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Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 1

Curso Online de Filosofia


OLAVO DE CARVALHO

Resumos de Aulas

Vol. II

Elaborado por Mário Chainho

Índice Pag.
Aula 06 – 02/05/2009 (Especial Eric Voegelin) 2
Aula 07 – 16/05/2009 12
Aula 08 – 23/05/2009 20
Aula 09 – 06/06/2009 27
Aula 10 – 13/06/2009 36

Notas:
1) Este material é para uso exclusivo dos alunos do Curso Online de Filosofia. Estes
devem sempre recorrer às gravações e transcrições das aulas, como fontes primárias,
para limitar a propagação dos erros involuntários aqui contidos e colmatar as lacunas.
2) Os resumos foram escritos em português de Portugal.
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Aula 06 – 02/05/2009 (Especial Eric Voegelin)

Sinopse: Eric Vogelin procurou responder às questões fundamentais que se


levantavam no seu tempo. Investigou a natureza dos movimentos de massas, o que o
levou a iniciar linhas de estudo que não tinham paralelo. A sua metodologia recorria
apenas a documentos auto-expressivos escritos em linguagem teorética, o que lhe
permitia descobrir linhas de significado. Voegelin escreveu livros sobre a mente
americana, a ideia de raça, as “religiões políticas” e um manual sobre a história das
ideias políticas que foi abandonado, após a elaboração de 8 volumes, por ter
percebido que não havia continuidade nas doutrinas. Iniciou, então, a sua grande
obra, Order and History, uma história sobre os modelos de ordem, que era o terreno
comum que ele tinha detectado nos seus anteriores trabalhos. Examinou primeiro as
civilizações cosmológicas do oriente, que identificavam a ordem social com a ordem
cósmica, e extraiam dessa ordem a sua representação existencial. A revelação
hebraica vai consistir num primeiro salto no ser, que introduz uma dimensão histórica
e uma existência face a Deus, que é mediada pelo profeta, que começa por colocar
ordem na sua alma, de acordo com a ordem divina, e depois é obedecido pela
comunidade, que assim atesta o seu maior ou menor grau de fidelidade à recordação
da intervenção divina. Um segundo salto no ser ocorreu com o nascimento da filosofia
na Grécia, onde se vai tentar apreender algo da ordem divina, as leis não escritas, por
meios noéticos. A revelação hebraica e a filosofia grega vão combinar-se no
cristianismo mas já ao nível do indivíduo. O modelo de ordem da modernidade, para
Voegelin, é caracterizado pela perda da existência face a Deus e por um conteúdo
efectivo dado pelas seitas gnósticas. Voegelin não conseguiu dispor os vários modelos
de ordem em sequência, como imaginara, pois estes apareciam simultaneamente em
vários locais e até no mesmo local, e daí ele vai afirmar que a ordem da História é a
história da ordem. Afasta-se assim definitivamente das concepções simplistas que
modulam a História como se fosse uma biografia humana e lhe determinam um
sentido e um fim, como aconteceu com Compte e Marx. Nos movimentos
revolucionários de massas vão confluir duas linhas, a gnóstica e a messiânica, que
Voegelin chamava de apocalíptica e não tinha no início considerado. Os movimentos
messiânicos surgem do escândalo face à corrupção da Igreja, e da descrença da
possibilidade da ordem poder ser restaurada. Estes movimentos vão manifestar-se na
reforma protestante, onde irão aparecer alguns elementos característicos das
ideologias de massas, nomeadamente em Calvino, que vai criar a militância, a
propaganda e a noção de Estado totalitário, e com Thomas Cramer, um precursor de
António Gramsci, que criou a estratégia das mudanças graduais. Mais tarde estes
movimentos infundem-se de gnosticismo e ocultismo e vão aparecer com um carácter
radicalmente anticristão. Saber como isso aconteceu não podia ter sido feito por Eric
Voegelin devido ao método por ele usado, já que os acontecimentos deram-se no seio
de sociedades secretas ou discretas. Esta é uma primeira linha de investigação aberta
que deve ser respondida. Outra linha de investigação prende-se como Islão e a
necessidade de elaborar uma filosofia cristã da História. Eric Voegelin não se
debruçou o suficiente sobre o Islão para perceber que se tratava de uma civilização
eminentemente histórica, com uma filosofia da História pronta desde o início, algo
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que ainda falta ao cristianismo. Por último, falta ainda desenvolver uma ciência, não
nos moldes da ciência moderna, que possa estudar os milagres, pois estes são a
intervenção de Deus na História e a força de expansão do cristianismo.

Primeiros trabalhos: metodologia e campo de estudos


Eric Voegelin teve o privilégio de frequentar a Universidade de Viena, nas décadas de
20 e 30 do século XX, quando esta instituição tinha intelectuais de alto gabarito, que
lhe ajudaram a definir metodologias e o campo de estudo. Seguindo a boa tradição
filosófica, as suas áreas de interesse intelectual visaram sempre responder aos maiores
fenómenos sociais da sua época, obrigando-o a iniciar linhas de estudo que não tinham
paralelo e a ter que interromper essas linhas para iniciar outras que lhe pudessem dar
uma maior proximidade à verdade dos acontecimentos.
Os primeiros trabalhos de Eric Voegelin procuraram definir o campo de estudos das
ciências sociais e saber se a própria sociedade existia ou se existiam apenas os seus
elementos. Ele acabou por delimitar o campo da sociologia como aquele que estuda a
tensão entre o indivíduo e a sociedade. Hans Kelsen e Othmar Span foram duas
influências contrastantes que marcaram a sua formação e o levaram directamente a
estas investigações. Hans Kelsen foi o criador da Teoria Pura do Direito, procurando
responder a uma necessidade de delimitar o direito como ciência autónoma (pura). Ele
acabou por definir o campo jurídico como contendo apenas a estrutura formal da
lógica normativa, onde não entravam nem os valores nem as ideias políticas. Já
Othmar Span, na sociologia, fez um esforço de concepção de uma visão holística da
sociedade, onde a independência das partes ficaria submetida ao todo. Após o seu
doutoramento, Eric Voegelin vai para os Estados Unidos, como bolseiro da fundação
Rockefeller, estudar o caso concreto americano, de onde resulta o livro On the Form of
the American Mind (segundo o índice das The Collected Works of Eric Voegelin,
publicação da “University of Missouri Press”, que será aqui utilizado como referência
bibliográfica). Ele vai supor que existe mesmo uma sociedade americana com uma
unidade, não apenas o aglomerado de grupos e indivíduos, sem que essa sociedade
chegue a ser uma substância no sentido aristotélico.
Eric Voegelin começou aqui a desenvolver uma metodologia de estudo que iria utilizar
muitas vezes. Por um lado, ele recorreu a uma medida simplificadora em relação às
suas fontes, recorrendo apenas a documentos auto-expressivos escritos em linguagem
teorética, ou seja, no caso concreto da mentalidade americana Voegelin vai tentar
apanhar a sua unidade a partir das interpretações dos próprios agentes históricos
envolvidos, identificando uma unidade no diálogo e, assim, uma unidade na
mentalidade. A utilização dos factos brutos tornaria o estudo de uma dimensão
incomportável, além de não serem documentos auto-expressivos. As obras literárias
também não são utilizadas por carecerem de linguagem teorética. Eric Voegelin terá
sido inspirado nesta metodologia, presumivelmente, por Aristóteles quando este diz
que a dialéctica nunca parte do exame dos factos em bruto mas do exame das opiniões
dos sábios, ou seja, uma síntese de nível superior é elaborada a partir de sínteses
parciais. Esta metodologia teve também a influência do historiador Eduard Meyer,
com quem Voegelin teve contacto em Berlim. Eduard Meyer defendia que a
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interpretação dos factos históricos tinha de partir da auto-interpretação feita pelos


agentes, desde que elaborada em linguagem teorética. Este método utilizado por Eric
Voegelin tem algumas limitações, como veremos, mas permitiu identificar linhas de
significado pelo constante retorno das mesmas questões ao longo dos séculos, podendo
mesmo falar-se de uma continuidade ao longo do processo mental.
Outra parte do método utilizado por Eric Voegelin, já dentro da análise dos
documentos, teve a influência de Paul Friedlander, especialista em Platão, com quem
ele tinha mantido contacto em Viena. Friedlander queria tratar da história das pessoas
reais, que tinham elaborado as concepções filosóficas, retirando da linguagem
abstracta o fundo de experiência que as tinha desencadeado.
Motivado pela situação vivida no início da década de 30, Voegelin escreveu dois livros
sobre a ideia de raça (Race and State e The History of the Race Idea: From Ray to
Carus). Com a sua metodologia, ele vai descobrir que a doutrina racista deriva da
cultura iluminista e não podia ter sido constituída sem o conceito biológico de raça.
Até ao século XVIII o conceito de raça era usado no sentido cultural e religioso. A
doutrina racista é um longo processo de falsificações que tem um propósito de auto-
identificação ideológico, e nada diz sobre a raça do outro grupo ou do nosso.
A perseguição que Eric Voegelin sofreu pelos nazis devido aos seus livros sobre raça
levou-o a se interessar ainda mais pelos fenómenos de massas e, em 1938, ano do seu
exílio para os Estados Unidos, publicou o livro Political Religions (The Collected
Works of Eric Voegelin, 5.º volume, em conjunto com os livros The New Science of
Politics e Science, Politics, and Gnosticism). Voegelin tinha vindo a se interessar por
autores tomistas e neotomistas, como Hans Urs von Balthazar e Henri de Lubac, que o
despertaram para as ligações das ideologias de massas às heresias gnósticas. Henri de
Lubac mostra no livro O Drama do Humanismo Ateu que a figura de Cristo não era
simplesmente rejeitada por certas escolas de pensamento, o que levaria a uma rejeição,
mas sim motivo de inveja, o que levaria a querer tomar o seu lugar. A ideia de
Voegelin no livro Political Religions era mostrar que algumas ideologias políticas
eram religiões substitutivas. Sendo possível fazer uma analogia, ele percebeu que isso
não era um princípio explicativo suficiente.
Depois Voegelin foi contratado para fazer um manual com a história das ideias
políticas, em três volumes. Mas já ia no oitavo volume quando percebeu que havia
algo de errado. Uma história deste género pressuponha uma continuidade das ideias
políticas e das doutrinas, o que não se verificava. Ele percebeu que as próprias
doutrinas tinham que ser encaradas como documentos auto-expressivos, mas isso iria
alterar tanto o projecto que ele simplesmente abandonou-o e começou algo novo, a sua
obra principal, Order and History.

Civilizações cosmológicas e a representação


Em Order and History, Voegelin vai elaborar uma história dos modelos de ordem, que
lhe pareceu ser o terreno comum que tinha aparecido nos seus anteriores trabalhos.
Estes modelos de ordem foram identificados pelos próprios intervenientes no processo
histórico e depois utilizados para estruturar a vida humana. As primeiras civilizações
abordadas foram as do oriente, China, Índia e Egipto, tendo Voegelin saltado por cima
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das culturas tribais por estas não terem fornecido documentos auto-expressivos como
era requerido pelo método por ele utilizado. Estas civilizações orientais desenvolveram
aquilo a que Voegelin chamava de sociedades cosmológicas. Os teóricos destas
civilizações não defendiam apenas uma aproximação do modelo da sociedade à ordem
cósmica, eram bem mais radicais e acreditavam que a sua sociedade já fazia parte
dessa ordem e era um elemento que servia para preservá-la. Rituais não cumpridos
pelo imperador da China poderiam causar não só desordem social mas cataclismos
naturais, acreditava-se. Isto introduziu uma visão unitária e fechada do mundo, que
condenava à inexistência quem não estivesse integrado na sociedade. A existência de
outras ordens era motivo de crise. As outras ordens eram consideradas ilegítimas e
representavam o caos.
No livro The New Science of Politics (The Collected Works of Eric Voegelin, 5.º
volume) surge a ideia de que a ordem vigente representa o povo. Não se trata de uma
representação política mas existencial, em que a ordem fornece à sociedade,
retroactivamente, o critério para distinguir o certo do errado, o verdadeiro do falso.
Numa civilização cosmológica, onde a verdade como um todo é a ordem social,
indistinta da ordem cósmica, nada fora dessa ordem pode ser considerado legítimo ou
verdadeiro e a própria existência de outras ordens era um escândalo e uma ameaça.
Esta tensão era eliminada quando os impérios, como nos casos do Egipto e de Roma,
invadiam terrenos vizinhos e absorviam elementos dessas culturas, fazendo rearranjos
simbólicos entre as ordens parciais, o que permitia manter a ordem global.

A revelação hebraica e a inauguração da dimensão histórica na humanidade


A revelação hebraica surge numa envolvente hostil dominada por grandes civilizações
cósmicas que se viam a si mesmas como o centro do mundo, sendo tudo o resto uma
periferia anormal e provisória. Esta nova ordem constituiu-se pela abertura de alguns
indivíduos para uma ordem supra-cósmica, transcendente. A sociedade já não era
ordenada directamente mas através dos profetas, que construíam primeiro a sua ordem
interna e se tornavam juízes e reordenadores da sociedade. Esta ordem divina era
superior à ordem cósmica, mas não tinha a estabilidade desta e vivia em permanente
crise pois dependia da obediência do profeta a Deus e de que a sociedade se deixasse
guiar pelo profeta. A relação entre Deus e o profeta é subtil. A revelação é gradual e
pode ser incompreendida, e pode ainda existir infidelidade. A fidelidade do profeta à
revelação não é uma mera compreensão mental, aquilo tem que se transformar num
novo modo de existência e ele vai ter de incorporar essa ordem em si pois a revelação
já não está mais presente, ao contrário da ordem cósmica, com uma presença sempre
evidente no movimento dos astros e na sequência das estações. A nova ordem era mais
exigente e subtil, aconteciam muitos percalços e episódios onde se evidenciava a
tentação de voltar à ordem anterior, que sobrevivia sempre em resquícios.
Sendo a revelação gradual e o processo de transmissão à sociedade complexo,
mediado pelo profeta, a nova ordem teve uma implementação gradual. Isto é a
inauguração da dimensão histórica na humanidade, marcada pela incerteza, pela
dependência do elo frágil da fidelidade à recordação da revelação e onde o
esquecimento de Deus é frequente, ao ponto de se tornar em tema recorrente na
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literatura universal. A nova dimensão inaugurada, segundo Voegelin no Êxodo para o


Egipto, é a vida na incerteza histórica, onde não há um término pré-determinado e
apenas umas promessas vagas de Deus a serem cumpridas em data incerta e por meios
imprevisíveis.

Um novo Salto no Ser com o nascimento da filosofia na Grécia


Quase ao mesmo tempo que ocorria a revelação hebraica, na Grécia nascia a filosofia,
constituindo um segundo salto para dentro do ser. Estes saltos são novas dimensões
para a consciência humana, onde antes apenas existiam vestígios. Os indivíduos das
civilizações cosmológicas não chegavam ter consciência da sua existência histórica.
Essa consciência de uma existência histórica apareceu em Israel, e implicava um dever
em cumprir uma missão, sem garantias de isso ser possível nem o conhecimento dos
meios a ser utilizados. Sendo a relação da fé muito mais legítima e profunda que a
confiança total na ordem cosmológica fechada, não podemos dizer que anteriormente
se vivia no erro total. As civilizações cosmológicas mais importantes duraram milénios
e não podiam ter se baseado num conhecimento totalmente errado para obter esta
longevidade. Só recentemente se tentou recuperar este conhecimento a partir dos seus
próprios termos, com todas as dificuldades inerentes aos trabalhos pioneiros, em
trabalhos como Temple de l’Homme e Le Miracle Egipcian, de Schwaller de Lubicz e
Serpent in the Sky, de John Anthony West. Nem todos os elementos da ordem
cosmológica foram eliminados, mantendo-se na própria cultura cristã na forma de
ocultismo e esoterismo. O que as novas ordens vieram acrescentar foi uma percepção
mais fina quando antes as coisas eram nebulosas e vistas de forma simbólica.
O salto no ser ocorrido no mundo helénico, apesar de ter se dado por meios diferentes,
teve um teor idêntico ao da revelação hebraica. A filosofia era também uma abertura à
ordem divina, da qual se tentava descobrir alguma coisa através da razão ou logos.
Essa ordem evidenciava-se nas leis não escritas, que se encontravam para além da
ordem social ou cósmica. Um exemplo de uma lei não escrita, retirado da Antígona de
Sófocles, é que não é decente recusar uma sepultura a um morto, o que se sobrepõe a
um costume social de repudiar uma pessoa quando ela ter lutou por uma nação
estrangeira. Inicialmente a razão não significava pensamento lógico, já que a própria
lógica não havia sido criada. Para Eric Voegelin, a razão é a simples tendência da
inteligência humana ir em direcção ao fundamento, que é a ordem divina. A lógica
limita-se a absorver e desenvolver princípios universais provindos da ordem divina,
que não dependem do próprio cosmos, como o princípio de identidade enunciado por
Aristóteles. Quando os pré-socráticos tentaram descobrir o elemento fundamental da
natureza, o que realmente procuravam era um factor transcendente estruturante de todo
o cosmos. Era uma busca de uma intuição da ordem divina supra-cósmica, mas ainda
estavam presos à linguagem cósmica porque faziam as primeiras aproximações a uma
nova dimensão. Tanto no desenvolvimento da filosofia como na construção da lei
hebraica há a necessidade de desenvolver meios expressivos adequados para a
comunidade poder compreender e absorver a nova ordem.
Ambos os saltos no ser têm a sua substância na ordem divina, mas diferem nos meios.
A revelação hebraica é de ordem neumática, relativa ao espírito que inspira o profeta.
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A filosofia grega é de ordem noética, puramente cognitiva, mas os primeiros filósofos


acabam por ter a estatura de profetas devido ao papel que desempenharam e à própria
inspiração que acabou por ser também divina. Antes destes saltos no ser os homens
não tinham consciência, eram como bonecos nas mãos de ventríloquos – os deuses
cósmicos –, como alude Julian Jaynes no livro A origem da consciência na ruptura da
mente bicameral. A dimensão histórica é uma dialéctica entre ordem e desordem; o
homem está numa fronteira entre o finito e o infinito; a sua existência é a tensão do
finito em relação ao infinito, uma tensão que nunca se acalma ou pode ser satisfeita.
Não existe esta tensão na ordem cosmológica, que é estática e fechada. Os elementos
de desordem tinham que ser explicados como fazendo parte intrínseca da própria
ordem e por isso os deuses deles também eram meio demónios. A ideia de que a
condição humana é a existência numa rede de tensões, a que Platão chamava metaxis,
é um dos patamares da filosofia, os quais constituem a sua história como se degraus
fossem que não podiam mais ser ignorados. O mecanicismo introduzido por Newton é
um retrocesso, que apareceu como a restauração da ordem cósmica, e só no século XX
o elemento tensional voltou a ser reintroduzido com o indeterminismo e a mecânica
quântica. Começaram a proliferar os estudos sobre o caos, mas na verdade, nem caos
nem ordem existem, apenas uma tensão entre ambos.
Vão fundir-se no cristianismo os dois saltos no ser ocorridos no mundo hebraico e no
mundo helénico, agora já ao nível da dimensão da vida de cada indivíduo. Cada
indivíduo em particular, e não apenas a comunidade, vive na tensão histórica perante
Deus. Existe aqui um nível cognitivo superior nesta descoberta de se ver a si mesma
como uma civilização histórica, quando as outras ainda permaneciam de algum modo
presas às concepções cíclicas anteriores. Para além do cristianismo, apenas o
islamismo tem também esta concepção histórica de si mesmo.

O gnosticismo como modelo de ordem da modernidade


Eric Voegelin questionou-se depois sobre o modelo de ordem da modernidade. A
modernidade caracteriza-se pela perda de uma existência diante de Deus, mas o seu
conteúdo efectivo, para Voegelin, tinha sido dado pelas seitas gnósticas. Ele achava
que o modelo de ordem fundado na revelação hebraica e na razão grega era demasiado
exigente e enervante, dependendo de uma contínua transmissão de geração para
geração, por meios essencialmente discursivos e onde apenas alguns rituais poderiam
dar alguma vivência da recordação original. Basta um pequeno enfraquecimento nessa
transmissão e as pessoas vão logo procurar modos de existência anteriores que lhes
dêem maiores certezas e estabilidade. Mas isso é impossível porque nem as
civilizações cósmicas, nem o mundo greco-romano existem mais. O que subsistiu
desse mundo antigo desaparecido são apenas resíduos, que se misturaram com
elementos novos e se combinaram em fórmulas saídas da própria Igreja, originando
comunidades heréticas, onde a principal era a gnóstica. O que há de comum na enorme
quantidade de teorias gnósticas é a experiência do terror, do caos e da desordem. Esta
experiência não é atenuada pela fé, pois os gnósticos já não têm a recordação da
revelação diante deles; perderam a fé. A própria noção do que é a fé mudou totalmente
de sentido e passou a ser a crença numa doutrina. A doutrina é apenas um elemento
discursivo que tenta explicar por meios racionais os acontecimentos relatados. A fé
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significava anteriormente a fidelidade à recordação desses acontecimentos mas,


originalmente, era a confiança numa presença, que podia ser a presença de Deus
quando Moisés recebeu as tábuas da lei a Moisés, ou na divindade de Cristo realizando
milagres. Os milagres foram se repetindo ao longo da História e nem tudo dependeu da
recordação dos eventos primordiais. Mas quando já não há presença divina nem a sua
recordação, restava apenas a doutrina que, por ser um discurso, sujeita-se a uma
dialéctica que faz aparecer a sua negação e dá origem a uma discussão que se afasta
cada vez mais dos factos originários, que eram os elementos realmente estruturantes da
ordem. O gnosticismo é uma experiência do caos que tenta ser resolvida pelo domínio
intelectual completo da situação e daí proclama uma ordem total, que é apenas
hipotética e o indivíduo acaba por ficar ainda mais desesperado. As variantes do
gnosticismo que apareceram traduzem este choque entre ordem hipotética e desordem
real. As variantes “evasionistas” querem apenas sair deste mundo e ir para um mundo
espiritual onde vigora a ordem e a paz. Mas também surgiram variantes activistas que
projectam essa ordem ideal no futuro, e daí surge o ímpeto de criar um mundo melhor.

A ordem da História é a história da ordem


Eric Voegelin imaginou que podia dispor os modelos de ordem ao longo da História
para que a própria sequência fosse a ordem da História. Mas os vários modelos
ocorriam em vários lugares e por vezes no mesmo lugar simultaneamente, e daí ele
formulou a sua sentença final de que a ordem da História é a história da ordem. Nada
mais existiria que uma sequência de buscas de ordem. Afastou-se assim
definitivamente das visões simplistas que tentam encontrar um fio condutor na
História que permitiria conhecer o seu percurso pré-determinado, como no caso de
Compte, que preconizava uma sequência de três ordens (mítica, metafísica e positiva),
ou da sequência inevitável apontada por Marx (comunidade primitiva, feudalismo,
capitalismo e socialismo). Estas filosofias da História são falsas na base porque tentam
ver desde fora a História como um objecto. Esta ordem que eles projectam na História
é apenas a ordem por eles concebida, que não passa de um novo capítulo na história da
ordem que não tem término pré-determinado nem sabemos onde vai dar.
A História não pode ser vista como a vida de um indivíduo, que tem uma duração
expectável. A História não tem um fim pré-determinado que possa ser conhecido por
nós. O impulso de querer conhecer o fim da História não se iniciou com o gnosticismo
mas nas primeiras gerações de cristãos que interpretaram mal o que S. Paulo quis dizer
ao afirmar que a vinda do Cristo era iminente. Isso era para ser interpretado em termos
da história individual de cada um, que iria ser confrontada com o Juízo Final “após” a
morte. Mas foi entendido como um desígnio colectivo e histórico e, mesmo tendo sido
reunido um concílio para explicar o assunto, permaneceu sempre a ambiguidade. Por
outro lado, os saltos no ser ocorridos na Grécia e em Israel transferiram a identificação
da sociedade, anteriormente com o cosmos, para a alma do profeta. Daí foi um passo
para ver a História como a vida de um ser humano, porque a comunidade se
identificava com o profeta. Santo Agostinho tentou colocar ordem nesta confusão ao
afirmar que não existia uma História mas duas, a História terrestre e a História da
salvação. A História terrestre não tinha um sentido definido muito menos um término
pré-estabelecido, ao contrário da História da salvação que terminava com o Juízo
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Final. A própria Igreja tinha a sua História terrestre, caótica, e a sua História espiritual,
que só poderia realizar-se na eternidade, já fora da dimensão temporal. Apesar da
explicação de Agostinho, muitos continuaram a ver a História como a biografia de um
indivíduo.

A formação dos movimentos de massas modernos


Os movimentos de massas modernos tiveram origem em duas linhas, a gnóstica e a
messiânica, a que Voegelin chamava de apocalíptica. Os movimentos messiânicos que
se iniciaram no século XVI não tinham inspiração gnóstica, não surgiram de um
desespero mas do escândalo face à decadência e corrupção da Igreja, sobretudo
quando o papado de deslocou para Avignon. Os líderes messiânicos deixaram de
acreditar que fosse possível restaurar a ordem a partir do interior da Igreja e decidiram
fazer o trabalho no lugar do Cristo, como que forçando a sua segunda vinda, impondo
a ordem a ferro e fogo.
Nas reformas protestantes surgiram alguns elementos das ideologias de massas. O
messianismo entrou sobretudo do final do luteranismo, na Suíça, com as reformas de
Zuínglio e Calvino e, na Inglaterra, com a reforma de Thomas Cramer. Calvino criou a
noção de um estado totalitário, que tudo controla na sociedade. Para ele não existia
vida privada e tudo podia ser denunciado na vida pública. Criou também a militância,
as manifestações, a propaganda e também a noção de actividade política capaz de
animar um movimento para derrubar um poder e o substituir por outro. A reforma em
Inglaterra não prometia ser uma ruptura em relação à substância, mas uma disputa de
poder, onde o rei Henrique VIII se declarou ser chefe da Igreja no seu território mas
ainda permanecia católico. As ideias mais radicais apareceram depois da sua morte,
mas surgiram de forma gradual, primeiro com alterações no ritual da missa. Esta
estratégia das pequenas mudanças, que ao longo do tempo provocam grandes
alterações sem que as pessoas se apercebessem, mostra que António Gramsci teve um
percursor em Thomas Cramer. Apenas quando restavam algumas comunidades
resistentes, a Reforma investiu sobre estas e matou mais de 40 mil pessoas, mais que o
resultado de quatro séculos de Inquisição.
No século XVIII as várias reformas já haviam fracassado no objectivo de criar uma
igreja melhor e a Igreja católica não tinha conseguido restaurar a sua autoridade. Os
movimentos revolucionários, de origem messiânica, perderam a sua substância cristã e
caíram no patamar menos diferenciado e que estivesse ao alcance, que era o
gnosticismo (teoria do professor Olavo). Esta incorporação de ideias gnósticas nos
movimentos revolucionários não podia ser explicada por Eric Voegelin porque a
documentação que ele exigia não existia devido à natureza oculta dos movimentos, e é
algo que ainda está por ser esclarecido. Inicialmente Voegelin só considerou relevante
o elemento gnóstico, mas mais para o fim da vida perceberia que também existia o
elemento messiânico, mas não conseguiu esclarecer a relação. Voegelin deixou várias
linhas abertas para a investigação, pois a sua vida intelectual é um imenso programa de
estudos para várias gerações.
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A continuação dos estudos de Eric Voegelin


Das várias linhas de investigação que Eric Voegelin deixou em aberto, a que tem
primazia será saber como foi que os movimentos messiânicos absorveram o
gnosticismo e se tornaram anticristãos. No século XVIII ocorreu uma infusão de
gnosticismo e ocultismo nos movimentos messiânicos e no século seguinte esses
movimentos já eram radicalmente anticristãos. Para descobrir como isso ocorreu não é
possível seguir o método de Eric Voegelin porque não existem análises teóricas dos
próprios agentes do processo. Pelo contrário, eles não tinham qualquer interesse em
explicar as ocorrências pois estas deram-se no seio de sociedades secretas ou discretas.
Apenas se assiste ao resultado final mas não se sabe onde está o agente. Para
interpretar este tipo de situações é necessário utilizar métodos mais próximos da
psicopatologia do que da análise histórica cultural ou ideológica.
Uma segunda questão por esclarecer prende-se com o Islão, que Eric Voegelin não
chegou a tomar em conta como sendo também uma civilização histórica com uma
existência diante de Deus. Para ele apenas a civilização ocidental tinha atingido esse
patamar de consciência. Depois da descoberta da visão da eternidade, o mundo
cosmológico passa a ser o inferno, onde o indivíduo está à mercê dos demónios. A
realidade humana é muito melhor expressa pela tensão entre História e Eternidade,
onde a incerteza é contrabalançada pela caridade e pela fé, a fidelidade a uma
recordação, que não dá o plano dos acontecimentos mas indica o próximo passo a
seguir. Mas o Islão veio trazer também uma existência diante de Deus e é
eminentemente uma civilização histórica, que engloba Jesus Cristo e as revelações
anteriores, culminando no Juízo Final. O ingresso do indivíduo no Islão é progressivo,
há uma imitação da vida do profeta que recebeu a revelação ao longo de 28 anos. A
islamização da pessoa é feita com o auxílio de duas narrativas, a do Corão e a da vida
do profeta, que consta em 40 mil ahadith. Esta islamização progressiva mas total do
indivíduo seria idêntica ao que prevê a história do Islão, onde no culminar do Juízo
Final já não restariam processos de vida por islamizar. Então, o Islão tem este
elemento totalitário, de regulação completa da sociedade, característico das
civilizações cosmológicas, com a diferença de o encarar como um processo dinâmico.
Eric Voegelin percebeu que a incapacidade da Igreja em formular uma filosofia da
História levou a que os movimentos de massas tomassem a iniciativa e fossem
incorporados na sociedade. Mas quando as ideologias de massas pareciam dominar o
mundo, o Islão apareceu na disputa, restando saber quem levará a melhor. Para o Islão,
os movimentos de massas são um dos aspectos da decomposição do ocidente.
Efectivamente, esses movimentos são apenas efectivos na destruição da civilização e
não têm qualquer força organizativa, e quem pode aproveitar os destroços é o Islão,
que tem os meios para isso porque desenvolveu uma filosofia da História.
Uma terceira lacuna nos estudos de Eric Voegelin é a ausência de Deus como
personagem histórica. O seu método apenas podia examinar as aberturas para Ele, mas
não ver Deus como agente. Para isso era necessário ver não as aberturas do homem
para Deus mas as intervenções directas de Deus na História através dos milagres. Eric
Voegelin trabalhou no cenário das ciências físicas e estas não podem estudar os
milagres. A ciência moderna só lida com fenómenos recortados segundo uma hipótese
prévia. Para resultar, só pode estudar os fenómenos que efectivamente são regidos pela
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uniformidade posta como hipótese, o que implica que ela só possa estudar aspectos e
não fenómenos concretos. Mas no fenómeno miraculoso confluem factores
heterogéneos inseparáveis. O milagre é eminentemente concreto, não pode ser
enquadrado dentro de nenhuma das classificações admitidas pela ciência.
Inevitavelmente, o método determina o alcance do que se pode estudar, algo que
Voegelin criticava mas acabou por cair na mesma limitação. Ele não chegou a colocar
em cima da mesa o problema da existência objectiva de Deus, também por influência
de William James, quando este dizia que o sujeito e o objecto não existiam
separadamente e se auto-constituem e distinguem no próprio processo da relação.
Então considera-se que Deus é apenas é um objecto alcançado no salto no ser, por
meios neumáticos ou noéticos e apenas se terá em conta aquilo que os homens
apreenderam sobre Deus. Voegelin definiu a quaternidade da ordem do real como
Deus, o homem, o mundo e a sociedade. O Mundo, a sociedade e o homem são, na
perspectiva da revelação cristã, apenas a criação, finitos e irrisórios face a Deus. Esta
quaternidade só existe na escala da História humana, sendo um cenário que exclui uma
multidão de fenómenos que nós sabemos ser reais, a começar pelos milagres. Voegelin
chegou à limitação natural do método, mas quando percebeu isso estava velho demais
para continuar, mas não fez como Kant, que caiu na idolatria do método e definia o
objecto de acordo com o método.
A expansão islâmica não se baseia na intervenção divina, como no cristianismo, mas
na acção política e social, usando os meios mais banais, frequentemente desonestos, e
com grande investimento de dinheiro, tudo baseado numa grande auto-consciência
colectiva numa forma de existência histórica diante de Deus. Já a civilização cristã não
poderá ignorar a acção divina ou irá cai na fé metastática, que é uma expectativa, meio
messiânica, meio gnóstica, de poder transformar totalmente a sociedade mediante um
acto de fé. Esta expectativa é característica das ideologias de massas e vai contra a
estrutura da realidade, que pode apenas ser transfigurada por Deus e não pela fé. Deus
pode nos salvar mesmo se não tivermos fé, como aconteceu com S. Paulo, mas é uma
heresia pensar que Deus pode agir em nosso lugar e não connosco.
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 12

Aula 07 – 16/05/2009

Sinopse: O ser humano vive num sistema de virtualidades e estaria reduzido a um


estado de quase inconsciência se a sua existência estivesse limitada aos estímulos
sensoriais. A rede de virtualidades desenvolve-se através da linguagem, que permite
que coisas que não estão mais presentes se possam efectivar. Mas o crescimento da
linguagem pode não acompanhar o desenvolvimento do mundo virtual e a pessoa cria
uma auto-imagem muito simplista. O descompasso entre a linguagem e experiência
devia ser colmatado pela educação, que começaria por fornecer os meios de
expressão linguísticos. Nesse âmbito iremos começar por imitar os grandes escritores
de língua portuguesa para absorver os seus recursos linguísticos e aprender a
modular o nosso tom expressivo. A passagem da literatura para a filosofia, entrando
no reino da dialéctica, faz-se através da retórica, que medeia toda a sociedade
humana. Por isso a filosofia é uma actividade para pessoas maduras, cidadãos
habituados a fazer escolhas e com poder de persuasão baseado no conhecimentos dos
valores que é suposto os outros possuírem. Só podemos conhecer o possível através da
imaginação. Uma forma de exercitar esta capacidade é assistir a ficção dramática,
que é tomada como realidade fazendo a suspensão da descrença, ou pela ficção
simbólica, assistida como um sonho, onde histórias aparentemente impossíveis
exprimem possibilidades reais. Mas muita da ficção moderna paralisa a imaginação,
que é usada apenas para colorir hipóteses racionais realmente impossíveis. A
modernidade faz um culto de um realismo imediato que separa a vocação dos deveres.
Contudo, os ideais só podem ser realizados por quem cumpre as suas obrigações e
ame o seu trabalho. A filosofia é uma técnica e uma tradição, e ambas se desenvolvem
por mútua realização. A filosofia deve ser estudada por problemas e no início existe
uma tarefa bibliográfica para apurar o status quaestionis. O milenarismo, apesar de
ter sido proibido por Cristo e desautorizado por Santo Agostinho, incorporou-se
fortemente na mentalidade ocidental e deu a fórmula da inversão do tempo presente
nas ideologias de massas, por partir do erro de conceber a História como um objecto
que pode ser visto desde de fora e análogo à história de um indivíduo.

A vivência num sistema de virtualidades


O seminário de filosofia é uma comunidade dita virtual. Em geral, quando dizemos
que algo é virtual estamos a fazer um comentário pejorativo. Virtual vem do latim
virtus, que significa potência, ou seja, algo que não está efectivado. Mas um mundo
concebido apenas segundo o que está efectivamente presente ficaria drasticamente
reduzido. Estaríamos como um doente que saiu do coma, sem qualquer memória,
apenas com os estímulos sensoriais físicos, o que seria um estado de quase
inconsciência, abaixo da consciência de um cão ou um gato porque estes animais se
orientam num mundo virtual, como uma certa recordação do passado e expectativa de
futuro. A biografia ou a personalidade de uma pessoa, tomadas como um todo, apenas
existem virtualmente, não há nenhum lugar físico onde residam. O reconhecimento
que fazemos de algo efectiva-se na memória e não está presente fisicamente. O código
penal rege as relações entre as pessoas, mas é apenas um cenário hipotético que não
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 13

está efectivado. Mas existe toda uma série de regras de conduta que nem escritas estão
mas usamo-las para orientação, contamos com elas, criamos expectativas e fazemos
avaliações tendo-as por base.
O ser humano vive, então, num sistema de virtualidades e não num universo físico,
que é apenas uma componente minoritária. A existência humana, composta de
alegrias, tristezas e expectativas não está presente fisicamente, é virtual, e os indícios
físicos podem significar coisas distintas para diferentes pessoas. O que realmente nos
orienta é uma rede virtual de sinais do passado e expectativas do futuro e estas coisas,
mais a nossa história e a pressão do meio, oprimem-nos muito mais que os obstáculos
físicos. Por isso, uma visão do mundo centrada no mundo físico é falsa. O real é uma
rede imensa de possibilidades anunciadas por sinais ou símbolos a que chamamos de
virtual.

A construção do mundo virtual e a imitação dos grandes escritores


O crescimento do ser humano caracteriza-se por uma passagem gradual do actual para
o virtual. De início o bebé vive quase só em função do que está manifesto, mas aos
poucos começa a entrar no universo do possível. A rede de virtualidades abre-se
através da linguagem, que permite efectivar coisas que não estão mais presentes.
Podemos assim contar a nossa história pois fizemos uma conquista do passado e da
própria memória. Mas a linguagem pode não conseguir acompanhar o crescimento do
mundo virtual e o indivíduo não conseguirá raciocinar sobre a sua experiência porque
lhe faltam os símbolos adequados. A educação deveria servir para corrigir este
descompasso entre linguagem e experiência, porque se ele não é suprimido a pessoa
vai banalizar-se e criar uma auto-imagem demasiado simplista e afastada da realidade.
Mesmo a mente mais simplória é enormemente complexa porque tem uma história e
uma memória, e descrevê-la é um enorme desafio mesmo para grandes escritores.
A educação devia começar por fornecer, em primeiro lugar, os meios de expressão,
sobretudo os linguísticos. O importante é saber usar a linguagem e não tomá-la como
objecto de estudo, porque assim estaremos logo a separá-la de nós. Iremos adquirir os
instrumentos expressivos tomando posse das obras literárias da mesma forma que as
crianças aprendem a falar, ou seja, pela imitação. Os escritores exprimiram algo que
tinham em memória ou imaginaram, ou então o que estão sentido. Os instrumentos que
utilizaram também podem ser utilizados por nós para situações análogas. Fazendo esta
apreensão, vamos começar a modelar o tom conforme as necessidades. Em termos
práticos, devemos começar a imitação por um só escritor e ler o maior número de
obras dele. Faremos uma imitação servil, não vamos querer obter logo originalidade,
que é uma conquista e não uma obrigação. Os males da imitação serão corrigidos pela
própria imitação, já que ao ir mudando de autor vão começar a aparecer tantas
influências que já teremos uma linguagem própria. Podemos começar por um autor
com uma técnica simples, como Graciliano Ramos, mas há outros que utilizam todas
as palavras da língua, como Camilo Castelo Branco ou Aquilino Ribeiro. A ideia é
acumular recursos sem ganhar vícios. Há várias qualidades que podemos obter, como a
sobriedade, mas algumas delas são incompatíveis entre si e isso implica uma escolha.
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 14

Devemos ler os diários de Herberto Sales onde ele foi apontando as coisas que
aprendia sobre a arte de escrever.
Uma lista de autores fundamentais, em língua portuguesa, inclui, entre os poetas
portugueses, Camões, Bocage, Antero de Quental, Fernando Pessoa e Mário de Sá
Carneiro. Na literatura histórica são imprescindíveis Alexandre Herculano e Oliveira
Martins. Na ficção temos Eça de Queirós, Camilo Castelo Branco, Aquilino Ribeiro,
Ferreira de Castro, Vergílio Ferreira e Lobo Antunes. Poetas brasileiros: Gonçalves
Dias, Cruz de Sousa, Manuel Bandeira, Carlos Drumond de Andrade, Jorge de Lima,
Murilo Mendes e Bruno Tolentino. Ficção brasileira: Machado de Assis, Roberto
Pompeia (livro Ateneu), José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Marques Rebelo, José
Geraldo Vieira e Herberto Sales. Devemos procurar ler o máximo de cada um. Lima
Barreto serve para entender o Brasil mas não para aprender a escrever. Guimarães
Rosa é para esquecer, artificioso, bobo, apesar do talento, criou vício de linguagem a
muita gente.
Devemos ainda ter conhecimentos de outras línguas. O inglês é fundamental porque os
americanos traduziram tudo. O francês, o espanhol e o italiano também nos ajudarão a
melhorar o português numa segunda fase. O latim tem uma importância própria para a
filosofia, e permite-nos também ler os discursos de Cícero, que são imperdíveis.

A transição da literatura para a filosofia


A filosofia é uma busca da verdade partindo da expressão e só depois passa à reflexão.
Vai utilizar todos os recursos expressivos da literatura e mais alguns que esta
desconhece, e vai levá-los muito mais além até os tornar quase numa ciência. Não é
coincidência que o primeiro filósofo, Sócrates, apenas se expressasse oralmente e o
segundo, Platão, fosse um poeta. Até chegar à perfeição científica de Aristóteles foi
necessário um certo trajecto, que será refeito aqui no curso. A literatura propriamente
dita não procura explicar o que está exprimindo, o que é tarefa da filosofia e das
ciências teoréticas. A passagem da literatura para a filosofia não é directa e dá-se
através da retórica. Segundo a teoria dos quatro discursos, a expressão directa da
experiência é dada pela poética, o primeiro andar, que conta aquilo que podia ter
acontecido. A poética é uma contemplação das possibilidades de escolha, reais ou
hipotéticas, mas não há tomada de posição. Mas na vida é necessário fazer escolhas, e
para isso temos de nos persuadir a nós mesmos e, muitas vezes, outros também. Aí
estamos no segundo andar, a retórica. A dialéctica só é possível depois de feitas muitas
escolhas e percebido as contradições entre elas, pois ela é a confrontação ente os
vários discursos retóricos.
A sequência dos quatro discursos segue o percurso natural da educação humana.
Primeiro aprendemos a imaginar o mundo e conquistamos uma linguagem que possa
exprimir a nossa experiência real. Depois entramos na esfera da moralidade, das
escolhas pessoais, onde surge o problema do certo e do errado, do preferível e do
preterível, do melhor e do pior, não justificados em termos abstractos e universais mas
usados como legitimação das próprias acções e escolhas. E só depois de ter aprendido
a usar a linguagem como instrumento para influenciar as outras pessoas é que
podemos reflectir. A reflexão filosófica só pode surgir depois da conquista do poder
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 15

inerente à retórica, o poder de nos justificarmos com base nos valores que acreditamos
que os outros possuem. Antes de chegarmos à filosofia temos de conseguir fazer
alguma mediação dentro da sociedade, o que implica entrar nas escolhas pessoais, no
poder, na propaganda, na influência, na política. Por isso a filosofia não é uma
actividade para crianças mas apenas para quem já pode agir como cidadão.

O conhecimento do possível
Só através da imaginação podemos conhecer o possível. Essa representação não tem
que ser exacta e pode ser condensada em símbolos que formam uma história
aparentemente impossível mas que expressa possibilidades reais. Na literatura vai
ainda ocorrer uma compactação de experiências que normalmente se encontram
separadas. A imaginação trata ainda da experiência concreta, quer ela recorra à
memória ou seja elaborada em conjunção com a auto-consciência e, como num sonho,
poderá expressar compactamente coisas que estão muito afastadas entre si mas cuja
junção faz sentido. A capacidade expressiva não será assim perdida quando se trata de
um filme dramático, que se sente como sendo real pela suspensão da descrença, ou
num filme como O senhor dos anéis, que se assiste como um sonho.
Mas muita ficção moderna é elaborada em cima de hipóteses realmente impossíveis,
como o exterminador que vem do futuro, as pessoas que trocam de corpo ou a quase
omnipotência do super-homem. A imaginação vai ficar paralisada com hipóteses
idiotas. Há aqui um problema de coerência imaginativa. As hipóteses impossíveis não
entram no enredo como elementos oníricos mas como premissas logicamente
inventadas. A razão construtiva consegue criar hipóteses que vão muito além do que
aquilo que a imaginação pode conceber. A imaginação vai apenas colorir com imagens
hipóteses racionais que já se afastaram da realidade. Já não se trata do conhecimento
do possível mas de uma simples transição entre hipóteses idiotas que nos emburrece.
Devemos desconfiar dos produtos imaginativos que estão logicamente muito
estruturados. Na imaginação e na linguagem onírica e dos mitos existe uma contínua
transformação dos símbolos. Mas numa ficção como o super-homem há uma regra
imutável, não é um produto do imaginário humano mas um jogo disfarçado com
imagens.

O culto modernista do realismo imediato


Citando o poeta Jorge de Lima, a propósito do movimento modernista brasileiro:
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 16

Devemos recordar a influência do grande Graça Aranha, que foi o maior


animador do movimento. Ele pretendia impor normas filosóficas à
revolução com a sua estética da vida. Pretendia que o homem brasileiro
atingisse a unidade vencendo a natureza que o esmagava. Era chavão
repetir: “No Brasil só o homem é pequeno dentro da colossalidade da
Natureza”. Aconselhava o reformador que o homem vencesse o terror, o
medo metafísico, a compreensão subjectiva impregnada de supostos
atrasos que a deturpavam. Aconteceu, porém, o contrário. Os
modernistas brasileiros compreenderam que, ao invés do que
aconselhava Graça Aranha, o homem devia se entregar às suas
tendências naturais, às suas pretendidas deficiências, identificar-se com
a exuberância da sua natureza, à sua metafísica mesmo que saturada de
superstições, a essa amalgama de inferioridades.

O ser humano ficará em isolamento total se ficar apegado ao mundo sensorial directo,
ao telúrico, pois isso o colocará numa impotência completa face à natureza. A força
humana reúne-se no mundo virtual, a começar pela linguagem. O livro Cangaceiros,
de José Lins do Rego, mostra o nascimento da civilização através da linguagem.
Aqueles dados do mundo físico recebidos pelos sentidos não têm qualquer unidade,
que só é obtida no mundo virtual mediante a transferência efectuada pela linguagem. É
preciso fazer um certo sacrifício do mundo sensorial, do carnaval, do sensualismo
imediato. Não significa eliminar estas coisas mas enquadrá-las num cenário mais
alargado onde vão adquirir a justa proporção. Se passarmos de um sensualismo
imediato para um sensualismo virtual estamos subindo na camada de personalidade,
abrindo-nos para critérios superiores de integração da personalidade que nos colocam
na rota de objectivos mais elevados e abrangentes. O culto modernista prestado a um
realismo imediato, dos instintos, é para alguém que permaneceu na segunda camada.
Nenhum instinto manifesta-se em contínuo, e uma vida neles baseada revela uma
ausência de personalidade.
A realidade do ser humano é um trajecto em direcção ao ideal, mas as pessoas são
pressionadas a ignorar que as suas vidas decorrem num mundo virtual. A linguagem
fica orientada apenas para a experiência física e as pessoas ficam com uma forma
diminuída de existência onde acham natural fracassar. A atitude face ao trabalho
desliga o mundo das necessidades do mundo dos sonhos. A necessidade de trabalhar é
vista como a imposição de um mundo mau; o dever e a vocação são opostos
inconciliáveis e a justiça é ser alimentado por outros. Esta é uma temática presente no
livro O feijão e o sonho, de Orígenes Lessa. Há aqui uma moralidade invertida, que se
recusa a ver o trabalho como um dever moral e que, feito com amor, nos dará energia
para a vida intelectual. Há que modificar a relação entre o ideal e o real. Quem tem
uma carreira baseada na fraude e na exploração do próximo não tem direito a ter um
ideal. Conquista-se esse direito cumprindo as nossas obrigações, em primeiro lugar
vendo-as como um dever de bondade para com os outros. A cruz é também um
símbolo para a estrutura da realidade. A noção de um plano de vida está condicionada
à existência de uma cruz a carregar; esse plano não é necessário no paraíso. Mas para
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 17

conceber esse plano temos de ter uma correcta visão moral, que não se compadece
com o desprezo pelo trabalho e pela realidade.

A tarefa bibliográfica e a tradição filosófica


O artigo “Quem é filósofo e quem não é”, publicado no Diário do Comércio
(disponibilizado em http://www.olavodecarvalho.org/semana/090507dc.html) lida com
a tarefa de elaborar uma bibliografia essencial, e foi escrito a pensar nos alunos do
COF. Não devemos receber uma lista de livros, temos de ser nós a elaborar uma, e esta
tarefa vai criar em nós uma capacidade quase instintiva de discernimento acerca dos
autores realmente valiosos. Isto terá que ser feito por tentativa e erro, socorrendo-nos
de tudo que esteja ao nosso alcance, dicionários e enciclopédias de filosofia, incluindo
muita coisa valiosa da Internet. Se ao fim de 2, 3 anos conseguirmos elaborar uma lista
crítica de livros sobre uma data área da filosofia, mesmo sem ter lido livro algum, já
saberíamos mais do que alguém que tivesse passado o tempo a ler os livros. Um novo
campo de estudos deve ser para nós como um território inexplorado que tem que ser
cartografado e, para isso, devemos adquirir uma paixão pela informação, pela sua
ordenação e classificação. O padre Stanislavs Ladusãns utilizava o seguinte método,
que demonstrava o poder da dialéctica: para um novo problema filosófico ele
começava a análise segundo os métodos e perspectivas dos vários filósofos que o
tinham abordado. Seguindo uma direcção cronológica, simplesmente assumia a
postura de um discípulo fiel de cada filósofo, sem ainda entrar numa postura crítica.
As dificuldades e polémicas apareciam por si mesmas, e eram depois ordenadas,
analisadas e, no final, articuladas para produzir a melhor solução considerando os
elementos mais sólidos apresentados. Esta era uma forma de chegar ao status
quaestionis, baseada na emulação do pensamento dos filósofos passados.
Esta prática fazia chegar à conclusão de que a filosofia é uma tradição e uma prática,
e que o domínio da técnica ocorre pela absorção da tradição e esta, por sua vez, é
absorvida pela prática da técnica. Tradição vem de traditio, com o significado de
“trazer”, “entregar”, e a tradição filosofia significa revivificar os filósofos passados e
as experiências interiores que os motivaram, o que se afasta definitivamente da
aquisição de informação filosófica, que é uma busca de erudição que encerra os
filósofos passados como se fossem peças de museu. O culto da opinião própria leva
muitas pessoas a repudiarem a entrada nesta tradição, por medo de serem
influenciadas. Mas é próprio da dialéctica fazer esta integração para que as várias
influências se melhorem. Mesmo as piores coisas ajudam-nos a chegar longe por nos
alertarem para os erros naturais que obstaculizam a progressão da inteligência.
A partir daqui obtemos um critério para julgar outros filósofos. Devemos verificar se
eles conseguiram incorporar mentalmente o percurso dos filósofos do passado.
Obtemos também uma orientação para os estudos filosóficos. Estes devem ser regidos
por problemas e não abordando os autores. E os problemas escolhidos têm de ter real
interesse e importância para nós, mas não devemos estranhar se a formulação do
problema se alterar, o que é normal no decurso da pesquisa. Em seguida vamos
procurar os textos clássicos que abordaram o problema, e vamos lê-los por ordem
cronológica procurando reconstruir mentalmente a história daquela discussão. As
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 18

lacunas devem ser preenchidas com uma nova pesquisa bibliográfica até termos obtido
um desenvolvimento histórico contínuo o suficiente. Antes de montarmos a discussão
numa ordem lógica temos de classificar as opiniões segundo os pontos de
concordância e discordância, sem nos iludirmos com discordâncias de pormenor que
podem ocultar um profundo acordo relativo às categorias essenciais em discussão.
Quando a discussão é montada logicamente, ela irá aparecer como uma única hipótese,
que poderá conter ainda muitas contradições internas e perguntas por responder. Só
daqui em diante podemos dar a nossa própria contribuição para o esclarecimento do
problema, se tal for possível.

O milenarismo
Jesus Cristo proibiu formalmente a especulação sobre as datas dos planos de Deus para
o futuro (Actos dos Apóstolos, Cap. I, versículo 7). A expectativa milenarista, de mil
anos de paz com a vinda de Cristo, é uma especulação à volta destas coisas. Santo
Agostinho iniciou uma filosofia cristã da História que pretendia encerrar esta questão.
Para ele havia apenas duas formas de entender as profecias do Apocalipse e o símbolo
mil. Podia relacionar-se com o destino espiritual da história da Igreja e o seu governo
no mundo. Esse milénio já haveria começado, e desde o século IV de Agostinho até
1400 a Igreja espalhou por toda a parte o senso da imortalidade da alma, o senso da
sacralidade da pessoa humana, a caridade, inventou os hospitais, os orfanatos, as
escolas, aboliu a escravidão; pelo que esta interpretação será válida. Uma segunda
interpretação, que não é incompatível com a primeira, via o milénio, o símbolo mil,
como totalidade, nem seria um número mas a designação de algo fechado.
A salvação das almas é a tarefa da Igreja e para isso de nada servem expectativas
milenaristas, nunca existiu uma sentença papal baseada no milenarismo. Especular
sobre o fim da História implica simular uma posição existencial situada na eternidade,
que permite ver a História e Deus como objectos na nossa mente, quando eles só
podem ser concebidos como participação. Deus só pode ser concebido como força
agente em nós. Mesmo uma pessoa só pode ser conhecida como uma virtualidade, com
as suas potencialidades, tensões, e não como objecto. Só podemos conhecer uma coisa
de acordo com o seu modo real de existência, e isto nada tem a ver com cepticismo. A
ignorância do fim dos tempos é parte da nossa constituição, e o cristianismo realçou
muitas vezes esta incerteza constitutiva. Mas depois de Agostinho a Igreja abandonou
a filosofia da História, talvez por ele ter uma visão muito realista que não via sentido
na História fora do cristianismo. Mas a Igreja também abandonou os estudos sobre a
filosofia da natureza e as suas forças ocultas, sobre alquimia e astrologia, e estas coisas
passaram a ser monopólio das sociedades secretas com todo o tipo de disparates
associados.
As especulações milenaristas continuaram e trouxeram um elemento essencial da
mentalidade revolucionária, que foi a inversão do tempo. O milenarismo entrou
violentamente na mentalidade ocidental e todos nós temos algo desta concepção. Ela
tem o erro fundamental de conceber a História da humanidade como se fosse a de um
indivíduo. Mas, ao contrário da vida do indivíduo, a História não tem um fim
expectável nem uma unidade, é composta de narrativas de sociedades sem contacto
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 19

entre si. Apenas existe unidade histórica perante a eternidade ou na cabeça dos
historiadores. À medida que os vários historiadores vão tentando captar alguma ordem
na História, a sucessão desses esforços é a única ordem da História, e por isso Eric
Voegelin dirá que a ordem da História é a história da ordem. Fora disto existe a ordem
divina, que pode ser conhecida miticamente através da visão dada pela revelação, mas
o mito é compactado, confuso e pode não nos esclarecer.
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 20

Aula 08 – 23/05/2009

Sinopse: Esta aula sintetiza as aulas anteriores e traça algumas linhas para o curso e
para a restante vida intelectual. Existe uma série de blocos a serem desenvolvidos na
vida intelectual, de acordo com o espírito do COF e tendo em conta o estado actual da
sociedade. Esses blocos são independentes mas terão de ser trabalhados em paralelo
e articulados. A própria filosofia é o modelo da vida intelectual, na senda de
Sertillanges, onde as indicações práticas são emanadas da visão unificada dos
princípios mais gerais. A vida intelectual consiste em vencer as dificuldades e os
empecilhos com que nos defrontamos, que não devem ser vistos como meros acidentes
de percurso mas componentes essenciais. O primeiro bloco trata do Adestramento do
Imaginário, baseado no longo convívio com a literatura de ficção, o romance, a
poesia, o teatro e o cinema. Apenas através da imaginação podemos conhecer pessoas
diferentes de nós e que viveram em contextos diferentes. O segundo bloco é o
Adestramento Linguístico e terá de ser articulado com o anterior. Compreender e
saber utilizar a linguagem, juntamente com a imaginação, são condições necessárias
para retirar o fundo de experiência que se encontra por detrás da linguagem
filosófica. Quando entramos no terceiro bloco, o Adestramento da Auto-consciência,
procuramos dar um sentido ao nosso trabalho intelectual. O senso do ideal é um
elemento unificante que dá à nossa consciência um padrão que permite absorver cada
situação real da vida à sua luz. No quarto bloco entramos na tarefa de pesquisa
erudita, que segue de perto, em técnicas e métodos, a investigação histórica. No
quinto bloco entramos, finalmente, na técnica filosófica propriamente dita, que se
sustenta nos quatro blocos anteriores. Na técnica filosófica partimos da opinião dos
sábios, como dizia Aristóteles, e vamos também incluir o conhecimento por presença.
A razão hipotética é um tipo especial de imaginação, que foi formalizada e petrificada
para permitir a repetição exacta. A crítica literária é a primeira disciplina filosófica e
permite criar um consenso sobre as obras com real valor, enquadrando-as
culturalmente e historicamente. Respeitar todas as opiniões é desrespeitar a verdade.

O Adestramento do Imaginário
Só através da imaginação podemos compreender pessoas diferentes de nós, que terão
sempre um ponto de contacto connosco mesmo tendo vivido em épocas passadas ou
em contextos totalmente diferentes e mesmo que sejam personagens de ficção, como
Antígona, Ulisses ou Hamlet, já que não existe o totalmente heterogéneo. Na nossa
vida cotidiana só podemos compreender o próximo através da imaginação, e se não
fizermos o exercício de nos colocarmos na situação do outro, a base do amor ao
próximo, iremos julgá-lo baseados num qualquer estereótipo. O adestramento do
imaginário é feito pela longa convivência com a literatura de ficção, a poesia, o
romance, o teatro e o cinema. Tudo isto é por nós fruído como um sonho acordado
dirigido que permite nos identificarmos com aquelas personagens retratadas. Mais
tarde, com a incorporação de novos dramas, conflitos, tensões, situações, estaremos
habilitados a criar as nossas próprias personagens e situações, mesmo que estas fiquem
apenas no nosso imaginário e não sejamos capazes de as transpor para o papel.
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 21

Também a experiência é importante para a filosofia mas ela nos compromete e vai
pesar no nosso futuro. Não é possível experimentar “de tudo” apenas para aumentar o
nosso arsenal experiencial sem assumir as devidas responsabilidades.
Para conhecer alguém com inteligibilidade é necessário enquadrar a pessoa num
padrão geral e abstracto. Mas o ajustamento ao caso concreto que a pessoa configura
só pode ser feito através da imaginação. Esse ajustamento imaginário é facilitado se já
tivermos uma galeria suficiente de personagens e situações dramáticas que se possam
combinar para formar uma imagem da pessoa real. A boa ficção isola eventos
pertinentes e intensifica-os para ganhar nitidez. Mas na vida real existe uma
pluralidade de dramas desconexos. Como os problemas aparecem todos mesclados,
torna-se quase impossível às pessoas dar inteligibilidade ao seu sofrimento. O
sofrimento só pode ganhar sentido se integrado num projecto biográfico. É preciso
ganhar discernimento com o adestramento do imaginário para, retroactivamente,
articular as situações vividas com os nossos objectivos mais elevados. Neste
adestramento as obras de literatura têm que ser vistas como documentos da vida
humana, depoimentos e não textos que vamos logo analisar. Essa análise faz parte da
vida intelectual mas ficará para mais tarde. O adestramento do imaginário pode ainda
prosseguir com o estudo da psicologia, tendo em vista a compreensão dos seres
humanos reais e não como disciplina teorética.
Os livros de filosofia não devem ser lidos como teses das quais devemos concordar ou
discordar. A primeira tarefa a realizar é a reconstituição do drama cognitivo e humano
ali presente. Antes de vermos estes livros como verdadeiros ou falsos, a proclamar ou
a impugnar, temos de os perceber como expressões de uma busca humana. A fase
crítica não pode chegar antes de termos revivido experiências análogas às vividas
pelos autores que lemos. Nos livros de filosofia há o drama humano, que é o primeiro
a ser entendido, as respostas a outros filósofos, por exemplo, e existem os dramas
puramente cognitivos que advêm da luta contra a opacidade dos factos e dos
fenómenos. Não são estes dramas sangrentos como certos dramas que ocorrem nas
relações entre as pessoas, mas a longo prazo são determinantes para a humanidade.

Adestramento Linguístico
Juntamente e articulado com o adestramento do imaginário, terá de ser desenvolvido
um segundo bloco respeitante ao adestramento linguístico, mais concretamente, sobre
a compreensão e utilização da linguagem. A obra literária veicula a experiência
concreta, segundo Benedetto Croce, e terá de ser esse o nosso foco e não entrar logo na
linguagem abstracta da filosofia e das ciências. Às experiências intelectuais
correspondem experiências existenciais concretas que temos de refazer
imaginariamente para saber realmente do que se está a falar. Se recorrermos a um
dicionário filosófico teremos acesso apenas a definições de termos, atitudes ou
correntes esquematizados, que não correspondem à realidade dos dramas intelectuais
que foram vivenciados longamente. A mera evocação do conceito abstracto não
permite evocar esse drama, mas se nos atermos a isso faremos como a criança que usa
a imitação de palavras sem perceber o contexto. Precisamos de lastro imaginário e
linguístico para retirar a situação existencial efectiva da linguagem filosófica. Por isso
o adestramento da linguagem tem de vir junto ao adestramento do imaginário.
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 22

O Adestramento da Auto-consciência e o Senso do Ideal


A nossa tarefa intelectual tem que ter uma real importância para nós. Mas para
determinar isso a nossa vida tem que ter uma unidade, que só pode existir mediante a
adquirição de sentido. Ao desenvolver um senso do ideal, o que remete para o
Exercício do Necrológio, temos um padrão para a nossa auto-consciência que permite
que a nossa vida se torne numa sucessão de esforços que têm o objectivo de dar
sentido à miríade de coisas que nos chegam desconexas. Não podemos achar que a
nossa vida, daí em diante, passou a ser como um mito onde tudo decorre da
providência divina. As coisas continuarão a chegar-nos sem ligação entre elas e é o
nosso trajecto que será unificado na medida em que damos sentido às coisas e
reaproveitamos os obstáculos como instrumentos para desenvolver em nós certas
qualidades e habilidades necessárias para realizar a nossa vocação. Deixamos uma
posição onde encarávamos o mundo como estando contra nós ou sendo indiferente à
nossa existência, para outra posição em que nos vemos como uma tensão entre a
circunstância e a idealidade para a qual devemos tender. Ortega y Gasset
complementou a frase “Eu sou eu e a minha circunstância”, afirmando depois que “A
reabsorção da circunstância é o destino concreto do homem”. No mesmo sentido,
Goethe dizia que o talento se desenvolvia na solidão mas o carácter na agitação do
mundo. As dificuldades e os obstáculos devem ser encarados com o máximo de boa
vontade, seguindo o exemplo de Leon Bloy, pois assim iremos fortalecer o nosso
carácter e dar conteúdo humano ao nosso trabalho intelectual. Não nos podemos
preservar da nossa própria experiência ou a boa vida irá tornar-se num elemento
corruptor. A falta de densidade humana não pode ser compensada por uma grande
abrangência dos estudos.
Algumas ideias em voga são um empecilho para a unificação da auto-consciência,
como achar que o “eu” não existe ou que temos uma multiplicidade de “eus” que
aparecem consoante o papel social que estamos desempenhando. Raul Seixas dizia que
“Eu sou a metamorfose ambulante”, e isto descreve a realidade da condição humana,
em que uma personagem se forma através da sucessão contínua de transformações. O
“eu” real só pode ser descrito num drama, e não de forma estática num quadro ou
numa escultura. Mas se esse “eu” não existisse também não poderíamos contar a nossa
biografia. Mesmo sendo a nossa personalidade constituída por uma data de
fragmentos, ela também tem um elemento unificante, sem o qual não seria possível
fazer a transição entre os vários papéis. Alguém que tenta realizar algo está fazendo
um esforço para unir a sua consciência.
Este terceiro bloco será aqui denominado de adestramento da auto-consciência, que
remete para a compreensão de cada situação real vista à luz de um senso do ideal. As
principais dificuldades surgem dos nossos antagonismos internos. É preciso um
cuidado especial com a formação de uma auto-imagem, que acaba por ser o oposto do
auto-conhecimento. Formamos a nossa auto-imagem a partir de supostos defeitos e
qualidades nossos, que surgem de um discurso interior de defesa e acusação. Mas
trata-se de uma armadilha porque não revela efectivamente o que somos. A nossa
consciência não tem uma forma determinada e só existe na tensão entre um senso do
ideal perseguido e os recursos que nos são fornecidos. Nós somos apenas um operante
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 23

sem forma, um foco de luz que ilumina o que está obscuro à nossa volta e no nosso
interior. Apenas o observador omnisciente nos conhece verdadeiramente e tudo o que
podemos dizer sobre nós são auto-imagens provisórias e, na melhor das hipóteses,
apenas parcialmente verdadeiras. Desistir da auto-imagem e atermo-nos apenas a um
núcleo de auto-consciência pode nos desorientar por momentos e nos criar uma
sensação de falta de identidade, mas isso é provisório. Temos de chegar a uma fase
onde não seremos mais um retrato mas uma acção, seremos uma auto-criação
permanente que se substitui a uma auto-contemplação passiva e viciosa.
O Necrológio, antes de ser uma auto-imagem, é o antagónico dela. É um projecto para
o qual temos de achar os meios para o realizar, e à medida que o vamos concretizando
vai deixando de ser uma meta para passar a ser um dever. Queremos ter uma auto-
imagem porque desejamos expressar na perfeição o mundo dos nossos pensamentos.
Mas a extinção e o desaparecimento fazem parte da natureza das coisas temporais, o
que permite nos libertarmos de uns pensamentos para dar espaço a outros melhores.
Mas aquilo que desaparece da escala temporal não vai para o mundo do não-ser, não
pode tornar-se num nada, porque o nada nunca foi nada. Tudo o que alguma vez
existiu não se perde na escala da eternidade, onde tudo é eterno e Deus pode colocar
em nós o conhecimento perdido as vezes que quiser. É esta a memória espiritual a que
se refere Platão quando fala da anamnese. Só quando começamos a perceber a
permanência da eternidade por detrás da impermanência é que teremos um terreno
firme, como dizia S. Paulo apóstolo, n’Ele nos movemos, vivemos e somos.
A visão da individualidade fechada, do ego cartesiano, serve para paralisar a
inteligência. Quando acreditamos que tudo é um estado subjectivo nosso, incluindo
pensamentos e percepções elementares, passamos a dar substância a essa
subjectividade e negamos a existência de algo fora dela. O eu subjectivo na verdade
não existe, limita-se a ser uma sucessão de estados impermanentes, mas se o
considerarmos como um recipiente fechado, ele deixa de conseguir fazer a ponte entre
os nossos estados interiores e o mundo exterior, que é a outra sucessão de
impermanências. Penso, logo existo, tem implícita, como a primeira e fundadora
certeza das restantes, a existência do próprio ser cognoscente. Mas a própria
formulação da frase implica a utilização de uma linguagem que veio de fora, ou seja, a
afirmação da nossa existência não pode ser uma certeza fundadora mas já necessita da
certeza da existência do mundo exterior. Só que a frase é dita para sugerir o contrário.
O ser com verdadeira substância só existe na escala eterna, quando já adquiriu a sua
forma fechada, e na escala temporal tudo é precário e impermanente. Mas também não
pode existir uma impermanência absoluta, que reduziria as coisas a nada, pelo que as
coisas no mundo temporal estão num estado intermédio, são semi-naturezas, semi-
substâncias em permanente estado de fluxo que só adquirem a verdadeira
substancialidade vistas desde a eternidade. Ao invés de nos encerrarmos sobre o nosso
eu subjectivo, o nosso processo de auto-construção consiste em nos darmos e
prestarmos atenção a coisas incomparavelmente mais importantes que nós, e depois
podemos passar a personificar esses valores para outras pessoas, não por os termos em
nós mas por abrirmos a porta para eles. Muita gente não quer ver essas portas abertas e
irá odiar o nosso exemplo. Ninguém foi mais odiado que Cristo. Mas isso é uma
posição alienada que está contra a estrutura da realidade e não podemos temer as
reacções de pessoas como essas.
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A tarefa de pesquisa
Apenas quando chegamos ao quarto bloco, relativo às ferramentas de pesquisa erudita,
o ensino moderno vai dedicar alguma atenção, se bem que deficitária. Devemos nos
documentar sobre as questões que nos interessam. A investigação filosófica segue de
perto a investigação histórica, partilhando técnicas e métodos. Um livro sugerido
quanto a isto é The Modern Researcher, de Jacques Barzun, mas como devemos
adequar a investigação ao país e momento vivido, devemos também considerar os
livros de José Honório Rodrigues, Teoria da História do Brasil e Pesquisa Histórica
no Brasil. Depois de reunir o máximo de documentação possível há que interpretar
esse material e relacioná-lo, seguindo na linha do historiador da filosofia ou das ideias.
Para saber mais sobre como trabalhar estes assuntos devemos ler a apostila “Problemas
de métodos nas ciências sociais”.
O artigo “Quem é filósofo e quem não é”, publicado no Diário do Comércio
(disponibilizado em http://www.olavodecarvalho.org/semana/090507dc.html),
aconselha que, em primeiro lugar, se faça uma pergunta que nos desperte real
interesse. Segue-se depois uma tarefa bibliográfica e depois todo aquele material será
montado como se fosse uma teoria única, ou seja, a partir da história do problema é
composta a sua estrutura. Normalmente os livros fazem uma apresentação sistemática
que não revela a investigação histórica que esteve por detrás. Este processo está
ilustrado de forma magistral no livro de Joseph Marechal, Le Point de Départ de la
Métaphysique. Neste livro é colocado de início o problema da afirmação metafísica e
depois é visto como este problema foi evoluindo ao longo do tempo nos pontos que
interessavam ao autor. Na filosofia não é seguida a investigação histórica estritamente,
que avalia todos os problemas. Há uma criação de foco na escolha de pontos
considerados essenciais.

A técnica filosófica e o conhecimento por presença


Apenas no 5.º bloco vamos chegar à técnica filosófica propriamente dita. O 5.º bloco é
suportado pelos blocos anteriores, como se fosse o tampo da mesa suportado pelos 4
pés, que representam os outros blocos. Existe uma ponte com o bloco anterior, relativo
à tarefa documental, que é efectuado pelo livro de Joseph Marechal já referido, onde é
seguida a ordem da pesquisa. Um filósofo merecedor de atenção é aquele que coloca
problemas que são mortalmente sérios para si e envolve toda a sua experiência para
recriar o drama passado pelos outros filósofos que fizeram esforços no mesmo sentido.
A linguagem que ele utiliza terá de mostrar todo o seu arsenal memorativo e
imaginário, onde reside a substância da vida intelectual. Isto os distingue daqueles que
usam esquemas verbais e intelectuais com uma certa habilidade mas apenas na base da
imitação.
A técnica filosófica sintetiza uma série de esforços, que deve ser vista como um drama
a se desenrolar em nós e não como fenómeno histórico, desenvolvidos com vista a
lançar alguma luz sobre certos problemas. Todos os filósofos seguiram a sugestão de
Aristóteles de que se devia partir das opiniões dos sábios, que eram opiniões
qualificadas que já tinham resolvido os problemas elementares. Quando entrarmos na
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 25

técnica filosófica iremos usar dois livros, Manual de Metodologia Dialéctica, de Louis
Lavelle (a ser traduzido e disponibilizado no COF) e Logique de la Philosophie, de
Eric Weil.
Na técnica filosófica será incluído o conhecimento por presença, algo negligenciado
na história da filosofia mas cujas elaborações científicas das últimas décadas tornaram
possível desde que se começou a estudar a comunicação não verbal, a ressonância
mórfica descrita por Rupert Sheldrake, juntando ainda a obra de António Damásio, se
bem que sofrendo de alguma confusão de terminologia. A nossa orientação no mundo
depende de muito mais conhecimento que aquele que sabemos que sabemos. O
conhecimento por presença está sempre presente e preenche os espaços vazios. Ele
advém do aparato de percepção que nasceu connosco, trazendo a marca da perfeição
divina; todas as crianças sabem que vivem no mesmo mundo sem terem disso sido
informadas. Esse conhecimento permite que nos orientemos sem qualquer problema
no mundo da mutação e da permanência, e sabemos instintivamente o que há de
aparente e real tanto na mutação como na aparência. Mas quando tentamos transferir
este mundo da percepção para o mundo da razão, apenas uma pequena fracção do que
sabemos é comunicável. Os filósofos pré-socráticos tinham a mesma experiência do
mundo, mas Heraclito realçava o fluxo de mutações, enquanto Parménides achava que
existia um ser absoluto e imutável por detrás das mutações, e Zenão de Eleia, com os
seus famosos paradoxos, punha em dúvida a própria realidade do movimento e da
transformação. Eles sabiam que viviam no mesmo mundo e não em mundos diferentes,
viam o mesmo mundo mas expressavam-no de forma diferente porque a razão é muito
limitada em comparação com o mundo da percepção. O que nós conhecemos deles
resume-se apenas àquilo que eles conseguiram transmitir e não o que eles
efectivamente sabiam. O conhecimento por presença está por baixo do efectivamente
percebido, estando mesmo por baixo do inconsciente, que só pode ter origem na
memória ou em algum processo interno, que é a própria presença no real, pressuposto
de tudo. O esforço filosófico consiste em transferir uma pequena parcela da riqueza
infinita da percepção real para o mundo da razão, onde as coisas são humanamente
comunicáveis e podem ser discutidas.
A crítica moderna do conhecimento, iniciada por Hume, seguido por Kant, criou a
ideia de que tudo o que não era absorvido pelos sentidos era criação mental, existindo
assim o mundo natural e o da criação cultural. Como suposta prova disto temos as
diferentes imagens do mundo presentes em culturas diferentes. Estas imagens são
realmente diferentes mas isto não implica que a percepção do mundo também
acompanhe estas diferenças. Aquilo que as civilizações passadas nos deixaram não foi
a sua visão do mundo mas apenas o que conseguiram transmitir dessa visão em
símbolos que a condensaram. A própria aquisição do património cultural pode se
tornar tão pesada que vá encobrir o anterior conhecimento do mundo real, e depois
passamos a confundir as representações simbólicas com o próprio mundo. Levando
isso ainda mais adiante, podemos começar a acreditar que a nossa vivência imediata já
é ela mesma uma criação cultural quando ela é a base de construção das criações
culturais.
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A diferença entre a imaginação e a razão hipotética


A razão hipotética segue o esquema descrito por Aristóteles. Primeiro temos as
percepções, das quais guardamos na memória os esquemas dos factos e dos entes. A
partir desses esquemas é extraído o esquema idético, o esquema intelectual, que é o
esquema racional que se pode retirar dos factos e permite obter conceitos, que depois
se podem combinar na esfera racional. A imaginação precede sempre a razão, não têm
uma diferença de natureza. A razão é um tipo especial de imaginação; uma imaginação
formalizada e petrificada para permitir a repetição exacta. A simples imaginação lida
apenas com estados empíricos e nunca chegaria a um conhecimento geral e universal.
O processo de construção da razão já indicia claramente qual devia ser o processo de
leitura de obras filosóficas. Esta leitura deve seguir o procedimento inverso de
construção da razão e reverter para a criação de imagens que recriem experiências
análogas às tidas pelos filósofos. O trabalho fica muito incompleto se ficarmos apenas
nos conceitos e nos restringirmos aos seus significados estabilizados em dicionários.
Estaremos assim a esquecer que a razão construtiva é imaginação estabilizada e
padronizada, mas ainda imaginação. Por outro lado, quando a literatura se empobrece
e deixa de veicular a experiência real, deixa de ser possível transmutar em conceitos a
experiência, e esta torna-se opaca. Resta apenas o uso de símbolos convencionais, que
não transmitem nada dos dramas e problemas da vida real, e servem apenas para a
identificação de sentimentos grupais. O delírio auto-lisonjeiro é a única linguagem
pública existente, e quando alguém aponta este facto será visto como pertencendo a
um grupo contrário.

A crítica literária
A crítica literária é a primeira disciplina filosófica por ser a expressão intelectual mais
imediata da experiência literária. Sem a crítica literária seria difícil saber por onde
começar a estudar. Os críticos literários são leitores privilegiados, por vezes grandes
escritores, que conseguem exprimir algo da sua experiência de leitura e fazer a
inserção das obras num quadro cultural e histórico maior. Desta forma vão formando
um consenso sobre o que tem valor. Sainte-Beuve foi um grande crítico do século XIX
que enfatizava a experiência psicológica. Mathew Arnold tem um grande valor
educativo e pedagógico. Entre os críticos portugueses destacaram-se Adolfo Casais
Monteiro e Fidelino Figueiredo. Entre os brasileiros, Álvaro Lins, Augusto Maier e,
sobretudo, Otto Maria Carpeaux.

O relativismo opinativo
É comum a confusão, ou a hipocrisia assim disfarçada, entre o direito em cada um
opinar de sua livre vontade com a ideia de que todas as opiniões têm valor idêntico,
isto feito em nome da liberdade. Este medo em violar um dos preceitos do
politicamente correcto deprime a inteligência. Pensar é pensar que se está certo. Não
faz sentido ter uma opinião achando que outras são melhores ou de idêntico valor. Se
estivermos nesse ponto simplesmente estamos na indecisão. Respeitar a opinião
manifestamente errada é cuspir na verdade.
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Aula 09 – 06/06/2009

Sinopse: Nesta aula são estabelecidos alguns princípios da ética da vida intelectual.
O primeiro princípio da vida intelectual foi enunciado por Jean Guitton: “Cave onde
você está.” Isto contraria a principal motivação para entrar na vida intelectual nos
últimos séculos, que tem sido obter a suprema beatitude do entendimento
(Burckhardt), que teve o seu paroxismo no eu transcendental de Kant. Ao proibir as
especulações milenaristas, Cristo já estava a indicar a limitação do conhecimento
como sendo estrutural à vida humana. A vida humana decorre no seio do mistério,
mas o mistério pode dar-se a conhecer um pouco quando aceitamos totalmente a
nossa condição e fazemos a técnica da confissão de Agostinho. A diferença entre
saber e não saber só será realmente apreendida depois de muito se meditar sobre a
presença do mistério, do desconhecido e do incognoscível. A confiabilidade dos
conhecimentos é medida pelo grau de proximidade que os nossos conhecimentos têm
relativamente à certeza que temos sobre o nosso legado auto-biográfico. Quando a
vida intelectual não se norteia por estes princípios, o indivíduo vai deixar-se seduzir
por falsos enigmas lógicos, onde é colocada uma escolha entre possibilidades que
nunca se verificam na realidade, como altruísmo ou egoísmo, determinismo ou livre
arbítrio. A filosofia não pretende obter um conhecimento universalmente válido mas
obter um esclarecimento suficiente para a nossa orientação na realidade. O público
espera do intelectual um exemplo de seriedade e não alguém que apenas está ali para
agradar. Na vida humana, mas não na História, o futuro é um elemento dinâmico do
presente que dá retrospectivamente um sentido ao passado. O ser humano vive com o
trauma da emergência da razão porque nasce com o dom de criar estruturas racionais
universalmente explicativas mas estas só serão adequadas à experiência da realidade
após um longo processo de apropriação da razão, cujo afastamento provoca inúmeras
neuroses. Para compreender os processos históricos não podemos atribuir a eventos
explicáveis pela acção humana deliberada uma causa derivada de forças históricas
genéricas, e temos de saber que todos os agentes têm um horizonte limitado e algo
pode ter agido através deles.

As motivações para entrar na vida intelectual


A filosofia não deve ser abordada de forma cronológica ou pela importância histórica
mas por temas. Isso leva-nos directamente a um trabalho bibliográfico e de pesquisa,
facilitado hoje em dia pela Internet, onde sites como o www.questia.com poderão ser
de grande valia. Os temas da nossa escolha não devem ser seleccionados por
motivações académicas mas por interesse real, seguindo o conselho de Jean Guitton
“Cave onde você está”. O objectivo mais comum para entrar na vida intelectual passa
por atingir aquilo a que Jacob Burckhardt chamou de suprema beatitude do
entendimento (ou conhecimento), que é uma ascensão imaginativa onde se passa a ter
uma visão geral e organizada das coisas, da História, da natureza, da ciência, etc. Para
Burckhardt esta posição de contemplação, como um deus, pretende estar acima das
coisas sem as influenciar, o que pode provocar boas sensações pelo escapismo que
proporciona. Mas existe uma variação activa desta suprema beatitude do
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 28

entendimento, especialmente adaptada aos marxistas, que não se contenta com uma
contemplação passiva mas quer influenciar o fluxo das coisas; quer transformar o
mundo e moldá-lo à sua imagem e semelhança. A motivação básica para entrar na vida
intelectual nos últimos séculos tem sido alcançar um destes dois pontos, ou de
compreensão ou de transformação. Em comum tem um recuo cognitivo, que até certo
ponto é um artifício necessário para obter alguma objectividade. Kant vai levar este
recuo ao extremo do eu transcendental, que é um ponto de observação onde
compreendemos o mundo da experiência e ainda a nossa própria compreensão aí
envolvida. O eu transcendental é uma espécie de consciência da consciência por estar
colocado num plano onde lhe são reveladas as condições ocultas que permitem a
experiência, reveladas no próprio decorrer da experiência.
Se as exigências técnicas obrigam a que, de facto, seja feito um certo recuo, nunca nos
podemos iludir de que alguma vez seja possível estar numa posição acima da realidade
e a possamos observar como um deus. Assim perdemos a perspectiva espiritual de que
acima de nós existe sempre o observador omnisciente, não vendo isto em termos
religiosos. A busca humana de um ponto de vista privilegiado não é verdadeira, nunca
estaremos acima de nós mesmos. Santo Agostinho tinha uma atitude completamente
diferente. Ele pretendia compreender-se a si mesmo, não como ego transcendental ou
sujeito do conhecimento, mas como sujeito humano no mundo da acção, da incerteza,
do pecado, onde está envolvido um eu real, temporal e histórico e não há nenhum
intermediário entre ele e Deus. Esse intermediário é representado pelo eu
transcendental, que é um pseudo-deus que apareceu com Descartes como muleta para
obter a certeza absoluta, que ele acreditava ser a consciência da consciência. Há aqui a
ilusão de dar substância de realidade ao eu como puro conhecedor, quando se trata
apenas de um papel desempenhado, por momentos, pelo eu real. Nos últimos séculos
tem crescido a crença neste “eu” que tudo observa e, até, pode decidir, o que configura
um processo de auto-divinização que atingiu um paroxismo no século XX na escola
esotérica do Gurdjieff. Ele considerava o eu cotidiano ilusório e ensinava o
desenvolvimento de um eu observador que não participava nos acontecimentos, não
tomava partido, era totalmente neutro. Mais que uma doutrina era uma prática onde as
pessoas perdiam a identificação consigo mesmas na construção do eu neutro,
chegando a um estado totalmente amoral e cínico. Era um processo de estupidificação
que ao mesmo tempo dava às pessoas uma grande sensação de poder porque os
iniciados imaginavam estar infinitamente acima dos restantes seres humanos. Nada
pode ser mais irrealista do que ver o eu real como ilusório e o eu observador, que é
uma coisa declaradamente criada, como real. Se fizermos isto estamos a negar a
própria história, a fazer uma anti-confissão onde fugimos à responsabilidade dos
nossos actos. A fuga à realidade e a negação da condição histórica são marcas da
inspiração gnóstica, de alguém que não aguenta o mundo e então finge que está acima
dele.
O princípio número um da vida intelectual foi delineado por Jean Guitton: Cave onde
você está. Temos de compreender que a elevação acima do fluxo dos acontecimentos é
um exercício temporário e não corresponde à nossa condição existencial. Agostinho é
o nosso exemplo e ele sempre cavou no local onde se encontrava pois sabia que a
realidade da sua vida concreta, por mais humilhante que fosse, era algo precioso
porque aconteceu mesmo, não era mero pensamento. Este é um terreno firme que mais
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 29

tarde servirá de critério para avaliar todo o tipo de conhecimentos. Agostinho sabia
ainda que acima dele existia o observador omnisciente que não era ele mesmo. Sem
esta consciência podemos ter a tentação de reduzir tudo ao nosso teatro mental. Este
teatro é uma ferramenta importante na busca do conhecimento mas, se esquecermos
que é um artifício temporário, ficaremos como o sujeito na peça de Pirandello que
acreditava ser o rei Henrique IV e obrigava as pessoas à sua volta a serem a sua corte.
Esta parábola representa muito bem os tempos modernos e aquilo que são os
movimentos de massas, onde uma pessoa doente, maligna, incapaz de suportar a
miséria da sua realidade, tenta escapar para um mundo idealizado. Aí vai desempenhar
um novo papel com uma intensidade, uma verosimilhança e uma devoção tais que fará
outros acreditarem nele e entrarem também naquele teatro e fugirem à realidade das
suas vidas. Os movimentos marxistas falam do proletariado mas são compostos quase
que só de pessoas das classes média e alta. A instituição académica oferece também
um convite desse género para todos os estudantes, a promessa arrebatadora de realizar
a suprema beatitude do entendimento.

As especulações milenaristas e a limitação do conhecimento


O milenarismo é uma esperança de um reino futuro de paz, ordem e justiça que
decorrerá da vinda do Cristo. Também no Islão existe uma esperança milenarista sobre
um futuro governante que venha trazer ordem e justiça. O fenómeno é antigo na
humanidade se pensarmos na religião judaica, que em certa medida é um milenarismo
mas que não tenta se extrapolar para o mundo mas apenas para o povo judeu. Nos
primeiros séculos do cristianismo os elementos milenaristas voltaram a evidenciar-se,
até que Santo Agostinho colocou um término no assunto. Uma nova vaga milenarista
só aparecerá muito mais tarde quando a autoridade do papa decaiu, sobretudo com a
transferência do papado para Avignon. Roma ficou ingovernável, apareceram muitos
movimentos rebeldes e a pressão islâmica no exterior fez-se sentir. Neste estado de
miséria surgiram novamente as especulações milenaristas.
A Igreja sempre condenou o milenarismo com base no texto dos Actos dos Apóstolos,
quando Cristo diz que não é para nós conhecermos o prazo do fim. Está aqui já
implícita uma inevitável limitação do conhecimento. Cristo alerta para que,
efectivamente, não iremos conhecer o futuro a longo prazo, não se limita a fazer uma
proibição. Não nos é efectivamente possível saber quando será o fim dos tempos, nem
qual contexto que o encerra; não sabemos, assim, qual o sentido da História. Kant e os
praticantes da ciência moderna falam das limitações do conhecimento mas é um flatus
vocis. Para eles, esta limitação é uma deficiência da realidade e acreditam que a
humanidade está no caminho da perfeição do conhecimento. Mas a humanidade não
conhece nada, apenas os seres humanos. Estes não podem ter um conhecimento
infinito pois têm uma existência finita, e mesmo a vida eterna não promete o
conhecimento total. A limitação do conhecimento é inerente à limitação da vida
humana e não aceitar isso constitui uma fuga à estrutura da realidade.
Na actualidade surgiram alguns movimentos com um forte carácter milenarista, como
são os casos do movimento ecológico e do que preconiza a criação de um Estado
Mundial. Eles fazem previsões catastróficas para o futuro que apenas podem ser
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 30

evitadas pelas suas propostas de paz e ordem, onde se arrogam saber mais que todos.
O conceito de Estado Mundial não faz sentido porque um Estado é organizado não só
por motivos de organização interna mas também para efeitos de representação face a
outras comunidades. O que realmente está em causa é a criação de um papado supra-
religioso, uma pretensão já antiga que visava instrumentalizar a Igreja para que ela
deixasse de ser católica e criar uma religião sincrética. Mas o que é característico dos
movimentos ecuménicos é a ausência de espaço conferido a Deus, é apenas acção
humana e masturbação mental.

O mistério como elemento constitutivo da realidade


A limitação dos nossos conhecimentos não é algo a ser vencido mas a ser aceite. O
desconhecido e o mistério fazem parte da estrutura da nossa existência e parte
intrínseca do terreno onde temos de cavar. Mas se o mistério está presente de forma
permanente, por vezes ele revela-se um pouco e isso é precioso. Estes momentos de
abertura ficarão perdidos para nós se não aceitarmos a presença do mistério e
acharmos que há apenas um obstáculo a ser vencido. A abertura do mistério não tem
que ser vista no sentido religioso, pode ser apenas uma abertura que nos permita
compreender algo pertinente para nós, porque proporciona que nos instalemos melhor
na realidade e teremos uma antecipação do conhecimento pelos sentidos. É o
conhecimento por presença, não verbal, válido apenas para os momentos seguintes,
essencial para nos orientar na realidade e que se perde quando queremos ir para a
posição do eu transcendental. O importante não é vencer o desconhecimento, que é
um dos pilares da nossa existência, mas encontrar um modus vivendi com o mistério
que nos permita reagir de forma adequada e responsável às situações porque as nossas
acções e pensamentos foram elaborados com base num coeficiente de luminosidade
suficiente. A realidade vai abrir-se para nós quando nos entregarmos a uma
inteligência infinita mediante a técnica da confissão de Agostinho, onde aceitamos a
nossa condição humana na plenitude. Cristo disse também que cada um deve pegar na
sua cruz e segui-lo. A cruz simboliza, entre muitas coisas, o cruzamento das condições
de espaço, tempo e número que nos limitam e definem, ou seja, a nossa realidade
naquele momento, o local onde temos de cavar. Mas carregar a cruz é também arcar
com os próprios pecados, o que significa contar a nossa própria história. Mas como a
mente humana é dialéctica, precisa de um elemento de contraste e não pode se ater
apenas aos pecados, o que seria dar uma força aos demónios que eles não têm. Aqui já
está delineada a confissão como o relato de uma tensão entre os anjos e os demónios.
A sinceridade integral é exigida pela presença do observador omnisciente, e era aquilo
que dava força a Santo Agostinho e a São Paulo apóstolo, que falavam com a sua
própria voz um discurso que os instalava na realidade.
Normalmente Deus é visto como um objecto a ser analisado de forma teológica. Mas o
fundamental é ver Deus como presença real actuante. Uma pessoa apresenta-se a nós
porque no momento anterior estava noutro lugar, mas como Deus é omnipresente não
pode fazer isso, a sua presença na nossa vida é abrangente e total e não singular e
localizada. Para notar essa presença temos de aceitar os limites do nosso conhecimento
como um dado da realidade, perceber a nossa existência no meio do mistério mas
ainda assim continuamos perfeitamente seguros, porque os elementos do mistério
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 31

estão ali para nos esclarecer e ajudar. Só podemos notar esta presença se fizermos
como Agostinho e estivermos em total concordância com a nossa condição e não se
nos quisermos colocar na posição de juiz e tentar tomar o lugar de Deus. A confissão
permite-nos obter novas percepções da realidade e é o método correcto do auto-
conhecimento, mas o objectivo último terá de ser fazer a vontade de Deus e não o
auto-conhecimento pois nós não temos substantividade suficiente para dizer que somos
isto ou aquilo. Nós tomamos forma aos poucos ao deixarmos que Deus nos molde
gradualmente na medida em que lhe damos o que temos, por pior que isso seja.

A confiabilidade dos conhecimentos


Só meditando continuamente sobre a presença do mistério, do desconhecido e do
incognoscível será aberta a porta para o cognoscível, e aí perceberemos a diferença
entre saber e não saber. Saber que não se sabe é o que marca a diferença entre a
esperança cristã e a perspectiva gnóstica. Só é possível realizar a confissão se não
estivermos perdidos numa rede de pensamentos e argumentos e tivermos uma noção
clara do que é uma certeza imediata, uma percepção imediata. Vai ser esse senso de
certeza a base de todos os conhecimentos possíveis. A confiabilidade dos
conhecimentos é medida pela proximidade ou afastamento do nosso legado auto-
biográfico, na medida em que nos iremos interrogar se temos tanta certeza naquele
conhecimento como na nossa própria história, que não podemos nunca desprezar já
que é constituída por uma série de dados da realidade. Aquilo que não tiver o mesmo
grau de certeza que a nossa própria história terá um menor grau, não será uma certeza
imediata e evidente mas algo com alto grau de probabilidade, ou então algo verosímil
ou apenas possível. Esta graduação dos conhecimentos também é básica para a vida
intelectual. Este assunto foi tratado também na apostila “Inteligência e verdade”
(disponível no endereço http://www.olavodecarvalho.org/apostilas/intver.htm).
A certeza cartesiana do “penso, logo existo” não afere a credibilidade, apenas a
confissão do que já sabemos pode fazer isso, especialmente daquilo que só nós
sabemos porque não podemos apelar a uma autoridade exterior, estaremos sós com o
observador omnisciente, e o nosso relato sincero é retribuído com um pouco mais de
conhecimento. Também cavar onde estamos permite que o imenso reservatório do
conhecimento por presença suba à nossa consciência.

A sedução dos enigmas lógicos


Quando a aquisição de erudição descura a ética da vida intelectual, o processo torna-se
patológico para o indivíduo, que irá apenas interessar-se por enigmas lógicos criados
por ele ou por outros. Esses enigmas, quase sempre, são problemas sem saída, mas
uma vez colocados em circulação originam jogos mentais infindáveis e estéreis. O
verdadeiro espírito filosófico, ao invés de se perder em jogos abstractos, pretende criar
conceitos que possam descrever ou explicar a realidade da experiência. Existem
propostas filosóficas sedutoras que se afastam disto e prometem a resposta última para
questões metafísicas mediante um afastamento para uma altura teorética hipotética.
Sócrates, nos diálogos, traz sempre os seus interlocutores desde essa altura de volta à
realidade, para as centrar naquilo que elas efectivamente sabem, mostrando que, em
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 32

certos casos, elas sabem mais do que imaginam, como no caso do diálogo Ménon com
o escravo analfabeto.
Um exemplo de um enigma lógico é a questão do determinismo e do livre arbítrio.
Para evitar sermos iludidos pela questão temos de avaliar os conceitos envolvidos à luz
da realidade da experiência para saber ao que eles efectivamente se referem. A escolha
entre determinismo e livre arbítrio está a pressupô-los como absolutos, e assim só
poderiam ser aplicados em seres com dimensão infinita. Deus, sabendo tudo o que vai
acontecer e o que vai fazer poderia parecer pré-determinado, mas como não há quem o
possa coagir a isso, Ele simplesmente é determinado. E para ter sentido em falar da
liberdade de Deus era preciso supor a existência de uma entidade externa que O
pudesse coagir, o que não faz sentido. Então não faz sentido aplicar os conceitos de
livre arbítrio e determinismo a Deus. Também não faz sentido aplicar estes conceitos
como absolutos aos seres humanos. A liberdade absoluta de um único indivíduo
implicaria a pré-determinação de todos os outros seres em volta. E a total pré-
determinação implicaria que os nossos pensamentos também estariam pré-
determinados e não poderíamos sequer colocar esta questão. Na vida real não existe a
possibilidade de aplicar conceitos extremos como estes, e se estes conceitos não
servem para descrever a realidade devem ser abandonados numa verdadeira filosofia.
No diálogo Crátilo, de Platão, há um exemplo do uso da técnica filosófica para
resolver um cenário onde é colocada uma falsa alternativa e as coisas são esclarecidas
para trazer os intervenientes de volta à realidade. A discussão anda à volta das palavras
e de saber se os símbolos verbais são arbitrários ou naturais. Sócrates mostra que
ambas as alternativas são falsas e o importante é conhecer a natureza das coisas.
Vários enigmas lógicos são criados a partir da identificação dos seres existentes com
as suas definições. A definição omite todos os elementos acidentais e não reside em
lado algum, mas os seres reais estão sempre em algum lado e apenas existem dentro de
uma rede de acidentes, não podendo ser unicamente compostos de essências lógicas.
Outro problema absurdo é a oposição entre egoísmo e altruísmo, que vigora na
“psicologia prática” de Ayn Rand. Estes também não são conceitos filosóficos pois
referem-se a hipóteses extremas que nunca se verificam na realidade. Precisamos de
arranjar outros que possam descrever a realidade com sinceridade, que é o começo da
veracidade. Sinceridade é veracidade subjectiva.

A experiência real na génese das questões filosóficas


As perguntas que fazemos, tal como os conhecimentos positivos, têm de nascer da
experiência, onde se legitimam e provam a sua importância efectiva, e não podem ser
apenas um elegante jogo mental. Vai entrar aqui novamente a técnica da confissão.
Quase invariavelmente as pessoas não conseguem contar a história das suas ideias,
apenas conseguem argumentar em seu favor. Se não existe a noção do contexto onde
as questões e as ideias nasceram, como se desenvolveram, então nada daquilo tem real
importância para nós. Uma filosofia assim desenvolvida é uma filosofia sem
consciência, no sentido em que Maurice Pradine definia a consciência como a
memória do passado preparada para as tarefas do presente. As construções teoréticas
que se venham a construir enquadram-se numa estratégia de entendimento e não de
aprisionamento da realidade. Quando o objectivo passa a ser a obtenção de
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 33

conhecimento universalmente válido, a especulação dos conceitos abstractos será vista


como um teatro estéril. O objectivo deve ser a busca de um esclarecimento suficiente
para a nossa própria orientação na realidade e a abstracção que se venha a utilizar
servirá para ajustar o foco da inteligência ao foco da nossa existência, o oposto da
paralaxe cognitiva.

A armadilha educacional e a necessidade do exemplo da seriedade


Para quem já se apercebeu do estado da educação, surge o dilema sobre como se pode
proteger os filhos. É impossível impedir a contaminação da sujeira do mundo
contemporâneo e isso seria também uma fuga à experiência que nos tornaria indefesos.
O que podemos fazer é confessar permanentemente este estado de degradação e
permitir que Deus nos limpe. Trata-se da confissão interior e não da confissão ritual,
que é apenas a oficialização da primeira. Este exemplo, de paciência e não de revolta,
vai ser percebido pelos filhos, que entenderão que a miséria do meio está em nós
mesmos e temos de nos limpar continuamente, tal como acontece com o nosso ritual
de higiene diária.
A confissão tem também a vantagem de, aos poucos, nos permitir adquirir a voz
própria porque a sinceridade é o equivalente, no plano moral, à verdade. Adquirir esta
voz própria é essencial porque as pessoas que querem combater a mentalidade
revolucionária estarão a usar a linguagem do inimigo. A nossa linguagem ficará
corrompida até ao tutano se tememos as reacções adversas e imitamos o nosso
adversário para ele não pensar mal de nós. Podemos nos justificar de que queremos
apenas odiar o pecado e não o pecador, mas é impossível parar um crime sem deter o
criminoso. O objectivo da punição não é a restituição da perda ou a regeneração, é
apenas uma forma de lidar com uma situação que não se consegue lidar de outra
forma.
No intelectual, o exemplo de seriedade é também um dever para com o público, algo
que ele precisa e estava a contar, como notou Sertillanges. Se procuramos apenas
aprovação pública estamos a retirar ao público uma força com a qual ele contava. Não
há justificações a dar quando se falou na justa medida. A ética da vida intelectual deve
incidir apenas em aspectos como “cavar onde estamos”, a confissão e encontrar a
própria voz. Voegelin também falava numa linguagem que se comunica com a tensão
vital da existência humana, porque ele compreendia o que Sócrates já sabia, que não é
importante criar doutrinas com uma perfeição lógica que escondam toda a sujeira por
debaixo, mas permanecer fiel à verdade da existência com todas as suas tensões e
contradições.

Tempo de estudo diário


O estudo formal, onde se lê e tira notas com alguma finalidade ou se aprende uma
língua estrangeira, não deve ultrapassar as 2, 3 horas por dia ou há o risco de não se
conseguir assimilar. Este tempo pode ser estendido se existir uma transição entre
assuntos, mas nem todas as pessoas estão vocacionados para isto e há quem se sinta
melhor focando-se apenas num tema. Ver filmes ou peças de teatro, ler romances ou
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 34

ficção, são coisas que devem ser incluídas na rotina de estudo, mas não contam como
estudo formal, apesar de retirarmos delas, por vezes, coisas mais preciosas que as
obtidas do estudo formal.

A estrutura da vida biográfica


O Exercício do Necrológio obriga-nos a lidar com o futuro como sendo um
componente dinâmico da nossa vida actual, o que é fundamental para captar a
dimensão do tempo. Na vida humana a ideia do futuro ajuda a determinar o significado
do passado. O passado adquire retrospectivamente um sentido com base numa meta
ideal para onde nos dirigimos. Mas só é possível fazer esta articulação na vida humana
porque esta tem um tempo de vida espectável, ao contrário da História da humanidade
que tem o horizonte em aberto. Há vários exemplos de pessoas que criaram objectivos
de vida e moldaram a partir daí o seu percurso. Santo Agostinho tinha o objectivo de
estar dentro de Deus e, devido a isso, ele teve uma vida de transformações onde fez de
tudo para conseguir lidar com dificuldades e contradições. Napoleão, apesar de ter tido
uma vida curta e ter sido derrotado no fim, acabou por ter uma vida bem sucedida à luz
do seu objectivo de criar um império. Leon Bloy teve uma vida extremamente difícil,
foi rejeitado, odiado, chegou a ficar na miséria total, mas fez uma obra maravilhosa e a
sua vida acabou por ser bem sucedida porque o seu objectivo era chegar a uma
verdadeira sinceridade numa vida cristã e ele aceitou “pagar o preço” que isso
continha.

O trauma da emergência da razão


O ser humano tem a capacidade de criar estruturas racionais universalmente
explicativas, mas isso acaba por ser um fardo que carregamos porque essa capacidade
nasce connosco mas não temos os materiais para a sua construção e não sabemos como
utilizar essa capacidade. Temos as ideias e temos os factos, mas o que interessa é a
ideia embutida nos factos. Durante muito tempo as nossas construções racionais são
falsas porque não foi feita a articulação com a experiência da realidade. A apropriação
do dom da razão é morosa porque a experiência aparece caótica e não vem com as
estruturas racionais identificadas. São necessários muitos anos para aprender a lidar
com a razão, o que implica muito sofrimento mas, se o processo for vivido com
consciência de causa e dedicação, passa a ser uma tarefa. Desde criança que o ser
humano quer agir como se fosse omnisciente, mas as estruturas que ele possui são
falsas. Poucas pessoas se beneficiam do dom da razão e muitas delas desenvolvem
neuroses por não saberem arcar com essa capacidade. A própria elaboração intelectual
não pode surgir no início. Antes de sabermos dizer a realidade em termos filosóficos
temos de a saber expressar em termos poéticos e narrativos.

As motivações da acção humana


Conhecer as motivações da acção humana devia ser a grande ambição do historiador,
porque no limite há sempre um mistério que levou as pessoas a agir como agiram.
Disse Ortega y Gasset que nunca ninguém escreveu um livro explicando exactamente
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 35

a razão de alguém ter feito alguma coisa. Para compreender algo em História
precisamos de saber duas coisas. Em primeiro lugar, não é legítima a atribuição a
forças históricas genéricas (classes sociais, tendências económicas, etc.) aquilo que
pode ser explicado pela acção humana deliberada. Em segundo lugar, todos os agentes
têm um horizonte limitado e algo pode ter agido através deles, passando por cima de
suas consciências. Sobre a acção humana, podemos começar a construir uma
biblioteca sobre algumas fontes: Na introdução do livro Economia e sociedade Max
Weber discute as condições da acção humana; Human Action, de Ludwig von Mises
também trata do assunto na parte introdutória; Psicologia da motivação, de Paul Diel;
Julian Marias escreveu coisas muito boas sobre a estrutura da acção humana,
sobretudo no livro La estrutura social; Ortega y Gasset também discorreu sobre o
assunto; Viktor Frankl e Szondi são outras fontes que nos podem ajudar bastante.

Os limites da imaginação
Algo pode ser construído matematicamente mas não ser concebível, pois pode nem ser
real. As teorias podem estar completamente erradas e já nada terem de real. Temos de
lidar com a realidade concreta tal como se apresenta, com o seu conjunto de acidentes.
Na elaboração de uma teoria científica a primeira coisa a ser feita é eliminar esses
acidentes, ou seja, está a tratar-se de aspectos e não de realidades. O recorte desses
aspectos pode criar um isolamento tão grande que o que sobra é apenas uma
possibilidade abstracta, impossível de conceber.

O adestramento do imaginário através das artes plásticas


Existe uma grande proximidade do método utilizado no desenho natural, com todas as
medidas tomadas sobre várias perspectivas, ao método da investigação filosófica, que
pretende prender o assunto a uma malha de conceitos que o localize na realidade e não
o extraia dela. É necessário criar um conjunto de polaridades que se cruzem num certo
ponto e vão prendendo aquele objecto. Também é um bom exercício observar um
quadro e tentar perceber o que pretendia o autor realizar.
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 36

Aula 10 – 13/06/2009

Sinopse: A classe letrada é assim designada por estar habilitada a receber a


produção intelectual e artística e, pela avaliação que faz desse material, a criar um
senso comum superior. No Brasil não existe mais essa classe, nem existe um grupo de
verdadeiros intelectuais; apenas existe um grupo activista militante, ignorante, mas
que desempenha, para aqueles ainda mais ignorantes, o papel e a autoridade de uma
verdadeira classe letrada. Vladimir Safatle é aqui examinado como um dos
representantes dessa nova “classe letrada” superior, longe de ser dos mais incapazes.
As suas marcas características passam pela utilização de um jargão ideológico
copiado dos seus gurus, a incompreensão de fenómenos elementares, a “compreensão
invertida” como técnica de análise, levando a que faça a atribuição de culpas aos
seus adversários quando estas lhe pertencem. Comete, ainda, abusos metodológicos,
como atribuir a entidades abstractas a responsabilidades de eventos que têm agentes
grupais e individuais perfeitamente identificados e mostra desconhecer a relação
íntima entre inteligência e sinceridade. Estes exemplos são fornecidos para nos
prevenirmos do ambiente de contaminação e paralisação intelectual e termos
consciência da necessidade de procurar alternativas de outros lugares e de outros
tempos onde existia uma verdadeira cultura superior. No Exercício de Leitura Lenta
cada frase é transformada num objecto de meditação de forma a evocar a experiência
interior a que o autor se refere. O processo é exemplificado com um parágrafo do
livro de Louis Lavelle, A presença total, onde é referido que a experiência da presença
do ser está implícita em todas as outras, sendo o que lhes confere gravidade e
profundidade. Para a compreensão disto são sugeridos vários exercícios, que
pretendem invocar a “experiência do nada”, exercícios de percepção e construção
mental. O amor pela ciência não pode substituir o amor à realidade porque a ciência
é como um jogo, uma construção mental que não pode conter o universo. A realidade
é um complexo de latências, que sabemos estarem presentes mas não se manifestam
aos nossos cinco sentidos. Não é possível progredir nas camadas da personalidade
saltando por cima de algumas delas, porque cada camada é construída sobre a
anterior. A tradição cultural é o legado acumulado naquelas pessoas que fizeram a
descodificação do conhecimento, incorporando-o na sua pessoa, não se podendo
confundir com a acumulação de registos, também estes com a obrigação de serem
descodificados. A música pode ajudar a enriquecer o nosso imaginário ao desenvolver
o senso de continuidade e a evocação de experiências interiores sem a utilização de
imagens visuais.

A nova “classe letrada”


A classe letrada é constituída por um círculo de pessoas que, pela sua cultura e
informação, estão habilitadas a receber a produção dos intelectuais – o topo desta
classe – e pela selecção e classificação do material vão criar um senso comum superior
da sociedade. No Brasil não existe mais essa classe letrada a que nos possamos dirigir,
nem sequer existe o restrito grupo dos intelectuais. Existe apenas um grupo activista
militante que ocupou todos os espaços nas universidades e instituições de cultura
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 37

mediante a revolução cultural gramsciana. Apesar deste grupo militante não ser letrado
nem minimamente preparado, para quem é ainda mais ignorante, incluindo os
estudantes que chegam à universidade, ele desempenha a autoridade que seria de uma
verdadeira classe letrada e a sua produção é vista como sendo a expressão da cultura
superior. Mas essa cultura superior não existe mais e nem sequer existe algum
professor universitário na área das ciências humanas que seja alfabetizado, abundando
nos seus artigos erros gramaticais primários. Isto criou uma situação de paralisia
cultural que nunca se verificou em mais lado algum, porque noutros países, apesar de
também existir uma ocupação de espaços por esquerdistas, estes efectivamente
receberam alguma informação, podendo ser desonestos mas não incultos. Precisamos
de ter consciência deste ambiente para que ele não nos corrompa, deprima e
desencoraja. A construção da nossa personalidade intelectual e moral é mais
importante que os conhecimentos positivos que vamos obter. É muito importante
escolher um professor e segui-lo por muitos anos e não sair logo dando palpites depois
de aprender duas ou três coisas. Os alunos do COF têm a vantagem de ter um
compromisso formal assumido, que no fundo é um compromisso com nós mesmos e
nos obriga a atingir certos resultados intelectuais, existenciais e morais.

Radiografia intelectual de um professor da USP


Vladimir Safatle é um professor de filosofia na USP que, no artigo “A universidade
não é caso de polícia”, defendeu os alunos que provocaram distúrbios e destruição
nesta instituição. A sua produção académica está recheada de um vocabulário retirado
da Escola de Frankfurt, Jacques Lacan, Foucault e outros na mesma linha, a que se
juntam vários erros gramaticais elementares e uma inconsciência e incompreensão do
mundo digna de um adolescente. O uso do jargão dos seus gurus ideológicos faz o
sujeito achar que está a falar de algo sério. Apesar do mau gosto que revela a sua
escrita, Vladimir Safatle revela muito mais capacidade que a maioria dos seus colegas.
Nesta análise feita a Vladimir Safatle não serão discutidas as suas ideias, apenas será
demonstrado que ele não está qualificado para ensinar filosofia ou opinar sobre seja o
que for. Ele dá um duplo exemplo de inversão psicótica entre sujeito e objecto, tanto
na sua reacção aos eventos ocorridos na USP como na análise que fez de
transformações sociais mais profundas e duráveis. No artigo em que defendeu os
alunos que fizeram uma “manifestação pacífica”, segundo ele, dá logo mostras da sua
iliteracia ao classificar a intervenção policial como “brutalidade securitária”,
ignorando que assim se está a referir à indústria de seguros e não a questões de
segurança policial. Veremos que ele acerta quando classifica os causadores de
distúrbios de bons alunos porque estes, de facto, aprenderam aquilo que este professor
ensina. No seu site (http://www.geocities.com/vladimirsafatle) está reproduzido o
artigo, do campo da sociologia da publicidade, intitulado “Certas Metamorfoses da
Sedução: Destruição e Reconfiguração do Corpo na Publicidade Mundial dos Anos
90”. Ele leva páginas atrás de páginas, em estilo intragável e com frequentes erros
gramaticais, para apenas observar as mudanças ocorridas na imagem do corpo
humano, na publicidade ao longo da década de 90, onde se partiu de uma imagem
positiva e estável da pessoa para outra imagem fluida e ela mesma reflexo da
destruição. Para ele, o fenómeno é causado por um astuto mecanismo da lógica de
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 38

mercado, que originou novos processos de mercantilização da negatividade, com a


introdução de rupturas internas controladas, que vieram substituir as imagens
anteriores de beleza e integridade que supostamente teriam esgotado o seu potencial.
Ele chega a esta conclusão seguindo Lacan, quando este diz que a imagem do corpo
nada tem de próprio e é construída, numa alienação de si, pela introjeção de padrões
estereotipados vindos de fora. O “capitalismo tardio” teria apostado numa lógica de
ruptura interna na publicidade, pegando naquilo que era inicialmente uma crítica
cultural e, pela sua instrumentalização, transformou-a em “novos processos de
mercantilização”.
Existe uma inversão psicótica em Lacan quando este diz que a imagem do “eu” forma-
se pela introjeção de padrões exteriores e isso é uma alienação. A não ser que existisse
um eu metafísico, algo que todos os materialistas rejeitam, é impossível que a
formação da imagem pela introjeção de padrões exteriores configure uma alienação
pois nada haveria de prévio sobre o qual a alienação se reportaria. Mas se essa imagem
é uma alienação, então só resta mesmo destruí-la, fim a que se propõe Lacan e os seus
seguidores que preconizam ataques à sociedade, fonte de alienação do “verdadeiro eu”
que existe no bom selvagem, algo contraditório com a teoria da introjeção. Hegel já
tinha previsto que o único objectivo que pode subsistir aqui é o da própria destruição
(para mais explicações, ver artigo “Uma lição de Hegel”, disponível em
http://www.olavodecarvalho.org/semana/081114dc.html). Para quem carrega a
herança de Lacan e da Escola de Frankfurt, o “capitalismo tardio” é algo tão infernal
que a destruição torna-se num dever moral, e causa abominação ver essa querida
destruição se tornar também num bem de consumo. A ideia de uma imagem
introjectada a partir de fora é apelativa para as pessoas com um mundo interior pobre,
que não têm convivência consigo mesmas e então vivem da exterioridade.
O conceito de “capitalismo tardio” revela em si a inversão milenarista da percepção do
tempo (mais explicações no artigo “A História segundo Godot”, disponível em
http://www.olavodecarvalho.org/semana/030816globo.htm). Por outro lado, configura
um abuso metodológico atribuir a uma entidade abstracta, como o “capitalismo
tardio”, algo cujos agentes individuais e grupais estão claramente identificados, neste
caso a classe publicitária, sobre a qual devemos avaliar o conjunto de crenças e
disposições. Imediatamente se chega à conclusão que os publicitários não mudaram a
imagem do corpo segundo uma lógica mercantilista mas foram incutidos a isso nos
bancos escolares, numa lógica lacaniana de destruição do corpo. Ao contrário do que
defende o prof. Safatle, não foi o capitalismo que instrumentalizou a destruição, foi a
destruição que se impôs como padrão dominante da sociedade ao se apoderar dos
instrumentos de cultura de massas. Comprova isso a enorme biblioteca de “estudos
culturais” que visam destruir a cultura do capitalismo, ao passo que material
necessário para a estratégia subtil de dominação capitalista do mecanismo da
destruição a seu favor, uma tarefa hercúlea, é algo inexistente. Está aqui um caso
evidente de paralaxe cognitiva – deslocamento entre o eixo da construção teórica e o
eixo da experiência real – que produziu uma total inversão entre sujeito e objecto,
levando aqueles que produziram uma acção fazerem a sua atribuição à entidade
abstracta do “capitalismo tardio”.
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 39

Os professores da USP, de filosofia e ciências humanas, moldam a cabeça dos seus


alunos segundo o seu padrão de alienação. O que eles ensinam aos seus alunos não
passa de uma forma de ignorância activa. À medida em que eles dominam todas as
instituições de cultura, eles vão reduzindo tudo ao seu nível de inépcia, mas continuam
a desfrutar da autoridade de uma verdadeira classe letrada de topo. O que eles
defendem politicamente acaba por ser secundário, porque é apenas um sintoma do
divórcio entre pensamento e realidade; a sua principal actividade é a ocultação, não
deixam que nem eles nem mais ninguém saiba o que está acontecendo. Não temos
força para retirar estes sujeitos dos lugares que ocupam. Então só resta fugir desta
contaminação e apostar numa formação que seleccione o que há de melhor em outras
culturas e noutros tempos, onde e quando existia uma cultura superior de verdade. Não
é necessário fazer da filosofia uma prática ascética. Não há ascetismo em Sócrates,
apenas a dedicação a um dever assumido e isso é suficiente para a construção da
personalidade. As técnicas ascéticas podem funcionar, mas se falharem podem destruir
o indivíduo por completo.

A destruição da inteligência
A inteligência humana não é uma função especializada mas tem um carácter sistémico.
Ela é a parte superior da nossa personalidade, que condensa toda a nossa experiência e
unifica tudo. Se tentarmos isolar pedaços para lhes vedar a entrada da inteligência,
vamos sair lesados. Para manter a inteligência é preciso, em primeiro lugar, aprender a
sinceridade porque inteligência é a capacidade de perceber a verdade. A verdade não
pode aparecer nas altas ideias se ela está oculta na nossa existência. Quem não diz a
verdade para si mesmo destrói a sua inteligência, e é esse o grande erro dos farsantes
que usurparam o papel dos intelectuais.

Exercício de Leitura Lenta – Exposição


Este exercício vai levar muito tempo, talvez mais que a duração do curso, e pretende
nos marcar para o resto da vida. O acto de leitura deve ser incorporado não apenas na
nossa memória mas na nossa pessoa. Cada frase que vamos ler deve ser incorporada
em nós até se transformar num novo mecanismo de percepção. Para este exercício
vamos pegar num livro de filosofia, não importa qual apesar de alguns serem mais
aconselháveis. Como vamos conviver muito tempo com o livro é preferível escolher
um que nos faça bem, e para isso os livros de Louis Lavelle são aconselháveis.
É fundamental ler apenas algumas frases do livro por dia, uma parte que tenha alguma
unidade e nunca mais que um parágrafo. Cada frase será transformada num objecto de
meditação, ou seja, será confrontada de forma aprofundada de modo a reconhecer nela
a experiência interior a que o autor se refere. Neste processo teremos de usar
elementos de memória, imaginação, associação de ideias e todos os outros recursos
que temos. Apenas nos podemos dar por satisfeitos quando a frase, que inicialmente
chegou como ideia, tenha se transformado em percepção. É como refazer o percurso
de alguém que nunca tenha visto uma vaca e vai ler a definição no dicionário e depois
tenha procurado as vacas e as tenha observado até que “vaca” já não seja o enunciado
mas a experiência real com as vacas.
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 40

Quando a leitura ficar interessante é natural o impulso para continuar, mas devemos
nos refrear. Quando se passa para o segundo parágrafo, adicionado ao esforço anterior
de absorção imaginativa existencial, é necessário fazer a articulação com o primeiro
parágrafo. No final teremos a sequência exacta das ideias que já se terão transformado
em recordações e percepções, porque os conceitos abstractos que fomos encontrando
já foram transformados em exemplos concretos vivenciados e reais. Podemos ter a
tentação de ir escrevendo à medida que vamos fazendo a leitura, mas devemos, no
início, conter esse ímpeto. Primeiro temos de aprofundar a experiência e depois,
quando a colocarmos por escrito, já será algo mais definitivo e útil para outros.

Exercício de Leitura Lenta – Exemplo prático: A presença total


O exercício vai ser exemplificado a partir do livro La Présence Totale, de Louis
Lavelle. Este livro é apropriado ao exercício por ser um resumo (do livro La
Dialectique de l´Éternel Présent), e a brevidade opõe-se frequentemente à clareza
devido à compactação. O exemplo será dado a partir do primeiro parágrafo do livro,
após a introdução:

Há uma experiência inicial, que está implícita em todas as outras, e que dá


a cada uma delas a sua gravidade e a sua profundidade: é a experiência
da presença do ser. Reconhecer essa presença, é reconhecer, no mesmo
ato, a participação do eu no ser.

Existe uma experiência anterior a todas as outras, que dá às restantes a profundidade e


gravidade. Essa é a experiência da “presença do ser”, e o ser é tudo quanto existe. Para
meditar sobre isto são sugeridos alguns exercícios. Primeiro vamos tentar suprimir a
presença do ser, imaginar que não há nada, e temos de repetir isto vezes sem conta
para perceber que nunca tivemos a experiência do nada. Temos de fazer este tipo de
prática para que as frases que lemos sejam como algo que nos tivesse ocorrido a nós, e
não estamos logo a pensar se é certo ou errado. Iremos constatar que, por mais que
tentemos suprimir imaginariamente tudo, há sempre algo que sobra, nomeadamente a
nossa própria presença, a nossa respiração. Numa segunda etapa vamos mesmo tentar
imaginar que não existimos.
Depois de passar algum tempo nestes exercícios que tentam suprimir o ser, vamos
partir numa nova direcção e tentar perceber conscientemente a presença do ser, que é
algo tão óbvio que nunca pensamos nisso, apenas admitimos de passagem, mas
frequentemente o nosso raciocínio desmente a presença do ser e aí estamos a romper a
ligação entre pensamento e experiência, ou seja, estamos aprendendo a mentir. Os
exercícios seguintes são extraídos do livro Controle Cerebral e Emocional, de Narciso
Irala. Vamos deitar, fechar os olhos, relaxar, e ganhar consciência dos ruídos em torno,
próximos e distantes. Há uma infinidade de sons que não estavam na nossa
consciência, não eram importantes para a nossa acção imediata, mas estavam presentes
no fundo. Vamos perceber que existe o cenário próximo onde nos movemos, e depois
o ambiente prolonga-se por uma série de círculos concêntricos onde os ruídos se
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 41

tornam cada vez mais inaudíveis mas ainda estão lá. Este não é um exercício de
análise, é só para fazer uma colecção de ruídos trazendo para a frente o que se
encontrava no fundo.
O exercício descrito anteriormente é de percepção e vamos passar agora a outro de
construção mental. Novamente de olhos fechados imaginamos um fundo preto onde
traçamos, da esquerda para a direita, uma linha branca. Da ponta direita da linha
branca, traçamos outra linha branca para baixo, perpendicular à primeira e do mesmo
tamanho. Traçamos uma terceira perpendicular branca do mesmo tamanho para a
esquerda e, finalmente, uma quarta que fechará o quadrado. Sem esta capacidade
construtiva não poderíamos conceber, mas se passarmos por cima da consciência de
percepção vamos substituir a realidade pelo mundo das ideias, mas o mundo real é
incomparavelmente mais rico que o mundo do pensamento, mesmo para um
Aristóteles. Primeiro temos de aprender com o universo real, que é matéria de
percepção. No exercício de percepção nós sabemos que os ruídos saem sempre de
algum lugar, por isso não percebemos apenas os ruídos mas presenças, e elas são uma
nossa referência permanente que assinala onde estamos e o que fazemos, mesmo se
não lhes prestarmos atenção. Um ruído percebido como estando longe, longe não é
ruído, é uma referência espacial, por isso existe implícita a presença do espaço.
Estes exercícios pretendem puxar a presença de fundo para a frente e incorporá-la na
nossa pessoa. A nossa atenção vota-se habitualmente para o que nos interessa, e essa
escolha é uma actividade construtiva, que separa alguns aspectos, mas o universo é
constituído de uma infinidade de coisas. É a presença do universo, que trazemos para a
frente, que vai garantir que os nossos pensamentos não fujam muito à realidade. O
foco da nossa atenção, que incide no objecto recortado, não pode ser separado do
fundo permanente daquilo a que não prestamos atenção. O senso de presença do ser
dá-nos também o senso de continuidade, que não pode ser obtido pela memória ou na
mente, que são todas fragmentadas. O sentido da comunicação não-verbal torna-se
claro quando entendemos que a mensagem verbal é apenas um recorte dentro do
mundo da experiência real e a nossa presença física é o seu suporte. Para além do
mundo da experiência existe o mundo que não é objecto de experiência mas está ali
presente. Se pensarmos nas pessoas a quem nos dirigimos como sendo meras formas
ocas sem interior, isso parece macabro porque o nosso senso de presença faz que, sem
pensarmos, contemos que elas tenham órgãos internos em funcionamento.
Devemos ver os livros de filosofia como pautas de música, que só podem ser
compreendidas quando executadas, mesmo que interiormente. A leitura tem que ser
lenta de início, e pode ser útil um livro não traduzido que nos refreia a vontade de
avançar. Depois o ritmo de leitura poderá aumentar sem prejuízo porque já fizemos
muitas evocações, que se acumularam como experiências interiores e ficaram no fundo
da memória e já as poderemos evocar novamente com maior rapidez e facilidade. Ao
fim de muitos anos a nossa experiência de leitura aprimorou-se ao ponto de cada frase
descortinar para nós um mundo inteiro, como se os livros fossem comidos e não lidos.
Todos os grandes leitores do passado leram desta forma; foi assim que os grandes
romancistas entenderam outros grandes romancistas e tudo o que eles escreviam já
tinha implícitos os universos dos escritores passados que haviam sido incorporados.
Isso exaspera alguns autores que querem se libertar do legado passado, às vezes do
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 42

próprio legado, mas não é possível fazer isso porque o que foi absorvido transformou-
se num instrumento de percepção e é fonte para novas associações de ideias e
analogias. Mas não podemos esquecer que aquilo que um escritor ou um filósofo
conseguiram transmitir foi apenas uma pequena parte do seu imaginário.
O Exercício de Leitura Lenta, por um lado, é um exercício de percepção e memória,
mas também é um exercício de construção, já que é necessário reconstruir os nexos
entre as experiências interiores à medida em que se avança nos parágrafos. Quando a
nossa capacidade de leitura for aumentando é natural ficarmos intolerantes ao
palavreado vazio que muitos exibem ao falar de filosofia, pois perceberemos que eles
não perderam um minuto tentando evocar as experiências que estão por detrás das
palavras. Um intelectual sério, por cada palavra que diz tem muitas mais que não
podem ser enunciadas devido à riqueza do seu património, em larga medida
inexprimível.

O amor à realidade
O Imbecil Colectivo é resultado da disseminação das técnicas, criadas por pessoas
como Jacques Lacan, que habilitam os sujeitos a entender tudo de forma invertida.
Apesar de serem técnicas de “emburrecimento”, estas só podem ser apreendidas por
pessoas com alguma cultura e inteligência. Os elementos da mentalidade
revolucionária tiveram origem em fontes não revolucionárias, e foram incorporando-se
nos hábitos culturais de tal forma que é quase impossível lhes escapar se não existir
um verdadeiro amor à realidade, demonstrado por Lavelle, Husserl ou Voegelin. Isto
não pode ser substituído pelo propalado amor à ciência, pois esta não passa de uma
construção humana, um jogo; mas o universo não é um jogo, é algo que não sabemos
exactamente o que é mas para o qual devemos ter uma abertura. Somente a abertura
para a presença total do ser garante o valor das nossas ideias, ou estas não passarão de
mera construção mental. Uma classe verdadeiramente letrada percebe instintivamente
a valia do material intelectual, por exemplo, a densidade de um poema. Um grande
poeta, como Bruno Tolentino, era ele mesmo um grande leitor de poesia, com milhares
de referências incorporadas, e isso colocava-o na linhagem dos poetas.

A realidade como um complexo de latências


A realidade não é um complexo de possibilidades mas de latências, entendidas como
algo que sabemos estar presente mas que não se apresenta manifesto aos nossos cinco
sentidos. Sabemos que algo está vivo não por conclusão lógica, o que obrigaria a
pensar em incontáveis detalhes, mas pela percepção de latência, ou seja, não
percebemos uma presença física estática mas sim com o seu potencial e o conjunto de
impossibilidades. Se encontrarmos um cachorro, sabemos que ele pode nos morder ou
abanar o rabo, mas sabemos que não sairá voando. Latência não é possibilidade, é um
poder que já está pronto a se manifestar. A percepção de latência está por detrás da
percepção da presença. As possibilidades só se abrem a partir daqui, mas elas não são
objecto de percepção e só são percebidas por construção mental. Já as latências são
percebidas como coisas imediatas e são indispensáveis até para saber onde estamos,
algo que o mundo do pensamento, por si só, não nos consegue esclarecer. A
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 43

comunicação entre pessoas torna-se impossível se não conseguirmos perceber a


reacção latente, de compreensão ou incompreensão, no outro.

A progressão nas 12 camadas da personalidade


As 12 camadas da personalidade reflectem uma sequência objectiva. Uma camada só
pode ser construída sobre a anterior, não sendo possível, por exemplo, chegar à última
camada, referente ao destino espiritual, sem ter desenvolvido uma personalidade
intelectual, que pertence à camada 9. Contudo, essas camadas não têm que ser
identificáveis a partir do exterior. No caso de Joana D’Arc, a sua personalidade
intelectual só foi revelada no confronto com os juízes, onde ela era a única a entender
a situação real e não se deixou enganar pelos jogos dialécticos com que a tentaram
ludibriar. A personalidade intelectual não é o exercício de certas actividades
académicas, literárias ou científicas; é o conjunto de ideias e crenças sobre o mundo e
que caracterizam a nossa singularidade; é assumir a responsabilidade pelas próprias
ideias porque há a confiança de saber o que realmente se sabe. A função social que um
sujeito ocupa não garante uma respectiva camada da personalidade, e mesmo um
cardeal da Igreja pode não passar da 4.ª ou 5.ª camada.

Tradição cultural
A tradição cultural é aquilo que os sábios conseguem repassar uns aos outros. Apenas
uma parte do que eles sabem é transmitida; temos as peças de Shakespeare mas não o
conteúdo da sua imaginação, que é possível de recompor, em parte, pela imaginação
utilizando também outros meios adquiridos anteriormente. A humanidade tem
acumulado registos, mas é errado confundir isso com um acumular de conhecimento.
O universo em si já é um depósito de conhecimentos, o que falta fazer é a sua
descodificação. A descodificação que é necessária fazer de alguns registos acumulados
é mais complexa que a descodificação directa da natureza. Em cada geração há apenas
um pequeno número de pessoas que fizeram esta descodificação e que incorporaram
em si o conhecimento. Sem estas pessoas o conhecimento perde-se, por maior que seja
o aumento de registos porque estes, por si sós, não são ainda património das pessoas
reais. Quando a tradição cultural começa a desvanecer-se, os bons escritores que, na
sua geração, eram amplamente lidos, compreendidos e comentados, na geração
seguinte serão esquecidos e, a partir da terceira geração, serão ininteligíveis a não ser
para eruditos de carreira. Para entender aquilo é necessário recuperar o imaginário do
público para quem o autor se dirigia.

A contribuição da experiência musical para o enriquecimento do imaginário


A experiência musical pode contribuir bastante para o enriquecimento do imaginário
porque ajuda a desenvolver o senso de continuidade e a evocação liberta de imagens
visuais. A música também é um sonho acordado dirigido mas sem imagens. É
importante não só ouvir boa música, mas repetir a audição até ter memorizado a
sequência, pois só assim conseguiremos assimilar a continuidade das experiências
interiores sugeridas.

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