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ARTE-TERAPIA: UMA PRAXIS EM DESENVOLVIMENTO

A arteterapia é um campo de estudos relativamente novo, o que nos leva a


refletir sobre diversos aspectos ligados a sua constituição identitária, de modo
a promover uma integração mais efetiva dessa abordagem terapêutica no
contexto geral das psicoterapias. Um dos aspectos que precisam ser
problematizados refere-se justamente ao modo como ela é nomeada, pois a
expressão ‘arteterapia’ remete a limites e aproximações entre duas áreas
muito amplas do conhecimento humano, a arte e a psicologia.
Para começar, devemos ter em mente que nem toda experiência artística tem efeito terapêutico, seja
sobre o artista ou sobre o expectador, assim como nem tudo o que um paciente produz plasticamente,
seja individualmente ou em grupo, como expressão do inconsciente, tem valor artístico em si. Nesse
sentido, podemos questionar se o que um terapeuta propõe a seus pacientes num ateliê ou consultório
pode ser chamado ‘arte’, quando se trata mais especificamente de um conjunto de técnicas expressivas
dedicadas a explorar o mundo anímico, emocional do paciente/cliente. Até aí, seria quase a mesma coisa
que o artista procura fazer, mas este tem um compromisso com três coisas que o terapeuta não tem: a
primeira é um objetivo temático que reflete o desenvolvimento de sua obra como um todo, e guarda
relação com aspectos da consciência e do inconsciente coletivo; a segunda é uma preocupação técnica
com os materiais usados; por fim, uma preocupação estética para com o resultado final. Portanto, temos
que reconhecer que ainda que algumas produções plásticas dos pacientes guardem algum apelo estético,
não se pode dizer que a produção da maior parte dos pacientes em arteterapia seja propriamente
artística. A favor dessa concepção, Jung esclarece que:
Ainda que ocasionalmente os meus pacientes produzam obras de grande beleza,
boas para serem expostas em mostras de arte moderna, eu as considero totalmente
desprovidas de valor artístico... É essencial até que não tenham valor, pois do
contrário, meus pacientes poderiam considerar-se artistas, e isso seria fugir
totalmente à finalidade do exercício. Não é arte, e aliás, nem deve sê-lo. (JUNG,
1929/1988, par.104 - as aspas na palavra arte são do autor, o grifo é meu).
Nessa crítica vemos Jung preocupado em circunscrever o enquadre terapêutico, zelando tanto pelo
objetivo do terapêuta, que é indicado na citação ao dizer “e isso seria fugir totalmente à finalidade do
exercício”, qual seja, o exercício de estar implicado no embate e no diálogo com o inconsciente, tarefa
primordial da psicoterapia, o que é radicalmente distinto do objetivo do artista, pois este não privilegia
essa questão, e sim a expressão estética vinculada a ideias, questionamentos e posicionamentos de
caráter cultural, sobretudo coletivos, como dissemos. Ainda nessa direção, o artista tem uma
preocupação que não se coloca na prática arteterapêutica, que é o domínio ou pelo menos a investigação
técnica de uma ou mais linguagens plásticas.
Outra questão que me parece interessante discutir quando pensamos nas referências identitárias da
arteterapia, diz respeito ao seu embasamento teórico, pois como ela congrega conhecimentos da arte e
da psicologia, evidentemente obriga os interessados a se tornarem arteterapeutas a assimilar conceitos
teóricos da psicologia, independente de qual seja a teoria escolhida (ANDRADE, 2000). Mas apenas
conceitos psicológicos não bastam, há que se buscar, também, a contribuição de artistas/autoras como
Lygia Clark e Fayga Ostrower (1977, 1983, 1990), por exemplo, cuja pesquisa em torno da questão da
experiência criativa não pode faltar numa praxis dedicada a articular arte e terapia.
Outros autores, que propõem uma ‘poética dos elementos’, como o filósofo Gaston Bachelard (2008),
complementariam o estudo da arteterapia indo além do viés artístico-psicológico. Os livros desse autor
reconhecem justamente a natureza anímica dos diferentes materiais encontrados na natureza, já que tais
materiais tocam sensorial e emocionalmente o sujeito em função de sua própria constituição material
(terra, ar, água, fogo), algo que discuti em minha dissertação de mestrado sob o termo "materialidade dos
elementos" (OLIVEIRA, 2006). Junto a Bachelard, temos Marie-Louise von Franz (1992), que evoca
alguns princípios da alquimia para reiterar essa noção básica: os materiais são vivos, eles teriam alma,
por assim dizer. O trabalho de Nise da Silveira é inegavelmente pioneiro, tanto quanto o de Osório César,
mas especialmente em relação a este último autor, é possível perceber uma proposta abordagem
terapêutica que privilegia principalmente a questão projetiva sobre a matéria. É importante reconhecer o
valor de tais iniciativas, pois elas tem um grande valor histórico, inclusive para a constituição da
arteterapia, mas temos que diferenciá-las do que se pode entender como arteterapia propriamente dita.
No campo da Psicologia Junguiana, um autor contemporâneo que fundamenta teoricamente a questão da
materialidade dos elementos numa perspectiva mais complexa, para se pensar numa proposta de
arteterapia junguiana, é Álvaro Gouvea. Em seus livros, que são desdobramentos das teses de mestrado
e doutorado (GOUVEA, 1989; 1999), o autor aborda os aspectos arquetípicos do barro como principal
elemento material de sua prática clínica, problematizando especialmente como esse terceiro elemento
participa do campo transferencial, que a partir de sua inclusão inaugura o que ele chama de
“tridimensionalidade da relação analítica”. Ao se configurar como terceiro elemento, o barro ocupa
concretamente um lugar no setting, para além de uma mera massa que funcionaria como tela em branco
para projeção de conteúdos inconscientes.
Essa discussão ganha ainda mais importância quando consultamos diversas publicações dedicadas à
arteterapia, sobretudo as nacionais, e constatamos que são poucos os estudos efetivamente teóricos
sobre essa abordagem, ainda que essa falta seja também apontada por autores estrangeiros (RUBIN,
2001). Apesar de haver uma série de livros e coleções publicadas, sendo louvável o empenho dos
diversos editores, professores e pesquisadores da área, grande parte dos textos encontrados nessas
publicações podem ser caracterizados como artigos descritivos, já que se prestam principalmente ao
relato de experiências realizadas em âmbito privado (consultórios) e/ou institucional (escolas, hospitais,
etc), mas sem efetivamente oferecer uma fundamentação teórica que possa validar a arteterapia como
uma nova área do saber, que se constituiria para além das disciplinas-matrizes que se encontram em seu
mito fundador.
Alguns trabalhos evocam tristemente a imagem sofrida do personagem ‘Frankeinstein’, por trazerem
textos constituídos a partir de um ajuntamento de elementos que não poderiam ser assumidos nem como
uma experiência propriamente artística, nem psicoterapêutica.
Muitas vezes a discussão teórica encontrada em tais publicações visa relatar experiências de natureza
principalmente catártica, que privilegiam a expressão projetiva de conteúdos inconscientes carregados de
emoção, algo que poderia ser feito no contexto de workshops ou oficinas expressivas, mas que são
apresentadas como processos de arteterapia, o que justamente suscita o questionamento do que
propriamente caracterizaria tal experiência como arteterapêutica, e não como vivência, apenas.
Lembremos do referido texto de Jung (1929/1988), em que o autor analisa o processo terapêutico
reconhecendo nele algumas fases ou etapas. Jung começa pela confissão que promove a catarse,
afirmando que apesar dela trazer alívio ao paciente não leva à transformação efetiva, pois é só nas fases
subsequentes que os conteúdos emergidos poderão de fato ser aprofundados e integrados à
personalidade. Portanto, considerar que um trabalho meramente vivencial possa ser chamado de
arteterapia parece simplificar excessivamente o campo terapêutico em questão.
Na tentativa de melhor delinear o que entendo por arteterapia, façamos uma comparação, considerando
especificamente o desenho, por exemplo. Encontramos vários livros de psicologia e psicanálise
dedicados ao assunto, mas neles, em geral, os autores fazem afirmações sobre as cores com base em
interpretações generalistas, por exemplo, ao interpretar a cor preta como representação de conteúdos
depressivos, sombrios, e o vermelho diretamente à agressividade (FURTH, 2004). Diferentemente dessa
abordagem psicológica de cunho interpretativo, no livro "Do espiritual na arte", o artista Wassily Kandinsky
(2000) apresenta um estudo sobre as cores sustentado em seus elementos anímicos e rítmicos, e não
apenas tomando-as como representações de conteúdos inconscientes.
Talvez o enfoque projetivo-interpretativo se deva ao fato de que no campo da arteterapia há profissionais
oriundos de várias áreas, principalmente da psicologia, e com base nessa formação, há o predomínio de
atividades mais comuns à psicoterapia, como o desenho e a pintura, especialmente por sua relação
histórica com os testes projetivos. Mas observo que o intuito e a compreensão das expressões obtidas
por esses profissionais junto aos pacientes encontram-se mais frequentemente orientados por critérios da
psicologia, que a meu ver não são os mesmos da arteterapia. Pois, como estou argumentando, a
arteterapia refere-se mais a um processo criador do que propriamente artístico ou meramente catalizador
de conteúdos inconscientes reprimidos.
Penso que o que se convencionou chamar “arteterapia” poderia mais apropriadamente ser chamada de
uma ‘terapia do fazer’, na falta de um termo mais adequado nesse momento. Poderia, também, ser
tomada como uma terapia expressiva, mas ainda esse termo parece limitado e limitante quando
efetivamente se pratica uma terapia dos elementos e com os elementos materiais. Nesse sentido, a
arteterapia, se entendida como ‘terapia do fazer’, poderia ser desvinculada de qualquer associação com o
termo arte. E, finalmente, ela se diferenciaria – pelo menos parcialmente - tanto da psicoterapia como da
terapia artística: da primeira, porque seu foco não estaria restrito a acessar conteúdos
inconscientes projetados sobre a matéria. Da segunda, pois como Jung enfatizou, não é arte o que se
propõe aos pacientes!
Essa terapia do fazer privilegia a experiência concreta com elementos materiais distintos, assim o
terapeuta que usasse exclusivamente a pintura ou o barro isoladamente, por exemplo, não estaria
propondo uma ‘terapia do fazer’. Compartilho um exemplo clínico para esclarecer essa questão: numa
ocasião uma paciente que passava por uma crise profunda pintava enormes painéis com tinta guache em
sua casa e trazia para as sessões. O que se podia perceber é que a catarse promovida pela pintura
levava a uma descarga energética intensa que a desorganizava ainda mais. Então, durante as sessões, a
proposta era que ela trabalhasse com o barro e a colagem para promover uma experiência de
“coagulação” das emoções liberadas pela pintura. O material tinha de ser outro e a proposta também
tinha de ser diversificada para integrar outras polaridades à experiência da pintura. É nessa perspectiva
múltipla que penso a ‘terapia do fazer’, para buscar a integração de diferentes materiais e atividades ao
processo vivido pelo paciente. Poderíamos pensar – orientados por uma ideia de terapia expressiva - que
o fato dessa paciente estar expressando os símbolos inconscientes levaria naturalmente a uma melhora
de seu estado emocional, mas o fato reiterado semanalmente era que a pintura estava desorganizando
ainda mais sua personalidade. Por isso, entendo que oferecer um único material, ou propor uma única
atividade não dá ao paciente a oportunidade de tocar e ser tocado por diferentes elementos arquetípicos.
Acredito que é o trabalho com a poética dos elementos que caracteriza a arteterapia como uma ‘terapia
do fazer’ com estatuto próprio, e não apenas como uma abordagem expressiva-vivencial.  Como Álvaro
Gouvea reforça em seus textos, não se trata de uma prática que privilegia falar sobre os símbolos depois
de vê-los expostos, mas de mergulhar neles corporalmente, por meio da concretude dos elementos
materiais, o que invoca o sentido de autoria do paciente no processo terapêutico, dando-lhe mais
autonomia para lidar com o inconsciente e a vida, já que na terapia buscamos ‘algo que produza um
efeito’, conforme a proposição de Jung:
Antes de mais nada, o que interessa é que se produza um efeito. No estágio
psicológico infantil o paciente permanece passivo. Nesta fase, passa a ser ativo.
Passa a representar coisas que antes só via passivamente e dessa maneira elas se
transformam em um ato seu. Não se limita a falar do assunto. Também o executa.
Psicologicamente isso faz uma diferença incalculável: uma conversa interessante
com o terapeuta, algumas vezes por semana, mas com resultados que – de alguma
forma – ficam no ar, é totalmente diferente do que ficar horas a fio, às voltas com
obstinados pinceis e tintas, para produzir algo, que à primeira vista parece não ter o
menor sentido... Além disso, a execução material do quadro obriga-o a contemplar
cuidadosa e constantemente todos os seus detalhes. Isso faz com que o efeito seja
plenamente desenvolvido. ... O valor dessa descoberta é inestimável, pois é o
primeiro passo para a independência, a passagem para o estado psicológico adulto.
Usando este método – se me for permitido usar este termo – o paciente pode tornar-
se independente em sua criatividade. Já não depende dos sonhos, nem dos
conhecimentos do médico, pois, ao pintar-se a si mesmo – digamos assim – ele está
se plasmando. O que pinta são fantasias ativas – aquilo que está mobilizado dentro
de si. (JUNG, 1929/1988, par. 106 – grifo meu)
Enfim, essa longa digressão é uma tentativa inicial de contribuir para o estabelecimento de limites que
possam melhor caracterizar a arteterapia para além de suas origens na arte, na psicologia ou na
pedagogia. Afinal, o surgimento de diversos cursos e associações de arteterapia, principalmente na última
década, traz consigo a responsabilidade ética de circunscrever seu campo de pesquisa e atuação. E se
os princípios que norteiam essa prática fossem idênticos aos da prática psicoterapêutica, não haveria
necessidade de se criar cursos, escrever livros e realizar congressos para discutir especificamente
essa práxis e seus efeitos. Naturalmente, espero que essa discussão possa ser ampliada e modificada a
partir do aprofundamento das questões aqui apresentadas, pois acredito que o debate em torno das
questões identitárias da arteterapia pode nos levar a “afinar” nosso posicionamento conceitual sobre suas
premissas, principalmente para melhor fundamentar, teoricamente, a pratica do arteterapeuta.
Profa. Mestre Santina Rodrigues
santina.rodrigues.oliveira@gmail.com
Profa do IJEP
Referências:
ANDRADE, Liomar Quinto de. Terapias Expressivas: Arte-Terapia, Arte-Educação, Terapia Artística. São
Paulo: Vector, 2000.
BACHELARD, G. A psicanálise do fogo. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
_______________. A água e os sonhos. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
_______________. O ar e os sonhos. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
_______________. A terra e os devaneios da vontade. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
_______________. A terra e os devaneios do repouso. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
_______________. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
FURTH, Gregg M. O mundo secreto dos desenhos: uma abordagem junguiana da cura pela arte. São
Paulo: Paulus, 2004.
GOUVÊA, Álvaro de Pinheiro. Sol da Terra:  O Uso do Barro em Psicoterapia. São Paulo: Summus, 1989.
__________________________. A Tridimensionalidade da Relação Analítica. São Paulo: Cultrix, 1999.
JUNG, C.G. Os objetivos da Psicoterapia (1929/1988). In: A prática da psicoterapia. Rio de Janeiro:
Vozes, 1988 (vol. 16).
KANDINSKY, W. Do espiritual na arte. São Paulo: Ed. Martins, 2000.
OLIVEIRA, Santina Rodrigues. Reflexões sobre a materialidade numa abordagem imagético-
apresentativa: narrativa de um percurso teórico e prático à luz da psicologia analítica. Dissertação
(mestrado) - Universidade de São Paulo. São Paulo, 2006. (Disponível
em http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/47/47131/tde-15022007-220155/es.php )

 
OSTROWER, F. Criatividade e Processos de Criação. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1977.
_____________. Universos da Arte. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1983.
_____________. Acasos e Criação Artística. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1990.
VON FRANZ, M.L. Alquimia e Imaginação ativa. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
RUBIN, Judith A. (editor). Approaches to Art Therapy – Theory & Technique, Second Edition. Sheridan
Books, Ann Arbor, MI, 2001.

Santina Rodrigues - 19/03/2019

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