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O que é o Feminicídio?

Recentemente, uma palavra foi incorporada ao vocabulário de nosso


cotidiano: feminicídio. Apesar desse acréscimo ter ocorrido há pouco tempo,
infelizmente, esse vocábulo não se refere a algo novo, mas a uma velha questão
que afeta, de forma especialmente perversa, nossa sociedade, representando
uma clara violação dos direitos humanos.

Quando falamos de feminicídio, na verdade, tratamos da violência contra a


mulher, especialmente aquela que ocorre no âmbito das relações domésticas. É
claro que não se trata de um mal restrito à sociedade brasileira, mas que aqui se
apresenta como um desastroso problema, apesar do grande aumento da
consciência de que esse problema deve ser combatido. Essa verdadeira
epidemia de violência está longe de entrar em um consistente declínio, muito ao
contrário, segundo pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (IPEA) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, consolidada no
Atlas da Violência de 2019, comparando-se os números dos anos de 2016 e
2017, houve um aumento de homicídios em geral em nosso país na ordem de
4,2%, com o número de mortes de mulheres com um acréscimo de 5,4%, a maior
taxa desse indicador desde 2007 – muito embora, em termos globais, as
mulheres tenham uma taxa relativa menor (4,7 mulheres mortas em um grupo
de 100 mil habitantes) se comparada com aquela que afeta somente aos homens
(31,6 casos em um grupo de 100 mil habitantes) (LISBOA, 2019). Essa amostra,
que engloba somente esses dois anos, se repete, de forma consistente, em
outros períodos recentes.

Melhor que falar do problema, é importante destacar o que está sendo feito para
buscar afastar esse ciclo de violência. Antes, porém, vamos entender melhor o
que é o feminicídio.

Em primeiro lugar, precisamos entender que o Direito e, especialmente, o Direito


Penal têm o importante papel de proteger os chamados bens jurídicos, ou seja,
aqueles valores de maior proeminência dentro de nossa sociedade, sendo que
dentre eles podemos mencionar a vida, a integridade corporal, a liberdade
sexual, a propriedade e o meio ambiente. Para realizar a proteção dos mais
relevantes desses bens jurídicos, são estabelecidos crimes, sempre por meio de
leis.

Decorre desse contexto que o Direito Penal tenha por característica aplicar as
sanções mais severas de nossa ordem jurídica, razão pela qual, em princípio,
somente deve ser utilizado para punir os ataques mais gravosos para esses
valores priorizados por nossa sociedade. Explicando de outra forma, quando um
crime é estabelecido pela lei, significa que todos os meios de controle social,
jurídicos ou não, não estão adequadamente realizando a proteção desses bens
jurídicos, o que obriga a sociedade a reagir, criando mecanismos mais severos
para sancionar essas condutas desviantes.

Seguindo essa lógica, ocorreu a criação, em 2015, do feminicídio como uma


figura nova incorporada em nosso Código Penal, em uma clara demonstração
de que esse tipo de prática não é tolerado por nossa sociedade. Na verdade,
não se trata de um crime novo, mas de uma forma de homicídio que recebeu por
parte de nossos legisladores uma maior pena face às suas características, ou
seja, um homicídio praticado “contra mulher por razões da condição de sexo
feminino”[1].

Para deixar ainda mais patente qual é a conduta que se objetiva reprimir, o
legislador esclareceu que essa condição de sexo feminino se considera presente
quando o crime ocorre: em um contexto de violência doméstica e familiar ou com
menosprezo ou discriminação à condição de mulher. A forma como ocorreu a
sua incorporação ao nosso Direito Penal acarretou a sua caracterização como
um dos chamados “crimes hediondos”, o que lhe garante um severo tratamento,
especialmente quando do cumprimento das penas impostas.

É claro que não podemos generalizar e enquadrar como feminicídio qualquer


forma de crime em que uma mulher acabada sendo mortalmente vitimada, pois
essa classificação se restringe às mencionadas hipóteses. Seguindo a linha
estabelecida em nossa lei, o correto é estabelecer uma manifesta ligação entre
essa forma de homicídio e a violência doméstica e a consequente minoração da
importância da condição da mulher.

Esclarecido qual é o objetivo a ser protegido pela criação dessa especial forma
de homicídio, conheceremos algumas das iniciativas que estão sendo realizadas
para a proteção da mulher, sobretudo, com a intenção de coibir a prática da
violência doméstica.

Sem menosprezar os grandes esforços realizados nas últimas décadas, os quais


trouxeram muitos avanços para o combate desse problema social, em nosso
país a luta pela proteção da mulher contra a violência doméstica tem como
símbolo maior a figura da cearense Maria da Penha Maia Fernandes.

Essa cidadã brasileira tem sua história marcada por uma sistemática trajetória
de crescente violência praticada por seu marido, que culminou, em 1983, em
duas tentativas de homicídio: a primeira a tiro, que lhe a tornou paraplégica, e a
segunda, por eletrocussão. Com o apoio de familiares e amigos, ela e suas filhas
conseguiram sair da casa em que moravam com o agressor, iniciando uma longa
batalha para que ele fosse julgado e condenado.

Uma série de questões processuais, recursos e, principalmente, a falta de


sensibilidade para o problema fizeram com que fosse necessário que o seu caso
fosse levado para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da
Organização dos Estados Americanos (CIDH/OEA), o que levou à
responsabilização, em 2001, do Estado brasileiro por negligência, omissão e
tolerância em relação à violência doméstica praticada contra as mulheres
brasileiras.

Fruto da maior visibilidade dessa questão, tanto no âmbito interno como nos
foros internacionais, foi criada a Lei n.º 11.340, de 7 de agosto de 2006, que, foi
batizada como Lei Maria da Penha, em razão de sua luta que, sem qualquer
dúvida, extrapolou sua particular situação e representou um expressivo avanço
para o debate e a busca de maior acesso das mulheres para o enfrentamento
dessa perversa forma de violência.

Apesar do inegável avanço que essa lei representou, a sua utilização mostrou,
e ainda mostra, a necessidade de que ocorram outros avanços em nossa
legislação e nas estruturas estatais e comunitárias de apoio para a mulher vítima
de violência, especialmente a doméstica. Todo esse movimento causou, dentre
outras iniciativas, a criação da figura jurídica do feminicídio, que acima
apontamos.

Não é somente com leis que esse problema deve ser combatido, contudo,
devemos reconhecer que esses esforços são alinhados com as melhores
práticas internacionais de enfrentamento das desigualdades, as quais, em
grande parte, são fomentadas pela Organização das Nações Unidas (ONU).

Fruto de iniciativas anteriormente desenvolvidas por essa organização


internacional, no ano de 2015 foram estabelecidos os chamados Objetivos de
Desenvolvimento Sustentável (ODS), os quais, para serem enfrentados nos
quinze anos após a sua criação, geraram um plano internacional de iniciativas e
programas condensados na Agenda 2030, que foi formalmente adotada por
todos os 193 países que integram a ONU.

Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável representam um


compromisso coletivo para acabar com a pobreza, lutar contra as diversas
formas de desigualdade e injustiça e combater as mudanças climáticas, em uma
clara busca da prosperidade humana e a proteção do planeta, estabelecendo as
bases para que haja um mundo melhor para as futuras gerações.

Dentre esses ODS, devemos destacar o Objetivo 5: Alcançar a igualdade de


gênero e empoderar todas as mulheres e meninas e, dentre as diversas
metas nele estipuladas, especial atenção deve ser dada aos seguintes:

5.1 Acabar com todas as formas de discriminação contra todas as mulheres e


meninas em toda parte;

5.2 Eliminar todas as formas de violência contra todas as mulheres e meninas


nas esferas públicas e privadas, incluindo o tráfico e exploração sexual e de
outros tipos. [...]
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2015

Esse objetivo acaba por se somar a outras iniciativas internacionais que


demonstram uma clara preocupação em se combater os mais diversos tipos de
violência contra a mulher, com largo destaque para a Convenção para a
Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, o
primeiro tratado internacional criado no âmbito da Organização das Nações
Unidas que, de forma ampla, estabelece direitos humanos específicos para as
mulheres. Essa norma internacional, após ser incorporada ao ordenamento
jurídico brasileiro, teve vários de seus preceitos utilizados como alicerce para a
criação da Lei Maria da Penha.
Se pensarmos nessas diversas iniciativas, nacionais e internacionais, que nas
últimas décadas estão sendo realizadas para o enfrentamento da violência
contra a mulher em suas múltiplas facetas, podemos chegar à constatação de
que há uma consciência coletiva da gravidade do problema e da necessidade de
um sério enfrentamento, contudo, que muito ainda tem que ser feito.

Conhecer o problema, refletir e debater sobre ele é, sem qualquer dúvida, uma
importante forma de começar a enfrentá-lo.

Boa reflexão sobre esta importante questão!


[1] Conforme inciso VI do § 2º do artigo 121 do Código, com a redação dada pela Lei n.º 13.104/15.

Orientações para Leitura Obrigatória


Dossiê – Violência contra as mulheres

DOSSIÊ VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES

O Dossiê - Dossiê Violência contra as Mulheres

A internet é hoje uma fonte essencial de conteúdos para suporte editorial nas
redações e nas mídias sociais. O Dossiê Violência contra as Mulheres visa
contribuir para a ampliação e o aprofundamento do debate sobre o tema nos
meios de comunicação tradicionais e nas mídias sociais por meio da compilação,
sistematização e disponibilização de dados oficiais ...
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Feminicídio

DOSSIÊ VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES


Feminicídio - Dossiê Violência contra as Mulheres

Nos casos em que os mecanismos de proteção previstos pela Lei Maria da


Penha falham, é importante mapear onde estão os gargalos, para que o
problema não se repita. Nesse sentido, o reconhecimento do feminicídio é
importante também para auxiliar na composição de um diagnóstico acurado da
violência contra as mulheres no Brasil para, assim, avançar em ações de
prevenção.
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Feminicídio – Um crime diferente que demanda respostas diferentes –
Entrevista especial com Débora Prado

UNISINOS

Feminicídio. Um crime diferente que demanda respostas diferentes.


Entrevista especial com Débora Prado

A lei 13.104/2015, a qual prevê a penalização para crimes de feminicídio, que


caracteriza o assassinato de mulheres por conta da discriminação de gênero,
tem como finalidade não só diminuir a "invisibilidade" desses casos, mas "dar
visibilidade ao problema, conhecer melhor sua dimensão e o contexto em que
ele acontece para poder embasar políticas públicas para proibir e coibir o
feminicídio", diz Débora Prado à IHU On-Line, na entrevista a seguir, concedida
por telefone.
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CAMPANHA – Compromisso e Atitude – Lei Maria da Penha (A Lei é mais
forte)

COMPROMISSO E ATITUDE

Rede de Atendimento às Mulheres em Situação de Violência -


Compromisso e Atitude
A Rede de Atendimento reúne ações e serviços das áreas da assistência social,
justiça, segurança pública e saúde, integrando a Rede de Enfrentamento, ao
contemplar o eixo de assistência previsto na Política Nacional de Enfrentamento
à Violência Contra as Mulheres.
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Feminicídio
Brasil é o quinto país com mais assassinatos de mulheres (entrevista com
a delegada da Polícia Civil Fabíola de Oliveira, membro de Instituto de
Ciências Penais Carla Silene e a psicóloga Érica Damasceno, no programa
De Tudo um Pouco, da Rede Super).

YOUTUBE

Feminicídio: Brasil é o quinto país com mais assassinatos de mulheres |


DTUP

Entrevista com a delegada da Polícia Civil Fabíola de Oliveira, membro de


Instituto de Ciências Penais Carla Silene e a psicóloga Érica Damasceno no
programa DE TUDO UM POUCO, da REDE SUPER. Exibição: 14/11/17
www.redesuper.com.br/detudoumpouco
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Referências

LISBOA, V. Ipea: homicídios de mulheres cresceram acima da média nacional.


2019. Disponível em: http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2019-06/ipea-
homicidios-de-mulheres-cresceram-acima-da-media-nacional. Acesso em: 16
ago. 2019.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. 5 Igualdade de Gênero - Alcançar a


igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas. 2015.
Disponível em: https://nacoesunidas.org/pos2015/ods5/. Acesso em: 16 ago.
2019

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