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11 - O MÉTODO DE ENSINO

Ao se falar em "mestre" vêm à tona o "método de ensino".


Já falamos a respeito de vários "métodos de ensino":
- método usado pelas maltas cariocas dos 1800s;
- método seminal criado por mestre Bimba, na década de
1930, em Salvador;
- método de Sinhozinho, na mesma década - 1930 -, no Rio
de Janeiro;
- as propostas de Pastinha, Waldemar, Noronha, entre
outros, nos 1940/50s, na Bahia;
- métodos desenvolvidos pelo Grupo Senzala, e pelos
mestres baianos de São Paulo (Suassuna, Acordeon, e outros), a
partir da década de 1960;
- método utilisado pelos novos angoleiros a partir da volta
da capoeira angola, que se tornou visível novamente a partir
aproximadamente de 1985. (211)

O que vemos é um contínuo a partir da década de 1930:


Bimba/Pastinha (1930s e 1940s); Senzala e baianos em São
Paulo (1960s e 1970s); novos angoleiros (1985); e finalmente os
neo-regionais e neo-angoleiros e outros na atualidade.
Existem atualmente mestres melhores e outros, piores; e
também existem variações nos métodos de ensino usados por
diferentes mestres; mas a estrutura básica da aula, com seus
defeitos e qualidades, é a mesma em todos os estilos:
- ginástica de aquecimento,
- treino de sequências de golpes pre-determinados para
duplas,
- treino com todos alunos seguindo a movimentação do
professor que se coloca na frente da turma,
- alunos atravessando a sala enquanto fazem
individualmente uma sequência pre-determinada de
movimentos, etc.
- e a roda no final da aula.

Vamos, agora, enfocar um possível desdobramento desta


dinâmica, tendo em vista as necessidades deste novo século, os
2000s.
Vamos ver a possibilidade de um método que é (realmente)
baseado no brincar (sem descartar os treinamentos metódicos e
repetitivos, que são a base dos métodos atuais, e que
proporcionam um rápido desenvolvimento técnico).
Vamos ver a possibilidade de um método que seja
"atraente" e, desta maneira, se torne um "antídoto do veneno
tele-real" (tempo demais diante da TV), que seja um antídoto
das excessos da "realidade virtual" (tempo demais diante do
computador).
Vamos ver a possibilidade de um método, e de uma postura
por parte do professor (ou mestre), que não seja excessivamente
autoritário, "militaresco", ditatorial.
Vamos ver sugestões práticas e objetivas para a aula de
capoeira no século XXI. Não se trata de nada revolucionário;
não se trata de quebrar toda a estrutura para reconstruir do
zero; mas de sugestões de novos treinamentos a serem inseridas
nas aulas (e que serão utilisados juntamente com o que já
existe); e também de sugestões para uma nova postura do
professor (em relação aos alunos).

Eu acredito que é necessário uma mudança nos métodos de


ensino atuais, e também na postura dos mestres e professores,
para termos um novo modelo de "aula de capoeira" e de
"grupo de capoeira".
Este novo modelo não vai "aposentar" os outros modelos de
grupo e de aula que já existem e são bem aceitos por uma larga
faixa da população. O novo modelo vai atender uma faixa da
população, de jovens e adultos inteligentes e independentes que
consideram o que existe atualmente como "careta", "infantil",
"autoritário" e até mesmo "ridículo".

Muitos mestres propõe "manter a tradição", manter a


capoeira que foi criada por Bimba ou Pastinha ou outros. Mas
como a sociedade e a cabeça das pessoas mudaram, estes
mestres, mesmo que não queiram, tem uma outra postura em
relação aos alunos - diferente de Bimba, Pastinha,etc. -, e o
grupo de capoeira também é constituído de outra maneira.
Existem também os mestres que propõe mudanças. Mas,
neste caso específico, o que temos visto são pessoas, talentosas
ou não, que estudaram Educação Física ou Pedagogia; ou
então pessoas que tem uma grande experiência de capoeira;
que tentam inserir, em "grades" e estruturas modernas, os
movimentos e os golpes, os treinamentos, a música e (a parte
formal do) ritual, e também o próprio jogo da capoeira (a roda
ao som do berimbau). Evidentemente, ao tentar inserir a
capoeira em "moldes" contemporâneos ocidentais, fazem algo
como tentar inserir o pé de um adulto num rígido sapato de
criança. Entre outras coisas, não encontram espaço para a
brincadeira, a vadiação, a malandragem alto-astral, que sempre foram
elementos básicos e diferenciantes da capoeira.

Os mestres falam muito no lúdico, e na brincadeira que, em


teoria, existiriam em suas academias.
A realidade é outra: apesar da dedicação, da experiência de
muitos anos de ensino, do carisma, e da excelente técnica de
jogo de muitos mestres; a verdade é que o método utilizado
atualmente foi desenvolvido na época da ditadura de Vargas
(1930s), e posteriormente na época da ditadura militar
(1964-1984). Então, como seria de se esperar, o método de
ensino absorveu muitas características militaristas e autoritárias
que funcionaram muito bem durante muitas décadas, mas que
agora necessitam de pequenas (porém significativas) mudanças.

Esta coisa, aparentemente inconsequente e "infantil" - o


brincar -, que está no cerne do Jogo de Capoeira, foi castrado
dos métodos de ensino atuais, apesar do papo que este e aquele
mestre possam desenvolver.
Esta coisa, aparentemente inconsequente e "infantil" - o
brincar -, é também algo básico na vida e na cultura humana.
Vamos aprofundar este ponto de vista com Geertz, Lewis, e
principamente Winnicott, nas próximas páginas.

Outra coisa que vamos tentar entender é a parte negativa


(obviamente tambem existe uma "parte positiva") da tele-
realidade (televisão), da realidade virtual (internet, etc.), que
tentam, cada vez mais, descartar o corpo e obscurecer o Ritual
e o Mito que são elementos básicos da vida e da cultura
humana. Vamos tentar entender este processo para poder
oferecer uma opção alternativa eficaz.

11.1 - RITUAL E MITO

Existe uma preocupação, comum a várias pessoas que


estudam os meios de comunicação, com o conteúdo - violência,
pornografia, incentivo ao consumo exagerado, etc. - da
programação da televisão e da própria Internet.
O que fazer?
Ou melhor diríamos: tentar fazer o quê?
Pois uma censura, mesmo baseada em motivos justos e
bons, poderia ser um precedente perigoso.

Outros estudiosos se preocupam em como a televisão,


independente do conteúdo da mensagem (o que está veiculado
nas novelas, nas séries, nos telejornais, nos anúncios, etc.), altera
o relacionamento do indivíduo com o imaginário; o real; a
sociedade; e com os outros indivíduos. Pelo simples fato de
passar grande parte de suas horas de folga passivamente
sentado frente ao aparelho de TV, ou do computador e da
Internet, ocorrem alterações mais profundas no indivíduo que
poderia supor o pensamento marxista, ou as terapias da
modernidade.

Preocupações e problemas complexos.


E mesmo que estivéssemos seguros da propriedade de certa
forma de ação, esta seria de difícil realização face ao poder dos
grandes complexos mass mediáticos, e da grande popularidade da
televisão e da Internet que, afinal de contas, também são
maravilhosas ferramentas pedagógicas e comunicacionais.
Nossa proposta é mais simples e está direcionada na
direção oposta: ao invés de enfrentar o Golias virtual; fortificar
o David mestiço. Ou seja: a televisão invade, com projetos de
absorção, o campo existencial e o imaginário do espectador,
oferecendo-lhe um espaço/tempo (simulado) social
absolutamente novo. A Internet seduz, com sua maravilhosa
gama de informações e possibilidades, tanto o estudioso quanto
o jovem pois, além de tudo que tem, oferece a possibilidade
adicional de uma comunicação que não apresenta a
problemática dos relacionamentos de "corpo presente".
Em contrapartida, nós vamos fortificar uma outra opção;
uma opção da ordem da brincadeira e da vadiação, da malandragem
alto-astral, do ritual e do mito, da dança, luta, canto, ritmo. Uma
opção corporal, mas que é diversa (de outras ótimas opções
como) do esporte, das artes marciais, da dança, etc.

A escolha desta proposta - "não enfrentar o Golias virtual;


fortificar o David mestiço" -, tem tudo a ver com a malícia da
capoeira. Na capoeira não se "bloqueia" um golpe; ao
contrário, o capoeira se esquiva "acompanhando" o ataque e,
no mesmo movimento, contra-ataca ou derruba (com uma
rasteira, etc.).
Pois "bloquear" é interessante para uma arte marcial que
visa objetivamente vencer uma luta física. Mas na capoeira -
"escola de sabedoria para a vida" - nos preparamos para
situações em que o "inimigo" é tão forte, ou tão "virtual", que é
impossível pensarmos em "bloqueio". Ou como nos
confidenciou o finado mestre Canjiquinha: "dá pra escorar a
pancada de um camarada muito forte; mas não dá pra escorar
um caminhão desgovernado à 120 km/hora".

É assim que, em especial nos últimos anos, temos dado


tratos à bola no sentido de fortificar a capoeira para as novas
necessidades deste nosso século. Não será afirmando um
passado pre-mídia que deflagaremos esta resistência, como já
vimos em Janice Caiafa (212). Trata-se de não se furtar à
inevitabilidade da era das transmissões no tempo, mas a partir
daí produzir outros efeitos; lembrando sempre que o Estado e
os grandes complexos transnacionais não são onipotentes.
Então, já que a "aula de capoeira" e "treinamentos
metodificados" são uma constante na capoeiragem
contemporânea, o negócio é tentar criar treinamentos-antídoto;
antimecanicistas; que sejam divertidos (e tambem eficazes),
fortalecendo o espírito de "brincadeira"; que alimentem e
exercitem a criatividade; para serem usados juntos com o que já
existe. Se estes novos treinamentos se mostrarem efetivos,
ajudando a formar novos excelentes jogadores; sem dúvida
serão adotados por muitos mestres e professores.
E aí, sim, os "treinamentos mecânicos e repetitivos" que
proporcionam, p.ex., uma alta performance na técnica de
execução de golpes, terão um valor positivo, pois estarão sendo
realizados em conjunção com outros que desenvolvem o lado
lúdico e criativo da "vadiação“.
Antes de entrar nos exemplos práticos de algumas novas
técnicas de ensino que venho utilisando a partir
aproximadamente de 1995 (centradas na brincadeira), vamos
buscar apoio teórico, e criar mais uma "ponte", com um
expoente da medicina e da psicanálise.

A brincadeira segundo Winnicott

O cerne de nossa proposta é a brincadeira.


O brincar é coisa séria para muitos estudiosos. Vejamos o
que diz Lewis em sua tese de doutorado, (minha tradução):

No seu mais famoso artigo, Geertz propõe


que a briga de galos balinesa é uma espécie
de 'deep play' (brincar profundo) e esta é uma
frase que eu (e outros) achamos
extremamente afortunada para pensar a
respeito de muitas formas de expressão
cultural, incluindo a capoeira...
Todavia, uma questão que Geertz não
colocou é precisamente porque o brincar é
tão revelador de padrões culturais
profundos...
Talvez parte da resposta tenha a ver com,
como o brincar serve como um framework
(grade) para contextualizar encontros sociais.
Esta foi a visão central de Bateson (213) em
relação ao brincar, que Goffman expandiu
para um enfoque geral para compreeder a
natureza humana. (214)

Então, para estes pensadores, o brincar (do ser humano


quando criança) é a base de todos "encontros sociais" que ele
vai encetar pelo resto de sua vida.
Por sua vez Winnicott (215), famoso e respeitado médico e
psicanalista, com a experiência prática de cuidar de milhares de
crianças e jovens, orfãos ou "problemáticos", no pós-grande-
guerra inglês da década de 1940, resgata e legitima o brincar -
um dos fundamentos básicos do Jogo de Capoeira.

Dizer que o "brincar é um dos fundamentos básico do Jogo


de Capoeira", não é invenção minha, pois antes de sua
modernização - 1930 e mais fortemente 1960 em diante -, a
capoeira era carinhosamente chamada por seus praticantes de
"brincadeira" ou de "vadiação" (no sentido de ser uma coisa
prazerosa, vadia, sem compromissos com a objetividade).
Uma "vadiação" que, na opinião unânime dos mestres da
velha guarda, "fazia a cabeça" do iniciante transformando o
aprendiz num "capoeirista": alguém que conhece os
"fundamentos", não só da malandragem, mas os requintes
desta filosofia (da malandragem) levados ao extremo de uma
"brincadeira" corporal que também pode ser usado como luta
mortal, e também pode ser usado no dia-a-dia das pessoas.

Eu creio firmemente que estes mestres tem razão; a


capoeira realmente faz a cabeça de seus praticantes.
Poderíamos corrobar este ponto de vista levando em conta
o poder da linguagem: "A ordem da linguagem tem a potência
de modificar e interferir em qualquer outra ordem que opera
no corpo" (216), afirma Noga Wine. O corpo humano, como
todo ser vivo, tem um nível de funcionamento que se faz
segundo leis e ordens (pre) estabelecidas, "contudo ele é passível
de pertubações e modificações resultantes de um outro nível de
funcionamento, o da linguagem". (217)
Evidentemente estamos extrapolando o pensamento de
Wine para a "linguagem corporal", típica da capoeira; um
contexto comunicacional que abrange outras áreas e outras
compreensões diversas da linguagem falada e escrita.

Eis, por outro lado, algumas idéias de Winnicott em


completa harmonia com os fundamentos do Jogo:
- Brincar: uma experiência na continuidade espaço-tempo,
uma forma básica de viver.
- Quem não tem capacidade para brincar, acaba com o
brincar dos outros.
- É no brincar, e somente no brincar, que o indivíduo pode ser
criativo e utilizar sua personalidade integral.
- É somente sendo criativo que o indivíduo descobre o eu
(self).
- Somente no brincar é possivel a real comunicação. (218)

Ora, isto é oposto à mentalidade "hierárquica" dos


militares.
Isto é oposto à mentalidade dos atuais homens de poder,
que acreditam que tudo deve se curvar ao Dinheiro.
Isto é oposto à mentalidade da Universidade e dos
intelectuais; e também de muitos artistas "sérios".
Isto é oposto à mentalidade das religiões.
No entanto está em completa ressonância com a capoeira, e
com a mentalidade do samba e dos sambistas (a filosofia da
malandragem).

Algumas outras colocações de Winnicott, também


encontram ressonância no universo da capoeiragem: referindo-
se ao valor da ilusão, Winnicott afirma que a princípio a mãe
propicia ao bebê a oportunidade para a ilusão de que o seio faz
parte do bebe, o seio estaria sob "controle mágico" do bebê; o
bebê começa a chorar e "magicamente" aparece um seio para
alimentá-lo!
Isto é muito importante para dar ao bebê uma sensação de
auto-segurança, pois na verdade se o bebê tivesse consciência
de sua vulnerabilidade, provavelmente viveria apovorado e
paranóico.
No final deste primeiro período, quando o bebê já
desenvolveu alguns mecanismos de defesa psicológica e já não
está tão vulnerável fisicamente, a mãe "desilude"
gradativamente o bebê, e o bebê começa a entrar na realidade
da vida. O sucesso em criar um filho saudável, no entanto,
depende da mãe ter propiciado a "oportunidade para a ilusão"
à criança num estágio inicial de sua infância.

COMENTÁRIO: Sem dúvida isto seria a proposta ética


ideal para o professor de capoeira de nossos dias: p.ex., nas
rodas ao final das aulas, a capoeira deveria se apresentar para o
aprendiz como uma brincadeira entre amigos, sem maldades,
nem mesquinharias advindas dos jogos de poder e do embate
entre personalidades. O risco de dano físico deveria ser
limitado ao máximo pelo professor, fazendo o iniciante jogar
com alunos mais desenvolvidos; mas somente ele (iniciante)
podendo dar os golpes; o aluno mais adiantado somente Na
seqüência desta fase (que pode durar alguns meses), tendo
experimentado, semelhante ao bebê de Winnicott, estse esquiva
e se movimenta.
a "ilusão" de "controle mágico" e onipotência (o outro
jogador não ataca, nem revida; apenas se esquiva), o iniciante é
introduzido ao jogo propriamente dito, com seus perigos, atritos
e mistérios.
E somente numa fase, mais adiante ainda - já sabendo se
defender e conhecendo a "maldade" e a "traição" que, segundo
a capoeira, é típica dos homens -, o iniciante é introduzido em
outras rodas, onde há a possibilidade do encontro com
capoeiristas que jogam com o intuito de "vencer" (para
"aparecer" e fazer nome); de quebrar os mais fracos ou
“incompetentes”; e onde a regra do jogo é: "entra quem quer,
sai quem pode".
Semelhante à mãe, o sucesso do mestre em formar o
capoeirista depende de ter proporcionado no início do
aprendizado a "oportunidade para a ilusão". É ali que o
iniciante percebe e vivencia, jogando despreocupadamente
(pois não há revide do jogador mais adiantado), que a essência
do Jogo de Capoeira, apesar de tudo, é a brincadeira.
Esta maneira de tratar o iniciante é, para mim (Nestor),
essencial. Eu a utilizo no meu ensino; mas isto não acontece na
grande maioria das outras escolas. Talvez por não terem sidos
alunos de Leopoldina (1933-2007), por sua vez aluno de
Quinzinho - Quinzinho apesar de ser chefe de uma gangue de
assaltantes, e ter várias mortes nas costas, não admitia que os
mais experientes batessem nos iniciantes: "ele fica covarde e
não aprende!".

Mas voltemos a Winnicot:


WINNICOT: A psicoterapia trata de duas pessoas que
brincam juntas. Em conseqüência, onde o brincar não é
possivel, diz Winnicott, o trabalho efetuado pelo terapeuta é
dirigido no sentido de trazer o paciente de um estado em que
não é capaz de brincar, para um estado em que é
(evidentemente se o terapeuta, ou o mestre de capoeira, não
sabe brincar, estaria desqualificado).

COMENTÁRIO: A preocupação de um mestre com um


aluno iniciante é, antes de mais nada, levar o iniciante a um
estado de espírito em que ele comece a "brincar" dentro da
roda, de preferência até antes de saber jogar.
Ou no caso do jogador que veio de outra academia e não
entende o que é "jogar brincando": antes de corrigí-lo de
possíveis defeitos "técnicos", o trabalho do mestre é ensiná-lo,
ou melhor, aos poucos levá-lo a "brincar dentro da luta".

WINNICOT: O ensino sem esta possibilidade de brincar


(dentro ou fora da capoeira) é doutrinação e produz submissão,
e não produz a emergência de um self.
No caso de um bebê, Winnicott diz que no caso de fracasso
de "fidedignidade ambiental" (quando o "controle mágico" não
foi transado nos primeiros meses, ou o bebê não recebeu o
carinho e cuidados nos meses seguintes), então o "espaço
potencial" - aquele do brincar - é preenchido pelo que é
introjetado por outrem; trata-se de material persecutório, sem
que o bebê tenha meios de rejeitá-lo - como resultado, emerge
um falso self.

COMENTÁRIO: É o que acontece na maioria dos grupos,


onde o iniciante não vive a experiência da brincadeira sem
medo (o tal "controle mágico"). E, ao invés disto, desde as
primeiras aulas, o iniciante é bombardeado com regras: como
fazer "corretamente" tal movimento; como respeitar com
seriedade os alunos mais graduados; como o grupo dele é o
melhor; e como seu mestre é a voz de deus sobre a face da
Terra (ou seja: o tal "material persecutório" que é "introjetado
por outrem" e faz emergir um "falso self", ou "falso eu" no
iniciante).

WINNICOT: Winnicott aponta também que, se a excitação


física vai além de um determinado patamar - os "plateaux" de
Deleuze e Guattari? (219) - , então o brincar se interrompe ou
se estraga.

COMENTÁRIO: É o que acontece com o jogador que, no


afã de “vencer", apela para a força bruta, para a violência fora
do âmbito do jogo, ou que se embola com o outro jogador pelo
chão numa autêntica "briga-de-rua" que escapa ao contexto e
ao patamar máximo de excitação e energia necessários para a
manutenção das características do Jogo.

WINNICOT: Para bem entender Winnicott é necessário


conhecer conceitos como "objeto transicional" (o bebê se
apega a um ursinho, ou a um travesseiro específico, etc.), e
"fenômeno transicional" (a relação que o bebê desenvolve com
aquele objeto), que se referem a uma passagem do "sentimento
de onipotência" e do "controle mágigo" do bebê, para um
relacionamento com o mundo “exterior”:

onipotência -> objeto transicional -> brincar ->


-> brincar junto com outros -> jogo c/regras -> cultura.
(220)

Estas fases não são necessariamente evolutivas, com uma


fase superando totalmente a precedente. Mas o esquema
acima é útil, e dentro dele poderíamos situar a capoeira num
ponto qualquer entre o “brincar junto” e a “cultura”.

COMENTÁRIO; No entanto a capoeira não deve ser


associada, totalmente, a um “jogo com regras”, mais típico do
esporte. A capoeira não é regida pela racionalidade, ou
objetividade (que tudo justificam, e são pragas de nosso tempo).
Temos, ao invés disto, algo da ordem do ritual, da brincadeira
“inventada” e inventiva, tal qual encontramos entre as crianças.

WINNICOT: Semelhante aos dedos do bebê que acariciam


seu nariz (por prazer) e podem se tornar mais importantes que
o polegar sugado (por "necessidade", para substituir o seio da
mãe); Winnicott afirma que, na brincadeira, o lúdico e o criativo
não estão sob o domínio da necessidade.

COMENTÁRIO; Isto também pode ser dito da capoeira: a


brincadeira faz parte da própria maneira de ser do Jogo, e não
está sob o "domínio da necessidade" (a necessidade de vencer e
de ser objetivo, ou até mesmo a necessidade de fazer um "jogo
bonito").

Antidoto

Agora que vimos a importância do brincar na vida dos seres


humanos, e na sociedade; e que também afirmamos que o bricar
foi cortado da capoeira pelos métodos de ensino atuais (e pela
forma como os mestres atualmente se relacionam com os
alunos); vamos entrar na prática da aula de capoeira.
Falamos que queremos "fortificar o David mestiço", ao invés
de nos opormos ao "Golias virtual".
Bonitas palavras.
Mas como fazê-lo?

Eis a proposta para uma "aula de iniciação" onde


observamos a influência do ritual e do mito, e a importância da
brincadeira, tais como a aula que desenvolvi em 1994-1996, na
Dinamarca, onde tive de "iniciar", em apenas uma aula de uma
hora, 28 turmas de jovens na faixa etária dos 12-14 anos. (221)
Esta proposta de aula, no entanto, não visa exclusivamente
aos jovens: utilizei a mesma estrutura, com pequenas
adaptações (não dava o "aú", como é chamado a acrobática
"estrela" na capoeira; e muitas vezes, também evitava os
"exercícios no chão"), em "aulas de iniciação" na Faculdade de
Educação Física e Bem-estar da Universidade de Odense
(Dinamarca), onde lecionei 2 semestres; e também em "clubes
da terceira idade".
Quando voltei ao Brasil, depois desta viagem, continuei a
desenvolver esta vertente de ensino.

Uma "aula de iniciação"

Ritual e mito andam juntos.


Poderíamos dizer que o ritual é o mito em ação.
Civilizações passadas, que não conheciam a escrita,
deixaram sua herança de sabedoria através do mito. Mas,
também, aquelas que conheciam perfeitamente a escrita,
tinham sua força vital e identidade em seus mitos; estes
constituiam o pano-de-fundo panorâmico e os reservatórios de
águas profundas donde fluiam os sonhos e imaginação do povo;
a maneira diária de viver e fazer coisas; bem como a arte e a
ciência.
Mesmo em nossos dias, até mesmo no mundo ocidental,
sentimos a força e sabedoria dos antigos mitos de civilizações de
outrora, como, p.ex., os mitos de Édipo, Eletra, Narciso, re-
interpretados pela mente ocidental de Sigmund Freud.

Povos e nações que perderam seus mito, ou os trocaram por


outros valores "modernos e contemporâneos", são como
árvores desenraizadas que não mais se alimentam da terra e dos
mananciais de águas profundas, por isto, estão em grande
perigo: perderam suas raízes, perderam sua identidade, e vemos
a instalação de uma espécie de doença social, ainda que aquela
nação tenha atingido um elevado grau de desenvolvimento
tecnológico e bem estar material. Trata-se de algo do mesmo
contexto da "desterritorialização".
A capoeira, e a cultura brasileira, estão profundamente
enraizadas em mitos que constituíram nossa identidade. Entre
estes, estão aqueles que nos tornam bastante "religiosos" ou
"espiritualisados", semelhante, p.ex., à Índia - a capoeira está para
o Brasil, assim como a yoga para a Índia -, e em oposição, neste
aspecto, aos Países Centrais do Primeiro Mundo cujo valor
maior é o dinheiro secundado pela tecnologia.

Estes mitos nos vieram dos índios que originalmente


habitavam o Brasil; vieram também de Portugal, muitas vezes
ligados ao catolicismo ou aos judeus ou à antiga cultura árabe
(os árabes estiveram em Portugal durante os quatro séculos que
precederam a chegada dos portugueses ao Brasil, em 1500); e -
talvez a contribuição mais forte - os mitos que vieram com os
milhões de africanos capturados e trazidos ao Brasil para o
trabalho escravo.

Mas como funciona o mito no dia-a-dia de uma pessoa?


Tomem meu exemplo neste exato momento: eu posso me
imaginar, e me sentir, como mais um elo de uma corrente de
energia constituída de carne, sangue, ossos e sonhos, que se
inicia lá atrás, com os primeiros capoeiristas africanos no Brasil,
que não aceitaram a condição de ser apenas um escravo, algo
que não possuia uma alma e podia ser comprado e vendido
como um cavalo. Eles mantiveram-se estreitamente ligados às
suas culturas, seus rituais e mitos, e assim passaram seu saber
para gerações futuras - já agora constituidas de bandidos e
marginais no final dos 1800s -; que enfrentaram a sociedade de
então: “Nós nos negamos a ser a força de trabalho sobre a qual
a classe dominante vai se espojar e vampirizar!”.
E uniram-se em maltas que aterrorizavam a parte
“obediente” da população. E estes violentos foras-da-lei
também deixaram seu conhecimento de vida e de viver no Jogo,
para as futuras gerações de capoeiristas.
E este saber passou para os mestres que criaram as
"academias" e os que, após a década de 1930, ensinaram
capoeira nas “academias”, e finalmente veio a mim através meu
mestre - Leopoldina -, e também daqueles jogadores jovens ou
idosos que contribuiram para a formação da minha maneira de
jogar o Jogo, dentro e fora da roda.

Neste exato momento, no Institut for Idraet da Odense


Universitet, Dinamarca (222), sentado diante do computador,
escrevendo este texto, sou mais um elo dessa energia que
atravessa os séculos, e que se chama Capoeira.
E quando escrevo, não sou só "Eu" que escreve; mas
também todos aqueles outros do passado, e também os do
presente - os meus contemporâneos no Jogo que participam
desta mesma herança.
Na verdade, quando eu escrevo, ou jogo, ou ensino
capoeira, sou até mesmo aqueles que virão depois de mim e
para os quais espero transmitir o que aprendi.
Na verdade, neste exato momento, diante da tela iluminada
do computador, não sou apenas um jogador de capoeira - sou
a própria Capoeira.
E por isto sou forte.

Este é o poder do Mito; e como ele funciona no dia-a-dia de


uma pessoa.
E evidentemente isto é muito diferente de um enfoque
ocidental e “primeiro-mundista” de minha atual situação:
sentado aqui, eu pensaria se estava ganhando tanto dinheiro
quanto ganhava no Brasil; me preocuparia em escrever algo
que causasse uma boa impressão, de tal maneira que minha
imagem profissional disso se beneficiasse no futuro, a fim de
conseguir um maior status e empregos melhor remunerados.
E, por isso, eu seria fraco.
Eu teria somente a mim mesmo.
Um simples e solitário indivíduo confrontando a Sociedade
e o Sistema no qual vivemos.

O mito em ação: uma perspectiva brasileira de como


planejar uma aula de capoeira

A aula que vamos apresentar não é típica a todos


professores da capoeira. Mas ao observar como planejo uma
aula, e qual é minha infra-estrutura mental ao fazê-lo, talvez
você tenha algumas idéias que poderá usar no futuro. É assim
que as coisas funcionam no mundo da capoeira: nós
observamos o jogo de outros capoeiristas e “roubamos” o que
nos interessa.
Se por acaso você não ensina, de qualquer forma você terá
mais uma visão deste universo: ensinar é uma parte importante
da vida do jogador de capoeira.

Esta minha "aula de iniciação" para um grupo que nunca


treinou capoeira, alguns sem jamais terem visto uma roda, tem,
no mínimo, um duplo objetivo:
1. Fazer o recém-chegado experimentar o que é o Jogo de
Capoeira (baseado no brincar).
Isto significa que em duas horas o iniciante deve estar apto a
participar de uma roda; cantando e jogando (mas apesar dos
iniciantes interagirem uns com os outros no jogo, eles não
darão golpes; em apenas uma aula podemos ensinar algum
golpe de ataque, mas é impossível ensinar o principiante a se
defender).
2. Tentar "viciar" o máximo de iniciantes, para que eles
continuem a aprender e praticar capoeira; ou, ao menos que
eles guardem uma boa recordação, criando um clima geral
favorável à capoeira naquela cidade.

PRIMEIRA PARTE DA AULA:

A primeira parte da aula pode ser esquematizada da


seguinte forma:

Animais Homens e animais Homens


(improvisação no chão) (no chão e em pé) (pé/chão)
grupo-unidade dois grupos pares

-------------------- inserir desenhos --------------------------

COMO E POR QUE CRIEI O EXERCÍCIO ”OS


ANIMAIS”:

Ao invés de iniciar a aula com "exercícios de aquecimento",


e/ou de "alongamento" utilisando repetição mecânica de
movimentos; vamos juntar alguns exercícios num todo
orgânico.
Nesta nova forma - "os animais" - o principiante é
introduzido:
- aos movimentos “no chão”;
- começa a cantar;
- desenvolve a criatividade;
- desenvolve a noção de “tempo” (fazer determinada coisa
no instante apropriado);
- e começa a reagir, improvisando de forma intuitiva, face à
movimentação de outro jogador.

Na maioria - quase a totalidade - das academias, o início de


uma aula é tão inapropriada que, em 1985, escrevi o seguinte
texto (223):

GINÁSTICA DE AQUECIMENTO OU
DE EMBURRECIMENTO?
Um-dois-três-quatro!
Um-dois-três-quatro!
Um-dois-três-quatro!
De que se trata?
De um grupo de recrutas de nosso glorioso
exército?
Ou de um pelotão de valorosos marines
(fuzileiros navais americanos), que estamos
cançados de ver treinando nos filmes made in
USA?
É o que nos indagamos ao ver o instrutor
solidamente plantado no chão, peito
estufado, expressão marcial, berrando numa
poderosa voz de comando. Os alunos (pois
são alunos, e não recrutas), com o cenho
contraído e rangendo os dentes, seguem
como podem a contagem.
Por incrível que pareça, não se trata da
escola militar mas de uma academia de
capoeira!

Isto me faz lembrar uma declaração de Ricardo Semler


-"Homem de Negócios da América Latina de 1990", professor
em Harvard, ex vice-presidente da FIESP, autor de bestsellers
sobre organização empresarial:

Cerca de 1/3 dos esforços das organizações


vêm de conceitos anacrônicos, e baseados na
hierarquia militar, que eu chamo de
"síndrome de internato". (224)

Originalmente, nas décadas de 1930 e 1940, não existia


realmente uma ginástica metodificada nas incipientes
academias de capoeira daquela época; existia, no máximo, uma
corridinha e uns "polichinelos"; e a ginástica inicial não durava
nem 5 minutos (a aula toda, incluindo a roda, durava uns 45
minutos).
A ginástica no início da aula foi uma novidade introduzida
(aproximadamente) na década de 1960, por alguns alunos de
Bimba em Salvador, e mais especificamente pelo grupo
Senzala no Rio, e pelos (então) jovens mestres baianos de São
Paulo (Suassuna, Acordeon, etc.). O pessoal copiou a ginástica
da Educação Física, das artes marciais, e até a ginástica usada
no exército. A duração da aula aumentou para 1 hora e, mais
tarde, para 2 horas.
No entanto, o que não percebemos, na época, é que aquela
ginástica era muito boa para um pelotão de infantaria, onde se
deseja força e disciplina e obediência; mas as necessidades do
jogador são outras.

Em oposição a este sistema que eu também usava entre


1969 e 1990, comecei a experimentar algo mais adequados à
capoeira na parte inicial. Eram exercícios onde os alunos
atravessavam a sala de diversas maneiras, mas sempre de
quatro, somente as mãos e pés tocando o chão (de joelhos não,
engatinhar não, cambalhota não).
Percebi que estes tipos de exercícios, apesar de muito
diferentes dos usados nas academias de ginástica da moda
(tanto no Rio e SP, quanto em Nova Iorque e Los Angeles, etc.),
eram muito mais adequados à capoeira pois, inclusive,
introduzia o novato à movimentação no chão.
Eis as diferentes formas de atravessar a sala, que eu usava
no início dos 1990s para o aquecimento dos alunos:

1. Costas p/cima 2.Costas p/baixo


1a. à frente 1b.para trás 2a. à frente 2b. para trás

-------------------- inserir desenhos -------------------------

EXERCÍCIO "OS ANIMAIS"

No entanto, apesar de adequadas para o aquecimento


muscular dos novatos, estes exercícios ainda eram "mecânicos e
repetitivos", e não incentivavam a criatividade e o brincar dos
alunos.
Foi só mais tarde, em 1996, na Dinamarca, que inventei
algo novo que juntou as quatro formas acima num único
exercício que, na verdade, também era uma brincadeira. Chamei
esta novidade de “os animais”: pede-se aos alunos que
mentalizem um animail de quatro patas (gato, onça, lobo,
cachorro, tigre, caranguejo etc.), e movam-se pela sala
utilisando as quatro formas de se movimentar mostradas acima:
- O aluno pode, e deve, mudar de uma forma para outra;
também pode “inventar” outras formas de se locomover (mas
sem tocar os joelhos e o corpo no chão - “cambalhota”, p.ex.,
não vale).
- Ao invés de atravessar a sala, mecanicamente, em linha
reta; os alunos vão se movimentar a vontade, por todo o espaço
da sala; todos ao mesmo tempo; e sem esbarrar uns nos outros.
- Quando dois “animais” se encontram, podem, um circular
ao redor do outro; ou então, um deles passa por um “buraco”
formado pelo corpo do outro, como se atravessasse um túnel; o
que deve ser facilitado por aquele que (sem conversar, e sem
combinar nada antecipadamente) decidiu fazer o papel de
“túnel”.
- Além disto, durante todo o exercício, eles farão o côro a
um canto de capoeira; escolher um dos mais simples, se possível
com alguém tocando berimbau, pandeiro ou atabaque:

Professor: "São Bento me chama!"


Alunos: “Ai, ai, ai, ai!”

Este "cantar juntos" é muito importante: vai propiciar uma


"unidade energética cósmica", organizando a movimentação
caótica do grupo de novatos em um outro nível (diferente da
organização mecânica dos exercícios em grupo de um pelotão
de recrutas do exército).
A movimentação, junto com o "cantar juntos" - que
funciona como um mantra do tipo que é usado na Índia, ou dos
cantos do candomblé e da umbanda que induzem o transe
místico -, vai elevar o nível energético do grupo (e de cada
aluno) em uníssono. Em especial porque, ao responder em côro
- “ai, ai, ai ai!” -, todos tem o mesmo padrão de respiração e
pulsação, e faz com que o grupo atinja um outro patamar
energético - “getting high”, diriam os gringos; “ficar doidão”,
diria algum adolescente caboclo -: todos os novatos estão no
mesmo ritmo de respiração, inspirando e expirando o ar juntos,
semelhante à nadadores que em uníssono enfiam a cabeça na
água (expirando) e depois tiram a cabeça pra fora da água (e
inspiram o ar).

Eis, aqui, algumas possiveis situações de “atravessar um


túnel”:

------------------------ inserir desenhos ------------------

Creio que "os animais" é uma introdução interessante para


quem nada sabe de capoeira: "andar de quatro" desperta
longínqüas memórias corporais da infância e das brincadeiras
de então. Talvez, até mesmo, desperte lembranças mais
antigas, de nossos antepassados animais antes do aparecimento
do homem sobre a face da Terra.
Além disto, coloca a pessoa numa posição estranha - de
bunda pra cima -; em oposição a uma postura ereta, “racional”
e “civilizada”.
Creio que este começo ajuda a pessoa a sair da rotina diária
para ingressar num “mundo mágico da selva”, uma boa
referência (em relação ao que seria a capoeira) para um
iniciante que desconhece a capoeira.
Além de tudo, e tão importante quanto a parte física do
exercício, as pessoas estão cantando; começam a rir quando
esbarram, sem querer, umas nas outras; ou quando um "túnel
desaba" parcialmente em cima de alguém que está passando
por baixo.
O exercício exige esforço físico, mas as pessoas têm
liberdade para criar sua movimentação; estão se divertindo;
estão brincando. Eu tento manter este estado de espírito
descontraído de brincadeira durante toda a aula.

Por outro lado, no que concerne ao mito - neste exercício -,


temos o grupo de alunos formando uma “Unidade” que se
move de maneira caótica (não determinada pelo professor).
Este tipo de movimento caótico e generalizado de um
grupo, que eu chamei pomposamente de "unidade energética
cósmica" um pouco atrás, sempre obedece a alguma estranha e
desconhecida ordem, que tem a ver com o próprio Acaso, e
com as leis que regem a própria vida - as "estruturas caóticas" e
os "atratares estranhos" da Teoria do Caos, que mencionamos
anteriormente (no capítulo 9), tentam estudar estes contextos.

Ainda em relação ao mito: esta Unidade, este Caos, e este


Pulsar, remetem ao começo de tudo; ao Absoluto, ao Um, que
teria existido antes da criação das coisas e dos seres, e que é
mencionado em mitos africanos, orientais, e na Bíblia cristã.
Até a própria ciência possui um mito semelhante
(perdoem-me os cientistas): o Big Bang; inicialmente toda a
matéria e energia estaria concentrada num único ponto, e então
uma grande explosão - Big Bang! - teria iniciado a formação do
universo.

Atenção!
Apesar de ser uma brincadeira, este é um exercício pesado.
Preste atenção para não exigir demais das pessoas,
especialmente os iniciantes e pessoas mais velhas.

EXERCÍCIO “HOMENS E ANIMAIS”:

Agora, após vivenciar o Caos e a Unidade que existiu antes


da criação do universo, vamos fazer uma separação semelhante
a de muitos mitos:
- Deus separou a terra das águas, diz a Bíblia;
- depois do Um, vem o ying e o yang (positivo e negativo),
dizem os orientais;
- e, em algumas partes da África, o universo é simbolizado
por uma cabaça cortada em duas metades que se encaixam,
representando o mundo material e espiritual.

Então, agora, metade dos alunos serão "animais", fazendo


uma movimentação como no exercício anterior; a outra metade
serão "homens". Os "homens" vão se movimentar em pé por
toda a sala, mas não poderão esbarrar em outros "homens"
nem nos "animais". Todos responderão, semelhante ao
exercício anterior, em côro ("ai, ai, ai, ai") ao canto puxado pelo
professor.
Quando o professor disser "troca", os "animais" virarão
"homens" e vice-versa.
Aqui, os alunos vivenciam duas possibilidades típicas da
capoeira: o animal que anda de quatro - "jogo no chão" -, e a
posição em pé típica do ser humano - "jogo em pé".

Atenção!
Apesar de ser uma brincadeira, este é um exercício pesado.
Preste atenção para não exigir demais das pessoas,
especialmente os iniciantes e pessoas mais velhas.

EXERCÍCIO "OS HOMENS"

A mesma dinâmica do "homens e animais", mas agora todos


alunos movimentam-se em pé.
Este é um exercício leve.

EXERCÍCIO DE "IMPROVISAÇÃO EM PÉ E NO CHÃO"


PARA DUPLAS DE ALUNOS:

a. Em pé:
Somente agora, após vivenciar a Unidade ("os animais"), e a
Grande Dualidade ("homens e animais"); o aluno vai se
“individualizar” e interagir aos pares. Ele vai se movimentar
em pé com um companheiro.
Neste exercício, semelhante aos anteriores, eles continuarão
a responder em coro ("ai, ai, ai, ai") ao canto de capoeira
“puxado” pelo professor.
Os alunos se dividem aos pares, e vão imaginar que estão
dentro de um "círculo imaginário" de uns 2 a 3 metros de
diametro, e não podem sair de dentro do círculo.
Os dois alunos devem se movimentar em pé, dentro deste
círculo, "respondendo" ao movimento do outro.
Se um ocupa um determinado espaço e começa a andar, o
outro procura o espaço vazio; um deles pode tomar a
iniciativa, depois é o outro, mas não há regras. Se um deles
insiste em "mandar" na movimentação, tomando sempre a
iniciativa de ir para lá ou para cá, isto é melhor para o outro
que está treinando a "resposta" (que é o mais difícil; que é o
essencial deste exercício).

Ambos vão evitar determinadas coisas:


- evitam esbarrar, ou até tocar, no outro;
- evitam "bloquear" o outro;
- evitam ir diretamente na direção do outro; na verdade,
ambos tentam "dar a volta" no outro, contornando e passando às
costas do companheiro.

Este exercício às vezes é rápido e nervoso; outras vezes é


lento e harmônico - depende da química das personalidades
dos dois alunos.
Este é um exercício leve.

Depois deste exercício com um companheiro, o aluno vai


fazer exercício semelhante com um outro aluno.
Depois ele vai racionalmente analisar como se deu aquela
interação (em relação à anterior). O par conversa a respeito do
que aconteceu entre eles durante o exercício de improvisação em
pé, e as diferenças em relação ao que aconteceu com o outro
aluno (com o qual também realizou um exercício similar).
Este tipo de análise é comum a todos os capoeiristas jovens
ou idosos que analisam seu próprio jogo, ou comentam o jogo
de outros pares. Embora a capoeira seja basicamenter um viver
e experienciar corporal, ela também envolve a mente; mas a
mente e o racional não devem liderar o proceso, sendo apenas
uma parte (menor) do todo.

Por outro lado, o fato dos alunos terem de comentar (com o


seu par) o que acharam do desenrolar do exercício, é algo que
sinaliza, ao aluno, que ele não está apenas "recebendo
informação" ou "recebendo ordens" - algo que é típico e básico
nos métodos de ensino ocidentais; no colégio; no exército; nos
times de futebol (o "técnica" e os "jogadores"), etc. O iniciante
percebe, talvez inconscientemente, que ele tem um grau de
liberdade; aliás, mais ainda, espera-se que ele aja com
independência e inteligência.
Na verdade, o iniciante já havia "sentido" esta "liberdade"
nesta "aula de introdução à capoeira" (mesmo que esta
informação não tenha chegado ao seu consciente, mesmo que
ele não a verbalize), quando na abertura da aula, no primeiro
exercício - os animais -: "... aluno pode, e deve, mudar de uma forma
para outra; também pode inventar outras formas de se locomover".

O que estamos frisando é que esta aula deve refletir uma


maneira do professor se relacionar com os alunos.
Uma maneira sem autoritarismos desnecessários; algo
divertido de se fazer; algo que lembra a brincadeira. Pedir isto ao
professor é muito: a maioria gosta, justamente, de "dar ordens",
mandar, exercer a autoridade, e ocasionalmente "dar um
esporro". Mas sem este enfoque não-autoritário, esta aula fica
apenas na "forma externa", e evidentemente não tem o papel
que eu espero dela.

b. No chão
É a mesma dinâmica, só que ao invés de se moverem em pé,
os dois iniciantes vão se mover no chão utilisando aquelas
maneiras de se movimentar, inclusive "passando pelos túneis",
que eles experimentaram em "os animais".
A única diferença é que nos animais o iniciante interagia
com toda a turma, e podia se movimentar por toda sala; e aqui
ele vai interagir somente com seu par, dentro do "círculo
imaginário" de uns 2 a 3 metros de diâmetro.

Atenção!
Apesar de ser uma brincadeira, este "No chão" é um exercício
pesado. Preste atenção para não exigir demais das pessoas,
especialmente os iniciantes e pessoas mais velhas.

Aqui termina a primeira parte desta “aula inaugural”, e


deve-se notar que, até aqui, os alunos estão aprendendo “uns
com os outros”. O professor apenas estabelece as linhas gerais
do exercício, e depois toca o berimbau, ou pandeiro, e “puxa” o
canto.
Ou seja, a primeira parte da aula é semelhante ao que acontecia no
ensino tradicional da capoeira antes das academias (1930), onde a
função do mestre - mais do que “ensinar” - era “criar as
condições” para as coisas acontecerem.

SEGUNDA PARTE DA AULA:


Agora vamos passar à segunda parte desta aula, que pode
ser esquematizada como abaixo:

Professor à frente Pares de alunos


Todos alunos imitam-no Atravessam a sala com "aús"

----------------------- inserir desenhos --------------------

OBS: o "aú" é o movimento comumente chamado de


"estrela", que vemos abaixo:

------------------------- inserir desenhos ---------------------

EXERCÍCIO "PROFESSOR À FRENTE":

No exercício "Professor à frente", o professor assume a posição


característica ao ensino ocidental: ele estará à frente
executando a “ginga”. Os alunos se colocam naquela formação
característica da "aula de Educação Física" (ou "pelotão do
exército"), e passivamente, recebendo a informação, tentarão
imitá-lo gingando junto com o professor.
Abaixo, vemos a "ginga" executada por dois alunos. Mas no
nosso atual exercício, os alunos não estão em pares, mas seguem
o professor em grupo.
---------------------- inserir desenhos ------------------------

Esta é a parte "mecânica e repetitiva" do ensino, típica a


nosso contexto ocidental, e também usada nas academias de
capoeira de nossos dias.
Mas, após entender a parte mecânica de como se
movimentar na “ginga” (um pé vai atrás e volta, o outro pé vai
atrás e volta; os braços sobem e descem acompanhando), cada
aluno deverá colocar seu tempero pessoal no movimento.
Por outro lado, este lance do "professor à frente" vai
lembrar aos alunos que a aula esta dando ampla liberdade aos
iniciantes mas, na verdade, existe alguém ali que sabe coisas
que o aluno não sabe. Existe alguém que, sem demonstrar, está
no comando das coisas.

EXERCÍCIO "PARES DE ALUNOS" FAZENDO O AÚ:

Agora vamos voltar a situação dos alunos aprendendo uns


com os outros.
Neste exercício - "Pares de alunos" -, os alunos deverão
atravessar a sala aos pares, um de frente para o outro
executando o “aú” (“estrela”, para os não iniciados).
O par executa o aú, um de frente para o outro; e então eles
trocam de lado, e executam novo aú, até chegarem ao outro
lado da sala, para retornarem pelas laterais até o local de onde
partiram.
Observe que, desta maneira, cada aluno executa um aú por
um lado (o lado direito, p.ex.), e após trocar de lugar com seu
par, irá executar o aú pelo outro lado (o esquerdo). E ao chegar
ao outro lado da sala, os alunos voltam pelas laterais (pois
exitem outros pares que também estão atravessando a sala, uns
atrás dos outros).

Neste exercício estamos numa área intermediária entre o


“autoritário” (professor à frente, alunos passivamente imitando-o),
e o aprendizado “livre” (animais, da primeira parte da aula);
algo entre o mover retilíneo descartiano, e o ficar de cabeça pra
baixo da capoeira.
Resta dizer que, muitas vezes, o iniciante não consegue
executar o "aú"; é algo normal. Então ele deve dar um aú
baixinho, quase sem tirar os pés do chão, como abaixo:

------------------ inserir desenhos ------------------------

TERCEIRA PARTE DA AULA: A RODA

Finalmente temos a terceira parte da aula para encerrar a


“aula inaugural”: a “roda”.
Os alunos formarão um círculo; o professor toca o
berimbau e puxa o canto, ao qual os alunos respondem em
coro. É melhor ficar no "ai, ai, ai, ai"; ou um outro canto
igaualmente simples. O professor explica a importância de
responder em côro:
- por um lado, cria uma energia que é "lançada" sobre os
dois jogadores no centro da roda, ajudando-os a entrar numa
espécie de transe light;
- por outro lado, o aluno ao responder em côro, participa e
é energizado por esta corrente energética (ao invés de
passivamente esperar, cheio de tédio, sua vez de entrar na roda e
jogar).

Depois que a roda está "armada", e todos os alunos já


entenderam e estão atuando no lance do côro; finalmente dois
alunos entram na roda e se movimentam, improvisando (como
haviam feito na improvisação em pé e no chão). Eles improvisam em
pé; improvisam no chão, inclusive passando pelos “túneis”; e
ocasionalmente um pode estar em pé e o outro no chão, mas
sempre mantendo o "diálogo".
Quando uma dupla termina de jogar (sem dar golpes, só na
movimentação), outra dupla parte do pé do berimbau para dentro
da roda.
Depois que todos os alunos jogaram, o professor e os alunos
se sentam no chão e batem um papo sobre o que rolou na roda
(atenção professor: não é para você monopolisar a fala; os
alunos é que devem falar e o professor coordena o papo).
Aí o professor faz uma segunda rodada pedindo para os
alunos incorporararem o “aú” na movimentação. Para esta
parte final - a 2ª roda -, podem e devem ser dados alguns
elementos do ritual, como:
- o canto de entrada;
- a saída do pé do berimbau;
- o jogo mais lento (ritmo de angola) com uma
movimentação mais de “animal na selva preparando uma
emboscada”, em oposição ao jogo mais rápido (são bento grande)
com uma movimentação de uma estimulante “dança de
guerreiros”. Sempre sem golpes; apenas movimentação em pé e
no chão, podendo usar o aú.

CONCLUSÃO

Muito interessante (você poderá pensar).


Mas será que os alunos estão conscientes de toda esta infra-
estrutura da "aula inaugural": algo semelhante à própria
criação do universo e ao aparecimento do homem sobre a face
da Terra (Unidade nos animais, Dualidade no homens e animais,
etc.) que acompanha o desenrolar da aula?

Será que vale a pena (ou não) explicar para os alunos que a
"aula inaugural" segue, de algum modo, o próprio
desenvolvimento dos "métodos de ensino de capoeira" através
das gerações:
- inicialmente, na "primeira parte da aula" temos o
aprendizado "livre", onde os alunos aprendem uns com os
outros (exercícios "animais", e "homens e animais"); algo
semelhante ao aprendizado "livre" que existia antes da década
de 1930, e antes da criação das "academias de capoeira"; onde
a função do mestre era apenas a de organizar a roda, com os
berimbaus, e os novatos aprendiam no próprio jogo; onde a
função do mestre - mais do que “ensinar” - era “criar as
condições” para as coisas acontecerem;
- e, mais tarde, na "segunda parte da aula", o novato é
introduzido ao ensino "autoritário" típico de nossa sociedade
ocidental, e típico de todas as academias de capoeira de todos
os estilos como, p.ex., no exercício "Professor à frente", onde o
professor estará à frente executando a “ginga” e os alunos,
passivamente, recebendo a informação, tentam imitá-lo em
uníssono.
- e que minha (Nestor) proposta é inserir treinamenos
"livres" que incentivem o brincar (na primeira parte da aula), dentro
da estrutura "autoritária" (na segunda parte da aula) dos métodos
de ensino de nossos dias.

Em algumas turmas, se você explicar toda a coisa do mito,


dos diferentes tipos de "método de ensino", e de como a aula
funciona a partir disto - eles vão adorar. Em outras turmas, vão
achar que muita conversa enche o saco - o que eles querem é
ação.
Cabe ao professor decidir se acompanha a aula com
explicações, ou simplesmente dá a aula.
Mas mesmo neste segundo caso - em que os alunos não
sabem nada do mito e do ritual, da Unidade, dos métodos de
ensino, etc. -, a verdade é que, por estar baseado no mito e no
ritual, sua aula, e sua postura ao dar a aula, terá uma força e
uma qualidade surpreendentes.

Improvisação e criatividade: a receita básica do antídoto

Na "aula de introdução à capoeira" vimos que o básico é a


brincadeira; e também a liberdade de movimentação, a
criatividade, a independência, e a tomada de iniciativa por
parte do aluno. Tudo isto somado aos "treinamentos mecânicos
e repetitivos" (o execício "professor a frente").
Um pouco mais a frente, nas próximas páginas, nos
"treinamentos mecânicos e repetitivos", vamos repetir a "receita
básica" que sintetiza o meu método de ensino. Vou dar um
outro exemplo prático, através do ensino da "ginga", onde vemos
como conjugar:
- os "treinamentos repetitivos e mecânicos" usados em todas as
academias (e que propiciam um rápido aprendizado e
desenvolvimento, mas tolhem a criatividade);
- com os "exercícios de improvisação" que eu comecei a criar, e a
usar, a partir de 1990 ("os animais", etc., que vimos na "aula de
introdução", e que incetivam o brincar e a criatividade e o
improviso) .

NOTAS:
211 O histórico de todos estes métodos serão
estudados a fundo nos dois outros 2 volumes desta
nova Trilogia do Jogador, de Nestor Capoeira, que seão
publicados em 2013. (Nota do editor)
212 CAIAFA. Op. cit., 1985, 1991, 1992.
213 BATESON. Steps to an ecology of mind. NY: Ballantine,
1972, pp.177-193.
214 LEWIS, J.L Ring of liberation. Chicago: Univ. of Chicago
Press, 1992, p.2.
215 WINNICOTT, D.W. O brincar e a realidade. RJ: Imago,
1975, passing.
216 WINE. Pulsão e inconsciente. RJ: Zahar, 192, p. 32.
217 Ibidem, p. 32.
218 WINNICOTT, op. cit., 1975.
219 DELEUZE E GUATTARI. Op. cit., 1980, pp.
192-197.
220 WINNICOTT, D.W. O brincar e a realidade. RJ: Imago,
1975, passing.
221 Neste período, mestre Nestor morou e ensinou capoeira
na Dinamarca; foi convidado pela Prefeitura de Copenhague
para desenvolver um programa de "introdução à capoeira"
para as turmas das escolas do nível básico. (Nota do editor)
222 Este texto, do mestre Nestor, é do tempo em que deu
aulas de capoeira no Institut for Idraet, da Universidade de
Odense (Dinamarca); e publicou um livro, junto com J.
Borghal, para aquela instituição: Capoeira, kampdans og livsfilosofi
fra Brasilien. Odense: Odense Universitetsforlag, 1997. (Nota
do editor)
223 CAPOEIRA, Nestor. Galo já cantou, capoeira para
iniciados. RJ: ArteHoje, 1985, pp. 63-64. (Ed. ampl. e rev., RJ,
Record, 1999).
224 Revista Época, 21/03/2004.

11.2 - OS MÉTODOS DE ENSINO DE NOSSOS DIAS

Na capoeira não existem índios, somente caciques.


Cada um de nós tem seu método (na verdade, todos
bastante semelhantes) que seria "o melhor". Evidentemente, eu
também tenho o meu método; vocês acabaram de ver a "aula
inicial" no capítulo anterior.
Mas o interessante para o leitor não é escolher o "melhor"
método, mas ter uma visão geral de como a capoeira é
ensinada e, assim, ter mais uma janela aberta para o universo
da capoeiragem. Como eu não sou exatamente um mestre
ortodoxo, creio que o interessante é o confronto do meu
método, com os "métodos de ensino de nossos dias" (os métodos que
eu e meus colegas desenvolvemos, nas décadas de 1960/70/80,
e que eu usei por mais de 20 anos entre 1969 e 1992).
Métodos de ensino de nossos dias:
- as sequências pre-determinadas de golpes/contragolpes/
esquivas, para duplas de alunos (criada originalmente por
mestre Bimba, na década de 1930); ou de ataque/golpe
desequilibrante;
- ou ainda as sequências, para um aluno, de golpes, ou de
movimentos "no chão", ou de movimentos acrobáticos; isto
tambem pode ser feito à medida que os alunos executam uma
sequência, dão alguns passos a frente, executam-na novamente,
dão alguns passos a frente etc., e assim vão atravessando a sala
em fila (funciona bem quando a sala é pequena para o número
de alunos);
- a técnica do professor realizar os movimentos na frente da
turma, e todos os alunos repetem os movimentos em uníssono
junto com o professor;
- os treinos de chutes no "saco-de-areia", ou na mão
estendida de um companheiro (que serve como alvo); etc,

O desnível entre o conhecimento da malícia, e a


performance no jogo

Os "métodos de ensino de nossos dias" funcionam, e em 2


anos o iniciante já joga capoeira.
Em 5 ou 7 anos, se ele dedicou-se a treinar várias horas
diariamente, como muitos fazem, o aprendiz já chegou à um
nível de jogo bastante razoavel, ou mesmo bom, embora não
tenha tido tempo de amadurecer, absorver, e encarnar a malícia
- a filosofia da capoeira, a maneira de ser do capoeirista.
Existe um desnível, em cada jovem jogador, entre a
maestria dos seus movimentos (e seu bom nível como jogador),
e a malícia que ele possui - que é uma "sabedoria do corpo" que
se absorve com o tempo, jogando em diferentes situações com
pessoas muita diversas.
A malícia, como já vimos, vai transbordar do corpo para a
mente, e para as ações e o dia-a-dia do jogador. Esta sabedoria,
este "saber corporal", esta "malícia", ainda é incipiente nos 10
ou 15 primeiros anos; está apenas começando a desabrochar e
crescer.

Mas isto não é um problema.


Não é um problema porque não existe solução, nem atalho,
para diminuir o desnível entre a "performance na roda" e o
"conhecimento da malícia". Só o tempo resolve.
Somente o tempo, 20 anos e mais de capoeira, fará com
que a malícia (o "nível de compreensão" da capoeira e da vida)
acabe por igualar o alto "nível de performance" que o jogador
já tem na roda. É quando ele entenderá a vida do ponto de
vista da capoeira; é quando conhecerá a capoeira tão bem
quanto sabe jogar.

Problema: criatividade x métodos de ensino de nossos dias

No entanto, existe um problema que tem solução.


O problema que tem de solução é: apesar dos "métodos de
ensino de nossos dias" funcionarem e serem eficientes, eles se
tornaram rígidos demais e não dão espaço para o
desenvolvimento da criatividade e improvisação do aprendiz.
O que se chama "improvisação", hoje em dia, não é fazer
algo novo e inesperado conforme o momento. "Improvisação",
hoje em dia, é ter treinado exaustivamente uma série de
sequências pre-determinadas de movimentos, e "encaixar" no
jogo uma dessas sequências, ou uma série delas (podendo
mudar a ordem dos movimentos, ou não).

Esta característica negativa e castradora dos "métodos de


ensino de nossos dias" não é percebida, pelo aprendiz, nos
primeiros 10 ou 15 anos de aprendizagem. Pois o aprendiz está
tão preocupado em aperfeiçoar os movimentos nos treinos , que
não tem tempo para mais nada.
É somente após o aprendiz ter se transformado num
capoeirista experiente, que já treinou exaustivamente e
dominou tudo que os "métodos de ensino de nossos dias"
podem proporcionar; é só então que o capoeirista vai se
defrontar com o problema de estar aprisionado dentro do
"método de ensino" que tinha ensejado o seu rápido
desenvolvimento.

Alguns capoeiras experientes não ligam para tal problema:


estão usufruindo o poder, o sucesso, e as oportunidades que a
capoeira proporciona aos que se dedicam a ela.
Outros, por natureza (como a grande maioria dos seres
humanos), têm pouca "visão" - a capoeira já os levou muito
além do que lhes estava reservado -, e nem têm consciência
desta limitação.
No entanto, existem aqueles que se sentem como alguém
que comprou lindos sapatos... mas que ficam apertando os pés.
Estes últimos terão que trabalhar muito, e por conta própria -
um trabalho difícil e nada agradável -, já no auge da
maturidade, para quebrar as grades da "gaiola dourada" onde
foram criados; para poder jogar usando outros movimentos
diferentes dos que aprendeu; e, mais difícil ainda, para poder
responder espontaneamente a uma determinada situação.

Jogadores que improvisam: uma exceção

Apesar deste cenário, algumas vezes vemos um jovem com


alta técnica, jogando solto e improvisando.
Mas isto é devido à influência de um mestre, ou de algum
jogador mais velho e criativo (que se formou antes que os
"métodos de ensino de nossos dias" se tornassem rígidos
demais), que joga constantemente com este aprendiz.
Ou então, é porque este aprendiz, desde cedo, "correu" as
rodas e academias de estilos diversos; e o próprio Jogo, na sua
variedade de estilos e enfoques, educou-o. Aliás, isto é algo que
acontece pouco: a imensa maioria dos mestres não gosta, nem
permite, que seus novos alunos frequentem constantemente
outras rodas e academias, talvez por medo de perder o aluno (e
a mensalidade) para um outro mestre.

O que eu quero dizer é que quando vemos um aprendiz


criativo, isto é consequência de determinadas circunstâncias pouco
comuns.
O que procuramos aqui é uma solução geral para
contrabalançar a rigidez dos "métodos de ensino de nossos
dias". Já vimos a parte prática dos exercícios de improvisação (na
"aula inicial"). Vamos ver, agora, algumas sugestões de caráter
teórico.

Os alunos mais experientes e os mais novos, dentro da roda


1. Aprender jogando na roda
Na minha proposta, e no meu ensino, o aluno iniciante
entra para jogar na roda no primeiro dia de aula (como vimos na
"aula de introdução à capoeira").
Em oposição aos "métodos de ensino de nossos dias", onde
o iniciante só entra na roda para jogar após um aprendizado
básico inicial (as vezes, de 6 meses).
Então, desde o início, meus alunos tomam contato com a
própria capoeira - o importante é a capoeira. Enquanto que,
nos "métodos de ensino de nossos dias", os alunos entram
inicialmente em contato com a maneira de fazer movimentos
que determinado mestre acha "correto" - o importante para os
mestres, nestes outros métodos, é o aluno estar alinhado com o
estilo do mestre.

2. A "ilusão de onipotência".
Vimos, com Winnicott, a necessidade da mãe dar,
inicialmente, uma "ilusão de onipotência ao bebê" (o bebê
chora, "aparece" um seio para mamar); e comentei que
também deveríamos fazer isto nas nossas aulas.
Todos alunos (iniciantes, avançados, etc.) participam da
minha roda. No entanto, os de nível "médio" e "avançado",
quando jogam com os "iniciantes", não dão chutes (eles apenas
se movimentam, executam "floreios", e esquivam-se dos golpes
dos "iniciantes") - a tal da "ilusão de onipotência" para o
iniciante.
Desta maneira, o iniciante começa imediatamente a
interagir na roda (começando a entender o que é a capoeira). O
iniciante também desenvolve mais rapidamente os movimentos,
golpes, etc., que está aprendendo nos treinos, pois tenta
reproduzir estes movimentos na roda, sem medo de ser contra-
atacado.
Mais tarde, o iniciante é introduzidos à parte de "esquivas e
defesas", através treinamentos "mecânicos e repetitivos"
específicos (um aluno ataca com determinado golpe, e o outro
se esquiva). E começa a jogar "normalmente" (atacando, e
também sendo atacado e se esquivando) - mas somente com os
professores (que já têm um domínio do corpo que evitará
atingir um iniciante, sem querer, durante o jogo).

3. O treino dos "avançados" com os "iniciantes"


Por outro lado, os alunos de nível "médio" e "avançados",
quando jogam com os iniciantes (e não podem dar golpes),
estarão treinando a parte de "esquivas" e defesa, que é mais
difícil que o ataque.

4. Democracia do tempo
Durante a roda, os "iniciantes" têm o mesmo espaço e tempo
para jogar que os "avançados" e, até mesmo, que os professores.
Não existe, na minha roda no final das aulas, a compra de jogo:
quem joga é quem "entrou na fila", e um aluno graduado não
pode passar na frente do jogador inciante.
Isto em oposição aos "métodos de ensino de nossos dias",
onde o iniciante fica aprendendo movimentos básicos nos
treinos, durante alguns meses; e só então entra na roda. E então,
os mais avançados usam os novatos como cobaias para suas
rasteiras e, até, chutes. E, o que é pior ainda, os novatos tem
pouquíssimo tempo para jogar; pois os mais velhos passam na
sua frente na hora de jogar, e quando conseguem entrar na
roda, logo alguém mais graduado "compra" o jogo, e tira o
novato da roda.
Isto é uma reminiscência da época (que conheci quando
comecei nos 1960s) na qual o aluno "aprendia apanhando"; e
achava-se que aluno ficaria "mole e fraco" se não aprendesse
apanhando. Na roda, a lei era: "entra quem quer, sai quem
pode".

5. Iniciante não aprende apanhando


Esta parte da minha metodologia de ensino, não é uma
"invenção moderna e democrática"; nem é uma tentativa de ser
"bonzinho" e "politicamente correto".
É parte de um enfoque que herdei de meu primeiro mestre,
Mestre Leopoldina; que, por sua vez, o herdou de Quinzinho -
perigoso marginal que ensinou capoeira a Leopoldina, por
volta de 1950, que (curiosa e paradoxalmente) não admitia que
batessem nos iniciantes.
Eu uso esta dinâmica com o iniciante porque comprovei, na
minha prática de ensino de 40 anos, que ela funciona melhor.

Quinzinho era um temido "valente" e chefe de quadrilha.


Aos 20 anos, já havia passado pela prisão e carregava mais de
uma morte nas costas. Muito jovem, foi assassinado na prisão
da Ilha Grande.
Apesar de temido por sua violência, Quinzinho enfiou sua
pistola 9 mm. pela boca adentro de Juvenil, um jogador mais
experiente, também parte de sua gangue, que atingiu levemente
a cabeça de Leopoldina quando este ainda era iniciante:
- Não faça isso! Não faça isso, eu já falei! Senão o menino
cresce covarde e não aprende!
E teria ripado o cara, ali mesmo, se Leopoldina não
intercedesse a favor de Juvenil.
Deixar o aluno aprender sozinho

Eu não fico corrigindo o iniciante após mostrar como, p.ex.,


se dá um golpe; ou como se faz a ginga; ou como se dá um aú.
Não corrijo, mesmo que o iniciante peça; deixo ele ir fazendo
errado.
Ele percebe que não está dando certo; pede instruções a um
colega mais velho que, querendo tirar uma de professor,
começa a lhe mostrar (apesar de eu estar sempre dizendo para
"deixar o iniciante aprender sozinho"). Eu, após alguns
momentos, logo corto o "ensinamento". O iniciante fica
penando; observa os colegas mais adiantados; e consegue por
conta própria melhorar o movimento (ou não).
Quando não consegue, só depois de alguns dias eu ensino:
"a mão, na ginga da regional é assim, na angola é assado"; ou
"com esta posição da cabeça no aú, você está olhando para o
chão, e não está vendo o outro jogador". Aí, é aquele clarão de
luz para o inciante, pois ele já havia experimentado de tudo.
Eu deixo o inciante aprender a "aprender sozinho".

Não dar treinamentos "complicados" para iniciantes

O cara começa a ensinar e fica fascinado pela autoridade


que tem sobre os alunos. Fica fascinado em ensinar, mostrando
como sabe mais que os outros.
O professor se perde; ensina coisas mais complicadas que o
aluno necessita: p.ex., sequências de 5 ou 6 movimentos, para
um aluno fazer sozinho, muito além da capacidade de jogo do
iniciante; muito além do "saber" do iniciante. O iniciante
aprende e treina aquela sequência de movimentos comprida e
complicada, e quer "enfiá-la" dentro do jogo, independente do
que o outro jogador esta fazendo - evidentemente a coisa não
funciona.

Creio que, nos 2 anos iniciais, o ensino deve ser simples; no


máximo algo como:
- a sequência de Bimba, ou algo similar mas bastante simples;
- treino dos golpes sozinho, e golpe/esquiva para duplas de
alunos;
- e alguns movimentos acrobáticos como o aú, o s-dobrado e o
pulo-do-macaco.
Evidentemente se o aluno, por conta própria, ou com a
ajuda dos mais velhos, começa a treinar coisas mais
complicadas, antes ou depois da aula; eu deixo, não interompo.

Do 2º ao 5º ano, podem ser ensinados movimentos mais


elaborados; como determinados movimentos de cabeça pra
baixo (aú com queda de rins, etc); mas o treino deve continuar
simples (p.ex., usando sequências, mas sem que essas sejam
excessivamente compridas ou sofisticadas).
É na roda que o iniciante vai desenvolver seu jogo.

Sequências mais complicadas, só depois do 5º ou 7º ano;


pois, antes disto, elas deixam o jogador robotizado, tentando
executá-las sempre, sem nem mesmo saber o que, e porque,
está fazendo aquilo (e não adiante explicar, trata-se de um
"saber" que só vem com o tempo).

Com estas medidas, o jogo do inciante não fica mais


"simples" e "primário". Ao contrário, o inciante fica mais
criativo, improvisa mais; e seus golpes básicos são melhores, mais
fortes, mais rápidos, mais perfeitos, pois dedicou mais tempo a
eles, e não perdeu tempo com uma masturbação de sequências
de movimentos além de sua capacidade e "saber".
Quando este jogador, já maduro, com mais de 7 ou 10 anos
de treino, toma contato com um sequência complexa de
movimentos; ele entende-a imediatamente, tanto em seus
pontos fortes, quanto nos momentos de vulnerabilidade;
rapidamente assimila; e vai usá-la ou não, conforme sua
personalidade e o momento do jogo.

Treinar o som

Antes de cada aula - minha aula dura 2 horas, mas pode


durar mais, se a roda está animada -, deixo os alunos tocarem e
cantarem, no mínimo 30 minutos. Aos poucos, vou ensinando a
estrutura correta para cada toque, e para cada berimbau, na
angola e na regional.
Uma vez por semana faço meia hora de maculêlê, com todo
o ritual, canto, 3 atabaques. Dá um clima extra e aproxima,
mais ainda, os alunos do lance do ritual.
E, de vez em quando (uma vez por mes aprox.), faço uma
aula sem lei: cada aluno traz 12 cervejas (latinha ou longneck), ou
traz vinho, ou cachaça, eu coloco tudo num barril com gelo ao
lado do local da roda, e começamos a beber e a socialisar. A roda
começa espontaneamente, mais cedo ou mais tarde, e
continuamos a beber durante a roda (muitos alunos estão
sentados na roda e com latinha na mão). As vezes fazemos o
maculelê, e alguns alunos tem uma latinha na mão esquerda, e
a grima na mão direita. Quando a roda acaba, geralmente ainda
sobrou alguma cerveja e cahaça, e socialisamos mais um pouco,
batendo papo etc. e tal. Este lance é uma homenagem às rodas
no barracão do mestre Waldemar da Paixão, no bairro da
Liberdade (Salvador), nos 1950s/1960s. Como vocês podem
imaginar, a maioria dos capoeiristas acha a minha aula sem lei
um absurdo.

Diminuir o autoritarismo

Eis algumas outras características que caracterizariam um


ensino menos autoritário, que eu adoto na prática do meu dia-
a-dia:
- Só usa uniforme quem quer; quem não quiser, pode treinar
de calção, calça, com ou sem sapatos, etc. (na grande maioria
das academias o uso do "uniforme" - calça e camiseta brancas
com o logotipo do grupo, ou preto e amarelo, etc. - é
obrigatório)
- Só recebe corda (graduação) quem quiser; quem quiser
apenas treinar, ou jogar ocasionalmente, sem ter de se esforçar
e competir por uma corda (ou cordel, etc.) mais alta, não tem
problema. No entanto, para os que querem corda, a exigência é
grande; é igual ao dos grupos mais exigentes.
- Ninguém leva esporro por não estar treinando
constantemente. Quem quiser treinar duro, todos os dias;
ótimo! Quem quiser treinar eventualmente, e não participar de
todos os treinos de uma aula; não tem problema. Quem quiser
aparecer só de vez em quando para jogar na roda; também não
tem problema.
- Ninguém é obrigado a comparecer a um evento que o
mestre (eu, Nestor) ache importante, dentro ou fora da
academia.
- Ninguém precisa pedir permissão (a mim, Nestor) para ir
a um evento de capoeira, ou se quiser visitar e jogar em outra
academia, ou ir ao lançamento de um CD ou livro de capoeira
numa livraria (normalmente tem de pedir licença ao mestre... é
mole?)

Os itens acima são algumas características da minha


maneira de ensinar. No entanto, o que legitima o ensino de um
mestre são seus alunos, a sua roda, e o "clima" dentro de sua
academia.
Então, para saber se meu lance dá resultados, você teria de
conhecer meus alunos "adiantados", e teria de visitar minha
academia no Rio.

No entanto, agora vou falar algo paradoxal: eu não


incentivo meus alunos, que já estão começando a ensinar e que
querem viver profissionalmente das aulas de capoeira, a serem
liberais e democráticos como eu sou. Comercialmente isto não
funciona. A maioria das pessoas gosta é de um mestre que dá
esporro, e que é autoritário.
Pode ser que no futuro isto mude; que um outro tipo de
pessoa comece a querer aprender capoeira. Eu creio que isto
vai acontecer, e é pensando nisto que escrevi este livro.
Mas no momento (2010) a realidade é esta: a imensa
maioria dos alunos gosta de ser mandado, gosta de
ditadorzinho (e, mas tarde, quando começar a ensinar, vai
querer mandar).
Se eu sou "democrático" é porque posso: a maior parte da
minha grana não vem das aulas; a minha grana vem dos livros,
CDs, DVDs, cursos, workshops e palestras no Brasil e exterior.

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