Você está na página 1de 3

Gostaria de começar cumprimentando os colegas presentes, e agradecendo a

oportunidade de participar dos debates desta Compós e deste GT, cujas discussões sobre
Comunicação e Teoria há muito me interessam.
Sou doutorando na UFRGS, sob orientação do professor Alexandre Rocha da Silva,
e integro o Grupo de Pesquisa em Semiótica Crítica, do qual também faz parte o professor
Tarcísio. Ali venho desenvolvendo esta pesquisa que apresento aqui, sobre movimentos de
apropriação de linguagem visíveis no contemporâneo. Trago a minha voz sobre isso, abrindo
um esforço em processo para diálogo com vozes outras, enfocando um aspecto específico,
neste texto chamado Vozes comuns: notas sobre a apropriação e a propriedade como
problemas comunicacionais.
Os debates que marcam a maior parte dos debates neste GT de Epistemologias
poderíamos resumir em uma sentença: qual é ou o que é a propriedade da
Comunicação?. Em nosso texto, propomos pensar uma questão paralela: o que a
propriedade na Comunicação?. Mas essa torção, não apenas uma brincadeira, acaba por
voltar à primeira pergunta, na medida em que a reflexão sobre a posses e as despossesões dá
a ver a imagem de um comunicar
Mas por que posses e despossesões? Nossa investigação parte da observação de
algumas práticas de escrita visibilizadas sobretudo a partir do século XXI, consistindo na
apropriação e reapresentação de linguagens, ora como manifestação estética, ora como
manifestação política – frequentemente como ambas. O que essas apropriações diferem de
movimentos e conceitos anteriores, caros aos estudos da área, como a intertextualidade e a
bricolagem? Na extensão de sua cópia, na apresentação de livros derivados inteiramente de
edições de jornal ou transmissões, radiofônicas, por exemplo; e na ambição de suas
proposições, colocando-se na vanguarda de uma dessencialização da linguagem.
De modo a demonstrar e compreender a operação destas práticas, tomamos aqui como
caso paradigmático a Escrita Não-Criativa, movimento conceituado pelo poeta e artista visual
Kenneth Goldsmith - pensando em paralelo a outros movimentos semelhantes, como aqueles
identificados nos estudos de Marjorie Perloff sobre a não-originalidade. No texto
procedemos a uma revisão de seus enunciados, em uma leitura não só de suas produções
copistas, bem como de suas propostas e discussões conceituais. Por aí que se faz emergir
uma visão particular sobre a operação da linguagem, que parte de constatações semióticas
estabelecidas, mas tenta torcê-las na direção de uma pretensa “nova prática”, ainda mais
aguda em seu alisamento do espaço linguageiro.
Reluz, por exemplo, a afirmação de Goldsmith de que os textos que publica –
extensas transcrições não-narrativas – são ilegíveis. Inúteis ou desnecessários, são mero
subproduto do processo, colocada como uma máquina de ideias, essa sim essencial a seu
conceito de apropriação. Porém, ao mesmo tempo, os advogados da cópia constróem sua
defesa em torno das possibilidades abertas pelos seus deslocamentos. Goldsmith, ele mesmo,
diz do escritor não-criativo como aquele que descobre potências nos textos a serem
apropriados, potências ocultadas por um acúmulo de usos e abusos da linguagem, que o
apropriador vai a restaurar – ou remontar.
Ao mesmo tempo que a apropriação abjura a uma propriedade do texto a ser
copiado, coloca o texto apropriador – o resultado da deglutição – em posição
privilegiada. Qual, assim, a diferença entre produtor e (re)produtor?
A máquina do processo de apropriação se torna um máquina de fumaça ou de ruído.
Para achar um caminho em meio a isso, tomamos como fio condutor o conceito de
propriedade. Entendo o caráter produtivo da Comunicação, esta nos parece uma via
para compreender os trânsitos e predações visibilizados pela apropriação, suas
simultâneas negações e asserções de posse.
Deste modo, o artigo procede em sua segunda parte a uma retomada do conceito de
propriedade, estabelecendo este liame entre comunicação e política, traçando uma revisão de
movimentos de aproximação entre propriedade e linguagem. Retoma-se os estudos de
retórica de Barthes, pensando o desempenho linguístico como refúgio linguageiro, modo de
articular as demandas de demarcação.
Mais objetivamente, voltamos às ideias de Bakhtin, sopradas por vezes na voz de
Volochínov. Sua teoria da palavra, com as incidências constantes de processos ideológicos,
vai nos demonstrar a impossibilidade de afirmar a não existência de propriedades na língua.
Há sempre sujeitos nos processo dessa troca comunicacional: a palavra vem de alguém
e vai para alguém. O que não garante o monópolio da fala àquele que a profere; em
verdade, a palavra acaba por instituir uma zona franca, um espaço fronteiriço onde se
atravessam as posses, sendo trocada de mãos ponto a ponto.
O desempenho marca a linguagem, risca uma propriedade, ainda que o recebedor
dessa enunciação vá a imprimir nela suas próprias inscrições. Essas marcas se acumulam, e
menos do que informar uma liberdade geral e irrestrita de uso, demonstram como é
impossível tomar conta dela de todo – ou, mesmo, não tomar conta de modo nenhum.
Não é que a linguagem seja de ninguém, como lemos no discurso da reescritura:
seu problema reside justo no fato que ela é de todos. Tem este potencial de circulação,
mas acaba por se ver detida por uns ou outros dados seus contextos. Como coloca Bakhtin:
“Em um determinado momento, o locutor é incontestavelmente o único dono da palavra, que
é então sua propriedade inalienável”.
Posto isso, podemos perceber o que escapa à compreensão dos discursos da
apropriação, nomeadamente os de Kenneth Goldsmith. Da posse, dos esforços de
privatização, não se pode fugir; e o que o artista da cópia toma por revolução criativa não
passa de um engajamento radical na lógica econômica-linguística que visava criticar.
Por este percurso, concluímos que os signos chegam à leitura do apropriador todos
vincados, marcados pelas suas enunciações pregressas. Daí considerarmos ingenuidade
acreditar que o ato da apropriação não vá gerar suas próprias inscrições. O apropriador, ao
tentar se colocar fora da cena da escritura, se põe ainda mais ao centro: sua figura e sua
assinatura ressaltam no paradoxo que travam para com seu discurso de uma docilidade da
palavra-no-mundo.
Quebrando a dicotomia entre o privado e o público, entre o seu-meu e o de todo,
retornamos desta incursão teórica com a indecidibilidade do conceito de comum. Marcada
já no pensamento de Bakhtin, em sua reflexão da linguagem como semi-alheia, essa
concepção leva a pensar a linguagem como um espaço de embates contínuos e grilagens
infinitas – conflito a que as ideias de autoria viriam a dirimir, e que a noção da
propriedade como disputa nos permite melhor analisar. Para isso, pensamos aqui com
alguns autores que reatualizam a ideia de comum, como os estudos de Pierre Dardot e
Christian Laval - mas referimos a outros mais, nas cercanias desse pensamentos, como
Antonio Negri, Jean-Luc Nancy, Silvia Federici, entre outros.
Menos que um ponto de chegada, este nosso desembarque na ideia de comum
parece uma ponto de partida aos desenvolvimentos futuros da pesquisa; e marca aquilo
que citamos como uma volta à propriedade do comunicar. Como proposta de debate,
trazemos aqui a indicação da produtividade do conceito de comum pra entender como se dá
a Comunicação, acossada de um lado ou outro por demandas (explícitas ou mascaradas) de
demarcação proprietária: nas transações comunicativas, se seguirmos o fio da linguagem-
como-comum, parece que é impossível não se apropriar, na mesma medida em que a
apropriação é um processo inesgotável. Que implicações socio-culturais e, sobretudo,
políticas decorrem daí?

Você também pode gostar