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COF Resumos Aulas 6 A 10
COF Resumos Aulas 6 A 10
Resumos de Aulas
Vol. II
Índice Pag.
Aula 06 – 02/05/2009 (Especial Eric Voegelin) 2
Aula 07 – 16/05/2009 12
Aula 08 – 23/05/2009 20
Aula 09 – 06/06/2009 27
Aula 10 – 13/06/2009 36
Notas:
1) Este material é para uso exclusivo dos alunos do Curso Online de Filosofia. Estes
devem sempre recorrer às gravações e transcrições das aulas, como fontes primárias,
para limitar a propagação dos erros involuntários aqui contidos e colmatar as lacunas.
2) Os resumos foram escritos em português de Portugal.
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 2
que ainda falta ao cristianismo. Por último, falta ainda desenvolver uma ciência, não
nos moldes da ciência moderna, que possa estudar os milagres, pois estes são a
intervenção de Deus na História e a força de expansão do cristianismo.
das culturas tribais por estas não terem fornecido documentos auto-expressivos como
era requerido pelo método por ele utilizado. Estas civilizações orientais desenvolveram
aquilo a que Voegelin chamava de sociedades cosmológicas. Os teóricos destas
civilizações não defendiam apenas uma aproximação do modelo da sociedade à ordem
cósmica, eram bem mais radicais e acreditavam que a sua sociedade já fazia parte
dessa ordem e era um elemento que servia para preservá-la. Rituais não cumpridos
pelo imperador da China poderiam causar não só desordem social mas cataclismos
naturais, acreditava-se. Isto introduziu uma visão unitária e fechada do mundo, que
condenava à inexistência quem não estivesse integrado na sociedade. A existência de
outras ordens era motivo de crise. As outras ordens eram consideradas ilegítimas e
representavam o caos.
No livro The New Science of Politics (The Collected Works of Eric Voegelin, 5.º
volume) surge a ideia de que a ordem vigente representa o povo. Não se trata de uma
representação política mas existencial, em que a ordem fornece à sociedade,
retroactivamente, o critério para distinguir o certo do errado, o verdadeiro do falso.
Numa civilização cosmológica, onde a verdade como um todo é a ordem social,
indistinta da ordem cósmica, nada fora dessa ordem pode ser considerado legítimo ou
verdadeiro e a própria existência de outras ordens era um escândalo e uma ameaça.
Esta tensão era eliminada quando os impérios, como nos casos do Egipto e de Roma,
invadiam terrenos vizinhos e absorviam elementos dessas culturas, fazendo rearranjos
simbólicos entre as ordens parciais, o que permitia manter a ordem global.
Final. A própria Igreja tinha a sua História terrestre, caótica, e a sua História espiritual,
que só poderia realizar-se na eternidade, já fora da dimensão temporal. Apesar da
explicação de Agostinho, muitos continuaram a ver a História como a biografia de um
indivíduo.
uniformidade posta como hipótese, o que implica que ela só possa estudar aspectos e
não fenómenos concretos. Mas no fenómeno miraculoso confluem factores
heterogéneos inseparáveis. O milagre é eminentemente concreto, não pode ser
enquadrado dentro de nenhuma das classificações admitidas pela ciência.
Inevitavelmente, o método determina o alcance do que se pode estudar, algo que
Voegelin criticava mas acabou por cair na mesma limitação. Ele não chegou a colocar
em cima da mesa o problema da existência objectiva de Deus, também por influência
de William James, quando este dizia que o sujeito e o objecto não existiam
separadamente e se auto-constituem e distinguem no próprio processo da relação.
Então considera-se que Deus é apenas é um objecto alcançado no salto no ser, por
meios neumáticos ou noéticos e apenas se terá em conta aquilo que os homens
apreenderam sobre Deus. Voegelin definiu a quaternidade da ordem do real como
Deus, o homem, o mundo e a sociedade. O Mundo, a sociedade e o homem são, na
perspectiva da revelação cristã, apenas a criação, finitos e irrisórios face a Deus. Esta
quaternidade só existe na escala da História humana, sendo um cenário que exclui uma
multidão de fenómenos que nós sabemos ser reais, a começar pelos milagres. Voegelin
chegou à limitação natural do método, mas quando percebeu isso estava velho demais
para continuar, mas não fez como Kant, que caiu na idolatria do método e definia o
objecto de acordo com o método.
A expansão islâmica não se baseia na intervenção divina, como no cristianismo, mas
na acção política e social, usando os meios mais banais, frequentemente desonestos, e
com grande investimento de dinheiro, tudo baseado numa grande auto-consciência
colectiva numa forma de existência histórica diante de Deus. Já a civilização cristã não
poderá ignorar a acção divina ou irá cai na fé metastática, que é uma expectativa, meio
messiânica, meio gnóstica, de poder transformar totalmente a sociedade mediante um
acto de fé. Esta expectativa é característica das ideologias de massas e vai contra a
estrutura da realidade, que pode apenas ser transfigurada por Deus e não pela fé. Deus
pode nos salvar mesmo se não tivermos fé, como aconteceu com S. Paulo, mas é uma
heresia pensar que Deus pode agir em nosso lugar e não connosco.
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 12
Aula 07 – 16/05/2009
está efectivado. Mas existe toda uma série de regras de conduta que nem escritas estão
mas usamo-las para orientação, contamos com elas, criamos expectativas e fazemos
avaliações tendo-as por base.
O ser humano vive, então, num sistema de virtualidades e não num universo físico,
que é apenas uma componente minoritária. A existência humana, composta de
alegrias, tristezas e expectativas não está presente fisicamente, é virtual, e os indícios
físicos podem significar coisas distintas para diferentes pessoas. O que realmente nos
orienta é uma rede virtual de sinais do passado e expectativas do futuro e estas coisas,
mais a nossa história e a pressão do meio, oprimem-nos muito mais que os obstáculos
físicos. Por isso, uma visão do mundo centrada no mundo físico é falsa. O real é uma
rede imensa de possibilidades anunciadas por sinais ou símbolos a que chamamos de
virtual.
Devemos ler os diários de Herberto Sales onde ele foi apontando as coisas que
aprendia sobre a arte de escrever.
Uma lista de autores fundamentais, em língua portuguesa, inclui, entre os poetas
portugueses, Camões, Bocage, Antero de Quental, Fernando Pessoa e Mário de Sá
Carneiro. Na literatura histórica são imprescindíveis Alexandre Herculano e Oliveira
Martins. Na ficção temos Eça de Queirós, Camilo Castelo Branco, Aquilino Ribeiro,
Ferreira de Castro, Vergílio Ferreira e Lobo Antunes. Poetas brasileiros: Gonçalves
Dias, Cruz de Sousa, Manuel Bandeira, Carlos Drumond de Andrade, Jorge de Lima,
Murilo Mendes e Bruno Tolentino. Ficção brasileira: Machado de Assis, Roberto
Pompeia (livro Ateneu), José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Marques Rebelo, José
Geraldo Vieira e Herberto Sales. Devemos procurar ler o máximo de cada um. Lima
Barreto serve para entender o Brasil mas não para aprender a escrever. Guimarães
Rosa é para esquecer, artificioso, bobo, apesar do talento, criou vício de linguagem a
muita gente.
Devemos ainda ter conhecimentos de outras línguas. O inglês é fundamental porque os
americanos traduziram tudo. O francês, o espanhol e o italiano também nos ajudarão a
melhorar o português numa segunda fase. O latim tem uma importância própria para a
filosofia, e permite-nos também ler os discursos de Cícero, que são imperdíveis.
inerente à retórica, o poder de nos justificarmos com base nos valores que acreditamos
que os outros possuem. Antes de chegarmos à filosofia temos de conseguir fazer
alguma mediação dentro da sociedade, o que implica entrar nas escolhas pessoais, no
poder, na propaganda, na influência, na política. Por isso a filosofia não é uma
actividade para crianças mas apenas para quem já pode agir como cidadão.
O conhecimento do possível
Só através da imaginação podemos conhecer o possível. Essa representação não tem
que ser exacta e pode ser condensada em símbolos que formam uma história
aparentemente impossível mas que expressa possibilidades reais. Na literatura vai
ainda ocorrer uma compactação de experiências que normalmente se encontram
separadas. A imaginação trata ainda da experiência concreta, quer ela recorra à
memória ou seja elaborada em conjunção com a auto-consciência e, como num sonho,
poderá expressar compactamente coisas que estão muito afastadas entre si mas cuja
junção faz sentido. A capacidade expressiva não será assim perdida quando se trata de
um filme dramático, que se sente como sendo real pela suspensão da descrença, ou
num filme como O senhor dos anéis, que se assiste como um sonho.
Mas muita ficção moderna é elaborada em cima de hipóteses realmente impossíveis,
como o exterminador que vem do futuro, as pessoas que trocam de corpo ou a quase
omnipotência do super-homem. A imaginação vai ficar paralisada com hipóteses
idiotas. Há aqui um problema de coerência imaginativa. As hipóteses impossíveis não
entram no enredo como elementos oníricos mas como premissas logicamente
inventadas. A razão construtiva consegue criar hipóteses que vão muito além do que
aquilo que a imaginação pode conceber. A imaginação vai apenas colorir com imagens
hipóteses racionais que já se afastaram da realidade. Já não se trata do conhecimento
do possível mas de uma simples transição entre hipóteses idiotas que nos emburrece.
Devemos desconfiar dos produtos imaginativos que estão logicamente muito
estruturados. Na imaginação e na linguagem onírica e dos mitos existe uma contínua
transformação dos símbolos. Mas numa ficção como o super-homem há uma regra
imutável, não é um produto do imaginário humano mas um jogo disfarçado com
imagens.
O ser humano ficará em isolamento total se ficar apegado ao mundo sensorial directo,
ao telúrico, pois isso o colocará numa impotência completa face à natureza. A força
humana reúne-se no mundo virtual, a começar pela linguagem. O livro Cangaceiros,
de José Lins do Rego, mostra o nascimento da civilização através da linguagem.
Aqueles dados do mundo físico recebidos pelos sentidos não têm qualquer unidade,
que só é obtida no mundo virtual mediante a transferência efectuada pela linguagem. É
preciso fazer um certo sacrifício do mundo sensorial, do carnaval, do sensualismo
imediato. Não significa eliminar estas coisas mas enquadrá-las num cenário mais
alargado onde vão adquirir a justa proporção. Se passarmos de um sensualismo
imediato para um sensualismo virtual estamos subindo na camada de personalidade,
abrindo-nos para critérios superiores de integração da personalidade que nos colocam
na rota de objectivos mais elevados e abrangentes. O culto modernista prestado a um
realismo imediato, dos instintos, é para alguém que permaneceu na segunda camada.
Nenhum instinto manifesta-se em contínuo, e uma vida neles baseada revela uma
ausência de personalidade.
A realidade do ser humano é um trajecto em direcção ao ideal, mas as pessoas são
pressionadas a ignorar que as suas vidas decorrem num mundo virtual. A linguagem
fica orientada apenas para a experiência física e as pessoas ficam com uma forma
diminuída de existência onde acham natural fracassar. A atitude face ao trabalho
desliga o mundo das necessidades do mundo dos sonhos. A necessidade de trabalhar é
vista como a imposição de um mundo mau; o dever e a vocação são opostos
inconciliáveis e a justiça é ser alimentado por outros. Esta é uma temática presente no
livro O feijão e o sonho, de Orígenes Lessa. Há aqui uma moralidade invertida, que se
recusa a ver o trabalho como um dever moral e que, feito com amor, nos dará energia
para a vida intelectual. Há que modificar a relação entre o ideal e o real. Quem tem
uma carreira baseada na fraude e na exploração do próximo não tem direito a ter um
ideal. Conquista-se esse direito cumprindo as nossas obrigações, em primeiro lugar
vendo-as como um dever de bondade para com os outros. A cruz é também um
símbolo para a estrutura da realidade. A noção de um plano de vida está condicionada
à existência de uma cruz a carregar; esse plano não é necessário no paraíso. Mas para
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 17
conceber esse plano temos de ter uma correcta visão moral, que não se compadece
com o desprezo pelo trabalho e pela realidade.
lacunas devem ser preenchidas com uma nova pesquisa bibliográfica até termos obtido
um desenvolvimento histórico contínuo o suficiente. Antes de montarmos a discussão
numa ordem lógica temos de classificar as opiniões segundo os pontos de
concordância e discordância, sem nos iludirmos com discordâncias de pormenor que
podem ocultar um profundo acordo relativo às categorias essenciais em discussão.
Quando a discussão é montada logicamente, ela irá aparecer como uma única hipótese,
que poderá conter ainda muitas contradições internas e perguntas por responder. Só
daqui em diante podemos dar a nossa própria contribuição para o esclarecimento do
problema, se tal for possível.
O milenarismo
Jesus Cristo proibiu formalmente a especulação sobre as datas dos planos de Deus para
o futuro (Actos dos Apóstolos, Cap. I, versículo 7). A expectativa milenarista, de mil
anos de paz com a vinda de Cristo, é uma especulação à volta destas coisas. Santo
Agostinho iniciou uma filosofia cristã da História que pretendia encerrar esta questão.
Para ele havia apenas duas formas de entender as profecias do Apocalipse e o símbolo
mil. Podia relacionar-se com o destino espiritual da história da Igreja e o seu governo
no mundo. Esse milénio já haveria começado, e desde o século IV de Agostinho até
1400 a Igreja espalhou por toda a parte o senso da imortalidade da alma, o senso da
sacralidade da pessoa humana, a caridade, inventou os hospitais, os orfanatos, as
escolas, aboliu a escravidão; pelo que esta interpretação será válida. Uma segunda
interpretação, que não é incompatível com a primeira, via o milénio, o símbolo mil,
como totalidade, nem seria um número mas a designação de algo fechado.
A salvação das almas é a tarefa da Igreja e para isso de nada servem expectativas
milenaristas, nunca existiu uma sentença papal baseada no milenarismo. Especular
sobre o fim da História implica simular uma posição existencial situada na eternidade,
que permite ver a História e Deus como objectos na nossa mente, quando eles só
podem ser concebidos como participação. Deus só pode ser concebido como força
agente em nós. Mesmo uma pessoa só pode ser conhecida como uma virtualidade, com
as suas potencialidades, tensões, e não como objecto. Só podemos conhecer uma coisa
de acordo com o seu modo real de existência, e isto nada tem a ver com cepticismo. A
ignorância do fim dos tempos é parte da nossa constituição, e o cristianismo realçou
muitas vezes esta incerteza constitutiva. Mas depois de Agostinho a Igreja abandonou
a filosofia da História, talvez por ele ter uma visão muito realista que não via sentido
na História fora do cristianismo. Mas a Igreja também abandonou os estudos sobre a
filosofia da natureza e as suas forças ocultas, sobre alquimia e astrologia, e estas coisas
passaram a ser monopólio das sociedades secretas com todo o tipo de disparates
associados.
As especulações milenaristas continuaram e trouxeram um elemento essencial da
mentalidade revolucionária, que foi a inversão do tempo. O milenarismo entrou
violentamente na mentalidade ocidental e todos nós temos algo desta concepção. Ela
tem o erro fundamental de conceber a História da humanidade como se fosse a de um
indivíduo. Mas, ao contrário da vida do indivíduo, a História não tem um fim
expectável nem uma unidade, é composta de narrativas de sociedades sem contacto
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 19
entre si. Apenas existe unidade histórica perante a eternidade ou na cabeça dos
historiadores. À medida que os vários historiadores vão tentando captar alguma ordem
na História, a sucessão desses esforços é a única ordem da História, e por isso Eric
Voegelin dirá que a ordem da História é a história da ordem. Fora disto existe a ordem
divina, que pode ser conhecida miticamente através da visão dada pela revelação, mas
o mito é compactado, confuso e pode não nos esclarecer.
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 20
Aula 08 – 23/05/2009
Sinopse: Esta aula sintetiza as aulas anteriores e traça algumas linhas para o curso e
para a restante vida intelectual. Existe uma série de blocos a serem desenvolvidos na
vida intelectual, de acordo com o espírito do COF e tendo em conta o estado actual da
sociedade. Esses blocos são independentes mas terão de ser trabalhados em paralelo
e articulados. A própria filosofia é o modelo da vida intelectual, na senda de
Sertillanges, onde as indicações práticas são emanadas da visão unificada dos
princípios mais gerais. A vida intelectual consiste em vencer as dificuldades e os
empecilhos com que nos defrontamos, que não devem ser vistos como meros acidentes
de percurso mas componentes essenciais. O primeiro bloco trata do Adestramento do
Imaginário, baseado no longo convívio com a literatura de ficção, o romance, a
poesia, o teatro e o cinema. Apenas através da imaginação podemos conhecer pessoas
diferentes de nós e que viveram em contextos diferentes. O segundo bloco é o
Adestramento Linguístico e terá de ser articulado com o anterior. Compreender e
saber utilizar a linguagem, juntamente com a imaginação, são condições necessárias
para retirar o fundo de experiência que se encontra por detrás da linguagem
filosófica. Quando entramos no terceiro bloco, o Adestramento da Auto-consciência,
procuramos dar um sentido ao nosso trabalho intelectual. O senso do ideal é um
elemento unificante que dá à nossa consciência um padrão que permite absorver cada
situação real da vida à sua luz. No quarto bloco entramos na tarefa de pesquisa
erudita, que segue de perto, em técnicas e métodos, a investigação histórica. No
quinto bloco entramos, finalmente, na técnica filosófica propriamente dita, que se
sustenta nos quatro blocos anteriores. Na técnica filosófica partimos da opinião dos
sábios, como dizia Aristóteles, e vamos também incluir o conhecimento por presença.
A razão hipotética é um tipo especial de imaginação, que foi formalizada e petrificada
para permitir a repetição exacta. A crítica literária é a primeira disciplina filosófica e
permite criar um consenso sobre as obras com real valor, enquadrando-as
culturalmente e historicamente. Respeitar todas as opiniões é desrespeitar a verdade.
O Adestramento do Imaginário
Só através da imaginação podemos compreender pessoas diferentes de nós, que terão
sempre um ponto de contacto connosco mesmo tendo vivido em épocas passadas ou
em contextos totalmente diferentes e mesmo que sejam personagens de ficção, como
Antígona, Ulisses ou Hamlet, já que não existe o totalmente heterogéneo. Na nossa
vida cotidiana só podemos compreender o próximo através da imaginação, e se não
fizermos o exercício de nos colocarmos na situação do outro, a base do amor ao
próximo, iremos julgá-lo baseados num qualquer estereótipo. O adestramento do
imaginário é feito pela longa convivência com a literatura de ficção, a poesia, o
romance, o teatro e o cinema. Tudo isto é por nós fruído como um sonho acordado
dirigido que permite nos identificarmos com aquelas personagens retratadas. Mais
tarde, com a incorporação de novos dramas, conflitos, tensões, situações, estaremos
habilitados a criar as nossas próprias personagens e situações, mesmo que estas fiquem
apenas no nosso imaginário e não sejamos capazes de as transpor para o papel.
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 21
Também a experiência é importante para a filosofia mas ela nos compromete e vai
pesar no nosso futuro. Não é possível experimentar “de tudo” apenas para aumentar o
nosso arsenal experiencial sem assumir as devidas responsabilidades.
Para conhecer alguém com inteligibilidade é necessário enquadrar a pessoa num
padrão geral e abstracto. Mas o ajustamento ao caso concreto que a pessoa configura
só pode ser feito através da imaginação. Esse ajustamento imaginário é facilitado se já
tivermos uma galeria suficiente de personagens e situações dramáticas que se possam
combinar para formar uma imagem da pessoa real. A boa ficção isola eventos
pertinentes e intensifica-os para ganhar nitidez. Mas na vida real existe uma
pluralidade de dramas desconexos. Como os problemas aparecem todos mesclados,
torna-se quase impossível às pessoas dar inteligibilidade ao seu sofrimento. O
sofrimento só pode ganhar sentido se integrado num projecto biográfico. É preciso
ganhar discernimento com o adestramento do imaginário para, retroactivamente,
articular as situações vividas com os nossos objectivos mais elevados. Neste
adestramento as obras de literatura têm que ser vistas como documentos da vida
humana, depoimentos e não textos que vamos logo analisar. Essa análise faz parte da
vida intelectual mas ficará para mais tarde. O adestramento do imaginário pode ainda
prosseguir com o estudo da psicologia, tendo em vista a compreensão dos seres
humanos reais e não como disciplina teorética.
Os livros de filosofia não devem ser lidos como teses das quais devemos concordar ou
discordar. A primeira tarefa a realizar é a reconstituição do drama cognitivo e humano
ali presente. Antes de vermos estes livros como verdadeiros ou falsos, a proclamar ou
a impugnar, temos de os perceber como expressões de uma busca humana. A fase
crítica não pode chegar antes de termos revivido experiências análogas às vividas
pelos autores que lemos. Nos livros de filosofia há o drama humano, que é o primeiro
a ser entendido, as respostas a outros filósofos, por exemplo, e existem os dramas
puramente cognitivos que advêm da luta contra a opacidade dos factos e dos
fenómenos. Não são estes dramas sangrentos como certos dramas que ocorrem nas
relações entre as pessoas, mas a longo prazo são determinantes para a humanidade.
Adestramento Linguístico
Juntamente e articulado com o adestramento do imaginário, terá de ser desenvolvido
um segundo bloco respeitante ao adestramento linguístico, mais concretamente, sobre
a compreensão e utilização da linguagem. A obra literária veicula a experiência
concreta, segundo Benedetto Croce, e terá de ser esse o nosso foco e não entrar logo na
linguagem abstracta da filosofia e das ciências. Às experiências intelectuais
correspondem experiências existenciais concretas que temos de refazer
imaginariamente para saber realmente do que se está a falar. Se recorrermos a um
dicionário filosófico teremos acesso apenas a definições de termos, atitudes ou
correntes esquematizados, que não correspondem à realidade dos dramas intelectuais
que foram vivenciados longamente. A mera evocação do conceito abstracto não
permite evocar esse drama, mas se nos atermos a isso faremos como a criança que usa
a imitação de palavras sem perceber o contexto. Precisamos de lastro imaginário e
linguístico para retirar a situação existencial efectiva da linguagem filosófica. Por isso
o adestramento da linguagem tem de vir junto ao adestramento do imaginário.
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 22
sem forma, um foco de luz que ilumina o que está obscuro à nossa volta e no nosso
interior. Apenas o observador omnisciente nos conhece verdadeiramente e tudo o que
podemos dizer sobre nós são auto-imagens provisórias e, na melhor das hipóteses,
apenas parcialmente verdadeiras. Desistir da auto-imagem e atermo-nos apenas a um
núcleo de auto-consciência pode nos desorientar por momentos e nos criar uma
sensação de falta de identidade, mas isso é provisório. Temos de chegar a uma fase
onde não seremos mais um retrato mas uma acção, seremos uma auto-criação
permanente que se substitui a uma auto-contemplação passiva e viciosa.
O Necrológio, antes de ser uma auto-imagem, é o antagónico dela. É um projecto para
o qual temos de achar os meios para o realizar, e à medida que o vamos concretizando
vai deixando de ser uma meta para passar a ser um dever. Queremos ter uma auto-
imagem porque desejamos expressar na perfeição o mundo dos nossos pensamentos.
Mas a extinção e o desaparecimento fazem parte da natureza das coisas temporais, o
que permite nos libertarmos de uns pensamentos para dar espaço a outros melhores.
Mas aquilo que desaparece da escala temporal não vai para o mundo do não-ser, não
pode tornar-se num nada, porque o nada nunca foi nada. Tudo o que alguma vez
existiu não se perde na escala da eternidade, onde tudo é eterno e Deus pode colocar
em nós o conhecimento perdido as vezes que quiser. É esta a memória espiritual a que
se refere Platão quando fala da anamnese. Só quando começamos a perceber a
permanência da eternidade por detrás da impermanência é que teremos um terreno
firme, como dizia S. Paulo apóstolo, n’Ele nos movemos, vivemos e somos.
A visão da individualidade fechada, do ego cartesiano, serve para paralisar a
inteligência. Quando acreditamos que tudo é um estado subjectivo nosso, incluindo
pensamentos e percepções elementares, passamos a dar substância a essa
subjectividade e negamos a existência de algo fora dela. O eu subjectivo na verdade
não existe, limita-se a ser uma sucessão de estados impermanentes, mas se o
considerarmos como um recipiente fechado, ele deixa de conseguir fazer a ponte entre
os nossos estados interiores e o mundo exterior, que é a outra sucessão de
impermanências. Penso, logo existo, tem implícita, como a primeira e fundadora
certeza das restantes, a existência do próprio ser cognoscente. Mas a própria
formulação da frase implica a utilização de uma linguagem que veio de fora, ou seja, a
afirmação da nossa existência não pode ser uma certeza fundadora mas já necessita da
certeza da existência do mundo exterior. Só que a frase é dita para sugerir o contrário.
O ser com verdadeira substância só existe na escala eterna, quando já adquiriu a sua
forma fechada, e na escala temporal tudo é precário e impermanente. Mas também não
pode existir uma impermanência absoluta, que reduziria as coisas a nada, pelo que as
coisas no mundo temporal estão num estado intermédio, são semi-naturezas, semi-
substâncias em permanente estado de fluxo que só adquirem a verdadeira
substancialidade vistas desde a eternidade. Ao invés de nos encerrarmos sobre o nosso
eu subjectivo, o nosso processo de auto-construção consiste em nos darmos e
prestarmos atenção a coisas incomparavelmente mais importantes que nós, e depois
podemos passar a personificar esses valores para outras pessoas, não por os termos em
nós mas por abrirmos a porta para eles. Muita gente não quer ver essas portas abertas e
irá odiar o nosso exemplo. Ninguém foi mais odiado que Cristo. Mas isso é uma
posição alienada que está contra a estrutura da realidade e não podemos temer as
reacções de pessoas como essas.
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 24
A tarefa de pesquisa
Apenas quando chegamos ao quarto bloco, relativo às ferramentas de pesquisa erudita,
o ensino moderno vai dedicar alguma atenção, se bem que deficitária. Devemos nos
documentar sobre as questões que nos interessam. A investigação filosófica segue de
perto a investigação histórica, partilhando técnicas e métodos. Um livro sugerido
quanto a isto é The Modern Researcher, de Jacques Barzun, mas como devemos
adequar a investigação ao país e momento vivido, devemos também considerar os
livros de José Honório Rodrigues, Teoria da História do Brasil e Pesquisa Histórica
no Brasil. Depois de reunir o máximo de documentação possível há que interpretar
esse material e relacioná-lo, seguindo na linha do historiador da filosofia ou das ideias.
Para saber mais sobre como trabalhar estes assuntos devemos ler a apostila “Problemas
de métodos nas ciências sociais”.
O artigo “Quem é filósofo e quem não é”, publicado no Diário do Comércio
(disponibilizado em http://www.olavodecarvalho.org/semana/090507dc.html),
aconselha que, em primeiro lugar, se faça uma pergunta que nos desperte real
interesse. Segue-se depois uma tarefa bibliográfica e depois todo aquele material será
montado como se fosse uma teoria única, ou seja, a partir da história do problema é
composta a sua estrutura. Normalmente os livros fazem uma apresentação sistemática
que não revela a investigação histórica que esteve por detrás. Este processo está
ilustrado de forma magistral no livro de Joseph Marechal, Le Point de Départ de la
Métaphysique. Neste livro é colocado de início o problema da afirmação metafísica e
depois é visto como este problema foi evoluindo ao longo do tempo nos pontos que
interessavam ao autor. Na filosofia não é seguida a investigação histórica estritamente,
que avalia todos os problemas. Há uma criação de foco na escolha de pontos
considerados essenciais.
técnica filosófica iremos usar dois livros, Manual de Metodologia Dialéctica, de Louis
Lavelle (a ser traduzido e disponibilizado no COF) e Logique de la Philosophie, de
Eric Weil.
Na técnica filosófica será incluído o conhecimento por presença, algo negligenciado
na história da filosofia mas cujas elaborações científicas das últimas décadas tornaram
possível desde que se começou a estudar a comunicação não verbal, a ressonância
mórfica descrita por Rupert Sheldrake, juntando ainda a obra de António Damásio, se
bem que sofrendo de alguma confusão de terminologia. A nossa orientação no mundo
depende de muito mais conhecimento que aquele que sabemos que sabemos. O
conhecimento por presença está sempre presente e preenche os espaços vazios. Ele
advém do aparato de percepção que nasceu connosco, trazendo a marca da perfeição
divina; todas as crianças sabem que vivem no mesmo mundo sem terem disso sido
informadas. Esse conhecimento permite que nos orientemos sem qualquer problema
no mundo da mutação e da permanência, e sabemos instintivamente o que há de
aparente e real tanto na mutação como na aparência. Mas quando tentamos transferir
este mundo da percepção para o mundo da razão, apenas uma pequena fracção do que
sabemos é comunicável. Os filósofos pré-socráticos tinham a mesma experiência do
mundo, mas Heraclito realçava o fluxo de mutações, enquanto Parménides achava que
existia um ser absoluto e imutável por detrás das mutações, e Zenão de Eleia, com os
seus famosos paradoxos, punha em dúvida a própria realidade do movimento e da
transformação. Eles sabiam que viviam no mesmo mundo e não em mundos diferentes,
viam o mesmo mundo mas expressavam-no de forma diferente porque a razão é muito
limitada em comparação com o mundo da percepção. O que nós conhecemos deles
resume-se apenas àquilo que eles conseguiram transmitir e não o que eles
efectivamente sabiam. O conhecimento por presença está por baixo do efectivamente
percebido, estando mesmo por baixo do inconsciente, que só pode ter origem na
memória ou em algum processo interno, que é a própria presença no real, pressuposto
de tudo. O esforço filosófico consiste em transferir uma pequena parcela da riqueza
infinita da percepção real para o mundo da razão, onde as coisas são humanamente
comunicáveis e podem ser discutidas.
A crítica moderna do conhecimento, iniciada por Hume, seguido por Kant, criou a
ideia de que tudo o que não era absorvido pelos sentidos era criação mental, existindo
assim o mundo natural e o da criação cultural. Como suposta prova disto temos as
diferentes imagens do mundo presentes em culturas diferentes. Estas imagens são
realmente diferentes mas isto não implica que a percepção do mundo também
acompanhe estas diferenças. Aquilo que as civilizações passadas nos deixaram não foi
a sua visão do mundo mas apenas o que conseguiram transmitir dessa visão em
símbolos que a condensaram. A própria aquisição do património cultural pode se
tornar tão pesada que vá encobrir o anterior conhecimento do mundo real, e depois
passamos a confundir as representações simbólicas com o próprio mundo. Levando
isso ainda mais adiante, podemos começar a acreditar que a nossa vivência imediata já
é ela mesma uma criação cultural quando ela é a base de construção das criações
culturais.
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 26
A crítica literária
A crítica literária é a primeira disciplina filosófica por ser a expressão intelectual mais
imediata da experiência literária. Sem a crítica literária seria difícil saber por onde
começar a estudar. Os críticos literários são leitores privilegiados, por vezes grandes
escritores, que conseguem exprimir algo da sua experiência de leitura e fazer a
inserção das obras num quadro cultural e histórico maior. Desta forma vão formando
um consenso sobre o que tem valor. Sainte-Beuve foi um grande crítico do século XIX
que enfatizava a experiência psicológica. Mathew Arnold tem um grande valor
educativo e pedagógico. Entre os críticos portugueses destacaram-se Adolfo Casais
Monteiro e Fidelino Figueiredo. Entre os brasileiros, Álvaro Lins, Augusto Maier e,
sobretudo, Otto Maria Carpeaux.
O relativismo opinativo
É comum a confusão, ou a hipocrisia assim disfarçada, entre o direito em cada um
opinar de sua livre vontade com a ideia de que todas as opiniões têm valor idêntico,
isto feito em nome da liberdade. Este medo em violar um dos preceitos do
politicamente correcto deprime a inteligência. Pensar é pensar que se está certo. Não
faz sentido ter uma opinião achando que outras são melhores ou de idêntico valor. Se
estivermos nesse ponto simplesmente estamos na indecisão. Respeitar a opinião
manifestamente errada é cuspir na verdade.
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 27
Aula 09 – 06/06/2009
Sinopse: Nesta aula são estabelecidos alguns princípios da ética da vida intelectual.
O primeiro princípio da vida intelectual foi enunciado por Jean Guitton: “Cave onde
você está.” Isto contraria a principal motivação para entrar na vida intelectual nos
últimos séculos, que tem sido obter a suprema beatitude do entendimento
(Burckhardt), que teve o seu paroxismo no eu transcendental de Kant. Ao proibir as
especulações milenaristas, Cristo já estava a indicar a limitação do conhecimento
como sendo estrutural à vida humana. A vida humana decorre no seio do mistério,
mas o mistério pode dar-se a conhecer um pouco quando aceitamos totalmente a
nossa condição e fazemos a técnica da confissão de Agostinho. A diferença entre
saber e não saber só será realmente apreendida depois de muito se meditar sobre a
presença do mistério, do desconhecido e do incognoscível. A confiabilidade dos
conhecimentos é medida pelo grau de proximidade que os nossos conhecimentos têm
relativamente à certeza que temos sobre o nosso legado auto-biográfico. Quando a
vida intelectual não se norteia por estes princípios, o indivíduo vai deixar-se seduzir
por falsos enigmas lógicos, onde é colocada uma escolha entre possibilidades que
nunca se verificam na realidade, como altruísmo ou egoísmo, determinismo ou livre
arbítrio. A filosofia não pretende obter um conhecimento universalmente válido mas
obter um esclarecimento suficiente para a nossa orientação na realidade. O público
espera do intelectual um exemplo de seriedade e não alguém que apenas está ali para
agradar. Na vida humana, mas não na História, o futuro é um elemento dinâmico do
presente que dá retrospectivamente um sentido ao passado. O ser humano vive com o
trauma da emergência da razão porque nasce com o dom de criar estruturas racionais
universalmente explicativas mas estas só serão adequadas à experiência da realidade
após um longo processo de apropriação da razão, cujo afastamento provoca inúmeras
neuroses. Para compreender os processos históricos não podemos atribuir a eventos
explicáveis pela acção humana deliberada uma causa derivada de forças históricas
genéricas, e temos de saber que todos os agentes têm um horizonte limitado e algo
pode ter agido através deles.
entendimento, especialmente adaptada aos marxistas, que não se contenta com uma
contemplação passiva mas quer influenciar o fluxo das coisas; quer transformar o
mundo e moldá-lo à sua imagem e semelhança. A motivação básica para entrar na vida
intelectual nos últimos séculos tem sido alcançar um destes dois pontos, ou de
compreensão ou de transformação. Em comum tem um recuo cognitivo, que até certo
ponto é um artifício necessário para obter alguma objectividade. Kant vai levar este
recuo ao extremo do eu transcendental, que é um ponto de observação onde
compreendemos o mundo da experiência e ainda a nossa própria compreensão aí
envolvida. O eu transcendental é uma espécie de consciência da consciência por estar
colocado num plano onde lhe são reveladas as condições ocultas que permitem a
experiência, reveladas no próprio decorrer da experiência.
Se as exigências técnicas obrigam a que, de facto, seja feito um certo recuo, nunca nos
podemos iludir de que alguma vez seja possível estar numa posição acima da realidade
e a possamos observar como um deus. Assim perdemos a perspectiva espiritual de que
acima de nós existe sempre o observador omnisciente, não vendo isto em termos
religiosos. A busca humana de um ponto de vista privilegiado não é verdadeira, nunca
estaremos acima de nós mesmos. Santo Agostinho tinha uma atitude completamente
diferente. Ele pretendia compreender-se a si mesmo, não como ego transcendental ou
sujeito do conhecimento, mas como sujeito humano no mundo da acção, da incerteza,
do pecado, onde está envolvido um eu real, temporal e histórico e não há nenhum
intermediário entre ele e Deus. Esse intermediário é representado pelo eu
transcendental, que é um pseudo-deus que apareceu com Descartes como muleta para
obter a certeza absoluta, que ele acreditava ser a consciência da consciência. Há aqui a
ilusão de dar substância de realidade ao eu como puro conhecedor, quando se trata
apenas de um papel desempenhado, por momentos, pelo eu real. Nos últimos séculos
tem crescido a crença neste “eu” que tudo observa e, até, pode decidir, o que configura
um processo de auto-divinização que atingiu um paroxismo no século XX na escola
esotérica do Gurdjieff. Ele considerava o eu cotidiano ilusório e ensinava o
desenvolvimento de um eu observador que não participava nos acontecimentos, não
tomava partido, era totalmente neutro. Mais que uma doutrina era uma prática onde as
pessoas perdiam a identificação consigo mesmas na construção do eu neutro,
chegando a um estado totalmente amoral e cínico. Era um processo de estupidificação
que ao mesmo tempo dava às pessoas uma grande sensação de poder porque os
iniciados imaginavam estar infinitamente acima dos restantes seres humanos. Nada
pode ser mais irrealista do que ver o eu real como ilusório e o eu observador, que é
uma coisa declaradamente criada, como real. Se fizermos isto estamos a negar a
própria história, a fazer uma anti-confissão onde fugimos à responsabilidade dos
nossos actos. A fuga à realidade e a negação da condição histórica são marcas da
inspiração gnóstica, de alguém que não aguenta o mundo e então finge que está acima
dele.
O princípio número um da vida intelectual foi delineado por Jean Guitton: Cave onde
você está. Temos de compreender que a elevação acima do fluxo dos acontecimentos é
um exercício temporário e não corresponde à nossa condição existencial. Agostinho é
o nosso exemplo e ele sempre cavou no local onde se encontrava pois sabia que a
realidade da sua vida concreta, por mais humilhante que fosse, era algo precioso
porque aconteceu mesmo, não era mero pensamento. Este é um terreno firme que mais
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 29
tarde servirá de critério para avaliar todo o tipo de conhecimentos. Agostinho sabia
ainda que acima dele existia o observador omnisciente que não era ele mesmo. Sem
esta consciência podemos ter a tentação de reduzir tudo ao nosso teatro mental. Este
teatro é uma ferramenta importante na busca do conhecimento mas, se esquecermos
que é um artifício temporário, ficaremos como o sujeito na peça de Pirandello que
acreditava ser o rei Henrique IV e obrigava as pessoas à sua volta a serem a sua corte.
Esta parábola representa muito bem os tempos modernos e aquilo que são os
movimentos de massas, onde uma pessoa doente, maligna, incapaz de suportar a
miséria da sua realidade, tenta escapar para um mundo idealizado. Aí vai desempenhar
um novo papel com uma intensidade, uma verosimilhança e uma devoção tais que fará
outros acreditarem nele e entrarem também naquele teatro e fugirem à realidade das
suas vidas. Os movimentos marxistas falam do proletariado mas são compostos quase
que só de pessoas das classes média e alta. A instituição académica oferece também
um convite desse género para todos os estudantes, a promessa arrebatadora de realizar
a suprema beatitude do entendimento.
evitadas pelas suas propostas de paz e ordem, onde se arrogam saber mais que todos.
O conceito de Estado Mundial não faz sentido porque um Estado é organizado não só
por motivos de organização interna mas também para efeitos de representação face a
outras comunidades. O que realmente está em causa é a criação de um papado supra-
religioso, uma pretensão já antiga que visava instrumentalizar a Igreja para que ela
deixasse de ser católica e criar uma religião sincrética. Mas o que é característico dos
movimentos ecuménicos é a ausência de espaço conferido a Deus, é apenas acção
humana e masturbação mental.
estão ali para nos esclarecer e ajudar. Só podemos notar esta presença se fizermos
como Agostinho e estivermos em total concordância com a nossa condição e não se
nos quisermos colocar na posição de juiz e tentar tomar o lugar de Deus. A confissão
permite-nos obter novas percepções da realidade e é o método correcto do auto-
conhecimento, mas o objectivo último terá de ser fazer a vontade de Deus e não o
auto-conhecimento pois nós não temos substantividade suficiente para dizer que somos
isto ou aquilo. Nós tomamos forma aos poucos ao deixarmos que Deus nos molde
gradualmente na medida em que lhe damos o que temos, por pior que isso seja.
certos casos, elas sabem mais do que imaginam, como no caso do diálogo Ménon com
o escravo analfabeto.
Um exemplo de um enigma lógico é a questão do determinismo e do livre arbítrio.
Para evitar sermos iludidos pela questão temos de avaliar os conceitos envolvidos à luz
da realidade da experiência para saber ao que eles efectivamente se referem. A escolha
entre determinismo e livre arbítrio está a pressupô-los como absolutos, e assim só
poderiam ser aplicados em seres com dimensão infinita. Deus, sabendo tudo o que vai
acontecer e o que vai fazer poderia parecer pré-determinado, mas como não há quem o
possa coagir a isso, Ele simplesmente é determinado. E para ter sentido em falar da
liberdade de Deus era preciso supor a existência de uma entidade externa que O
pudesse coagir, o que não faz sentido. Então não faz sentido aplicar os conceitos de
livre arbítrio e determinismo a Deus. Também não faz sentido aplicar estes conceitos
como absolutos aos seres humanos. A liberdade absoluta de um único indivíduo
implicaria a pré-determinação de todos os outros seres em volta. E a total pré-
determinação implicaria que os nossos pensamentos também estariam pré-
determinados e não poderíamos sequer colocar esta questão. Na vida real não existe a
possibilidade de aplicar conceitos extremos como estes, e se estes conceitos não
servem para descrever a realidade devem ser abandonados numa verdadeira filosofia.
No diálogo Crátilo, de Platão, há um exemplo do uso da técnica filosófica para
resolver um cenário onde é colocada uma falsa alternativa e as coisas são esclarecidas
para trazer os intervenientes de volta à realidade. A discussão anda à volta das palavras
e de saber se os símbolos verbais são arbitrários ou naturais. Sócrates mostra que
ambas as alternativas são falsas e o importante é conhecer a natureza das coisas.
Vários enigmas lógicos são criados a partir da identificação dos seres existentes com
as suas definições. A definição omite todos os elementos acidentais e não reside em
lado algum, mas os seres reais estão sempre em algum lado e apenas existem dentro de
uma rede de acidentes, não podendo ser unicamente compostos de essências lógicas.
Outro problema absurdo é a oposição entre egoísmo e altruísmo, que vigora na
“psicologia prática” de Ayn Rand. Estes também não são conceitos filosóficos pois
referem-se a hipóteses extremas que nunca se verificam na realidade. Precisamos de
arranjar outros que possam descrever a realidade com sinceridade, que é o começo da
veracidade. Sinceridade é veracidade subjectiva.
ficção, são coisas que devem ser incluídas na rotina de estudo, mas não contam como
estudo formal, apesar de retirarmos delas, por vezes, coisas mais preciosas que as
obtidas do estudo formal.
a razão de alguém ter feito alguma coisa. Para compreender algo em História
precisamos de saber duas coisas. Em primeiro lugar, não é legítima a atribuição a
forças históricas genéricas (classes sociais, tendências económicas, etc.) aquilo que
pode ser explicado pela acção humana deliberada. Em segundo lugar, todos os agentes
têm um horizonte limitado e algo pode ter agido através deles, passando por cima de
suas consciências. Sobre a acção humana, podemos começar a construir uma
biblioteca sobre algumas fontes: Na introdução do livro Economia e sociedade Max
Weber discute as condições da acção humana; Human Action, de Ludwig von Mises
também trata do assunto na parte introdutória; Psicologia da motivação, de Paul Diel;
Julian Marias escreveu coisas muito boas sobre a estrutura da acção humana,
sobretudo no livro La estrutura social; Ortega y Gasset também discorreu sobre o
assunto; Viktor Frankl e Szondi são outras fontes que nos podem ajudar bastante.
Os limites da imaginação
Algo pode ser construído matematicamente mas não ser concebível, pois pode nem ser
real. As teorias podem estar completamente erradas e já nada terem de real. Temos de
lidar com a realidade concreta tal como se apresenta, com o seu conjunto de acidentes.
Na elaboração de uma teoria científica a primeira coisa a ser feita é eliminar esses
acidentes, ou seja, está a tratar-se de aspectos e não de realidades. O recorte desses
aspectos pode criar um isolamento tão grande que o que sobra é apenas uma
possibilidade abstracta, impossível de conceber.
Aula 10 – 13/06/2009
mediante a revolução cultural gramsciana. Apesar deste grupo militante não ser letrado
nem minimamente preparado, para quem é ainda mais ignorante, incluindo os
estudantes que chegam à universidade, ele desempenha a autoridade que seria de uma
verdadeira classe letrada e a sua produção é vista como sendo a expressão da cultura
superior. Mas essa cultura superior não existe mais e nem sequer existe algum
professor universitário na área das ciências humanas que seja alfabetizado, abundando
nos seus artigos erros gramaticais primários. Isto criou uma situação de paralisia
cultural que nunca se verificou em mais lado algum, porque noutros países, apesar de
também existir uma ocupação de espaços por esquerdistas, estes efectivamente
receberam alguma informação, podendo ser desonestos mas não incultos. Precisamos
de ter consciência deste ambiente para que ele não nos corrompa, deprima e
desencoraja. A construção da nossa personalidade intelectual e moral é mais
importante que os conhecimentos positivos que vamos obter. É muito importante
escolher um professor e segui-lo por muitos anos e não sair logo dando palpites depois
de aprender duas ou três coisas. Os alunos do COF têm a vantagem de ter um
compromisso formal assumido, que no fundo é um compromisso com nós mesmos e
nos obriga a atingir certos resultados intelectuais, existenciais e morais.
A destruição da inteligência
A inteligência humana não é uma função especializada mas tem um carácter sistémico.
Ela é a parte superior da nossa personalidade, que condensa toda a nossa experiência e
unifica tudo. Se tentarmos isolar pedaços para lhes vedar a entrada da inteligência,
vamos sair lesados. Para manter a inteligência é preciso, em primeiro lugar, aprender a
sinceridade porque inteligência é a capacidade de perceber a verdade. A verdade não
pode aparecer nas altas ideias se ela está oculta na nossa existência. Quem não diz a
verdade para si mesmo destrói a sua inteligência, e é esse o grande erro dos farsantes
que usurparam o papel dos intelectuais.
Quando a leitura ficar interessante é natural o impulso para continuar, mas devemos
nos refrear. Quando se passa para o segundo parágrafo, adicionado ao esforço anterior
de absorção imaginativa existencial, é necessário fazer a articulação com o primeiro
parágrafo. No final teremos a sequência exacta das ideias que já se terão transformado
em recordações e percepções, porque os conceitos abstractos que fomos encontrando
já foram transformados em exemplos concretos vivenciados e reais. Podemos ter a
tentação de ir escrevendo à medida que vamos fazendo a leitura, mas devemos, no
início, conter esse ímpeto. Primeiro temos de aprofundar a experiência e depois,
quando a colocarmos por escrito, já será algo mais definitivo e útil para outros.
tornam cada vez mais inaudíveis mas ainda estão lá. Este não é um exercício de
análise, é só para fazer uma colecção de ruídos trazendo para a frente o que se
encontrava no fundo.
O exercício descrito anteriormente é de percepção e vamos passar agora a outro de
construção mental. Novamente de olhos fechados imaginamos um fundo preto onde
traçamos, da esquerda para a direita, uma linha branca. Da ponta direita da linha
branca, traçamos outra linha branca para baixo, perpendicular à primeira e do mesmo
tamanho. Traçamos uma terceira perpendicular branca do mesmo tamanho para a
esquerda e, finalmente, uma quarta que fechará o quadrado. Sem esta capacidade
construtiva não poderíamos conceber, mas se passarmos por cima da consciência de
percepção vamos substituir a realidade pelo mundo das ideias, mas o mundo real é
incomparavelmente mais rico que o mundo do pensamento, mesmo para um
Aristóteles. Primeiro temos de aprender com o universo real, que é matéria de
percepção. No exercício de percepção nós sabemos que os ruídos saem sempre de
algum lugar, por isso não percebemos apenas os ruídos mas presenças, e elas são uma
nossa referência permanente que assinala onde estamos e o que fazemos, mesmo se
não lhes prestarmos atenção. Um ruído percebido como estando longe, longe não é
ruído, é uma referência espacial, por isso existe implícita a presença do espaço.
Estes exercícios pretendem puxar a presença de fundo para a frente e incorporá-la na
nossa pessoa. A nossa atenção vota-se habitualmente para o que nos interessa, e essa
escolha é uma actividade construtiva, que separa alguns aspectos, mas o universo é
constituído de uma infinidade de coisas. É a presença do universo, que trazemos para a
frente, que vai garantir que os nossos pensamentos não fujam muito à realidade. O
foco da nossa atenção, que incide no objecto recortado, não pode ser separado do
fundo permanente daquilo a que não prestamos atenção. O senso de presença do ser
dá-nos também o senso de continuidade, que não pode ser obtido pela memória ou na
mente, que são todas fragmentadas. O sentido da comunicação não-verbal torna-se
claro quando entendemos que a mensagem verbal é apenas um recorte dentro do
mundo da experiência real e a nossa presença física é o seu suporte. Para além do
mundo da experiência existe o mundo que não é objecto de experiência mas está ali
presente. Se pensarmos nas pessoas a quem nos dirigimos como sendo meras formas
ocas sem interior, isso parece macabro porque o nosso senso de presença faz que, sem
pensarmos, contemos que elas tenham órgãos internos em funcionamento.
Devemos ver os livros de filosofia como pautas de música, que só podem ser
compreendidas quando executadas, mesmo que interiormente. A leitura tem que ser
lenta de início, e pode ser útil um livro não traduzido que nos refreia a vontade de
avançar. Depois o ritmo de leitura poderá aumentar sem prejuízo porque já fizemos
muitas evocações, que se acumularam como experiências interiores e ficaram no fundo
da memória e já as poderemos evocar novamente com maior rapidez e facilidade. Ao
fim de muitos anos a nossa experiência de leitura aprimorou-se ao ponto de cada frase
descortinar para nós um mundo inteiro, como se os livros fossem comidos e não lidos.
Todos os grandes leitores do passado leram desta forma; foi assim que os grandes
romancistas entenderam outros grandes romancistas e tudo o que eles escreviam já
tinha implícitos os universos dos escritores passados que haviam sido incorporados.
Isso exaspera alguns autores que querem se libertar do legado passado, às vezes do
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 42
próprio legado, mas não é possível fazer isso porque o que foi absorvido transformou-
se num instrumento de percepção e é fonte para novas associações de ideias e
analogias. Mas não podemos esquecer que aquilo que um escritor ou um filósofo
conseguiram transmitir foi apenas uma pequena parte do seu imaginário.
O Exercício de Leitura Lenta, por um lado, é um exercício de percepção e memória,
mas também é um exercício de construção, já que é necessário reconstruir os nexos
entre as experiências interiores à medida em que se avança nos parágrafos. Quando a
nossa capacidade de leitura for aumentando é natural ficarmos intolerantes ao
palavreado vazio que muitos exibem ao falar de filosofia, pois perceberemos que eles
não perderam um minuto tentando evocar as experiências que estão por detrás das
palavras. Um intelectual sério, por cada palavra que diz tem muitas mais que não
podem ser enunciadas devido à riqueza do seu património, em larga medida
inexprimível.
O amor à realidade
O Imbecil Colectivo é resultado da disseminação das técnicas, criadas por pessoas
como Jacques Lacan, que habilitam os sujeitos a entender tudo de forma invertida.
Apesar de serem técnicas de “emburrecimento”, estas só podem ser apreendidas por
pessoas com alguma cultura e inteligência. Os elementos da mentalidade
revolucionária tiveram origem em fontes não revolucionárias, e foram incorporando-se
nos hábitos culturais de tal forma que é quase impossível lhes escapar se não existir
um verdadeiro amor à realidade, demonstrado por Lavelle, Husserl ou Voegelin. Isto
não pode ser substituído pelo propalado amor à ciência, pois esta não passa de uma
construção humana, um jogo; mas o universo não é um jogo, é algo que não sabemos
exactamente o que é mas para o qual devemos ter uma abertura. Somente a abertura
para a presença total do ser garante o valor das nossas ideias, ou estas não passarão de
mera construção mental. Uma classe verdadeiramente letrada percebe instintivamente
a valia do material intelectual, por exemplo, a densidade de um poema. Um grande
poeta, como Bruno Tolentino, era ele mesmo um grande leitor de poesia, com milhares
de referências incorporadas, e isso colocava-o na linhagem dos poetas.
Tradição cultural
A tradição cultural é aquilo que os sábios conseguem repassar uns aos outros. Apenas
uma parte do que eles sabem é transmitida; temos as peças de Shakespeare mas não o
conteúdo da sua imaginação, que é possível de recompor, em parte, pela imaginação
utilizando também outros meios adquiridos anteriormente. A humanidade tem
acumulado registos, mas é errado confundir isso com um acumular de conhecimento.
O universo em si já é um depósito de conhecimentos, o que falta fazer é a sua
descodificação. A descodificação que é necessária fazer de alguns registos acumulados
é mais complexa que a descodificação directa da natureza. Em cada geração há apenas
um pequeno número de pessoas que fizeram esta descodificação e que incorporaram
em si o conhecimento. Sem estas pessoas o conhecimento perde-se, por maior que seja
o aumento de registos porque estes, por si sós, não são ainda património das pessoas
reais. Quando a tradição cultural começa a desvanecer-se, os bons escritores que, na
sua geração, eram amplamente lidos, compreendidos e comentados, na geração
seguinte serão esquecidos e, a partir da terceira geração, serão ininteligíveis a não ser
para eruditos de carreira. Para entender aquilo é necessário recuperar o imaginário do
público para quem o autor se dirigia.