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Apostila para o Curso de Formação do Afronte

O que é ser Militante?


Rio das Ostras 2020.

Texto: Sobre a militância (1) O ser Militante.

Conhece-te a ti mesmo Passaram uns dois anos e encontrei, casualmente,


Inscrição na entrada do Templo de Apolo em o treinador na rua. Em Lisboa encontros casuais
Delfos/Grécia assim não eram incomuns. Conversamos um
pouco. No final ele me perguntou, distraidamente,
 Uma das perguntas mais difíceis que me fazem é se eu tinha escolhido praticar outro esporte. Eu
como sustentar uma militância constante depois de respondi que sim: ping-pong. Ele deu uma
tantos anos. O “conhece-te a ti próprio” é um gargalhada alegre, como quem diz: “Naão!. Ping-
aforismo de origem grega que nos convida à pong? Sério?”
descoberta das nossas potencialidades e dos Ele tinha razão. Nunca fui muito longe no tênis de
nossos limites. È um provérbio atribuído a mesa. A velocidade da bolinha é muito grande, e
diferentes filósofos – Tales de Mileto, Platão, ela é minúscula. Aprendi assim duas lições que
Sócrates, Aristófanes – mas, provavelmente, tem parecem simples, mas não são. Duas lições muito
origem mais antiga. A grande sabedoria tem raízes importantes. Na vida podemos fazer muitas coisas.
remotas. O autoconhecimento é uma das Mas nenhum de nós pode fazer tudo. E ninguém,
premissas de uma vida adulta. Portanto, se transforma sozinho. Precisamos que nos digam
responsável. quando estamos errados. Ou seja, precisamos
Depois de uma grande derrota, é muito razoável aceitar que não é ruim ser contrariado. Ninguém
que militantes da causa socialista se perguntem gosta de ser criticado. E nem sempre as críticas
sobre o sentido do engajamento, do compromisso, são justas. Mas devemos procurar construir
da aposta. A militância exige, em primeiro lugar, equipes de militância onde haja diversidade de
honestidade com os outros e consigo mesmo. Uma ideias, personalidades, ou seja, diferenças,
militância séria pede de nós constância, heterogeneidades. E inscrever como regra a
perseverança, e abnegação. Mas, não poucas tolerância e o respeito.
vezes, nos sentimos desiludidos, frustrados, e Cada um de nós deve se colocar, constantemente,
cansados. A transformação da sociedade é um uma pergunta inescapável. Ela não é fácil. O que
processo difícil. E ninguém é de ferro. Ninguém queremos? E porque queremos o que queremos.
mesmo. Nesses momentos é preciso refletir sobre Isso nos leva a descobrir os sentimentos que nos
si próprio. Porque há uma dimensão subjetiva na movem, nos mobilizam, que mexem com a gente.
militância. Saber o que queremos é uma forma de evitar o
Quando eu estava na adolescência fui jogar autoengano. E somente cada um de nós pode
basquete em um clube em Lisboa. Creio que tinha responder esta pergunta sobre si mesmo.
quatorze ou quinze anos. As obrigações com a  Por que militamos? Por que dedicamos nosso
equipe eram um treino e um jogo por semana. Sou, escasso tempo a ser ativistas? Por que debatemos
razoavelmente, disciplinado desde jovem. Não programas e táticas, discutimos ideias com os que
faltava. A seleção para participar da equipe não era nos cercam, vamos a reuniões, distribuímos
muito rigorosa. Tinha estatura mais elevada que a panfletos, participamos de assembleias,
maioria. Mas nenhum talento especial. Só comparecemos aos Atos, convocamos greves,
esforçado. Nos dias de jogos entrava para jogar em cotizamos nosso pouco dinheiro? Por que fizemos
alguns momentos. esta escolha?
Depois de alguns meses, o treinador, um gigante Há muitas boas e diferentes razões para estar
simpático que tinha sido jogador profissional engajado na militância.  E há muitas outras que
quando era mais jovem, me chamou para uma podem levar um militante a desistir. É inescapável
conversa ao final de um treino. Foi direto ao ponto: que, mais cedo ou mais tarde, tenhamos que nos
“Valerio, você é dedicado, mas não posso mais te confrontar com elas. Para lutar para transformar o
escalar para os jogos. Você é estrábico. Você mundo é necessário termos a vontade de nos
demora demais para ver de onde vem a bola, a transformarmos a nós mesmos. E não há
força, a direção. E quando ela vem da esquerda transformação indolor. Não há mudança sem crise.
perde sempre o tempo da bola. Demora alguns E não há porque ter medo das crises. Já foi escrito.
segundos a mais. Quanto de visão você tem no O que a vida pede de nós é coragem.
olho esquerdo?” Eu tinha menos de 15%. Assim Nos últimos quarenta anos meu esporte é a
acabou minha experiência de jogador de basquete. corrida.

Texto: Sobre a militância (2) Dinâmica da história


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políticas podem ser apaixonadas, vigorosas, até


Cristo está morto, Marx está morto, e eu, ásperas. Mas não podemos perder o apreço pelos
outros. Não é aceitável ofender ninguém. É fácil
também, não estou me sentindo muito bem.  machucar os outros. Contrariar não precisa ser
zoar, hostilizar, atormentar.
(Pichação nas ruas de Paris em maio de 1968)
Nossas subjetividades são frágeis e sensíveis. Não
é razoável o envenenamento de um coletivo
 A história é, estupidamente lenta, dizia Marx. porque há diferenças de opinião. Precisamos
Porque as sociedades não se transformam quando aprender a aceitar os nossos limites pessoais, para
é necessário. Somente quando não é mais possível poder valorizar aqueles que pensam distinto de
adiar as mudanças. Nesse grau de abstração, nós. Não diminui ninguém, ao contrário,
nunca houve revoluções prematuras. Todas as engrandece, quando aprendemos a desconfiar dos
revoluções vieram à luz do dia com atraso. limites de nosso repertório, experiência e intuição.
Depois de uma derrota, como a que sofremos, a Subestimar nossa ignorância é um caminho
dinâmica da luta social ficou mais lenta. Acontece perigoso para a soberba. Ignorar o orgulho é um
que a intensidade da luta política, no dia a dia, caminho explosivo para a insolência. Não diminui
anula, parcialmente, essa percepção da lentidão da ninguém reconhecer um erro. Não diminui ninguém
história. Mas é auto-engano. Os anos podem pedir desculpa. Ao contrário, mais do que nunca,
passar, inexoravelmente, antes que chegue a hora precisamos de paciência, porque sem audácia não
dos combates decisivos. E há momentos, como venceremos. E a audácia, sem paciência, é
agora, depois da mais séria derrota político-social somente coragem sem reflexão. E coragem sem
dos últimos quarenta anos, em que, todos e reflexão é infantil. É preciso manter o sentido da
qualquer um de nós, nos sentimos cansados, perspectiva, portanto, do tempo.
exauridos, exaustos. A questão do tempo é central para uma militância
O capitalismo brasileiro está em decadência, a séria. Ser sério é ser responsável. Vivemos tempos
sociedade está, ideologicamente, doente, mas sombrios, em perspectiva histórica. Não fosse isso
ninguém na esquerda, honestamente, está se o bastante, o tempo na dimensão dos nossos
sentindo muito bem. E nos perguntamos sobre o destinos pessoais é sempre escasso. Não temos
sentido da militância, da entrega, da doação, da tempo para nós mesmos. O tempo necessário para
aposta. Porque, além das lutas frontais contra os a nossa plena humanização. Precisamos de tempo
inimigos de classe, surgem as lutas na retaguarda, para além do trabalho. Tempo para o amor e a
dentro de nossas fileiras, entre companheiros. Em amizade. Tempo para pensar, para ler, para
momentos assim, precisamos aprender a cuidar aprender. Tempo para termos saúde física e
uns dos outros. psíquica. Tempo para nos alimentarmos em paz,
A questão chave é não perder o respeito, quando para descansar, para a diversão, para a alegria. E
alguém discorda de nossas ideias. Vivemos a militância é uma atitude. É uma doação deste
cercados pela pressão social da ideologia que tempo que é raro e precioso. Uma doação é uma
defende a ordem. Essa ideologia valoriza a entrega, uma oferta, mas não precisa e não deve
competição. Os riscos que assumimos na militância ser um sacrifício. Deve ser um compromisso.
são, demasiadamente, grandes. Resistir a essas Mas não é indolor. Porque sendo uma decisão de
pressões com firmeza é o “beabá” de uma compartilhar um esforço comum em uma
educação socialista. Rivalidades pessoais entre organização coletiva, estamos sempre diante dos
militantes socialistas são infantis. Podemos ser riscos da incerteza do destino das lutas em que
melhores do que isso. Há lugar para todos na luta nos engajamos. E nos decepcionamos.
anti-capitalista. Frustramos-nos quando vêm as derrotas. E
Aonde não há respeito não pode haver confiança. entristecemos quando nos sentimos desiludidos
Sem confiança não é possível lutarmos juntos. Não com aqueles que estavam ao nosso lado.
é preciso sermos ingênuos. Existem, Decepção, frustração e desilusão são inevitáveis.
evidentemente, graus variados de confiança nas As pessoas são complicadas. Somos imperfeitos.
relações entre as pessoas, mesmo entre militantes. Que é uma forma elegante de dizer que temos
Mas, há muita diferença entre um ambiente defeitos. Muitos temos defeitos graves. Nossas
saudável, e um ambiente doentio. Uma militância organizações são, também, imperfeitas e imaturas.
adulta só é possível se nos protegermos, Por isso, é tão frequente que tenhamos momentos
coletivamente, uns aos outros. em que sucumbimos com pena de nós mesmos.
Todos os militantes são mais complexos que as Ter um pouquinho de dó de si mesmo não diminui
ideias que, eventualmente, defendem. São mais ninguém. Essas crises de autocompaixão ou
complexos porque as pessoas são maiores que autopiedade, desde que transitórias, são normais.
uma ou outra ideia que abraçam. Discussões
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Desde que não percamos o sentido das interesses se traduzem em ideias. As ideias
proporções. Desde que mantenhamos o equilíbrio. alimentam projetos. Porém, a sociedade teme o
Preservar o equilíbrio para um militante só é conflito, tem medo da luta franca e aberta, porque
possível com a compreensão do programa. há riscos na hora da mudança. Há perigos. Há o
Transformar o mundo é difícil porque aqueles que perder. Mesmo entre os explorados e
realmente muito ricos são, também, muito oprimidos, alguns têm a percepção, verdadeira ou
influentes São um ínfima minoria, quase invisível, imaginária, de que têm mais a perder do que
em comparação com as amplas massas, mas são outros. Essas diferentes percepções são
muito poderosos. manipuladas para dividir as forças populares. Há
Só em oportunidades raras, quando se abrem setores mais ativos e outros menos ativos, há
situações revolucionárias, como agora na Argélia, a vanguarda e retaguarda.
sociedade tem a disposição de subverter as São os interesses de classe que decidem o sentido
relações existentes. As lutas sociais se dos conflitos na sociedade em que vivemos. Essa
desenvolvem devagar, durante décadas, mentalidade conservadora só se transforma muito
pausadamente, pelo interior das relações de classe lentamente. Até que tudo se precipita, e o que
existentes. Pelo interior das relações existentes parecia impossível, surge como inevitável. A inércia
significa que aqueles que lutam não acreditam, na provocada pela imobilidade política sobre a cabeça
verdade, nem imaginam que a sociedade poderia das pessoas, essa terrível lentidão do psiquismo
estar organizada de outra forma. De uma forma, humano, hipnotiza a imaginação de tal forma que
completamente, distinta. As relações institucionais as massas não vêem possibilidade alguma de
são a expressão de uma relação de forças estável, transformação da sociedade tal como ela está. É
estabelecida no passado. As instituições, o uma ilusão que é produzida pela tendência da
calendário eleitoral, o parlamento, a polícia, as mente humana a ficar prisioneira de rotinas
Forças armadas, os meios de comunicação previsíveis, portanto, mesmo quando são ruins,
estabelecem um enquadramento que parece consoláveis.
durável, invariável, inabalável. Assim como nós temos neuroses individuais que
O que transforma a história é a ação da nos aprisionam, existem neuroses coletivas que
humanidade. E a ação humana é provocada pela correspondem ao espírito de uma época, ao
crise social. Foi sempre conflito de interesses que período histórico. Cuidemos uns dos outros,
incendiou a necessidade de transformações. Os enquanto lutamos para mudar o mundo.

Texto: Sobre a militância (3) Consciência de Classe

É cruel ter que aprender com as derrotas. A expressam em um programa deve ser superior à
verdade é que, quando pensamos na escala do lealdade a pessoas.
complicado processo de formação da consciência As ideias por si só não transformam o mundo. Mas,
de classe das amplas massas, com suas se a excessiva credulidade é perigosa no terreno
oscilações, avanços e recuos, nada substitui a das nossas relações pessoais, ingenuidade política
experiência. em excesso é fatal. Disto não decorre que não seja
Mas quando pensamos na escala dos setores de necessário construir lideranças. Elas são
vanguarda que buscam uma organização mais indispensáveis. São vitais. Mas ninguém pode
perene para lutar, seja estudantil ou sindical, estar acima do coletivo que representa.
popular ou camponesa, negra ou indígena, Instrumentos coletivos de luta tendem a ter
feminista ou LGBT, movimento ou partido, direções coletivas. Direções coletivas erram menos
podemos aprender com o tesouro de ensinamentos que pessoas, porque a pluralidade impõe freios e
herdados pelos que vieram antes de nós. Não contrapesos. Organizações coletivas são mais
precisamos “inventar a roda” de trinta em trinta lentas, porém, mais eficientes. São, sobretudo,
anos. Devemos aprender com a experiência dos mais controláveis. Sendo mais participativas são,
outros. tendencialmente, mais saudáveis.
Uma lição importante é que devemos seguir ideias, Não são as qualidades excepcionais dos líderes
não somente líderes. Este critério vale para que explicam, essencialmente, o pequeno ou
qualquer organização, seja mais moderada ou mais grande caudilhismo. É, sobretudo, a fragilidade
radical. Uma militância de esquerda deve ser uma político-programática das organizações coletivas.
ação o mais consciente possível, portanto, o mais Há uma dialética perigosa neste fenômeno. As
madura possível. A lealdade às ideias que se organizações coletivas são frágeis quando o que
as sustenta não é a força das ideias do projeto
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estratégico. A potência da grande personalidade pouquíssimo. Os instrumentos coletivos são


substitui o protagonismo da militância coletiva. O pobres, os mandatos são prósperos. Essa
caudilhismo reflete sempre uma imaturidade dinâmica favorece o carreirismo. O carreirismo é
subjetiva grande. uma doença política incurável. Outras são curáveis.
Lealdade às ideias não é doutrinarismo, mas O carreirismo, não. Porque o carreirismo tem e
adesão a princípios. Lealdade incondicional a impõe uma lógica irrefreável: a manutenção dos
pessoas é formação de camarilha. Uma camarilha mandatos termina sendo mais importante que a
é um grupo de pessoas que se defendem umas às defesa da causa que justificou sua existência. Os
outras não importa o que façam. Podemos ser meios transformam-se em fins. Por isso, são
melhores do que isso. As pessoas, mesmo quando numerosos os deputados e senadores mutantes.
têm qualidades excepcionais, são mais limitadas e A frustração política da vanguarda ativista com os
imperfeitas que as organizações coletivas. partidos atingiu um grau muito elevado. A
Na situação em que vivemos as ideias desconfiança afastou muitos entre os melhores
enfraqueceram seu peso, e o peso dos líderes se militantes das organizações coletivas. A febre do
agigantou porque a centralidade da imaginação independentismo contagiou. A consequência foi a
estratégica se perdeu. A confiança na força das atomização. Os partidos e organizações se
ideias diminuiu. Isso decorreu da crise do enfraqueceram. Os mandatos passaram a ser, em
socialismo como projeto depois da restauração maior ou menor medida, quem controla os partidos,
capitalista. O que ficou no lugar foi a improvisação e não o contrário. Organizações coletivas,
tática. Debatemos, furiosamente, o que fazer evidentemente, também, adoecem. Mas sendo
amanhã, sem discutir para onde vamos. coletivas têm mais chances de se autocorrigirem.
Improvisação tática na luta por reformas do Claro que a necessidade de representação não
capitalismo que não esteja ancorada na diminuiu. O resultado foi que num mesmo partido
imaginação estratégica da luta pelo socialismo, na passaram a conviver tantos “centros políticos”
época em que vivemos, é a antessala do desastre. quantos os mandatos parlamentares. As pressões
Uma das mais importantes lições da experiência parlamentaristas, de um lado, e movimentistas de
histórica acumuladas pela esquerda, desde outro diminuíram o lugar dos partidos. O lugar do
1978/79, é que não há dirigentes infalíveis, por programa passou a ser encarado como um tema
mais capazes que sejam. As ideias deveriam ser reservado para especialistas, intelectuais.
um marco de compreensão comum da realidade, e Acontece que a experiência histórica ensina que
um ponto de apoio do que fazer para transformá-la. teoria e prática são indivisíveis. Elaborar um
Acontece que as ideias só adquirem força política programa não é o mesmo que escrever uma tese
quando há pessoas dispostas a lutar por elas. Não de doutorado, não é um desafio literário.
há forma de lutar por um programa que não seja Especialistas devem ter um lugar respeitado na
construir uma organização para defendê-lo. Nada esquerda e são muito valiosos, mas para encontrar
substitui a construção de instrumentos coletivos. as boas respostas é necessário saber se colocar
Talvez, uma das regressões mais impressionantes as perguntas justas. São os lutadores, os
dos últimos vinte e cinco anos é que os mandatos militantes, os ativistas que acumulam experiência,
de deputados de esquerda passaram a intervir no terreno da luta de classes, que têm as melhores
como se fossem organizações coletivas. Não são. condições de formulá-las.
A participação dos ativistas nos mandatos pode ser Mas uma imensa parcela do ativismo passou a se
maior ou menor, é verdade. Mais ou menos organizar, somente, em movimentos sociais
democrática. Mas a força dos mandatos de fragmentados que se multiplicaram, e passaram a
esquerda no Brasil decorre, em primeiro lugar, de funcionar com a disciplina de partidos, mas sem
sua capacidade operacional, não de um programa. programa para a sociedade.
A imensa maioria dos eleitos é representante de Em comparação, durante os quinze anos que vão
um setor na intersecção entre os explorados e de 1979 até 1994 prevalecia na esquerda o critério
oprimidos, e responde aos interesses mais oposto. Os centros políticos eram as correntes e
imediatos da base social que os elegeu. Não há, na partidos. A militância que surgia das lutas sociais
imensa maioria, salvo honrosas exceções, nem vivia um processo de politização e amadurecia se
tempo, nem espaço, nem disposição para pensar organizando em torno de programas. Havia
além da renovação dos mandatos. variados programas e diferentes partidos, uns mais
As verbas parlamentares são elevadas. Já a moderados, outros revolucionários, mas a
capacidade dos coletivos se autofinanciarem com tendência era centrípeta, não centrífuga, e esta
cotizações voluntárias limitadas. Essa disparidade dinâmica favorecia uma reorganização da
material cria uma distorção. Os profissionais esquerda em patamar superior aquela que existia
políticos têm muito tempo. Os militantes, antes da derrota de 1964/68.
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Abriu-se agora, com as derrotas acumuladas, em 1978/79, quando processo foi “a quente”,
desde 2015/16, uma nova etapa de reorganização. quando do ascenso das lutas sociais na esta final
Ela, até este ano, se desenvolveu “a frio”, em um da luta contra a ditadura. Mas, tudo pode mudar.
marco defensivo, ao contrário da situação aberta,

Texto: Sobre a militância (4) Diferenças Politicas

Prevaleceu na esquerda do século XX uma não deve ser solenidade. Deve ser exatidão,
tradição bárbara de resolver as diferenças políticas concisão, precisão. Ou seja, uma boa medida de
com métodos monstruosos. As maiores aberrações graduação, de calibragem.  Somos uma
foram às agressões que o estalinismo naturalizou. fraternidade de lutadores, não precisamos de
Mas aqueles que foram as maiores vítimas desta pompa. Mas equilíbrio, sim.
violência não permaneceram imunes. A força de um debate deve depender mais da
 Os trotskistas valorizaram os debates teóricos. magnitude das diferenças, do que da
Ainda que usando somente as ideias como armas, personalidade dos militantes. Não devemos deixar
viramos especialistas em polêmicas cruéis, até um debate de ideias ser, emocionalmente
desumanas. Pode ter havido, talvez, correntes tão contaminado. Devemos cultivar o autodomínio, a
devastadoras com as palavras nas suas autodisciplina, a autocontenção. Diferenças de
discussões internas. Mas os trotskistas elevaram o tática, nuances, e matizes são rotineiras e
masoquismo político a outro patamar. Uma nova exploratórias. Diferenças de estratégia são intensas
forma de arte dramática, quase um novo gênero e programáticas. Mas toda polêmica séria exige
literário. respeito.
Criamos uma reputação. Somos vistos como Não há elaboração coletiva sem luta de ideias.
militantes abnegados, mas arrogantes. Instruídos, Toda discussão é uma crítica e, portanto, uma
mas sectários. Esta fragilidade tem uma história. polêmica. A liberdade é sempre a liberdade de
Quem luta contra a corrente, por muito tempo em quem pensa diferente de nós. Não devemos ter
condição de minoria, desenvolve, mais ou menos, medo de ter diferenças. Devemos ter medo de
inevitavelmente, reflexos sectários. É uma velha errar. Os erros têm um preço alto. Se não há
piada troska admitir que, entre nós, alguns são tão democracia interna em uma organização, não há
sectários, que nem sabem que são sectários. elaboração coletiva. Se a elaboração não é
Oxalá a nova geração seja capaz de nos superar. coletiva, erraremos mais. É inexorável.
Um pouco de paixão revolucionária é bem vinda  E não vale a pena a militância em um coletivo sem
porque empolga.  Excesso de entusiasmo em um direito real de participação na elaboração coletiva.
debate de ideias repousa, quase sempre, no abuso Uma militância assim fica incompleta, amputada,
dos exageros. mutilada. A militância é uma doação por inteiro.
Há polêmicas com posições frontais, laterais e na Pensamos e agimos juntos. Se numa corrente só
retaguarda. Frontais são as discussões com os alguns exercem os direitos democráticos de
inimigos de classe. Laterais são aquelas que pensar, e outros só têm a obrigação de agir, algo
fazemos na esquerda entre as distintas correntes. está muito errado
E na retaguarda são aquelas no interior de cada Todos devem ter o direito de dizer o que querem.
coletivo. Em geral, elas são simultâneas. Mas não Mas têm, também, o dever de ouvir o que não
se podem fazer da mesma forma, e na mesma querem. Aprender a ouvir é um processo. É muito
intensidade. As regras são diferentes. Excesso de comum que uma ideia seja apresentada com
orgulho é infantil. clareza, mas não seja compreendida. E não é
 Toda polêmica tem o seu tempo. Algumas se incomum que não seja apresentada com clareza,
resolvem mais rapidamente, outras exigem anos, e com resultados ainda piores. Saber ouvir, e atribuir
exigem paciência. Dependem muito da evolução sentido ao que foi dito, é tão importante quanto
dos acontecimentos. A realidade que nos cerca saber falar.
nem sempre decanta nos prazos curtos. As Claro que direito de participação não é só isso. É
hipóteses precisam passar a prova dos fatos. Mas muito mais porque é preciso regular o direito de
todo debate deve ter princípio, meio e fim. decidir. Quem são os que decidem, e sobre o que
 Cada discussão tem, também, o seu tom. O tom podem decidir é muito importante, também. As
de um debate, mais amigável e fraterno, ou mais regras podem variar. Sejam quais forem, devem
duro e áspero, é compreensível, mas dentro de ser claras.
limites. Quais são os limites? O respeito. Somos, Mas o direito de participação não deve ser
na esquerda brasileira, tolerantes demais com as interpretado como dever de concordância.
“desproporções”. Rigor é muito importante. Rigor Ninguém deve se sentir incomodado, embaraçado,
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constrangido porque discorda de alguém. Não que os une, apesar de seus membros terem ideias
pode haver pressão pela unanimidade. Se a diferentes. Portanto, uma camarilha. O pior
coesão de uma organização repousa, somente, na fracionalismo é o fracionalismos secreto.
autoridade dos líderes, ela é muito frágil. Pode Construir uma teoria conspiratória é, também, um
parecer um castelo inexpugnável, mas é um recurso comum do fracionalismo de maioria.
castelo de areia. Porque há dois tipos de fracionalismos, o da
 Claro que é necessária uma educação emocional maioria e o da minoria. O da maioria é muito mais
para o debate. Para participar de uma discussão é grave. Fracionalismo é uma doença política, e seu
necessário maturidade para não interpretar uma sintoma mais comum é a intolerância com a
discordância com nossas ideias como uma ofensa pluralidade, ou seja, as ideias dos outros.
pessoal. Essa atitude tranquila, adulta, e Mas isso é somente um sintoma. O fracionalismo é
equilibrada se aprende. Há uma dimensão um comportamento de camarilha.
subjetiva nas nossas relações políticas. Dimensão A consequência inexorável é a fragmentação.
subjetiva significa o cuidado para não nos Quando a doença do fracionalismo se instala, a
machucarmos uns aos outros. desconfiança, a suspeição se instala. Quais são as
Um coletivo socialista é uma escola de educação intenções ocultas daqueles que discordam de
muito intensa. Não nos formamos somente como mim? Não é difícil elaborar uma narrativa
militantes. Construímos-nos como pessoas mais imaginária a partir de alguns grãos de verdade.
inteiras, mais responsáveis, mais íntegras. A Honestidade e respeito, neste terreno, são
formação de lideranças para as lutas populares é o indivisíveis. Honestidade é respeitar os outros e
cerne de uma organização marxista séria. suas ideias, mas também admitir os seus erros
Mas, claro que há o perigo dos militantes se quando eles acontecem. Disposição de autocrítica
ofenderem. Polêmicas só são destrutivas quando é essencial. Quem nunca faz autocrítica não
são ad hominem. Uma luta passa a ser ad merece confiança. Não diminui ninguém admitir
hominem quando pretende diminuir, desqualificar, que errou. Militantes e organizações que não
desmoralizar a pessoa que pensa diferente de nós. fazem balanços críticos de suas ideias não têm
Camaradas maravilhosos e de longa trajetória, que futuro.
passaram por muitas provas, podem defender Coerência não é o mesmo que obtusidade.
ideias erradas, absurdas, disparates e até Coerência é manter a consistência com a defesa
aberrações. E pessoas de caráter confuso, de um programa.  Coerência não é não errar.
duvidoso, ou dúbio podem ter razão. A regra Coerência é admitir a necessidade de se corrigir.
número um na luta de ideias é o respeito, portanto, Só obtusos não admitem erros. Isso é rudimentar,
a honestidade intelectual. A disputa de ideias deve tosco, primitivo.
ser somente uma esgrima de argumentos. Respeitar as posições dos outros não é somente
O sintoma mais perigoso do sectarismo é o boa educação e bom caráter. É a humildade mais
fracionalismo. Fracionalismo não é a formação de elementar. Cada organização socialista, em função
uma tendência. Uma tendência é uma união da dispersão balcânica em que mergulhamos, é
transitória de militantes em torno de uma somente um embrião, entre outros. Toda a
plataforma sobre um ou mais temas. Ou mesmo de concepção auto-proclamatória de seu passado, por
uma fração. Uma fração é um agrupamento interno mais importante, imponente, ou grandioso é
de militantes que querem disputar a direção, e substitucionista e, incorrigivelmente,
pedem o direito à proporcionalidade na desagregadora.
representação. Em um debate, a auto-organização O processo de reorganização da esquerda será
daqueles que defendem as mesmas ideias é o amplo e lento. Teremos muitas discussões. Mas
exercício de um direito. São legítimos e, em grande em uma boa discussão, não há vencedores nem
medida, inevitáveis. Fracionalismo é a formação de perdedores.
uma fração de militantes pela confiança pessoal

Texto: Sobre a militância (5) O Bem e o Mal.

Não são poucos os militantes socialistas que como uma luta infinita entre Deus e o Diabo, entre
associam a luta contra o capitalismo a uma luta do a matéria e o espírito, entre o bem e o mal.
bem contra o mal. Esta compreensão pode ser Existe, evidentemente, uma dimensão moral na
conceituada como maniqueísta derivada de Manes luta contra a exploração e a opressão. Mas isso
ou Maniqueu, um filósofo cristão da Antiguidade, não permite concluir que defender ideias socialistas
que interpretava o sentido da vida e da história equivale a ser do “bem”. Porque não são, somente
e nem sequer, principalmente, as ideias que
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definem quem somos. Infelizmente, nas fileiras da social humano rígido. Não somos, naturalmente,
esquerda encontraremos pessoas de mau caráter. nem bons, nem malvados. Nem egoístas, nem
Pessoas egoístas, desonestas, indignas, falsas, altruístas. Argumentou que a humanidade
traiçoeiras, e conflitivas. Encontraremos reinventou permanentemente a si própria por meio
oportunistas que se aproximam de organizações do trabalho e da cultura. A natureza humana seria
socialistas para obterem vantagens pessoais. um processo ininterrupto de transformações
Essa frustração alimenta, compreensivelmente, adaptativas. Marx apresentou nos Manuscritos
desalento, sobretudo, entre os mais jovens. Muitos econômico-filosóficos a idéia de que uma essência
abandonam a militância porque concluem que o humana imanente – um potencial de transformação
socialismo não é possível, já que até entre – se expressou na ampliação das forças
socialistas, há pessoas que não merecem produtivas, ou seja, na invenção de novas
confiança. Terminam desesperançados abraçando necessidades.
a ideia de que seria necessário uma outra A ampliação desta riqueza da natureza humana foi
humanidade, moralmente, reinventada, para poder a substância do progresso. Fizemo-nos mais
lutar contra o capitalismo. Essa percepção é rápidos que o guepardo e mais fortes que o
incorreta. elefante. Voamos mais alto que o condor e
Na verdade, nada disso deveria nos surpreender. descemos a profundidades maiores que os peixes.
Numa sociedade em que prevalecem relações Marx admitiu, no entanto, que existiam limites.
sociais que incentivam a cobiça por dinheiro e Reconheceu que a humanidade transformava a
prestígio é previsível que esse comportamento seja natureza e todas as suas relações sociais – a
comum, mesmo entre os explorados. A causa dos língua, as ferramentas do trabalho, suas relações
trabalhadores e dos oprimidos é, politicamente, uns com os outros, etc. – em condições naturais e
justa, mesmo que as pessoas não sejam perfeitas. sociais que não podia escolher, que eram alheias à
Toda e qualquer idealização do proletariado é sua vontade; mas não aceitava a premissa que
ingênua. A causa do socialismo é a mais elevada condicionava a mudança da sociedade à mudança
do tempo que nos coube viver, porque o prévia do homem. Lutando pela transformação e
capitalismo é uma ameaça à sobrevivência da pelo domínio consciente de suas relações sociais,
humanidade. a humanidade estaria transformando-se a si
Claro que a luta para transformar o mundo é mesma.
indissociável da luta por nos transformarmos a nós Mas é verdade que o liberalismo defendeu a visão
mesmos. Essa luta é uma permanente reeducação. de uma humanidade, irremediavelmente, fraturada.
Uma organização socialista com um regime interno Remetendo as formas econômicas da organização
saudável precisa saber se proteger dos social contemporânea às características de uma
oportunistas. Por isso, ela deve ter fronteiras. natureza humana invariável – o homem como lobo
O marxismo nunca defendeu a visão ingênua de do homem – o liberalismo fundamentava a
uma humanidade, naturalmente, bondosa, gentil, justificação do capitalismo na desigualdade natural.
altruísta e solidária. Nem fundamentou a A rivalidade entre as pessoas, e a disputa pela
necessidade da igualdade social em uma suposta riqueza seriam um destino incontornável.
igualdade natural. O que o marxismo afirmou é que Um impulso egoísta ou uma atitude comodista,
a natureza humana tem dimensão histórica e, uma ambição insaciável ou uma avareza
portanto, se transforma. O que o marxismo incorrigível definiriam a nossa condição. Eis o
preservou foi a ideia de que a diversidade de fatalismo: o individualismo seria, finalmente, a
capacidades não permite explicar a desigualdade essência da natureza humana. E a organização
social que nos divide. É a exploração de uns pelos política e social deveria se adequar à imperfeição
outros a causa da desigualdade, e não o contrário. humana. E resignar-se.
Marx acreditava que o homem, como ser social, Resumindo e sendo brutal: o direito ao
tinha transformado a natureza à sua volta e, enriquecimento seria a recompensa dos mais
portanto, a si próprio, ou seja, sua própria empreendedores, ou mais corajosos, ou mais
morfologia. Dominou com as mãos a pedra, a capazes e seus herdeiros. A propriedade privada
madeira, o fogo, as peles e as fibras. Aprendeu a não seria a causa da desigualdade, mas uma
caçar em colaboração, e diversificou sua dieta. conseqüência da desigualdade natural. É porque
Aumentou seu cérebro, sua estatura, sua são muito variadas as habilidades e disposições
expectativa média de vida. A história das que distinguem os homens que, segundo os
civilizações continuava e, inclusive, acelerava essa defensores de uma natureza humana rígida e
transformação da natureza e da humanidade. inflexível, existe a propriedade privada, e não o
Marx rejeitava, vigorosamente, uma interpretação inverso. A diversidade entre os indivíduos, inata ou
da história baseada em padrões de comportamento adquirida, seria o fundamento da desigualdade
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O que é ser Militante?
Rio das Ostras 2020.

social. Em consequência, o capitalismo seria o impulsionadas pela necessidade de sobrevivência


horizonte histórico possível e o limite do desejável. na natureza, que resultaram em experiências
Porque com o capitalismo, em princípio, qualquer históricas, e se concretizaram em relações sociais.
um poderia disputar o direito ao enriquecimento. Transformamos valores e costumes, através da
As premissas anti-históricas criacionistas de uma história, da mesma maneira que melhoramos
natureza humana invariável, e ainda por cima cruel, nossas ferramentas, e podemos sonhar nas
sinistra e malvada, embora ainda exerçam alguma mudanças que ainda estão por vir.
influência sobre o senso comum, são inaceitáveis. A história foi um processo cultural de readaptação
A humanidade compartilhou a capacidade de amar da humanidade. Essa capacidade de
e odiar, confiar e temer, identificar e repudiar, autotransformação foi uma das constantes que
desejar e rejeitar, admirar e querer, sorrir e oferecem coerência interna à própria história, e
desprezar, invejar e imitar, ou seja, todo um permitem que ela seja compreendida. Por isso, a
repertório de ações e reações dos homens uns esperança pode triunfar.
com os outros – colaboração e conflito –

Texto: Sobre a militância (6) Saúde Mental


A eleição de Bolsonaro trouxe de novo para o Tudo é uma questão de grau. Ridicularizamos,
primeiro plano, de forma mais ou menos séria, a caçoamos, e até achincalhamos comportamentos
discussão do lugar da insanidade na política. que nos parecem absurdos, mas, sobretudo, na
Bolsonaro é, politicamente, um neofascista. Não brincadeira. Os níveis de tolerância na esquerda
sabemos qual é o quadro de sua saúde mental. com atitudes incoerentes, meio bobas e tolas são
Mas as ideias que defende são tão obtusas, muito grandes, o que é compreensível. Ainda bem
absurdas, disparatadas, irracionais, e seu que é assim. Afinal, estamos imersos nas lutas
comportamento tão provocativo que há dúvidas, populares, onde a experiência do sofrimento é
suspeitas que não são infundadas, sobre o seu enorme, e há muitas pessoas machucadas entre
equilíbrio mental. nós. Somos e devemos ser pacientes.

Incontáveis vezes, ao longo da história, psicopatas Embora não discutamos com tanta frequência
conquistaram a posição de líderes políticos e como deveríamos a dimensão subjetiva da vida,
chegaram ao poder. A psicopatia é um transtorno temos consciência das dores que nos cercam
de personalidade patológico caracterizado por
comportamentos antissociais. Comportamento Embora não discutamos com tanta frequência
antissocial é o conceito científico para o mau como deveríamos a dimensão subjetiva da vida,
caráter. Psicopatas não têm temor algum de temos consciência das dores que nos cercam.
manipular pessoas. Não sentem culpa. Não têm Todos conhecemos pessoas com graus variados
respeito, cautela, ou escrúpulos. Mas podem ser de desconexão com a realidade. Ou seja, com
muito astutos, audaciosos, destemidos, decididos, momentos de delírio, frenesi, desatino, ou até
inteligentes. Podem ser inspiradores. Podem ser mesmo, em situações extremas, alucinação.
brilhantes. Ponderamos, corretamente, esses momentos de
insensatez como transitórios.
Hitler era, inequivocamente, um psicopata,
maníaco, doido. Mas não foi somente nas fileiras Entretanto, desenvolvemos na esquerda o hábito
do fascismo que psicopatas chegaram à liderança. de chamar aqueles que defendem ideias diferentes
Stalin era um psicopata paranoico. A OMS das nossas de malucos. Os loucos são sempre os
(Organização Mundial da Saúde) avalia que a outros. Não saberia dizer quando começou esta
psicopatia atinge, pelo menos, 1% da população onda. Lembro ainda de um tempo em que não era
mundial. Isso é muita gente. Só no Brasil são mais assim.
de um milhão de adultos.
No entanto, não é um bom critério diminuir aqueles
O tema da loucura ainda é um tabu entre nós. com quem não concordamos como um atalho para
Ainda é um constrangimento no tempo em que desqualificar suas ideias. Virou uma mania
vivemos. Temos reservas ou restrições em discutir, inferiorizar o mensageiro para envenenar a
de maneira adulta, madura e aberta sobre a saúde mensagem. É assim, porque é mais difícil debater
mental. Ficamos acanhados. com argumentos, seriamente, examinando as
diferentes propostas.
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O que é ser Militante?
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Isso não quer dizer que não haja militantes em pessoas não se dividem na forma simples de dois
sofrimento psíquico na esquerda. Claro que há, grupos: sãos e enfermos. A ciência descobriu que
infelizmente, e são muitos. Muita gente que está somos todos neuróticos, em algum grau. É,
em torno de cada um de nós, sobretudo, em um portanto, muito mais complicado. Os distúrbios
quadro de depressão, embora as situações sejam emocionais têm muitos e variados níveis de
as mais variadas [1]. Também é verdade que, por intensidade.
distintas razões, há muita gente que não se cuida e
procura apoio especializado, ainda que haja Evidentemente, a esquerda não pode ser um
tratamentos, comprovadamente, eficazes. Uma consultório psicológico. Organizações são
grande parte abusa no consumo de medicamentos, ferramentas de luta. São instrumentos coletivos
drogas variadas e, sobretudo, uso nocivo do álcool. dedicados à formulação e defesa de um programa,
O adoecimento individual é indivisível do contexto uma estratégia, um projeto. Por isso, não devem
social. Não faz sentido, portanto, que não haja clinicar os seus membros. Tampouco devem emitir
lugar na militância para camaradas com distúrbios opiniões sobre a saúde mental maior ou menor dos
de humor. Não exigimos atestado médico de ativistas de outras correntes. Podemos ser melhor
ninguém. Devemos ser uma fraternidade de do que isso. Devemos ser mais  solidários uns com
lutadores. Quando alguém entre nós adoece, e não os outros.
importa qual seja a enfermidade, pressionamos
para que se cuide, e respeitamos o tempo de Mas devemos ser, também, muito criteriosos no
recuperação. processo de seleção das lideranças. Precisamos
estar atentos e vigilantes. Porque nas nossas
Quando alguém entre nós adoece, e não importa fileiras aparecem, também, pessoas de mau
qual seja a enfermidade, pressionamos para que caráter. Toda organização tem o direito de se
se cuide, e respeitamos o tempo de recuperação. proteger de psicopatas. Pessoas perigosas não
podem ter responsabilidade.
O sofrimento mental não autoriza concluir que as
ideias políticas de um militante estejam erradas. As

 NOTAS

 [1] O número de pessoas que vivem com depressão aumentou 18% entre 2005 e 2015. É o que aponta
um novo relatório global lançado nesta quinta-feira (23) pela Organização Mundial da Saúde (OMS). De
acordo com a publicação “Depression and other common mental disorders: global health estimates”, há
322 milhões de pessoas vivendo com esse transtorno mental no mundo. O novo relatório global mostra
ainda que a depressão atinge 5,8% da população brasileira (11.548.577). Já distúrbios relacionados à
ansiedade afetam 9,3% (18.657.943) das pessoas que vivem no Brasil.
https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=5354:aumenta-o-numero-de-
pessoas-com-depressao-no-mundo&Itemid=839

Consulta em 16/08/2019

Texto: Sobre a militância (7) Valores

Precisamos discutir quais são os valores que nos honradez. Responsabilidade é maturidade e
inspiram. Quais são as nossas referências? No seriedade. Solidariedade é fraternidade.
âmago de cada um de nós, antes de tomarmos Perseverança é abnegação e resiliência. Cortesia
uma decisão, consideramos, pesamos, é gentileza e delicadeza. Flexibilidade é tolerância
analisamos as consequências de nossas ações. e respeito. Defendemos o desprendimento contra
Para isso, temos interiorizados princípios, o egoísmo, a generosidade contra a cobiça, a
costumes, ou regras. A moral é uma construção paciência contra a raiva, o altruísmo contra a
social e histórica. Portanto, se transforma. Mas inveja, o empenho contra o desleixo, e a
isso não permite concluir que os socialistas não humildade contra a vaidade.
defendem conceitos morais. Mas não reduzimos nossa militância a uma
Ao contrário, temos muitos compromissos éticos. cruzada moral. Porque defendemos que o que
Reconhecemos obrigações nas relações de uns está errado na sociedade não é a maldade
com os outros. Honestidade é sinceridade e humana, mas o capitalismo. Não é a corrupção e
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a desonestidade, mas o capitalismo. Não é o incentivam o acomodamento e a submisssão, a


egoísmo e o mau-caratismo, mas o capitalismo. prostação e o fatalismo. E nada é mais
Não somos seguidores dos dez mandamentos da desmobilizador do que a ideia simples, porém,
Idade do Bronze. Respeitamos a tradição das devastadora, de que não vale a pena lutar, porque
civilizações antigas do Mediterrâneo Oriental que as pessoas não prestam. A disputa ideológica nos
elegeram os sete pecados capitais. Mas o remete, portanto, aos valores que devem inspirar
discurso moral de condenação da gula, luxúria, nossa militância.
avareza, ira, inveja, preguiça, luxúria e, sobretudo, Militância não é voto de pobreza, é uma oferta,
do orgulho, respondeu, historicamente, nos uma doação. A teologia ou idealização do
últimos dois mil e quinhentos anos, às sacrifício como um caminho para a paz é uma
necessidades de controle social. Não é um premissa religiosa, não socialista. Não
programa político. defendemos o ascetismo. Desapego não é
O caminho da transformação da sociedade é a renúncia, dedicação não é purificação,
luta social e política dos trabalhadores e dos austeridade não é virtude. Não condenamos a
oprimidos contra a burguesia. Não a luta das ambição. Ter aspirações pessoais é legítimo.
pessoas boas e decentes contra as pessoas ruins Criticamos a rivalidade. O comedimento, a
e malvadas. Acontece que esta visão de mundo é simplicidade, e a sobriedade não são
minoritária, inclusive entre os explorados. automortificação. Desprezamos a ostentação. Mas
Portanto, sofremos a imensa pressão de a frugalidade só é virtude contra a futilidade. Não
ideologias muito poderosas, e com grande somos uma fraternidade de estoicos. Somos um
influência popular, porém, incompatíveis com a movimento social e político de pessoas normais.
luta contra a propriedade privada e o capital. Portanto, imperfeitas.
A percepção entre as amplas massas de que não A militância não é voto de castidade. Não pode
é possível mudar a sociedade repousa em muitos ser renúncia ao desejo, nem desinteresse ou
fatores. Os objetivos, como a força da riqueza e o indiferença erótica, nem defesa do celibato, ou da
controle do poder são, extremamente, poderosos. fidelidade.
Mas há também fatores subjetivos que são o A militância não é voto de obediência contra o
centro da disputa ideológica. Esta luta é uma luta orgulho e a vaidade.
de ideias. Mas é, também, um combate contra os Quem defendia voto de pobreza, castidade e
aparelhos que perpetuam ideias que perpetuam a obediência eram os jesuítas.
resignação, insegurança, indecisão e incerteza Não são as nossas bandeiras.
das massas sobre si próprias. Aparelhos que

Texto: Sobre a militância (10) Confiança

Precisamos conversar na esquerda sobre os protegido, blindado diante das aflições da vida.
conflitos pessoais entre militantes, e a importância Trabalho em equipe só é possível com respeito
da paciência entre nós. Mais do que nunca, diante mútuo, tranquilidade, e alguma alteridade: a
de um governo como o de Bolsonaro, a militância capacidade de se colocar no lugar do outro.
em um coletivo precisa ser um trabalho em Sim, as pessoas se desentendem, nem sempre
equipe. Trabalho em equipe em uma situação por razões políticas, ou seja, pela defesa de
defensiva exige mais reuniões. A discussão ideias. A discórdia pode ficar amarga, muito
coletiva consome mais tempo. Aprender a fazer facilmente, quando aumenta a ansiedade. A
boas reuniões é uma arte. Uma reunião mal angústia aumenta na esquerda porque viemos de
preparada, uma intervenção intempestiva, uma derrotas. Diante de derrotas é inescapável a
ironia inoportuna, podem ser o bastante para que busca de culpados, ainda que em diferentes graus
a aspereza alimente antagonismos, depois, de responsabilidade. Preservar a capacidade de
irrefreáveis. trabalhar juntos tem importância estratégica.
Uma organização saudável deve estimular seus Somos diferentes, até muito diferentes uns dos
membros a se cuidarem física, e emocionalmente. outros. Quando entramos em uma organização
Basta que um militante esteja, mentalmente, nos transformamos. Sem a disposição de
adoecido para que uma equipe inteira se autotransformação para melhor não há militância.
desestabilize, ou até destrua. Ainda há muita A militância é um aprendizado. Ninguém nasce
incompreensão, desconhecimento e preconceito socialista. Isso exige uma revisão de valores,
sobre as diferentes condições de sofrimento critérios, e juízos que pode ser conflitada e, não
psíquico. Nenhum de nós está resguardado, poucas vezes, contraintuitiva. Contraintuitivo é
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O que é ser Militante?
Rio das Ostras 2020.

algo que contraria o que pensávamos que era que vive. Humildade é reconhecer os nossos
certo. limites e erros. A imaturidade recorre, às vezes, à
Trabalho em equipe é colaboração. Nos falsa humildade, que é uma dissimulação.
organizamos para conquistar maior eficácia em Humildade não é a recusa ao exercício de
uma luta titânica contra inimigos muito poderosos. responsabilidade, ou de autoridade, isso é um tipo
Os trabalhadores só podem vencer se de vaidade. Autopiedade tampouco é humildade.
conseguirem se organizar: nos sindicatos, nos A luta socialista é um projeto ambicioso, e uma
movimentos, nas correntes, nos partidos. Toda das tarefas centrais de uma organização séria é a
organização popular é, em primeiro lugar, uma formação de lideranças.
ferramenta de luta. Mas é, também, um grupo Líderes são movidos por muitos impulsos, entre
social. eles, ambições. Não há nada errado em si em ter
Quando uma organização política supera a ambições. Ter ambições políticas, ou ser
condição de um núcleo fundacional e ganha determinado, comprometido, não é incompatível
alguma audiência, perde em homogeneidade. com ter desapego pessoal. Tudo na vida é uma
Quando se supera a escala das dezenas, e se luta. Quando dentro de um coletivo as ambições
passa para a escala das centenas ou milhares de pessoais podem ser equilibradas, contrarrestadas,
militantes ativos, os estranhamentos, as freiadas pelo autocontrole, o respeito, a lucidez, e
desavenças entre os membros se acentuam. Os ela cumpre um papel dinâmico. O que é
ganhos e proveitos políticos do crescimento são desagregador é o excesso de orgulho, arrogância
evidentes. Coletivos mais implantados e ou prepotência.
heterogêneos são mais fortes e, potencialmente, Falar mal dos outros traz alívio e é algo,
mais úteis, porque tendem a errar menos. Mas se socialmente, aceito. Mas deve prevalecer o
perde, também. respeito. Parece haver algum consenso científico
Perde-se o nível elevadíssimo de confiança de que os desabafos, até as fofocas são, em
pessoal que só é possível entre aqueles que se algum grau, uma forma de manter os conflitos
conhecem há muito tempo. Nada substitui a pessoais dentro de limites toleráveis. Seriam um
confiança. A confiança pessoal repousa na tipo de solução para preservar a convivência em
intimidade. Mas uma organização de lutadores é um grupo social, relativamente, fechado, em um
um grupo social diferente de outros, porque o que nível aceitável. Em resumo, parece que os
deve unir os seus membros é o acordo com o mexericos seriam funcionais.. Mas tudo tem seus
programa. A confiar em um projeto, em ideias, é limites.
algo muito mais abstrato, porém, mais sólido, do Um ambiente de intrigas permanente resulta em
que confiar em uma pessoa. As pessoas mudam, desmoralização pessoal, e até em fragmentação
e nem sempre para melhor. Seguir um programa política. Desmoralizações provocadas por derrotas
exige, portanto, mais maturidade. politicas e sociais são, em grande medida,
A maioria da militância adere ao projeto socialista inevitáveis. Em uma luta de longa duração há um
muito jovem, quando ainda estamos em processo processo de desgaste pessoal. Nossas vidas
de formação. É plausível que se expressem fortes passam por incontáveis desafios, e ninguém tem
pressões narcísicas. O excesso de amor por si energias ilimitadas. Nossa capacidade de entrega
próprio, ou por sua própria imagem, limita uma e doação oscila, aumenta e diminui, avança e
boa relação com os outros, e impulsiona mal recua. Mas a desmoralização provocada por
entendidos, confusões, brigas, e rivalidades. Há disputas pessoais é deplorável, e muito triste.
um lugar para todos e cada um na luta socialista. Reuniões são a forma de funcionamento de
Basta somente termos a paciência de conseguir trabalho em equipe. Sim, a luta pela revolução
uma boa divisão de papéis e tarefas. impõe a necessidade de reuniões em que
Não há nada de errado em criticar o que alguém debatemos ideias e dividimos tarefas. Por isso,
fez. Mas é preciso aprender a criticar sem são insubstituíveis.
ofender. Ninguém é do tamanho dos seus erros. Os dez critérios mais simples de bom
Somos todos maiores e mais complexos do que funcionamento de organismos são: (1) só
nossos deslizes, falhas, enganos ou bobagens. A funcionam os organismos que têm um
imaturidade pessoal pode ser um grave fator de responsável pela preparação da reunião; (2) toda
agigantamento de conflitos, eventualmente, reunião bem-sucedida deve ser um processo de
desnecessários, porém, ao final, insolúveis. aprendizagem e formação coletivo; (3) só são
Porque as intrigas são destrutivas. produtivas as reuniões que têm uma pauta
Somos todos, em maior ou menor grau, pelo adequada; (4) só são boas as reuniões em que a
menos, um pouquinho individualistas. Ninguém participação é possível, portanto, o tamanho dos
está imune às pressões do tempo e espaço em organismos não é aleatório; (5) trabalho em
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equipe exige disciplina, e isso se aprende; (6) não não é preciso falar sobre todos os assuntos; (10)
é razoável participar em reuniões estando doente, só é possível o trabalho em equipe respeitando as
com fome ou com sono; (7) reuniões não devem regras de boa conduta.
ser nem um bate papo ligeiro, nem um seminário Não precisamos ser todos amigos pessoais uns
infindável, e não podem terminar sem divisão de dos outros.
tarefas; (8) não se deve repetir o que já foi dito; (9) Mas devemos ser camaradas.

Texto: Sobre a militância (11) Minoria

Ser de esquerda no Brasil é ser parte de uma ser invasivos, nem abruptos. Uma boa atitude
minoria. E ser muito tempo uma minoria não é exige paciência e perseverança. Mas a verdade é
fácil. Ser uma minoria é estar à margem do fluxo que um trabalho de base sério e constante para
de opinião majoritário. Precisamos conversar organizar e mover pessoas é exaustivo e cansa.
sobre as causas e consequências impostas por Todos temos nossos limites.
esta condição de relativa marginalidade. Ser convincente exige ter domínio do que
Diferente de alguns países vizinhos, a imensa defendemos. A insegurança se transforma,
maioria da sociedade, mesmo se considerarmos facilmente, em exasperação. Mas ninguém gosta
somente a classe trabalhadora, não tem uma de conversar com quem está o tempo todo
definição ideológica. Defender o socialismo zangado. O conhecimento exige tempo, portanto,
provoca alguma perplexidade. estudo, disciplina, uma educação política
Ser militante de esquerda é ainda mais estranho. permanente, porque a luta socialista é uma
Sejamos francos uns com os outros. Ter um maratona. A revolução não está na próxima
compromisso político, participar de sindicatos, esquina. Ser militante é um aprendizado para a
movimentos e partidos e manter uma atividade vida, porém não é indolor. Manter o equilíbrio
consistente para construir uma ferramenta coletiva emocional é indispensável.
desperta curiosidade, mas também, dúvida nos Outra vez, pode ficar pior. Porque quanto mais e
nossos locais de trabalho e estudo, para não falar melhor explicamos nossas ideias, menos as
de nossas famílias. pessoas concordam, ou porque não acreditam
Os companheiros que nos cercam podem até que seja possível, ou porque têm medo, ou por
admirar a abnegação e o desprendimento, mas outras razões. É assim em condições normais de
não é incomum que militantes sejam observados dominação capitalista. Mais grave ainda em uma
com alguma suspeita. Os que nos rodeiam ficam situação reacionária como agora, quando as
interessados, mas desconfiados. Em algum ideias revolucionárias são ainda mais minoritárias.
momento nos perguntam: o que você ganha com Defendemos um projeto grandioso, mas muito
isso? Você quer ser candidato? Quando dizemos difícil de conquistar.
que não, ficam desconcertados. Vejamos um breve resumo. A esquerda radical
Mas pode ser pior. Porque a esquerda radical é defende como projeto a revolução brasileira. A
uma minoria dentro da minoria. Aí é ainda mais revolução brasileira é uma estratégia
complicado. Estar o tempo todo defendendo ideias anticapitalista. Ela aposta na perspectiva de que a
revolucionárias contra a corrente deixa sequelas. luta por um governo de esquerda é inseparável de
Como estamos sempre argumentando com uma luta pelo poder. No Brasil do século XXI, a
aqueles que nos cercam, porque desejamos luta por trabalho para todos, pela reforma urbana
convencê-los da legitimidade das lutas que e agrária, pela educação e saúde publicas e
defendemos, mas eles nos contrariam, nos gratuitas, entre tantas outras reivindicações,
desgastamos e endurecemos. É inevitável coloca a necessidade de uma ruptura com a
amadurecer depressa. Se começamos a militar estrutura social do capitalismo periférico. O nome
muito jovens, que é o mais comum, desse processo é revolução democrática,
amadurecemos muito depressa. Endurecemos, revolução anti-imperialista, revolução urbana e
também, rapidamente. agrária, revolução feminista e revolução negra.
Porque mesmo que a maioria das pessoas com Uma simultaneidade ininterrupta de revoluções
quem mantemos relações presenciais ou virtuais em permanência. O nome desta dinâmica de luta
seja gentil, o que nem sempre acontece, o fato é é revolução socialista. Resumo da ópera: só os
que elas, a maior parte do tempo, e sobre a mais lutadores e inteligentes nos escutam.
maioria dos temas, não concorda conosco. E São muito poucos os que concordam conosco.
como somos militantes devemos tomar a iniciativa Como somos muito minoritários, é inevitável que
de procurar as discussões. Sabemos que prevaleça entre nós uma tendência de
precisamos ser persuasivos, mas não podemos dialogarmos entre nós mesmos. É muito mais
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confortável estar entre aqueles que pensam como transborda em uma discussão desproporcional. Já
nós. nem se valoriza o respeito por quem defende
Esta pressão nos deixa encerrados em uma “zona ideias que são, em grande perspectiva, muito
de conforto”. Mas isolados. Ou prisioneiros de parecidas com as nossas. Ao contrário, a
uma perigosa dinâmica que acentua a condição rivalidade com quem está mais próximo é a mais
de uma comunidade fechada, o que só pode intensa. E assim, pelo caminho da intolerância,
agravar a condição de marginalidade. O militantes que poderiam atuar, lealmente, juntos, e
isolamento crônico é fatal. Em resumo, construir lutas juntos, perdem a mais elementar
involuntariamente, vamos nos tornando sectários. camaradagem, deixam de ser cumprimentar, se
E quando consolidamos uma mentalidade desmoralizam uns aos outros.
sectária, as nossas posições políticas vão, aos Mas podemos ser melhores do que isso. Existe
poucos, sendo contaminadas porque perdemos a outro caminho. Ele nos impõe a ousadia de nos
lucidez. transformarmos a nós mesmos na luta pela
O mais triste é quando somos tão sectários que transformação política da sociedade. Essa
nem sabemos que somos sectários. Sectários ousadia é o contrário da acomodação. Ela exige
“profissionais” já nem se esforçam de sair da (a) uma conexão com a realidade, muita
condição de marginalidade. Ao contrário, disposição por participar das lutas, portanto,
“racionalizam” a marginalidade. Adaptam-se à manter vínculos saudáveis com a militância de
marginalidade. Assim, organizações com impulso esquerda das outras correntes, porque não
revolucionário verdadeiro reduzem-se a círculos somos, felizmente, os únicos revolucionários; (b)
de propaganda estéreis que perdem os reflexos uma mente aberta, uma curiosidade intensa e
políticos. Diminuem-se à condição de grupos desejo de aprendizagem sincera, portanto, apreço
literários que escrevem ideias para si mesmos. pela teoria, e capacidade de admitir os nossos
Ossificam como “partidos-museu”, testemunhas e erros sem excessos de dramatização; (c) um
comentaristas da realidade. internacionalismo vivo, de quem compreende que
Atingido este estágio, toda conversa com quem o destino da causa socialista não tem fronteiras.
tem uma diferença, frequentemente, tática, E a valorização da fraternidade entre todos nós.

Texto: Sobre a militância (12) Liderança

Precisamos discutir com maturidade sobre a Novas lideranças de operários e jovens


renovação dos líderes na esquerda. Há duas intelectuais, mulheres e negros, indígenas e
dimensões diferentes nesta questão. Há uma LGBT’s, assim como ativistas do nordeste e norte,
reorganização das organizações, e há uma estão ocupando seu lugar, desde 2013, em uma
substituição de quadros. A reorganização pela revolução geracional que só pode ser comparada,
esquerda tem sido um processo lento e de talvez, com aquela que ocorreu quarenta anos
vanguarda, pleno de oscilações, que remete à atrás, nos idos de 1979/1983, quando da onda de
experiência do ativismo mais radicalizado, desde fundação do PT e da CUT. Nenhuma revolução é
2013, com a direção do PT. indolor.
Dependerá, essencialmente, da dinâmica de uma O critério de representação é necessário e
nova onda de grandes lutas de massas, quando legítimo, porque é uma inspiração para os
ela chegar. Terá que ser a “quente”. A mudança explorados e oprimidos. Mas não devemos ser
de referência de massas não se completa a “frio” ingênuos. A burocratização dos sindicatos revela
em uma situação reacionária, portanto, defensiva. que uma origem social proletária não é o bastante.
Uma nova direção, para poder se afirmar, tem que Precisamos de mais e, sobretudo, melhores
passar pela prova de grandes combates e vitórias. dirigentes. São dois problemas diferentes, mas
A outra dimensão é a renovação de quadros nas indivisíveis, porque é indispensável uma massa
organizações existentes. Encontramos com razão crítica importante, quantitativa e qualitativa, para
muita insatisfação, até frustração acumulada com que nela amadureçam grandes talentos.
o excesso de homens de classe média, brancos, A classe trabalhadora nunca precisou tanto de
envelhecidos e héteros, não poucos paulistas, à revolucionários profissionais. Uma velha
frente da maioria das organizações. Há, também, brincadeira entre nós era que tinha muito cacique
cansaço e desconfiança com lideranças que se para pouco índio. Mas nunca foi assim. Na
perpetuam ao longo de décadas nas posições verdade, com oscilações, sempre tivemos um
dirigentes, seja à frente de mandatos, sindicais ou déficit na formação de lideranças. A esquerda
parlamentares, ou de cargos. brasileira organiza, relativamente, uma militância
muito menor que sua influência na sociedade
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O que é ser Militante?
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permitiria. Isso decorre da debilidade estrutural na não é razoável, muito menos uma premissa
formação de quadros. Mais recentemente socialista.
prevalece a ideia de uma militância como uma Qualquer organização humana tem o direito e o
doação voluntária ocasional. dever de se proteger, de decidir quem pode ser
Os chefes políticos que representam os interesses membro dela. Querer ser membro de uma
do capitalismo são quadros muito especializados. corrente socialista significa aceitar que qualquer
A burguesia brasileira leva a sério a formação de um pode ser criticado, ser julgado e,
suas lideranças. Deixou de investir somente no eventualmente, punido, até com a exclusão.
improviso e amadorismo das velhas dinastias Significa, também, evidentemente, o direito
hereditárias. Surgiram muitas incubadoras irredutível de poder se defender, porque não é
financiadas pelos maiores milionários. São incomum que as diferenças de opinião, os
quadros formados nas melhores universidades e choques de personalidades, transbordem em
treinados, desde jovens, para o exercício da rivalidades pessoais nocivas para o coletivo. Há
carreira política, seguindo modelos de seleção uma dialética nestes processos de seleção de
norte-americanos e europeus. quadros. A ausência de autocontrole é o caminho
Ser um profissional da revolução não é o mesmo da autodestruição de qualquer organização.
que ser um funcionário político de um aparelho. Qualquer um destes critérios é unilateral e
Claro que a idealização de dirigentes de ferro, os destrutivo, se for absolutizado. Quadros com
homens de aço, uma caricatura, vulgarização e grande aptidão e disposição ficam, muitas vezes,
deformação do bolchevismo com forte inspiração pelo caminho, pelas mais variadas razões,
militar, fez estragos terríveis. Longas enquanto outros, menos capazes, se impõem, um
profissionalizações, que foram necessárias processo de seleção que pode ser cruel e
quando a existência de organizações regressivo, um “antidarwinismo”. Sempre teremos
revolucionárias era ilegal, eternizam acomodação que considerar o peso objetivo das derrotas, que
e maus hábitos. Há funcionários que não são pode ser devastador, e o custo subjetivo dos
profissionais da revolução, e profissionais da desgastes pessoais, que pode ser desolador.
revolução que trabalham para viver. Não podemos esquecer que as organizações de
Revolucionários profissionais são aqueles que esquerda são coletivos em que devem ser
abraçam a defesa da necessidade de uma construídas equipes de direção. As figuras
revolução, mas muito mais do que isso. Significa públicas ocupam um lugar destacado, mas são
que a dedicação de suas melhores forças, a somente os porta-vozes das correntes,
concentração de suas energias, o sentido de sua movimentos e partidos. Ser um porta-voz oferece
vida está orientado para a luta revolucionária. Isso visibilidade e peso político desproporcional. Em
significa a disposição de assumir uma equipe, há lugar para quadros com as mais
responsabilidades. Esse deve ser o primeiro diferentes habilidades: parlamentares,
critério na seleção de quadros. sindicalistas, intelectuais, agitadores,
Mas, como julgar a qualidade dos dirigentes? propagandistas, teóricos, organizadores.
Existe uma régua? Quais são os critérios? Esta As posições da organização devem resultar do
discussão é um tema clássico inescapável. debate e de votações. Em um regime interno
Ressurgiu nos últimos meses, mais uma vez, nas saudável não há lugar para caudilhos. Ninguém é
comparações entre Trotsky e Stalin. infalível. Ninguém é especialista de tudo. Não
Devemos considerar quais são os critérios. Existe pode haver um chefe, porque o sujeito político é
a tenacidade, inteligência, coragem, enfim, a uma organização coletiva, sustentada por uma
capacidade é uma variável. Há que considerar, militância voluntária.
também, a personalidade. Forte ou fraca, Mas, ainda que a direção seja um coletivo surge o
agregadora ou conflitiva, doce ou áspera, problema da liderança da liderança, ou do centro
narcisista ou modesta, estável ou perturbada. Não da direção. Ou seja, dos dirigentes que têm a
se pode deixar de avaliar a experiência, e o tarefa de preservar a união dos quadros. A
repertório. A trajetória são as provas dadas, e o solução pode passar por um pequeno coletivo, na
nível teórico político, a formação. Não se deve forma de triunvirato ou dupla. A pior solução é que
ignorar o desempenho, o balanço ou os resultados esse papel seja assumido por um só, que toma a
alcançados. responsabilidade da condução da equipe de
Mas é perigoso quando se negligencia o caráter. direção. Podemos aprender com as tragédias do
O caráter remete à índole da pessoa, ao seu século XX.
modo de ser, à qualidade moral, à integridade, ao Em uma de suas últimas participações em
domínio de si mesmo, enfim, ao temperamento. A reuniões do comitê central bolchevique, já
idealização de um mundo em que só há gente boa rompido, politicamente, com Stalin, Bukharin
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O que é ser Militante?
Rio das Ostras 2020.

tomou a palavra e, em tom de brincadeira,


“teorizou” que a história podia se classificada em
três grandes eras: o matriarcado, o patriarcado e o
secretariado. Pagou com a vida a insolência
provocativa.
Nunca precisamos tanto de revolucionários
profissionais. Mas podemos ser leninistas do
Brasil, portanto, um pouquinho de irreverência
deve ser bem vinda. Podemos rir de nós mesmos,
sem nos diminuirmos.

A Necessidade de organização – Conceitos Iniciais.


“Que eu me organizando posso desorganizar, que eu desorganizando posso me organizar” Da
Lama Ao Caos Chico Science.
1- Primeiros Passos
No trabalho diário da militância os estudantes e suas organizações não podem ficar dependentes de uma
“assessoria” ou de um “chefe”. Pois Sem independência econômica e política, nos tornamos massa de
manobra e ficamos sujeitos a uma política que não tem por objetivo nossos interesses comuns, sem
formação política, sem recursos financeiros para as atividades, sem o conhecimento das técnicas – como
fazer uma reunião, falar em público, organizar uma mobilização, administrar recursos, elaborar material de
propaganda a classe oprimida vai continuar de rabo preso. (Uma organização estudantil eficaz contribui
na capacitação de sua base para que se tornem sujeitos e protagonistas da luta). Para ter independência
é preciso coragem e criar condições de andar com os próprios pés. Desde o início, todos os estudantes
devem ser envolvidos na sustentação de suas atividades e competentes numa tarefa da luta e da
organização.
2- Formação política
A formação é uma necessidade de quem luta. Só o entusiasmo e a força são insuficientes para vencer o
poder da opressão. A classe oprimida precisa juntar sua força, pensamento e esperteza para vencer a
dominação. Mais do que ninguém, deve saber como desmontar o sistema capitalista e apontar soluções
para os problemas do povo. É fácil derrotar quem não estuda, quem não pensa. É triste saber que muitos
estudados não entram na luta, mas é imperdoável que uma pessoa lutadora não estude, não seja
intelectual.
Estudar significa entender o que está acontecendo consigo e com os outros e buscar solução. Isso exige
reflexão sobre a própria experiência e sobre a experiência histórica da classe trabalhadora, apropriando-
se dos conhecimentos acumulados. Formar-se não é só fazer cursos, nem encher a cabeça de
informações. É estar capacitado para descobrir respostas para os problemas que afligem os estudantes,
hoje. Assim, formação não quer dizer despejar conteúdos sobre a cabeça de pessoas que recebem
passivamente. Mas, um processo de troca entre sujeitos que ensinam e aprendem os ensinamentos da
vida.
3- Propaganda
Quem acredita no que faz, quer que essa ideia se espalhe. Fazer propaganda é anunciar e repartir com
outros as lições da experiência de luta. É falar de sonhos e convidar muitos para a mesma esperança.
Não se pode esconder um tesouro que vem de longe, é necessário repassá-lo para as gerações futuras.
Fazer propaganda não é a invenção de histórias para impressionar ou iludir alguém. No início do trabalho
a propaganda se faz de pessoa a pessoa. Quando a experiência cria raízes e já pode encarar o sol, a
propaganda pode ser feita de forma aberta: faixas, cartazes, boletins, paginas de internet, a propaganda é
a forma eficaz de espalhar as ideias e conseguir novos lutadores.
4- Ações concretas
A ação concreta é a consumação de transformar a realidade, buscar os anseios dos estudantes e do povo
dentro da compreensão do momento e ritmo de como está a luta por objetivos específicos. Pode ser
desde atividades políticas quanto sociais sejam elas jogos, festas, protesto, palestras etc. A ações são a
sugestão de proposta e nunca imposição porque ações não assumidas ou construídas coletivamente
geram acomodação e frustração.
Por isso devemos ser decisivos nas ações devem ser articuladas com os princípios e ter objetivos de
arrancar vitórias mesmo que parciais, pois elas animam. As derrotas, em geral, aumentam o sentimento
de fraqueza e de impotência, porém independem de nossas vontades elas são concretizadas por dois
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O que é ser Militante?
Rio das Ostras 2020.

motivos um pelo contexto desfavorável aonde nossas ações não se conectaram com a realidade e nossa
força de mobilização outra por subestimar a força das elites na sociedade.
Assim como o avanço significativo quando vencemos, ganhamos respeito frente a nossa base respaldo
político para que continuemos representando os anseios de todos, que nos abre oportunidades de abrir
diálogo com quem não via a ação direta como meio de transformação.
5- Opressões

Um dos alicerces de luta por uma nova sociedade, inspirada na solidariedade de classe e na
combatividade frente aos ataques impostos a nossa classe, é sem duvida o combate irrefutável a a
ideologia elitista que nos divide para não enxergar que somos iguais e enxergar que nossos problemas
econômicos e sociais estão alojados na desigualdade imposta pelo capitalismo.
As principais segregações que o capitalismo nos divide é gênero, sexo, cor e classe. Um movimento
popular e de juventude não atingirá nenhuma vitória se não buscar a incessante libertação dos oprimidos,
não seremos revolucionários se dentro de nossas organizações temos um conteúdo de excluir e silenciar
as mulheres, de não pautar o racismo estrutural e o mito da democracia racial e sequer aceitar ou
defender os lgbts, nosso lema deve desmistificar o que é a falsa “moral” da sociedade, dentro de nosso
movimento cabe todos e deve representar todos os excluídos e oprimidos, seja ela de cunho racista,
machista, homofóbica, ou qualquer tipo de intolerância a heterogeneidade que é nossa sociedade.

Introdução:

“Quando te angustias com tuas angustias, te esqueces da natureza: a ti mesmo te impões infinitos
desejos e temores; a quem não basta pouco, nada basta”.
Epicuro.
1
Vivemos em uma sociedade que praticamente separou dois aspectos que devem – do nosso ponto de
vista – ser uma unidade dialética: teoria e prática. Referimo-nos à separação entre os que pensam,
dirigem, e os que fazem, executam. A separação entre o trabalho intelectual e o trabalho braçal. Não
podemos repetir essa prática nas organizações que buscam a transformação dessa sociedade.
Buscando cada vez mais a superação dessa dicotomia, é que sempre tem se preocupado em articular as
duas esferas. Por isso o estudo é fundamental. A apropriação do conhecimento científico, das
experiências históricas, das estratégias de lutas, dos métodos de trabalho e direção, de organização e
também de formação política são condições essenciais, para o avanço da organização em que os seus
partícipes se transformam em sujeitos políticos com capacidade de pensar, elaborar e fazer.
Foi com essa preocupação que agora organizamos nesse Caderno de Formação, a fim de que os
militantes possam levar adiante as tarefas organizativas e sigam se formando no processo. Daí a
importância do método, do jeito, da maneira como se faz, como se aprende fazer – fazendo.

1
Método de Trabalho de Base e Organização Popular
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O que é ser Militante?
Rio das Ostras 2020.

É importante ressaltar que vários dos subsídios que constam nessa publicação, foram redigidos há algum
tempo para dar conta de desafios específicos, numa realidade determinada. Por isso, nunca podem ser
interpretados como receita, como algo que se aplica mecanicamente em toda a realidade. No entanto,
servem como exemplos de experiências, de práticas que foram reais em determinadas organizações e
que podem servir de orientações, de auxílio para que, em outros momentos e realidades se possa
continuar elaborando e implementando um método organizativo e de Trabalho de Base que dê conta dos
desafios que precisam ser superados.
Portanto, todo o exposto neste Caderno de Formação deve servir de guia, de estímulo, de experiência e
referência a partir do que já se construiu.
A realidade está em permanente movimento e nos coloca novas questões que precisamos interpretar e
enfrentar, para avançar no processo de luta pela emancipação da classe trabalhadora. Um dos grandes
desafios é o como fazer?
Por isso, o método deve ser um instrumento (não uma receita) que nos auxilie a dirigir melhor; a fazer
planejamentos coerentes com a realidade e os objetivos; a delegar responsabilidades e tarefas que
possam forjar novos militantes; a coordenar reuniões produtivas, participativas; a desenvolver motivação
revolucionária; a superar vícios e desvios organizativos que afetam a coletividade; a compreender com
mais profundidade a importância e a necessidade do trabalho de base para o fortalecimento da
organização; a discutir questões relacionadas ao exercício do poder e a necessidade de construir o poder
popular, por intermédio da luta permanente de todos os trabalhadores envolvidos nos processos de
organização da classe.
É mais um instrumento para auxiliar os nossos processos de reflexão sobre a prática, do balanço crítico
que busca superar deficiências e limites, contribuindo com o salto de qualidade orgânico que o movimento
precisa dar nesse atual contexto da luta de classes, acumulando e aumentando nossa força social.
Sabemos que a força de qualquer organização é construída de forma coletiva e tem a ver com muitos
fatores a partir de uma realidade determinada, concreta. Dentre esses fatores podemos destacar a
questão da formação da consciência, da organicidade de seus membros e da capacidade de mobilização
e lutas – as verdadeiras parteiras das transformações.
A força do povo está na sua organização e na sua luta. Mas, a força também reside nos seus objetivos,
tanto imediatos como estratégicos, pois, é em função deles que se constrói a estrutura orgânica, se define
as táticas e estratégias de lutas, os quais funcionam como orientadores dos processos de formação que
no interior da organização se desenvolve.
Podemos ainda dizer que a força também está nos valores humanistas e socialistas que a organização
cultiva e propaga; Está nos princípios éticos e morais revolucionários; está na afetividade e solidariedade
com outros setores e movimentos sociais, na capacidade de alianças com outras forças populares em
luta. Mas, todo esse acúmulo de forças deve ir sendo construído tanto do ponto de vista da elaboração
teórica como do ponto de vista prático, sempre vinculando os dois aspectos do mesmo processo.
É preciso ter a convicção de que a juventude pode ser “arquiteta de seu destino”. Para tanto, terá que
decidir e tomar o rumo da história em suas mãos. Se as circunstâncias nesse momento são adversas e
vivemos um refluxo no movimento das massas, devemos dar a nossa contribuição para que as condições
históricas melhorem e nos preparemos para o ascenso do movimento de massas, com possibilidades
efetivas de levar adiante as mudanças e transformações necessárias para a libertação dos trabalhadores.
Como já disse um dos grandes mestres do operariado mundial: “A emancipação da classe operária será
obra da própria classe, ou, não haverá emancipação”.

O “Espirito” Militante:
“Ranulfo Peloso”

Abertura atitudes, comportamentos e valores. Quando as


O que vence o nosso medo não é a coragem, é a convicções são saboreadas e partilhadas
convicção. alimentam a mística da militância, mesmo quando
A convicção é uma porta que só se abre por experimentados no meio da tensão e da
dentro. É ter uma certeza numa coisa que não se imperfeição.
vê. É apaixonar-se por uma causa e ser capaz de 1. O espírito militante
doar a vida por ela. Se uma pessoa não abre seu Um tarefeiro cumpre ordens, um funcionário
coração, também não entende, nem abre suas trabalha pelo salário, um mercenário age para
mãos. A justeza da luta contra toda forma de satisfazer seu interesse individual. Já a militância
opressão é uma convicção que produz posturas, popular se move por uma indignação contra a
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O que é ser Militante?
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injustiça e por uma entrega apaixonada para que dominação. Todo bem material e espiritual tem
a classe oprimida se realize como gente e como uma função social, pertence a todos. Mas, a
povo. A luta é uma questão passional. A pessoa prosperidade só é possível com trabalho, domínio
amante não se ensina o que deve fazer para da técnica, crescimento da consciência e
agradar a pessoa amada. Com entusiasmo e austeridade de vida (não ter carência do
ousadia, a pessoa que ama faz do longe perto e necessário, mas não ter mais que o necessário)
inventa caminhos para alcançar seus objetivos. com o básico para todos, pensando nos recursos
Essa paixão une ação, razão e sentimento e do planeta e nas gerações futuras.
invade o espaço pessoal, a convivência familiar, a A militância, dentro de orientações construídas
vida de trabalho e a luta da militância. Na coletivamente, deve tomar iniciativas, criar
permanente busca de coerência entre o dito e o caminhos, ir além de metas planejadas, manter a
feito, a militância vive suas convicções. busca constante de soluções, sem seguir
Receitas, pedir licença ou esperar ordens. Esse
2. Indignação e rebeldia espírito de superação é também um ato da
Uma qualidade da militância de esquerda é sua vontade, pois, ao entender o que é necessário
capacidade de indignar-se contra qualquer fazer, a pessoa se dispõe a fazer o que entendeu
injustiça cometida contra qualquer pessoa, em da forma mais aperfeiçoada e profissional, para
qualquer parte do mundo. Achar natural a que a missão do movimento seja cumprida.
submissão, a dependência ou acostumar-se com
a situação dos pobres é identificar-se como 5. Espírito de sacrifício
direita, é ficar do lado da opressão. A rebeldia não Quem diz luta, diz sacrifício; quem diz sacrifico,
se confunde com amargura, nem com a revolta diz também morte. Se o grão de trigo não morrer
que nada faz para mudar. A rebeldia serve para não dá fruto. Sair da exploração não se faz sem
despertar a autoestima, para não se deixar conflito e sem rompimento, embora seja
coisificar, nem coisificar as outras pessoas e ser o necessário evitar os sacrifícios inúteis. Não é o
embrião da consciência crítica que ajuda a martírio onde as pessoas estão mais preparadas
desmontar a injustiça no compromisso de para sofrer e morrer. O sacrifício nasce do
construção da uma sociedade sem dominação. enfrentamento da opressão.
As transformações na natureza, nas pessoas e na
3. Sem medo de ser socialista sociedade não nascem de um acordo. O novo que
A militância não tem como centro da luta o inimigo se constrói dentro do velho, só aparece quando o
ou a opressão. O que anima a militância é a velho é destruído. Ninguém luta porque gosta e
certeza de estar construindo uma pátria onde não toda conquista envolve risco. Nada é concedido à
se chore mais, a não ser de contentamento. É o classe oprimida por dever de justiça. O direito
compromisso com a transformação da sociedade humano nasce na rua, no confronto - a luta faz a
onde a produção, distribuição e consumo se lei. Os subversivos precisam conhecer as manhas
façam de forma partilhada. No capitalismo, e preparar a hora de encarar a fera. Para haver
baseado na exploração e na competição entre os mudança é preciso conspirar e, por isso, na vida
indivíduos, não há lugar para os pobres como individual ou coletiva é inevitável a ruptura. Essas
protagonistas. O socialismo que coloca o ser tensões, como dores de parto, antecedem a vitória
humano como centro, possibilita uma relação da vida sobre a morte, sempre. O espírito de
entre os humanos, sem exploração, e com a sacrifício não impõe pré-condições de conforto,
natureza, sem destruição. Por isso, os erros e facilidade ou de mordomias individuais.
limites das experiências socialistas não negam o
sonho, nem invalidam os esforços de tanta gente 6. O amor pelo povo
que entregou sua vida por um mundo de novos A militância, mesmo sob o risco de parecer
homens e novas mulheres. ridículo, sabe que o verdadeiro revolucionário é
guiado por grandes sentimentos de amor. A
4. Prosperidade e superação classe trabalhadora carrega muitas contradições e
É legitimo o desejo de possuir os bens produzidos reproduz parte da mentalidade dominante. Porém,
pela criatividade humana desde que trabalhe. mais que vítima, o oprimido é um potencial
Quem não trabalha não deve comer. Só quem inesgotável de formas de luta e fonte constante de
perde a dignidade, perde também a vontade de militantes. Porque só a classe oprimida pode ter
crescer: ter mais, ser mais, saber mais e deixar interesse na libertação na revolução e, ao libertar-
sua marca no mundo. No capitalismo, a busca da se, liberta também seus opressores.
prosperidade vira consumismo: vontade A militância faz parte do povo que é o sentido e a
incontrolável de acumular bens que possibilita a razão de sua existência, mesmo que
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O que é ser Militante?
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aparentemente ele não tenha razão. Por isso, das riquezas individuais, mas reagindo com a
prefere o risco de ficar com os pobres do que divisão entre superiores e inferiores. Por isso, luta
achar que vai acertar sem eles. E como todo contra a dominação de classe, a discriminação de
artista se mete, lá onde o povo vive, luta, sofre, se gênero, o preconceito étnico e geracional e todas
alegra e celebra suas crenças. Afastar-se do povo as formas de intolerância cultural e religiosa.
é uma forma de ficar contra o povo. Como não A solidariedade se manifesta na compaixão
tem sentido o fermento fora da massa, não pode (colocar-se no lugar da outra pessoa), na
existir militante sem ligação com a base. afetividade, no acerto de parceria e no amor
Militante que se afasta do povo passa a pensar incondicional para que a classe oprimida se
por onde os pés pisam e entra num processo de realize. Ela se expressa melhor na entrega
corrupção, moral, política e ideológica. gratuita daquilo que se tem de melhor, inclusive a
própria vida, para que pessoas e povos realizem o
7. O exercício do poder eterno sonho da fraternidade universal. “Se
Numa sociedade dividida em classes, os líderes sentires a dor dos outros como a tua dor, se a
pisam sobre o povo, usam o poder para submeter injustiça no corpo do oprimido for a injustiça que
e explorar a classe trabalhadora. fere a tua própria pele, se a lágrima que cair do
Certas lideranças, reproduzindo a prática da elite, rosto desesperado for a lágrima que você também
também concentram o poder, usam métodos dos derrama, se o sonho dos deserdados desta
grandes prometendo tirar vantagens para o povo e sociedade cruel e sem piedade for o teu sonho de
contrariam os pequenos para não ficar de mal uma terra prometida, então, serás um
com os ricos e autoridades. Elas fizeram do seu revolucionário, terás vivido a solidariedade
cargo seu meio essencial” (L. Boff)
de vida. Ficar à frente, nunca poderia criar na
militância a postura de chefe. Da mesma forma, 10. O espírito Multiplicador
os abusos no uso do poder nunca deveriam ser Nossos guerreiros a gente planta para dêem
razão para se ter medo de querer o poder. O novas sementes. Quem tomba na batalha a gente
poder é um instrumento indispensável para não chora, festeja. Porque sangue de mártir é
organizar a luta e multiplicar militantes. O desafio semente de militantes. É preciso ter orgulho das
permanente será coordenar sem autoritarismo, pessoas que oferecem sua vida para que seu
conduzir sem manipulação, comandar repartindo o povo viva com dignidade. Mas, com o mesmo
poder e cumprir os acertos coletivos, acima das ardor, é necessário recordar a memória de tanta
vaidades e caprichos individuais. gente anônima que sustenta o cotidiano da luta e
garante o enraizamento do trabalho.
8. Combater a alienação Cada militante, no seu posto, deve realizar um
A pessoa que não entende a raiz da injustiça é trabalho profissional. Igualmente, deve
alienada. O processo de tomada de consciência comprometer-se em mobilizar um time de
vem para quebrar toda a forma de alienação trabalhadores que, por sua vez, vão repartir os
permitindo a descoberta do real. A superação da esclarecimentos e experiências com outras
alienação é básica na estratégia para construir o pessoas, nos espaços de luta, de vida e de
novo, o futuro, a vida, sempre. A participação nos trabalho. Sua missão é despertar a auto-estima
processos de luta e a reflexão, estudo, leituras adormecida, estimular o protagonismo e convocar
são caminhos para alimentar a fidelidade à causa para a tarefa de ser capaz e ser feliz,
popular e buscar as mudanças. Pensar é um coletivamente. Assim, a militância ajuda a tecer a
exercício que subverte a existência da militância rede de resistência, convencida que a importância
para que ela jamais se acostume com a injustiça de uma árvore se mede pelo número de folhas
ou desanime na sua luta emancipação. Refletir que renova cada ano e a pessoa pelo número de
avalia e desafia a militância de escritório, a amigos que consegue reunir. Se a luta não vai
mesmice, a repetição, a manipulação, os desvios sem seus filhos, sua família e sua comunidade,
e os vícios. não vai só com seus filhos, sua família e sua
comunidade – um pé na roça e um pé na estrada!
9. A solidariedade universal 11. O companheirismo
Ninguém é uma ilha – a pessoa se realiza quando Companheirismo é a forma superior de
se relaciona com outras. A doutrina capitalista de relacionamento, maior que os laços de sangue. É
cada um conforme sua ganância gera a o gesto humano, fraterno e político de quem crê
dominação e a exclusão. Contra a lei do mais na capacidade das pessoas, sobretudo, a classe
forte, a militância socialista procura praticar a oprimida. Companheirismo significa compartilhar o
solidariedade e igualdade, reconhecendo a soma pão e o poder, em todos os espaços da vida, com
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O que é ser Militante?
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quem se dispõe à mesma caminhada. É não ter


vergonha de falar de seus sonhos e limites e ter a
certeza de ser acolhido, escutado, entendido,
mesmo quando
erra ou quando cobra.
As relações humanas e a caridade tradicional
negam o companheirismo porque são
mecanismos da dominação para manter a
dependência entre quem manda e quem obedece,
entre quem doa e o coitado que recebe e aumenta
nos pobres o sentimento de inferioridade. O
companheirismo se revela especialmente na
atenção a quem trabalha e ainda não entendeu a
razão de lutar; no tempo dedicado a juventude e
às crianças, no carinho ao povo excluído, no
ombro solidário a quem está desanimado e no
respeito ao parceiro(a) de vida e de caminhada,
ajudando-as a se levantar e andar!
Na rotina da vida, na insegurança frente aos
desafios e na hora do sentimento de impotência,
não raro a corda arrebenta no seu lado mais fraco
que é a relação pessoal com colegas de vida e de
equipe. Só quem exercita a fé na vida, fé na
gente, fé no que virá
é capaz de superar a tentação do desânimo, da
esperteza, do ciúme, do fuxico, da intriga, do
personalismo e afirmar com a vida que nós
podemos tudo, nós podemos mais, vamos lá fazer
o que será!
12. A pedagogia do exemplo
Não basta que seja pura e justa a nossa causa, é
necessário que a pureza e a justiça existam
dentro de nós. É comum escutar que na prática a
teoria é outra, porque sabemos que as palavras
explicam, mas são os exemplos que mobilizam. É
na prática que militância revela suas convicções.
É, no dia a dia, que o discurso se torna força
material capaz de realimentar a luta pela vida. É
na vida pessoal, no estudo, nas atitudes (de
dedicação, entusiasmo, ousadia...), no respeito ao
povo, na disciplina como fidelidade aos acertos
coletivos, no trabalho produtivo, na participação
num posto concreto da luta, na simplicidade de
vida, no uso correto dos recursos coletivos... que
se concretizam as convicções. Na pedagogia do
exemplo, um valor desejado é o espírito de
humildade, contrário a toda arrogância, auto-
suficiência, submissão ou ingenuidade.
Humildade é a simplicidade de alguém que
reconhece seus valores e tem clareza sobre seus
limites. Por isso, está aberta para respeitar e
acolher o novo e o diferente que contribuam com
a verdade e o conhecimento.
Apostila para o Curso de Formação do Afronte
O que é ser Militante?
Rio das Ostras 2020.

VÍCIOS E DESVIOS POLÍTICOS ORGANIZATIVOS: ORIGENS, IMPLICAÇÕES E MECANISMOS


PARA COMBATÊ-LOS2

1. O que são os vícios e desvios

De modo geral, podemos dizer que o vício é uma postura, uma prática, um comportamento ideológico e
político, que se opõe à virtude. É uma deficiência, que possuímos ou desenvolvemos, uma falha que
herdamos, reproduzimos e transmitimos um aspecto negativo (limite) que atrapalha que dificulta o
avanço da organização coletiva. É uma deficiência que prejudica o bom funcionamento da organização,
que mina, destrói e corrompe a vida da organização se não soubermos combatê-los.

Em oposição aos vícios, temos as virtudes. Estas são as qualidades positivas que uma pessoa possui,
adquire e as desenvolve como uma força ou potência que impulsiona e beneficia um grupo, uma
organização coletiva.

Quando na coletividade, os vícios são mais fortes que as virtudes, a consequência natural será a
mudança de rumo, muitos problemas internos, limites na ação política, chegando ao extremo de serem
destruídas por si mesmas, com a influência externa. A própria história, infelizmente, já nos demonstrou
isso com destinos trágicos de algumas organizações pretensamente revolucionárias, combativas e de
luta.

Podemos dizer, portanto, que os vícios são desvios deficiências políticas- organizativas, e de conduta
moral, que vão se formando na consciência social e utilizam nossas ações, nosso corpo para se
manifestarem. Estão presentes em nossa forma de agir, de pensar, de se relacionar, na maneira de
dirigir um coletivo, de atuar numa organização, afetando, principalmente, a Unidade e a Disciplina dessa
organização.

2. Algumas Origens

Devemos buscar a origem desses vícios, na convivência social, no modo como produzimos e
reproduzimos nossa existência e na visão que construímos em torno do funcionamento da sociedade
em que vivemos. Estão condicionados ao modo como participamos dos processos produtivos, qual seu
grau de desenvolvimento e nível de divisão técnica do trabalho, pois, a maneira como produzimos
nossa existência determina, em grande medida, a nossa forma de pensar e agir numa determinada
organização.

Para entender nós mesmos e as pessoas que participam da nossa organização, necessariamente
precisamos observar a sua trajetória de vida, ou melhor, as condições de produção material da sua
existência, pois estas condições determinam e desenvolvem os reflexos ideológicos, o nível intelectual e
a consciência social de maneira geral.

Tomamos como ponto de partida o indivíduo real, de carne e osso. Essa pessoa é um ser com dupla
existência, isto é, traz uma carga individual (como ser único, resultado de uma experiência que somente
ele viveu) e, uma bagagem como membro de uma comunidade, integrante de um processo produtivo
determinado, portanto, fruto de um meio social.

Nesse sentido, o indivíduo é algo não acabado, está em constante realização, num processo
permanente de construção sócio histórico (passado, presente e futuro), pois, se produz a si mesmo por
intermédio das relações que estabelece com a natureza e das relações que são estabelecidas em

2
Subsídio preparado, por Adelar João Pizetta, para o Curso dos Coordenadores do Programa Nacional
de Formação e Multiplicação de Militantes, em setembro de 2000.
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sociedade, tanto aquelas por ele já encontrada, como as produzidas por sua própria ação. Produtos,
portanto de uma determinada ordem social.

Esta, por sua vez, é produto da ação humana desenvolvida historicamente, ou seja, de nossos
antepassados e de nós mesmos, como resultado de uma progressiva ação humana.

Portanto, se nós somos produzidos historicamente, somos resultado de uma determinada ordem social
e esta, por sua vez, é produto da ação humana, necessariamente temos a faculdade, a potencialidade e
as possibilidades de forjar novas pessoas e uma nova ordem social, de forma dialética tendo como
ponto de partida a base material.

Em resumo, podemos dizer que os desvios, vícios do passado se reproduzem na consciência individual
dando corpo a um determinado Comportamento Ideológico (um complexo de valores culturais, morais e
políticos que condicionam uma visão de sociedade, da natureza, do homem, e de mundo, etc.), que se
manifestam em nossas ações concretas, de âmbito individual e coletivo, quando participamos de uma
organização.

Por isso, ocorrem contradições entre o comportamento dos indivíduos e as estruturas organizativas
propostas, o que dificulta o avanço da organização. Explicando melhor: temos por definição a
implementação dos princípios organizativos (divisão de tarefas, centralismo democrático, crítica e
autocrítica, planejamento, disciplina, direção coletiva, estudo, profissionalismo, etc.), mas na eficiente,
por causa dos vícios e desvios herdados do processo de produção e reprodução de sua existência. Até
aí é natural, mas, se essas contradições não forem resolvidas no sentido do crescimento dos indivíduos
em relação à superação e implementação das virtudes, a organização enfraquece, emperra ou, pode se
desviar do caminho e dos objetivos a que se propõe alcançar. Vejamos, portanto o quão importante e
urgente é a mudança de nossa práxis, enquanto ainda existe tempo.

3. Alguns exemplos de vícios organizativos e como se manifestam

Percebemos muitos vícios de caráter oportunista, que nada mais é do que o reflexo de uma sub-
ideologia provocada pela propriedade privada dos meios de produção:

a) Individualismo: É um inimigo poderoso se não for controlado, combatido e extirpado. Por mais que de
a impressão que estamos superando esse desvio, ele está sempre disposto a se manifestar, esperando
o momento certo para entrar em cena e se desenvolver.

é sempre bom lembrar e praticar a lição do Mestre: “O interesse pessoal de cada um só pode ser
satisfeito quando o interesse coletivo estiver assegurado”. O individualista tem dificuldade de entender o
funcionamento da organização, age por conta própria e coloca a pessoa (indivíduo) acima do coletivo.

Também, detesta o planejamento, pois nele deve estar contemplada a divisão de tarefas e o
individualista gosta de agir sozinho, por isso dificilmente exercita o planejamento e forja novos
militantes.

b) Espontaneismo: Não gosta de planejar, quando o faz é apenas para atender a uma obrigação e
preencher um papel, porque depois, se guia pela conjuntura e por seus interesses e não pelo que havia
sido planejado. Por não planejar, vive sempre o imediato e isso é amplamente prejudicial ao
desenvolvimento da organização.

c) Personalismo: Mesmo que as conquistas forem do coletivo, frutos da luta, ele atribui a si os
resultados – “eu consegui”. Considera-se o dono da verdade, sabedor de tudo. Gosta de aparecer e ser
importante, quer ser notícia, que os outros falem dele, por isso, gosta de estar em tudo, ser consultado
sobre todos os aspectos. Daí, a necessidade de usar telefone celular, veículo, dar entrevistas, etc.
Gosta de fazer aquilo que dá ibope, status, satisfação pessoal. Sua pessoa é maior do que a
organização da qual faz parte. Cuida mais de sua pessoa do que do trabalho que precisa desenvolver
na organização. Centraliza tarefas, responsabilidades e informações, Essa prática não forma novos
Apostila para o Curso de Formação do Afronte
O que é ser Militante?
Rio das Ostras 2020.

militantes, não dá e não cria oportunidade para os outros, quando dá um problema que tem de se
afastar, a organização fica “sem cabeça”. Mas, como o movimento cresce, vão surgindo outras pessoas,
lideranças e dirigentes, fazendo com que o personalista vá ficando de lado. Daí, para não perder a
posição, seu prestígio, apela, muitas vezes, para o “grupismo”.

d) Anarquismo: O anarquista é um militante desorganizado, reclama quando vê as atividades e locais


bem organizados, acha que é burocratismo. Quando lida com dinheiro não sabe onde gastou, perde
notas e na hora de prestar contas sempre tem problemas e se irrita com as pessoas que cobram.
Quando coordena uma reunião, esta vira uma bagunça, não consegue encaminhar nada, não organiza
as falas, não consegue dirigir a reunião.

Essa prática é extremamente prejudicial, pois descaracteriza a organização, não forma, não constrói.

e) Sectarismo: É uma manifestação do subjetivismo/oportunista no domínio da organização. Acontece


quando os militantes vêm apenas a parte e não o todo, acentuam a importância do setor que atuam em
detrimento dos interesses e necessidades do todo da organização. Não entendem e não implementam
o princípio do Centralismo Democrático, onde a minoria deve submeter-se à maioria; os escalões
inferiores aos superiores e as partes ao todo.

Entendem que as coisas devem ser feitas imediatamente, não importando se existe ou não condições
para tanto. Têm dificuldade de discutir sobre suas posições, pois acham que as suas são sempre as
melhores, mais corretas, infalíveis.

f) Comodismo/Imobilismo: Parece que existe uma tendência natural à acomodação. Alguns, por
acharem que já deram a sua quota para o coletivo, outros, alegam cansaço, strees, etc. Para esse, do
jeito que o movimento está, é o suficiente para não se preocupar, não enfrentar problemas, deficiências.
Justamente porque, como disse Rosa Luxemburgo: “Quem não se movimenta não sente as cadeias que
o prendem”. Sempre estão de acordo evitam discordar para não se comprometer. Não falam os
problemas nas reuniões, mas ficam depois falando por fora. Não mostram, nem criticam os erros dos
companheiros, para que não critiquem os seus. Se sente bem, quando no mesmo coletivo encontra um
personalista, de maneira que um alimenta o outro.

3.2. Outros vícios são de caráter subjetivista, ou seja, um reflexo de uma sub-ideologia gerada pela
visão idealista das formas artesanais de trabalho:

a) Amadorismo/aventureirismo: Caracteriza-se por agir sem consultar a realidade, nem consegue medir
as consequências e os resultados que determinadas ações podem causar. Age de acordo com suas
ideias, nunca planeja baseado na análise da realidade e nas condições objetivas, o faz com base
naquilo que pensa e acha ser correto. Pensa estar fazendo uma grande ação radical, revolucionária,
quando na verdade é uma ação sem consequências, isto é, sem ganhos políticos nem organizativos.

Por vezes pagamos caro por essas atitudes. Geralmente acaba atuando isoladamente e, facilmente
rompe a unidade da organização. É contrário ao estudo científico e a reflexão.

b) A Autossuficiência: É um desvio poderoso para destruir a organização, pois quem o incorpora


considera ter o conhecimento, a força que não tem. Se acha satisfeito com seus feitos, com os
resultados obtidos nas ações que coordena (curso, acampamento, mobilização..). É o tipo do militante
que já fez um curso importante e aí, pensa que não precisa mais estudar. Fica utilizando alguns
chavões e se considera o tal. Não busca se aprofundar, compreender as questões do seu tempo e
quando vai disparar o tiro, não encontra o alvo, acaba atirando ao acaso, perdendo munição e terá
como recompensa a derrota. Saibam que a auto-satisfação é inimiga do estudo e, portanto, inimiga da
organização. É o tipo de pessoa que tem resposta para tudo, não ignora nada, nunca tem dúvidas,
mesmo não tendo conhecimento.
Apostila para o Curso de Formação do Afronte
O que é ser Militante?
Rio das Ostras 2020.

Quando vai discutir, não escuta ninguém, não toma notas nas aulas nem nas reuniões, pensa que grava
tudo na cabeça. Como não consegue gravar, acaba fazendo tudo de acordo com o que vem na cabeça.
Nunca se preocupa com a precisão dos dados, calcula conforme sua própria intuição e oportunidade.

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