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Mia Couto
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“Não é da luz do sol que carece-
mos. Milenarmente a grande estrela
iluminou a terra e, afinal, nós pouco
aprendemos a ver. O mundo necessi-
ta ser visto sob outra luz: a luz do lu-
ar, essa claridade que cai com respei-
to e delicadeza. Só o luar revela o la-
do feminino dos seres. Só a lua revela
intimidade da nossa morada terres-
tre.
“Necessitamos não do nascer do
Sol. Carecemos do nascer da Terra”.
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― Esta menina está-se a enxugar no poen- Maria Sombrinha ascendia a mãe e avó quase
te... em mesma ocasião. Sombrinha passou a tratar
Todos se riam. O pai cada vez piorava. Face de igual seus rebentinhos ― a filha e a filha da
ao riso, o homem se remeteu à ausência. Se filha. Uma pendendo em cada pequenino seio.
transferiu para as traseiras, se anichou entre A família deu conta, então, do que o pai an-
desperdício e desembrulhos. A filha ainda soli- tes anunciara: Sombrinha, afinal das contas,
citou comparência do mais velho. sempre se confirmava regredindo. De dia para
― Deixe o seu pai. Lá onde está, ele não está dia ela ia ficando sempre menorzita. Não havia
em lugar nenhum. que iludir ― as roupas iam sobrando, o leito ia
Valia a pena sombrear a miúda, minhocar- crescendo. Até que ficou do mesmo tamanho da
lhe o juízo? Mas Sombrinha não deixou de rimar filha. Mas não se quedou por ali. Continuou
com a alegria. Afinal, era ainda menos que ado- definhando a pontos de competir com a neta.
lescente, dada somente a brincriações. Sendo Os parentes acreditaram que ela já chegara
ainda tão menina, contudo, um certo dia ela se ao mínimo mas, afinal, ainda continuava a re-
barrigou, carregada de outrem. Noutros termos: duzir-se. Até que ficou do tamanho de uma u-
ela se apresentou grávida. Nove meses depois se nha negra. A mãe, as primas, as tias a procu-
estreava a mãe. Sem ter idade para ser filha co- ravam, agulha em capinzal. Encontravam-na
mo podia desempenhar maternidades? em meio de um anónimo buraco e lhe deixavam
A criancinha nasceu, de simples escorre- cair uma gotícula de leite.
gão, tão minusculinha que era. A menina pesa- ― Não deite de mais que ainda ela se afoga!
va tão nada que a mãe se esquecia dela em to- Até que, um dia, a menina se extingiu, em
do o lado. Ficava em qualquer canto sem quei- idimensão. Sombrinha era incontemplável a
xa nem choro. vistas nuas. Choraram os familiares, sem con-
― Essa menina só pára quieta!, queixava-se formidade. Como iriam ficar as duas orfãzi-
Sombrinha. nhas, ainda na gengivação de leite? A mãe or-
Deram o nome à menininha: Maria Brisa. denou que se fosse ao quintal e se trouxesse o
Que ela nem vento lembrava, simples aragem. esquecido pai. O velho entrou sem entender o
Dona mãe ralhava, mas sem nunca fechar riso, motivo do chamamento. Mas, assim que passou
tudo em disposições. Até que certa vez repara- a porta, ele olhou o nada e chamou, em encan-
ram em Maria Brisa. Porque a barriguinha dela tado riso:
crescia, parecia uma lua em estação cheia. ― Sombrinha, que faz você nessa poeirinha?
Sombrinha ainda devaneou. Deveria ser um E depois pegou numa imperceptível luzinha
vazio mal digerido. Gases crescentes, arrotos e suspendeu-a no vazio dos braços. “Venha que
tontos. Mas depois, os seios lhe incharam. E eu vou cuidar de si”, murmurou enquanto re-
concluíram, em tremente arrepiação: a recém- gressava para o quintal da casa, nas traseiras
nascida estava grávida! E, de facto, nem tarda- da vida.
ram os nove meses. Maria Brisa dava à luz e [13] [16]
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CONTOS DO NASCER DA TERRA
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Mia Couto
― Me esclareça uma coisa, Felizminha: por- rou a lágrima destinada a condimentar o repas-
quê essa choradice, todos os dias? to.
― Eu só choro para dar mais sabor aos Aconteceu, porém, que não veio ninguém. O
meus cozinhados. lugar na mesa permaneceu vazio. Essa e todas
― Ainda eu tenho razões para tristezas, mas as outras vezes. Única mudança no cenário: o
você... assento que competia à invindável visita passa-
― Eu de onde vim tenho lembrança é de co- va da direita para a esquerda, esse lado em que
queiros, aquele marejar das folhas faz conta a não havia mundo para o sargento Correia.
gente está sempre rente ao mar. É só isso, patrão. Felizminha duvidava: essas que o patrão
A negra gorda falou enquanto rodava a convidava existiam, verídicas e autênticas?
tampa do rapé, ferrugentia. O patrão meteu a Até que, uma noite, o sargento chamou a
mão no bolso e retirou uma caixa nova. Mas ela cozinheira. Pediu-lhe que tomasse o lugar das
recusou aceitar. falhadas visitadoras. Felizminha hesitou. De-
― Gosto de coisa velha, dessa que apodrece. pois, vagarosa, deu um jeito para caber na ca-
― Mas você, minha velha, sempre triste. deira. [23]
Quer aumento no dinheiro? ― Decidi me ir embora.
― Dinheiro, meu patrão, é como lâmina... cor- Felizminha não disse nada. Esperou o que
ta dos dois lados. Quando contamos as notas se restava para ser dito.
rasga a nossa alma. A gente paga o quê com o ― E quero que você venha comigo.
dinheiro? A vida nos está cobrando não o papel ― Eu, patrão? Eu não saio da minha som-
mas a nós, próprios. A nota quando sai já a nos- bra.
sa vida foi. O senhor se encosta nas lembran- ― Vens e vês o mundo.
ças. Eu me amparo na tristeza para descansar. ― Mas ir lá fazer o quê, nessa terra...
A gorda cozinheira surpreendeu o patrão. ― Ninguém te vai fazer mal, eu prometo.
Lhe atirou, a queimar-lhe a roupa: Daí em diante, ela se preparou para a via-
― Tenho ideia para o senhor salvar o resto gem. Animada com a ideia de ver outros luga-
do seu tempo. res? Aterrada com a ideia de habitar terra estra-
― Já só tenho metade de vida, Felizminha. nha, lugar de brancos? Nem rosto nem palavra
― A vida não tem metades. É sempre intei- da cozinheira revelavam a substancia de sua
ra... alma. O sargento provava a refeição e não en-
Ela desenvolveu-se: o português que convi- contrava mudança. Sempre o mesmo sal, sem-
dasse uma senhora, [22] dessas para lhe acom- pre a mesma delicadeza de sabor. No dia acerta-
panhar. O sargento ainda tinha idade combi- do, o militar acotovelou a penumbra da cozinha:
nando bem com corpo. Até há essas da vida, ― Venha, faça as malas.
baratinhas, mulheres muito descartáveis. Saíram de casa e Felizminha cabisbaixou-
― Mas essas são pretas e eu com pretas... se ante o olhar da vizinhança. Então o sargen-
― Arranje uma branca, também há ai des- to, perante o público, deu-lhe a mão. Nem se
sas de comprar. Estou-lhe a insistir, patrão. O entrecabiam bem de tão gordinhas, os dedos
senhor entrou na vida por caminho de mulher. escondendo-se como sapinhos envergonhados.
Chame outra mulher para entrar de novo. ― Vamos, disse ele.
Correia e Correia semi-sorriu, pensageiro. Ela olhou os céus, receosa por, daí a um
Um dia o militar saiu e andou a tarde toda pouco, subir em avião celestial, atravessar
fora. Chegou a casa, eufórico, se encaminhou mundos e oceanos. Entrou na velha carrinha,
para a cozinha. E declarou com pomposidade: mas para seu espanto Correia não tomou a di-
― Felizminha: esta noite ponha mais um prato. recção do aeroporto. Seguiu por vielas, curvas e
A alma de Felizminha se enfeitou. Esmerou areias. Depois, parou num beco e perguntou:
na arrumação da sala, colocou uma cadeira do ― Para que lado fica essa terra dos coquei-
lado direito do sargento para que ele pudesse ros? [24]
apreciar por inteiro a visitante. Na cozinha apu- [19] [24]
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― Estou a ser preso, mamã, mas é só por
respeito dos mezungos.
A última chuva do prisioneiro ― Respeito dos brancos?
(Pensando no escritor nigeriano Ken-Saro-Wiwa.) ― Sim, mãe: é que eles, coitados, tiveram
tanto trabalho... é feio a gente deixar estas ca-
deias assim, sem ninguém.
Minha mãe acenava, com reserva. Ela en-
chia o nariz de rapé, aspirava aquilo como se a
narina fosse a boca da sua alma. Depois, espir-
rava, soltando distraídos demónios. E me avi-
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sava:
― Só eu tenho medo é do tempo...
― Que tem o tempo?
Lhe entrego dinheiro, prometo, tenho di- ― É que o tempo namora com ele próprio. Só
nheiro fora. Não duvide: são cifras, maquias e finge que gosta de nós...
quantidades. Tenho e tenho. E dou-lhe tudo, ― Não entendo, mamã.
totalmente. Mas me traga chuva, uma porção ― É que, na cadeia, o tempo gosta de passe-
de chuva boa, grossa e gorda. Estou doido? Por ar com modos de prostituta. Você que pensa que
causa de querer que chova aqui, dentro da pri- ainda não lhe deu nada mas já pagou a sua to-
são? Pode ser, pode ser loucura. Mas a loucura da vida.
é a única que gosta de mim. O senhor que é um ― Não se preocupa, mamã. Eu venho, volto e
inventador de realidades, me faça esse favor. regresso.
Me invente, rápido, uma urgente chuvinha. Ela deixava uma alegria espreitar na lágri-
Antigamente, valia a pena ser preso. O can- ma. Com as tais palavras eu lhe estava imitan-
tinho da prisão nem era mau, comparado com do quando ela, em minha pequeninice, me dava
o mundo que nos cabia, lá fora. Falo sério. instrução de regresso. Mais acontecia era
Maioria do que aprendi foi na prisão. Ler, es- quando chovia. Minha mãe me acorria, me sa-
crever: foi na prisão que me letrinhei. Minha cudia, me suspendia.
vida era uma roda-ronda entre roubo e grades. ― Começou a chuva, filho, corre lá para fora!
Me prendiam: era um consolo cheio de sossego. Era o contrário das restantes mães que
Lá fora ficava o mundo, mais suas doenças, chamavam seus meninos a recolher assim que
suas nauseabundâncias. tombavam as primeiras gotas. Fosse a que ho-
Agora, o calabouço é um lugar definhado, ra, mal chuviscava, ela me despertava, me des-
de não valer as penas. Esse mundo torto já pia e me empurrava para fora de casa. Minha
entrou na prisão. A cadeia se infernou, dá von- mãe acreditava que a chuva é água de lavar
tade só de escapar. Porque aqui dentro nos alma. Nunca ela deve ser desperdiçada. Disso
roubam mais que fora. Aqui somos roubados me lembro, a chuva tintilando, eu tiritando. E,
por polícia, roubados por ladrões. Já nem po- em minhas mãos, as folhas do kwangula ti o,
demos estar livres na cadeia. Neste lugar nem essa plantinha que nos protege dos trovões,
os mortos estão seguros. Já perdi escolha, dou- impedindo que o peito nos rebente. Me lembro
tor: a prisão me mata, a cidade não me deixa de suas encomendações:
viver. A feiura deste mundo já não tem dentro ― Vens, voltas e regressas. Ouviste?
nem fora. Nem sei quantas vezes entrei, voltei e re-
Lhe explico, nos tintins. Na minha língua gressei para o calabouço. Minha vida foi um
materna nem há palavra para dizer cadeia. Não ciclo de porta e tranca, céu e grade. Minha mãe
tínhamos nem ideia de cadeia. Foram os portu- morreu, durante esse entra-e-sai. Recebi notí-
gueses que trouxeram. Coitados, trouxeram cia na prisão, no meio de um domingo. Escutá-
cadeias de tão longe, até dava pena elas ficarem vamos o relato de um futebol. Os outros se
vazias. Eu explicava assim para minha mãe, mantiveram, cativos do rádio. Só eu despeguei
primeiras vezes que foi preso. cabeça, levantei os olhos para o carcereiro. Pedi
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Mia Couto
para sair. Não me autorizaram. Eu que fosse à ti. A única coisa que quero é chuva. Chover-me
capela da prisão, orasse ali por minha mãe. em cima de mim, molhar-me, charcoar-me.
Mas o chefe da cadeia, sendo branco, não me Eu nasci na arrecadação da paisagem, num
podia entender. Eles se despedem dos mortos lugar bem desmapeado do mundo. Tudo em
de modo diferente. Foi única vez que fugi da volta eram securas, poeiras e romoinhos. Chu-
cadeia, foi essa. Eu queria comparecer na ceri- va era sinal dos deuses, sua escassa e rara o-
mónia de minha velha. Lá no cemitério da famí- ferta. E quando me dispunha assim, todo eu
lia ainda me pingou uma tristeza. Falei assim: nu, todo inteiramente descalço, parecia que os
― Viu, mãe? Eu disse que voltava... divinos destinavam toda aquela água só para
E pelo pé de minha vontade retornei para a mim. Eu tenho essa única saudade. Que caia
prisão. Dentro e fora, já eu era conhecido de um muitão de chuva, até chover dentro de
todos, presos e guardas. Sou irmão legítimo dos mim, pingar-me os tectos da cabeça, me aguar
que não têm família. Eles sempre me dedicaram o coração e eu sentir que Deus me está lavando
amizades, autenticadas com provas. Me traziam das poeiras que a vida me sujou. E assim dilu-
revistas com fotografias de mulher branca. Eu viado, eu escute, entre o ruído das gotas nos
antes me divertia com uma dessas fotografias, o telhados, a voz de minha mãe me farolando:
corpo dessa mulher me era muito manual. Mas ― Você vem, volta...
me cansei de imaginadelas. Ultimamente o que E agora que estou falando, imagine, doutor,
fazia? Punha a fotografia dessa mulher em cima estou já sentindo em meus braços o doce roçar
do armário e lhe rezava. Faz conta era Nossa das folhinhas da planta que me protege do re-
Senhora dos Qualqueres. Eu ficava assim, joe- bentar do peito, logo hoje que é véspera de eu
lhado, com vontade de pedir, o pedido me vinha ser sentenciado no suspenso da corda. Como se
à boca mas eu engolia como se fosse só saliva. essa corda me conduzisse para onde minha
E fiz tanto isso que me esqueceu todos os pedi- mãe me espera, sentada na berma de um chu-
dos que eu queria comendar. visco. Como se esse nó de forca fosse o meu
Vendi a revista aos pedaços, 500 cada foto, cordão desumbilical.
1000 cada mama. Agora, deixei de pedir. Desis- Me invente uma última chuvinha, doutor...
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CONTOS DO NASCER DA TERRA
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Mia Couto
Um mês depois, Modari até dançava. Esbel- Modari sorriu: o seu amante receava que
ta, desenhada a osso e linha. Centenas de qui- ela morresse? Lhe apeteceu responder que, por
logramas se haviam evaporado, vertidos em causa do amor, ela estava vivendo, ao mesmo
calor e nada. Modari se ocupava em reduzir tempo, infinitas vidas. Para morrer, agora, seri-
saris, apertar vestidos, acrescentar furos no am precisas infinitas mortes. Em vez disso,
cinto. A família, no início, se contentou. Mas, perguntou:
com o tempo, deixaram de celebrar aquela mu- ― Não lembra que, antes, eu desejava ser
dança. Modari se escaveirava, magricelenta. flor? Pois, me responda: não lhe sou perfumosa?
Das duas nenhuma: ou ela estava doente ou Ele lhe pegou as mãos como que se colec-
amava em demasia. tasse coragem. E anunciou que, em sendo ou-
― Demasia? tro o sol, ele deveria seguir comprida viagem.
Modari rejeitou conselho. Que o amor é ― Amanhã, meu namorzinho.
como o mar: sendo infinito espera ainda em Modari se afastou, crepuscalada. Ficou as-
outra água se completar. Não abrando, gritou sim, ocultada, despresente. O homem pensou
ela. E foi falar com seu homem que complacen- que ela estivesse lagrimando. Súbito, porém,
tou: amar-se-iam sempre, mas ela que deixasse ela se voltou, operando risos. Agitando o con-
na cabeceira o controlo remoto. Pelo menos du- trolo remoto na mão, desafiou:
rante o enquanto. Entre risos e lábios, se entre- ― Venha apanhar este seu rival. Venha seu
laçaram. Pela primeira vez, nessa noite Modari ciumento!
sentiu o morder da ternura. O sabor do beijo Ele a tomou nos braços e a acarinhou, cedi-
resvala entre lábio e dente, entre vida e morte. do, sedento. Os que beijam são sempre prínci-
Lamina e veludo, qual dos dois no beijo a gente pes. No beijo todas são belas e adormecidas.
toca? Asfixiação boca a boca: isso é o beijo. Como que dormida, a indiana se rendeu. No fim,
No dia seguinte, Modari, minusculada, dis- o homem olhou surpreso os seus próprios bra-
pensava peso. Nunca se viu mulher em estado ços. Não havia nada, ninguém. Modari se extin-
de tal penúria de carne. A ponto de o seu a- guira. Seu corpo saíra da vida dela, o tempo se
mante ter medo: exilara de sua existência. A indiana se antiga-
― Não, Modari, não lhe devo tocar, seu corpo mentara. O homem ainda escutou, algures na
já não dá acesso ao amor. sala, tombar a caixinha do controlo remoto.
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CONTOS DO NASCER DA TERRA
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Mia Couto
― Senhora, vou dizer, a sua menina já morreu. ― Então, minha querida não escutou nada?
― Morta, a minha menina? Mas, assim...? Ela negou. A mãe percorreu o quarto, vas-
― Esta é sua maneira de estar morta. culhou recantos. Buscava uma pena, o sinal de
A senhora escutou, mãos juntas, na educa- um pássaro. Mas nada não encontrou. E assim,
ção do colo. Anuindo com o queixo, ia esbugo- ficou sendo, então e adiante.
lhando o médico. Todo seu corpo dizia sim, mas Cada vez mais fria, a moça brinca, se aque-
ela, dentro do seu centro, duvidava. Pode-se ce na torreira do sol. Quando acorda, manhã
morrer assim com tanta leveza, que nem se no- alta, encontra flores que a mãe depositou ao pé
ta a retirada da vida? E o médico, lhe ampa- da cama. Ao fim da tarde, as duas, mãe e filha,
rando, já na porta: passeiam pela praça e os velhos descobrem a
― Não se entristonhe, a morte é o fim sem fi- cabeça em sinal de respeito.
nalidade. E o caso se vai seguindo, estória sem histó-
A mãe regressou a casa e encontrou a filha ria. Uma única, silenciosa, sombra se instalou:
entoando danças, cantarolando canções que de noite, a mãe deixou de dormir. Horas a fio
nem existem. Se chegou a ela, tocou-lhe como se sua cabeça anda em serviço de escutar, a ver se
a miúda inexistisse. A sua pele não desprendia regressam as vozearias das aves.
calor. [45] [46]
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CONTOS DO NASCER DA TERRA
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Um dia chegou a Shiperapera uma veteri- pôr a esposa a par do estranho plano. Dona
nária do Ministério. Vinha inspeccionar o gado Esmeralda riscou no lábio superior a curva da
dos indígenas. Quando o casal soube da notícia dúvida. Mas que se fizesse, a bem da pequena.
decidiu ocultar a novidade da filha. Ela já an- E se benzeu.
dava tão alterada! O Pacheco foi à estrada, es- Nas noites seguintes, a veterinária aparecia
perar a compatriota. Levou cerimónias e pastéis com seu disfarce. Subia ao quarto de Meninita
de peixe-seco. Acompanhou a doutora a uma e lá se demorava. Dona Esmeralda, na sala,
casa de hóspedes que a administração em tem- chorava em surdina. Pacheco bebia, devagaro-
pos construíra. Já deitados, os Pachecos troca- so. Passadas horas a veterinária descia, ajei-
ram as esperadas más-línguas: tando no rosto uma inexistente madeixa.
― Porra, a gaja parece um homem! Fosse pela qual razão, a verdade é que Me-
E riram-se. Dona Esmeralda se satisfazia ninita arrebitava. A veterinária, dias depois, se
pela visitante ser tão pouco mulher. Não fosse o retirou, nuvem naquela estrada onde mesmo a
marido se devanear. Numa dessas noites, Me- poeira rareava. Meninita, na manhã seguinte,
ninita sofreu de um acesso grave. O casal, em desceu à loja, a velha revista na mão. Sentou-
desespero, decidiu chamar a médica veteriná- se no balcão e inquiriu a sombra do outro lado:
ria. O pai acorreu à casa de hóspedes e urgiu ― Qué quer?
comparência à veterinária. No caminho, lhe Massoco riu-se, abanando a cabeça. E a vi-
explicou a condição da filha. da se retomou, em novelo que procura o fio. Até
Chegados à cantina, dirigem-se em silêncio que um dia, Dona Esmeralda despertou o ma-
profissional para os aposentos da perturbada rido, sacudindo-o:
jovem. Em delírio, a menina confunde a veteri- ― Nossa filha está grávida, Manuel!
nária com um homem. Atira-se-lhe aos braços, Choveram insultos, improperiou-se. Os vi-
beijando-lhe os lábios com sofreguidão. Os pais dros das janelas se estilhaçaram, tais as raivas
se embaraçam e acorrem a separar. A veteriná- do Pacheco: eu mato o cabrão da doutora! A
ria recompõe-se, ajeitando imaginários cabelos mulher implorou: agora, sim, era assunto de ir
sobre a face. Meninita com sorriso sonhador à vila. O marido que quebrasse seu juramento e
parece agora ter adormecido. superasse as montanhas de volta ao mundo.
Pacheco volta a acompanhar a visitante. De noite, o casal se fez à viagem, recomendan-
Vão calados, todo o tempo da viagem. Na des- do à filha mil cuidados e outras tantas trancas.
pedida, a veterinária, rompendo o silêncio, ex- E sumiram-se no escuro.
põe o seu plano: Na janela, Meninita ainda espreitou a poei-
― Eu vou fazer de homem. Me disfarço. ra da estrada iluminada pela lua. Subiu ao
Pacheco não sabia o que dizer. A veterinária quarto, abriu a revista das velhas fotos. Venci-
se explica: o cantineiro lhe emprestaria roupas da pelo sono se ajeitou no colchão em rodilha
velhas e ela se apresentaria, disfarçada de na- de lençóis. Antes de adormecer, apertou a mão
morado caído dos céus. O português acenou negra que despontava no branco das roupas.
maquinalmente e voltou a casa apressado em [49] [54]
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CONTOS DO NASCER DA TERRA
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sobre o rosto dela a ver se entendia palavra. E discutiram. Que parte, que músculo, que
Mas nada. A namorada se inexplicava. osso era de cada um? Os ânimos esquentaram
― Quê? Você se entrega com ele? a pontos de pancadarias. Passados minutos, os
Ela adensou o choro. Irrisório pareceu que- dois acabaram cheios de hematombos, todos
rer despertar. traupartidos. Amarrados um no outro, os ir-
― Dorme, pá! mãos não se podiam desviar, nem furtar aos
Osório punha e contrapunha. Como Mari- socos e pontapés. E adormeceram, de cansaço,
neusa não desse acordo com as falas ele exigiu: uma mão segurando a outra, por precaução.
― Mostre-me uma lágrima! Manhã cedo, recomeçaram a briga. Um pu-
Ela hesitou. O homem gritou e Marineusa xava o outro para o hospital. O outro gritava
ainda recusou. Mas ele ameaçou e ela acedeu, que não, que nunca, que nem que ele passasse
gota tremeluzindo no estremecente dedo. Osó- por cima do cadáver dos dois. E mais socos,
rio espreitou mas virou o rosto, fulminado pela chutapés. A mãe gritava pelos vizinhos, ai que
visão do irmão bailando na película da lágrima. meus filhos se matam, um mais o outro! O pai
Com voz rouca, fechou o momento: avançou, peito arrojado:
― Você, nunca mais me compareça! ― Deixem que eu separo-os!
Mas ela, passadas três semanas, voltou a Rápido, corrigiu o verbo. Quer dizer, sepa-
aparecer. Abriu a porta e ficou ali parada, olhos ro-os parcialmente, isto é, separo aquela par-
térreos. O coração de Osório trepidou, ansioso. A te de lá. Enquanto acertava a frase, o pai se
moça correu em direcção a ele. Osório levantou deixou ficar em debate com os múltiplos vizi-
seu único autónomo braço, pronto a sanar e nhos.
perdoar. O amoroso volta sempre ao local do No meio da balbúrdia, eis que aparece Ma-
amor? Mas eis que Marineusa se enviesa e se rineusa. Fez-se um silêncio, abriu-se passagem
atira no braço de Irrisório. E os dois se beijaram, entre a multidão. Avançou até aos gémeos e
as bocas emigraram deles e molharam o mundo levantou a mão solicitando um tempo. Sem que
em volta. E se trocaram em ternuras e suspiros. se percebesse razão, ela desatou a chorar. Re-
Osório descabia em si. Virou o rosto e ferveu colheu as lágrimas na concha da mão e cha-
sem água, vinagrada a vista, salgado o sangue. mou os irmãos para que espreitassem. Então,
Nessa mesma noite, os dois irmãos, sozi- eles viram um cordão de gotas líquidas, entreli-
nhos, descascavam o silêncio. Osório quebrou o gadas como um colar. Eram lágrimas siamesas.
frio: E em cada gota, alternadamente, surgia o rosto
― Amanhã, vou-me separar de você. de Osório e de Irrisório. Ela tomou aquele longo
― Vai cortar o braço? rosário de gotas e o enlaçou em redor dos dois
― Sim, vamos directinhos no Hospital. manos. Beijou-os na face, levantou-se e saiu
― Esse braço é mais meu, não se corta. entre alas de muito espanto.
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CONTOS DO NASCER DA TERRA
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Mia Couto
simples, disse que o menino estava que até Deus E recolheu a dádiva, se deleitando com esse
se haveria de espantar. Que ela precisava ficar consolo. Ficou experimentando a ausência de
ainda uns tempos assim, no choco, na quentea- peso daquele volume. Tão leve era o objecto que
ção do ninho para dar despacho ao crescer da não havia força que o suportasse. O embrulho
vida. lhe tombou das mãos e se espalmilhou na arei-
Nessa primeira semana, ele ficou no quin- a. Foi quando, de dentro dos panos, se soltou
tal, em estado de nervos. É que não escutava um pássaro, muito verdadeiro. Levantou voo,
nem chorinho, assobio de fome do menino. E se desajeitoso, aos encontrões com nada.
passavam semanas, lentas e oleosas. O homem ficou a ver as asas se longeando,
― Lhe peço, mulher. Me deixe ao menos ver o voadeiras. Depois, ergueu-se e se arremessou
menino nosso. contra a parede da casa. Tombaram paus, de-
Ela então fez sair as mãos em concha pelo sabaram matopes, despertaram poeiras. Aga-
pequeno buraco. Só se via o enxovalhado enxo- chada num canto estava a mulher, de ventre
val. liso. Junto dela a capulana ainda guardava
― Segure aqui, Mando. Cuidado. sangues. Areias revolvidas mostravam que ela
Ele, embevecido, aceitou o embrulho das já escavara o chão, encerrando a cerimónia. Ele
roupas. se ajoelhou e acariciou a terra.
― Posso espreitar, ao menos? [69] [70]
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nas menininhas gritar. Alguém lhes bate. O
velho, impotente, se afunda entre os braços,
Velho com jardim interdito aos pedidos de socorro enquanto pede
nas traseiras do tempo contas a Deus.
― Deus está bom de mais, já não castiga
ninguém.
Vlademiro foi ganhando familiaridades com o
todo-potente. Me admira esse tu-cá-tu-lá com o
divino. Vlademiro já foi um beato, todo e total-
[77] [78] mente. Mas o velho tem explicação: à medida
que envelhecemos vamos entrando em intimida-
des com o sagrado. É que vamos abatendo no
No Jardim Dona Berta há um banco. O ú- medo. Quanto mais sabemos menos cremos? Ele
nico que resta. Os outros foram arrancados, não sabe, nem crê. Às vezes até se pergunta:
vertidos em tábua avulsa para finalidades de ― Deus ficou ateu?
lenha. Nesse restante banco mora um velho. Será que o velho vive isento de medos? As-
Cada noite, os dois se encostam mutuamente, sim, sozinho, sem morada própria. Ele me con-
assento e homem, madeira e carne. Dizem que testa, neste ponto:
o velho já tem a pele às listas, formatadas no ― Morada própria? Alguém tem morada mais
molde das tábuas, seu externo esqueleto. O própria?
idoso recebeu um nome: Vlademiro. Ganhou o Às vezes, doente, sente a morte rondar o
nome da avenida que ali passa, rasando-lhe a jardim. Mas Vlademiro sabe de truques, troca
solidão: a Vladimir Lenine. as voltas àquela que o vem levar. Mesmo ba-
Soube hoje que vão retirar o banco para ali tendo o dente, febrilhante, ele canta, voz trému-
instalar um edifício bancário. A notícia me de- la, faz conta que é mulher. As mulheres, diz,
sabou: o jardinzinho era o último mundo do demoram mais para morrer.
meu amigo, seu derradeiro refúgio. Decidi visi- ― A morte gosta muito de ouvir cantar. Se
tar Vlademiro, em missão de coração. distrai de mim e dança.
― Triste? Quem disse? E assim em jogo de desagarra-esconde. Até
Espanto meu: o homem estava eufórico que, um dia, a morte se adiante e cante primei-
com a notícia. Que um banco, desses das fi- ro. Mas ela terá que insistir para o de aninhar.
nanças, todo estabelecimentado, era um valor Vlademiro está bem acolchoado no banco. E
maior. Já lhe haviam dito da sua dimensão, clama que ainda não tem idade. Velhos são a-
dava bem para ele dormir mais seu bicho de queles que não visitam as suas próprias varia-
estimação. E mesmo quem sabe ele encontras- das idades.
se emprego lá? Nem que fosse nos canteiros em No enquanto, Vlademiro vai dormindo leve
volta. Afinal, ele transitava de seu banco de e pouco. Despertador dele é um sapo. Dorme
jardim para um jardim de banco. com o batráquio amarrado pela perna. E adian-
― Ando de banco para Banco. ta, sério: o bicho é amarrado apenas para im-
Risada triste, descolorida. Não tardaria a pedimento de voagem.
escurecer. Quando baixasse a noite, Vlademiro ― Sapo não voa porque deixou entrar água
se atafundaria em bebida, restos deixados em no coração.
garrafas. Já bêbado ele atravessaria a noite, a Agora, tudo vai terminar. Vão demolir o
modos de caranguejo. Do outro lado da avenida jardinzinho, a cidade vai ficar mais urbana,
estão as putas. As prostiputas, como ele cha- menos humana. Esse é o motivo da minha visi-
ma. Conhece-as a todas pelos nomes. Quando ta ao velho. Regresso ao que ali me levou:
não têm clientes, elas se adentram pelo jardim ― Diga-me, sobre isto do banco: você está
e sentam junto dele. Vlademiro lhes conta suas mesmo contente?
aldrabices e elas tomam a baboseira dele por Vlademiro demora. Está procurando a me-
cantos de embalar. Às vezes, escuta as noctur- lhor das verdades. O riso esvanece no rosto.
21
Mia Couto
― Tem razão. Esta minha alegria é mentira. De noite, quando ela dormia é que ele chorava,
― Porquê, então, você faz de conta? desamparado, doido-doído.
― Nunca eu lhe falei de minha falecida? ― É como agora: só choro quando o jardim já
Acenei que não. O velho me conta a história dormiu...
de sua mulher que morreu, em lentidão de so- Meu braço fala sobre o seu ombro. É adeus.
frimento. Doença pastosa, carcomedora. Ele Regresso de mim para um abandono maior.
todo o dia se empalhaçava frente a ela, fazia Atrás, fica Vlademiro, a avenida e um jardim
graças para espantar desgraças. A mulher ria, onde resta um banco. O último banco de jar-
quem sabe com pena da bondade do homem. dim.
[79] [82]
22
CONTOS DO NASCER DA TERRA
23
Mia Couto
lamento, deixou de espremer o mata-borrão xe o homem, fuja disso. E foi desenrolando sa-
sobre os escritos de sua lavra. Saudades de um bedorias: quantos lados tem a terra para o ca-
tempo em que o mundo era dócil, autenticável maleão? Os mortos sabe-se lá para quem estão
em 25 linhas? olhando? O outro mundo é muitíssimo infinito:
Mas mesmo em suas inatitudes ele manti- não há falecido que não seja da nossa família.
nha aprumo. Terças-feiras era dia de bebedeira, E o miúdo regressou decidido a nunca mais
sua única combinação com o tempo. Ia para o se prestar a aparições. Terça-feira chegou e o
bar, transitava lentamente para dentro do copo, patrão, nessa noite, não saiu a rondar os bares.
espumava as agonias. Chegava tarde a casa, Parecia abatido, doente. Ficou deitado no sofá
desalinhado mas sempre cuidando do fato bran- da sala, olhando para muito nada. Chamou o
co. Se postava no canapé, acendia o cigarro ― empregadito e lhe pediu que se transvestisse de
que diria a falecida? ― e puxava o cinzeiro de pé Vitória. O miúdo nem respondeu. Surpreso,
alto, passando as mãos pelo ébano torneado. Jesuzinho ficou a papagaiar baixinho. E se
Trançava ainda o cabelo de Vitória? Depois, fa- passaram momentos. Até que o jovem serviçal
zia estalar a unha nas unhas e chamava: percebeu que o patrão chorava. Se debruçou
― Piquinino: ande dissepertar gravata. sobre ele e viu que ladainhava o mesmo de
O empregado acorria a lhe aliviar a gargan- sempre:
ta. Lhe despescoçava a camisa e entornava uns ― Vitorinha!
pós-de-talco sobre a camisola interior. Desfeito O empregado ficou estático. O patrão que
o nó e já ele estava disposto ao sono. Serviço do implorasse que ele não avançaria um pé. O ca-
moço era ficar vigiando o descanso do patrão. neco, afinal, estava bêbado. O hálito não deixa-
Aqueles sonos eram sobressalteados. Pas- va dúvidas. Mas como, se não lhe vira a beber?
sava uma frestinha de tempo e o caneco gritava Tivesse ou não emborcado, o certo é que ele
pela falecida. Sua mão trémula apanhava o te- transbordava babas e suspiros. Estava nesse
lefone, ligava para os céus. Era então que es- devaneio quando murmurou as mais estranhas
treava a mais nobre função de Piquinino: fingir- palavras: queria encontrar a esposa já devida-
se dela, imitar voz e suspiros da extinta. mente desunhado. Entregando o braço no colo
― Vucê qui está pagar chamada, Vitorinha. do empregado, implorou:
Aí, no céu, tudo sai mais barato. ― Me corte a unha, Piquinino!
O empregadito se esforçava em aflautinar a No dia seguinte, encontraram o empregado,
voz, copiando os esganiços de Vitorinha. Aca- imóvel junto à poltrona do patrão. O que o mo-
badas as conversas, o empregado copiava os ço falou foi para ninguém deitar crédito. O se-
modos da antiga senhora e brilhantinava os guinte: mal começou a cortar o rente da unha,
cabelos do patrão, acertando a risca em diago- o patrão se desvaneceu, como fumo de incenso.
nal no cabelo. E a unha está onde, pá? O miúdo debruçou-se
Todavia e à medida do tempo, o moço se foi sobre o soalho e levantou o que, por instante,
tomando de terrores. Ele se interrogava: imitar pareceu ser uma desflorida pétala. Sorriu, lem-
mortos? Brincar assim com espíritos só podia brando o patrão. E exibiu a derradeira extremi-
trazer castigo. Foi consultar o pai, pedir vanta- dade da sua humanidade.
gem de um conselho. O velhote concordou: dei- [85] [90]
24
CONTOS DO NASCER DA TERRA
25
Mia Couto
cobrindo os pés dele, as pernas de sua filha? E ― Filha, venha para trás. Se atrase, filha,
ele, em desespero: por favor...
― Agora, é que nunca. Ao invés de recuar a menina se adentrou
A menina, nesse repente, se ergueu e avan- mais no mar. Depois, parou e passou a mão
çou por dentro das ondas. O pai a seguiu, te- pela água. A ferida líquida se fechou, instantâ-
medroso. Viu a filha apontar o mar. Então ele nea. E o mar se refez, um. A menina voltou a-
vislumbrou, em toda extensão do oceano, uma trás, pegou na mão do pai e o conduziu de ru-
fenda profunda. O pai se espantou com aquela mo a casa. No cimo, a lua se recompunha.
inesperada fractura, espelho fantástico da his- ― Viu, pai? Eu acabei a sua história!
tória que ele acabara de inventar. Um medo E os dois, iluaminados, se extinguiram no
fundo lhe estranhou as entranhas. Seria na- quarto de onde nunca haviam saído.
quele abismo que eles ambos se escoariam? [95] [96]
26
CONTOS DO NASCER DA TERRA
― Duas quê?
― Duas pernas, ora essa.
O derradeiro eclipse E prosseguiu divaguando, água em líquidos
carreiros. Justinho esperava que o sacerdote o
tranquilizasse. Lhe dissesse, por exemplo: vai
em paz, você está bem casado, mais anelado
que Saturno. Mas não, o padre ondulava a tes-
ta de suposições.
― Não sei, não. Quem mais espreita não é o
[97] [98] próprio sol?
― Explique-se melhor, senhor padre.
― Quer que seja mais claro? Me responda,
Justinho Salomão era ratazanado pela dú- então: onde o chão está mais limpo não é em
vida sem método. O homem sofria de ser mari- casa de mortos?
do, lhe pesavam as frias sombras da desconfi- Justinho não respondeu. Voltou costas e
ança. A mulher, Dona Acera, é linda de fazer saiu da igreja. Ainda se afastava e a voz irada
crescer bocas, águas e noites. Devorado pelo do padre se faz ouvir:
ciúme, Justinho emagrecia a pontos de tutano. ― Já sei para onde vais, criaturazita. Vais
Lastimagro, cancromido, ele para se enxergar ter com o feiticeiro! Mas verás o que os meus
precisava procurar-se por todo o espelho. Jus- poderes, aliás os poderes divinos, irão fazer com
tinho fazia comichão às pulgas. Um dia, o pa- esse bruxo tropical!
dre o avisou à saída da missa: Um arrepio ainda atravessou Justinho. Mas
― Seja prestável na atenção, Justinho: sua ele não toldou passo no caminho para o feiticei-
alma é como um fumo que não tem lugar onde ro e pediu que lhe assegurasse. Heresia bater
caiba. nos ambos lados da porta? Se um mortal tem
Raios picassem o padre que nunca falava mais que um deus-pai não pode ter mais que
direito. O que o sacerdote sabia era do domínio uma crença?
incomum: Acera era demasiado mulher para ― Isso não posso. Vontade de mulher está
esposa. Justinho suspeitava mais dos argu- acima dos meus poderes. Posso, sim, destinar
mentos que dos factos. Seria a esposa mais castigo nos abusadores.
desleal que um segredo? A resposta era sombra ― E como?
sem luz nem objecto. Em véspera de viagem, a ― Hei-de tratar sua casa.
suspeição do marido se agravava. Desta vez, E foi executado o tratamento: uma pequena
um longo serviço de visitações o vai obrigar a cabaça à entrada da residência de madeira e
geográfica ausência. Acera recebe, tristonha, a zinco. Desrespeitoso que entrasse haveria de
notícia: sofrer muitas consequências. O marido ainda
― Quanto tempo você me vai sozinhar? tem acanhamento na consciência:
Um mês. A mulher contorce o bóton, abana ― Eles... eles irão morrer?
as mechas. Até uma lágrima lhe crocodileja a O feiticeiro ri-se. O que iria suceder eram
pálpebra. O marido ainda mais se aflige perante inchaços e gases, tudo inflando as entranhas
tanto inconsolo. Será verdade ou conveniência do culposo intrometedor. No final dos serviços e
de fingimento? Quem, tão novo, guelra tão en- depois de saldadas as contas, o feiticeiro hesita
sanguentada, pode se aguentar em guardos de no momento da despedida:
fidelidade? Na véspera de partir, o marido se ― Você, antes de mim, consultou o senhor
decidiu certificar em garantia de lealdade. Pri- padre? E ele o que disse de mim?
meiro se dirigiu à Igreja e solicitou socorro do Justinho subiu as omoplatas, fosse um as-
padre português. O religioso torce as mãos, re- sunto superior a suas competências. O feiticei-
ticente e, como era hábito, barateou filosofia: ro virou costas e se afasta, enquanto comenta:
― Bem, não sei. Para cruzar as pernas é ― Esse padre ainda vai chorar como a gali-
preciso que haja duas... nha. Conhece a história da galinha que comeu o
27
Mia Couto
colar das miçangas só para a outra galinha não o seguir, doente que estava o viajante. Dava até
usar? azar ter um desvairado daqueles no lugar.
Passaram-se dias e Justinho lá partiu. A Mesmo o enfermeiro reformado lhe trouxe uns
viagem demora mais que ele pretende. Quando comprimidos de arrefecer o sangue. Justinho
regressa, a mulher está à espera dele, à entra- aceitou ficar estendido, a apurar descansos.
da. Vestido do gosto dele, penteada a presente, Dava forma à cabeça, ajustava o pensamento à
corpo todo na conveniência do marido. Até o existência.
botão cimeiro está desempregado, distraído so- E todos e tanto insistiram que ele deixou de
bre o decote. Acera, toda ela, está às ordens da ver gente suspensa no tecto. Aos poucos se li-
saudade dele. Se engalfinham, enredando per- bertou das visões, manufacturas de suas ciu-
nas nos suspiros, confundindo lábios e suores, meiras. Noites há em que, de sobressalto, se
vidas e corpos. levanta. Escuta risos. O padre e o feiticeiro se
Cumpridos os compridos amores Justinho divertem à sua custa? Escuta melhor: não é
se estira na cama, consolado. Fecha os olhos, gargalhada, é um pranto, um pedido de socor-
menino após o seio. Depois, olha para cima e é ro. Incapazes de descer, os homens aprisiona-
fulminado por uma visão: dois homens flutuam dos no tecto lhe pedem uma aguinha, migalha
de encontro ao tecto. Estão redondos, insufla- de entreter fome e sede. Os pobres já são só ar
dos como balões. e osso.
― Mulher quem é aquilo? A voz de Acera o traz à realidade: venha
― Que aquilo? marido, se deite. Se acalme. Não quer dormir
Levanta-se em gesto de lâmina e se espanta comigo? Durma em mim, então. Não me quer
ainda mais ao reconhecer os desditosos ditos. E atravessar? Me use de travesseiro. Isso, des-
quem eram? O padre e o feiticeiro. Esses mes- canse, meu amor. E o tempo passava, compon-
mos a que Justinho confiara a guarda de sua do semana e mais semana. Justinho não me-
esposa. Esses mesmos estavam ali persprega- lhora. Mais e mais escuta as lamentações dos
dos no tecto. dois que agonizam dentro das suas paredes.
― Vocês, logo vocês? Até que, uma noite, ele acordou estremu-
― Marido, está falar com quem? nhado. Não eram já os gemidos dos moribun-
Gaguejadiço o marido aponta o tecto. A mu- dos mas uma estrangeira acalmia. Olhou por
lher acredita que ele está em ataque de religio- entre o escuro e viu Acera vagueando, o pé pe-
sidade, aspirando proximidades com o céu. dindo licença ao silêncio. O marido nem se me-
Justinho insanou-se, epiléctrico? xeu, desejoso de decifrar a misteriosa deambu-
Acera ainda correu atrás do tresloucado lação da mulher. Então ele viu que Acera subia
marido. Mas o homem, de venta peluda, se e- para um banco e, com um cordel, amarrava o
clipsou pelo escuro. Nem demorou: voltou com padre e o feiticeiro pela cintura. E assim, ata-
testemunhas. Fez introduzir uns tantos no dos como balões, ela os transportou para fora
quarto e apontou os autores do flagrante. Os de casa. No quintal, Acera limpou no rosto do
outros ficaram, parvos da cara, sem nada vis- padre uma lágrima e beijou a face do feiticeiro.
lumbrarem. Só Justinho via os voáveis amantes Depois, largou os cordéis e os dois insufláveis
de sua mulher. E lhe explicam o padre e o feiti- começaram a subir pelos ares, atravessando
ceiro não são possíveis ali. Eles se ausentaram nuvens e extinguindo-se no céu e nas pupilas
em breve excursão à cidade. Todos os viram espantadas de Justinho Salomão.
partir, todos lhes acenaram à saída do ma- Nessa noite, os habitantes da vila assisti-
chimbombo. ram à lua se obscurecer naquilo que viria a ser
Os vizinhos lhe asseguram os bons compor- um derradeiro e permanente eclipse.
tamentos de Acera. Despedem-se, cuidando de [103] [104]
28
CONTOS DO NASCER DA TERRA
29
Mia Couto
nhar. Porque de humano lhe restavam apenas ― Não aplauda, Clementina, por amor de
os pés, esses mesmos que ele cobrira de orna- Deus!
mento serpentífero. [109] [110]
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CONTOS DO NASCER DA TERRA
31
Mia Couto
tanto tempo eu perdera critério e até uma negra como se subisse por uma fresta de luminosida-
me porventurava? Me admirava a secura da- de. Aquela luz fugidia me pareceu, primeiro, o
quela pele, o gesto cheio de sossegos, educado pleno dia.
para maternidades. Enquanto rodava pelo meu Mas depois senti o fumo dessa ilusão. O ca-
leito eu tocava em seu corpo. Nunca acariciara lor me confirmou: estava frente a uma fogueira.
tais carnes: polposas mas duras, sem réstia de O calor da cozinha da minha infância me che-
nenhum excesso. gou. Escutei o roçar de longas saias, mulheres
Os dias passavam, as maleitas se sucedi- mexendo em panelas. Saí da lembrança, dei
am. Até que, numa tarde, me assaltou um vazio conta de mim: estava nu, completamente des-
como se não houvesse mundo. Ali estava eu, na pido, deitado em plena areia.
despedida de ninguém. Olhei a janela: um pás- ― Custódia!, chamei.
saro, pousado no parapeito, recortava o poente. Mas ela não estava. Somente dois homens
Foi nesse pôr do Sol que Custódia, a enfermei- negros baixavam os olhos em mim. Me deu ver-
ra, se aproximou. Senti seus passos, eram pas- gonha ver-me assim, descascado, alma e corpo
sadas delicadas, de quem sabe do chão por an- despejados no chão. Malditos pretos, se prepa-
dar sempre descalço. ravam para me degolar? Um deles tinha uma
― Eu tenho um remédio, disse Custódia. É lamina. Vi como se agachava, o brilho da lami-
um medicamento que usamos na nossa raça. O na me sacudiu. Gritei: aquela era a minha voz?
Senhor Fernandes quer ser tratado dessa ma- Me queriam matar, eu estava ali entregue às
neira? puras selvajarias, candidato a ser esquartejado,
― Quero. sem dó na piedade. Me desisti, desvalente, des-
― Então, hoje de noite lhe venho buscar. valido. De nada lucrava recusar os intentos do
E saiu, se apagando na penumbra do cor- negro. O homem cortou-me, sim. Mas não pas-
redor. Como em caixilho de sombra a sua figu- sou de uma pequena incisão no peito. Sangrei,
ra se afastava, imóvel como um retrato. Na ja- fiquei a ver o sangue escorrer, lento como um
nela, o pássaro deixou de se poder ver. Ador- rio receoso.
meci, doído das costas, a doença já tinha apri- Um dos homens falou em língua que eu
sionado todo meu corpo. Acordei com um so- desconhecia, seus modos eram de ensonar a
bressalto. Custódia me vestia uma bata branca, noite, a voz parecia a mão de Custódia quando
bastante hospitalar. ela me empurrava para o sonho. Voltei a deitar-
― Onde vamos? me. Só então reparei que havia uma lata con-
― Vamos. tendo um líquido amarelado. Com esse líquido
E fui, sem mais pergunta, tropeçando pelo me pintavam, em besuntação danada. Depois,
corredor. Dali parei a tomar fôlego e, encostado me ajeitaram o pescoço para me fazerem beber
na umbreira da porta, olhei o leito onde lutara um amargo licor. Choravam, pareceu-me de iní-
contra a morte. De repente, estranhas visões cio. Mas não: cantavam em surdina. Dores de
me sobressaltaram: deitado, embrulhado nos morrer me puxavam as vísceras. Vomitei, vomi-
lençóis, estava eu, desorbitado. Meus olhos es- tei tanto que parecia estar-me a atirar fora de
tavam sendo comidos pelo mesmo pássaro que mim, me desfazendo em babas e azedos. Cansa-
atravessara o poente. Gritei Custódia, quem do, sem fôlego nem para arfar, me apaguei.
está na minha cama? Ela espreitou e riu-se: No outro dia, acordei, sem estremunhações.
― É das febres, ninguém está lá. Estava de novo no hospital, vestido de meu re-
Fui saindo, torteando o passo. Afastámo- gulamentar pijama. Qualquer coisa acontecera?
nos do hospital, entramos pelos trilhos campes- Eu tinha saído em deambulação de magias, ri-
tres. Naquele tempo, as palhotas dos negros tuais africanos? Nada parecia. Verdade era que
ficavam longe das povoações. Caminhava em eu me sentia bem, pela primeira vez me chega-
pleno despenhadeiro, o pequeno trilho resvala- vam as forças. Me levantei como uma toupeira
va as infernais e desluzidas profundezas. Me saída da pesada tampa do escuro. Primeira coi-
perdi das vistas, mais tombado que amparado sa: fui à janela. A luz me cegou. Podia haver tan-
nesse doce corpo de Custódia. Voltei a acordar tas cores, assim tão vivas e quentes?
32
CONTOS DO NASCER DA TERRA
Foi então que eu vi as árvores, enormes procurar a minha família. É que sabe: eu só
sentinelas da terra. Nesse momento aprendi a posso sair daqui pela mão deles. Senão, que
espreitar as árvores. São os únicos monumen- lugar terei lá no mundo? Traga-me um qual-
tos em África, os testemunhos da antiguidade. quer parente. Quem sabe, depois disso, fica-
Me diga uma coisa: lá fora ainda existem? Per- mos mesmo amigos. Você sabe como eu con-
gunto sobre as árvores. firmo que estou ficando velho? É da maneira
Quer saber mais? Agora estou cansado. que não faço mais amigos. Aqueles de que me
Tenho que respirar muito. Há tanto tempo que lembro são os que eu fiz quando era novo. A
eu não falava assim, às horas de tempo. Não idade nos vai minguando, já não fazemos no-
vá ainda, espere. Vamos fazer uma combina- vas amizades. Da próxima vez venha com um
ção: você divulga estas minhas palavras lá no parente. Ou faça mesmo o senhor de conta que
jornal de Portugal ― como é que se chama é meu familiar.
mesmo o tal jornal? ― e depois me ajuda a [119] [120]
33
Mia Couto
34
mulheres nos encanta a concha, noutras o
mar. Sarifa se tinha desmulherado, ela retirara
O indiano dos ovos de ouro o gosto do gesto. Agora, nem concha, nem mar.
Lhe peço, enfim, que fale de Abdalah. Ago-
ra, até seus olhos se vazam, negras espirais se
enrolando em búzios. Mas a lembrança lá veio,
chegada em vozícula quase insonora. Afinal, o
namoro correra às maravilhas. O amor é como
a vida: começa antes de ter iniciado. Mas o que
[127] [128] é bom tem pressa de terminar. Sombra eterna
só dentro do caracol. A moça era conflituosa,
uma escaramoça? Nem por isso, ela tinha
― Lá vem Abdalah, o monhé da Muchatazi- grandes habilidades de silêncio. O nó gordo
na. estava nele, o Abdalah.
Sabia-se que era ele, o próprio, pelo tilintar ― Mas porquê, Sarifa? Qual o motivo dele se
que saía do cuecão dele. Diziam que o gajo ti- desmotivar?
nha ouro dentro dos tomates. Me desculpem a Ela corrigiu uma lágrima no convexo da
descortesia da palavra. Dizem, quem pode ju- mão. O indiano batia-lhe? Lombava-a? Não,
rar? Os boatos viajam à velocidade do escuro. pelo menos não aparentava violências. Homem
Façamos o gosto à voz: aceitemos que o monho que morde não ladra? O senhor é capaz de en-
tinha a tomatada recheada. Suponhamos que costar sofrimento em mulher?
os ditos dele pesavam uns quilates. Se acredito, ― Vou perguntar de novos modos: o senhor
eu? Sei lá. Minha crença é um pássaro. Sou já amou uma mulher, com paixão de verdade e
crente só em chuva que cai e esvai sem deixar jura?
prova. Não me saiu nenhuma voz. Eu vinha ali
Aceitei assim perseguir essa estória do Ab- despachar pergunta. Posto perante o espelho de
dalah. Sou metido em alheiação, gosto do dito e uma interrogação me sentia como o lagarto que
do não dito. Me deram o caso para que lhe des- acha que os outros bichos é que são animais.
vendasse os acasos. Cada crime mortífero es- Já à saída ainda escutei:
conde quantas vidas? ― Foi tudo por causa do dinheiro.
Sempre que há sangue as versões correm, Desfiz um passo atrás. Mas ela não voltou a
em inventanias. O povo fabricou as mais múlti- falar. Lavava as chávenas com espantável lenti-
plas explicações. O monhé, sabendo da revolu- dão. Suas mãos acariciavam o vidro por onde
ção, tinha transferido sua riqueza para os ór- eu havia bebido. Senti como se ela me tocasse
gãos. Melhor banco que aquele? Outra versão: os lábios e me retirei nesse embalo de ilusão.
tinha sido feitiço. Suspeitas maiores inclinavam Me dirigi para casa, sem vontade de cami-
em Sarifa Daúdo. Ela, com certeza. Mulher es- nho. Demorei em coisas nenhumas.
tranha, fechada em duas paredes, ela era ori- Nisto, uma estrelícia, simples flor, me de-
gem da desformidade do indiano. flagra os olhos. O vendedor me cativa a aten-
Me aconselharam começar por Sarifa, com ção, agitando a crista laranja da flor. Comprar?
quem o fulano tinha estreado amores. Sarifa Para quê, para quem? Mas, sem saber, inexpli-
era sua primeira prima, a quem ele deitou olho cável, eu desbolso dinheiros. As mãos se ridicu-
de mel. Dizem que primeiro namorisco vem larizam com a intransitiva flor. Chego a casa e
sempre de primo e prima. Também eu rimei a flor se extravaganta ainda mais. Nunca eu
com elas, também as primas me deram prima- tinha encenado flor em jarra.
zias. Sentado, frente a uma cerveja deixo entrar
Me endereço a casa da moça. Continua sol- em mim a voz: preciso é de mulher. Necessito
teira, é uma dor ver tal beleza sem prova nem de um acontecimento de nascência, uma luci-
proveito. Acompanho seus magros gestos, ser- nação. Careço de um lugar para esperar, sem
vindo o chá com que me anfitriou. Em certas tempo, sem mim. Devia haver um feminino pa-
35
Mia Couto
ra ombro. Porque ombra era o nome único que bre os dinheiros. O indiano bateu, rebateu. Sa-
merecia o encosto daquela mulher. rifa ficou estendida. Vaziando sangue. Quem a
Manhã seguinte, regressei a casa de Sarifa apanhou no chão foi o tio Banzé, homem dado
movido não sei se por gosto de a rever se por a espiritações. Refez a sobrinha, passou-lhe
obrigação de profissão. A mulher nem levantou uma demão nas mazelas e correu a engasganar
cabeça: assim, olhos no chão me revelou sobre o indiano. Você foi longe e de mais, meu velho.
Abdalah. O homem só fazia amor, depois de Você mistura amor e cifrão? Lhe espetou o in-
espalhar por debaixo dos lençóis uma matilha dicador na costela e ameaçou:
de notas. Às vezes, eram meticais, outras ran- ― Pois eu lhe vou seguir os sonhos a ver o
des. Só lhe vinham as quenturas quando, pre- que vai sair deles!
viamente, cumpria este ritual. Se deitava de O desafio era o seguinte: tio Banzé iria visi-
costas, as mãos a acariciar o lençol, os olhos tar os próximos sonhos do indiano, nas dez se-
cifrando-se no infinito. Sarifa ficava com sen- guintes noites. Caso dinheiro somasse mais
timento de que ela não existia. Com a desvalo- que mulher então uma maldição recairia sobre
rização da moeda o ardor dele variava. Às ve- Abdalah.
zes, demorava a ser homem, másculo e maiús- ― De Abdalah te transformo em abadalado!
culo. Não chegou a haver dez noites. Na sétima já
Uma noite, porém, não conseguiu. Come- o indiano sofria de um peso extra no baixo do
çou-se a enervar. Levantou os lençóis, inspec- ventre. O homem nunca mais visitou Sarifa,
cionou as notas. Lhe nasceu, então, a lancinan- nunca mais amou nenhuma mulher. E agora,
te suspeita: as notas eram falsas. Alguém havia que ele perdeu acesso a namoros, seus sonhos
retirado as verdadeiras para, em seu lugar, es- se destinam unicamente em mulheres. O ouro
palhar imitações. lhe entrou nos ditos, a mulher lhe saiu dos de-
― Sarifa, foi você? vaneios. A punição do sonho é aquela que mais
A prima, ao princípio, nem entendeu. Um dói. Pergunte-se a Abdalah, o indiano dos ovos
murro carregado de raiva lhe enegreceu as vis- de ouro.
tas e aclarou o pensamento: havia suspeita so- [129] [134]
36
CONTOS DO NASCER DA TERRA
37
Mia Couto
Ainda por cima, ele tanto reclamara vingança ― Eu quero ver essa carta.
sobre o que perdera. Essa noite, os cabrões ha- O outro, com voz de funeral, diz:
viam de ver. Azar no amor, sorte aonde? ― É melhor não, você.
Chega à barraca, se senta em firme silêncio. Saltando sobre o tampo, Fulano arranca a
Os jogadeiros estranham seus modos bruscos. carta. Seu juízo deu o salto mortal, todo despe-
Fula Fulano baralha as cartas disposto, como ele nhado naquela visão. Quem era a gaja? Nadi-
proclama, a enrabar valetes e descuecar damas. nha! Sim, Nadinha, sua esposa, toda cascadi-
Com os nervos, lhe tomba uma carta. Um que nha, como o mundo lhe recebeu. Fula Fulano
apanha a carta e se espanta. Nem querendo a- desejou o buraco final.
creditar, passa a carta aos restantes. Cochicham. Saiu, de espuma e raiva. Foi direito a casa,
Os amigos passam a fotografia de mão para mão, mãos nos bolsos com tais fúrias que estrilhaça-
gozando e rindo. Até que um deles guarda a carta va o baralho. Chegou a casa, demorou-se um
e todos se arrumam sérios e graves. Fula Fulano, momento na porta. Sacou da carta onde a Na-
estranhando os modos, pergunta. dinha se descamava em carnes. Lhe subiu uma
― Não é nada, Fula. É só uma dessas gajas fervura, sangue adentro, irrompeu pela casa e
que aparece nas costas das cartas. se dirigiu, certeiro, para o leito onde a mulher
― Mostra! dormia. E desatou a beijá-la com paixão que
― Deixa lá esta merda. Continua a baralhar, nunca tanto dele emergira.
Fula. [141] [142]
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CONTOS DO NASCER DA TERRA
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Mia Couto
rasteira construção. Todos saíram. Fiquei ape- Na manhã seguinte, o braço do velho Tiane
nas eu dando encosto à solidão do velho. Pas- me acordou. Primeira coisa que vi foi o barco.
saram-se densos silêncios até que Tiane Ku- Esse mesmo que ardera horas prévias. Mas ali
madzi me pediu que o ajudasse a empurrar o estava ele, intacto, com todo o formato. Algu-
barco até à água. Nem beliscámos centímetro. mas chamuscadelas, mais nada. O velho ante-
O navio estava mais encalhado que árvore. cedeu minha pergunta:
Kumadzi desofegou: ― Não chegou de arder, a madeira estava
― Tu, miúdo, meta-se no barco! molhada.
Apontei para mim, em espanto. Eu? O ve- Nas mãos tinha um naco de madeira meio
lho confirmou: eu devia era navegar, sair por ardida. Esfarelou a cinza, misturou a areia. E
esses mares para ir ter com os esses que che- acrescentou:
gavam. E completou: ― Esse barco estava cheio de mar!
― Assim não haverá quem tenha vaidade de Percorreu as escassas cinzas como que a
encontrar quem... confirmar a presença de qualquer coisa já vista.
Me escusei. Dei volta ao momento e desan- Perguntava-se, nervoso:
dei pelo escuro. Reconheci razão dos conselhos ― Onde está, onde está?
da aldeia: o velho sofria o castigo de visitar de- Finalmente, se debruçou a apanhar uma
mais o futuro. Regressei a casa e deparei com taça feita de madeira. Levantou-a nos braços.
estranha agitação. Meu pai comandava furiosa Me aproximei. Aquilo não era simples objecto
multidão. Vendo-me chegar, ele me ordenou: de usar. Desenhos de enfeitar se inscreviam em
― Vai donde que vieste! belezas. Tiane acenou a taça e proclamou:
E levaram-me em diante da raiva e gritaria. ― Viu? O mar quer juntar as pessoas.
Se dirigiam ao lugar de Tiane Kumadzi. O meu Estendeu a taça e pediu-me que bebesse.
velho me empurrava para cá e para nenhum “Beber o quê?”, perguntei. Espreitei o redondo
lado. Nem tive tempo de acertar vistas com i- da taça e havia gotas. De cacimbo adiantou
deias. Já o barco ardia, engolido por mil tochas, Tiane para aplacar meu receio. Levei a taça aos
chamas chamando chamas. lábios mas não consegui beber. Improvisei des-
Num instante, tresvoaram espessas fuligens. culpa:
Eu via os fumos subirem e comporem estranhas ― Vou guardar isto, para beber com eles...
figuras, monstros de engolir mundos. Eu fecha- Escondi a taça por baixo do velho canhoei-
va os olhos mas as visões não se afastavam. A- ro. De novo, fomos à rebentação ao encalço dos
inda escutei uma voz dizer para meu pai: sinais dos homens-peixe. O velho se deixou fi-
― Cuidado, mano, esses fumos estão cheios car dentro de água. Era já noite e ele se recu-
de veneno! sou a sair. Disse que nunca mais voltaria para
Fosse ou não veneno: as gentes se descom- terra. Ficava ali a encharcar-se de mar. Queria
punham, embriagadas. Primeiro, deram gritos, semelhar-se com o barco, a madeira ensopada?
saltos e danças. Aos poucos, se instalou a festa Quando houvesse viagem já ele se converteria
e a alegria enrijeceu a restante noite. Até os em madeira salgada. Já ele se convertera em
corpos lençolarem a terra. casa marinha à espera dos que haveriam de vir.
[149] [150]
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CONTOS DO NASCER DA TERRA
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Mia Couto
As vendedores regressaram ao bazar, cala- ver o pátio varrido, limpo das habituais flori-
das, sob uma bategazinha de Verão. A chuva nhas. Os vizinhos se surpreenderam, depois, a
caía tristonha como um luto, cada gota uma ouvir os gritos dele, batendo em sua original
mulher em Outono, chuviuvinha. Ingrata é a esposa.
morte que não agradece a ninguém. Vivalma Manhãzinha seguinte, viram Vivalma sair
teatrava, para que ninguém suspeitasse de seu de casa, canteirando pelo jardim, a encher as
abandono? Pois as amigas se compustararam mãos de petalazitas brancas. Haveria quê nes-
em igual disfarce. Na Natureza ninguém se per- sas flores: alegria de quem se ilude vencer? Ou
de, tudo inventa outra forma. eram pequenitas raivas, desapercebidas como
Sucedeu, por astúcia do acaso, o seguinte lágrimas em seu rosto molhado? Só ela, a ma-
percalço: a nova mulher de Xidakwa ouviu dizer tinal vendedeira, sabe do valor dessas minus-
que Vivalma continuava a revalidar suas equi- culinhas naturezas em seus dedos decepadas.
moças, olho da cor do chão. Se assim era, Dizem, finalmente, que sob o véu de seus ene-
quem mais poderia ser o batedor senão o dito grecidos olhos havia, nessa manhã, uns fiapos
latoeiro? E a moça, mais nascida que a gorda de satisfeição. Poderá ela, alguma vez, ser sabi-
vendedeira, contraverteu caminho e foi agasa- da? Se, como diz nenhuma canção, a água cor-
lhar outra felicidade. re com saudade do que nunca teve: o total, i-
O homem, desconcertado, voltou a casa pa- menso mar.
ra afinar contas com Vivalma. Se admirou de [153] [156]
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Mia Couto
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Amparei o desandrajoso. Se sustentou em
meu ombro e me foi levando pelo passeio som-
O homem da rua brio, através dessa desvastidão onde o negro
escurece a preto.
― Agora o senhor me entorne aqui...
― Aqui?
Esfregando-se no pescoço como se as mãos
fossem de outrem, acrescentou:
― Aqui, sim. Quero acordar com dormência
[167] [168] de lua.
Dali ele passou a esbanjar conversa. Quem
sabe o homem desjejuava palavra? E dizia sem
Ainda o dia andava a procura do céu, vinha aparência nenhuma:
eu em vagaroso carro que mais a mim me con- ― Bem hajam as folhas, minha cama!
duzia. De repente, um homem atravessou a E explicava-se enquanto alisava as folha-
calçada, desavultado vulto avulso. Uma garrafa gens mortas: quando se deitava lhe doía a cur-
o empunhava. E ele, todo súbito e poentio, se va da terra, a costela quebrada do próprio uni-
embateu frentalmente na viatura. Saltou pelos verso. Assim deitadinho, todo simetrado com o
ares, se aplacando lá mais adiante, onde se ini- planeta, um subterrâneo rio falava com suas
ciava o passeio. Saí do susto para inspeccionar veias.
sua sobrevivência. ― Até foi bom me aleijar um bocado. Ri-se?
Me debrucei sobre o restante dele, seu rola- Nem sabe como é bom haver um chão para a
do enrodilhado. Não havia sangue nem quebra- gente ter onde cair.
dura de osso. O maltrapalhado estava a salvo, E nos trocamos nessa conversa com vonta-
salvo erro. Todavia, me meteu pena: suas vestes de de ser corpo, encosto, adormecimento. Fi-
eram a sujidade. Havia quase nenhuma roupa cámos a ver as luzinhas da cidade, lá em baixo,
em seu sarro. Mesmo o corpo era o que menos a lembrar que o homem sofre de incurável me-
lhe pesava. Os olhos estavam parados, na grade do de ser noite. O país daquele homem seria a
do rosto. Me pareciam pedir, o quê nem sei. noite. Meu território era o dia, com sua lumi-
De inesperado, o vagabundo se ergueu e nesciência tanta que serve mais é para deixar-
apressou umas passadas para encalçar o longe. mos de ver.
Se entrecruzou com sua sombra, assustado de E pensei: o primeiro alimento é a luz. Nos
haver escuro e luz. Em muito zig e pouco zag invade logo quando nascemos. Depois, a lumi-
ele acabou por se devolver ao chão. Voltei a a- nosidade, com suas infinitas cascatas, nos fica
cudir, cheio dessa culpa que não cabe na razão. a engordar a alma. Em mim, pelo menos, a
Apanhei o vulto, desarranjado, sem estrutura. primeira saudade é da luz. Direi, então: me fal-
Pareceu tontolinho, sempre agarrado ao arrega- ta a minha luz natal? Quem sabe a alma deste
lado gargalo. Me deitou olhos muito espantados homem, sempre ninhado no escuro, emagrece-
e pediu desculpa por incómodos. Apalpou o ra assim a olhos não-vistos? O homem é bicho
lugar onde se deitava, e disse: diurno. O dia é bicho humano?
― Um de nós está morrendo. Me foi descendo, espesso, o sono. Avancei
Entreolhei-me a mim e ao restante mundo. despedida não sem retirar do bolso algumas
Ele se precisou: notas que estendi em direcção ao desastrado:
― Estou falando da terra, parece ela está ― Deixo o senhor com algum dinheiro. Quem
moribundando. sabe lhe virão, mais tarde, as dores do acidente?
Lhe disse que o levaria dali para um sítio Para meu espanto ele recusou. Sem vee-
que fosse dele. Ajudei-lhe a entrar no meu car- mência, sem nenhuma ênfase. Era recusa ver-
ro. Ele recusou com terminância: dadeira.
― Não entro em coisa que serve para levar ― Posso pedir uma qualquer coisa?
morto. ― Peça.
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misteriosa brisa o faz soltar e ressubir em livres desatenções. Não é só ela a alheada. O general
cambalhotações. Até que o general em fúria vai amolecendo a ponto de esquecer as inviolá-
saca da pistola e dispara. O primeiro tiro des- veis obrigações. A carreira de militar está agora
consegue. No segundo tiro, o balão subita-se, descarreirando. Um dia, distraído, entrou no
deflagrado. Com o susto, o menino cai e fere o quartel ainda envergando a máscara com que
rosto numa pedra. O sangue ingénuo e inocen- brincava.
te enche os lenços do pai. O militar, num mo- As botas, outrora intocáveis, agora são di-
mento, se aflige e recolhe o menino nos braços. vertimento. As medalhas servem de imaginários
Cristovinho se aconchega no colo dele e assim veículos, carregados de pedrinhas e poeiras.
se deixa até chegar a casa, já adormecido. Certa manhã, Resoluto estende um bilhete à
No portão, a mãe espera, atarantonta. O pai mulher e lhe pede que faça entrega dessa men-
abre alas e conduz a criança, dormida, ao leito. sagem no quartel.
A mãe segue atrás, as mãos se recolhendo uma ― Está escrito que eu não vou, estou doente.
na outra como pássaros cegos. Vê o general ― Verdade, mando?
sentar no leito do menino e debruçar cuidados, ― Não. Eu quero só ficar com Cristovinho.
quase paternos. Rosanita sonha que esse mo- Essa manhã faltou ao serviço. Outras ma-
mento é a terna eternidade, fracção de paraíso. nhãs, idem. Ao pouco e pouco ele se inseparava
E dá graças aos céus pela visão. do menino, se distanciando das militares obri-
Nessa noite, o general é que levanta para gações. Até que, definitivamente, se demitiu,
espreitar o sossego do menino. Dia seguinte, ele prescindindo de carreira, acumuladas honras,
chega mais cedo do serviço e acorre ao quarto engomadas memórias.
para olhar o filho. E assim toda a semana: Oro- Agora, Orolando Resoluto só fica em casa.
lando Resoluto escapa do quartel e entra em Se transferiu de vez para o quarto do menino.
casa, urgente, sem cumprimentar esposa nem Dormem juntos, pai e filho, abraçados em bone-
parar no televisor. Vem ver o filho, escutar suas cos. O ex-general adormece fetal, meninado. Tal
brincriações. Fim da tarde, ele pega a mão do pai, fatal filho. A mulher entra no quarto, noite
menino e vai passear com ele, compra-lhe doces, alta, e aconchega o sono de seus dois meninos.
mimos. [177] [182]
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― Não é no deserto que ganhamos miragem? soltou do mundo, desnavegou pela escuridão.
Durante dias ele sentou na praia contem- Rungo, dizem, foi no encalço da sua criação.
plando o barco. Parecia ancorado à sua própria Dias depois, o país via chegar a Paz. Ainda
vitória. Rungo perdera a noção, divaguava? A hoje, de regresso à ilha, eu me sento junto ao
mulher zangava-se: em casa, Rungo não dava mar. Quem sabe da estória de Rungo, seu bar-
atendimento. E ela me pediu em choro: eu que co vogando na outra margem? Com suas águas
acudisse à réstia do senso dele... sempre moventes, o mar não nos deixa ver o
― Eu, mulher, não tenho voto na madeira. tempo. Quem me encara, espreitando o poente,
Esse homem é casburro”. acredita que eu me consagro a saudades. A
E ela se calou. Rungo era tão bom que nin- tristeza é uma janela que se abre nas traseiras
guém aguentava ser inimigo dele. Aquilo era do mundo. Através dela eu vislumbro Rungo
maldição, serviço encomendado dos aléns. Ela Alberto, meu velho amigo. Depois, um deserto
sabia, ali se vivia muito oralmente. E, nessa tar- me engole a alma. Estrangeiro é o lugar onde
de, ela foi ao feiticeiro. O depois não se esperou. não se espera ninguém.
Nessa mesma noite rebentou uma tempes- [185] [188]
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assistido a uma partida de futebol. Queixava-se Herberto respondeu que já tinha colocado
assim: “vocês só fintam, não rematam”. E suspi- no lugar combinado. “E a táctica?”, perguntou o
rava: “somos uma equipa de fintabolistas”. contratado, sempre aos pulinhos. A táctica her-
Entre esforçados empates e involuntárias vi- bertiana era a mais simples: “passar o esférico
tórias lá conseguimos chegar à finalíssima do imediatamente ao Chimbo de Marromou”. E lá
campeonato interbairros. O Senhor Herberto que começou o jogo.
estava sempre calado trouxe então a solução — Na primeira jogada, a bola vem a meus pés
que tinha ouvido falar que, na vila de Marromeu, e eu, ofuscado pelo sol, levanto a perna ao aca-
havia um jovem dotado de poderosíssimo rema- so. A bola toca no meu joelho, ganha efeito,
te. De tal modo, que era conhecido pelo “Chimbo passa por cima de dois adversários, e vai na
de Marromeu”. Com seu vertiginoso pontapé o direcção de Tony. Este salta e, obviamente, sem
moço já tinha derrubado postes e árvores e só de visão, cabeceia o esférico com a nuca. Atónitos
mencionar o seu nome os guarda-redes eram com a arquitectura destas trocas estavam o
acometidos de terrores imobilizantes. adversário, o público e, mais que todos, nós
A proposta era contratar o “Chimbo, pagan- próprios. A bola volta a ficar comigo e a nossa
do-lhe para que ele actuasse como avançado da claque urra, frenética:
nossa equipa”. A ideia foi como pedra em char- ― Passa ao Chimbo, passa ao Chimbo!”
co. Enviou-se logo mensagem para o mercenário Eu fiz a bola rolar para os pés do nosso sal-
rematador. A resposta veio célere: “Chego no vador. Ele não rematou logo. Deixou a bola pa-
próprio dia da grande final. Eis o meu preço — rar e, com estilo de exímio executante, deu uns
150 escudos. Pagos, claro, antes do encontro.” passinhos para trás para ganhar balanço. Um
Exultámos. O dinheiro era uma fortuna, silêncio se instalou em todo o campo como se o
mas nós cobriríamos a parada roubando afin- universo inteiro se atentasse no virtuosismo do
candamente as carteiras dos nossos velhos. O futebolista. O Chimbo, qual búfalo, deflagrou
optimismo era tal que deixámos de treinar. O um tropel em direcção à bola. O barulho dos
treinador disse que a imobilidade era boa con- seus passos e a poeira que se levantou à sua
selheira e os treinos só serviam para esfolar passagem foram tais que eu fechei os olhos. Es-
canela e gastar sapatilha. perava escutar o vigoroso bater da bola. Mas o
Na tarde da finalíssima o estádio estava re- tudo que ouvi foi um tímido “trrrrr”, igual a um
pleto. Até as miúdas lá estavam, com seus risos rasgão de roupa, uma costura se desfazendo.
e segredinhos. Já nos preparávamos para en- Quando reabri os olhos ainda vi a perna gorda
trar em campo e nem sombra do famoso do Chimbo chutando o ar e uma suspeitosa
“Chimbo”. Marromeu era longe, teria ele des- mancha castanha lhe surgindo nos calções. O
conseguido apanhar a carreira? mercenário rematara em falso, com impulso tal,
Mas eis que, no derradeiro instante, surge que se borrara em vergonhoso descuido.
garboso e portentoso o nosso avançado vindo O que se passou em seguida foi o maior
directamente das savanas de Marromeu. Vê-lo embaraço — o glorioso rematador saindo em
entrar em campo foi como um bálsamo para a soluços, rodeado por nós que parecíamos nem
nossa angústia. Ali estava ele, fardado diferente dar pelos odores castanhos que lhe escorriam
da nossa equipa, camisete azul-clara com estre- pelas pernas. Enquanto ele se retirava ainda
las prateadas que faiscavam ao fulgor do sol. um de nós balbuciou:
Penteado até à risca, o nosso precioso reforço ― Eh pá... e o nosso dinheiro?”
entrou em campo com aqueles saltinhos que só Contudo, já o mercenário escapava pelos
os grandes profissionais usam para aquecer o caniços que rodeavam o estádio. Me recordo
próprio corpo e o animo da multidão. O mais ainda de ver rebrilhar, entre as densas folha-
espantoso eram as pernas, cilindróides, tão gens, as estrelas prateadas do seu espantoso
grossas em baixo como em cima. O moço nem fardamento. Com o poente daquelas estrelas se
deu as confianças. Sem sequer nos olhar, con- extinguia a minha ilusão de ser campeão mun-
tinuando a saltitar, cochichou-nos: dial de futebol.
― O dinheiro, já têm?” [205] [210]
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chiar os pesados portões. Nas trevas vai pisan-
do trevos.
A viúva nacional Pois naquela tarde, o chefe Azaria chamou
a velha e lhe deitou proibição: ela podia nunca
mais ali voltar.
― Mas eu, agora, já lembrei a campa. Não
viu eu rezar ali? Aquela é mesmo a do meu fale-
cido...
― Acabou conversa. Já dei ordem nos milícias.
[207] [208] A velha então desfiou um choro magrinho,
soluço de gota caindo em poço seco. Nem Aza-
ria notou, no começo, que ela chorava.
Ou foi Jesus que traiu Judas? Ninguém ― Me deixe vir aqui. É que eu não tenho mor-
pode saber. Se mesmo Deus passa o tempo a to para chorar. Todos tem seus mortos, só eu
provar que não existe! Pensamentos que fartam que não tenho. Me favoreça, Doutor.
a cabeça de Azaria Azar, director do Cemitério
Central. Ideias que endemoniam o juízo do fun- 2 - Ontem, oficialmente
cionário, outrora zeloso, agora acabranhado.
Verdade é como ninho de cobra: se confirma Ontem à tarde, o Vice-Adjunto, Dr. Maurício
apanhando não o ovo, mas a fatal picada. Salbuquerque, chegou ao cemitério em sua so-
― Culpa minha, quem me mandou?” — in- lene viatura. Vinha na véspera de uma função:
siste em aceno de cabeça. homenagear Herói da Revolução. Procurara
Afinal, quem quer fumo tem que juntar pa- candidato, até pagara. Mas não encontrara nin-
lha. Sentado na sombra de um cipreste, olha a guém, nem próprio nem parente. Nos tempos de
velha Donalena, onde tudo começou. E vai de- hoje quem quer se apresentar com os louros
sabrindo os recentes passados. vermelhos do leninismo?
Com o director do cemitério se acordou en-
1 - Ante e ontem contrar rápido um candidato a órfão, viúvo,
parente de herói. Azaria lembrou, então, a des-
Azaria Azar se resolveu nessa tarde. Iria in- lembrada Donalena. Ela havia de servir que
terditar Helena Cemitela, a velha visitadora dos nem peúga. Não fosse a incoincidência: ainda
defuntos. Não havia dia que a senhora não visi- ontem Azaria a expulsara. Contudo, o Vice-
tasse o cemitério, umas muitas florinhas lhe Adjunto insistiu: ele a fosse a procurar, quem
avulsando no regaço. Donalena, como era cha- sabe a velha desobedecera?
mada, desomenageava a morte. Como? Ela não ― Desobedecer a mim, Excelência? Com o
sabia qual campa devia honrar. Cada vez se devido respeito, eu só tenho recebido obediência
joelhava numa diferente. Dias havia em que até das instâncias inferiores.
rezava em mais que dez lápides. E todas as O Doutor teimou e Azaria lá foi, rarefeito,
campas eram, para ela, as do “falecido”. Até os procurar a improvável doida. Querem saber?
coveiros já suspeitavam se alguma vez chegara Donalena Cemitela lá estava, soletrando lápi-
de haver algum respectivo dela. Donalena se des, sempre em busca. Azaria chamou, ela mal-
perdoava: entendeu e desatou-se. Fugia a sete chãos. A-
― É que já esqueci bem-bem onde que é. zaria Azar agarrou-lhe e a conduziu à direcção.
A gente nasce grão, morre terra. Donalena, O Doutor Maurício olhou a mulher, antecipan-
pré-defunta, já cheira a tábua deitada. Criatura do triunfos.
roída pelo tempo, tão escaravelhota que só pode ― Você é esposa do malogrado?
ter saída de tumba. A velha desafia o Outono: ― Esposa por casamento, sim senhor.
cai a árvore e fica a folha? Entre as campas, ela ― Já lhe conheço de nome, isto é, nomeada-
se descampa até o céu dessorar, maligno. Só no mente: Donalena. Ora, até está como convém:
poente Donalena abandona o cemitério, fazendo Lena rima com quê? Com leninismo!
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O Padre balbuciou algum latim. O bandido dias se romoeu: precisava falar com Ludmilo,
lhe encostou o hálito ao nariz e perguntou: lhe pedir a fraqueza da franqueza.
― Disseste o quê? Mas o Padre evitava encontrar-se com ele.
― Falei latim, língua dos anjos. Uma tarde, o sacristão procedia a suas orações
― Fala outra língua, os anjos são todos quando o mesmo bandido deu entrada na sa-
brancos, não quero dividir língua com eles. cristia. Vinha só, malcheirento. O miúdo estre-
― Põe o Padre no chão ou te ferro um tiro! meceu em impotente ódio. O Padre se encami-
Era a voz vinda da porta, o outro bandido nhou para o visitante, cumprimentaram-se. O
falava de arma apontada. O negro abrandou as bandido entregou um saco:
ameaças, soltando o religioso. Ficaram-se o- ― Estão aqui as coisas. Está ver? Não esqueci!
lhando, sem nenhum entendimento. O visitante O Padre agradeceu e mastigou alguma con-
rodou sobre si, foi saindo com modos lentos, versa. O sacristão nada pôde escutar. Certa-
acertando o corpo com o eco de seus próprios mente, o Padre extravagava, nessa inacreditável
passos. De repente, o Padre chamou: cumplicidade com as forças do Mal. O assassi-
― Chega aqui, meu filho. Quero-te falar uma no, então, se decidiu retirar. Queria aproveitar
coisa. o caminho estar deserto, nem vivalma com ele
O bandido voltou atrás, mão no cinturão. se cruzara. O Padre lhe aconselhou que, antes,
Seu olhar reganhara a arrogância, ele era, de prestasse homenagem defronte ao altar. O ou-
novo, dono de medos alheios. tro acedeu, a catana roçando o chão em metáli-
― É o quê, senhor Padre? cas estridências. Ludmilo se encaminhou para
― É que temos falta de comida para distribu- as pesadas portadas e abriu-as de rompante.
ir aqui na missão. Fazia falta uns sacos de mi- Foi um estremecer do mundo. Vozes e ala-
lho, não arranjas por aí nada? ridos deflagraram, em fracção de nada. Lá fora
O bandoleiro estranhou. Depois, largou uma uma multidão se apinhava reclamando justiça
ampla risada: arranja-se, sim senhor. Aproxi- contra o maufeitor. O sacristão se benzeu, des-
mou-se para que ninguém mais o escutasse: falecido em medo. O bandido se rebuliu, em
― Deixa só passar o primeiro camião. Des- terrores. Correu para o Padre, lhe implorou
ses que trazem donativos. protecção. Nas mãos do povo sua vida se extin-
E saiu, junto com o outro. O Padre, em tre- guiria em sopro de vela. O Padre pousou as
jeito risonho, virou os olhos para cima e disse: mãos sobre os ombros do desordeiro:
― Desculpa, meu Pai. ― Vem comigo, não receies. Eu não deixo que
O sacristão que escutara estes últimos diálo- te façam mal!
gos se chegou ao Padre. Seus olhos lhe interroga- E assomando à porta, trazendo o maufeitor
vam. Como era possível ele se ligar a tal gente, pelo braço, o sacerdote levantou um gesto para
encomendar crimes a um larápio? Ludmilo igno- calar as fúrias. Vazou-se um silêncio. As pala-
rou explicação e se encaminhou para a sacristia. vras de Ludmilo se anunciavam a esmorecer os
O sacristão, chorando, lhe segurou pelas vestes: arrebatamentos:
― Padre, responda! Como pode encomendar ― Irmãos, lembrai-vos dos ensinamentos de
coisas roubadas ao pobre povo? Cristo, nosso redentor!
Ludmilo parou, rodou para encarar o moço. E sempre avançando para o interior da
Parecia querer responder, mas se fechou em concha humana, continuou relembrando a li-
silêncio. O Padre prosseguiu o caminho inter- ção de Jesus, seu exemplo de nobre justiça. De
rompido, passando pelo altar sem deitar ao súbito, com um empurrão lançou o criminoso
chão os devotos joelhos. para o meio da multidão enquanto clamava, em
O sacristão se recolheu atónito, sangrando sumária sentença:
os mais tristes pensamentos. Como podia o Pa- ― Queimai-o!
dre ter solicitado o favor de produtos furtados, A enfurecida gente arremessou contra o
frutos do mais hediondo crime? Com certeza, condenado, batendo, pontapinhando, espirran-
parte daquilo de que ele já se servira na Igreja do e cuspindo. O Padre entrou na igreja fe-
provinha de iguais indecências. Nos seguintes chando a porta atrás de si. [221] [228]
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Formigas transportam infinitamente a terra.
Miudádivas, pensatempos Estarão mudando eternamente de planeta?
(“Para Manoel de Barros, meu ensinador Estarão engolindo o mundo?
de ignorâncias”)
Insectos sonham ser olhados pelo sol.
Mas só a chama da vela os vela.
Já o ovo é iluminado por dentro,
tocado pela luz do infinito.
[229] [230] O ovo repete o total início,
redundante gravidez do mundo.
Estou sem texto, enriquecido de nada. A- Por isso, este surpreendido ovo
qui, na margem de uma floresta em Niassa, me não tem competência para meu jantar.
desbicho sem vontades para humanidades. En- Pena o estômago não entender poesias.
tendo só de raízes, vésperas de flor. Me comun-
go de térmites, socorrido pela construção do Nada se parece tanto: poente e amanhecer.
chão. No último suspiro do poente é que podem Defeitos na tela do firmamento?
existir todos sóis. Essa é minha hora: me ilimi- Instantâneas aves,
to a morcego. Já não me pesam cidades, o te- pedras que se despoentam.
lhado deixa de estar suspenso ao inverso em A noite acende o escuro.
minhas asas. Me lanço nessa enseada de luz, Tudo semelha tudo.
vermelhos desocupados pelo dia. Só a coruja atrapalha a eternidade.
Nesse entardecer de tudo vou empobrecen-
do de palavras. Não tenho afilhamento com o Está chovendo horas,
papel, estou pronto para ascender a humidade, a água está a ganhar-me semelhanças.
simples desenho de ausência. Na tenda onde Escuto ventos,
me resguardo me chegam, soltas e díspares, de derrames de céu.
visões, pensatempos, proesias. Assim, em miu-
dádivas ao poeta: Parecem-me luas e são lábios.
Lembranças de minha amada.
A primavera cabe dentro do grilo. A tua boca me ilude, sou culpado de teu corpo.
Cigarras se alfabetizam de silêncios. Saudade: sou mais tu que tu.
No liso da parede,
a osga se prepara para transparências, Escuto, depois, a enchente.
adquire a forma do nada. Longe, a água desobedece a paisagens.
Enquanto o ramo vai transitando para camaleão. O rio toma banho de troncos,
raízes da água se soltam.
Na mafurreira, Sigo de catarata, luz encharcada.
sobem ninhos de arribação, ovos do arco-íris. E peço desculpa à margem:
A aranha confunde madrugada com sótão, desconhecia as unhas de minha transbordância.
artefactando materiais de orvalho. Meu sonho está cego para razões.
Ela se mantimenta de esperas. Sei só escrever palavras que não há.
Minha tenda se engrandece a teia.
Depois, o sono me encaracola:
Uma mosca se inadverte na armadilha. estou a ser pensado por pedras,
Igual o amor me habilito a chão, o desfuturo.
que me rouba mecanismos de viver. [231] [234]
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aumentava-se, mas aquilo era corpo de imbon- o adventício ser. Apenas sente que as formas do
deiro. Ela já vira o engano: molhado, o leopardo colchão se lhe amoldam: há duas concavidades,
não é mais que um gato-bravo. Bem diz o pro- uma ao lado da outra. Seria que o colchão sen-
vérbio: a lua morre e é grande enquanto as es- tiria saudade da ausente esposa?
trelas, ainda que pequenitas, ficam a brilhar. Até que uma noite, sonhava ele através de
― Pois, a partir de agora, você troca colchão amores muito sexuais, quando na carícia do
por esteira. lençol reconhece o volume de seios, polpudas
― Mas esses barulhos, Xavier... proeminências debaixo do seu corpo. Quem
― Mas quais barulhos, santo e deus! Se eu estava ali, afinal? Nem ousou acender as luzes,
não escuto nada? fosse a aparecência se extinguir. Aceitava aque-
― Se não vêm do colchão é porque, pior, es- la conversão de bom agrado.
tão a vir da minha cabeça. A partir de então, o colchão se convertia em
Isso, sim. Xavier admitia, rindo. Mas aque- mulher, na mulher em que sonhava. Cada noite
las gargalhadas eram alegria sem carne: se via Xavier procedia a mais avanços, com tacto e
através delas o nervo do medo. Os barulhos beijo. A mulher — será que lhe poderia chamar
prosseguiam, quotinocturnos. Mesmo deitada assim? —, a mulher vinha da sobrenatureza e
na esteira, Amendoinha passava noites em cla- lhe dava um pedacito mais de acesso. Mas sem
ridade. chegar a vias do facto. Ao despertar, Xavier se
Ao longo de tanta insónia, ficou zonza- son- satisfazia. E sorriam recíprocos, ele e a manhã.
sa, coxeando da razão. E já não prestava res- Afinal, por que real motivo se necessita mulher
peitos ao seu legítimo. Xavier, despeitado, lhe no lado de cá da verdade?
incrementou nos arraiais. Batia com mais e Até que uma noite ele se preparou, perfu-
mais violência. “Nem é por maldade: arreio-lhe mes e pijama lavado. Aquela noite, sim. Aquela
para ela ficar cansadinha e dormir melhor”, di- noite, ele visitaria o íntimo daquela promessa.
zia o mineiro. Fechava o punho e, enquanto E assim aconteceu. Beijo e escuro, suspiro e
amassava o corpo da mulher, comentava: silêncio. No êxtase, Xavier se viu dizendo ines-
― Amendoinha, é você; eu sou o pilão. peradas palavras:
A família de Maria Amendoinha veio-lhe ― Amendoinha!
buscar-lhe ela já não acertava o pé no passo. O De repente, o colchão se revolteou, envol-
pai de Amendoinha passou o olhar fatalício pelo vendo o mineiro. Carnes e esponjas, braços e
quarto dos separados de fresco, ditando: panos se entrerodilharam. O corpo do homem
― Aqui cheira a coisa parindo. foi perdendo formato, em dissolvição. Quando
E tinha razão. Pois, no ventre do colchão, dele não restavam senão avulsos botões de pi-
daquela manchazita de sangue, estava nascen- jama se escutaram passos entrando pelo quar-
do aparente criatura, o desabrochar de maldi- to. E Xavier Zandamela ainda sentiu apressa-
ção. das mãos enrolando o colchão e o carregando
Xavier Zandamela quando se deita, sozinho pela noite afora.
e triste como gato que perdeu a rua, nem nota [237] [242]
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ra apenas em sua cabeça. Ficou um tempo lhe sobrava. O velho Canhoto que sempre fora
nessa espécie de despedida, Cristo sem crucifi- acusado de não ter essa parte de si vivia agora
xo. Ou simples esquecido talvez do passo pró- exclusivamente de sua cabeça. O resto, já nem
ximo? lhe restava. Todo ele aprendera a ciência de ser
Nesse entretempo, o lugar se apoclipsou. A raiz, o orgânico sem organismo. De noite, um
terra, em desfecho de estrondos, se estremeceu. cacimbito. De dia, as grainhas de uma ventani-
Em basaltos e baixos, esguichos de água fer- a. Assim ele se mantinha, feito único receptá-
vente e fogos de martifício, estrelas rebentavam culo onda a vida ainda se entesourava.
como borbulhas na superfície do rio. A casa, Foi quando, no fundo do sem-fim, uma an-
junto com seu tecto, insubstanciou-se e ruiu, dorinha riscou o céu. Feita de conta um dese-
chão no chão. Os familiares todos se sepulta- nho torto, um rabisco tonto de um menino, no
ram, sem espirro nem respiro, apagados, apa- brevíssimo instante do arrependimento e da
guados. borracha. A avezinha, transmeteórica, como
Sobrou quem? O velho Canhoto, próprio. uma foice negra ceifou os ares. Voava mais rá-
Ele vira a terra se rachar por baixo dos pés, as pido que vivia? Estranhamente, a andorinha
duas metadas se abrirem como lábios. Nessa pousou na cabeça do velho. Fincou as patas,
greta ele se afundou, pronto a ser engolido, tre- unhando-lhe a testa, sujando-lhe o cabelo.
voso e súbito. Mas no momento em que seu O passarito piou, rodopiou e, por fim, me-
corpo perdia o pé, a terra se volveu a fechar, teu o bico nos lábios secos do velho. Lhe dava,
ajustada ao corpo. Ficou-lhe só a cabeça de se imagine, uma naco de água, qualquerzita
fora. Tudo o resto estava encravado em pedra, migalha. O bico beijou o lábio, o lábio bicou o
rocha, raiz, sobra do mundo. Mexer um dedo, pássaro: dúzias de vezes, repetidas. O velho
dedículo que fosse, lhe era impossível. O velho perguntou, lábios rasos de silêncio:
rodou a cabeça para avistar em volta. Nada, ― É você, Razia?
nem rio nem árvore, nem gente. Só chão, poei- A ave toda a noite debicou o pescoço de
ra, remoinhos de folhas mortas. Canhoto. Dizem que, desse mesmo pescoço,
― Deus me proíbe? ascendeu a matéria do colmo, dos cabelos bro-
Chorou. Sem tristeza, só para arrefecer o tou a folhagem, dos olhos nasceu a florescên-
rosto, deixar a carícia da água lhe premiar a cia. Tudo em jeito de árvore, palmeira e sagra-
boca. O sol nasceu, esmoreceu, se ocasionou. E da.
dia. E noite. E fome. E sede. Já nem lágrima [245] [250]
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ou mesmo simples passageiro. Nada. Avião, era Chegado ao aeroporto o menino olhou extasiado
o que ele queria ser. O tio acrescentou piada: seus companheiros de espécie, as aeronaves. E
― Quer ser Boeing ou DC 10? desatou correndo, roncando seus fantasiosos
O miúdo não entendeu a graça. No fundo, motores. Olhando a criança correndo de encon-
ele já se tinha todo ele decidido. E nunca mais tro ao sol, o tio até se lagrimava, comovido:
da sua boca se escutou sílaba que fosse. Se ― Veja, veja como ele brinca!
insulou no quarto, sentado, imovente. Os bra- E assim ganhando mais e mais velocidade,
ços cumpriam ordem de serem asas, o corpo braços cruzando o sonho, o menino se confun-
duro, quase metálico. Deixou de comer, deixou dia, a contraluz, com o fogo inteiro do poente.
de beber. A custo a tia lhe insistia, apontando Seria, no instante, que o céu se abria para a-
um copo: quela criaturita?
― Vá, meu filho, isso aqui é combustível! Pupila esgrimando o sol, o tio deixou de ver
Mil vezes o tio lhe falou, em várias tenta- o miúdo. Apenas uma mancha, sombra súbita
ções e tentativas: cruzando os ares. Ainda acreditou ser um pás-
― Não prefere ser um pássaro, vivinho de a- saro que lançava seu voo da varanda para o
legrias? distante chão. Nesse momento ele aprendia que
Tudo irresultava. Resolveram conduzi-lo de o céu está padecendo de cataratas, repentinas
novo ao aeroporto. Todo o caminho, o miúdo névoas que impedem Deus de nos espreitar.
seguiu de braços abertos, fixo que nem aço. [253] [256]
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brulhava, tremelusco-fuscando. Até que, daque- genitor de peito. Fazia medo como um quimica-
le novelo vermelho, se viu desprender um braço, va o outro a papel chapado. Em tudo se seme-
mais adiante um pé e a redondez de um joelho e lhavam menos no desenho do pé. Os pés do
mais argumentos que faziam valer o facto: aque- nascido eram divergentes, como quem viesse
le coração estava em flagrante serviço de parto! para procurar, fora de si, gente de outras estó-
E se confirmava, vinda das entranhas do útero rias.
cardíaco, uma total recém-criança. [265] [268]
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