Você está na página 1de 155

História da Filosofia

Primeiro volume
Nicola A bbagnano

~DIGITALIZAÇÃO E ARRANJO:
ÂNGELO MIGUEL ABRANTES

HISTÓRIA DA FILOSOFIA

2.a Edição

VOLUME I

TRADUÇÃO DE:
ANTÓNIO BORGES COELHO
FRANCO DE SOUSA
MANUEL PATRÍCIO

EDITORIAL PRESENÇA

Título original
STORIA DELLA FILOSOFIA

PREFÁCIO DA PRIMEIRA EDIÇÃO

Esta História da Filosofia pretende mostrar a essencial humanidade dos


filósofos. Ainda hoje perdura o preconceito de que a filosofia se afadiga com
problemas que não têm a mínima relação com a existência humana e continua
encerrada em uma esfera longínqua e inacessível aonde não chegam as aspirações
e necessidades dos homens. E junto a este preconceito vem o outro, que é ser a
história da filosofia o panorama desconcertante de opiniões que se sobrepõem
-e contrapõem, privada de um fio condutor que sirva de orientação para os
problemas da vida. Estes preconceitos são sem dúvida reforçados por aquelas
orientações filosóficas que, por amor de um mal entendido tecnicismo,
pretenderam reduzir a filosofia a uma disciplina particular acessível a poucos
e assim lhe menosprezaram o valor essencialmente humano. Trata-se, todavia, de
preconceitos injustos, fundados em falsas aparências e na ignorância do que
condenam. Demomstrá-lo é a pretensão desta obra.

Parte ela da convicção de que nada do que é humano é alheio à filosofia e de


que, ao contrário, esta é o próprio homem, que em si mesmo se faz problema e
busca as razões e o fundamento do ser

que é o seu. A essencial conexão entre a filosofia e o homem é a primeira base


da investigação historiográfica empreendida neste livro. Sobre tal base, esta
investigação inclina-se a considerar a pesquisa que há 26 séculos os homens do
ocidente conduzem acerca do próprio ser e do próprio destino. Através de lutas
e conquistas, dispersões e retornos, esta pesquisa acumulou um tesouro de
experiências vitais, que urge redescobrir e fazer reviver para além da
indumentária doutrinal que muito frequentemente o oculta, ao invés de revelá-
lo. E isto porque a história da filosofia é profundamente diferente da da
ciência. As doutrinas passadas e abandonadas já não têm para a ciência
significado vital; e as ainda válidas fazem parte do seu corpo vivo e não há
necessidade de nos voltarmos para a história para apreendê-las e torná-las
nossas. Em filosofia a consideração histórica é, ao invés, fundamental; uma
filosofia do passado, se foi verdadeiramente uma filosofia, não é um erro
abandonado e morto, mas uma fonte perene de ensinamento e de vida. Nela se
encarnou e exprimiu a pessoa do filósofo, não apenas em o*, que tinha de mais,
seu, na singularidade da sua experiência de pensamento e de vida, mas ainda
nas suas relações com os outros e com o mundo em que viveu. E à pessoa devemos
volver se queremos redescobrir o sentido vital de toda doutrina. Em cada uma
de elas devemos estabelecer o centro em torno do qual gravitaram os interesses
fundamentais do filósofo, e que é ao mesmo tempo o centro da sua personalidade
de homem e de pensador. 'Devemos fazer reviver perante nós o filósofo na sua
realidade de pessoa histórica se queremos compreender claramente, através da
obscuridade dos séculos desmemorizados ou das tradições deformadoras, a sua
palavra autêntica que pode ainda servir-nos de orientação e de guia.

Por isso não serão apresentados, em esta obra, sistemas ou problemas, quase
substantivados e considerados como realidades autónomas, mas figuras ou
pessoas vivas, serão feitas emergir da lógica da pesquisa em que quiseram
exprimir-se e consideradas nas suas relações com outras figuras e pessoas. A
história da filosofia não é o domínio de doutrinas impessoais que se sucedem
desordenadamente ou se concatenam dialecticamente, nem a esfera de acção de
problemas eternos, de que cada doutrina é manifestação contingente. É um
tecido de relações humanas, que se movem no plano de uma comum disciplina de
pesquisa, e que transcendem por isso os aspectos contingentes ou
insignificantes, para se fundar nos essenciais e constitutivos. Revela a
solidariedade fundamental dos esforços que procuram tornar clara, tanto quanto
é possível, a condição e o destino do homem; solidariedade que se exprime na
afinidade das doutrinas tanto como na sua oposição, na sua concordância tanto
como na sua polémica. A história da filosofia reproduz na táctica das
investigações rigorosamente disciplinadas a mesma tentativa que é a base e o
móbil de todas as relações humanas: compreender-se e compreender. E reprodu-lo
quando colhe êxitos como quando colhe desenganos, nas vicissitudes de ilusões
renascidas como nas de clarificações orientadas, e nas de esperanças sempre
renascentes.

A disparidade e a oposição das doutrinas perdem assim o seu carácter


desconcertante. O homem tem ensaiado e ensaia todas as vias para compreender-
se a si mesmo, aos outros e ao mundo. Obtém nisso mais ou menos sucesso. Mas
deve e deverá renovar a tentativa, da qual depende a sua dignidade de homem. E
não pode renová-la senão voltando-se para o passado e extraindo da história a
ajuda que os outros podem dar-lhe para o futuro.

Eis por que não se encontrarão nesta obra críticas extrínsecas, que pretendem
pÔr a claro os erros dos filósofos. A pretensão de atribuir aos filósofos
lições de filosofia é ridícula, como a de fazer de uma determinada filosofia o
critério e a norma de julgamento das outras. Todo o verdadeiro filósofo é um
mestre ou companheiro de pesquisa, cuja voz nos chega enfraquecida através do
tempo, mas pode ter para nós, para os problemas que ora nos ocupam, uma
importância decisiva. Necessário é que nos disponhamos à pesquisa com
sinceridade e humildade. Nós não podemos alcançar, sem a ajuda que nos vem dos
filósofos do passado, a solução dos problemas de que depende a nossa
existência individual e em sociedade. Devemos, por isso, propor historicamente
esses problemas, e na tentativa para compreender a palavra genuína de Platão
ou de Aristóteles, de Agostinho ou de Kant e de todos os outros, pequenos ou
grandes, que hajam sabido exprimir uma experiência humana fundamental, devemos
ver a própria tentativa de formular e solucionar os nossos problemas. O
problema de o que nós somos e devemos ser é fundamentalmente idêntico ao
problema de o que foram e quiseram ser, na sua substância humana, os filósofos
do passado. A separação dos dois problemas tira ao filosofar o seu alimento e
à história da filosofia a sua importância vital. A unidade dos dois problemas
garante a eficácia e a força do filosofar e fundamenta o valor da
historiografia filosófica. A história da filosofia liga simultaneamente o
passado e o futuro da filosofia. Esta ligação é a essencial historicidade da
filosofia.

Mas justamente Por isso a preocupação da objectividade, a cautela crítica, a


investigação paciente dos textos, o apego às intenções expressas dos
filóSOfos, não são na historiografia filosófica outros tantos sintomas de
renúncia ao Weresse teorético,

10

mas as provas mais seguras da seriedade do empenho teorético. Visto que a quem
espera da investigação histórica uma ajuda efectiva, a quem vê nos fIlósofos
do passado mestres e companheiros de pesquisa, não interessa falsear-lhes o
aspecto, camuflar-lhes a doutrina, mergulhar-lhes na sombra traços
fundamentais. Todo o interesse tem, ao invés, em reconhecer-lhes o verdadeiro
rosto, assim como quem empreende uma viagem difícil tem interesse em conhecer
a verdadeira índole de quem lhe serve de guia. Toda a ilusão ou engano é,
neste caso, funesta. A seriedade da investigação condiciona e manifesta o
empenho teorético.

É evidente, deste ponto de vista, que não se pode esperar encontrar na


história da filosofia um progresso contínuo, a formação gradual de um único e
universal corpo de verdade. Este progresso, tal como se verifica nas ciências,
uma por uma, que uma vez implantadas nas suas bases se acrescentam
gradualmente pela soma dos contributos individuais, -não pode encontrar-se em
filosofia, uma vez que não há aqui verdades objectivas e impessoais que possam
tornar-se e integrar-se em um corpo único, mas pessoas que dialogam acerca do
seu destino; e as doutrinas não são mais que expressões deste dialogar
ininterrupto, perguntas e respostas que às vezes se respondem e se
correspondem através dos séculos. A mais alta personalidade filosófica de
todos os tempos, Platão, exprimiu na própria forma literária da sua obra-o
diálogo-a verdadeira natureza do filosofar. Por outro lado, na história da
filosofia não há, no emtanto, uma mera sucessão desordenada de opiniões que
alternadamente se amontoam e destroem. Os problemas em que se verte o dialogar
incessante dos filósofos têm uma lógica sua, que é a própria disciplina a que
os filósofos livremente sujeitam a sua pesquisa: pelo que certas directivas
persistem em dominar um

11

período ou uma época histórica, porque lançam uma luz mais viva sobre um
problema fundamental. Adquirem, então, uma impessoalidade aparente, que faz
delas o património comum de gerações inteiras de filósofos (pense-se no
agostinismo ou no aristotelismo durante a escolástica); mas em seguida
declinam e apagam-se, e todavia a verdadeira pessoa do filósofo não mais se
apaga, e Todos podem e devem interrogá-lo para dele tirar luz.

A história da filosofia apresenta deste modo um estranho paradoxo. Não há,


pode dizer-se, doutrina filosófica que não tenha sido criticada, negada,
impugnada e destruída pela crítica filosófica. Mas quem quereria sustentar que
a obliteração definitiva de um só dos grandes filósofos antigos ou modernos
não seria um empobrecimento irremediável para todos os homens? É que o valor
de uma filosofia não se mede pelo quantum de verdade objectiva que ela contém,
mas tão só pela sua capacidade de servir de ponto de referência (porventura
somente polémico) a toda a tentativa de compreender-se a si e ao mundo. Quando
Kant reconhece a Hume o mérito de o ter despertado do "sono dogmático" e de o
ter encaminhado para o criticismo, formula de maneira mais imediata e evidente
a relação de livre interdependência que enlaça conjuntamente todos os
filósofos na história. Uma filosofia não tem valor enquanto suscita o acordo
formal de UM Certo número de pessoas sob determinada doutrina, mas somente
enquanto suscita e inspira nos outros aquela pesquisa que os conduz a
encontrar cada qual o próprio caminho, assim como o autor nela encontrou o
seu. O grande exemplo é aqui ainda o de Platão e de Sócrates: durante toda a
sua vida procurou Platão realizar o significado da figura e do ensinamento de
Sócrates, prosseguindo, quando era necessário, além do invólucro doutrinal em
que estavam encerrados,- e

12

desta maneira a mais alta e bela filosofia nasceu de um reiterado acto de


fidelidade histórica.

Tudo isto exclui que na história da filosofia se possa ver somente desordem e
sobreposição de opiniões; mas exclui, não obstante, que se possa ver nela uma
ordem necessária dialecticamente concatenada, em que a sucessão cronológica
das doutrinas equivalha ao desenvolvimento racional de momentos ideais
constituindo uma verdade única que se mostre em sua plenitude no fim do
processo. A concepção hegeliana faz da história da filosofia o processo
infalível de formação de uma determinada filosofia. E assim suprime a
liberdade da pesquisa filosófica, que é condicionada pela realidade histórica
da pessoa que indaga; nega a problematicidade da própria história e faz dela
um círculo concluso, sem porvir. Os elementos que constituem a vitalidade da
filosofia perdem-se deste modo todos.

A verdade é que a história da filosofia é história no tempo, logo


problemática; e é feita, não de doutrinas, ou de momentos ideais, mas de
homens solidamente encadeados pela pesquisa comum. Nem toda a doutrina
sucessiva no tempo é, só por isto, mais verdadeira que as precedentes. Há o
perigo de se perderem ou esquecerem ensinamentos vitais, como frequentemente
aconteceu e acontece; de onde decorre o dever de inquirir incessantemente do
seu significado genuíno.

Obedece a este dever, dentro dos limites que me são concedidos, a presente
obra. Que o leitor queira compreendê-la e julgá-la dentro deste espírito.

N. A.

13

PREFÁCIO DA SEGUNDA EDIÇÃO

A segunda edição desta obra constitui uma actualização da primeira com base em
textos ou documentos ultimamente publicados, em novas investigações
historiográficas e em novos caminhos da crítica histórica ou metodológica. As
partes que sofreram maiores revisões ou ampliamentos são as que concernem ' à
lógica e à metodologia das ciências, à ética e à política. As investigações
historiográficas contemporâneas voltam-se, de facto, preponderantemente para
estes campos, obedecendo aos mesmos interesses que solicitam hoje a pesquisa
filosófica. Aqui como ali a exigência de ter em conta os novos dados
historiográficos e de apresentar todo o conjunto numa forma ordenada e clara
tornou oportunas alterações de extensão ou de colocação dos autores tratados,
em conformidade com certas constantes conceptuais que demonstraram ser mais
activas, ou verdadeiramente decisivas, na determinação do desenvolvimento ou
da eficácia histórica das filosofias. óbviamente, as maiores modificações teve
que sofrê-las o desenvolvimento da filosofia contemporânea, no intuito de
oferecer um sintético quadro de conjunto da riqueza e da variedade dos
caminhos que hoje dis-

15

putam o campo, e dos problemas em volta dos quais se concentram as discussões


polémicas adentro de cada caminho.

Mas a estrutura da obra, os seus requisitos essenciais, as inscrições e os


critérios interpretativos fundamentais não sofreram modificações substanciais,
porque conservaram a sua validade. Às notas bibliográficas, embora
acttualizadas, foi conservado o carácter puramente funcional de selecção
orientadora para a pesquisa bibliográfica.

Agradeço a todos os que fizeram chegar até mim sugestões e conselhos e


sobretudo aos amigos com quem discuti alguns pontos fundamentais do trabalho.
A três deles, a quem mais frequentemente recorri, Pietro Rossi, Pietro Chiodi
e Carlo A. Viano, tenho gosto em exprimir públicamente a minha gratidão.

Turim, Setembro de 1963.

N. A.

16

PRIMEIRA PARTE

FILOSOFIA ANTIGA

ORIGENS E CARÁCTER DA FILOSOFIA GREGA

§ 1. PRETENSA ORIGEM ORIENTAL

Uma tradição que remonta aos filósofos judaicos de alexandria (século I a.C.)
afirma que a filosofia derivou do Oriente. Os vrincivais filósofos da Grécia
teriam extraído da doutrina hebraica, egípcia, babilónica e indiana não
somente as descobertas científicas mas também as concepções filosóficas mais
pessoais. Esta opinião divulgou-se progressivamente nos séculos seguintes;
culminou na opinião do neo-pitagórico Numénio, que chegou a chamar a Platão um
"Moisés ateicizante"; e passou dele aos escritores cristãos.

Contudo, não encontra ela qualquer fundamento nos testemunhos mais antigos.
Fala-se, é verdade, de viagens de vários filósofos ao Oriente, especialmente
pela Pérsia teria viajado Pitágoras; Demócrito, pelo Oriente; pelo Egipto,
segundo testemunhos mais verosímeis, Platão. Mas o próprio Platão (Rep., IV,
435 e) contrapõe o espírito científico dos Gregos ao amor da utilidade, carac-

19

terístico dos Egípcios e dos Fenicios; e assim exclui da mesma maneira clara a
possibilidade de que se tenha podido e se possa trazer inspiração para a
filosofia das concepções daqueles povos. Por outro lado, as indicações
cronológicas que se têm sobre as doutrinas filosóficas e religiosas do Oriente
são tão vagas, que estabelecer a prioridade cronológica de tais doutrinas
sobre as correspondentes doutrinas gregas deve ter-se por impossível.
Mais verosímil se apresenta, à primeira vista, a derivação da ciência grega do
Oriente. Segundo algumas opiniões, a geometria teria nascido no Egipto da
necessidade de medir a terra e distribui-la pelos seus proprietários depois
das periódicas inundações do Nilo. Segundo outras tradições, a astronomia
teria nascido com os Babilónios e a aritmética no próprio Egipto, Mas os
Babilónios cultivaram a astronomia com vista às suas crenças astrológicas, e a
geometria e a aritmética conservaram entre os Egípcios um carácter prático,
perfeitamente distinto do carácter especulativo e científico que estas
doutrinas revestiram entre os gregos.

Na realidade, aquela tradição, nascida tão tarde na história da filosofia


grega, foi sugerida, numa época dominada pelo interesse religioso, pela crença
que os povos orientais estivessem em poder de uma sabedoria originária e pelo
desejo de ligar a tal sabedoria às principais manifestações do pensamento
grego. Também entre os historiadores modernos a origem oriental da filosofia
grega é defendida com cores que tendem a acentuar o seu carácter religioso e,
de aqui, a sua continuidade com as grandes religiões do Oriente.

A observação decisiva que cumpre fazer a propósito é que, embora se presuma


(pois que provas decisivas não existem) a derivação oriental de esta ou aquela
doutrina da Grécia antiga, isto não implica ainda a origem oriental da
filosofia grega.

20

----A -sabedoria oriental é essencialmente religiosa: é ela o património de


uma casta sacerdotal cuja única preocupação é a de defendê-la e transmiti-la
na sua pureza. O único fundamento da sabedoria oriental é a tradição. A
filosofia grega, ao invés, é pesquisa. Esta nasce de um acto fundamental de
liberdade frente à tradição, ao costume e a toda a crença aceite como tal. O
seu fundamento é que o homem não possui a sabedoria mas deve procurá-la: não é
sofia mas filosofia, amor da sabedoria, perseguição directa no encalço da
verdade para lá dos costumes, das tradições e das aparências. Com isto, o
próprio problema da relação entre filosofia greco-cristã-oriental perde muito
da sua importância.

Pode admitir-se como possível ou pelo menos verosímil que o povo grego tenha
inferido, dos povos orientais, com os quais mantinha desde séculos relações e
trocas comerciais, noções e haja encontrado o que esses povos conservaram na
sua tradição religiosa ou haviam descoberto por via das necessidades da vida.
Mas isto não impede que a filosofia, e em geral a investigação científica, se
manifeste nos gregos com características originais, que fazem dela um fenómeno
único no mundo antigo e o antecedente histórico da civilização (cultura?)
ocidental, de que constitui ainda uma das componentes fundamentais. Em
primeiro lugar, a filosofia não é de facto na Grécia o património ou o
privilégio de uma casta privilegiada. Todo o homem, segundo os gregos, pode
filosofar, porque o homem é "animal racional" e a sua racionalidade significa
a possibilidade de procurar, de maneira autónoma, a verdade. As palavras com
que inicia a Metafísica de Aristóteles: "Todos os homens tendem, por natureza,
para o saber" exprimem bem este conceito, uma vez que "tendem" quer dizer que
não só o desejam, mas

21

que podem consegui-lo.


Em segundo lugar, e como consequência disto, a filosofia grega é
investigação racional, isto é, autónoma, que não assenta numa verdade já
manifestada ou revelada, mas somente na força da razão e nesta reconhece o seu
guia. O seu limite polémico é habitualmente a opinião corrente, a tradição, o
mito, para além dos quais intenta prosseguir; e até quando termina por uma
confirmação da tradição, o valor desta confirmação deriva unicamente da força
racional do discurso filosófico.

§ 2. FIlOSOFIA: NOME E CONCEITO

Estas características são próprias de todas as manifestações da filosofia


grega e estão inscritas na própria etimologia da palavra, que significa "amor
da sabedoria". A própria palavra aparece relativamente tarde. Segundo uma
tradição muito conhecida, referida em as Tusculanas de Cícero (V, 9),
Pitágoras teria sido o primeiro a usar a palavra filosofia em um significado
específico. Comparava ele a vida às grandes festas de Olímpia, aonde uns
convergiam por motivo de negócios, outros para participar nas corridas, outros
ainda para divertir-se e, por fim, uns somente para ver o que acontece: estes
últimos são os filósofos. Aqui está sublinhada a distinção entre a
contemplação desinteressada própria dos filósofos e a azáfama interesseira dos
outros homens. Mas a narrativa de Cícero provém de um escrito de Heraclides do
Ponto (Dióg. L, Proemimm, 12) e pretende simplesmente acentuar o carácter
contemplativo que foi considerado pelo próprio Aristóteles essencial à
filosofia. Mas, na Grécia, a filosofia teve ainda o valor de uma sageza que
deve guiar todas as acções da vida. Em tal sageza se haviam inspirado os Sete

22

Sábios que, no entanto, eram também chamados "sofistas" como "sofista" era
chamado Pitágoras. Não no sentido de contemplação, mas no sentido mais
genérico de pesquisa desinteressada, usa Heródoto a palavra quando fez o Rei
Creso dizer a Sólon. (Heródoto, J, 20); "Tenho ouvido falar das viagens que,
filosofando, empreendeste para ver muitos países"; e da mesma forma Tucidides,
quando (11, 40) fez dizer a Péricles de si e dos Atenienses: "Nós amamos o
belo com simplicidade e filosofamos sem receio". O filosofar sem receio
exprime a autonomia da pesquisa racional em que consiste a filosofia.
como veremos no tema posterior a palavra filosofia implica dois significados.
O primeiro e mais geral é o de pesquisa autónoma ou racional, seja qual for o
campo em que se desenvolva; neste sentido, todas as ciências fazem parte da
filosofia. o Segundo significado, mais específico, indica uma pesquisa
particular que de algum modo é fundamental para as outras mas não as contém.
Os dois significados estão ligados nas sentenças de Heraclito (fr., 35 Díels):
"É necessário que os homens filósofos sejam bons indagadores (historas) de
muitas coisas". Este duplo significado encontra-se claramente em Platão onde o
termo vem usado para indicar a geometria, a música e as outras disciplinas do
mesmo género, sobretudo na sua função educativa (Teet., 143 d; Tím., 88 c); e
por outro lado a filosofia vem contraposta à sofia, à sabedoria que é própria
da divindade. e à doxa, à opinião, na qual se detém quem não se preocupa com
indagar o verdadeiro ser (Fedr., 278 d; Rep.,
480 a). A mesma bivalência se acha em Aristóteles para quem a filosofia é,
como filosofia prima, a ciência do ser enquanto ser; mas abrange, também em
seguida, as outras ciências teoréticas, a matemática e a física, e até a ética
(Ét. Nic., 1, 4,

23

1906 b, ^31). Esta bivalencia de significado revela melhor do que qualquer


outra coisa o significado originário e autêntico que os gregos atribuíam à
palavra. Este significado está já incluído na etimologia, e é o de pesquisa.
Toda a ciência ou disciplina humana, enquanto pesquisa autónoma, é filosofia.
Mas é, logo a seguir, filosofia em sentido eminente e próprio a pesquisa que é
consciente de si, a pesquisa que põe o próprio problema da pesquisa e
esclarece por isso o seu próprio valor nas confrontações feitas pelo homem. Se
toda a disciplina é pesquisa e como tal filosofia, em sentido próprio e
técnico a filosofia é sómente o problema da pesquisa e do seu valor para o
homem. É neste sentido que Platão diz que a filosofia é a ciência pela qual
não sómente se sabe, mas se sabe ainda fazer um uso vantajoso do que se sabe
(Eutid., 288 c-290 d). Aristóteles, por seu turno, acentua a supremacia da
filosofia prima que é a metafisica nas confrontações com a filosofia segunda e
terceira que são a física e a matemática. E num sentido análogo a filosofia é,
para os Estóicos, o esforço (cpitedeusis) para a sabedoria (Sexto E. Adv.
Math., IX, 13); para os Epicuristas é a actividade (enorgheia) que torna feliz
a vida (lb., X1,
1 69). Em qualquer caso, a filosofia é um saber indispensável para o
encaminhamento e a felicidade da vida humana.

§ 3. PRIMóRDIOS DA FILOSOFIA GREGA:


OS MITóLOGOS, OS MISTÉRIOS OS SETE SáBIOS, OS POETAS

Os primórdios da filosofia grega devem procurar-se na própria Grécia:(nos


primeiros sinais, em que a filosofia como tal i, é, como pesquisa), começa a
aparecer nas cosmologias míticas dos

24

poetas, nas doutrinas dos mistérios, nos apotDgrnas dos Sete Sábios e
sobretudo na reflexão ético-política dos poetas.

Odocumento da cosmologia mítica mais antigo entre os gregos é a Teogonia de


Hesíodo, na qual decerto confluíram antigas tradições. O próprio Aristóteles
(Met., 1, 4; 984 b, 29) diz que Hesíodo foi, provàvelmente, o primeiro a
procurar um princípio das coisas quando disse: "primeiro que tudo foi o caos,
depois a terra de amplo seio... e o amor, que sobressai entre os deuses
imortais" (Teog.,
116 sgs.). De natureza filosófica se apresenta aqui o problema do estado
originário de que as coisas saíram e da força que as produziu, Mas se o
problema é filosófico, a resposta é mítica. O caos ou abismo bocejante, a
terra, o amor, etc. são personificados em entidades míticas.

Depois de Hesíodo, o primeiro poeta de quem conhecemos a cosmologia é


Ferecides de Siros, contemporâneo de Anaximandro, nascido provàvelmente por
alturas de 600-596 a.C.. Diz ele que primeiro que todas as coisas e desde
sempre havia Zeus, Cronos e Ctonos. Ctonos era a terra, Cronos o tempo, Zeus o
céu. Zeus transformado em Eros, ou seja no amor, procede à construção do
Mundo. Há neste mito a primeira distinção entre a matéria e a força
organizadora do mundo.

Observa-se uma ulterior afirmação da exigência filosófica na religião dos


mistérios espalhados pela Grécia no dealbar do século VI a.C.. A esta religião
pertenciam o culto de Dioniso, que vinha da Trácia, o culto de Deméter, cujos
mistérios se celebraram em Elêusis, e sobretudo o orfismo.
O orfismo era também dedicado ao culto de Dioniso, mas punha em uma revelação
a origem da autoridade religiosa e estava organizado em comunidades. A
revelação era atribuída ao trácio ORFEu, que descera ao Hades; e a finalidade
dos
25

ritos que a comunidade celebrava era a de purificar a alma do Homem, iniciada


para subtraí-la à "roda dos nascimentos", isto é, à transmigração para o corpo
de outros seres viventes. O ensinamento fundamental que o orfismo contém- é o
conceito da ciência e em geral da actividade do pensamento como um caminho de
vida, ou seja como uma pesquisa que conduz à verdadeira vida do homem. Do
mesmo modo devia depois conceber a filosofia Platão, que no Fédon se filia
explicitamente nas crenças órficas.

Ao lado dos primeiros lampejos da filosofia na cosmologia do mito e nos


mistérios está a primeira apresentação da reflexão moral na lenda dos Sete
Sábios. São estes diversamente enumerados pelos escritores antigos, mas quatro
deles, Tales, Bias, Pítaco e Sólon estão incluídos em todas as listas. Platão,
que pela primeira vez os enumerou, acrescenta a estes quatro Cleóbulo, Míson e
Chilon (Prot., 343 a).

A eles se atribuem breves sentenças morais (de aí terem ainda sido chamados
Gnomas), algumas das quais se tornaram famosas. A Tales se atribui a frase
"Conhece-te a ti mesmo" (Dióg. L., 1, 40). A Bias a frase "a maioria é
perversa" (1b., 1, 88) e esta outra "O cargo revela o homem" (Alist., Ét.
Nic., V, 1,1029 b, 1). A Pítaco a frase "Sabe aproveitar a oportunidade"
(Dióg. L.,
1, 79). A Sólon as frases "Toma a peito as coisas importantes" e "Nada em
excesso" (1b., 1, 60,63). A Cleóbulo a frase "A medida é coisa óptima" (1b.,
1, 93). A Míson a frase "Indaga as palavras a partir das coisas, não as coisas
a partir das palavras" (1b., 1, 108). A Chílon as frases "Cuida de ti mesmo" e
"Não desejes o impossível" (1b., I,
70). Como se vê, estas frases são todas de natureza prática ou moral e
demonstram que a primeira reflexão filosófica na Grécia foi direita à sageza
da vida mais do que à pura contemplação

26

(ao contrário do que preferiu um Aristóteles). Estas frases preludiam uma


verdadeira e peculiar investigação sobre a conduta do homem no mundo. E não é
por acaso que o primeiro dos Sete Sábios, Tales, é ainda considerado o
primeiro autêntico representante da filosofia grega.

Mas o clima em que pôde nascer e florescer a poesia e a reflexão filosófica


grega foi preparado pela reflexão moral dos poetas que elaborou, na Grécia,
conceitos fundamentais que deveriam servir aos filósofos

L para a ceito de uma

interpretação do mundo con

ão un lei que dá unidade ao mundo umano encontra-se pela primeira vez em


Homero: Toda a Odisseia é dominada pela crença em úha lei de justiça, de que
os deuses são guardiões e garantes, lei que determina uma ordem providencial
nas vicissitudes humanas, pela qual o justo triunfo e o injusto é punido. Em
Hesíodo esta lei vem personificada na Dikê, filha de Zeus, que tem assento
junto do pai e vigia para que sejam unidos os homens que praticam a injustiça.
A infracção a esta lei aparece no mesmo Hesíodo como arrogância (hybris)
devida ao desenfreamento das paixões e em geral às forças irracionais: assim o
qualifica o próprio Hesíodo (Os trabalhos e os dias, 252, segs., 267 segs.) e
ainda o Arquíloco (fr. 36, 84), Mimnermo (fr. 9, ló) e Teógnis (v. 1. 40, 44,
291, 543, 1103). Sólon afirma com grande energia a infalibilidade da punição
que fere aquele que infringe a norma de justiça, sobre que se funda a vida em
sociedade: ainda quando o culpado se subtrai à punição, esta atinge
infalivelmente os seus descendentes. A aparente desordem das vicissitudes
humanas, pela qual a Moira ou fortuna parece ferir os inocentes, justifica-se,
segundo Sólon (fr. 34), pela necessidade de conter dentro dos justos limites
os desejos humanos descomedidos e de afastar o homem de qualquer excesso. De
maneira que a lei de justiça é

27

também norma de medida; e Sólon exprime num fragmento famoso (fr. 16) a
convicção moral mais enraizada nos gregos: "A coisa mais difícil de todas é
captar a invisível medida da sageza, a única que traz em si os limites de
todas as coisas". Ésquilo é enfim o profeta religioso desta lei universal de
justiça de que a sua tragédia quer exprimir o triunfo. Portanto, antes que a
filosofia descobrisse e justificasse a unidade da lei por sob a multiplicidade
dispersa dos fenómenos naturais, a poesia grega descobriu e justificou a
unidade da lei por sob as vicissitudes aparentemente desordenadas e mutáveis
da vida humana em sociedade. Veremos que a especulação dos primeiros físicos
não fez mais do que procurar no mundo da natureza esta mesma unidade
normativa, que os poetas haviam perseguido no mundo dos homens

§ 4. AS ESCOLAS FILOSóFICAS

Desde o início a pesquisa filosófica foi na Grécia uma pesquisa associada. Uma
escola não reunia os seus adeptos somente pelas exigências de um ensino
regular: não é provável que tal ensino tenha existido nas escolas filosóficas
da Grécia antiga senão com Aristóteles. Os alunos de uma escola eram chamados
"companheiros (etairoi). Juntavam-se para viver uma "vida comum" e
estabeleciam entre si não só uma solidariedade de pensamento mas também de
costumes e de vida, numa troca contínua de dúvidas, de dificuldades e de
investigações. O caso da escola pitagórica, que foi ao mesmo tempo uma escola
filosófica e uma associação religiosa e política, é certamente único; e por
outro lado este traço do pitagorismo foi por isso mesmo mais uma fraqueza que
uma força. Contudo, todas as grandes personalidades da filosofia grega são os
funda-

28

dores de uma escola que é um centro de investigação; a obra das personalidades


menores vem juntar-se à doutrina fundamental e contribui para formar o
património comum da escola.

Duvidou-se que tivessem formado uma escola os filósofos de Mileto; mas há para
eles o testemunho explícito de Teofrasto que fala de Anaximandro como
"concidadão e companheiro (etairos)" de Tales. O próprio Platão nos fala dos
heraclitianos (Teet., 1792) e dos anaxagóricos (Crát.,
409 b); e em o Sofista <242d) o estrangeiro eleata fala da sua escola como
ainda existente em Eleia. A Academia platónica teve portanto uma história de
nove séculos.

Esta característica da filosofia grega não é acidental Já que a pesquisa


filosófica não encerrava, segundo os gregos, o indivíduo em si próprio;
exigia, bem ao contrário, uma concordância de esforços, uma comunicação
incessante entre os homens que dela faziam o objectivo fundamental da vida e
determinava por isso uma solidariedade constante e efectiva entre os que a ela
se dedicavam,.'

De aqui provém o interesse constante dos filósofos gregos pela política, isto
é pela vida em sociedade. A tradição conservou-nos, notícia deste interesse
mesmo na referência àqueles de cuja vida não nos dá mais que essas
informações. Tales, Anaximandro e Pitágoras foram homens políticos. De
Parménides se conta que deu as leis à sua cidade e de Zenão que pereceu vítima
da tentativa para libertar os seus concidadãos de um tirano. Empédocles
restaurou a democracia em Agrigento; Arquitos foi um chefe de estado e
Melissos um almirante. O interesse político exercitou portanto, como veremos,
uma função dominante na especulação de Platão.

29

§ 5. PERÍODOS DA FILOSOFIA GREGA

O seu próprio carácter de pesquisa autónoma na qual cada um está igualmente


empenhado e da qual pode e deve cada um esperar o cumprimento da sua
personalidade, torna difícil dividir em períódos o curso da filosofia grega.
Todavia, a organização da pesquisa nas escolas e as relações necessariamente
existentes entre escolas contemporâneas, que, mesmo quando são polémicas, se
batem em terreno comum, permitem distinguir, no curso da filosofia grega, um
certo número de períodos, cada um dos quais determinado pela escolha de
POSIÇãO no problema fundamental da pesquisa. Se considerarmos o problema em
torno do qual virá sucessivamente gravitar a pesquisa, podem distinguir-se
cinco períodos: cosmológico, antropológico, ontológico, ético, religioso.

1. Período cosmolÓgico que compreende a escolas pré-socráticas, com excepção


dos sofistas,_ dominado pelo problema de perseguir a unidade que garante a
ordem do mundo e a possibilidade do conhecimento humano

2. período antropológico que compreende os sofistas e Sócrates, é dominado


pelo problema de perseguir a unidade do homem em si mesmo e com os outros
homens, como fundamento e possibilidade da -formação do indivíduo e da
harmonia da vida em sociedade

3. período lógico, que compreende Platão


e Aristóteles, é dominado pelo problema de perseguir na relação entre o homem
e o ser a condição e a possibilidade do valor do homem como tal e da validade
do ser como t.Este período, que é o da plena maturidade do pensamento grego,
torna a propor na sua síntese os problemas dos dois períodos precedentes.

30

4. O período ético, que compreende o estoicismo, o epicurismo, o cepticismo--C


o eclectismo, é dominado pelo problema da conduta do homem e é caracterizado
pela diminuta consciência do valor teorético da pesquisa.

5. O período religioso, que compreende as escolas neoplatónicas e suas afins,


é dominado pelo problema de encontrar para o homem a via da reunião com Deus,
considerada como a única via de salvação.

Estes períodos não representam rígidas divisões cronológicas: não servem para
outra coisa que não seja para dar um quadro geral e resumido do nascimento, do
desenvolvimento e da decadência da pesquisa filosófica na Grécia antiga.

§ 6. FONTES DA FILOSOFIA GREGA

As fontes da filosofia grega são constituídas: I. Pelas obras e fragmentos dos


filósofos. Platão é o primeiro de quem -nos ficaram as obras inteiras. Temos
muitas obras de Aristóteles. De todos os outros não nos ficaram mais que
fragmentos mais ou menos extensos. 111. Pelos testemunhos dos escritores
posteriores.

As obras fundamentais de que se extraem tais testemunhos são as seguintes:

a) No que respeita à filosofia pré-socrática são


precisas alusões conservadas nas obras de Platão e de Aristóteles.

Particularmente Aristóteles deu-nos no primeiro livro da Metafísica o primeiro


ensaio de historiografia filosófica. Além disso, referências às outras
doutrinas são muito frequentes em todos os seus escritos.

31

b) Os doxógrafos, quer dizer, Os escritores pertencentes ao período tardio da


filosofia grega, que referiram as opiniões dos vários filósofos. O primeiro
destes doxógrafos, que é ainda fonte de quase todos os outros, é Teofrasto,
autor das opiniões físicas de que nos resta um capítulo e outros fragmentos em
o Comentário de Simplício (séc. VI d.C.) à Física de Aristóteles.

São ainda doxografias muito importantes: os Placita Philosophownena atribuídos


a Plutarco e as Éclogas físicas de João Estobeu (séc. V d.C.). Provavelmente
(como o demonstrou Diels) ambos bebiam na mesma fonte: os Placita de Aécio,
que procediam por via indirecta, isto é, em segunda mão, das Opiniões de
Teofrasto.

Outro doxógrafo é Cícero, que nas suas obras expõe doutrinas de numerosos
filósofos gregos, porém todas conhecidas em segunda e terceira mão.

Para a biografia dos filósofos a mais importante doxografia é o primeiro livro


da Refutação de todas as heresias de Hipólito (séc. III d.C.), que fora em
primeiro lugar falsamente atribuída a Diógenes com o título de
Philosophonmena. A obra de Diógenes Laércio (séc. III d.C.). Vidas e Doutrinas
dos Filósofos, em 10 livros, que chegou inteira até nós, é de importância
fundamental para a história do pensamento grego. Trata-se de uma história de
cada uma das escolas filosóficas, segundo o método das chamadas Sucessões
(Diadochai) que já tinha sido praticado por Socião de Alexandria (séc. II
a.C.) e por outros cujas obras têm andado perdidas. A obra de Diógenes Laércio
contém duas doxografias distintas: uma biográfica e anedótica, a outra
expositiva. A parte biográfica é um amontoado de anedotas e de notícias
acumuladas ao acaso; apesar disso contém informações preciosas.

32

No que respeita à cronologia foi fundador desta Eratóstenes de Cirene (séc.


III a.C.); mas as suas Cronografias foram suplantadas pela versão em trímetros
jâmbicos que delas fez Apolodoro de Atenas (por volta de 140 a.C.) com o
título de Crónica. A época de cada filósofo é indicada pela sua acmé ou
florescimento que se faz coincidir com 40 anos de idade; e as outras datas são
calculadas com referência a esta última.
Finalmente, outras indicações se colhem nas obras dos escritores que
discutiram criticamente as doutrinas dos filósofos gregos. Assim Plutarco na
sua polémica contra o estoicismo e o epicurismo, nos dá uma exposição destas
doutrinas. Sexto Empírico assenta o seu cepticismo na critica e na exposição
dos sistemas dogmáticos. E os escritores cristãos dos primeiros séculos,
combatendo a filosofia pagã, fornecem-nos outras indicações em virtude das
quais chegaram às nossas mãos fragmentos e testemunhos preciosos de obras que
continuam perdidas. Outras colhem-se nos comentários de Proclo e de Simplício
a Platão e a Aristóteles, nas Noites Á ticas. de Affio Gélio (por volta de 150
a.C.), em Ateneu (por volta de 200 a.C.) e em Eliano (ao redor de 200 a.C.).

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 1. Sobre a pretensa origem oriental da filosofia grega: ZELLER, Philosophie


der Griochen, cap. 2; GompERz, Griechische Denker, I, cap. 1-3, trad. frane.,
p. 103 segs.; BuRNET Earty Greek Philosophy, Intr. X-XII, trad. frane. com o
título Aurore de Ia Phil. grecque, p. 17 segs. (Neste volume, ZELLER virá
citado a 6.1 edição ao cuidado de Nestle; e de GomPERZ e BURNET as
traduções francesas acima Indicadas). Para mais Indicações bibliográficas
veja-se a longa nota acrescentada por Mondolfo à sua tradução

33

Italiana da cit. ob. de ZELLER, Florença, 132, vol. 1, pág. 63-99.

§ 3. Os fragmentos dos mitólogos, dos Órficos e dos Sete Sábios ~o reunidos em


DIEU, Fragmente der Vor8okratiker, 5.4 edição 1934, vol, I; SNELL, Leben und
Meinungen der Sieber Wei8en. MiInchen, 1943. -KERN, Orphicorum fragmenta,
Berlim, 1922: OuVHMI, La~lae auroae orphicae, Bona, 1915; ED., Civiltá greca
nell'Italia meridionale, Nápoles, 1931; Orphei Hymni, edit. Gullermo Quandt,
Berlim, 1941.

§ 4. Sobre o contributo da poesia para a elaboração dos Conceitos morais


fundamentais: MAX WUNT, Gesch. der gricch. Ethik, Leipzig, 1908, vol. I, cap.
1-2; JAEGER, Pa~, tradução Italiana, Florença, 1936, livro I; SNELL, Die
Entdeckung des Geistee, trad. ital, La cultura greca e te origini del pe~ro
europeo, Turim, 1951.

§ 5. Sobre a periodização da filosofia grega, vejam-se indicações


bibliográficas na nota de Mondolfo a ZELLER, vol. I, pág. 375-384.

§ 6. Fragmentos: MULLACH, Fragmenta philosophorum graecorum, 3 vol., Paris,


1860, 1867, 1881; DIELS, Poêtarum philosophorum fragmenta, Berlim,
1901. Os fragmentos dos pré-socráticoa: DIELS. Die Fragmente der
V<>r8okratiker, 5.1 edição, ao cuidado de KrsÈn , Berlim, 1R34. - DAL PRA, La
atoriografia filosofica antica, Milão, 19W.

Os doxógrafos foram recolhidos e comentados por DIELS, Doxographi Gracci,


Berlim, 1879, que contém as obras, ou os fragmentos de obras, de Aécio
(Plutarco-"tobeu) Ario Didimo, Teofrasto, Cícero (livro I do De %atura
deorum), FIlodemo, Mpólito, Plutarco, Epifâneo, Galeno, Hermias.

Sobre as fontes da fil. grega: UEBERWEG-PRAECHTER, PhiJ. der Altertums,


Berlim, 1926, 5 4.; Mondolfo em 7--- , vol. I, p. 25-33.

34
III

A ESCOLA JÓNICA

1. CARÁCTER DA FILOSOFIA PRÉ-SOCRÁTICA

A filosofia pré-socrática até aos sofistas é dominada pelo problema


cosmológico, mas não exclui o homem da sua consideração; mas no homem vê
somente uma parte ou um elemento da natureza, não ainda o centro de um
problema específico. Para os pré-socráticos, os mesmos princípios que explicam
a constituição do mundo físico, explicam a construção do homem. O
reconhecimento do carácter especifico da existência humana é-lhes alheio e
alheio é, por Isso, o problema do que o homem é na sua subjectividade como
princípio autónomo da pesquisa. O escopo da filosofia pré-socrática é o de
pedir e reconhecer, para lá das aparências múltiplas e continuamente mutáveis
da natureza, a unidade que faz da própria natureza um mundo: a única
substância que constitui o seu ser, a única lei que regula o seu devir. A
substância é para os pré-socráticos a matéria de que todas as

35

coisas se compõem; mas é, também a força que explica a sua composição, do


seu nascimento, a sua morte, e a sua perpétua mudança. 'Ela é princípio não
só no sentido de explicar a sua origem mas ainda e sobretudo no sentido que
torna inteligível e reconduz à unidade aquela sua multiplicidade e
mutabilidade que aparece à primeira observação tão rebelde a toda a
consideração unitária. Do que deriva o carácter activo e dinâmico que a
natureza, a physis, tem para os pré-socráticos: ela não é a substância na sua
imobilidade, mas a substância como princípio de acção e de inteligibilidade de
tudo o que é múltiplo e em devir. Do que deriva ainda o chamado hilozoísmo dos
pré-socráticos: a convicção implícita de que a substância primordial corpórea
tinha em si uma força que a fazia mover e viver.

A filosofia pré-socrática, não obstante a simplicidade do seu tema


especulativo e o primitivismo materialista de muitas das suas concepções,
adquiriu pela primeira vez para a especulação a possibilidade de conceber a
natureza como um mundo e pôs como fundamento desta possibilidade a substância,
concebida como princípio do ser e do devir. Ora- que estas conquistas
respeitem exclusivamente ao mundo físico é um facto indubitável; mas é
igualmente indubitável que elas arrastam consigo, pelo menos implicitamente,
outras tantas conquistas que concernem ao mundo próprio do homem e à sua vida
interior. O homem não pode voltar-se para a investigação do mundo como
objectividade, sem tornar-se consciente da sua subjectividade; o
reconhecimento do mundo como outro em relação a si é condicionado pelo
reconhecimento de si como eu; e reciprocamente. O homem não pode dirigir-se à
investigação da unidade dos fenómenos externos, se não sentir o valor da
unidade na sua vida e nas suas relações com os outros homens.

36

O homem não pode reconhecer uma substância que constitua o ser e o princípio
das coisas externas senão enquanto reconhecer semelhantemente o ser e a
substância da sua existência individual ou em sociedade. A investigação
dirigida para o mundo objectivo está sempre unida à investigação dirigida para
o mundo próprio do homem. Esta conexão torna-se clara em Heraclito. O problema
do mundo físico é por ele posto em unidade essencial com o problema do eu; e
toda a conquista naquele campo se lhe apresenta condicionada pela
investigação dirigida para si mesmo. "Estudei-me a mim mesmo" diz ele (fr.
101, Diels). À excepção de Heraclito, todavia, o problema para que
intencionalmente se dirige a pesquisa dos pré-socráticos é o problema
cosmológico: tudo o que a pesquisa dirigida para este problema implica no
homem e para o homem continua inexprimido e caberá ao período seguinte da
filosofia grega trazê-lo à luz. O carácter de uma filosofia é determinado pela
natureza do seu problema; e não há dúvida que o problema dominante na
filosofia pré-socrática seja o cosmológico.

A tese apresentada pelos críticos modernos (em contraposição polémica com a de


Zeller, do puro carácter naturalista da filosofia pré-socrática) de uma
inspiração mística de tal filosofia, inspiração de que ela teria trazido a sua
tendência para considerar antropomorficamente o universo físico, funda-se em
aproximações arbitrárias que não têm base histórica. Esta tese encontra por
outro lado as suas origens na última fase da filosofia grega, que, para a sua
inspiração religiosa, quer fundar-se numa sabedoria revelada e garantida pela
tradição, e precisamente daquela fase recolhe os testemunhos sobre que se
funda a pouca, verosimilhança que possui. Mas é sabido que neopitagóricos,
neoplatónicos, etc., fabricavam os testemunhos que deviam servir para
demonstrar o carácter religioso, tradi-

37

cional das suas doutrinas. E é impossível basear todo o desenvolvimento da


filosofia grega nos seus próprios pressupostos: especialmente quando o mérito
mais alto dos primeiros filósofos da Grécia foi o de terem isolado um problema
específico e determinado o problema do mundo, saindo da confusão caótica de
problemas e de exigências que se entrelaçavam nas primeiras manifestações
filosóficas dos poetas e dos profetas mais antigos.

---Os filósofos pré-socráticos realizaram pela primeira vez aquela redução da


natureza à objectividade, que é a primeira condição de toda consideração
científica da natureza;! e esta redução é exactamente o oposto da confusão
entre a natureza e o homem, que é própria do misticismo antigo. Que a pesquisa
naturalista implique o sentido da objectividade espiritual ou contribua para o
formar, é pois (como se disse) um facto indubitável; mas este facto não é
devido a um influxo religioso sobre a filosofia; bem ao contrário é urna
conexão que os problemas realizam na própria vida dos filósofos que os
debatem.

§ 8. TALES

O fundador da escola jónica é Tales de Mileto, contemporâneo de Sólon e de


Creso. A sua acmè, quer dizer o seu nascimento deve remontar a 624-23; a sua
morte faz-se cair em 546-45. ,.Tales foi homem político, astrónomo, matemático
e físico, além de filósofo-Como homem político, incitou os gregos da Jónia,
como narra Heródoto (1, 170), a unirem-se num estado federal com capital em
Teo. Como astrónomo, predisse um eclipse solar (provavelmente o de 28 de Maio
de
585 a.C.). Como matemático, inventou vários teoremas de geometria. Como
físico, descobriu as

38

propriedades do iman. A sua fama de sábio continuamente absorto na especulação


é testemunhada pela anedota referida por Platão (Teet., 174 e), que,
observando o céu, caiu a um poço, suscitando as risadas de uma criadita
trácia. Uma outra anedota referida por Aristóteles (Pol., 1, 11, 1259a) tende,
ao invés, a evidenciar a sua habilidade de homem de negócios: prevendo uma
belíssima colheita de azeitonas, alugou todos os lagares da região e
subalugou-os depois a um preço mais elevado aos próprios donos. Trata-se,
provavelmente, de anedotas falsas referidas a Tales mais como a um símbolo e
incarnação do sábio que como a uma pessoa. Assim a última (como o próprio
Aristóteles observa) procura demonstrar que a ciência não é inútil, mas que em
regra os sábios não se servem dela (como poderiam fazê-lo) para enriquecer.

Não parece que tenha deixado escritos filosóficos. Devemos a Aristóteles o


conhecimento da sua doutrina fundamental (Met., 1, 3, 983b, 20): "Tales diz
que o princípio é a água, pelo que --sustentava ainda que a terra está sobre a
água; considerava, talvez, prova disso ver que o alimento de todas as coisas é
húmido e que até o quente se gera e vive no húmido; ora aquilo de que tudo se
gera é o principio de tudo, Pelo que se ateve a tal conjectura, e ainda por
terem os gérmens de todas as coisas uma natureza húmida e ser a água nas
coisas húmidas o princípio da sua natureza". Observa Aristóteles que esta
crença é antiquíssima. Homero contou que Oceano e Tétis são os princípios da
geração. Um só argumento, pois, apresenta Aristóteles como próprio de Tales:
que, a terra está sobre a água: e água é aqui substância no seu significado
mais simples, como aquilo que está sob (subiectum) e sustém. Um outro argu-

39

mento (a geração pelo húmido) é adoptado tão só como provável; é talvez


conjectura de Aristóteles. Tales imaginava unida à água uma força activa,
vivificadora e transformadora: neste sentido, possivelmente, é que ele dizia
que "tudo está pleno de Deus" e que o íman tem uma alma porque atrai o ferro.

§ 9. ANAXIMANDRO

Concidadão e contemporâneo de Tales, Anaximandro nasceu em 610-609 (tinha


64 anos quando em 547-46 descobriu a obliquidade do Zodíaco). Foi ainda homem
político e astrónomo. É o primeiro autor de escritos filosóficos na Grécia;` a
sua obra em prosa Acerca da natureza marca uma etapa notável na especulação
cosmológica dos jónicos..Foi ele o primeiro a designar a substância única com
o nome de principio (arché e reconhecia este principio não na água ou no
ar ou em qualquer outro elemento particular, mas no infinito (ápeiron), isto
é, na quantidade infinita da matéria, de que todas as coisas tiram a sua
origem e em que todas as coisas se dissolvem quando termina o ciclo que lhe
foi estabelecido- por uma lei necessária.' Este princípio infinito engloba, e
governa tudo; é por si próprio imortal e indestrutível, divino por
conseguinte.' Não o concebe ele como uma amálgama (migma) dos vários elementos
corpóreos em que estes estejam compreendidos cada um com as suas qualidades
peculiares; mas preferentemente como uma matéria em que os elementos não estão
ainda distintos e que por isso, além de infinita, é ainda indefinida
(a<)riston) (Diels, Ma).

Estas determinações representam já um desenvolvimento e um enriquecimento da


cosmologia de Tales. Em primeiro lugar, o carácter indeterminado

40

da substância primordial, que não se identifica com nenhum dos elementos


corpóreos, na medida em que permite conceber melhor a derivação destes
elementos como outras tantas especificações e determinações dela, imprime na
substância todas as características de verdadeira e própria corporeidade, e
faz dela uma simples massa quantitativa ou extensa. Sendo a corporeidade de
facto ligada à determinação dos elementos particulares, o ápeiron não pode
distinguir-se destes senão nos seres privados das determinações que constituem
a sua corporeidade sensível e por isso na redução ao infinito espacial. Embora
não possa encontrar-se em Anaximandro o conceito de um espaço incorpóreo, a
indeterminação do ápeiron, reduzindo-o à espacialidade, faz dele
necessariamente um corpo determinado somente pela sua extensão. Ora esta
extensão é infinita e como tal englobante e governo do todo (Diels, A15).
Estas determinações e sobretudo a primeira fazem da ápeiron uma realidade
distinta do mundo e transcendente: aquilo que abraça está sempre fora e para
além do que é abraçado, ainda que em relação com ele. " O princípio que
Anaximandro estabelece como substância originária -merece pois o nome de
"divino". A própria exigência da explicação naturalista Conduz Anaximandro a
uma primeira elaboração filosófica do transcendente e do divino, pela primeira
vez subtraído à superstição e ao mito, mas o infinito é ainda aquilo que
governa o mundo: é por conseguinte, não só a substância como também a lei do
mundo.

Primeiro que todos, Anaximandro propôs-se o problema do processo por meio do


qual as coisas derivam da substância primordial. Esse processo é a separação.
(A substância infinita é animada por um eterno movimento, em virtude do qual
se separam dela os contrários: quente e frio, seco e húmido, etc,1 Por meio
desta separação geram-se

41

os mundos infinitos, que se sucedem segundo um _,_Ciclo eterno. em todo o


mundo, o tempo do nascimento, da duração e da morte está marcado. "Todos os
seres têm de pagar uns aos outros o castigo da sua injustiça, segundo a ordem
do tempo"] (fr. 1,
Diels). Aqui a lei de justiça que Sólon -considerava dominadora do mundo
humano, lei que prova a prevaricação e a prepotência, torna-se lei cósmica,
lei que regula o nascimento e a morte dos mundos. Mas que injustiça é essa que
todos os seres cometem e que todos têm que exprimir? Evidentemente, ela é
devida à própria constituição e portanto ao nascimento dos seres, uma vez que
nenhum deles pode evitá-la não podendo assim subtrair-se ao castigo. Ora o
nascimento é, como se viu, a separação dos seres da substância infinita.
Evidentemente, esta separação é a ruptura da unidade, que é própria do
infinito; é o suceder da diversidade, e portanto do contraste, lá onde
existiam a homogeneidade e a harmonia. É na separação que se determina, pois,
a condição própria dos seres finitos: múltiplos diversos e contrastantes entre
si, pois que inevitavelmente destinados a pagar com a morte o seu próprio
nascimento e a regressar à unidade.

Mau grado a distância dos séculos e a escassez das informações remanescentes


podemos ainda dar-nos conta, por estes indícios, da grandeza da personalidade
filosófica de Anaximandro. Ele fundou a unidade do mundo, não só na unidade da
substância, como ainda na unidade da lei que o governa. E viu nesta lei não
uma necessidade cega, mas uma forma, de justiça. A unidade do problema
cosmológico com o problema humano aflora aqui: Heraclito irá iluminá-la
plenamente.

Todavia, a própria natureza da substância priinordial conduz Anaximandro a


admitir a infinidade dos mundos. Viu-se que infinitos mundos se

42
sucedem segundo um ciclo eterno; mas os mundos são também infinitos
contemporaneamente no espaço ou tão só sucessivamente no tempo? Um testemunho
de Aécio inclui Anaximandro entre os que admitem mundos inumeráveis que
circundam de todos os lados aquele que habitamos; e um testemunho análogo nos
dá Simplício, que coloca, ao lado de Anaximandro, Leucipo, Demócrito e Epicuro
(Diels, A 17). Cícero (De nat. deor., ]L 10.25), copiando Filodemo, autor de
um tratado sobre a religião que se encontrou em Herculano, diz: "A opinião de
Anaximandro era que aqueles são divindades que nascem, crescem e morrem a
longos intervalos e que estas divindades são mundos inumeráveis". Na realidade
é difícil negar que Anaximandro tenha admitido uma infinidade espacial dos
mundos pois que se o infinito engloba todos os mundos, deve então ser pensado
para além não de um só mundo, mas de outro e ainda de outro.] Só nos
confrontos de infinitos mundos pode compreender-se a infinidade da substância
primordial, que tudo abraça e transcende. Anaximandro considera de maneira
original a forma da terra: esta é um cilindro que paira no meio do mundo sem
ser sustentada por coisa alguma, visto que, encontrando-se a igual distância
de todas as partes, não é solicitada por nenhuma destas a mover-se. Quanto aos
homens, não são eles os seres originários da natureza. Efectivamente não sabem
alimentar-se por si, e não teriam, por isso, podido sobreviver se houvessem
nascido da primeira vez como nascem agora. É forçoso que hajam tido origem de
outros animais. Nasceram dentro dos peixes e depois de terem sido alimentados,
tornados capazes de se protegerem a si mesmos, foram lançados fora e
encaminharam-se para terra. Teorias estranhas e primitivas, mas que mostram da

43

maneira mais firme a exigência de procurar uma explicação puramente


naturalista do mundo e de se ater aos dados da experiência.

§ 10. ANAXÍMENES

Anaxímenes de Mileto, mais jovem do que Anaximandro e talvez seu discípulo,


floresceu por volta de 546-45 e morreu entre 528-25 (63.a Olimpíada).como
Tales, reconhece como princípio uma
matéria determinada, que é o ar; mas atribui a esta matéria as características
do princípio de Anaximandro.

Via ainda no ar a origem de todas as coisas: "Assim como a nossa alma, que é
ar, nos sustém, assim o sopro e o ar circundam o mundo inteiro" (fr. 2,
Diels).

O mundo é como um animal gigantesco que respira: e a respiração é a sua vida e


a sua alma. Do ar nascem todas as coisas que são, que foram e que
Serão, e até os deuses e as coisas divinas. O ar é o princípio do movimento de
todas as coisas.

Anaxímenes diz-nos ainda o modo como o ar determina a transformação das


coisas: este modo é o duplo processo de rarefacção e da condensação:
Rarefazendo-se o ar torna-se fogo; condensando-se torna-se vento, depois nuvem
e, condensando-se mais, água, terra e em seguida pedra. Até o calor e o frio
se devem a esse processo: a condensação produz o frio, a rarefacção o calor.

Como Anaximandro, Anaximenes admite o devir "Cíclico do mundo; de onde a sua


disolução periódica no princípio originário e a sua periódica regeneração a
partir dele.
Mais tarde a doutrina de Anaxímenes foi defendida por Diógenes de Apolónia,
contemporâneo de Anaxágoras. A acção que Anaxágoras atribuía à inteligência,
atribuía-a Diógenes ao ar, que tudo

44

invade e, que, com alma e sopro (pneuma) cria nos animais a vida, o movimento
e o pensamento. Por conseguinte, o ar é, segundo Diógenes, incriado,
iluminado, inteligente e regula e domina tudo.

§ 11. HERACLITO

A especulação dos jónios culmina na doutrina de Heraclito, que pela primeira


vez acomete o próprio problema da pesquisa e do homem que a institui.
Heraclito de Éfeso pertence à nobreza da sua cidade; foi contemporâneo de
Parménides e floresceu como ele por alturas de 504-01 a.C. É autor de uma obra
em prosa que foi depois designada com o título habitual Acerca da natureza,
constituída por aforismos e sentenças breves e lapidares, nem sempre claras,
donde o apelido de "obscuro".
O ponto de partida de Heraclito é a constatação do incessante devir das
coisas. O mundo é um fluxo perpétuo: "Não é possível descer duas vezes no
mesmo rio nem tocar duas vezes numa substância mortal no mesmo estado, pois
que, pela velocidade do movimento, tudo se dissipa e se recompõe de novo, tudo
vem e vai" (fr. 91, Diels). A substância, que é o princípio do mundo, deve
explicar o devir incessante justamente por meio da extrema mobilidade;
Heraclito reconhece-a no fogo. mas pode dizer-se que o fogo perde, na sua
doutrina, todo o carácter corpóreo: é um princípio activo, inteligente e
criado "Este mundo, que é o mesmo para todos, não foi criado por qualquer dos
deuses ou dos homens, mas foi sempre, é e será fogo eternamente vivo que com
ordem regular se acende e com ordem regular se extingue" (fr. 30, Diels). A
mudança é, por isso, uma saída do fogo ou um
regresso ao fogo. "Todas as coisas se trocam pelo

45

fogo e o fogo troca-se por todas, como o ouro se troca pelas mercadorias e as
mercadorias pelo ouroi" (fr. 90, Diels).

As afirmações de que "este mundo" é eterno e de que a mudança é uma incessante


troca pelo fogo excluem evidentemente o conceito. que os Estóicos atribuíram a
Heraclito, de uma conflagração universal, em virtude da qual todas as coisas
regressariam ao fogo primitivo. De facto, a troca incessante entre as coisas e
o fogo não implica que todas se convertam em fogo, tal como a troca entre as
mercadorias e o ouro não implica que todas se convertam em ouro.

Mas estes fundamentos de uma teoria da natureza são apresentados por Heraclito
como o resultado de uma sabedoria difícil de alcançar-se e oculta à maior
parte dos homens. Nas palavras que abriam o seu livro, Heraclito, lamentava
que os homens não obstante terem escutado o logos, a voz da razão, se esqueçam
dele nas palavras e nas acções, pelo que não sabem o que fazem no estado de
vigília, como não sabem o que fazem no estado ",de sono (fr. 1, Diels). E ao,
longo de toda a obra corria a polémica contra a sageza aparente dos que sabem
muitas coisas, mas não têm inteligência de nenhuma: sageza a que se opõe a
pesquisa dos filósofos, que essa sim incide sobre objectos múltiplos (fr. 35,
Diels), mas recolhe-os todos em unidade (fr. 41, Diels).

Héraclito é verdadeiramente o filósofo da pesquisa. Nele, pela primeira vez, a


pesquisa filosófica alcança a clareza da sua natureza e dos seus pressupostos.
Por alguma razão a própria palavra filosofia é usada eclassificada no seu
justo sentido.

segundo Heraclito, a própria natureza impõe a pEsquisa: com efeito ela


"gosta de ocultar-se." (fr. 123, Diels). Ele vê abrir-se à pesquisa o mais
vasto horizonte: "Se não esperares,

46
não acharás o inesperado, porque não se Pode achar e é inacessível" (fr. 18,
Diels). Mas não se esconde a dificuldade e o risco da pesquisa: "Os que
procuram ouro escavam muita terra, mas encontram pouco metal" (fr. 22,
Diels)._detémse especialmente nas condições que a tornam possível primeira
delas é que o homem examina-se a si mesmo."Procurei-me a mim mesmo", diz ele
(fr. 101, Diels). A pesquisa dirigida ao mundo
natural é condicionada pela clareza que o homem pode alcançar a respeito do
ser que lhe é próprio. A pesquisa interior revela profundidades infinitas: "Tu
não encontrarás os confins da alma, caminhes o que caminhares, tão profunda é
a sua razão" (fr. 45, Tiels). A pesquisa interior abre ao homem zonas
sucessivas de profundidade, que jamais se esgotam: a razão, a lei última do
eu, aparece continuamente mais além, em uma profundidade sempre mais longínqua
e ao mesmo tempo sempre mais íntima.

Mas esta razão, que é a lei da alma, é ao mesmo tempo lei universal. A segunda
e fundamental condição é a comunicação entre os homens: O pensamento é comum a
todos segundo Heraclito, (fr. 113, Diels). "É necessário seguir o que é comum
a todos porque o que é comum é geral" (fr. 2, Diels). "Quem quiser falar com
inteligência deve fortalecer-se com o que é comum a todos, como a cidade se
fortalece com a lei, e muito mais. Porque todas as leis humanas se alimentam
da única lei divina e esta doutrina tudo o que quer, basta a tudo e tudo
supera" (fr. 114 Diels).[O homem deve pois
dirigir a pesquisa não só para si mesmo, mas também, e com o mesmo movimento,
para aquilo que o liga aos outros, o logos que constitui a mais profunda
essência _(;homem individual é ainda o que liga os homens entre si numa
comunidade de natureza., Este logos é como a lei para a cidade, mas

47

é ele próprio a lei, lei suprema que tudo rege: o homem individual, a
comunidade dos homens e a natureza externa. Ele é, portanto, não só a
racionalidade mas o próprio ser do mundo: tal se revela em todos os aspectos
da pesquisa.

"Heraclito põe constantemente defronte do homem -a alternativa entre o estar


acordado e o dormir:!
entre o abrir-se, mediante a pesquisa, à comunicação inter-humana, que revela
a realidade autêntica do mundo objectivo: e o fechar-se no próprio pensamento
isolado, num mundo fictício que não tem comunicação com os outros (fr. 2, 34,
73; 89).
O sono é o isolamento do indivíduo, a sua incapacidade de compreender a si
mesmo, os outros e o mundo. A vigília é a pesquisa vigilante que não se detém
nas aparências, que alcança a realidade da consciência, a comunicação com os
outros, e a substância do mundo na única lei (logos) que rege o todo. Esta
alternativa estabelece o valor decisivo que a pesquisa possui para o homem.
Ela não é só pensamento (noesis) mas também sabedoria da vida (fronesis); ela
determina a índole do homem, o ethos, que é o seu próprio destino (fr. 119).
Mas Heraclito determinou ainda esta lei de que a pesquisa deve clarificar e
aprofundar o significado. Ela é já para os antigos a grande descoberta de
Heraclito; isso nos atesta Ffion (Rer. Div. Her.,
43): "0 que resulta dos dois contrários é uno, e se o uno se divide, os
contrários aparecem. Não é este o princípio que, conforme afirmam os gregos
justamente, o seu grande e celebérrimo Heraclito colocava à cabeça da sua
filosofia, o princípio que a resume toda e de que ele se gabava como sendo uma
nova descoberta?" . A grande descoberta de Heraclito é, pois, que a unidade do
princípio criador não é uma unidade idêntica e não exclui a luta, a discórdia,
a oposição. Para compreender a lei suprema do ser, o logos que o constitui e

48

governa, é necessário unir o completo e o incompleto, o concorde e o discorde,


o harmónico e o dissonante (fr. 10), e dar-se conta de que de todos os opostos
brote a unidade e da unidade saem os opostos. "É a mesma coisa o vivo e o
morto. o acordado e o dormente, o jovem e o velho: pois que cada um destes
opostos transformando-se, é o primeiro" (fr. 88). Como na circunferência todo
o ponto é ao mesmo tempo princípio e fim, como o mesmo caminho pode ser
percorrido para cima e para baixo (fr. 103, 60), assim todo o contraste supõe
uma unidade que constitui o significado vital e racional do próprio contraste.
00 e é oposto une--se e o que diverge conjuga-se". A luta é a regra do
mundo e a guerra é comum geradora e senhora de todas as coisas".

Nestas afirmações está contido o ensinamento fundamental de Heraclito, de cujo


ensinamento ele deduz que os homens não podem elevar-se senão Por meio de uma
longa pesquisa "Os homens não sabem como o que é discorde está em acordo
consigo mesmo: harmonia de tensões opostas, como as do arco e da lira" (fr.
51). Como as cordas do arco e as da lira se retesam para reunir e estreitar ao
mesmo tempo as extremidades opostas, assim a unidade da substância primordial
liga pelo logos os opostos sem os identificar, bem ao contrário opondo-os. A
harmonia não é para Heraclito a síntese dos opostos a conciliação e o
anulamento das suas oposições; é antes a unidade que submete precisamente as
oposições e a torna possível. A Homero, que dissera: "Possa a discórdia
desaparecer de entre os deuses e de entre os homens", Heraclito replica:
"Homero não se apercebe que pede a destruição do universo; se a sua prece
fosse atendida, todas as coisas pereceriam" (Diels, A22): A tensão é uma
unidade (isto é, uma relação) que pode

49

encontrar-se somente entre coisas opostas enquanto opostas. A conciliação, a


síntese anulá-la-iam.

unidade própria do mundo é, segundo Heraclito, uma tensão deste género: não
anula nem concilia nem supera o contraste, mas fá-lo existir, e fá-lo
compreender, como contraste.

Hegel viu em Heraclito o fundador da dialéctica e afirmou que não havia


proposição de Heraclito que ele não tivesse acolhido na sua lógica (Geschichte
der Phil., ed. Gockler, I. p. 343). Mas Hegel interpretava a doutrina
heraclitiana da tensão entre os opostos como conciliação ou harmonia dos
próprios opostos. Segundo Heraclito, os opostos estão unidos, é certo, mas
nunca conciliados: o seu estado permanente é a guerra. Segundo Hegel, os
opostos estão continuamente conciliados e a sua conciliação é também a sua
"verdade". Heraclito não é um filósofo optimista que considera (como Hegel) a
realidade em paz consigo mesma. É um filósofo por tendência pessimista e
amargo (por alguma razão a tradição o representava como "chorão": Hipólito,
Refut., 1, 4; Séneca, De Ira, 11, 10, 5, etc.) que considera um sonho ou uma
ilusão ignorar a luta e a discórdia de que todas as coisas são constituídas e
vivem.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 7. ~re toda a filosofia pré-socrática: RITTER e PRELLER, Historia critica


philosophiae gracae, g., edição, 1913, DEvOGEL, Greek philosophy, Leiden,
1950; KAFKA, Die Vorsokratik", Mónaco, 1921; SCHUM, Essai sur ta formation de
Ia pensée grecque, Paris;
19a4; CHERNISS, Aristot&s Criticim of Pr"ocratic Philosophy, Baltimore, 1935;
REY, La jeunesse de Ia science grecque, Paris, 1933; GOVOTri, I pre-aocratici,
Nápoles, IgU; MADDALENA, Sulla cosmoZogia ionica

50

da Tauto ad Bracuto, pdd", 1%0. A &kterp~O ~ca da filosofia, pré~rãUca foi


sustentada por C.~ JOEL, Der Ure~g der Naturph~10 gw dom ~to der My&ttk, lena,
lgW; M., Ge~cht# der asfikes Phi~Me, J Tubinga, IM. Mo particularmente
importantes: STzNzEL, Die M~phyaik doe Altertuino, M6naco, 1931; JAEGER, Pa~,
3 VOL, trad. ltal., Florença; 1936-59, ID., The Theology of the Barly &reek
Ph~hera, Oxford, 1947; GIGON, Der Uroprung der G~hiochen Phfk8~e. Von H~ bis
Porme~, Basilela, 1945; G. S. ~-J. E. RAvEN, The Pnesocratic Ph~hem. A Crit~
H~V with a Setec~ of Texts, Cambridge, 1957.

§ S. Os fragmentos de Talco in Dm^ cap. li. -

Sobre Talco além das obras citado : D. R. Dims in "Classical Quarterly>, 1950.

9. Oa fragmentos de Anaximandro in DMU,


12.- W-1 -NES=, 1, 270 sego.; GOMPERZ, I,
55 sega.: BURNET, 52 aep.; Dmi, lu "New Ja~ chen, 1923, 6&76; HEIDEL, in
"~Ical Philosophy>,
1912; C. ~N, A. and the 011~ of Greek Co~ Jogy, Nova Iorque, 1960.

§ 10. Os fragmentos de Anaxímenes in DM CaP- 13.-ZELLEP-MSTLE, 1, 315 ~.; Gom~


I,
62 sega.; BuRNET, 76 sega.

Os fragmentos de Diõgenes in D=, cap. 64. -zP-T.T -NEMx, 1, 338 segs.; Gom~,
1, 390 seg.; BuRNET, 406 segs.

§ li. Os fragmentos de Heraclito in DiEu, cap. 22-72ri-Ta -NMix, 1, 783 sego.;


-GomPERz, 1,
6 segs.; BuRNzT, 145 sega.; STENzEL, artig:o na Encicl~a Pauly-Wissowa-Kro11;
WALzER; Braclito (frag. e trad. ltal.), Florença, 1939. Uma Interpretação em
sentido exístencialista-heidegge~o é a de BRECHT, H~it, Heidelber^ 1936. Um
Heraclito criatianizante é apresentado por M~NTINI, Braclito,

51

Turim. 1944; KIRK, Irire in the Cos~g" Spoculat" of Heraclitu&, Mlanneapolls,


1940; HeracUtu8: The Coismic Fragments, 1954; RAus=NBERGzR, Parmen~ und
Heraklit, Heidelberg, 1941; DnZER, Weltbild und Sprwhe in Reraklitismus, In
"Neue lMld der Antike>, 1942; A. JEANNnM, La pensée d'HdracUte d'Ephè6e,
Paris, 1959; H. QUIRING, H., Berlim, 1959; P. H. WHEELWRIGHT, H., Princeton,
1959.

52

lu

A ESCOLA PITAGÓRICA

§ 12. PITÁGORAS

A tradição complicou com tantos elementos lendários a figura de Pitágoras que


se torna difícil delineá-la na sua realidade histórica. Os apontamentos de
Aristóteles limitam-se a poucas e simples doutrinas, referidas as mais das
vezes não a Pitágoras mas em geral aos pitagóricos; e se a tradição se
enriquece à medida que se afasta no tempo do Pitágoras histórico, isto é sinal
evidente que se enriquece com elementos lendários e fictícios, que pouco ou
nada têm de histórico.

Filho de Mnesarco, Pitágoras nasceu em Samos, provavelmente em 571-70, veio


para a Itália em
532-31 e morreu em 497-96 a.C.. Diz-se que fora discípulo de Ferecides de
Siros e de Anaximandro e que viajou pelo Egipto e pelos países do Oriente. 56
é certo que emigrou de Samos para a Grande Grécia e arranjou casa em Crotona
onde fundou uma escola que foi também uma associação religiosa e política. A
lenda representa Pitágoras

53

como profeta e operador de milagres, a sua doutrina ter-lhe-ia sido


transmitida directamente do seu deus protector. Apolo, pela boca da
sacerdotisa de Delfos Temistocleia Aristósseno in Dióg. L.. VM, 21).

É muito provável que Pitágoras não tenha escrito nada. Aristóteles não
conhece, com efeito, nenhum escrito seu; e a afirmação de Jâmblico (Vida de
Pít., 199) de que os escritos dos primeiros Pitagóricos até Filolau teriam
sido conservados como segredo da escola, vale só como uma prova do facto de
que ainda mais tarde não se possuíam escritos autênticos de Pitágoras
anteriores a Filolau. Pelo que é muito difícil reconhecer no pitagorismo a
parte que pertence ao seu fundador. Uma única doutrina pode com toda a certeza
ser-lhe atribuída - (a da sobrevivência da alma depois da morte e à sua
transmigração para outros corpos) -----"Segundo esta doutrina, de que se
apoderou Platão '(Górg., 493a), o corpo é uma prisão para a alma,
que aqui foi encerrada pela divindade para seu castigo. Enquanto a alma
estiver no corpo, tem necessidade dele porque só por seu intermédio pode
sentir; mas quando estiver fora dele vive num mundo superior uma vida
incorpórea nu __e se purificou durante a
vida corpórea, a alma regressa a esta vida; no caso contrário, retoma depois
da morte a cadeia das transmigrações.

§ 13. A ESCOlA DE PITÁGORAS -- A Escola de Pitágoras foi uma associação


religiosa é política além de filosófica; Parece que a admissão na sociedade
estava subordinada a provas rigorosas e à observância de um sigilo de vários
anos. Era necessário absterem-se de certos alimentos (carne, favas) e observar
o celibato. Além disso,

54
nos graus mais elevados os Pitagóricos viviam em plena comunhão de bens. Mas o
fundamento histórico de todas estas notícias é bastante inseguro. Muito
provavelmente, o pitagorismo foi uma das muitas seitas que celebravam
mistérios a cujos iniciados era imposta uma certa disciplina e certas regras
de abstinência, que não deviam ser pesadas.
O carácter político da seita determinou uma revolução Contra o
governo aristocrático, tradicional nas cidades gregas da Itália meridional, a
que davam o seu apoio os Pitagóricos, levantou-se um movimento democrático que
provocou revoluções e tumultos. Os Pitagóricos transformaram-se em objecto de
perseguições: a sede da sua escola foi incendiada, eles mesmos foram
massacrados ou fugiram; e só tempos depois os exilados puderam regressar à
pátria. É provável que Pitágoras tenha sido forçado a trocar Crotona pelo
Metaponto justamente devido a tais movimentos inssurreccionais.

Após a dispersão das comunidades itálicas temos conhecimento de filósofos


pitagóricos fora da Grande Grécia. O primeiro deles é Filólau. que era
contemporâneo de Sócrates e de Demócrito e viveu em Tebas nos últimos decénios
do século V. No mesmo período coloca Platão Timeu de Locres, do qual nem
sabemos com segurança se se trata de uma personagem histórica. Na segunda
metade do século IV o pitagorismo assumiu nova importância política através da
obra de Arquitas, senhor de Tarento, de quem foi hóspede Platão durante a sua
viagem à Grande Grécia. Depois de Arquitas a filosofia pitagórica parece ter-
se extinguido até na Itália. Junta-se ao pitagorismo, embora não tenha sido
(como há quem diga) discípulo de Pitágoras, o médico de Crotona Aleméon, que
repete algumas das doutrinas típicas do pitagorismo; mas é sobretudo notável
por ter considerado o cérebro o órgão da vida espiritual do homem.

55

A doutrina dos pitagóricos tinha essencialmente carácter religioso. Pitágoras


apresenta-se como o depositário de uma sabedoria que lhe foi transmitida pela
divindade; a esta sabedoria não podiam os seus discípulos trazer nenhuma
modificação, mas deviam permanecer fiéis à palavra do mestre (ipse dixit).
Além disso, eram obrigados a conservar o segredo e por esta razão a escola se
cobria de mistérios e de símbolos que ocultam o significado da doutrina aos
profanos.

§ 14. A METAFÍSICA DO NÚMERO

A doutrina fundamental dos Pitagóricos é que a Substância das coisas é o


número. Segundo Aristóteles (Met., I, 5)os Pitagóricos, que haviam sido os
primeiros a fazer progredir a matemática, acreditariam que os princípios da
matemática eram os -princípios de todas as coisas; e uma vez que os
princípios da matemática são, os números, parece-lhes ver nos números, mais do
que no fogo, na terra ou no ar, muitas semelhanças com as coisas que são ou
que devem. Aristóteles considera, por isso, que os Pitagóricos atribuíram ao
número a função de causa material que os jónios atribuíam a um elemento
corpóreo: o que é sem dúvida nenhuma uma indicação precisa para compreender o
significado do pitagorismo, mas não é ainda suficiente para torná-lo claro.

Na realidade, se os jónios recorriam a uma substância corpórea para explicar a


ordem do mundo, os Pitagóricos fazem dessa própria ordem a substância do
mundo---O número como substância do mundo é a hipótese da ordem mensurável e A
grande descoberta dos Pitagóricos, dos fenómenoS a descoberta que lhes
determina a importância na história da ciência ocidental, consiste
precisamente
56

na função fundamental que eles reconheceram à medida matemática para


compreender a ordem e a unidade do mundo. Veremos que a última fase do
pensamento platónico é dominada pela mesma preocupação: encontrar a ciência da
medida que é simultaneamente o fundamento do ser em si e da existência humana.
Primeiro que todos, os Pitagóricos deram expressão técnica à aspiração
fundamental do espírito grego para a medida, aspiração que Sólon exprimia
dizendo: "A coisa mais difícil de todas é captar a invisível medida da sageza,
a única que traz em si os limites de todas as coisas". Como substância do
mundo, o número é o modelo originário das coisas (lb., 1, 6, 987 b, 10) pois
que constitui, na sua perfeição ideal, a ordem nelas implícita.

O conceito de número como ordem mensurável permite eliminar a ambiguidade


entre significado aritmético e significado espacial no número pitagórico,
ambiguidade que dominou as interpretações antigas e recentes do pitagorismo.
Aristóteles diz que os Pitagóricos trataram os números como grandezas
espaciais (1b., XIII, 6, 1080b. 18) e alega ainda a opinião de que as figuras
geométricas são os elementos substanciais de que consistem os corpos _,Ib.,
VII, 2, 1028b, 15). "s seus comentadores vão ainda mais longe, sustentando que
os Pitagóricos consideraram as figuras geométricas como princípios da
realidade corpórea e reduziram estas figuras a um conjunto de pontos,
considerando os pontos como unidades extremas (Alexandre, -20r sua vez, co

In met., 1, 6, 687b, 33, ed. Bonitz, p. 41). E alguns intérpretes recentes


insistem em conservar o significado geométrico como o único que permite
compreender o princípio pitagórico de que, no fim de contas, tudo é composto
de números.

Na verdade, se por número se entende a ordem mensurável do mundo, o


significado aritmético e o

57

significado geométrico aparecem fundidos, uma vez que a medida supõe sempre
uma grandeza espacial ordenada, logo geométrica, e ao mesmo tempo um número
que a exprime" Pode dizer-se que o verdadeiro significado do número pitagórico
está expresso naquela figura sacra, a tetraktys, por que os Pitagóricos tinham
o hábito de jurar e que era a seguinte:

A tetraktys representa o número 10 como o triângulo que tem o 4 como lado. A


figura constitui, portanto, uma disposição geométrica que exprime um número ou
um número expresso numa disposição geométrica: o conceito que ela pressupõe é
o da ordem mensurável.
- Se o número é a substância das coisas, todas as disposições das coisas se
reduzem a oposições --,)entre números.' Ora a oposição fundamental das coisas
com respeito à ordem mensurável que constitui a sua substância é a de limite e
de ilimitado: o limite, que torna possível a medida, e o ilimitado que a
exclui. A esta oposição corresponde a oposição fundamental dos números, par e
ímpar: o ímpar corresponde ao limite, o par ao ilimitado. E, com efeito, no
número ímpar a unidade díspar constitui o limite do processo de numeração,
enquanto no número par este limite falta e o processo fica, por conseguinte,
inconcluso. A unidade é, pois, o par/ímpar visto que o acrescentamento dela
torna par o ímpar e o ímpar o par. À oposição do ímpar e do par, correspondem
nove outras oposições fundamentais e resulta daí a lista seguinte: 1.o Limite,
ilimitado; 2.<' ímpar, par; 3.O Unidade, multiplicidade, 4.O Direita,
esquerda, 5.1> Macho, fêmea;

58

6.o Quietude. movimento; 7.o Recta, curva; 8.o Luz, trevas; 9.o Bem, mal; 10.-
Quadrado, rectângulo.
O limite, isto é, a ordem, é a perfeição; por isso, tudo o que se encontra do
mesmo lado na série dos opostos é bom, o que se encontra do outro
lado é mau. Os Pitagóricos pensam, todavia, que a luta entre os opostos se
concilia por meio de um princípio de harmonia; e a harmonia, como vínculo dos
mesmos opostos, constitui para eles o significado último das coisas

Filolau define a harmonia como "a unidade do múltiplo e a concórdia do


discorde" (fr. 10, Diels). Como por toda a parte existe a oposição dos
elementos, por toda a parte existe a harmonia; e pode dizer-se outro tanto que
tudo é número ou que tudo é harmonia porque todo o número é uma harmonia do
ímpar e do par. A natureza da harmonia é em seguida revelada pela música: as
relações musicais exprimem do modo mais evidente a natureza da harmonia
universal; e são por isso assumidas pelos Pitagóricos como modelo de todas as
harmonias do universo (Filo]., fr. 6, Diels).

§ 15. DOUTRINAS COSMOLóGICAS

ANTROPOLóGICAS

Mais ou menos em conformidade com a doutrina metafísica do número, os


Pitagóricos desenvolveram uma doutrina cosmológica e antropológica de que
somente conhecemos uns escassos elementos. Filolau defendeu o princípio de que
a diversidade dos elementos corpóreos (água, ar, fogo, terra e éter) dependia
da diversidade da forma geométrica das partículas mais pequeninas que os
compunham. Esta doutrina que nele se acha apenas referida, foi precisada no
Timeu de Platão que atribui a todos os elementos a constituição de um
determinado

59

sólido geométrico; mas esta precisão, tornada possível pelo desenvolvimento


dado à geometria sólida pelo matemático Teeteto (ao qual é dedicado o diálogo
homónimo de Platão) não era possível a Filolau. [Sobre a formação do mundo, os
Pitagóricos pensam que no coração do Universo existe um fogo central, a que
chamam a mãe dos deuses, porque dele provém a formação dos corpos celesteS. ou
ainda Héstia, lar ou altar do universo, . a cidadela ou o trono de Zeus.
porque é o centro ,,de onde emana a força que conserva o mundo Por este fogo
central são atraídas as partes màIs próximas do ilimitado que o circunda
(espaço ou matéria infinita), partes que são limitadas por esta atracção, e a
seguir plasmadas na ordem. Este processo repetido mais vezes conduz à formação
do -universo inteiro, no qual por conseguinte, como refere Aristóteles (Met.,
XII, 7, 1072 b, 28), a perfeição não está no princípio, mas no fim.

É notável que, em conformidade com esta cosmogonia, os Pitagóricos cheguem a


uma doutrina cosmológIca, que os faz contar entre os primeiros predecessores
de Copérnico., O. mundo é por eles concebido como uma esfera, no centro da
qual está o fogo originário, e em torno desta movem-se, de ocidente para
oriente, dez corpos celestes: o céu das estrelas fixas, que é o mais afastado
centro, e em seguida, a distâncias sempre menores, os cinco planetas, o sol,
que como uma grande lente recebe os raios do fogo central e reflecte-os em
redor, a lua, a terra e a antiterra, um planeta hipotético que os Pitagóricos
admitem para completar o sagrado número de dez. O limite extremo do universo
seria formado por uma esfera envolvente de fogo correspondente ao fogo
celeste. As estrelas estão fixas a esferas transparentes em cuja rotação são
arrastadas (Aristóteles, De coelo, H, 13). Uma vez que todos os corpos movidos
velozmente produzem um som

60

musical, o mesmo acontece com os corpos celestes: o movimento das esferas


produz uma série de sons musicais que formam no seu conjunto uma oitava. Os
homens não se apercebem destes sons, porque os sentem ininterruptamente desde
o nascimento ou ainda porque os seus ouvidos não são adequados para percebê-
los. \Como todas as outras coisas, a alma humana é harmonia: a harmonia entre
os elementos contrários -)que compõem o corpo. A em doutrina, que é exposta
por Simias, discípulo de Filolau, em o Fédon platónico, o próprio Platão
objecta que, como harmonia, a alma não poderia ser imortal porque dependeria
dos elementos corpóreos, que se desagregam com a morte. E esta objecção
pareceu tão séria, que se negou que a doutrina da alma-harmonia fosse
concebida pelos Pitagóricos no sentido explicado por Platão e ela foi
reportada, ao invés, à interpretação de Claudiano Mamerto (De statu animae, H,
7; V. § 170) de que a harmonia é antes a convergência, quer dizer o vínculo
que une a alma e o corpo. Na verdade, se se sustenta o princípio pitagórico de
que a harmonia é número e o número é substância, a objecção platónica perde
,-valor- é a harmonia que determina e condiciona a
mescla dos elementos corpóreos, e não esta que é ,-,Condição daque!Ü

À doutrina da harmonia se liga a ética pitagórica com a sua definição da


justiça. A justiça é um número quadrado; consiste no número plano multiplicado
pelo número plano, porque dá o plano pelo plano. Por isto os Pitagóricos
designam-se com o quatro, que é o primeiro número quadrado, ou com o nove, que
é o primeiro número quadrado ímpar. No resto, a ética pitagórica é de carácter
religioso, sendo o seu preceito fundamental o de seguir a divindade e tornar-
se semelhante a ela. As máximas e prescrições de carácter prático que cons-

61

tituem o património ético da Escola não têm um significado filosófico especial


senão talvez na medida em que se começa a entrever nelas a subordinação da
acção à contemplação, da moral prática à sabedoria, que conseguirá a vitória
com o aristotelismo. O pitagorismo colocou a purificação da alma, que as
outras seitas viam nos ritos e práticas propiciatórias. na actividade
teorética, a única capaz de subtrair a alma à cadeia dos nascimentos e de a
reconduzir à divindade.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 12. Os testemunhos sobre Pitágoras em Dw^ cap. 14. As VU" de Pitágorw, de


Porfirio e de Jâmblico são úteis para o conhecimento da lenda de Pitágoras e
das doutrinas neopitagóricas e neoplatónicas, mas não para a reconstrução do
Pitágoras histórico. Sobre Pitágoras: GomPm, 108 sega.; BuRNET, 93 segs.;
ROSTAGNI, Il verbo <U Pitagora, Turim,
1924.

§13. Sobre as vicissitudes da escola pitagórIca: ROSTAGNI, Pita~ e i Pitag~ in


Timeo, In. "AtU dell'Acc. delle Scienze di Torino>, 1914. Os fragmentos de
Filolau In DiELs, cap. 44; de Arquitas In DIELS, cap. 47; de Alcméon In DIMs,
cap. 24. Sobre estes Pitagõricos: OLivmu, Civi;tâ greca negIt~ ~dionale,
Nápoles, 1931; VON MTZ, Pythagorcan Politics in Southem Itaiy, Nova-Iorque,
1940.

§ 14. Sobre a doutrina pitagórica: ZELLM, 1,


361 segs.; GompERz, 1, 180 segs.; BURNET, 317 segs.FRANK, Plato und die
Soge~nten Pythag~, Halle,
1923; RAVEN, Pythagoreiam and Ekatím, Cambridge,
1948; STRAINGE UNG, A Study of the Doctrine of Metempsychosis in Greoce from
Pythagora8 to Plato, Princeton, 1948.

62

IV

A ESCOLA ELEÁTICA

§ 16. CARÁCTER DO ELEATISMO

1 a escola jónica não aceitara o devir do mundo.' que se manifesta no nascer,


perecer e transformar das coisas, como um facto último e definitivo, porque
intentara descobrir, para 4 disso, a unidade e a permanência dá substância.
Não negara, todavia, a realidade do devir; Tal negação é obra da escola
eleática, que reduz o próprio devir a simples aparência e afirma que só a
substância é verdadeiramente Pela primeira vez, com a escola eleática, a
substância se torna por si mesma princípio -metafísico: pela primeira vez, é
ela dkÍ 1da_'_n_àõ como elemento corpóreo ou como número, mas tão só como
substância, como permanência e necessidade do ser enquanto ser. O carácter
normativo que a substância revestia na especulação de Anaximandro, que via
nela uma lei cósmica de justiça, carácter que fora expresso pelos Pitagóricos
no princípio que o número é o modelo das coisas, surge assumido como a própria
definição da subs-

63

tância por Parménides e pelos seus seguidores. Para eles a substância é o ser
que é e deve ser: é o ser na sua unidade e imutabilidade, que faz dele o único
objecto do pensamento, o único termo da pesquisa filosófica. O princípio_M
eleatismo marca uma etapa decisiva na história da filosofia, Ele pressupõe
indubitavelmente a pesquisa cosmológica dos jónicos e dos Pitagóricos, mas
subtrai-a ao seu pressuposto naturalista e trá-la pela primeira vez ao plano
ontológico em que deveriam enraizar-se os sistemas de Platão e de Aristóteles.

§ 17. XENÓFANES

Segundo os testemunhos de Platão (Sof., 242d) e de Aristóteles (Met., 1, 5,


986 b. 2l) a direcção peculiar da escola eleática fora iniciada por XENóFANEs
de Colófon, que foi o primeiro a afirmar a unidade do ser. Estes testemunhos
têm sido interpretados no sentido de que Xenófanes tinha fundado a escola
eleática; mas esta interpretação vai muito além do significado dos testemunhos
e é bastante improvável. O próprio Xenófanes nos diz (fr. 8, Diels), numa
poesia composta aos 92 anos, que há 67 anos percorria de ponta a ponta os
países da Grécia, e esta vida errante concilia-se mal com uma regular estadia
em Eleia, onde teria fundado a escola. A única prova da sua permanência em
Eleia é uma anedota contada por Aristóteles (Ret., 11, 26, 1400 b, 5): aos
Eleatas que lhe perguntavam se deveriam oferecer sacrifícios e lágrimas a
Leucoteia, teria ele retorquido: "Se a julgais uma deusa, -não deveis chorá-
la, Se a não julgais tal, não deveis oferecer-lhe sacrifícios". Tem-se, no
entanto, conhecimento de um longo poema em hexâmetros que Xenófanes teria
escrito acerca da fundação da sua cidade; mas tudo isto não é bas-

64

tante para provar a sua regular residência e a instituição de uma escola em


Eleia. Não é também certo que tenha exercido a profissão de rapsodo. De
seguro, sabemos que escreveu em hexâmetros e compôs elegias e jambos (Silloz)
contra Homero e Hesíodo. É improvável, finalmente, que Xenófanes tenha escrito
um poema filosófico, de que, com efeito, não se tem conhecimento preciso. Os
fragmentos teológicos e filosóficos que se costumam considerar como resíduos
desse poema podem muito bem fazer parte das suas sátiras, a cujo conteúdo se
referem.

O ponto de partida de Xenófanes, é uma crítica decidida ao antropomorfismo


religioso tal como se apresenta nas crenças comuns dos gregos e ainda como se
acha em Homero e em Hesíodo. "Os homens, diz ele, crêem que os deuses tiveram
nascimento e possuem uma voz e um corpo semelhantes aos seus" (fr. 14, Diels).
Pelo que os Etíopes representam os seus negros e de narizes achatados, os
Trácios dizem que têm olhos azuis e cabelos vermelhos, e até os bois, os
cavalos e os leões imaginariam. se pudessem, os seus deuses à sua semelhança
(fr. 16, 15). Os poetas encorajaram esta crença. Homero e Hesíodo atribuíram
aos deuses até aquilo que é objecto de vergonha e de censura entre os homens:
roubos, adultérios e enganos recíprocos. Na realidade, há uma só divindade
"que não se assemelha aos homens nem pelo corpo nem pelo pensamento" (fr. 23).
Esta única divindade identifica-se com o universo, é um deus-tudo, e tem o
atributo da eternidade: não nasce e não morre e é sempre a mesma. Com efeito,
se nascesse isso significaria que antes não era, ora o que não é, não pode
nascer nem fazer nascer coisa alguma. Xenófanes afirma sob forma teológica a
unidade e a imutabilidade do universo. Mas

65

medida parece-lhe difícil de compreender e, assim, pode ser entendida depois


de longa pesquisa,,, "Os deuses não revelaram tudo aos homens desde o
princípio, mas só procurando encontram, passado tempo, o melhor" (fr. 18). É o
reconhecimento explícito da filosofia como pesquisa.

Em Xenófanes encontram-se ainda assomos de investigações físicas: ele julga


que todas as coisas e até o homem são formadas de terra e água (fr. 29, 33);
que tudo vem da terra e tudo à terra regressa; mas estes elementos de um tosco
materialismo pouca ligação têm com o seu princípio fundamental. Há um aspecto
notável na sua obra de poeta: a sua crítica da virtude agonística dos
vencedores de jogos, que era tão altamente estimada pelos gregos, e a
afirmação da superioridade da sageza. "Não é justo antepor à sabedoria a mera
força corpórea" diz ele (fr. 1). Aqui, à virtude fundada na robustez física
aparece contraposta a virtude espiritual do sábio.

§ 18. PARMÉNIDES

O fundador do eleatismo é Parménides. A grandeza de Parménides é desde logo


evidente pela admiração que suscitou em Platão: este fez dele a personagem
principal do diálogo que marca o ponto crítico do seu pensamento e que é
dedicado a ele; aponta-o, em outra parte (Teet., 183 e), como "venerando e
terrível a um tempo".

Parménides era cidadão de Eleia ou Vélia, colónia focense situada na costa da


Campânia ao sul de Paestum. Segundo as indicações de Apolodoro, que coloca o
seu florescimento na 69.a Olimpíadas, teria nascido em 540-39; mas esta
indicação opõe-se ao testemunho de Platão segundo o qual Parménides tinha 65
anos quando, acompanhado por

66

Zenão, veio a Atenas e se encontrou com Sócrates, então muito jovem (Parm.,
127b; Teet., 183e; Sot., 217 c). Dada a grande elasticidade das indicações
cronológicas de Apolodoro, não há motivo para pôr em dúvida o rebatido
testemunho de Platão: daí deduzia-se como provável que Parménides tenha
nascido por volta de 516-11. Aristóteles cita dubitativamente a indicação que
Parménides tenha sido discípulo de Xenófanes; mas uma vez que é de excluir,
como se viu, que Xenófanes tenha fundado uma escola em Eleia, a indicação
aristotélica não significa provavelmente outra coisa senão queParménides
retomou a direcção de pensamento iniciada com Xenófanes.' Segundo outras
tradições (DioG. L., DC, 21; Diels, AI) Parménides foi educado na filosofia do
pitagórico Amenias e seguiu "vida pitagórica". É o primeiro a expor a sua
filosofia num poema em hexâmetros. Xenófanes também expusera em versos as suas
ideias filosóficas mas de forma ocasional, entremeando-as nas suas poesias
satíricas. Anaximandro, Anaxímenes e Heraclito haviam escrito em prosa. O
exemplo de Parménides será seguido somente por Empédocles. Do poema de
Parménides que, provavelmente, só em data posterior foi designado com o título
Acerca da natureza, restam-nos 154 versos.

O poema dividia-se em duas partes: a doutrina da verdade (alétheia) e a


doutrina da opinião (doxa). Nesta última parte, Parménides expunha as crenças
do homem comum, propondo-se, porém, realizar sobre elas um trabalho de
avaliação e normativo"Também isto aprenderás: como são verosimilmente as
coisas aparentes, para quem as examina em tudo e para tudo" (fr. 1, v. 31).
Por conseguinte, Parménides apresenta um conjunto de teorias físicas
provavelmente de inspiração pitagórica. Ao dualismo do limite e do ilimitado,
faz corresponder o da luz e das trevas que porventura não era des-

67

conhecido dos mesmos pitagóricos; e considera a realidade física como um


produto da mescla e ao mesmo tempo da luta destes dois elementos (fr. 9,
Diels). A oposição entre estes dois elementos foi interpretada, a partir de
Aristóteles, como oposição entre o quente e o frio. "Parménides, diz
Aristóteles, (Fís., 1, S. 188 a 20), toma como principio o quente e o frio que
ele chama, por isso, fogo e terra". Sob esta forma, o dualismo parmenídeo foi
retomado no Renascimento por Telésio. Mas esta parte do poema de Parménides em
que ele se limita a expor " as opiniões dos mortais" limitando-se a corrigi-
las conformemente a uma maior verosimilhança, parece ter simplesmente como
objectivo uma rectificação das opiniões correntes que, todavia, ficam
afastadas da verdade, visto que presistem no domínio das aparências.

a sua filosofia é o contraste entre a verdade e a aparência. "Só duas


vias de pesquisa se podem conceber. Uma é que o ser é e não pode não ser; e
esta é a via de persuasão porque é acompanhada da verdade. A outra, que o ser
não é e é necessário que não seja; e isto, digo-te, é um caminho em que
ninguém pode persuadir-se de nada" (fr. 4, Diels).: Pois que "um só caminho
resta ao discurso: que o ser é" (fr. 8). Mas este caminho não pode ser seguido
senão pela razão: uma vez que os sentidos, ao contrário, se detêm na aparência
e pretendem testemunhar-nos o nascer, o perecer, o mudar das coisas, ou seja
ao mesmo tempo o seu ser e o seu não-ser. - Na via da aparência é como se os
homens tivessem duas cabeças, uma que vê o ser, outra que vê o não-ser, e
erram por aqui e por ali como estultos e insensatos sem poderem ver claro em
coisa nenhuma. Parménides quer afastar o homem do conhecimento sensível, quer
desabituá-lo de se deixar dominar pelos olhos, pelos ouvidos e pelas palavras.
homem

68

deve julgar com a razão e considerar com ela as coisas distantes como se
estivessem diante dele.

Ora a razão demonstra facilmente que não se pode nem pensar nem exprimir o
não-ser. Não se pode pensar sem pensar alguma coisa; o pensar coisa nenhuma é
um não-pensar, o dizer coisa nenhuma é um não-dizer. O pensamento e a
expressão devem em todo caso ter um objecto e este objecto é o ser. Parménides
determina com toda a clareza o critério fundamental da validade do
conhecimento que deveria dominar toda a filosofia grega: o valor de verdade do
conhecimento depende da realidade do objecto, o conhecimento verdadeiro não
pode ser outra coisa senão o conhecimento do ser.

É este o significado das afirmações famosas de Parménides: "A mesma coisa é o


pensamento e o ser". (fr. 3, Diels). "A mesma coisa é o pensar e o objecto do
pensamento: sem o ser em que o pensamento é expresso não poderás encontrar o
pensamento, visto que nada há ou haverá fora do ser". (fr. 8, v. 34-37).

Ao ser que é objecto do pensamento, Parménides atribui os mesmos caracteres


que Xenófanes reconhecera no deus-tudo. Mas estes caracteres são por ele
reconduzidos à modalidade fundamental, que é a da necessidade: O ser é e não
pode não ser. (fr. 4, Diels) é a fiLosofia principal de Parménides: tese que
exprime o que é para ele o sentido fundamental do ser em geral e constitui o
princípio director da investigação racional. A necessidade a respeito do tempo
é eternidade, isto é, contemporaneidade, totum simul; a respeito do múltiplo é
unidade, a respeito do devir (ou seja do nascer e perecer) é imutabilidade
(fr. 8, 2-4, Diels). Parficularmente a éternidade não é concebida por
Parménides como duração temporal infinita mas como negação do tempo. "O ser
nunca foi nem

69

nunca será porque é agora todo de uma vez, uno e contínuo".

Parménides foi o primeiro que elaborou o conceito da eternidade como presença


total. o ser não pode nascer nem perecer, visto que deveria derivar do não-ser
ou dissolver-se nele, o que é impossível porque o não-ser não é. O ser é
indivisível porque é todo igual e não pode ser em um lugar mais ou menos que
em outro; é imóvel porque reside nos limites próprios; é finito porque o
infinito é incompleto e ao ser nada falta. O ser é completude e perfeição; e
neste sentido é justamente finitude. Como tal é assimilado por Parménides a
uma esfera homogénea, imóvel, perfeitamente igual em todos os pontos. "Por
conseguinte, visto que não tem um limite extremo, o ser é perfeito em todas as
partes. semelhante à massa arredondada de esfera igual do centro para todas as
suas partes" (fr. 8). Pelo que o ser é pleno, enquanto é todo presente a si
mesmo e em ponto nenhum falta a ou é deficiente de si; ele é auto-suficiência.

Algumas destas determinações, por exemplo a da plenitude, e a da assimilação à


esfera, fizeram pensar numa corporeidade do ser parmenídeo. De Zeller em
diante tem-se afirmado que nem Parménides nem os outros filósofos pré-
socráticos se elevaram à distinção entre corpóreo e incorpóreo: como se fosse
verosímil que os homens que atingiram tal altura de abstracção especulativa,
pudessem não ter realizado a primeira e mais pobre de tais abstracções, a
distinção entre o corpóreo e o incorpóreo. Na realidade a plenitude do ser
significa a sua auto-suficiência perfeita, pela qual o ser não falta ou não se
basta a si em alguma das suas partes; e a esfera não é, como o texto
demonstra, senão um termo de comparação de que Parménides se serve para
ilustrar a finitude do ser, cujos limites não são negatividade, mas perfeição.
No

70

entanto adoptou-se, para provar a corporeidade do ser parmenídeo, uma frase de


Aristóteles a qual diz que Parménides e Melissos "não admitiram nada mais que
substâncias sensíveis" (De coei., IH, 1,
298b, 21). Mas Aristóteles, que em certo ponto dissera primeiro que estes
filósofos não falam das coisas físicas", isto é, não se ocupam das substâncias
corpóreas, quer simplesmente dizer, com aquela frase, que eles não admitiram
as substâncias intelectuais (as inteligências celestes) a que, ainda segundo
ele, se podem referir a ingenerabilidade e a incompatibilidade que os Eleatas
afirmam do ser.,Na realidade, Parménides formulou pela primeira vez com
absoluto rigor lógico os princípios fundamentais da ciência filosófica que
muito mais tarde haverá de chamar-se ontologia.)

Com efeito, eles revelaram em ti a a sua-força lógica aquela necessidade


intrínseca do ser que já os filósofos jónicos e especialmente Anaximandro
haviam expresso no conceito de substância. Repetem-se nele, no entanto,
empregados para exprimirem a necessidade do ser, os mesmos termos de que se
servira Anaximandro: a lei férrea da justiça (dike) ou do destino (moira). "A
justiça não desaperta os seus grilhões e não permite que alguma coisa nasça ou
seja destruída, antes mantém com firmeza tudo o que é" (fr. 8, v. 6). Nada há
ou haverá fora do ser, uma vez que o destino o agrilhoou de maneira a que ele
permaneça inteiro e imóvel" (fr. 8, v. 36). A justiça e o destino não são,
aqui, forças míticas: são termos que servem para exprimir com evidência
intuitiva e poética a modalidade do ser, que não pode não ser.

Pela vez primeira o problema do ser foi posto por Parménides; como problema
metafísico-ontológico, quer isto dizer na sua generalidade máxima e não já tão
só como problema físico. A pergunta eque coisa é o ser?" a que Parménides quis
for-

71

mular a resposta, não é equivalente à pergunta "que coisa é a natureza?" para


que tinham procurado a resposta os filósofos precedentes e o próprio
Heraclito. O ser de que fala Parménides não é, em Primeiro lugar, somente o
da natureza, mas também o homem, as acções humanas, ou o de qualquer coisa
pensável, seja ela qual for; em segundo lugar, não tem relação directa com as
aparências naturais ou empíricas porque fica para além de tais aparências e
não constituí a estrutura, necessária, somente reconhecível pelo pensamento, A
caracterização desta estrutura é dada por Parménides recorrendo àquilo a que
hoje chamamos urna categoria de modalidade: a necessidade. O ser verdadeiro ou
autêntico, o ser de que não se pode duvidar e a que só o pensamento pode
convir é o ser necessário. "O ser é e não pode não ser". (fr. 4). É esta uma
resposta que a pesquisa ontológica haveria de dar à mesma pergunta durante
muitos e muitos séculos e que, de um certo ponto de vista, é ainda a única
resposta que ela pode dar. Uma sua consequência imediata é a negação do
possível: visto que o possível é o que pode não ser e, segundo Parménides, o
que podo não ser, não é. Com efeito, "não há nada, diz Parménides, que impeça
o ser de se alcançar a si mesmo" (fr. 8,
45): quer dizer, que o impeça de realizar-se na sua plenitude e perfeição. Os
Megáricos (§ 37) exprimiram a mesma coisa com o teorema "o que é possível
realiza-se, o que não se realiza não é possível".

A forma poética não é, no pensamento de Parménides, tão inflexível na sua


lógica rigorosa, uma vestimenta ocasional. É imposta pelo entusiasmo do
filósofo que na pesquisa puramente racional, que nada concede à opinião e à
aparência, reconheceu a via da redenção humana. Parménides é verdadeiramente
pitagórico-no sentido em que

72

o será Platão -pela sua convicção inabalável que só com a pesquisa


rigorosamente conduzida o homem pode chegar a salvo, em companhia da verdade.
A imagem, com que abre o poema de Parménides, do sábio que é transportado
por cavalos fogosos "intacto (asine) através de todas as coisas, sobre a
famosa via da divindade" (fr. 1), manifesta toda a força de uma convicção
iniciática, que acredita, não nos ritos ou mistérios mas unicamente no poder
da razão indicadora. E assim, pela primeira vez na história da filosofia, se
solvem na personalidade de Parménides ao mesmo tempo o rigor lógico da
pesquisa e o seu significado existencial. A "terribilidade" de Parménides
consiste justamente no extraordinário poder que a pesquisa racional adquire
com ele, enraizada como está na fé no seu fundamental valor humano. Vezes
houve em que se viu em Parménides o fundador da lógica: mas, é isto demasiado
pouco para ele. Se por lógica se entende uma ciência em si, que sirva de
instrumento à pesquisa filosófica, nada é mais estranho a Parménides que uma
lógica assim entendida. Mas se por lógica se entende a disciplina intrínseca à
pesquisa, enquanto se torna independente da opinião e assenta sobre um
princípio autónomo próprio, então verdadeiramente Parménides é o fundador da
lógica. Por outro lado, a pura técnica da pesquisa poderá tornar-se, com
Aristóteles, objecto de -uma ciência particular somente depois que Parménides
e Platão mostraram em acto todo o seu valor.

§ 19. ZENÃO

Discípulo e amigo de Parménides, Zenão de Eleia era (segundo Platão, Parm.,


127a) mais novo do que ele 25 anos: o seu nascimento, por conse-

73

guinte, deve ter ocorrido cerca de 489. Como a maior parte dos primeiros
filósofos, Zenão participou na política da sua cidade natal; parece que
contribuiu para o bom governo de Eleia e que sucumbiu corajosamente, à tortura
por ter conspirado contra um tirano (Diels, A 1). O próprio Platão (Parm., 128
b), nos expõe o carácter e o intento de um escrito, que devia ser a obra mais
importante de Zenão. 10 escrito era uma forma de reforço" da argumentação de
Parménides, dirigido contra os que procuravam apoucá-la aduzindo que, se a
realidade é uma. vemo-los enredados em muitas e ridículas contradições. O
escrito pagava-lhes na mesma moeda pois que tendia a demonstrar que a sua
hipótese da multiplicidade emaranhava-se, desenvolvida a fundo, em
dificuldades ainda maiores. O método de Zenão consistia, por conseguinte, em
reduzir ao absurdo a tese dos negadores da unidade do ser, conseguindo deste
modo confirmar a tese de Parménides.--4-
Precisamente em atenção a este método reconheceria Aristóteles em Zenão o
inventor da dialéctica (Dióg. L., VIII, 57). E, com efeito, a dialéctica é
para Aristóteles o raciocínio que parte não de premissas verdadeiras mas de
premissas prováveis ou que parecem prováveis. (Tóp., 1, 1, 100 b,
21 segs.); e as teses de que parte Zenão para as refutar parecem exactamente
prováveis em extremo. Hegel, ao invés, opina que a dialéctica de Zenão é uma
dialéctica imperfeita porque metafísica, e aproximou-a da dialéctica kantiana
das antinomias. Zenão ter-se-ia servido das antinomias para demonstrar a
falsidade das aparências sensíveis,'Kant para afirmar a verdade delas; pelo
que Zenão seria superior a Kant (Geschichte der Phil., ed. Glockner, I, p. 343
segs.). Os historiadores modernos preocuparam-se com determinar contra quem
foram dirigidas as refutações de Zenão; e a maioria vê

74

no pitagorismo o objecto destas refutações, na medida em que ele afirmava a


realidade do número, ou seja do múltiplo. Mas é difícil, como se viu 14),
supor que o número de que fala o pitagorismo seja um simples múltiplo: ele é
antes uma ordem e uma ordem mensurável. Nem é indispensável supor que Zenão
teve presentes as teses deste ou daquele filósofo: parece provável que ele
tenha esquematizado e fixado os fundamentos típicos de todo o pluralismo de
maneira a que a sua refutação valesse tanto contra o modo comum de pensar (a
doxa de Parménides), como contra os filósofos que estão de acordo com ele na
admissão do pluralismo.

Os argumentos de Zenão podem separar-se em


dois grupos. O primeiro grupo dirige-se contra a multiplicidade e a
divisibilidade das coisas. O segundo grupo dirige-se contra o movimento Se as
coisas são inscritas, diz Zenão, o seu número é ao mesmo tempo finito e
infinito: finito, porque elas não podem ser mais ou menos do que são;
infinito, porque entre duas coisas haverá sempre uma terceira e entre esta e
as outras duas haverá ainda outras e assim por diante (fr. 3, Diels). Contra a
unidade concebida como elemento real das coisas, Zenão observa que, se a
unidade tem uma grandeza, ainda que mínima, visto que em toda a coisa se acham
infinitas unidades. toda a coisa será infinitamente grande; ao passo que, se a
unidade não tem grandeza, as coisas que resultam dela serão privadas de
grandeza e portanto nada (fr. 1 e 2). O argumento vale ainda, evidentemente,
contra, a realidade da grandeza. No entanto, o espaço é real. Se tudo está no
espaço, o espaço, por sua vez, deverá estar em um outro espaço e assim até ao
infinito: isto é impossível e obriga a deduzir que nada está no espaço (Diels,
A 24). Contra a multiplicidade se dirige ainda o outro

75

argumento que se um moio de trigo causar rumor quando cai, todo o grão e toda
partícula de um grão deveriam causar um som: o que não acontece (Diels, A 29).
A dificuldade está aqui em compreender como é que diversas coisas reunidas
juntamente podem produzir um efeito que cada uma delas separadamente não
produz.

Mas os argumentos mais famosos de Zenão são os dirigidos contra o movimento


que nos foram conservados por: Aristóteles (Fís., VI, 9). O primeiro é o
argumento chamado da dicotomia: para ir de A a B, um móvel deve primeiro
efectuar metade do trajecto A-B, e, primeiro, metade desta metade; e assim por
diante até ao infinito; pelo que nunca mais chegará a B. O segundo argumento é
o de Aquiles: Aquiles (ou seja o mais veloz) nunca alcançará a tartaruga (ou
seja o mais lento), considerando que a tartaruga tem um passo de vantagem. Com
efeito, antes de alcançá-la, Aquiles deverá atingir o ponto de que partiu a
tartaruga, pelo que a tartaruga estará sempre em vantagem. O terceiro
argumento é o da seta. A seta, que parece estar em movimento, na realidade
está imóvel; com efeito, em cada instante a seta não pode ocupar senão um
espaço vazio igual ao seu comprimento e está imóvel com referência a este
espaço; e dado que o tempo é feito de instantes, durante todo o tempo a seta
estará imóvel. O quarto argumento é o do estádio. Duas multidões iguais,
dotadas de velocidades iguais, deveriam percorrer espaços iguais em tempos
iguais. Mas se duas multidões se movem ao encontro uma da outra desde
extremidades opostas do estádio, cada uma delas gasta, para percorrer o
comprimento da outra, metade do tempo que gastaria se uma delas estivesse
parada: do que Zenão extraía a conclusão que a metade do tempo é igual ao
dobro.

76

A intenção destes subtis argumentos, que amiúde têm sido chamados sofismas ou
cavilações até pelos filósofos que não têm mostrado muita habilidade a refutá-
los, é bastante clara. O espaço e o tempo são a condição da pluralidade e da
mudança das coisas: pelo que, se eles se revelam contraditórios, revelam que a
multiplicidade e a mudança são contraditórias e por isso irreais. Mas eles só
são contraditórios se se admitir (como Zenão considera inevitável) a sua
infinita divisibilidade: por isso esta infinita divisibilidade é assumida por
Zenão como pressuposto tácito dos seus argumentos. Aristóteles procurou,
portanto, refutá-lo negando sobretudo a infinita divisibilidade do tempo e
afirmando que as partes do tempo nunca são instantes, privados de duração, mas
têm sempre uma certa duração, ainda que mínima: assim já não seria impossível,
percorrer partes infinitas de espaço em um tempo finito. Esta refutação não
vale muito. Os matemáticos modernos, a partir de Russell (Principles of
Mathematics, 1903), tendem antes a exaltar Zenão precisamente por ter
admitido a possibilidade da divisão até ao infinito, que está na base do
cálculo infinitesimal. E pode admitir-se que os argumentos de Zenão, pelas
discussões que sempre suscitaram, hajam servido também para isto. Mas Zenão
não foi, decerto, um matemático, e aquilo com que se preocupava era muito
simplesmente a negação da realidade do espaço, do tempo e da multiplicidade.

§ 20. MELISSOS

Melissos de Samos, porventura discípulo de Parménides, foi o general que


destroçou a frota ateniense em 441-40 a.C.. É esta a única notícia que temos
da sua vida. (Plutarco, Per., 26), cuja

- 77

acmé é exactamente situada naquela data. Em um escrito em prosa Sobre a


natureza ou sobre o ser, Melissos defendia polemicamente a doutrina de
Parménides, especialmente contra Empédocles. e Leucipo. A prova da fundamental
falsidade do conhecimento sensível é, segundo Melissos, que este nos
testemunha ao mesmo tempo a realidade das coisas e a sua mudança. Mas se as
coisas fossem reais, não mudariam; e se mudam, não são reais. Não existem, por
conseguinte, coisas múltiplas, mas tão -só a unidade (fr. 8, Diels). Como
Zenão polemizava de preferência contra o movimento, assim Melissos polemiza de
preferência contra a mudança. " Se o ser mudasse ainda só o equivalente a um
cabelo em dez mil anos, seria inteiramente destruido na totalidade do tempo"
(fr. 7).

Em dois pontos todavia, Melissos modifica a doutrina de Parménides. Parménides


concebia o ser como uma totalidade finita e intemporal; o ser vive, segundo
Parménides, somente no agora, como uma totalidade simultânea, e é finito na
sua completude. Melissos concebe a vida do ser como uma duração ilimitada; e
afirma por isso a infinidade do ser no espaço e no tempo. Ele compreende a
eternidade do ser com infinidade de duração, como "o que sempre foi e sempre
será" e não tem, por conseguinte, nem princípio nem fim. Consequentemente,
admite a infinidade de grandeza do ser: "Visto que o ser é sempre, deve ser
sempre de infinita grandeza" (fr. 3). Esta modificação de uma das teses
fundamentais de Parménides e talvez a outra afirmação de Melissos, que o ser é
pleno e que o vazio não existe (fr. 7), sugeriram a Aristóteles a observação
que " Parménides tratou do uno segundo o conceito, Melissos segundo a matéria"
(Met., 1, 5, 986 b, 18). Tanto mais relevo adquire, por isso, a afirmação
decidida, feita por Melissos da incorporeidade do ser. "Se é, necessi-

78

ta-se absolutamente que seja uno; mas se é uno não pode ter corpo, porque se
tivesse um corpo teria partes e já não seria uno" (fr. 9). Os críticus
modernos, que afirmaram a corporeidade do ser parmenídeo (que é excluída pela
própria formulação que os Eleatas dão ao problema), atribuem a negação de
Melissos a algum particular elemento, cuja realidade, ao que supõem, Melissos
discutisse. Mas mesmo no caso de Melissos ter em mente uma hipótese
particular, o significado da sua afirmação não muda: o que é corpo tem partes,
portanto não é uno: portanto não é. A negação da realidade corpórea está
implícita para Melissos, como para Parménides e para Zenão, na negação da
multiplicidade e da mudança e no repúdio da experiência sensível como via de
acesso à verdade.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 16. Sobre o carácter do eleatismo: ZELLER-NESTLE, 1 167 segs., que todavia


está dominada pela preocupação de atribuir aos Eleatas a doutrina da
corporeidade do ser, preocupação que não dá a perceber o valor especulativo do
eleatismo e o seu significado histórico como antecedente necessário da
ontologia platónica e aristotélica. Os fragmentos e os testemunhos foram
traduz. para o ltal. por PILo ALBERTELLI, Os Eleatas, Bari, 1939; ZÁFIROPULO,
L' école Mate: Parménide, Zénon, Melissos, Paris, 1950; G. CALOGERO, StUdi
sWI'eleatismo, Roma, 1932; La logica del secondo eleatismo, in "Atene e Roma>,
1936, p. 141 segs. Conf. também A. CApizzi, recenti studi sull'eleatismo, in
"lrtwsegna di filosofia", 1955, p. 205 segs.

§ 17. Os fragmentos de Xenófanes em DrELS, cap. 21.-ZELLER-NEsTLE 1, 640


segs.; GompERz, 1,
667 segs.; BORNET, 126 seg.; HEIDEL, Hecataeus and Xenophanes, In "American
Journal of Philology", 1943.

§ 18. Os fragmentos de Parménides in DIELS, cap. 28. Sobre Parménides é


fundamental: REINHARDT, Parménides, Bonn, 1916. Vejam-se ainda as belas pági-

79

nas dedicadas a Parménides por JAEGm, Paidéia, trad, ltal., 276 segs.. E além
disso M. UNTERSTEINER, Parménide. Te8timonta=e e framm-entí, Florença, 1958,
com uma larga introdução que refunde e rectifica os precedentes estudos do
autor. Os pontos típicos da Interpretação de Understeiner são os seguintes: 1)
o ser de Parinénides seria uma totalidade, não uma unidade, uma vez que a
unidade (como a continuidade) constituiria uma referência ao plano empírico ou
temporal e estaria, por conseguinte, em oposição com a eternidade do ser; 2)
Parménides; não diria (fr. 6. Diela). c0 ser, o nko-ser não é"; mas
diria"Existe o dizer e o Intuir o ser, e ao Invés não existe o dizer e o
intuir o nada": no sentido que o próprio método da pesquisa acabaria por criar
o ser. Sobre as dificuldades filo16gicas desta subtil e porventura demaqiado
moderna Interpretação efri J. BRUNSCHWIG, in "Revue Philosophique>, 1962, p.
120 sega. Do ponto de vista filosófico tem o inconveniente de descurar
completamente o carácter fundamental do ser parmenideo, a necessidade.

§ 19. Os fragmentos de Zenão In DmU, cap. 29. A discussão de Aristótelos está


In Fís., VI, 2-9; ZELLER-NEsTLE, 1, 742 sega.; GoMPERz, 1, 205 segs.; BURNET,
356 segs. Sobre os argumentos contra o movimento: BROCHARD. Études de philos.
anc. et de Philos. moderne, Paris, 1912.

§ 20. Os fragmentos de Melíssos, In cap. 30.-ZELLER-NEsTLE, 1, 775 seg.;


Gomp=, I,
198 segs.; BURNET, 368 segs.; ZELLER e BURNET, defensores do carácter
materialista do ser parmenídeo, são os autores da interpretação do fragmento 9
de Meilisaos discutida no texto.

80

OS FISICOS POSTERIORES

§ 21. EMPÉDOCLES

O eleatismo, declarando aparente o mundo do devir e ilusório o conhecimento


sensível que lhe concerne, não afastou a filosofia grega da investigação
naturalista. Esta continua de acordo com a tradição iniciada pelos Jónicos,
mas não pode deixar de ter em conta as conclusões do eleatismo. A afirmação de
que a substância do mundo é uma só e que ela é o ser, não permite salvar a
realidade dos fenómenos e explicá-los.Se quiser reconhecer-se que o mundo do
devir existe em certos limites reais, deve admitir-se que o princípio da
realidade não é único mas múltiplo. Nesta via se põem os físicos do século V.
buscando a aplicação do devir na acção de uma multiplicidade de elementos,
qualitativamente ou quantitativamente diversos.

Empédocles, de Agrigento nasceu ao redor de


492 e morreu mais ou menos aos sessenta anos. Filho de Metão, que tinha um
lugar importante no governo democrático da cidade, participou na vida

81

política e foi ao mesmo tempo médico, dramaturgo e homem de ciência. Ele


próprio apresenta a sua doutrina como um instrumento eficaz para dominar as
forças naturais e até para chamar do Hades a alma dos defuntos (fr. 111,
Diels). A sua figura de mago (ou de charlatão) é realçada pelas lendas que se
formaram acerca da sua morte. Os seus partidários disseram que tinha subido ao
céu durante a noite; os seus adversários, que se precipitara na cratera do
Etna para ser julgado um deus (Diels, A 16). Empédocles foi, depois de
Parménides, o único filósofo grego que expôs em verso as suas doutrinas
filosóficas. O seu exemplo não foi seguido na antiguidade senão por Lucrécio,
o qual lhe dedicou um magnífico elogio (De nat. rer., 1,
716 segs.). Restaram dele fragmentos mais abundantes que de qualquer outro
filósofo pré-socrático, pertencentes a dois poemas. Sobre a natureza e
Purificações: o primeiro é de carácter cosmológico, o segundo é de carácter
teológico e inspira-se no orfismo e no pitagorismo.

Empédocles é conhecedor dos limites do conhecimento humano. Os poderes


cognoscitivos do homem são limitados; o homem vê só uma pequena parte de uma
"vida que não é vida" (porque passa de fulgida) e conhece só aquilo com que
por acaso topa. Mas justamente por isto não pode renunciar a nenhum dos seus
poderes cognoscitivos: é necessário que se sirva de todos os sentidos e ainda
do intelecto, para ver todas as coisas na sua evidência. Como Parménides,
Empédocles considera que o ser não pode nascer nem perecer; mas à diferença de
Parménides quer explicar a aparência do nascimento e da morte e explica-a
recorrendo ao combinar-se e separar-se dos elementos que compõem a coisa.A
união dos elementos é o nascimento das coisas, a sua desunião a morte.1 Os
elementos são quatro: fogo, água, terra e ar. O nome "elemento"

82

só mais tarde, com Platão, aparece na terminologia filosófica: Empédocles,


fala de "quatro raízes de todas as coisas". Estas quatro raízes são animadas
por duas forças opostas: o Amor (Philia) que tende a uni-las; a Desavença ou
ódio (Neikos) que tende a desuni-las.',O Amor e a Desavença são duas forças
cósmicas de natureza divina, cuja acção se alterna no universo, determinando,
com tal alternância, as fases do ciclo cósmico.

Há uma fase em que o Amor domina completamente e é o Sfero no qual todos os


elementos são unificados e enlaçados na mais perfeita harmonia. Mas nesta fase
não há nem o sol nem a terra nem o mar, porque não há mais que um todo
uniforme, uma divindade que goza da sua soledade (fr. 27, Diels). A acção da
Desavença rompe esta unidade e começa a introduzir a separação dos elementos.
Mas nesta fase a separação não é destrutiva: até certo ponto, ele determina a
formação das coisas que existem no nosso mundo, o qual é produto da acção
combinada das duas forças e fica a meio caminho do reino do Amor e do reino do
ódio. Continuando o ódio a agir, as próprias coisas se dissolvem e tem-se o
reino do caos: o puro domínio do ódio. -Mas então cabe de novo ao Amor
recomeçar a reunificação dos elementos: a meio caminho ter-se-á novamente o
mundo actual, mesclado de ódio e de amor e finalmente regressar-se-á ao Sfero:
no qual recomeçará um novo ciclo. Aristóteles observou (Met., 1. 4, 985 a, 25)
Que Empédocles não é coerente porque admite ao mesmo tempo que o Amor crie o
mundo numa volta e o destrua na outra; e assim o (dioJ Mas Aristóteles faz
esta observação porque identifica o Amor e o ódio respectivamente com o Bem e
o Mal (1b., 985 a, 3). Em Empédocles, tal identificação não existe. Empédocles
está bem longe de admitir que o Amor, e só o Amor, é o princípio

83

do Cosmos: como Heraclito está convencido que a divisão dos elementos, o ódio,
a luta, têm uma parte importante na constituição do mundo. "Estas duas coisas,
escreveu ele, são iguais e igualmente originárias e tem cada uma o seu valor e
o seu carácter e predominam alternadamente no volver do tempo" (fr. 17, v. 26,
Diels).

Os quatro elementos e as duas forças que os movem são ainda as condições do


conhecimento humano. O princípio fundamental do conhecimento é que o
semelhante se conhece com o semelhante. "Nós conhecemos a terra com a terra, a
água com a água, o éter divino com o éter, o fogo destruidor com o fogo, o
amor com o amor e o ódio funesto com o ódio" (fr. 109).' O conhecimento
realiza-se por meio do encontro entre o elemento que existe no homem e o mesmo
elemento que existe no exterior do homem. Os eflúvios que provêm das coisas
produzem a sensação quando se aplicam aos poros dos órgãos dos sentidos pela
sua grandeza;'de outro modo passam despercebidos (Diels, A 86). Empédocles não
faz qualquer distinção entre o conhecimento dos sentidos e o do intelecto;
também este último se realiza da mesma maneira por um encontro dos elementos
externos e internos.

Em as Purificações Empédocles retoma a doutrina órfico-pitagórica da


metempsicose. Há uma lei necessária de justiça, que faz expiar aos homens,
através de uma série sucessiva de nascimentos e de mortes, os pecados de que
se mancharam (fr. 115). Empédocles apresenta esta doutrina como o seu destino
pessoal: "Fui em dada época menino e menina, arbusto e pássaro e silencioso
peixe do mar" (fr. 117). E lembro saudosamente a felicidade da antiga morada:
"De que honras, de que alturas de felicidade eu caí para errar aqui, sobre a
terra, entre os mortais" (fr. 119).

84

§ 22. ANAXÁGORAS

Anaxágoras de Clazómenes, nascido em 499-98 a.C. e falecido em 428-27, é


apresentado pela tradição como um homem de ciência absorto nas suas
especulações e alheio a toda actividade prática. Para poder ocupar-se das suas
investigações cedeu todos os seus haveres aos parentes. Interrogado acerca da
finalidade da sua vida respondeu orgulhosamente que era viver "para contemplar
o sol, a lua e o céu". Aos que o exprobravam por nada lhe importar a sua
pátria respondeu: "A minha pátria importa-me muitíssimo", indicando o céu com
a mão (Diels, A 1). Foi o primeiro a introduzir a filosofia em Atenas, que
era então governada por Péricles, 1 de quem foi amigo e mestre; mas,
acusado de impiedade pelos inimigos de Péricles e forçado a regressar à Jónia,
fixou residência em Lampsaco. Restam-nos alguns fragmentos do primeiro livro
da sua obra Sobre a natureZa.
- > 1 Também Anaxágoras aceita o principio de Parménides da substancial
imutabilidade do ser.'!"A respeito do nascer e do perecer, diz ele (fr. 17),
os gregos não têm uma opinião exacta.)Nenhuma coisa nasce e nenhuma perece,
mas todas se compõem de coisas já existentes ou se decompõem nelas. A E assim
se deveria antes chamar reunir-se ao nascer e separar-se ao perecer". Como
Empédocles, admite que os elementos são qualitativamente distintos uns dos
outros, mas à diferença de Empédocles, considera que esses elementos são
partículas invisíveis que denomina sementes.1 Uma consideração filosófica está
na base da sua doutrina. Nós utilizamos um alimento simples e de uma só
espécie, o pão e a água, e deste alimento formam-se o sangue, a carne, as
peles, os ossos, etc. É preciso, portanto, que no alimento se encontrem as
partículas geradoras de todas as partes do nosso

85

corpo, partículas visíveis à mente., Anaxágoras substituiu assim como


fundamento da física a consideração cosmológica pela consideração biológica.
As partículas elementares, na medida em que são semelhantes ao todo que
constituem, foram chamadas por Aristóteles homeomerias, -- -
- - A primeira característica das sementes ou homeomerias é a sua infinita
divisibilidade, a segunda característica é a sua infinita agregabilidade.
Por outras palavras não se pode, segundo Anaxágôras, chegar a elementos
indivisíveis com a divisão das sementes, como não se pode chegar a um todo
máximo com a agregação das sementes, todo tal que não seja possível haver
maior. Eis o fragmento famoso em que Anaxágoras exprime este conceito: "Não há
um grau mínimo do pequeno mas há sempre um grau menor, sendo impossível que o
que é deixe de ser por divisão. Mas também do grande há sempre um maior. E o
grande é igual ao pequeno em composição. Considerada em si mesma, toda a coisa
é a um tempo pequena e grande" (fr. 3, Diels).'Como se vê, a infinita
divisibilidade, que Zenão assumia para negar a realidade . das coisas, é
assumida por Anaxágoras como a própria essência da realidade. 1 A importância
matemática deste conceito é evidente. Por um lado, a noção que se possa obter
sempre por divisão, uma quantidade mais pequena do que toda a quantidade dada,
é o conceito fundamental do cálculo infinitesimal. Por outro lado, que toda a
coisa possa ser. chamada grande ou pequena conformemente ao processo de
divisão ou de composição por que está envolvida, é uma afirmação que implica a
relatividade dos conceitos de grande e pequeno.

Uma vez que nunca se chega a um elemento último e indivisível, também jamais
se alcança, segundo Anaxágoras, um elemento simples, isto é, um elemento
qualitativamente homogéneo que seja,

86

por exemplo, somente água ou somente ar. "Em toda a coisa diz ele, há
sementes de todas as coisas" (fr. 11). A natureza de uma coisa é deterninada
pelas sementes que nela prevalecem: parece ouro aquela em que prevalecem as
partículas de ouro, embora haja nela partículas de todas as outras
substâncias.

No princípio as sementes estavam mescladas entre si desordenadamente e


constituíam uma multidão infinita, quer no sentido da grandeza do conjunto,
quer no sentido da pequenez de qualquer parte sua. NEsta mistura caótica em
imóvel; para nela introduzir o movimento e a ordem interveio o Intelecto (fr.
12). Para Anaxágoras o Intelecto está totalmente separado da matéria
constituída pelas sementes. Ele é simples, infinito e dotado de força própria;
e serve-se desta força para operar a separação dos elementos. Mas porque as
sementes são divisíveis até ao infinito, a separação de partes operada pelo
Intelecto não elimina a mescla: e assim agora como no principio "todas as
coisas estão juntas" (fr. 6). Pode perguntar-se, a ser assim, em que coisa
consiste a ordem que o Intelecto dá ao universo. A resposta de Anaxágoras é
que esta ordem consiste na relativa prevalência, que as coisas do mundo
mostram, de uma certa espécie de sementes: por exemplo, a água é assim porque
contém uma prevalência de sementes de água, embora contenha ainda sementes de
todas as outras coisas. Por esta prevalência, que é o efeito da acção
ordenadora do Intelecto, se determina ainda a separação e a oposição das
qualidades, por exemplo do raro e do denso, do frio e do quente, do escuro e
do lunÍnoso, do húmido e do seco (fr. 12, Diels). ,: 1 Empédocles explicara o
conhecimento por meio do princípio da semelhança: Anaxágoras explica-o por
meio dos contrários. Nós sentimos o frio pelo quente, o doce pelo amargo e
toda a qualidade pela

87

qualidade oposta. Visto que toda a dissenção acarreta dor, toda a sensação é
dolorosa e a dor acaba por se sentir com a longa duração ou com o excesso da
sensação (Diels, A 29).

A própria constituição das coisas introduz um limite no nosso conhecimento;


não podemos perceber a multiplicidade das sementes que constituem cada uma
delas: pois que Anaxágoras diz que "a fraqueza dos nossos sentidos impede-nos
de alcançar a verdade" (fr. 21 a); e, com efeito, os sentidos mostram-nos as
sementes que predominam na coisa que está ante nós e fazem-nos perceber a sua
constituição interna.

A importância de Anaxágoras reside em ter ele afirmado um princípio


inteligente como causa da ordem do mundo. Platão (Féd. 97 b) elogia-o por isto
e Aristóteles diz dele pelo mesmo motivo: "Aquele que disse: "Também na
natureza, como nos seres viventes, há um Intelecto causa da beleza e da ordem
do universo", fez figura de homem sensato e os predecessores, em comparação
com ele, parecem gente que fala à toa" (Met., 1, 3,
984 b). Mas Platão confessa a sua desilusão ao constatar que Anaxágoras não se
serve do intelecto para explicitar a ordem das coisas e recorre aos elementos
naturais, e Aristóteles diz de maneira análoga (lb., 1, 4, 985 a, 18) que
Anaxágoras utiliza a inteligência como se se tratasse de um deus ex machina
todas as vezes que se vê embaraçado para explicar qualquer coisa por meio das
causas naturais, ao passo que nos outros casos recorre a tudo, excepto ao
Intelecto. Platão e Aristóteles indicaram assim, com toda a justiça, a
importância e os limites da concepção de Anaxágoras. Contudo, permanecendo
embora preso ao método naturalista da filosofia jónica, Anaxágoras inovou
radicalmente a concepção do mundo próprio daquela filosofia,

88

admitindo uma inteligência divina separada do mundo e causa da ordem deste.

§ 23. OS ATOMISTAS

A escola de Mileto não findou com Anaxímenes; de Mileto provém ainda Leucipo
(se bem que alguns escrapres antigos afirmem, ser de Eleia ou de Abdera o
fundador do atomismo, que pode considerar-se o último e mais maduro fruto da
pesquisa naturalista iniciada com a escola de Mileto. Sabe-se tão pouco de
Leucipo que até foi possível duvidar da sua existência. Epicuro (Diels, 67, A
2) diz que nunca houve um filósofo com este nome; e esta opinião foi também
retomada por historiadores recentes. Segundo testemunhos antigos, foi
contemporâneo de Empédocles e de Anaxágoras e discípulo de Parménides. Os seus
escritos devem ter-se confundido com os de Demócrito a quem se unira para
indicar os dois fundadores do atomismo antigo.

Demócrito de Abdera foi o maior naturalista do seu tempo. contemporâneo de


Platão, pelo qual, todavia, nunca foi nomeado. Ele próprio nos diz (fr. S.
Dieis) que era ainda jovem, quando Anaxágoras era velho; o seu nascimento
situa-se em 460-59 a.C.. Das muitas obras que têm o seu nome, e de que temos
numerosos fragmentos, O grande ordenamento, O pequeno ordenamento, Sobre a
inteligência, Sobre as formas, Sobre a bondade da alma, etc., nem todas são,
muito provavelmente, devidas a ele; algumas expõem a doutrina geral da escola.
A fama de Demócrito como homem de ciência fez com que a sua figura fosse
estilizada na de um sábio completamente distraído da prática da vida. Horácio
(Ep., 1, 12, 12) conta que rebanhos de gado devastavam, pastando, os campos de

89

Demócrito, enquanto a mente do sábio errava por sítios remotos. Na partilha da


rica herança paterna quis que a sua parte fosse em dinheiro e assim recebeu
menos, tendo gasto tudo nas suas viagens ao Egipto e junto dos Caldeus. Quando
o pai ainda era vivo, costumava recolher-se a um casinhoto campestre que
servia também de estábulo, e aqui ficou uma vez sem reparar num boi que o pai
lá prendera à espera de ele o levar ao sacrifício (Diels, 68, A 1). O espírito
levemente zombeteiro desta anedota desenha-o como o tipo do sábio distraído.

Parece que Leucipo lançou os fundamentos da doutrina e que Demócrito,


desenvolveu depois estes fundamentos quer na pesquisa física quer na pesquisa
moral. Os atomistas concordam com o princípio fundamental do eleatismo de que
só o ser é mas decidem reportar este principio à experiência sensível e
servir-se dela para explicar os fenómenos. Assim é que conceberam o ser como o
pleno, o não-ser como o vazio e consideram que o pleno e o vazio são os
princípios constitutivos de todas as coisas.! Todavia, o pleno não é um todo
compacto: é formado por um número infinito de elementos que são invisíveis
pela pequenez da sua massa. Se estes elementos fossem divisíveis até ao
infinito, dissolver-se-iam no vazio; devem, por conseguinte, ser indivisíveis,
e por isso são chamados átomos., Só os átomos
são eternamente contínuos, os outros corpos não são contínuos porque resultam
do simples contacto dos átomos e podem, por isso, ser divididos. A diferença
entre os átomos não é qualitativa como a das sementes de Anaxágoras, mas
quantitativa. Os átomos não diferem entre si por natureza mas tão somente por
forma e grandeza. Eles determinam o nascimento e a morte das coisas pela união
e pela desagregação; determinam a diversidade e a mudança delas pela sua ordem

90

e pela sua posição. 1 Segundo a comparação de Aristóteles (Met., 1, 4, 985 b),


são semelhantes às letras do alfabeto; que diferem entre si pela forma e dão
origem a palavras e a discursos diversos dispondo-se e combinando-se
diversamente. Todas as qualidades dos corpos, dependem, portanto, ou da figura
dos átomos ou da ordem e da combinação deles, Pelo que nem, todas as
qualidades sensíveis são objectivas, quer dizer não pertencem verdadeiramente
às coisas que se provocam em nós. São objectivas as qualidades próprias dos
átomos: a forma, a dureza, o número, o movimento; ao contrário o frio, o
calor, os sabores, os odores, as cores são simplesmente aparências sensíveis,
provocadas, é certo, por especiais figuras ou combinações de átomos, mas não
pertencentes aos próprios átomos (fr. 5).

Todos os átomos são animados de um movimento espontâneo, pelo qual se chocam e


ricocheteiam dando ou em ao nascer, ao perecer e ao mudar de coisas Mas o
movimento é determinado por leis imutáveis. "Nenhuma coisa, diz Leucipo (fr.
2), acontece sem razão, antes tudo acontece por uma razão e necessariamente".
O movimento originário dos átomos, fazendo-os girar e chocar-se em todas as
direcções, produz um vértice, do qual as partes mais pesadas são arrastadas
para o centro e as outras são, ao contrário, repelidas para a periferia. O
seu peso, que as faz tender para o centro, é portanto um efeito do movimento
vertical em que são arrastadas. Desta maneira se formaram infinitos mundos que
incessantemente se geram e se dissolvem.

O movimento dos átomos explica também o conhecimento humano. A sensação nasce


da imagem (idõla) que as coisas produzem na alma por meio de fluxos ou
correntes de átomos que emanam delas. Toda a sensibilidade se reduz por isso
ao tacto;

91

porque todas as sensações são produzidas pelo contacto, com o corpo do homem,
dos átomos que provêm das coisas. Mas o próprio Demócrito não se satisfaz com
este conhecimento, ao qual está necessariamente limitado. "Em
verdade, diz ele, nada sabemos de nada, pois a opinião vem de fora
para cada qual" (fr. 7). "É preciso conhecer o homem com estes critérios: que
a verdade fica longe dele" (fr. 6). E, com efeito, as sensações de que deriva
todo o conhecimento humano mudam de homem para homem, mudam até no mesmo homem
conforme as circunstâncias, pelo que não fornecem um critério absoluto do
verdadeiro e do falso (Diels,
68 A 112). Estas limitações não respeitam, contudo, ao conhecimento
intelectual. Ainda que sujeito às condições físicas que se observam no
organismo (Diels, 68 A 135), este conhecimento é, todavia, superior à
sensibilidade, porque permite captar, para lá das aparências, o ser do mundo:
o vazio, os átomos e o seu movimento. Aí onde termina o conhecimento sensível
que, quando a realidade se subtiliza e tende a resolver-se nos seus últimos
elementos, se torna ineficaz, começa o conhecimento racional, que é um órgão
mais subtil e alcança a própria realidade (Demócr., fr. 11). A antítese entre
conhecimento sensível e conhecimento intelectual é assim talhada como a que
existe entre o carácter aparente e convencional das qualidades sensíveis e a
realidade dos átomos e do vazio. "Por convenção fala-se, diz Demócrito (fr.
125), de cor, de doce, de amargo; na realidade, há só átomos e vazio". Desta
maneira, correspondentemente ao contraste entre aparência e realidade, se
mantém no atomismo o contraste entre conhecimento sensível e conhecimento
intelectual, não obstante a sua comum redução a factores mecânicos; e ambos
estes contrastes são inferidos do eleatismo.

92

O atomismo representa a redução naturalista do eleatismo. Fez sua a proposição


fundamental do eleatismo: o ser é necessidade; mas compreendeu esta proposição
no sentido da determinação causal. Parménides exprimia praticamente o sentido
da necessidade às noções de justiça ou de destino.
O atomismo identifica a necessidade com a acção das causas naturais. Do
eleatismo, o atomismo infere ainda a antítese entre realidade e aparência; mas
esta própria antítese é conduzida ao plano da natureza e a realidade de que se
fala é a dos elementos indivisíveis da própria natureza. O resultado destas
transformações, que vai além das intenções dos próprios atomistas, é o começo
da constituição da pesquisa naturalista como disciplina em si; e da distinção
da pesquisa filosófica como tal. A constituição de uma ciência da natureza
como disciplina particular, tal como aparece em Aristóteles, é preparada pela
obra dos atomistas, que reduziram a natureza a pura objectividade mecânica,
com a exclusão de qualquer elemento mítico ou antropomórfico. A prova desta
inicial separação da ciência da natureza da ciência do homem temo-la no facto
de Demócrito não estabelecer qualquer relação intrínseca entre uma e a outra.

A ética de Demócrito não tem, de facto, relação alguma com a sua doutrina
física. O mais elevado bem para o homem é a felicidade; e esta não reside nas
riquezas, mas somente na alma (fr. 171). Não são os corpos e a riqueza que nos
tornam felizes, mas sim a justiça e a razão, e aí onde falta a razão, não se
sabe fruir a vida nem superar o terror da morte. Para os homens a alegria
nasce da medida do prazer e da proporção da vida: os defeitos e os excessos
tendem a perturbar a alma e a gerar nela movimentos intensos. E as almas que
se movimentam de um extremo ao outro, não são constantes nem contentes (fr.
191).

93

A alegria espiritual, a ataymia, não tem por conseguinte nada que ver com o
prazer (edoné): "o bem e o verdadeiro-diz Demócrito-são idênticos para todos
os homens, o prazer é diferente para cada um deles (fr. 69). Pelo que o prazer
não é bem em si mesmo: necessário é que sejha somente o que procede do belo
(fr. 207). A ética de Demócrito está, assim, a grande distância da do
hedonismo que poderíamos aguardar Como corolário do seu naturalismo teorético.
Pelo contrário, ao decidido objectivismo que é a directriz de Demócrito no
domínio da pesquisa naturalista corresponde, na ética, um igualmente decidido
subjectivismo moral. O guia da acção moral é, segundo Demócrito, o respeito
(aidos) para consigo mesmo. "Não deves ter respeito pelos outros homens mais
que por ti próprio, nem proceder mal quando ninguém o saiba mais que quando o
saibam; mas deves ter por ti mesmo o máximo respeito e impor à tua alma esta
lei: não fazer aquilo que não se deve fazer" (fr. 264). Aqui a lei moral está
colocada na pura interioridade da pessoa humana, que ao invés se faz lei a si
própria mediante o conceito de respeito para consigo mesmo. Este conceito,
fundamental para compreender o valor e a dignidade humana, substitui o velho
conceito grego do respeito para com a lei da polis, e mostra como a pesquisa
moral de Demócrito se move em direcção antitética da sua pesquisa física e
como, por isso, se iniciou a diferenciação da ciência natural da filosofia.

Um outro traço é notável na ética de Demócrito: o cosmopolitismo. "Para o


homem sábio diz ele-toda a terra é utilizável, porque a pátria da alma
excelente é todo o mundo" (fr. 247). Reconhece, todavia, o valor do estado e
diz que nada é preferível a um bom governo, uma vez que o governo abrange
tudo: se ele se mantém, tudo

94

se mantém; se ele cai tudo perece (fr. 252). E declara que é necessário
preferir viver pobre e livre numa democracia a viver rico e escravo numa
oligarquia (fr. 251). A superioridade que ele atribui à vida exclusivamente
dedicada à pesquisa científica torna-se evidente pelas suas ideias sobre o
matrimónio. Este é condenado por ele, na medida em que se funda sobre as
relações sexuais que diminuem o domínio do homem sobre si mesmo, e na medida
em que a educação dos filhos impede a dedicação aos trabalhos mais
necessários, enquanto o sucesso da sua educação continua duvidoso. Aqui a
preocupação de Demócrito é evidentemente a de salvaguardar a disponibilidade
do homem para consigo mesmo que torna possível o empenho na pesquisa
científica.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 21. Os fragmentos de Empédocles, in Diels, cap. 31. - ZELLER-NESTLE, 1, 939


segs.; GoMPERZ, I,
241 segs.; BURNET, 229 segs.; BIGNONE, Empédocle ,(estudo, crítico, trad. e
comentário dos testemunhos e dos fragmentos), Turim, 1916; G. COLLI, E.; Diza,
1949; W. KRANZ, E.; Zurique, 1949; J. ZAFIRO PAULO, E. de Agrigento. Paris,
1953; G. NÉLOD, E. de Agrigento, Bruxelas, 1959.

§ 22. Os fragmentos de Anaxágoras, in D=, cap. 59-ZELLER-NESTLE, 1, 1195,


segs.; GomPERZ, I,
222 segs.; BURNET 287 segs.; CLEVE, The Philosophy of Anaxagoras. An Attempt
at Reconstruction, Nova-lorque, 1949.

§ 23. Os fragmentos dos atomistas, in DIELS, cap. 67 (Lepcipo) e cap. 68


(Demócrito), trad. para o italiano por V. E. ALFIERI, Bafi, 1936. Negou a
existência de Leucipo: R.HODE, Meine Schriften, 1, 205, em 1881. Contra ele:
DIELS, in "Rhein. Mus." 1887,
1 segs.. Sobre outros desenvolvimentos do problema: HOWALD, Festchrift f.
Joel, 1934; A. G. M. V. MELSEN, From Atonws to Atom, Pittsburgh, 1952; V. E.
ALI=RI, Atomos idea, Florença, 1953.
95

vi

A SOFíSTICA

§ 24. CAráCTER DA SOfíSTICA

Dos meados do século V até aos fins do século IV, Atenas é o centro da cultura
grega. A vitória contra os Persas abre o período áureo do poder ateniense. A
ordem democrática tornava possível a participação dos cidadãos na vida
política e tornava preciosos os dotes oratórios que permitem obter o êxito.
Os sofistas vêm ao encontro da necessidade de uma cultura adaptada à educação
política das classes.

A palavra sofista não tem nenhum valor filosófico determinado e não indica uma
escola. Originariamente significou apenas sábio e empregava-se para indicar os
Sete Sábios, Pitágoras e quantos se assinalaram por qualquer actividade
teorética ou prática. No período e nas condições que indicamos, o termo assume
um significado especifico: sofistas eram aqueles que faziam profissão da
sabedoria e a ensinavam mediante remuneração. O lugar da sofística na história
da filosofia não apresenta por isso

97

analogia com o das escolas filosóficas anteriores ou contemporâneas. Os


sofistas influenciaram poderosamente, é certo, o curso da investigação
filosófica, mas isto aconteceu por modo inteiramente independente do seu
intento, que não era teorético, mas apenas prático-educativo. Os sofistas não
podem relacionar-se com as investigações especulativas dos filósofos jónios,
mas com a tradição educativa dos poetas, a qual se desenvolvera
ininterruptamente de Homero a Hesíodo, a Sólon e a Píndaro, Todos eles
orientaram a sua reflexão para o homem, para a virtude e para o seu destino e
retiraram, de tais reflexões, conselhos e ensinamentos. Os Sofistas não
ignoram esta sua origem ideal porque são os primeiros exegetas das obras dos
poetas e vinculam a eles o seu ensinamento. Assim Protágoras, no diálogo
homónimo de Platão, expõe a sua doutrina da virtude mediante o comentário a
uns versos de Simonides.
"Os sofistas foram os primeiros que reconheceram -o valor formativo do saber e
elaboraram o conceito de cultura (paideia), que não é soma de noções, nem tão-
pouco apenas o processo da sua aquisição, mas formação do homem no seu ser
concreto, como membro de um povo ou de um ambiente social.)Os sofistas foram,
pois, mestres de cultura. Mas a cultura, objecto da sua ensinança, era a que
era útil à classe dirigente da cidade em que tinha lugar o seu ensino: por
isso era pago. 'Para que o seu ensino fosse não só permitido, mas ainda
requerido e recompensado, os sofistas tinham de inspirá-lo nos valores
próprios da comunidade onde o ministravam, sem tentar críticas ou indagações
que os colocassem em choque com tais valores.Por outro lado, precisamente por
esta situação, estavam em condições de se darem conta da diversidade ou
heterogeneidade de tais valores; tal quer dizer, também, das suas limitações.
Eles podiam ver

98

que duma cidade a outra, de um povo a outro, muitos dos valores em que assenta
a vida do homem sofrem variações radicais e tornam-se incomensuráveis entre
si. A natureza relativista das suas teses teóricas não é mais que a expressão
duma rendição fundamental da sua ensinança. Por outro lado, consideram-se
"sábios" precisamente no sentido antigo e tradicional do termo, isto é, no
sentido de tornar os homens hábeis nas suas tarefas, aptos para viver em
conjunto, capazes de levar a melhor nas competições civis. Certamente, sob
este aspecto, nem todos os sofistas manifestam, na sua personalidade, as
mesmas características, Protágoras reivindicava para os sábios e para
bons oradores a tarefa de guiar e aconselhar para o melhor a própria
comunidade humana (Teet., 167 c). Outros sofistas colocavam explicitamente a
sua obra ao serviço dos mais poderosos e dos mais sagazes. Em qualquer dos
casos o interesse dos sofistas limitava-se à esfera das ocupações humanas e a
própria filosofia considerada por eles como um instrumento para se moverem
habilmente nesta esfera.

No górgias platónico, Càlicles afirma que se estuda a filosofia unicamente


"para a educação própria" e que por isso é conveniente na idade juvenil, mas
torna-se inútil e danosa quando cultivada para lá desse limite, pois impede o
homem de tornar-se experiente nos negócios públicos e privados e em geral em
tudo o que concerne à natureza humana (484 e-485 d). -"-")Por motivo idêntico,
O Objecto do ensino sofístico limitava-se a disciplinas formais, como a
retórica ou a gramática, ou a noções várias e brilhantes mas desprovidas de
solidez científica, como as que podiam revelar-se úteis na carreira de um
advogado ou de um homem políticO.
a sua criação fundamental foi a retórica, isto é, a arte de persuadir,

99

independentemente da validade das razões adoptadas. com a retórica


afirmavam a independência e a omnipotência: a independência de todo o valor
absoluto, cognoscitivo ou moral; a omnipotência a respeito de todo o fim a
alcançar, Mas pela própria exigência desta arte, o homem guinda-se ao primeiro
lugar na atenção dos sofistas. O homem é considerado não já como um fragmento
da natureza ou do ser, mas nos seus caracteres específicos: assim, se a
primeira fase da filosofia grega fora, prevalentemente, cosmológica ou
ontológica, com os sofistas inicia-se uma fase antropológica.

PROTÁGORAS

Protágoras de Abdera foi o primeiro que se intitulou sofista e mestre de


virtude. Segundo Platão, que nos apresenta a sua figura no diálogo que leva o
seu nome, era muito mais velho do que Sócrates: o seu apogeu situa-se em 444-
40. Ensinou durante 40 anos em todas as cidades da Grécia, deslocando-se de
uma para outra. Esteve repetidas vezes em Atenas, mas por fim foi acusado de
ateísmo e obrigado a abandonar a cidade. Morreu afogado com 70 anos quando se
dirigia para a Sicilia. Platão deixou-nos, no diálogo intitulado com o seu
nome, um retrato vivo, ainda que irónico, do sofista. Representa-o como homem
do mundo, cheio de anos e de experiências, grandiloquente, vaidoso, mais
preocupado, nas discussões, em obter a todo o custo um êxito pessoal do que a
alcançar a verdade. A obra principal de Protágoras, RacioCínios demolidores,
também citada com o título Sobre a verdade ou sobre o ser. Atribui-se a
Protágoras uma obra Sobre os deuses. Dos escritos de Protágoras poucos
fragmentos restam.

100

expressou o postulado fundamental do ensino sofistico no famoso princípio com


que iniciava a obra Sobre a verdade: "O homem é a medida de todas as coisas
(chrémata), das coisas que são enquanto são, das coisas que não são enquanto
não são" (fr. 1, Dielsy. '

O significado desta tese famosa foi aclarado pela primeira vez por Platão,
cuja interpretação continuou e continua a ter o favor. Segundo Platão,
Protágoras pretendia dizer que "tais como as coisas singulares me aparecem,
tais são para mim, e quais te aparecem, tais são para ti: dado que homem tu és
e homem sou" (Teet., 152 a); e que portanto identificava aparência e sensação,
afirmando que aparência e sensação são sempre verdadeiras porque "a sensação é
sempre da coisa que é" (1b., 152 c); é, entende-se, para este ou para aquele
homem. Aristóteles (Met., IV, 1, 1053 a, 31 segs.) e com ele todas as fontes
antigas confirmam substancialmente a interpretação platónica. Esta é aprovada
também pela crítica que, segundo um testemunho de Aristóteles (lb., LII, 2,
997 b, 32 segs.). Protágoras dirigia à matemática, observando que nenhuma
coisa sensível tem a qualidade que a geometria atribui aos entes geométricos e
que, por exemplo, não existe uma tangente que toque a, circunferência num só
ponto, como quer a geometria (fr. 7. Diels). Nesta crítica, como é óbvio,
Protágoras valia-se das aparências sensíveis para julgar da validade das
proposições geométricas.

Segundo o mesmo Platão, também aqui seguido quase unanimente pela tradição
posterior, o pressuposto da doutrina de Protágoras era o de Heraclito: o
incessante fluir das coisas. O Teeteto platónico contém também uma teoria da
sensação elaborada segundo este pressuposto: a sensação seria o encontro de
dois movimentos, o do agente, isto é do objecto, e o do paciente, isto é do
sujeito.

101

Dado que os dois movimentos continuam depois do encontro, nunca serão duas
sensações iguais quer para homens diferentes quer para o mesmo homem (Teet.,
182 a). Não sabemos se esta doutrina pode referir-se a Protágoras: todavia
também ela é uma confirmação da identidade que Protágoras estabelecia entre
aparência e sensação. É por isso bastante claro que mundo da doxa (isto é, da
opinião),
que para o caso compreende as aparências sensíveis e todas as crenças que
nelas se fundam, é aceite por Protágoras tal como se apresenta; e que ele,
como os outros sofistas se recusa a proceder para lá dele e instituir uma
pesquisa que de qualquer modo o transcenda: Esse é o mundo das ocupações
humanas em que Protágoras e todos os sofistas entendem mover-se e permanecer.
O agnosticismo religioso de Protágoras é uma consequência imediata desta
limitação do seu interesse à esfera da experiência humana. Dos deuses -dizia
Protágoras -não estou em posição de saber nem se existem nem se não existem
nem quais são: efectivamente muitas coisas impedem sabê-lo: não só a
obscuridade do problema mas a brevidade da vida humana" (fr. 4, Diels). A
"obscuridade" de que fala Protágoras consiste provavelmente no próprio facto
de que o divino transcende a esfera daquela experiência humana à qual, segundo
Protágoras, é limitado o saber.

Todavia, estes esclarecimentos não são suficientes ainda para compreender o


alcance do principio protagórico. O interesse de Protágoras, como o de todos
os sofistas, não é puramente gnoseológico-teorético. Os problemas que
Protágoras toma a peito são os dos tribunais, da vida política e da educação:
isto é, os problemas da vida social que surgem no interior dos grupos humanos
ou nas relações entre os grupos. O homem que toma em consideração é certamente
o indivíduo (e não,
102

como queria Gomperz, o homem em geral ou a natureza humana); mas não o


indivíduo isolado, fechado em si como uma mónada, antes o indivíduo que vive
juntamente com os outros; por isso deve ser capaz ou tornar-se capaz de
afrontar os problemas desta convivência. Seria por isso arbitrário restringir
o princípio de Protágoras à relação entre o homem e as coisas naturais: é
muito mais correcto entendê-lo no seu alcance mais vasto, como compreendendo
todo e qualquer tipo de objecto sobre que recaí uma relação inter-humana,
compreendidos os objectos que se chamam bons e valorosos. No mesmo significado
literal da palavra chrémata usada por Protágoras, os bens e os valores são
compreendidos no mesmo título dos corpos ou das qualidades dos corpos. "O
homem não é apenas, desse ponto de vista, a 'medida das coisas que se
percebem, mas também a do bem, do justo e do belo. Não há dúvida, Protágoras
considerava também que tais valores são diferentes de indivíduo para indivíduo
porque tais aparecem; e que também neste campo todas as opiniões são
igualmente verdadeiras. Na enérgica defesa que o próprio Sócrates faz de
Protágoras a meio do Teeteto, diz-se claramente que "as coisas que a cada
cidade parecem justas e belas, são também tais para ela, pois que as considera
tais" (Teet., 167 e); e esta é uma tese que já pode ser compreendida no
princípio de que o homem é a medida de tudo. Os sofistas insistiam de bom
grado (como veremos) sobre a diversidade e a heterogeneidade dos valores que
regem a convivência humana. Um escrito anónimo, Raciocínios duplos (composto
provavelmente na primeira metade do século IV), que se propõe demonstrar que
as mesmas coisas podem ser boas e más, belas e feias, justas e injustas, é
apresentado pelo seu autor como uma suma do ensino sofístico: "raciocínios
duplos (assim se indica no escrito)

103

em torno do bem e do mal são defendidos na Grécia por aqueles que se ocupam da
filosofia" (Diels, 90, 1 (1). Pode ser que o autor deste escrito seguisse mais
de perto as pisadas de um determinado sofista (por exemplo de Górgias, como
alguns estudiosos defendem). mas é difícil imaginar que não se reportasse
também a Protágoras que sabemos ter escrito um livro intitulado Antilógia
(Diels. 80. fr. 5). A segunda parte do escrito é particularmente interessante
pois contém a exposição daquilo que hoje se chama o "relativismo cultural",
isto é o reconhecimento da disparidade dos valores que presidem às diferentes
civilizações humanas. Eis alguns exemplos: Os Macedónios acham bem que as
raparigas sejam amadas e se acasalem com um homem antes de se esposarem, mas
censurável depois de casadas; para os Gregos é má tanto uma coisa como a
outra... Os Massagetos fazem em pedaços os (cadáveres) dos genitores e comem-
nos; e acreditam que é um túmulo belíssimo ser sepultado nos próprios filhos;
se ao invés alguém na Grécia fizesse isto, seria expulso e morreria coberto de
vergonha por ter cometido uma acção feia e terrível. Os Persas consideram belo
que também os homens se adornem como as mulheres e que se juntem com a filha,
a mãe e a irmã; ao contrário os Gregos consideram estas acções feias e
imorais; etc." (Diels, 90, 2 (12); (14); (15". O autor do escrito conclui a
sua exemplificação dizendo que "se alguém ordenasse a todos os homens que
agrupassem num só lugar todas as leis (nomoi) que se consideram más e
escolhessem depois aquelas que cada um considera boas, nem uma ficaria, mas
todos repartiriam tudo" (Diels,
2, 18). Considerações deste género não aparecem isoladas no mundo grego e
acorrem frequentemente no ambiente sofístico. Segundo um testemunho de
Xenofonte (Mem. IV, 20). Hípias negava que a

104
proibição do incesto fosse lei natural dado que é transgredida por alguns
povos vizinhos. oposição entre natureza e lei. característica de Hípias e de
outros sofistas (§ 27), não era mais que uma consequência da concepção
relativística que tais sofistas tinham dos valores que presidiam às diferentes
civilizações humanas. É-de recordar final,--mente a este propósito que
Heródoto -certamente teve ligações com o ambiente sofistico e compartilhou a
seu modo a sua direcção iluminística-, depois de ter relatado o costume,
referindo-o aos Indianos Callati, de algumas populações darem sepultura no seu
estômago aos parentes mortos e depois de ter posto em confronto a repugnância
dos Gregos por este costume com a repugnância daqueles Indianos pelo costume
dos Gregos de queimar os mortos, concluía com uma afirmação típica do
relativismo dos valores: "Se propusessem a todos os homens escolher entre as
várias leis e os convidassem a eleger a melhor, cada um, depois de ter
reflectido, escolheria (lei) do seu país: tanto a cada um parecem muito
melhores as próprias leis". E concluía a sua narrativa comentando: "Assim são
estas leis dos antepassados e eu creio que Píndaro tinha razão nos seus
versos: "a lei é rainha de todas as coisas" (Hist., IH, 38).

Por isso se se tem presente, na interpretação do princípio de Protágoras, a


totalidade do ambiente sofístico (que por outro lado o mesmo Protágoras
contribui poderosamente para formar), parece óbvio que o princípio se refere a
todas as opiniões humanas compreendidas as que se referem às qualidades
sensíveis ou às próprias coisas. Mas a heterogeneidade e a equivalência das
opiniões não significa a sua imutabilidade: as opiniões humanas são, segundo
Protágoras, modificáveis e na realidade modificam-se; e todo o sistema
político-educativo que constitui uma comunidade humana (polis) é

105

dirigido precisamente para obter na altura própria modificações nas opiniões


dos homens. Em que sentido se tomam estas modificações? Certamente não no
sentido da verdade, porque do ponto de vista da verdade todas as opiniões são
equivalentes. Tomam-se ao contrário e devem tomar-se no sentido da utilidade
privada ou pública. Esta é de facto a tese que vem exposta na defesa que o
próprio Sócrates faz de Protágoras no Teeteto (166 a, 168 c). E no Protágoras.
diz-se: "Corno os mestres se comportam com os alunos que ainda não sabem
escrever, traçando eles mesmos as letras sobre as tabuinhas e obrigando-os a
recalcar os traços, assim a comunidade (polis), fazendo valer as leis
inventadas pelos grandes legisladores antigos, obriga os cidadãos a segui-las
seja no mandar seja no obedecer e pune quem se afasta delas" (Prot., 326 d).
Sobre esta mesma possibilidade de rectificação das opiniões humanas no sentido
da utilidade privada e pública, se insere, segundo a " defesa" do Teeteto, a
obra do sábio que se faz mestre dos indivíduos e da cidade "fazendo parecer
justas as coisas boas em lugar das más". Neste sentido, a obra do sábio (ou
sofista) é perfeitamente semelhante à do médico ou do agricultor: transforma
em boa uma disposição má, faz passar os homens de uma opinião danosa aos
indivíduos e à comunidade para uma opinião útil, prescindindo completamente da
verdade ou falsidade das opiniões que, a este respeito, são todas iguais para
ele (Teet., 167 c-d). $Por isso Protágoras apresentava-se como mestre, não de
ciência, mas de "sagacidade nos negócios privados e nos negócios públicos"
(Prot., 318 c); e por isso professava a ensinabilidade da virtude, isto é a
modificabilidade das opiniões no sentido do útil; e por isso se afirmava (e
era considerado) digno de ser recompensado com dinheiro pela sua obra
educativa

106
Depois nada há em tudo aquilo que sabemos da doutrina de Protágoras que deixe
supor que ele atribuía carácter absoluto às formas que a utilidade reveste na
vida pública ou privada do homem. Certamente, segundo Protágoras, "toda a vida
do homem tem necessidade de ordem e de adaptação" (Prot., 326 b). Zeus teve de
enviar aos homens a arte política, fundada no respeito e na justiça, a fim de
que os homens deixassem de destruir-se reciprocamente e pudessem viver em
comunidade (lb., 322 c). Mas nem a arte política é uma ciência nem o respeito
e a justiça são objecto da ciência, segundo Protágoras. "Respeito e justiça"
são no mito a mesma coisa que '"a ordem e a adaptação" fora do mito: podem
assumir inumeráveis formas. Na própria República de Platão o conceito de
justiça é introduzido e defendido como condição de qualquer convivência
humana, de qualquer actividade que os homens devam desenvolver em comum,
compreendida a dum bando de salteadores e de ladrões (Rep., 351 c); e não é
por acaso que um testemunho antigo faz depender a República de Platão da
Analogia de Protágoras (fr. 5, Diels). Platão não se deteve, é certo, neste
conceito formal de justiça: todo o corpo da República é dirigido a delimitá-lo
e defini-lo tornando-o objecto de ciência e assim absolutizando-o. Mas para
Protágoras ele conservava indubitavelmente o seu carácter formal e assim a sua
fluidez; o que significa que, para Protágoras, a própria justiça, isto é, a
ordem e o acomodamento recíproco dos homens, alcançáveis através da
rectificação que as leis e a educação impõem às suas diferentes opiniões, pode
assumir formas diversas, que a sagacidade ou a engenhosidade humana podem
descobrir ou fazer valer nas diferentes comunidades humanas.

107

§ 26. GóRGIAS

Contemporâneo de Protágoras foi Górgias de LentinI, nascido por volta de 484-


83; ensinou primeiramente na Sicília e, depois de 427, em Atenas e outras
cidades da Grécia. Nos últimos tempos da sua vida estabeleceu-se em Larissa,
na Tessália, onde morreu com 109 anos. Foi acima de tudo um retórico, mas
escreveu também uma obra filosófica Sobre o não ser ou sobre a natureza, de
que Sexto Empírico nos conservou um longo fragmento (Adv. math., VII, 65
sgs.). Temos também fragmentos de alguns dos seus discursos, um Encómío de
Helena e uma Defesa de Palamedes.

As teses fundamentais de Górgias eram três, concatenadas entre si: I.& Nada
existe; 2.a Se algo existe não é cognoscível pelo homem; Ia Ainda que seja
cognoscível, é incomunicável aos outros.
1) Sustentava o primeiro ponto demonstrando que não existe nem o ser nem o
não-ser. Efectivamente o não-ser não existe porque se existisse seria ao mesmo
tempo não-ser e ser, o que é contraditório. E o ser se existisse tinha de ser
ou eterno ou gerado ou eterno e gerado ao mesmo tempo. Mas se fosse eterno
seria infinito e se infinito não estaria em nenhum lugar, isto é, não
existiria de facto. Se é gerado deve ter nascido ou do ser ou do não-ser, mas
do não-ser não nasce nada; e se nasceu do ser já existia antes, portanto não é
gerado. O ser não pode ser pois nem eterno nem gerado; não pode ser tão-pouco
eterno e gerado ao mesmo tempo porque as duas coisas se excluem. Portanto nem
o ser nem o não-ser existem. 2) Mas se o ser existe, não pode ser pensado.
Efectivamente as coisas pensadas não existem: de outro modo existiriam todas
as coisas inverosímeis e absurdas que ao homem ocorra pensar. Mas se é verdade
que aquilo que é pensado não existe, será também

108
verdade que aquilo que existe não é pensado e que portanto, o ser. se existe,
é incognoscível.
3) Finalmente., ainda que fosse cognoscível, não seria comunicável.
Efectivamente, nós expressamo-nos pela palavra. mas a palavra não é o ser;
portanto. comunicando palavras, não comunicamos o ser.

Górgias, chega assim a um nielismo filosófico total. utilizando as teses


eleáticas sobre o ser e reduzindo-as ao absurdo. Tem-se posto em dúvida se
este níilismo representa verdadeiramente uma convicção filosófica de Górgias
ou não será antes um simples exercício retórico, uma prova de habilidade
oratória. Mas não possuímos elementos para negar o interesse filosófico de
Górgias e portanto a seriedade das suas conclusões. Tal conclusão é em certo
sentido oposta à da doutrina de Protágoras. Para Protágoras tudo é verdadeiro,
para Górgias tudo é falso. Mas na realidade o significado das duas teses é um
só: a negação da objectividade do pensamento, portanto da validade que daí
deriva na sua referência ao ser.

Para o afastamento de tal objectividade, a palavra. particularmente quando é


dirigida pela retórica, tem uma força necessitante a que ninguém pode
resistir. Na Defesa de Helena, Górgias sustenta que "Helena-seja porque tenha
feito o que fez por amor, ou porque persuadida pela palavra. ou porque raptada
pela violência, ou porque forçada da constrição divina - em qualquer caso
escapa à acusação" (fr. 11, 20). Aqui a força da palavra é posta ao lado da
constrição divina ou do poder do amor ou da violência como condição
necessitante que elimina a liberdade, portanto a imputabilidade de uma acção.
cA força da persuasão diz ainda Górgias-que origina a decisão de Helena,
efectivamente enquanto origina por necessidade, não é passível de censura mas
possui um

109

poder que se identifica com o desta necessidade" (fr. 12). É claro que,
segundo Górgias, a palavra tem força necessitante porque não encontra limites
ao seu poder em nenhum critério ou valor objectivo, nalguma ideia no sentido
platónico do termo: o homem não pode resistir a ela aferrando-se à verdade ou
ao bem e está completamente desprovido de defesa nos seus confrontos.
O relativismo teorético e prático da sofística encontra aqui um corolário
importante: a omnipotência da palavra e a força necessitante da retórica que a
guia com o seu engenho infalível. Quando Platão opõe a Górgias, no diálogo que
dele se intitula, que a retórica não pode persuadir se não daquilo que é
verdadeiro e justo, parte de um pressuposto que Górgias não partilha: isto é,
que existem critérios infalíveis e universais para reconhecer o verdadeiro e o
justo (Górgias, 455 a). Aquilo que distingue a retórica de Górgias como arte
omnipotente da persuasão, da retórica de Platão como educação da alma para o
verdadeiro e o justo, é o pressuposto fundamental do platonismo: a existência
de ideias como critérios ou valores absolutos.

§ 27. OUTROS SOFISTAS

Mais jovens que Protágoras e Górgias são os dois contemporâneos de Sócrates,


Pródico e Hípias.

Pródico de Ceos, conhecido principalmente como autor de um Ensaio de


Sinonímica (ridícula-mente consagrado à procura de sinónimos o representa
Platão no Protágoras 337 a-c), é também autor de um escrito intitulado Horas,
no qual representa o encontro de Hércules com a Virtude e a Depravação. Tanto
uma como a outra exortavam o herói a seguir o seu sistema de vida, mas
Hércules decidia-se pela Virtude e preferia os suores desta aos prazeres
precários da Depravação (fr. 1,Diels). Sabemos também que Pródico afirmava o
valor do esforço dirigido para a virtude e considerava a própria virtude como
uma condição imposta por um mandado divino para a obtenção dos bens da vida.
As Horas deviam conter também partes dedicadas à filosofia da natureza e à
antropologia. Em particular. sobre este último tema. sabemos que Pródico
aventura sobre a origem da religião 1111na teoria que o fez contar entre os
ateus. "Os antigos-dizia ele -consideravam deuses. em virtude da uW~e que
deles derivava, o sol. a lua. os raios, as fontes e em geral todas as coisas
que servem para a nossa vida, como, por exemplo, para os Egípcios. o Nilo. E
por isto o pão em considerado como Demeter, o vinho como Dionísio, a água como
Poseidon. o fogo como Ef~ e a i
cada um dos bens que nos é útil" (Sesto E., Adv. math., IX, 18; cir. Cicer, De
nw. d~um, ] 37.
118).

Hípias de Élide era ao contrário famoso pela sua cultura enciclopédica e pelo
vigor da sua memória. N, diálogo platónico Hípias Maior ele próprio declara
ser frequentemente enviado pela sua pátria como legado para tratar de negócios
com outra cidade; e gaba-se de ter ganho grandes somas com o seu ensino.
Compôs elegias e discursos de temas vários, de que possuímos fragmentos
escassamente importantes do ponto de vista filosófico. Por um testemunho de
Xenofonte (Mem., IV. 4.

5 segs.) que relata uma longa discussão entre ele e Sócrates. sabemos que um
dos seus temas preferidos era a oposição entre a natureza (physis) e a lei
(nownos). As leis não são uma coisa séria porque não têm uniformidade e
estabilidade e aqueles mesmos que as fizeram muitas vezes as revogam. As
verdadeiras leis são as que a própria natureza prescreve e que, ainda que não
sejam escritas "são válidas em cada país e no mesmo modo".

111
Esta antítese entre as leis e a natureza torna-se o tema favorito da geração
mais jovem dos sofistas que muitas vezes se vale dela para defender uma ética
aristocrática ou directamente para tecer um elogio da injustiça- Certo é que
os sofistas, mostrando (como se disse já no § 25) a relatividade dos valores
que regem a convivência humana e recusando-se a proceder à investigação dos
valores universais ou absolutos eram levados a ver nas leis nada mais que
convenções humanas, mais ou menos úteis mas indignas de um reconhecimento
obrigatório. Antifonte, sofista, assegurava que todas as leis são puramente
convencionais, por isso contrárias à natureza e que o melhor modo de viver é o
de seguir a natureza, isto é de pensar no próprio útil. reservando uma
reverência puramente aparente ou formal às leis dos homens (Diels, 87, fr. 44
A, col. 4). Polo e Calicles no Górgias, Trasímaco na República sustentam que a
lei da natureza é a lei do mais forte e que as leis que os homens fazem valer
na sua convivência são convenções dirigidas a impedir os mais fortes de se
valerem do seu direito natural. Segundo a natureza, é justiça que o forte
domine o mais fraco e siga em todas as circunstâncias sem freio o talento
próprio. e isto acontece de facto quando um homem dotado de natureza capaz
rompe as cadeias da convenção e de servo se converte em senhor (Górgias, 484
a; República, 1, 338 b segs.). Outra actividade dos sofistas era a erística,
isto é a arte de vencer nas discussões impugnando as afirmações do adversário
sem olhar à sua verdade ou falsidade. No Eutidemo platónico, duas figuras
menores dos sofistas, Eutidemo e Dionisorodo, são mostrados em acção nalgumas
atitudes típicas do seu repertório. Um dos lugares comuns da eurística era o
que Platão recorda também no Ménon (80 d) e ao qual opõe a doutrina da
anamnesis: isto é, que
112

não se pode indagar nem aquilo que se sabe nem aquilo que não se sabe: porque
é inútil indagar sobre aquilo que se sabe e é impossível indagar se não se
sabe que coisa indagar. A erística foi certamente a actividade inferior dos
sofistas, aquela que mais contribuiu para os desacreditar. Todavia, também
essa fazia parte da sua bagagem: quando se nega todo o critério objectivo de
indagação e se reconhece a omnipotência da palavra, abre-se o caminho também à
possibilidade de usar a própria palavra como puro instrumento de batalha
verbal ou como simples exercício de bravura polémica.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 24. Sobre o nome e conceito de Sofista, os testemunhos antigos em Dieis,


cap. 79, e a nota introdutória de M. UNTERSTEINER, Sofisti. Testemunhos e
fragmentos, texto grego, trad. -italiana e netag, I-III,
1949-54 (falta ainda o vol. IV).

Para a bibliografia ver as notas antepostas aos volumes de Untersteiner ou


ainda a obra do mesmo autor, Os Sofistas, Turim, 1949. Sobre o valor da
sofística na história da cultura grega. JAEGER, Paideía, 1, livre II, cap.
III. Sobre a lógica sofistica: PRANTL, Geschic7ite der Logik, 1, p. 11 segs.

§ 25. Os fragmentos de Protágoras em DiELs, cap. 80; UNTERSTEINER, cap. 2. Os


discursos duplos, em DIELS, cap. 90; UNTERSTEINER, ca-p. 10.
Bibliografia sobre Protágoras, em A. CAPUZI, Protágoras, Florença, 1955; S.
ZEPPI, Protágoras e a Filosofia do seu tempo, Florença, 1961.

§ 26. Os fragmentos de G6rgias, em DIELS, cap. 82, e em UNTERSTEINER, cap. 4.


Para a bibliografia ver as obras já citadas.

§ 27. Os fragmentos de Pródico, em DIELS, cap. 84; UNTERSTEINER, cap.


6; de Hipias, em DIELS, cap. 86; UNTERSTEINER, cap. 8; de Antifonte, in DIELS,
cap. 87; de Trasímaco, em DiELs, cap. 85; UNTM,SMNER, cap. 7.

Sobre todos ver a bibliografia nas obra.s já citadas.

113

ViI

SÓCRATES

§ 28. O PROBLEMA

A data do nascimento de Sócrates é determinada pela idade que tinha à data do


processo e da condenação. Nessa data (399) tinha setenta anos (Plat., Ap.,
175; Crit., 52 e); devia ter nascido portanto em 470 ou nos primeiros meses de
469 a.C..
O pai, Sofronisco, era escultor; a mãe, Fenarete, parteira: ele próprio
comparou depois a sua obra de mestre à arte da mãe (Teet., 149 a). Completou
em Atenas a sua educação juvenil, estudou provavelmente geometria e
astronomia; e se não foi aluno de Anaxágoras (como queria um testemunho
antigo), conheceu certamente o escrito deste filósofo, como se depreende do
Fédon platónico (97 c). Só se ausentou de Atenas por três vezes para cumprir
os seus deveres de soldado e participou nas batalhas de Potideia. Délios e
Anfípolis. No Banquete de Platão, Alcibíades fala de Sócrates na guerra como
de um homem insensível à fadiga e ao frio, corajoso, modesto e senhor de si
mesmo no próprio momento em que o exército era derrotado.

115

Sócrates manteve-se afastado da vida política. A sua vocação, a tarefa a que


se dedicou e a que se manteve fiel até ao final, declarando ao próprio
tribunal que se preparava para o condenar, que não a abandonaria em caso
algum, foi a filosofia; Mas ele entende a investigação filosófica como um
exame incessante de si próprio e dos outros; a este exame dedicou todo o seu
tempo, sem nenhum ensinamento regular. Por esta tarefa, descurou toda a
actividade prática e viveu pobremente com sua mulher Xantipa e os filhos.
Todavia, a sua figura não tem nenhum dos traços convencionais de que a
tradição se serviu para delinear o carácter de outros sábios, por exemplo, de
Anaxágoras ou de Demócrito. A sua personalidade tinha qualquer coisa de
estranho (àtopon) e de inquietante que não escapava àqueles que dele se
aproximaram e o descreveram. A sua própria aparência física chocava o ideal
helénico da alma sábia num corpo belo e harmonioso (kaUagatos): parecia um
Sileno e isto estava em estridente contraste com o seu carácter moral e o
domínio de si mesmo que conservava em todas as circunstâncias (Banq., 215,
221). Pelo aspecto inquietante da sua personalidade, foi comparado por Platão
à tremelga do mar que entorpece quem 'a toca: do mesmo modo provocava a
dúvida e a inquietação no ânimo daqueles que dele se aproximavam (Mén., 80).1
Todavia, este homem que dedicou à filosofia a existência inteira e morreu por
ela, nada escreveu, É indubitavelmente o maior paradoxo da filosofia grega.
Não pode tratar-se dum facto casual. Se Sócrates nada escreveu, foi porque
defende que a pesquisa filosófica, tal como ele a entendia e praticava, não
podia ser levada por diante ou continuada depois dele, por um escrito. O
motivo autêntico da falta de actividade do Sócrates escritor pode ver-se
aflorado no Fedro (275 e) plató-

116

nico, nas palavras que o rei egípcio Thamus dirige a Theut, inventor da
escrita: "Tu ofereces aos alunos a aparência, não a verdade da sabedoria;
porque quando eles, graças a ti, tiverem lido tantas coisas sem nenhum
ensinamento, julgar-se-ão na posse de muitos conhecimentos, apesar de
permanecerem fundamentalmente ignorantes e serão insuportáveis para os demais,
porque terão não a sabedoria, mas a presunção, da sabedoria". Para Sócrates
que entende o filosofar como o exame incessante de si e dos outros, nenhum
escrito pode suscitar e dirigir o filosofar. O escrito pode comunicar uma
doutrina, não estimular a pesquisa. Se Sócrates renunciou a escrever, isto foi
devido ainda à sua própria atitude filosófica e faz parte essencial de tal
atitude.

§ 29. AS FONTES

Esta renúncia porém coloca-nos perante o difícil problema de caracterizar a


personalidade de Sócrates através de testemunhos indirectos. Possuímos três
testemunhos principais: o de Xenofonte nos Ditos memoráveis, de Sócrates, o de
Platão que o faz falar como personagem principal na maior parte dos seus
diálogos, e o de Aristóteles que lhe dedica breves e precisas alusões. A
caricatura que Aristófanes deu de Sócrates nas Nuvems como de um filósofo da
natureza que dá dos factos mais simples a explicação mais complicada e como um
sofista que converte os discursos mais fracos nos mais fortes e faz triunfar
os injustos sobre os justos, quis evidentemente representar no personagem
ateniense mais popular o tipo do intelectual inovador, concentrando nele
características contraditórias que pertenciam a personagens reais diferentes
(Diógenes de Apolónia e Protágoras). Essa caricatura não tem portanto valor
histórico.

117

Xenofonte, que era escassamente dotado de espírito filosófico, deu-nos uma


imagem extremamente pobre e mesquinha da personalidade de Sócrates; nada no
seu retrato justifica a enorme influência que Sócrates exerceu sobre todo o
desenvolvimento do pensamento humano. Por outro lado, a personalidade de
Sócrates vive poderosamente nos diálogos de Platão; mas aqui nasce
legitimamente a dúvida de que Platão pense e fale ele próprio na figura de
Sócrates e que portanto não possa encontrar-se nos seus diálogos o Sócrates,
histórico. Finalmente os testemunhos de Aristóteles nada acrescentam a quanto
já se encontra em Xenofonte e Platão.

Durante um certo tempo, o próprio carácter insuficientemente filosófico da


apresentação de Xenofonte e o título da sua obra pareceram uma garantia de
fidelidade histórica, frente à evidência da transfiguração a que Platão
submeteu a figura do mestre, sobretudo nalguns diálogos. Mas a brevidade das
relações de Xenofonte com Sócrates, a ineficácia evidente do ensino socrático
sobre o seu carácter e sobre o seu modo de viver (foi substancialmente um
aventureiro) e o longo período de tempo, decorrido entre o seu discípulo e a
composição do seu escrito, fizeram surgir a suspeita de que este escrito, mais
que recolha fiel de recordações socráticas, será uma composição literária, não
isenta de intuitos polémicos (sobretudo contra Antístenes, e fundado em boa
parte sobre escritos alheios, sem excluir os platónicos. Por outro lado,
também os testemunhos de Aristóteles parecem dependentes em boa parte de
Platão e talvez mesmo do próprio Xenofonte. De modo que a fonte fundamental
para a reconstrução do Sócrates histórico é ainda e sempre Platão. O
testemunho de Aristóteles e a representação de Xenofonte (esta última na
medida em que é corroborada pela primeira) fornecem antes um critério para
discernir e limitar aquilo que na com-

118

plexa figura que domina a obra de Platão pode efectivamente atribuir-se ao


Sócrates histórico. Assim não pode certamente atribuir-se a este último a
doutrina das ideias da qual não há indício em Xenofonte e, em Aristóteles; e
deve portanto excluir-se a interpretação de um certo estudioso moderno que viu
em Platão o historiador de Sócrates e atribuiu, a este último o corpo central
do sistema platónico e a Platão apenas a crítica e a correcção de tal sistema,
que se iniciam com o Parménides.

§ 30. O "CONHECE-TE A TI MESMO E A IRONIA

"Sócrates chamou a filosofia do céu à terra," Estas palavras de Cícero (Tusc.,


V, 4, 10) exprimem exactamente o carácter da investigação socrática. Ela tem
por objecto exclusivamente o homem e o seu mundo; isto é, a comunidade em que
vive. Xenofonte testemunha claramente a atitude negativa de Sócrates frente a
toda a pesquisa naturalística e o seu propósito de manter-se no domínio da
realidade humana. A sua missão é a de promover no homem a investigação em
torno do homem. Esta investigação deve tender a colocar o homem, cada homem
individual, a claro consigo mesmo, a levá-lo ao reconhecimento dos seus
limites e a torná-lo justo, isto é solidário com os outros; Por isso Sócrates
fez sua a divisa délfica "conhece-te a ti mesmo" e fez do filosofar um exame
incessante de si próprio e dos outros: de si próprio em relação aos outros,
dos outros em relação a si próprio.

A primeira condição deste exame é o reconhecimento da própria ignorância.


Quando Sócrates conheceu a resposta do oráculo que o proclamava o homem mais
sábio de todos, surpreendido andou

119

a interrogar os que pareciam sábios e deu-se conta de que a sabedoria deles


era nula. Compreendeu então o significado do oráculo: nenhum dos homens
sabe verdadeiramente nada, mas sábio apenas quem sabe que não sabe, não quem
se ilude com saber e ignora assim até a sua própria ignorância.

Na realidade só quem sabe que não sabe procurará saber, enquanto os que crêem
estar na posse dum saber fictício não são capazes da investigação. não se
preocupam consigo mesmos e permanecem irremediàvelmente afastados da verdade e
da virtude. Este princípio socrático representa a antítese nítida da
sofística. 1 Contra os sofistas que faziam profissão de sabedoria e pretendiam
ensiná-la aos outros, Sócrates fez profissão de ignorância: o saber dos
sofistas é um não-saber, um saber fictício privado de verdade que dá apenas
presunção e jactância e impede de assumir a atitude submissa da investigação,
a

digna dos homens meio de promoz nos outros essè reconhecimento da própria
ignorância, que é a condição da pesquisa, é a ironia. ironia é a interrogação
dirigida a descobrir no homem a sua ignorância, a abandoná-lo à dúvida e à
inquietação para obrigá-lo à pesquisa.A ironia é o meio de descobrir a
nulidade do ar fictício, de pôr a nu a ignorância fundamental que o homem
oculta até a si próprio com os ouropéis de um saber feito de palavras e de
vazio. A ironia é a arma de Sócrates contra a vaidade do ignorante que não
sabe que é tal e por isso se recusa a examinar-se a si mesmo e a reconhecer os
limites próprios. Esta é a sacudidela que o torpedo tremelga marinho comunica
a quem a toca e sacode pois o homem do torpor e lhe comunica a dúvida que o
encaminha para a busca de si mesmo. Mas precisamente por isso é também uma
libertação.

120

Sob este aspecto da ironia como libertação do saber fictício, isto é, daquilo
que oficialmente ou comummente passa por saber ou por ciência, insistiu
justamente Kierkegaard no Conceito da ironia. Trata-se certamente duma função
negativa, do aspecto limitante e destrutivo da filosofia socrática, mas
precisamente por isso de um aspecto que é indissolúvel da filosofia como
investigação e que portanto contribui para fazer de Sócrates o símbolo da
filosofia ocidental.

31. A MAIÊUTICA

SóCrates não se propõe portanto comunicar uma doutrina ou complexo de


doutrinas. Ele não ensina nada: comunica apenas o estímulo e o interesse pela
pesquisa] Em tal sentido compara, no Teeteto platónico, a sua arte à da mãe, a
parteira Fenarete. A sua arte consiste essencialmente em averiguar por todos
os meios se o seu interlocutor tem de parir algo fantástico e falso ou genuíno
e verdadeiro. Ele declara-se estéril de sabedoria. Aceita como verdadeira a
censura que muitos lhe fazem de saber -interrogar os outros, mas de
nada saber responder ele próprio. A divindade que o obriga a fazer de parteiro
proíbe-o de dar à luz: E ele não tem nenhuma descoberta a ensinar aos
outros e não pode fazer outra coisa senão ajudá-los no seu parto intelectual.
E os outros, aqueles que dele se aproximam, a princípio parecem completamente
ignorantes, mas depois a sua pesquisa torna-se fecunda, sem que todavia
aprendam nada dele.

Esta arte maiêutica não é na realidade senão a arte da pesquisa em comum. O


homem não pode por si só ver claro em si próprio. A pesquisa que o concerne
não pode começar e acabar no recinto

121

fechado da sua individualidade: pelo contrário só pode ser o fruto de um


dialogar continuo com os outros, como consigo mesmo. Aqui está verdadeiramente
a sua antítese polémica com a sofística. A sofística é um individualismo
radical. O sofista não se preocupa com os outros senão para extorquir, a todo
o custo e sem preocupar-se com a verdade, o consenso que lhe assegura o
sucesso; mas nunca chega à sinceridade consigo próprio e com os outros. No
Górgias platónico, Sócrates compara a sofística à arte da cozinha que procura
satisfazer o paladar mas não se preocupa se os alimentos são benéficos para o
corpo! A maiêutica, é, pelo contrário, semelhante à medicina que não se
preocupa se causa dores ao paciente contanto que conserve ou restabeleça a
saúde.

Ao individualismo sofístico, Sócrates contrapõe, não o conceito de um homem


universal, um homem-razão que não tenha já nenhum dos caracteres precisos e
diferenciados do indivíduo, mas o vínculo de solidariedade e de justiça entre
os homens, pelo qual nenhum deles pode libertar-se ou alcançar qualquer coisa
de bom por si só, mas ca um está vinculado aos outros e só pode progredir com
a sua ajuda e ajudando-os por sua vez. O universalismo socrático não é a
negação do valor dos indivíduos: é o reconhecimento de que o valor do
indivíduo não se pode compreender ;nem realizar senão nas relações entre os
indivíduos/ Mas a relação entre os indivíduos, se é tal que-garanta a cada um
a liberdade da pesquisa de si, é uma relação fundada na virtude e na justiça.
E é aqui, portanto, que o interesse de Sócrates, enquanto entende promover em
cada homem a investigação de si, se
dirige naturalmente ao problema da virtude e da justiça.

122

§ 32. Sócrates: CIÊNCIA E VIRTUDE

A busca de si é ao mesmo tempo busca de verdade. Por outras palavras : saber e


verdade é simultaneamente investigação do saber e da virtude. Saber e
virtude identificam-se, segundo Sócrates o homem não pode tender senão
para',,-saber aquilo que deve fazer ou aquilo que deve ser: e tal saber é a
própria virtude. Este é o princípio fundamental da ética socrática, princípio
que vem expresso, na forma mais extrema, no Protágoras de Platão. A maior
parte dos homens crêem que sabedoria e virtude são duas coisas diferentes, que
o saber não possui nenhum poder directivo sobre o homem, e que o homem, ainda
quando sabe o que é o bem, pode -ser vencido pelo prazer e afastar-se da
virtude. Mas para Sócrates uma ciência que seja incapaz de dominar o homem e
que o abandone à mercê dos impulsos sensíveis, não é tão-pouco uma ciência. Se
o homem se entrega a estes impulsos, isto significa que ele sabe ou crê saber
que tal seja a coisa mais útil ou mais conveniente para ele. Um erro de juízo,
a ignorância portanto, é a base de toda a culpa e de todo o vício. É um mau
cálculo o que faz o homem preferir o prazer do momento, não obstante
as consequências más ou dolorosas que daí possam derivar; e um cálculo errado
é fruto de ignorância. Quem sabe verdadeiramente, faz -bem os seus
cálculos, escolhe em cada caso o prazer melhor, aquele que não pode ocasionar-
lhe nem dor nem mal; e esse só o prazer da virtude.

Portanto, para ser virtuoso, não é necessário que o homem renuncie ao prazer.
A virtude não é a negação da vida humana, mas a vida humana perfeita;
compreende o prazer e é antes o prazer máximo. A diferença entre o homem
virtuoso e o homem que o não é, está em que o primeiro sabe
123

fazer o cálculo dos prazeres e escolher o maior; o segundo não sabe fazer este
cálculo e entrega-se ao prazer do momento. O utilitarismo socrático é assim um
outro aspecto da polémica contra os sofistas. A ética dos sofistas oscilava
entre um franco hedonismo como o encontramos defendido por Antifonte, por
exemplo, e por alguns interlocutores dos diálogos platónicos, e aquela espécie
de activismo da virtude que foi a tese de Pródico. Para Sócrates, uma e outra
destas duas tendências são insustentáveis. A virtude não é puro prazer nem
puro esforço, mas cálculo inteligente. Neste cálculo, a profissão ou a defesa
da justiça não pode encontrar lugar porque a injustiça não é mais que um
cálculo errado.

Contra a identificação socrática de ciência e virtude, já Aristóteles


observava que, dessa maneira, Sócrates reconduz a virtude à razão, enquanto
que se a virtude não é tal senão com a razão, ela não se identifica, com a
própria razão (Et. Nic., 13, 1144 J

b). Aceite por Hegel (Geschichte der Phil., I, cap. II, B, 2 a), esta critica
tornou-se muito comum na historiografia filosófica e está, entre outras
coisas, no fundamento da desvalorização que Nietzsche intentou da figura de
Sócrates quando quer entrever nele a tentativa de reduzir o instinto à razão e
portanto de empobrecer a vida (Ecee Homo). Mas na verdade tudo aquilo que se
pode censurar a Sócrates é o não ter feito as distinções entre as actividades
ou faculdades humanas que Platão e Aristóteles introduziram na filosofia.
Para Sócrates, o homem é ainda uma unidade indivisa. O seu saber não é apenas
a actividade do seu intelecto ou da sua razão, mas um total modo de ser e de
comportar-se, o empenhar-se numa investigação que não reconhece limites ou
pressupostos fora de si, mas encontra por si a sua disciplina, Segundo
Sócrates, a virtude é ciência, em primeiro lugar
124

porque não se pode ser virtuoso conformando-se simplesmente com as opiniões


correntes e com as regras de vida já conhecidas. É ciência porque é
investigação, investigação autónoma dos valores sobre que deve fundar-se a
vida.

§ 33. A RELIGIÃO DE SóCRATES

Para Sócrates o filosofar é uma missão divina, uma -tarefa confiada por um
mandato divino (Ap.,
29-30). Fala de um demónio, de uma inspiração divina que o aconselha em todos
os momentos decisivos da vida. Interpreta-se comummente este demónio como a
voz da consciência; na realidade é o sentimento de uma investidura recebida do
alto, própria de quem abraçou uma missão com todas as suas forças. Por isso o
sentimento da divindade está sempre presente na investigação socrática, como
sentimento do transcendente, daquilo que está para lá do homem e é superior ao
homem, e do alto o guia e lhe oferece uma garantia providencial.

Certamente a divindade de que fala Sócrates não é a da religião popular dos


Gregos. Ele considera que o culto religioso tradicional faz parte dos deveres
do cidadão e por isso aconselha cada qual a ater-se ao costume da própria
cidade e ele próprio se atém a ele. Mas admite os deuses só porque admite a
divindade: neles não vê mais que encarnações e expressões do único princípio
divino, ao qual se podem pedir não já bens materiais, mas o bem, aquele que só
é tal para o homem, a virtude. E na realidade a sua fé religiosa não é outra
coisa senão a sua filosofia.

Esta religiosidade socrática não tem, óbviamente, nada a ver com o


cristianismo de que Sócrates, na velha historiografia, tem sido frequentemente
considerado o precursor Não se pode falar
125
de cristianismo se se Prescinde da revelação; e nada é mais estranho ao
espírito de Sócrates do que um saber que seja ou pretenda ser de revelação
divina. Aquilo que a divindade ordena, segundo Sócrates é o empenho na
investigação e o esforço para a justiça; í' aquilo que ela garante é que "para
o homem honesto não existe mal nem na vida nem na morte" (Ap., 41 c). Mas,
quanto à verdade e à virtude, o homem deve procurá-la e realizá-la por si.

§ 34. A INDUÇÃO E O CONCEITO

Aristóteles caracterizou a investigação de Sócrates do ponto de vista lógico.


"Duas coisas-disse ele - (Met., XIII 4, 1078 b) se podem com boas razões
atribuir a Sócrates: os raciocínios indutivos e a definição do universal
(katholon), e ambas se referem ao princípio da ciência." O raciocínio indutivo
é aquele que, do exame de um certo número de casos ou afirmações particulares,
conduz a uma afirmação geral que um conceito exprime. Por exemplo, no Górgias,
das afirmações de que quem aprendeu arquitectura é arquitecto, quem aprendeu
música é músico, quem aprendeu medicina é médico, Sócrates chega à afirmação
geral de que quem aprendeu uma ciência é tal qual foi tornado pela' mesma
ciência. O raciocínio indutivo dirige-se, portanto, para a definição do
conceito; e o conceito exprime a essência ou a natureza de uma coisa, aquilo
que verdadeiramente a coisa é (SEN., Mem., IV, 6, 1).

Este procedimento, nota ainda Aristóteles, foi aplicado por Sócrates apenas
nos argumentos morais. Efectivamente ele não se ocupa da natureza: nos
argumentos morais procurou o universal e assim levou a sua investigação para o
terreno da ciência
126

(Met., 1, 6, 987 b 1). Portanto, a Sócrates cabe o mérito de ter sido o


primeiro a organizar a investigação segundo um método propriamente cientifico.
O saber, de que quer despertar a necessidade e o interesse nos homens, deve
ser uma ciência, alcançada segundo um método rigoroso. E efectivamente só uma
ciência deste género, com a sua perfeita objectividade, permite aos homens
entenderem-se e associarem-se na investigação comum. Só como ciência, a
virtude é ensinável (Prot., 361 b).

Foi posto em dúvida o valor do testemunho aristotélico sobre o significado


lógico da investigação socrática. As afirmações de Aristóteles derivariam das
de Xenofonte (Mem., IV, 6) e estas por sua vez das platónicas (Fedro., 262 a-
b). Por outro lado, ainda que se atribua todo o valor aos testemunhos de
Aristóteles e de Xenofonte, não se seguiria daí que caiba a Sócrates o título
de inventor do conceito, pois que investigou apenas conceitos ético-práticos e
estes exprimem não aquilo que realmente é, mas aquilo que deve ser: a sua obra
científica não apontava para o conhecimento, mas era reflexão crítico-
normativa em torno do fazer e do viver do homem. Ora precisamente aquilo que
estas considerações têm de verdadeiro revela o mérito indubitável de Sócrates
como iniciador da investigação científica e confirma o testemunho de
Aristóteles. E, em primeiro lugar, ainda que Xenofonte e Aristóteles tivessem
repetido substancialmente os testemunhos de Platão, este próprio facto
equivaleria à confirmação dos mesmos por parte de homens que tinham maneira de
comprovar a sua exactidão, Xenofonte fora aluno de Sócrates e ainda que os
anos decorridos e a sua escassa capacidade filosófica o tornassem pouco apto
para compreender a personalidade do mestre, não se pode crer que o tornassem
incapaz até de compreender o método da sua investigação. Quanto a Aristóteles
127

é difícil supor que se teria limitado a reproduzir o testemunho de Xenofonte


se este estivesse em contradição com uma tradição que, dentro e fora do
ambiente platónico, era viva e operante.

Mas a questão fundamental é a do significado que o conceito tem para Sócrates.


Indubitavelmente os conceitos que Sócrates elaborou são todos de carácter
ético-prático e referem-se ao dever ser e não à realidade de facto. Mas
qualquer conceito, teorético ou prático, tem por objecto a essência das
coisas, o seu ser permanente ou a sua substância. Que coisa seja a substância
ou a essência é depois o problema que Sócrates deixaria em herança aos seus
sucessores e que constitui o tema fundamental da investigação de Platão e de
Aristóteles.

§ 35. A MORTE DE SÓCRATES

A influência de Sócrates exercera-se já em Atenas sobre toda uma geração,


quando três cidadãos, Meleto, Anito e Licone o acusaram de corromper a
juventude ensinando crenças contrárias à religião -do estado. A acusação tinha
escassa consistência e
teria ficado em nada, se Sócrates tivesse feito qualquer concessão aos juízes.
Não quis fazer nenhuma. Pelo contrário, a sua defesa foi uma exaltação da
tarefa educativa que havia empreendido relativamente aos atenienses. Declarou
que em caso algum abandonaria esta tarefa, à qual era chamado por uma ordem
divina. Por uma pequena maioria, Sócrates foi reconhecido culpado. Podia ainda
partir para o exílio ou propor uma pena que fosse adequada ao veredicto. Em
vez disso, ainda que manifestando-se disposto a pagar uma multa de três mil
dracmas, declarou orgulhosamente que se sentia merecedor de ser alimentado a
expensas públicas no Pritaneu como se fazia aos beneméritos

da cidade. Seguiu-se então. com mais forte maioria, a condenação à morte que
fora pedida pelos seus acusadores.

Entre a condenação e a execução decorreram trinta dias porque uma solenidade


sagrada impedia naquele período as execuções capitais. Durante este tempo os
amigos organizaram a sua fuga e procuraram convencê-lo; mas recusou. Os
motivos desta recusa são expostos no Críton platónico: Sócrates quer
dar com a sua morte um testemunho decisivo a favor do seu ensinamento. Vivera
até então ensinando a justiça e o respeito pela lei; não podia com a fuga ser
injusto para com as leis da sua cidade e desmentir assim, no momento decisivo,
toda a sua obra de mestre. Por outro lado, não temia a morte. Ainda que não
tivesse uma absoluta certeza da imortalidade da alma. nutria a esperança de
uma vida depois da morte que fosse para os homens justos melhor do que para os
maus. Tinha setenta anos; sentia que completara a sua missão, que lhe
permanecera fiel toda a sua vida e que devia dar-lhe ainda, com a morte, a
última prova de fidelidade. As suas últimas palavras aos discípulos foram
ainda um incitamento à investigação: "Se tiverdes cuidado com vós próprios,
qualquer coisa que façais será grata a mim, aos meus e a vós mesmos, ainda que
agora não vos compremetais em nada. Mas se pelo contrário não vos preocupardes
com vós próprios e não quiserdes viver de maneira conforme àquilo que agora e
no passado vos tenho dito, fazer-me agora muitas e solenes promessas não
servirá de nada" (Fed., 115 b).

Se a Grécia antiga foi o berço da filosofia porque pela primeira vez realizou
a investigação autónoma, Sócrates encarnou na sua pessoa o espírito genuíno da
filosofia grega porque realizou no mais alto grau a exigência daquela
investigação. No empenho de uma investigação conduzida com
129
método rigoroso e incessantemente continuado, pôs o mais alto valor da
personalidade humana: a virtude e o bem. Tal é de facto o significado daquela
identificação entre a virtude e a ciência, que foi conhecida tantas vezes por
intelectualismo. A ciência

é para Sócrates a investigação racional ente conduzida e a virtude é a forma


de vida propriamente humana. a sua identidade é a significado não só da
problemas, da própria personalidade de Sócrates.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 28. os restos de uma Vida de Sócrates, escrita por Aristoxerio, discípulo de


Aristóteles, encontram-se em MuLhER, Fragm. hist. graec., 11, p. 280
se98Encontram-se outras noticias nos Memoráveis e na Apologia de Xenofonte e
nos diálogos de Platão, citados no texto. Existe, além disso, a Vida de
DIOGENES LAIÉRCIO, 11, 18 segs.. Para a edição dos escritos de Xenofonte e de
Platão, relativos a Sócrates, ver notas bibliográficas dos capitulos 8 e 9.

§ 29. Atribuiram valor histórico à caricatura de Aristófanes: ClITAPELLI, O


naturalismo de Sócrate,9 e as primeiras nuvens de Aristóla~, in "Rend. Ace.
Lincei, CI. Seienze morali", 1886, p. 284 segs.; Novas investigações sobre o
naturalismo de 3ócrate8, In "Archv. für Gesch. der Phil.", IV, p.
369 sgs.; T-AyLoR, Varia socratíca, Oxford, 1911, p. 129 s,-s..

Seguiu preferentemente Aristóteles para a interPretaçço de Sócrates: K.


JOFJ,, Der echte und der xe-nc-fonteus Sokrates, Berlim, 1893-1901, ao
passo que seguiu Xenofonte A. DORING, Die Lehre des Sokrates ais soziales
Reformsystem, Mónaco, 1895.-J. BURNET, Greek Philosophy, 1, cap. 11, e A. E.
TAYLOR, VariO s~atica, Oxford, 1911; ID., Socrates, Londres, 1935, trad.
itali., Florença, 1951; ID., Plato, Londres, 1926 (4.* edição, 1937)
consideram que Platão foi apena-, * historiador de Sócrates. Seguiram
preferenternenU * representação de Xenofonte, servindo-se para valerizÁ-la dos
testemunhos de Aristóteles: ZELLER, V01. 11,
2; GompERz, vol. III, p. 46 sgs.; WILLAMOWITZ, Platon, I, p. 94 sgs. e outros
historiadores dependentes destes. ENRICO MAIER, Sokrates, sein Werk und seine

130

geachichtUche SteUung, Tubinga, 1913 (,trad. ital., Florença, 1944), nega


qualquer valor histórico ao testemunho de Aristóteles que considera dependente
em tudo de Pistão e de Xenofonte, reduz a obra deste último a uma pura
composição Uter&ria (pelos motivos repetidos no texto) e funda-se sobretudo em
Platão pela sua feliz reconstrução da figura de Sócrates. -Sobre as diversas
interpretações que têm sido dadaa ao significado filosófico da figura de
Sócratea e para a bibliografia relativa: PAOLO ROSSI, Per una storia della
8toríografia &ocratica, in Probemi di atoriografia filo"fioa, ao cuidado de A.
BANFI, Milão, 1951. Con~ frontar entre outros: O. GIGON, S., Berna, 1947; V.
DE MAGAIMÃES-VILHENA, Le problèm-- de S.; Le S. historiqi&e et le S. de
Platon, Paris, 1952; A. H. CHROUST, S. Man and Myth, Londres, 1956; J. BRUN,
S., Paris,
1960.

§ 30. Para a missão de Sócrates, ver a Apologia de Platão, especialmente cap.


17. Para o "conhece-te a ti mesmo", o Alcib~ 1, 129 sgs. Para a ironia, Mémm,
SO. Para o poder de libertação da ironia, Sofísta, 230.

§ 31. Sobre a malêutica, especialmente Teeteto,


148, 151, 210.

§ 32. Sobre a Identidade da ciência e virtude e sobre o utilitarísmo de


Sócrates, cfr. o Protágor", sobre que é fundada a exposição deste parágrafo. %
33. Sobre o demónio socrático, confr. especialmente Apologia, 29, 30. Mas as
alusões de Sócrates ao seu demónio são frequentes em todos os diálogos
socráticos de Platão. Mais frequentemente, o demónio age negativamente,
dissuadindo Sócrates de realizar uma acção qualquer. Mas o demónio
principalmente chama-o para a sua tarefa de examinar os outros e a si próprio.
Sobre as Ideias religiosas de Sócrates: Xenoffonte, Men~abili, 1, 4; IV, 3. O
demónio é compreendido como a voz da consciência por ZELLER e GOMPM, loc.
cit.. Ver sobre a insuficiência desta interpretação- MAiER, parte UI, cap. 4.

§ 34. A critica do valor do testemunho de Aristóteles está in MAiER, op. cit.,


vol. I, parte I, cap. 3; parte 11, cap. IV. A conclusão que nega a Sócrates o
mérito de descobridor do conceito com os argu-

131

mentos discutidos no texto, estã a p. 283 da traduÇAO Itallana.

§ 35. As vIciasitudes do processo de Sócrates encontram-se na Apologia de


Platão e na de Xenofonte. O Críton expõe a atitude de Sócrates frente ao
projecto de fuga preparado pelos amigos. O final do Pé~ narra as últimas horas
de S6crates e a sua morte.

132

VIII

AS ESCOLAS SOCRÁTICAS

§ 36. XENOFONTE

Nascido em 440-39, e morto com 80-90 anos, Xenofonte não foi um filósofo, mas
antes um homem de acção, especialmente competente em assuntos militares e em
questões económicas. Conhecido principalmente por ter dirigido a retirada dos
dez mil gregos que participavam na expedição de Ciro contra o irmão Artaxerxcs
para a conquista do trono da Pérsia, retirada que ele narrou no An~s,
Xenofonte pertence à história da filosofia por Os Ditos Memoráveis de Sócrates
e por outros escritos menores nos quais se faz sentir a influência do
ensinamento de Sócrates. Vimos que os Memoráveis não oferecem um quadro
exaustivo da personalidade de Sócrates. A Apologia de Sócrates é a continuação
dos Memoráveis e pretende ser a defesa pronunciada por Sócrates ante os
juízes. Outros escritos que provam o diletantismo filosófico de Xenofonte são
A Ciropedia. uma espécie de romance histórico que tende a desenhar em
133

Ciro o tipo ideal do tirano iluminado; o diálogo intitulado Gerone que tem um
intento análogo; e o Banquete, escrito provavelmente à imitação do platónico
no qual aparece também a figura de Sócrates. Nenhum enriquecimento ou
desenvolvimento original deu Xenofonte à doutrina de Sócrates.

Entre os demais discípulos de Sócrates parece que Ésquines escreveu sete


diálogos de carácter socrático que não chegaram até nós. Também a Simias e, a
Cebes os dois interlocutores do Fédon platónico, se atribuem escritos de que
nada se sabe.

Quatro discípulos de Sócrates, além de Platão, são fundadores de escolas


filosóficas: Euclides da escola de Megara; Fédon da de Elida; Antístenes da
Cínica; Aristípo da Cirenaica. Mas da escola de Fédon, a qual foi devida a
Menedemo de Eretria, que sucedeu a Fédon, se chamou Eretríaca, nada sabemos.

Cada uma das três outras escolas socráticas acentua um aspecto do ensinamento
de Sócrates, descurando ou negando os outros. A escola cínica coloca o bem na
virtude e repudia o prazer. A cirenaica situa o bem no prazer e proclama-o
como o único fim da vida. A megárica acentua a universalidade do bem até o
subtrair à esfera do -homem e a identificá-lo com o ser de Parménides.

§ 37. A ESCOLA MEGÁRICA

Euclides de Megara (não confundir com o matemático Euclides que viveu e


ensinou em Alexandria cerca de um século mais tarde), depois da morte de
Sócrates, voltou à sua cidade natal e aqui procurou continuar com o seu ensino
a obra do mestre. Parece que pertenceu à primeira geração dos discípulos de
Sócrates e que não viveu mais de um decénio depois da sua morte. Outros
represen-

134

tantes da escola são Eubulídes, de Mileto, o adversário de Aristóteles;


Diodoro Crono (morto em
307 a.C.) e Estilpon que ensinou em Atenas por volta de 320.

A característica da escola megárica é a de unir o ensino de Sócrates com a


doutrina eleática. Euclides considerava que um só é o Bem e é a virtude que é
sempre idêntica a si própria apesar de ser chamada com muitos nomes:
Sabedoria, Deus, Intelecto, etc. Ao mesmo tempo negava a realidade de tudo
aquilo que é contrário ao bem. E como o conhecimento do bem é a virtude,
admitia que não há mais que uma virtude e que as várias virtudes não são mais
que diversos nomes da mesma.

Para afirmarem a unidade, os Megáricos, seguindo as pisadas dos Eleatas,


repudiavam completamente a sensibilidade como meio de conhecimento e prestavam
fé exclusivamente à razão. Consequentemente, como os Eleatas, negavam a
realidade do múltiplo. do devir e do movimento; e desenvolveram uma
dialéctica, semelhante à de Zenão de Eleia, destinada a reduzir ao absurdo
toda a afirmação que implicasse a realidade do múltiplo, do devir e do
movimento.

Contra a multiplicidade, usaram argumentos, desenvolvidos sofisticamente, que


se tornaram famosos. Eubulides, usou entre outros o argumento do sorites (ou
montão): tirando um grão de um montão, o montão não diminui; nem sequer
tirando-os todos um a um (DioG. L., VII, 82). O mesmo argumento se repetia
para os cabelos ou para a cauda de um cavalo (argumento do cavalo: Cicer.,
Acad., 11, 49: Horácio, Ep. II, I). À mesma negação de qualquer multiplicidade
se encaminha a crítica dos megáricos sobre a possibilidade do juízo. Segundo
Estilpon, é impossível atribuir um predicado ao sujeito e dizer, por exemplo,
que "o cavalo corre". Efectivamente o ser do cavalo e o
135

ser do que corre são diferentes e definimo-los diferentemente: não se pode


portanto identificá-los como se faz na proposição. Por outro lado, se fossem
idênticos. isto é, se o correr fosse idêntico ao cavalo, como se poderia
atribuir o mesmo predicado de correr também ao leão e ao cão? Admitida uma
multiplicidade qualquer ou como composição de partes (como no argumento do
sorites) ou como diversidade de predicados, segue-se daí o absurdo; e assim
fica demonstrada a falsidade de tal admissão.

Os Megáricos admitiram também argumentos que não têm em mim a redução ao


absurdo do múltiplo mas pertencem ao género daqueles que hoje se chamam
antinomias ou paradoxos, isto é argumentos indecidíveis, no sentido de que não
se pode decidir sobre a sua verdade ou falsidade.
O mais famoso de tais argumentos é o de mentiroso que vem referido assim por
Cícero: "Se tu dizes que mentiste, ou dizes a verdade e então mentiste ou
dizes o falso e então dizes a verdade" (Acad., IV, 29, 96). Se alguém diz
"menti" (sem nenhuma limitação) faz uma asserção que concerne todas as suas
asserções compreendida a que enuncia neste momento; mas se mentiu ao dizer
"menti" isto significa que diz a verdade; e se diz a verdade quer dizer que
mentiu e assim por diante. A base do argumento consiste portanto em fazer
asserções desprovidas de limitações que concernem todos os casos, compreendido
aquele constituído pela própria asserção: noutros termos, consiste no uso
autoreflexivo da noção "todos" considerada inclusiva da própria asserção.
Argumentos do género são discutidos também na lógica contemporânea. Na
antiguidade, discutiram-nos, além dos Megáricos, os Estóicos: e na Idade Média
a discussão deles fez parte integrante da lógica terminística que os chamava
insolúveis (Insolubilia).

136

Contra o devir e o movimento, os Megáricos por obra de Diodoro, Crono, negaram


que houvesse potência quando não há acto; por exemplo, quem não constrói não
tem o poder de construir. Este princípio suprime o movimento e o devir porque
(como nota Aristóteles) quem está em pé estará sempre em pé e quem está
sentado estará sempre sentado, sendo impossível levantar-se a quem não tem o
poder de levantar-se. O argumento de Diodoro Crono (dito o argumento
vitorioso) afirma que só aquilo que se verificou era possível, pois que se
fosse possível aquilo que nunca se verifica, do possível resultaria o
impossível. O argumento leva a admitir que tudo aquilo que acontece deve
necessariamente acontecer, e que a própria imutabilidade que existe para os
factos passados existe também para os futuros. anda que não pareça. Brincando
com este argumento, Cícero escrevia a Varrão: "Saberão que se me fazes uma
visita, essa visita é uma necessidade, pois, se não o fosse, contar-se-ia
entre as coisas impossíveis." Diodoro retomava pois, reelaborando-os, os
argumentos de Zenão contra o movimento.

Estilpon colocava o ideal do sábio na impassibilidade (apatheia) e considerava


que o sábio se basta a si próprio e por isso não tem necessidade de amigos.

§ 38. A ESCOLA CINICA. ANTISTENES

O fundador da escola cínica é Antístenes de Atenas que foi primeiro discípulo


de Górgias, depois de Sócrates e após a morte deste ensinou no Ginásio
Cinosargos. O nome da escola deriva do género de vida dos seus sequazes: o
epíteto de cães indicava o seu ideal de vida conforme à simplicidade (e à
desfaçatez) da vida animal.
137
Antístenes escreveu ao que parece (mas não nos chegou quase nada), um livro
Sobre a natureza dos animais, no qual provavelmente tirava dos animais modelos
ou exemplos para a vida humana; e compôs escritos sobre personagens homéricos
(Ajax, Ulisses) ou mitos (Defesa de Orestes). Mas a figura que Antístenes e os
outros cínicos principalmente exaltavam era a de Hércules que é precisamente o
título de um outro escrito de Antístenes. Hércules, superando fadigas
desmedidas e vencedor de monstros, é o símbolo do sábio cínico que vence
prazeres e dores e sobre uns e outros afirma a sua força de ânimo.

Antístenes concordava com os Megáricos ao considerar impossível todo o juízo


que não fosse a pura e simples afirmação de uma' identidade. Platão que alude
a Antístenes no Sofista (215 b-c), incluindo-o com certo desprezo entre "os,
velhos que começaram tarde a aprender", testemunha-nos que ele considerava
impossível afirmar, por exemplo, que "o homem é bom" porque isso equivaleria a
dizer que o homem é ao mesmo tempo um (homem) e múltiplo (homem e bom); e
queria portanto que se dissesse apenas "o homem homem" e "o bom bom".
Aristóteles confirma o testemunho de Platão: "Antístenes professava a estulta
opinião de que de nenhuma coisa se possa dizer mais que o seu nome próprio e
que por isso não pode dizer-se mais que um só nome de cada coisa individual."
(Met., V, 29, 1024 b, 32). Disto derivaria -nota Aristóteles-que é impossível
contradizer e é impossível até dizer o faise,-, efectivamente ou se fala da
própria coisa e não nos podemos servir senão do seu próprio nome e não há
contradição ou se fala de duas coisas diferentes e tão-pouco neste caso é
possível a contradição. Segundo este ponto de vista, a doutrina platónica das
ideias como realidade universal devia parecer inconcebível, dado
138

que para Antístenes a realidade é sempre individual. e até, como veremos de


seguida, corpórea; e além dela não há mais que o nome próprio que a indica:
não subsiste nenhum universal. De facto teria observado a Platão: "Ó Platão,
vejo o cavalo mas não a cavalidade". Ao que Platão teria respondido: "Porque
não tens olhos para vê-la" (Simpl., Cat, 66 b, 45).

Antístenes foi o primeiro que considerou a definição flogos) como a expressão


da essência de uma coisa: "a definição é aquilo que exprime aquilo que é ou
era." Mas a definição só é possível das coisas compostas, não dos elementos de
que resultam. Cada um destes elementos pode ser unicamente nomeado, mas não
caracterizado de outro modo, os compostos, pelo contrário, ao constarem de
vários elementos, podem ser definidos entrelaçando entre si os nomes destes
elementos (Arist., Met., VIII, 3, 1043 b, 25).

A Antístenes parece que se referem também as alusões do Sofista e do Teeteto


aos homens "que não acreditam que haja outra coisa senão aquilo que se pode
apertar com as mãos todas" isto é, aos materialistas que não admitem que não
haja mais realidade que a corpórea.

O único fim do homem é a felicidade e a felicidade está no viver segundo a


virtude. A virtude é concebida pelos cínicos como inteiramente suficiente por
si mesma. Não existe outro bem fora dela. O que os homens chamam bens e em
primeiro lugar o prazer, são males porque distraem ou afastam da virtude.
"Quisera antes ser louco do que gozar", dizia Antístenes. Por isso o homem
deve procurar libertar-se das necessidades que o escravizam. Deve também
libertar-se de todo o vínculo ou relação social e bastar-se absolutamente a si
próprio. Contra a religião tradicional, Antístenes afirmou que "segundo as
leis, os deuses são muitos,
139

mas orientando a natureza há um só deus" (Cícero, De nat. deor., 1. 13, 32);


afirmação que provavelmente não tinha o significado monoteístico que seríamos
tentados a dar-lhe, mas exprimia apenas a exigência universal e panteística de
que a divindade está presente em toda a parte.

§ 39. DIÓGENES

Diógenes de Sinope, que foi discípulo de Antístenes em Atenas e dali passou a


Corinto onde morreu muito velho em 323 a.C., foi chamado (talvez por Platão) o
Sócrates louco. Este apelativo revela o carácter do personagem. Ele levou ao
extremo o desprezo característico da escola cínica por todo o costume, hábito
ou convenção humana e quis realizar integralmente aquele retorno à natureza
que é o ideal da escola cínica. Não nos chegou quase nada dos seus sete dramas
e dos seus escritos em prosa (entre os quais uma República).

A lenda apoderou-se dele, atribuindo-lhe um grande número de anedotas e de


características que provavelmente nada têm de histórico. Certamente não
habitou sempre num tonel, nem sempre viveu como mendicante. Mas a sua oposição
a todos os usos e às convenções humanas era radical. Diz-se que foi o primeiro
a usar a capa de tecido grosseiro que servia também de coberta, a sacola onde
trazia o alimento e o bordão, que depois se tornaram os distintivos dos
Cínicos na sua vida de mendicantes (Diog. L., VI, 22). Diógenes defendia a
comunidade das mulheres e até a dos filhos; declarava-se cidadão do mundo e
manifestava em todas as circunstâncias da vida aquela desvergonha que se
tornou proverbial entre os Cínicos. Aqueles que para afirmar a força de ânimo
do homem entendiam reconduzi-lo à naturalidade primitiva da
140

vida animal. pouca conta podiam fazer do saber e da ciência; e verdadeiramente


neste ponto, a escola cínica foi gravemente infiel ao ensinamento socrático
que na investigação científica reconhecia a verdadeira vida do homem.

No numeroso bando dos Cínicos - mostram todos monotonamente os mesmos traços e


agitam furiosamente capas e sacolas para exibir uma força de ânimo que
Sócrates ensinara dever alcançar-se com a serena e paciente investigação
científica -, distingue-se Cratete, um tebano de nobre família que foi seguido
na vida de mendicante pela mulher Hiparquias. Compôs poesias satíricas e
trágicass onde celebrava o cosmopolitismo e a nobreza.

§ 40. A ESCOLA CIRENAICA. ARISTIPO

O fundador da Escola Cirenaica é Aristipo de Cirena. Nascido por volta de 435,


foi para Atenas depois de 416 e aqui conheceu e frequentou Sócrates. Depois da
morte dele ensinou em várias cidades da Grécia e foi também a Siracusa junto
da corte do primeiro ou segundo Dionísio. São-lhe atribuídas numerosas obras,
entre as quais uma História da Líbia, mas a atribuição é insegura e de tais
obras nada -ficou. Como para os outros fundadores das escolas socráticas
torna-se difícil discernir, no conjunto de doutrinas que foram transmitidas
como património dos Cirenaicos, as que pertencem genuinamente ao fundador da
Escola. Ademais porque Aristipo teve uma filha Arete que continuou o seu
ensinamento e iniciou na doutrina do pai o filho Aristipo, e um escritor
antigo atribuiu ao mais jovem Aristipo o desenvolvimento sistemático das
ideias da escola. Mas os testemunhos de Platão, de Aristóteles e de Speusipo
(autor de um
141
diálogo intitulado Aristípo que andou perdido) convêm em atribuir ao primeiro
Aristipo as doutrinas fundamentais da escola.

Também para os Cirenaicos, como para os Cínicos e os Megáricos, a investigação


teorética passa para segundo plano e é cultivada apenas como um contributo
para resolver o problema da felicidade e da conduta moral. Porém, a sua ética
compreendia também uma física e uma teoria do conhecimento, pois que (segundo
os testemunhos de Sexto Empírico e de Séneca) estava dividida em cinco partes:
a primeira em torno das coisas que são de desejar ou de evitar, isto é, em
torno do bem e do mal; a segunda em torno das paixões; a terceira em torno das
acções; a quarta em torno das causas, isto é, dos fenómenos naturais; e a
quinta em torno da verdade (Sexto E., Adv. math., VH. 11). Evidentemente a
quarta e a quinta partes são a física e a lógica.

Na teoria do conhecimento, Aristipo inspira-se prevalentemente em Protágoras.


Considera que o critério da verdade é a sensação e que esta é sempre
verdadeira, mas não diz nada sobre a natureza do objecto que a produz. Podemos
afirmar com certeza que vemos o branco ou sentimos o doce; mas que não é
possível demonstrar que o objecto que produz a sensação seja branco ou doce.
Aquilo que nos aparece, o fenómeno, é apenas a sensação; pois bem, esta é
certa, mas para lá dela é impossível afirmar seja o que for (Sesto E., Ad.
math., VII, 193, segs.). A doutrina da sensação que o Teeteto (156-7)
platónico desenvolve, deduzindo-a do princípio de Protágoras de que o homem é
a medida das coisas, parece ser característica de Aristipo, a que Platão alude
com a frase: "outros mais requintados". Segundo esta doutrina, há duas formas
de movimento, cada uma das quais é depois
142

infinita em número: uma tem potência activa (o objecto), a outra tem potência
passiva (o sujeito). Do encontro destes dois movimentos se gera por um lado a
sensação, pelo outro o objecto sensível. As sensações têm os seus nomes
habituais: vista, ouvido, ete., ou então prazer, dor, desejo, temor, etc.-, os
sensíveis têm nomes correlativos às sensações: cores, sons, etc.. Mas nem o
objecto sensível, nem a sensação subsistem antes nem depois do encontro dos
dois movimentos que lhes dão lugar; e em tal sentido nada é, mas tudo se gera.

A sensação é também o fundamento dos estados emotivos do homem. Estes são


três: um para quem sente dor, semelhante às tempestades no mar; o outro para
quem sente prazer, semelhante às ondas ligeiras, porque o prazer é um
movimento leve comparável a uma brisa favorável; o terceiro é o estado
intermédio, pelo qual não se sente nem prazer, nem dor, semelhante à calma do
mar (Eusébio, Prap. ev., XIV, 18). Segundo Aristipo, o bem consiste apenas nas
sensações agradáveis; e a sensação agradável é sempre actual. O fim do homem é
portanto o prazer, não a felicidade. A felicidade é o sistema dos prazeres
particulares, na qual se somam também os prazeres passados e futuros; mas ela
não é desejada por si própria, antes pelos prazeres particulares de que é
tecida (Diog. L., 11,
88). O prazer-e o bem portanto-era, por conseguinte, para Aristipo uma coisa
precisa que vive só no instante presente. Não dava nenhum valor à recordação
dos prazeres passados e à esperança dos futuros, mas apenas ao prazer do
instante. Aconselhava pensar no presente, melhor no dia de hoje, no instante
em que cada um opera ou pensa, porque, dizia ele, "só o presente é nosso, não
o momento passado nem aquele que aguardamos, porque um está destruído e do
outro não, sabemos se existirá" (Eliano, Var. hist., XIV, 6).
143
Todavia, precisamente neste viver para o instante e no instante, Aristipo
realizava aquela liberdade espiritual que lhe permitia afirmar orgulhosamente:
"Possuo, não sou possuído" (Diog. L., H.
75). E efectivamente viver no instante significa para ele não deplorar o
passado, nem atormentar-me na espera do futuro, não desejar um prazer maior do
que aquele, mesmo modesto, que o instante presente pode oferecer; significava
também não se deixar dominar pelos desejos desmedidos, contentar-se mesmo com
o pouco. não se preocupar com um futuro que provavelmente não virá. Aceitar o
prazer do instante era portanto para ele a vida da virtude. E a tradição
apresenta-o de humor constantemente igual e sereno, corajoso frente à dor,
indiferente à riqueza (que todavia não desprezava), frio e humano. Aristóteles
narra-nos que, a uma observação um pouco alterada de Platão, respondeu apenas:
"O nosso companheiro (Sócrates) falava de outra maneira" (Rei., 11, 1398 ib).

§ 41. OUTROS CIRENAICOS

Nos sucessores de Aristipo, o princípio do prazer actual entra em contradição


com a investigação do prazer guiada pelo intelecto.

Teodoro o Ateu afirmou que o fim do homem não é o prazer mas a felicidade, e a
felcidade consiste na sabedoria. A sabedoria e a justiça são bens; são males a
estultícia e a injustiça. O prazer e a dor nem são bens nem -males. mas são
por si indiferentes do todo. Considerava a amizade inútil quer para os tolos
quer para os sábios; uns não a sabem usar, os outros não têm necessidade dela
porque se bastam a si próprios (Diog. L., 11, 98). Teodoro afirmava que a
pátria do sábio é o mundo
144

e negava não só a existência dos deuses populares, mas também da divindade em


geral; daqui o seu cognome de Ateu (Cicer., De nat. deor., 1, 2,
63, 117). '

Egesia traz do hedonismo uma conclusão pessimista. Os males da vida são tantos
que a felicidade é impossível. A alma sofre e perturba-se juntamente com o
corpo e a fortuna impede de alcançar aquilo que se espera. O sábio não deve
por isso afadigar-se na vã tentativa de procurar a felicidade, mas deve antes
evitar os males, tentar viver isento de dores, dado que isto pode ser
conseguido também por quem fica indiferente ao prazer (Diog. L.,
11, 94-95). Sustentava que a vida, que é um bem para o tolo, é indiferente
para o sábio. Um escrito intitulado O suicida valeu-lhe o epíteto de "advogado
da morte" (Peisithanatos); e levou as autoridades de Alexandria a proibir o
seu ensino (Diog. L., 11, 86).

Em oposição a Egesias, o seu contemporâneo Anícerídes fundava a moral na


simpatia para com os outros homens. Perante a impossibilidade de obter da vida
a felicidade, Anicerides era de opinião que o homem devia encontrar a sua
satisfação na amizade e no altruísmo (Diog. L., 11, 96). Reabilitava,
portanto, os laços familiares e o amor da pátria e rompia deste modo o frio
individualismo em que se haviam fechado Teodoro e Egesias.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 36. Sobre a vida de Xenortonte: DIMENES LA£Rcio, 11, 48-59. Edições


completas das obras socráticas de Xenofonte: DINDORF, SAUPPE, Letpzig, 1867-
70; SCHENKL, Berlim, 1869-1876. Sobre Xenofonte v. oa escritos sobre Sócrates
e: J. LuccioHi, Les Wes politiques et soci~ de X., Paris, 1947.

145

§ 37. Sobre a vida, a doutrina e os escritos dos Megãricos: DIõGENEs LAÉRCIO,


11, 106-120. Outras fontes em ZL=, 11, 1, 245, 1 segs. Os escritos não
chegaram até nós, os títulos vêm em DIOGENEs LAMCIO.-GOMMM, II, p. 176 segs.
Para a doutrina dos Megáricos as fontes sã o constituídas pela exposição de
DIóGENES LAÉRCIO. Alguns dos argumentos mais conhecidos contra o movimento
foram conservados por S=To-EmpiRico, Contra os matemãticos, VII, 216; X,
85-86. O argumento vitorioso é referido por EPiCTETO, Diss, H, 19, 1.
ARISTóTELES combate a negação da ~ncia na Metafisica, IX, 3, 1047; PLATÃO faz
referências aos Megáricos no Solista, em vários passos (248, 251 b-c). A frase
referida por CICERO está numa carta Ad fam., 9,4. Para uma colecção de
fragrientos: W. NESTLE, Die Sokrati7zer in Answahi, 1922. Discutiu a lógica
dos Megáricos e citou as suas fontes: PRANTI, ~chichte der Logik, I, Leipzig,
1855, p. 33 segs -C. MALLET, Histoire de 1'école de M. et des écoles d'Êlis et
dSretrie, Paris, 1843, P. M. SCHUM, Le Domi- nateur et les possibles, Paris,
1960,

§ 38. Sobre a vida, a doutrina e os escritos dos Cínicos: DIóGENES LAÉRCIO,


VI. Outras fontes em ZELI,ER, 11, 1, 281, 1 segs. Fragmentos em MuLLAc, Frag.
philos. graec., 11, 259-395. PLATÃO alude a Antistenes no Sofista, 251, e
ARISTóTELES na Metafí&ica, V, 29. Sobre o materialismo de Antístenes, V,
PLATÃO, Tecteto, 201-2z2. DUI)LEV, A History of Cynicism, Londres, 1937;
HOISTADT, Cynic Hero and Cynic King. Studies in the Cynic Conceptiwt of Man,
Upsala, 1949.

§ 39. Sobre estes Cínicos v. GwiPERz, II, p. 160 segs.; SAYRE, Diogenes of
Sinope, Baltimore, 1938.

§ 40. Sobre a vida, a doutrina e os escritos de Aristi,po e da sua escola:


DIõGENEs LAÉRCIO, 11, 65-104; DIELS, Doxogr. Graec., sob "Aristipo". Outras
fontes em ZEIXER, 11, 1, 336, 2 segs. A mais completa colecção de fragmentos e
testemunhos é: G. GIANNANTONI, I Cirenaici, Florença, 1958, com trad. ital. e
bibliografia.

§ 41. Não chegaram até nós quaisquer escritos. As sentenças foram recolhidas
em MULLACII, Fragmenta philos. graec., 11, 405 segs. - ZELLER, loe. cit.;
GomPERZ, II, p. 216 segs.; JOEL, Geschichte der ant. Philos.,
1, 925 segs.; STENZEL, artigo na Enciclop. PaulyWissows,-Kro11; ZELLER, loe.
cit.; GOMPERZ, II, p. 227.

se.gs,

146
Ix

PLATÃO

§ 42. A VIDA E O IDEAL POLÍTICO


DE PLATÃO

Platão nasceu em Atenas em 428 a.C., proveniente de uma família da antiga


nobreza; descendia de Sólon por parte da mãe e do rei Codro por parte do pai.
Pouco se sabe da sua educação. Segundo Aristóteles, era ainda jovem quando se
familiarizou com Crátilo, discípulo de Heraclito e, por isso, com a doutrina
heraclitiana. Segundo Diógenes Laércio, teria escrito composições épicas,
líricas e trágicas, que mais tarde queimara; mas esta notícia, embora não seja
inverosímil, nada tem de seguro. Aos vinte anos começou a frequentar Sócrates
e, até 399, ano da sua morte, contou-se entre os seus discípulos. Este ano,
todavia, marca também uma data decisiva na vida de Platão.

A Carta VII, depois que lhe foi reconhecida a autenticidade, tornou-se o


documento fundamental, não só para a reconstrução da biografia, mas ainda da
própria personalidade de Platão. Ela vai per-
147

mitir-nos deitar uma vista de olhos pelos interesses espirituais que dominaram
esta primeira parte da sua vida. Desde jovem que pensava dedicar-se à vida
política. O senhorio dos Trinta Tiranos, entre os quais tinha parentes e
amigos, convidou-o a participar no governo. Mas as esperanças que Platão
pusera na sua acção frustraram-se: os Trinta fizeram, recordar vivamente, com
as suas violências, o velho estado de coisas. Entre outras coisas, ordenaram,
a Sócrates que fosse com outros a casa de um cidadão para matarem este, e isto
para envolverem Sócrates, quisesse ele ou não, na sua política (Carta VII, 325
a; Ap. 32 c). Após a queda dos Trinta, a restauração da democracia envolveu
Platão na vida política; mas acontece então o facto decisivo que para sempre o
enojou da política do tempo: o processo e a condenação de Sócrates. Desde esse
momento, Platão não deixou de meditar em como se poderia melhorar a condição
da vida política e toda a constituição do estado, mas adiou a sua intervenção
activa para um momento oportuno. Deu-se conta então que a melhoria somente
poderia ser efectuada pela filosofia. "Vi que o género humano não mais seria
libertado do mal se antes não fossem ligados ao poder os verdadeiros
filósofos, ou os regedores do estado não fossem tornados, por divina sorte,
verdadeiramente filósofos" (Carta VII, 325 c).

Das experiências políticas da sua juventude, experiências de espectador, não


de actor, Platão trouxe, pois, o pensamento que havia de inspirar toda a sua
obra: só a filosofia pode realizar uma comunidade humana fundada na justiça.

Após a morte de Sócrates, vai junto de Euclides em Mégara, e depois, ao que


dizem os seus biógrafos, vai ao Egipto e a Cirene. Nada sabemos destas
viagens, de que a Carta VII nada diz; não são, contudo, inverosímeis, e a
viagem ao Egipto
148

pode considerar-se provável pelas referências frequentes, que se encontram nos


diálogos, à cultura egípcia. A sua primeira viagem de que temos conhecimento
seguro e que é também o primeiro acontecimento importante da sua vida
exterior, é a que o levou à Itália meridional. Conheceu nesta ocasião as
comunidades pitagóricas, sobretudo por intermédio do seu amigo Arquitas,
senhor de Tarento; e em Siracusa ligou-se pela amizade a Dião, tio de Dionísio
o Jovem. Diz-se que Dionísio o Velho, tirano de Siracusa, suspeitando dos
projectos de reforma política ventilados por Platão, o fizera vender como
escravo no mercado de Egina. Não sabemos se a responsabilidade do facto se
deve atribuir a Dionísio; havia guerra entre Atenas e Egina (durou até 387) e
um incidente semelhante podia verificar-se facilmente. É certa, porém, a venda
de Platão como escravo e o seu resgate por Anicerides de Cirene.

A tradição filia em tal acontecimento a fundação da Academia, para o que teria


servido o dinheiro do resgate, que foi recusado quando se soube de quem se
tratava. Nada se sabe de certo a este respeito, mas pode dizer-se que, quando
do regresso de Platão a Atenas, a "comunidade da educação livre" que Platão
tinha em mente recebeu forma jurídica; e, à semelhança das comunidades
pitagóricas foi uma associação religiosa, um tiaso. Esta era, por outro lado,
a única forma que uma sociedade cultural podia legalmente revestir na Grécia;
e em uma forma que não excluía nenhum género de actividade, nem que fosse
profana ou recreativa. Quando Dionísio o Jovem sucedeu ao pai no trono de
Siracusa (367 a.C.), Platão foi chamado por Dião para dar o seu conselho e a
sua ajuda à realizaÇão da reforma política que sempre fora o seu ideal. Após
alguma hesitação, Platão decide-se: não queria apresentar-se a si mesmo como
"homem de
149

pura teoria". nem queria abandonar ao perigo eventual o amigo e companheiro


Dião. Partiu, pois, para Siracusa. Mas aqui a posição de Dião era débil; este
incompatibilizou-se com Dionisio e foi por ele exilado. Platão ficou por algum
tempo hóspede de Dionisio e procurou iniciá-lo e empenhá-lo na pesquisa
filosófica, tal como a concebia. Mas Dionisio era o tipo do diletante
presunçoso e estava, além disso, afastado dos cuidados políticos. Platão
voltou a Atenas desiludido com ele.

Alguns anos depois, no entanto, Dionisio chamou-o insistentemente à sua corte.


Impelido pelo próprio Dião, que estava em Atenas e esperava obter do tirano,
pela intercessão de Platão, a revogação do exílio, Platão decide-se a esta
terceira viagem e em 361 partiu. Porém, o resultado foi desastroso: não
conseguiu exercer influência alguma sobre Dionísio, que não resistiu à prova
do seu ensino e acabou por fazê-lo quase prisioneiro, primeiro com pressões
morais (ameaçando confiscar os bens de Dião) e depois fazendo cercar o seu
palácio por mercenários. Quis, todavia, salvar as aparências, mostrando
continuar as suas relações com Platão; e deixou-o partir quando Arquitas de
Tarento mandou uma galera com uma embaixada. Platão foi assim libertado.

Em seguida, Dião conseguiu expulsar Dionísio, mas caiu no desfavor do povo e


foi morto na conjura promovida pelo ateniense Calipo. Este enviou uma carta
oficial a Atenas; e Platão respondeu com a Carta VII, dirigida aos "amigos de
Dião", em que expõe e justifica os interesses fundamentais pelos quais viveu.
Desde então Platão haveria de viver em Atenas exclusivamente dedicado ao
ensino.

Sabemos, pela Carta VII, que as suas ideias políticas teriam obtido em outra
ocasião mais feliz sucesso. Hermias, tirano de Atarneu, na Ntisia,
150

pediu a dois eminentes cidadãos de S~ Erasto e Corisco, discípulos de Platão,


para elaborarem uma constituição que desse uma forma mais-branda ao seu
governo. Esta constituição foi de -facto realizada e de tal modo granjeou para
Hermias as simpatias das populações da costa cólica, que alguns territórios se
lhe submeteram espontaneamente. Hermias honrou os seus amigos dando-lhes a
cidade de Asso (Didimo, In Demóst., col. 5, 52) e constituiu com os dois
platónicos -uma pequena comunidade filosófica, de que Platão era o longínquo
nume tutelar. Compreende-se, por isso, que, depois da morte de Platão,
Aristóteles se tenha precisamente dirigido a Asso.

Platão morreu em 347, aos 81 anos. Um papiro de Herculano descoberto


recentemente dá-nos a descrição das últimas horas do filósofo. A última visita
que recebeu foi a de um caldeu. Uma mulher trácia tocava e errou o compasso:
Platão, que já tinha febre, fez ao hóspede um sinal com o dedo.
O caldeu observou cortesmente que não havia como os Gregos para perceber de
medicina e de ritmo. Na noite seguinte a febre agravou-se e, talvez nessa
mesma noite, Platão morreu.

§ 43. O PROBLEMA DA AUTENTICIDADE


DOS ESCRITOS

A tradição conservou-nos de Platão uma Apologia de Sócrates, 34 diálogos e 13


cartas. O gramático Trasilo, que viveu no tempo do imperador Tibério, adoptou
e difundiu (parece que já -era conhecida por uma referência de Terêncio
Varrão)
a ordenação destas obras em 9 tetralogias, nas quais
a Apologia e as Cartas ocupam o lugar de dois diálogos. Eis a tetralogia de
Trasilo: 1., Eutífron, Apologia, Críton, Fédon; 2.a Crátilo, Teeteto,
151

Sofista, Político; 3 a Parménides, Filebo, Banquete, Fedro, 4.1 Alcibíades 1,


Alcibíades 11, Hiparco, Os Amantes; 5.a Teages, Cármides, Laches, Lísis; 6
a
Eutidemo, Protágoras, Górgias, Ménon; 7.4 Hípias maior, Hípias -menor, Ion,
Menexeno; 8.a Clitofonte, República, Timeu, Crítias; 9.a Mínos, Leis,
Epinómias, Cartas.

Alguns outros diálogos e uma colecção de Definições ficaram fora das


tetralogias de Trasilo, porque já pelos antigos eram considerados apócrifos.
Mas mesmo entre as obras compreendidas nas tetralogias algumas há que são,
indubitavelmente, apócrifas: individualizá-las e demonstrar a sua
inautenticidade é um aspecto essencial do problema platónico. Já os escritores
da antiguidade se propuseram resolver este problema; e da antiguidade até hoje
pouquíssimos têm sido os diálogos sobre que não tem caído a suspeita.
Especialmente a crítica alemã de 800 lançou-se deliberadamente na via da
"atétese" (como se costuma chamar à negação da autenticidade duma obra), até
limitar a nove o número dos diálogos autênticos. Uma salutar reacção contra
esta tendência, que acabava por atribuir a compiladores anónimos obras que são
manifestações altíssimas de pensamento e de arte, afirmou-se na crítica
moderna, que só pronuncia a atétese para as obras cujo carácter apócrifo é
evidente por elementos materiais ou formais.

Os critérios para julgar da autenticidade das obras platónicas são os


seguintes:

1.o - A tradição. Que os escritores antigos tenham julgado autêntico um


escrito é sempre uma razão fortíssima a favor deste, a menos que haja
elementos positivos em contrário. Este critério, porém, não é por si só
decisivo.

2.o - Os testemunhos antigos, devido aos escritores que comentaram ou


criticaram as obras de
152

Platão. Particular valor probatório têm as citações de Aristóteles, assumidas


por todo o historiador moderno (por ex., por Zeller) com valor de prova.
Todavia, tão-pouco este critério é decisivo, pois que diálogos,
indubitavelmente platónicos, como por exemplo o Protágoras, não são citados
por Aristóteles. Por outro lado, tais testemunhos obedecem por vezes a
critérios de escola, como é o caso de Proclo, que declarou apócrifas a
República, as Leis e as Cartas.

3.o - O conteúdo doutrinal. Este critério é muito duvidoso: uma vez que
conhecemos a doutrina de Platão pelas suas obras, julgar da autenticidade das
obras baseando-nos na doutrina é um círculo vicioso. Pode, no entanto, ser
decisivo, quando se encontram nos escritos platónicos elementos de doutrina
que pertencem a escolas posteriores. Tal é o caso do Alcibíades 11 (139 c),
onde se diz que todos os que não alcançam a sabedoria são loucos, o que é
doutrina própria dos Estóicos. Prova de inautenticidade pode ainda ser uma
contradição grosseira: como no caso do Teages (128 d), em que se afirma que o
sinal demoníaco é sempre negativo, para dizer na página seguinte (129 e) que
ele incita positivamente alguns a andarem com Sócrates.

4.o - o valor artístico. Platão é um artista extraordinário, e qualquer


diálogo seu é ao mesmo tempo obra de pensamento e de poesia. Mas,
naturalmente, não se pode pretender que todos os diálogos estejam ao mesmo
nível artístico. Este critério só é válido no caso de se encontrar uma
deficiência gravíssima, como no Teages e nos Amantes.

5.o - A forma linguística. O uso de expressões particulares, palavras, etc.


pode fornecer indícios sobre a autenticidade ou inautenticidade dos diálogos:
por exemplo, há no Alcibíades II particularidades da linguagem que parecem
pertencer a uma
153

época mais tardia do que aquela em que foram compostos os diálogos platónicos.

Todos estes critérios oferecem uma certa segurança apenas se forem controlados
uns pelos outros e se se confirmarem reciprocamente. Da sua aplicação resulta
que podemos com segurança considerar apócrifos os seguintes diálogos:
Alcibíades II, Hiparco, AmaWes,, Teages, Minos; podem subsistir dúvidas sobre
o Alcibíades I, o Hípias maior, o lon, o Clitolonte e o Epinómis,- tais
dúvidas, contudo, não impedem que alguns deles possam ser utilizados como
fontes da doutrina platónica, a qual em nada contradizem. A autenticidade do
Menexeno, que é um elogio fúnebre aos mortos na guerra (epitáfio, um género
muito em voga na retórica do tempo), parece não poder negar-se devido ao
testemunho explícito de Aristóteles (Ret., 1415 b, 30), mas o sarcasmo da
apresentação, as incongruências, os anacronismos são de tal ordem, que nos
obrigam a considerá-lo como simples paródia de um género literário em voga.

Quanto às Cartas, depois de quase unanimemente as haver banido do corpus


platónico, a crítica moderna prepara-se para reconstruir a mesma unanimidade
em aceitá-las como genuínas. E elas são, de facto, com excepção da primeira,
documentos importantíssimos para a vida e o pensamento de Platão. A Carta VII
acrescenta-se de ora em diante aos diálogos fundamentais, para a interpretação
do platonismo.

§ 44. O PROBLEMA DA CRONOLOGIA


DOS ESCRITOS

Outro aspecto fundamental do problema dos escritos platónicos é o que respeita


à sua ordem cronológica. Este problema é essencial para a
154

compreensão do platonismo. Platão, por motivos que são inerentes à sua


filosofia (e que veremos em breve), nunca quis escrever, nem mesmo na mais
avançada idade, uma exposição completa do seu sistema. Os seus diálogos não
são mais que fases ou etapas diversas, pontos de chegada provisórios e, por
isso, sobretudo pontos de partida, de uma pesquisa que julga não poder fixar-
se em nenhum resultado. A ordem cronológica dos seus escritos é a própria
ordem desta pesquisa: é a ordem em que ele atingiu os sucessivos
aprofundamentos da sua filosofia. Não se pode, pois, compreender o
desenvolvimento desta filosofia sem se dar conta da ordem cronológica dos
escritos.

Infelizmente, as notícias seguras faltam completamente sobre este ponto. Temos


uma única indicação indubitável que nos é dada por Aristóteles (Pol., 1264 e,
26): as Leis são posteriores à República. Por outra fonte sabemos que as Leis
foram deixadas "sobre cera", tendo sido copiadas após a morte de Platão.

É necessário, portanto, recorrer a outros critérios. O primeiro é o confronto


dos diálogos entre si. Dele resulta que a República antecede o Timeu, que lhe
recapitula o argumento; o Político apresenta-se como a continuação do Sofista,
e este, por sua vez, como a continuação do Teeteto. Alusões menos claras, mas
suficientemente transparentes permitem ver que o Ménon é anterior ao Fédon e
ambos estes diálogos anteriores à República.
O Teeteto e o Sofista referem-se depois a um encontro entre o jovem Sócrates e
o velho Parménides, que é talvez o que se narra no Parménides.

O segundo critério para a ordenação cronológica é o do estilo. Entre a


República e as Leis, ou seja entre: os dois diálogos de que conhecemos com
plena certeza a ordem da composição, há notáveis
155

diferenças de estilo que têm sido minuciosamente estudadas. Trata-se de


partículas conjuntivas, de fórmulas de afirmação ou negação, do uso dos
superlativos, giros de frases e de palavras que ocorrem nas Leis e ao invés
não se encontram na República. Estas particularidades estilísticas, chamadas
estilemas, caracterizam a última fase da obra do Platão escritor. É evidente
que os outros diálogos em que ocorrem devem pertencer ao mesmo período; e
alguns críticos são unânimes em estabelecer uma ordem dos diálogos segundo a
frequência de tais estilemas, atribuindo ao período mais tardio da vida de
Platão os diálogos em que eles ocorrem com mais frequência, e aos períodos
anteriores os diálogos em que são menos frequentes. Embora uma ordem rigorosa
assim fundada seja fictícia, uma vez que outros motivos podem ter influído no
estilo do escritor, não há dúvida, no entanto, que este critério serviu para
delinear um grupo de diálogos que, pela semelhança do seu estilo com o das
Leis, se atribui ao último período da actividade de Platão. Tais são o
Parménides, o Teeteto, o Sofista, o Político, o Timeu e o Filebo. Quanto à
ordem de composição destes diálogos, decerto nos não podemos fundar, para
estabelecê-la, apenas na estilometria, mas devemos servir-nos ainda dos outros
critérios.

Um terceiro critério pode colher-se da forma narrativa ou dramática dos


diálogos. Em alguns deles o diálogo é directamente introduzido; em outros,
pelo contrário, é narrado, de maneira que a sua exposição é entremeada
com as frases: "Sócrates disse", "o outro respondeu", "concordou com ele",
etc.. Mas no prólogo do Teeteto (143 c), Euclides, que narra o diálogo,
adverte que suprimiu estas frases com vista a uma maior fluência, expondo o
diálogo directamente, tal como se teria passado entre Sócrates e os seus
interlocutores. Por isso, é
156

natural que não esperemos encontrar o método da narração nos diálogos que se
seguem ao Teeteto; e de facto assim acontece para todos os diálogos do último
período, excepto para o Parménides, que é, por isso, provavelmente anterior ao
Teeteto. Por outro lado, os diálogos mais altamente dramáticos, como o
Protágoras, o Banquete, o Fédon, a República, são todos narrados, ao passo que
um grupo de diálogos que têm estrutura mais simples e menor valor artístico
são em forma directa. Pode supor-se que Platão tenha adoptado a forma directa
numa primeira fase, tenha depois recorrido à forma narrativa para dar ao
diálogo o maior relevo dramático, e tenha finalmente regressado, por motivos
de comodidade e de fluência de estilo, à forma directa. Mas a ordenação que
resulta deste critério, se é válida para decidir a situação de um diálogo
neste ou naquele período da actividade de Platão, não é suficiente para
estabelecer a ordem dos próprios diálogos no âmbito de cada um dos períodos.

Aos resultados que possam conseguir-se pelo uso combinado destes três
critérios acrescentam-se os que resultam da consideração, de importância
fundamental, de que os primeiros diálogos devem ser aqueles em que a doutrina
das ideias não está ainda presente, e que se mantêm, por isso, estritamente
fiéis à letra do socratismo. Finalmente, é muito difícil imaginar que Platão
tenha começado a exaltação da figura de Sócrates ainda em vida do mestre: toda
a sua actividade literária deve ser, portanto, posterior a 399. Sobre estes
fundamentos afigura-se provável a seguinte ordenação cronológica dos diálogos;
porém, se a atribuição de um diálogo a um determinado período é bastante
segura nesta ordenação, a ordem de sucessão dos
157

diálogos em cada um dos períodos é problemática e sujeita a caução:

1.º período: escritos de juventude ou socráticos: Apologia, Criton, Ion,


Laches, Lísis, Cármides, Eutífron;

2.o período, de transição: Eutidemo, Hípias menor, Crátilo, Hípias maior,


Menexeno, Górgias, República 1, Protágoras, Ménon;

3.o período: escritos de maturidade: Fédón, Banquete, República 11-X, Fedro;

4.º período: escritos da senelitude: Parménides, Teeteto, Sofista, Político,


Filebo, Timeu, Crítias Leis.

Pode pensar-se, com uma certa verosimilhança, que os escritos do 3.o período
são posteriores à primeira viagem à Sicília, de que Platão regressou antes de
387, que os escritos do 4.o período são posteriores à segunda viagem à Sicília
(366-65) e alguns, como o Crítias e as Leis, posteriores mesmo à terceira
(361-360). As Cartas VII e VIII apresentam-se, pelo seu conteúdo, como
posteriores à morte de Dião, e portanto ao ano de 353.

§ 45. CARÁCTER DO PLATONISMO

Por que razão a produção literária de Platão se manteve fiel à forma do


diálogo? Citámos, falando de Sócrates (§ 24), a passagem do Fedro em que, a
propósito da invenção da escrita, atribuída ao deus egípcio Theut, Platão diz
que o discurso escrito comunica, não a sabedoria, mas a presunção da
sabedoria. Como as figuras pintadas, os escritos têm a aparência de seres
vivos, mas não respondem a quem os interroga. Circulam por toda a parte do
mesmo modo, tanto pelas mãos dos
158

que os compreendem como pelas mãos dos que se não interessam de facto por
eles; e não sabem defender-se nem sustentar-se por si próprios quando são
maltratados ou vilipendiados injustamente (Fedro, 275 d).

Platão não via no discurso escrito mais que uma ajuda para a memória; e ele
mesmo nos testemunha que do ensino da Academia faziam parte também "doutrinas
não escritas" (Carta VII, 341 c). Ora, de entre os discursos escritos, o
diálogo é o único que reproduz a forma e a eficácia do discurso falado. Ele é
a expressão fiel da pesquisa que, segundo o conceito socrático, é um exame
incessante de si mesmo e dos outros, logo um perguntar e responder; Platão
considera que o próprio pensamento é tão só um discurso que a alma faz consigo
mesma, um dialogar interior, em que a alma pergunta e responde a si mesma
(Teet., 189 e, 190 a; Sof., 263 e; Fil., 38 c-d). A expressão verbal ou
escrita limita-se, pois, a reproduzir a forma da pesquisa, o diálogo. A mesma
convicção que impediu Sócrates de escrever, impediu Platão a adoptar é a
manter a forma dialógica nos seus escritos. O que revelou a Platão a
incapacidade do jovem Dionisio de se empenhar a sério na pesquisa filosófica,
foi a sua pretensão de escrever e difundir como obra própria um "sumário do
platonismo". Platão declarou energicamente nesta ocasião: "Meu não há, nem
nunca haverá, tratado algum sobre este assunto. Não pode ele ser reduzido a
fórmulas, como se faz nas outras ciências; só depois de longamente se haver
travado conhecimento com estes problemas e depois do os haver vivido e
discutido em comum, o seu verdadeiro significado se acende subitamente na
alma, como a luz nasce de uma centelha e cresce depois por si só" (Carta VII,
341 c-d).

O diálogo era, pois, para Platão o único meio de exprimir e comunicar aos
outros a vida da pes-
159

quisa filosófica. Ele reproduz o próprio andamento da pesquisa, que avança


lenta e dificilmente de etapa em etapa; e sobretudo reproduz-lhe o carácter de
sociabilidade e de comunhão, pelo qual torna solidários os esforços dos
indivíduos que a cultivam. Assim a forma da actividade literária de Platão é
um acto de fidelidade ao silêncio literário de Sócrates; um e outro têm o
mesmo fundamento: a convicção de que a filosofia não é um sistema de
doutrinas, mas pesquisa que repropõe incessantemente os problemas, para deles
tirar o significado e a realidade da vida humana. Conta-se que uma mulher,
Axioteia. após a leitura dos escritos platónicos, se apresentou em trajes
masculinos a Platão, e que um camponês coríntio, depois da leitura do Górgias,
deixou o arado e foi ter com o filósofo (Arist., fr. 69, Rose). Estas anedotas
demonstram que os contemporâneos de Platão tinham compreendido o valor humano
da sua filosofia.

§ 46. SÓCRATES E PLATÃO

A fidelidade ao magistério e à pessoa de Sócrates é o carácter dominante de


toda a actividade filosófica de Platão.
Nem todas as doutrinas filosóficas de Platão podem, decerto, ser atribuídas a
Sócrates; bem ao contrário, as doutrinas típicas e fundamentais do platonismo
não têm nada que ver com a letra do ensino socrático. Todavia, o esforço
constante de Platão é o de captar o significado vital da obra e da pessoa de
Sócrates; e para captá -lo e exprimi-lo não hesita em ir além do modesto
património doutrinal do ensino socrático, formulando princípios e doutrinas
que Sócrates, em verdade, nunca ensinam, mas que exprimem o que a sua própria
pessoa incarnava.
160

Frente a esta fidelidade, que nada tem a ver com uma concordância de fórmulas
doutrinais, mas que se manifesta na tentativa sempre renovadora de aprofundar
uma figura de homem que, aos olhos de Platão, personifica a filosofia como
pesquisa, parece muito estreito o esquema em que se tornou habitual resumir a
relação entre Sócrates e Platão. Inicialmente fiel a Sócrates nos diálogos da
sua juventude, Platão ter-se-ia depois afastado progressivamente do mestre
para formular a sua doutrina fundamental, a doutrina das ideias; e, por fim,
até a si mesmo teria sido infiel, criticando e negando esta doutrina. Em breve
veremos que Platão jamais foi infiel a si mesmo ou à sua doutrina das ideias;
e que, nesta doutrina como em todo o seu pensamento, foi, ao mesmo tempo,
fiel a Sócrates. Nada mais quis fazer senão captar os pressupostos remotos do
magistério socrático, os princípios últimos que explicam a força da
personalidade do mestre e podem, por isso, iluminar a via na qual ele consegue
possuir-se e realizar-se a si mesmo. Platão, escrupulosamente, não faz
intervir Sócrates como interlocutor principal nos diálogos que se afastam
demasiado do esquema doutrinal socrático ou que debatem problemas que não
haviam suscitado o interesse do mestre (Parménides, Sofista, Político, Timeu).
Não obstante, toda a pesquisa platónica se pode definir como a interpretação
da personalidade filosófica de Sócrates.

§ 47. ILUSTRAÇÃO E DEFESA DO ENSINO DE SóCRATES

Na primeira fase, a pesquisa platónica mantém-se no âmbito do ensino socrático


e, se não visa ilustrar o significado desta ou daquela atitude fundamental do
Sócrates histórico (Apologia, Críton), visa captar
161

e esclarecer os conceitos fundamentais que estavam na base do seu ensino


(Alcibíades, Ion, Hípias menor, Laches, Cármides, Eutífron, Hipiw maior,
Lísis).

O conteúdo da Apologia e do Críton foi utilizado a propósito de Sócrates (§


26, 31). A Apologia é, em substância, uma exaltação do dever que Sócrates
assumiu ante si próprio e ante os outros e é, por isso, a exaltação da vida
consagrada à pesquisa filosófica. Pode dizer-se que o significado integral do
escrito está contido na frase: "Uma vida sem pesquisa não é digna de ser
vivida pelo homem" (Apolog., 38). Sócrates declara aos juízes que jamais
deixará de cumprir a obrigação que lhe foi confiada pela divindade: o exame de
si mesmo e dos outros para alcançar a via do saber e da virtude. Já na
apresentação que Platão faz de Sócrates na Apologia se mostra claramente que
ele vê incarnada na figura do mestre aquela filosofia como pesquisa a que ele
próprio iria dedicar toda a existência.

O Críton apresenta-nos Sócrates frente ao dilema: ou aceitar a morte pelo


respeito que o homem justo deve às leis do seu país, ou fugir do cárcere,
conforme proposta dos amigos, e desmentir assim a substância do seu ensino. A
maneira serena como Sócrates aceita o destino a que é condenado é a última
prova da seriedade do seu ensino. Ela mostra-nos que a pesquisa é uma missão
de uma tal natureza, que o homem que se haja empenhado nela não a deve trair,
aceitando compromissos e fugas que a esvaziem de significado.

Com estes dois escritos, Platão fixou para sempre as atitudes que fazem de
Sócrates o filósofo por excelência, "o homem de todos o mais sábio e o mais
justo". Os outros escritos de Platão pertencentes a este mesmo período visam,
ao invés, esclarecer os conceitos que estavam na base do
162

ensino socrático. Nestes escritos Platão aparece-nos (assim o disse Gomperz),


como o moralista dos conceitos: delineia o procedimento socrático enquanto
pesquisa do fundamento da vida moral do homem. E. em primeiro lugar, aclara o
pressuposto necessário de toda a pesquisa, ponto em que Sócrates tanto
insistira: o reconhecimento da própria ignorância. Sobre o tema da ignorância
desenvolve-se um grupo de diálogos: Alcibíades 1, Ion, Hípias menor.

O Alcibíades 1 é, não obstante as dúvidas que se aventaram sobre a sua


autenticidade, uma espécie de introdução geral à filosofia socrática. A
Alcibíades que, dotado e ambicioso, se prepara para participar na vida
política, com a pretensão de dirigir e aconselhar o povo ateniense, pergunta
Sócrates onde aprendeu a sabedoria necessária a este fim, ele que nunca se
reconheceu ignorante e que, por conseguinte, nunca se preocupou com procurá-
la. Alcibíades está ainda na ignorância, na pior das ignorâncias, a ignorância
de que não sabe que é ignorante; e só pode sair dela aprendendo a conhecer-se
a si mesmo. Só por esta via poderá alcançar o conhecimento da justiça, que é
necessária para governar um Estado e sem a qual se não é homem político, mas
politiqueiro vulgar que se engana a si próprio e ao povo.

Este tema da ignorância não consciente de si é também o do Ion. Ion é um


rapsodo que se gaba de saber expor muitos pensamentos belos sobre Homero e de
ser, portanto, competente no que respeita a todos os argumentos sobre que
versa a poesia homérica.

Platão representa nele, provavelmente, um tipo de falso sábio que devia ser
frequente no seu tempo: o tipo dos que, recordando Homero de memória e tendo
sempre à mão os ditos do poeta, o citavam
163

em todas as circunstâncias com o ar de quem apela para a mais antiga e


autêntica sabedoria grega. Platão demonstra que verdadeiramente nem o poeta
nem muito menos o rapsodo sabem coisa alguma. Um e outro falam de tantas
coisas, não em virtude da sabedoria, mas em virtude de uma inspiração divina
que se transmite da divindade ao poeta, do poeta ao rapsodo, do rapsodo ao
ouvinte, como a força de atracção do íman passa de uma argola de ferro a outra
e forma uma longuíssima cadeia. Se o saber do poeta ou do rapsodo fosse
verdadeiro, aqueles que cantam a guerra podiam comandar os exércitos e ocupar-
se assim seriamente de todas as coisas que se limitam a cantar.

Uma variação paradoxal do tema da ignorância é apresentada no Hípias menor;


este diálogo procura demonstrar que só o homem de bem pode pecar
voluntariamente. Efectivamente, pecar voluntariamente significa pecar
conscientemente; pecar sabendo qual é o bem e qual é o mal, e escolhendo
deliberadamente o mal. Mas quem sabe qual é o bem? O homem de bem; e só ele
por conseguinte, pode pecar voluntariamente. O absurdo desta conclusão sugere
que é impossível pecar voluntariamente e que somente peca quem não sabe o que
é o bem, ou seja o ignorante. O diálogo é uma redução ao absurdo da tese
contrária à de Sócrates e é, por isso, uma confirmação indirecta da tese de
que a virtude é saber.

A demonstração desta tese é o objectivo de um outro grupo de diálogos, mais


importantes do que os primeiros. Esta demonstração tem por pressuposto que a
virtude é só uma. Portanto, estes diálogos têm em mira reduzir ao absurdo a
afirmação de que há diversas virtudes, demonstrando que nenhuma delas, tomada
isoladamente, pode ser compreendida e definida.
164

No Laches chega-se a esta conclusão mediante a análise da coragem (andréia).


Considerada a coragem como virtude particular, há que defini-la como a ciência
do que se deve ou se não deve temer, ou seja, dos bens ou dos males futuros.
Mas o bem e o mal são o que são não só com referência ao futuro, mas também ao
presente e ao passado; a ciência do bem e do mal não pode por conseguinte,
limitar-se ao futuro, mas diz respeito a todo o bem e a todo o mal; esta
ciência já não é a coragem como virtude particular, mas a virtude na sua
integralidade. A pesquisa que nos impele a determinar a natureza de cada
virtude tomada isoladamente consegue assim determinar realmente a natureza de
toda a virtude: de tal modo é impossível distinguir nela partes diversas. No
Cármides faz-se a mesma investigação a propósito da prudência (sofrosyne) e
chega-se à mesma conclusão. A prudência é definida por Crítias, principal
interlocutor do diálogo, como conhecimento de si mesmo, quer dizer, do saber e
do não saber próprios de cada um e, por isso, como ciência da ciência. Porém,
Sócrates opõe a esta definição que uma ciência assim exige um objecto que seja
especificamente seu. Como não há um ver que seja um ver coisa nenhuma, mas o
ver tem sempre por objecto uma coisa determinada, assim a ciência não pode ter
por objecto a própria ciência, antes deve possuir um objecto determinado sem o
qual como ciência da ciência falha, definir a prudência como ciência da
ciência falha, pois, pela impossibilidade de a ciência se fazer objecto de si
mesma. A pesquisa procura sugerir que a prudência, se é ciência, deve ter por
objecto o bem; ora se é ciência do bem já não é somente prudência (sofrosyne),
mas ao mesmo tempo sabedoria e coragem: virtude na sua integralidade.

No Eutífron examina-se a primeira e fundamental virtude do cidadão grego, que


é a piedade reli-
165

giosa ou devoção (osiótes). Parte-se da definição puramente formal dessa


virtude, que seria a arte que regula a troca de benefícios entre o homem e a
divindade, troca pela qual o homem oferece à divindade culto e sacrifícios
para dela obter ajuda e vantagens. Segundo esta definição, as acções piedosas
são as que agradam a alguns deuses. não a todos os deuses, uma vez que
frequentemente se acham estes em desacordo.

Põe-se então o problema: aquele que é santo é-o porque agrada aos deuses, ou
acontece, ao contrário. que agrada aos deuses porque é santo? Frente a esta
pergunta. a definição formal da piedade religiosa cai e vemo-nos obrigados a
perguntar de novo que coisa é verdadeiramente a devoção. Pode então dizer-se
que a devoção é uma parte da justiça, precisamente aquela que se refere ao
culto da divindade e que consiste em praticar acções que à divindade agradam,
mas eis-nos deste modo regressados à definição que abandonámos. A conclusão
negativa do diálogo não só exprime a não aceitação do conceito formal da
piedade religiosa, como ainda a impossibilidade de a definir como uma virtude
em si, independente das outras, e assim prepara indirectamente o
reconhecimento da unidade da virtude.

Correlativamente à indagação sobre a virtude, procede Platão à indagação sobre


o objecto ou o fim da virtude, sobre os valores que são seu fundamento, Uma
acção bela, um belo discurso têm o belo por objecto; mas o que é o belo? É
este o problema do Hípias maior. A conclusão é que o belo não pode ser
distinto do bem, não podendo considerar-se nem como o que é conveniente
nem como o que é útil; dado que o conveniente é a aparência do belo, não
o próprio belo, e o útil não é senão o vantajoso, aquilo que produz o bem e é,
portanto, causa do próprio bem. Como todas
166

as virtudes tendem, uma vez examinadas, a unificar-se no saber, assim os


vários objectos ou fins das acções humanas, o belo, o conveniente, o útil
tendem a unificar-se no conceito do bem.

O bem é ainda o termo último e o fundamento de todas as relações humanas.


Segundo o Lísis, a amizade (filia) não se funda na semelhança nem na
dissemelhança entre as pessoas: o semelhante não pode encontrar no semelhante
nada que não tenha já e o dissemelhante não pode amar o que é dissemelhante
dele (o bom não pode amar o mau nem o mau pode amar o bom). O homem não ama e
não deseja senão o bem; e ama e deseja um bem inferior em vista de um bem
superior, de maneira que o último e supremo bem é também o primeiro fundamento
da amizade. Verdadeiramente só ele é o verdadeiro e único amigo. as outras
coisas que desejamos e amamos são simplesmente suas imagens. A amizade dos
homens funda-se, portanto, na sua comum relação com o bem.

Os resultados das investigações levadas a cabo em todos estes diálogos podem


resumir-se como segue:
1.o Não há virtudes particulares, mas a virtude é só uma;

2.O Não há fins ou valores particulares, definíveis cada um de per si, mas o
fim ou o valor é só um; o bem.

Estas duas conclusões rasgam as perspectivas da investigação platónica


ulterior e preparam os problemas que ela viria a debater.

48. A POLÉMICA CONTRA OS SOFISTAS

A tese que o precedente grupo de diálogos sugere indirectamente, a unidade da


virtude e a sua relação com o saber, põe-se e demonstra-se positivamente no
Protágoras em oposição polémica à atitude dos sofistas. A Protágoras, que se
intitula mestre de virtude, objecta Sócrates que a virtude
167

de que fala Protágoras não é ciência mas um simples conjunto de habilidades


adquiridas acidentalmente por experiência; e é, portanto, um património
privado, que não pode transmitir-se aos outros. Protágoras, para quem as
virtudes são muitas e a ciência apenas uma delas, não pode afirmar que a
virtude é ensinável; pois que somente a ciência se pode ensinar. Do que
decorre que a virtude pode transmitir-se e comunicar-se na medida em que é
ciência. Viu-se, a propósito de Sócrates (§ 28), que a ciência é aqui
entendida como cálculo dos prazeres e o seu conceito continua, portanto, preso
à letra do ensino socrático. Porém, já este diálogo mostra que Platão não se
limita de ora em diante à frustração dos conceitos que Sócrates colocou na
base da vida moral; mas, contrapondo a doutrina de Sócrates à dos sofistas,
projecta sobre a figura do mestre a mais viva luz que brota da polémica.

O Protágoras recusou ver no ensino sofístico qualquer valor educativo, e


formativo e na própria sofística qualquer conteúdo humano. Ante a ruína da
sofística.. a doutrina de Sócrates apareceu em todo o seu valor. Mas
mantinham-se outros aspectos da sofística; e contra eles dirige Platão três
diálogos que formam com o Protágoras um grupo unido. Estes aspectos são a
erística, contra a qual se dirige o Eutidemo; o verbalismo, contra o qual se
dirige o Crátilo; e a retórica, contra a qual se dirige o Górgias.

O Eutidemo é, acima de tudo, uma representação vivíssima e caricatural do


método erístico dos sofistas. A eristica é a arte de lutar com palavras e de
"refutar tudo o que se vai dizendo, seja falso ou verdadeiro". Os
interlocutores do diálogo, os dois irmãos Eutidemo e Dionis'odoro, divertem-se
a demonstrar, por exemplo, que só o ignorante pode aprender e, logo a seguir,
que contrariamente só o sábio aprende; que só se aprende o que se
168

não sabe e a seguir que só se aprende o que sabe, etc. O fundamento de


semelhante exercício é a doutrina (defendida pelos Sofistas, e além destes
pelos Megáricos e pelos Cínicos) de que não é possível o erro e que, seja qual
for a coisa que se disser, se diz coisa que é, logo verdadeira. Ao que
Sócrates objecta que, nesse caso, não haveria nada que ensinar e nada que
aprender, pelo que a própria erística seria inútil. Na verdade, nada há que se
possa ensinar a não ser a sabedoria; e a sabedoria só pode ensinar-se e
aprender-se amando-a, isto é filosofando. E neste ponto o diálogo deixa de ser
crítica do procedimento sofístico para se transformar em exortação à filosofia
(propreptikon); e, como discurso introdutório ou propréptico tornou-se famoso
na antiguidade, tendo sido muitas vezes imitado. Porém, esta parte é
importante sobretudo porque contém a ilustração do objecto próprio da
filosofia: objecto que Platão define como o uso do saber para utilidade do
homem. A filosofia é a única ciência em que o fazer coincide com o saber
servir-se do que se faz (Eut., 289 b): ou seja, a única ciência que produz
conhecimento ao mesmo tempo que ensina a utilizar o próprio conhecimento para
utilidade e felicidade do homem (lb., 288-289).

À erística liga-se o verbalismo, contra o qual se dirige o Crátilo. O problema


deste diálogo é o de ver se a linguagem é verdadeiramente um meio para ensinar
a natureza das coisas, como pensavam Crátilo, os Sofistas e Antístenes. Platão
não considera, decerto, que a linguagem seja produto de convenção e que os
nomes se implantem arbitrariamente. Como todo o instrumento deve ser adequado
ao desígnio para que foi construído, assim a linguagem deve ser adequada a
fazer-nos discernir a natureza das coisas. Não há dúvida, pois, que todo o
nome deve ter uma certa justeza, isto
169

é, deve imitar e exprimir, na medida do possível, por meio de letras e de


sílabas, a natureza da coisa significada. Mas nem todos os nomes têm este
carácter natural; alguns, como por exemplo os nomes dos números, sã o
puramente convencionais. De qualquer maneira, não se pode sustentar, como faz
Crátilo, que a ciência dos nomes seja também ciência das coisas: que não haja
outra via para indagar e descobrir a realidade que não seja a de descobrir-
lhes os nomes, e que não se possa ensinar senão os próprios nomes. Dado que os
nomes pressupõem o conhecimento das coisas, os primeiros homens que os
descobriram deviam conhecer as coisas por outra via, uma vez que não dispunham
ainda dos nomes; e nós próprios não podemos apelar para outros nomes para
julgar da correcção dos nomes, mas devemos recorrer à realidade de que o nome
é a imagem. De modo que o critério para compreender e julgar do valor das
palavras leva-nos a procurar, para além das palavras, a própria natureza das
coisas. O diálogo contém assim a enunciação das três alternativas fundamentais
que posteriormente se iriam apresentar constantemente na história da teoria da
linguagem, a saber:

1.º - a tese sustentada pelos Eleatas, pelos Megáricos, pelos Sofistas e por
DemócrIto (fr. 26, Diels), de que a linguagem é pura convenção, quer dizer,
devida exclusivamente à livre
iniciativa dos homens;

2.O a tese sustentada por Crátilo e que pertencia a Heraclito (fr. 23 e, 114,
Diels) e aos Cínicos de que a linguagem é naturalmente produto da acção causal
das coisas;

3.o a tese, defendida por Platão, de que a linguagem é a escolha inteligente


do instrumento que serve para aproximar o homem do conhecimento das coisas. Na
ilustração desta última tese Platão refere-se explicitamente às ideias (440
b), a que chama mais frequentemente "substâncias" (338 b, 423 d): por
170

cujo nome compreende: "o que o objecto é" (428 d). Todavia, Platão não atribui
a produção da linguagem à própria natureza das coisas: considera-a, com os
convencionalistas, uma produção do homem. Mas admite ao mesmo tempo que esta
produção não é arbitrária, antes é dirigida, até onde é possível, para o
conhecimento das essências, isto é, da natureza das coisas. O teorema
fundamental que Platão se propõe defender é que a linguagem pode ser mais ou
menos exacta ou mesmo errada ou, por outras palavras, que "se pode dizer o
falso": teorema que não cabe nas outras duas concepções da linguagem, ou
porque consideram que a linguagem é sempre exacta, ou porque uma convenção
vale tanto como outra, ou porque é a natureza das coisas a impô-lo. A defesa
deste teorema abre o caminho à ontologia do Sofista.

Por fim, Platão ataca no Górgias a arte que constituía a principal criação dos
Sofistas e que era a base do seu ensino: a retórica. A retórica pretendia ser
uma técnica da persuasão, à qual parecia completamente indiferente a tese a
defender ou o assunto tratado. Platão objecta ao conceito desta arte que toda
a arte ou ciência só consegue ser verdadeiramente persuasiva a respeito do
objecto que lhe é próprio. A retórica não tem um objecto próprio: permite
falar de tudo, mas não consegue persuadir senão aqueles que têm um
conhecimento inadequado e sumário das coisas de que trata, ou seja os
ignorantes. Não é, pois, uma arte, mas tão só uma prática adulatória que
oferece a aparência da justiça e está para a política, que é arte da justiça,
como a culinária está para a medicina: retórica e culinária excitam o gosto,
aquela o da alma, esta o do corpo; política e medicina curam verdadeiramente
respectivamente a alma e o corpo. A retórica pode ser útil para defender com
discursos a própria injustiça e para evitar sofrer a
171

pena da injustiça cometida. Ora isto não é uma vantagem. O mal, para o homem,
não é sofrer a injustiça, mas cometê-la, porque isso é mancha e corrompe a
alma; e subtrair-se à pena da injustiça cometida é um mal ainda pior, porque
tira à alma a possibilidade de libertar-se da culpa, expiando-a. Pela sua
indiferença para com a justiça da tese a defender, a retórica implica, na
realidade, a convicção (exposta no diálogo por Cálicles) de que a justiça é
somente uma convenção humana, que é tolice respeitar e de que a lei da
natureza é a lei do mais forte. O mais forte segue só o próprio prazer e não
cuida da justiça; tende à proeminência sobre os outros e tem como única regra
o próprio talento. Contra este imoralismo observa, no entanto, Platão que o
intemperante não é o homem melhor do mesmo modo que não é o mais feliz, uma
vez que passa de um prazer ao outro insaciavelmente, assemelhando-se a uma
pipa rota que nunca mais se enche. O prazer é a satisfação de uma necessidade;
e a necessidade é sempre deficiência, isto é, dor: prazer e dor condicionam-se
reciprocamente e não há um sem o outro, Ora o bem e o mal não são conjuntos
mas separados, não podendo assim identificar-se senão pela virtude; e a
virtude é a ordem e a regularidade da vida humana. A alma boa é a alma
ordenada; que é a um tempo sábia, temperante e justa.

A polémica contra os sofistas, conduzida pelo grupo de Sócrates, faz emergir


os problemas que aquele ensino apresentava. A virtude é ciência; pode,
portanto, ensinar-se e aprender-se. Mas o que é aprender? Eis o primeiro
problema. Cria ele, indubitavelmente, um vínculo entre um homem e outro homem
e entre o homem e a ciência: de que natureza é este vínculo? Eis um outro
problema. E o que é exactamente a ciência em que consiste a virtude? Qual é o
objecto desta ciência, o mundo ou a subs172

tância sobre que ela versa? Eis o último e mais grave problema que brota do
ensino socrático. A pesquisa platónica iria debater, no seu desenvolvimento
ulterior, estes problemas; quer na sua singularidade, quer nas suas relações
recíprocas.

§ 49. O APRENDER E OS SEUS OBJECTOS (AS IDEIAS)

Ao problema do aprender é dedicado o Ménon. Segundo o princípio erístico, não


se pode aprender o que se sabe nem o que se não sabe: visto que ninguém busca
saber o que sabe, nem pode buscar saber se não sabe que coisa buscar.
a este princípio opõe Platão o mito da anamnese.
a alma é imortal e nasceu muitas vezes, e viu já todas as coisas, quer neste
mundo, quer no Hades: não é, pois, de espantar que possa recordar o que antes
sabia. A natureza em si é toda igual: uma vez que a alma aprendeu tudo, nada
impede que, quando ela se recorda de uma só coisa - no que consiste
precisamente o aprender-, encontre por si tudo o resto, se tiver ânimo e não
se cansar da pesquisa; dado que pesquisar e aprender são o mesmo que recordar-
se. A doutrina dos sofistas torna-nos preguiçosos, porque nos dissuade da
pesquisa; o mito da alma imortal e do aprender como reminiscência torna-nos
activos e incita-nos à pesquisa. Platão confirma esta doutrina pelo exemplo
famoso do escravo que, habilmente interrogado, consegue compreender por si, ou
seja aprender e recordar, o teorema de Pitágoras. O mito da reminiscência
exprime aqui o princípio da unidade da natureza: a natureza do mundo é uma só,
e é ainda una com a natureza da alma. Pelo que, partindo de uma coisa
singular, aprendida num acto singular, o homem pode procurar aprender as
outras coisas,
173

que àquela estão unidas, mediante sucessivos actos de aprendizagem ligados ao


primeiro no curso da pesquisa (Mén., 81 c). O mito tem aqui, como algures em
Platão, um significado precioso: a anamnese exprime, nos termos da crença
órfica e pitagórica, da cadeia dos nascimentos, aquela unidade da natureza das
coisas e aquela unidade entre a natureza e a alma que torna possível a
pesquisa e a aprendizagem. Porém, quer o mito da anamnese, quer a doutrina da
unidade da natureza, são explicitamente apresentadas por Platão como hipóteses
semelhantes às de que se servem os geómetras. A hipótese põe-se quando não se
conhece ainda a solução de um problema e se antecipa esta solução deduzindo-
lhe as consequências que podem depois confirmá-la ou refutá-la (Mén., 8/ a).
Como veremos, o uso da hipótese faz parte integrante do que Platão entendia
por procedimento dialéctico.

Se, pois, se põe a hipótese que a virtude é ciência, deve admitir-se que pode
ela ser aprendida e ensinada. Como pode então acontecer que não haja mestres
nem discípulos de virtude? Mestres de virtude não o são decerto os sofistas,
nem o foram os homens mais eminentes (Aristides, Temístocles, etc.) que a
Grécia teve, os quais não souberam transmitir a sua virtude aos filhos. Ora
isto aconteceu e acontece porque, para aqueles homens, a virtude não era
verdadeiramente sageza (frónesis), mas uma espécie de inspiração divina, como
a dos profetas e a dos poetas. A sageza no seu grau mais elevado é ciência, no
seu grau mais baixo é opinião verdadeira. A opinião verdadeira distingue-se da
ciência por lhe faltar uma garantia de verdade. Platão compara-a às estátuas
de Dédalo, que parecem sempre prestes a sumir-se. As opiniões tendem a
escapar-se "enquanto não forem ligadas em um discurso causal" (Mén., 98 a).
Quando estão ligadas entre si em um discurso causal consolidam-se e
174

tornam-se ciência. A ciência é, por isso, mais preciosa que as opiniões


verdadeiras, e distingue-se destas pelo encadeamento racional que estabelece
entre os seus objectos.

O Ménon esboça as primeiras linhas de uma teoria do aprender que, todavia,


deixa em aberto numerosos problemas. Se o aprender é um recordar-se, que valor
tem, no que a ele concerne, o conhecimento sensível? E qual é o objecto do
aprender? Por outro lado, toda a teoria da anamnese se funda no pressuposto da
imortalidade da alma. é possível demonstrar este pressuposto? Tais são os
problemas debatidos no Fédon. Mas a própria implantação destes problemas
conduz Platão definitivamente além do ponto que Sócrates havia alcançado. A
determinação de um objecto da ciência, de um objecto que nada tem que ver com
as coisas sensíveis, como a ciência nada tem que ver com o conhecimento
sensível, induz Platão à formulação da teoria das ideias.

Esta teoria não vem organicamente formulada em o Fédon: é somente pressuposta


como algo de já conhecido e aceite pelos interlocutores como hipótese
fundamental da investigação. Talvez justamente por ser ela o centro para que
convergem as directivas da sua filosofia, se negou Platão, conformemente ao
princípio do seu ensino (§ 42), a tratá-la sistematicamente. Era talvez
objecto das "doutrinas não escritas" de que fala o próprio Platão em a Carta
VI/ (341 c), e que Aristóteles também assinala em várias passagens; doutrinas
que constituíam, possivelmente, o património da Academia. Evidenciam-se,
todavia, em o Fédon, algumas determinações fundamentais que Platão atribui às
ideias. Essas determinações são três:
1.o as ideias são os objectos específicos do conhecimento racional;
2.o as ideias são critérios ou princípios de julgamento
175

das coisas naturais;


3.o as ideias são causas das coisas naturais.

1.º - Como objectos do conhecimento racionaL as ideias são chamadas por Platão
entes ou substâncias, e são nitidamente distintas das coisas sensíveis. Pela
primeira vez se faz em o Fédon o balanço das críticas que Platão dirigiu
contra os sofistas nos diálogos precedentes. O defeito fundamental dos
sofistas é que eles se recusam a ir além das aparências: pelo que ficam seus
prisioneiros e, falando com propriedade, não são filósofos. A filosofia
consiste no prosseguir para além das aparências e, em primeiro lugar, das
aparências sensíveis. A função da filosofia, declara-se em o Fédon, é a de
afastar a alma da investigação "feita com os olhos, com os ouvidos e com os
outros sentidos", o de recolhê-la e concentrá-la em si mesma de maneira a que
ela enxergue "o ser em si"-, e caminha assim da consideração do que é sensível
e visível até à consideração do que é inteligível e invisível. Aqui se vem
enxertar no tronco da filosofia socrática a oposição, característica do
Eleatismo, entre a via da opinião e a via da verdade; e se põe, como objecto
próprio da razão, o ser em si, a ideia. Ã antítese eleática vem adjunto, por
outro lado, o mito órfico-pita,,órfico, se a sensibilidade está ligada ao
corpo e é um impedimento, mais do que um auxílio, para a pesquisa, a pesquisa
exige que a alma se separe, tanto quanto possível, do corpo, e viva, por
conseguinte, na expectativa e na preparação da morte, com a qual a separação
se torna completa. Todavia, as outras determinações das ideias que Platão
apresenta, fundadas como são nas conexões entre ideias e coisas, excluem a
rigidez eleática da oposição entre a razão e os sentidos.
2.o -As ideias constituem, com efeito, os critérios para julgar as coisas
sensíveis. Por exemplo: para
176

julgar se as duas coisas são iguais, servimo-nos da ideia de igual, que é a


igualdade perfeita a que só imperfeitamente se adequam os iguais sensíveis.
Para julgar do que é bom, justo, santo, belo, o critério é fornecido pelas
ideias correspondentes, isto é, pelas entidades a que estes conceitos
correspondem. As ideias são, por conseguinte, em o Fédon (75 c-d), critérios
de avaliação; são mesmo os próprios valores.
3.o - As ideias são as causas das coisas naturais. Platão apresenta esta
doutrina como uma consequência imediata da teoria de Anaxágoras de que o
Intelecto é a causa ordenadora de todas as coisas. "Se assim é, se o Intelecto
ordena todas as coisas e dispõe cada uma do modo melhor, encontrar a causa por
que cada coisa se gera, se destrói ou existe significa encontrar qual é para
ela o melhor modo de existir, de modificar-se ou de agir" (Féd., 97 c). Deste
ponto de vista, "o óptimo e o excelente" são a única causa possível das coisas
e o ú nico objecto da ciência: uma vez que quem sabe reconhecer o melhor pode
também reconhecer o pior. Anaxágoras foi, certamente, infiel a este princípio,
mas Platão declara que deseja, bem ao contrário, permanecer-lhe fiel, e que
não admitirá portanto outras causas das coisas que não sejam as razões (logoi)
das próprias coisas: a perfeição ou o fim a que elas se destinam (Ib., 99 e).
As ideias são, -por isso, ao mesmo tempo critérios de avaliação e causas das
coisas naturais: num caso como no outro as suas funções são de logoi, de
razões das coisas.

A imortalidade da alma, necessária para justificar a função da filosofia, é


demonstrável precisamente fundando-se na doutrina das ideias. Como as ideias,
a alma é, com efeito, invisível, e por isso é ainda, presumivelmente,
indestrutível. Por outro lado, a reminiscência é uma outra prova da sua
imortalidade, na medida em que demonstra a sua
177

pré-existência. Finalmente, se se quiser compreender a natureza da alma,


preciso é que busquemos a ideia de que ela participa; e essa ideia é a vida.
Porém, dado que participa necessariamente da vida, a alma não pode morrer: e
ao avizinhar-se a morte, não fica vítima dela, mas afasta-se sem sofrer
qualquer dano e conservando a inteligência.

É desta forma que o desenvolvimento da teoria do aprender estabelecida em o


Ménon conduz, em o Fédon, a determinar o objecto do aprender como ideia ou
valor objectivo, e recebe neste diálogo a demonstração do seu pressuposto
fundamental, a imortalidade.

§ 50. O EROS
O aprender estabelece entre o homem e o ser em si entre os homens associados
na pesquisa comum uma relação que não é puramente intelectual, uma vez que
compromete a totalidade do homem, e por isso, também a sua vontade. Esta
relação é definida por Platão como amor (eros). À teoria do amor são dedicados
dois dos diálogos mais perfeitos, de um ponto de vista artístico, o Banquete e
o Fedro.
O segundo é, decerto, posterior ao primeiro. O Banquete considera
predominantemente o objecto do amor, quer dizer a beleza, e procura determinar
os graus hierárquicos dela. O Fedro considera, ao contrário, o amor
predominantemente na sua subjectividade, como aspiração para a beleza e
elevação progressiva da alma ao mundo do ser, a que a beleza pertence.

Os discursos que os interlocutores do Banquete pronunciam um após outro em


louvores de eros exprimem as características subordinadas e acessórias do
amor, características que a doutrina exposta por Sócrates unifica e justifica.
Pausânias distingue do eros vulgar, que se volve para os corpos, o eros
178

celeste, que se volve para as almas. O médico Erixímaco vê no amor uma força
cósmica que determina as proporções e a harmonia de todos os fenómenos, assim
no homem como na natureza. Aristófanes exprime, com o mito dos seres
primitivos compostos de homem e de mulher (andrógenos), divididos pelos deuses
em duas metades, para seu castigo, uma das quais caminha no encalço da outra
para se unir a ela e reconstituir assim o ser primitivo, exprime, dizíamos, um
dos traços fundamentais que o amor manifesta no homem: a insuficiência. É
precisamente por este carácter que Sócrates começa: o amor deseja qualquer
coisa que não tem, mas de que precisa, e é, portanto, imperfeição.
O mito di-lo, com efeito, filho de Pobreza (Penia) e de Conquista (Poros); não
é, pois, um deus mas um demónio; pois que não tem a beleza mas a deseja, não
tem a sabedoria, mas aspira a possuí-la e é, portanto, filósofo. Os deuses, ao
invés, são sapientes. O amor é, por conseguinte, desejo de beleza; e a beleza
deseja-se porque é o bem que torna feliz. O homem que é mortal tende a gerar
em beleza e daí a perpetuar-se através da geração, deixando após si um ser que
se lhe assemelha. A beleza é o fim (telos), o objecto do amor. Mas a beleza
tem graus diversos a que o homem somente pode elevar-se por aproximações
sucessivas, ao longo de uma lenta caminhada. Em primeiro lugar, é a beleza de
um corpo a que atrai e prende o homem. Este apercebe-se em seguida que a
beleza é igual em todos os corpos e começa assim a desejar e a amar toda a
beleza corpórea. Mas acima dessa há a beleza da alma; ainda mais acima, a
beleza das instituições e das leis, além desta a beleza das ciências e,
finalmente, acima de tudo, a beleza em si, que é eterna, superior ao devir
e à morte, perfeita, sempre igual a si mesma e fonte de toda a outra
beleza (210 a -211 a).
179

Como pode a alma humana percorrer os graus desta hierarquia, até alcançar a
beleza suprema? Eis o problema do Fedro, que parte, portanto, da consideração
da alma e da sua natureza. A alma é imortal enquanto é incriada;
efectivamente, move-se por si, pelo que tem em si mesma o princípio da sua
vida. Pode exprimir-se a sua natureza "de maneira humana e mais breve" por
meio de um mito. É semelhante a uma parelha de cavalos alados, conduzidos por
um auriga. Um dos cavalos é excelente, o outro é péssimo; de modo que o
trabalho do auriga é difícil e penoso. O auriga procura conduzir ao céu os
cavalos, levando-os até à corte dos deuses, lá onde fica a região supra-
celeste (hiperurânio) que é a sede do ser. Nesta região está a "verdadeira
substância (ousía), sem cor e sem forma, impalpável, que só pode ser
contemplada pelo guia da alma, que é a razão, a substância que é o objecto da
verdadeira ciência (Fedr., 247 c). Esta substância é a totalidade das ideias
justiça em si, temperança em si, etc.). e só pode ser contemplada pela alma;
mesmo assim mal, pois que o cavalo ruim a puxa para baixo. Todas as almas
contemplam, por conseguinte, em maior ou menor parte a substância do ser, e
quando, por esquecimento ou por culpa, o pesadume a acomete, perde as asas e
encarna-se, indo vivificar o corpo de um homem que será exactamente aquilo em
que ela o transformar. A alma que viu mais entra para o corpo de um homem que
se irá consagrar ao culto da sabedoria ou do amor; as almas que viram menos
encarnam-se em homens que cada vez se afastarão mais da pesquisa da verdade e
da beleza. Ora a recordação das substâncias ideais é precisamente despertada
pela beleza, na alma que caiu e se encarnou. Efectivamente, mal vê a beleza o
homem reconhece-a de chofre, pela sua luminosidade. A vista, que é o mais
180

agudo dos sentidos corpóreos, não vê nenhuma das outras substâncias, pode ver,
no entanto, a beleza. "Só à beleza coube o privilégio de ser a substância.
mais evidente e mais amável". Ela faz de medianeira entre o homem caído e o
mundo das ideias; e o homem responde com amor ao seu apelo. É verdade que o
amor pode também ficar preso à beleza corpórea e pretender gozar desta
somente; mas quando é sentido e realizado na sua verdadeira natureza, o amor
torna-se o guia da alma para o mundo do ser. Neste caso já não é tão só
desejo, impulso, delírio; os seus caracteres passionais não deixam de existir
e manifestar-se, mas subordinam-se e fundem-se na pesquisa rigorosa e lúcida
do ser em si, da ideia.
O eros torna-se então procedimento racional, dialéctica (156). A dialéctica é
a um tempo pesquisa do ser em si e união amorosa da alma no aprender e no
ensinar. É, por conseguinte, psicagogia, guia da alma, pela mediação da
beleza, em direcção ao verdadeiro destino. É, ainda, a verdadeira arte da
persuasão, a verdadeira retórica. Esta não é, como sustentam os sofistas, uma
técnica a que seja indiferente a verdade do seu objecto e a natureza da alma
que se quer persuadir, mas ciência do ser em si e, ao mesmo tempo, ciência da
alma. Nessa qualidade distingue as espécies da alma e acha para cada uma o
caminho apropriado para a persuadir e conduzir ao ser.

Este conceito da dialéctica, que é o ponto culminante do Fedro e a cúpula da


teoria platónica do amor, viria a constituir o centro da especulação platónica
nos últimos diálogos.

§ 51. A JUSTIÇA

Todos os temas especulativos e todos os resultados fundamentais dos diálogos


precedentes se acham resumidos na obra máxima de Platão, a República,
181

que os ordena e os unes ao redor do motivo central de uma comunidade perfeita,


em que o indivíduo encontra a sua perfeita formação. O projecto de uma
comunidade tal funda-se no princípio que constitui a directriz de toda a
filosofia platónica. "Se os filósofos não governarem a cidade ou se os que
agora achamos reis ou governantes, não cultivarem verdadeira e seriamente a
filosofia, se o poder político e a filosofia não coincidirem nas mesmas
pessoas e a multidão dos que agora se ocupara exclusivamente de uma ou da
outra não for rigorosamente impedida de fazê-lo, é impossível que cessem os
males da cidade e até os do género humano" (Rep., V., 473 d). Mas neste ponto
do desenvolvimento da investigação, a constituição de uma comunidade política
governada por filósofos oferece a Platão dois problemas fundamentais: qual é o
escopo e o fundamento de uma tal comunidade? Quem são propriamente os
filósofos?
À primeira pergunta responde Platão: a justiça. E, com efeito, a República
dirige-se explicitamente à determinação da natureza da justiça. Nenhuma
comunidade humana pode subsistir sem a justiça. À opinião sofística que queria
reduzi-la ao direito do mais forte, objecta Platão que nenhum bando de
salteadores ou de ladrões poderia realizar qualquer roubo, se os seus
componentes violassem as normas da justiça uns em prejuízo dos outros. A
justiça é condição fundamental do nascimento e da vida do estado. Este deve
ser constituído por três classes: a dos governantes, a dos guardiões ou
guerreiros e a dos cidadãos, que exercem qualquer outra actividade
(agricultores, artesãos, comerciantes, etc.). A sageza pertence à primeira
destas classes, porque basta que os governantes sejam sábios para que todo o
estado seja sábio. A coragem pertence à classe dos guerreiros. A temperança,
como acordo entre
182

governantes e governados sobre quem deve comandar o estado, é virtude comum a


todas as classes. Mas a justiça compreende em si estas três virtudes: realiza-
se ela quando cada cidadão se dedica à tarefa que lhe é própria e tem o que
lhe pertence. Com efeito, as tarefas em um estado são muitas e todas
necessárias à vida da comunidade: cada qual deve escolher aquela a que se
adapta e dedicar-se-lhe. Só assim cada homem será uno e não já múltiplo; e o
próprio estado será uno (423 d).

A justiça garante a unidade e, consigo, a força do estado. Mas garante


igualmente a unidade e a eficiência do indivíduo. Na alma individual Platão
distingue, como no estado, três partes: a parte racional, que é aquela pela
qual a alma raciocina e domina os impulsos; a parte concupiscível, que é o
princípio de todos os impulsos corporais; e a parte irascível, que é o
auxiliar do princípio racional e se enfurece e luta por aquilo que a razão
considera justo. Ao princípio racional pertencerá a sageza, ao princípio
irascível a coragem; ao passo que o acordo de todas as três partes em deixar o
comando à alma racional será a temperança. Também no homem individual a
justiça se terá quando cada parte da alma exercer somente a função que lhe é
própria.

Evidentemente que a realização da justiça não pode prosseguir paralelamente no


indivíduo e no estado. O estado é justo quando cada indivíduo atende somente à
tarefa que lhe é própria; mas o indivíduo que atende só mente à própria tarefa
é ele
próprio justo. A justiça não é só a unidade do estado em si mesmo e do
indivíduo em si mesmo, é, ao mesmo tempo, a unidade do indivíduo e do estado
e, por isso, o acordo do indivíduo com a comunidade.

Duas condições são necessárias para a realização da justiça no estado. Em


primeiro lugar, a eliminação da riqueza e da pobreza; ambas tornam impossí-
183

vel ao homem atender à sua tarefa. Mas esta eliminação não implica uma
organização comunista. Segundo Platão, as duas classes superiores dos
governantes e dos guerreiros não devem possuir nada nem ter qualquer
retribuição, além dos meios para viver. Mas a classe dos artesãos não é
excluída da propriedade; e os meios de produção e de distribuição deixam-se
nas mãos dos indivíduos. A segunda condição é a abolição da vida familiar,
abolição que deriva da participação das mulheres na vida do estado com base na
mais perfeita igualdade com os homens, pondo como única condição a sua
capacidade. As uniões entre homens e mulheres são estabelecidas pelo estado
com vista à procriação de filhos sãos. E os filhos são criados e educados pelo
estado que a todos torna uma única grande família. Estas duas condições tornam
impossível um estado segundo a injustiça, todas as vezes, é claro, que se
verificar esta outra: que o governo seja entregue aos filósofos.

A natureza da justiça esclarece-se indirectamente pela determinação da


injustiça. O estado de que fala Platão é o estado aristocrático, em que o
governo pertence aos melhores. Mas esse estado não corresponde a nenhuma das
formas de governo existentes. Todas estas são degenerações, do estado
perfeito; e os topos de homem correspondentes são degenerações do homem justo,
que é uno em si e com a comunidade, pois que é fiel à sua tarefa. São três as
degenerações do estado e três as correspondentes degenerações do indivíduo. A
primeira é a timocracia, governo fundado na honra, que nasce quando os
governantes se apropriam de terras e de casas; corresponde-lhe o homem
timocrático, ambicioso e amante do mandato e das honras, mas desconfiado em
relação aos sábios. A segunda forma é a oligarquia, governo fundado no
património, em que são os ricos quem comanda, corresponde-lhe o
184

homem hávido de riquezas, parco e laborioso. A terceira forma é a democracia,


na qual os cidadãos são livres e a cada um é permitido fazer o que quiser;
corresponde-lhe o homem democrático, que não é parco como o oligárquico, antes
tende a abandonar-se a desejos descomedidos. Finalmente, a mais baixa de todas
as formas de governo é a tirania, que nasce frequentemente da excessiva
liberdade da democracia. É a forma mais desprezível, porque o tirano, para se
proteger do ódio dos cidadãos, é obrigado a rodear-se dos piores indivíduos. O
homem tirânico é escravo das suas paixões, às quais se abandona
desordenadamente, e é o mais infeliz dos homens.

§ 52. O FILÓSOFO

A parte central da República dedica-se ao delineamento da tarefa própria do


filósofo. Filósofo é aquele que ama o conhecimento na sua totalidade e não
somente em alguma sua parte singular. Mas que coisa é o conhecimento? Pela vez
primeira Platão põe aqui explicitamente o critério fundamental da validade do
conhecer: "Aquilo que absolutamente é, é absolutamente cognoscível, aquilo que
de nenhum modo é, de nenhum modo é cognoscível" (477 a). Pelo que ao ser
corresponde a ciência, que é o conhecimento verdadeiro; ao não-ser, a
ignorância; e ao devir, que fica a meio do ser e do não-ser, corresponde a
opinião (doxa), que está a meio do conhecimento e da ignorância. Opinião e
ciência constituem todo o campo do conhecimento humano. A opinião tem como
domínio seu o conhecimento sensível, a ciência o conhecimento racional. Quer o
conhecimento sensível quer o conhecimento racional se dividem em duas partes,
que se
185

correspondem simetricamente; têm-se, assim, os seguintes graus do conhecer


(Rep., VI, 510-11).

1O - A suposição ou conjectura (eikasfa), que tem por objecto sombras e


imagem.

2.o - A opinião acreditada, mas não verificada (pistis), que tem por objecto
as coisas naturais, os seres vivos, os objectos da arte, etc..

3.o - A razão científica (diànoia), que procede por meio de hipótese partindo
do mundo sensível. Esta tem por objecto os entes matemáticos.
4.o - A inteligência filosófica (nóesis), que procede dialecticamente e tem
por objecto o mundo do ser.

Como as sombras, as imagens reflectidas, etc., são cópias das coisas naturais,
também as coisas naturais são cópias dos entes matemáticos e estes, por sua
vez, cópias das substâncias eternas que constituem o mundo do ser. E, com
efeito, o mundo do ser é o mundo da unidade e da ordem absoluta. Os entes da
matemática (números, figuras geométricas) reproduzem a ordem e a proporção do
mundo do ser. Por sua vez, as coisas naturais reproduzem as relações
matemáticas e, assim, quando queremos julgar da realidade das coisas
recorremos à medida. Todo o conhecimento tem pois, no seu cume o conhecimento
do ser: todo o grau dele recebe o seu valor do grau superior e todos do
primeiro.

O homem deve caminhar desde a opinião até à ciência educando-se gradualmente;


e este processo é descrito por Platão por meio do mito da caverna. No mundo
sensível, os homens são como escravos agrilhoados numa caverna e
obrigados a ver no fundo dela as sombras dos seres e dos objectos projectadas
por um fogo que arde fora. Tomam estas sombras pela realidade, porque
não conhecem a realidade verdadeira. Se um escravo se libertasse
186

e conseguisse sair da caverna, não poderia a principio suportar a luz do sol;


teria que se habituar a olhar as sombras, depois as imagens dos homens e das
coisas reflectidas na água, em seguida as próprias coisas e só no fim de tudo
poderia alçar-se à contemplação dos astros e do sol. Só então ele se
aperceberia que é justamente o sol que nos dá as estações e os anos e que
governa tudo o que existe no mundo visível, e que do sol dependem ainda as
coisas que ele e os seus companheiros viam na caverna. Ora a caverna é
precisamente o mundo sensível; as sombras projectadas no fundo são os seres
naturais; o fogo é o sol. O nosso conhecimento das coisas naturais é como o
dos escravos. Se o escravo que primeiro se libertou voltar à caverna, os seus
olhos serão ofuscados pela obscuridade e não saberá discernir as sombras; pelo
que será escarnecido e desprezado pelos companheiros, que concederão as honras
máximas aos que sabem mais agudamente ver as sombras. Mas ele sabe que a
verdadeira realidade está fora da caverna, que o verdadeiro conhecimento não é
o das sombras e, por isso, não experimentará senão compaixão para com aqueles
que se contentam com tal conhecimento e o julgam verdadeiro.

A educação consistirá, pois, em volver o homem da consideração do mundo


sensível à consideração do mundo do ser; e em conduzi-lo gradualmente a
avistar o ponto mais alto do ser, que é o bem. Para preparar o homem para a
visão do bem podem servir as ciências que têm por objecto aqueles aspectos do
ser que mais se aproximam do bem: a aritmética como arte do cálculo que
permite corrigir as aparências dos sentidos; a geometria como ciência dos
entes imutáveis; a astronomia como ciência do movimento mais ordenado e
perfeito, o dos céus; a música como ciência da harmonia. O bem corresponde no
mundo do ser ao
187
que o sol é no mundo sensível. Como o sol não só torna visível as coisas com a
sua luz mas as faz nascer, crescer e alimentar-se, assim o bem não só torna
cognoscívéis as substâncias que constituem o mundo inteligível, mas lhos dá
ainda o ser de que são dotadas. -Por esta sua preeminência o bem não é uma
ideia entre as outras, mas a causa das ideias: não é substância, no sentido em
que as ideias são substâncias, mas é "superior à substância". Diz Platão: "As
coisas cognoscívéis não derivam, do bem somente a sua cognoscibilidade, mas
também o ser e a substância, enquanto o bem não seja substância mas, em querer
e poder, se situe ainda acima da substância" (Rep., 509 b). O bem é a própria
perfeição, ao passo que as ideias são perfeições, isto é, bens; e não é o ser,
porque é a causa do ser. Este texto platónico está na base de todas as
interpretações religiosas do platonismo que foram iniciadas pelas correntes
neoplatónicas da antiguidade (§§ 114 ss.). Estas correntes, insistindo na
causalidade do bem, identificam-no como Deus: mas esta identificação não
encontra justificação nos textos platónicos. A tese que Platão defende na
passagem citada é a mesma que havia defendido no Fédon: a identificação do
poder causal com a perfeição, visto que uma coisa possui tanto mais
causalidade quanto mais perfeita é. O neoplatonismo apropriou-se desta tese;
mas as implicações teológicas que o neoplatonismo lhe atribui são estranhas ao
pensamento platónico.

A inspiração fundamental deste pensamento é, como já se disse, a finalidade


política da filosofia. Em vista desta finalidade, o ponto mais alto da
filosofia não é a contemplação do bem como causa suprema: é a utilização de
todos os conhecimentos que o filósofo pôde adquirir para a fundação de uma
comunidade justa e feliz. Segundo Platão, com efeito, faz parte da educação do
filósofo o regresso
188

à caverna, que consiste na reconsideração e na reavaliação do mundo humano à


luz do que se viu fora deste mundo. Regressar à caverna significa, para o
homem, pôr o que viu à disposição da comunidade, dar-se conta ele próprio
deste mundo que, apesar de inferior, é o mundo humano, portanto o seu mundo, e
obedecer ao vinculo de justiça que o liga à humanidade na sua própria pessoa e
na dos outros. Deverá, pois, reabituar-se à obscuridade da caverna, e então
verá melhor do que os companheiros que ali permaneceram e reconhecerá a
natureza e os caracteres de cada imagem, por ter visto o seu verdadeiro
exemplar: a beleza, a justiça e o bem. Assim poderá o estado ser constituído e
governado por gente desperta e não já, como acontece agora, por gente que
sonha e combate entre si por sombras, e disputa o poder como se este fosse um
grande bem (VII, 520 c). Só com o regresso à caverna, só comprometendo-se no
mundo humano, o homem terá completado a sua educação e será verdadeiramente
filósofo.

53. CONDENAÇÃO DA ARTE IMITATIVA

A filosofia é uma vida "em vigília", exige o abandono de toda a ilusão sobre a
realidade das sombras que nos jungem ao mundo sensível. A arte imitativa, ao
invés, está presa a esta ilusão; daqui a condenação que Platão pronuncia sobre
ela no livro X da República. Com efeito, a imitação, por exemplo a da pintura,
apoia-se na aparência dos objectos; representa-os diversos nas diversas
perspectivas enquanto são os mesmos, e não reproduz senão uma pequena parte da
própria aparência, pelo que não consegue enganar senão as crianças e os tolos.
Isto acontece por prescindir completamente do cálculo e da medida de que nos
servimos
189

para corrigir as ilusões dos sentidos. Estes fazem-nos parecer os mesmos


objectos ora quebrados, ora direitos, conforme sejam vistos dentro ou fora da
água, e côncavos ou convexos, grandes ou pequenos, pesados ou leves, por meio
de outras ilusões. Nós superamos estas ilusões recorrendo à parte superior da
alma, que intervém para medir, para calcular, para pesar. Mas a imitação, que
renuncia a estas operações, volve-se exclusivamente para a parte inferior da
alma, que é a mais afastada da sageza. O mesmo faz a poesia. Esta excita a
parte emotiva da alma, a que se abandona aos impulsos e ignora a ordem e a
medida em que consiste a virtude; e assim vIra as costas à razão. O erro da
poesia trágica ou cómica é ainda mais grave; faz-nos comover com as desgraças
fictícias que se vêem na cena, leva-nos a rir imoderadamente de atitudes
chocarreiras que todos devem na realidade condenar, e deste modo encoraja e
fortalece a parte pior do homem. A isto acrescenta-se a observação (já feita
no Ion) de que o poeta não sabe verdadeiramente nada, pois de outro modo
preferiria realizar os efeitos que canta ou praticar as artes que descreve; e
teremos o quadro completo da condenação que Platão pronuncia sobre a arte
imitativa.

Nenhum valor pode, por isso, ter a criação em que ela consiste. Se a divindade
cria a forma natural das coisas, se o artesão reproduz esta forma nos móveis e
nos objectos que cria, o artista não faz mais que reproduzir os móveis ou os
objectos criados pelo artesão e ficará, por conseguinte, ainda mais afastado
da realidade das coisas naturais. Estas não têm realidade senão enquanto
participam das determinações matemáticas (medida, número, peso) que lhes
eliminam a desordem e os contrastes; ora a imitação prescinde precisamente
destas determinações matemáticas e contraditórias: não pode, pois,
190

aspirar a nenhum grau de validade objectiva, e tende a encerrar o homem


naquela ilusão de realidade de que a filosofia deve despertá-lo.

§ 54. O MITO DO DESTINO

Um estado como o delineado por Platão não é historicamente real. Platão diz
explicitamente que não importa a sua realidade, mas tão só que o homem aja e
viva em conformidade com ele (IX,
592 b). Sócrates foi o cidadão ideal desta ideal comunidade; por ela e nela
viveu e morreu. Certamente por isto chama-o Platão "o homem mais justo e
melhor". E. a exemplo de Sócrates, quem quiser ser justo deve ter os olhos
postos numa tal comunidade.

A justiça, como felicidade do homem à tarefa que lhe é própria, dá lugar ao


problema do destino. É o problema debatido no mito final da República, e já
referido no Fedro (249 b). Platão projecta miticamente a escolha do próprio
destino, que cada um faz no mundo do além: mas o significado do mito, como de
todos os mitos platónicos, é fundamental. Er, morto em batalha e ressuscitado
ao fim de 12 dias, pôde narrar aos homens a sorte que os espera depois da
morte. A parte central da narração de Er diz respeito à escolha da vida que as
almas são convidadas a fazer no momento da sua reencarnação. A Parca Làchesi,
que notifica da escolha, afirma a liberdade desta. "Não é o demónio que
escolherá a vossa sorte, sois vós que escolheis o vosso demónio. O primeiro
que a sorte designar será o primeiro a escolher o teor de vida a que ficará
necessariamente ligado. A virtude é livre em todos, cada um participará dela
mais ou menos consoante a estima ou a despreza. Cada um é responsável pelo
próprio destino, a divindade não
191

é responsável" (Rep., x, 617 e). As almas escolhem, por conseguinte, segundo a


ordem designada pela sorte, um dos modelos de vida que têm ante si em grande
número. A sua escolha depende em parte do acaso, uma vez que os primeiros têm
maior possibilidade de escolha; mas também os que escolhem no fim, se
escolherem judiciosamente, podem obter uma vida feliz. Todo o significado do
mito está nos motivos que sugerem à alma a escolha decisiva. Até os que vêm do
céu às vezes escolhem mal, "porque não foram experimentados pelos sofrimentos"
e deixam-se assim deslumbrar por modelos de vida aparentemente brilhantes,
pela riqueza ou pelo poder que encobrem a infelicidade e o mal. Mas as mais
das vezes a alma escolhe com base na experiência da vida precedente; e, assim,
a alma de Ulisses, lembrada dos antigos trabalhos e despida já de ambição,
escolhe a vida mais modesta e obscura, que fora descurada por todos. De
maneira que o mito, que parecia negar a liberdade do homem na vida terrena e
fazer depender todo o desenvolvimento desta vida da decisão acontecida num
momento antecedente, confirma ao contrário a liberdade, porque faz depender a
decisão da conduta que a alma teve no mundo: daquilo que o homem quis ser e
foi nesta vida. Sócrates pode então pôr o homem em guarda e adverti-lo a
preparar-se para a escolha. "É este o momento mais perigoso do homem e isto
porque cada um de nós, descuidando todas as outras ocupações, deve procurar
atender somente a isto: descobrir e reconhecer o homem que o porá capaz de
discernir o melhor género de vida e de sabê-lo escolher. (618 c). Para isto é
necessário calcular que efeitos têm sobre a virtude as condições de vida, que
resultados bons ou maus produz a beleza quando se une à pobreza, ou à riqueza,
ou às diversas capacidades da alma, ou a quaisquer outras
192

condições da vida; e só considerando tudo isto em relação com a natureza da


alma se pode escolher a vida melhor, que é a mais justa. "Em vida ou na morte,
esta escolha é a melhor para o homem".

Este mito do destino, que afirma a liberdade do homem no decidir da própria


vida, fecha dignamente a República, o diálogo sobre a justiça, que é a virtude
pela qual todo o homem deve assumir e levar a cabo a tarefa que lhe incumbe.

§ 55. FASE CRITICA DO PLATONISMO: "PARMéNIDES" E O "TEETETO"

Pela primeira vez Sócrates não é, no Parménides, a personagem principal do


diálogo. A investigação platónica sobre o verdadeiro significado da
personalidade de Sócrates rasgou enfim o invólucro doutrinal, de que estava
historicamente revestida. Os resultados que ela alcançou levantam outros
problemas, requerem outras determinações, problemas e determinações que não
encontram apoio na letra do ensino socrático, mas que são no entanto
necessários para compreender plenamente tal ensino e para lhe conferir a sua
justificação definitiva. A pesquisa de Platão torna-se cada vez mais técnica,
o campo de investigação delimita-se e aprofunda-se. Depois da grande síntese
da República, a pesquisa procura atingir outros níveis de profundidade, para o
que se devem admitir à partida os ensinamentos de outros mestres e, em
primeiro lugar, de PARMéNIDES.

O Parménides marca o ponto crítico no desenvolvimento da teoria das ideias. As


ideias aparecem neste diálogo definidas (ou redefinidas) e classificadas e são
formulados claramente os problemas a que elas dão lugar, quer nas suas
relações recíprocas, quer nas suas relações com as coisas, quer ainda nas suas
relações com a mente humana.
193

Podem tomar-se as respostas que Sócrates dá a Parménides, na introdução do


diálogo, como constituindo, no seu conjunto, uma olhadela critica que o
próprio Platão lançou, em dado momento, sobre a doutrina fundamental da sua
filosofia. Tais respostas encontram, de facto, confirmações literais nas
referências às ideias, que se podem observar nos outros Diálogos de Platão.

Em primeiro lugar: o que é a ideia? "Penso eu que -tu julgas-diz Parménides


(132 a)-que há uma forma individual em cada caso, por este motivo: quando
observas muitas coisas grandes, julgas que há uma única ideia que é a mesma
quando se olham todas essas coisas e que, por conseguinte, a grandeza é uma
unidade". Por outras palavras, a ideia é a forma única de um múltiplo que
aparece como tal a quem abrange este múltiplo com um só golpe de vista
intelectual: é esta a definição que melhor se presta para exprimir a noção da
ideia, tal como é utilizada em toda a obra de Platão.

Em segundo lugar: de que objectos há ideias? A resposta do Parménides (130 b-


d) é que: há seguramente ideias de objectos como a semelhança e a
dissemelhança, a pluralidade e a unidade, o repouso e o movimento, o um e os
muitos, etc.; b) há seguramente ideias do justo, do bem, do belo, e de todas
as outras determinações deste género; c) é duvidoso que haja ideias de
objectos como homem, fogo, água, etc.; d) não há, com certeza, ideias de
objectos desprezíveis ou ridículos como cabelo, lodo, porcaria, etc.. Estas
respostas encontram plena confirmação na obra de Platão. Que haja ideias dos
objectos da espécie a), ou seja de objectos matemáticos, é doutrina platónica
fundamental. São estas as ideias que, na República, Platão considera objecto
da razão científica, por conseguinte das ciências matemáticas (Rep., 510 c). É
também doutrina fundamental do platonismo que haja as ideias-
194

-valores, que são o objecto específico da filosofia em sentido estricto


(dialéctica), ou seja da inteligência ou pensamento (noesis) (Rep., 534 a). A
dúvida acerca da existência de ideias de coisas sensíveis corresponde a uma
conhecida oscilação do pensamento platónico sobre este assunto. As mais das
vezes Platão nem sequer fala de ideias do género, limitando a sua
exemplificação aos entes matemáticos e aos valores; outras vezes, porém, fala
também de ideias de coisas: por exemplo do frio e do calor (Fed., 103 d); de
camas e de mesas (Rep., 596 a-b); do homem ou do boi (Fil., 15 a); do fogo e
da água (Tim., 51 a-b). Esta oscilação da doutrina platónica pode exprimir-se
bastante bem dizendo que Platão se manteve "em dúvida" no que respeita às
ideias de objectos sensíveis. Quanto aos objectos da classe d), Platão nunca
mais falou de ideias relativamente a eles: de maneira que a exclusão do
Parménides corresponde também aqui a uma situação de facto. Todavia, a dúvida
a respeito das ideias de objectos sensíveis e a negação das ideias de objectos
desprezíveis são abaladas pela observação de Parménides de que Sócrates, neste
caso, se deixou influenciar pelas opiniões dos homens e que, quando a
filosofia o prender completamente, ele não desprezará coisa alguma por
insignificante e miserável que ela seja (Par., 130 e). Esta observação anuncia
óbviamente uma noção de ideia de tipo lógico-ontológico mais do que
matemático-ético: isto é, uma noção que se firme nos caracteres puramente
formais de um múltiplo para ir reconhecer neste unia forma ontológica única, e
que se não deixe embaraçar neste procedimento por considerações éticas. Com
efeito, é esta a posição que podemos encontrar nos diálogos platónicos
posteriores ao Parménides e mais precisamente no Sofista, no Filebo, no Timeu.
195

Em terceiro lugar: qual é a relação entre as ideias e a mente do homem? O


Parménides acrescenta dois pontos a este propósito: 1) as ideias não existem
somente como pensamentos na mente dos homens: com efeito, seriam neste caso
pensamentos de nada (132 b); 2) as ideias não existem fora de toda a relação
com o homem: com efeito, seriam neste caso incognoscíveis para o homem, visto
que objecto de uma "ciência em si" que não teria nada que ver com a do homem e
poderia pertencer somente à divindade (134 a-e). Estas duas determinações são
fundamentais: ambas correspondem a pontos de vista constantemente sustentados
por Platão em toda a sua obra.
Em quarto lugar: quais são as relações das ideias entre si e das ideias com os
objectos de que constituem a unidade? Este é o problema fundamental que se
discute em todo o resto do diálogo como problema das relações entre o um e os
muitos.
O um é a ideia: os muitos são os objectos de que a ideia é a unidade. No que
respeita a esta relação, a dificuldade consiste em compreender como poderá a
ideia ser participada por muitos objectos ou derramada neles sem que resulte
com isso multiplicada e, portanto, destruída na sua unidade. Por outro lado,
da mesma noção de ideia parece emanar a multiplicação das próprias ideias até
ao infinito: uma vez que se tem uma ideia todas as vezes que se considera na
sua unidade uma multiplicidade de objectos, ter-se-á também uma ideia quando
se considerar a totalidade destes objectos mais a sua ideia. Esta será uma
terceira ideia que, se considerada por sua vez conjuntamente com os objectos e
a precedente ideia, dará lugar a uma quarta ideia, e assim por diante até ao
infinito. É este o chamado argumento do "terceiro homem", cuja invenção se
atribuía ao megárico Polixeno e que Aristóteles refere várias vezes (Met., 990
b, 15; 1038 b, 30;
196

1059 b, 2). Não se escapa a esta dificuldade definindo como "semelhança" a


relação entre a ideia e os objectos, e considerando a ideia como arquétipo e
os objectos como imagens ou cópias dela: pois que a própria semelhança se
torna neste caso uma ideia que se acrescenta como terceiro termo aos objectos
e à ideia, dando lugar a uma nova semelhança, etc..

Estas dificuldades são de tal monta que Parménides dirige a Sócrates uma
pergunta crucial: "Que farás agora da filosofia?" Com efeito, não se pode
abandonar facilmente a noção de ideia, pois que sem ela, quer dizer, sem um
ponto fixo no meio da multiplicidade e variabilidade das coisas, não se pode
pensar e ainda menos se pode filosofar: sem a ideia, a própria possibilidade
de dialogar ficaria destruída (135 c). O único caminho de salvação é o que o
próprio Parménides traça: discutir, como hipótese, todos os possíveis modos de
relação entre o um e os muitos e levar até ao fundo as consequências que
derivam de cada uma das hipóteses. E as hipóteses fundamentais são duas: que o
uno seja uno no sentido de ser absolutamente uno; e que o uno seja na sentido
de existir. A primeira hipótese refuta-se por si, visto que, excluindo a
existência de qualquer multiplicidade, não só se exclui todo o devir mas
também o ser do uno e a própria possibilidade de conhecer ou enunciar o uno:
pois que o próprio conhecê-lo ou enunciá-lo o multiplica (142 a). Se, ao
invés, o uno é , no sentido de que existe, o seu existir, distinguindo-se da
sua unidade, introduz prontamente no próprio uno uma dualidade que pode ser
multiplicada e incluir a multiplicidade, o devir e, assim, a cognoscibilidade
e enunciabilidade do uno (155 d-c).

Há, no entanto, um sentido em que o uno não é (e em que, por isso, tão-pouco o
múltiplo é): o uno não é no sentido de que não é absolutamente
197

uno, de que não subsiste -fora da sua relação com o múltiplo, de que não
exclui o próprio multiplicar-se e articular-se em um múltiplo que, apesar do
sujeito ao devir e ao tempo, constitui sempre uma ordem numérica, ou seja uma
unidade. E os muitos não são no sentido de que não são pura e absolutamente
muitos, ou seja, privados de qualquer unidade, pois que em tal caso se
dispersariam e pulverizariam no nada, não podendo constituir um múltiplo. O
uno, por conseguinte, é (existe), mas ao mesmo tempo não é absolutamente uno:
os muitos são (existem), mas ao mesmo tempo não são absolutamente muitos.
O diálogo traça, sob a forma de uma solução puramente lógica, uma conexão
vital entre o uno e os muitos, por conseguinte entre o mundo do ser e o mundo
do homem. Pela boca de Parménides, que na sua filosofia negara resolutamente o
não-ser (§ 14), prepara-se o reconhecimento da realidade do não-ser (do mundo
sensível e do homem), mediante a afirmação da estreita relação dos muitos com
o uno. Esta reivindicação será feita explicitamente no Sofista; mas ela
pressupõe a investigação sobre o processo subjectivo do conhecer, que se
realiza no Teeteto.

Pode parecer estranho que nesta fase de desenvolvimento da investigação


platónica apareça um diálogo abertamente socrático em que a personagem de
Sócrates é introduzida para fazer valer em toda a sua força negativa e
destruidora a arte maiêutica (§ 27). Mas o Teeteto debate um problema que
reentra no âmbito do ensino socrático, o da ciência, e tem um escopo
predominantemente crítico, querendo demonstrar como é impossível alcançar
qualquer definição da ciência permanecendo no domínio da pura subjectividade
cognoscente. A finalidade do Teeteto é complementar e convergente com a do
Parménides. O Parménides pretendeu
198

demonstrar que é impossível considerar o ser no seu isolamento, como unidade


absoluta sem relação com o homem e com o seu mundo (com os "muitos"). O
Teeteto pretende demonstrar que é impossível considerar o conhecimento
verdadeiro, a ciência, como pura subjectividade, sem relação com o mundo do
ser (com o " uno"). Nas definições que se dão da ciência e que são refutadas
por Sócrates uma por uma, não aparece de facto qualquer referência ao mundo
das ideias ou do ser em si; e o diálogo termina negativamente. Parménides, o
filósofo do ser, é introduzido no diálogo que tem o seu nome para
demonstrar a insuficiência do ser na sua objectividade. Sócrates, o filósofo
da subjectividade humana, é introduzido no Teeteto para demonstrar a
insuficiência do conhecimento como subjectividade isolada do ser.

A tese que no Teeteto primeiro e mais longamente se discute é a tese da


extrema subjectividade do conhecer, a de Protágoras: a ciência é a opinião, é
o que aparece, logo é sensação. Mas a sensação não fornece qualquer critério
de juízo por que a sensação do ignorante equivale à do sábio, a do são à do
doente, a do homem à do animal; enquanto a ciência deve possuir um critério,
uma medida que permita julgar do valor das coisas inclusivamente para o futuro
(de que não há sensação). Pode então dizer-se que a ciência é opinião
verdadeira, entendendo por opinião o pensamento. "Pensar é um discurso que a
alma faz por si consigo mesma, acerca dos objectos que examina. Parece-me a
mim que quando a alma pensa não faz mais que dialogar consigo mesma,
interrogando-se e respondendo-se, afirmando e negando" (189 e 190-a). Mas esta
nova definição, se reduz a metade a relatividade e a mutabilidade que a
primeira punha na ciência, continua encerrada no âmbito da subjectividade. Se
a ciência é opinião verdadeira, deve distinguir-se
199

da opinião falsa; ora é impossível determinar em que consiste a falsidade de


uma opinião. No entanto, a opinião deve ter sempre, como se viu já (§ 49), um
objecto real; e se iem um objecto real, é verdadeira. Acrescentar que a
ciência consiste na opinião verdadeira acompanhada de razão, não ajuda nada;
uma vez que, seja como for que se entenda a razão que deve justificar e apoiar
a opinião verdadeira, fica-se no âmbito do pensamento subjectivo e não se
garante de nenhum modo a validade objectiva do conhecimento.
A conclusão negativa do Teeteto é fecunda em resultados. A tentativa de
reduzir a ciência ao pensamento subjectivo, ao colóquio interior da alma
consigo mesma, não tem sucesso: como não tem sucesso a tentativa de reduzir o
ser à pura objectividade, às ideias, sem nenhuma relação com a inteligência do
homem. As indicações do Parménides e do Teeteto são, pois, claras. Se se quer
justificar a realidade do ser e a verdade do conhecimento, necessário é que se
alcance um ser que não seja puramente objectivo, mas que compreenda em si o
conhecimento, ou um conhecimento que não seja puramente subjectivo, mas que
compreenda em si o ser.

§ 56. O SER E AS SUAS FORMAS

A esta conclusão se chega explicitamente no Sofista. Contra os "amigos das


ideias", quer dizer contra a interpretação objectivista da teoria das ideias,
afirma-se resolutamente a impossibilidade de que "o ser perfeito seja privado
de movimento, de vida, de alma, de inteligência, e que não viva nem pense". É
necessário admitir que o ser compreende em si a inteligência (ou o sujeito)
que o conhece; esta, como se viu desde o Parménides, não
200

pode ficar fora do ser, de outro modo o ser permaneceria desconhecido. Mas a
inclusão da inteligência no ser modifica radicalmente a natureza do ser. Este
não é imóvel, porque a inteligência é vida e por isso movimento: o movimento é
pois uma determinação fundamental, uma forma (eidos) do ser. Isto não quer
dizer que o ser se mova em todos os sentidos, como sustentam os Heracliteanos;
é necessário admitir que o ser é, ao mesmo tempo, movimento e repouso. Mas na
medida em que os compreende a ambos não é uma coisa nem a outra, ainda que
possa ser ambas: por conseguinte ser. O ser é comum ao movimento e ao repouso;
mas nem o movimento nem o repouso são todo o ser. Cada uma destas
determinações ou formas é idêntica a si mesma, e diferente da outra: o
idêntico e o diferente serão pois outras duas determinações do ser, que assim
se elevam a cinco: ser, repouso, movimento, identidade, diversidade. Mas a
diversidade de cada uma destas formas da outra significa que cada uma delas
não é a outra (o movimento não é o repouso, etc.); pelo que a diversidade é um
não-ser e o não-ser de qualquer modo é, porque, como diversidade, é uma das
formas fundamentais do ser. Desta maneira completou o estrangeiro eleata, o
discípulo de Parménides que é o protagonista do Sofista, o necessário
"parricídio" contra Parménides: utilizando a pesquisa eleática, Platão foi
além dela, unindo ao ser parmenídeo a subjectividade socrática e fazendo
consequentemente viver e mover o ser.

Esta determinação das cinco formas (ou géneros) do ser funda (ou funda-se em)
uma nova concepção do ser: nova porque diferente da que Platão já via aceite
na filosofia sua contemporânea. Em primeiro lugar, ela exclui que o ser se
reduza à existência corpórea como sustentam os
201

materialistas: dado que se diz que "são" não só tais coisas corpóreas mas
também as incorpóreas, como por exemplo a virtude (247 d). Em segundo lugar,
ela exclui que o ser se reduza às formas ideais como sustentam " os amigos das
formas", pois que neste caso se excluiria do ser o conhecimento do ser e daí a
inteligência e a vida (248 c-249 a). Em terceiro lugar, ela exclui que o ser
seja necessariamente imóvel (isto é que "tudo seja imóvel") ou que o ser seja
necessariamente em movimento (isto é que "tudo seja em movimento") (249 d). Em
quarto lugar, exclui que todas as determinações do ser possam combinar-se
entre si ou que todas se excluam reciprocamente (252 a-d). Por outro lado,
como se viu, o ser deverá no entanto compreender o não-ser como alteridade.
Sobre estas bases, o ser não pode definir-se de outro modo que não seja como
possibilidade (dynamis); e deve dizer-se que "é toda a coisa que se ache na
posse de uma qualquer possibilidade, seja de agir seja de sofrer, da parte de
qualquer outra coisa, ainda que insignificante, uma acção ainda que mínima e
ainda que de uma só vez" (247 e). A possibilidade, de que fala Platão, não tem
nada a ver com a potência de Aristóteles. Efectivamente a potência é tal, só
nas comparações com um acto que, unicamente ele, é o sentido fundamental do
ser. Para Platão, porém, o sentido fundamental do ser é precisamente a
possibilidade. E é o ser assim concebido que torna possível, segundo Platão, a
ciência filosófica por excelência, a dialéctica.

§ 57. A DIALÉCTICA

A dialéctica é a arte do diálogo; mas diálogo


é para Platão toda a operação cognoscitiva visto que o próprio pensamento
(como se viu, § 45) é
202

um diálogo da alma consigo mesma. A dialéctica é, em geral, o processo próprio


da investigação racional, portanto também a técnica que dá rigor e precisão a
esta investigação. Ela é uma técnica de invenção ou de descoberta, não (como a
silogística de Aristóteles) de simples demonstração. São dois os momentos que
a constituem:

1) O primeiro momento consiste em reduzir a uma única ideia as coisas


dispersas e em definir essa a ideia de modo a torná-la comunicável a todos
(Fedro, 265 c). Na República Platão diz que, no remontar às ideias, a
dialéctica se situa para além das ciências matemáticas porque considera as
hipóteses (que as ciências não estão em condições de justificar) como simples
hipóteses, quer dizer como pontos de partida para chegar aos princípios de que
se pode depois descer até às conclusões últimas (Rep., VI, 511 b-c). Mas nos
diálogos posteriores este segundo processo é melhor explicitado como técnica
da divisão.

2) O momento da divisão, que consiste "em poder dividir novamente a ideia nas
suas espécies segundo as suas articulações naturais e evitando despedaçar-lhe
as partes como faria um trinchante inábil" (Fedro, 265 d). Nesta segunda fase,
é função da dialéctica "dividir segundo géneros e não tomar por diferente a
mesma forma ou por idêntica uma forma diferente" (Sof., 253 d). O resultado
deste segundo procedimento não é seguro em todos os casos. Em um passo famoso
do Sofista Platão enumera as três alternativas com que pode topar o processo,
a saber: 1) que uma única ideia penetre e abranja muitas outras ideias, que no
entanto continuam separadas dela e exteriores uma à outra;
2) que uma única ideia reduza à unidade muitas outras ideias na sua
totalidade; 3) que muitas ideias fiquem inteiramente distintas entre si
203

(253 d). Estas três alternativas apresentam dois casos extremos: o da unidade
de muitas ideias-em uma delas e o da sua heterogeneidade radical; e, por outro
lado, uma caso intermédio, que é o de uma ideia que abrange outras ideias sem
todavia as fundir em unidade. Qual destes três casos possa verificar-se numa
investigação particular, é coisa que só a própria investigação pode decidir.

Platão pôs em acção a investigação dialéctica no Fedro, no Sofista e no


Político. Nestes diálogos ele procedeu primeiro à definição da ideia, em
seguida à divisão da própria ideia em duas partes, chamadas respectivamente a
parte esquerda e a parte direita e distintas pela presença ou pela ausência de
uma certa propriedade, e assim por diante (Fedro, 266 a-b). O processo pode
fechar-se em um certo ponto ou retomar-se, começando por uma outra ideia. Por
fim, poderão reunir-se ou recapitular-se as determinações assim obtidas em
todo o processo (Sof., 268 c). A natureza da dialéctica neste sentido é, por
conseguinte, a possibilidade da escolha, permitida em todos os passos, da
característica adequada para determinar a divisão da ideia em direita e
esquerda de maneira oportuna, ou seja tal que siga a articulação da ideia e
não "rompa" a própria ideia. A escolha constitui a hipótese do procedimento
dialéctico; a hipótese que a dialéctica assume como tal, para a pôr à prova e
para a justificar, e que por isso se distingue das hipóteses das disciplinas
matemáticas que são assumidas como princípios primeiros, em que se não ousa
tocar (Rep., VII, 533 c). O mundo em que se move a dialéctica é, portanto, um
mundo de formas, quer dizer de géneros ou espécies do ser que podem conectar-
se ou não e serem mais ou menos conexos: é um mundo de conexões possíveis,
competindo precisamente à dialéctica determinar-lhes a possibilidade.
204

Neste ponto, Platão afastou-se muito da noção das ideias-valores de que


tratava a sua primeira especulação. As ideias como géneros e formas do ser são
neutras nos confrontos do valor. Platão fez sua a advertência de Parménides de
considerar todas as formas do ser sem tomar em consideração o valor que os
homens lhes atribuem. Se na República, punha no cume do ser o Rem e
considerava as ideias fundadas neste valor supremo, no Sofistas quis definir
somente o ser, na sua estrutura formal, nas suas possibilidades constitutivas.

§ 58. O BEM

Portanto, quando Platão voltar a ocupar-se do bem nesta fase do seu


pensamento, como acontece no Filebo, o conceito que terá presente não será o
mesmo. O bem já não é a super-substância, mas a forma da vida própria do
homem; e a pesquisa do bem é a pesquisa sobre a qual é esta forma de vida.

Ora, segundo Platão, a vida do homem não pode ser uma vida fundada no prazer.
Uma vida assim, que acabaria por excluir a consciência do prazer, é própria do
animal, que não do homem. Por outro lado, não pode ser tão-pouco uma vida de
pura inteligência, que seria divina, e não humana. Deve ser, pois, uma vida
mista de prazer e de inteligência. O importante é determinar a justa proporção
em que o prazer e a inteligência devem mesclar-se conjuntamente para
constituir a forma perfeita do bem.
O problema do bem torna-se aqui um problema de medida, de proporção, de
conveniência: a investigação moral transforma-se numa investigação metafísica
de natureza matemática. Platão apoia-se em Pitágoras: e recorre aos conceitos
pitagóricos de limite e de ilimitado.
205

Toda a mesclança bem proporcionada é constituída por dois elementos. Um é o


ilimitado, como por exemplo o calor o frio, o prazer ou a dor, e em geral tudo
o que é susceptível de ser aumentado ou diminuído até ao infinito. O outro é o
limite, ou seja a ordem, a medida, o número, que intervêm para determinar e
definir o ilimitado. A função do limite é a de reunir e unificar o que está
disperso, concentrar o que se espalha, ordenar o que está desordenado, dar
número e medida ao que está privado de um e do outro. O limite como número
suprime a oposição entre o um e os muitos, porque determinar o número
significa reduzi-los à unidade. dado que o número é sempre um conjunto
ordenado. Por exemplo, no ilimitado número dos sons a música distingue os três
sons fundamentais, o agudo, o médio e o grave, e desta maneira reduz o
ilimitado à ordem numérica. Ora a união do ilimitado e do limite é o género
misto, a que pertencem todas as coisas que têm proporção e beleza, e a causa
do género misto é a inteligência, que vem a ser, portanto, com o ilimitado, o
limite e o género misto, o quarto elemento constitutivo do bem. A vida
propriamente humana, como mesclança proporcionada de prazer e de inteligência,
é um género misto que tem como causa a inteligência. A ela devem pertencer
todas as ordens e espécies de conhecimento da mais elevada ordem e espécie,
que é a dialéctica, desde as ciências puras, como a matemática, passando pelas
ciências aplicadas como a música, a medicina, etc., até à opinião, que tão-
pouco pode ser excluída, na medida em que é necessária à conduta prática da
vida. No que respeita aos prazeres, só os puros, ao contrário, deverão fazer
parte da vida mista, quer dizer os prazeres não ligados à dor da necessidade,
como
206

são os prazeres do conhecimento e os estéticos. provenientes da contemplação


das belas formas, das belas cores, etc.. Resulta daí que a coisa melhor e mais
alta para o homem, o bem supremo, é a ordem, a medida, o justo meio. A este
primeiro valor segue-se tudo o que é proporcionado, belo e completo. Na
terceira posição fica depois a inteligência como causa da proporção e da
beleza; na quarta, as ciências e a opinião; na quinta, os prazeres puros.

O Filebo oferece assim ao homem a escala dos valores que resultam da estrutura
do ser dilucidada no Sofista. Esta escala coloca no cume o conceito matemático
da ordem e da medida. Platão, chegado ao termo dos aprofundamentos sucessivos
da sua pesquisa, considera que a ciência do justo, de que Sócrates afirmam a
estrita necessidade como único guia -para a conduta do homem, deve ser
substancialmente uma ciência da medida. Um discípulo de Aristóteles,
Aristoxeno (Harm., 30) conta que a notícia de uma lição de Platão sobre o bem
atraia numerosos ouvintes, mas que aqueles que esperavam que Platão falasse
dos bens humanos, como a riqueza, a saúde, a felicidade, ficavam desiludidos
mal ele começava a falar de número e de limites e da suprema unidade que para
ele era o bem. Para Platão, na verdade, a redução da ciência da conduta humana
a ciência de número e de medida, representava a realização rigorosa do
projecto socrático de reduzir a virtude a ciência. Estava agora muito afastado
dos conceitos que haviam dominado o ensino de Sócrates; no entanto, continuava
a seguir de perto a directriz do mestre de reduzir a virtude a uma disciplina
rigorosa, que pudesse constituir a base do ensino e da educação colectiva.
207

§ 59. A NATUREZA E A HISTÓRIA

Precisamente neste ponto perdia a sua razão de ser a recusa de Sócrates em


considerar o mundo natural. Pois que tudo o que este mundo possuir de
realidade e de valor deve ser explicado; e não pode sê-lo senão integrando-o
no mundo do ser. Por outro lado, como se viu, o mundo do ser não subsiste
separadamente do mundo da natureza, visto que o uno não subsiste sem o
múltiplo, nem a realidade sem a aparência. Se se radicar no mundo do ser o
homem com a sua vida e a sua inteligência, deve também radicar-se no ser a
natureza que é o mundo do homem. Um estudo do mundo da natureza é, pois,
possível: mas isso não significa que ele constitua ciência. Platão reforça
aqui o seu conceito de ciência. A ciência incide somente sobre o que é estável
e constante, e concebível pela inteligência; sobre a natureza, que não tem
constância nem estabilidade, só pode haver conhecimentos prováveis (Tim., 29
c-d). Uma "narração provável" é tudo o que Platão se propõe oferecer como
contributo pessoal à investigação natural. O probabilismo da Nova Academia
encontrava nestas afirmações de Platão o seu começo ou a sua justificação.
Seja como for, a pesquisa platónica assume deliberadamente, neste ponto, a
forma do mito.

A causa do mundo é um deus artesão ou demiurgo que o produziu pela bondade sem
mácula que quer difundir e multiplicar o bem. Ele criou a natureza à
semelhança do mundo do ser. E dado que este tem em si alma, inteligência e
vida, a natureza foi criada como um todo animado, um gigantesco animal. Mas,
uma vez que foi gerada, não podia ser, como o modelo, incorpórea; devia, pois,
ser corpórea, logo visível e tangível. Para a tornar mais semelhante ao
modelo, que é eterno, o demiurgo criou o tempo, "uma imagem móvel da
208

eternidade": por ele o devir e o movimento da natureza seguem um ritmo


ordenado e constante, ritmo que se mostra com evidência nos movimentos
periódicos do céu.

O demiurgo é, pois, a causa de tudo o que no mundo é ordem, razão e beleza;


mas o mundo tem ainda uma outra causa que já não é inteligência, mas
necessidade. Com efeito, a inteligência operou no mundo dominando a
necessidade, persuadindo-a a conduzir para o bem a maior parte das coisas que
se criavam. A necessidade (ananche) é representada como uma terceira natureza,
algo assim como a mãe do mundo, do mesmo modo que a ordem racional do mundo
inteligível é o pai do mundo. Este elemento primitivo é diferente de todos os
elementos visíveis (água, ar, terra e fogo), precisamente porque deve ser o
receptáculo e a origem comum deles. Trata-se de uma "espécie invisível e
amorfa, capaz de tudo acolher, participe do inteligível e difícil de ser
concebida". Evidentemente que este receptáculo informe, esta matriz originária
das coisas, é o princípio que limita a acção inteligente do demiurgo e impede
que o mundo natural, que dele resulta, tenha a mesma ordem perfeita do mundo
inteligível que é seu modelo. Além deste princípio há depois o espaço (chora),
que não admite destruição e é a sede de tudo o que se gera; pelo que os
princípios anteriores ao nascimento do inundo natural são três: o ser, o
espaço e a mãe de toda a geração.

Destes três princípios, por obra do demiurgo ou dos deuses a quem ele confiou
a tarefa de continuar a criação, originaram-se todos os seres e todas as
coisas naturais: por isso, à acção da inteligência, que é a causa primeira
fundamental, se juntam as causas secundárias, nas quais agem, com uma lei de
necessidade. os outros
209

princípios da geração, o receptáculo informe e o espaço-

Como se vê, não há qualquer apoio, nesta cosmologia platónica, para a


identificação da divindade com o bem sobre que se centra a interpretação
neoplatónica (quer dizer religiosa) do platonismo. Recordar-se-á 52) que para
Platão o bem é causa das ideias (ou substâncias), no das coisas naturais. A
divindade, por seu turno, é o artífice das coisas naturais, não já do bem e
das ideias. O bem e as ideias entram na criação do mundo natural como
critérios directivos ou limites da acção da divindade, juntos às outras
condições ou limites que são a necessidade e o espaço. O bem e as ideias
constituem, portanto, as estruturas axiológicas que o demiurgo realizou no
mundo natural; mas tais estruturas são, segundo Platão, tão independentes da
divindade como o são, segundo Aristóteles, as estruturas substanciais ou
ontológicas de que o mundo é constituído. Há que sublinhar, por conseguinte, o
carácter politeísta do conceito de divindade que Platão nos apresenta no
Timeu: a divindade é participada por vários deuses, cada um dos quais tem uma
função e domínio próprios, sendo o demiurgo tão só o seu chefe hierárquico.
Platão apresenta-nos a cosmologia do Timeu como a continuação e o complemento
da República. Ele diz que após ter delineado o estado ideal se tem a mesma
impressão que se experimenta ao ver animais belos, mas imóveis: sente "o
desejo de vê-los mover-se". Por isso quer dar movimento ao estado que
delineou; quer ver como se comportaria ele nas lutas e circunstâncias que deve
afrontar. Por isso começa no Timeu a descrever a génese do mundo natural que é
teatro da sua história. Em um diálogo posterior, o Crítias, deveria delinear a
história hipotética do seu estado ideal; o diálogo interrompe-se bruscamente
após os primeiros capí-
210

tulos, mas nestes já se entrevê como seria a concepção platónica da história.


Trata-se de uma concepção que vê na história uma sucessão de idades, em que a
seguinte é menos perfeita que a precedente. Hesíodo falara de cinco idades: a
do ouro, a da prata, a do bronze, a dos heróis e a dos homens (Trab., 109-79),
Platão redu-las a três: 1) a idade dos deuses, que colonizaram a terra criando
os homens como os pastores criam hoje os rebanhos; 2) a idade dos heróis, que
nasceram na Ática, a região da terra colonizada por Efesto e Atena: 3) a
idade dos homens que, por largo tempo dominados pelo aguilhão das
necessidades, quase esqueceram a tradição heróica (Crítias, 109 b segs.).
Reproduzida por outros escritores da antiguidade, esta divisão foi depois
retomada no século XVIII por Vico, que no entanto lhe alterou o significado,
considerando como final e perfeita a idade dos homens e dando, por
conseguinte, um significado progressivo à sucessão das idades.

§ 60. O PROBLEMA POLITICO COMO PROBLEMA DAS LEIS

A última actividade de Platão é ainda dedicada ao problema político. No


Político, Platão indaga qual deve ser a arte própria do governante dos povos.
E a conclusão é que esta arte deve ser a da medida: efectivamente, em tudo é
preciso evitar o excesso ou o defeito e encontrar o justo meio. Toda a ciência
do homem político consistirá essencialmente em procurar o justo meio, aquilo
que é em qualquer caso oportuno ou obrigatório nas acções humanas. A acção
política deve "combinar intimamente", no interesse do estado, as duas índoles
opostas dos homens corajosos e dos homens prudentes, de modo a que, no estado,
se temperem na medida exacta
211

a rapidez de acção e a cordura de juízo. O melhor seria que o homem político


não fizesse leis, visto que a lei, sendo geral, não pode prescrever com
precisão o que é bom para cada qual. Todavia, as leis são necessárias pela
impossibilidade de dar prescrições precisas a cada indivíduo; e elas limitam-
se, por isso, a indicar o que genérica e grosseiramente é o melhor para todos.
No entanto, uma vez que se estabeleçam da maneira melhor, devem ser
conservadas e respeitadas, e a sua ruína implica a ruína do estado. Das três
formas de governo historicamente existentes, monarquia, aristocracia e
democracia, cada uma distingue-se da correspondente forma degenerada
precisamente pela observância das leis. Assim é que o governo de um só é
monarquia se é regido pelas leis; é tirania se é governo sem leis. O governo
de poucos é aristocrata quando é governado pelas leis, oligarquia quando é
governo sem leis. E a democracia pode ser regida por leis ou governada contra
as leis. O melhor governo, prescindindo do governo perfeito delineado na
República, é o monárquico, e o pior é o tirânico. De entre os governos
desordenados (isto é, privados de leis) o melhor é a democracia.

Desta maneira o problema político, que na República fora considerado o


problema de uma comunidade humana perfeita, por conseguinte no seu aspecto
moral, adquire um carácter mais determinado e específico na ú ltima fase da
especulação platónica; ei-lo tomado o problema das leis que devem governar os
homens e encaminhá-los gradualmente a tornarem-se cidadãos da comunidade
ideal. Ao problema das leis é efectivamente dedicada a última obra platónica,
que é também a mais extensa de todas, o diálogo em 12 livros intitulado As
Leis, publicado por Filipe de Opunto após a morte do mestre. Platão é agora
mais vivamente conhecedor da " fragilidade da natureza humana" e considera
212

por isso indispensável haver, até num estado bem ordenado, leis e sanções
penais (854 a). Mas a lei deve conservar a sua função educativa; não deve
somente comandar, mas também convencer e persuadir pela própria bondade e
necessidade: toda a lei deve, portanto, ter um prelúdio educativo, semelhante
ao que se antepõe à música e ao canto. Quanto à punição, uma vez que ninguém
acolhe de boa vontade na sua alma a injustiça, que é o pior de todos os males,
não deve ela ser uma vingança, mas tão só corrigir o culpado, ajudando-o a
libertar-se da injustiça e a amar a justiça.

Resulta daqui que o fim das leis é o de promover nos cidadãos a virtude, a
qual, como já Sócrates ensinava, se identifica com a felicidade. E não devem
promover uma só virtude, como, por exemplo, a coragem guerreira, mas todas,
porque todas são necessárias à vida do estado; e por isso devem tender à
educação dos cidadãos, entendendo por educação "o encaminhamento do homem,
desde os seus tenros anos, para a virtude, tornando-o amante e desejoso de se
tornar um cidadão perfeito que sabe comandar e obedecer segundo a justiça"
(643 e). Mas esta educação tem como seu fundamento a religião, uma religião
que deve prescindir da indiferença e da superstição.

Contra os que explicam o universo pela acção de forças puramente físicas,


Platão afirma a necessidade de admitir um princípio divino do mundo. Na
verdade, se toda a coisa produz transformação em outra, necessário é,
remontando de coisa em coisa, que se alcance uma coisa que se move por si. Uma
coisa que é movida por outra não pode ser a primeira a mover-se. O primeiro
movimento é, pois, aquele que move a -si mesmo, e é o da alma. Há, pois, uma
alma, uma inteligência suprema que move e ordena todas as coisas do mundo (896
e). Mas não basta admitir um princípio divino do
213

mundo, é preciso vencer ainda a indiferença dos que pensam que a divindade não
se ocupa das coisas humanas, que seriam insignificantes para ela. Ora esta
crença equivale a admitir que a divindade é preguiçosa e indolente e a
considerá-la inferior ao mais comum dos mortais, que quer sempre tornar
perfeita a sua obra, quer esta seja grande ou pequena. Mas, enfim, a pior
aberração é a superstição dos que crêem que a divindade possa ser propiciada
com dons e ofertas: esses põem a divindade a par dos cães que, amansados com
presentes, deixam depredar os rebanhos, e abaixo dos homens comuns, que não
atraiçoam a justiça aceitando presentes oferecidos com intenção delituosa.

Como se vê, a última especulação platónica tende a delinear uma forma de


religião filosófica, que Platão liga explicitamente às crenças religiosas
tradicionais. Não há aqui, por conseguinte, qualquer sinal de monoteísmo: na
crença da divindade está a crença nos deuses: a divindade é participada
igualmente por um número indefinido de entes divinos, dos quais os mais
elevados têm nos astros os seus corpos visíveis (Leis, 899 a-b).

O caminho que Platão percorreu desde os primeiros Diálogos, que se detinham a


ilustrar atitudes e conceitos socráticos, até à tardia especulação das Leis,
foi bem longo. No curso deles foram-se acumulando as desilusões que o homem
encontrou nas tentativas de realização do seu ideal político, os problemas que
nasceram uns dos outros numa pesquisa que jamais quis reconhecer jornadas ou
pausas definitivas. Quem confrontar a ú ltima desembocadura desta pesquisa (o
cálculo matemático da virtude e o código legislativo) com o seu ponto de
partida, pode facilmente descobrir um abismo entre os dois pontos extremos
dela. Mas quem considerar que até a estes últimos desenvolvimentos Platão foi
conduzido pela exigência de formular como
214

ciência rigorosa (e a matemática é o tipo acabado do rigor científico) a


aspiração a uma vida propriamente humana, quer dizer, a um tempo virtuosa e
feliz, não pode deixar de reconhecer que Platão se manteve fiel ao espírito da
ensinança de Sócrates e nada mais fez, em toda a sua vida, que realizar-lhe o
significado.

§ 61. O FILOSOFAR

Fazendo o balanço da sua vida, na Carta VII, Platão volta uma vez mais ao
problema que para ,si, como para Sócrates, englobava todos os problemas: o do
filosofar. Não se trata do problema da natureza e dos caracteres de uma
ciência objectiva, mas do problema que a própria ciência é para o homem.
Platão examina-o a propósito da sua tentativa, tão tristemente sucedida, da
educação filosófica, as suas dificuldades e o esforço que ela exige.
O resultado foi que, ao fim de uma única lição, Dioniso julgou saber dela o
bastante e preferiu compor um escrito em que expunha como obra sua aquilo que
tinha ouvido a Platão. Outros haviam feito já, com menor impudência,
tentativas semelhantes; mas Platão não hesita em condená-los em bloco. "O
mesmo posso dizer de todos os que escreveram ou vierem a escrever na pretensão
de expor o significado da minha pesquisa, quer a tenham ouvido a mim ou a
outros, ou eles próprios o tenham descoberto: pelo menos, em meu entender,
nada compreenderam do assunto como ele verdadeiramente é. De minha autoria não
há nem jamais haverá um escrito resumido sobre estes problemas. Dado que eles
não podem ser resumidos a fórmulas, como os outros; pois que só depois de nos
havermos familiarizado com estes problemas durante muito tempo, e depois de se
ter vivido e discutido em comum,
215

o seu verdadeiro significado se acende inesperadamente na alma, como a luz


nasce de uma fagulha e cresce depois por si só" (Carta VII, 341 b-d). Platão
regressa assim, no fim da vida, ao problema de Sócrates: o problema de
encontrar para o homem a via de acesso à ciência e, através da ciência, ao ser
em si.

A exposição que se segue é a recapitulação do que Platão já disse nos diálogos


e especialmente na República. Mas esta recapitulação põe em evidência os
motivos fundamentais da pesquisa platónica e demonstra que a inclusão dela se
resolve no seu princípio, e como a sua integral totalidade se resolve na
ensinança socrática. Por três meios se pode alcançar a ciência: a palavra, a
definição e a imagem. Em quarto lugar está o saber, que fica para além dos
meios que servem para o conquistar. Para além do próprio saber, em quinto
lugar, está o objecto cognoscível, o ser que é verdadeiramente ser (Carta VII,
342 b). Platão esclarece tudo isto por meio do exemplo do círculo. Círculo é,
em primeiro lugar, a palavra pronunciada por nós. Em segundo lugar, damos a
definição de círculo, definição que é formada por outras palavras, como por
exemplo: círculo é o que tem as partes extremas equidistantes do centro. Em
terceiro lugar, traçamos a figura do círculo, que é a imagem dele. Mas estes
três elementos, por muito que se refiram todos ao círculo em si, não têm nada
que ver com ele. Conduzem, no entanto, ao quarto elemento, o qual compreende
todas as actividades subjectivas do conhecer: a opinião verdadeira, a ciência
e a inteligência. Estes elementos não residem nos sons pronunciados nem nas
figuras corpóreas, mas nas almas. Naturalmente que também as actividades
subjectivas do conhecer se não identificam com o ser, que é o objecto do
próprio conhecer; mas estão sem dúvida mais próximas do ser, e entre elas a
inteli-
216

gência é a mais próxima de todas. O ser em si é o termo último a que os meios


e as condições do conhecer tendem a referir-se: ele é indicado pelo primeiro,
definido pelo segundo, figurado pelo terceiro, pensado ou compreendido pelo
quarto. Porém, dada a insuficiência e a instabilidade de tais elementos, a
relação que eles estabelecem com o ser é ainda problemática. Com efeito, o
nome é convencional e variável; a definição, que é feita de nomes, não tem
maior estabilidade; a imagem (o círculo desenhado, por exemplo, aproxima-se
sempre da linha recta quando deveria excluí-la). O próprio saber, condicionado
como é por estes elementos, não tem qualquer garantia de certeza. Não resta,
portanto, outro remédio senão controlar continuamente estes elementos uns
pelos outros percorrendo e repercorrendo a sua cadeia de uns para os outros, e
fazendo valer o resultado do seu trabalho de conjunto (Carta VII, 343 e). Mas
isto é precisamente o dialogar da alma consigo mesma e com as outras almas, a
pesquisa que, desde a palavra, a definição e a imagem se eleva à ciência, para
voltar depois a conferir à palavra um novo significado, a corrigir a
definição, a julgar o valor da imagem. É a pesquisa colectiva cujo processo os
diálogos representaram ao vivo. "Só depois de se haverem arranhado penosamente
uns aos outros, nomes e definições, percepções visuais e sensações, só depois
de tudo se haver discutido em discussões benévolas, em que a má vontade não
dita a pergunta nem a resposta, a sageza e a inteligência salpicam todas as
coisas, tão intensamente quanto a força humana o permite" (Carta VII, 344 b).
Salpicam todas as coisas a sageza (frónesis) e a inteligência (nous): o mais
alto valor da conduta moral e a mais alta validade do conhecimento estão
intimamente ligados. E, com efeito, condicionam-se mutuamente: sem a
inteligência o homem não pode alçar-se à virtude que se revela na acção,
217

como sem esta virtude o homem não pode alçar-se à inteligência. Este
condicionalismo recíproco da sageza e da inteligência é expresso por Platão
por meio de dois conceitos: o parentesco do homem que pesquisa com o ser que é
objecto da pesquisa; e a comunidade da livre educação. Em primeiro lugar, o
homem não alcança aquela relação com o ser em que consiste o grau mais elevado
da ciência, a inteligência, senão em virtude de um seu íntimo e profundo
parentesco com o ser. "Nem a facilidade em aprender, nem a memória poderão
jamais produzir o parentesco com o objecto, visto que tal parentesco não
pode encontrar raízes em disposições heterogéneas. As que são disformes e
estranhas ao justo e ao belo, ainda que dotadas de facilidade em aprender e de
boa memória, e as que propendem por natureza para o justo e para o belo, mas
são avessas a aprender e fracas de memória, nunca poderão alcançar, no que
respeita à virtude e à perversidade, toda a verdade que é possível aprender"
(344 a). A relação originária com o ser no seu mais alto valor (a justiça e o
bem) condiciona e estimula a eficácia e o sucesso da pesquisa. Mas, por outro
lado, a pesquisa não pode realizar-se no mundo fechado da individualidade. Ela
é produto de homens que "vivem, juntos" e "discutem com benevolência" e sem
deixarem que a má vontade influencie as perguntas e as respostas. Quer isto
dizer que ela supõe a solidariedade do indivíduo com os outros, o abandono da
pretensão de nos julgarmos na posse da verdade e não queremos aprender nada
dos outros, a sinceridade consigo mesmo e com os outros e o esforço solidário.
O filosofar não é uma actividade que encerre o indivíduo em si mesmo, é antes
a vida que abre aos outros e com os outros o harmoniza, Por isso, não é ele
somente inteligência, mas também frónesis, sageza de vida. Nem esta
solidariedade humana da pesquisa
218

é fruto de uma afinidade de almas e de corpos, é antes o produto da comunidade


da livre educação (344 h), na qual a malevolência e a má vontade se reduziram
ao mínimo, porque aqueles que dela participam se uniram na comum aspiração ao
ser.
O ser, o objecto último da pesquisa, fazendo convergir em si como a um único
centro os esforços individuais, promove a solidariedade dos indivíduos.

O conceito platónico do filosofar é assim o mais alto e o mais amplo que


alguma vez foi afirmado na história da filosofia. Nenhuma actividade humana
cai fora dele. Platão quer que a pesquisa se estenda "às figuras rectas ou
circulares e às cores, ao bem, ao belo e ao justo, a todo o corpo artificial
ou natural, ao fogo, à água e a todas as coisas do mesmo género, a toda a
espécie de seres vivos, à conduta da alma, às acções e às paixões de toda a
sorte" (342 b). E de tudo será preciso conhecer o verdadeiro e o falso porque
só pelo seu confronto se pode reconhecer a verdade do ser (344 b). A pesquisa
em que o filosofar se realiza não consiste na formulação de uma doutrina:
qualquer tarefa humana oferece ao homem a possibilidade de alcançar a verdade
e de entrar em relação com o ser.

NOTA BIBLIOGRáFICA

§ 42. Dos numerosíssimos escritos biográficos antigos sobre Platão, de que


chegou notícia até nós, temos hoje os seguintes: FILODEMO, Indice dos
filósofos acadêmicos, encontrado nos papiros de Herculano; AIPULEIO, Sobre
Platdo e a mffl doutrina; DIOGENES LAÊRCIO, Vida, que ocupa os primeiros 45
capítulos do III livro da obra, livro inteiramente dedicado a Platão;
PORFIRIO, um fragmento da sua História; OLIMPIODORO, Vida de Platão; urna Vida
de Platão anónima encontrada num códice vienense; um artigo do Léxico de
SUIDAS; uma Vida em árabe encontrada num manuscrito espanhol. Encontram-se
outras informações na
219

Vida de Dido de PLUTARCO e nos escritos de CICERO, HELIANo e ATENEU.


Fundamentais para a biografia são também as Cartas de Platão, especialmente a
Carta VII. A. MADDALENA, no Exame analítico apenso à sua tradução Italiana das
Cartas (Bari, 1948) voltou a propor a tese da inautenticidade, reforçando os
argumentos já antes formulados pela critica alemã de 800 e sobretudo
insistindo na diversidade e incongruência da atitude de Platão, como resulta
das Cartas, em relação à atitude que o próprio Platão atribuiu a Sócrates na
Apologia e nos Diálogos. Porém, estes argumentos não têm na devida conta o
facto de que precisamente a prudência de qualquer preocupa" ção ldealizante
faz das Cartas um documento autênticamente humano que tem todos os requisitos
da veracidade; e que tal ausência elimina mesmo a possibilidade de encontrar
os motivos da pretensa falsificação. Já que esta, quando se trata de obras de
filosofia, t,m sempre o objectivo de exaltar o fundador de uma escola, como
provam as numerosas falsificações da época alexandrina, e de lhe atribuir,
anacrónicamente, as doutrinas da própria escola para lhes conferir aquela
venerabilidade tradicional que a época alexandrina apreciava como sinal do
carácter religioso e divino das suas crenças. Nada de semelhante nas Cartas,
que nos mostram Platão nas suas incertezas, nas suas ilusões e nos seus erros;
mas também sempre firme e constante nos interesses fundamentais que dominam
toda a sua obra de filósofo, e que nas Cartas ganham colorido e vivacidade
biográfica.

Entre as reconstruções modernas da vida de Platão, ver ZELLER, 11, 1, p. 389


segs.; GomPERZ, II, p. 259 segs.; TAYLOR, Plato, cap. 1; ROBIN, Plat", p. 1
segs.; STEFANINI, Platane, vol. I; WILLAMOWITZ, Platon, Berlim, 1920; STENZEL,
Platone educatore, Leipzig, 1928 (trad. ital., Bari 1936), cap. 1.

§ 43- A edição fundamental das obras de Platão é a de ENRICO STEFANO, 3 vols.,


Paris, 1578. A paginação desta edição é reproduzida em todas as edições
modernas e adoptada para as citações. Entre as edições mais recentes, além de
várias edições de Leipzig, é notável a de BURNET, Oxford, 1899-1906, que é a
melhor edição crítica, e a publicada na "Colecção da Universidade de França"
que traz à cabeça a tradução francesa.
220

Entre as traduções italianas de Platão as de MRAi, AcRi, BONGH1, MARTINI e


numerosas traduções parciais.

Para uma resenha das obras mais recentes sobre Platão (a partir de cerca de
1930) efr. os fascículos que lhe são dedicados pela "Philosophische
Rundschau>, Tubingen, 1961-62. Nestes fascículos se remete para a bibliografia
mais recente. Ofr. também P. M. SCHUHL, Études Platoniciennes, Paris, 1960, p.
23 segs..

§ 44. Sobre a cronologia dos escritos platónicos: as obras supra-indicadas e,


além dessas, as seguintes: RAEDER, Patons philosophische Entwick1ung, Uipzig,
1905; LUTOSLAWSKI, Origin and Growth of Plato's Logic, 1897; PARMENTMR, La
chronologie des dialogues de Platon, Bruxelas, 1913; RITTER, Ncue
Untersuchungen ueber Platon, M6naco, 1910; BROMMER, Eidos et ~. Étude s~ntique
et chronologique des oeuvres de Platon, Assen, 1940.

§ 45. As duas anedotas referidas no fim do parágrafo foram conservadas por


DIÔGENEs LAÉRcio, a primeira, e a segunda por ARisTôTELES no diálogo Merinto
(fr. 69, Rose).

§ 46. Entre oe que pensam que na fase do seu pensamento que se inicia com o
Parménides Platão formula críticas à sua própria doutrina está GOM- =, II, p.
573. Segundo BURNET, Platonism, Berkeley,
1928, p. 58, Sõcrates é pouco mais que um "fantasma" nos diálogos anteriores
às Leis.

§ 47. ZELLER deu-nos numa reconstrução sistemático-escolástica do pensamento


de Platão prescindindo da ordem e do desenvolvimento dos diálogos.
O resultado por ele obtido é encorajante para qualquer tentativa do mesmo
gênero. As melhores exposições da doutrina platónica são as que lhe sugerem o
desenvolvimento diálogo por diálogo. Remeto por Isso sobretudo para estes
últimos: GompERz II, p. 306 segs.; UEBERWEG-PRAECHTER, p. 222 segs. e as
monografias de TAYLOR e STEFANINI (já citadas) e de RITTER. A referência a
estas obras está subentendido nos parágrafos seguintes, em que me limito a
assinalar algum estudo mais Importante sobre cada diálogo Isolado. No exame do
processo dialéctico se funda V. GoLDSCHMIDT, Les dialogues de Platon, Paris,
1947. Cfr. também JAMER, Paideia, II e HI, New-York, 1943.
221
§ 48. O Protágoras é habitualmente situado no primeiro grupo de diálogos
socráticos juntamente com a Apologia, Críton, Laches, etc., TAYLOR observou
justamente que a perfeiçáo artística do diálogo prova o erro desta colocação,
e por Isso situa-o com Pédon, o Banqu-ete e a República no período em que
Platão atinge a sua máxima excelência como escritor (Plato, p. 20). Na
realidade o seu conteúdo demonstra que é anterior a estes diálogos, embora
pertença certamente a um segundo período da actividade de Platão. A
preocupação polémica anti-sofistica que o domina coloca-o, com Górgi<w e
Eutidemo, no grupo dos diálogos que combatem e abalam a sofística nos seus
aspectos fundamentais: o ensino, a crítica e a retórica. Ver a introdução, à
minha tradução do Prot., Nápoles, 1941.

§ 49. Sobre o Ménon, efr. a bela investigação de STENZF.L em Platone


educatore, p. 90 segs.; JAMER, Paideia, II, p. 182-262. Uma tentativa de
relacionar o Ménon com o criticismo moderno encontra-se em NATORP, Platos
Idee-nlehre, 2.1 edição, Leipzig, 1921, p. 36 segs..

Sobre o Fédon ver NATORP, op. cit., p. 126 segs. sobre as principais
interpretações da teoria platónica das Ideias: LEVI, Le interpretazioni
immanentistiche della filosofia di Platone, Milano, sem data; e especialmente
O. ROSS, Pktos Theory of Ideas, Oxford,
1951.

§ 50. Sobre o Banquete e sobre o Fedro: STENZEL, ap. Cit., p. 141 segs..

§ 51. Sobre a República: NATORP, op. Cit., p. 175 segs.; SiiOREY, Plata's
Republic, Londres, 2 vols.,
1930-35; MURMY, The Interpretation of Plato's Republic, Oxford, 1951. Sobre os
mitos da República e de Platão em geral: STENVART, Myth8 of PlatO, 1904.

§ 54. Sobre o mito final da República: STENZEL, Platone Educatore, p. 128


segs..

§ 55. Sobre o Parménides: WAHL., Êtude sur le Parmeníde de Platon, Paris,


1926; DIÈs, Maton Parmentde, Paris, 1923; PACI, Il significato dei Parmenid
nella filosofia di Platone, Milano, 1938. F. M. CORNFORD, Plato and
Parmenides, Londres, 1939; J. WILD, Plato's Theory of Man, Cambridge (Mass.),
1948.

Sobre o Teeteto: NATORP, Op. Cit., P. 88 SegS.; DiÊS, Autour de Platon, Paris,
1927, p. 450 segs..
222

§ 56. Sobre o Sofista: RiTTER, Platon, II, p. 120 .sega., 185 segs., 642
segs.-, NATORP, op. cit., p. 271 segs.,
331 segs.; DIÊS, La définition de I'Être et Ja Nature des Idêes dans le
Sophiste de Platon, Paris, 1909; STENZEL, ZahI und Gestalt bei Platon und
Aristoteles, Leipzig, 1924, p. 10 segs., 126 se-S.; REIDEMEISTER, Mathematik
und Logik bei PZaton, Leipzig, 1942.

§ 57. Sobre a Dialéctica: STENZEL, StUdien ZUr Entu,ick1ung der Plat.


Dialektik, Leipzig, 1931. Nesta última obra é demoradamente discutido o
conceito da dialéctica platónica como método da divisão, e este método vem
reconhecido como a conquista última da filosofia platónica.

§ 58. Sobre o Filebo: RiTTER, Platon, II, p. 165 segs., 497 segs, NATORP, p.
296 segs.; ROBIN, Platon, cap. 4: e a minha Introdução à tradução de ~ITINI,
Turim, 1942.

A anedota de Aristóxeno encontra-se em Harmonia, ed. Marquard, p. 44, 5; R. S.


BRuMBAUGH, P.'3 Mathematical Imagination, Bloomington, 1954.

§ 59- Sobre o Timeu: RiTTER, Platon, II, p. 258 segs.; TAYLOR, A Commentary on
PZatoIs Timacus, Oxford, 1928; NATORP, p. 338 segs.; ROBIN, Mudes sur Ia
signification et Ia place de Ia physique dans Ia philosophie de Platon, Paris,
1919; ID., Platon, cap. 5; LEVI, Il concetto del tempo nella filosofia di
Platone, Turim, s. d: CORNFORD, Platols Cosmology, Londres,
1937; PERLS, Platon. Sa conception du Kosmos, New York, 1945.

§ 60. Sobre o Político: RITTER, Platon, II, p. 242 segs..


Sobre as Leis: RITTER, op. cit., II, p. 657 segs.; NATORP, p. 358 segs.; ver
das Leis, a tradução ltal. de CASSARÁ, 2 vol., Bari, 1931.

§ 61. Sobre as digressões filosóficas da Carta VII, sobretudo no seu


significado educativo: STENZEL, Platone Eduratore, cap. 6.
223

A ANTIGA ACADEMIA

§ 62. ESPEUSIPO

A escola de Platão tirou o seu nome do "ginásio suburbano muito arborizado


dedicado ao herói Academo" (Dióg. L., IV, 7). Segundo a tradição, foi fundada
após a primeira viagem de Platão à Sicília com o dinheiro que fora recolhido
para o resgate do mesmo Platão (387 a.C., mais ou menos). Poucas notícias
temos sobre a organização da própria escola, mas é bastante duvidoso que ela
tivesse cursos ou ensinos regulares. Durante a vida de Platão, a história da
Academia coincide provavelmente com o próprio desenvolvimento do pensamento
platónico, isto é, com a gradual evolução dos seus interesses e dos seus temas
especulativos, que foi delineada no capítulo precedente.

Mas a vida da Academia continuou, após a morte de Platão, por muitos séculos.
O próprio Platão confiara a direcção da Academia ao seu sobrinho Espeusipo,
que a conservou durante oito anos (347-339). Espeusipo afastou-se da oposição
225

platónica entre conhecImento sensível e conhecimento racional, admitindo uma


"sensação científica" como fundamento do conhecimento dos objectos. Em lugar
das ideias platónicas ele admitia, como modelos das coisas, os números
matemáticos, que distinguia dos sensíveis. Parece que formulou contra a
doutrina das ideias muitas objecções que foram depois expostas por
Aristóteles. Negava-se a reconhecer o bem como princípio do processo cósmico,
argumentando que os seres individuais, animais e vegetais manifestam na sua
existência uma tendência para passarem do imperfeito ao perfeito e que, por
conseguinte, o bem está no termo e não no início do devir. Identificou a razão
com a divindade e, na sequência do Timeu e das Leis, concebeu a divindade como
sendo a alma governadora do mundo.

No seu escrito Semelhanças, em dez livros, de que nos restam alguns


fragmentos, Espeusipo estudava o reino animal e vegetal, procurando sobretudo
classificar-lhes as espécies. A mesma tendência classificatória revela o
título de uma outra obra por ora perdida: Acerca dos tipos dos géneros e das
espécies.

§ 63. XENÓCRATES

Por morte de Espeusipo os membros da Academia elegeram por leve maioria


Xenócrates para a dirigir, ocupando este o seu lugar de director por um
período de 25 anos (339-314). De modesta capacidade especulativa, muito
estimado pelo seu patriotismo e pelo carácter independente (recusou uma soma
considerável oferecida pelo rei Alexandre à Academia, tendo aceitado somente
uma pequena parte dela), Xenócrates teve uma certa influência sobre o
desenvolvimento da escola. Distinguia entre o saber, a opinião e a sensação: o
226

saber é plenamente verdadeiro, a opinião tem uma verdade inferior e a sensação


tem misturadas a um tempo verdade e falsidade. Estas três espécies de
conhecimento correspondem a três espécies de objectos: o saber corresponde à
substância inteligível, a opinião à substância sensível, a sensação a uma
substância mista. A mesma preferência pelo número três mostra a sua divisão da
filosofia em dialéctica, física e ética. Com Xenócrates, acentua-se a
tendência para o pitagorismo que já caracterizava a derradeira especulação de
Platão e a de Espeusipo. Mas Xenócrates interpretou em sentido antropomórfico
a teoria dos números como princípios das coisas, dizendo que a unidade é a
divindade primordial masculina, a dualidade a divindade primordial feminina.
Deificou, portanto, os elementos e imaginou uma imensidade de demónios como
intermediários entre a divindade e os homens.

É notável a sua definição da alma como "um número que se move por si"; nessa
definição, evidentemente, ele entendia por número a ordem ou a proporção que
já Platão indicara com a mesma palavra. Segundo parece, deve atribuir-se a
Xenócrates a doutrina das ideias-números, referida por Aristóteles como
característica dos "platónicos". Segundo essa doutrina, o número constituía a
essência do mundo. Distinguiam-se os números ideais daqueles com que se
calcula, os números ideais, considerados como os elementos primordiais das
coisas, eram dez. Destes, a unidade e a dualidade eram os princípios
respectivamente da divisibilidade e da indivisibilidade, da união de que
brotava o número propriamente dito. Ao paralelismo pitagórico entre
conceitos aritméticos e conceitos geométricos, acrescentava-se um paralelismo
semelhante no domínio do conhecimento; a razão era identificada com a unidade-
ponto, o conhecimento com a dualidade-linha, a opinião com a tríada-
superfície, a percep-
227

ção sensível com a tétrada-corpo. Não é fácil qual possa ser o significado
destas e de idênticas analogias que Aristóteles expõe e discute em vários
passos da Metafísica.

Na ética, Xenócrates seguia Platão: colocou a felicidade na "posse da virtude


e dos meios para a conseguir. Conta-se a seu respeito um dito de espírito
cristão: "o simples desejo equivale já à prática da má acção".

§ 64. POLÉMON. CRANTOR

O sucessor de Xenócrates na direcção da Academia foi Polémon de Atenas (314-


270). Depois de uma juventude desordenada, foi radicalmente transformado pelas
suas relações com Xenócrates e procurou pôr o seu ideal de vida na calma e na
imutabilidade dohumor. A sua ensinança, predominantemente moral, consistia em
afirmar a exigência de uma vida conforme à natureza, exigência que o
aproximava dos Cínicos.

Um seu discípulo, Crantor, conhecido sobretudo como intérprete do Timeu,


iniciou a série dos comentadores de Platão. Crantor fundou ainda um género
literário que mais tarde haveria de ter fortuna, o das "consolações", com o
seu livro Sobre a dor. Um fragmento desta obra trata do papel que a dor física
se destina a cumprir como defensora da saúde e a dor moral como libertadora da
animalidade. De acordo com um testemunho devido a Sexto Empírico, Cantor
imaginava que os Gregos, reunidos numa festa, veriam desfilar ante si os
diversos bens que aspiravam ao primeiro prémio e o disputavam; e este cabia à
virtude, atrás da qual surgiam a saúde e a riqueza.

Cratetes foi quem sucedeu a Polémon, de quem era amicíssimo, na direcção da


Academia (270-
228

-268164). Sucedeu-lhe Arcesilau; mas com este a Academia muda de orientação e


termina, por isso, a história da antiga Academia.

§ 65. HERACLIDES PòNTICO

Ao grupo dos discípulos imediatos de Platão pertenceu Heraclides Pôntico que,


segundo uma tradição, substituiu Platão na direcção da escola durante a sua
última viagem à Sicília. Depois da morte de Espeusipo e da eleição de
Xenócrates para a direcção da escola, à qual ele próprio aspirara, fundou por
alturas de 399 a.C. uma escola na sua pátria, Heracleia, no Ponto. Não deixava
de ser um pouco charlatão e diz-se que corrompeu a Pítia, contra a qual os
seus concidadãos se tinham revoltado pelo mau andamento das colheitas, com o
desígnio de que a sua cidade lhe conferisse honras divinas. Mas, enquanto os
mensageiros anunciavam no teatro o oráculo da Pítia, segundo o qual a cidade
devia oferecer uma coroa de ouro a Heraclides se queria melhorar as suas
condições, Heraclides morreu de emoção; no que se viu uma sentença divina.

Os diálogos de Heraclides estavam cheios de mitos e de fantasias maravilhosas.


Num deles fazia descer à terra um homem da lua. Um outro, intitulado Sobre o
Hades, narrava uma viagem ao inferno.

Heraclides seguiu, modificando-a, a doutrina de Demócrito. No lugar dos átomos


pôs os "corpúsculos não coligados", isto é, corpos simples com os quais a
inteligência divina teria construído o mundo. Na astronomia admitiu o
movimento diurno da terra e opinou que Mercúrio e Vénus giram à volta do Sol.
Concebeu a alma como sendo for-
229

mada de matéria subtilíssima, o éter. E num escrito: Sobre os simulacros


contra Demócrito, combateu, como se depreende do título, a doutrina
democritiana do conhecimento como procedendo dos fluxos dos átomos.

§ 66. EUDOXO. O "EPINóMIDES"

Pertenceu ainda à escola platónica o famoso astrónomo Eudoxo de Cnidos.


Segundo Aristóteles (Met., 1. 991 a, 14), considerou as ideias como estando
mescladas com as coisas de que são a causa, "do mesmo modo que a cor branca
numa mescla é causa da brancura de um objecto". Parece, desta maneira, que as
aproximava das homeomerias de Anaxágoras, que estão todas misturadas umas com
as outras. No campo da ética Eudoxo considerava o prazer como o bem-doutrina
que se discutiu no Filebo de Platão.
A Filipo de Opunto, o discípulo de Platão que transcreveu e publicou as Leis,
a última obra do mestre, costuma atribuir-se desde a antiguidade o diálogo
pseudo-platónico Epinémides. O escopo deste diálogo é determinar quais os
estudos que conduzem à sabedoria. Excluídas as artes e as ciências, que
contribuem apenas para o bem-estar material e o divertimento (como a arte da
guerra, da medicina, da navegação, da música, etc.), fica a ciência do número,
que traz consigo todos os bens. Sem o conhecimento do número, o homem seria
imoral e privado de razão, porque onde não há número não há ordem, mas somente
confusão e desordem. Ora a ordem mais rigorosa é a dos corpos celestes; e o
movimento perfeito desses corpos só pode explicar-se admitindo que eles são
vivos e que a divindade lhes deu uma alma. Eles próprios são deuses ou imagens
de deuses e como tal devem ser adorados. Até o ar e o éter devem ser
divindades, com
230

corpos transparentes e por isso invisíveis; podemos supor que constituem uma
hierarquia de demónios intermediários entre os deuses e os homens. O estudo da
astronomia é o mais importante de todos para conduzir à piedade religiosa, que
é a maior de entre as virtudes. Acompanham-no os estudos auxiliares da
aritmética e da geometria plana e do espaço. Somente através destes estudos o
homem pode alcançar a sabedoria, por isso, tais estudos devem constituir a
preocupação dos governantes.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 60. Sobre a vida, doutrina e escritos dos antigos académicos: DIóGENEs


LA£Rcio, IV, cap. VI1] pág. 88 ss. Outras fontes em ULLFR, II, pãg. 982 w. Os
testemunhos em DIELS, Doxogr. Grae., e os fragmentos em MULLACH, Fragmenta
Phil. Graecor., III, p. 51 ss. Sobre Espeusipo: GoMPERZ, M, pãg. 3 ss.

§ 61. A polémica da Metafísica de Aristóteles contra as ideias-números


(especialmente XIII, cap. 3.* ss e XIV, cap. 3.* ss) parece que vai
precisamente contra Xenócrates; GompERz, III, pág. 7 ss.

§ 62. Sobre Polétnon, e Crantor: GoMPERZ, III, pág. 14 ss.

§ 65. Sobre Heraclides Pôntico: GOMPERz, III, Pág. 16 SS.; JAEGER,


Aristóteles.

§ 64. Sobre Eudoxo: JAEGER, Op. Cit. Sobre Epinómides e Filipo de Opunto:
JAMER, Op. cit. Epinómide,9 considerado diálogo autêntico de Piatão por
TAYLOR, Plato, pág. 497 ss.
231

XI

ARISTÓTELES

§ 67. A VIDA

Quando Aristóteles (que nasce em Estagira em 384-83 a. C.) entrou na escola de


Platão, contava apenas 17 anos. Nesta escola permaneceu 20 anos, ou seja, até
à morte do mestre (348-47). Esta longa permanência, tanto mais notável
tratando-se de um homem que possuía excepcionais capacidade especulativa e
independência de pensamento, torna impossível dar crédito às anedotas que nos
chegaram sobre a ingratidão de Aristóteles relativamente ao mestre. Segundo
Diógenes Laércio (V, 2). Platão teria dito: "Aristóteles calcou-me com as
patas como os potros calcam a mãe quando os dá à luz." Na realidade, porém, a
existência, hoje demonstrada, de um período platónico na especulaÇão
aristotélica, a elegia no altar de Platão (§ 71) e o próprio tom que
Aristóteles emprega quando O critica, demonstram que a atitude de Aristóteles
Para com o mestre foi a da felicidade e do respeito, ainda que dentro da mais
resoluta independência de crítica filosófica.
233

Apresentando-se na Ética a Nicómaco (1, 4,


1096 a, 11-16) para criticar a doutrina platónica das ideias, Aristóteles
declara quão penosa é para ele a tarefa, dada a amizade que o liga aos homens
que a defendem; e acrescenta: "Mas talvez seja melhor, será mesmo um dever,
para salvar a verdade, sacrificar os nossos assuntos pessoais, principalmente
quando se é filósofo: a amizade e a verdade são ambas estimáveis, mas é coisa
santa amar mais a verdade."

À morte de Platão, Aristóteles deixou a Academia e não voltou mais à


escola que o criara. Para suceder a Platão fora designado, pelo próprio
Platão ou pelos condiscípulos Espeusipo; e esta escolha devia imprimir à
Academia uma orientação que Aristóteles não podia aprovar. O
espírito de Platão abandonava a escola e Aristóteles já não tinha razões para
se lhe manter fiel. Acompanhado por Xenócrates transferiu-se então para Asso
na Tróade, onde os dois discípulos de Platão, Erasto e Corisco, haviam
constituído com Hermias uma comunidade filosófico-política (§ 42), de que
temos notícias pela Carta VI de Platão e por outros testemunhos (Didimo, In
Demost., col. 5). Aqui provàvelmente exerceu Aristóteles o seu primeiro ensino
autónomo. O filho de Corisco, Neleo, converteu-se num dos mais fervorosos
sequazes do filósofo; e foi precisamente na casa dos descendentes de Neleo que
se encontraram, segundo conta Estrabão (XIII, 54), os manuscritos das obras
acromáticas de Aristóteles.

Depois de três anos de permanência em Asso, Aristóteles transferiu-se para


Mitilene. Segundo Estrabão, Aristóteles teria fugido de Asso depois da morte
de Hermias, juntamente com a filha do tirano, Pitia, que depois se torna sua
esposa. Mas parece que Aristóteles abandonou Asso antes da morte de Herinias e
que o seu matrimónio remonta
234

ao período da permanência em Asso. Seja como for, ao saber-se a notícia do


assassinato de Hermias por acção dos persas, Aristóteles compõe uma elegia que
exalta a virtude heróica do amigo perdido.

Neste primeiro período da sua actividade didáctica em Asso e em Mitilene, deve


ter ocorrido o afastamento de Aristóteles da doutrina do mestre. Deve ter
composto então o diálogo Sobre a Filosofia, no qual aparece (como sabemos por
alguns fragmentos) a crítica das ideias-números.

No ano de 342 Aristóteles foi chamado por Filipe, rei da Macedónia, a Pella,
para se encarregar da educação de Alexandre. O pai de Aristóteles, Nicómaco,
fora médico na arte da Macedónia uns quarenta anos antes; mas talvez a escolha
de Filipe fosse determinada pela amizade de Aristóteles com Hermias que
mantinha relações com Filipe. Na obra de conquista e de unificação de todo o
mundo grego, para a qual a educação de Aristóteles preparou Alexandre, agiu
seguramente a convicção por parte de Aristóteles da superioridade da cultura
grega e da sua capacidade de dominar o mundo, se se unisse a ela uma forte
unidade política. O afastamento entre o rei e Aristóteles só se produziu
quando Alexandre, alargando os seus desígnios de conquista, pensou na
unificação dos povos orientais e adoptou as formas orientais de soberania.

Quando Alexandre subiu ao trono, Aristóteles regressou a Atenas (335-334).


Regressou ali depois de 13 anos de ausência, célebre como mestre de vida
espiritual e como filósofo; e a amizade do poderosíssimo rei devia colocar à
sua disposição meios de investigação e de estudo excepcionais para aquele
tempo. Fundou então a sua escola, o Liceu, que compreendia além dum edifício e
do jardim, o passeio Ou Peripato de que tomou o nome. Tal como a Academia, o
Liceu praticava a vida em comuni-
235

dade; mas aqui a ordem das lições estava firmemente estabelecida. Aristóteles
dedicava as manhãs aos cursos mais difíceis de argumento filosófico, à tarde
dava lições de retórica e de dialéctica a um público mais vasto. Ao lado do
mestre, realizavam cursos os escolares mais antigos, como Teofrasto e Eudemo.

Quando Alexandre morreu em 323, a insurreição do partido nacionalista contra


os partidários do rei pôs em perigo Aristóteles. Para evitar que "os
atenienses cometessem um segundo crime contra a filosofia", Aristóteles
abandonou Atenas e fugiu para Caleis em Eubeia, pátria de sua mãe, onde
possuía uma propriedade que dela herdara. Aqui se manteve durante os meses
seguintes até ao dia da morte. Uma doença de estômago, de que padecia, pôs fim
à sua vida com 63 anos, em
322-21. Temos o testamento que escreveu em Calcis: fala-se lá em Pitia, sua
filha menor, numa mulher Herpilis que tomara em casa depois da morte da esposa
e no filho Nicómaco que tivera de Herpilis. Estabelece que os seus restos
mortais não sejam separados dos de Pitia, sua mulher, conforme ela também
desejara.

§ 68. O PROBLEMA DOS ESCRITOS

As obras que chegaram até nós compreendem somente os escritos que Aristóteles
compôs para as necessidades do seu ensino. Além destes escritos que se
chamaram acroamáticos por serem destinados a ouvintes, ou esotéricos, isto
é que continham uma doutrina secreta, mas que na realidade são apenas os
apontamentos de que se servia para o ensino, Aristóteles compôs outros
escritos segundo a tradição platónica, em forma dialogada, a que ele mesmo
chamou exotéricos, isto é destinados ao
236

público, nos quais empregava mitos e outros ornamentos vivazes e se mostrava


tão eloquente quanto enxuto e severo se mostra nos escritos escolares. Mas
destes escritos exotéricos não restam mais que poucos fragmentos de cujo valor
para compreender a personalidade de Aristóteles a crítica só se deu conta
recentemente.

Os escritos acroamáticos só vêm a ser conhecidos quando foram publicados, nos


tempos de Sila, por Andrónico de Rodes. Segundo o relato de Estrabão, estes
escritos foram encontrados na adega da casa que possuíam os descendentes de
Neleo, o filho de Corisco. É um facto que, durante muito tempo, Aristóteles só
foi conhecido através dos diálogos e que somente após a publicação dos
escritos acroamáticos, é que os diálogos foram pouco a pouco relegados para o
olvido pelos tratados escritos para a escola. Assim nasce o problema de saber
em que relação se encontram os diálogos com os escritos escolásticos e até que
ponto contribuem para a compreensão da personalidade de Aristóteles.
Nos tratados escolásticos, o pensamento de Aristóteles aparece inteiramente
sistemático e acabado: parece excluir-se, ao menos à primeira vista, que
Aristóteles tivesse experimentado oscilações ou dúvidas, que haja sofrido
crises ou mudanças. A consideração dos diálogos permite, pelo contrário, dar-
se conta de que a doutrina de Aristóteles não nasceu Completa e lograda, que o
seu pensamento sofreu crises e mudanças. Os fragmentos que possuímos de tais
diálogos mostram-nos, com efeito, um Aristóteles que adere primeiramente ao
pensamento platónico para depois se afastar dele e o modificar
substancialmente; um Aristóteles que transforma a própria natureza dos seus
interesses espirituais, os quais, orientados primeiramente para os problemas
filosóficos, se vão depois concentrando em proble-
237

mas científicos particulares. Pelo estudo da formação do sistema aristotélico


foi possível deitar um olhar sobre a formação e o desenvolvimento do homem
Aristóteles.

§ 69. OS ESCRITOS EXOTÉRICOS

Nos seus diálogos Aristóteles não só adoptou a forma literária do mestre mas
também os temas e algumas vezes os títulos das suas obras. Escreveu com efeito
um Banquete, um Político, um Sofista, um Menexeno; e depois o Grillo ou Da
Retórica. que correspondia ao Górgias, o Protréptico que correspondia ao
Eutidemo, o Eudemo ou Da Alma que correspondia ao Fédon.

Este último diálogo parece de franca inspiração platónica. O seu tema chegou
até nós graças a um relato de Cícero. (De Div., 1, 25, 35; fr. 37, Rose):
Eudemo, doente, tem um sonho profético que lhe anuncia a sua cura, a morte dum
tirano e o seu regresso à pátria. Os dois primeiros factos realizam-se; mas
enquanto espera o terceiro, Eudemo morre na batalha. Anunciando-lhe o regresso
à pátria, a divindade quisera indicar que a verdadeira pátria do homem é a
eterna, não a terrena. Aristóteles partia deste relato para demonstrar a
imortalidade e combater as concepções que se opunham a ela. Entre estas
criticava, como Platão no Fédon, o conceito da alma como harmonia: a harmonia
tem alguma coisa que se lhe contrapõe -a desarmonia; pelo contrário, a alma
como substância não tem nada que se lhe contraponha; logo a alma não é
harmonia (fr. 45, Rose). O diálogo admitia também a doutrina platónica da
anamnesis: a alma que desce ao corpo esquece as impressões recebidas no
período da sua existência; pelo contrário, a alma que com a morte regressa ao
além, recorda o que
238

experimentou cá. Pois que "a vida sem corpo é a condição natural para a alma,
a vida no corpo é contra a natureza como uma doença" (fr. 41, Rose).
Aristóteles permanece aqui ligado ainda ao pessimismo órfico-pitagórico aceite
antes por Platão. "Dado que é impossível para o homem participar da natureza
do que é verdadeiramente excelente, seria melhor para ele não ter nascido; e
dado que nasceu, o melhor é morrer quanto antes." (fr. 44, Rose).

O Protréptico (ou discurso exortatório) era uma exortação à filosofia,


dirigida a um príncipe de Chipre, Temisó n. A exortação tomava a forma de um
dilema: "Ou se deve filosofar ou não se deve: mas para decidir não filosofar é
ainda e sempre necessário filosofar; assim pois em qualquer caso filosofar é
necessário" (fr. 51, Rose). O filosofar é concebido ainda platonicamente como
exercício de morte; é a condenação de tudo o que é humano, enquanto aparência
enganosa, e até da beleza (fr. 59, Rose). O filósofo como o político deve
olhar não à s imitações sensíveis, mas aos modelos eternos. Consequentemente
no Protréptico, o conhecimento aparece a Aristóteles como sabedoria moral
(frónesis) enquanto mais tarde distinguirá nitidamente o conhecimento, da vida
moral. O Protréptico terminava provavelmente com a exaltação da figura e da
vida do sage, considerado com um deus mortal, superior ao trágico destino dos
homens (fr. 61, Rose); livro que esteve entre os mais lidos e admirados por
variadíssimos espíritos: desde o cínico Crates que o leu na oficina de um
sapateiro (fr. 50, Rose) a S. Agostinho que, graças à imitação que dele fez
Cicero no Hortensio, veio à filosofia e portanto a Deus (§ 157).

O afastamento por parte de Aristóteles do platonismo deve iniciar-se durante a


permanência de
239

Aristóteles em Asso e o seu primeiro documento é o diálogo Sobre a Filosofia,


que foi durante muito tempo, isto é, até à edição da Metafísica por
intervenção de Andrónico de Rodes, a fonte principal para o conhecimento da
sua filosofia. O diálogo constava de três livros. No primeiro, Aristóteles
tratava do desenvolvimento histórico da filosofia, de maneira análoga ao que
fez no primeiro livro da Metafísica. Mas aqui não começava em Tales, mas na
sabedoria oriental e nos sete sábios. Platão era colocado no cume de toda a
evolução filosófica. No segundo livro, criticava-se a doutrina das ideias de
Platão. Num fragmento que chegou até nós (fr. 9, Rose), toma-se
particularmente em atenção a teoria das ideias-números: "Se as ideias fossem
uma outra espécie de números, diferentes dos da matemática, não poderíamos ter
delas nenhum entendimento. Com efeito, quem, pelo menos a maior parte de nós,
pode entender que coisa seja um número de espécie diferente?" Mas, por um
testemunho de Plutarco e de Proelo (fr .8, Rose), sabemos que ele impugnava
toda a teoria das ideias, declarando que não podia segui-la mesmo à custa de
parecer a alguém demasiado amante da disputa. No terceiro livro do diálogo,
Aristóteles apresentava a sua construção cosmológica. Concebia a divindade
como o motor imóvel que dirige o mundo enquanto causa final, inspirando às
coisas o desejo da sua perfeição. O éter era concebido como o corpo mais nobre
e mais próximo da divindade; por baixo do motor imóvel estavam as
divindades dos céus e dos astros. A existência de Deus era demonstrada
mediante a prova que a Escolástica chamou argumento dos graus. Em
qualquer domínio em que haja uma hierarquia de graus e portanto uma maior ou
menor perfeição, subsiste necessariamente algo absolutamente perfeito. Ora
dado que em tudo o que existe se manifesta uma
240

gradação de coisas mais ou menos perfeitas, subsiste também um ente de


absoluta superioridade e perfeição, e este poderia ser Deus (fr. 16, Rose).
Adaptando o famoso mito platónico da caverna, Aristóteles tirava dele um
argumento para afirmar a existência de Deus. Se existissem homens que tivessem
habitado sempre debaixo da terra em esplêndidas moradas adornadas com tudo o
que a arte humana pode fazer; se nunca tivessem subido à superfície e só
tivessem ouvido falar da divindade, haveriam de estar, apesar disso,
imediatamente seguros da sua existência, se, saindo à superfície, pudessem
contemplar o espectáculo do mundo natural (fr. 12, Rose). Enquanto o mito da
caverna servia a Platão para demonstrar o carácter aparente e ilusório do
mundo sensível, serve a Aristóteles para exaltar a perfeição do mesmo mundo
sensível e para tirar dessa perfeição um argumento de prova da sua origem
divina. A separação entre Platão e Aristóteles não poderia ser melhor
simbolizada do que mediante este mito.

§ 70. AS OBRAS ACROAMÁTICAS


As obras acroamáticas de Aristóteles, levadas a Roma por Sila, foram ordenadas
e publicadas por Andrónico de Rodes pelos meados do século 1 a.C.. Estas obras
compreendem:

1.o -Escritos de LóGICA, conhecidos globalmente sob o nome de õrganon (ou


instrumentos de investigação): Categorias (um livro): sobre os termos ou sobre
os predicados. Sobre a Interpretação (um livro): sobre as proposições.
Primeiros Analíticos (dois livros): sobre o raciocínio. Segundos Analíticos
(dois livros): sobre a prova, a definição, a divisão e o conhecimento dos
princípios. Tópicos (oito
241

livros): sobre o discurso dialéctico e sobre a arte da refutação fundada em


premissas prováveis. Elencos Sofísticos: refutação dos argumentos sofistas.
Esta é a ordem sistemática em que a tradição recolheu os escritos lógicos de
Aristóteles. Não é a ordem cronológica da sua composição acerca da qual
somente se podem adiantar conjecturas. Admite-se geralmente que as Categorias
ou a sua primeira redacção (que compreende os cap. I-VIII) e os livros 11-VII
dos Tópicos são os escritos mais antigos, alguns dos quais compostos
provavelmente quando Platão era vivo. Os Elencos sofísticos são um apêndice
dos Tópicos e pertencem ao mesmo período. Contemporâneo ou pouco posterior
deve ser também o livro Sobre a Interpretação. Os Primeiros Analíticos e os
Segundos Analíticos pertencem à fase madura do pensamento de Aristóteles.
Deve-se recordar também que o uso do vocábulo "lógica" para este género de
investigações foi iniciado pelos estóicos e que Aristóteles, ao contrário, as
compreendia sob o nome de "ciência analítica" (Ret., I, IV,
359 b, 10).

2.o - A METAFÍSICA, em 14 livros. Livro I: Natureza da ciência. Os quatro


princípios metafísicos. Visão crítica das doutrinas dos seus predecessores
(cap. IX: Sobre a doutrina platónica das ideias). Livro II: Dificuldade da
investigação da verdade. Contra uma infinita série de causas. As diversas
espécies de investigação; deve-se partir do conceito de natureza. Livro III -
Quinze dúvidas em torno dos princípios e da ciência que se fundamenta neles.
Livro IV: Solução de algumas dúvidas. Princípio da contradição. Livro V: Sobre
os termos que é costume usar em diferentes significados, como Princípio,
causa, elemento, natureza, etc. Livro VI: Determinação do domínio da
metafísica em relação ao domínio das outras ciências. Livro VII e VIII:
242
Doutrina da substância. Livro IX: Doutrina da potência e do acto. Livro X: O
uno e o múltiplo. Livro XI, cap. I-VIII: análogos aos livros III, IV e VI;
caps. 9-12: sobre o movimento, sobre o infinito. Livro XII: As diversas
espécies de substância, a sensível-mutável, a sensível-imutável, a supra-
sensível; esta última como objecto da metafísica. Livro XIII e XIV: As
matemáticas, a teoria das ideias e a teoria dos números (XIII, cap. IV: Contra
a doutrina platónica das ideias).

Como se vê por este sumário, a Metafísica não é uma obra orgânica mas um
conjunto de escritos diferentes, compostos em épocas diferentes. O livro II é
o resto de um conjunto de apontamentos tirados por um aluno de Aristóteles. O
livro VI, na época alexandrina, subsistia ainda como obra independente.

O Livro XII é uma exposição autónoma que oferece um quadro sintético de todo o
sistema aristotélico e é em si mesmo completo. Os dois últimos livros não têm
nenhuma relação com o que os precede. Estudos recentes permitem traçar para
esta série de escritos uma ordem cronológica e delinear também a direcção da
formação do pensamento de Aristóteles. Os livros I e III constituem a redacção
mais antiga da obra: com efeito, Aristóteles expõe aí a doutrina das ideias
como se fosse sua e inclui-se a si próprio entre os platónicos. Os livros XIII
e XIV pertencem ao mesmo período e constituem uma reelaboração dos dois
precedentes. O livro XIII devia substituir provavelmente o livro XIV porque
oferece uma elaboração mais acabada e sistemática dos mesmos argumentos.

O livro XII contém a formulação teológica da metafísica aristotélica, segundo


a qual esta constitui urna ciência particular que tem por objecto o ser
divino, o primeiro motor. Esta formulação, que está mais próxima do
platonismo, é indubitavelmente anterior àquela que faz da filosofia a
243

ciência do ser enquanto tal. Pelo contrário, os livros sobre a substância


(VII, VIII e IX), na medida em que consideram a substância em geral e portanto
também a substância sensível, realizam o projecto de uma filosofia como
ciência do ser enquanto ser (isto é do ser em geral) e portanto apta a servir
de fundamento a todas as ciências particulares. Esses livros constituem a
formulação mais madura do pensamento aristotélico.

3.o - Escritos de FÍSICA, de HISTóRIA NATURAL, de MATEMÁTICA e de


PSICOLOGIA.

Lições de física em 8 livros. Sobre o céu, em


4 livros. Sobre a geração e a corrupção, em 2 livros. Sobre os meteoros, em 4
livros.

História dos animais: anatomia e fisiologia dos animais. À mesma série


pertencem os escritos: Sobre as partes dos animais,- Sobre a geração dos
animais; Sobre as transmigrações dos animais; Sobre o movimento dos animais.
Os escritos: Sobre as linhas indivisíveis e Sobre os mecanismos são apócrifos.

A doutrina aristotélica da alma é exposta nos três livros Sobre a Alma e na


recolha de escritos intitulada Parva naturalia.

O escrito sobre a Fisionómica é apócrifo. A recolha dos Problemas compreende a


compilação de um conjunto de problemas, alguns dos quais são certamente
aristotélicos.

4.O -Escritos de ÉTICA, POLITICA, ECONOMIA, POÉTICA e RETóRICA.

Com o nome de Aristóteles chegaram-nos três tratados de ética: a Ética


Nicomaqueia, a Ética Eudemia e a Grande Ética, assim chamada não porque seja a
mais vasta (pelo contrário, é a mais breve), mas porque se ocupa de mais
assuntos. Mas
244

a Grande Ética, certamente compilação de um aristotélico, não escapa a


influências estranhas ao aristotelismo, e provavelmente aos estóicos. A Ética
Eudeinia é atribuída por alguns a Eudemo de Rodes, discípulo de Aristóteles;
por outros, considerada como obra original de Aristóteles, editada por Eudemo,
como foi editada por Nicómaco a Ética Nicomaqueia. Os estudos mais recentes
levam a ver na Ética Eudemia a primeira formulação da Ética de Aristóteles que
também neste domínio se vai afastando cada vez mais das directrizes do mestre.

A Política em 8 livros. Livro I: A natureza da família. Livro II: Consideração


crítica das teorias anteriores do estado. Livro III: Conceitos fundamentais da
Política. Natureza dos estados e dos cidadãos. As várias formas de
constituição. A monarquia. Livro IV: Ulterior determinação dos caracteres das
diversas constituições. Livro V: Mudanças, sedições e revoluções nos estados.
Livro VI: A democracia e as suas instituições. Livro VII: a constituiição
ideal. Livro VIII: A educação. Aristóteles recolhem 158 constituições estatais
que se perderam. Voltoti à luz, nos princípios do século passado, a
Constituição dos Atenienses, escrita pessoalmente por Aristóteles como
primeiro livro do conjunto da obra.

Da Economia, provavelmente o primeiro livro não é aristotélico, o segundo é


decididamente apócrifo e pertence ao fim do III século.

À Retórica, em 3 livros, trata no I da natureza da retórica, que tem por


objecto o verosímil e os problemas que lhe são próprios; no II do modo de
suscitar com a palavra afectos e paixões, no III, da expressão e da ordem em
que devem ser expostas as partes do discurso.

A chama-da Retórica a Alexandre é apócrifa, como o demonstra o próprio facto


da dedicatória,
245

costume desconhecido no tempo de Aristóteles; é atribuída ao retórico


Anaxímenes de Lampsaco.

A Poética chegou-nos incompleta. A parte que nos resta trata apenas da origem
e da natureza da tragédia.

Perderam-se as obras históricas de Aristóteles sobre os Pitagóricos, Arquitas,


Demócrito e outros.
O escrito sobre Melisso, Xenófanes e Górgias não é aristotélico.

§ 71. - DO "FILOSOFAR" PLATÓNICO À "FELOSOFIA" ARISTOTÉLICA

Num fragmento da elegia, endereçada a Eudemo, colocada no altar de Platão,


Aristóteles exalta assim o mestre:

* h&~ que o& maus 4ndo têm sequer permitido para [louvar que sozinho ou o
primeiro entre os mortais demonstrou [claramente com o exemplo de ~ vida e com
o rigor de seus [argumentos que o homem se torna bom e feliz ao mesmo tempo. A
ninguém até agora foi permitido tanto alcançar.

O ensinamento fundamental de Platão é, pois, segundo Aristóteles, a relação


estreita que existe entre a virtude e a felicidade; e o valor deste
ensinamento está no facto de que Platão não se limitou a demonstrá-lo com
argumentos lógicos, mas o incorporou na sua vida e para isso viveu. Mas para
Platão o homem só pode alcançar o bem que é a própria felicidade, mediante uma
pesquisa rigorosamente conduzida e que se dirija para a ciência do ser em si.
Platão não estabelecia apenas a identi-
246

dade entre virtude e felicidade mas também entre virtude e ciência. O que é
que pensa Aristóteles desta segunda identidade, para cuja demonstração tende
toda a obra de Platão?

Encontra-se precisamente aqui a separação entre Platão e Aristóteles. Para


Platão a filosofia é procura do ser e ao mesmo tempo realização da verdadeira
vida do homem nesta procura: é ciência e, enquanto ciência, virtude e
felicidade. Mas para Aristóteles, o saber não é já a própria vida do homem que
procura o ser e o bem, mas uma ciência objectiva que se divide e se articula
em numerosas ciências particulares, cada uma das quais alcança a sua
autonomia. Por um lado, para Aristóteles, a filosofia tornou-se o sistema
total das ciências singulares. Por outro lado, é ela própria uma ciência
singular, certamente a "rainha" das outras, mas que não as absorve nem
dissolve por si mesma. Por isso, enquanto para Platão a indagação filosófica
dá lugar a sucessivos aprofundamentos, ao exame de problemas sempre novos que
procuram aprender por todas as partes o mundo do ser e do valor, para
Aristóteles ela encaminha-se para a constituição de lima enciclopédia das
ciências na qual nenhum aspecto da realidade fica de fora. A própria vida
moral do homem torna-se o objecto de uma ciência particular-a ética, que é
autónoma, como qualquer outra ciência, frente à filosofia.

O conceito da filosofia apresenta-se, pois, em Aristóteles profundamente


alterado. Por um lado a filosofia deve constituir-se como ciência em si e
reivindicar portanto para si aquela mesma autonomia que as outras ciências
reivindicam frente a ela. Por outro lado, diferentemente das outras ciências,
deve encontrar razões para o seu fundamento comum e justificar a sua
prioridade relativamente a elas. Nestes termos, o problema é propriamente
247

aristotélico e não se encontra nada semelhante na obra de Platão. Para Platão


a filosofia não é mais que o filosofar e o filosofar é o homem que procura
realizar a sua verdadeira mesmidade, unindo-se ao ser e ao bem que é o
princípio do ser. Não há em Platão um problema do que é que seja a filosofia,
mas só o problema do que é o filósofo, o homem na sua autêntica e completa
realização. Tal é a pesquisa que domina todos os diálogos platónicos,
principalmente, a República e o Sofista. Mas para Aristóteles a filosofia,
enquanto ciência objectiva, deve constituir-se por analogia com as outras
ciências. E como cada ciência é definida e se especifica pelo seu objecto, do
mesmo modo a filosofia deve ter um objecto próprio que a caracteriza frente às
outras ciências e ao mesmo tempo lhe dê, frente a elas, a superioridade que
lhe corresponde. Qual é este objecto?

Dois pontos de vista se entrelaçam a este respeito na Metafísica aristotélica,


pontos de vista que assinalam duas etapas fundamentais da evolução filosófica
de Aristóteles. De acordo com o primeiro, a filosofia é a ciência que tem por
objecto o ser imóvel e transcendente, o motor ou os motores dos céus; e é,
portanto, propriamente falando, teologia. Como tal, esta é a ciência mais alta
porque estuda a realidade mais alta, a divina (Met., VI, 1, 1026 a, 19). Mas
assim entendida, falta à filosofia universalidade (e o próprio Aristóteles o
advertia: 1026 a, 23) porque se reduz a uma ciência particular com um objecto
que, ainda que seja mais alto e mais nobre do que o das outras ciências, não
tem nada a ver com elas. Nesta fase, apesar de se ter apartado do conceito
platónico do filosofar, Aristóteles permanece fiel ao princípio platónico de
que a indagação humana deve exclusiva ou preferentement dirigir-se para 'os
objectos mais elevados que constituem os valores supremos. Mas uma filosofia
assim com-
248

premdida não consegue constituir o fundamento da enciclopédia das ciências e


fornecer a justificação de qualquer investigação, a respeito de qualquer
objecto. Esta exigência leva Aristóteles ao segundo ponto de vista, que é o
definitivo, e cuja realização constitui a sua tarefa histórica. De acordo com
este segundo ponto de vista, a filosofia tem por objecto, não uma realidade
particular (seja embora a mais elevada de todas), mas o aspecto fundamental e
próprio de toda a realidade. Todo o domínio do ser -é dividido pelas ciências
singulares, cada uma das quais considera um aspecto particular do mesmo; só a
filosofia considera o ser enquanto tal, prescindindo das determinações que
constituem o objecto das ciências particulares. Este conceito da filosofia
como "ciência do ser enquanto ser, é verdadeiramente a grande descoberta de
Aristóteles. Ela permite não só justificar o trabalho das ciências
particulares, como dá à filosofia a sua plena autonomia e a sua máxima
universalidade, constituindo-a como o pressuposto indispensável de toda a
investigação. Neste sentido, a filosofia já não é somente teologia: certamente
a teologia é uma das suas partes, mas não a primeira nem a fundamental, pois
que a primeira e fundamental é aquela que conduz à busca do princípio em
virtude do qual o ser, todo o ser -Deus como a mais ínfima realidade natural é
verdadeira e necessariamente tal.

§ 72. A FILOSOFIA PRIMEIRA: SUA POSSIBILIDADE E SEU PRINCIPIO

O primeiro grupo de investigações empreendidas por Aristóteles na Metafísica


versa precisamente sobre a possibilidade e sobre o principio de uma ciência do
ser. Aristóteles preocupa-se antes de mais em definir o lugar desta ciência no
sistema do saber
249

e as suas relações com as outras ciências. Acima de tudo, cada ciência pode
ter por objecto ou o possível ou o necessário: o possível é o que pode ser
indiferentemente de um modo ou de outro; o necessário é aquilo que não pode
ser de modo diferente do que é. O domínio do possível compreende a acção
(praxis) que tem o seu fim em si mesma, e a produção (poiesis) que tem o seu
fim no objecto produzido. As ciências que têm por objecto o possível, enquanto
são normativas ou técnicas, podem também ser consideradas como artes; mas não
há arte que concerne aquilo que é necessário (Et. Nic., VI, 3-4). Entre as
ciências do possível, a política e a ética têm por objecto as acções e por
isso chamam-se práticas; as artes têm por finalidade a produção de coisas e
chamam-se poéticas. Destas últimas, há uma que leva no próprio nome o selo do
seu carácter produtivo-é a poesia.

O domínio do necessário pertence pelo contrário às ciências especulativas ou


teóricas. Estas são três: a matemática, a física e a filosofia primeira, que
depois de Aristóteles se chamará metafísica. A matemática tem por objecto a
quantidade no seu duplo aspecto de quantidade descontínua ou numérica
(aritmética) e de quantidade contínua de uma, duas ou três dimensões
(geometria) (Met., XI, 3,
1061 a, 28). A física tem por objecto o ser em movimento e, por consequência,
aquelas determinações do ser que estão ligadas à matéria que é condição do
movimento (1b., VI 1, 1026 a, 3). A filosofia deve constituir-se por analogia
com as outras ciências teóricas se quer assumir como objecto de sua
consideração o ser enquanto ser. Como a matemática e a física, deve proceder
por abstracção. O matemático despoja as coisas de todas as qualidades
sensíveis (peso, leveza, dureza, etc.) e redu-las à quantidade descontínua ou
contínua; o físico prescinde de todas as determinações do ser que não se
250

reduzem ao movimento. De modo análogo, o filósofo deve despojar o ser de todas


as determinações particulares (quantidade, movimento, etc.) e considerá-lo só
enquanto ser. Além disso, como a matemática parte de certos princípios
fundamentais que concernem o objecto que lhe é próprio, a quantidade em geral
(como é por exemplo o axioma: tirando quantidades iguais a quantidades iguais
os restos são iguais), assim a filosofia deve partir de um princípio que lhe é
próprio e que concerne o objecto que lhe é próprio, o ser enquanto tal.
O problema consiste em saber se uma tal ciência é possível. Evidentemente, a
primeira condição para a sua possibilidade é que seja possível reduzir os
diversos significados do ser a um único significado fundamental. De facto o
ser diz-se de muitas maneiras: nós dizemos que são a quantidade, a qualidade,
a privação, a corrupção, os acidentes; e até do não ser dizemos que é não ser.
Todos estes modos devem ser reduzidos à unidade, se hão-de ser o objecto de
uma única ciência. O ser e o uno devem de algum modo identificar-se, já que é
necessário descobrir aquele sentido do ser, pelo qual o ser é uno e é também a
unidade mesma do ser (1b., IV, 2, 10003 b). E esta unidade não deve ser
acidental. mas intrínseca e necessária a todos os diferentes significados que
o ser assume. O que é acidental não pode ser objecto de ciência porque não tem
estabilidade ou uniformidade; e a ciência é-o somente do que é sempre, ou
quase sempre, de um modo (lb., VI, 2, 1027, a). Se se quer pois determinar o
único significado fundamental do ser é necessário reconhecer um princípio que
garanta a estabilidade e a necessidade do próprio ser. Tal é o princípio da
contradição.

Este princípio é considerado por Aristóteles, em primeiro lugar como princípio


constitutivo do ser enquanto tal; em segundo lugar, como condição de
251

toda a reflexão sobre o ser. isto é, de todo o pensamento verdadeiro. É


portanto simultaneamente um principio ontológico e ló gico; e Aristóteles
expressa-o em duas fórmulas que correspondem a duas significações
fundamentais: "Ê impossível que uma mesma coisa convenha e ao mesmo tempo não
convenha a uma mesma coisa, precisamente enquanto é a mesma"; "É impossível
que a mesma coisa seja e simultaneamente não seja"; tais são as duas fórmulas
principais em que o princípio ocorre em Aristóteles (por exemplo, Met, IV, 3,
1005 h, 18; 4,
1006 a, 3); e destas fórmulas, evidentemente a primeira refere-se à
impossibilidade lógica de predicar o ser e o não ser de um mesmo sujeito; a
segunda à impossibilidade ontológica de que o ser seja e não seja. Aristóteles
defende polemicamente este princípio contra aqueles que o negam: Megáricos,
Cínicos e Sofistas, os quais admitem a possibilidade de afirmar todas as
coisas de todas as coisas; Heracliteanos, que admitem a possibilidade de que o
ser, no devir, se identifique com o não ser. Na realidade, o princípio só se
pode defender e esclarecer polemicamente porque, como fundamento de toda a
demonstração, não pode por sua vez ser demonstrado. Certamente pode-se
demonstrar que quem o nega nada diz ou suprime a possibilidade de qualquer
ciência; e é este, com efeito, o argumento polémico adoptado por Aristóteles
contra os que o negam. Mas com isto ainda não resulta evidente o seu valor
como axioma fundamental da filosofia primeira, como principio constitutivo da
metafísica como ciência do ser enquanto tal. Este valor provém, ao invés, das
considerações que Aristóteles desenvolve a propósito do ser determinado (tóde
li). Se. por exemplo, o ser do homem se determinou como o de "animal bípede",
"necessariamente todo o ser que se reconheça como homem deverá ser
reconhecido, como animal bípede". Se a
252

verdade - afirma Aristóteles -tem um significado, necessariamente quem diz


homem diz animal bípede: pois que isto significa homem. Mas se isto é
necessário, não é possível que o homem não seja animal bípede: de facto a
necessidade significa isto mesmo, que é impossível que o ser não seja" (Met.,
IV, 4,
1006 b, 30). Aqui se descobre claramente o significado do princípio da
contradição como fundamento da metafísica: o princípio leva a determinar o
fundamento pelo qual o ser é necessariamente. E de facto a fórmula negativa do
princípio da contradição: "Ê impossível que o ser não seja" traduz-se
positivamente por estoutra: o ser, enquanto tal, é necessariamente. Nesta
fórmula, o princípio revela claramente a sua capacidade para fundamentar a
metafísica. O ser que é objecto desta ciência, é o ser que não pode não ser, o
ser necessário.

A necessidade constitui portanto para Aristóteles o sentido primário ou


fundamental do ser, aquele a partir do qual todos os outros (embora não
existam), podem ser compreendidos e distinguidos. Era esta a própria tese de
Parménides ("o ser é e não pode não ser": fr. 4, Diels) que fora adoptada
pelos Megáricos. Todavia Aristóteles não entende esta tese no sentido que só o
necessário existe e que o não necessário é nada. Porquanto (como se viu) ele
afirma que só o necessário é o objecto da ciência e que portanto a própria
ciência é necessidade (apodítica, isto é, demonstrativa); o possível é
admitido por ele como objecto de artes ou de disciplinas que têm só imperfeita
ou aproximadamente carácter científico. Portanto, aquilo que ele entende
afirmar é que o ser necessário é o único objecto da ciência e mais que do que
não é necessário somente se pode ter conhecimento na medida em que de qualquer
modo se avizinha da necessidade, no sentido de que manifesta uma certa uni-
253

formidade ou persistência. "Algumas coisas - diz ele - são sempre


necessariamente o que são, não no sentido de serem constrangidas, mas no
sentido de não poderem ser de outra maneira; pelo contrário, outras são o que
são, não por necessidade mas "mais uma vez"; e este é o princípio pelo qual
podemos distinguir o acidental, que é tal precisamente porque não é nem
sempre, nem o mais das vezes (1026 b, 27). Como se vê, Aristóteles admite ao
lado do necessário e do uniforme (o "mais das vezes") também o acidental; mas
do acidental não há ciência mas, em todo o caso, tal como com o uniforme não-
necessário pode ser distinguido e reconhecido sobre fundamento do necessário.

Qual é portanto o ser necessário? A esta pergunta Aristóteles responde com a


doutrina fundamental da sua filosofia. O ser necessário é o ser substancial. O
ser que o princípio da contradição permite reconhecer e isolar na sua
necessidade é a substância. "Esses-diz ele (referindo-se aos que negam o
princípio da contradição) -destroem completamente a substância e a essência
necessária, pois que se vêm obrigados a dizer que tudo é acidental e não
existe nada como o ser-homem ou o ser-animal. Efectivamente se há alguma coisa
como o ser-homem, esta não será o ser-não-homem ou o não-ser-homem, mas estes
serão negações daquele. De facto, é um só o significado do ser e este é a sua
substância. Indicar a substância de uma coisa não é mais que indicar o seu ser
próprio" (Met., IV,
4, 1007 a, 21-27). O princípio da contradição, tomado no seu alcance
ontológico-lógico, conduz directamente a determinar o ser enquanto tal que é o
objecto da metafísica. Este ser é a substância. A substância é o ser por
excelência, o ser que é impossível que não seja e portanto é necessariamente,
o ser que é primeiro em todos os sentidos. "A substância é primeira-diz
Aristóteles (lb., VII,
254

1, 1028 a, 3 1) -por definição, para o conhecimento e para o tempo. Ela é a


única, entre todas as categorias, que pode subsistir separadamente. É primeira
por definição, pois que a definição da substância está implícita
necessariamente na definição de qualquer outra coisa. É primeira para o
conhecimento porque acreditamos conhecer uma coisa, por exemplo o homem ou o
fogo, quando sabemos que coisa ela é, mais do que quando conhecemos o seu
qual, o quanto, o durante; e também só conhece~s cada uma destas
determinações quando sabemos que coisa são elas mesmas". O que coisa é a
substância.

O problema do ser transforma-se portanto no problema da substância e neste


último se concretiza e determina o objectivo da metafísica. "Aquilo que desde
há tempo e ainda agora e sempre temos buscado, aquilo que será sempre um
problema para nós. O que é o ser? significa : O que é a substância?" (Met.,
VII, 1, 1028 b, 2).

§ 73. A SUBSTÂNCIA

O que é a substância? Tal é o tema do principal grupo de investigações na


Metafísica. Aristóteles enfrenta-o com o seu característico processo analítico
e dubitativo, formulando todas as soluções possíveis, desenvolvendo e
discutindo cada uma delas e fazendo assim brotar um problema de outro. No
emaranhado das investigações que nos vários escritos que compõem a Metafísica
se entrelaçam por acaso, voltando amiude ao princípio da discussão ou
interrompendo-a antes da conclusão, o livro VII oferece-nos o desenvolvimento
mais maduro e concludente deste problema fundamental.
O último capítulo do livro, o XVII, apresenta como, conclusão o verdadeiro
princípio lógico e especula-
255

tivo de todo o trabalho. A substância é aqui considerada como o princípio


(arché) e a causa (aitia): em consequência, como o que explica e justifica o
ser de cada coisa. A substância é a causa primeira e, o ser próprio de toda a
realidade determinada. É o que faz de um composto algo que não se resolve na
soma dos seus elementos componentes. Como a sílababa não é igual à soma de b e
a, mas tem uma natureza que desaparece quando se dissolve nas letras que a
acompanham; assim qualquer realidade tem uma natureza que não resulta da
adição dos seus elementos componentes e é diferente de cada um e de todos
estes elementos. Tal natureza é a substância daquela realidade: o princípio
constitutivo do seu ser. A substância é sempre princípio, nunca elemento
componente (1041 b, 31). Só ela, portanto, permite responder à pergunta a
respeito do porquê de uma coisa. Se se pergunta, por exemplo, o porquê de uma
casa ou de um leito, pergunta-se evidentemente qual a finalidade para que a
casa ou o leito foram construídos. Se se pergunta o porquê do nascer, do
morrer ou em geral da mudança, pergunta-se evidentemente a causa eficiente, o
princípio pelo qual o movimento se origina. Mas finalidade e causa eficiente
não são outra coisa senão a própria substância da realidade de que se pergunta
o porquê (1041 a, 29).

Estas observações são a chave para compreender toda a doutrina aristotélica da


substância e consequentemente para penetrar no próprio coração da metafísica
aristotélica. A expressão de que Aristóteles se serve para definir a
substância é: aquilo que o ser era (to ti en einal, quod quid erat esse).
Nesta fórmula, a repetição do verbo ser exprime que a substância é o princípio
constitutivo do ser como tal; e o imperfeito (era) indica a persistência e a
estabilidade do ser, a sua necessidade, A substância é o ser do ser: o
princípio pelo qual
256

o ser é tal necessariamente. Mas como ser do ser, a substância tem uma dupla
função a que corresponde uma dupla consideração da mesma: é por um lado o ser
em quem se determina e limita a necessidade do ser, por outro lado o ser que é
necessidade determinante e limitadora. Podemos exprimir a dupla funcionalidade
da substância, à qual corresponde dois significados distintos mas
necessariamente conjuntos, dizendo que a substância é, por um lado, a essência
do ser, pelo outro o ser da essência. Como essência do ser a substância
é o ser determinado, a natureza própria do ser necessário: o homem como
"animal bípede". Como ser da essência, a substância é o ser determinante, o
ser necessário da realidade existente: o animal bípede como este homem
individual. Os dois significados podem ser compreendidos sob a expressão
essência necessária, a qual dá, o mais exactamente possível, o sentido da
fórmula aristótélica.

Evidentemente, a essência necessária não é a simples; essência de uma coisa.


Nem sempre a essência é a essência necessária: quem diz de um homem que é
músico, não diz a sua essência necessária, porque ele -pode ser homem sem ser
músico. A essência necessária é aquela que constitui o ser próprio de uma
realidade qualquer, aquele ser pelo qual a realidade é necessariamente tal. A
substância é portanto não a essência, mas a essência necessária, não o ser
tomado genericamente mas o ser autêntico: é a essência do ser e o ser da
essência.

Entendida assim, ela revela o aspecto mais íntimo do pensamento aristotélico e


ao mesmo tempo a sua relação mais secreta com o pensamento de Platão. Platão
explicara a validade intrínseca do ser como tal, a normatividade que o ser
apresenta em si próprio e ao homem, referindo o ser aos outros valores e
fazendo do bem o princípio do ser. Para Platão, se o ser vale, se possui um
valor graças ao
257

qual se põe como norma, isso acontece, não porque é ser, mais porque é bem;
aquilo que o constitui enquanto ser é o bem, o próprio valor. A normatividade
do ser é, para Platão, estranha ao próprio ser: o ser está no valor, não o
valor no ser. Ao contrário, Aristóteles descobriu o valor intrínseco do ser. A
validade que o ser possui não lhe vem de um principio extrínseco, do bem, da
perfeição ou da ordem, mas do seu principio -intrínseco, da substância. O ser
não está no valor, mas. "o valor no ser". Tudo aquilo que é. enquanto é,
realiza o valor primordial e único, o ser enquanto tal. A substância, como ser
do ser, dá às mais insignificantes e pobres manifestações do ser uma validade
necessária, uma absoluta normatividade. Efectivamente, não é privilégio das
realidades mais elevadas, mas encontra-se tanto na base como no cimo da
hierarquia dos seres e representa o verdadeiro valor metafísico.

Com a descoberta da validade do ser enquanto tal, Aristóteles está con


condições de adoptar ante o mundo uma atitude completamente distinta da de
Platão. -Para ele, tudo aquilo que é, enquanto é, tem um valor intrínseco, é
digno de consideração e de estudo e pode ser objecto de ciência. Ao contrário,
para Platão só aquilo que encarna um valor diferente do ser pode e deve ser
objecto de ciência: o ser enquanto tal não basta, porque não tem em si o seu
valor. Com a teoria da substância, Aristóteles elaborou o princípio que
justifica a sua atitude frente à natureza, a sua obra de investigador
infatigável, o seu interesse científico que não se apaga nem diminui nem
sequer ante as mais insignificantes manifestações do ser. A teoria da
substância é ao mesmo tempo o centro da metafísica de Aristóteles e o centro
da sua personalidade. Ela revela o íntimo valor existencial da sua metafísica.
258

§ 74. AS DETERMINAÇÕES DA SUBSTÂNCIA

A dupla função da substância aparece continuamente na investigação


aristotélica e comunica-lhe uma ambiguidade aparente que só se pode eliminar
reconhecendo a distinção e a unidade das duas funções da substância. Quando
Aristóteles diz que a substância é expressa pela definição e que só da
substância há definição verdadeira (VII, 4,
1030 b, a), entende a substância como essência do ser, como aquilo que a razão
pode entender e demonstrar do ser. Quando, ao contrário, declara que a
substância se identifica com a realidade determinada (tode ti) e que, por
exemplo, a beleza não existe senão naquilo que é belo (VII, 6, 1031 b,
10), entende a substância como ser da essência, como o princípio que dá à
natureza própria de uma coisa a sua existência necessária. Como essência do
ser, a substância é a forma das coisas compostas, e dá unidade aos elementos
que compõem a todo e ao lodo uma natureza própria, diferente daquela dos
elementos componentes (VIII, 6 b, 2). A forma das coisas materiais, que
Aristóteles chama espécie (VII, 8, 1033 b, 5), é portanto a sua substância.
Como ser da essência, a substância é o sujeito (ypokeimenon, subjectum):
aquilo de que qualquer outra coisa se predica, mas que não pode ser predicado
de nenhuma. E como sujeito é matéria, isto é, realidade privada de qualquer
determinação e que só possui essa determinação em potência (VIII, 1, 1042 a,
26). Como essência do ser, a substância é o conceito ou logos ou razão de ser,
de que não há geração nem corrupção (pois que o que devém não é a essência
necessária da coisa, mas esta ou aquela coisa). Como ser da essência, a
substância é o composto ou sinolo, isto é, a união do conceito (ou forma) com
a matéria, a coisa exis-
259

tente; e em tal sentido a substância nasce e morre (VIII, 15, 1039 b, 20).
Como essência do ser, a substância é o princípio de inteligibilidade do
próprio ser. É o que a razão pode tomar da realidade enquanto tal; e constitui
o elemento estável e necessário, sobre o qual se fundamenta a ciência. De
facto não há ciência senão do que é necessário, enquanto que o conhecimento do
que pode ser e não ser, é mais opinião que ciência. Precisamente por isto não
existe definição ou demonstração das substâncias sensíveis particulares que
são dotadas de matéria e não são por consequência necessárias mas
corruptíveis: o seu conhecimento obscurece-se apenas deixam de ser percebidas.
Todavia permanece íntegro, no sujeito que as conhece, o seu conceito que
expressa precisamente a sua natureza substancial, ainda que não na forma
rigorosa da definição (Met., VII, 15,
1039 b, 27). A substância é portanto objectivamente e subjectivamente o
princípio da necessidade: objectivamente, como ser da essência, enquanto
realidade necessária; subjectivamente, como essência do ser, enquanto razão de
ser necessitante.

Ao considerar a diversidade e disparidade dos significados que a substância


toma para Aristóteles, dir-se-ia que Aristóteles se havia limitado a formular
dialecticamente todos os significados possíveis da palavra, sem escolher entre
eles nem determinar o único significado autêntico e fundamental. Por um lado,
como forma ou espécie, a substância é iningendrável e incorruptível, pelo
outro, como composto e realidade particular existente, é engendrável e
corruptível; por um lado, como sujeito é existência real que não se reduz
nunca ao predicado, isto é, à pura determinação lógica; por outro lado, como
definição e conceito, é pura entidade lógica. Na realidade, concebida a
substância como ser do ser, na sua dupla funcionalidade de ser da
260

essência e essência do ser, Aristóteles podia reconhecer igualmente a


substância em todas aquelas diversas determinações e reduzir portanto à
unidade a disparidade aparente. Tal era precisamente o objectivo que se
propusera ao constituir a metafísica como ciência do ser enquanto tal e ao
tomar como seu fundamento o princípio da contradição. A riqueza das
determinações ontológicas que o conceito de substância permite justificar a
Aristóteles, relacionando-as com um único significado fundamental, é a prova
de que alcançou verdadeiramente, com o conceito de substância, o princípio da
filosofia primeira, como aquela ciência que deve constituir o fundamento comum
e a justificação última de todas as ciências particulares. Aristóteles só
devia excluir como ilegítimo um significado da substância: aquele que separa o
ser da essência ou a essência do ser, que põe a validade e a necessidade do
ser de fora do ser, numa universalidade que não constitui a alma e a vida do
próprio ser. Tal era o ponto de vista do platonismo; por isso Aristóteles se
serve dele continuamente como termo de confronto polémico na construção da sua
metafísica.

§ 75. A POLÉMICA CONTRA O PLATONISMO

A característica do platonismo é, segundo Aristóteles, a de considerar as


espécies como substâncias separadas, reais independentemente dos seres
individuais de que são forma ou substância. Para Aristóteles a
substancialidade (a realidade) da espécie é a mesma do indivíduo de que é
espécie. Para Platão as espécies têm uma realidade em si que não se dissolve
na dos indivíduos singularmente existentes: e em tal sentido são substâncias
separadas.
261

Ora tais substâncias separadas são impossíveis. segundo Aristóteles. Como


espécies deveriam ser universais; mas é impossível que o universal seja
substância porque enquanto o universal é comum a muitas coisas, a substância é
própria de um ser individual e não pertence a nenhum outro. Se em Sócrates,
que é substância, existisse uma outra substância ("homem" ou "ser vivente")
teríamos um ser completo de várias substâncias, o que é impossível.

Aristóteles insiste portanto várias vezes na Metafísica na crítica dos


argumentos que eram seguidos por Platão e pelos Platónicos para estabelecer a
realidade da ideia. Tal crítica versa essencialmente quatro pontos. Em
primeiro lugar, admitir a ideia que corresponda a cada conceito
significa actuar mais ou menos como aquele que, tendo de contar alguns
objectos, julgasse que não podia fazê-lo senão acrescentando o seu número. As
ideias devem ser efectivamente em número maior que os respectivos objectos
sensíveis, porque há de haver não só a ideia de cada substância, mas também a
de todos os seus modos ou caracteres que podem concentrar-se num único
conceito. São outras tantas realidades que se acrescentam às realidades
sensíveis. de modo que o filósofo se encontra no dever de explicar, além
destas últimas,, também as primeiras, enfrentando dificuldades maiores do que
se se encontrasse apenas perante o mundo sensível.

Em segundo lugar, os argumentos com que se demonstra a realidade da ideia


conduziriam a admitir ideias que até os Platónicos não consideram que haja;
por exemplo, a das negações ou das coisas transitórias, pois que também destas
há conceitos. E assim, até para a relação de semelhança entre as ideias e as
coisas correspondentes (por exemplo, entre a ideia do homem e cada homem)
deveria haver uma ideia (um terceiro homem); e entre esta
262

ideia, por uma parte, e a ideia do homem e cada homem individual, por outra,
outras ideias; e
assim até ao infinito.
Em terceiro lugar, as ideias são inúteis porque não contribuem nada para fazer
compreender a realidade do mundo. De facto, não são causa de nenhum movimento
e de nenhuma mudança. Dizer que as coisas participam das ideias não quer dizer
nada, porque as ideias não são princípios de acção .que determinem a natureza
das coisas.

Finalmente, é este o argumento mais importante que se liga com a teoria


aristotélica da substância: a substância não pode existir separadamente
daquilo de que é substância. A afirmação do Fédon de que as ideias são causas
das coisas é, segundo Aristóteles, incompreensível, pois ainda que supondo que
as ideias existam, delas não derivarão as coisas se não intervir para criá-las
um princípio activo.

Estes argumentos a que Aristóteles retorna amiúde são simplesmente


indicativos, mas não reveladores do verdadeiro ponto de separação entre ele e
Platão. Partem do pressuposto de uma realidade das ideias absolutamente
separada do mundo sensível e da própria inteligência humana que as apreende:
pressuposto que se não verifica no espírito autêntico do platonismo. Para
Platão, a ideia é o valor e constitui ao mesmo tempo o dever ser, o melhor,
das coisas do mundo e a norma de que o homem deve servir-se para a valoração
das próprias coisas. A ideia aparece a Aristóteles como separada do mundo não
porque Platão haja negado implicitamente ou explicitamente a relação com o
mundo, mas porque a ideia é incomensurável com o ser do próprio mundo. A ideia
é o bem, o belo ou em geral (segundo os últimos diálogos platónicos) a ordem e
a medida perfeita do mundo, e constitui um princípio diferente e em
consequência estranho e separado do ser' cujo fundamento se
263

pretende que seja. A descoberta da validade intrínseca do ser como tal, o


reconhecimento de que o ser, precisamente enquanto ser e não já enquanto
perfeição ou valor, possui a validade necessária, leva Aristóteles a rejeitar
a doutrina que separa o ser do seu próprio valor e faz deste um mundo ou uma
substância separada.

Por isso a substância aristotélica, até entendida como forma ou espécie, não
pode ser reconduzida à ideia platónica. A substância não é a ideia que
abandonando a esfera supraceleste se envolveu no ser e no devir do mundo e
readquiriu a sua concreção, mas um princípio de validade intrínseco ao ser
como tal: é o ser próprio do devir e do mundo na própria necessidade.

Aristóteles realizou a inversão do ponto de vista platónico. Para Platão, os


valores fundamentais são os morais que não são puramente humanos, mas
cósmicos, e constituem o princípio e o fundamento do ser. Para Aristóteles o
valor fundamental é o ontológico, constituído pelo ser enquanto tal, pela
substância; e os valores morais circunscrevem-se à esfera puramente humana.
Quando Aristóteles nega que o universal seja substância, tem em mente o
universal platónico que verdadeiramente está separado do ser, na medida que é
um valor distinto do ser. O que ele defende constantemente contra o platonismo
é que o valor do ser é intrínseco ao ser: é a doutrina da substância.

§ 76. A SUBSTÂNCIA COMO CAUSA


DO DEVIR

Com a indagação sobre a natureza da substância se entrelaça na Metafísica a


investigação em torno das substâncias particulares. Nesta segunda
investigação, Aristóteles é guiado pelo critério que ilustra
264

num passo famoso do livro VII. É necessário partir das coisas que são mais
cognoscíveis ao homem a fim de alcançar aquelas que são mais cognoscíveis em
si; do mesmo modo que, no campo da acção, se parte daquilo que é bom para o
indivíduo a fim de que consiga fazer seu o bem universal (1020 b, 3). Mais
facilmente cognoscíveis para o homem são as substâncias sensíveis; portanto,
destas se deve partir na consideração das substâncias determinadas. E dado que
estão sujeitas ao devir, trata-se de saber que função desempenha a substância
no devir.

Tudo aquilo que devém tem uma causa eficiente que é o ponto de partida e o
princípio do devir; devém alguma coisa (por exemplo, uma esfera ou um círculo)
que é a forma ou ponto de chegada do devir; e devém. de alguma coisa, que não
é a simples privação dessa forma, mas a sua possibilidade ou potência e se
chama matéria. O artífice que constrói uma esfera de bronze, como não produz o
bronze, tão-pouco produz a forma de esfera que infunde no bronze. Não faz mais
que dar a uma matéria preexistente, o bronze, uma forma preexistente, a
esfericidade. Se tivesse de produzir também a esfericidade, teria de a tirar
de alguma outra coisa, como tira do bronze a esfera de bronze; isto é, deveria
haver uma matéria da qual tiraria a esfericidade e logo ainda uma matéria
desta matéria e assim até ao infinito. É evidente, pois, que a forma ou
espécie que se imprime na matéria não devém, pelo contrário, o que devém é o
conjunto da matéria e forma (sinolo) que desta toma o nome. A substância como
matéria ou como forma escapa ao devir: ao qual pelo contrário, se submete a
substância como sinolo (VII, 8, 1033 b). Isto não quer dizer que haja uma
esfera aparte das que vemos ou uma casa fora das construídas com tijolos. Se
assim fosse, a espécie não se converteria nunca numa realidade determinada,
isto é, esta casa ou
265

esta esfera. A espécie exprime a natureza de uma coisa, não diz que a coisa
existe. Quem produz a coisa, tira de algo que existe (a matéria, o bronze)
qualquer coisa que existe e tem em si aquela espécie (a esfera de bronze). A
realidade determinada é a espécie que já subsiste nestas carnes e nestes ossos
que formam Cálias ou Sócrates, os quais certamente são distintos pela matéria,
mas idênticos pela espécie, que é indivisível (1b., 1034 a, 5).

A substância é portanto a causa não só do ser mas ainda do devir. No primeiro


livro da Metafísica, Aristóteles distinguira quatro espécies de causas,
repetindo uma doutrina já exposta na Física ffi, 3 e 7). "Das causas-dissera
(Met., 1,
3, 983 a, 26)-fala-se de quatro modos. Chamamos causa primeira à substância e
à essência necessária, pois que o porquê se reduz em última instância ao
conceito (logos) que, sendo o primeiro porquê, é causa e princípio. A segunda
causa é a matéria e o substracto. A terceira é a causa eficiente, isto é, o
princípio do movimento. A quarta é a causa oposta a esta última, o objectivo e
o bem que é o fim (telos) de cada geração e de cada devir. " Mas agora é claro
que estas quatro causas são verdadeiramente tais só enquanto se reduzem todas
à causa primeira, à substância de que são determinações ou expressões
diversas. Naquele primeiro ensaio de história da filosofia, que Aristóteles
nos oferece precisamente no primeiro livro da Metafísica, ele põe à prova esta
doutrina das quatro causas para se certificar se os seus predecessores haviam
descoberto outra espécie de causa, além daquelas enunciadas por ele nos
escritos de física. A conclusão da sua análise é que todos se limitaram a
tratar de uma ou duas das causas por ele enunciadas: a causa material e a
causa eficiente foram admitidas pelos físicos, a causa formal por Platão,
enquanto da causa final só Anaxágoras teve um certo indí-
266

cio. "Mas estes - acrescenta Aristóteles - trataram delas confusamente; e se


num sentido se pode afirmar que as causas foram indicadas antes de nós, num
outro sentido pode dizer-se que não foram indicadas inteiramente" o Q, 10, 992
b, 13). Aristóteles está assim consciente de inserir-se historicamente na
pesquisa estabelecida pelos seus predecessores e de levá-la à sua culminação e
clareza.
O objectivo que se propôs parece-lhe sugerido pelos resultados históricos que
a filosofia conseguiu antes dele.

§ 77. POTÊNCIA E ACTO

A função da substância no devir confere à mesma substância um novo


significado. Ela adquire um valor dinâmico, identifica-se com o fim (telos),
com a acção criadora que forma a matéria, com a realidade concreta do ser
individual no qual o devir se executa. Em tal sentido a substância é acto:
actividade, acção, conclusão.

Aristóteles identifica a matéria com a potência, a forma com o acto. A


potência (dynamis) é em geral a possibilidade de produzir uma mudança ou de
sofrê-la. Há a potência activa que consiste na capacidade de produzir uma
mudança em si ou noutro (como, por exemplo, no fogo a potência de aquecer e no
construtor a de construir); e a potência passiva que consiste na capacidade de
sofrer uma mudança (como por exemplo, na madeira a capacidade de
inflamar-se, naquilo que é frágil a capacidade de romper-se). A potência
passiva é própria da matéria; a potência activa é própria do princípio de
acção ou causa eficiente.

O acto (enérgheia) é pelo contrário a própria existência do objecto. Este está


relativamente à potência "como o construir para o saber construir,
267

o estar acordado para o dormir, o olhar para os olhos fechados, apesar de ter
vista, e como o objecto tirado da matéria e elaborado completamente está para
a matéria bruta e para o objecto ainda não acabado" (Met., IX, 6, 1048 b).
Alguns actos são movimentos (kinesis), outros são acções (praxis). São acções
aqueles movimentos que têm em si próprios o seu fim. Por exemplo, ver é um
acto que tem em si próprio o seu fim e do mesmo modo o entender e o pensar,
enquanto que o aprender, o caminhar, o construir têm fora de si o seu fim na
coisa que se aprende, no ponto a que se pretende chegar, no objecto que se
constrói. Aristóteles chamou a estes actos não acções, mas movimentos ou
movimentos incompletos.

O acto é anterior à potência. É anterior relativamente ao tempo: pois é


verdade que a semente (potência) é anterior à planta, a capacidade de ver
anterior ao acto de ver; mas a semente não pode ser derivada senão de uma
planta e a capacidade de ver não pode ser própria senão de um olho que vê. O
acto é anterior também pela substância, pois o que no devir é último, a forma
completa, é substancialmente anterior: por exemplo o adulto é anterior ao
rapaz e a planta à semente, na medida que um já realizou a forma que o outro
não tem. A galinha vem antes do ovo, segundo Aristóteles. A causa eficiente do
devir deve preceder o próprio devir e a causa eficiente é acto. Também do
ponto de vista do valor o acto é anterior já que a potência é sempre
possibilidade de dois contrários; por exemplo, a potência de ser saudável é
também potência de ser doente; mas o acto de ser saudável exclui a doença. O
acto é portanto melhor que a potência.

A acção perfeita que em em si o seu fim é designada por Aristóteles como acto
final ou realização final (entelequia). Enquanto o movimento
268

é o processo que leva gradualmente ao acto aquilo que antes estava em


potência, a entelequia é o termo final (telas) do movimento, o seu término
perfeito. Mas como tal, a enteléquia é também a realização completa e portanto
a forma perfeita daquilo que devém; é a espécie e a substância.
O acto identifica-se por consequência em cada caso com a forma ou espécie e,
quando é acto perfeito ou realização final, identifica-se com a substância.
Esta é a própria realidade em acto e o princípio dela. Frente a ela, a matéria
considerada em si, isto é, como pura matéria ou matéria prima, absolutamente
privada de actualidade ou de forma, é indeterminável e incognoscível e não é
substância (Met., VII, 10, 1036 a, 8; IX, 7, 1049 a, 27). A matéria prima é o
limite negativo do ser como substância, o ponto em que cessa conjuntamente a
inteligibilidade e a realidade do ser. Mas aquilo que se chama comummente
matéria, por exemplo o fogo, a água, o bronze não é matéria prima, porque tem
já em si em acto uma determinação e portanto uma forma; é matéria, isto é,
potência, no que diz respeito às formas que pode assumir, enquanto que é já,
como realidade determinada, forma e substância. Se conhecer a realidade e o
porquê de uma coisa significa conhecer a sua substância mediante a espécie ou
forma (que é precisamente a substância das realidades compostas ou "sinoli"),
a matéria representa o resíduo irracional do conhecimento, assim como a
substância representa o princípio ou a causa não só do ser, mas também da
inteligibil idade do ser como tal.

§ 78. A SUBSTÂNCIA IMóVEL

À filosofia como teoria da substância compete evidentemente não só a tarefa de


considerar a natureza da substância, as suas determinações fun.
269

damentais e a sua função no devir, mas também o de classificar as substâncias


determinadas existentes no mundo, que são objecto das ciências particulares e
de tomar como objecto de estudo aquela ou aquelas que escapam ao âmbito das
demais ciências. Ora todas as substâncias se dividem em duas classes: as
substâncias sensíveis e em movimento e as substâncias não sensíveis e imóveis.
As substâncias do primeiro género constituem o mundo físico e por sua vez
subdividem-se em duas classes: a substância sensível que constitui os corpos
celestes e é iningendrável e incorruptível; as substâncias constituídas pelos
quatro elementos do mundo sublunar, que são pelo contrário geráveis e
corruptíveis. Estas substâncias são o objecto da física. O outro grupo de
substâncias, as não sensíveis e imóveis, é objecto de uma ciência diferente, a
teologia, à qual Aristóteles dedicou o livro XII da Metafísica.

A existência de uma substância imóvel é demonstrada por Aristóteles tanto na


Metafísica (XII, 6) como na Física (VIII, 10), mediante a necessidade de
explicar a continuidade e a eternidade do movimento celeste. O movimento
contínuo, uniforme, eterno do primeiro céu, o qual regula os movimentos dos
outros céus, igualmente eternos e contínuos deve ter como sua causa um
primeiro motor. Mas este primeiro motor não pode ser por sua vez movido pois
de outro modo requereria uma causa do seu movimento e esta causa uma outra
ainda e assim até ao infinito; portanto, deve ser imóvel. Ora o primeiro motor
imóvel deve ser acto, não potência. Aquilo que só tem a potência de mover,
pode também não mover; mas se o movimento do céu é contínuo, o motor deste
movimento não só deve ser eternamente activo, mas deve ser pela sua natureza
acto, e absolutamente privado de potência. E pois que a potência é matéria,
esse
270

acto está também privado de matéria: é acto puro (Met., XII, 6, 1071 b, 22).
Este acto puro ou primeiro motor não tem grandeza, portanto não tem partes e é
indivisível. Com efeito, uma grandeza finita não poderia mover por um tempo
infinito, pois que nenhuma coisa finita tem uma potência infinita; e uma
grandeza infinita não pode subsistir. Mas não tendo matéria nem grandeza, a
substância imóvel não pode mover como causa eficiente; resta-lhe portanto que
mova como causa final, enquanto objecto da vontade e da inteligência. De facto
tudo aquilo que é desejável e inteligível move sem ser movido e um e outro se
identificam no seu princípio, pois que aquilo que se deseja é aquilo que a
inteligência julga bom enquanto é realmente tal. Na hierarquia das realidades
inteligíveis, a substância simples e em acto tem o primeiro lugar; na
hierarquia dos bens tem o primeiro lugar aquilo que é excelente e desejável
por si mesmo. Graças à identidade do inteligível e do desejável, o sumo grau
do inteligível, a substância imóvel identifica-se com o sumo grau do
desejável: a substância é pois também o grau supremo da excelência, o sumo
bem, Como tal, é objecto de amor, move enquanto é amada, e as outras coisas
são movidas pelo que ela move dessa maneira, isto é, pelo primeiro céu (Met.,
XII, 7,
1072 b, 2).

À substância imóvel, na medida que é a mais elevada de todas, pertence


propriamente a que até para os homens é a vida mais excelente, mas que só lhes
é dada por breve tempo: a vida da inteligência. Só a inteligência divina é que
não pode ter um objecto diferente de si ou inferior a si própria. Ela pensa-se
a si mesma no lugar do inteligível: a inteligência e o inteligível são em Deus
um só. Enquanto que no conhecimento humano frequentemente o ser do pensar é
distinto do ser
271

do pensado porque este último está ligado à matéria, no conhecimento divino,


como em geral em todo o conhecimento que não se dirige à realidade material, o
pensar e o pensado identificam-se e fazem um só. "Deus, portanto, se é o mais
perfeito que há, pensa-se a si próprio e o seu pensamento é pensamento do
pensamento (Met., X, XII, 9, 1074 b, 34). E pois que a actividade do
pensamento é o que pode existir de mais excelente e mais doce, a vida divina é
a mais perfeita de todas, eterna e feliz (1b., 7, 1072 b, 23).

Se na ordem dos movimentos, Deus é o primeiro motor, na ordem das causas Deus
é a causa primeira, às quais revertem todas as séries causais, compreendidas
as das causas finais (Met., 11, 2). Mesmo no sentido da causa final, Deus é o
criador da ordem do universo que é comparado por Aristóteles a uma família ou
a uni exército. "Todas as coisas são ordenadas uma relativamente a outra. mas
não todas do mesmo modo: os peixes, as aves, as plantas têm ordem diferente.
Todavia nenhuma coisa está relativamente a uma outra como se nada tivesse a
fazer com a outra; mas todas são coordenadas a um único ser. Isto é, por
exemplo, aquilo que acontece numa casa onde os homens livres não podem fazer
aquilo que lhes agrada, mas todas ou pelo menos a maior parte das coisas
acontecem segundo uma ordem; enquanto que os escravos e os animais só em pouco
contribuem para o bem-estar comum e muito fazem casualmente" (lb., XII, 10.
1075 a, 12). Do mesmo modo, o bem de um exército consiste "conjuntamente na
sua ordem e no seu comandante, mas especialmente neste último: pois que ele
não é o resultado da ordem mas antes a ordem depende dele" (1075 a, 13). Assim
Deus é o criador da ordem do mundo mas não do ser do próprio mundo. A
estrutura substancial do universo, para Aristóteles como para Platão, está
para
272

lá dos limites da criação divina: ela é insusceptível de princípio e de fim.


Com efeito só a coisa individual, composta de matéria e forma, tem nascimento
e morte, segundo Aristóteles; enquanto que a substância que é forma ou razão
de ser ou aquela que é matéria não nasce nem perece (VIII, 1,
1042 a, 30). O próprio Deus participa desta eternidade da substância já que
ele é substância (XII,
7, 1073 a, 3) a substância no mesmo sentido em
que são tais as outras substâncias (Et. Nic., 1, 6,
1096 a, 24). A superioridade de Deus consiste só na perfeição da sua vida, não
na sua realidade ou no seu ser, pois que, diz Aristóteles, "nenhuma
substância é mais ou menos substância do que uma outra" (Cat., V. 2b, 25).

Como Platão, Aristóteles é politeísta. De facto, em primeiro lugar, Deus não é


a única substância imóvel. Ele é o princípio que explica o movimento do
primeiro céu; mas como, além deste, existem os movimentos igualmente eternos,
das outras esferas celestes, a própria demonstração que vale para a existência
do primeiro motor imóvel vale também para a existência de tantos motores
quantos são os movimentos das esferas celestes. Aristóteles admite assim
numerosas inteligências motoras, cada uma das quais preside ao movimento de
uma determinada esfera e é princípio de todo o movimento do universo.
Aristóteles obtém o número de tais inteligências motrizes do número das
esferas que os astrónomos do tempo haviam admitido para explicar o movimento
dos planetas. Estas esferas eram em número superior ao dos planetas, pois que
a explicação do movimento aparente dos planetas em volta da terra exigia que
cada planeta fosse movido por várias esferas; e isto com o objectivo de
justificar as anomalias que o movimento dos planetas apresenta relativamente a
um movimento circular perfeito em torno da terra. Aristóteles admitia por
273

consequência 47 ou 55 esferas celestes e portanto


47 ou 55 inteligências motoras; a oscilação do número devia-se aos diferentes
números das esferas celestes admitidos por Eudóxio e por Calipo, os dois
astrónomos a que Aristóteles se referia (Met., XII, 8).

Aliás Aristóteles fala constantemente em "deuses" (Et. Nic., X, 9, 1179 a 24;


Met., 1, 2, 983 a, 11;
111. 2. 907 b, 10, etc.); e aludindo à crença popular segundo a qual o divino
abraça toda a natureza, considera que este ponto essencial, isto é "que as
substâncias primeiras são tradicionalmente consideradas deuses", tem sido
"divinamente designado" e é um dos ensinamentos preciosos que a tradição
salvou (Met., XII, 8, 1074 a, 38), Noutros termos, a substância divina
participou de muitas divindades no que a crença popular e a filosofia
coincidem.

§ 79. A SUBSTÂNCIA FíSICA

A palavra metafísica, inventada provavelmente por um peripatético anterior a


Andrónico, deriva da ordenação dos escritos aristotélicos, na qual os livros
de filosofia se colocaram "depois da física"; mais expressa também o motivo
fundamental da "filosofia primeira" de Aristóteles, a qual se ocupa da
substância imóvel, partindo das aparências sensíveis e está dominada pela
preocupação de "salvar os fenómenos". O estudo do mundo natural que para
Platão pertence â esfera da opinião e não ultrapassa os limites dos
"raciocínios prováveis" (§ 59), para Aristóteles é ao contrário uma ciência no
pleno e rigoroso significado do termo. Para Aristóteles não há na natureza
nada tão insignificante, tão omissivel que não valha a pena ser estudado e não
seja fonte de satisfação e de alegria para o investigador. "As substâncias
interiores-diz ele (Sobre as partes
274

dos animais, 1, 5, 645 a, 1 segs.) -sendo mais e melhor acessíveis ao


conhecimento, adquirem superioridade sobre as outras no campo científico; e
como estão mais próximas de nós e mais conformes à nossa natureza, a sua
ciência acaba por ser equivalente à filosofia que estuda as substâncias
divinas... Com efeito até no caso daquelas menos favorecidas do ponto de vista
da aparência sensível, a natureza que as produziu dá alegrias inefáveis
àqueles que, considerando-as cientificamente, sabem compreender as suas causas
e são por sua natureza filósofos... Deve-se, além disso, ter presente que quem
discute uma parte qualquer ou elemento da realidade, não considera o seu
aspecto material, nem este lhe interessa, antes olha à forma na sua
totalidade. O que importa é a casa, não os tijolos, a cal e as traves: assim,
no estudo da natureza, aquilo que interessa é a substância total de um ser
determinado e não as suas partes que, separadas das substâncias que o
constituem, nem sequer existem". Estas palavras, que pode dizer-se traduzem o
programa científico de Aristóteles, encontram a sua justificação na teoria da
substância que é o centro da sua metafísica. Esta teoria demonstrou com efeito
que cada ser possui, na substância que o constitui, o princípio ou a causa da
sua necessidade. Cada ser tem, portanto, enquanto tal, o seu próprio valor e
se se considera nele aquilo que precisamente o faz ser, isto é, a forma total
ou substância, é digno de consideração e de estudo e pode ser objecto de
ciência. Por isso Aristóteles adverte na passagem referida que se deve olhar à
forma e não à matéria, à totalidade em que se actualiza a substância e não às
partes.

COnformemente ao programa que as suas últimas e mais maduras investigações


metafísicas tinham especulativamente justificado, a actividade científica de
Aristóteles dirige-se cada vez mais para as investigações particulares. Fixou
a sua atenção principalmente no mundo animal, como se deduz dos
números, os escritos de história natural que nos restam; mas pode afirmar-se
que nenhum campo da investigação empírica lhe era estranho, pois que preparava
ao mesmo tempo a reunião das 158 constituições políticas e se entregava a
outras investigações eruditas, como a compilação do catálogo dos vencedores
dos jogos píticos.

Mas não é possível ocuparmo-nos de todas as vastas investigações


naturalísticas de Aristóteles, que como tais saem do campo da filosofia.
Sabemos já que a física é para ele urna ciência teorética, ao lado da
matemática e da filosofia primeira. O seu objecto é o ser em movimento,
constituído pelas duas substâncias que são dotadas de movimento, a engendrável
e corruptível que forma os corpos sublunares e a iningendrável e incorruptível
que forma os corpos celestes.

Segundo Aristóteles, o movimento é a passagem da potência ao acto e portanto


possui sempre um fim (telos). que é a forma ou espécie que ele tende a
realizar. Dado que o acto como substância precede sempre a potência, cada
movimento pressupõe já em acto a forma que é o seu término final. Aristóteles
admite quatro tipos fundamentais de movimento: 1) o movimento substancial,
isto é, a geração e a corrupção; 2) o movimento qualitativo, isto é, a mudança
ou a alteração-, 3) o movimento quantitativo, isto é, o aumento e a
diminuição; 4) o movimento local, isto é, o movimento propriamente dito.
Todavia este último é, segundo Aristóteles, o movimento fundamental a que
todos os outros se reduzem: com efeito o aumento e a diminuição são devidos ao
afluxo ou ao afastamento duma certa matéria; a mudança, a geração e a
corrupção supõe o reunirem-se num dado lugar ou o separar-se de determinados
elementos. Por isso só o movimento
276

local, isto é, a mudança de lugar, constitui o movimento fundamental que


permite distinguir e classificar as várias substâncias físicas.

Ora o movimento local é, segundo Aristóteles, de três espécies: 1) movimento


circular em torno do centro do inundo; 2) movimento do centro do mundo para o
alto, 3) movimento do alto para o centro do mundo. Estes dois últimos
movimentos são reciprocamente opostos e podem pertencer às mesmas substâncias,
as quais serão sujeitas à mudança, à geração e à corrupção. Efectivamente, os
elementos constitutivos destas substâncias, podendo moverem-se quer do alto
para o baixo quer do baixo para o alto, provocarão com estes movimentos o
nascimento, a mudança e a morte das substâncias compostas.

O movimento circular, ao invés, não tem contrários; por isso as substâncias


que se movem com esta espécie de movimento são imutáveis necessariamente e
iningendráveis e incorruptíveis. Aristóteles sustenta que o éter, o elemento
que compõe os corpos celestes, é o único que se move com movimento circular.
Esta opinião de que os corpos celestes são formados por um elemento diferente
daqueles que compõem o universo e que por isso não estão sujeitos às
vicissitudes do nascimento, morte e mudanças das outras coisas, durou longo
tempo na cultura ocidental e só foi abandonada no século XV por obra de
Nicolau de Cusa.

Os movimentos do alto para baixo e do baixo para alto são ao contrário


próprios dos quatro elementos que compõem as coisas terrestres ou sublunares:
água, ar, terra e fogo. Para explicar
O mOviMento destes elementos, Aristóteles estabelece a teoria dos lugares
naturais. A cada um destes elementos cabe-lhe no universo um lugar natural. Se
a parte de um elemento está afastada do seu lugar natural (o que não pode
acontecer senão dum Modo violento, isto é, contrário à situação natural
277

do elemento) ela tende a retornar com um movimento natural.

Ora os lugares naturais dos quatro elementos são determinados pelo seu
respectivo peso. Ao centro do mundo está o elemento mais pesado, a terra; à
volta da terra, estão as esferas dos outros elementos na ordem do seu peso
decrescente: água, ar e fogo. O fogo constitui a esfera extrema do universo
sublunar; acima dela está a primeira esfera etérea ou celeste, a da lua.
Aristóteles era levado a esta teoria por experiências bastante simples: a
pedra imersa na água afunda-se, isto é, tende a situar-se sob a água; uma
bolha de ar aberta na água vem à superfície, por isso o ar tende a dispor-se
ao cimo da água; o fogo arde sempre para o alto, isto é, tende a juntar-se à
sua esfera que está acima do ar.

O universo físico, que compreende os céus formados pelo éter e o mundo


sublunar formado pelos quatro elementos, é, segundo Aristóteles, perfeito,
finito, único e eterno. A perfeição do mundo é demonstrada por Aristóteles com
argumentos apriorísticos, que não têm qualquer referência à experiência,
Invoca a teoria pitagórica sobre a perfeição do número 3 e afirma que o mundo,
possuindo todas e as três dimensões possíveis (altura, largura e
profundidade), é perfeito porque não tem falta de nada. Mas se o mundo é
perfeito, é também finito. Efectivamente, "infinito" significa, segundo
Aristóteles, incompleto: é infinito aquilo que tem falta de qualquer coisa,
portanto aquilo a que pode juntar-se sempre alguma coisa nova. O mundo, ao
contrário, não tem falta de nada: é portanto finito.

Por outro lado, nenhuma coisa real pode ser infinita, segundo Aristóteles. Com
efeito, cada coisa existe num espaço e cada espaço tem um centro, um baixo, um
alto e um limite extremo. Mas no infinito não pode existir nem um centro nem
um
278

alto nem um baixo nem um limite. Portanto nenhuma realidade física é realmente
infinita. A ordem das estrelas fixas assinala os limites do universo, limites
para lá dos quais não há espaço. Nenhum volume determinado pode ser maior do
que o volume desta esfera nenhuma linha pode alongar-se para lá do seu
diâmetro.

Daqui deriva que não podem existir outros mundos para lá do nosso e não pode
existir o vazio. Não podem existir outros mundos, pois que toda a matéria
disponível deve já estar disposta ab aeterno neste nosso universo que tem por
centro a terra e por limite extremo a esfera das estrelas. Dado que cada
elemento tende naturalmente para o seu lugar natural, cada parte de terra
tende a juntar-se à terra que está no centro e cada elemento tende a reunir-se
à própria esfera. Deste modo o nosso universo tem de recolher toda a matéria
possível e fora dele não há matéria: ele é único. Mas fora dele não existe
tão-pouco o vazio. Os atomistas haviam sustentado que, sem o vazio, não é
possível o movimento, pois que pensavam que, se os átomos (que são semelhantes
a pedrinhas pequeníssimas) fossem impelidos ao mesmo tempo sem intervalos
vazios entre um e outro, nenhum átomo se poderia mover. Aristóteles, ao
contrário, sustenta que o movimento no vazio não seria possível. Efectivamente
no vazio não haveria nem um centro, nem um alto, nem um baixo-, por
consequência não haveria motivo para um corpo se mover numa direcção em lugar
de outra e todos os corpos permaneceriam parados.

Nesta argumentação, como se vê, Aristóteles socorre-se continuamente da teoria


dos lugares naturais, fundada na classificação dos movimentos. E vai ao ponto
de produzir como argumento contra o vazio aquilo que nós hoje chamaríamos o
principio da inércia. No vazio, diz, um corpo ou permanece-
279

ria em repouso ou continuaria em movimento, enquanto se lhe não opusesse uma


força maior. Este, segundo Aristóteles, é um argumento contra o vazio; mas na
realidade este argumento demonstra apenas que Aristóteles considera absurdo o
que constitui o primeiro princípio da mecânica moderna, o princípio de
inércia. Veremos que este princípio encontrará reconhecimento na escolástica
do século XIV e será formulado depois exactamente por Leonardo.

Finalmente, como totalidade perfeita e finita, o mundo é eterno. Aristóteles


define o tempo como "o número do movimento, segundo o antes e o depois" (Fis.,
IV 11, 219 b, 1): entendendo com isto que ele é a ordem mensurável do
movimento. Distingue além disso a duração infinita do tempo, no qual vive tudo
o que muda, da eternidade, que é a existência intemporal do imutável. Mas ao
mundo na sua totalidade é que atribui verdadeiramente a eternidade neste
sentido. Sustenta que o mundo não se gerou nem pode destruir-se e abarca e
compreende na sua imobilidade total a infinitude do tempo e também todas as
mudanças que acontecem no tempo. Consequentemente, Aristóteles não nos deixou
uma cosmogonia, como fizera Platão no Timeu; e não podia deixá-la, dado que,
segundo ele, o mundo não nasce.

A esta eternidade do mundo é conjunta a eternidade de todos os aspectos


fundamentais e de todas as formas substanciais do mundo. São por isso eternas
as espécies animais e também a espécie humana, a qual, segundo Aristóteles,
pode sofrer vicissitudes várias na sua história sobre a terra, mas é
imperecível na medida que é ingerada.

A perfeição do mundo que é o pressuposto de toda a física aristotélica,


implica a estrutura finalística do próprio mundo: isto é, implica, que no
mundo todas as coisas tenham um fim. A consi-
280

deração do fim é essencial a toda a física aristotélica.

Viu-se que para Aristóteles o movimento de um corpo não se explica se não


admitindo que tende naturalmente a alcançar o seu lugar natural: a terra tende
para o centro e os outros elementos tendem cada um para a sua própria esfera.
O lugar natural de um elemento é determinado pela ordem perfeita das partes do
universo. Atingir esse lugar e ainda manter e garantir a perfeição de tudo, é
o fim de todo o movimento físico. Já na lei fundamental que explica os
movimentos da natureza está presente a consideração do fim. Mas o fim é ainda
mais evidente no mundo biológico, isto é, nos organismos animais: daqui se
explica a preferência de Aristóteles pelas investigações biológicas, às quais
dedicou grande parte da sua actividade. "A divindade e a natureza-diz
Aristóteles (De coelo, i, 4,
271 a)-não fazem nada que seja inútil". O acaso (autómaton), propriamente
falando, não existe. Dizemos que se verificam por acaso os efeitos acidentais
de certos acontecimentos que reentram na ordem das coisas. Uma pedra que cai e
fere alguém, fere-o por acaso porque não caiu com o objectivo de feri-lo, a
sua queda cabe no entanto na ordem das coisas. A fortuna (tyche) é um espécie
de acaso que se verifica na ordem das acções humanas, como, por exemplo, vir
ao mercado por um motivo completamente diverso e encontrar lá um devedor que
restitui a soma devida. A acção deste homem afortunado era feita para um fim
mas não para aquele fim: por isso se fala de fortuna (Fis., 11, 5).

§ 80. A ALMA

Uma parte da física é aquela que estuda a alma. A alma é objecto da física
enquanto é forma
281

incorporada na matéria; as formas deste género são precisamente estudadas pela


física, enquanto a matemática estuda as formas abstractas ou separadas da
matéria. A alma é uma substância que informa e vivifica um determinado corpo.
Ela é definida como "O acto (enteléquia) primeiro de um corpo que tem a vida
em potência" . A alma está para o corpo como o acto da visão está para o órgão
da vista: é a realização final da capacidade que é própria de um corpo
orgânico. Como todo o instrumento tem uma função, que é o acto ou actividade
do instrumento (como, por exemplo, a função do machado é cortar), assim o
corpo enquanto instrumento tem como sua função a de viver e de pensar; e o
acto desta função é a alma.

Aristóteles distingue três funções fundamentais da alma: a) a função


vegetativa, que é a potência nutritiva e reprodutiva e é própria de todos os
seres viventes a começar pelas plantas; b) a função sensitiva, que compreende
a sensibilidade e o movimento e é própria dos animais e do homem; c) a função
intelectiva, que é própria do homem. As funções mais elevadas podem fazer as
vezes das funções inferiores, mas não vice-versa; assim no homem a alma
intelectiva compreende também as funções que nos animais são desempenhadas
pela alma sensitiva e nas plantas pela vegetativa.

Além dos cinco sentidos específicos, cada um dos quais fornece sensações
particulares (cores, sons, sabores, etc.). há um sentido comum a que
Aristóteles atribui uma dupla função: 1) a de constituir a consciência da
sensação, isto é, "o sentir do sentir" que não pode pertencer a nenhum sentido
particular; 2) a de perceber as determinações sensíveis comuns a vários
sentidos como o movimento, o repouso, a figura, a grandeza, o número e a
unidade. A sensação em acto coincide com o objecto sensível: por exemplo, o
ouvir o som e o próprio
282

som coincidem. Em tal sentido pode dizer-se que se não existissem os sentidos,
não conheceriam os objectos sensíveis (se não tivéssemos vista, não
conheceríamos as cores). Não conheceríamos em acto: existiriam porém em
potência, porque eles só coincidem com a sensibilidade no acto desta.

A imaginação distingue-se dos sentidos. Distingue-se também da ciência, que é


sempre verdadeira, e da opinião que é acompanhada pela crença na realidade do
objecto, porque tal crença falta na imaginação. A imaginação é produzida pela
sensação, em acto e as imagens que ela fornece são semelhantes às sensações;
podem pois determinar a acção nos homens ou também nos animais quando têm a
mente ofuscada pelo sentimento, pelas doenças ou pelo sono.

Análoga à da sensibilidade é a função do intelecto. A alma intelectiva recebe


as imagens como os sentidos recebem as sensações; o seu objectivo é julgá-las
verdadeiras ou falsas, boas ou más; e conforme as julga, aprova-as ou
desaprova-as, deseja-as ou afasta-as. O intelecto é pois a capacidade de
julgar as imagens fornecidas pelos sentidos. "Ninguém poderia aprender ou
compreender nada, se os sentidos nada lhe ensinassem; e tudo quanto se pensa,
pensa-se necessariamente com imagens" (De an., 111, 7, 432 a). Todavia, o
pensamento não tem nada que ver com a imaginação: é o juízo emitido sobre os
objectos da imaginação que os declara verdadeiros ou falsos, bons ou maus.

Como o acto de sentir é idêntico ao objecto inteligível, isto significa que


quando o intelecto compreende, o seu acto se identifica com a própria verdade,
com o objecto percebido, mais precisamente identifica-se com a essência
substancial do próprio objecto (De an., 111, 6, 430 b, 27). Por isso
Aristóteles afirma: "a ciência em acto é idêntica ao seu objecto" (lb., 431 a,
1), ou, num sentido
283

mais geral, "a alma é, num certo modo, todos os entes"; com efeito os entes
são os sensíveis ou inteligíveis e enquanto a ciência se identifica com os
entes inteligíveis, a sensação identifica-se com os sensíveis (1b., 431 b,
20).

Todavia esta identidade já não existe quando se considera, não já o


conhecimento em acto, mas em potência. Aristóteles insiste na distinção entre
intelecto potencial e actual. Este último contém em acto todas as verdades,
todos os objectos possíveis da intelecção. Ele age sobre o intelecto potencial
como a luz que faz passar a acto as cores que na obscuridade estão em
potência: isto é, faz passar a acto as verdades que no intelecto potencial
estão apenas em potência. Por isso Aristóteles lhe chama intelecto activo e
o considera "separado, impassível, não misturado" (De an., 111, 5). Só ele
não morre e dura eternamente, enquanto o intelecto passivo ou potencial se
corrompe e sem o primeiro não pode pensar em nada.

Se o intelecto activo será do homem, de Deus ou de ambos, em que relações


estará com a sensibilidade, qual seja o significado da separação que
Aristóteles lhe atribui, são problemas que Aristóteles não estuda e que
deverão ser largamente discutidos na escolástica árabe e cristã e no
Renascimento.

§ 81. A ÉTICA

Cada arte, cada pesquisa ou como cada acção e cada escolha, são feitas com
vista a um fim que nos parece bom e desejável: o fim e o bom coincidem. Os
fins das actividades humanas são múltiplos e alguns deles são desejados com
vista apenas a fins superiores; por exemplo, desejamos a riqueza, a boa saúde,
pela satisfação e os prazeres que podem
284

dar. Mas deve haver um fim supremo, um fim que é desejado por si próprio, e
não já enquanto condição ou meio de um fim ulterior. Se os outros fins são
bens, este fim será o bem supremo, aquele de que dependem todos os outros. Não
há dúvida, segundo Aristóteles, que este fim seja a felicidade. A procura e a
determinação desse fim é o objecto primeiro e fundamental da ciência política,
porque só no que respeita a ela se pode prescrever aquilo que os homens na sua
vida social e como seres individuais, devem fazer ou aprender. Mas em que
consiste a felicidade para o homem?

Evidentemente só se pode responder a esta pergunta se se determina qual é a


missão própria do homem. Cada qual é feliz enquanto faz bem a sua missão: o
músico quando toca bem, o construtor quando constrói objectos perfeitos. Mas a
missão própria do homem enquanto tal não é a vida vegetativa que ele tem em
comum com as plantas, nem a vida dos sentidos que tem em comum com os animais,
mas só a vida da razão. Assim o homem só será feliz se viver de acordo com a
razão; e esta vida é a virtude. O estudo sobre a felicidade transforma-se
também numa indagação sobre a virtude.

O prazer está ligado à vida que segue a virtude. Com efeito, ela é a
verdadeira actividade do homem; e toda a actividade é acompanhada e coroada
pelo prazer (Et. Nic., X 4, 1174 b). Os bens exteriores como a riqueza, o
poder ou a beleza, podem, com a sua presença, facilitar a vida virtuosa ou
torná-la mais difícil com a sua ausência: mas não podem determiná-la. A
virtude e a maldade só dependem dos homens. Certamente o homem não escolhe o
fim, que está nele por natureza, como uma luz que o guia, a julgar rectamente
e a escolher o verdadeiro bem (111, 5, 1113 b). Mas a virtude depende
precisamente da escolha que se faz dos meios, com vista ao fim supremo. E esta
escolha é livre porque
285

depende exclusivamente do homem. Com efeito, Aristóteles chama livre àquele


que tem em si o princípio dos seus actos ou é "princípio de si próprio" (111,
3, 1112 b, 15-16). O homem é verdadeiramente livre neste sentido: enquanto é
"o princípio e o pai dos seus actos como é dos seus filhos"; e quer a virtude
quer o vício são manifestações desta liberdade (111, 5, 1113 b, 10 segs.).
Dado que no homem, além da parte racional da alma, há a parte apetitiva que,
ainda que carecendo de razão, pode ser dominada e dirigida pela razão, assim
há duas virtudes fundamentais: a primeira consiste no próprio exercício da
razão e por isso é chamada intelectiva ou racional (dianoetica); a outra
consiste no domínio da razão sobre os impulsos sensíveis, determina os bons
costumes (ethos-mos), e por isso se chama virtude moral (Ética).

A virtude moral consiste na "disposição (hexis, habitatus) de escolher o justo


meio (mesótes, mediocritas), adequado à nossa natureza, tal como é determinado
pela razão e como poderia determiná-lo o sábio". O justo meio exclui os dois
extremos viciosos que pecam um por excesso, o outro por defeito. Esta
capacidade de escolha é uma potência (dynamis) que se aperfeiçoa e revigora
com o exercício. Os seus diferentes aspectos constituem as várias virtudes
éticas. A coragem, que é o justo meio entre a cobardia e a temeridade, gira em
torno do que se deve e do que se não deve temer. A temperança, que é o justo
meio entre a intemperança e a insensibilidade, diz respeito ao uso moderado
dos prazeres. A liberalidade, que é o justo meio entre a avareza e a
prodigalidade, diz respeito ao uso prudente das riquezas. A magnanimidade, que
é o justo meio entre a vaidade e a humildade, concerne a recta opinião de si
próprio. A benignidade, que é o justo meio entre a irascibilidade e a
indolência, concerne à ira.
286

A principal entre as virtudes éticas é a justiça, à qual Aristóteles dedica um


livro inteiro da Etica (Nicom., V = Eudem., IV). No significado mais gemi,
isto é, como conformidade com as leis, a justiça não é uma virtude particular,
mas a virtude total e perfeita. Efectivamente, o homem que respeita todas as
leis é o homem completamente virtuoso. Mas, além deste significado geral, a
justiça tem um significado específico e é então ou distributiva ou comutativa.
A justiça distributiva é aquela que preside à distribuição das honras ou do
dinheiro ou dos outros bens que Msam dividir-se entre aqueles que pertencem à
mesma comunidade. Tais bens devem ser distribuídos segundo os méritos de cada
um. Porque a justiça distributiva é semelhante a uma proporção geométrica, na
qual as recompensas distribuídas a duas pessoas se relacionam entre si com os
seus méritos respectivos. A justiça comutativa, ao contrário, ocupa-se dos
contratos, que podem ser voluntários ou involuntários. São contratos
voluntários a compra, a venda, o empréstimo, o depósito, o aluguer, etc. Dos
contratos involuntários alguns são fraudulentos como o furto, o malefício, a
traição, os falsos testemunhos; outros são violentos, como as pancadas, o
assassínio, a rapina, a injúria etc. A justiça comutativa é correctiva:
procura equilibrar as vantagens e as desvantagens entre os dois contratantes.
Nos contratos involuntários, a pena infligida ao réu deve ser proporcionada
com o dano por ele provocado. Esta justiça é pois semelhante a uma proporção
aritmética (igualdade pura e simples).

O direito funda-se sobre a justiça. Aristóteles distingue o direito privado do


direito público, que concerne à vida social dos homens no estado, e divide o
direito público em direito legítimo (ou positivo), que é aquele estabelecido
nos vários estados, e o direito natural que conserva o seu valor
287

em qualquer lugar, mesmo que não esteja sancionado pelas leis. Distingue do
direito a equidade, que é uma correcção da lei mediante o direito natural,
necessária pelo facto de que nem sempre, na formulação das leis, é possível
determinar todos os casos, pelo que a sua aplicação resultaria às vezes
injusta.
A virtude intelectiva ou dianoética é a que é própria da alma racional. Ela
compreende a ciência, a arte, a prudência, a sabedoria, a inteligência. A
ciência é a capacidade demonstrativa (apoditica) que tem por objecto aquilo
que não pode acontecer diferentemente do modo que sucede, isto é, o necessário
e o eterno. A arte (techne) é a capacidade, acompanhada de razão, de produzir
um objecto qualquer; ela concerne portanto à produção (poiesis) que tem sempre
um fim fora de si, não à acção (praxis). A prudência (frónesis) é a capacidade
unida à razão de agir convenientemente frente aos bens humanos; cabe-lhe
determinar o justo meio em que consistem as virtudes morais. A inteligência
(nous) é a capacidade de compreender os primeiros princípios de todas as
ciências, primeiros princípios que, precisamente como tais, não caem no âmbito
das próprias ciências. A sabedoria (sofia) é o grau mais alto da ciência: o
sage é aquele que possui ao mesmo tempo ciência e inteligência, que sabe não
só deduzir aos princípios, mas julgar da verdade dos mesmos princípios.
Enquanto a prudência concerne às coisas humanas e consiste no juízo sobre a
sua conveniência, oportunidade e utilidade, a sabedoria refere-se às coisas
mais altas e universais. A prudência é sempre prudência humana e não tem valor
para seres diferentes ou superiores ao homem; a sabedoria é universal. Por
isso é absurdo sustentar que a prudência e a ciência política coincidem com a
ciência suprema, pelo menos enquanto não se demonstre que o homem é
288

o ser supremo do universo. Anaxágoras, Tales e outros homens do mesmo tipo


eram chamados sages; não prudentes; porque conheciam muitas coisas
maravilhosas, difíceis e divinas, mas inúteis aos homens, e se desinteressavam
dos bens humanos (Et. Nic., VI, 7, 1141 a).

Este contraste entre sabedoria (sofia) e prudência (frónesis) é o reflexo no


campo da ética da atitude filosófica fundamental de Aristóteles. Como teoria
da substância, a filosofia é uma ciência que não tem nada a ver com a dos
valores propriamente humanos; por isso a sabedoria, que consiste na plena
posse desta ciência nos seus princípios e nas conclusões, não tem nada que ver
com a prudência que é o guia da conduta humana. A sabedoria te... por objecto
o necessário que, como tal, nada tem a ver com o homem na medida em que não
pode ser modificado por ele: frente ao necessário, é possível uma única
atitude, a da pura contemplação (teoria).

À amizade dedica Aristóteles os livros VIII e IX da Ética Nicomaqueia. Ela é


uma virtude ou pelo menos está estreitamente unida à virtude: em todo o caso é
a coisa mais necessária à vida. "Ninguém - diz ele - escolheria viver sem
amigos, ainda que estivesse provido em abundância de todos os outros bens". A
amizade pode fundar-se sobre o prazer recíproco ou sobre o útil ou sobre o
bem. Mas a fundada sobre o útil ou sobre o prazer recíproco é acidental e cai
subitamente quando cessa o prazer ou o útil. Ao contrário a amizade que se
funda sobre o bem e sobre a virtude é verdadeiramente perfeita porque a sua
raiz está na própria natureza das pessoas que a contraem e é portanto estável
e firme. "O homem virtuoso - diz Aristóteles - comporta-se para com o amigo
como se comporta consigo mesmo, porque o amigo é um outro ele: decorre daí
que, como a cada um a exis-
289

tência própria é desejável, assim é desejável a do amigo" (Et. Nic. IX, 9,


1170 b, 5).

Dado que a virtude como actividade própria do homem é a própria felicidade, a


felicidade mais alta consistirá na virtude mais alta e a virtude mais alta é a
teorética, que culmina na sabedoria. Com efeito a inteligência é a actividade
mais elevada que existe em nós; e o objecto da inteligência é aquele que
existe mais alto em nós e fora de nós.
O sage basta-se a si mesmo e não tem necessidade, para cultivar e alargar a
sua sabedoria, de nada que não tenha em si mesmo. A vida do sábio é feita de
serenidade e de paz, pois que não se afadiga por um fim exterior cujo alcance
é problemático, mas o fim está na própria actividade da sua inteligência. A
vida teorética é portanto uma vida superior à humana: o homem não a vive
enquanto é homem, mas enquanto tem em si qualquer coisa de divino. "O homem
não deve, como dizem alguns, conhecer enquanto homem as coisas humanas,
enquanto mortal as coisas mortais, mas deve tornar-se, na medida do possível,
imortal e fazer tudo para viver segundo tudo quanto existe nele de mais
elevado: e ainda que isto seja pouco em quantidade, em potência e valor supera
todas as outras coisas" (Et. Nic., X,
7, 1177 b).

Assim a ética de Aristóteles encerra-se com a afirmação incisiva da


superioridade da vida teorética. Este é um ponto em que o afastamento polémico
entre Aristóteles e Platão é mais acentuado. Platão não distinguia a sabedoria
da prudência: com as duas palavras entendia a mesma coisa, isto é, a conduta
racional da vida humana, especialmente da vida social (Rep. 428 b; 433 e).
Aristóteles distingue e contrapõe as duas coisas. A prudência tem por objecto
os assuntos humanos que são mutáveis e não podem ser incluídos entre as coisas
muito elevadas; a sabedoria tem por objecto o ser necessá-
290

rio. que se liberta de todos os acontecimentos (Et. Nic., VI, 7, 1041 b. 11).
Amim a distância que existe entre prudência e sabedoria é a mesma que ocorre
entre o homem e o Deus. O que quer dizer que, para Aristóteles, a filosofia
tem como objecto fundamental o de levar o homem individual à vida teorética, à
pura contemplação do que é necessário; enquanto para Platão tem o objectivo de
levar os homens a uma vida em comum, fundada na justiça.

§ 82. A POLÍTICA

Todavia, também segundo Aristóteles, a virtude não é realizável fora da vida


social. A origem da vida social está em que o indivíduo não se basta a si
próprio: não só no sentido de que não pode por si só prover às suas
necessidades, mas também no sentido de que não pode por si, isto é, fora da
disciplina imposta pelas leis e pela educação, alcançar a virtude. Por
consequência, o estado é uma comunidade que não tem em vista apenas a
existência humana, mas a existência materialmente e espiritualmente feliz; e é
este motivo pelo qual nenhuma comunidade política não pode ser constituída por
escravos ou por animais, os quais não podem participar da felicidade ou de uma
vida livremente escolhida (Pol., 111, 9, 1280 a). E a este propósito
Aristóteles sustenta que há indivíduos escravos por natureza enquanto
incapazes das virtudes mais elevadas e que a distinção entre escravo e livre é
tão natural como a que existe entre macho e fêmea e jovem e velho (lb., L, 13,
1p60 a).

Entre os que, como Platão, se limitam a delinear um tipo de estado ideal


dificilmente realizável e aqueles que, por outro lado, vão em busca de um
esquema prático de constituição e o descobrem em qualquer das constituições já
existentes,
291

o problema fundamental é o de encontrar a constituição mais adaptada a todas


as cidades: "É necessário ter em mente um governo não só perfeito, mas também
realizável e que possa adaptar-se facilmente a todos os povos" (Pal., IV, 1,
1288 b). É necessário portanto propor uma constituição que tenha a sua base
nas existentes e vise realizar nela correcções e mudanças que a aproximem da
perfeita. Por isso a Política de Aristóteles culmina na teoria da melhor
constituição exposta nos dois últimos livros; mas a esta teoria chega ele
mediante a consideração crítica das várias constituições existentes e dos
problemas a que dão origem. Viu-se que Aristóteles recolheu umas 158
constituições estatais, das quais, no entanto, só uma, a de Atenas, foi
encontrada. Evidentemente, deve -ter-se servido deste material para as
observações que veio fazendo sobretudo nos livros IV, V, VI, da sua obra, que
aparecem compostos mais tarde.

Como Platão, Aristóteles distingue três tipos fundamentais de constituições: a


monarquia ou governo de um só ; a aristocracia ou governo dos melhores; a
democracia ou governo da multidão. Esta última chama-se política, isto é,
constituição por antonomásia, quando a multidão governa para o bem de todos. A
estes três tipos correspondem outras tantas degenerações quando o governo
descuida o bom comum em favor do bem próprio. Com efeito a tirania é uma
monarquia que tem por fim o bem do monarca, a oligarquia tem por fim o bem dos
possidentes, a democracia o bem dos pobres: nenhuma visa a utilidade comum. Na
realidade, pois, cada tipo de constituição pode tomar caracteres distintos.
Não existe uma só monarquia e uma só oligarquia, mas estes tipos diversificam-
se segundo as instituições nas quais se realizam. Existem também distintas
espécies de democracia segundo o governo se funda na igual-
292

dade absoluta dos cidadãos ou se reserve a cidadão dotados de requisitos


especiais. A própria democracia transforma-se numa espécie de tirania quando
em detrimento das leis prevalece o arbítrio da multidão. O melhor governo é
aquele em que prevalece a classe média, isto é, o dos cidadãos possuidores de
uma fortuna modesta. Este tipo de governo é o mais afastado dos excessos que
se verificam quando o poder cai nas mãos dos que nada possuem ou daqueles que
possuem demasiado.

Ao delinear a constituição melhor, em conformidade como o princípio de que


todo o tipo de governo é bom, enquanto se adapte à natureza do homem e às
condições históricas, Aristóteles não se limita a descrever um governo ideal,
mas determina as condições pelas quais um tipo qualquer de governo pode
alcançar a sua forma melhor. A primeira e fundamental condição é que a
constituição do estado seja tal que proveja à prosperidade material e à vida
virtuosa e feliz dos cidadãos. A este propósito têm-se presentes as conclusões
da Ética, isto é, que a vida activa não é a única vida Possível para o homem e
nem tão-pouco a mais alta e que ao lado dela e acima dela está a vida
teorética. Outras condições referem-se ao número dos cidadãos que não deve ser
nem demasiado elevado nem demasiado baixo, e às condições geográficas. isto é,
ao território do estado. Depois é importante a consideração da índole dos
cidadãos que deve ser corajosa e inteligente como a dos Gregos. que são os
mais aptos a viver em liberdade e a dominar os outros povos. Também é
necessário que na cidade todas as funções estejam bem distribuídas e que se
formem as três classes fundamentais, segundo o projecto de Platão, do qual
Aristóteles exclui, no entanto, a comunidade da propriedade e das mulheres. É
necessário além disso
293

os anciãos, que no estado mandem, pois que ninguém se resigna sem amargura às
condições da obediência se esta não é devida à idade e se não sabe que
alcançará, com a idade, a condição superior. Finalmente, o estado deve
preocupar-se com a educação dos cidadãos que deve ser uniforme para todos e
dirigida não só a adestrar para a guerra mas a preparar para a vida pacífica,
para as funções necessárias e úteis e acima de tudo para as acções virtuosas.

§ 83. A RETóRICA

Entre as artes que são necessárias à vida social está a retórica. A retórica é
afim da dialéctica: como a dialéctica, não tem um objecto específico porque
concerne a todo o tipo e espécie de objecto e todavia é própria de todos os
homens porque todos "se ocupam a indagar sobre qualquer tese e a sustê-la, a
defender-se e a acusar" (Ret., 1, 1, 1354 a). A função da retórica não é a de
persuadir mas de mostrar os meios que são aptos a introduzir à persuasão.

A retórica procura descobrir quais são estes meios relativamente a qualquer


argumento dado: neste sentido não constitui a técnica própria de um campo
especifico. O objecto da retórica é o "verosímil", isto é, o que acontece o
mais das vezes (enquanto o objecto da ciência é o necessário, que acontece
sempre): o mais, das vezes é o análogo do necessário nas disciplinas cujo
objecto é privado de necessidade (lb., 1, 2, 1357 a).

Dado que todo o discurso é dirigido a um auditório que é o fim do próprio


discurso e o auditório pode ser ou um simples auditor ou um juiz que deve
pronunciar-se sobre coisas passadas ou futuras, há três géneros de retórica: a
delibe-
294

rativa, a judicial e a demonstrativa. A retórica deliberativa é a que se volta


para coisas futuras e deve persuadir ou dissuadir, demonstrando que qualquer
coisa é útil Ou Perniciosa. A retórica judicativa refere-se a factos ocorridos
no passado e o seu
objectivo é acusar ou defender, persuadindo que tais factos são justos ou
injustos. Finalmente, a
retórica demonstrativa refere-se a coisas presentes e o seu objectivo é louvá-
las ou condená-las como verdadeiras ou falsas, boas ou más.

§ 84. A POÉTICA

A poesia, e em geral a arte, é definida por Aristóteles como imitação. Mas a


imitação pode ser feita com meios diferentes e por modos diferentes e dirigir-
se a objectos diferentes. Com efeito, pode-se imitar por meio de cores ou de
formas como acontece na pintura, ou por meio da voz como ocorre na poesia, ou
por meio do som na música. Relativamente ao objecto podem imitar-se ou pessoas
superiores ao comum dos homens, como acontece na epopeia e na tragédia, ou
pessoas comuns ou inferiores ao comum, como acontece na comédia.
Relativamente aos modos da imitação, pode-se imitar narrativamente ou
dramaticamente: neste último caso, introduzem-se as diferentes pessoas a agir
e a falar directamente, como acontece na tragédia e na comédia.

Além destas determinações gerais do conceito da imitação, a Poética de


Aristóteles na parte que chegou até nós não contém mais que a teoria da
tragédia. Esta define-se como "imitação de uma acção grave e completa em si
mesma, que tenha uma certa amplitude, uma linguagem adornada em
proporção diferente conforme as diferentes partes; e desenrola-se através de
personagens que actuam
295
em cena, não que narrem; e produza finalmente' mediante casos de piedade e de
terror, a purificação de tais paixões" (Poet., 6, 1449 b). Aristóteles detém-
se especialmente a ilustrar a unidade da acção trágica. Esta deve desenrolar-
se com continuidade do princípio ao fim de modo tal que todos os
acontecimentos se encadeiem e não seja possível suprimi-los ou mudá-los de
lugar, sem mudar e desorganizar a ordem do conjunto. Por isso o objecto da
tragédia mais que o verdadeiro é o verosímil, aquilo que pode verificar-se
"segundo verosimilhança e necessidade". Por isso, também, ca poesia é mais
filosófica e mais elevada que a história: a poesia exprime principalmente o
universal, a história o particular (1b., 9, 1451 b). Efectivamente a história
narra tudo aquilo que aconteceu a uma dada personagem ou num dado período,
segundo a pura e simples sucessão dos acontecimentos; a poesia imita somente o
verosímil, o qual como se disse (§ 83) é aquilo que acontece mais geralmente e
é portanto o análogo da universalidade (ou da necessidade) própria dos
objectos da ciência.

Se Platão sustenta que a acção dramática, interessando os espectadores nas


paixões violentas agitadas em cena, encoraja neles tais paixões, Aristóteles
crê pelo contrário que a tragédia exerce uma função purificadora e liberta
a alma do espectador das paixões que a tragédia representa. Aristóteles
reconhece o mesmo efeito na música. "Alguns daqueles que são dominados pela
piedade, pelo temor ou pelo entusiasmo, quando ouvem cantos orgiáticos como os
religiosos, acalmam-se como por efeito duma medicina e de uma catarsis. Por
isso é necessário que se submetam a tal acção aqueles que se vêem sujeitos à
piedade, ao temor e em geral às paixões, de modo conveniente a cada um, a fim
de que se gere em todos uma
296

um alivio aprazível" (Pol., VIII, 7,

ris teles vê assim na arte e em particular na poesia e na música um meio


potente de educação, e no carácter imitativo da arte já não vê como Platão
motivo para considerá-la ilusória. O mundo sensível, que a arte imita, não é
para Aristóteles simples aparência, mas é realidade que pode ser objecto de
ciência; também a imitação dela através da arte perde portanto o carácter de
aparência ilusória. Aristóteles pode assim reconhecer à arte aquela função
catártica que lhe dá valor educativo e formativo nos confrontos do homem.
Sobre a catarsis, faltam na Poética elementos explícitos que consintam
compreender a sua natureza. Intérpretes antigos viram nela um tratamento
médico das paixões, uma cura que combate, o semelhante com o semelhante. E não
é claro se a catarsis se entende como purificação pelas paixões ou antes como
purificação das paixões. Todavia se se considera que a catarsis está ligada ao
valor propriamente artístico da tragédia ou da música, pode-se excluir que ela
seja, para Aristóteles, apenas uma medicina das paixões. À catarsis está
ligado um momento mais alto da vida espiritual, um momento no qual a paixão
não está excluída, mas purificada ou exaltada. E efectivamente enquanto a
paixão se dirige unicamente ao objecto (coisa ou pessoa) que liga ao homem com
o amor ou com o ódio, com o temor ou com a esperança, a arte, apresentando a
paixão realizada num complexo ordenado de acontecimentos (como ocorre na
tragédia) ou de sons expressivos (como na música), afasta o homem do objecto
da paixão para interessá-lo na paixão em si mesma, naquilo que ela é, na sua
substância. A paixão tem como seu telos a obtenção do seu objecto, a arte tem
como seu telos a paixão na sua realidade representada. Aristóteles inclui isto
297

na sua teoria da catársis. A arte liberta a paixão do seu término natural


porque a faz volver à própria paixão, à sua substância realizada na arte.
§ 85. A LÓGICA

A organização do saber num sistema de ciências, cada uma das quais se


constitui com relativa independência das outras, colocava a Aristóteles o
problema da forma geral da ciência. Aristóteles 72) dividia a ciência em três
grandes grupos: ciências teóricas, física, matemática e filosofia, que têm por
objecto o ser em alguns dos seus aspectos especiais ou o ser em geral (Met.,
X1, 7, 1064 b); ciências práticas ou normativas, das quais a principal é a
política, que têm por objecto a acção; ciências poiéticas que regulam a
produção dos objectos. É evidente que estas três espécies de ciências, na
medida em que são todas igualmente ciências, têm em comum a forma, isto é, a
natureza do seu procedimento. Considerando à parte tal forma. mediante a
abstracção de que cada uma das ciências se serve para isolar o seu objecto,
obtém-se uma disciplina que descreve o procedimento comum de todas as ciências
enquanto tais; e tal disciplina é a lógica, que Aristóteles chama analítica e
que ele foi o primeiro a conceber e fundar como uma disciplina em si,
utilizando e sistematizando as observações e os resultados dos seus
predecessores e especialmente de Platão. Mas, evidentemente, o valor de uma
lógica assim entendida depende da legitimidade de distinguir a forma geral das
ciências do seu conteúdo, isto é, do objecto particular de cada uma delas:
isto depende da legitimidade da abstracção mediante a qual cada ciência
singular, incluindo a filosofia, consegue determinar o seu objecto. Por sua
vez a legitimi-
298

dade de abstracção funda-se na teoria da substância. em efeito, considerar a


forma separadamente de cada conteúdo particular, só é procedimento legítimo se
a forma é, ao mesmo tempo, a substância, isto é, a essência necessária daquilo
que se considera. Se a forma não tivesse a validade que lhe vem do ser e não
fosse ela só a substância daquilo de que é forma, o considerá-la à parte
através da abstracção seria uma falsificação. A abstracção justifica-se
portanto apenas como consideração da essência de uma coisa separada das suas
particularidades contingentes. A lógica, como procedimento analítico, isto é,
resolutivo da forma do pensamento como tal, está portanto fundada sobre a
metafísica como teoria da substância e sustém-se e cai com ela. Num passo da
Metafísica (IV, 3,
1005 b, 6) em que Aristóteles parece considerar a lógica como a técnica
indispensável da investigação, ele tem o cuidado de acrescentar que a
consideração dos princípios silogísticos diz respeito ao filósofo e a quem
especula sobre a natureza de qualquer substância. A lógica é assim reconduzida
por ele próprio ao seu pressuposto indispensável: a teoria da substância.

Por outro lado, esta teoria é o fundamento da verdade de todo o conhecimento


intelectual. A forma é ao mesmo tempo ratio essendi e ratio cognoscendi do
ser: Como ratio essendi é substância, como ratio cognoscendi é conceito ou
definição. Ela garante pois a correspondência entre o conceito e a substância
e assim a verdade do conhecimento e a racionalidade do ser. Por isso
Aristóteles pode dizer que o ser e a verdade estão numa relação recíproca:
que, por exemplo, se o homem é, a afirmação que o homem é, é verdadeira; e
reciprocamente se é verdadeira a afirmação de que é, o homem é. Mas
Aristóteles acrescenta que nesta relação o fundamento é o ser e que o ser não
é
299

tal porque a afirmação que o concerne é verdadeira, mas a afirmação é


verdadeira porque o ser é tal como ela o expressa (Cat.. 12, 14 b, 21).
Noutros termos, a verdade do conceito funda-se na substância e não vice-versa:
a metafísica (ou em geral a ciência) precede e fundamenta a lógica.

Não pode pois sustentar-se que Aristóteles tenha querido fundar a lógica como
ciência "formal", no sentido mo-demo do termo, isto é, como ciência sem
objecto ou sem conteúdo, constituída unicamente por proposições tautológicas.
A lógica tem um objecto, segundo Aristóteles, e este objecto é a estrutura da
ciência em geral que é também a própria estrutura do ser que é objecto da
ciência. Nesta base, Aristóteles afirma que a lógica deve analisar a linguagem
apofântica ou declarativa que é característica das ciências teoréticas, na
qual têm lugar as determinações; de verdadeiro e falso se a união ou
separação dos termos (em que consiste uma proposição) reproduz ou não a
união ou a separação das coisas. Aristóteles não nega que existam discursos
não apofânticos, por exemplo a oração súplica. Mas privilegiando o discurso
apofântico, faz dele a verdadeira linguagem, aquela sobre a qual as outras
mais ou menos se modelam ou do ponto de vista da qual devem ser julgadas.
Efectivamente a poética e a retórica que se ocupam de linguagens não
apofânticas são tratadas por Aristóteles à parte e subordinadamente à
analítica. A linguagem apofântica não tem nada de convencional. Segundo
Aristóteles, as palavras da linguagem são convencionais: tanto assim é verdade
que são diferentes duma língua para outra. Mas elas referem-se a "afecções da
alma que são as mesmas para todos e constituem imagens dos objectos que são os
mesmos para todos" (De inierpr., 1, 16 a, 3). A combinação das palavras é
comandada por isso, através da imagem mental,
300

pela combinação efectiva das coisas que lhes correspondem: assim.. por
exemplo, só se podem combinar as palavras "homem" e "corre" na proposição "o
homem corre" se na realidade o homem corre. Pode dizer-se portanto que a
linguagem é para Aristóteles convencional no seu dicionário, não na sua
sintaxe: a lógica deve voltar-se portanto para esta sintaxe para analisar a
estrutura fundamental do conhecimento científico e do ser.

As partes do Organon aristotélico, na ordem em que chegarem até nós, tratam


de objectos que vão do simples ao complexo, começando pelos mais simples, isto
é, pelos elementos. Tais elementos são considerados e classificados nas
Categorias. "Categorias" significa predicados; mas na realidade Aristóteles
trata no livro em questão de todos os termos que "não entram em nenhuma
combinação", porque são considerados isoladamente como "homem", "branco",
"corre", "vence", etc. Dos termos assim compreendidos, não se pode dizer nem
que são verdadeiros nem que são falsos, pois verdadeira ou falsa é apenas uma
combinação qualquer dos termos, por exemplo, "o homem corre". Aristóteles
classifica-os em dez categorias 1) a substância, por exemplo, homem; 2) a
quantidade, por exemplo, de dois côvados-, 3) a qualidade, por exemplo,
branco,
4) a relação, por exemplo, maior; 5) o lugar, por exemplo, no liceu; 6) o
tempo, por exemplo, o ano passado; 7) a situação, por exemplo, está sentado;
8) o ter, por exemplo, tem os sapatos; 9) o agir, por exemplo, queima; 10) o
sofrer, por exemplo, é queimado.

obviamente, dado o assentamento geral da lógica aristotélica, a classificação


das categorias não visa só os termos elementares da linguagem mas também as
coisas a que se referem: mais, visa os primeiros só porque, antes de mais,
considera estes últimos. Conformemente à direcção da sua metafísica, Aris-
301

tóteles considera como categoria fundamental a substância. Um dos pontos mais


famosos do escrito é a distinção entre substâncias primeiras e substâncias
segundas. A substância primeira é a substância no sentido próprio que não pode
nunca ser usada como predicado de um sujeito e nunca pode existir num outro
sujeito: por exemplo, este homem ou aquele cavalo. As substâncias segundas
são ao contrário as espécies e os géneros: por exemplo a espécie homem, a que
cada homem determinado pertence, e o género animal a que pertence a
espécie homem juntamente com as outras espécies. Porquanto considere de algum
modo justificado chamar substâncias às espécies e aos géneros que servem para
definir as substâncias primeiras, Aristóteles repara que só as substâncias
primeiras "são substâncias no sentido mais preciso, na medida em que estão na
base de todos os outros objectos" (2 a, 37).

No livro Sobre a interpretação, Aristóteles examina as combinações dos termos


que se chamam enunciados declarativos (logoi apophantikoi) ou proposições
(protaseis), isto é, as frases que constituem asserções e não já súplicas,
ordens, exortações, etc. A asserção pode ser afirmativa ou negativa segundo
"atribui alguma coisa a alguma coisa" ou "separa alguma coisa de alguma
coisa". Por outro lado pode ser universal ou singular: é universal quando o
sujeito é universal (entendendo-se por universal "aquilo que por natureza se
predica de várias coisas", por exemplo: homem; é singular quando o sujeito é
um ente singular, por exemplo Callia. Mas um mesmo termo universal pode ser
tomado numa proposição quer na sua universalidade, como quando se afirma "todo
o homem é branco", quer na sua particularidade, como quando se afirma "alguns
homens são brancos". Aristóteles preocupa-se em estabelecer a relação entre a
proposição universal
302

e a proposição particular, cada uma das quais pode por sua vez ser afirmativa
ou negativa. Estas relações resultam do esquema seguinte:

universal afirmativa (A) todo o homem é branco;


Universal negativa (E) <Nenhum homem é branco>
Particular afirmativa (i) <Alguns homens são brancos; Particular
negativa (O) <Alguns homens não são brancos>
(por uma questão de apresentação gráfica, o esquema não está igual ao do
original)
O esquema foi construído desta maneira (que reflecte exactamente a doutrina
aristotélica) pelos Lógicos medievais que lhe chamaram "quadrado dos opostos"
e que indicaram as várias espécies de proposições com as letras maiúsculas que
foram usadas. Como resulta daí, Aristóteles chamou contrária a oposição entre
a proposição universal afirmativa e a particular negativa e contraditória a
oposição entre a universal afirmativa e a universal negativa. A relação entre
a particular afirmativa e a particular negativa foi chamada pelos Lógicos
medievais oposição subcontrária. Trata-se de uma oposição para a qual, segundo
Aristóteles, não é válido o princípio da contradição. Com efeito, nas duas
proposições "alguns homens são brancos", "alguns homens não são brancos",
podem ser ambas verdadeiras. Pelo contrário, para as proposições que estão
entre si em oposição contrária e contraditória, o princípio de contradição é
rigorosamente válido. Uma delas tem de ser falsa e a outra tem de ser
verdadeira. Esta segunda existência (isto é, que uma delas deve ser
verdadeira) é a expressa pelo princípio que muito mais tarde se chamou do
"terceiro excluído" e que Aristóteles, embora sem distingui-lo do princípio da
contradição, expressa-o e defende-o várias vezes (Met., IV, 7. 1011 b, 23; X,
7, 1057 a, 33), afirmando que "entre os opostos contraditórios não há um
303

meio". Todavia Aristóteles considera uma dificuldade que pode surgir do uso
deste Princípio quanto aos acontecimentos futuros. Se se afirma "amanhã
-haverá uma batalha naval" e "amanhã não haverá uma batalha naval", destas
duas proposições contraditórias uma deve ser necessariamente verdadeira. Mas
se uma delas é necessariamente verdadeira, por exemplo, aquela que afirma
"amanhã não haverá uma batalha naval", isto quer dizer que necessariamente
amanhã não haverá uma batalha naval; verdadeiramente porque é necessariamente
verdadeiro que "amanhã não haverá uma batalha naval". Em tal caso do uso do
princípio do terceiro excluído, referido aos acontecimentos futuros, surgiria
a tese da necessidade de todos os acontecimentos, mesmo daqueles que são
devidos à escolha do homem. Aristóteles não afirma que estas consequências
sejam legítimas e que todos os acontecimentos aconteçam por necessidade. Uma
das duas coisas expressas por uma proposição contraditória necessariamente se
verificará no futuro, mas esta necessidade não assume qual das duas coisas é
que se verificará. Noutros termos, não é necessário, atendo-se ao princípio do
terceiro excluído, nem que amanhã haja nem que amanhã não haja uma batalha
naval, qualquer que seja a alternativa que se verificará amanhã. Mas é
necessário que amanhã aconteça ou não aconteça uma batalha naval. Noutros
termos, a necessidade consiste na impossibilidade de sair da alternativa de
uma contradição, não no verificar-se duma ou doutra destas alternativas (19-a,
32). Aristóteles não nota que, se a alternativa é necessária, ela não pode ser
senão alternativa, isto é, não pode decidir-se nem num sentido nem no outro:
pelo que seria necessária precisamente a sua indeterminação; e amanhã não
poderá nem haver nem não haver uma batalha naval. Como quer que seja, a
solução de
304

Aristóteles e toda a discussão do caso mostram claramente o primado que ele


atribui a uma das duas modalidades fundamentais das proposições, isto é,
precisamente à necessidade. A outra modalidade de que fala e que também
permaneceu tradicional na
lógica é a da possibilidade. Mas a própria possibilidade é definida por
Aristóteles como não-impossibilidade, isto é, como simples negação da
necessidade negativa ("impossibilidade" significa de facto "necessidade que
não seja"). E só na base desta definição do possível, ele pode afirmar que
também o necessário é possível porque aquilo que é necessariamente, não deve
ser impossível. Mas a redução do possível a "não impossível" demonstra como
tem andado completamente esquecido, na
lógica de Aristóteles, o significado da possibilidade que Platão tinha
esclarecido como fundamento da dialéctica (§ 56).

Os Primeiros Analíticos contêm a teoria aristotélica do raciocínio. O


raciocínio típico é, segundo Aristóteles, o dedutivo ou silogismo: definido
como "um discurso em que, postas tais coisas, outras se derivam delas
necessariamente" (24 b, 18). As características fundamentais do silogismo
aristotélico são: 1) o seu carácter mediato; 2) a sua necessidade. O carácter
mediato do silogismo depende do facto de que silogismo é a contrapartida
lógico-linguística do conceito de substância. Em virtude disto, a relação
entre duas determinações de uma
coisa só se pode estabelecer na base daquilo que a coisa é necessariamente,
isto é, da sua substância, por exemplo, se se quer decidir se o homem é
mortal, apenas se pode encarar a substância do homem (aquilo que o homem não
pode não ser) e raciocinar assim: todo o homem é animal, todo o
animal é mortal, portanto todo o homem é mortal. A determinação "animal",
necessariamente incluída na substância "homem", permite concluir da mor-
305

talidade do próprio homem. Neste sentido diz-se que a noção "animal" fez de
termo médio do silogismo: ela representa no silogismo a substância, ou a causa
ou a razão, e que só ela torna possível a conclusão (94 a, 20): o homem é
mortal porque, e só porque, é animal. O silogismo tem portanto três termos: o
sujeito e o predicado da conclusão e o termo médio. Mas é a f unção do termo
médio que determina a figura (schemata) do silogismo. Na primeira figura, o
termo médio faz de predicado na primeira premissa e de sujeito na outra, como
no silogismo agora citado. Na segunda figura, o termo médio faz de predicado
em ambas as premissas (por exemplo, "Nenhuma pedra é animal, todo o homem é
animal, logo nenhum homem é pedra"). Nesta figura, uma das premissas e a
conclusão são negativas. Na terceira figura o termo médio faz de sujeito em
ambas as premissas (por exemplo, "Todo o homem é substância, todo o homem é
animal, logo alguns animais são substâncias"). Nesta figura a conclusão é
sempre particular. Cada uma das três figuras se divide depois numa variedade
de modos, segundo as premissas são universais ou particulares, afirmativas ou
negativas.

Aristóteles levou até a um certo ponto esta casuística dos modos silogísticos
que na lógica medieval devia encontrar o seu fecho, mesmo em relação aos
desenvolvimentos que a própria lógica sofreu na antiguidade por obra dos
Aristotélicos e dos Estoicos. O silogismo é por definição dedução necessária:
por isso a sua forma primária e privilegiada é o silogismo necessário, que
Aristóteles chama também demonstrativo ou científico. Dos silogismos
necessários, a primeira e melhor espécie é a dos silogismos ostensivos que
Aristóteles contrapõe aos que partem de uma hipótese. Estes últiMos não são
aqueles que se chamarão em seguida "hipotéticos" (nos quais a premissa maior 4
cons-
306

tituída por uma condicional). mas aqueles cuja Premissa maior não é a
conclusão de um Outro silogismo nem é evidente por si, mas é tomada por via de
hipótese. Um de tais silogismos é aquele que opera a redução ao absurdo. Entre
os silogismos ostensivos mais perfeitos estão os silogismos universais da
primeira figura, aos quais é possível reconduzir todas as outras formas do
silogismo. Finalmente, do silogismo dedutivo distingue-se o silogismo indutivo
ou indução, que é a outra das duas vias fundamentais através das quais o homem
alcança as próprias crenças (68 b, 13). A indução, segundo Aristóteles, é uma
dedução que, em vez de deduzir um termo do outro mediante o termo médio (por
exemplo, a mortalidade do homem mediante o conceito de animal), como faz o
silogismo verdadeiro e legítimo, deduz o termo médio de um extremo, valendo-se
do outro extremo. Por exemplo, depois de ter verificado que o homem, cavalo e
o macho (1.O termo) são animais sem bílis (termo médio) e que o homem, o
cavalo e o macho são de longa vida (2.O termo) deduz que todos os animais sem
bílis são de longa vida: na qual conclusão compara o termo médio e um extremo.
O "ser sem bílis" é, neste caso, o termo médio, porque é a razão ou a causa
pela qual o homem, o cavalo e o macho são de longa vida. A indução é válida
apenas se se esgotar em todos os casos possíveis; se, no exemplo em exame, o
homem, o cavalo e o macho são todos animais sem bílis. Por isso, é de uso
limitado e não pode suplantar o silogismo dedutivo, semo se para o homem é um
procedimento mais fácil e claro (68 b, 15 segs.). Aristóteles sustenta por
isso que pode ser usado não na ciência, mas na dialéctica e na oratória, isto
é, como instrumento de exercício ou de persuasão (Ret., 1, 2, 1356 b, 13).
307

Nos Segundos Analíticos, Aristóteles examina as premissas do silogismo e o


fundamento da sua validade. Aristóteles parte do princípio de que toda a
doutrina ou disciplina deriva de um conhecimento preexistente" (71 a, 1). Para
que o silogismo conclua necessariamente, as premissas de que deriva devem por
sua vez ser necessárias. E para ser tais, devem ser, em si próprias,
princípios verdadeiros, absolutamente primeiros e imediatos; e, no que
respeita à conclusão, mais cognoscíveis, anteriores à conclusão e causa dela
(71 b, 19). "Imediatos" significa que são indemonstráveis, embora evidentes
por si próprios: pois que, se não fossem tais, haveria princípios dos
princípios e assim até ao infinito (90 b, 24). Alguns destes princípios são
comuns a todas ciências outros são próprios de cada ciência. Comum é, por
exemplo, o princípio: se de dois objectos iguais se tiram objectos iguais, os
restos são iguais. Especiais são por exemplo os seguintes princípios da
geometria: a linha tem a seguinte natureza; a linha recta tem a seguinte
natureza, etc. (76 a, 37). Mas os princípios, especialmente os princípios
particulares, não são outra coisa, segundo Aristóteles, senão as definições e
as definições são possíveis só pela substância ou pela essência necessária.
(90 b, 30). A validade dos princípios em que se funda a ciência consiste por
isso em serem eles expressão da substância ou, melhor, do género das
substâncias sobre que versa uma ciência particular; e pois que a substância é
causa de todas as suas propriedades e determinações como os princípios são
causa das conclusões que o silogismo delas deriva, todo o conhecimento é
conhecimento de causas.

Como dissemos a propósito da ética, Aristóteles admite um órgão específico


para a intuição dos primeiros princípios que é o intelecto: uma das virtudes
dianoéticas, isto é, dos hábitos superiores
308

racionais do homem (§ 81). Como virtude ou hábito racional, o intelecto não é


uma faculdade natural e inata mas, como todas as outras virtudes, forma-se
gradualmente através da repetição e do exercício. Em particular, forma-se a
partir da sensação. Da sensação deriva a lembrança e da lembrança renovada dum
mesmo objecto nasce a experiência. Depois, na base da experiência, se
consegue surpreender a substância que é una e idêntica num conjunto de
objectos, tem-se então o
intelecto, que é o princípio da arte da ciência. Por consequência, o
conhecimento sensível condiciona, segundo Aristóteles, a aquisição do
intelecto dos primeiros princípios e também de toda a ciência; mas não
condiciona a validade da ciência. Tal validade é, segundo Aristóteles,
completamente independente das condições que permitem ao homem alcançar a
ciência e consiste unicamente na necessidade dos primeiros princípios e na
necessidade das demonstrações que daí resultam.

Enquanto os Primeiros e Segundos Analíticos têm por objecto a ciência, os


Tópicos têm por objecto a dialéctica. A dialéctica distingue-se da ciência
pela natureza dos seus princípios: os princípios da ciência são necessários,
isto é, absolutamente verdadeiros, os princípios da dialéctica são prováveis,
isto é, "parecem aceitáveis a todos ou aos mais ou aos sábios e entre estes ou
a todos ou aos mais ou aos mais notáveis e ilustres" (100 b, '21). Fundados
em princípios deste género são os raciocínios usados na oratória forense ou
política (que Aristóteles estuda na Retórica), quer nas discussões, quer nas
que são feitas com o simples objectivo de exercitar-se na arte de raciocinar.
A maior parte dos Tópicos, é dedicada ao estudo dos argumentos que se usam nas
discussões: como se disse, os Tópicos de Aristóteles são, no seu corpo
principal, a primeira formulação da lógica
309

aristotélica, a que ele concebeu debaixo da influência do platonismo, que


mantinha a discussão dialógica como o único método de pesquisa. A análise de
Aristóteles visa substancialmente isolar, dividir classificar e valorizar no
seu valor demonstrativo (isto é, relativamente às formas correspondentes do
silogismo científico) os lugares lógicos, isto é, os esquemas argumentativos
que podem ser usados na discussão. No âmbito da dialéctica encontram também
lugar e reconhecimento os problemas: pois que estes, enquanto são constituídos
por uma pergunta que pode ter duas respostas contraditórias, não nascem nem
quando se trata de deduzir consequências necessárias de premissas necessárias
(como acontece na ciência) nem a propósito daquilo que a ninguém aparece como
aceitável, mas sim naquela esfera do provável que é própria da dialéctica.
(104 a; 104 b, 3). Assim a que aparecera a Platão como a ciência filosófica
por excelência, a dialéctica, é confinada por Aristóteles numa zona marginal
da ciência e inferior a ela; e adquire um significado totalmente diverso.
Certamente, a dialéctica platónica não tem o carácter de necessidade que
Platão atribui à ciência; mas não tem este carácter porque não o tem mesmo
o, próprio ser que é seu objecto e que é definido por Platão como
possibilidade. Assim a ausência de necessidade que é para Aristóteles a
deficiência fundamental da dialéctica platónica, que ele chama "silogismo
fraco" (Pr. An., 1,
31, 46 a, 31), não é tal para Platão que a considera antes como condição
indispensável para que o procedimento dialéctico possa submeter a crítica as
suas próprias premissas e mudar oportunamente tais premissas segundo a
complexidade do objecto.

Enfim, nas Refutações (elenchi) sofísticas, Aristóteles examina os raciocínios


refutadores ou erísticos dos Sofistas. Ele entende por raciocínios críticos
aquele em que as premissas não são nem
310

necessárias (como as premissas da ciência) nem


prováveis, (como as da dialéctica), mas só aParentemente prováveis. os
argumentos erísticos, a que Aristóteles chama sofismas e que os Latinos
indicaram com o termo de falácias, são divididos por Aristóteles em duas
grandes classes: os que dependem do modo de exprimir-se e aqueles que são
independentes disso. Exemplo dos primeiros é a
anjibolia que consiste no uso de expressões que têm um significado duplo e que
são tomadas ora num ora noutro destes significados. Por exemplo, quando se
diz: "aquilo que deve ser é bem", mas "o mal deve ser; logo é bem", o "deve
sem, na primeira premissa é tomado como aquilo que é desejável que seja e na
segunda como aquilo que é inevitável. Da segunda espécie de falácias, um
exemplo é a petição de princípio que consiste em tomar, de forma dissimulada,
como premissa da demonstração, aquilo que se deveria demonstrar.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

67. Chegaram até nós as seguintes e antigas vidas de Aristóteles: 1.- DIõGENEs
LAÊRcio, V. cap. 1 segs.; 2.1 DIONISIO DE ~CARNAsso na carta a Ammeo, cap. 5;
3.* Vida menagiana, assim chamada pelo seu editor Menagio; 4.o Vida
neoplatõnlca, que nos chegou em três redacçõ es distintas; SUIDAS, Léxico, na
palavra Arlstõteles; 6.* Biografias sirlaco-ãrabes compostas entre os séculos
V e VM. ]Entre as reconstruçõ es modernas: ZELLER, 11, 2, u. 1 segs.; GoMPERz,
M, p. 20 segs.; JAMER, A~., p. 11 sega., 133 sega.,
149 segs.. O testamento de Aristóteles foi-nos conservado por DIõGFNEs
LAÉRcio, V, 11.

§ 68. Sobre o problema dos escritos aristotélicos: JAEGER, Op. Cit.; MORFAU,
As listas antigas das ~as de Aristótelw, Lovaina, 1951.-Uma tentativa para
revolucionar a atribuição dos escritos aristotélicos encontra-se em ZURCITER,
Aristotel~ Werk und Gei8t, Paderbon, 1952. Sobre a cronologia das obras
lógicas
311

de Aristõteles: P. GomKE, Die Enatchung der ariBtoteltechen Logik, Berlim,


1936; F. NUYENS, LIéVOIUt" de Ia psychologie d'Aritote, UYvaina, 1948, e os
autores do volume colectivo Autour d' Aristote, Lovaina, 1955, negam que o
livro XII da Metafí&ica seja uma obra juvenil, segundo a tese de Jaeger, mas
sem argumentos válidos. Cfr. M. UNTERSTEINER, In. "Rivista di filologia
elassáca>.

§ 69. Os fragmentos dos escritos exotéricos foram recolhidos por VALENTIN


ROSE, Leipzig, 1866. Veja-se também: WALZER, Aristotelis dialogorum fragn~ta,
Florença, 1934. Sobre as obras perdidas de Aristóteles: JAMER, Op. Cit.;
BIGNONF, L'Aristotele perdudo e Ia formazione filosofica di Epicuro, 2 vols,
Florença, s. d..

§ 70. A edição fundamental das obras de Aristóteles é a da Academia das


Ciências de Berlim ao cuidado de Bekker (1831), a numeração de cujas páginas
vem reproduzida em todas as edições e serve para as citações. A e-asa edição
foi acrescentada o utilíssimo Indice de BONITZ. Notável também a edição
Firmán-Didot, 4 vols., Pari.3, 1849-69, com tradução latina. Numerosissimas as
edições poateriores das obra6 aristotélicas, entre as quaL9 é Importante a que
Ross publicou na Oxford University Press. Do próprio Ross é fundamental a
edição comentada da Metaf~a, 2 vols., Oxford, 1924; ainda mais a monografia
Aristotele, trad. ital., Bari, 1946. Esta é actualmente a melhor obra geral
sobre Aristételes. Na historiografia moderna a interpretação da figura de
Aristóteles tomou duas direcções simétricas e opostas: a que faz de
Aristóteles um naturalista e um empirista; aquela que faz dele um
espiritualista. Como exemplo da primeira interpretação: C. PIAT, Aristote,
Paris, 1912; J. BURNET, Aristotle, Londres,
1924. A segunda interpretação foi iniciada por F. RAVAISSON, Essai sur Ia
métaphy8ique d'Aristote, Paris,
1913, e encontrou a sua melhor expressão na monografia de O. HAMELIN, Le
système d'Aristote, Paris,
1920.

§ 71. Que a elegia se referia a Sócrates é a ~tese de GompERz, II, p. 72, que
contradiz os testemunhos antigos e é desmentida pela crítica recente: JAMER,
p. 138 segs.; BIGNONE, I, p. 213 segs.-Sobre as duas fases da Metaffsica:
JAMER, cap. 4.

H 73.-74. A doutrina da substância exposta nos livros VII e VIII da Metafísica


é o resultado mais

312

maduro da Investigação "totélica, segundo as coaclusões de Jaeger.

§ 75. A crítica a Platão repete-se multas vezes na M~1~, I, cap. 9; VII, cap.
13; 14 e 15; XH1, cap. 4 e 5; XIV, cap. 1 o 2. A forma maIs organizada da
crítica é a expoeta no livro XII ; CHERNISS, Ari8totWs Criti~ of Plato and the
Aca-demy, John HopkIns Univ. Preas, 1944.

§ 76. A doutrina das quatro causas está na Met.,


1, 3, 983 a, e na Fís., 11, 3, 194 b.

§ 77. A potência e ao acto dedica Aristóteles todo o livro EK da, Met., no


qual se fundamentou a exposição do texto. J. OWENS, The Doctrine of Being
in the Aristotelian Metaphysic8, Torontoi 1951.

§ 78. Sobre a substância imóvel, veja-se Met., Xil, 8, 1072 a segs. e Fís.,
VUT, 5, 256 b, 20. A doutrina das outras inteligências motrizes está no cap. 8
do mesmo livro XII. H. VON ARNIM Die Entstehung der Gotte%1ehre des
Aristotele, Viena, 1931.

§ 79- Sobre a física aristotélica: MANSION, Introduction à Ia physique


aristotélicienne, Lovaina, 1913; M. RANQUAT, Aristote naturaliste, Paris,
1932; J. DE TONQUÉDEC, Qu_-stion-s de cosmologie e de physique chez Aristote
et St. Thomas, Paris, 1950. Uma tentativa para determinar a sucessão
cronológica dos escritos recolhidos na Física foi feito por RUNNER, The
Develo~nt of Ari-stotIe i11ustrated from the earliest books of the Physics,
Kanipden, 1951. A ordem seria esta: livro VI (composto cerca de 361); livro I
e parte do II, livro V e VI entre os anos 346 e 337.

§ SO. Sobre a psicologia: C. W. SHUTE, The Psychology of Aristotle, Nova


lorque, 1947.

§ 81. Sobre a ética: H. VON ARNIM, Die drei Aristotelischen Ethiken, Viena,
1924, e Eudemische Ethik und Metaphysik, Viena, 1928; WALzER, Magna Moralia
und Aristotelische Ethik, Berlim, 1929; HAmBURGER, MoTaIs and Law: the Growth
of ArístotWs Lega Theory, New Haven, 1951; J. A. THOMSOM, The Ethics Of
Arístotle, Londres, 1953.

§ 82. Sobre a politica: BARKER, Political Thought Of Plato and Aristotle,


Londres, 1906; H. VON ARNIM, Zur Entstehungsge,,,chichte der aristotelischen
Politik, Viena, 1954.

§ 83. Sobre a retórica: ZELLER, 11, 2, p. 754 segs.; GOMPERZ, IIII, cap. 36-
38.

§ 84. Sobre a poética: A. Rostagni, La poetica XAristotele, Turini, 1927; S.


H. BUTC=, AristotIeIs

313

Theory of Poetry and Fine Art8, Nova Iorque, 1955; GMALD E. IM , Arl[8tOtW8
P00~ The ArPUM~, Leiden, 1957.

§ 86. Tradução Italiana de Organon, com introdução e notas de G. 001", Turim,


1955.-P~L, Ge8hichte der Log., I, p. 87 segs.; C~EDO, I jundamenti deUa Logica
ari8totelica, Florença; " BLOND, Logique et méthode cheo A~ote, Paria, 1939;
C. A. VIANo, La logica di Aristot^ Turim, 1955.-Para uma valoração da lógica
aristotélica do ponto de vista da lógica contemporânea: J. LUXASIEWICS,
ArtatotWa Syllogiatic fr<"n the Standpoint o/ Modem Pormal Logio, 2.1 ed.,
Oxford, 1957; W. KNEALE-M. KN~, The Devel~ent of Logic, Oxford, 1962, p 23-112
314

INDICE

PRE)FACIO DA PRIMEIRA EDIÇAO ... ... 7 PRMFACIO DA SEGUNDA


EDIÇAO ... ... 15

PRDdEIRA PARIT,
FILOSOFIA ANTIGA

I-ORIGMN8 E CARACTER DA F11,0SO-

F7A GREGA .. . ... ... ... ... ... 19 II-A ESCOLA MNICA ...
... ... ... ... 35 M-A ESOOLA PITAGORICA
... ... ... 53 rV_A ESOOLA ELEATICA ... ... ... ...
63 V-OS FISICOS POSTERIORES ... ... ... 81 VI - A
SOFISTICA. ... ... ... ... ... ... 97 VII - SWRATES
... ... ... ... ... ... ... 115 VM -AS ESCOLAS SOCRATICAS
... ... ... 133

IX - PLATA0 ... ... ... ... ... ... ... 147 X -A ANTIGA
ACADE3 . ... ... ... ... 225 )CI -
ARISTÓTELES ... ... ... ... ... ... 233

Este livro acabou de se imprimir em Julho de 1976

para a EDITORIAL PRESENÇA, LDA.

na

Empresa Gráfica Feirense, L.da

Vila da Feira Tiragem 3 000 exemplares

Você também pode gostar