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Copyright© 2005 por Aristóteles de Paula Berino
Título Original: Elementos para uma Teoria da Subjetividade em
Marx
Editor:
Tomaz Adour
Editoração Eletrônica
Luciana Figueiredo
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Fundação Educacional Serra dos Órgãos
Faculdades Unificadas Serra dos Órgãos
Conselho Diretor
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Vice-Presidente
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Diretor Geral
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Diretor Acadêmico
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Diretor de Pós-Graduação, Pesquisa e Extensão
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Diretor Administrativo
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Diretora do Centro de Ciências Humanas e Sociais
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Diretora do Centro de Ciências Biomédicas
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Diretor do Hospital das Clínicas de Teresópolis Costantino Ottaviano
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Conselho Editorial da Coleção FESO
Bruno Clemente Guingo
Curso de Tecnologia em Processamento de Dados da FESO
Cleber Francisco Alves
Universidade Católica de Petrópolis
Gaudêncio Frigotto
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Editor-Executivo
José Maria Carvalho
Gerente de Comunicação e Marketing da FESO
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SUMÁRIO
Introdução ............................................................................. 7
Capítulo I ............................................................................ 15
A crítica marxista ............................................................. 16
A crítica vulgar do marxismo vulgar ................................. 22
As veias abertas de 68 ...................................................... 24
Capítulo II ........................................................................... 41
A metáfora arquitetônica ................................................. 42
Consciência e classes sociais ............................................. 46
Ideologia e produção da consciência ................................ 54
As cartas de Engels .......................................................... 70
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INTRODUÇÃO
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As idéias de Marx tornaram-se as doutrinas que
inspiraram os movimentos operários e socialis-
tas na Europa. Por meio de Lênin, principal-
mente e da revolução Russa, elas se tornaram a
quintessência da doutrina internacional da re-
volução social no século XX, universalmente
acolhida como tal, desde a China até o Peru.
Através da vitória de partidos e governos identi-
ficados com essas doutrinas, algumas versões
dessas idéias se tornaram a ideologia oficial de
Estados, em que, neste momento, vive algo como
um terço do gênero humano, para não mencio-
nar os movimentos políticos de dimensão e im-
portância variada que a elas se referem no resto
do mundo.
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Apesar de agora não se acreditar tanto na utopia de uma
sociedade boa, este ainda é um estudo sobre Marx. Isto porque
acredito ser possível encontrar na sua obra, de todo modo, ele-
mentos que podem nos ajudar a pensar a nossa época. É assim
que vejo como apropriadas as seguintes considerações de Leandro
Konder (1992, p. 14) quando discute exatamente o futuro do
socialismo:
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Se procurarmos uma obra de referência, como o Dicioná-
rio do Pensamento Marxista (Bottomore, 1988), vamos encon-
trar no verbete indivíduo, escrito por Steven Lukes (p. 192), a
consideração de que, embora o marxismo como ciência social re-
jeite “explicações elaboradas em termos de propósitos, atitudes e
crenças individuais, preferindo considerá-las, elas próprias, como
matéria a ser explicada”, não dispõe de uma microteoria que per-
mita trabalhar sobre este conjunto de questões. Massimo Canevacci
(s/d, p. 20) diz que a fundamentação materialista da subjetivida-
de foi uma das novidades que explodiu com o ciclo de lutas de
maio de 68 e reitera a conclusão que este empreendimento não
foi ainda sistematizado.
Paulo Silveira, organizador de uma obra dedicada ao tema
(Silveira e Doray, 1989), observa que o debate sobre a subjetivi-
dade no interior do marxismo esteve em recesso no período
stalinista e, mesmo depois, foi recebido com desaprovação por
determinadas correntes, já que era considerado um problema teó-
rico menor. Apesar de admitir que o tema fora, de maneira geral,
testado sob uma perspectiva hipostasiante, isto não seria suficiente
para um abandono da discussão, diz Silveira. Entende inclusive
que a relevância do marxismo não deveria ser considerada exclu-
sivamente como uma explicação sobre as condições objetivas do
desenvolvimento histórico: “a objetividade na história, diz, é
impensável sem uma íntima correspondência com a subjetividade”
(Silveira, 1989a, p. 11/12).
Se Marx em diversos momentos da sua obra refletiu sobre a
subjetividade, por que esta questão não foi satisfatoriamente de-
senvolvida como um firme legado do seu pensamento, considerado a
“principal matriz teórica” do movimento socialista?
O filósofo theco Karel Kosik (1967, p. 91) chamou a atenção
para a necessidade de se distinguir as correntes filosóficas que são
capazes de resolver problemas essenciais do homem e do mundo
mas que, por falta de tempo, concentraram-se em apenas algumas
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questões, deixando para as gerações vindouras a oportunidade de
outros exames, daquelas para as quais a “falta de tempo” é apenas
um argumento que esconde a incapacidade de desenvolver deter-
minados problemas.
Neste estudo, procuro destacar, a despeito das críticas feitas
a respeito da abordagem de Marx sobre a subjetividade, que a
ausência de uma teoria elaborada acerca deste problema no pen-
samento marxista não pode ser creditada ao próprio Marx. Pelo
contrário, a recorrência e a fecundidade com a qual discutiu a
subjetividade humana deveria ser sugestiva e indicativa da rele-
vância do tema, como diria Kosik, para as “gerações vindouras”.
O propósito inicial foi o de percorrer parte significativa da
sua obra, apresentando sua discussão a respeito da subjetividade
cronologicamente, de acordo com a seqüência com a qual foi ela-
borada. Logo admiti esta impossibilidade. Trata-se, é claro, de
uma vasta obra e é com freqüência que se refere à questão. Esta
seria uma árdua tarefa para um estudo característico de uma dis-
sertação de mestrado. Assim, foi preciso decidir sobre os textos de
Marx que seriam apropriados para a minha investigação.
A seleção dos textos foi feita, então, da seguinte forma:
partindo das críticas comumente feitas a Marx ou ao marxismo
em relação às reflexões produzidas sobre a subjetividade, revelou-
se um senso-comum a respeito. Este inventário, que constituirá o
primeiro capítulo, aponta para uma leitura da obra de Marx que
vê na noção de determinação do econômico em última instância e
na concebida relação da base com a chamada superestrutura, uma
grande precariedade para uma teorização que desenvolva de forma
relevante o assunto. Alguns destes críticos enxergam problemas
até em um conceito bastante caro aos marxistas: o de ideologia.
Para a apresentação destas críticas examinei não apenas
autores que mantêm muitas divergências com o marxismo, mas
destaquei também pensadores que compartilham de uma identifi-
cação com a obra de Marx, mas enxergam problemas na elaboração
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do tema. Como o conjunto destas críticas refere-se basicamente
às concepções que Marx desenvolveu em A Ideologia Alemã, O
18 de Brumário de Louis Bonaparte e o Prefácio para a Crítica
da Economia Política, optei por iniciar esta reflexão com estes
três textos. A discussão feita com este material será o segundo
capítulo, com o acréscimo de uma referência a duas cartas de
Engels também pertinentes ao debate suscitado pela referida
leitura.
Depois de ter exposto Marx diante de seus críticos e exami-
nado as objeções que são feitas ao seu pensamento, desenvolvo o
tema estudando dois outros textos que são também referências
importantes para esta discussão: Os Manuscritos Econômicos e
Filosóficos e o primeiro capítulo de O Capital, “A Mercadoria”.
O primeiro texto foi escrito antes dos outros já mencionados.
Portanto, isto alterou o projeto inicial de apresentar minha pes-
quisa de acordo com a seqüência com a qual os textos de Marx
foram escritos. Preferi uma aproximação observando uma conhe-
cida polêmica que aponta para algumas supostas debilidades de
Marx para discutir a subjetividade, conduzindo depois o debate
para a contribuição realizada em dois momentos algumas vezes
considerados distintos da sua obra: O jovem Marx e o Marx da
maturidade.
A seleção do material estudado deixou de lado outros textos
também relevantes para o propósito desta discussão. A Crítica do
Direito do Estado de Hegel, por exemplo. Mas não me pareceu,
para cumprir as condições desta pesquisa, absolutamente preciso
ir tão adiante, abordando minuciosamente o pensamento de Marx.
O objetivo principal foi apontar para as possibilidades de encontrar
na sua obra um registro válido e ainda atual para discutir a
subjetividade humana como uma questão essencial para a
imaginação de uma sociedade comunista e a realização das críticas
que podem e precisam ser feitas para a ultrapassagem do
capitalismo.
12
***
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CAPÍTULO I
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de 68. Das perspectivas políticas que são aí inauguradas, determi-
nadas leituras sobre a produção da subjetividade interpelam o
marxismo. Mencionaremos aqui, as críticas da História das Men-
talidades, de Michel Foucault e de Felix Guattari.
A crítica marxista
16
humana. Tal visão difere de determinadas leituras mecanicistas,
onde a situação ideológica é simplesmente entendida como uma
distorção do conhecimento operada de maneira interessada pelas
classes dominantes. Mas considera que Marx fez referências a este
fenômeno de maneira pouco elucidativa. Seria o caso, por exem-
plo, quando impressionado com a invenção da fotografia, Marx
comparou o que seriam as “falsas representações” com a inversão
das imagens que ocorre na câmara escura. Comparação que não
permitiria compreender a complexidade do processo de distorção
da consciência (Konder, 1992, p.33/35).
De qualquer forma, diz terem sido as categorias de base e
de superestrutura, expressas no Prefácio para a Crítica da Econo-
mia Política, os elementos realmente complicadores do conceito
de ideologia.
No Prefácio, na famosa passagem em que Marx fundamenta
a produção da consciência a partir das relações de produção,
Konder registra uma problemática modificação de outra proposi-
ção presente na Ideologia Alemã. Neste manuscrito de 1845/46,
Marx formulou que a vida determina a consciência e não o con-
trário. Na obra de 1859, a proposição se modificou da seguinte
maneira: “não é a consciência dos homens que determina o ser
deles, mas ao contrário, é o ser social que determina sua consciên-
cia”. Aqui, Marx faz a opção pelo conceito de “ser”. Embora mais
abrangente que a noção de “vida”, assume o caráter de “ser soci-
al”. Isto pressuporia não só a vida, como também uma qualidade
determinada de vida: vida “social”. E mais, o “ser social”, que de-
termina a consciência, estaria condicionado pelo modo de pro-
dução da vida material. Para Konder, a modificação permitiu que
a noção de “ser social” delimitasse melhor a fundação da consciência
do que simplesmente a noção de “vida”. No entanto, apesar desta
última noção dar conta de um processo mais amplo e menos preciso,
teria a vantagem de ser uma afirmação que não favoreceria a uma
aplicação esquemática.
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Mesmo entendendo que a conseqüência da tese de que o
“ser social” determina a consciência, considera que a sua associação
com as categorias de “base” e de “superestrutura” concorreram
para um determinado reducionismo da questão (ibidem, p. 36-
38). Para Konder, estas expressões, inspiradas na engenharia e na
arquitetura, estabeleceram uma dinâmica cuja imagem de um
edifício conduz a uma interpretação mecanicista do nexo das idéias
e da consciência com o contexto sócio-econômico. Identifica que
esta tendência já estava presente na Ideologia Alemã, quando Marx
afirmou que a moral, a religião e outras formas ideológicas não
tinham nenhuma história, correspondendo a uma emanação di-
reta das relações materiais que as constituíram. Pois bem, para
Konder, embora Marx tivesse o interesse de garantir o caráter
materialista de sua dialética, as categorias em foco tendiam a crista-
lizar dois campos diferenciados no interior de um mesmo quadro
integrado. “Base” e “superestrutura” espacializariam dois instantes
que se operam no tempo, conclui.
Outro autor marxista que critica estes conceitos derivados
de uma metáfora arquitetônica é o antropólogo Maurice Godelier.
No entanto, observa também que a própria tradução da obra de
Marx favoreceu as dificuldades conceituais em torno da referida
metáfora. Em um artigo intitulado “O Marxismo e as Ciências
do Homem”, diz que a metáfora arquitetônica foi utilizada por
Marx para pensar “as leis de correspondência” entre o modo de
produção de uma sociedade e as estruturas de outras atividades
sociais. Ocorre que franceses, ingleses, espanhóis e outros teriam
traduzido essa metáfora com os termos “infraestrutura” e “supe-
restrutura”, o que conduziu à compreensão de que as
infraestruturas teriam maior realidade do que as superestruturas
– estas no extremo, tornando-se quase realidades ilusórias, como
as idéias religiosas ou as práticas simbólicas. Godelier (1989, p.
365) vê aqui a tentação de transformar o pensamento de Marx
em um materialismo vulgar, admitindo, porém, que algumas for-
mulações do próprio Marx caminham nesse sentido.
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Godelier concorda que a metáfora arquitetônica quer apenas
sugerir que não é possível realizar a construção do teto de uma
casa e de suas paredes sem antes terem construído seus funda-
mentos, indicando que há uma anterioridade cronológica e his-
tórica das transformações do modo de produção sobre as demais
estruturas. Sugere também, que a solidez de uma organização so-
cial está relacionada com a força de seus fundamentos. Contudo,
Godelier (ibidem, p. 366) afirma que, para além dessas idéias, a
metáfora parece se esgotar. Considera ainda que, como se vive na
própria casa e não em seus fundamentos, poderia se afirmar também,
de forma equivocada, que as superestruturas são mais importantes
do que as infraestruturas.
Apesar de todos esses embaraços teóricos, Godelier propõe
desenvolver uma concepção aceitável dos conceitos de
infraestrutura e superestrutura. Assim, procura compreender que
estes conceitos expressariam uma distinção de funções e não de
instituições. Para esta argumentação recorre a sua aplicabilidade
às sociedades pré-capitalistas. Enquanto no modo de produção
capitalista a estrutura econômica deve ser identificada no interior
das empresas, quando historiadores e antropólogos isolam a es-
trutura econômica das sociedades pré-capitalistas, devem buscá-
las nas relações sociais, classificadas como superestruturais. É o
caso, por exemplo, das relações de parentesco, que servem também
como registro para apropriação da natureza, já que determinari-
am, ao mesmo tempo, o controle pelos vários grupos de certas
porções do território tribal e de seus recursos. Neste aspecto, aponta
Godelier, constituiria uma questão teórica para as ciências sociais
descobrir em que condições as relações de produção alteram sua
posição no contexto social, modificando suas formas e efeitos.
Alguns autores procuram uma explicação da seguinte maneira: as
relações de parentesco em determinadas sociedades funcionam
como relações de produção na medida em que o parentesco do-
mina o pensamento e rege o comportamento dos indivíduos nes-
tas sociedades.
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Procurando escapar exatamente de análises deste tipo, inter-
pretada como uma hipótese tautológica, pois ensejam uma explica-
ção no sentido previamente desejado, Godelier tem a hipótese de
que as relações sociais tornam-se dominantes apenas quando funci-
onam concomitantemente como relações de produção. Assim, do-
minariam a reprodução da sociedade ao mesmo tempo em que as
representações que organizam e expressam estas relações domi-
nantes, dominam o pensamento. Aqui se confirmaria parcialmente
a hipótese do papel determinante, em última instância, do pro-
cesso de produção da vida material. (ibidem, p. 376/379)
Mesmo buscando uma operacionalidade satisfatória para
os conceitos de infraestrutura e superestrutura, Godelier, tal como
Konder, está de acordo quanto às dificuldades de se compreender
a relação necessária entre o fundamento de uma sociedade, o modo
como os homens produzem sua existência e outros níveis do teci-
do social, através da metáfora arquitetônica.
Detendo-se também nestas questões, Jorge Larrain observa
que Marx teve consciência de que a idéia do condicionamento da
superestrutura pela base econômica poderia sofrer uma apropriação
reducionista e economicista. Para tal conclusão, recorre a uma passa-
gem de “Teorias da Mais Valia”, onde Marx, ao estabelecer a relação
entre produção material da vida e a produção espiritual, adverte que,
para seu exame, faz-se necessário considerar a produção material,
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Assim, considera que para Marx há uma reciprocidade de
influências, não constituindo o nível superestrutural um mero
reflexo passivo da base econômica: a superestrutura teria uma efi-
cácia própria (Larrain, 1989a, p.27).
Para Larrain, embora Engels tenha tentado livrar estas
noções de uma interpretação mecanicista e determinista, não
conseguiu reverter esta tendência dos estudos marxistas que se
desenvolveram durante a década de 1880, sendo que seus próprios
escritos, em parte, teriam concorrido para tal. Segundo Larrain,
em Engels, as abordagens reducionistas foram motivadas pela
ausência de uma concepção de práxis e pela concepção de uma
dialética da natureza apartada da atividade social. O agravamento
da questão foi também possível porque as duas primeiras gerações
de marxistas não conheceram as obras filosóficas de Marx e a
“Ideologia Alemã”, obras onde a noção de práxis se evidenciava
com vigor. A ausência deste conceito mediador tornava difícil a
imagem espacial da base e da superestrutura. Assim, esta última
pôde então ser compreendida como fenômeno secundário, um
mero reflexo das relações de produção (ibidem, p.28)
Uma vez feitas estas considerações, Larrain aponta as debi-
lidades que também vê nos conceitos em questão. Larrain diz que
a metáfora base/superestrutura tem um significado impreciso. Im-
precisão que acontece por servir, ao mesmo tempo, para descrever
o desenvolvimento de níveis especializados da sociedade (o eco-
nômico, o político, o intelectual) sob o capitalismo, e explicar
ainda como um destes níveis determina os demais. Enquanto, diz
o autor, a metáfora arquitetônica parece ser capaz de servir a pri-
meira perspectiva, não parece adequada para explicar a determi-
nação da política e da consciência social ou a emergência de cada
uma daquelas especialidades como parte integrante da totalidade
social. Isto porque a metáfora arquitetônica constitui uma imagem
estática que reduz a dinâmica de determinadas situações, como a
luta de classes, a um nível específico que está separado dos demais:
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“assim, a determinação da superestrutura pela base se torna um
modo externo de causação” (ibidem, p.29)
Com a crítica destes autores foi possível identificar uma
insatisfação no interior do próprio marxismo em relação a um
núcleo do pensamento de Marx que tenta relacionar o econômico
com outros campos da vida social, como a consciência, através
das noções de base/superestrutura.
22
certas práticas econômicas. A emergência do capitalismo deve
ser compreendida pela vocação ao trabalho, sentimento que es-
teve na base das reformas protestantes conjuntamente com ou-
tros fatores. Já Pareto havia definido que a hegemonização do
modo de produção capitalista deve-se a uma “determinação
sistêmica” da economia, esta compreendida como um conjunto
integrado de variáveis sociais, políticas, ideológicas, geográficas e
conjunturais (ibidem, p.228).
Aqui, a tese da determinação do econômico em última ins-
tância é identificada como uma “tese monocausal”. Mono desig-
na único, isolado, idéias que não expressam de modo algum uma
situação complexa onde se estabelece um determinante em últi-
ma instância. Se existe a admissão que o econômico é o
determinante em última instância, é porque há também outros
elementos constituintes enquanto se sobressai o elemento
definidor. Trata-se de uma idéia que merece ser examinada e
esclarecida em vários aspectos, mas que de modo algum pode ser
reduzida à idéia de uma determinação única.
Parece-nos também inadequado refutar determinada hipó-
tese simplesmente recorrendo a conclusões alcançadas por outros
pensadores, no caso Max Weber e Vilfredo Pareto. Estas partiram
de uma visão de mundo diferente daquela de Marx, inclusive com
argumentos antitéticos ao seu. Reconhecer isto, de modo algum
invalida a obra que também produziram. Mas o fato é que as
conclusões alcançadas através de campos teóricos distintos não
podem ser simplesmente apresentadas para a refutação um do
outro. Melhor seria Freitag ter identificado inconsistências, con-
tradições no modo de Marx fundamentar a noção de determinante
em última instância, enfim, falhas em sua formulação e depois
sim, oferecer outras hipóteses que pudessem esclarecer mais acer-
ca do objeto em estudo. Ao invés disso, Freitag reduz tudo a uma
tese de monocausalidade e à fala de uma superioridade de outros
autores na questão.
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As veias abertas de 68
24
Tal movimento não fazia parte do programa político da
esquerda. O enfrentamento à sociedade burguesa, ensinavam os
manuais do marxismo-leninismo e os camaradas do partido, de-
veria ser conduzido pela classe potencialmente revolucionária,
aquela que é expropriada dos meios de produção e cotidianamente
tem alienado um tempo-valor de seu trabalho. Pessoas conscientes
desta exploração e organizadas pelo partido revolucionário. Daí a
fúria de George Marchais:
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“Freqüentemente se coloca a questão: por que
os estudantes, que são privilegiados, filhos de
burgueses, se revoltam com tal violência? Esta
questão, ao mesmo tempo em que silencia o fato
de que muitos estudantes são obrigados a traba-
lhar para prosseguir os estudos, recobre o erro
fundamental: a idéia de que só a miséria materi-
al justifica a revolta e de que um homem que
tem tudo de que precise (no plano material) deve
se encontrar igualmente satisfeito no plano mo-
ral” (Apud, Matos, 1988, p. 38).
26
dominou o grupo no referido período. De qualquer forma, a His-
tória das Mentalidades constituiu-se numa de suas expressões. Não
que fosse de todo negligenciada na época de Braudel, mas foi,
sem dúvida, marginal. Já no decorrer dos anos 60 e 70, alguns
historiadores transferem sua atenção da base econômica para a
superestrutura: na expressão famosa cunhada por Le Roy Ladurie,
transfere-se do “porão ao sótão” (Burke, 1992, p.79/81).
O contexto político do final dos anos 60 e 70 e, muito
particularmente, o ano de 1968, é emblemático para a História
das Mentalidades, já que os problemas por ela colocados e seus
objetos de pesquisa – uma atenção muito especial sobre os múlti-
plos aspectos do cotidiano – estavam em sintonia com as lutas
políticas que emergiram naqueles anos. Uma historiografia tradi-
cional, demasiadamente centrada na esfera econômica enquanto
tal, ou priorizando contextos em torno do universo do trabalho,
parecia não dar conta de outras questões também importantes.
Existiam dimensões da vida humana que estes historiadores pare-
ciam desconhecer. Jacques Le Goff, assim dimensionou a erup-
ção de um novo campo aberto:
27
deve-se observar uma certa heterogeneidade. Nem todos os seus
adeptos remetem as mentalidades ao mesmo estatuto teórico. Para
Paul Veyne:
28
“Em todas as formas de sociedade, é um modo de
produção determinado e as relações por ele engen-
dradas que determinam todos os outros modos de
produção e as relações engendradas por estes últi-
mos, como também seu nível e sua importância. É
como luz geral onde estão mergulhadas todas as
cores e que lhes modifica as tonalidades particula-
res. É como um éter particular que determina o
peso específico de todas as formas de existência que
dali emergem” (Marx apud Vovelle, 1991, p. 21).
29
dos conceitos ideologia e mentalidades. Admite dificuldades, já
que tratam-se de conceitos oriundos de heranças e tradições dife-
rentes. Se agora parece óbvia toda a problemática ao redor do
conceito de ideologia, já que são tantas as leituras que fogem da
simples noção de “falsa consciência”, Vovelle adverte que o con-
ceito de mentalidades ainda não tem um sentido comum entre
todos os historiadores que com ele trabalham (ibidem, p. 14).
Preocupação condizente com a seguinte indagação de Le Goff:
“pergunta-se se a expressão recobre uma realidade científica, se
possui uma coerência conceitual, se é epistemologicamente
operacional” (Le Goff, op. cit., p. 68). As mentalidades parecem
cobrir uma experiência da subjetividade que não é posta em evi-
dência quando se utiliza o conceito de ideologia: “Ele integra o
que não está formulado, o que permanece aparente como não
significante, o que se conserva muito encoberto a um nível das
mutações inconscientes” (Vovelle, op. cit., p. 19; grifo meu).
Os historiadores das mentalidades procuram destacar as-
pectos da subjetividade que tenham escapado às abordagens mais
tradicionais da historiografia marxista. Um destes aspectos foi
enunciado por Ernest Labrousse da seguinte maneira: “o social é
mais lento que o econômico e o mental mais ainda que o social”
(apud Le Goff, 1976, p.69). O que se procura pôr aqui em evidência
é uma estrutura mental coletiva que muda muito lentamente na his-
tória. A seguinte situação narrada por Le Goff parece ilustrativa. Carlos
V, da França, sempre foi considerado pelos historiadores como um
grande conhecedor de economia, reconstituindo as finanças do rei e
fazendo contra os ingleses uma guerra econômica. Ocorre que, no
leito de morte, aboliu uma parte dos impostos. Com o medo da
morte, não quis “aparecer no julgamento carregado do ódio de seus
súditos”. Ora, prevaleceu sobre sua ideologia política, uma mentali-
dade própria do seu tempo (ibidem, p.69/70).
Concordo aqui com a opinião do historiador Guy Bois (s/
d., p.15), que não vê no fato das mentalidades manterem por sua
30
inércia, relações complexas com as estruturas sociais razões para
os marxistas não realizarem seu estudo. Vovelle (op. cit., p. 12/
13) admite a possibilidade de que o medo de enveredarem pelo
economicismo, e aí terem de suportar críticas rejeitando seus traba-
lhos, tenha levado historiadores marxistas à trilha de uma prudência
que os afasta de temas como a história religiosa, das mentalidades
e das sensibilidades.
Konder reconhece o primado de Marx no que se refere à
estruturação das relações de produção naquilo que Ferdinand
Braudel conceituara como longa duração; no entanto, entende
que Marx não deu a devida importância aos movimentos culturais
cujos efeitos são mais lentos. Sua concepção de ideologia lhe per-
mitira abordar o “imaginário coletivo” com fecundidade, porém
tal aproveitamento teria sido prejudicado pela tendência em com-
preender os fenômenos culturais meramente como “acréscimos”
às estruturas sociais. Konder concorda que há na obra de Marx
elementos que comprovam sua atenção quanto à riqueza contra-
ditória do campo do imaginário coletivo. Entretanto, afirma
Konder, o quadro cultural de seu próprio século não lhe fornecia
instrumentos conceituais para o aprofundamento destes fenômenos.
A capacidade de se compreender determinado problema em sua
extensão dependeria da maturidade que o mesmo revela praticamen-
te. Certas nuanças da subjetividade humana e conflitos oriundos da
vida íntima dos indivíduos eram incomuns à percepção no seu
tempo (Konder, op. cit., p.50/61).
Michel Foucault, em uma entrevista feita com Alexandre
Fontoura, onde discute algumas questões sobre a relação saber-
poder, também procura expor as dificuldades conceituais que teri-
am origem nas noções de determinação do econômico em última
instância, de infra e superestrutura e no conceito de ideologia.
Ao situar por volta dos anos 50-55 uma problemática rela-
tiva ao estatuto político da ciência e às funções ideológicas a ela
remetidas, Foucault procura contextualizar em torno das noções
31
de poder e saber, seu interesse pela prática psiquiátrica. Embora a
psiquiatria estivesse muito claramente relacionada aos efeitos de
poder e saber, a questão não interessou àqueles para quem era
colocada. Haveria três razões para este desinteresse. Em primeiro
lugar, os intelectuais marxistas franceses que seguiam os ditames
prescritos pelo PC estavam preocupados em obter o reconheci-
mento das instituições universitárias e do establishment, assim,
suas questões deveriam ser as promovidas por tais instituições. A
psiquiatria e a medicina não construíam problemas nobres neste
ambiente. Outro motivo decorria da situação do stalinismo, que
não se mostrava permeável aos efeitos da criação e limitava-se à
repetição de tudo já visto. Não havia conceitos desenvolvidos para
tratar das questões políticas presentes na medicina e na psiquiatria.
Os marxistas mantinham-se herdeiros de uma tradição cujo dis-
curso era ainda o do século XIX.
Diante do silêncio recebido, Foucault paga seu tributo ao
ano de 1968. Apesar do PC francês e da tradição marxista, as
questões que o incomodavam ganharam relevo diante da abertura
política promovida naquele ano. Finalmente, uma terceira razão
para o impedimento de suas questões: pergunta se não haveria
mesmo, por parte dos intelectuais franceses, quer do PCF, quer a
ele vinculados, uma resistência em colocar o problema da reclusão
– enfim, questões políticas postas pela prática psiquiátrica. Mesmo
que, por volta dos anos 55-60, nem todos tivessem conhecimento
da amplitude do Gulak, pressentiam que era uma temática neces-
sariamente evitável (Foucault, 1986, p.1/6).
Para Foucault, os marxistas estavam pouco preparados para
reconhecer uma instância do poder que fosse mais ampliada do
que uma problemática centrada no “aparelho de estado”. Desco-
nheciam como o poder se exercia concretamente, sua mecânica
produtiva. Uma interpretação mais fecunda foi apresentada a partir
de 68: “a partir das leituras cotidianas e realizadas na base com
aqueles que tinham que se debater nas malhas finais da rede do
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poder”. Acha possível que uma formação intelectual que estimu-
lava análises a partir de conceitos com o econômico em última
instância, ideologia e superestruturas/infraestruturas, tenha cons-
tituído um obstáculo à formulação destas questões relacionadas
ao poder e ao saber (ibidem, p.3).
Precisamente em relação ao conceito de ideologia, Foucault
identifica três motivos através dos quais torna-se de difícil utiliza-
ção. Primeiramente, porque este conceito sempre remete a uma
situação de oposição à verdade. Para Foucault, o problema não
seria o de revelar o quanto de verdade há em um discurso, mas
compreender como historicamente se produz no seu interior um
efeito de verdade. O segundo motivo seria o fato de referir-se
sempre a um sujeito. O último motivo seria sua posição secundá-
ria, em nível superestrutural, diante da determinação econômica
(ibidem, p.7).
Neste quadro, Foucault reclama a necessidade de se procurar
apreender os efeitos do poder que se fazem presentes nos
enunciados científicos, destacando a emergência daquilo que
chama de intelectual específico. Em oposição a um intelectual
cuja proposta é a de ser portador de uma universalidade semelhante
àquela ofertada historicamente ao proletariado – o intelectual que
tem a pretensão de intervir com uma competência muito ampliada,
dono da verdade e da justiça – Foucault propõe um trabalho
político mais determinado, cuja relação entre teoria e prática
proporcionaria uma consciência mais concreta e imediata das lutas.
O nível de atuação é aquele mesmo das condições de seu trabalho,
de suas vidas: a moradia, o hospital, o asilo, o laboratório, as
relações familiares ou sexuais, exemplifica. O que Foucault
pretende concretizar é uma atuação política nas instâncias mesmas
onde o poder atribui sentido de verdade a um discurso. Cada
sociedade estabelece seu próprio regime de verdade, criando os
dispositivos de validação, de distinção dos enunciados verdadeiros
e falsos.
33
Foucault não propõe uma valorização do especialismo no
político. Partindo de uma intervenção em uma das diferentes ati-
vidades onde deve assumir responsabilidades, como físico,
geneticista, farmacologista, etc, os intelectuais devem estabelecer
uma politização global. A premissa para esta articulação é que
este combate local adquire um significado geral, já que o regime
de verdade que passa a ser questionado é essencial para o funcio-
namento pretendido da sociedade. Assim, não se trata de revelar
os conteúdos ideológicos vinculados pela ciência, mas “saber se é
possível constituir uma nova política da verdade”. O que deve ser
modificado, afirma Foucault, não é a “consciência” que os indivíduos
assumem, mas “todo o regime político, econômico, institucional
de produção da verdade”. Conclui afirmando que, de modo al-
gum se tratam de registros ideológicos ou superestruturais e sim,
de uma circunstância mesmo da formação e desenvolvimento do
capitalismo (ibidem, p.8/14).
Para concluir esta apresentação das críticas mais pregnantes
feitas a Marx e ao marxismo quando tratam da subjetividade, lem-
bro ainda o pensador francês Félix Guattari. Também herdeiro
das lutas políticas postas em evidência em 68, Guattari aponta
para a importância política da subjetividade diante de um capita-
lismo que, cada vez mais, investe nas diferentes relações mantidas
pelos homens como forma de dominação da vida: a família, a
sexualidade, o trabalho, o lazer, etc.
Para Guattari, alguns conceitos já bastante vulgarizados pelo
marxismo não ajudam a compreender adequadamente como fun-
ciona o capitalismo. Colocamos aqui, novamente em questão, os
conceitos de ideologia, superestrutura e determinante em última
instância. Propõe, em lugar da utilização do conceito de ideologia,
uma teorização acerca da produção da subjetividade. Ideologia
remeteria a uma circunstância muito limitada à esfera da repre-
sentação, enquanto toda a produção da subjetividade veiculada
pelo que chama de Capitalismo Mundial Integrado (CMI) implica
34
uma situação mais abrangente: uma modelização acerca do com-
portamento, da sensibilidade, da percepção, da memória, das
relações sociais, das relações sexuais, fantasmas imaginários, etc
(Guattari, 1986, p.27/28). Também não admite que a produção
de subjetividade seja remetida à noção de superestrutura, o que a
tornaria dependente das estruturas de produção. Pelo contrário, a
produção de subjetividade seria mesmo matéria-prima do desen-
volvimento das forças produtivas mais elevadas: revoluções cientí-
ficas, biológicas, ciência do robô, etc. Para Guattari, se os marxistas
não compreenderam a questão da subjetividade porque entupidos
de dogmatismo teórico, o mesmo não teria acontecido com as
forças sociais que administram o capitalismo (ibidem, p. 26).
Ao contrário de uma tradição marxista que sempre subme-
teu muito mecanicamente a subjetividade à fundação econômica,
Guattari propõe reconhecer no interior daquilo que Marx
conceituou como infraestrutura uma presença cada vez maior dos
processos de subjetivação (ibidem, p. 27/28). Esta perspectiva
dinamiza uma relação cuja imagem do edifício na metáfora
arquitetônica parece não suportar. Assim, considera que nos mais
modernos ramos da indústria desenvolve-se um trabalho que é, a
um só tempo, material e semiótico. Nesse último domínio há
uma pressuposição que abrange o campo social como um todo.
Anterior à intervenção do aprendizado profissional há a escola
primária, a vida doméstica, a imagem televisiva, enfim, todo um
“ambiente maquínico”. Daí a compreensão de que a produção de
subjetividade não tem exclusivamente o sentido de controlar as
relações sociais e as relações de produção, constituindo-se mais
amplamente como matéria-prima para toda e qualquer produção
(ibidem, p. 27/28).
Buscando reconhecer nos processos de subjetivação uma
qualidade determinante no movimento de acumulação capitalis-
ta, Guattari chega a reescrever alguns conceitos fundamentais da
Economia Política. O lucro passa a ser, sobretudo, produção de
35
poder subjetivo. O consumo de um produto industrial, como um
walkman, está atravessado por uma relação com a música que, de
modo algum, é natural. Quando se produz um objeto como este,
o que a indústria faz é inventar um universo musical – trata-se de
criação de uma nova percepção sobre a própria música (ibidem,
p.32/33).
A noção de mais-valia também precisa ser rediscutida, se-
gundo Guattari. Em primeiro lugar, recusa a categorização de “tra-
balhador coletivo” da forma como Marx teria enunciado. Resul-
tante de um cálculo feito a partir do “trabalho social médio”, se
constitui como um personagem sem substância, abstrato, de or-
dem meramente estatística. Marx pretendia descaracterizar as di-
ferenças individuais no cálculo do valor-trabalho, mas para
Guattari, tal proposta poderia ser correspondente a um registro
contábil do capitalismo, mas não explicitaria seu funcionamento
concreto sob a indústria moderna:
36
Lembra que Marx já havia, nos Grundrisse, assinalado que
o conjunto dos conhecimentos tenderiam a configurar-se como
uma “potência produtiva imediata”. Mas, por outro lado, se Marx
imaginava que com o desenvolvimento alargado da grande in-
dústria, a criação da riqueza estaria cada vez menos dependente
do tempo e da quantidade de trabalho, Guattari entende que o
desaparecimento da medida do tempo de trabalho não será acom-
panhado pelo desaparecimento do valor de troca. Se o capitalis-
mo pode prescindir do primeiro, somente a superação deste siste-
ma social levaria ao desaparecimento do segundo. A crença de
Marx é que deixando de existir a oposição trabalho-lazer, os tra-
balhadores teriam o controle do sobre-trabalho. Mas o que se tem
verificado é que a diminuição do tempo de trabalho necessário
tem sido acompanhada por uma maior penetração do capital no
conjunto da vida das pessoas. Bastaria olharmos os modos de vida
urbanos, os meios de comunicação de massa ou a indústria do
lazer. O trabalhador pode permanecer um menor tempo de sua
vida na fábrica ou em qualquer outro trabalho, mas no resto de
seu tempo, pertencerá a uma sociabilidade cuja expressão será a
que melhor convier ao capital (ibidem, p. 194).
Assim, o capitalismo não subtrai do trabalhador apenas um
acréscimo sobre o tempo de trabalho necessário equivalente ao
valor da sua força de trabalho. Trata-se, sim, em troca de um salá-
rio, de efetuar um domínio bem mais ampliado da vida das pessoas.
Mesmo um trabalho muito simples, como vigiar um dispositivo
de segurança, teria a suposição prévia de um capital semiótico,
cujos componentes podem ser o conhecimento da língua, os cos-
tumes, a hierarquia, etc. O capitalismo parece prescindir cada vez
mais da relação física do trabalhador com as forças produtivas, e
depender cada vez mais de métodos de sujeição em que a subjeti-
vidade exerce um notável papel (Guattari, 1987, p.194/195).
Deste modo, Guattari recusa qualquer compreensão da sub-
jetividade nos domínios de uma natureza humana. O que existem
37
são processos de subjetivação de feição industrial, “maquínica”,
uma subjetividade fabricada e consumida. Enquanto nos siste-
mas sociais mais tradicionais é produzida em instâncias mais
territorializadas, como aquelas vinculadas a uma corporação de
profissionais ou de uma casta, atualmente sua produção se dá em
níveis mais desterritorializados, em escala internacional (idem,
1986, p.25). Outra importante conclusão que procura alcançar é
a descolagem dos conceitos de indivíduo e subjetividade. De
maneira alguma, admite, esta poderia ser centrada em um indiví-
duo. Seu registro é o do social:
38
Vimos como autores com diferentes referenciais teóricos
identificam uma insuficiência no modo como tradicionalmente a
subjetividade foi problematizada pelos marxistas. São críticas lar-
gamente dirigidas às próprias proposições de Marx. Mas, por ve-
zes, torna-se difícil distinguir estas críticas das objeções feitas ao
modo como o seu legado fora assumido e desenvolvido no decor-
rer do século XX. Deste modo, proponho a seguinte questão a ser
desenvolvida no próximo capítulo: Os fundamentos presentes nos
textos de Marx demonstram uma irremediável incapacidade para
fornecer elementos para uma teoria sobre a subjetividade?
39
40
CAPÍTULO II
41
Acredito que, em parte, as críticas que são dirigidas ao pen-
samento de Marx estão muito atravessadas pelo destaque que de-
terminada concepção sobre a sua obra alcançou no decorrer do
século XX. As objeções que são feitas a determinadas formulações
de Marx não são meramente críticas internas aos textos referentes
– são também críticas ao efeito que estes escritos adquiriram no
decorrer da história do socialismo, quer seus críticos estejam ou
não conscientes deste processo. Por isso a importância de se recu-
perar o interesse pela leitura da obra de Marx
A metáfora arquitetônica
42
compreendidas nem a partir de si mesmas, nem a partir do “de-
senvolvimento geral do espírito humano”. Pelo contrário, elas se
enraízam nas relações materiais da vida (ibidem, p. 29). É com
esta compreensão que procura o estudo da Economia Política:
43
pode ser objeto de rigorosa verificação da ciência
natural, e as formas jurídicas, políticas, religi-
osas, artísticas ou filosóficas, em resumo, as
formas ideológicas pelas quais os homens to-
mam consciência deste conflito e o conduzem
até o fim” (Marx, 1987, p. 29-30).
44
com toda a herança hegeliana. Neste caso, a redução das questões
examinadas identificando dois campos específicos da realidade
social cumpre um papel didático na análise. A sentida ausência de
complexidade com a qual as idéias de “base econômica” e de “su-
perestrutura” servem para ilustrar as condições da vida humana é
compensada pela gravidade adquirida pela representação propos-
ta com os dois conceitos. Marx procura, em uma breve passagem
do texto, imprimir força a uma idéia que deveria ser decisiva: A
existência deve ser vista como um processo histórico e um fato
modificável pelos homens.
Neste caso, a proposição em que afirma ser o “ser social” o
elemento que condiciona a consciência, e não o contrário (como
formulavam os velhos e os novos hegelianos) faz da consciência
um dado secundário da vida humana diante das determinações
da “vida material”? O texto examinado não é extenso nesta dis-
cussão. É preciso alguma cautela com as conclusões tiradas. Para
Marx, é a partir da consciência adquirida sobre as circunstâncias
em que a vida é produzida que os homens tomam para si seu
destino como liberdade e ação transformadora. Portanto, a cons-
ciência não figura na elaboração que Marx faz no “Prefácio” pro-
priamente como um dado secundário da produção da existência.
Entendo que a discussão sobre a determinação material da cons-
ciência não é uma discussão sobre a importância maior da “vida
material” sobre a “vida espiritual”. Não me parece que foi deste
ângulo que o problema foi exatamente desenvolvido por Marx.
Sobre o legado da “metáfora arquitetônica” para os marxis-
tas, não me parece hoje de grande relevância saber se foi ou não
apropriadamente criada, mas buscar compreender o que Marx
pretendia expressar por seu intermédio. Trata-se, como se diz, de
uma metáfora e não mais do que isso. Não precisa ser lembrada
como um dos mandamentos de Marx, nem executada da sua obra.
Creio que o reexame deste “nosso patrimônio teórico”, a fim de
sabermos de nossas capacidades frente às questões sociais e políticas
45
da nossa era, não deve ficar preso ao movimento de declarar a
existência de um Marx “ruim”, com a proposta de resgatar alguma
lucidez depois de um longo período dogmático. Um gesto para a
atualização do marxismo é redescobrir em Marx a real delicadeza
e qualidade com a qual pensou determinadas questões.
46
“Sobre as diversas formas de propriedade e so-
bre as condições sociais de existência ergue-se
toda uma superestrutura de sensações, ilusões,
modo de pensar e visões da vida diversas e for-
madas de um modo peculiar. A classe inteira cria-
os e forma-os a partir das suas bases materiais e
das relações sociais correspondentes” (ibidem,
p.442).
47
partidários da realeza. Neste quadro, o “partido da ordem”,
cindindo em duas frações cuja intriga pretendia apenas elevar ao
trono seu próprio pretendente, parecia reunido em um ódio comum
à República. Por outro lado, como representante desta forma de
governo aparecia a Montagne: os social-democratas. Ora, por detrás
das lutas que pareciam envolver os “direitos humanos” pretendidos
pela Montagne, estabelecia-se abertamente uma luta de classes entre
as forças sociais e políticas que compunham o período.
As duas grandes frações que formavam o “partido da or-
dem” eram os legitimistas, que haviam dominado sob a Restaura-
ção (1814 – 1830), período do 2º Reinado da Dinastia dos
Bourbons e os orleanistas, que tinham dominado sob a Monar-
quia de Julho (1830) e constituíam um ramo secundário da Di-
nastia dos Bourbons. Marx pergunta o que ligava estas duas fra-
ções aos seus pretendentes e mutuamente as separavam: “seria
apenas as flores-de-lis e a bandeira tricolor, a Casa de Bourbon e a
Casa de Orleans, diferentes matizes do realismo, seria, em geral, a
sua profissão de fé realista?” (Marx, op. cit., p.442). Lembra que
sob os Bourbons governara a grande propriedade fundiária e sob
os Orleans, a alta finança, a grande indústria, o grande comércio
ou o que é o mesmo, o capital. Ora, as duas realezas constituíam,
então, expressão destes interesses. O que separava, portanto, estas
duas frações, eram suas condições materiais de vida que advinham
de duas espécies diferentes de propriedade. Admite “que, ao mesmo
tempo, havia velhas recordações, inimizades pessoais, temores e
esperanças, preconceitos e ilusões, simpatias e antipatias, convic-
ções, artigos de fé e princípios que os mantinham unidos a uma
ou outra casa real.” (ibidem, p.442). Mas Marx aqui indica que
por detrás de querelas políticas, o que há são interesses de classe
bem definidos. Mesmo no seio da classe dominante, há interesses
cindidos que decorrem da maneira como as formas de proprieda-
de existentes se efetivam. Os indivíduos assumem estes interesses
através dos seus valores ou sentimentos mais diretos. É esta men-
talidade que Marx aqui situa como superestrutural:
48
“O indivíduo isolado, a quem afluem por tradi-
ção e educação pode imaginar que constituem
os verdadeiros princípios determinantes e o pon-
to de partida do seu agir. Se os orleanistas e os
legitimistas, se cada facção procurava conven-
cer-se a si própria e convencer as outras de que
as separava era a lealdade às suas casas reais, os
fatos demonstraram mais tarde que eram mais
os seus interesses divididos, aquilo que impedia
a união das duas casas reais. E assim como na
vida privada se distingue entre aquilo que um
homem pensa e diz de si próprio e aquilo que
realmente é e faz, nas lutas históricas há que dis-
tinguir ainda mais entre as frases e o que os par-
tidos imaginam e o seu organismo efectivo e os
seus interesses efectivos, entre a representação
que têm e a sua realidade” (Marx, 1985, p. 442).
49
Marx relacionou a superestrutura com o comprometimen-
to de uma classe social com suas bases materiais, a forma de pro-
priedade com a qual seus interesses se estruturam e com as rela-
ções de produção que formam o seu contexto social. Isto, de modo
algum, significa que apenas os que estão organicamente ligados a
uma determinada forma de propriedade compartilham os inte-
resses que daí emergem. Marx distingue, no estudo das posições
políticas dos pequenos burgueses que participavam da coligação
social democrata, os representantes políticos e literários de uma
classe, daqueles pertencentes propriamente à classe da qual são
representantes:
50
têm de sua condição de classe e não uma posição que visa a ocultar
suas reais motivações.
Finalmente, deste estudo da Revolução de 1848 em Fran-
ça, gostaria de indicar que algumas perspectivas desenvolvidas pelos
historiadores das mentalidades podem também encontrar em Marx
uma referência válida. Isto a despeito de que as gerações de mar-
xistas posteriores à do próprio Marx tenham evitado análises mais
inclusivas ao campo das mentalidades ou ainda, a despeito do
quanto certos historiadores encontram na História Nova um re-
fúgio adequado contra as posições políticas que sempre estão as-
sociadas ao marxismo.
Uma das primeiras análises contidas em O 18 de Brumário
é a seguinte:
51
que muitos estudos tenham recorrido a esta passagem de O 18 de
Brumário para ressaltar os fundamentos “materiais” das ações
humanas no curso da história. Mas é revelador que geralmente
não se destacam que, precisamente nesta passagem, Marx atribui
grande importância à subjetividade quando explica como os ho-
mens se comportam praticamente diante de situações de maior
gravidade. A comunicação entre gerações, feita através da heran-
ça, a “tradição”, é aqui identificada como um elemento de medi-
ação entre a vontade criativa e o próprio ato de agir radicalmente.
Mesmo quando se quer revolucionar as condições da vida, os
homens, encontram na presença do passado uma ordem de senti-
mentos que associam ao novo que pretendem conquistar.
Esta percepção extraída do 18 de Brumário contraria a
afirmação de Konder e dos historiadores das mentalidades de que
Marx não havia dado a devida importância à longa duração das
estruturas mentais. Para Konder, Marx, de modo algum, havia
reconhecido a importância dos “movimentos culturais”, que apenas
com ritmos lentos produzem efeito. Enquanto havia alcançado o
pioneirismo em conceber a “longa duração” no quadro das
estruturas materiais, não se interessou pela “longa duração” no
imaginário coletivo (Konder, op. cit., p.50). Ora, há de se distinguir
aqui duas questões. Primeiramente, na passagem que citamos fica
evidente que Marx parecia reconhecer o efeito dos “movimentos
culturais” com seu ritmo lento: “a tradição de todas as gerações
mortas pesa sobre o cérebro dos vivos como um pesadelo”. A
herança do passado se faz presente mesmo quando os homens
pretendem revolucionar a vida, garantia Marx. Mas uma outra
questão seria reconhecer que Marx não desenvolveu este problema,
isto é, não fez uma análise mais inclusiva a respeito das
mentalidades que se fazem presentes nas ações humanas na história.
De qualquer forma, os historiadores das mentalidades, marxistas
ou não, podem encontrar no 18 de Brumário uma referência
para esta discussão.
52
Embora Konder tenha realizado a mencionada crítica, re-
conheceu que Marx atribuía aos “símbolos” uma função destaca-
da na história política. Retira esta compreensão também do 18 de
Brumário, na seguinte passagem da obra:
53
chegar ao seu próprio conteúdo. Ali, a frase ul-
trapassava o conteúdo; aqui o conteúdo ultra-
passa a frase” (ibidem, p. 419)
54
uma terceira referência à discussão acerca da subjetividade a respei-
to da determinação do econômico na obra de Marx. A importância
deste material para o pensamento marxista já foi muitas vezes reco-
nhecida. Em relação à questão que está sendo aqui discutida, gosta-
ria de destacar duas qualidades do texto. Em primeiro lugar, trata-
se de uma fonte que contém mais elementos do que aqueles anteri-
ormente discutidos – o Prefácio e O 18 de Brumário. Uma segun-
da qualidade seria a própria introdução do conceito de ideologia,
conceito fundamental para a crítica marxista.
Marx e Engels, ao escreverem A Ideologia Alemã,
pretendiam ao mesmo tempo em que criticavam os jovens
hegelianos David Strauss, Bruno Bauer, Max Stiner e Ludwig
Feurbach pelo idealismo que propagavam em suas obras, apresentar
uma original concepção da história, radicada no materialismo. A
crítica de fundo que realizaram sobre os jovens hegelianos está na
concepção de história que estes assumiam: uma história na qual
os homens se constituem enquanto sujeitos através do avanço
primário de uma consciência modificada. Para Marx e Engels, os
jovens hegelianos, embora tivessem a convicção de que se situavam
além do pensamento de Hegel, partiam das mesmas premissas
quando admitiam a autonomização da esfera da consciência. A
diferença aparecia apenas em uma inversão de sinais. Enquanto
os velhos hegelianos enxergavam nos produtos da consciência “os
verdadeiros elos da sociedade humana”, os jovens hegelianos
denunciavam estes mesmos elementos como “os grilhões autênticos
dos homens”.
Com esta perspectiva, esses filósofos acreditavam que a
condição humana poderia ser modificada, uma vez modificada a
consciência que tinham do mundo:
55
encontram a expressão correta para a sua ativi-
dade quando afirmam que lutam apenas contra
‘frases’. Esquecem, apenas, que a estas mesmas
frases nada opõem senão frases, e que de modo
algum combatem o mundo real existente se com-
baterem apenas as frases deste mundo” (Marx e
Engels, 1982, p. 7).
56
“Os homens são os produtores das suas repre-
sentações, idéias, etc., mas os homens reais, os
homens que realizam tal como se encontram
condicionados por um determinado desenvol-
vimento das suas forças produtivas e do inter-
câmbio a estas corresponde até às suas forma-
ções mais avançadas. A consciência, nunca pode
ser outra coisa senão o ser consciente, e o ser dos
homens é o seu processo real de vida. Se em toda
a ideologia os homens e suas relações aparecem
de cabeça para baixo como uma câmara obscu-
ra, é porque este fenômeno deriva do seu pro-
cesso histórico de vida da mesma maneira que a
inversão dos objectos na retina deriva do seu
processo diretamente físico de vida” (ibidem,
p.13/14).
57
argumentação. Marx e Engels indicavam que o fenômeno ideoló-
gico se origina de uma situação socialmente determinada e não
de condições geradas pela própria consciência, assim como a in-
versão das imagens na câmara escura decorre de um fenômeno
motivado fisicamente.
Para Marx e Engels, as formas de representação da existên-
cia encontradas, por exemplo, na moral ou na religião, não têm
história (ibidem, p.14), isto é, não têm um desenvolvimento in-
trínseco aos seus elementos. Isto acontece porque uma vez trans-
formadas as condições efetivas de produção da vida, muda-se tam-
bém o estado da consciência sobre o homem e o mundo:
58
modo, mesmo admitindo alguma influência distinta em razão da
semântica adquirida pelo uso alternado das expressões “vida” e
“ser social”, o que pode ser verificado examinando os dois textos
mais extensamente é que ambos tornam evidente o elemento con-
dicional das condições materiais da existência sobre a produção
da consciência. Portanto, neste ponto não há diferenças.
Marx e Engels reiteram, naquela última passagem citada, o
enlaçamento da consciência humana pelo processo de produção
da vida. Esta compreensão é aprofundada com a discussão que
fazem acerca da relação da consciência com o desenvolvimento
da produção e do estágio alcançado pela divisão do trabalho.
Nas sociedades primitivas, a consciência é a consciência
sensível imediata do ambiente vivido pelos indivíduos: “A relação
limitada dos homens com a natureza condiciona a sua relação
limitada uns com os outros, e a sua relação limitada uns com os
outros condiciona a sua relação limitada com a natureza” (ibidem,
p.22). Neste estágio da sociedade, a consciência humana é mera-
mente uma “consciência de horda”, afirmam Marx e Engels. Esta
consciência se desenvolve com o aumento da produtividade do
grupo, a multiplicação das necessidades e o aumento da popula-
ção. Este movimento provoca o desenvolvimento da divisão do
trabalho, que em sua origem, limitava-se apenas à divisão sexual
do trabalho e de uma disposição natural (a força física, por exem-
plo). A qualidade superior da divisão do trabalho foi alcançada
exatamente quando apareceu a divisão entre trabalho material e
intelectual:
59
teologia, filosofia, moral, etc, entram em con-
tradição com as relações vigentes, isso só pode
acontecer pelo fato de as relações sociais vigen-
tes terem entrado em contradição com a força
da produção existente” (ibidem, p. 23).
60
Marx e Engels observam que uma correspondência positiva
entre as forças produtivas, o estado da sociedade e a consciência,
somente seria possível com a resolução da divisão do trabalho.
Em dois níveis, a divisão do trabalho produz um fracionamento
da comunidade humana: 1. Possibilita uma repartição desigual,
tanto quantitativa quanto qualitativa do trabalho e dos produtos
do trabalho, e 2. Estabelece uma oposição entre o interesse co-
munitário e o interesse individual. A existência, de um lado, do
produtor e do outro, de um indivíduo que consome o produto
do trabalho, faz da capacidade de produção que advém da coope-
ração um poder que se opõe à maioria. Aqui, a cooperação, medi-
ante a atividade humana que é o trabalho, constitui um poder
alheio aos indivíduos, uma vez que a cooperação assim realizada
subjuga as capacidades. Os indivíduos se inserem no processo social
de cooperação do trabalho para realizar uma função limitada:
61
continuam imperando os interesses privados e as estreitas relações
humanas (ibidem, p.30).
Com a obra de Marx, a divisão do trabalho se constitui
como uma categoria elucidativa muito importante para compre-
ender a subjetividade. É a estrutura fundamental da divisão do
trabalho através da alienação que produz, que caracteriza a ideo-
logia como uma inversão a respeito da apreciação das reais condi-
ções de existência do mundo humano. Para Marx, a teoria, a
filosofia, a teologia ou a moral, etc, não são senão um resultado
das privações que constituem a realização do trabalho. Isto acon-
tece porque, como forma de consciência sobre o homem, não
formulam o homem como um ente social e historicamente cons-
tituído: Separada pela atividade fragmentada e parcial do traba-
lho, sem conhecer os aspectos relacionais da existência humana, a
representação da vida pode ser fixada na experiência particular e
nos estados estratificados do pensamento.
A divisão do trabalho, ao estabelecer lugares diferenciados
na execução do trabalho, cria também interesses diferenciados na
sociedade. Estes interesses são interesses de classe à medida que
representam a conveniência particular de um grupo no processo
de produção da existência. Marx e Engels consideram, neste caso,
que a tendência da classe que é dominante no interior deste pro-
cesso é tornar sua visão de mundo hegemônica:
62
As idéias dominantes não são mais do que a ex-
pressão ideal das relações materiais dominantes,
as relações materiais dominantes concebidas
como idéias; portanto, das relações que precisa-
mente tornam dominantes uma classe, portan-
to, as idéias do seu domínio. Os indivíduos que
constituem a classe dominante também têm,
entre outras coisas, consciência, e daí que pen-
sem; na medida portanto, em que dominam
como classe e determinam todo o conteúdo de
uma época histórica, é evidente que o fazem em
toda a sua extensão, e portanto, entre outras
coisas, dominam também como pensadores
como produtores de idéias , regulam a produ-
ção e a distribuição de idéias do seu tempo; que
portanto, as suas idéias são as idéias dominantes
da época. Numa altura, por exemplo, e num país
em que o poder real, a aristocracia e a burguesia
lutam entre si pelo domínio, em que portanto o
domínio está dividido, revela-se idéia dominante
a doutrina da divisão dos poderes, que é agora
declarada uma ‘lei eterna’ ” (ibidem, p.38/39).
63
como o plebeu será sempre um plebeu, independentemente de
quais forem as relações que partilhem na sociedade. O nobre tem
a sua nobreza inseparável de sua individualidade. Ora, com o
amadurecimento da estratificação social em classes, mesmo que
os indivíduos, em suas condições de vida acidentais, imaginem-se
mais autônomos em comparação com as formações sociais anterio-
res, aquela mesma subsunção revela-se em toda a sua objetividade:
“É-lhes indicada pela classe a sua posição na vida” (ibidem, p.58).
Aqui também a sociedade comunista é concebida por Marx
e Engels como uma oportunidade de afirmação das capacidades
humanas. Nela, o indivíduo desenvolveria sua personalidade sem
o interesse particular de quem encontra-se vinculado a uma con-
dição de classe específica. Poderia aí progredir com o estado múl-
tiplo de experiências que comportam a comunidade. Alcançado
o comunismo, a comunidade não será um organismo de indiví-
duos unidos pela divisão do trabalho, cujo intercâmbio proporci-
ona apenas trocas acidentais, mas um organismo cuja separação
pela divisão do trabalho será ultrapassada pelo intercâmbio deci-
dido pelos indivíduos unidos (ibidem, p.61/62)
Nesta perspectiva, podemos compreender melhor como as
idéias dominantes, as idéias produzidas pela classe hegemônica,
expressam as condições materiais através das quais essa classe rea-
liza o seu domínio. Os indivíduos como pessoas estão aqui
subsumidos à sua individualidade de classe e trazem em si, então,
as condições particulares do seu pertencimento. Assim, de modo
algum, o conjunto das ideologias da qual partilham os indivíduos
da classe dominante constituem idéias que podem ser extraídas
dos indivíduos enquanto tais. Na verdade, elas são lhes relativa-
mente casuais, já que são particularmente adquiridas em razão da
vivência extraordinária dos diferentes ramos da divisão do traba-
lho. No entanto, diante do poder que reúnem como classe domi-
nante, trata-se de um processo de viver que será representado para
toda a sociedade como um ideal comum e aproveitável para todos.
64
Mas esta compreensão de modo algum pode ser abstraída
da história e da cultura das diversas e diferentes sociedades. Por
isso, Marx e Engels chamam a atenção, na referida passagem da
sua obra, para uma situação em que a correspondência entre as
forças políticas da aristocracia, do poder real e da burguesia mol-
da a concepção da divisão de poderes. Com estes elementos
conflitivos da história, os indivíduos encontram uma situação sem-
pre complexa e variável para a formação de uma visão de mundo.
A determinação das relações materiais não condiciona, senão atra-
vés de mediações socialmente construídas, as idéias desenvolvidas
pelas classes sociais.
O conceito de ideologia encerra debates entre os mais pro-
blemáticos nas ciências sociais. Segundo Michael Lowy, este con-
ceito “tornou-se, no decorrer dos últimos dois séculos, objeto de
uma inacreditável acumulação fabulosa mesmo, de ambigüidade,
paradoxos, arbitrariedades, contra-sensos e equívocos” (Lowy,
1988, p.10). Acredito que a leitura da Ideologia Alemã permitiu
aqui delimitar o seu uso com a seguinte propriedade: Trata-se de
um conceito restrito e negativo.
Um conceito restrito porque procura interpretar um fenô-
meno social limitado na sua definição: Refere-se a uma inversão a
respeito do modo como os indivíduos representam idealmente as
contraditórias condições de produção da existência. Neste mes-
mo sentido, é um conceito negativo porque refere-se a um acon-
tecimento que mantém encoberto o conhecimento das condições
materiais que determinam as características da vida social.
Concepção de acordo com a posição defendida por Larrain
acerca deste conceito:
65
consciência não é adequada na medida em que
não especifica o tipo de distorção criticada,
abrindo dessa forma caminho a uma confusão
da ideologia com todos os tipos de erro” (Larrain,
1988b, p. 185).
66
correspondam a uma dimensão da vida social em que os homens
possam assumir uma compreensão das efetivas condições de pro-
dução de suas vidas. Portanto, o conceito não serviria apenas para
registrar uma inversão, mas comportaria a totalidade das formas
de consciência, inclusive dos processos de liberação.
Não vejo que o Prefácio encerre propriamente uma ambi-
güidade em torno do conceito de ideologia diante da concepção
desenvolvida para este conceito em A Ideologia Alemã. Acredito
que haveria alguma duplicidade se no Prefácio o conceito de ide-
ologia apresentasse uma definição teórica que não compartilhasse
as mesmas descrições feitas originalmente na obra escrita com
Engels. Não me parece que isto tenha acontecido.
Marx havia inicialmente estabelecido o conceito diante de
questões muito definidas. Na Ideologia Alemã, afirmou como
ideológicas as concepções da filosofia alemã segundo as quais, a
alienação humana decorre dos “feitos” da consciência. Os homens
se transformariam através de uma consciência alterada do mun-
do. Ao rever esta concepção, mostrou as raízes do fenômeno ide-
ológico: a divisão dos interesses comunitários da sociedade hu-
mana diante do fato social da divisão do trabalho. No 18 de
Brumário, Marx manteve a preocupação crítica de revelar as de-
terminações impostas pelas bases materiais da sociedade. Não es-
tava por detrás dos afetos que mobilizavam orleanistas e
legitimistas, as respectivas formas de propriedade que integravam,
estabelecendo suas verdadeiras paixões?
Pois bem, nestas duas obras, o conceito foi tecido no senti-
do de qualificar a subjetividade humana diante de um modo de
expressão da vida que se constitui a partir de interesses divididos,
particularizados pela divisão do trabalho. Mas a própria assimila-
ção do legado de Marx como fundamento teórico para os diver-
sos movimentos de liberação dinamizou tal compreensão. Pela
primeira vez no curso da história humana, uma classe social
pôde conceber sua emancipação sem desenvolver outro projeto de
67
sociedade fundado na exploração do trabalho. É esta pelo menos
a utopia comunista.
Deste modo, se o capitalismo comporta no seu seio uma
contradição cuja resolução traz aos homens a possibilidade de di-
rigirem pela primeira vez as condições de sua existência, este pro-
cesso de emancipação deve permitir também à consciência um
conhecimento crítico, coerente e admissível a respeito do mundo
humano. No 18 de Brumário, Marx parece ter indicado tal pers-
pectiva quando apontou no recurso as “reminiscências da história
universal” a dissimulação do conteúdo de classe de determinadas
lutas. Aqui, lembra que a “frase ultrapassa o conteúdo”, enquanto
o processo revolucionário assumido pelos trabalhadores prescin-
diria de tal alienação. Como já havia afirmado, Marx parecia ter a
clareza de que o particular processo de lutas assumido pelos tra-
balhadores comportaria todo um processo de desprendimento e
abertura das suas capacidades que alcançaria ainda a atividade da
consciência.
O que se deve considerar quando Marx elaborou original-
mente o conceito de ideologia é que estava especialmente preocu-
pado em caracterizar a natureza contraditória entre a objetividade
constituinte do trabalho para a vida humana e a furtiva consciência
adquirida sobre esta sua importância ontológica. A suposta contra-
dição conceitual que o Prefácio conduz trata-se, na verdade, de
uma perspectiva mais sintética sobre as contradições de classe na
sociedade capitalista. O Prefácio constituía um texto com princípi-
os mais genéricos sobre a ação dos homens na história. Assim, o
conceito de ideologia pôde também ser compreendido em uma
acepção positiva, uma vez que não remetia precisamente a uma
“visão de mundo” burguesa ou proletária especificamente.
Sobre a outra possível ambigüidade presente no Prefácio,
levantada por Lorrain, seria oportuno discutir a possibilidade de
se compreender o conceito de ideologia como não restrito, tendo
em vista que Marx associa as “formas ideológicas” com as formas
68
jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas. Neste senti-
do, o conceito de ideologia comportaria, então, a totalidade das
formas de consciência? Ora, o conceito é restrito porque se refere
a uma inversão que a consciência assume quanto às condições de
produção da existência, mas o fenômeno ideológico não se realiza
de modo compartimentado na consciência e nas práticas sociais.
A ideologia se expressa através das várias instituições criadas pelos
homens para a sua organização social: as formas jurídicas, políti-
cas, religiosas, etc. Esta abrangência das formas ideológicas é, ela
mesma, parte do fenômeno ideológico. Portanto, constituem,
como instituições criadas e mantidas através da divisão do traba-
lho, o resultado concreto da inversão na consciência dos homens
acerca das reais condições de produção de suas existências. Como
prática, as “formas ideológicas” são também o resultado de uma
consciência dividida, alienada através de uma sociabilidade deci-
dida pela divisão do trabalho.
Uma vez estabelecido o significado original do conceito de
ideologia em Marx, na verdade, nada impede que diante do pro-
cesso de produção da consciência sob a luta de classes na socieda-
de capitalista, o conceito possa ser ressignificado pelos próprios
marxistas. Neste caso, deveria-se apenas considerar que a ideolo-
gia da classe dominada difere daquela produzida pelas classes do-
minantes do seguinte modo: enquanto estas, por suas posições de
classe, pelos interesses que veiculam como proprietários dos mei-
os de produção, partilham de uma ideologia que expressa os inte-
resses de perpetuação do antagonismo das classes sociais; a ideo-
logia da classe dominada é aquela que apela para superação a
divisão do trabalho. Portanto, uma ideologia que, pela primeira
vez na história, poderia refletir a consciência das reais condições
de produção da existência.
Gramsci, como anteriormente lembrado, foi um dos mar-
xistas que fez do conceito de ideologia um uso ampliado. Contudo,
sem cair em uma generalidade conceitual que confundisse as parti-
69
cularidades históricas e sociais dos indivíduos. Relacionado a
conceitos como contra-hegemonia, nota-se que para Gramsci, a
admissão da existência de uma ideologia das classes dominadas
compartilha da idéia de que a consciência das condições sociais
existentes é construída também através da vivência política destes
indivíduos, da cultura de classe que foi assim adquirida. Neste
caso, o ideológico é também um campo de disputas da luta de
classes. Um território político onde é possível opor-se ao consen-
so de idéias e práticas proposto pela classe dirigente (Gramsci,
1989). Mas o significado original do conceito, do modo como foi
desenvolvido por Marx, relacionado à temática da inversão, tam-
bém tem sido muito usado pelos autores marxistas. Michael Lowy
é um destes autores. Para ele, a definição de ideologia deve estar
relacionada às formas de pensamento cuja orientação é a repro-
dução da ordem estabelecida, o que conservaria a dimensão críti-
ca que o termo tinha no começo, reservando para o conceito de
utopia, as formas de pensamento que aspiram a um estado ainda
não existente de relações sociais (Lowy, op. cit., p. 11).
As cartas de Engels
70
Em 25 de janeiro de 1894, Engels escreve a Borgius dizen-
do o seguinte:
71
todas estas lutas reais nos cérebros dos partici-
pantes, teorias políticas, jurídicas e filosóficas,
visões religiosas e seu ulterior desenvolvimento
em sistemas de dogmas – exercem também a sua
influência sobre o curso das lutas históricas e
determinam em muitos casos preponderante-
mente a forma delas” (ibidem, p. 547).
72
compreendidos. Termina a carta dizendo que assim, muito dos
novos marxistas “cometeram coisas espantosas”...
São cartas esclarecedoras. Elas reforçam a compreensão de
que, assumindo o pensamento de Marx como um legado para
uma teoria da subjetividade, as diversas dimensões da vida através
das quais os homens assumem suas ações no curso da história, de
modo algum constituem elementos que devem ser considerados
secundários diante da determinação do econômico. O econômi-
co é a base, cujo esclarecimento nos permite fundamentar uma
visão da história e do homem como ente social. Diante das pe-
culiaridades que atingiram as condições de produção do seu
pensamento, Marx precisou concentrar-se na indicação daquilo
que apresentava-se com uma radicalidade maior na sua visão
de mundo. Ao escreverem A Ideologia Alemã, Marx e Engels
não estão apenas propondo uma leitura original da história.
Ao mesmo tempo, combatiam os pensadores que mistifica-
vam os fundamentos da existência. Por isso, tiveram de ofere-
cer uma importância demasiada às estruturas sociais e às cate-
gorias da Economia Política. Isto significa que, uma vez com-
preendido o que é o primado da “economia”, nada justifica que
as outras dimensões da vida não sejam também, com a sua devida
importância, inseridas adequadamente no plano conceitual de-
senvolvido por Marx.
Parece que uma grande capacidade do capital é fazer da
acumulação uma experiência genérica e assídua da própria vida.
E é assim que crescentemente a obra de Marx fornece subsídios
para pensar o homem e imaginar a emancipação como uma tarefa
superior da existência. Diante de um sistema social que toma o
homem por inteiro, que não se limita a explorar a sua força de
trabalho, o pensamento de Marx tem muito a nos oferecer ainda
como crítica da sociedade capitalista. A fecundidade da sua obra
não encontra seus limites na sua revelação acerca das categorias
econômicas do capitalismo.
73
Marx compreendeu de forma relevante a abrangência do
modo capitalista de produção, sobretudo ao relacionar as relações
sociais com a própria amplitude da vida humana. Sob capitalis-
mo os homens não produzem apenas seus objetos de trabalho e as
condições de seu próprio sustento. Quando fabricam as condi-
ções da sua existência, os homens produzem o que são, atribuin-
do também um sentido à sua vida. Desenvolvem uma visão sobre
o mundo a respeito de si próprios e acerca das suas criações. Aqui,
a consciência é um atributo do ser. No entanto, uma atividade
presa aos particularismos que a divisão do trabalho condiciona.
Os homens representam como vivem, sem que a vida se realize
primariamente sob seu poder. Sem autonomia, no processo de
produção da existência, o homem tem a sua consciência desen-
volvida apenas no domínio de uma vida limitada.
74
CAPÍTULO III
75
Filosóficos e o primeiro capítulo de O Capital, intitulado “A
Mercadoria”. Nos Manuscritos, há uma das mais elaboradas dis-
cussões de Marx sobre a subjetividade. Conceitos como os de
alienação e atividade vital consciente, são imprescindíveis para o
projeto de uma Teoria Marxista da Subjetividade. Já no primeiro
capítulo de O Capital, no desenvolvimento do conceito de fetiche da
mercadoria, encontramos uma importante análise de Marx sobre a
mediação das categorias econômicas na formação da subjetividade.
76
tivas, relações de produção, superestrutura, ideologias, determi-
nação em última instância pela economia, determinação específica
dos outros níveis, etc” (Althusser, 1979, p. 200). Mesmo que nos
Manuscritos tenha ocorrido o encontro de Marx com a Economia
Política, para Althusser esta aproximação acontece organizada através
da categoria “Homem”. Considera que se trata de uma represen-
tação ideológica, não científica, oposta a tudo aquilo que mais
tarde será representado pelo materialismo histórico. Perry
Anderson diz, em sua obra sobre o “marxismo ocidental”, que
Althusser mesmo tendo rejeitado os textos da juventude de Marx,
define com a avaliação que faz, o campo preliminar da discussão
em torno dos fundamentos do materialismo histórico (Anderson,
1989, p.78).
A perspectiva de Perry Anderson sobre os Manuscritos tam-
bém não é animadora. Considera que a tardia descoberta destes
textos impulsionou no interior da cultura marxista o movimento
de abandono da práxis e de academização do pensamento de Marx.
Observa que a geração de marxistas que apareceu depois da década
de vinte terminou por inverter a própria trajetória do desenvolvi-
mento intelectual de Marx. Enquanto Marx havia evoluído da
filosofia para a política e depois, para a economia, autores como
Della Volpe, na Itália e Sartre e Merleau-Ponty, na França, foram
fortemente influenciados pelos textos filosóficos do jovem Marx.
Esta geração de marxistas, afirma Anderson, teria abandonado
“as grandes causas” do Marx maduro (ibidem, p.76/78).
Diante destes questionamentos de Althusser e Perry
Anderson, gostaria de apontar na análise que será feita sobre os
Manuscritos para a importância deste material no desenvolvi-
mento de uma teoria da subjetividade a partir do pensamento de
Marx e a possibilidade de ver este texto de um ponto de vista mais
integral em relação à sua obra. Com esta perspectiva, comparti-
lho da mesma posição admitida por Maurício Vieira Martins no
seu estudo Marx e o sujeito autônomo: uma polêmica. Maurício
77
vê, no lugar de um corte epistemológico na obra de Marx, uma inflexão
analítica. Uma mudança de direção que não chega a se constituir
como uma ruptura entre um jovem Marx e um Marx da maturidade
Nos Manuscritos, Marx distingue os homens dos animais
em razão dos primeiros tomarem a produção de suas vidas como
objeto de suas consciências.
78
deste ou daquele ser. É uma realidade sensível, comum a todos.
Mas os seres humanos guardam aqui uma particularidade:
79
Sendo um ente-espécie, os homens compartilham de um estado
geral do ser que fundamenta os seus objetivos. É na história dos
homens que o estado do ser é disposto. Nos Manuscritos, Marx
trabalha com um conceito fundamental a respeito da sociedade
capitalista que substancia o estado geral do ser e está na base de
seus objetivos. Este conceito é o de trabalho alienado.
Marx, ao analisar o trabalho alienado, parte da seguinte
constatação: “O trabalhador fica mais pobre à medida que pro-
duz mais riqueza e sua produção cresce em força e extensão”
(ibidem, p.90). A alienação que mantém o trabalhador afastado
dos produtos do seu trabalho tem como conseqüência a indepen-
dência destes produtos diante dos seus produtores. Uma tensão
vivida entre o mundo humano e o mundo dos objetos. Aquilo
que foi posto pelo trabalhador no objeto de seu trabalho, não lhe
pertence mais, é parte da sua vida que foi perdida, agora perten-
cente ao produto do trabalho.
Separado de seus produtores, os objetos do trabalho agora
lhes impõem uma servidão; isto porque na mesma proporção em
que estes objetos se distanciam do seu domínio, são perseguidos
pelos trabalhadores como uma necessidade de suas vidas. Esta
servidão é melhor compreendida quando Marx relaciona o mun-
do humano com o trabalho através da natureza, meio de relação
dos homens com os seus objetos:
80
quanto mais o trabalhador se objetiva, isto é, quanto mais se apro-
pria da natureza, mais dela é afastado. Em primeiro lugar, dela se
afasta porque cada vez menos o resultado da objetivação do tra-
balho lhe pertence como trabalhador. E em segundo lugar, cada
vez menos a natureza se constitui como um meio de existência
física do próprio trabalhador. Aqui, o ponto máximo de sujeição
dos homens frente ao mundo dos objetos se registra na dialética
de precisar ser um trabalhador para manter-se como sujeito físico
e tão somente neste nível, poder ser um trabalhador (ibidem, p.92).
Um segundo aspecto que Marx destaca do trabalho aliena-
do é a alienação do trabalhador da atividade produtiva. Se o pro-
duto do trabalho é alienado do trabalhador, isto acontece porque
a própria atividade produtiva é alienada. A atividade transforma-
se em um infortúnio. Conseqüentemente, a atitude humana frente
ao trabalho é de evitá-lo pelo desgosto que provoca. Se a atividade
é alienada, o homem deixa de particularizar-se frente aos demais
seres, aproximando seus objetivos daqueles que são comuns aos
animais. O homem passa a encontrar satisfação, tão somente em
comer, beber, procriar, etc. Contraditoriamente, é a animalização do
homem, animal tornado humano pelo trabalho (ibidem. 93/94).
Um terceiro aspecto do trabalho alienado que Marx discu-
te é a alienação da vida da espécie. Marx compreende a
especificidade do humano também através do seguinte caráter de
sua espécie: a de dispor de toda a natureza para a criação e realiza-
ção dos seus objetos. A universalidade de seus objetivos oferece
um conteúdo de liberdade ao ser e isto é característico da sua vida
de espécie (ibidem, p.95). Amplitude que é reduzida com a con-
versão do ente-espécie em um ente-individual. Ao afastar-se do
objeto do seu trabalho, o homem afasta-se também da vida da
espécie. A atividade, de meio de expressão da vida, é aqui tão
somente um meio de existência física do trabalhador. Sem com-
partilhar da vida da espécie, os homens têm sua vida circunscrita
à sua existência individual.
81
O trabalho alienado, nas dimensões que Marx desenvolveu
nos Manuscritos, constitui para o ser o seu estado geral: o empo-
brecimento da sua atividade e, naturalmente, de seus objetivos.
Mas não seria possível compreender adequadamente como o ho-
mem chegou a esta condição sem considerarmos o caráter
relacional da espécie:
82
pertencer a um indivíduo e passassem a dividir a relação com
todos. Esta “prostituição universal”, como disse Marx, está de acor-
do com o projeto através do qual imaginavam superar a relação de
propriedade privada: através da sua generalização. Acontece que
também aqui a comunidade de mulheres serve ao propósito da
posse, tanto quanto a universalidade da propriedade poderia ga-
ranti-la. As necessidades que os homens procuram ver satisfeitas
em uma relação afetiva mantêm o mesmo empobrecimento de
seus objetivos diante da alienação dos seus objetos na atividade
do trabalho. Trata-se de desejar como sua propriedade aquilo que
não lhe pertence.
A criação de objetivos em relação a um outro ser humano é
a expressão do conteúdo social da vida da espécie. Deste modo,
nada é da natureza do indivíduo. O indivíduo, como tal, não
existe. Marx oferece uma síntese desta compreensão na seguinte
frase: “o indivíduo é o ser social” (ibidem, p.119).
O homem é o único ser sensível aos seus objetos. Os obje-
tivos do homem são humanos porque implicam um processo de
subjetivação. Por isso, pode fazer de sua própria vida, um objeto
seu, isto é, pode concebê-la. Esta sensibilidade encontra sua ex-
pressão naquilo que Marx denominou de órgãos de sua indivi-
dualidade: “ver, ouvir, cheirar, saborear, pensar, observar, sentir,
desejar, agir, amar” (ibidem, p.120). É através destes órgãos que o
homem se apropria de seus objetos.
A relação de propriedade privada implica uma apropriação
limitada da vida. Os objetos somente são tidos como nossos na
condição exclusiva de pertencimento como propriedade. Os sen-
tidos do homem, físicos e intelectuais, deixam de expandir-se
quando restritos as delimitações impostas pela posse.
83
porque essas qualidades e sentidos tornaram-se
humanos, tanto sob o ponto de vista subjetivo
quanto sob o objetivo. O olho tornou-se olho
humano quando seu objeto passou a ser um
objeto humano, social, criado pelo homem e a
este destinado” (ibidem, p. 120).
84
dem a totalidade da sensibilidade humana diante do mundo hu-
mano. Marx foi até bastante explícito sobre esta posição:
85
“Para o homem faminto, a forma humana de
alimento não existe, mas apenas seu caráter abs-
trato como alimento (...) o homem necessitado,
assoberbado de cuidados, não é capaz de apreci-
ar o mais belo espetáculo. O vendedor de mine-
rais só vê seu valor comercial, não sua beleza ou
suas características particulares, ele não possui
senso mineralógico” (ibidem, p.122).
86
penha o papel de alcoviteiro entre ele e suas ne-
cessidades, desperta apetites mórbidos nele, e
presta atenção a cada fraqueza a fim de, posteri-
ormente, reivindicar a remuneração por esse ser-
viço de amor” (ibidem, p.128).
87
cujo estudo Marx e o sujeito autônomo: uma polêmica, menci-
onei no início do capítulo.
Para Maurício, existem certos problemas teóricos nos Manus-
critos. Neste texto Marx havia desvendado que as diversas instâncias
da vida social não tinham existência autônoma. A sociedade como
um todo se organiza de acordo com a forma como os homens se
apropriam da natureza através do trabalho. Diante das condições do
trabalho no capitalismo há uma degradação tão intensa do homem
que sua vida se efetiva como uma anulação das capacidades huma-
nas. Com este raciocínio de Marx, as possibilidades criadoras do ho-
mem são vistas como paradigmas ideais, organizando a análise. Como
afirma Maurício, “o mundo atual é invertido em relação a um mun-
do ideal e este mundo ideal tem um nome, ele se chama sociedade
comunista” (Martins, 1990, p.97). Mesmo que alguns marxistas não
contestem uma crítica à sociedade burguesa mediante um contraste
com uma sociedade ideal, observa Maurício que nos chamados tex-
tos da maturidade, Marx procurou criticar o capitalismo em seus
elementos constitutivos. Ora, a perspectiva que Maurício defende é a
de que Marx, ao perseguir as categorias econômicas para compreen-
der e criticar o capitalismo realizou uma inflexão em sua obra.
Maurício aponta duas razões pelas quais Marx teria pro-
movido esta inflexão. Primeiramente, a compreensão de que a
derivação econômica da sociedade não poderia ser encontrada a
partir do Homem como categoria básica de análise, mas apenas
em outro plano de análise. Em segundo lugar, Marx teve a preo-
cupação de ampliar a recepção de seus textos, dirigindo-se aos
economistas quanto mais percebia a qualidade da esfera econô-
mica para determinação social. O recurso a pressupostos alheios
ao âmbito da Economia Política (ser genérico ou atividade livre,
por exemplo) constituía um tipo de análise que poderia confun-
dir Marx com os demais filósofos: críticos radicais da sociedade,
mas que não apresentaram uma contrapartida, de acordo com a
efetividade empírica (ibidem, p. 108-112).
88
Assim, as conclusões alcançadas por Marx nos Manuscritos
não devem ser rejeitadas sob a perspectiva de que o Marx da “matu-
ridade” adota uma teoria do conhecimento que representa uma
ruptura com a perspectiva teórica anterior. Na verdade, a configu-
ração de um outro plano de análise, centrado nas categorias econô-
micas, permite uma leitura também positiva dos Manuscritos. Isto
é possível aproveitando o caminho posteriormente percorrido por
Marx para fazer um uso crítico dos seus primeiros textos. Com os
elementos disponíveis de toda a sua obra, é possível reelaborar os
pontos de aceitação mais difíceis encontrados nos seus escritos da
“juventude”. A análise sobre o fetiche da mercadoria, que mantém
a significação ontológica do trabalho, permite uma leitura renova-
da dos Manuscritos para o estudo da subjetividade na obra de Marx.
89
entre os próprios homens que para eles aqui assume a forma
fantasmagórica de uma relação entre coisas” (ibidem, p.71). Veja-
mos como isto pode ocorrer.
Marx principia sua análise da mercadoria, considerando
suas propriedades de valor de uso e valor de troca. Enquanto va-
lor de uso, a mercadoria deve ser compreendida pelo fato de satis-
fazer necessidades humanas: “A utilidade de uma coisa faz dela
um valor de uso” (ibidem, p.45). Esta é uma característica da
mercadoria que não vai ser alterada ao longo da história. Mas
especificamente sob o modo de produção capitalista, a mercado-
ria é ainda portadora de valor de troca.
Uma mercadoria frente à outra, enquanto valores de uso
são de qualidades diferentes; enquanto valores de troca são de
quantidades diferentes. Um quarter de trigo pode ser trocado por
X de graxa ou por Y de seda, ou ainda por Z de ouro, exemplifica
Marx. Embora, na troca, devam ser consideradas nas mercadorias
suas propriedades enquanto valores de uso – a forma que lhes é
específica, e lhes confere uma utilidade – para que sejam
permutáveis entre si, é preciso que estes mesmo valores de uso
sejam abstraídos. Para que as mercadorias sejam trocadas, precisam
declinar de suas qualidades, sendo identificadas através de uma
propriedade comum: o fato de serem produto do trabalho. Mas,
uma vez feita esta abstração do valor de uso, também declina a
forma de trabalho despendida para a produção da mercadoria:
90
as diferentes formas concretas desses trabalhos,
que deixam de diferenciar-se um do outro para
reduzir-se em sua totalidade a igual trabalho
humano, a trabalho humano abstrato” (ibidem,
p.17).
91
Deste modo, a mercadoria tem a sua objetividade como
valor, não na forma material que a constitui como uma mercado-
ria específica: “Podemos virar e revirar uma mercadoria, como
queiramos, como coisa de valor ela permanece imperceptível”
(ibidem, p.54). Sua objetividade de valor advém do caráter social
do processo de produção de mercadoria, onde o trabalho huma-
no pode expressar uma grandeza nas mercadorias entre si.
Nesta análise já traçada a respeito da mercadoria, Marx
observa que, embora assumam uma heterogeneidade de formas
como valores de uso, as mercadorias possuem uma forma comum
de valor: a forma dinheiro. É esta a gênese que Marx busca apre-
ender com a expectativa de resolver o “enigma do dinheiro”, a for-
ma mais elaborada da expressão do valor, na troca de mercadoria.
Para resolver tal “enigma”, Marx inicia sua análise pela rela-
ção de valor mais simples entre mercadorias. Esta se obtém entre
apenas duas mercadorias diferentes: a mercadoria A e a mercado-
ria B, o que pode significar 20 varas de linho = 1 casaco. As mer-
cadorias A e B representam dois distintos papéis. Enquanto o
linho expressa seu valor no casaco, encontrando-se assim sob a
forma relativa de valor, o casaco, ao servir de objeto para a expres-
são daquele valor, encontra-se sob uma forma equivalente. Marx
observa que uma mesma mercadoria não pode aparecer, ao mes-
mo tempo, sob as formas relativa e equivalente de valor. O valor
de uma mercadoria só pode ser expresso através de uma outra
mercadoria. A forma relativa de valor só pode se instituir se uma
outra mercadoria assumir em relação a ela, uma forma equivalen-
te. Do mesmo modo, a mercadoria que assume esta posição não
pode expressar-se sob a forma relativa de valor, já que não pode
expressar seu valor, mas tão somente, servir de objeto para a ex-
pressão do valor de uma outra mercadoria.
Marx considera, ao contrário dos economistas burgueses,
que na análise da forma de valor, deve-se abandonar de início sua
determinação quantitativa, uma vez que se assim não for, “perde-
92
se de vista que as grandezas de coisas diferentes tornam-se
quantitativamente compatíveis só depois de reduzidas à mesma
unidade” (ibidem, p.55). Apenas como expressões de uma mes-
ma unidade, as mercadorias são trocáveis entre si: 20 varas = 1
casaco. Quando se compara o casaco ao linho, o que está sendo
comparado é o trabalho inserido no casaco com o trabalho inseri-
do no linho. Embora cada uma destas mercadorias tenha sido
produzida por uma determinada forma de trabalho útil, alfaiataria
e tecelagem, a comparação do primeiro trabalho com o segundo
se dá pelo fato de constituírem em comum trabalho humano –
trabalho humano abstrato.
Mas a forma valor, por outro lado, expressa-se ainda em
sua própria determinação quantitativa: “a forma de valor tem de
expressar não só valor em geral, mas também, valor determinado
quantitativamente, ou grandeza de valor” (ibidem, p.57). Na re-
lação de troca entre o linho e o casaco, não se equipara apenas a
primeira mercadoria à segunda, como objeto de trabalho huma-
no abstrato que produz valor, mas ainda determinado quantum.
No caso, 20 varas de linho contêm um quantum de valor que
equivale a um casaco, isto é, ambas as quantidades de mercadori-
as contêm a mesma quantidade de tempo de trabalho. Marx ob-
serva que uma alteração na força produtiva da tecelagem ou da
alfaiataria altera também o tempo de trabalho necessário para a
produção de 20 varas de linho ou um casaco.
Todavia, a forma simples de valor encontra sua insuficiên-
cia analítica no fato de uma mercadoria B distinguir o valor de
uma mercadoria A apenas de seu próprio valor de uso. Deste modo,
a expressão de valor se dá apenas diante de uma outra mercadoria,
que lhe é diferente, “em vez de representar sua igualdade qualita-
tiva e sua proporcionalidade quantitativa com todas as outras
mercadorias” (ibidem, p.64).
Esta forma individual de valor se desdobra em uma forma
mais completa por si mesma, diz Marx. Ainda que neste caso, o
93
valor de uma mercadoria A tenha a sua expressão em apenas uma
mercadoria de outro tipo. Se esta segunda mercadoria for casaco,
ferro ou trigo, não importa. Com qualquer mercadoria que en-
trar em uma relação de valor surgirão, desta relação variável, ex-
pressões simples de seu valor: 20 varas de linho = um casaco ou =
10 libras de chá ou = 40 libras de café ou = um quarter de trigo ou
= 2 onças de ouro ou = ½ tonelada de ferro, etc.
Mas a forma relativa de valor desdobrada tem também suas
insuficiências anotadas por Marx. Em primeiro lugar, a
expressão relativa de valor encontra seu espelho em uma série
infinita. Em segundo lugar, o mundo das mercadorias aparece
em expressões de valor sem conexão entre si. Cada mercadoria
terá para si, uma série interminável de expressões de valor, que
se diferenciará da série interminável de qualquer outra
mercadoria. A forma equivalente de valor, por conseguinte,
encontra aqui também suas insuficiências. Cada mercadoria é
especificamente uma forma equivalente diante de muitas outras
mercadorias também sob a forma equivalente, todas elas se
excluindo nesta posição.
O fato do produtor do linho precisar trocar suas mercado-
rias por muitas outras que passaram a expressar o valor do linho
terá, como contrapartida, a necessidade dos demais possuidores
de mercadorias também trocarem suas mercadorias pelo linho.
Desta situação se obtém a forma geral de valor:
1 casaco =
10 libras de chá =
40 libras de café =
1 quarter de trigo =
2 onças de ouro = 20 libras de linho
½ tonelada de ferro =
X mercadoria A =
Etc. mercadoria =
94
Sob a forma geral de valor, as mercadorias têm seus valores
representados de modo simples, mas unitário, isto é, na mesma
mercadoria cuja forma valor é comum a todas elas. Uma vez que
todas as mercadorias expressam seu valor no linho, aparecem não
apenas como qualitativamente iguais, mas com grandezas de valor
quantitativamente comparáveis: se 10 libras de chá = 20 varas de
linho e 40 libras de café = 20 varas de linho, temos então, 10 libras de
chá = 40 libras de café. Esta é a primeira equação em que está dada a
representação da existência puramente social do mundo das merca-
dorias. Através do caráter de equivalente geral, o linho é a expressão
de valor que abstrai dos trabalhos úteis privados seu pertencimento a
uma comunidade de produtores independentes, ao equipará-los a
trabalho humano, isto é, a trabalho humano indiferenciado. Como
diz Marx, a forma geral de valor “evidencia que no interior desse
mundo (das mercadorias) o caráter humano geral do trabalho cons-
titui seu caráter especificamente social” (ibidem, p.67).
Mas para que uma mercadoria possa assumir a forma de equi-
valente geral reconhecida socialmente, é preciso ainda, diz Marx,
que corresponda a um gênero específico de mercadorias. Esta mer-
cadoria, que em si reúne a sua forma natural à forma equivalente de
valor, torna-se mercadoria dinheiro. Sua função social é a de reali-
zar a função de equivalente geral, no interior do mundo das merca-
dorias. Historicamente, o ouro já preencheu esta posição:
20 varas de linho =
1 casaco =
10 libras de chá =
40 libras de café = 2 onças de ouro
1 quarter de trigo =
½ tonelada de ferro =
X mercadoria A =
95
20 varas de linho = 2 onças de ouro
ou
20 varas de linho = 2 libras esterlinas,
Se 2 libras esterlinas correspondem monetariamente a 2
onças de ouro.
Todo esse esboço que realizamos acerca da busca de Marx
em alcançar o “enigma” da forma dinheiro será agora importante
para compreendermos sua análise sobre o fetiche da mercadoria.
96
conjunto de sua obra, quanto representa o amadurecimento do
autor para a temática da inversão. Neste aspecto, concordamos
com Larrain quando este observa que nos escritos produzidos até
o surgimento dos Grundrisse, a relação entre “consciência inver-
tida” e “realidade invertida” era estabelecida por Marx de maneira
direta, isto é, sem mediações conceituais. Mas ao perseguir as ca-
tegorias econômicas constitutivas da sociabilidade capitalista, Marx
estabelece teoricamente as mediações que no próprio plano da
realidade estruturam aquela relação (Larrain, op. cit., p.84).
Estas mediações são produzidas através do caráter especial
do trabalho que produz mercadorias. Para que o produtor inde-
pendente possa satisfazer suas múltiplas necessidades, é preciso
que os objetos de seu trabalho, enquanto objetos de uso, se tor-
nem mercadorias que sejam permutáveis. Esta possibilidade se
efetiva como relação de troca. A gravidade da relação de troca é
de que o conteúdo social dos trabalhos privados só aparece na
própria troca. Neste momento é que os objetos de trabalhos úteis
determinados se convertem em uma grandeza de valor que não é,
senão, a conversão dos trabalhos úteis em trabalho humano abs-
trato. É através desta unidade comum a todas as mercadorias, que
os objetos de trabalho podem ser trocados.
Marx conduz sua reflexão até a Idade Média para registrar a
historicidade do fenômeno que é o fetiche da mercadoria. Na Ida-
de Média, ao invés da existência de produtores privados indepen-
dentes, o que se estabelecia era uma rede de dependências pessoais
que envolviam servos e senhores feudais, vassalos e suseranos, leigos
e clérigos. Toda a produção material, bem como as demais esferas
da vida, se estruturava sob aquelas relações pessoais. Em relação a
uma instituição medieval que era a corvéia, observa que também
era medida pelo tempo, tanto quanto o trabalho que produz mer-
cadorias; mas tal relação tinha uma correspondência diretamente
social, na medida em que o servo sabia ser determinada quantidade
de sua força de trabalho despendida no serviço ao seu senhor.
97
“Portanto, como quer que se julguem as másca-
ras que os homens, ao se defrontarem aqui, ves-
tem, as relações sociais entre as pessoas em seus
trabalhos aparecem em qualquer caso como suas
próprias relações pessoais, e não disfarçadas em
relações sociais das coisas, dos produtos de tra-
balho”. (ibidem, p.74).
98
independentes podem satisfazer suas necessidades. O mundo deixa
de aparecer como “mundo das mercadorias” quando de fato este
deixar de existir, o que só se pode estabelecer através de um processo
produtivo que ultrapasse a divisão social do trabalho: “O reflexo
religioso do mundo real somente pode desaparecer quando as
circunstâncias cotidianas, da vida prática, representarem para os
homens relações transparentes e racionais entre si e com a
natureza”. (ibidem, p.76). Relação esta que apenas pode se afirmar
mediante a socialização dos meios de produção.
Do mesmo modo que o conceito de ideologia é um con-
ceito restrito, o conceito de fetiche da mercadoria também o é.
Através do conceito de ideologia, Marx procurou compreender o
fenômeno da inversão na consciência acerca das reais condições
de produção da vida. O conceito de fetiche da mercadoria é restrito,
no sentido de que procura explicar como na consciência o fato dos
produtos do trabalho aparecem como organismos vivos capazes de
tecer suas próprias relações, escondendo aos homens suas próprias
relações sociais. Nos dois fenômenos – o ideológico e o fetiche da
mercadoria – Marx enfatizou que a inversão não se estabelece na
consciência. A consciência é, também em relação ao fetiche, a cons-
ciência das reais condições existentes. Não é um fenômeno alocado
na consciência, mas no processo de produção da vida.
Mas em relação ao conceito de ideologia, o conceito de
fetiche da mercadoria é produzido através de mediações conceituais
que explicam, no plano fenomênico, como se estabelece o nexo
entre a base “material” e determinada configuração da consciên-
cia humana. Ao desvendar como a mercadoria dinheiro pode as-
sumir a posição de equivalente geral frente às demais mercadorias
e, conseqüentemente, revelar o “enigma” que envolvia a própria
mercadoria, Marx mostrou como se dá concretamente a determi-
nação do trabalho sobre o mundo humano. Ao desenvolver as
categorias da Economia Política, Marx pôde expor uma rede de
instituições econômicas e sociais das quais os homens participam
99
inconscientemente. Esta rede não é senão, o complexo estruturado
de sua atividade – enfim, o processo social de produção de suas
vidas. O amadurecimento de Marx para esta compreensão permi-
tiu-lhe forjar a seguinte síntese sobre a constituição do sujeito, no
prefácio que escreveu para a primeira edição de O Capital:
100
condições pelas quais produz sua existência. Embora o homem tra-
balhe e saiba do infortúnio disto, desconhece a natureza ontológica
da sua atividade. Deste modo, o homem vê o mundo, mas não se vê
nele. O homem porta-se diante de uma “imensa coleção de merca-
dorias” como quem paga um tributo a um onipotente deus, quando
é o verdadeiro criador da sua existência.
A recorrência desta discussão em O Capital, ao mesmo tempo
em que guarda uma distância temporal e analítica em relação ao iní-
cio de sua obra, aproxima-se dela também. Ao perseguir as categorias
da Economia Política, Marx diminui suas referências às temáticas
que no início de sua obra eram mais pregnantes. Basta ver que nos
Manuscritos, o problema do estranhamento percorre todo o texto.
Já em O Capital, o fetiche da mercadoria constitui apenas uma seção
da obra. Mas os ganhos que o pensamento de Marx obteve desenvol-
vendo seus estudos na Economia Política não deveriam relegar a cha-
mada obra da “juventude” a um segundo plano. Parece produtivo
para o legado de Marx, retirar do seu amadurecimento para a com-
preensão das circunstâncias mais pertinentes ao processo de produ-
ção da existência, uma leitura que viabilize uma apropriação mais
rica do conjunto de sua obra. Assim, questões mais antropológicas –
próprias do início do pensamento de Marx – podem ser oportuna-
mente significadas diante da totalidade do seu pensamento.
Deste modo, análises contidas nos Manuscritos sobre sub-
jetividade humana, como aquela desenvolvida no conceito de ati-
vidade vital consciente, podem ser substanciadas pelos ganhos teó-
ricos que Marx obteve, realizando análises mais fecundas no âm-
bito da Economia Política. Neste caso, esta aproximação poderia
seguir uma dupla via, uma vez que mesmo tendo dificuldades
conceituais, as discussões realizadas por Marx nos Manuscritos
sobre a consciência são, como vimos, bastante abrangentes, o que
permitiria ampliar também tópicos desenvolvidos mais tarde ape-
nas pontualmente em sua obra, como o fetiche da mercadoria.
Este é um caminho que o projeto de uma Teoria Marxista da
Subjetividade não deveria desconsiderar.
101
102
CONCLUSÃO
103
Diante de tantas críticas dirigidas ao marxismo, por outro
lado, assistimos agora a existência de um renovado interesse pela
obra de Marx. O fato é que a propaganda sobre as vantagens da
democracia burguesa e do mercado não tem convencido tanto
assim. A percepção de que a prática da representação política não
tem beneficiado satisfatoriamente extensos setores da população
em quase todos os países onde existe e que as ações de
mercantilização dos serviços, dos bens fundamentais necessários
à vida e de todas as vivências sociais, até onde isto já foi possível
realizar, mantém a maior parte das sociedades tensas na disputa
por seus recursos. A permanência da escassez, da miséria, das ex-
clusões e das guerras impede uma assimilação global de que o
capitalismo é bom. Neste caso, o desejo de uma sociedade boa,
socialista, permanece como uma utopia passível de se crer ainda.
O retorna a obra de Marx atende a esta curiosidade de descobrir
novas abordagens e respostas para os problemas históricos e per-
manentes do capitalismo.
A análise das obras de Marx realizada para a investigação
proposta neste trabalho permite dizer que diante das característi-
cas atuais do capitalismo seus textos permanecem relevantes para
a crítica das condições de acumulação de capital, de controle so-
bre o trabalhador e da produção de valores requeridos para a sua
reprodução sistêmica. Mas principalmente nos permite dizer que
esta crítica não deve partir do equivocado suposto de que Marx
atribuía uma importância maior ao “econômico” sobre a ativida-
de da consciência ou a experiência da subjetividade. Não foi este
o problema originalmente desenvolvido pelo autor. Marx funda-
mentou uma interpretação da história e do homem que conside-
rava o primado das condições de produção da existência como
uma perspectiva analítica procedente.
O pensamento epistemológico de Marx não considerou a
subjetividade um componente derivado dos processos de consti-
tuição da vida humana, mas parte inseparável desta realização.
104
Insistiu na negativa de que tratava-se de uma atividade autônoma
do ser, afirmando sempre sua condição socialmente determinada.
Ponto de vista diferente da imaginada declaração de que o “eco-
nômico” tudo explica, asserção que mistificou e deturpou seu
pensamento. O que não significa também que sua obra não pre-
sume o debate e a crítica. Neste aspecto, não há motivos também
para os marxistas execrarem o diálogo e as interpelações. Novos
objetos e problemas ajudam no desenvolvimento do legado de
Marx. Abertura fundamental hoje para manter-se atraente e in-
fluente nas ações de contestação do capitalismo e relevante no
provimento de idéias e exame a respeito da nossa época.
Existe uma passagem dos Manuscritos que bem poderia
servir para nos chamar atenção sobre a necessidade de atualização
do marxismo como uma sedutora conveniência:
“Se se quiser exercer influência sobre outro homem, deve-
se ser um homem que atue sobre os outros de modo realmente
estimulante e incitante. Cada uma das relações com o homem e
com a natureza deve ser uma exteriorização determinada da vida
individual efetiva que se corresponda com o objeto da vontade.
Se amas sem despertar amor, isto é, se teu amor, enquanto amor,
não produz amor recíproco, se mediante tua exteriorização da
vida como homem amante não te convertes em homem amado,
teu amor é impotente, uma desgraça” (Marx, 1987a, p.198).
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
107
ENGELS, F. Carta a Joseph Bloch in: Marx e Engels: Obras Esco-
lhidas, Vol. III. Lisboa / Moscovo: Progresso, 1982.
108
HOBSBAWM, Eric J., O Marxismo Hoje: Um Balanço Aberto
in: História do Marxismo, Vol. XI, O Marxismo Hoje (Primeira
Parte). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
109
MARTINS, Maurício Vieira. Marx e o Sujeito Autônomo: Uma
Polêmica. Dissertação apresentada ao Departamento de Filosofia
da PUC/RJ como parte dos requisitos para obtenção do título de
Mestre em Filosofia. Rio de Janeiro, Departamento de Filosofia,
PUC, mimeografado.
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SILVEIRA, Paulo. Da Alienação do Fetichismo Formas de
Subjetivação e de Objetivação in: Elementos para uma Teoria Mar-
xista da Subjetividade. São Paulo: Vértice, 1989.
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