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ARISTÓTELES DE PAULA BERINO

ELEMENTOS PARA UMA TEORIA DA


SUBJETIVIDADE EM MARX

1
Copyright© 2005 por Aristóteles de Paula Berino
Título Original: Elementos para uma Teoria da Subjetividade em
Marx

Editor:
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Editoração Eletrônica
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SUMÁRIO

Introdução ............................................................................. 7

Capítulo I ............................................................................ 15
A crítica marxista ............................................................. 16
A crítica vulgar do marxismo vulgar ................................. 22
As veias abertas de 68 ...................................................... 24

Capítulo II ........................................................................... 41
A metáfora arquitetônica ................................................. 42
Consciência e classes sociais ............................................. 46
Ideologia e produção da consciência ................................ 54
As cartas de Engels .......................................................... 70

Capítulo III .......................................................................... 75


O ser e a atividade vital consciente ................................... 76
O enigma da mercadoria e subjetividade .......................... 89

Conclusão .......................................................................... 103

Referências bibliográficas .................................................... 107

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INTRODUÇÃO

No dia 17 de março de 1883 uma profecia foi feita. Diante


do túmulo do grande amigo e colaborador, Engels (1979, p.222)
assim se referiu a respeito de Karl Marx: Seu nome perdurará atra-
vés das eras, e assim também a sua obra.
O entusiasmo de Engels partia da certeza que o devido re-
conhecimento da importância de Marx ainda estava por vir. Atra-
vés da parceria intelectual e das vivências políticas partilhadas com
o amigo agora morto, antevia que a dimensão com a qual Marx
havia examinado o capitalismo sensibilizaria os homens e milha-
res deles em todo o mundo assumiriam o problema da emancipa-
ção como um projeto de vida. Engels sabia que a propriedade
maior da obra de Marx era a de infundir uma determinação
incomum para a derrubada das relações sociais vigentes sob o
capitalismo e as lutas assumidas fariam história.
Engels tinha mesmo razão. Cem anos após o desapare-
cimento físico de Marx, afirmava Eric Hobsbawm (1989, p.
13):

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As idéias de Marx tornaram-se as doutrinas que
inspiraram os movimentos operários e socialis-
tas na Europa. Por meio de Lênin, principal-
mente e da revolução Russa, elas se tornaram a
quintessência da doutrina internacional da re-
volução social no século XX, universalmente
acolhida como tal, desde a China até o Peru.
Através da vitória de partidos e governos identi-
ficados com essas doutrinas, algumas versões
dessas idéias se tornaram a ideologia oficial de
Estados, em que, neste momento, vive algo como
um terço do gênero humano, para não mencio-
nar os movimentos políticos de dimensão e im-
portância variada que a elas se referem no resto
do mundo.

Parece mesmo não haver dúvidas que, no decorrer do sécu-


lo XX, o marxismo fincou raízes profundas no imaginário rebelde
e nas práticas revolucionárias. É verdade que tal prestígio foi vigi-
ado pelos interesses de conservação do capitalismo, uma atitude
sempre atenta às ameaças produzidas. E pior do que isso, muitos
foram ainda os equívocos políticos praticados com as bandeiras
do marxismo e do socialismo. Já no final do milênio, o saldo
entre perdas e ganhos já não parecia mais tão encorajador para o
marxismo. Outras profecias foram apresentadas.
O anjo apocalíptico Francis Fukuyama (1991, p. 93) che-
gou a anunciar o fim da história, dizendo que a democracia liberal
é “a única ideologia que sobrevive intacta e que irá caracterizar as
escolhas da maior parte do mundo nos próximos anos”. O fim da
história corresponde aqui a um ponto terminal na evolução social
da espécie, estágio proporcionado apenas pela democracia bur-
guesa. Neste caso, poderíamos perguntar neste momento pelo “ter-
ço do gênero humano” que um dia empolgou Hobsbawm. O
mundo mudou e para muito dos críticos de Marx, não haveria
mais dúvidas sobre sua derradeira morte.

8
Apesar de agora não se acreditar tanto na utopia de uma
sociedade boa, este ainda é um estudo sobre Marx. Isto porque
acredito ser possível encontrar na sua obra, de todo modo, ele-
mentos que podem nos ajudar a pensar a nossa época. É assim
que vejo como apropriadas as seguintes considerações de Leandro
Konder (1992, p. 14) quando discute exatamente o futuro do
socialismo:

Estamos sendo desafiados a reexaminar nosso


patrimônio teórico, nosso instrumental
conceitual. O marxismo se destacou, no interior
do movimento socialista, como principal matriz
filosófica, seu melhor fornecedor de argumentos.
Agora, entretanto, ele não pode se furtar a um
balanço implacável do estado geral de suas insta-
lações: e não pode deixar de indagar incisivamen-
te de si mesmo com que potencialidades ainda
conta e de que energias ainda dispõe.

Assim, assumi aqui o propósito mais amplo de reconhecer


a importância de estudar Marx hoje. Mas, com este ponto de
vista, existe um interesse específico para a escrita desta dissertação
de mestrado: as idéias de Marx sobre a subjetividade. Escolha de
uma questão que parte basicamente de uma aparente contradição
em relação à pertinência do assunto. Marx tratou da subjetivida-
de de modo recorrente em sua obra, apontando para a sua impor-
tância no quadro crítico e explicativo que elaborou sobre a socie-
dade capitalista. Referência que pode ser acompanhada através de
conceitos como estranhamento, alienação, atividade vital consci-
ente, ideologia, fetiche da mercadoria, base e superestrutura ou
determinação do econômico em última instância. Por outro lado,
apesar da importância do problema da subjetividade para uma
reflexão a respeito das características do capitalismo atual, uma
teoria marxista da subjetividade ainda está por ser construída. Uma
falta apontada por vários autores.

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Se procurarmos uma obra de referência, como o Dicioná-
rio do Pensamento Marxista (Bottomore, 1988), vamos encon-
trar no verbete indivíduo, escrito por Steven Lukes (p. 192), a
consideração de que, embora o marxismo como ciência social re-
jeite “explicações elaboradas em termos de propósitos, atitudes e
crenças individuais, preferindo considerá-las, elas próprias, como
matéria a ser explicada”, não dispõe de uma microteoria que per-
mita trabalhar sobre este conjunto de questões. Massimo Canevacci
(s/d, p. 20) diz que a fundamentação materialista da subjetivida-
de foi uma das novidades que explodiu com o ciclo de lutas de
maio de 68 e reitera a conclusão que este empreendimento não
foi ainda sistematizado.
Paulo Silveira, organizador de uma obra dedicada ao tema
(Silveira e Doray, 1989), observa que o debate sobre a subjetivi-
dade no interior do marxismo esteve em recesso no período
stalinista e, mesmo depois, foi recebido com desaprovação por
determinadas correntes, já que era considerado um problema teó-
rico menor. Apesar de admitir que o tema fora, de maneira geral,
testado sob uma perspectiva hipostasiante, isto não seria suficiente
para um abandono da discussão, diz Silveira. Entende inclusive
que a relevância do marxismo não deveria ser considerada exclu-
sivamente como uma explicação sobre as condições objetivas do
desenvolvimento histórico: “a objetividade na história, diz, é
impensável sem uma íntima correspondência com a subjetividade”
(Silveira, 1989a, p. 11/12).
Se Marx em diversos momentos da sua obra refletiu sobre a
subjetividade, por que esta questão não foi satisfatoriamente de-
senvolvida como um firme legado do seu pensamento, considerado a
“principal matriz teórica” do movimento socialista?
O filósofo theco Karel Kosik (1967, p. 91) chamou a atenção
para a necessidade de se distinguir as correntes filosóficas que são
capazes de resolver problemas essenciais do homem e do mundo
mas que, por falta de tempo, concentraram-se em apenas algumas

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questões, deixando para as gerações vindouras a oportunidade de
outros exames, daquelas para as quais a “falta de tempo” é apenas
um argumento que esconde a incapacidade de desenvolver deter-
minados problemas.
Neste estudo, procuro destacar, a despeito das críticas feitas
a respeito da abordagem de Marx sobre a subjetividade, que a
ausência de uma teoria elaborada acerca deste problema no pen-
samento marxista não pode ser creditada ao próprio Marx. Pelo
contrário, a recorrência e a fecundidade com a qual discutiu a
subjetividade humana deveria ser sugestiva e indicativa da rele-
vância do tema, como diria Kosik, para as “gerações vindouras”.
O propósito inicial foi o de percorrer parte significativa da
sua obra, apresentando sua discussão a respeito da subjetividade
cronologicamente, de acordo com a seqüência com a qual foi ela-
borada. Logo admiti esta impossibilidade. Trata-se, é claro, de
uma vasta obra e é com freqüência que se refere à questão. Esta
seria uma árdua tarefa para um estudo característico de uma dis-
sertação de mestrado. Assim, foi preciso decidir sobre os textos de
Marx que seriam apropriados para a minha investigação.
A seleção dos textos foi feita, então, da seguinte forma:
partindo das críticas comumente feitas a Marx ou ao marxismo
em relação às reflexões produzidas sobre a subjetividade, revelou-
se um senso-comum a respeito. Este inventário, que constituirá o
primeiro capítulo, aponta para uma leitura da obra de Marx que
vê na noção de determinação do econômico em última instância e
na concebida relação da base com a chamada superestrutura, uma
grande precariedade para uma teorização que desenvolva de forma
relevante o assunto. Alguns destes críticos enxergam problemas
até em um conceito bastante caro aos marxistas: o de ideologia.
Para a apresentação destas críticas examinei não apenas
autores que mantêm muitas divergências com o marxismo, mas
destaquei também pensadores que compartilham de uma identifi-
cação com a obra de Marx, mas enxergam problemas na elaboração

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do tema. Como o conjunto destas críticas refere-se basicamente
às concepções que Marx desenvolveu em A Ideologia Alemã, O
18 de Brumário de Louis Bonaparte e o Prefácio para a Crítica
da Economia Política, optei por iniciar esta reflexão com estes
três textos. A discussão feita com este material será o segundo
capítulo, com o acréscimo de uma referência a duas cartas de
Engels também pertinentes ao debate suscitado pela referida
leitura.
Depois de ter exposto Marx diante de seus críticos e exami-
nado as objeções que são feitas ao seu pensamento, desenvolvo o
tema estudando dois outros textos que são também referências
importantes para esta discussão: Os Manuscritos Econômicos e
Filosóficos e o primeiro capítulo de O Capital, “A Mercadoria”.
O primeiro texto foi escrito antes dos outros já mencionados.
Portanto, isto alterou o projeto inicial de apresentar minha pes-
quisa de acordo com a seqüência com a qual os textos de Marx
foram escritos. Preferi uma aproximação observando uma conhe-
cida polêmica que aponta para algumas supostas debilidades de
Marx para discutir a subjetividade, conduzindo depois o debate
para a contribuição realizada em dois momentos algumas vezes
considerados distintos da sua obra: O jovem Marx e o Marx da
maturidade.
A seleção do material estudado deixou de lado outros textos
também relevantes para o propósito desta discussão. A Crítica do
Direito do Estado de Hegel, por exemplo. Mas não me pareceu,
para cumprir as condições desta pesquisa, absolutamente preciso
ir tão adiante, abordando minuciosamente o pensamento de Marx.
O objetivo principal foi apontar para as possibilidades de encontrar
na sua obra um registro válido e ainda atual para discutir a
subjetividade humana como uma questão essencial para a
imaginação de uma sociedade comunista e a realização das críticas
que podem e precisam ser feitas para a ultrapassagem do
capitalismo.

12
***

Este trabalho, uma dissertação de mestrado, foi apresenta-


do no curso de Pós-Graduação em Educação da Universidade
Federal Fluminense, no ano de 1994. A banca examinadora foi
composta pelos professores Gaudêncio Frigotto, Luís Antonio
Baptista e Maurício Vieira Martins. Agradeço a estes professores
pela leitura e diálogo a respeito das questões que aqui tratei, apre-
sentando questões que foram de muita relevância para os estudos
que desenvolvi nos anos seguintes. Um agradecimento também
particular ao meu orientador, Gaudêncio Frigotto. Tive o privilé-
gio de ser se aluno. Além de conhecer seus trabalhos publicados,
foi possível aprender também observando sua capacidade de ensi-
nar com a atenção e a emoção generosamente dedicadas aos seus
alunos. Não poderia deixar de agradecer também a CAPES pelo
recebimento de uma bolsa de pesquisa, fundamental para realiza-
ção desta.

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CAPÍTULO I

Neste primeiro capítulo inicio a minha reflexão sobre as


possibilidades de uma teoria da subjetividade em Marx observando
algumas críticas que são feitas ao seu pensamento. Neste caso, são
críticas que incidem sobre a maneira como o tema da subjetividade
foi formulado com o destaque que Marx deu à esfera econômica.
Para isto, apresento um conjunto de autores para obter uma di-
mensão ampliada dessas críticas.
A escolha destes interlocutores foi centrada em três eixos:
primeiramente, em autores que, embora comprometidos com o
marxismo, procuram reconhecer que existem alguns problemas
quando Marx se aproxima da temática da subjetividade. Estes
autores são Leandro Konder, Maurice Godelier e Jorge Larrain.
No segundo eixo, procuramos demonstrar o que pode ser uma
crítica infundada teoricamente, mas que é difundida principal-
mente em razão do seu trabalho político: apresentar o marxismo
como uma matriz teórica já ultrapassada – é o caso de Bárbara
Freitag. Finalmente, um terceiro eixo é formado por um campo
teórico identificado com os acontecimentos relacionados ao ano

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de 68. Das perspectivas políticas que são aí inauguradas, determi-
nadas leituras sobre a produção da subjetividade interpelam o
marxismo. Mencionaremos aqui, as críticas da História das Men-
talidades, de Michel Foucault e de Felix Guattari.

A crítica marxista

Leandro Konder, mesmo diante do desgaste do pensamen-


to marxista nas últimas décadas, é um dos pensadores que ainda
acredita permanecer válido um núcleo dinâmico do pensamento
de Marx. Acredita, porém, que os marxistas não devem deixar de
realizar um exame crítico desta sua base.
O marxismo não poderá mais ser construído como um
dogma, obrigando-se a reconhecer que as lutas políticas já não se
desenvolvem mais, por exemplo, como aquelas que conduziram à
própria Revolução Russa. As sociedades se transformaram e pre-
cisamos ficar atentos às características do capitalismo produzido
no decorrer do século XX. Neste sentido, o pensamento de Marx
deverá ser compreendido em sua historicidade – seu legado deve
ser avaliado sob esta perspectiva.
No que tange especificamente a nossa questão – a subjeti-
vidade humana – Konder faz alguns questionamentos acerca do
conceito de ideologia e da esfera da consciência tal como é discu-
tida quando Marx apresenta os fundamentos da sociedade através
das noções de base e superestrutura.
Para Konder, Marx criou uma concepção de ideologia que
mostrou ser potencialmente rica para compreender a atividade da
consciência humana. Lembra que o filósofo entendia que a
distorção ideológica não se explicava exclusivamente pela mani-
pulação das idéias pelos detentores do poder. Na verdade, trata-se
de um fenômeno mais complexo, radicado na divisão social do
trabalho, na propriedade privada e na alienação da comunidade

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humana. Tal visão difere de determinadas leituras mecanicistas,
onde a situação ideológica é simplesmente entendida como uma
distorção do conhecimento operada de maneira interessada pelas
classes dominantes. Mas considera que Marx fez referências a este
fenômeno de maneira pouco elucidativa. Seria o caso, por exem-
plo, quando impressionado com a invenção da fotografia, Marx
comparou o que seriam as “falsas representações” com a inversão
das imagens que ocorre na câmara escura. Comparação que não
permitiria compreender a complexidade do processo de distorção
da consciência (Konder, 1992, p.33/35).
De qualquer forma, diz terem sido as categorias de base e
de superestrutura, expressas no Prefácio para a Crítica da Econo-
mia Política, os elementos realmente complicadores do conceito
de ideologia.
No Prefácio, na famosa passagem em que Marx fundamenta
a produção da consciência a partir das relações de produção,
Konder registra uma problemática modificação de outra proposi-
ção presente na Ideologia Alemã. Neste manuscrito de 1845/46,
Marx formulou que a vida determina a consciência e não o con-
trário. Na obra de 1859, a proposição se modificou da seguinte
maneira: “não é a consciência dos homens que determina o ser
deles, mas ao contrário, é o ser social que determina sua consciên-
cia”. Aqui, Marx faz a opção pelo conceito de “ser”. Embora mais
abrangente que a noção de “vida”, assume o caráter de “ser soci-
al”. Isto pressuporia não só a vida, como também uma qualidade
determinada de vida: vida “social”. E mais, o “ser social”, que de-
termina a consciência, estaria condicionado pelo modo de pro-
dução da vida material. Para Konder, a modificação permitiu que
a noção de “ser social” delimitasse melhor a fundação da consciência
do que simplesmente a noção de “vida”. No entanto, apesar desta
última noção dar conta de um processo mais amplo e menos preciso,
teria a vantagem de ser uma afirmação que não favoreceria a uma
aplicação esquemática.

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Mesmo entendendo que a conseqüência da tese de que o
“ser social” determina a consciência, considera que a sua associação
com as categorias de “base” e de “superestrutura” concorreram
para um determinado reducionismo da questão (ibidem, p. 36-
38). Para Konder, estas expressões, inspiradas na engenharia e na
arquitetura, estabeleceram uma dinâmica cuja imagem de um
edifício conduz a uma interpretação mecanicista do nexo das idéias
e da consciência com o contexto sócio-econômico. Identifica que
esta tendência já estava presente na Ideologia Alemã, quando Marx
afirmou que a moral, a religião e outras formas ideológicas não
tinham nenhuma história, correspondendo a uma emanação di-
reta das relações materiais que as constituíram. Pois bem, para
Konder, embora Marx tivesse o interesse de garantir o caráter
materialista de sua dialética, as categorias em foco tendiam a crista-
lizar dois campos diferenciados no interior de um mesmo quadro
integrado. “Base” e “superestrutura” espacializariam dois instantes
que se operam no tempo, conclui.
Outro autor marxista que critica estes conceitos derivados
de uma metáfora arquitetônica é o antropólogo Maurice Godelier.
No entanto, observa também que a própria tradução da obra de
Marx favoreceu as dificuldades conceituais em torno da referida
metáfora. Em um artigo intitulado “O Marxismo e as Ciências
do Homem”, diz que a metáfora arquitetônica foi utilizada por
Marx para pensar “as leis de correspondência” entre o modo de
produção de uma sociedade e as estruturas de outras atividades
sociais. Ocorre que franceses, ingleses, espanhóis e outros teriam
traduzido essa metáfora com os termos “infraestrutura” e “supe-
restrutura”, o que conduziu à compreensão de que as
infraestruturas teriam maior realidade do que as superestruturas
– estas no extremo, tornando-se quase realidades ilusórias, como
as idéias religiosas ou as práticas simbólicas. Godelier (1989, p.
365) vê aqui a tentação de transformar o pensamento de Marx
em um materialismo vulgar, admitindo, porém, que algumas for-
mulações do próprio Marx caminham nesse sentido.

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Godelier concorda que a metáfora arquitetônica quer apenas
sugerir que não é possível realizar a construção do teto de uma
casa e de suas paredes sem antes terem construído seus funda-
mentos, indicando que há uma anterioridade cronológica e his-
tórica das transformações do modo de produção sobre as demais
estruturas. Sugere também, que a solidez de uma organização so-
cial está relacionada com a força de seus fundamentos. Contudo,
Godelier (ibidem, p. 366) afirma que, para além dessas idéias, a
metáfora parece se esgotar. Considera ainda que, como se vive na
própria casa e não em seus fundamentos, poderia se afirmar também,
de forma equivocada, que as superestruturas são mais importantes
do que as infraestruturas.
Apesar de todos esses embaraços teóricos, Godelier propõe
desenvolver uma concepção aceitável dos conceitos de
infraestrutura e superestrutura. Assim, procura compreender que
estes conceitos expressariam uma distinção de funções e não de
instituições. Para esta argumentação recorre a sua aplicabilidade
às sociedades pré-capitalistas. Enquanto no modo de produção
capitalista a estrutura econômica deve ser identificada no interior
das empresas, quando historiadores e antropólogos isolam a es-
trutura econômica das sociedades pré-capitalistas, devem buscá-
las nas relações sociais, classificadas como superestruturais. É o
caso, por exemplo, das relações de parentesco, que servem também
como registro para apropriação da natureza, já que determinari-
am, ao mesmo tempo, o controle pelos vários grupos de certas
porções do território tribal e de seus recursos. Neste aspecto, aponta
Godelier, constituiria uma questão teórica para as ciências sociais
descobrir em que condições as relações de produção alteram sua
posição no contexto social, modificando suas formas e efeitos.
Alguns autores procuram uma explicação da seguinte maneira: as
relações de parentesco em determinadas sociedades funcionam
como relações de produção na medida em que o parentesco do-
mina o pensamento e rege o comportamento dos indivíduos nes-
tas sociedades.

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Procurando escapar exatamente de análises deste tipo, inter-
pretada como uma hipótese tautológica, pois ensejam uma explica-
ção no sentido previamente desejado, Godelier tem a hipótese de
que as relações sociais tornam-se dominantes apenas quando funci-
onam concomitantemente como relações de produção. Assim, do-
minariam a reprodução da sociedade ao mesmo tempo em que as
representações que organizam e expressam estas relações domi-
nantes, dominam o pensamento. Aqui se confirmaria parcialmente
a hipótese do papel determinante, em última instância, do pro-
cesso de produção da vida material. (ibidem, p. 376/379)
Mesmo buscando uma operacionalidade satisfatória para
os conceitos de infraestrutura e superestrutura, Godelier, tal como
Konder, está de acordo quanto às dificuldades de se compreender
a relação necessária entre o fundamento de uma sociedade, o modo
como os homens produzem sua existência e outros níveis do teci-
do social, através da metáfora arquitetônica.
Detendo-se também nestas questões, Jorge Larrain observa
que Marx teve consciência de que a idéia do condicionamento da
superestrutura pela base econômica poderia sofrer uma apropriação
reducionista e economicista. Para tal conclusão, recorre a uma passa-
gem de “Teorias da Mais Valia”, onde Marx, ao estabelecer a relação
entre produção material da vida e a produção espiritual, adverte que,
para seu exame, faz-se necessário considerar a produção material,

“(...) não como uma categoria geral, mas em sua


forma histórica definida. Assim, por exemplo,
diferentes tipos de produção espiritual
correspondem ao modo capitalista de produção
e ao modo de produção da Idade Média. Se a
própria produção material não for concebida em
sua forma histórica específica, é impossível com-
preender o que é específico à produção espiritu-
al que a ela corresponde e a influência recíproca
de uma sobre a outra”.

20
Assim, considera que para Marx há uma reciprocidade de
influências, não constituindo o nível superestrutural um mero
reflexo passivo da base econômica: a superestrutura teria uma efi-
cácia própria (Larrain, 1989a, p.27).
Para Larrain, embora Engels tenha tentado livrar estas
noções de uma interpretação mecanicista e determinista, não
conseguiu reverter esta tendência dos estudos marxistas que se
desenvolveram durante a década de 1880, sendo que seus próprios
escritos, em parte, teriam concorrido para tal. Segundo Larrain,
em Engels, as abordagens reducionistas foram motivadas pela
ausência de uma concepção de práxis e pela concepção de uma
dialética da natureza apartada da atividade social. O agravamento
da questão foi também possível porque as duas primeiras gerações
de marxistas não conheceram as obras filosóficas de Marx e a
“Ideologia Alemã”, obras onde a noção de práxis se evidenciava
com vigor. A ausência deste conceito mediador tornava difícil a
imagem espacial da base e da superestrutura. Assim, esta última
pôde então ser compreendida como fenômeno secundário, um
mero reflexo das relações de produção (ibidem, p.28)
Uma vez feitas estas considerações, Larrain aponta as debi-
lidades que também vê nos conceitos em questão. Larrain diz que
a metáfora base/superestrutura tem um significado impreciso. Im-
precisão que acontece por servir, ao mesmo tempo, para descrever
o desenvolvimento de níveis especializados da sociedade (o eco-
nômico, o político, o intelectual) sob o capitalismo, e explicar
ainda como um destes níveis determina os demais. Enquanto, diz
o autor, a metáfora arquitetônica parece ser capaz de servir a pri-
meira perspectiva, não parece adequada para explicar a determi-
nação da política e da consciência social ou a emergência de cada
uma daquelas especialidades como parte integrante da totalidade
social. Isto porque a metáfora arquitetônica constitui uma imagem
estática que reduz a dinâmica de determinadas situações, como a
luta de classes, a um nível específico que está separado dos demais:

21
“assim, a determinação da superestrutura pela base se torna um
modo externo de causação” (ibidem, p.29)
Com a crítica destes autores foi possível identificar uma
insatisfação no interior do próprio marxismo em relação a um
núcleo do pensamento de Marx que tenta relacionar o econômico
com outros campos da vida social, como a consciência, através
das noções de base/superestrutura.

A crítica vulgar do marxismo vulgar

Diante dos equívocos que foram cometidos em nome do


marxismo e do comunismo, algumas críticas serão realizadas
muitas das vezes apenas para atingir o prestígio do pensamento
de Marx. Com freqüência enfatizam a capacidade de extrair de
Marx os frutos bons e eliminar os apodrecidos, simulando ele-
gância e discernimento intelectual.
Uma abordagem deste tipo pode ser acompanhada, por
exemplo, nas críticas feitas por Bárbara Freitag. Segundo a autora
– em artigo intitulado “A Crise do Marxismo” – diante desta
crise, existe a necessidade de repensar o campo teórico fundado
por Marx nos seus aspectos ambíguos e imprecisos, fortalecen-
do aqueles considerados positivos. Freitag acredita que é na pró-
pria obra de Marx que se encontram as raízes da crise do marxis-
mo. Ao que deve ser acrescentado o modo como foi apropriada
por seus seguidores. Depois de registrar núcleos de problemas
nos Manuscritos, no Manifesto Comunista e na Ideologia Ale-
mã, questiona em O Capital, entre outros pontos, a tese da
determinação, em última instância, do econômico sobre o polí-
tico, jurídico, social e ideológico (Freitag, 1993, p. 226/228).
Afirma que esta tese - “tese de monocausalidade” – já foi contes-
tada enfaticamente por Max Weber e Vilfredo Pareto. Weber
havia demonstrado que as idéias religiosas podem fundamentar

22
certas práticas econômicas. A emergência do capitalismo deve
ser compreendida pela vocação ao trabalho, sentimento que es-
teve na base das reformas protestantes conjuntamente com ou-
tros fatores. Já Pareto havia definido que a hegemonização do
modo de produção capitalista deve-se a uma “determinação
sistêmica” da economia, esta compreendida como um conjunto
integrado de variáveis sociais, políticas, ideológicas, geográficas e
conjunturais (ibidem, p.228).
Aqui, a tese da determinação do econômico em última ins-
tância é identificada como uma “tese monocausal”. Mono desig-
na único, isolado, idéias que não expressam de modo algum uma
situação complexa onde se estabelece um determinante em últi-
ma instância. Se existe a admissão que o econômico é o
determinante em última instância, é porque há também outros
elementos constituintes enquanto se sobressai o elemento
definidor. Trata-se de uma idéia que merece ser examinada e
esclarecida em vários aspectos, mas que de modo algum pode ser
reduzida à idéia de uma determinação única.
Parece-nos também inadequado refutar determinada hipó-
tese simplesmente recorrendo a conclusões alcançadas por outros
pensadores, no caso Max Weber e Vilfredo Pareto. Estas partiram
de uma visão de mundo diferente daquela de Marx, inclusive com
argumentos antitéticos ao seu. Reconhecer isto, de modo algum
invalida a obra que também produziram. Mas o fato é que as
conclusões alcançadas através de campos teóricos distintos não
podem ser simplesmente apresentadas para a refutação um do
outro. Melhor seria Freitag ter identificado inconsistências, con-
tradições no modo de Marx fundamentar a noção de determinante
em última instância, enfim, falhas em sua formulação e depois
sim, oferecer outras hipóteses que pudessem esclarecer mais acer-
ca do objeto em estudo. Ao invés disso, Freitag reduz tudo a uma
tese de monocausalidade e à fala de uma superioridade de outros
autores na questão.

23
As veias abertas de 68

Hoje não podemos deixar de admitir que, ao longo do último


século, o marxismo foi utilizado de modo dogmático. Não se pode
deixar de reconhecer também que muitas foram as práticas condená-
veis utilizadas em nome do socialismo. O pensamento marxista não
atravessou intato os equívocos e graves erros cometidos. A capacida-
de de compreender a sociedade contemporânea e suas determinações
esteve comprometida com toda essa herança terrível. O marxismo
parece ter envelhecido incapaz de refazer sua leitura do mundo e
propor novas alternativas políticas para as revoltas sociais.
Por outro lado, em um determinado momento da História
do século XX, uma generosa exposição de revoltas e inquietações
demonstrou para os marxistas a atualidade dos conflitos e a ne-
cessária reinvenção do pensamento social, oportunidade para ser
influente e contemporâneo nas lutas. A questão pode agora ser
vista da seguinte maneira: seguimos fazendo o jogo da contra-
revolução ou demonstramos que estamos em condições de enten-
der as novas faces da luta de classes. Os acontecimentos de 1968
parecem revelar a discrepância destas posições.
Sessenta e oito foi um pesadelo. Quando, no auge da guerra
fria, tudo indicava que o curso da história estava submetido apenas
aos quadros de referência dos dois blocos hegemônicos e a nossa
sorte parecia estar sujeita à vitória do comunismo soviético, acon-
tece aquela novidade. Em várias cidades do mundo capitalista
desenvolvido – Paris, Berkeley, Berlim e também no Japão – jovens
estudantes e intelectuais se insurgiram. Em cada lugar existia uma
motivação política imediata. Em comum, assinalando um quadro
histórico definido, uma rebelião contra as montagens do poder
que faziam convergir para os variados aspectos da vida os interesses
particulares do capital e dos atores sociais convencionais. E também
uma recusa em articular-se com os meios políticos tradicionais:
os partidos e os meios de organização existentes.

24
Tal movimento não fazia parte do programa político da
esquerda. O enfrentamento à sociedade burguesa, ensinavam os
manuais do marxismo-leninismo e os camaradas do partido, de-
veria ser conduzido pela classe potencialmente revolucionária,
aquela que é expropriada dos meios de produção e cotidianamente
tem alienado um tempo-valor de seu trabalho. Pessoas conscientes
desta exploração e organizadas pelo partido revolucionário. Daí a
fúria de George Marchais:

“Não satisfeitos com a agitação que conduzem


nos meios estudantis, agitação que contraria os
interesses das massas de estudantes e favorece as
provocações fascistas, eis que estes pseudo-revo-
lucionários emitem agora a pretensão de dar li-
ções ao movimento operário. Cada vez mais são
vistos nas portas das fábricas ou nos centros dos
trabalhadores imigrados, distribuindo panfletos
e material de propaganda (...). Trata-se de certos
grupúsculos anarquistas, trotskistas, maoístas,
etc, compostos em geral de filhos de grandes
burgueses e dirigidos pelo anarquista alemão
Cohn Bendit” (Apud., Matos, 1989, p. 58/59).

Uma agitação profana, se pensarmos nos evangelhos. Em-


bora o capitalismo do pós-guerra mantivesse a tônica do processo
de acumulação de capitais organizada em torno da exploração do
trabalhador, a própria necessidade de ampliar este sistema exigia
que todo o meio social estivesse submetido aos sentidos do capi-
tal. Portanto, não se tratava apenas de manter sob controle a dita
força de trabalho, mas sim, fincar raízes profundas onde existisse
atividade humana. O peso da exploração capitalista não se fazia
meramente presente na brutal exploração da mais-valia absoluta
e na disciplina do trabalho. Na verdade, é em todas as dimensões
da vida que o capital mostrava-se interessado. É com esta
pertinência que diz o seguinte panfleto parisiense:

25
“Freqüentemente se coloca a questão: por que
os estudantes, que são privilegiados, filhos de
burgueses, se revoltam com tal violência? Esta
questão, ao mesmo tempo em que silencia o fato
de que muitos estudantes são obrigados a traba-
lhar para prosseguir os estudos, recobre o erro
fundamental: a idéia de que só a miséria materi-
al justifica a revolta e de que um homem que
tem tudo de que precise (no plano material) deve
se encontrar igualmente satisfeito no plano mo-
ral” (Apud, Matos, 1988, p. 38).

Eis aí uma bela resposta às provocações do dirigente do PC


francês, George Marchais. Ligado a uma concepção de luta de
classes e revolução já ultrapassadas para o capitalismo avançado, o
marxismo, ou pelo menos um determinado marxismo, não ofere-
cia uma leitura histórica condizente com a realidade verificada
em uma parte significativa do mundo. Não se trata de afirmar
que em maio de 68 encontramos um novo paradigma revolucio-
nário, mas apenas reconhecer que seus acontecimentos aponta-
vam para novos horizontes políticos, onde a insatisfação e amar-
gura de viver no capitalismo extrapolavam o chão da fábrica e
alcançavam a condução da vida das pessoas.
Diante de um uso freqüentemente ruim dos textos de Marx,
outras idéias prosperaram, polemizando com os marxistas. Con-
siderei para os objetivos específicos desta discussão, a importante
contribuição da História das Mentalidades e as objeções feitas
por Michel Foucault e Félix Guattari.
Nos anos que se seguiram a 1968, nos debates sobre a
historiografia, surge uma terceira geração da chamada Escola dos
Annales. Para o historiador Peter Burke, ao contrário dos perío-
dos de Lucien Febvre e Ferdinand Braudel, respectivamente sig-
nos da primeira e segunda geração, há uma dificuldade muito
grande de se definir o perfil daquela geração, já que ninguém

26
dominou o grupo no referido período. De qualquer forma, a His-
tória das Mentalidades constituiu-se numa de suas expressões. Não
que fosse de todo negligenciada na época de Braudel, mas foi,
sem dúvida, marginal. Já no decorrer dos anos 60 e 70, alguns
historiadores transferem sua atenção da base econômica para a
superestrutura: na expressão famosa cunhada por Le Roy Ladurie,
transfere-se do “porão ao sótão” (Burke, 1992, p.79/81).
O contexto político do final dos anos 60 e 70 e, muito
particularmente, o ano de 1968, é emblemático para a História
das Mentalidades, já que os problemas por ela colocados e seus
objetos de pesquisa – uma atenção muito especial sobre os múlti-
plos aspectos do cotidiano – estavam em sintonia com as lutas
políticas que emergiram naqueles anos. Uma historiografia tradi-
cional, demasiadamente centrada na esfera econômica enquanto
tal, ou priorizando contextos em torno do universo do trabalho,
parecia não dar conta de outras questões também importantes.
Existiam dimensões da vida humana que estes historiadores pare-
ciam desconhecer. Jacques Le Goff, assim dimensionou a erup-
ção de um novo campo aberto:

“(...) no espelho que a economia estendia às socie-


dades, não se via senão o pálido reflexo de esque-
mas abstratos, não de aparências, não de vivos res-
suscitados. O homem não vive somente de pão, a
história não tinha mesmo pão; ela não se alimen-
tava senão de esqueletos agitados por uma dança
macabra de autômatos. Era necessário dar a esses
mecanismos descarnados o contrapeso de outra
coisa. Era necessário descobrir na história essa par-
te. Essa outra coisa, essa outra parte, eram as men-
talidades” (Le Goff, 1976, p.71).

Tal como em toda a geração da História Nova, no interior


mesmo do grupo que teve as mentalidades no centro de seus estudos,

27
deve-se observar uma certa heterogeneidade. Nem todos os seus
adeptos remetem as mentalidades ao mesmo estatuto teórico. Para
Paul Veyne:

“(...) se entendermos por História das Mentali-


dades uma história que deixou de tratar dos pro-
blemas em termos de infra e superestrutura, se
trata então de história das mentalidades. Na
medida em que deixa-se de explicar o todo, é
história das mentalidades, tudo é arbítrio histó-
rico” (Veyne, apud, Malerba, 1988, p. 60).

É verdade que os historiadores das mentalidades rejeita-


vam situar os aspectos das mentalidades em termos de “infra e
superestrutura”. Recusam qualquer compreensão de seus objetos
de estudo meramente enquanto reflexo das determinações da base
econômica. Contudo, nem todos participam de uma concepção
em que a consciência (e mesmo o inconsciente), os gestos e as
atitudes estejam numa posição de “arbítrio histórico” – desliga-
dos absolutamente do tecido social.
Diz Le Goff, que a História das Mentalidades, criada como
reação ao domínio exercido pela história econômica, não pode
ser “capturada” por um marxismo vulgar, que vê as superestrutu-
ras originadas mecanicamente da base econômica, fornecendo
argumentos para a sua sobrevivência. No entanto, isto não signi-
fica que mentalidades encontram-se desligadas das estruturas so-
ciais (Le Goff, op. Cit., p.77/78).
Michel Vovelle, historiador marxista que faz História das
Mentalidades, rejeita também qualquer história tecida “sobre ca-
madas de ar”. Contudo, compreende que Marx mostrou-se um
tanto vago na elaboração do problema da determinação do eco-
nômico. Ao responder às acusações de reducionismo, feitas sobre
A Ideologia Alemã, disse Marx:

28
“Em todas as formas de sociedade, é um modo de
produção determinado e as relações por ele engen-
dradas que determinam todos os outros modos de
produção e as relações engendradas por estes últi-
mos, como também seu nível e sua importância. É
como luz geral onde estão mergulhadas todas as
cores e que lhes modifica as tonalidades particula-
res. É como um éter particular que determina o
peso específico de todas as formas de existência que
dali emergem” (Marx apud Vovelle, 1991, p. 21).

Para Vovelle, tem razão Pierre Villar quando afirma: esse


não é “o melhor de Marx” (Vovelle, 1991, p.11).
As temáticas sobre as quais a História das Mentalidades se
debruça, tais como a cultura popular, o folclore, os desvios margi-
nais, a loucura, as relações familiares, a infância, a sexualidade, o
amor, o medo ou atitudes frente à morte, não são necessariamen-
te temas menores acerca do homem e do mundo. Os aconteci-
mentos de 1968 permitiram enxergar com uma clareza maior que
existe uma conseqüência política emergente nos aspectos aparen-
temente (e só aparentemente) menos graves da vida humana.
Descartando, evidentemente, uma história das mentalidades “so-
bre camadas de ar”, de “arbítrio histórico”, esta corrente
historiográfica em muito ajudou a denunciar as deficiências de
grande parte do pensamento marxista difundido. É por isso que
se verifica um diálogo entre a História das Mentalidades e os his-
toriadores marxistas, mas não sem algumas surpreendentes co-
branças. Pierre Villar chegou a indagar Vovelle sobre a possibili-
dade deste estudar os processos de tomada de consciência entre as
massas, problemática mais coerente para um historiador marxis-
ta, no lugar dos temas que prevaleciam no seu interesse (ibidem
p.10): a morte ou a festa, por exemplo.
Vovelle vê a necessidade, entre os historiadores marxistas e os
historiadores das mentalidades, de uma precisão maior na utilização

29
dos conceitos ideologia e mentalidades. Admite dificuldades, já
que tratam-se de conceitos oriundos de heranças e tradições dife-
rentes. Se agora parece óbvia toda a problemática ao redor do
conceito de ideologia, já que são tantas as leituras que fogem da
simples noção de “falsa consciência”, Vovelle adverte que o con-
ceito de mentalidades ainda não tem um sentido comum entre
todos os historiadores que com ele trabalham (ibidem, p. 14).
Preocupação condizente com a seguinte indagação de Le Goff:
“pergunta-se se a expressão recobre uma realidade científica, se
possui uma coerência conceitual, se é epistemologicamente
operacional” (Le Goff, op. cit., p. 68). As mentalidades parecem
cobrir uma experiência da subjetividade que não é posta em evi-
dência quando se utiliza o conceito de ideologia: “Ele integra o
que não está formulado, o que permanece aparente como não
significante, o que se conserva muito encoberto a um nível das
mutações inconscientes” (Vovelle, op. cit., p. 19; grifo meu).
Os historiadores das mentalidades procuram destacar as-
pectos da subjetividade que tenham escapado às abordagens mais
tradicionais da historiografia marxista. Um destes aspectos foi
enunciado por Ernest Labrousse da seguinte maneira: “o social é
mais lento que o econômico e o mental mais ainda que o social”
(apud Le Goff, 1976, p.69). O que se procura pôr aqui em evidência
é uma estrutura mental coletiva que muda muito lentamente na his-
tória. A seguinte situação narrada por Le Goff parece ilustrativa. Carlos
V, da França, sempre foi considerado pelos historiadores como um
grande conhecedor de economia, reconstituindo as finanças do rei e
fazendo contra os ingleses uma guerra econômica. Ocorre que, no
leito de morte, aboliu uma parte dos impostos. Com o medo da
morte, não quis “aparecer no julgamento carregado do ódio de seus
súditos”. Ora, prevaleceu sobre sua ideologia política, uma mentali-
dade própria do seu tempo (ibidem, p.69/70).
Concordo aqui com a opinião do historiador Guy Bois (s/
d., p.15), que não vê no fato das mentalidades manterem por sua

30
inércia, relações complexas com as estruturas sociais razões para
os marxistas não realizarem seu estudo. Vovelle (op. cit., p. 12/
13) admite a possibilidade de que o medo de enveredarem pelo
economicismo, e aí terem de suportar críticas rejeitando seus traba-
lhos, tenha levado historiadores marxistas à trilha de uma prudência
que os afasta de temas como a história religiosa, das mentalidades
e das sensibilidades.
Konder reconhece o primado de Marx no que se refere à
estruturação das relações de produção naquilo que Ferdinand
Braudel conceituara como longa duração; no entanto, entende
que Marx não deu a devida importância aos movimentos culturais
cujos efeitos são mais lentos. Sua concepção de ideologia lhe per-
mitira abordar o “imaginário coletivo” com fecundidade, porém
tal aproveitamento teria sido prejudicado pela tendência em com-
preender os fenômenos culturais meramente como “acréscimos”
às estruturas sociais. Konder concorda que há na obra de Marx
elementos que comprovam sua atenção quanto à riqueza contra-
ditória do campo do imaginário coletivo. Entretanto, afirma
Konder, o quadro cultural de seu próprio século não lhe fornecia
instrumentos conceituais para o aprofundamento destes fenômenos.
A capacidade de se compreender determinado problema em sua
extensão dependeria da maturidade que o mesmo revela praticamen-
te. Certas nuanças da subjetividade humana e conflitos oriundos da
vida íntima dos indivíduos eram incomuns à percepção no seu
tempo (Konder, op. cit., p.50/61).
Michel Foucault, em uma entrevista feita com Alexandre
Fontoura, onde discute algumas questões sobre a relação saber-
poder, também procura expor as dificuldades conceituais que teri-
am origem nas noções de determinação do econômico em última
instância, de infra e superestrutura e no conceito de ideologia.
Ao situar por volta dos anos 50-55 uma problemática rela-
tiva ao estatuto político da ciência e às funções ideológicas a ela
remetidas, Foucault procura contextualizar em torno das noções

31
de poder e saber, seu interesse pela prática psiquiátrica. Embora a
psiquiatria estivesse muito claramente relacionada aos efeitos de
poder e saber, a questão não interessou àqueles para quem era
colocada. Haveria três razões para este desinteresse. Em primeiro
lugar, os intelectuais marxistas franceses que seguiam os ditames
prescritos pelo PC estavam preocupados em obter o reconheci-
mento das instituições universitárias e do establishment, assim,
suas questões deveriam ser as promovidas por tais instituições. A
psiquiatria e a medicina não construíam problemas nobres neste
ambiente. Outro motivo decorria da situação do stalinismo, que
não se mostrava permeável aos efeitos da criação e limitava-se à
repetição de tudo já visto. Não havia conceitos desenvolvidos para
tratar das questões políticas presentes na medicina e na psiquiatria.
Os marxistas mantinham-se herdeiros de uma tradição cujo dis-
curso era ainda o do século XIX.
Diante do silêncio recebido, Foucault paga seu tributo ao
ano de 1968. Apesar do PC francês e da tradição marxista, as
questões que o incomodavam ganharam relevo diante da abertura
política promovida naquele ano. Finalmente, uma terceira razão
para o impedimento de suas questões: pergunta se não haveria
mesmo, por parte dos intelectuais franceses, quer do PCF, quer a
ele vinculados, uma resistência em colocar o problema da reclusão
– enfim, questões políticas postas pela prática psiquiátrica. Mesmo
que, por volta dos anos 55-60, nem todos tivessem conhecimento
da amplitude do Gulak, pressentiam que era uma temática neces-
sariamente evitável (Foucault, 1986, p.1/6).
Para Foucault, os marxistas estavam pouco preparados para
reconhecer uma instância do poder que fosse mais ampliada do
que uma problemática centrada no “aparelho de estado”. Desco-
nheciam como o poder se exercia concretamente, sua mecânica
produtiva. Uma interpretação mais fecunda foi apresentada a partir
de 68: “a partir das leituras cotidianas e realizadas na base com
aqueles que tinham que se debater nas malhas finais da rede do

32
poder”. Acha possível que uma formação intelectual que estimu-
lava análises a partir de conceitos com o econômico em última
instância, ideologia e superestruturas/infraestruturas, tenha cons-
tituído um obstáculo à formulação destas questões relacionadas
ao poder e ao saber (ibidem, p.3).
Precisamente em relação ao conceito de ideologia, Foucault
identifica três motivos através dos quais torna-se de difícil utiliza-
ção. Primeiramente, porque este conceito sempre remete a uma
situação de oposição à verdade. Para Foucault, o problema não
seria o de revelar o quanto de verdade há em um discurso, mas
compreender como historicamente se produz no seu interior um
efeito de verdade. O segundo motivo seria o fato de referir-se
sempre a um sujeito. O último motivo seria sua posição secundá-
ria, em nível superestrutural, diante da determinação econômica
(ibidem, p.7).
Neste quadro, Foucault reclama a necessidade de se procurar
apreender os efeitos do poder que se fazem presentes nos
enunciados científicos, destacando a emergência daquilo que
chama de intelectual específico. Em oposição a um intelectual
cuja proposta é a de ser portador de uma universalidade semelhante
àquela ofertada historicamente ao proletariado – o intelectual que
tem a pretensão de intervir com uma competência muito ampliada,
dono da verdade e da justiça – Foucault propõe um trabalho
político mais determinado, cuja relação entre teoria e prática
proporcionaria uma consciência mais concreta e imediata das lutas.
O nível de atuação é aquele mesmo das condições de seu trabalho,
de suas vidas: a moradia, o hospital, o asilo, o laboratório, as
relações familiares ou sexuais, exemplifica. O que Foucault
pretende concretizar é uma atuação política nas instâncias mesmas
onde o poder atribui sentido de verdade a um discurso. Cada
sociedade estabelece seu próprio regime de verdade, criando os
dispositivos de validação, de distinção dos enunciados verdadeiros
e falsos.

33
Foucault não propõe uma valorização do especialismo no
político. Partindo de uma intervenção em uma das diferentes ati-
vidades onde deve assumir responsabilidades, como físico,
geneticista, farmacologista, etc, os intelectuais devem estabelecer
uma politização global. A premissa para esta articulação é que
este combate local adquire um significado geral, já que o regime
de verdade que passa a ser questionado é essencial para o funcio-
namento pretendido da sociedade. Assim, não se trata de revelar
os conteúdos ideológicos vinculados pela ciência, mas “saber se é
possível constituir uma nova política da verdade”. O que deve ser
modificado, afirma Foucault, não é a “consciência” que os indivíduos
assumem, mas “todo o regime político, econômico, institucional
de produção da verdade”. Conclui afirmando que, de modo al-
gum se tratam de registros ideológicos ou superestruturais e sim,
de uma circunstância mesmo da formação e desenvolvimento do
capitalismo (ibidem, p.8/14).
Para concluir esta apresentação das críticas mais pregnantes
feitas a Marx e ao marxismo quando tratam da subjetividade, lem-
bro ainda o pensador francês Félix Guattari. Também herdeiro
das lutas políticas postas em evidência em 68, Guattari aponta
para a importância política da subjetividade diante de um capita-
lismo que, cada vez mais, investe nas diferentes relações mantidas
pelos homens como forma de dominação da vida: a família, a
sexualidade, o trabalho, o lazer, etc.
Para Guattari, alguns conceitos já bastante vulgarizados pelo
marxismo não ajudam a compreender adequadamente como fun-
ciona o capitalismo. Colocamos aqui, novamente em questão, os
conceitos de ideologia, superestrutura e determinante em última
instância. Propõe, em lugar da utilização do conceito de ideologia,
uma teorização acerca da produção da subjetividade. Ideologia
remeteria a uma circunstância muito limitada à esfera da repre-
sentação, enquanto toda a produção da subjetividade veiculada
pelo que chama de Capitalismo Mundial Integrado (CMI) implica

34
uma situação mais abrangente: uma modelização acerca do com-
portamento, da sensibilidade, da percepção, da memória, das
relações sociais, das relações sexuais, fantasmas imaginários, etc
(Guattari, 1986, p.27/28). Também não admite que a produção
de subjetividade seja remetida à noção de superestrutura, o que a
tornaria dependente das estruturas de produção. Pelo contrário, a
produção de subjetividade seria mesmo matéria-prima do desen-
volvimento das forças produtivas mais elevadas: revoluções cientí-
ficas, biológicas, ciência do robô, etc. Para Guattari, se os marxistas
não compreenderam a questão da subjetividade porque entupidos
de dogmatismo teórico, o mesmo não teria acontecido com as
forças sociais que administram o capitalismo (ibidem, p. 26).
Ao contrário de uma tradição marxista que sempre subme-
teu muito mecanicamente a subjetividade à fundação econômica,
Guattari propõe reconhecer no interior daquilo que Marx
conceituou como infraestrutura uma presença cada vez maior dos
processos de subjetivação (ibidem, p. 27/28). Esta perspectiva
dinamiza uma relação cuja imagem do edifício na metáfora
arquitetônica parece não suportar. Assim, considera que nos mais
modernos ramos da indústria desenvolve-se um trabalho que é, a
um só tempo, material e semiótico. Nesse último domínio há
uma pressuposição que abrange o campo social como um todo.
Anterior à intervenção do aprendizado profissional há a escola
primária, a vida doméstica, a imagem televisiva, enfim, todo um
“ambiente maquínico”. Daí a compreensão de que a produção de
subjetividade não tem exclusivamente o sentido de controlar as
relações sociais e as relações de produção, constituindo-se mais
amplamente como matéria-prima para toda e qualquer produção
(ibidem, p. 27/28).
Buscando reconhecer nos processos de subjetivação uma
qualidade determinante no movimento de acumulação capitalis-
ta, Guattari chega a reescrever alguns conceitos fundamentais da
Economia Política. O lucro passa a ser, sobretudo, produção de

35
poder subjetivo. O consumo de um produto industrial, como um
walkman, está atravessado por uma relação com a música que, de
modo algum, é natural. Quando se produz um objeto como este,
o que a indústria faz é inventar um universo musical – trata-se de
criação de uma nova percepção sobre a própria música (ibidem,
p.32/33).
A noção de mais-valia também precisa ser rediscutida, se-
gundo Guattari. Em primeiro lugar, recusa a categorização de “tra-
balhador coletivo” da forma como Marx teria enunciado. Resul-
tante de um cálculo feito a partir do “trabalho social médio”, se
constitui como um personagem sem substância, abstrato, de or-
dem meramente estatística. Marx pretendia descaracterizar as di-
ferenças individuais no cálculo do valor-trabalho, mas para
Guattari, tal proposta poderia ser correspondente a um registro
contábil do capitalismo, mas não explicitaria seu funcionamento
concreto sob a indústria moderna:

“A força do trabalho se apresenta sempre através


dos agenciamentos da produção concreta,
mesclando intimamente as relações sociais nos
meios de produção, o trabalho humano ao tra-
balho da máquina” (Guattari, 1987, p. 193).

Em relação ao tempo-trabalho que é expropriado pelo ca-


pitalista, também discorda que possa concretamente
dimensionar, na qualidade de parâmetro, a exploração sofrida
pelo trabalhador.

“Sabe-se hoje que gestão do capital de conheci-


mento, o grau de participação na organização
do trabalho, o espírito ‘da casa’, a disciplina co-
letiva, etc, podem igualmente adquirir uma im-
portância determinante na produtividade do
capital” (ibidem, p. 193).

36
Lembra que Marx já havia, nos Grundrisse, assinalado que
o conjunto dos conhecimentos tenderiam a configurar-se como
uma “potência produtiva imediata”. Mas, por outro lado, se Marx
imaginava que com o desenvolvimento alargado da grande in-
dústria, a criação da riqueza estaria cada vez menos dependente
do tempo e da quantidade de trabalho, Guattari entende que o
desaparecimento da medida do tempo de trabalho não será acom-
panhado pelo desaparecimento do valor de troca. Se o capitalis-
mo pode prescindir do primeiro, somente a superação deste siste-
ma social levaria ao desaparecimento do segundo. A crença de
Marx é que deixando de existir a oposição trabalho-lazer, os tra-
balhadores teriam o controle do sobre-trabalho. Mas o que se tem
verificado é que a diminuição do tempo de trabalho necessário
tem sido acompanhada por uma maior penetração do capital no
conjunto da vida das pessoas. Bastaria olharmos os modos de vida
urbanos, os meios de comunicação de massa ou a indústria do
lazer. O trabalhador pode permanecer um menor tempo de sua
vida na fábrica ou em qualquer outro trabalho, mas no resto de
seu tempo, pertencerá a uma sociabilidade cuja expressão será a
que melhor convier ao capital (ibidem, p. 194).
Assim, o capitalismo não subtrai do trabalhador apenas um
acréscimo sobre o tempo de trabalho necessário equivalente ao
valor da sua força de trabalho. Trata-se, sim, em troca de um salá-
rio, de efetuar um domínio bem mais ampliado da vida das pessoas.
Mesmo um trabalho muito simples, como vigiar um dispositivo
de segurança, teria a suposição prévia de um capital semiótico,
cujos componentes podem ser o conhecimento da língua, os cos-
tumes, a hierarquia, etc. O capitalismo parece prescindir cada vez
mais da relação física do trabalhador com as forças produtivas, e
depender cada vez mais de métodos de sujeição em que a subjeti-
vidade exerce um notável papel (Guattari, 1987, p.194/195).
Deste modo, Guattari recusa qualquer compreensão da sub-
jetividade nos domínios de uma natureza humana. O que existem

37
são processos de subjetivação de feição industrial, “maquínica”,
uma subjetividade fabricada e consumida. Enquanto nos siste-
mas sociais mais tradicionais é produzida em instâncias mais
territorializadas, como aquelas vinculadas a uma corporação de
profissionais ou de uma casta, atualmente sua produção se dá em
níveis mais desterritorializados, em escala internacional (idem,
1986, p.25). Outra importante conclusão que procura alcançar é
a descolagem dos conceitos de indivíduo e subjetividade. De
maneira alguma, admite, esta poderia ser centrada em um indiví-
duo. Seu registro é o do social:

“Implicam o funcionamento de máquinas de


expressão que podem ser tanto da natureza
extrapessoal, extra-individual (sistemas
maquínicos, econômicos, sociais, tecnológicos,
ecônicos, ecológicos, etológicos, da mídia, en-
fim, sistemas que não são mais imediatamente
antropológicos), quanto de natureza infra-hu-
mana, infrapsíquica, infrapessoal (sistemas de
percepção, de sensibilidade, de afeto, de desejo,
da representação, das imagens, do valor, modos
de memorização e de produção de idéias, siste-
mas de inibição e de automatismos, sistemas
corporais, orgânicos, biológicos, fisiológicos,
etc)” (ibidem, 31).

Uma dimensão política muito importante que anuncia


Guattari é a perspectiva de que o indivíduo pode não se submeter
aos processos hegemônicos de subjetivação, reapropriando-se de
seus elementos e abrindo um campo de singularização. Assim,
diante da grave importância destes processos para acumulação
capitalista, os embates sociais não se limitariam à reapropriação
dos meios de produção, mas estariam também, num espaço de
luta, os meios de expressão política (ibidem, p.33).

38
Vimos como autores com diferentes referenciais teóricos
identificam uma insuficiência no modo como tradicionalmente a
subjetividade foi problematizada pelos marxistas. São críticas lar-
gamente dirigidas às próprias proposições de Marx. Mas, por ve-
zes, torna-se difícil distinguir estas críticas das objeções feitas ao
modo como o seu legado fora assumido e desenvolvido no decor-
rer do século XX. Deste modo, proponho a seguinte questão a ser
desenvolvida no próximo capítulo: Os fundamentos presentes nos
textos de Marx demonstram uma irremediável incapacidade para
fornecer elementos para uma teoria sobre a subjetividade?

39
40
CAPÍTULO II

No capítulo anterior apresentei a crítica de autores de diferen-


tes filiações teóricas dirigidas a uma visão do marxismo a respeito
da forma como o campo da subjetividade humana é fundamentado
através da relação de necessidade entre infra-estrutura e superes-
trutura, bem como através da determinação do econômico em
última instância. Aqueles autores que se distinguiram, sobretudo
a partir das questões teóricas e políticas postas pelos aconteci-
mentos de 68, apontam ainda para a precariedade do conceito de
ideologia.
Tendo em vista tais problemas apresentados, começo a dis-
cussão acerca da possibilidade de encontrarmos na obra de Marx
elementos para uma teoria sobre a subjetividade, exatamente pe-
los textos onde os conceitos postos em questão são desenvolvidos
e particularmente lembrados. Estes textos são: O “Prefácio” do
texto Para a Crítica da Economia Política, O 18 de Brumário de
Louis Bonaparte e A Ideologia Alemã. Ainda no âmbito desta
problemática, vou citar algumas cartas de Engels que acredito ter
relevância para esta discussão.

41
Acredito que, em parte, as críticas que são dirigidas ao pen-
samento de Marx estão muito atravessadas pelo destaque que de-
terminada concepção sobre a sua obra alcançou no decorrer do
século XX. As objeções que são feitas a determinadas formulações
de Marx não são meramente críticas internas aos textos referentes
– são também críticas ao efeito que estes escritos adquiriram no
decorrer da história do socialismo, quer seus críticos estejam ou
não conscientes deste processo. Por isso a importância de se recu-
perar o interesse pela leitura da obra de Marx

A metáfora arquitetônica

A principal referência a respeito da elaboração que Marx


faz sobre a relação entre a base econômica e superestrutura é o
“Prefácio” escrito Para a Crítica da Economia Política. Vejamos,
em primeiro lugar, a trama destas idéias como são narradas pelo
autor. Escrito em 1859, depois de expor de modo breve o conteú-
do da obra, Marx esboça seus estudos na área da Economia Polí-
tica. Nas suas palavras, “resultado duma investigação conscienci-
osa e de muitos anos” (Marx, 1987, p.32). Trata-se de um breve
memorial onde refaz sua trajetória intelectual. Lembra que seu
estudo universitário foi a jurisprudência. Conta que começou a
ocupar-se de questões econômicas quando, nos anos de 1842-43,
durante os debates da Dieta Renana sobre o roubo da lenha e o
parcelamento da propriedade fundiária, teve a sua atenção dirigida
para os chamados interesses materiais. Reconheceu que o desejo
de “ir à frente”, como diz, não raro ocupava o lugar do conheci-
mento acerca das questões que lhe ocorriam.
Com o intuito de dissipar as dúvidas que assediavam seu
espírito, publica Para Crítica da Filosofia do Direito de Hegel:
Introdução, em 1844, nos Anais Franco-Alemães. Afirma que
esta investigação teve como resultado a compreensão de que as
relações jurídicas, tais como formas de Estado, não podiam ser

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compreendidas nem a partir de si mesmas, nem a partir do “de-
senvolvimento geral do espírito humano”. Pelo contrário, elas se
enraízam nas relações materiais da vida (ibidem, p. 29). É com
esta compreensão que procura o estudo da Economia Política:

“O resultado geral a que cheguei e que, uma vez


obtido, serviu-me de fio condutor nos meus es-
tudos, pode ser formulado em poucas palavras:
na produção social da própria vida, os homens
contraem relações determinadas, necessárias e
independentes de sua vontade, relações de pro-
dução estas que correspondem a uma etapa de-
terminada de desenvolvimento das suas forças
produtivas materiais. A totalidade destas rela-
ções de produção forma a estrutura econômica
da sociedade, a base real sobre a qual se levanta
uma superestrutura jurídica e política, e à qual
correspondem formas sociais determinadas de
consciência. O modo de produção da vida ma-
terial condiciona o processo em geral de vida
social, político e espiritual. Não é a consciência
dos homens que determina o seu ser, mas, ao
contrário, é o seu ser social que determina sua
consciência. Em uma certa etapa de seu desen-
volvimento, as forças produtivas materiais da
sociedade entram em contradição com as rela-
ções de propriedade dentro das quais aquelas até
então se tinham movido. De formas de desen-
volvimento das forças produtivas estas relações
se transformam em grilhões. Sobrevém então
uma época de revolução social. Com a transfor-
mação da base econômica, toda a enorme supe-
restrutura se transforma com maior ou menor
rapidez. Na consideração de tais transformações
é necessário distinguir sempre entre a transfor-
mação material das condições econômicas, que

43
pode ser objeto de rigorosa verificação da ciência
natural, e as formas jurídicas, políticas, religi-
osas, artísticas ou filosóficas, em resumo, as
formas ideológicas pelas quais os homens to-
mam consciência deste conflito e o conduzem
até o fim” (Marx, 1987, p. 29-30).

Pois bem, esta é a passagem sobre a qual tantas críticas pe-


sam sobre Marx. O exame direto da sua obra não deixa de surpre-
ender a verificação que a referência que Marx faz às noções de
base econômica e superestrutura de modo algum constitui uma
teorização acabada, pronta para ser disposta como um quadro
teórico. Se tal imagem existe (e realmente existe), advém princi-
palmente dos vulgarizadores da obra de Marx, mas também de
seus críticos, quando todos deixam de realizar esta importante
ressalva. E mais, trata-se de uma elaboração caracteristicamente
produzida para um prefácio e realizada ao lado de uma rápida
exposição sobre sua trajetória intelectual.
Neste “Prefácio”, o que Marx faz é apontar um determinado
caminho para se compreender como são construídas as situações
mais radicais da história, advertindo que neste processo a consci-
ência é uma experiência delimitada socialmente. Há indicações
explícitas no próprio texto, que indicam a intenção particular do
autor com estas idéias: “O resultado geral a que cheguei e que,
uma vez obtido, serviu-me de fio condutor aos meus estudos,
pode ser formulado em poucas palavras”. Parece-nos que Marx
não pretendia que o texto fosse tomado como uma prescrição que
servisse para a sua utilização como uma regra de ouro do seu pen-
samento. Certamente não esperava que fosse reproduzida em
manuais como chave de compreensão do materialismo histórico.
Mas o que pretendia Marx ao propor a imagem simplificada
de uma “base econômica” e de uma “superestrutura” para explicar
a vida social? Para desenvolver este problema é importante observar
que o texto contém uma interlocução. Marx escreve dialogando

44
com toda a herança hegeliana. Neste caso, a redução das questões
examinadas identificando dois campos específicos da realidade
social cumpre um papel didático na análise. A sentida ausência de
complexidade com a qual as idéias de “base econômica” e de “su-
perestrutura” servem para ilustrar as condições da vida humana é
compensada pela gravidade adquirida pela representação propos-
ta com os dois conceitos. Marx procura, em uma breve passagem
do texto, imprimir força a uma idéia que deveria ser decisiva: A
existência deve ser vista como um processo histórico e um fato
modificável pelos homens.
Neste caso, a proposição em que afirma ser o “ser social” o
elemento que condiciona a consciência, e não o contrário (como
formulavam os velhos e os novos hegelianos) faz da consciência
um dado secundário da vida humana diante das determinações
da “vida material”? O texto examinado não é extenso nesta dis-
cussão. É preciso alguma cautela com as conclusões tiradas. Para
Marx, é a partir da consciência adquirida sobre as circunstâncias
em que a vida é produzida que os homens tomam para si seu
destino como liberdade e ação transformadora. Portanto, a cons-
ciência não figura na elaboração que Marx faz no “Prefácio” pro-
priamente como um dado secundário da produção da existência.
Entendo que a discussão sobre a determinação material da cons-
ciência não é uma discussão sobre a importância maior da “vida
material” sobre a “vida espiritual”. Não me parece que foi deste
ângulo que o problema foi exatamente desenvolvido por Marx.
Sobre o legado da “metáfora arquitetônica” para os marxis-
tas, não me parece hoje de grande relevância saber se foi ou não
apropriadamente criada, mas buscar compreender o que Marx
pretendia expressar por seu intermédio. Trata-se, como se diz, de
uma metáfora e não mais do que isso. Não precisa ser lembrada
como um dos mandamentos de Marx, nem executada da sua obra.
Creio que o reexame deste “nosso patrimônio teórico”, a fim de
sabermos de nossas capacidades frente às questões sociais e políticas

45
da nossa era, não deve ficar preso ao movimento de declarar a
existência de um Marx “ruim”, com a proposta de resgatar alguma
lucidez depois de um longo período dogmático. Um gesto para a
atualização do marxismo é redescobrir em Marx a real delicadeza
e qualidade com a qual pensou determinadas questões.

Consciência e classes sociais

Vamos encontrar novamente as referências às noções de


base econômica e superestrutura no 18 de Brumário de Louis
Bonaparte. Mas, nesta obra, publicada em 1852, a temática da
subjetividade humana assume uma complexidade maior face àque-
la presente no texto anteriormente estudado. Engels indicava a
sua leitura por conta das dúvidas e má compreensão que, ao seu
tempo, já envolvia a noção de determinação do econômico em
última instância. Trata-se de uma sugestão que faz em duas de
suas cartas, uma dirigida a Joseph Bloch, em 1890, e outra dirigida
a M. Borgius, quatro anos mais tarde. No final deste capítulo,
voltaremos ao conteúdo destas cartas.
Enquanto o Prefácio constituía um material apenas
indicativo do conjunto do pensamento de Marx, particularmente
a importância que atribuía ao estudo da Economia Política, O 18
de Brumário de Louis Bonaparte é um estudo histórico concre-
to. Neste livro, estuda as lutas sociais relativas à Revolução de
1848 em França, deste ano até 1851. Nas suas palavras, procurou
demonstrar “como as lutas de classes criou em França as circuns-
tâncias e as condições que permitiram a um personagem medío-
cre representar o papel de herói” (Marx, 1985, p. 414). Está se
referindo, é claro, a Louis Bonaparte.
Vejamos então a passagem em que Marx faz referências às
noções de base e superestrutura:

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“Sobre as diversas formas de propriedade e so-
bre as condições sociais de existência ergue-se
toda uma superestrutura de sensações, ilusões,
modo de pensar e visões da vida diversas e for-
madas de um modo peculiar. A classe inteira cria-
os e forma-os a partir das suas bases materiais e
das relações sociais correspondentes” (ibidem,
p.442).

Aqui existe uma elaboração a respeito da “base” e da “supe-


restrutura” ligeiramente diferente daquela expressa no Prefácio.
Neste último texto, como vimos, Marx havia dito que eram as
relações de produção, as relações sociais pelas quais os homens
produzem sua existência, a condição a partir da qual emerge a
superestrutura jurídica e política – que corresponderiam às for-
mas sociais determinadas de consciência. No 18 de Brumário,
como notou Larrain (1988, p. 27), a expressão superestrutura
parece referir-se à “visão de mundo” de uma classe social. No Pre-
fácio, Marx refere-se à consciência social de modo mais genérico:
“consciência dos homens”. Além disto, em relação à determina-
ção daquela “visão de mundo”, no 18 de Brumário, remete seu
fundamento não apenas às relações de produção, mas também à
categoria propriedade. Não vejo aí alguma falta de precisão de
Marx. Creio que o 18 de Brumário, como um estudo histórico
específico, exigiu de Marx uma sugestão mais concreta das idéias
de base e superestrutura que não se fez necessária na exposição
mais geral que é o Prefácio.
Ao expor o quadro político e social da chamada fase parla-
mentar da Revolução, período que vai de 28 de maio de 1849 até
2 de dezembro de 1851, Marx se propõe a fazer algumas observações
no sentido de descobrir o caráter geral daqueles movimentos, sub-
traindo os equívocos de compreensão que os cercam. Marx lembra
que, para os democratas, os embates travados no período constitu-
inte eram simplesmente fruto da desavença entre republicanos e os

47
partidários da realeza. Neste quadro, o “partido da ordem”,
cindindo em duas frações cuja intriga pretendia apenas elevar ao
trono seu próprio pretendente, parecia reunido em um ódio comum
à República. Por outro lado, como representante desta forma de
governo aparecia a Montagne: os social-democratas. Ora, por detrás
das lutas que pareciam envolver os “direitos humanos” pretendidos
pela Montagne, estabelecia-se abertamente uma luta de classes entre
as forças sociais e políticas que compunham o período.
As duas grandes frações que formavam o “partido da or-
dem” eram os legitimistas, que haviam dominado sob a Restaura-
ção (1814 – 1830), período do 2º Reinado da Dinastia dos
Bourbons e os orleanistas, que tinham dominado sob a Monar-
quia de Julho (1830) e constituíam um ramo secundário da Di-
nastia dos Bourbons. Marx pergunta o que ligava estas duas fra-
ções aos seus pretendentes e mutuamente as separavam: “seria
apenas as flores-de-lis e a bandeira tricolor, a Casa de Bourbon e a
Casa de Orleans, diferentes matizes do realismo, seria, em geral, a
sua profissão de fé realista?” (Marx, op. cit., p.442). Lembra que
sob os Bourbons governara a grande propriedade fundiária e sob
os Orleans, a alta finança, a grande indústria, o grande comércio
ou o que é o mesmo, o capital. Ora, as duas realezas constituíam,
então, expressão destes interesses. O que separava, portanto, estas
duas frações, eram suas condições materiais de vida que advinham
de duas espécies diferentes de propriedade. Admite “que, ao mesmo
tempo, havia velhas recordações, inimizades pessoais, temores e
esperanças, preconceitos e ilusões, simpatias e antipatias, convic-
ções, artigos de fé e princípios que os mantinham unidos a uma
ou outra casa real.” (ibidem, p.442). Mas Marx aqui indica que
por detrás de querelas políticas, o que há são interesses de classe
bem definidos. Mesmo no seio da classe dominante, há interesses
cindidos que decorrem da maneira como as formas de proprieda-
de existentes se efetivam. Os indivíduos assumem estes interesses
através dos seus valores ou sentimentos mais diretos. É esta men-
talidade que Marx aqui situa como superestrutural:

48
“O indivíduo isolado, a quem afluem por tradi-
ção e educação pode imaginar que constituem
os verdadeiros princípios determinantes e o pon-
to de partida do seu agir. Se os orleanistas e os
legitimistas, se cada facção procurava conven-
cer-se a si própria e convencer as outras de que
as separava era a lealdade às suas casas reais, os
fatos demonstraram mais tarde que eram mais
os seus interesses divididos, aquilo que impedia
a união das duas casas reais. E assim como na
vida privada se distingue entre aquilo que um
homem pensa e diz de si próprio e aquilo que
realmente é e faz, nas lutas históricas há que dis-
tinguir ainda mais entre as frases e o que os par-
tidos imaginam e o seu organismo efectivo e os
seus interesses efectivos, entre a representação
que têm e a sua realidade” (Marx, 1985, p. 442).

A imagem de superestrutura que sai desta compreensão está


longe de poder ser assimilada de modo esquemático, como um
simples reflexo da base econômica. É através de várias representações
que os indivíduos expressam a consciência que têm das condições
reais da sua existência. Ocorre que estes sentimentos não funda-
mentam, ao contrário do que estes indivíduos possam imaginar,
os princípios pelos quais agem sobre aquelas condições. Princípios
que estão relacionados à efetiva posição de classe que decorre de
suas situações sociais, dos interesses postos pela forma de proprie-
dade que integram. Esta análise de Marx nos leva a conceber que a
maneira de enxergar a existência em uma sociedade estratificada
socialmente se apresenta como uma consciência invertida, já que
não presentifica a realidade concreta que lhe é subjacente. Esta pers-
pectiva de análise conduz à seguinte questão: Por que os indivíduos
admitem uma compreensão sobre suas vidas que não correspondem
às suas reais circunstâncias? Retornaremos a esta questão quando
passarmos ao tema da inversão presente na A Ideologia Alemã.

49
Marx relacionou a superestrutura com o comprometimen-
to de uma classe social com suas bases materiais, a forma de pro-
priedade com a qual seus interesses se estruturam e com as rela-
ções de produção que formam o seu contexto social. Isto, de modo
algum, significa que apenas os que estão organicamente ligados a
uma determinada forma de propriedade compartilham os inte-
resses que daí emergem. Marx distingue, no estudo das posições
políticas dos pequenos burgueses que participavam da coligação
social democrata, os representantes políticos e literários de uma
classe, daqueles pertencentes propriamente à classe da qual são
representantes:

“Não se deve imaginar que os representantes


democráticos são todos shopkeepers (lojistas) ou
pessoas que se entusiasmam com eles. Podem
estar a um mundo de distância deles, pela sua
cultura e pela sua atuação individual. O que os
faz representantes do pequeno burguês é que a
sua cabeça não ultrapassa os limites que aquele
não ultrapassa na vida; que, portanto, são teori-
camente impulsionados para as mesmas tarefas
e soluções para as quais o interesse material e a
solução social impulsionaram, praticamente
aquele” (ibidem, p.445).

Os pequenos burgueses defendem propostas políticas que


não ultrapassam o seu vínculo de classe, diz Marx. A transforma-
ção que almejam na sociedade é a transformação pela “via demo-
crática”, isto é, no quadro das instituições sociais existentes. Mas
para Marx, de modo algum, isto significa que a pequena burgue-
sia tem por princípio “um interesse egoísta de classe” (ibidem,
p.445). A crença que mantém é de que as condições particulares
de sua emancipação, que são as condições postas pela situação de
classe que vivenciam, constituem as condições gerais de emancipação
da sociedade. O interesse de classe que assumem é a consciência que

50
têm de sua condição de classe e não uma posição que visa a ocultar
suas reais motivações.
Finalmente, deste estudo da Revolução de 1848 em Fran-
ça, gostaria de indicar que algumas perspectivas desenvolvidas pelos
historiadores das mentalidades podem também encontrar em Marx
uma referência válida. Isto a despeito de que as gerações de mar-
xistas posteriores à do próprio Marx tenham evitado análises mais
inclusivas ao campo das mentalidades ou ainda, a despeito do
quanto certos historiadores encontram na História Nova um re-
fúgio adequado contra as posições políticas que sempre estão as-
sociadas ao marxismo.
Uma das primeiras análises contidas em O 18 de Brumário
é a seguinte:

“Os homens fazem a sua história, mas não a fa-


zem segundo a sua livre vontade, em circuns-
tâncias escolhidas por eles próprios, mas nas cir-
cunstâncias imediatamente encontradas, dadas
e transmitidas. A tradição de todas as gerações
mortas pesa sobre o cérebro dos vivos como um
pesadelo. E mesmo quando estes parecem ocu-
pados a revolucionar-se, a si e às coisas, mesmo
ao criar algo que ainda não existe, é precisamen-
te nestas épocas de crise revolucionária que es-
conjuram temerosamente em seu auxílio os es-
píritos do passado, tomam emprestados os seus
nomes, as suas palavras de ordem de combate, a
sua roupagem, para, com este disfarce de velhi-
ce venerável a esta linguagem emprestada, re-
presentar a nova cena na história universal”
(ibidem, p.417)

Esta idéia de que os homens fazem a sua história, mas sob


determinadas condições, é muito cara aos marxistas. Não surpreende

51
que muitos estudos tenham recorrido a esta passagem de O 18 de
Brumário para ressaltar os fundamentos “materiais” das ações
humanas no curso da história. Mas é revelador que geralmente
não se destacam que, precisamente nesta passagem, Marx atribui
grande importância à subjetividade quando explica como os ho-
mens se comportam praticamente diante de situações de maior
gravidade. A comunicação entre gerações, feita através da heran-
ça, a “tradição”, é aqui identificada como um elemento de medi-
ação entre a vontade criativa e o próprio ato de agir radicalmente.
Mesmo quando se quer revolucionar as condições da vida, os
homens, encontram na presença do passado uma ordem de senti-
mentos que associam ao novo que pretendem conquistar.
Esta percepção extraída do 18 de Brumário contraria a
afirmação de Konder e dos historiadores das mentalidades de que
Marx não havia dado a devida importância à longa duração das
estruturas mentais. Para Konder, Marx, de modo algum, havia
reconhecido a importância dos “movimentos culturais”, que apenas
com ritmos lentos produzem efeito. Enquanto havia alcançado o
pioneirismo em conceber a “longa duração” no quadro das
estruturas materiais, não se interessou pela “longa duração” no
imaginário coletivo (Konder, op. cit., p.50). Ora, há de se distinguir
aqui duas questões. Primeiramente, na passagem que citamos fica
evidente que Marx parecia reconhecer o efeito dos “movimentos
culturais” com seu ritmo lento: “a tradição de todas as gerações
mortas pesa sobre o cérebro dos vivos como um pesadelo”. A
herança do passado se faz presente mesmo quando os homens
pretendem revolucionar a vida, garantia Marx. Mas uma outra
questão seria reconhecer que Marx não desenvolveu este problema,
isto é, não fez uma análise mais inclusiva a respeito das
mentalidades que se fazem presentes nas ações humanas na história.
De qualquer forma, os historiadores das mentalidades, marxistas
ou não, podem encontrar no 18 de Brumário uma referência
para esta discussão.

52
Embora Konder tenha realizado a mencionada crítica, re-
conheceu que Marx atribuía aos “símbolos” uma função destaca-
da na história política. Retira esta compreensão também do 18 de
Brumário, na seguinte passagem da obra:

“Por muito pouco heróica que a sociedade bur-


guesa seja, para a trazer ao mundo tinham sido
necessários, no entanto, o heroísmo, a abnegação,
o terror, a guerra civil e as batalhas entre os povos.
Esses seus gladiadores encontravam nas tradições
classicamente severas da República Romana os
ideais e as formas artísticas, as ilusões de que ne-
cessitavam para ocultarem a si próprios o conteú-
do burguesamente limitado das suas lutas e para
manterem a sua paixão à altura da grande tragédia
histórica. Sim, noutra fase e desenvolvimento, um
século antes, Cromwell e o povo inglês tomaram
de empréstimo ao Antigo Testamento linguagem,
paixões e ilusões para a sua revolução burguesa.
Uma vez alcançado o objetivo real, comprida a re-
organização burguesa da sociedade inglesa, Locke
expulsou Habacuc” (ibidem, p. 418)

Contudo, Konder, citando Pierre Ansait, afirma que foi o


próprio Marx que reduziu o alcance desta concepção, ao dizer
logo adiante no texto que a revolução proletária deveria renunciar
às imagens do passado:

“A revolução do século XIX não pode tirar a sua


poesia do passado, mas apenas do futuro. Não
pode começar consigo mesma antes de se limpar
de toda a superstição perante o passado. As ante-
riores revoluções necessitavam de reminiscências
da história universal para se dissimularem o seu
próprio conteúdo. As revoluções do século XIX
têm que deixar os mortos enterrar os vivos, para

53
chegar ao seu próprio conteúdo. Ali, a frase ul-
trapassava o conteúdo; aqui o conteúdo ultra-
passa a frase” (ibidem, p. 419)

Para Konder, aqui o imaginário está associado a uma so-


brevivência do arcaico, utilizado de modo ilusório. Esta análise
conduziria a uma redução do complexo campo em que se for-
mam as imagens nas quais as sociedades são reconhecidas. Lem-
bra que para Bronislaw Baczko, o imaginário coletivo não admite
apenas posições conservadoras, mas também possibilidades do seu
envolvimento em outras perspectivas que não o modelo social
existente (Konder, op. cit., p.50-51).
Analisando o texto, acho possível outra interpretação: Enten-
do que Marx principalmente procurou ressaltar a singularidade da
revolução proletária. Enquanto as revoluções do passado fizeram re-
ferências a outros movimentos históricos no sentido de explicar seus
interesses, Marx apenas propõe que a revolução proletária, a primeira
revolução em condições de romper com a cadeia de dominações que
esteve presente em toda a história humana, em razão do seu conteú-
do libertador, não utilize as imagens e referências alheias às novas
necessidades criadas. A “superstição frente ao passado” tem servido
para dissimular o real conteúdo dos processos revolucionários e a
revolução proletária não teria esta necessidade. Para Marx, o processo
de revolução social comportaria um movimento de liberação tam-
bém subjetivo. As recorrências do imaginário e os elementos da tra-
dição, que eventualmente obscureciam os interesses de classe perti-
nentes às lutas sociais poderiam deixar de pesar sobre os vivos, en-
quanto estivessem procurando novos sentidos para a existência.

Ideologia e produção da consciência

A Ideologia Alemã, manuscrito dos anos 1845-46 e publi-


cado pela primeira vez integralmente apenas em 1932, constitui

54
uma terceira referência à discussão acerca da subjetividade a respei-
to da determinação do econômico na obra de Marx. A importância
deste material para o pensamento marxista já foi muitas vezes reco-
nhecida. Em relação à questão que está sendo aqui discutida, gosta-
ria de destacar duas qualidades do texto. Em primeiro lugar, trata-
se de uma fonte que contém mais elementos do que aqueles anteri-
ormente discutidos – o Prefácio e O 18 de Brumário. Uma segun-
da qualidade seria a própria introdução do conceito de ideologia,
conceito fundamental para a crítica marxista.
Marx e Engels, ao escreverem A Ideologia Alemã,
pretendiam ao mesmo tempo em que criticavam os jovens
hegelianos David Strauss, Bruno Bauer, Max Stiner e Ludwig
Feurbach pelo idealismo que propagavam em suas obras, apresentar
uma original concepção da história, radicada no materialismo. A
crítica de fundo que realizaram sobre os jovens hegelianos está na
concepção de história que estes assumiam: uma história na qual
os homens se constituem enquanto sujeitos através do avanço
primário de uma consciência modificada. Para Marx e Engels, os
jovens hegelianos, embora tivessem a convicção de que se situavam
além do pensamento de Hegel, partiam das mesmas premissas
quando admitiam a autonomização da esfera da consciência. A
diferença aparecia apenas em uma inversão de sinais. Enquanto
os velhos hegelianos enxergavam nos produtos da consciência “os
verdadeiros elos da sociedade humana”, os jovens hegelianos
denunciavam estes mesmos elementos como “os grilhões autênticos
dos homens”.
Com esta perspectiva, esses filósofos acreditavam que a
condição humana poderia ser modificada, uma vez modificada a
consciência que tinham do mundo:

“Os ideólogos jovens hegelianos são, apesar das


forças com que pretendem ‘abalar o mundo’, os
maiores conservadores. Os mais novos dentre eles

55
encontram a expressão correta para a sua ativi-
dade quando afirmam que lutam apenas contra
‘frases’. Esquecem, apenas, que a estas mesmas
frases nada opõem senão frases, e que de modo
algum combatem o mundo real existente se com-
baterem apenas as frases deste mundo” (Marx e
Engels, 1982, p. 7).

Marx e Engels confrontam esta visão, dizendo que estão


localizadas no “mundo real existente” as circunstâncias através
das quais a ação humana recairá para uma transformação efetiva
das condições de vida. Rejeitam a idéia de que está na atividade
da consciência a oportunidade de mudança do mundo humano.
Invertem, portanto, as premissas dos jovens hegelianos,
afirmando que o ponto de partida para as alterações na
sociedade se encontra nas condições materiais de vida dos seus
indivíduos. Marx e Engels entendem que será esta a primeira
premissa de toda a história humana: a própria existência dos
indivíduos. Para assegurar esta existência, os homens devem
produzir os seus meios de vida. Um pressuposto para a produção
destes meios é o intercâmbio entre os indivíduos, cuja produção
dependerá do grau alcançado pela divisão de trabalho. É este
desenvolvimento que determinará as relações dos indivíduos
entre si acerca do material, do instrumento e do produto do
trabalho (ibidem, p. 8).
Uma reflexão importante que Marx e Engels fazem sobre
este intercâmbio é a consideração de que não deve ser pensado
meramente no seu aspecto de reprodução da existência física. A
produção das condições de vida é uma forma de expressão da vida
dos indivíduos, adquirindo uma significação ontológica. O que
os indivíduos são, está de acordo “com a sua produção, com o que
produzem e também com o como produzem” (ibidem, p. 9). Desta
maneira, há uma relação estrita entre o campo da consciência e as
condições de produção da vida material:

56
“Os homens são os produtores das suas repre-
sentações, idéias, etc., mas os homens reais, os
homens que realizam tal como se encontram
condicionados por um determinado desenvol-
vimento das suas forças produtivas e do inter-
câmbio a estas corresponde até às suas forma-
ções mais avançadas. A consciência, nunca pode
ser outra coisa senão o ser consciente, e o ser dos
homens é o seu processo real de vida. Se em toda
a ideologia os homens e suas relações aparecem
de cabeça para baixo como uma câmara obscu-
ra, é porque este fenômeno deriva do seu pro-
cesso histórico de vida da mesma maneira que a
inversão dos objectos na retina deriva do seu
processo diretamente físico de vida” (ibidem,
p.13/14).

A consciência que os homens têm acerca de si próprios, das


relações que mantêm entre si e do mundo em geral, advém do
próprio processo em que produzem as suas condições de vida. A
consciência é aqui historicizada e admitida, pensam Marx e Engels,
sem a metafísica e o idealismo dos filósofos predecessores. Não
haveria consciência além daquela produzida nas circunstâncias
reais de produção da vida.
O fenômeno ideológico é uma inversão em relação a esta
identificação das condições reais de produção da existência, já
que se caracteriza como uma percepção de que estas faculdades
existem independentes como atividade da consciência. Esta in-
versão é ela mesma radicada no processo de produção da existên-
cia, dizem Marx e Engels. Daí a recorrência à câmara escura como
imagem deste processo. Konder havia criticado este exemplo, afir-
mando que tal comparação não permitia uma compreensão mais
apropriada do processo de produção das “falsas representações”.
Mas parece verdadeiro que aqui também trata-se apenas de uma
comparação que cumpre principalmente um papel didático na

57
argumentação. Marx e Engels indicavam que o fenômeno ideoló-
gico se origina de uma situação socialmente determinada e não
de condições geradas pela própria consciência, assim como a in-
versão das imagens na câmara escura decorre de um fenômeno
motivado fisicamente.
Para Marx e Engels, as formas de representação da existên-
cia encontradas, por exemplo, na moral ou na religião, não têm
história (ibidem, p.14), isto é, não têm um desenvolvimento in-
trínseco aos seus elementos. Isto acontece porque uma vez trans-
formadas as condições efetivas de produção da vida, muda-se tam-
bém o estado da consciência sobre o homem e o mundo:

“Não é a consciência que determina a vida, é a


vida que determina a consciência. No primeiro
modo de consideração, parte-se da consciência
como indivíduo vivo; no segundo, que
corresponde à vida real, parte-se dos próprios
indivíduos vivos reais e considera-se a consciên-
cia apenas como a sua consciência” (ibidem,
p.14).

Esta formulação sobre a determinação da consciência, como


já mencionei, será mais tarde ligeiramente modificada no Prefá-
cio. Aqui, na Ideologia Alemã, a “vida” é que determina a consci-
ência, enquanto no Prefácio, é o “ser social” que produz esta de-
terminação. Konder identificou nesta última redação um conteú-
do mais definido: a noção de “ser social” refere-se com maior
objetividade às condições materiais de produção da existência.
Ocorre que esta expressão, associada particularmente às categori-
as de “base” e “superestrutura”, favoreceu mais do que a noção de
“vida”, que a idéia sofresse uma recepção mais esquemática e
simplista. Neste caso, o uso da palavra “vida” indica uma deter-
minação mais ampla, permitindo a admissão de um sentido mais
filosófico, menos favorável a um princípio dogmático. De todo

58
modo, mesmo admitindo alguma influência distinta em razão da
semântica adquirida pelo uso alternado das expressões “vida” e
“ser social”, o que pode ser verificado examinando os dois textos
mais extensamente é que ambos tornam evidente o elemento con-
dicional das condições materiais da existência sobre a produção
da consciência. Portanto, neste ponto não há diferenças.
Marx e Engels reiteram, naquela última passagem citada, o
enlaçamento da consciência humana pelo processo de produção
da vida. Esta compreensão é aprofundada com a discussão que
fazem acerca da relação da consciência com o desenvolvimento
da produção e do estágio alcançado pela divisão do trabalho.
Nas sociedades primitivas, a consciência é a consciência
sensível imediata do ambiente vivido pelos indivíduos: “A relação
limitada dos homens com a natureza condiciona a sua relação
limitada uns com os outros, e a sua relação limitada uns com os
outros condiciona a sua relação limitada com a natureza” (ibidem,
p.22). Neste estágio da sociedade, a consciência humana é mera-
mente uma “consciência de horda”, afirmam Marx e Engels. Esta
consciência se desenvolve com o aumento da produtividade do
grupo, a multiplicação das necessidades e o aumento da popula-
ção. Este movimento provoca o desenvolvimento da divisão do
trabalho, que em sua origem, limitava-se apenas à divisão sexual
do trabalho e de uma disposição natural (a força física, por exem-
plo). A qualidade superior da divisão do trabalho foi alcançada
exatamente quando apareceu a divisão entre trabalho material e
intelectual:

“A partir deste momento, a consciência pode


realmente dar-se à fantasia, de representar real-
mente alguma coisa sem representar nada de real –
a partir deste momento, a consciência é capaz de
se emancipar do mundo e de passar à formação
da teoria ‘pura’. E mesmo quando esta teoria,

59
teologia, filosofia, moral, etc, entram em con-
tradição com as relações vigentes, isso só pode
acontecer pelo fato de as relações sociais vigen-
tes terem entrado em contradição com a força
da produção existente” (ibidem, p. 23).

O fato da atividade da consciência experimentar um pro-


gresso com o desenvolvimento maior da divisão do trabalho não
quer dizer que os indivíduos adquirem assim uma consciência
mais imediata das relações constitutivas da sua existência. Pelo
contrário, o desenvolvimento da divisão do trabalho no limite de
separar a atividade intelectual do trabalho material historicamen-
te tem significado também a promoção de uma representação
distanciada a respeito dos elementos determinantes da produção
da vida humana. Deste modo, a teoria, a teologia, a filosofia e a
moral terminam invertendo a posição dominante dos reais obje-
tos que constituem o mundo humano.
As mesmas representações ideológicas que funcionam dis-
sipando dos processos de conhecimento uma visão concreta do
ser poderiam também entrar em contradição com o caráter das
relações sociais dominantes. A perspectiva de análise de Marx e
Engels é a de que, uma vez que as relações sociais não possibilitam
mais o desenvolvimento das forças produtivas, resultando em um
momento de crise em todo o tecido social, toda a ideologia deixaria
de corresponder idealmente àquela base material da sua própria
criação. Concepção sobre a história desenvolvida posteriormente
também no Prefácio. Na passagem que extraímos deste último
texto, Marx afirma que é por intermédio de uma revolução que as
relações sociais, transformadas em “grilhões”, são superadas. Com
a sua superação, todas as formas ideológicas: a teoria, a teologia, a
filosofia, a moral, etc, também se transformam. Nos dois textos
foi mantida a mesma abordagem. Existe um laço condicionante
entre a forma com a qual os homens fazem a sua vida e a produção
da consciência sobre esta realidade.

60
Marx e Engels observam que uma correspondência positiva
entre as forças produtivas, o estado da sociedade e a consciência,
somente seria possível com a resolução da divisão do trabalho.
Em dois níveis, a divisão do trabalho produz um fracionamento
da comunidade humana: 1. Possibilita uma repartição desigual,
tanto quantitativa quanto qualitativa do trabalho e dos produtos
do trabalho, e 2. Estabelece uma oposição entre o interesse co-
munitário e o interesse individual. A existência, de um lado, do
produtor e do outro, de um indivíduo que consome o produto
do trabalho, faz da capacidade de produção que advém da coope-
ração um poder que se opõe à maioria. Aqui, a cooperação, medi-
ante a atividade humana que é o trabalho, constitui um poder
alheio aos indivíduos, uma vez que a cooperação assim realizada
subjuga as capacidades. Os indivíduos se inserem no processo social
de cooperação do trabalho para realizar uma função limitada:

“(...) cada homem tem um círculo de actividade


determinado e exclusivo que lhe é imposto e do
qual não pode sair; será caçador, pescador ou
pastor ou crítico, e terá de continuar a sê-lo se
não quiser perder os meios de subsistência”
(ibidem, p.25/26).

Contudo, se é verdadeiro que este poder se amplia com a


aproximação maior da história mundial do mercado, é esta mes-
ma condição da história mundial que servirá de base para livrar o
indivíduo dos particularismos postos pela divisão do trabalho.
Para Marx e Engels, a riqueza espiritual dos indivíduos só pode
ser alcançada pela riqueza maior constituída pelas relações de tra-
balho. Só a disposição de toda produção material e espiritual, em
todo o mundo, coloca para o indivíduo a possibilidade de apro-
priar-se integralmente das criações humanas. Mas é importante
lembrar que, para Marx e Engels, esta situação humana ideal só
poderia ser atingida através da revolução comunista, sem a qual,

61
continuam imperando os interesses privados e as estreitas relações
humanas (ibidem, p.30).
Com a obra de Marx, a divisão do trabalho se constitui
como uma categoria elucidativa muito importante para compre-
ender a subjetividade. É a estrutura fundamental da divisão do
trabalho através da alienação que produz, que caracteriza a ideo-
logia como uma inversão a respeito da apreciação das reais condi-
ções de existência do mundo humano. Para Marx, a teoria, a
filosofia, a teologia ou a moral, etc, não são senão um resultado
das privações que constituem a realização do trabalho. Isto acon-
tece porque, como forma de consciência sobre o homem, não
formulam o homem como um ente social e historicamente cons-
tituído: Separada pela atividade fragmentada e parcial do traba-
lho, sem conhecer os aspectos relacionais da existência humana, a
representação da vida pode ser fixada na experiência particular e
nos estados estratificados do pensamento.
A divisão do trabalho, ao estabelecer lugares diferenciados
na execução do trabalho, cria também interesses diferenciados na
sociedade. Estes interesses são interesses de classe à medida que
representam a conveniência particular de um grupo no processo
de produção da existência. Marx e Engels consideram, neste caso,
que a tendência da classe que é dominante no interior deste pro-
cesso é tornar sua visão de mundo hegemônica:

“As idéias de classe dominante são, em todas as


épocas, as idéias dominantes, ou seja, a classe
que é o poder material dominante da sociedade
é, ao mesmo tempo, o poder espiritual domi-
nante. A classe que tem à sua disposição os mei-
os para a produção material dispõe assim, ao
mesmo tempo, dos meios para a produção espi-
ritual, pelo que lhe estão, assim, ao mesmo tem-
po, submetidas em média as idéias daqueles a
quem faltam os meios para a produção espiritual.

62
As idéias dominantes não são mais do que a ex-
pressão ideal das relações materiais dominantes,
as relações materiais dominantes concebidas
como idéias; portanto, das relações que precisa-
mente tornam dominantes uma classe, portan-
to, as idéias do seu domínio. Os indivíduos que
constituem a classe dominante também têm,
entre outras coisas, consciência, e daí que pen-
sem; na medida portanto, em que dominam
como classe e determinam todo o conteúdo de
uma época histórica, é evidente que o fazem em
toda a sua extensão, e portanto, entre outras
coisas, dominam também como pensadores
como produtores de idéias , regulam a produ-
ção e a distribuição de idéias do seu tempo; que
portanto, as suas idéias são as idéias dominantes
da época. Numa altura, por exemplo, e num país
em que o poder real, a aristocracia e a burguesia
lutam entre si pelo domínio, em que portanto o
domínio está dividido, revela-se idéia dominante
a doutrina da divisão dos poderes, que é agora
declarada uma ‘lei eterna’ ” (ibidem, p.38/39).

Através dos conceitos de indivíduo pessoal e indivíduo aci-


dental, Marx e Engels apresentam outra importante questão rela-
tiva à constituição do sujeito e os aspectos da subjetividade. A
divisão do trabalho coloca-nos a necessidade de interrogar sobre a
subordinação da vida às determinações que se propagam das con-
dições específicas da experiência em um ramo de trabalho. Al-
guém que vive de rendimentos, exemplificam, terá uma persona-
lidade determinada por esta vivência de classe social. Esta
subsunção da personalidade dos indivíduos às suas condições so-
ciais pôde permanecer oculta em estratificações sociais existentes
nas comunidades tribais ou naquelas em que vigoraram as ordens
sociais. Neste último caso, um nobre é sempre um nobre, assim

63
como o plebeu será sempre um plebeu, independentemente de
quais forem as relações que partilhem na sociedade. O nobre tem
a sua nobreza inseparável de sua individualidade. Ora, com o
amadurecimento da estratificação social em classes, mesmo que
os indivíduos, em suas condições de vida acidentais, imaginem-se
mais autônomos em comparação com as formações sociais anterio-
res, aquela mesma subsunção revela-se em toda a sua objetividade:
“É-lhes indicada pela classe a sua posição na vida” (ibidem, p.58).
Aqui também a sociedade comunista é concebida por Marx
e Engels como uma oportunidade de afirmação das capacidades
humanas. Nela, o indivíduo desenvolveria sua personalidade sem
o interesse particular de quem encontra-se vinculado a uma con-
dição de classe específica. Poderia aí progredir com o estado múl-
tiplo de experiências que comportam a comunidade. Alcançado
o comunismo, a comunidade não será um organismo de indiví-
duos unidos pela divisão do trabalho, cujo intercâmbio proporci-
ona apenas trocas acidentais, mas um organismo cuja separação
pela divisão do trabalho será ultrapassada pelo intercâmbio deci-
dido pelos indivíduos unidos (ibidem, p.61/62)
Nesta perspectiva, podemos compreender melhor como as
idéias dominantes, as idéias produzidas pela classe hegemônica,
expressam as condições materiais através das quais essa classe rea-
liza o seu domínio. Os indivíduos como pessoas estão aqui
subsumidos à sua individualidade de classe e trazem em si, então,
as condições particulares do seu pertencimento. Assim, de modo
algum, o conjunto das ideologias da qual partilham os indivíduos
da classe dominante constituem idéias que podem ser extraídas
dos indivíduos enquanto tais. Na verdade, elas são lhes relativa-
mente casuais, já que são particularmente adquiridas em razão da
vivência extraordinária dos diferentes ramos da divisão do traba-
lho. No entanto, diante do poder que reúnem como classe domi-
nante, trata-se de um processo de viver que será representado para
toda a sociedade como um ideal comum e aproveitável para todos.

64
Mas esta compreensão de modo algum pode ser abstraída
da história e da cultura das diversas e diferentes sociedades. Por
isso, Marx e Engels chamam a atenção, na referida passagem da
sua obra, para uma situação em que a correspondência entre as
forças políticas da aristocracia, do poder real e da burguesia mol-
da a concepção da divisão de poderes. Com estes elementos
conflitivos da história, os indivíduos encontram uma situação sem-
pre complexa e variável para a formação de uma visão de mundo.
A determinação das relações materiais não condiciona, senão atra-
vés de mediações socialmente construídas, as idéias desenvolvidas
pelas classes sociais.
O conceito de ideologia encerra debates entre os mais pro-
blemáticos nas ciências sociais. Segundo Michael Lowy, este con-
ceito “tornou-se, no decorrer dos últimos dois séculos, objeto de
uma inacreditável acumulação fabulosa mesmo, de ambigüidade,
paradoxos, arbitrariedades, contra-sensos e equívocos” (Lowy,
1988, p.10). Acredito que a leitura da Ideologia Alemã permitiu
aqui delimitar o seu uso com a seguinte propriedade: Trata-se de
um conceito restrito e negativo.
Um conceito restrito porque procura interpretar um fenô-
meno social limitado na sua definição: Refere-se a uma inversão a
respeito do modo como os indivíduos representam idealmente as
contraditórias condições de produção da existência. Neste mes-
mo sentido, é um conceito negativo porque refere-se a um acon-
tecimento que mantém encoberto o conhecimento das condições
materiais que determinam as características da vida social.
Concepção de acordo com a posição defendida por Larrain
acerca deste conceito:

“A ideologia (...) só se aplica às distorções


relacionadas com o ocultamento de uma
realidade contraditória e inversa. Nesse sentido,
a definição tão freqüente, de ideologia como falsa

65
consciência não é adequada na medida em que
não especifica o tipo de distorção criticada,
abrindo dessa forma caminho a uma confusão
da ideologia com todos os tipos de erro” (Larrain,
1988b, p. 185).

No entanto, Larrain observa que depois da morte de Marx,


o conceito começou a adquirir um novo significado e sua
conotação crítica foi posta como um aspecto secundário. Em ge-
ral, o conceito passou a ser partilhado deste modo: Seu uso
correspondendo à totalidade das formas de consciência social,
genericamente indicado como “superestrutura ideológica” e a sua
admissão como as idéias políticas relacionadas aos interesses de
classe. Estes novos significados seriam um deslocamento das pre-
missas originais. O motivo desta reelaboração do conceito, Larrain
encontra, primeiramente, nas próprias ambigüidades presentes em
Marx e Engels. Mas também foi importante o fato do manuscrito
de A Ideologia Alemã permanecer inédito até a década de vinte
do século passado. As análises aí desenvolvidas não estavam dis-
poníveis para as duas primeiras gerações de marxistas. Até então,
as referências para o conceito de ideologia constituíam o Prefácio
e o AntiDüring, de Engels. Para Larrain, estes dois textos não
propiciam uma compreensão do conceito com a mesma
fecundidade encontrada em A Ideologia Alemã.
No Prefácio, a passagem problemática seria a que Marx se
refere às formas jurídicas, políticas e filosóficas como formas ide-
ológicas através das quais os homens tomam consciência do con-
flito que se estabelece entre as forças produtivas e o modo de
produção e que solucionam pela luta de classes. Larrain lembra
que Gramsci recorre com freqüência a esta passagem para susten-
tar uma concepção de ideologia que é a de uma esfera
superestrutural abrangente, pela qual os homens adquirem cons-
ciência de suas relações contraditórias. A preocupação de Larrain
parece recair na interpretação de que “as formas ideológicas” aqui

66
correspondam a uma dimensão da vida social em que os homens
possam assumir uma compreensão das efetivas condições de pro-
dução de suas vidas. Portanto, o conceito não serviria apenas para
registrar uma inversão, mas comportaria a totalidade das formas
de consciência, inclusive dos processos de liberação.
Não vejo que o Prefácio encerre propriamente uma ambi-
güidade em torno do conceito de ideologia diante da concepção
desenvolvida para este conceito em A Ideologia Alemã. Acredito
que haveria alguma duplicidade se no Prefácio o conceito de ide-
ologia apresentasse uma definição teórica que não compartilhasse
as mesmas descrições feitas originalmente na obra escrita com
Engels. Não me parece que isto tenha acontecido.
Marx havia inicialmente estabelecido o conceito diante de
questões muito definidas. Na Ideologia Alemã, afirmou como
ideológicas as concepções da filosofia alemã segundo as quais, a
alienação humana decorre dos “feitos” da consciência. Os homens
se transformariam através de uma consciência alterada do mun-
do. Ao rever esta concepção, mostrou as raízes do fenômeno ide-
ológico: a divisão dos interesses comunitários da sociedade hu-
mana diante do fato social da divisão do trabalho. No 18 de
Brumário, Marx manteve a preocupação crítica de revelar as de-
terminações impostas pelas bases materiais da sociedade. Não es-
tava por detrás dos afetos que mobilizavam orleanistas e
legitimistas, as respectivas formas de propriedade que integravam,
estabelecendo suas verdadeiras paixões?
Pois bem, nestas duas obras, o conceito foi tecido no senti-
do de qualificar a subjetividade humana diante de um modo de
expressão da vida que se constitui a partir de interesses divididos,
particularizados pela divisão do trabalho. Mas a própria assimila-
ção do legado de Marx como fundamento teórico para os diver-
sos movimentos de liberação dinamizou tal compreensão. Pela
primeira vez no curso da história humana, uma classe social
pôde conceber sua emancipação sem desenvolver outro projeto de

67
sociedade fundado na exploração do trabalho. É esta pelo menos
a utopia comunista.
Deste modo, se o capitalismo comporta no seu seio uma
contradição cuja resolução traz aos homens a possibilidade de di-
rigirem pela primeira vez as condições de sua existência, este pro-
cesso de emancipação deve permitir também à consciência um
conhecimento crítico, coerente e admissível a respeito do mundo
humano. No 18 de Brumário, Marx parece ter indicado tal pers-
pectiva quando apontou no recurso as “reminiscências da história
universal” a dissimulação do conteúdo de classe de determinadas
lutas. Aqui, lembra que a “frase ultrapassa o conteúdo”, enquanto
o processo revolucionário assumido pelos trabalhadores prescin-
diria de tal alienação. Como já havia afirmado, Marx parecia ter a
clareza de que o particular processo de lutas assumido pelos tra-
balhadores comportaria todo um processo de desprendimento e
abertura das suas capacidades que alcançaria ainda a atividade da
consciência.
O que se deve considerar quando Marx elaborou original-
mente o conceito de ideologia é que estava especialmente preocu-
pado em caracterizar a natureza contraditória entre a objetividade
constituinte do trabalho para a vida humana e a furtiva consciência
adquirida sobre esta sua importância ontológica. A suposta contra-
dição conceitual que o Prefácio conduz trata-se, na verdade, de
uma perspectiva mais sintética sobre as contradições de classe na
sociedade capitalista. O Prefácio constituía um texto com princípi-
os mais genéricos sobre a ação dos homens na história. Assim, o
conceito de ideologia pôde também ser compreendido em uma
acepção positiva, uma vez que não remetia precisamente a uma
“visão de mundo” burguesa ou proletária especificamente.
Sobre a outra possível ambigüidade presente no Prefácio,
levantada por Lorrain, seria oportuno discutir a possibilidade de
se compreender o conceito de ideologia como não restrito, tendo
em vista que Marx associa as “formas ideológicas” com as formas

68
jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas. Neste senti-
do, o conceito de ideologia comportaria, então, a totalidade das
formas de consciência? Ora, o conceito é restrito porque se refere
a uma inversão que a consciência assume quanto às condições de
produção da existência, mas o fenômeno ideológico não se realiza
de modo compartimentado na consciência e nas práticas sociais.
A ideologia se expressa através das várias instituições criadas pelos
homens para a sua organização social: as formas jurídicas, políti-
cas, religiosas, etc. Esta abrangência das formas ideológicas é, ela
mesma, parte do fenômeno ideológico. Portanto, constituem,
como instituições criadas e mantidas através da divisão do traba-
lho, o resultado concreto da inversão na consciência dos homens
acerca das reais condições de produção de suas existências. Como
prática, as “formas ideológicas” são também o resultado de uma
consciência dividida, alienada através de uma sociabilidade deci-
dida pela divisão do trabalho.
Uma vez estabelecido o significado original do conceito de
ideologia em Marx, na verdade, nada impede que diante do pro-
cesso de produção da consciência sob a luta de classes na socieda-
de capitalista, o conceito possa ser ressignificado pelos próprios
marxistas. Neste caso, deveria-se apenas considerar que a ideolo-
gia da classe dominada difere daquela produzida pelas classes do-
minantes do seguinte modo: enquanto estas, por suas posições de
classe, pelos interesses que veiculam como proprietários dos mei-
os de produção, partilham de uma ideologia que expressa os inte-
resses de perpetuação do antagonismo das classes sociais; a ideo-
logia da classe dominada é aquela que apela para superação a
divisão do trabalho. Portanto, uma ideologia que, pela primeira
vez na história, poderia refletir a consciência das reais condições
de produção da existência.
Gramsci, como anteriormente lembrado, foi um dos mar-
xistas que fez do conceito de ideologia um uso ampliado. Contudo,
sem cair em uma generalidade conceitual que confundisse as parti-

69
cularidades históricas e sociais dos indivíduos. Relacionado a
conceitos como contra-hegemonia, nota-se que para Gramsci, a
admissão da existência de uma ideologia das classes dominadas
compartilha da idéia de que a consciência das condições sociais
existentes é construída também através da vivência política destes
indivíduos, da cultura de classe que foi assim adquirida. Neste
caso, o ideológico é também um campo de disputas da luta de
classes. Um território político onde é possível opor-se ao consen-
so de idéias e práticas proposto pela classe dirigente (Gramsci,
1989). Mas o significado original do conceito, do modo como foi
desenvolvido por Marx, relacionado à temática da inversão, tam-
bém tem sido muito usado pelos autores marxistas. Michael Lowy
é um destes autores. Para ele, a definição de ideologia deve estar
relacionada às formas de pensamento cuja orientação é a repro-
dução da ordem estabelecida, o que conservaria a dimensão críti-
ca que o termo tinha no começo, reservando para o conceito de
utopia, as formas de pensamento que aspiram a um estado ainda
não existente de relações sociais (Lowy, op. cit., p. 11).

As cartas de Engels

Uma das críticas mais duras dirigidas ao marxismo no sé-


culo XX foi a de que constitui uma teoria social onde o econômi-
co tudo explica. A economia seria a chave para se compreender as
ações humanas e a história das sociedades. A idéia de que para
Marx o “fato econômico” concentrava toda a importância da his-
tória encerra duas incompreensões. A primeira é acerca do que
diz Marx através da expressão “econômico”. Em geral compreen-
de-se que são os “fatos da economia”. A segunda incompreensão é
de que o econômico constitui a única prática da vida humana que
determina o curso da história. Trata-se de polêmica que Engels
chegou a conhecer, discutindo estas questões em duas cartas
dirigidas a Joseph Bloch e W. Borgius.

70
Em 25 de janeiro de 1894, Engels escreve a Borgius dizen-
do o seguinte:

“Por relações económicas – que encaramos como


base determinante da história da sociedade –
entendemos a maneira como os homens de uma
determinada sociedade produzem o seu susten-
to na vida e trocam entre si (na medida em que
existe divisão do trabalho)” (Engels, 1985, vol.
III, p.565).

O “econômico” não significava para Marx e Engels mera-


mente a economia como uma experiência factual. Na verdade,
significava algo mais amplo e fundamental: Diz respeito a uma
indagação sobre a propriedade do ser. O econômico deve ser visto
na obra de Marx como uma orientação relativa ao problema da
condição da existência humana e as faculdades criativas do ho-
mem. Os textos de Marx que aqui discutimos também apontam
para esta visão.
Em relação à segunda incompreensão, em carta dirigida a
Joseph Bloch em setembro de 1890, Engels disse que:

“Segundo a concepção materialista da história,


o momento em última instância determinante,
na história, é a produção e reprodução da vida
real. Nem Marx nem eu alguma vez afirmámos
mais. Se agora alguém torce isso (afirmando) que
o momento económico é o único determinante,
transforma aquela proposição numa frase que
não diz nada, abstracta, absurda. A situação
económica é a base, mas os diversos momentos
da superestrutura – formas políticas da luta de
classes e seus resultados: constituição estabelecida
pela classe vitoriosa uma vez ganha a batalha,
etc, formas jurídicas, e mesmo os reflexos de

71
todas estas lutas reais nos cérebros dos partici-
pantes, teorias políticas, jurídicas e filosóficas,
visões religiosas e seu ulterior desenvolvimento
em sistemas de dogmas – exercem também a sua
influência sobre o curso das lutas históricas e
determinam em muitos casos preponderante-
mente a forma delas” (ibidem, p. 547).

O marxismo não é um economicismo vulgar, uma leitura


da história humana que reduz todos os aspectos humanos a uma
significação econômica. O econômico não é uma prática totalitá-
ria que paira sobre o homem dirigindo todas as suas ações. Exis-
tem diversas vivências que exercem influência sobre a experiência
global da existência. Nesta carta, Engels destaca, entre estes as-
pectos, a política e a religião. Como práticas, exercem sua influ-
ência na história, diz Engels. Inclusive determinando, em nume-
rosos casos, a própria forma com que são caracterizados seus pro-
cessos e transformações. Isto significa que uma situação relevante
na história pode ter como determinação mais imediata qualquer
dimensão da vida que não as relações mais diretamente econômi-
cas da produção da existência. “O indivíduo isolado (...) pode
imaginar que constituem os verdadeiros princípios e o ponto de
partida de seu agir”, disse Marx no 18 de Brumário.
Na continuidade da carta dirigida a Joseph Bloch, Engels
admite sua responsabilidade e a de Marx, por terem “dado mais
peso ao económico do que o que lhe cabe” (Engels, op. cit., p.
549). Reconhece que tiveram de acentuar a premissa histórica
que são as condições de produção da vida diante dos adversários
que de todo negavam este princípio. Com isto, não tiveram a
oportunidade de destacar a importância de outros aspectos da
vida no curso da história. De modo bastante sugestivo, em razão
da validade ainda contemporânea do comentário, Engels censura
aqueles que imaginam poder manejar uma teoria nova assim que
conhecem seus princípios básicos, nem sempre suficientemente

72
compreendidos. Termina a carta dizendo que assim, muito dos
novos marxistas “cometeram coisas espantosas”...
São cartas esclarecedoras. Elas reforçam a compreensão de
que, assumindo o pensamento de Marx como um legado para
uma teoria da subjetividade, as diversas dimensões da vida através
das quais os homens assumem suas ações no curso da história, de
modo algum constituem elementos que devem ser considerados
secundários diante da determinação do econômico. O econômi-
co é a base, cujo esclarecimento nos permite fundamentar uma
visão da história e do homem como ente social. Diante das pe-
culiaridades que atingiram as condições de produção do seu
pensamento, Marx precisou concentrar-se na indicação daquilo
que apresentava-se com uma radicalidade maior na sua visão
de mundo. Ao escreverem A Ideologia Alemã, Marx e Engels
não estão apenas propondo uma leitura original da história.
Ao mesmo tempo, combatiam os pensadores que mistifica-
vam os fundamentos da existência. Por isso, tiveram de ofere-
cer uma importância demasiada às estruturas sociais e às cate-
gorias da Economia Política. Isto significa que, uma vez com-
preendido o que é o primado da “economia”, nada justifica que
as outras dimensões da vida não sejam também, com a sua devida
importância, inseridas adequadamente no plano conceitual de-
senvolvido por Marx.
Parece que uma grande capacidade do capital é fazer da
acumulação uma experiência genérica e assídua da própria vida.
E é assim que crescentemente a obra de Marx fornece subsídios
para pensar o homem e imaginar a emancipação como uma tarefa
superior da existência. Diante de um sistema social que toma o
homem por inteiro, que não se limita a explorar a sua força de
trabalho, o pensamento de Marx tem muito a nos oferecer ainda
como crítica da sociedade capitalista. A fecundidade da sua obra
não encontra seus limites na sua revelação acerca das categorias
econômicas do capitalismo.

73
Marx compreendeu de forma relevante a abrangência do
modo capitalista de produção, sobretudo ao relacionar as relações
sociais com a própria amplitude da vida humana. Sob capitalis-
mo os homens não produzem apenas seus objetos de trabalho e as
condições de seu próprio sustento. Quando fabricam as condi-
ções da sua existência, os homens produzem o que são, atribuin-
do também um sentido à sua vida. Desenvolvem uma visão sobre
o mundo a respeito de si próprios e acerca das suas criações. Aqui,
a consciência é um atributo do ser. No entanto, uma atividade
presa aos particularismos que a divisão do trabalho condiciona.
Os homens representam como vivem, sem que a vida se realize
primariamente sob seu poder. Sem autonomia, no processo de
produção da existência, o homem tem a sua consciência desen-
volvida apenas no domínio de uma vida limitada.

74
CAPÍTULO III

No capítulo II, discutimos como o tema da subjetividade


humana foi desenvolvido por Marx no Prefácio Para a Crítica da
Economia Política, no 18 de Brumário de Louis Bonaparte e na
Ideologia Alemã. Iniciei a minha discussão a partir destas obras,
uma vez que nelas estavam presentes aqueles conceitos que, para
os críticos de Marx, continham as suas principais dificuldades na
fundamentação da subjetividade humana. A compreensão de que
Marx realizou uma leitura da história redutível aos fatos da eco-
nomia não se sustenta se são examinados estes textos. O que Marx
fez foi criar uma concepção sobre o mundo humano que atribui
às condições materiais da existência uma propriedade constitutiva
na definição do ser. Neste caso, o econômico, como expressão do
pensamento de Marx, deve ser entendido em uma acepção mais
ontológica da atividade do trabalho.
Agora, no último capítulo deste estudo, gostaria de ampli-
ar a discussão até aqui desenvolvida, abordando dois outros tex-
tos de Marx onde o problema da subjetividade também aparece
de maneira muito significativa: Os Manuscritos Econômicos e

75
Filosóficos e o primeiro capítulo de O Capital, intitulado “A
Mercadoria”. Nos Manuscritos, há uma das mais elaboradas dis-
cussões de Marx sobre a subjetividade. Conceitos como os de
alienação e atividade vital consciente, são imprescindíveis para o
projeto de uma Teoria Marxista da Subjetividade. Já no primeiro
capítulo de O Capital, no desenvolvimento do conceito de fetiche da
mercadoria, encontramos uma importante análise de Marx sobre a
mediação das categorias econômicas na formação da subjetividade.

O ser e a atividade vital consciente

Embora os Manuscritos reúnam uma das mais proveitosas


análises de Marx a respeito da condição humana, este legado de
seu pensamento permanece polêmico no conjunto de sua obra. É
um dos seus textos mais estudados. István Mészáros chega a afir-
mar que é a obra filosófica mais discutida deste século. Mas as
idéias de Marx aí desenvolvidas sofreram as mais controvertidas
leituras. Entre as variadas dificuldades de compreensão que o tex-
to encerra, duas das mais imediatas são o seu caráter de fragmen-
to e as dificuldades de tradução. Os Manuscritos constituem obra
inacabada por Marx. Quanto à complexidade da tradução,
Mészáros observa, por exemplo, que Aufhebung assume no texto
diferentes conotações. Em alemão, pode significar ao mesmo tem-
po, “transcendência”, “supressão”, “preservação” e “superação pela
elevação a um nível superior” (Mészáros, 1981, p.14).
Possivelmente, a maior polêmica em torno dos Manuscri-
tos, pela influência atingida, foi formulada por Althusser, quando
afirma a existência de um corte epistemológico na obra de Marx a
partir do ano 1845. As obras anteriores a este período – os Ma-
nuscritos são de 1844 – repousavam em um idealismo cuja
ruptura se efetivara através das categorias da Economia Política.
Estas categorias são: os “conceitos de formação social, forças produ-

76
tivas, relações de produção, superestrutura, ideologias, determi-
nação em última instância pela economia, determinação específica
dos outros níveis, etc” (Althusser, 1979, p. 200). Mesmo que nos
Manuscritos tenha ocorrido o encontro de Marx com a Economia
Política, para Althusser esta aproximação acontece organizada através
da categoria “Homem”. Considera que se trata de uma represen-
tação ideológica, não científica, oposta a tudo aquilo que mais
tarde será representado pelo materialismo histórico. Perry
Anderson diz, em sua obra sobre o “marxismo ocidental”, que
Althusser mesmo tendo rejeitado os textos da juventude de Marx,
define com a avaliação que faz, o campo preliminar da discussão
em torno dos fundamentos do materialismo histórico (Anderson,
1989, p.78).
A perspectiva de Perry Anderson sobre os Manuscritos tam-
bém não é animadora. Considera que a tardia descoberta destes
textos impulsionou no interior da cultura marxista o movimento
de abandono da práxis e de academização do pensamento de Marx.
Observa que a geração de marxistas que apareceu depois da década
de vinte terminou por inverter a própria trajetória do desenvolvi-
mento intelectual de Marx. Enquanto Marx havia evoluído da
filosofia para a política e depois, para a economia, autores como
Della Volpe, na Itália e Sartre e Merleau-Ponty, na França, foram
fortemente influenciados pelos textos filosóficos do jovem Marx.
Esta geração de marxistas, afirma Anderson, teria abandonado
“as grandes causas” do Marx maduro (ibidem, p.76/78).
Diante destes questionamentos de Althusser e Perry
Anderson, gostaria de apontar na análise que será feita sobre os
Manuscritos para a importância deste material no desenvolvi-
mento de uma teoria da subjetividade a partir do pensamento de
Marx e a possibilidade de ver este texto de um ponto de vista mais
integral em relação à sua obra. Com esta perspectiva, comparti-
lho da mesma posição admitida por Maurício Vieira Martins no
seu estudo Marx e o sujeito autônomo: uma polêmica. Maurício

77
vê, no lugar de um corte epistemológico na obra de Marx, uma inflexão
analítica. Uma mudança de direção que não chega a se constituir
como uma ruptura entre um jovem Marx e um Marx da maturidade
Nos Manuscritos, Marx distingue os homens dos animais
em razão dos primeiros tomarem a produção de suas vidas como
objeto de suas consciências.

“A atividade consciente distingue o homem da


atividade vital dos animais: só por esta razão ele
é um ente-espécie. Ou antes, é apenas um ser
autoconsciente, isto é, sua vida é um objeto para
ele, porque ele é um ente-espécie. Só por isso a sua
atividade é atividade livre” (Marx, 1979, p. 96).

O homem é um ente-espécie: isto significa que o homem é


capaz de ver a si mesmo como indivíduo pertencente a uma espé-
cie e ter consciência das possibilidades que a espécie possui como
ser vivente. Para avançar sobre esta questão, temos de observar
primeiramente uma premissa ontológica que Marx estabelece:
“Um ser não-objetivo é um não-ser” (ibidem p.159). Marx con-
cebe a existência de um ser em razão da sua capacidade objetiva.
O ser é todo aquele que tem objetos fora de si mesmo e, ao mes-
mo tempo, constitui um objeto para um terceiro. Marx rejeita
assim a concepção de que o ser pode viver de si mesmo. O ser
deve a sua existência à relação que mantém com os seus objetos:

“O Sol é um objeto, um objeto necessário e


assegurador de vida para a planta, tal como a
planta é um objeto para o Sol, uma expressão do
poder vivificados e dos poderes essenciais obje-
tivos do Sol” (ibidem).

A natureza do ser, portanto, é a de ter a sua existência sem-


pre referida a outro ser. Este princípio não se refere à condição

78
deste ou daquele ser. É uma realidade sensível, comum a todos.
Mas os seres humanos guardam aqui uma particularidade:

“Os objetos humanos não são objetos naturais


como se apresentam diretamente nem é o sentido
humano, como é dado imediata e objetivamente,
sensibilidade e objetividade humanas. Nem a na-
tureza objetiva nem a subjetiva são apresentadas
diretamente de forma adequada ao ser humano.
E como tudo o que é natural tem de ter uma
origem, o homem tem então seu processo de gê-
nese, a História, que é para ele, entretanto, um
processo consciente e, portanto, conscientemen-
te autotranscendente” (ibidem, p. 160).

Para o Sol, a planta é seu objeto natural. A sensibilidade da


planta ao Sol é uma sensibilidade natural, uma sensibilidade ime-
diata e própria a todos os objetos da natureza. Os objetos do ho-
mem são sensíveis a uma objetividade humana. Nesta relação, os
objetos sofrem de uma mediação que lhes modifica a sua anterior
sensibilidade natural. Tal mediação decorre de uma objetividade
na qual os sujeitos, ante os seus objetos, são objetivamente pro-
cessuais. Os homens, que têm a sua origem, a sua criação na his-
tória, tornam seus objetos sensíveis aos processos que sofrem o
ser. A objetividade do Sol diante da planta será sempre a objetivi-
dade que é própria do Sol no interior da natureza (cosmos). Já os
objetos humanos não são objetos da natureza para ele, mas obje-
tos que ele concebe. Nem os objetos humanos confirmam uma
objetividade que seja inerente aos homens – estes objetos são sen-
síveis às objetividades do ser em sua existência histórica e social.
Embora o ser dos homens comporte objetividades infinitas,
uma vez que dispõe conscientemente de toda a natureza para
idealizar suas realizações, isto não significa que são objetivos
concebidos fortuitamente ou de acordo com um livre-arbítrio.

79
Sendo um ente-espécie, os homens compartilham de um estado
geral do ser que fundamenta os seus objetivos. É na história dos
homens que o estado do ser é disposto. Nos Manuscritos, Marx
trabalha com um conceito fundamental a respeito da sociedade
capitalista que substancia o estado geral do ser e está na base de
seus objetivos. Este conceito é o de trabalho alienado.
Marx, ao analisar o trabalho alienado, parte da seguinte
constatação: “O trabalhador fica mais pobre à medida que pro-
duz mais riqueza e sua produção cresce em força e extensão”
(ibidem, p.90). A alienação que mantém o trabalhador afastado
dos produtos do seu trabalho tem como conseqüência a indepen-
dência destes produtos diante dos seus produtores. Uma tensão
vivida entre o mundo humano e o mundo dos objetos. Aquilo
que foi posto pelo trabalhador no objeto de seu trabalho, não lhe
pertence mais, é parte da sua vida que foi perdida, agora perten-
cente ao produto do trabalho.
Separado de seus produtores, os objetos do trabalho agora
lhes impõem uma servidão; isto porque na mesma proporção em
que estes objetos se distanciam do seu domínio, são perseguidos
pelos trabalhadores como uma necessidade de suas vidas. Esta
servidão é melhor compreendida quando Marx relaciona o mun-
do humano com o trabalho através da natureza, meio de relação
dos homens com os seus objetos:

“O trabalhador nada pode criar sem a natureza,


sem o mundo exterior, sem o mundo sensorial.
Este último é o material em que se concretiza o
trabalho, em que este atua, com o qual e por
meio do qual ele produz coisas” (ibidem, p.91).

A natureza fornece, simultaneamente, os meios de existên-


cia do trabalho – sem ela não há objetivos para ele – e ainda, os
meios de existência física do próprio trabalhador. No entanto,

80
quanto mais o trabalhador se objetiva, isto é, quanto mais se apro-
pria da natureza, mais dela é afastado. Em primeiro lugar, dela se
afasta porque cada vez menos o resultado da objetivação do tra-
balho lhe pertence como trabalhador. E em segundo lugar, cada
vez menos a natureza se constitui como um meio de existência
física do próprio trabalhador. Aqui, o ponto máximo de sujeição
dos homens frente ao mundo dos objetos se registra na dialética
de precisar ser um trabalhador para manter-se como sujeito físico
e tão somente neste nível, poder ser um trabalhador (ibidem, p.92).
Um segundo aspecto que Marx destaca do trabalho aliena-
do é a alienação do trabalhador da atividade produtiva. Se o pro-
duto do trabalho é alienado do trabalhador, isto acontece porque
a própria atividade produtiva é alienada. A atividade transforma-
se em um infortúnio. Conseqüentemente, a atitude humana frente
ao trabalho é de evitá-lo pelo desgosto que provoca. Se a atividade
é alienada, o homem deixa de particularizar-se frente aos demais
seres, aproximando seus objetivos daqueles que são comuns aos
animais. O homem passa a encontrar satisfação, tão somente em
comer, beber, procriar, etc. Contraditoriamente, é a animalização do
homem, animal tornado humano pelo trabalho (ibidem. 93/94).
Um terceiro aspecto do trabalho alienado que Marx discu-
te é a alienação da vida da espécie. Marx compreende a
especificidade do humano também através do seguinte caráter de
sua espécie: a de dispor de toda a natureza para a criação e realiza-
ção dos seus objetos. A universalidade de seus objetivos oferece
um conteúdo de liberdade ao ser e isto é característico da sua vida
de espécie (ibidem, p.95). Amplitude que é reduzida com a con-
versão do ente-espécie em um ente-individual. Ao afastar-se do
objeto do seu trabalho, o homem afasta-se também da vida da
espécie. A atividade, de meio de expressão da vida, é aqui tão
somente um meio de existência física do trabalhador. Sem com-
partilhar da vida da espécie, os homens têm sua vida circunscrita
à sua existência individual.

81
O trabalho alienado, nas dimensões que Marx desenvolveu
nos Manuscritos, constitui para o ser o seu estado geral: o empo-
brecimento da sua atividade e, naturalmente, de seus objetivos.
Mas não seria possível compreender adequadamente como o ho-
mem chegou a esta condição sem considerarmos o caráter
relacional da espécie:

“Se o produto do trabalho me é estranho e en-


frenta-me como uma força estranha, a quem
pertence ele? Se minha própria atividade não me
pertence, mas é uma atividade alienada, força-
da, a quem ela pertence? A um ser outro que não
eu. E que é esse ser? Os deuses?” (Marx, 1979, p.
98).

Este outro ser a quem pertence o produto do trabalho é


também um homem. Outro homem que não o trabalhador. Ao
considerarmos o caráter relacional da espécie, isto é, que a ativi-
dade do ser humano se estabelece em um processo social, de mútuo
intercâmbio, reconhecemos que está nesta relação o conteúdo
fundamental a ser levado em conta para a transformação da espé-
cie. As relações sociais se interpõem entre o ser e seus objetos e
somente sua mudança pode alterar a própria relação dos homens
com a natureza. Somente assim novos objetos podem ser consti-
tuídos para a vida humana. Mesmo a mais natural e imediata das
relações da espécie, que é a relação do homem com a mulher, está
atravessada pelo modo como os homens vivem socialmente. Esta
relação permite revelar até que ponto o homem tornou-se huma-
no em suas necessidades naturais (ibidem, p.116). Neste aspecto,
interessante acompanhar determinada crítica que Marx faz aos
socialistas utópicos.
Para os socialistas utópicos, o casamento constituía uma
relação de propriedade privada. Propunham, então, que o casa-
mento fosse comunal, relação em que as mulheres deixassem de

82
pertencer a um indivíduo e passassem a dividir a relação com
todos. Esta “prostituição universal”, como disse Marx, está de acor-
do com o projeto através do qual imaginavam superar a relação de
propriedade privada: através da sua generalização. Acontece que
também aqui a comunidade de mulheres serve ao propósito da
posse, tanto quanto a universalidade da propriedade poderia ga-
ranti-la. As necessidades que os homens procuram ver satisfeitas
em uma relação afetiva mantêm o mesmo empobrecimento de
seus objetivos diante da alienação dos seus objetos na atividade
do trabalho. Trata-se de desejar como sua propriedade aquilo que
não lhe pertence.
A criação de objetivos em relação a um outro ser humano é
a expressão do conteúdo social da vida da espécie. Deste modo,
nada é da natureza do indivíduo. O indivíduo, como tal, não
existe. Marx oferece uma síntese desta compreensão na seguinte
frase: “o indivíduo é o ser social” (ibidem, p.119).
O homem é o único ser sensível aos seus objetos. Os obje-
tivos do homem são humanos porque implicam um processo de
subjetivação. Por isso, pode fazer de sua própria vida, um objeto
seu, isto é, pode concebê-la. Esta sensibilidade encontra sua ex-
pressão naquilo que Marx denominou de órgãos de sua indivi-
dualidade: “ver, ouvir, cheirar, saborear, pensar, observar, sentir,
desejar, agir, amar” (ibidem, p.120). É através destes órgãos que o
homem se apropria de seus objetos.
A relação de propriedade privada implica uma apropriação
limitada da vida. Os objetos somente são tidos como nossos na
condição exclusiva de pertencimento como propriedade. Os sen-
tidos do homem, físicos e intelectuais, deixam de expandir-se
quando restritos as delimitações impostas pela posse.

“A substituição da propriedade privada é, pois,


a emancipação completa de todas as qualidades
e sentidos humanos. Ela é essa emancipação

83
porque essas qualidades e sentidos tornaram-se
humanos, tanto sob o ponto de vista subjetivo
quanto sob o objetivo. O olho tornou-se olho
humano quando seu objeto passou a ser um
objeto humano, social, criado pelo homem e a
este destinado” (ibidem, p. 120).

Portanto, os sentidos tornam-se humanos, quando os sen-


tidos do homem encontram nos seus objetos uma fruição liberta
da propriedade privada e passam a refletir o trabalho como uma
atividade cooperativa que não condiciona o trabalhador à aliena-
ção do produto do trabalho. Neste caso, os objetos do trabalho
deixam de ser cobiçados como propriedade para adquirirem uma
nova forma de concepção e satisfação para o homem.
Quando Guattari propõe o conceito de produção de subje-
tividade no lugar do conceito de ideologia, faz isto porque vê este
último ligado à esfera da representação, enquanto compreende
que os processos de subjetivação são mais ampliados, atingindo a
multiplicidade das experiências que servem à aquisição do senti-
do que atribuímos a nossa vida. Observando as discussões que
Marx desenvolve nos Manuscritos, é possível concordar que o
conceito de ideologia tem um uso específico, mas também é pos-
sível dizer que sua obra não ficou alheia a estas questões sobre os
variados órgãos com os quais os homens tomam conhecimento da
vida e servem de sentidos para a expressão da sua existência.
De fato, o conceito de ideologia do modo como foi formu-
lado por Marx, procura explicar um fenômeno que ocorre na cons-
ciência, no sentido de como a realidade humana é apropriada
pelo pensamento. Mas uma compreensão também ampliada da
obra de Marx pode nos assegurar que a especificidade do referido
conceito não produz qualquer limite para o horizonte teórico do
marxismo. A análise que Marx oferece nos Manuscritos acerca da
subjetividade humana, de modo algum, limita a apropriação da
vida humana pelo pensamento. Os sentidos humanos compreen-

84
dem a totalidade da sensibilidade humana diante do mundo hu-
mano. Marx foi até bastante explícito sobre esta posição:

“O homem apropria seu ser multiforme de ma-


neira global, e portanto, como homem integral”
e ainda afirma Marx, “não é apenas em pensa-
mento mas por intermédio de todos os sentidos
que o homem se afirma no mundo objetivo”
(ibidem, p. 120 e 121, respectivamente).

Embora o processo de apropriação da realidade humana


envolva um complexo de sensibilidades, Marx observa que existe
uma sensibilidade própria para cada sentido humano: “o objeto
não é o mesmo para o olho que para o ouvido, para o ouvido que
para o olho” (ibidem, p. 121). Quando vê na apropriação do
mundo humano uma preponderância da posse, Marx chama a
atenção para uma multiplicidade de sensibilidades que é alienada
do homem. Quando olhamos para algo e fazemos disso um pro-
pósito para a nossa vida, ficamos apenas sensíveis à possibilidade
de ter o objeto da nossa admiração. A sensibilidade do meu olhar
corresponde à minha servidão ante o objeto. Mas dependendo do
objeto, há uma especificidade no uso dos nossos sentidos. Uma
música encontra sua sensibilidade apropriada não no olhar, mas
no ouvir. Assim, cada uma das faculdades humanas corresponde
a uma sensibilidade desenvolvida no sentido de meus objetivos.
A plenitude da vida humana está relacionada à capacidade
do homem sensibilizar-se ante o mundo. O homem encontra pra-
zer ao apropriar-se de seus objetivos. Mas, enquanto o homem
sofrer a mediação da alienação do trabalho, enquanto seus obje-
tos não constituírem objetivos seus, mas objetivos necessários a
uma sociabilidade estruturada sob a apropriação privada, seus
sentidos não constituirão uma sensibilidade para si – para o
seu prazer, mas uma sensibilidade posta pela realidade da propri-
edade privada:

85
“Para o homem faminto, a forma humana de
alimento não existe, mas apenas seu caráter abs-
trato como alimento (...) o homem necessitado,
assoberbado de cuidados, não é capaz de apreci-
ar o mais belo espetáculo. O vendedor de mine-
rais só vê seu valor comercial, não sua beleza ou
suas características particulares, ele não possui
senso mineralógico” (ibidem, p.122).

Um homem subalimentado tem como objetivo fundamen-


tal diante da comida, a possibilidade de alimentar-se para não mor-
rer. Tornaria-se indiferente à outra forma qualquer de apropriação
do alimento, como, por exemplo, ter prazer com a sua degustação.
Mesmo um homem cuja atividade lhe traz fortuna, como o vende-
dor de minerais, tem uma sensibilidade pouco desenvolvida. O que
lhe sensibiliza nas pedras preciosas é o seu valor comercial.
O fato é que toda a sensibilidade humana reduz-se à neces-
sidade de possuir dinheiro para satisfazer desejos não-humanos:
“a necessidade de dinheiro é, pois, a necessidade real criada pela
economia moderna, e a única necessidade por esta criada” (ibidem,
p. 127). O aumento da produção sob relação de propriedade pri-
vada, longe de significar uma humanidade objetivamente
enriquecida, significa uma maior necessidade de dinheiro, crian-
do um homem empobrecido em suas faculdades. Nem um mun-
do de objetos ampliados corresponde a uma maior riqueza subje-
tiva – uma maior experiência sensorial do homem. “A proprieda-
de privada não sabe como transformar a necessidade bruta em
necessidade humana; seu idealismo é fantasia, capricho e ilusão”
(Marx, idem). Para Marx, o capitalista, melhor que ninguém, sabe
estimular o empobrecimento dos sentidos humanos, a fim de sa-
tisfazer sua objetividade por dinheiro:

“O homem de empresa concorda com os mais


depravados caprichos de seu próximo, desem-

86
penha o papel de alcoviteiro entre ele e suas ne-
cessidades, desperta apetites mórbidos nele, e
presta atenção a cada fraqueza a fim de, posteri-
ormente, reivindicar a remuneração por esse ser-
viço de amor” (ibidem, p.128).

Esta sensibilidade, cuja expressão é tão somente a posse do


dinheiro, não se restringe à apropriação da vida humana através
dos objetos originados da atividade do trabalho. Também os afe-
tos pelos demais seres humanos encontram no dinheiro sua afir-
mação. Carinho, desejo e amor somente estabelecem objetivos
humanos através do dinheiro. Um homem cuja expressão de sua
vida constitua uma nulidade (feiúra, invalidez, desonestidade, etc)
encontra a afirmação do seu ser fora dele mesmo: naquilo que
pode possuir.
Se o trabalho alienado afasta do homem o produto do tra-
balho, a reconciliação do homem com o objeto de sua atividade,
através da posse, significa um reencontro fora de si mesmo. Fora
de si porque acontece desprovido da sua virtual humanidade. O
homem traz sua sensibilidade não em si, mas nos objetos que
pode adquirir. O homem é, ele mesmo, o seu dinheiro: “sou feio,
mas posso comprar a mais bela mulher para mim. Conseqüente-
mente, não sou feio, pois o efeito da feiúra, seu poder de repulsa,
é anulado pelo dinheiro” (ibidem, p.146). Enquanto a ausência
de dinheiro tem o significado humano de o ser não ter em si,
qualquer objetivo: “se não disponho de dinheiro para viajar, não
tenho necessidade real – auto-realizável – de viajar” (ibidem).
Agora é possível retornar a uma pergunta que se impôs a
partir dos questionamentos de Althusser e Perry Anderson: Como
as análises de Marx nos Manuscritos podem figurar diante do
desenvolvimento teórico produzido nas obras da “maturidade”?
O ponto de vista que assumi para examinar esta questão está de
acordo com a perspectiva defendida por Maurício Vieira Martins,

87
cujo estudo Marx e o sujeito autônomo: uma polêmica, menci-
onei no início do capítulo.
Para Maurício, existem certos problemas teóricos nos Manus-
critos. Neste texto Marx havia desvendado que as diversas instâncias
da vida social não tinham existência autônoma. A sociedade como
um todo se organiza de acordo com a forma como os homens se
apropriam da natureza através do trabalho. Diante das condições do
trabalho no capitalismo há uma degradação tão intensa do homem
que sua vida se efetiva como uma anulação das capacidades huma-
nas. Com este raciocínio de Marx, as possibilidades criadoras do ho-
mem são vistas como paradigmas ideais, organizando a análise. Como
afirma Maurício, “o mundo atual é invertido em relação a um mun-
do ideal e este mundo ideal tem um nome, ele se chama sociedade
comunista” (Martins, 1990, p.97). Mesmo que alguns marxistas não
contestem uma crítica à sociedade burguesa mediante um contraste
com uma sociedade ideal, observa Maurício que nos chamados tex-
tos da maturidade, Marx procurou criticar o capitalismo em seus
elementos constitutivos. Ora, a perspectiva que Maurício defende é a
de que Marx, ao perseguir as categorias econômicas para compreen-
der e criticar o capitalismo realizou uma inflexão em sua obra.
Maurício aponta duas razões pelas quais Marx teria pro-
movido esta inflexão. Primeiramente, a compreensão de que a
derivação econômica da sociedade não poderia ser encontrada a
partir do Homem como categoria básica de análise, mas apenas
em outro plano de análise. Em segundo lugar, Marx teve a preo-
cupação de ampliar a recepção de seus textos, dirigindo-se aos
economistas quanto mais percebia a qualidade da esfera econô-
mica para determinação social. O recurso a pressupostos alheios
ao âmbito da Economia Política (ser genérico ou atividade livre,
por exemplo) constituía um tipo de análise que poderia confun-
dir Marx com os demais filósofos: críticos radicais da sociedade,
mas que não apresentaram uma contrapartida, de acordo com a
efetividade empírica (ibidem, p. 108-112).

88
Assim, as conclusões alcançadas por Marx nos Manuscritos
não devem ser rejeitadas sob a perspectiva de que o Marx da “matu-
ridade” adota uma teoria do conhecimento que representa uma
ruptura com a perspectiva teórica anterior. Na verdade, a configu-
ração de um outro plano de análise, centrado nas categorias econô-
micas, permite uma leitura também positiva dos Manuscritos. Isto
é possível aproveitando o caminho posteriormente percorrido por
Marx para fazer um uso crítico dos seus primeiros textos. Com os
elementos disponíveis de toda a sua obra, é possível reelaborar os
pontos de aceitação mais difíceis encontrados nos seus escritos da
“juventude”. A análise sobre o fetiche da mercadoria, que mantém
a significação ontológica do trabalho, permite uma leitura renova-
da dos Manuscritos para o estudo da subjetividade na obra de Marx.

O enigma da mercadoria e subjetividade

No primeiro capítulo de O Capital Marx expõe uma série de


determinações constitutivas do modo de produção capitalista a partir
da análise da mercadoria. É preciso lembrar que nos capítulos seguin-
tes, Marx desvendará outras determinações mais complexas, tais como
a acumulação e a mais-valia e que, portanto, ao iniciar seu estudo sobre
o capital pela mercadoria, estabelece uma opção metodológica – opção
que explica logo no primeiro parágrafo do capítulo:

“A riqueza das sociedades em que domina o


modo de produção capitalista aparece como uma
‘imensa coleção de mercadorias’, e a mercadoria
individual como sua forma elementar. Nossa
investigação começa, portanto, com a análise da
mercadoria” (Marx, 1988, p. 45).

É desta análise da mercadoria que Marx revelará o seu cará-


ter “fetichista”: “Não é mais nada que determinada relação social

89
entre os próprios homens que para eles aqui assume a forma
fantasmagórica de uma relação entre coisas” (ibidem, p.71). Veja-
mos como isto pode ocorrer.
Marx principia sua análise da mercadoria, considerando
suas propriedades de valor de uso e valor de troca. Enquanto va-
lor de uso, a mercadoria deve ser compreendida pelo fato de satis-
fazer necessidades humanas: “A utilidade de uma coisa faz dela
um valor de uso” (ibidem, p.45). Esta é uma característica da
mercadoria que não vai ser alterada ao longo da história. Mas
especificamente sob o modo de produção capitalista, a mercado-
ria é ainda portadora de valor de troca.
Uma mercadoria frente à outra, enquanto valores de uso
são de qualidades diferentes; enquanto valores de troca são de
quantidades diferentes. Um quarter de trigo pode ser trocado por
X de graxa ou por Y de seda, ou ainda por Z de ouro, exemplifica
Marx. Embora, na troca, devam ser consideradas nas mercadorias
suas propriedades enquanto valores de uso – a forma que lhes é
específica, e lhes confere uma utilidade – para que sejam
permutáveis entre si, é preciso que estes mesmo valores de uso
sejam abstraídos. Para que as mercadorias sejam trocadas, precisam
declinar de suas qualidades, sendo identificadas através de uma
propriedade comum: o fato de serem produto do trabalho. Mas,
uma vez feita esta abstração do valor de uso, também declina a
forma de trabalho despendida para a produção da mercadoria:

“Deixa já de ser mesa ou casa ou fio ou qualquer


outra coisa útil. Todas as suas qualidades
sensoriais se apagaram. Também já não é o
produto do trabalho do marceneiro ou do
pedreiro ou do fiandeiro ou de qualquer outro
trabalho produtivo determinado. Ao desaparecer
o caráter útil dos produtos do trabalho
desaparece o caráter útil dos trabalhos neles
representados e desaparecem também, portanto,

90
as diferentes formas concretas desses trabalhos,
que deixam de diferenciar-se um do outro para
reduzir-se em sua totalidade a igual trabalho
humano, a trabalho humano abstrato” (ibidem,
p.17).

O fato de a mercadoria ter nela acumulado trabalho huma-


no indiferenciado confere a ela um valor. O que está posto, por-
tanto, na relação de troca de mercadorias, é o valor nelas contido.
Mas para que a troca se efetive, para que o valor possa se expressar
como valor de troca, é preciso que se constitua uma grandeza de
valor. Trata-se do quantum de trabalho contido na mercadoria.
Isto será verificado através do tempo médio socialmente necessá-
rio para a produção de uma determinada mercadoria.
Vejamos, através de outro exemplo, como Marx enfatiza o
caráter duplo do trabalho, isto é, por um lado, constituir trabalho
humano que produz valor e, por outro, constituir trabalho concre-
to útil que produz valor de uso. Considera que um casaco contém
o dobro de valor de 10 varas de linho. Assim, 10 varas de linho = W
e o casaco = 2W. O casaco e as 10 varas de linho podem confrontar-
se como mercadoria por portarem trabalhos qualitativamente dife-
rentes. Para a produção do casaco, foi despendida determinada for-
ma de trabalho, a do alfaiate, enquanto a confecção de 10 varas de
linho envolveu outra forma determinada de trabalho, a do tecelão.
As duas mercadorias decorrem de trabalhos privados, realizados de
modo autônomo entre si, e só por isso podem confrontar-se como
mercadorias. No entanto, em termos de valores, as duas mercadori-
as são expressão de uma mesma realidade, que é uma abstração do
fato de conterem em si, diferentes formas de trabalho, cada qual
obedecendo a um fim: o de sofrerem dispêndio de força de traba-
lho. Este é o caráter indiferenciado do trabalho humano. Ora, as
grandezas de valor que conferem ao casaco o dobro de valor de 10
varas de linho decorrem do fato de o linho só conter a metade do
dispêndio de trabalho necessário à produção de 10 varas de linho.

91
Deste modo, a mercadoria tem a sua objetividade como
valor, não na forma material que a constitui como uma mercado-
ria específica: “Podemos virar e revirar uma mercadoria, como
queiramos, como coisa de valor ela permanece imperceptível”
(ibidem, p.54). Sua objetividade de valor advém do caráter social
do processo de produção de mercadoria, onde o trabalho huma-
no pode expressar uma grandeza nas mercadorias entre si.
Nesta análise já traçada a respeito da mercadoria, Marx
observa que, embora assumam uma heterogeneidade de formas
como valores de uso, as mercadorias possuem uma forma comum
de valor: a forma dinheiro. É esta a gênese que Marx busca apre-
ender com a expectativa de resolver o “enigma do dinheiro”, a for-
ma mais elaborada da expressão do valor, na troca de mercadoria.
Para resolver tal “enigma”, Marx inicia sua análise pela rela-
ção de valor mais simples entre mercadorias. Esta se obtém entre
apenas duas mercadorias diferentes: a mercadoria A e a mercado-
ria B, o que pode significar 20 varas de linho = 1 casaco. As mer-
cadorias A e B representam dois distintos papéis. Enquanto o
linho expressa seu valor no casaco, encontrando-se assim sob a
forma relativa de valor, o casaco, ao servir de objeto para a expres-
são daquele valor, encontra-se sob uma forma equivalente. Marx
observa que uma mesma mercadoria não pode aparecer, ao mes-
mo tempo, sob as formas relativa e equivalente de valor. O valor
de uma mercadoria só pode ser expresso através de uma outra
mercadoria. A forma relativa de valor só pode se instituir se uma
outra mercadoria assumir em relação a ela, uma forma equivalen-
te. Do mesmo modo, a mercadoria que assume esta posição não
pode expressar-se sob a forma relativa de valor, já que não pode
expressar seu valor, mas tão somente, servir de objeto para a ex-
pressão do valor de uma outra mercadoria.
Marx considera, ao contrário dos economistas burgueses,
que na análise da forma de valor, deve-se abandonar de início sua
determinação quantitativa, uma vez que se assim não for, “perde-

92
se de vista que as grandezas de coisas diferentes tornam-se
quantitativamente compatíveis só depois de reduzidas à mesma
unidade” (ibidem, p.55). Apenas como expressões de uma mes-
ma unidade, as mercadorias são trocáveis entre si: 20 varas = 1
casaco. Quando se compara o casaco ao linho, o que está sendo
comparado é o trabalho inserido no casaco com o trabalho inseri-
do no linho. Embora cada uma destas mercadorias tenha sido
produzida por uma determinada forma de trabalho útil, alfaiataria
e tecelagem, a comparação do primeiro trabalho com o segundo
se dá pelo fato de constituírem em comum trabalho humano –
trabalho humano abstrato.
Mas a forma valor, por outro lado, expressa-se ainda em
sua própria determinação quantitativa: “a forma de valor tem de
expressar não só valor em geral, mas também, valor determinado
quantitativamente, ou grandeza de valor” (ibidem, p.57). Na re-
lação de troca entre o linho e o casaco, não se equipara apenas a
primeira mercadoria à segunda, como objeto de trabalho huma-
no abstrato que produz valor, mas ainda determinado quantum.
No caso, 20 varas de linho contêm um quantum de valor que
equivale a um casaco, isto é, ambas as quantidades de mercadori-
as contêm a mesma quantidade de tempo de trabalho. Marx ob-
serva que uma alteração na força produtiva da tecelagem ou da
alfaiataria altera também o tempo de trabalho necessário para a
produção de 20 varas de linho ou um casaco.
Todavia, a forma simples de valor encontra sua insuficiên-
cia analítica no fato de uma mercadoria B distinguir o valor de
uma mercadoria A apenas de seu próprio valor de uso. Deste modo,
a expressão de valor se dá apenas diante de uma outra mercadoria,
que lhe é diferente, “em vez de representar sua igualdade qualita-
tiva e sua proporcionalidade quantitativa com todas as outras
mercadorias” (ibidem, p.64).
Esta forma individual de valor se desdobra em uma forma
mais completa por si mesma, diz Marx. Ainda que neste caso, o

93
valor de uma mercadoria A tenha a sua expressão em apenas uma
mercadoria de outro tipo. Se esta segunda mercadoria for casaco,
ferro ou trigo, não importa. Com qualquer mercadoria que en-
trar em uma relação de valor surgirão, desta relação variável, ex-
pressões simples de seu valor: 20 varas de linho = um casaco ou =
10 libras de chá ou = 40 libras de café ou = um quarter de trigo ou
= 2 onças de ouro ou = ½ tonelada de ferro, etc.
Mas a forma relativa de valor desdobrada tem também suas
insuficiências anotadas por Marx. Em primeiro lugar, a
expressão relativa de valor encontra seu espelho em uma série
infinita. Em segundo lugar, o mundo das mercadorias aparece
em expressões de valor sem conexão entre si. Cada mercadoria
terá para si, uma série interminável de expressões de valor, que
se diferenciará da série interminável de qualquer outra
mercadoria. A forma equivalente de valor, por conseguinte,
encontra aqui também suas insuficiências. Cada mercadoria é
especificamente uma forma equivalente diante de muitas outras
mercadorias também sob a forma equivalente, todas elas se
excluindo nesta posição.
O fato do produtor do linho precisar trocar suas mercado-
rias por muitas outras que passaram a expressar o valor do linho
terá, como contrapartida, a necessidade dos demais possuidores
de mercadorias também trocarem suas mercadorias pelo linho.
Desta situação se obtém a forma geral de valor:

1 casaco =
10 libras de chá =
40 libras de café =
1 quarter de trigo =
2 onças de ouro = 20 libras de linho
½ tonelada de ferro =
X mercadoria A =
Etc. mercadoria =

94
Sob a forma geral de valor, as mercadorias têm seus valores
representados de modo simples, mas unitário, isto é, na mesma
mercadoria cuja forma valor é comum a todas elas. Uma vez que
todas as mercadorias expressam seu valor no linho, aparecem não
apenas como qualitativamente iguais, mas com grandezas de valor
quantitativamente comparáveis: se 10 libras de chá = 20 varas de
linho e 40 libras de café = 20 varas de linho, temos então, 10 libras de
chá = 40 libras de café. Esta é a primeira equação em que está dada a
representação da existência puramente social do mundo das merca-
dorias. Através do caráter de equivalente geral, o linho é a expressão
de valor que abstrai dos trabalhos úteis privados seu pertencimento a
uma comunidade de produtores independentes, ao equipará-los a
trabalho humano, isto é, a trabalho humano indiferenciado. Como
diz Marx, a forma geral de valor “evidencia que no interior desse
mundo (das mercadorias) o caráter humano geral do trabalho cons-
titui seu caráter especificamente social” (ibidem, p.67).
Mas para que uma mercadoria possa assumir a forma de equi-
valente geral reconhecida socialmente, é preciso ainda, diz Marx,
que corresponda a um gênero específico de mercadorias. Esta mer-
cadoria, que em si reúne a sua forma natural à forma equivalente de
valor, torna-se mercadoria dinheiro. Sua função social é a de reali-
zar a função de equivalente geral, no interior do mundo das merca-
dorias. Historicamente, o ouro já preencheu esta posição:
20 varas de linho =
1 casaco =
10 libras de chá =
40 libras de café = 2 onças de ouro
1 quarter de trigo =
½ tonelada de ferro =
X mercadoria A =

Obtém-se a forma preço através a expressão relativa sim-


ples de valor de uma mercadoria. No caso do linho temos:

95
20 varas de linho = 2 onças de ouro
ou
20 varas de linho = 2 libras esterlinas,
Se 2 libras esterlinas correspondem monetariamente a 2
onças de ouro.
Todo esse esboço que realizamos acerca da busca de Marx
em alcançar o “enigma” da forma dinheiro será agora importante
para compreendermos sua análise sobre o fetiche da mercadoria.

“À primeira vista, a mercadoria parece uma coi-


sa trivial, evidente. Analisando-a, vê-se que ela é
uma coisa muito complicada, cheia de sutileza
metafísica e manhas teológicas” (ibidem, p.70).

De onde provém, pergunta Marx, o caráter enigmático da


mercadoria? Da própria mercadoria, responde. A relação social
entre os possuidores de mercadoria se revelará como uma relação
social entre os produtos do trabalho:

“O misterioso da forma mercadoria consiste,


portanto, simplesmente no fato de que ela refle-
te aos homens as características sociais do seu
trabalho, como características objetivas dos pró-
prios produtos do trabalho, como propriedades
naturais sociais dessas coisas e, por isso, tam-
bém reflete a relação social dos produtores com
o trabalho total como uma relação social exis-
tente fora deles, entre objetos” (ibidem, p.71).

Se lembrarmos que na Ideologia Alemã, Marx já havia es-


tabelecido o nexo entre a inversão na consciência dos homens
acerca das reais condições de produção da vida, com as próprias
condições invertidas que constituem este processo, a análise sobre
o fetiche da mercadoria não apenas mantém coerente com o

96
conjunto de sua obra, quanto representa o amadurecimento do
autor para a temática da inversão. Neste aspecto, concordamos
com Larrain quando este observa que nos escritos produzidos até
o surgimento dos Grundrisse, a relação entre “consciência inver-
tida” e “realidade invertida” era estabelecida por Marx de maneira
direta, isto é, sem mediações conceituais. Mas ao perseguir as ca-
tegorias econômicas constitutivas da sociabilidade capitalista, Marx
estabelece teoricamente as mediações que no próprio plano da
realidade estruturam aquela relação (Larrain, op. cit., p.84).
Estas mediações são produzidas através do caráter especial
do trabalho que produz mercadorias. Para que o produtor inde-
pendente possa satisfazer suas múltiplas necessidades, é preciso
que os objetos de seu trabalho, enquanto objetos de uso, se tor-
nem mercadorias que sejam permutáveis. Esta possibilidade se
efetiva como relação de troca. A gravidade da relação de troca é
de que o conteúdo social dos trabalhos privados só aparece na
própria troca. Neste momento é que os objetos de trabalhos úteis
determinados se convertem em uma grandeza de valor que não é,
senão, a conversão dos trabalhos úteis em trabalho humano abs-
trato. É através desta unidade comum a todas as mercadorias, que
os objetos de trabalho podem ser trocados.
Marx conduz sua reflexão até a Idade Média para registrar a
historicidade do fenômeno que é o fetiche da mercadoria. Na Ida-
de Média, ao invés da existência de produtores privados indepen-
dentes, o que se estabelecia era uma rede de dependências pessoais
que envolviam servos e senhores feudais, vassalos e suseranos, leigos
e clérigos. Toda a produção material, bem como as demais esferas
da vida, se estruturava sob aquelas relações pessoais. Em relação a
uma instituição medieval que era a corvéia, observa que também
era medida pelo tempo, tanto quanto o trabalho que produz mer-
cadorias; mas tal relação tinha uma correspondência diretamente
social, na medida em que o servo sabia ser determinada quantidade
de sua força de trabalho despendida no serviço ao seu senhor.

97
“Portanto, como quer que se julguem as másca-
ras que os homens, ao se defrontarem aqui, ves-
tem, as relações sociais entre as pessoas em seus
trabalhos aparecem em qualquer caso como suas
próprias relações pessoais, e não disfarçadas em
relações sociais das coisas, dos produtos de tra-
balho”. (ibidem, p.74).

Sob o modo capitalista de produção, o estabelecimento do


mercado, embora tivesse liberado os produtores de uma cadeia de
dependência pessoal, veio torná-los presos a uma cadeia de de-
pendência diretamente econômica. Esta nova dependência na qual
o homem se enredou é para ele de difícil revelação. Os homens
não percebem que, ao equipararem os objetos de diferentes traba-
lhos úteis, estão equiparando trabalho humano: “Não o sabem,
mas o fazem” (ibidem, p.72).
Sobre esta dimensão de alienação da vida humana em que
os homens não adquirem consciência das efetivas circunstâncias
nas quais se dá o processo de produção de suas vidas, Marx obser-
va que a descoberta de que os produtos do trabalho, enquanto
valores, constituem a expressão do trabalho humano que envol-
veu a sua produção; embora tenha valorosa importância científi-
ca, não dissipa, de modo algum, a objetividade com a qual se
apresentam as mercadorias. Para os seus produtores, continuam
aparecendo como coisas com vida, e o mundo das mercadorias
como uma relação social entre elas.
Para que os homens deixem de ver nos objetos de seu
trabalho uma relação social, antes é preciso que os produtos do
trabalho deixem de portar as relações sociais, que tão somente os
homens podem engendrar. É preciso superar o processo de trabalho
em que os seus produtos se transformam em mercadorias. Ora,
como já vimos, os objetos do trabalho existem como mercadorias,
porque tão somente mediante a troca, os produtores privados

98
independentes podem satisfazer suas necessidades. O mundo deixa
de aparecer como “mundo das mercadorias” quando de fato este
deixar de existir, o que só se pode estabelecer através de um processo
produtivo que ultrapasse a divisão social do trabalho: “O reflexo
religioso do mundo real somente pode desaparecer quando as
circunstâncias cotidianas, da vida prática, representarem para os
homens relações transparentes e racionais entre si e com a
natureza”. (ibidem, p.76). Relação esta que apenas pode se afirmar
mediante a socialização dos meios de produção.
Do mesmo modo que o conceito de ideologia é um con-
ceito restrito, o conceito de fetiche da mercadoria também o é.
Através do conceito de ideologia, Marx procurou compreender o
fenômeno da inversão na consciência acerca das reais condições
de produção da vida. O conceito de fetiche da mercadoria é restrito,
no sentido de que procura explicar como na consciência o fato dos
produtos do trabalho aparecem como organismos vivos capazes de
tecer suas próprias relações, escondendo aos homens suas próprias
relações sociais. Nos dois fenômenos – o ideológico e o fetiche da
mercadoria – Marx enfatizou que a inversão não se estabelece na
consciência. A consciência é, também em relação ao fetiche, a cons-
ciência das reais condições existentes. Não é um fenômeno alocado
na consciência, mas no processo de produção da vida.
Mas em relação ao conceito de ideologia, o conceito de
fetiche da mercadoria é produzido através de mediações conceituais
que explicam, no plano fenomênico, como se estabelece o nexo
entre a base “material” e determinada configuração da consciên-
cia humana. Ao desvendar como a mercadoria dinheiro pode as-
sumir a posição de equivalente geral frente às demais mercadorias
e, conseqüentemente, revelar o “enigma” que envolvia a própria
mercadoria, Marx mostrou como se dá concretamente a determi-
nação do trabalho sobre o mundo humano. Ao desenvolver as
categorias da Economia Política, Marx pôde expor uma rede de
instituições econômicas e sociais das quais os homens participam

99
inconscientemente. Esta rede não é senão, o complexo estruturado
de sua atividade – enfim, o processo social de produção de suas
vidas. O amadurecimento de Marx para esta compreensão permi-
tiu-lhe forjar a seguinte síntese sobre a constituição do sujeito, no
prefácio que escreveu para a primeira edição de O Capital:

“Para evitar possíveis erros de entendimento,


ainda uma palavra. Não pinto de modo algum,
as figuras do capitalismo e do proprietário
fundiário com cores róseas. Mas aqui só se tra-
ta de pessoas à medida que são personificações
de categorias econômicas, portadoras de deter-
minadas relações de classe e interesses. Menos
do que qualquer outro, o meu ponto de vista,
que enfoca o desenvolvimento da formação eco-
nômica da sociedade como um processo histó-
rico-natural, pode tornar o indivíduo respon-
sável por relações das quais ele é, socialmente,
uma criatura, por mais que ele queira colocar-
se subjetivamente acima delas” (ibidem, p. 19).

As atitudes e o afeto humano frente ao mundo não se esta-


belecem a partir das determinações de seu coração, ou melhor, o
coração humano, enquanto vigorar a realidade social da divisão
do trabalho, encontra-se nas instituições da vida econômica e so-
cial, onde o homem alienou sua própria vida.
Marx, ao manter a temática da subjetividade humana em O
Capital, demonstrou a pertinência desta discussão para a crítica do
capitalismo. A compreensão de que o capitalismo constitui um modo
de produção que produz a alienação do trabalhador, não se restringe,
portanto, ao aspecto material do processo de trabalho. Também em
O Capital, Marx assinalou o campo da consciência como um campo
privilegiado da alienação do ser. A crítica ao modo de produção capi-
talista é também a denúncia de um processo de trabalho que estabe-
lece um desconhecimento, um estranhamento do homem acerca das

100
condições pelas quais produz sua existência. Embora o homem tra-
balhe e saiba do infortúnio disto, desconhece a natureza ontológica
da sua atividade. Deste modo, o homem vê o mundo, mas não se vê
nele. O homem porta-se diante de uma “imensa coleção de merca-
dorias” como quem paga um tributo a um onipotente deus, quando
é o verdadeiro criador da sua existência.
A recorrência desta discussão em O Capital, ao mesmo tempo
em que guarda uma distância temporal e analítica em relação ao iní-
cio de sua obra, aproxima-se dela também. Ao perseguir as categorias
da Economia Política, Marx diminui suas referências às temáticas
que no início de sua obra eram mais pregnantes. Basta ver que nos
Manuscritos, o problema do estranhamento percorre todo o texto.
Já em O Capital, o fetiche da mercadoria constitui apenas uma seção
da obra. Mas os ganhos que o pensamento de Marx obteve desenvol-
vendo seus estudos na Economia Política não deveriam relegar a cha-
mada obra da “juventude” a um segundo plano. Parece produtivo
para o legado de Marx, retirar do seu amadurecimento para a com-
preensão das circunstâncias mais pertinentes ao processo de produ-
ção da existência, uma leitura que viabilize uma apropriação mais
rica do conjunto de sua obra. Assim, questões mais antropológicas –
próprias do início do pensamento de Marx – podem ser oportuna-
mente significadas diante da totalidade do seu pensamento.
Deste modo, análises contidas nos Manuscritos sobre sub-
jetividade humana, como aquela desenvolvida no conceito de ati-
vidade vital consciente, podem ser substanciadas pelos ganhos teó-
ricos que Marx obteve, realizando análises mais fecundas no âm-
bito da Economia Política. Neste caso, esta aproximação poderia
seguir uma dupla via, uma vez que mesmo tendo dificuldades
conceituais, as discussões realizadas por Marx nos Manuscritos
sobre a consciência são, como vimos, bastante abrangentes, o que
permitiria ampliar também tópicos desenvolvidos mais tarde ape-
nas pontualmente em sua obra, como o fetiche da mercadoria.
Este é um caminho que o projeto de uma Teoria Marxista da
Subjetividade não deveria desconsiderar.

101
102
CONCLUSÃO

Neste trabalho meu objetivo foi realizar uma discussão so-


bre as possibilidades de uma Teoria da Subjetividade em Marx.
Para tanto, meu propósito específico foi apontar a existência de
elementos na sua obra que serviriam de ponto de partida para
este projeto, considerado necessário, mas ainda não desenvolvido
no marxismo. Marx produziu uma vasta obra, sempre identificada
com a criação de uma visão de mundo materialista e fundada na
determinação do econômico sobre a vida humana. Ao mesmo
tempo, uma obra que freqüentemente foi criticada pela dificul-
dade de relacionar o campo da experiência subjetiva com os as-
pectos materiais da existência. Nos últimos anos, o próprio pen-
samento de Marx de um modo geral, foi considerado equivoca-
do, infeliz ou ultrapassado pela realidade sempre cambiante e até
considerada bem sucedida e derradeira do capitalismo. O fim do
socialismo soviético, o predomínio do meio técnico-científico
informacional e a face neoliberal do capital constituíam o pano
de fundo desta declaração de morte da utopia comunista e do
legado de Marx.

103
Diante de tantas críticas dirigidas ao marxismo, por outro
lado, assistimos agora a existência de um renovado interesse pela
obra de Marx. O fato é que a propaganda sobre as vantagens da
democracia burguesa e do mercado não tem convencido tanto
assim. A percepção de que a prática da representação política não
tem beneficiado satisfatoriamente extensos setores da população
em quase todos os países onde existe e que as ações de
mercantilização dos serviços, dos bens fundamentais necessários
à vida e de todas as vivências sociais, até onde isto já foi possível
realizar, mantém a maior parte das sociedades tensas na disputa
por seus recursos. A permanência da escassez, da miséria, das ex-
clusões e das guerras impede uma assimilação global de que o
capitalismo é bom. Neste caso, o desejo de uma sociedade boa,
socialista, permanece como uma utopia passível de se crer ainda.
O retorna a obra de Marx atende a esta curiosidade de descobrir
novas abordagens e respostas para os problemas históricos e per-
manentes do capitalismo.
A análise das obras de Marx realizada para a investigação
proposta neste trabalho permite dizer que diante das característi-
cas atuais do capitalismo seus textos permanecem relevantes para
a crítica das condições de acumulação de capital, de controle so-
bre o trabalhador e da produção de valores requeridos para a sua
reprodução sistêmica. Mas principalmente nos permite dizer que
esta crítica não deve partir do equivocado suposto de que Marx
atribuía uma importância maior ao “econômico” sobre a ativida-
de da consciência ou a experiência da subjetividade. Não foi este
o problema originalmente desenvolvido pelo autor. Marx funda-
mentou uma interpretação da história e do homem que conside-
rava o primado das condições de produção da existência como
uma perspectiva analítica procedente.
O pensamento epistemológico de Marx não considerou a
subjetividade um componente derivado dos processos de consti-
tuição da vida humana, mas parte inseparável desta realização.

104
Insistiu na negativa de que tratava-se de uma atividade autônoma
do ser, afirmando sempre sua condição socialmente determinada.
Ponto de vista diferente da imaginada declaração de que o “eco-
nômico” tudo explica, asserção que mistificou e deturpou seu
pensamento. O que não significa também que sua obra não pre-
sume o debate e a crítica. Neste aspecto, não há motivos também
para os marxistas execrarem o diálogo e as interpelações. Novos
objetos e problemas ajudam no desenvolvimento do legado de
Marx. Abertura fundamental hoje para manter-se atraente e in-
fluente nas ações de contestação do capitalismo e relevante no
provimento de idéias e exame a respeito da nossa época.
Existe uma passagem dos Manuscritos que bem poderia
servir para nos chamar atenção sobre a necessidade de atualização
do marxismo como uma sedutora conveniência:
“Se se quiser exercer influência sobre outro homem, deve-
se ser um homem que atue sobre os outros de modo realmente
estimulante e incitante. Cada uma das relações com o homem e
com a natureza deve ser uma exteriorização determinada da vida
individual efetiva que se corresponda com o objeto da vontade.
Se amas sem despertar amor, isto é, se teu amor, enquanto amor,
não produz amor recíproco, se mediante tua exteriorização da
vida como homem amante não te convertes em homem amado,
teu amor é impotente, uma desgraça” (Marx, 1987a, p.198).

105
106
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