,  da  etnometodologia,  do 
pragmatismo  (PICKERING,  1992;  GOLINSKI,  2005,  pp.  162­169).  Em  meados  dos 
anos  1990,  Peter  Galison  irá  dialogar  intensamente  com  essa  literatura  ao  escrever  a 
história  da  “cultura  material  do  laboratório”.  Nesse  livro,  Image  and  logic,  Galison 
identifica  três  grupos  diferentes,  ou  melhor,  três  subculturas:  instrumentalistas, 
experimentalistas e teóricos. Em constante diálogo com os science studies e fortemente 
influenciado pelo Leviathan, Galison pretende mostrar que a história dos instrumentos 
científicos  e  da  experimentação  não  é  submissa  à  história  das  teorias,  que  existem 
cronologias,  recortes,  problemas  e  contextos  específicos.  A  dinâmica  particular  dessa 
história  é  explorada  em  uma  análise  atenta  aos  sentidos  simbólicos  e  às  práticas 
materiais da big science do século XX. É significativo que como o autor reposiciona a 
sua  história.  “Trazendo  os  instrumentos  para  frente  e  para  o  centro,  nós  temos  uma 
história  diferente,  uma  história  apenas  inadequadamente  classificada  sob  as  velhas 
rubricas  da  ‘história  intelectual  interna’  e  ‘história  sociológica  externa’”  (GALISON, 
1997, p. 5)209. Em um dos seus raros artigos traduzidos para o português210, Galison 
reflete sobre a sua iniciação na história das ciências e nos fala sobre a sua tentativa de 
combinar  abordagens  que  pareciam  ortogonais:  uma  interpretação  que  colocava  toda 
ênfase na teoria, representada (para o autor) por Kuhn e Mary Hesse, e a história social 
de Braudel ou Thompson, que podia “chegar à História [...] através da materialidade do 
arroz  e  das  batatas,  dos  metros  cúbicos  do  espaço  habitacional”  (GALISON,  1999,  p. 
395).  O  autor  trabalhará  com  a  ideia  de  histórias  que  correm  em  ritmos  diversos,  que 
possuem  condicionantes  diversos  e  na  qual  diferentes  culturas  científicas  (ou 

208  O  próprio  Pickering  (1999)  publicou,  no  ano  seguinte,  um  artigo  que  sintetizou  de  forma  bastante 
competente a discussão sobre prática e agência nos science studies. Esse texto, The mangle of practice, 
influenciou  decisivamente  a  produção  posterior  ao  mostrar  que  a  prática  deve  ser  entendida  como  uma 
noção  dialética  que  comporta  resistência  e  acomodação  de  forma  constitutivamente  indexada  pela 
temporalidade.  Essa  dialética  se  desenvolve  no  interior  de  uma  luta  que  reestrutura  interativamente  o 
terreno material e humano, uma luta na qual “material agency, scientific knowledge, and human agency 
and its social contours are all reconfigured at once” (PICKERING, 1999, p. 385).   
209  No  original:  “By  bringing  instruments  front  and  center,  we  get  a  different  history,  a  history  only 
awkwardly classed under the old rubrics ‘internal intellectual history’ and ‘external sociological history’”. 
Tradução minha.  
210 O texto foi lido por Galison durante um ciclo de palestras com grandes nomes da história, da filosofia 
e  da  sociologia  das  ciências  realizado  em  Portugal  entre  1996  e  1998.  Na  verdade,  com  exceção  desse 
pequeno  artigo,  o  único  texto  de  Peter  Galison  traduzido  para  o  português  foi  o  livro  “Os  relógios  de 
Einstein e os mapas de Poincaré”.
178
subculturas)  possuíam  diferentes  relações  com  a  temporalidade.  “Uma  tal  imagem 
parecia  oferecer  uma  epistemologia  histórica  (pedindo  a  expressão  emprestada  a 
Lorraine Daston e Ian Hacking)” (GALISON, 1999, p. 397, grifo meu).    
No Objectivity, os autores lidam diretamente com representações e práticas, com 
a  perspectiva  antropológica  da  cultura.  As  práticas  científicas  não  estão  confinadas  à 
aplicação do “método científico” (uma expressão praticamente ausente na obra), mas se 
referem  aos  diversos  “modos  de  fazer”  que  instituem  a  ciência  em  sua  relação  com  a 
dimensão material e engendra as operações do campo simbólico. As práticas científicas 
alteram  as  identidades  culturais,  transformam  relações  sociais  e  o  ambiente  material, 
desagregam o mundo e o reconstroem na medida em que produzem fatos e artefatos. As 
práticas  de  produção,  consumo  e  difusão  de  imagens  científicas  se  engajam  em  uma 
relação histórica de construção recíproca com as virtudes epistêmicas e o self científico. 
As  práticas  moldam  o  self  e  são  moldadas  por  ele,  o  mesmo  ocorre  com  as  virtudes 
epistêmicas211. 
De  modo  semelhante,  as  representações  da  ciência  não  se  limitam  à  descrição 
realista e à explicação objetiva da natureza, englobando diversas “maneiras de ver”. As 
imagens  (como  também  os  gráficos,  fórmulas,  textos,  diagramas  etc)  são  parte 
integrante da “forma científica de vida”. As diferentes maneiras de representar (e ver) a 
natureza  relacionam­se  com  formas  de  ser  no  mundo.  As  imagens  produzidas  pela 
ciência, sob qualquer virtude epistêmica, tem como objetivo uma representação fiel da 
natureza. Segundo os autores, não há dúvidas de que a natureza tem participação nesse 
processo.  Isso  não  significa  dizer  que  a  natureza  se  representa  a  si  mesma,  enquanto 
todo  o  aparato  montado  pela  ciência  serve  apenas  como  um  meio  transparente  para  a 
transmissão  dos  fenômenos  naturais  e  as  suas  leis  subjacentes.  Os  cientistas  não  são 
apenas  porta­vozes  da  natureza,  eles  constroem  representações  a  partir  de 
enquadramentos  culturais  historicamente  contingentes.  Mais  do  que  isso,  os  diversos 
modos de ver o mundo inscrevem­se profundamente na forma como a persona científica 
é constituída. Os autores resumem o entrelaçamento entre práticas, representações e self 
de  maneira  enfática.  “Produzir  uma  imagem  científica  é  parte  da  produção  de  um  self 
científico” (DASTON e GALISON, 2010, p. 363)212.

211 Claro que esses elementos podem entrar em contradição, e entram frequentemente. Práticas que são 
rejeitadas  por  certas  virtudes  epistêmicas,  formas  de  disciplina  e  de  self  que  se  insurgem  contra 
determinadas práticas etc. 
212 No original: “Making a scientific image is part of making a scientific self”. Tradução minha.
179
O  self  é  o  protagonista  do  Objectivity.  As  virtudes  epistêmicas  e  suas 
vicissitudes,  os  atlas  e  os  regimes  de  produção  da  imagem  científica,  as  práticas  de 
investigação do mundo natural, a correlação entre epistemologia e ethos e tudo quanto 
os autores conseguem mobilizar se organiza para contar a história das transformações, 
das múltiplas crises e estabilizações de “maneiras de ser no mundo”. Localizando a sua 
pesquisa  no  interior  das  investigações  sobre  o  self  levadas  a  cabo  por  historiadores, 
filósofos e antropólogos, os autores declaram: “Nós estamos interessados apenas em um 
segmento específico e localizado dessa história rica e vasta, a saber, as manifestações e 
mutações  do  self  científico  entre  os  séculos  dezoito  e  vinte,  principalmente  na  Europa 
ocidental”  (DASTON  e  GALISON,  2010,  p.  198,  grifo  dos  autores)213.  O  self 
científico,  no  entanto,  não  se  forma  no  vácuo  e  não  está  imune  a  outras  formas  de 
estruturação  da  individualidade  e  do  sujeito,  ele  se  modifica  ao  sabor  dos  sotaques 
locais,  sofre  inflexões  de  classe  e  gênero  (DASTON  e  GALISON,  2010,  p.  202).  Tal 
investigação será levada a cabo a partir das lições de Arnold Davidson, Pierre Hadot e 
Michel  Foucault  sobre  a  formação  do  sujeito,  a  disciplina,  o  “cuidado  de  si”  e  as 
“tecnologias do self”. Ao contrário dos exemplos analisados por esses autores (como o 
caso  dos  filósofos  antigos,  dos  estoicos  ou  dos  religiosos),  o  self  científico  não  é 
cultivado e defendido em prol do conhecimento de si, mas do conhecimento do mundo 
(DASTON e GALISON, 2010, p. 39).
Essa  história  não  é  contada  como  se  o  self  fosse  o  nosso  engenhoso  fidalgo, 
consumindo  vorazmente  os  atlas  científicos,  sua  imaginação  se  enchendo  até  a  borda 
com  tudo  aquilo  que  lia  nos  livros,  se  enfronhando  nessa  literatura  a  ponto  de  se 
confundir com ela e correndo o mundo combatendo os gigantes da subjetividade. Como 
se  a  objetividade  fosse  uma  miragem,  algo  que  deve  ser  denunciado  e  banido  por  sua 
potência  desumanizadora,  uma  loucura  de  alguns  epistemólogos  que  conversam  sobre 
lógica  em  alemão.  Essa  história,  contudo,  teria  o  final  feliz,  já  que  nela  o  self  é  um 
Quixote redimido e conquista a honra e a virtude epistêmica, valioso item de distinção. 
A objetividade não é tampouco a pedra filosofal do conhecimento científico, capaz de 
transformar a especulação metafísica impura e imprecisa no mais puro e precioso ouro 
epistemológico.  Não,  não  é  assim  que  Lorraine  Daston  e  Peter  Galison  narram  as 
aventuras do self no país da ciência. 

213  No  original:  “We  are  interested  here  in  only  one  specific  and  localized  segment  of  this  rich  and 
capacious  history,  namely,  the  manifestations  and  mutations  of  the  scientific  self  during  the  eighteenth 
through the twentieth centuries, mostly in Western Europe”. Tradução minha.
180
Na verdade, não existe um self pronto, anterior, que, colocado em contato com a 
objetividade, toma para si os valores que ela transmite. O self não é um recipiente que 
pode  ser  completado  com  diversos  conteúdos  de  cunho  moral,  epistêmico  ou  estético; 
uma tabula rasa na qual se inscrevem as novas normas de comportamento. O self não é 
o efeito de uma causa, a invenção da objetividade ou da ideia de justiça, por exemplo. A 
explicação que os autores buscam não tem a forma das relações de causa e efeito, que 
pressupõem uma distinção clara entre os seus elementos. A causa deve ser distinta do 
efeito não apenas temporalmente (isto é, ela deve ser anterior), mas como uma entidade 
diversa.  Os  autores  pretendem  alargar  e  aprofundar  a  compreensão  da  história  das 
ciências a partir de “padrões que conectam elementos dispersos em um todo coerente” 
(DASTON  e  GALISON,  p.  36)214.  As  diferentes  configurações  do  self  emergem  na 
medida em que ele participa na construção e na emergência das virtudes epistêmicas, na 
produção  das  imagens  científicas,  na  estabilização  dos  discursos,  na  padronização  das 
formas  de  ver  e  representar  etc.  O  self  é  produto  de  um  conjunto  de  forças  que  não 
domina, que estão fora do seu alcance, uma série de eventos que não estão inscritos em 
seu destino, mas que marcam o seu horizonte de expectativa e o afetam. Mas é também 
produto  de  circunstâncias  para  as  quais  ele  colabora  ao  mesmo  tempo  em  que  se 
estrutura. As práticas modificam aquilo que somos de forma tão profunda que não sobra 
espaço para um self primordial, para a essência humana. O self é histórico e essa parece 
ser a sua única característica essencial. O self não pertence apenas à esfera do “espírito”. 
A  sua  história  é  completamente  eivada  de  materialidade.  Ele  não  tem  um  corpo,  ele  é 
um corpo que pensa e age.
Pensamento e ação que se manifestam de formas historicamente específicas em 
diferentes regimes de produção do conhecimento científico, quando operando a partir de 
virtudes epistêmicas diversas. O tipo de pessoa que é preciso ser para praticar a ciência 
informada  pela  verdade­para­a­natureza  é  bastante  diferente  e,  em  alguns  aspectos, 
oposta  ao  necessário  para  um  self  objetivo.  Os  autores  explicam  que  a  objetividade 
surge principalmente para reprimir determinados aspectos da subjetividade, do self; para 
impor uma forma de ascetismo, um distanciamento emocional, um controle rigoroso da 
manifestação da individualidade em prol de uma atitude automática e mecânica diante 
da natureza. Isso não significa que a objetividade exclui a personalidade ou o sujeito. A 
repressão, o controle e a reclusão das características individuais são formas do self tanto 

214 No original: “patterns that connect scattered elements into a coherent whole”. Tradução minha.
181
quanto  o  são  a  extroversão  ou  a  exaltação  da  personalidade.  Elas  servem  a  objetivos 
diferentes.  Os  cientistas  do  século  XIX  tinham  consciência  dos  procedimentos  que 
adotavam  suprimir  a  manifestação  da  individualidade,  sabiam  que  o  domínio  sobre  a 
vontade era um esforço, valorizavam o sacrifício deliberado necessário para o exercício 
da objetividade e professavam a importância dessa força moral. 
A verdade­para­a­natureza e o julgamento treinado não são tão obcecados com o 
self, já que essas virtudes epistêmicas não são inimigas da interferência do cientista na 
produção do conhecimento como a objetividade. Independentemente da maior ou menor 
preocupação,  toda  virtude  epistêmica  molda  e  é  moldada  por  uma  maneira  de  ser  no 
mundo  e  produzir  conhecimento  sobre  ele.  Na  a  verdade­para­a­natureza,  o  sujeito  do 
conhecimento  não  se  anula  diante  da  natureza.  Pelo  contrário,  essa  noção  pareceria 
ridícula  absurda  e  irresponsável  para  os  naturalistas  do  século  XVIII  (DASTON  e 
GALISON, 2010, p. 59). Era preciso uma postura ativa diante daquilo que se observava 
para  que  se  pudesse  extrair  dos  espécimes  individuais  as  características  essenciais, 
necessárias  e  transcendentais  que  formavam  o  objeto  da  ciência:  a  planta  perfeita,  o 
esqueleto  perfeito,  o  pássaro  perfeito.  Mesmo  que  ele  não  se  manifeste  em  nenhum 
indivíduo  particular.  De  forma  semelhante,  o  julgamento  treinado  vai  depender  da 
experiência individual do cientista, da habilidade que ele desenvolveu ao longo de sua 
formação para identificar nas imagens aquilo que é relevante, separar o sinal do ruído, 
forma  e  fundo.  O  self  é  afirmado  de  maneira  mais  confiante,  a  subjetividade  é  vista 
como menos perigosa e até necessária – desde que devidamente treinada para “ler” de 
maneira  apropriada  as  imagens  científicas.  Além  disso,  sob  o  impacto  das  pesquisas 
sobre  o  inconsciente,  os  cientistas  que  vão  professar  essa  virtude  epistêmica  pareciam 
atentos  à  impossibilidade  de  escapar  completamente  à  vontade,  perceberam  que  o  self 
não está inteiramente ao alcance de si mesmo. 
Ao  capturar  o  entrelaçamento  de  condições  cognitivas  e  morais,  ao  escrever  a 
história  das  ciências  na  chave  das  tecnologias  de  constituição  do  sujeito  do 
conhecimento,  os  autores  visitam  campos  pouco  explorados  da  nossa  disciplina.  É 
verdade que a questão “o que faz do cientista um cientista?” esteve presente em diversas 
reflexões  sobre  a  ciência.  As  respostas  a  essa  pergunta  são  múltiplas.  Para  certa 
concepção bastante enraizada, é a obediência ao método científico e a sua aplicação a 
algum domínio de investigação da natureza que torna alguém cientista, uma concepção 
que  apaga  a  preocupação  com  a  pessoa  singular  e  centra  sua  explicação  no  grau  de 
182
adesão  ao  método.  Outra  forma  presente  no  imaginário  sobre  a  ciência  e  fortemente 
explorara  pela  historiografia  hagiográfica  vigente  até  as  primeiras  décadas  do  século 
XX  é  a  que  identifica  o  grande  cientista  com  a  figura  do  gênio,  alguém  que  possui 
características intelectuais e morais superiores às dos seres humanos comuns e que não 
é,  portanto,  passível  de  análise  mais  profunda,  apenas  de  celebração.  Desde  a  virada 
para  o  século  XVIII,  Isaac  Newton  irá  ocupar  nesse  imaginário  o  posto  de  gênio  por 
excelência. A imagem associada a Newton vai variar historicamente, mas não a noção 
de que ele era o grande exemplo de vida a serviço da ciência (DASTON e GALISON, 
2010, p. 216). A sociologia mertoniana vai dizer que o cientista é alguém que pauta sua 
conduta  a  partir  de  determinadas  normas,  que  incorpora  um  ethos  profissional.  Para 
Kuhn  e  seus  adeptos,  é  o  pertencimento  a  uma  comunidade  científica  que  define  se 
determinada  pessoa  é  um  cientista  (tratei  de  Merton  e  Kuhn  respectivamente  nos 
Capítulos 2 e 3 desta tese). 
Ao responder à questão “o que faz do cientista um cientista?”, Daston e Galison 
diriam: o cientista é aquele que cultiva e põe em prática um determinado self. Com isso, 
abrem  espaço  para  novas  perguntas,  iluminam  de  forma  inusitada  um  território  que 
parecia  já  bem  conhecido.  Os  autores  não  apenas  historicizam  a  epistemologia,  como 
apontam  para  a  sua  dimensão  constitutivamente  cultural.  Enquanto  a  história  das 
ciências nutrida na tradição kuhniana obteve sucesso em destacar a natureza social do 
conhecimento, sua dependência de arranjos coletivos e de estruturas sociais, Galison e 
Daston aguçam o olhar para perceber o quanto essa o conhecimento é também produto 
(e  produtor)  da  cultura,  em  seu  sentido  mais  profundo.  Epistemologia  histórica  e 
história cultural das ciências se combinam de forma profunda.
Ao afirmar a originalidade do Objectivity, não estou desprezando a existência de 
estudos que tratam do self, vários dos quais serviram de inspiração e modelo de análise 
para  Peter  Galison  e  Lorraine  Daston.  Nem  a  presença  desse  tipo  de  abordagem  na 
análise  da  ciência.  Porém,  em  geral,  esses  estudos  tratavam  da  maneira  como  o 
conhecimento e as práticas científicas (a nomeação, por exemplo) criavam self, pessoas 
ou “condições de pessoalidade”. Os estudos de Foucault sobre a loucura e a sexualidade 
ilustram  essa  abordagem,  seguida  pela  análise  de  Arnold  Davidson  sobre  a  psiquiatria 
não  apenas  a  perversão,  mas  o  próprio  sujeito  pervertido,  impossível  antes  do  século 
XIX. Ou ainda os esforços de Ian Hacking (1999) para criar uma reflexão mais abstrata 
e  generalista  sobre  a  forma  como  a  ciência  (e  a  linguagem)  “inventa  pessoas”  e 
183
transforma a própria ideia do que significa ser um indivíduo. Na história das ciências, 
devemos mencionar ainda os trabalhos de Steven Shapin (2013) sobre a identidade do 
cientista no século XVII e sobre a “pessoa científica” de modo mais geral. Ao utilizar os 
insights fornecidos por essa literatura para investigar como a ciência produz as pessoas 
que  a  produzem,  Galison  e  Daston  realizam  uma  tarefa  inédita  e  com  implicações 
relevantes para a historiografia das ciências.   
A  escolha  dessa  estratégia  narrativa  também  indica  outro  ponto  bastante 
interessante: o herói dessa história é o indivíduo. Os autores não ignoram que a ciência 
é uma atividade inteiramente coletiva, não pretendem afirmar que ela opera apenas no 
nível do indivíduo. Afinal, os atlas, principais fontes do Objectivity, são produzidos para 
regular  e  padronizar  coletivamente  a  ciência.  Do  mesmo  modo,  a  emergência  de  um 
novo  tipo  de  self  depende  do  trabalho  de  diversos  cientistas.  “Mesmo  cientistas 
trabalhando em isolamento devem regularizar os seus objetos” (DASTON e GALISON, 
2010, p. 22)215. Apesar dessas demonstrações de atenção à ação coletiva, que poderiam 
ser sustentadas como objeções ao argumento que apresento, imagino que existem boas 
razões  para  prosseguir  com  ele.  Por  mais  que  o  self  seja  uma  categoria  que  só  ganha 
sentido  quando  praticada  por  um  coletivo,  seu  modelo  de  produção,  transmissão  e 
manifestação  é  individual.  Na  verdade,  qualquer  investigação  preocupada  com  a 
formação de sujeitos e indivíduos dever á considerar que esse indivíduo pertence a uma 
coletividade, que ele se forma em contato com outros sujeitos. A vinculação do self a 
categorias  de  ação  e  experiência  coletiva  não  nega  a  centralidade  do  indivíduo  como 
local  privilegiado  para  a  explicação  da  dinâmica  cultural  da  ciência.  O  Objectivity  se 
afasta da concepção de comunidade científica (uma expressão que é utilizada de forma 
“não­marcada”  ao  longo  do  livro).  Não  se  busca  explicar  a  ciência  pela  formação  de 
uma  comunidade  (ou  de  um  coletivo),  mas  pela  criação  de  dispositivos  capazes  de 
constranger e moldar o sujeito e transformá­lo em produtor de conhecimento. 
Em um momento em que as relações de produção do conhecimento científico se 
individualizam,  a  história  do  self  científico  chama  a  atenção  para  as  maneiras  que  as 
práticas  estabilizam  uma  forma  de  ser  no  mundo;  mesmo  as  tentativas  de  fuga  da 
individualidade  e  a  sua  reprovação  como  produtora  de  interferências  danosas  são 
destacadas como produto da vontade e do self. Devemos investigar como essa história 
lida com a questão dos fatores internos e externos na explicação da ciência. A crítica ao 

215 No original: “Even scientists working in solitude must regularize their objects”. Tradução minha.
184
modelo  de  desenvolvimento  por  rupturas  ou  revoluções  e  ao  modelo  de  acumulação 
linear  deve  propor  uma  nova  concepção  da  história  das  ciências  e  da  dinâmica  das 
transformações no modo de produção da ciência. Devemos considerar algumas questões 
a  partir  do  par  conceitual  que  organiza  a  explicação  dos  autores:  virtude  epistêmica  e 
self científico. Um mesmo cientista pode praticar duas virtudes epistêmicas? Se não, o 
processo de acumulação é um processo de crescimento e subdivisão dos tipos possíveis 
de produção do conhecimento científico? Isto é, a convivência de dois modelos em um 
determinado  período  não  implica  a  sua  coexistência  no  interior  de  uma  mesma 
disciplina, de um mesmo conjunto de práticas, de uma mesma cultura científica? Como 
fazer coexistir dois self científicos diferentes? 
Os  autores  argumentam,  como  já  apontei,  que  a  emergência  de  novas  virtudes 
epistêmicas (com suas respectivas formas científicas de vida) não implica na destruição 
ou desaparecimento dos antigos modelos. Nem significa a incorporação do antigo pelo 
novo,  como  “caso  limite”.  A  emergência  da  objetividade,  por  exemplo,  reposiciona  a 
verdade­para­a­natureza,  desloca  as  suas  funções.  A  acumulação  se  dá  no  plano  das 
possibilidades de escolha diante de formas diferentes de praticar e representar a ciência. 
Novas virtudes se somam ao repertório que está à disposição dos cientistas. Ao deslocar 
a  explicação  da  comunidade  para  o  self,  Lorraine  Daston  e  Peter  Galison  situam  a 
ciência  em  uma  escala  que  suscita  novos  problemas,  turvam  as  fronteiras  entre  aquilo 
que é interno e o que é externo. Não há uma dimensão cognitiva, teórica ou intelectual 
que  seja  possível  isolar;  nem  uma  sociedade  anterior  que  possa  interferir  e  moldar  o 
conhecimento  de  acordo  com  determinadas  características  e  em  função  de  certos 
interesses. A ciência, o cientista e o coletivo se produzem simultaneamente sob a forma 
de  um  conjunto  de  normas  morais  que  guiam  as  práticas.  Essas  práticas,  por  sua  vez, 
reforçam ou resistem a essas normas. Seria forçado interpretar a história da fusão entre 
valores  éticos  e  epistemológicos  como  uma  versão  do  interno  e  externo,  daquilo  que 
pertence necessariamente à ciência ou do que lhe é contingente. Não há prioridade entre 
ethos  e  epistemologia,  os  dois  domínios  são  parte  integrante  da  ciência,  se 
retroalimentam.
Isso significa que a aventura do internalismo e do externalismo finalmente chega 
ao  fim?  Que  a  historiografia  representada  pelo  Objectivity  (que,  obviamente,  não  fala 
por toda a historiografia das ciências) abandonou a demarcação? Esse provavelmente é 
um  desejo  dos  autores,  que  com  isso  tornariam  a  história  das  ciências  radicalmente 
185
histórica – um capítulo da história da cultura. Esse desejo ecoa nas reiteradas afirmações 
de que a história da objetividade é parte da história do self e não apenas da história das 
ciências.  Com  efeito,  a  própria  ideia  de  uma  história  das  ciências  deveria  ser 
redimensionada,  posto  que,  completamente  integrada  à  história,  muito  da  sua 
especificidade  perderia  o  sentido.  Como  vimos  ao  longo  desta  tese,  a  história  das 
ciências  tradicionalmente  definiu  sua  área  de  atuação  a  reboque  de  uma  definição  de 
ciência  que  era  largamente  refratária  à  história.  Historicizar  profundamente  a  ciência, 
submetê­la  ao  poder  corrosivo  da  temporalidade,  significa  olhar  para  o  nosso  próprio 
campo  de  atuação  de  uma  forma  diferente.  O  Objectivity  marca  assim  o  final  de  um 
percurso e uma transformação no modo hegemônico de escrita da história das ciências 
ao longo do século XX, seja no seu processo de construção e defesa, seja no processo de 
ataques, subversão e desintegração que ocorre desde a década de 1960. À medida que a 
ciência – em sua manifestação contemporânea, a tecnociência – define cada vez mais o 
modo como vivemos e se torna, em ritmo acelerado, um dos principais traços culturais 
do século XXI, a integração entre história das ciências e história da cultura se torna uma 
questão menos problemática. 

186
Conclusão ou ciência, objeto da história.

Esta  tese  esboça  um  largo  panorama  da  história  das  ciências  durante  o  século 
XX e início do XXI. Essa abrangência cronológica pode sugerir uma pesquisa sem foco 
definido, cujo objeto escapa diante da multiplicidade de problemas que se apresentam, 
de contextos que se transformam, de novos atores que entram em cena e modificam a 
direção do enredo. Uma tentativa megalomaníaca de explicar toda a produção histórica 
sobre a ciência produzida no século passado, concatenando­a em uma narrativa linear e 
coerente.  Ao  longo  do  texto,  essa  impressão  se  desfaz.  Ao  contrário,  os  capítulos 
precedentes  centram  a  atenção  em  uma  seleção  bibliográfica  restrita,  lidam  com  um 
panorama que está longe de abarcar toda a produção historiográfica sobre a ciência no 
período, não era essa a intenção. 
Essa amplitude temporal é limitada pelos diversos recortes propostos para esse 
trabalho. O primeiro diz respeito à proposta de seguir a trajetória do internalismo e do 
externalismo  na  explicação  da  história  das  ciências  ao  longo  de  um  período  no  qual 
essas  formas  de  interpretação  já  haviam  sido  declaradas  obsoletas,  se  não  extintas.  O 
segundo, identificar essa trajetória em uma vertente específica da história das ciências, 
aquela que chamei de “tradição kuhniana”, que realizou uma interpretação sociológica 
da  obra  de  Kuhn  e  seguiu  o  leitmotiv  de  garantir  “um  papel  para  a  história”  na 
explicação  da  ciência.  Dentro  dessa  corrente,  escolhi  dois  livros  através  dos  quais 
considerei  possível  explorar  uma  série  de  temas:  o  Leviathan  and  the  air  pump  e  o 
Objectivity, analisados respectivamente nos capítulos 4 e 5.
As  principais  questões  que  ataquei  no  texto  dizem  respeito  aos  modos  que  a 
escrita  da  história  das  ciências  era  produzida  na  confluência  do  modo  de  produção  do 
conhecimento  científico,  da  função  social  da  ciência  e  das  Políticas  de  Ciência  e 
Tecnologia.  A  trama  discursiva  que  produzi  contém  então  três  camadas  narrativas 
entrelaçadas, respondendo a essas três ordens de problemas. Ao longo da Parte I desta 
tese  tentei  mostrar  a  emergência  da  história  das  ciências  como  campo  disciplinar  e 
especialmente a “querela entre internalismo e externalismo” em sua fase clássica, que se 
187
desenrola entre os anos 1930 e 1960, estavam imersas nos debates sobre a superioridade 
epistêmica e moral da ciência e seu papel como esteio da civilização ocidental, sobre o 
surgimento  das  Políticas  de  Ciência  e  Tecnologia  no  interior  dos  Estados  nacionais. 
Temas relativos à alocação de recursos do Estado em atividades de pesquisa científica, à 
planificação  e  à  liberdade  individual  do  cientista  concorriam  e  se  confundiam  com 
questões  de  demarcação  entre  ciência  e  não­ciência,  dinâmicas  da  mudança  científica, 
cientificismo, empirismo, positivismo e antipositivismo etc.
Na  Parte  II,  a  mesma  estratégia  analítica  foi  utilizada  para  avaliar  o  período 
posterior  à  publicação  de  A  estrutura  das  revoluções  científicas,  livro  que  marca  a 
passagem  para  uma  nova  forma  de  escrever  a  história  das  ciências  e  que  dialoga  com 
um novo ambiente político. Temos aqui a primeira grande tentativa de superar a divisão 
entre  internalismo  e  externalismo  na  história  das  ciências.  Como  vimos,  a  solução  foi 
combinar  momentos  internalistas  (a  ciência  normal),  com  momentos  externalistas  (a 
ciência revolucionária); não se problematiza os limites entre aquilo que é interno e o que 
é  externo  à  ciência.  É  o  período  marcado  pela  Guerra  Fria  e  pela  estruturação  do 
complexo militar­industrial­científico designado Big Science. Apesar da obra de Kuhn 
ser tomada aqui como um ponto de inflexão, ela foi avaliada sobretudo a partir de dois 
aspectos.  Por  um  lado,  a  sua  função  política  como  tradutora  de  um  novo  projeto  de 
organização social da ciência, um novo pacto entre ciência, sociedade e Estado – cujo 
emblema é a noção de comunidade científica. Por outro lado, a sua ambiguidade teórica 
que garante aos cientistas agrupados na comunidade autonomia em relação ao conjunto 
da sociedade ao mesmo tempo em que fornece elementos para uma análise sociológica 
radical da ciência (ou, pelo menos assim foi interpretado por aqueles que radicalizaram 
a  leitura  kuhniana).  Essa  brecha  sociológica  será  escancarada  pelo  programa  forte  da 
sociologia  do  conhecimento  científico,  continuada  pelos  science  studies  e  pela 
historiografia  que  se  forjou  nesse  ambiente.  Parte  do  impulso  para  essa  radicalização 
veio  das  críticas  direcionadas  à  ciência,  à  sua  apropriação  pelas  elites  políticas  e 
econômicas  globais,  ao  seu  papel  nas  guerras,  na  produção  e  manutenção  de 
desigualdades sociais, à configuração conservadora da sua ideologia. Ao longo dos anos 
1970, uma parte considerável dessas críticas foi feita por cientistas.
À  medida  que  o  século  se  aproxima  do  seu  fim,  os  próprios  elementos  que 
organizam  a  leitura  da  história  das  ciências  que  realizo  neste  texto  passam  por 
transformações. Algumas dessas mudanças foram bastante profundas, como a crescente 
188
pulverização da ciência (e da tecnologia) por todo o tecido social e sua penetração em 
nível  molecular  em  todas  as  esferas  da  vida,  desde  as  mais  importantes  decisões 
políticas  às  mais  banais  atividades  cotidianas.  Praticamente  todas  as  relações  e 
operações sociais passam a ser mediatizadas por dispositivos tecnocientíficos; a ciência 
e a tecnologia interferem diretamente na própria forma como as sociedades ocidentais 
arranjam  as  suas  estruturas  psíquicas,  cognitivas  e  mesmo  afetivas  (poderíamos  dizer, 
com  certa  ironia,  que  possuímos  agora  uma  “econometria  libidinal”).  Trata­se  de  um 
processo  de  tipo  hegemônico.  Mesmo  nas  sociedades  centrais  do  Ocidente  –  ou  nas 
amplamente  ocidentalizadas,  como  o  Brasil  –  existem  permanências  e  resistências  e  a 
esse  processo.  Essas  formas  são  sempre  tratadas  como  residuais  ou  alternativas.  Em 
resumo,  a  cultura  e  a  visão  de  mundo  foram  capturadas  pela  racionalidade 
tecnocientífica. 
Isso  altera  decisivamente  a  forma  de  escrever  a  história  das  ciências.  Naquilo 
que diretamente nos interessa, essa onipresença da ciência borra as distinções entre os 
fatores internos e externos. Não faz mais tanto sentido dizer que algo está dentro ou fora 
da  ciência.  Como  tentei  mostrar  a  partir  da  análise  do  Leviathan,  a  emergência  do 
conceito de tecnociência e a forma como Simon Schaffer e Steven Shapin o projetam no 
século  XVII  são  indicativos  desse  processo.  Duas  décadas  depois  da  Estrutura,  os 
autores insistem na superação da velha dicotomia. A estratégia utilizada, porém, é a de 
exibir  a  demarcação  entre  fatores  internos  e  fatores  externos  como  algo  artificial, 
convenções culturais produzidas em correlações de força historicamente localizadas. A 
afirmação  de  uma  prática  cultural  depende  da  demarcação  de  fronteiras.  Ao  narrar  a 
história da disputa entre Hobbes e Boyle como um processo que cria simultaneamente o 
contexto, o conteúdo e a demarcação entre ambos – processo que se dá através de uma 
série de tecnologias – os autores pretendem atacar todo o problema da demarcação entre 
ciência e não­ciência e, consequentemente, a questão dos fatores internos e externos.  O 
jogo  entre  os  fatores  é  denunciado  como  uma  falsa  disputa,  criada  para  ressaltar  a 
especificidade da ciência, o seu isolamento e autonomia. Mesmo negando a existência 
de  fatores  internos  e  externos  na  realidade  e  deslocando  o  seu  campo  de  produção  e 
atuação  para  a  dimensão  artefatual,  os  autores  não  abandonam  a  rígida  fronteira  entre 
sociedade e natureza, entre real e convencional. Eles parecem se guiar pelo princípio de 
simetria proposto por David Bloor.

189
 Finalmente, o último capítulo trata da conformação da história das ciências no 
início  do  século  XXI.  Nele,  tentei  mostrar  a  reação  da  historiografia  às  críticas  que 
foram direcionadas a ela – especialmente durante o episódio das Guerras da Ciência na 
primeira  metade  da  década  de  1990.  Ao  se  tornar  a  forma  dominante  de  analisar  a 
ciência, os science studies ficaram expostos às mais diversas objeções e os historiadores 
que se formaram em contato com essa empreitada interdisciplinar foram arrastados para 
debates  duros  sobre  os  fundamentos  da  concepção  de  ciência  que  eles  defendiam.  As 
Guerras da Ciência foram, como vimos, o ápice desse processo. Para as intenções desse 
texto,  foi  mais  importante  mostrar  as  implicações  dessas  disputas  para  a  escrita  da 
história  das  ciências  do  que  fazer  uma  avaliação  minuciosa  das  Guerras  da  Ciência. 
Argumentei que o momento que se seguiu a essas tensões foi marcado pela reflexão e 
pela reavaliação de alguns princípios que guiavam essas formas da análise da ciência. 
De modo geral, tentou­se elaborar uma leitura que combina construtivismo com algum 
grau de realismo e que abandona o relativismo “radical” das décadas de 1970 e 1980. 
Para  entender  como  essas  críticas  foram  metabolizadas  pela  historiografia  e 
quais  as  soluções  propostas,  centrei  a  análise  do  capítulo  no  livro  Objectivity,  de 
Lorraine Daston e Peter Galison. Esse é um dos mais brilhantes exemplares daquilo que 
poderíamos interpretar como o mais recente desdobramento da nova historiografia das 
ciências  (a  primeira  edição  é  de  2007,  embora  os  autores  já  estejam  na  ativa  desde  o 
final  dos  anos  1970).  A  formulação  de  uma  epistemologia  histórica  (que  é  uma 
modalidade  de  história  e  não  um  tipo  de  epistemologia)  e  a  contribuição  da  história 
cultural  das  ciências  fazem  parte  do  esforço  dos  autores  para  situar  a  sua  história  da 
objetividade  no  seio  da  história  tout  court.  É  uma  história  de  práticas  culturais  que 
concorrem  para  a  produção  simultânea  de  imagens  científicas,  virtudes  epistêmicas  e 
sujeitos do conhecimento. Ela ultrapassa recortes cronológicos, disciplinares e teóricos 
convencionais  e  constrói  um  novo  objeto  para  a  história  das  ciências.  Ao  narrar  a 
história das ciências do ponto de vista da constituição do sujeito do conhecimento e das 
disciplinas do self, o livro desloca a dinâmica da produção do conhecimento científico 
do plano da comunidade para o do indivíduo – uma operação que, como destaquei, não 
ignora a dimensão coletiva. Na verdade, o Objectivity é menos uma história da produção 
do  conhecimento  científico  e  mais  uma  história  da  produção  do  sujeito  do 
conhecimento. “Quem conhece?” e “Como conhece?” são as suas perguntas. Perguntas 
feitas e respondidas de modo histórico.
190
O  longo  trajeto  percorrido  por  esta  tese  tentou  capturar  a  dinâmica  dos  fatores 
internos e externos e a sua natureza histórica. Ele faz surgir também um argumento que 
considero  extremamente  importante  para  que  possamos  compreender  a  historiografia 
das  ciências  nos  últimos  cem  anos  e  a  sua  inserção  em  um  ambiente  intelectual  e 
político que teve a ciência como uma personagem de imenso destaque. É uma avaliação 
de  caráter  bastante  amplo  que  foi  ressaltada  em  diversos  momentos  desta  tese  e  que 
fornece uma chave para interpretar o complexo movimento que a história das ciências 
descreve  –  um  movimento  que  não  é  linear  e  progressivo.  Ele  pode  ser  resumido  da 
seguinte  maneira.  A  transformação  da  ciência  em  objeto  da  história  e  a  trajetória  da 
disciplinarização  da  história  das  ciências  são  o  mesmo  fenômeno.  Essa  frase  pode 
parecer  tautológica.  Óbvio  que  a  história  das  ciências  só  pode  existir  enquanto 
disciplina se a ciência se torna seu objeto. Qual seria o objeto da história das ciências 
que  não  a  própria  ciência?  No  entanto,  quero  sustentar  aqui  que  essa  tautologia  só  se 
torna  evidente  ao  final  desse  processo;  ela  é  um  efeito  dessa  história  que  contei  nos 
capítulos precedentes e demonstra o sucesso dessa empreitada. Se nos valermos de um 
princípio  de  reflexividade  e  supusermos  que,  para  a  história  das  ciências,  o 
conhecimento produzido e as funções políticas e sociais coincidem, poderemos dar um 
passo  para  fora  da  sensação  de  obviedade.  Irei  proceder  devagar  nesse  processo, 
tentando explicitar o que significa para a ciência ser objeto da história e questionando se 
esse seria o único caminho possível para a nossa disciplina.
Transformar a ciência em objeto da história implica em modificar a ciência e a 
história.  Implica  em  subverter  formas  poderosas  e  socialmente  enraizadas  de 
compreender a ciência e falar sobre ela. Ao longo desta tese, especialmente na Parte I, 
tentei ressaltar alguns aspectos da construção histórica de um discurso que identifica a 
ciência com o ponto mais alto do intelecto humano, como um modo especial e superior 
de contato cognitivo com a realidade objetiva. A versão mais extrema desse argumento 
é o cientificismo, que surge no século XIX. Essa perspectiva não se restringe em afirmar 
a superioridade epistêmica da ciência, ela defende que só a ciência é capaz de produzir 
conhecimento  verdadeiro  sobre  o  mundo  e  de,  através  desse  acesso  privilegiado  à 
verdade,  nos  guiar  na  realidade,  fornecendo  parâmetros  objetivos  de  ação  no  mundo. 
Assim,  a  ciência  é  também  moralmente  superior.  Ao  acatarmos  o  princípio  de 
superioridade da ciência, nos baseamos nele para decidir o que ensinar na escola, o que 

191
aceitar  como  prova  em  um  tribunal,  como  se  tratar  de  uma  doença,  em  que  políticas 
públicas utilizar o erário público.
Essa  posição  depende,  como  sabemos,  de  uma  noção  de  realidade  como  uma 
coisa  exterior,  independente  e  regulada  por  mecanismos  ou  leis  alheias  e  anteriores  à 
vontade humana. São os fatos, ou a natureza – sempre em oposição à cultura. É dela que 
se  ocupa  a  ciência  e,  quando  bem  sucedida,  ocorre  uma  superposição  entre  o 
conhecimento e a realidade. Assim, para o cientificismo e suas várias nuances e matizes 
espalhados  na  visão  de  mundo  dominante  no  século  XX  e  começo  do  XXI,  o 
conhecimento  científico  não  está  sujeito  à  história.  Ele  se  confunde  com  aquilo  que 
conhece,  afirma  verdades  e  descreve  fatos  imunes  ao  tempo,  aos  assuntos  humanos 
(MAIA, 2013). Os cientificistas não negam a existência ou a validade de uma história 
das  ciências.  Desde  que  essa  história  sirva  para  reforçar  esse  discurso,  uma  história 
dependente,  a  serviço  da  ciência.  Qual  o  objeto  da  história  de  uma  ciência  que  não 
possui história? O objeto poderia ser a vida de um cientista e sua luta para descobrir um 
fato, um fenômeno ou uma lei da natureza – são biografias que ressaltam a genialidade e 
o sacrifício, apesar da condição humana, seu modelo são as hagiografias que contam a 
vida  dos  grandes  homens  e  mulheres  da  religião  católica  em  seu  imenso  esforço  na 
conquista  da  santidade.  Ou  pode  ser  também  que  o  objeto  seja  uma  determinada 
instituição  científica.  Pode  ser  uma  disciplina,  uma  história  da  química,  por  exemplo, 
onde  se  narram  os  périplos  que  levaram  das  trevas  da  alquimia  à  iluminação  da 
revolução  do  século  XVIII,  uma  trajetória  em  direção  à  razão  e  à  verdade.  Narrativas 
similares contam a história de teorias ou ideias científicas, desde a sua primeira intuição 
–  geralmente  entre  os  gregos  –  até  o  seu  triunfo  no  mercado  das  ideias,  novamente  a 
vitória da razão e da verdade. 
Em  todos  esses  casos,  que  ainda  continuam  a  povoar  a  história  das  ciências,  a 
noção de história se resume à mera cronologia. O encadeamento de fatos do passado em 
uma  sequência  que  destaca  a  marcha  irrefreável  do  intelecto  humano  em  direção  ao 
progresso.  Uma  historiografia  insistentemente  criticada  geração  após  geração,  por 
Alexandre  Koyré,  por  Thomas  Kuhn,  por  Steven  Shapin,  por  Lorraine  Daston.  A 
permanência da crítica diz muito a respeito da permanência da prática. Essas gerações 
tentaram superar a mera cronologia com as ferramentas ao seu alcance, em diálogo (e 
conflito) permanente com a ciência do seu tempo, em relação com um ambiente político 
e social que lhes fornecia um campo de atuação e transgressão limitado (“se a história 
192
fosse  vista  como  um  repositório  para  algo  mais  que  anedotas  ou  cronologias...”,  era  o 
apelo de Kuhn [2001, p. 19]). 
Foi  essa  tentativa  de  criar  “algo  mais”,  de  fazer  com  que  a  história  desse  uma 
contribuição efetiva à explicação da ciência que mapeei nos capítulos anteriores sob a 
rubrica da “tradição kuhniana”. A força do vocabulário da demarcação, a resistência dos 
fatores internos e externos ao longo do percurso mostra a dificuldade do desafio a ser 
enfrentado.  O  imaginário  cientificista  foi  cristalizado  na  nossa  cultura  intelectual,  está 
profundamente  inscrito  na  nossa  visão  de  mundo.  Não  se  escapa  dele  apenas  com 
voluntarismo.  Foi  preciso  que  a  configuração  histórica  que  lhe  garantia  tanta  força  se 
modificasse  e  permitisse  o  surgimento  de  novas  maneiras  de  compreender  a  ciência. 
Maneiras  que  não  estavam  determinadas  pelo  contexto,  mas  que  eram  tornadas 
possíveis por ele; heresias e transgressões que cabiam nesse novo clima histórico.
A última parte da tese aponta para o sucesso dessa empreitada. Argumentei em 
defesa  de  uma  nova  maneira  de  historiar  as  ciências.  Acompanhei  o  processo  de 
disciplinarização  da  história  das  ciências,  descrevendo­o  como  um  produto  de  certas 
circunstâncias,  como  resultado  de  correlações  de  força  específicas.  A  autonomização 
desse  campo  do  conhecimento,  a  sua  menor  dependência  em  relação  ao  objeto 
historiado foi um aspecto chave nesse processo. O seu resultado mais importante foi o 
de  conferir  historicidade  à  ciência  (CONDÉ,  No  prelo).  Ao  afirmar  que  a  ciência  está 
completamente  sujeita  ao  imperativo  da  historicidade,  que  ela  é  constantemente 
elaborada  e  desarticulada  pelo  ritmo  da  temporalidade,  a  história  expõe  os  diferentes 
regimes  de  verdade,  questiona  a  validade  universal  de  práticas  locais,  suspeita  da 
objetividade  de  conhecimentos  que  emergem  como  resultado  de  arranjos  coletivos, 
agenciamentos  simbólicos  e  materiais.  Conferir  historicidade  significa  dizer  que  a 
história não se manifesta apenas como cronologia, mas que é uma condição necessária 
de determinado fenômeno – a dimensão temporal é constitutiva e estruturante.
Esse  movimento,  que  pode  soar  quase  banal  para  qualquer  objeto  que  se 
pretenda  tratar  historicamente,  assume  um  tom  radical  quando  se  trata  da  ciência.  A 
proposta de conferir historicidade à ciência enfrenta resistências poderosas. A principal 
delas  é  a  recorrente  acusação  de  relativismo,  frequentemente  considerado  um  dos 
maiores  perigos  intelectuais  da  contemporaneidade.  Para  esses  críticos,  como  os 
partidários  de  Alan  Sokal  no  episódio  das  Guerras  da  Ciência,  o  relativismo  era 

193
flagrantemente absurdo. A locução “tudo é relativo” é logicamente contraditória, nega a 
sua própria condição de verdade. 
Mesmo  que  aceitemos  a  sua  premissa,  ela  não  responde  satisfatoriamente  a 
questões  sobre  os  fundamentos  do  conhecimento,  sobre  a  justificação  racional  da 
crença,  sobre  a  assustadora  eficácia  da  ciência  em  fazer  previsões  corretas  acerca  do 
futuro  ou  em  calcular  precisamente  o  diâmetro  de  Plutão.  Renan  Springer  de  Freitas 
(2003),  por  exemplo,  lamenta  a  pobreza  epistemológica  da  nova  historiografia  das 
ciências.  A  partir  de  uma  leitura  do  trabalho  de  Steven  Shapin,  o  sociólogo  discute 
como a ênfase nas práticas científicas afasta a história de um diálogo mais próximo com 
a filosofia das ciências que permita refletir sobre a natureza do conhecimento científico. 
Sem  essa  reflexão,  a  historiografia  seria  incapaz  de  fazer  as  perguntas  corretas  e  de 
compreender o desenvolvimento da ciência naquilo que ele tem de realmente importante 
e  gastaria  seu  esforço  em  teorizar  sobre  o  secundário,  pouco  relevante.  Essa  crítica  é 
compartilhada  pelos  autores  informados  por  uma  perspectiva  popperiana  de 
compreensão  da  ciência,  como  é  o  caso  de  Springer  de  Freitas.  Ela  parece  insistir  na 
divisão entre “contexto da descoberta” e “contexto da justificação” e na capacidade da 
ciência  progredir  através  de  conjecturas  e  refutações.  A  única  dimensão  coletiva  do 
conhecimento  é  a  crítica.  Ao  que  tudo  indica,  não  passa  pela  cabeça  dos  críticos  do 
relativismo  problematizar  se  essas  perguntas  sobre  fundacionismo,  justificacionismo  e 
correspondência entre linguagem e mundo são as únicas capazes de julgar a qualidade 
de uma teoria do conhecimento ou de uma história das ciências.
Ainda  segundo  essa  posição,  sustentar  o  relativismo  é  psicologicamente 
impossível.  Qualquer  mente  consciente  teria  que  espelhar  cognitivamente  as  leis  que 
existem  na  natureza,  teria  que  obedecer  à  ordem  da  lógica  e  da  geometria.  O  sujeito 
racional  age  objetivamente  e  essas  seriam  as  ações  que  dão  ritmo  à  marcha  do 
progresso.  Essa  visão  foi  largamente  impulsionada  pela  filosofia  analítica,  que  se 
concebe como herdeira de Kant, Carnap e Popper. Praticava uma filosofia fundada no 
rigor tecnicista do estilo, na elegância e na sofisticação dos argumentos e no tratamento 
obsessivo que dispensava a temas como as cores dos gansos. Não por acidente, é Kant o 
responsável pela reconfiguração do par conceitual “sujeito” e “objeto”, criando para ele 
o  sentido  que  conhecemos  hoje.  Claro,  algumas  dissidências  existiam  e  delas  vieram 
algumas  das  objeções  mais  consistentes  a  essa  corrente  filosófica,  como  as 
Investigações filosóficas de Wittgenstein ou Os dois dogmas do empirismo, de Quine.  
194
Com  o  crescimento  do  relativismo  na  esteira  do  maio  de  1968,  da  “filosofia 
francesa”  e  de  A  estrutura  das  revoluções  científicas,  cresceram  também  as  críticas  a 
ele. Uma resistência que se espalhou e, em certos casos, mantinha relações muito tênues 
com esse núcleo filosófico. O relativismo foi severamente combatido e já na virada do 
milênio havia se tornado um termo pejorativo; visto como um programa cheio de boas 
intenções,  mas  cujas  implicações  são  desastrosas.  Uma  filosofia  impura  e  que  prega  a 
impureza, que confunde e apaga distinções essenciais para a boa filosofia e para certa 
ilusão de Ocidente: sujeito e objeto, fato e ficção, natureza e cultura. O relativismo é a 
total submissão da filosofia à história – alertam os mais exaltados. Essa é uma definição 
trágica e hiperbólica do relativismo.
Na  parte  final  dessa  conclusão,  quero  sustentar  que  a  abertura  para  a 
historicidade do conhecimento científico e para a ciência como uma forma de produzir 
conhecimento (isto é, uma prática) não precisa evitar o relativismo. Não há espaço para 
absolutismo  epistêmico  em  uma  história  das  ciências  que  pretende  participar  da 
construção  de  um  “olhar  que  apresenta  a  atividade  científica  como  uma  atividade 
constituída  historicamente,  uma  construção  social  do  trabalho  humano  em  seu  embate 
com  a  natureza”  (MAIA,  2013,  p.  20).  A  recusa  de  qualquer  ponto  fixo,  infenso  à 
história, no qual se possa fundar o conhecimento, aproxima historicidade e relativismo. 
Essa posição não endossa toda e qualquer intervenção definida como relativista; assim 
como nem todo kuhniano é obrigado a concordar com aquilo que defende Barry Barnes 
pelo  simples  fato  do  sociólogo  se  definir  como  kuhniano.  A  segurança  e  a  elegância 
irônica  com  as  quais  Paul  Feyerabend  desmonta  as  objeções  ao  relativismo  no  seu  A 
ciência em uma sociedade livre (2011, pp. 91­151) serviram para me infundir coragem 
–  embora  não  compartilhe  integralmente  da  caracterização  intelectual  e  política  que 
Feyerabend faz do relativismo. Devemos imaginar uma versão do relativismo que não 
seja  idealista,  antirrealista  nem  antirracionalista.  É  possível  descrever  racionalmente  a 
realidade  desde  que  “racionalidade”  e  “realidade”  sejam  entendidos  em  sua 
temporalidade, estejam também sujeitos à história. 
Um conceito histórico de realidade deve considerá­la como essa complexa trama 
tecida pelos agenciamentos simbólico­materiais. Não é um ritual que invoca entidades 
do  mundo  dos  espíritos  para  se  manifestar  em  alguma  prática  terrena  –  como  se  a 
objetividade  ou  a  racionalidade  (essas  sim  categorias  idealizadas)  fossem  encarnar 
naquele que possui as qualidades de cientista. A historicidade profana práticas sagradas, 
195
como o “método científico”, e as substitui por uma maneira historicamente específica de 
organizar  o  trabalho  coletivo.  O  relativismo  é  plenamente  capaz  de  descrever  a 
realidade,  embora  ele  não  a  considere  como  uma  instância  em  si,  objetiva,  anterior, 
exterior (quase inatingível). Afirmar a insuficiência de um conceito de realidade não é o 
mesmo que desprezar completamente a noção. Ela pode ser reconfigurada em função de 
um novo programa de investigação da ciência. Somos capazes de falar da realidade não 
porque  estabelecemos  com  ela  qualquer  contato  privilegiado,  mas  porque  ela  nos 
atravessa e nos constitui, porque somos produtos dessa mesma história e fazemos parte 
da  realidade.  A  historicidade  do  humano  e  do  natural  –  frutos  do  mesmo  processo  – 
diminui a distância entre os dois polos, desmancha as duas essências isoladas. 
Não  há  nessa  perspectiva  nenhum  idealismo,  uma  vez  que  não  se  supõe  uma 
mente autônoma, uma consciência isolada que possa perder­se da realidade e viver de 
projeções  puramente  internas.  O  ser  humano  não  é  um  espírito  que  possui  ou  está  em 
um  corpo.  Ele  é  o  corpo.  Ao  descrever  técnicas  de  construção  do  self  ou  tecnologias 
literárias, os historiadores não estão apenas se referindo a exercícios ou hábitos mentais, 
mas  à  materialidade  das  práticas,  à  opacidade  da  linguagem  e  do  gesto.  Negar  a 
“realidade  objetiva”  não  significa  abandonar  uma  posição  materialista.  Embora 
implique  em  rearranjar  a  relação  com  a  materialidade.  A  natureza  participa  da 
construção de conhecimentos sobre ela.
Por  fim,  um  conceito  histórico  de  racionalidade  já  é  invocado  quando  Koyré 
propõe uma leitura da ciência do passado que a considera em seus próprios termos, sem 
encadeamentos teleológicos e sem julgá­la a partir dos critérios da ciência do presente. 
Quando  Daston  e  Galison  narram  a  história  das  diversas  virtudes  epistêmicas  que 
estipulam formas específicas de determinar o que é a “boa ciência”. Quando Shapin e 
Schaffer analisam os procedimentos contingentes e historicamente determinados através 
dos  quais  a  experiência  se  torna  uma  dimensão  central  da  atividade  científica.  Cada 
época, cada paradigma, constitui os seus parâmetros de racionalidade. Não há nenhum 
critério ahistórico contra o qual possamos medir a cientificidade de um conhecimento. 
A  racionalidade  emerge  localmente,  em  função  de  exigências,  limites,  necessidades  e 
possibilidades específicas.
Assim,  não  me  prendo  aqui  a  uma  visão  do  relativismo  que  só  aparece  como 
espantalho  nos  escritos  daqueles  que  o  combatem  –  que  o  vê  como  uma  posição 
contraditória,  insustentável,  impraticável  e  sujeita  ao  arbítrio  (se  tudo  que  existe  é 
196
construído,  pode­se  construir  aleatoriamente  qualquer  coisa).  O  relativismo  surge  aqui 
como uma decorrência da historicidade, como uma posição possível de ser sustentada a 
partir de certa vertente da historiografia das ciências. O que proponho não é exatamente 
uma  defesa  do  relativismo  como  forma  mais  adequada  de  compreender  a  ciência  e  a 
história,  mas  uma  abertura  para  a  sua  possibilidade  e  um  combate  ao  medo  que  ele 
infunde na nossa tradição intelectual.   
O relativismo não oferece nenhuma ameaça à civilização ocidental ou à ciência 
moderna. Sustentar uma posição relativista não implica em ser um inimigo da ciência – 
o mundo não se divide em amigos e inimigos. Através do apelo à história, o relativismo 
constrói uma narrativa baseada nas escolhas, nas relações de força, na circularidade das 
trocas  culturais,  na  resistência  de  hábitos  há  muito  adquiridos,  na  importância  dos 
dogmas da comunidade, das tecnologias sociais e da disciplina de si para a cristalização 
do conhecimento científico e da sua metafísica. Desafia o fatalismo, o voluntarismo e a 
inexorabilidade  –  não  compartilha  do  mito  do  progresso.  A  ciência  é  o  produto  de 
interações  locais,  históricas,  instáveis  e  mutantes.  Isso  não  significa  que  ela  está  pra 
sempre  presa  ao  seu  momento  de  produção.  Ela  pode  ser  apropriada  em  diferentes 
contextos,  ser  adaptada  para  diversos  usos,  permanecer  ao  longo  de  várias 
configurações  históricas.  Ser  constitutivamente  histórica  não  faz  a  ciência  estar 
confinada a um ponto da história. Na verdade, é a sua sobrevivência que permite contar 
a sua história e a história do(s) ambiente(s) do(s) qual(is) ela participou. 
Esta  tese  não  sustenta  grandes  ambições  normativas,  não  propõe  um  modelo 
correto  de  história  das  ciências.  O  que  realizei  foi  uma  leitura  historiográfica  de  uma 
porção da história das ciências entre a década de 1930 e a década de 2000 – a partir de 
objetos estreitamente circunscritos pela tensão entre fatores internos e externos e pelas 
relações  estabelecidas  entre  essa  história  das  ciências,  o  modo  de  produção  do 
conhecimento  científico  e  a  Política  de  Ciência  e  Tecnologia  do  período.  Dessa 
estratégia  surgiram  questões  amplas,  muitas  vezes  tratadas  sem  a  verticalização  que 
certamente receberiam em estudos mais focados em livros, autores ou grupos de autores 
específicos.  No  entanto,  a  opção  por  uma  visão  panorâmica  permite  perceber  certos 
aspectos  que  não  são  facilmente  visíveis  em  abordagens  mais  pontuais.  Esse  jogo  de 
escalas é extremamente saudável para a historiografia. A densa interpenetração entre a 
disciplinarização  da  história  das  ciências  e  a  transformação  da  ciência  em  objeto  da 
história não as torna indistintas, não abole as demarcações de território epistêmico, não 
197
apaga as fronteiras. Simplesmente porque não há territórios a demarcar ou fronteiras a 
defender.  Para  entender  a  dinâmica  das  trocas  simbólico­materiais  que  constituem  a 
ciência,  não  precisamos  recorrer  à  metáfora  territorial  do  Estado  nação  moderno  que 
explica  contatos  entre  distintos  fios  do  tecido  social  como  um  concerto  de  nações  em 
guerra,  suas  batalhas  e  sedições,  cooptações,  acordos  viciados  de  livre  comércio 
epistêmico, submissões, tratados de paz e declarações de Guerra das Ciências. 
Podemos imaginar outras metáforas e outras estratégias narrativas. Ao longo do 
século passado, essas estratégias oscilaram entre a rede e a estrutura na medida em que a 
ciência nos esquadrinhava e decompunha em genomas e mitemas ou nos conectava em 
imensos cardumes através da paranoia nuclear, do HIV e dos Beatles. Se essa conclusão 
sustenta  uma  defesa  do  relativismo  epistêmico  é  por  compreendê­lo  como  uma 
contrapartida possível para a historicidade. Ele organiza a narrativa de uma maneira que 
torna  possível  o  surgimento  dessas  outras  estratégias.  Uma  narrativa  aberta  para  a 
aparição de novos personagens e para o improviso, às turras com o produtivismo e as 
funções sociais da ciência, atenta às peças do jogo e às suas regras flexíveis, às vezes 
instáveis. Essa narrativa se vale de uma diversidade de metáforas, recorrendo ao campo 
semântico da fluidez, da performance e da agência, das tecnologias de estabilização das 
práticas, das virtudes epistêmicas. 
Transformar  a  ciência  em  objeto  da  história  não  é  uma  tarefa  fácil  ou  óbvia. 
Significa infundi­la de efetiva historicidade, cozinhá­la em nosso espesso caldo cultural, 
compreender a sua operação em obediência a determinado regime de temporalidade. A 
trajetória  da  disciplinarização  da  história  das  ciências  narrada  aqui  não  segue  uma 
evolução lógica, um progresso evidente em direção à historicidade. É fruto dessa trama 
incessantemente  redesenhada,  feita  e  desfeita,  obedecendo  a  projetos  efêmeros  e 
resistindo a eles, surpreendendo­se com a duração de certos motivos. A própria história 
que tracei não segue uma trajetória linear, surge de seleções, de recortes, da escolha de 
um  olhar  guiado  por  preocupações  particulares  e  coletivas.  A  historicidade  me  parece 
também uma alternativa política autêntica para os desafios colocados diante de nós pela 
sociedade do conhecimento. “Somente a reflexão histórica pode explicitar os programas 
de  verdade  e  mostrar  as  suas  variações”,  adverte  Paul  Veyne  (2013,  p.  196).  Ela 
desdobra um campo de possibilidades e indeterminações, desconfia das soluções que se 
apresentam  como  naturais  ou  inexoráveis,  pondera  diante  dos  dilemas.  A  reflexão 
histórica  não  se  encerra  em  si,  ela  joga  com  os  ritmos  dos  tempos,  se  abre  para  a 
198
alteridade e para o estranhamento. Decretar a morte de um programa de investigação da 
natureza  é  dizer  que  ele  fora  um  dia  vivo.  Ele  pode  ser  ocupado,  reconstruído  e 
apropriado. A historicidade da ciência oferece à sociedade um risco menor do que o seu 
absolutismo. 
Referências Bibliográficas

ABIR­AM,  Pnina.  The  discourse  of  physical  power  and  biological  knowledge  in  the 
1930s:  a  reappraisal  of  the  Rockefeller  Foundation’s  ‘policy’  in  molecular  biology. 
Social studies of science, Londres e Beverly Hills, 1982, v. 12, pp. 341­382.

ALVARGONZÁLEZ, David. Is the History of Science Essentially Whiggish? History 
of Science, Cambridge, mar. 2013, v. 51, n. 170, pp. 85­99.

ASDAL, Kristin, BRENNA, Brita e MOSER, Ingunn. The politics of interventions. A 
history  of  STS.In.  ______  (orgs.).  Technoscience.  The  politics  of  interventions.  Oslo, 
Unipub, 2007, pp. 7­54.

ÁVILA,  Gabriel  da  Costa.  Como  conferir  historicidade  à  ciência?  Um  retorno  às 
contribuições de Ludwik Fleck e Karl Mannheim. In. MOLLO, Helena Miranda (org.). 
Biografia e história das ciências: debates com a história da historiografia. Ouro Preto: 
PPGHIS/EDUFOP, 2012. pp. 30­60.

______.  Epistemologia  em  conflito:  uma  contribuição  à  história  das  Guerras  da 
Ciência. Belo Horizonte: Fino Traço, 2013.

BARNES, Barry. Scientific knowledge and sociological theory. Londres: Routledge, 
1974.

______. T. S. Kuhn and social science. Londres: Macmillan, 1982.

______. Relativism as a completion of the scientific project. In: SCHANTZ, Richard e 
SEIDEL,  Markus  (orgs.).  The  problem  of  relativism  in  the  sociology  of  (scientific) 
knowledge. Frankfurt: Ontos, 2011. pp. 23­39.

BARNES,  Barry;  EDGE,  David.  Science  in  context:  readings  in  the  sociology  of 
science. Milton Keynes: Open University Press, 1982.

BARNES,  Barry;  BLOOR,  David;  HENRY,  John.  Scientific  Knowledge:  a 


sociological analysis. Londres: Athlone Press, 1996.

BERNAL, John Desmond. Science in history. Londres: Johnson’s Court, 1954.

BIAGIOLI, Mario. Introduction.In. ______ (org.). The Science Studies Reader. Nova 
Iorque e Londres: Routledge, 1999. pp. xi­xviii.

199
BLOOR, David. Conhecimento e imaginário social. São Paulo: Editora UNESP, 2009.

BOGHOSSIAN,  Paul.  Medo  do  conhecimento:  contra  o  construtivismo  e  o 


relativismo. São Paulo: Senac, 2012.

BUCHDAHL,  Gerd.  On  the  pressupositions  of  the  historians  of  science.  History  of 
Science, Cambridge, 1962, v. 1, pp. 67­77.

BUNGE, Mario. In praise of intolerance to charlatanism in academia. In: GROSS, Paul; 
LEVTT,  Norman;  LEWIS,  Martin.  The  flight  from  science  and  reason.  Annals  of 
New York Academy of  Sciences. Nova Iorque: The New York Academy of Sciences, 
1995, pp. 96­115.

BURTT,  Edwin.  As  bases  metafísicas  da  ciência  moderna.  Brasília:  Editora 
Universidade de Brasília, 1983.

BUSH,  Vannevar.  Science  –  the  endless  frontier.  A  report  to  the  president  by 
Vannevar  Bush,  director  of  the  Office  of  Scientific  Research  and  Development,  July 
1945. Washington: United States Government Printing Office, 1945.

BUTTERFIELD, Herbert. The whig interpretation of history. Londres: G. Bell, 1931.

______.  The  historian  and  the  history  of  science.  Bulletin  of  the  British  Society  for 
the History of Science. Cambridge, abril 1950, v. 1, n. 3, pp. 49­58. 

______. Los origenes de la ciencia moderna. Madrid: Taurus, 1982.

BUTTS,  Robert  E.  e  HINTIKKA,  Jaakko  (orgs.). Historical  and  philosophical 


dimensions  of  logic,  methodology  and  philosophy  of  science. Dordrecht:  D.  Reidel, 
1977.

CALLON, Michel. As reestruturações industriais em torno dos programas de pesquisa­
desenvolvimento.  In.WITKOWSKI,  Nicolas  (org.).  Ciência  e  tecnologia  hoje.  São 
Paulo: Editora Ensaio, 1994, pp. 78­81.

CAMENIETZKI,  Carlos  Ziller.  A  cruz  e  a  luneta:  ciência  e  religião  na  Europa 


moderna. Rio de Janeiro: Access Editora, 2000.

CANGUILHEM,  Georges.  Estudos  de  história  e  de  filosofia  das  ciências: 


concernentes aos vivos e à vida. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012.

CASTELFRANCHI,  Yurij.  As  serpentes  e  o  bastão:  tecnociência,  neoliberalismo  e 


inexorabilidade.  Tese  de  Doutorado  defendida  no  Programa  de  Pós­Graduação  em 
Sociologia da Universidade de Campinas. Campinas, 2008.

CERTEAU,  Michel  de.  A  escrita  da  história. Rio  de  Janeiro:  Forense­Universitária, 


2006.

200
CHALHOUB,  Sidney;  TEIXEIRA,  Francisco.  Sujeitos  no  imaginário  acadêmico: 
escravos  e  trabalhadores  na  historiografia  brasileira  desde  os  anos  1980.  Cadernos 
AEL, Campinas, 2009, v. 14, n. 26, pp. 13­47.

CHALMERS, Alan. A fabricação da ciência. São Paulo: Editora UNESP, 1994.

CHESNAIS,  François.  A  mundialização  do  capital,  natureza  e  papel  da  finança  e 


mecanismos  de  “balcanização”  dos  países  com  recursos  ambicionados.  In.  LIMA, 
Marcos Costa (org.). Dinâmica do capitalismo pós­Guerra Fria: cultura tecnológica, 
espaço e desenvolvimento. São Paulo: Editora Unesp, 2008, pp. 17­39. 

CICCOTTI, Giovanni, CINI, Marcello e MARIA, Michelangelo de. The production of 
science  in  the  advanced  capitalist  society.  In.  ROSE,  Hilary  e  ROSE,  Steven  (orgs.). 
The  political  economy  of  science:  ideology  of/in  the  natural  sciences.  Londres:  The 
Macmillan Press, 1976a, pp. 73­104.

COHEN, I. Bernard. O nascimento de uma nova física. Lisboa: Gradiva, 1988.

______. Revolucion em la ciencia. Barcelona: Gedisa, 1989.

COLLINS,  Harry.  Son  of  Seven  Sexes:  the  social  destruction  of  a  physical 
phenomenon. Social Studies of Science, Londres e Beverly Hills, 1981, v. 11, pp. 33­
62.

______. Comment on Kuhn. Social Studies of Science, Londres e Beverly Hills, 2012, 
v. 42, pp. 420­423.

COLLINS,  Randall  e  RESTIVO,  Sal.  Development,  Diversity,  and  Conflict  in  the 
Sociology of Science. The Sociological Quarterly, 1983, v. 24, n. 2, pp. 185­200.
COMTE, Auguste. Sur l’histoire des sciences. In. BRAUNSTEIN, Jean­François (org.). 
L’histoire des sciences. Méthodes, styles et controversies. Paris: Vrin, 2008, pp. 33­48. 

CONDÉ, Mauro Lúcio Leitão. O Círculo de Viena e o empirismo lógico. Caderno de 
filosofia  e  ciências  humanas,  v.  5,  1995.  Disponível  em 
http://www.fafich.ufmg.br/~mauro/art_mauro2.htm. Acesso em 28 maio 2010.

______ (org.). Ludwik Fleck: estilos de pensamento na ciência. Belo Horizonte: Fino 
Traço, 2012.

______.  “Um  papel  para  a  história”.  O  problema  da  historicidade  da  ciência.  No 
prelo.

CONDÉ, Mauro Lúcio Leitão e PENNA­FORTE, Marcelo do Amaral (orgs.). Thomas 
Kuhn:  a  estrutura  das  revoluções  científicas  [50  anos].  Belo  Horizonte:  Fino  Traço, 
2013.

CONDÉ,  Mauro  e  OLIVEIRA,  Bernardo  Jefferson  de.  Thomas  Kuhn  e  a  nova 


historiografia da ciência. . Thomas Kuhn e a historiografia da ciência. Ensaio. Pesquisa 
em Educação em Ciências, Belo Horizonte, v. 4, n.2, 2002.
201
DAHL, Robert Alan e LINDBLOM, Charles Edward. Política, economia e bem estar 
social: planejamento  e  sistemas  político  econômicos  reduzidos  a  processos  sociais 
básicos. Rio de Janeiro: Lidador, 1971.

DASTON, Lorraine. Objective and escape from perspective. Social Studies of Science, 
Londres e Beverly Hills, 1992, v. 22, pp. 597­618.

______. Imagens da objectividade: a fotografia e o mapa. In: GIL, Fernando. A ciência 
tal qual se faz. Lisboa: Edições João Sá da Costa, 1999. pp. 79­103.

______.  Science  studies  and  the  history  of  science.  Critical  Inquiry.  Chicago,  verão 
2009, n. 35, pp. 798­813.

______. L’économie morale des sciences modernes. Jugements, emotions et valeurs. 
Paris: Éditions La Découverte, 2014. 

DEAR,  Peter.  Fifty  years  of  Structure.  Social  Studies  of  Science,  Londres  e  Beverly 
Hills, 2012, v. 42, pp. 424­428.

ENGELS, Friedrich e MARX, Karl. A ideologia alemã. São Paulo: Expressão Popular, 
2009. 

FERNÉ,  Georges.  A  ciência  é  uma  mercadoria.  In.  WITKOWSKI,  Nicolas  (org.). 


Ciência e tecnologia hoje. São Paulo: Editora Ensaio, 1994, pp. 365­366. 

FEYERABEND,  Paul.  A  ciência  em  uma  sociedade  livre.  São  Paulo:  Editora  da 
Unesp, 2011.

FIRST  ANUAL  REPORT  1994.  Max­Planck­Institut  für  Wissenschaftsgeschichte, 


Berlin,  1994.  Disponível  em:  http://www.mpiwg­berlin.mpg.de/ANNREP94.HTM#C1. 
Acesso em 28 maio 2015.

FORMAN, Paul. The primacy of science in modernity, of technology in postmodernity, 
and of ideology in the history of technology. History and Technology, 2007, v. 23, n. 
1, pp. 1­152.

FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: PUC: NAU, 
1999.

______. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 
de dezembro de 1970. São Paulo: Edições Loyola, 2012.

FREIRE  JUNIOR,  Olival.  Sobre  “As  raízes  sociais  e  econômicas  dos  ‘Principia’  de 
Newton”. Revista da Sociedade Brasileira de História da Ciência, São Paulo, 1993, 
n. 9, pp. 51­64.

202
FREUDENTHAL, Gideon e MCLAUGHLIN, Peter (orgs.). The social and economic 
roots  of  the  scientific  revolution.  Texts  by  Boris  Hessen  and  Henry  Grossman. 
Heidelberg e Berlin: Springer, 2009.

FULLER,  Steve.  Being  there  with  Thomas  Kuhn:  a  parable  for  postmodern  times. 
History and theory, Middletown, out. 1992, v. 31, n. 3, pp. 241­275.

______.  The  secularization  of  science  and  a  new  deal  for  science  policy.  Futures, 
Londres, 1997, v. 29, n. 6, pp. 483­503.

______.  From  Conant’s  education  strategy  to  Kuhn’s  research  strategy.  Science  and 
education. Amsterdam, 2000, v. 9, pp. 21­37.

______. Learning from error: an autopsy of Bernalism. Science as culture, Londres, 
2007, v. 16, n.4, pp. 463­466. 

GALILEI, Galileu. Diálogo sobre os dois máximos sistemas do mundo ptlomaico e 
copernicano. São Paulo: Discurso Editorial, 2001.

GALISON, Peter. Image and logic. A material culture of microphysics. Chicago: The 
University of Chicago Press, 1997.

______. Culturas etéreas e culturas materiais. In: GIL, Fernando. A ciência tal qual se 
faz. Lisboa: Edições João Sá da Costa, 1999. pp. 395­414.

GARCIA,  José  Luís;  MARTINS,  Hermínio.  O ethos da  ciência  e  suas  transformações 


contemporâneas,  com  especial  atenção  à  biotecnologia.  Scientiae  Studia.  São  Paulo, 
2009, v. 7, n. 1, pp. 83­104.

GIERYN, Thomas. Boundary­Work and the demarcation of science from non­science: 
strains  and  interests  in  professional  ideologies  of  scientists.  American  Sociological 
Review, dez. 1983, v. 48, n. 6, pp. 781­795 

GINGRAS,  Yves.  Naming  without  necessity:  on  the  genealogy  and  uses  of  the  label 
“historical epistemology”. Revue de synthèse, Paris, 6ª série, 131­133, pp. 439­454.

GOLINSKI,  Jan.  Making  natural  knowledge.  Constructivism  and  the  history  of 
science. Chicago e Londres: The University of Chicago Press, 2005.

GRAHAM, Loren. The Soviet Academy of Sciences and the communist party, 1927­
1932. Princeton: Princeton University Press, 1967.

______.  The  socio­political  roots  of  Boris  Hessen:  soviet  Marxism  and  the  history  of 
science. Social Studies of Science, Londres e Beverly Hills, nov. 1985, v. 15, n. 4, pp. 
705­722.

GRUPO KRISIS. Manifesto contra o trabalho. São Paulo: Conrad, 2003.

HABERMAS, Jürgen. Técnica e ciência como “ideologia”. Lisboa: Edições 70, 1987.
203
______. O discurso filosófico da Modernidade. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

HACKING,  Ian.  Artificial  phenomena.  The  British  Journal  for  the  History  of 
Science, Cambridge, jun. 1991, v. 24, n. 2, pp. 235­241.

______. Making up people. In. BIAGIOLI, Mario (org.). The Science Studies Reader. 
Nova Iorque e Londres: Routledge, 1999, pp. 161­171.

______.  Representar  e  intervir:  tópicos  introdutórios  de  filosofia  da  ciência  natural. 
Rio de Janeiro: EdUERJ, 2012.

HALL, A. Rupert. A revolução na ciência 1500­1750. Lisboa: Edições 70,1988. 

HARVEY,  David.  O  neoliberalismo:  história  e  implicações.  São  Paulo:  Edições 


Loyola, 2013.

HESSEN, Boris. As raízes sociais e econômicas dos “Principia” de Newton. In. GAMA, 
Ruy  (org.). História  da  técnica  e  da  tecnologia: textos  básicos. São  Paulo:  T.  A. 
Queiroz e EdUSP, 1985.

HILL, Christopher. Lênin e a Revolução Russa. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1967. 

HOBSBAWM, Eric. A era do capital, 1848­1875. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.

______. A era dos extremos. O breve século XX, 1914­1991. São Paulo: Companhia 
das Letras, 2006.

HODGKIN,  Dorothy.  John  Desmond  Bernal.  10  May  1901  ­  15  September  1971. 
Disponível  em:  http://rsbm.royalsocietypublishing.org/content/26/16.full.pdf.  Acesso 
em: 20 jul. 2013. 

HOLLINGER,  David.  Free  enterprise  and  free  inquiry:  the  emergence  of  laissez­faire 
communitarianism  in  the  ideology  of  science  in  the  United  States.  New  Literary 
History, outono 1990, v. 21, n. 4, pp. 897­919.

JAUBERT,  Alain  e  LÉVY­LEBLOND,  Jean­Marc  (orgs.).  (Auto)critique  de  la 


science. Paris: Editions du Seuil, 1973. 

JOLIOT­CURIE, Irène. Souvenirs et documents, publiés par l’association Fréderic 
et Irène Joliot­Curie. Paris: Association Fréderic et Irène Joliot­Curie, S/D. 

KOHLER, Robert. Partners in science: foundations and natural scientists, 1900–1945. 
Chicago: University of Chicago Press, 1991.

______.  Moral  economy,  material  culture,  and  community  in  Drosophila  genetics.  In. 
BIAGIOLI,  Mario  (org.).  The  Science  Studies  Reader.  Nova  Iorque  e  Londres: 
Routledge, 1999, pp. 243­257.

204
KOSELLECK,  Reinhart.  Futuro  Passado.  Contribuição  à  semântica  dos  tempos 
históricos. Rio de Janeiro: Contraponto e Editora PUC­Rio, 2006.

______. “História” como conceito mestre moderno. In. KOSELLECK, Reinhart et al. O 
conceito de história. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013, pp. 185­222.

______.  História  dos  conceitos  e  história  social.  In.  ______.  Futuro  Passado. 
Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto e Editora 
PUC­Rio, 2006. pp. 97­118. 

KOYRE, Alexandre. Galileu e Platão e do mundo do “mais ou menos” ao universo 
da precisão. Lisboa: Gradiva, 1990. 

______. Estudos  de  história  do  pensamento  filosófico. Rio  de  Janeiro:  Forense 


Universitária, 1991.

______. Do  mundo  fechado  ao  universo  infinito. Rio  de  Janeiro:  Forense 


Universitária, 2006.

______. A contribuição científica da Renascença. In. ______. Estudos de história do 
pensamento científico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011a, pp.43­53.

______. As origens da ciência moderna: uma nova interpretação. In. ______. Estudos 
de  história  do  pensamento  científico.  Rio  de  Janeiro:  Forense  Universitária,  2011b, 
pp. 55­81.

______.  Galileu  e  a  revolução  científica  do  século  XVII.  In.  ______.  Estudos  de 
história  do  pensamento  científico.  Rio  de  Janeiro:  Forense  Universitária,  2011c,  pp. 
197­213.

______.  Traduttore­traditore:  a  propósito  de  Copérnico  e  de  Galileu.  In.  ______. 


Estudos de história do pensamento científico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 
2011d, pp. 283­285.

______.  Perspectivas  da  história  das  ciências.  In.  ______.  Estudos  de  história  do 
pensamento científico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011e, pp. 415­425.

KRAGH,  Helge.  The  new  rays  and  the  failed  anti­materialistic  revolution.  In. 
BEVILAQUA,  Fabio;  HOFFMAN,  Dieter;  STUEWER,  Roger.  The  emergence  of 
modern  physics.  Proceedings  of  a  conference  commemorating  a  Century  of  physics. 
Pavia: Università degli Studi di Pavia, 1996, pp. 61­77. 

KUHN, Thomas. The structure of scientific revolutions. Chicago: The University of 
Chicago Press, 1970. 

______. A revolução copernicana. Lisboa: Edições 70, 1990.

______. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Editora Perspectiva, 2001. 

205
______.  O  caminho  desde  A  estrutura.  In.  ______.  O  caminho  desde  a  Estrutura. 
Ensaios filosóficos, 1970­1993, com uma entrevista autobiográfica. São Paulo: Editora 
UNESP, 2006a, pp. 115­132.

______. O problema com a filosofia histórica da ciência. In. ______. O caminho desde 
a  Estrutura.  Ensaios  filosóficos,  1970­1993,  com  uma  entrevista  autobiográfica.  São 
Paulo: Editora UNESP, 2006b, pp. 133­151.

______.  Reflexões  sobre  meus  críticos.  In.  ______.  O  caminho  desde  a  Estrutura. 
Ensaios filosóficos, 1970­1993, com uma entrevista autobiográfica. São Paulo: Editora 
UNESP, 2006c, pp. 155­216.

______.  A  história  da  ciência.  In.  ______.  A  tensão  essencial:  estudos  selecionados 
sobre tradição e mudança científica. São Paulo: Editora UNESP, 2011a, pp. 127­144.

______.  Objetividade,  juízo  de  valor  e  escolha  de  teorias.  In.  ______.  A  tensão 
essencial. Estudos selecionados sobre tradição e mudança científica. São Paulo: Editora 
UNESP, 2011b, pp. 339­360.

LAFFITTE,  Pierre.  Discours  d’ouverture  du  cours  sur  l’histoire  générale  des  sciences 
au  Collège  de  France.  In.  BRAUNSTEIN,  Jean­François  (org.).  L’histoire  des 
sciences. Méthodes, styles et controversies. Paris: Vrin, 2008, pp. 49­65.

LAKATOS,  Imre. História  da  ciência  e  suas  reconstruções  racionais  e  outros 


ensaios. Lisboa: Edições 70, 1998.

LAPYDA, Ilan. A “financeirização” do capitalismo contemporâneo: uma discussão 
das teorias de François Chesnais e David Harvey. Dissertação de Mestrado defendida no 
Programa de Pós­Graduação em Sociologia da Universidade de São Paulo. São Paulo, 
2011.

LATOUR,  Bruno.  Jamais  fomos  modernos.  Ensaio  de  antropologia  simétrica.  São 
Paulo: Editora 34, 1994.

______.  A  esperança  de  Pandora.  Ensaios  sobre  a  realidade  dos  estudos  científicos. 
Bauru: EDUSC, 2001.

LÊNIN, Vladimir. Materialismo e empiriocriticismo. Notas críticas sobre uma teoria 
reacionária. Lisboa e Moscou: Edições Progresso e Edições Avante, 1982.

LÉVY­LEBLOND, Jean­Marc. Ideology of/in contemporary physics. In. ROSE, Hilary 
e  ROSE,  Steven  (orgs.).  The  radicalisation  of  science:  ideology  of/in  the  natural 
sciences. Londres: The Macmillan Press, 1976b, pp. 137­175.

LYOTARD, Jean­François. A condição pós­moderna. São Paulo: José Olympio, 2004.

LÖWY,  Michael.  As  aventuras  de  Karl  Marx  contra  o  Barão  de  Münchhausen: 
marxismo e positivismo na sociologia do conhecimento. São Paulo: Cortez, 2000.

206
MAIA, Carlos Alvarez. Por uma história das ciências efetivamente histórica. O combate 
por uma história sociológica. Revista da Sociedade Brasileira de História da Ciência, 
São Paulo, 1992, n. 7, pp. 47­52.

______.  A  domesticação  da  história  das  ciências  pelo  sistema  das  ciências.  In. 
SOARES, Luiz Carlos (org.). Da revolução científica à big (business) science: cinco 
ensaios  de  história  da  ciência  e  da  tecnologia.  São  Paulo  e  Niterói:  Hucitec  e  UFF, 
2001, pp. 201­246.

______. Mannhein,  Fleck  e  a  compreensão  humana  do  mundo.  In.  CONDÉ,  Mauro 


Lúcio Leitão (org.). Ludwik Fleck: estilos de pensamento na ciência. Belo Horizonte: 
Fino Traço, 2012, pp. 51­76.

______.  Kuhn,  ator  conservador  ou  ator  revolucionário?  In.  CONDÉ,  Mauro  Lúcio 
Leitão  e  PENNA­FORTE,  Marcelo  do  Amaral  (org.).  Thomas  Kuhn:  a  estrutura  das 
revoluções científicas [50 anos]. Belo Horizonte: Fino Traço, 2013, pp. 37­54.

______. História das Ciências: uma história de historiadores ausentes. Rio de Janeiro: 
EdUERJ, 2013.

MANNHEIM,  Karl. Essays  on  the  sociology  of  Knowledge. Nova  Iorque:  Oxford, 


1952.

______. Ideologia e utopia. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986.

MARICONDA,  Pablo  Rubén.  Introdução:  o  Diálogo  e  a  condenação.  In:  GALILEI, 


Galileu.  Diálogo  sobre  os  dois  máximos  sistemas  do  mundo  ptlomaico  e 
copernicano. São Paulo: Discurso Editorial, 2001, pp. 15­70.

MARKOVA,  Ludmila  A.  Difficulties  in  the  historiography  of  science.  In.  BUTTS, 
Robert  E.  e  HINTIKKA,  Jaakko  (orgs.). Historical  and  philosophical  dimensions  of 
logic, methodology and philosophy of science. Dordrecht: D. Reidel, 1977.  

MARTIN, Brian. The critique of science becomes academic. Science, Technology, & 
Human Values, v. 18, n. 2, abril 1993, pp. 247­259.

MARTINS, Hermínio. The Kuhnian “revolution” and its implication for sociology. In. 
HANSON, A. H.; NOSSITER, T. J.; ROKKAN, Stein. Imagination and precision in 
the social sciences. Essays in memory of Peter Nettl. Londres: Faber &faber, 1972. pp. 
13­58.

MARX,  Karl. O  capital: crítica  da  economia  política.  Volume  II.  Rio  de  Janeiro: 
Bertrand Brasil, 1996.

MAYER,  Anna­K.  Setting  Up  a  Discipline:  Conflicting  Agendas  of  the  Cambridge 
History  of  Science  Committee,  1936–1950.  Studies  in  History  and  Philosophy  of 
Science, Londres, 2000, v. 31, n. 4, pp. 665–689.

207
______. Setting up a discipline, II: British history of science and ‘‘the end of ideology’’, 
1931–1948. Studies in History and Philosophy of Science, Londres, 2004, v. 35, n. 1, 
pp. 41–72.

MENDONÇA,  André  Luis  de  Oliveira.  Por  uma  nova  abordagem  da  interface 
ciência/sociedade: a tarefa da filosofia da ciência no contexto dos science studies. Tese 
de Doutorado em Filosofia defendida no Programa de Pós­Graduação em Filosofia da 
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2008.

MERTON,  Robert  King. Science,  technology  &  society  in  seventeenth  century 


England. Nova Jersey e Sussex: Humanities Press e Harvester Press, 1970.

______. Ensaios  de  sociologia  da  ciência. São  Paulo:  Associação  Scientiae  Studia  e 


Editora 34, 2013.

MERTON,  Robert  King  e  THACKRAY,  Arnold.  On  Discipline  Building:  The 


Paradoxes of George Sarton. Isis, Chicago, dez. 1972, v. 63, n. 4, pp. 472­495.

MÉSZÁROS,  István.  Estrutura  social  e  formas  de  consciência  I:  a  determinação 


social do método. São Paulo: Boitempo Editorial, 2009. 

MEYERS, Bart, RADINSKY, Len, ROTHENBERG, Mel e ZIMMERMAN, Bill. Une 
science  pour  le  peuple.  In.  JAUBERT,  Alain  e  LÉVY­LEBLOND,  Jean­Marc  (orgs.). 
(Auto)critique de la science. Paris: Editions du Seuil, 1973, pp. 65­89.

MOLLO,  Helena  Miranda  (org.).  Biografia  e  história  das  ciências:  debates  com  a 
história da historiografia. Ouro Preto: PPGHIS/EDUFOP, 2012.

MOSELEY, Russell. The origins and early years of the National Physical Laboratory: a 
chapter  in  the  pre­history  of  British  science  policy.  Minerva,  verão  1978, v.  16, n. 
2, pp. 222­250.

OLIVA,  Alberto.  O  relativismo  de  Kuhn  é  derivado  da  história  da  ciência  ou  é  uma 
filosofia aplicada à ciência? Scientiae studia, São Paulo, 2012, v. 10, n. 3, pp. 561­592.

OLIVEIRA,  Bernardo  Jefferson  de.  Francis  Bacon  e  a  fundamentação  da  ciência 


como tecnologia. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.

PESTRE,  Dominique.  Por  uma  nova  história  social  e  cultural  das  ciências:  novas 
definições,  novos  objetos,  novas  abordagens.  Cadernos  IG/UNICAMP,  Campinas, 
1996, v. 6, n. 1, pp. 3­56.

______.  Néolibéralisme  et  gouvernement.  Retour  sur  une  catégorie  et  ses  usages.  In. 
______ (org.).Le gouvernement des technosciences. Governer le progrès e ses dégâts 
depuis 1945. Paris: Éditions La Découverte, 2014a, pp. 261­284. 

______. Conclusion. Le gouvernement du progrès e de ses dégâts. Un essai de lecture 
globale. In. ______ (org.). Le gouvernement des technosciences. Governer le progrès 
et ses dégâts depuis 1945. Paris: Éditions La Découverte, 2014b, pp. 285­315.
208
PFETSCH,  Frank.  Scientific  organisation  and  science  policy  in  imperial  Germany, 
1871–1914:  the  foundation  of  the  Imperial  Institute  of  Physics  and  Technology. 
Minerva, jan. 1970, v. 8, pp. 557­580.

PICKERING, Andrew (org). Science as Practice and Culture. Chicago: University of 
Chicago Press, 1992.

______.  The  mangle  of  practice.  In.  BIAGIOLI,  Mario  (org.).  The  Science  Studies 
Reader. Nova Iorque e Londres: Routledge, 1999, pp. 372­393.

______. The world since Kuhn. Social Studies of Science, Londres e Beverly Hills, 
2012, v. 42, pp. 467­473.

PIMENTEL,  Juan.  Qué  es  la  historia  cultural  de  la  ciencia?  Arbor.  Ciencia, 
Pensamiento y Cultura, 2010, v. CLXXXVI, pp. 417­424.

POLANYI,  Michael. Science,  faith  and  society: a  searching  examination  of  the 


meaning  and  nature  of  scientific  inquiry. Chicago:  The  University  of  Chicago  Press, 
1964.

PRICE, Don Krasher. The scientific estate. Cambridge e Londres: Harvard University 
Press, 1965. 

REIS,  José  Carlos.  História  &  Teoria:  Historicismo,  Modernidade,  Temporalidade  e 


Verdade. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006.

______. Teoria & História: tempo histórico, história do pensamento histórico ocidental 
e pensamento brasileiro. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2012.

REISCH, George. Did Kuhn Kill Logical Empiricism? Philosophy of science, Chicago, 
jun. 1991, v. 58, n. 2, pp. 264­277.

______. Planning Science: Otto Neurath and the International Encyclopedia of Unified 
Science, British  Journal  for  the  History  of  Science,  Londres,  1994,  n.  27,  pp.  153­
175.

RENN, Jürger. Historical epistemology and interdisciplinarity. Preprint. Max­Planck­
Institut für Wissenschaftsgeschichte, Berlin, 1994, v. 2, pp. 1­13.

RHEINBERGER,  Hans­Jörg.  Introduction  à  la  philosophie  des  sciences.  Paris: 


Éditions La Découverte, 2014.

RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. 3 vols. Campinas: Papirus, 1994.

______.  A  memória,  a  história,  o  esquecimento.  Campinas:  Editora  da  Unicamp, 


2007. 

209
ROOSEVELT,  Franklin.  President  Roosevelt’s  Letter.  Disponível  em: 
http://www.nsf.gov/od/lpa/nsf50/vbush1945.htm. Acesso em: 18 nov. 2013.

RORTY,  Richard. A  filosofia  e  o  espelho  da  natureza. Rio  de  Janeiro:  Relume­


Dumará, 1994.

ROSE,  Hilary  e  ROSE,  Steven.  The  incorporation  of  science.  In.  ROSE,  Hilary  e 
ROSE,  Steven  (orgs.).  The  political  economy  of  science:  ideology  of/in  the  natural 
sciences. Londres: The Macmillan Press, 1976a, pp. 49­71.

ROSE,  Hilary  e  ROSE,  Steven  (orgs.).  The  political  economy  of  science:  ideology 
of/in the natural sciences. Londres: The Macmillan Press, 1976a.

ROSE,  Hilary  e  ROSE,  Steven  (orgs.).  The  radicalisation  of  science:  ideology  of/in 
the natural sciences. Londres: The Macmillan Press, 1976b.

ROSSI,  Paolo.  Os  filósofos  e  as  máquinas,  1400­1700.  São  Paulo:  Companhia  das 
Letras, 1989. 

______.  A  ciência  e  a  filosofia  dos  modernos:  aspectos  da  revolução  científica.  São 
Paulo: Editora UNESP, 1992. 

SAGAN, Carl. O mundo assombrado pelos demônios: a ciência vista como uma vela 
no escuro. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

SANTOS,  Laymert  Garcia  dos.  Tecnologia,  perda  do  humano  e  crise  do  sujeito  de 
direito.  In.  ______.  Politizar  as  novas  tecnologias:  o  impacto  sociotécnico  da 
informação digital e genética. São Paulo: Editora 34, 2003, pp. 229­245.

SARTON, George. L’Histoire de la Science. Isis, Bruxelas, jan. 1913, v. 1, n.1, pp. 3­
46.

______. The teaching of the history of science. The scientific monthly, Nova Iorque, 
set. 1918, v. 7, n. 3, pp. 193­211.

______. War and civilization. Isis, Chicago, set. 1919, v. 2, n. 2, pp. 315­321.

______. The life of science. Essays in the history of civilization. Nova Iorque: Henry 
Schuman, 1948.

______. A guide to the history of science.A first guide for the study of the history of 
science  with  introductory  essays  on  science  and  tradition.  Waltham:  The  Chronica 
Botanica Company, 1952.

SCHAFFER, Simon. As instituições científicas: a geografia histórica dos laboratórios. 
In. GIL, Fernando (org.). A ciência tal qual se faz. Lisboa: Edições João Sá da Costa, 
1999, pp. 415­436.

210
SCHAFFER, Simon e SHAPIN, Steven. Leviathan and the air­pump. Hobbes, Boyle, 
and the experimental life. Princeton e Oxford: Princeton University Press, 2011. 

______.  El  Leviathan  y  la  bomba  de  vacío.  Hobbes,  Boyle  y  la  vida  experimental. 
Bernal, Buenos Aires: Universidad Nacional de Quilmes, 2005.

SCHLICK,  Moritz.  The  foundation  of  knowledge.  In.  AYER,  A.  J  (org.).  Logical 
Positivism. Nova Iorque: The Free Press, 1959, pp. 209­227.

SCHÖTTLER,  Peter.  Scientisme.  Sur  l’histoire  d’un  concept  difficile.  Revue  de 
Synthèse, Paris, 2013, Tomo 134, 6ª Série, n. 1, pp. 89­113.

SHAPIN,  Steven.  History  of  science  and  its  sociological  reconstructions.  History  of 
Science, Cambridge, 1982, v. 20, pp. 157­211. 

______. Understanding the Merton thesis. Isis, Chicago, dez. 1988, v. 79, n. 4, pp. 594­
605.

______. Discipline and bounding. The history and sociology of science as seen through 
the  externalism­internalism  debate.  History  of  Science,  Cambridge,  1992,  v.  30,  pp. 
334­69.

______.  Here  and  everywhere:  sociology  of  scientific  knowledge.  Annual  Review  of 
Sociology, 1995, v. 21, pp. 289­321.  

______. The scientific revolution. Chicago: University of Chicago Press, 1998.

______. Baixando o tom na história da ciência: um chamado nobre. In. ______. Nunca 
pura:  Estudos  históricos  da  ciência  como  se  fora  produzida  por  pessoas  com  corpos, 
situadas  no  tempo,  no  espaço,  na  cultura  e  na  sociedade  e  que  se  empenham  por 
credibilidade e autoridade. Belo Horizonte e Campina Grande: Fino Traço e EDUEPB, 
2013a, pp. 1­14.

______.  A  casa  da  experiência  na  Inglaterra  do  século  dezessete.  In.  ______.  Nunca 
pura:  Estudos  históricos  da  ciência  como  se  fora  produzida  por  pessoas  com  corpos, 
situadas  no  tempo,  no  espaço,  na  cultura  e  na  sociedade  e  que  se  empenham  por 
credibilidade e autoridade. Belo Horizonte e Campina Grande: Fino Traço e EDUEPB, 
2013b, pp. 60­89.

______.  Bomba  e  circunstância:  a  tecnologia  literária  de  Robert  Boyle.  In.  ______. 
Nunca  pura:  Estudos  históricos  da  ciência  como  se  fora  produzida  por  pessoas  com 
corpos, situadas no tempo, no espaço, na cultura e na sociedade e que se empenham por 
credibilidade e autoridade. Belo Horizonte e Campina Grande: Fino Traço e EDUEPB, 
2013c, pp. 90­118.

______.  “A  mente  é  o  seu  próprio  lugar”:  ciência  e  solitude  na  Inglaterra  do  século 
dezessete.  In.  ______.  Nunca  pura:  Estudos  históricos  da  ciência  como  se  fora 
produzida  por  pessoas  com  corpos,  situadas  no  tempo,  no  espaço,  na  cultura  e  na 

211
sociedade  e  que  se  empenham  por  credibilidade  e  autoridade.  Belo  Horizonte  e 
Campina Grande: Fino Traço e EDUEPB, 2013d, pp. 121­143.

______. Um scholar e um cavalheiro: a identidade problemática do praticante científico 
na  Inglaterra  do  século  dezessete.  In.  ______.  Nunca  pura:  Estudos  históricos  da 
ciência como se fora produzida por pessoas com corpos, situadas no tempo, no espaço, 
na  cultura  e  na  sociedade  e  que  se  empenham  por  credibilidade  e  autoridade.  Belo 
Horizonte e Campina Grande: Fino Traço e EDUEPB, 2013e, pp. 144­183.

SHINN,  Terry  e  RAGOUET,  Pascal. Controvérsias  sobre  a  ciência: por  uma 


sociologia  transversalista  da  atividade  científica. São  Paulo:  Associação  Filosófica 
Scientiae Studia e Editora 34, 2008.

SILVA,  Francismary  Alves  da. Historiografia  da  revolução  científica: Alexandre 


Koyré, Thomas Kuhn e Steven Shapin. São Bernardo do Campo: Editora da UFABC, 
2015.

______. Um irredutível diálogo entre a história e a história das ciências: Lucien Febvre 
e  Alexandre  Koyré.  In.  ARANHA,  Gervácio  Batista  e  FARIAS,  Elton  John  da  Silva 
(orgs.).  Epistemologia,  historiografia  &  linguagens.  Campina  Grande:  EDUFCG, 
2013. pp. 147­173.

SISMONDO, Sergio. Fifty years of The Structure of Scientific Revolutions, twenty­five 
of Science in Action. Social Studies of Science, Londres e Beverly Hills, 2012, v. 42, 
pp. 415­419.

SNOW, Charles Pierce. As duas culturas e uma segunda leitura. São Paulo: Edusp, 
1995.

SOARES, Luiz Carlos (org.). Da revolução científica à big (business) science: cinco 
ensaios  de  história  da  ciência  e  da  tecnologia.  São  Paulo  e  Niterói:  Hucitec  e  UFF, 
2001.

SOKAL,  Alan.  Transgredindo  as  fronteiras:  em  direção  a  uma  hermenêutica 


transformativa  da  gravitação  quântica.  In:  BRICMONT,  Jean  e  SOKAL,  Alan. 
Imposturas  Intelectuais:  o  abuso  da  ciência  pelos  filósofos  pós­modernos.  Rio  de 
Janeiro: Record. 1999, pp. 231­273.

SPRINGER  DE  FREITAS,  Renan.  Desnaturalizando  Kuhn.  Estudos  Avançados,  São 


Paulo, v. 12, n. 33, 1998, pp. 185­196.

______.  O  eclipse  da  filosofia  da  ciência  na  história  da  ciência.  In.  ANDRADE,  Ana 
Maria  Ribeiro  de  (org.).  Ciência  em  perspectiva:  estudos,  ensaios  e  debates.  Rio  de 
Janeiro: MAST/SBHC, 2003, pp. 117­130.

STATEMENT  OF  AIMS  OF  MONT  PELERIN  SOCIETY.  Disponível  em: 


https://www.montpelerin.org/montpelerin/mpsGoals.html. Acesso em: 8 nov. 2014. 

212
STENGERS,  Isabelle.  A  invenção  das  ciências  modernas.  São  Paulo:  Editora  34, 
2002.

STOKES, Donald. O quadrante de Pasteur: a ciência básica e a inovação tecnológica. 
Campinas: Editora da Unicamp, 2005.

STUMP,  James.  History  of  science  through  Koyré’s  lenses.  Studies  in  history  and 
philosophy of science, 2001, v. 32, n. 2, pp. 243–263.

SURVIVRE. La nouvelle église universelle. In. JAUBERT, Alain e LÉVY­LEBLOND, 
Jean­Marc (orgs.). (Auto)critique de la science. Paris: Editions du Seuil, 1973, pp. 51­
61.

TURNER,  Stephen.  Whatever  happened  to  knowledge?  Social  Studies  of  Science, 
Londres e Beverly Hills, 2012, v. 42, pp. 474­480.

VAN  DAMME,  Stéphane.  Lorraine  Daston  et  la  nouvelle  histoire  intellectuelle  des 
sciences.  In.  DASTON,  Lorraine.  L’économie  morale  des  sciences  modernes. 
Jugements, emotions et valeurs. Paris: Éditions La Découverte, 2014.

VELHO, Léa. Conceitos de ciência e a Política Científica, Tecnológica e de Inovação. 
Sociologias, Porto Alegre, jan./abr. 2011, v. 13, n. 26, pp. 128­153.

VEYNE,  Paul.  Os  gregos  acreditavam  em  seus  mitos?  São  Paulo:  Editora  Unesp, 
2013.

WALLERSTEIN, Imannuel. O universalismo europeu: a retórica do poder. São Paulo: 
Boitempo, 2006.

WEART,  Spencer. Scientists  in  power. Cambridge  e  Londres:  Harvard  University 


Press, 1979.

WERSKEY,  Gary.  The  Marxist  critique  of  capitalist  science:  a  history  in  three 
movements? Science as culture, Londres, 2007, v. 16, n.4, pp. 397­461.

WHEWELL,  William.  History  of  the  inductive  sciences,  from  the  earliest  to  the 
present times. Nova Iorque: D. Appleton & Company, 1875. 

WILLIAMS, Michael. Problems of knowledge: a critical introduction to epistemology. 
Oxford: Oxford University Press, 2001.

WILLIAMS,  Raymond.  Base  e  superestrutura  na  teoria  cultural  marxista.  REVISTA 


USP, São Paulo: mar./maio 2005, n.65, pp. 210­224.

WOOD, Ellen Meiksins. A origem do Capitalismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 
2001.

ZAMMITO, John H. A nice derangement of epistemes. Post­positivism in the study of 
science from Quine to Latour. Chicago e Londres: University of Chicago Press, 2004.
213
ZILSEL, Edgar. The sociological roots of science. Social Studies of Science, Londres e 
Beverly Hills, 2000, v. 42, n. 6, pp. 935­949.

ZIMAN, John. Is Science losing its objectivity? Nature, 1996, v. 382.

______.  Real  Science:  What  It  Is  and  What  It  Means.  Cambridge:  Cambridge 
University Press, 2000.

214

Você também pode gostar