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O barulho dos ônibus, que diariamente inauguram minhas manhãs, deu espaço

ao céu que, assustadoramente, residia em seu horizonte um degrade em tons de cinza


que gradativamente tornavam-se azuis, furtavam o horizonte, revelando nitidamente a
massa de ar que respiramos diariamente na maior cidade do hemisfério sul.

O conflito, latente a condição metropolitana de grandes centros, se revela ora


de maneira explicita ora de modo tão sutil que, quando desapercebido, torna-se ruído.
Banalizamos o cotidiano, a desigualdade, o modo cada vez mais precário com que a
lutamos por uma convivência que já não faz mais sentido.

Cá estamos!

Hoje, porém, atravessei a rua pro lado contrário, assumi que o atraso para
começar o dia seria justificado por uma experiência de observação que venho
construindo a alguns meses: Estadão.

Não é um lugar comum. Aparenta ser um boteco desses que dorme em cada
esquina, mas o Estadão não dorme. Há alguns anos o Estadão não dorme, inclusive
esse é um dos motivos da fama do bar, notívago que rompe a madrugada e abriga os
cidadãos da noite, seja do expediente ou da aguardente, o pão com pernil é igual pra
todos.

As dinâmicas do bar, naturalmente, se transformam ao longo dos períodos que


atravessam o dia. Tenho um gosto particularmente especial pelas manhãs, apesar de
serem momentos novos da minha vida – sou habitualmente noturno – o amanhecer
do dia inaugura uma dinâmica especialmente interessante no bar.

A começar pela chegada das mercadorias. O pernil chega de manhã, as 7h,


todos os dias, a trinta e cinco anos. Aproximadamente trinta peças por dia que variam
de 8 a 10kg e, na maioria das vezes, se esgotam até a próxima remessa – que chega no
dia seguinte. Depois disso chegam outras mercadorias, das mais variadas, já vi
descarregamento de tomates formando pilhas em caixas de madeira que obstruíam a
calçada da 9 de julho. O serviço era feito por cerca de quatro rapazes, dois do
estabelecimento e os outros dois fornecedores.

Chegavam pela porta da frente? Não.


Fundos? Também não.

Há uma espécie de alçapão na fachada do bar, discretamente ao lado do


degrau de entrada nota-se uma pequena estrutura de ferro que forma uma espécie de
uma trama metálica, no chão, sobressaindo, quando notada, do desenho tradicional
do piso paulistano. Aquilo se abre. Os rapazes do bar ficam ali dentro, um recebe a
caixa do distribuidor – que leva da pilha no canto da calçada ao funcionário ali de
prontidão – este funcionário, por sua vez, estático, a meio nível da rua, pega a caixa,
vira-se e entrega ao colega que está bem embaixo da escada e leva o carregamento e
volta para busca-lo de novo.

Da mesma forma se faz o carregamento da Coca-Cola, das garrafinhas d`agua,


das caixas de doce, dos abacaxis, dos sacos de arroz, das caixas de leite, das pencas de
banana, dos fardos de cerveja, das dúzias de ovos, dos pacotes de limão, dos sacos de
farinha, do pão francês, do pó de café, das sacas de açúcar, da farinha de trigo, de
tudo. Aliás, quase tudo. O pernil é especial.

Para testemunhar essa rica dinâmica basta ir tomar um café da manhã no


Estadão. De preferencia entre as 6h30 e as 8h30, período em que o ritmo do bar está
repleto de carregamentos e descarregos, de transeuntes pedindo um salgado e de
engravatados olhando com desdém. A partir desse horário as coisas se acalmam, a
calmaria se estende até as 13h mais ou menos, depois das três se agita um pouco, mas
não muito, o movimento do almoço do bar começa mesmo lá pras 16h de acordo com
o Matias, touca azul que está no balcão “refeição” a alguns anos, não todos, dado que
os referidos balcões são rotativos em uma ordem que ainda não me foi revelada, dado
também que o Matias está a “uns dizoito anos” com a camisa azul do Estadão. As
vermelhas, assim como a boina, são apenas dos gerentes: Zezão, seu Ronaldo e
Ademar. - caixa um, balcão geral e caixa dois, respectivamente.
A entrada no bar – formal, para nós, consumidores – se dá por dois acessos, o
primeiro por uma abertura na fachada que configura uma esquina, está, se desdobra
numa espécie de pequeno largo resultante do cruzamento da Matias com a Nove de
Julho. É a mais vistosa, diria, tem o logo estampado em um letreiro bem acima e foi o
primeiro espaço de extensão do bar, na déc. de 70 após tomar lugar de uma loja de
discos, e hoje resguarda a famosa ala do pernil, um salão relativamente amplo se
comparado as proporções estreitas do resto do bar, que está sempre movimentada,
sobretudo no período do começo da noite e da madrugada. Ao entrar, é possível ver
alguns refrigeradores de fácil acesso, no lado esquerdo, com bebidas diversas e
algumas folhas coladas nas portas que indicam os preços das mercadorias. Logo a
frente, ao lado das geladeiras, encontramos o balcão número dois (que pelas manhãs é
pilotado pelo sr. Ademar) que atende principalmente as demandas do pernil. A divisão
segue uma lógica clara, por se tratar de um estabelecimento de constante movimento,
fluidez única e direta, o espaço tem que atender com máxima eficiência as solicitações
demandadas pela sua dinâmica. Além disso, temos a presença marcante de um balcão
de mármore preto, com aproximadamente 40cm de largura, que percorre todo e
qualquer espaço do bar. É um rito marcante comer no balcão. Nas madrugadas lota.

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