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Contos de Assombração. Co-Edição Latino-Americana
Contos de Assombração. Co-Edição Latino-Americana
Co-edição Latino-americana
Coordenado por Ediciones Ekaré-Banco del Libro
Editor
Verônica Uribe
Assistente Editorial
Marianne Delon
Diagramação
John Luján
Capa e vinhetas
Arlette Lavie
Tradução e adaptação
Neide T. Maia Gonzalez
1985 Editora Ática, Brasil; Ediciones Ekaré-Banco dei Libro,
Venezuela; Editorial Norma, Colômbia; Editorial Nueva Nicarágua,
Nicarágua; Editorial Peisa, Peru; Editora Taller, República Dominicana;
Subsecretária de Cultura, Equador; CIDCLI, México; Ediciones Huracán,
Porto Rico; Editorial Piedra Santa, Guatemala; Aique Grupo Editor S.A.,
Argentina. Todos os direitos reservados.
ISBN 85 08 02825 3
1993
Todos os direitos reservados pela Editora Ática S.A.
R. Barão de Iguape, 110 CEP 01507-900
Tel.: PABX 278-9322 Fax: (011) 227-4146
C. Postal 8656 End. Telegráfico "Bomlivro" São Paulo
CONTOS DE ASSOMBRAÇÃO
Co-edição
Latino-americana
APRESENTAÇÃO
Prefeitura Municipal de Curitiba
O mistério da morte e o temor ao desconhecido têm dado lugar a inúmeros
contos e lendas sobre seres extraordinários que habitam o mundo impreciso
daquilo que não está aqui.
Contam aqueles que já os viram que esses espíritos aparecem às vezes no
reino dos vivos para trazer alguma mensagem, para vingar ofensas, para
castigar ou para exigir a devolução de algo que lhes foi roubado.
Aparecem sempre ao cair da noite, em paragens solitárias ou casas
abandonadas. Há sempre sinais que anunciam a sua presença: uma rajada de
vento, o canto de alguma ave noturna, o crepitar do fogo, o ruído de
passos. Alguns não querem o mal, mas há também os espíritos malignos à
espreita de suas vítimas.
Na América Latina, a tradição européia de bruxas, duendes e fantasmas
mescla-se com a indígena e a africana, povoadas ambas de espíritos das
águas, das selvas e das montanhas. Encontramos mulheres que voam em
barcos pintados nos muros, como a Tatuana, na América Central, ou a
Mulata de Córdoba, no México; pequenos duendes que enfeitiçam meninas
bonitas, cantando-lhe
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lindas canções, como o Sombreirão,na Guatemala; espíritos defensores da
natureza, que castigam brutalmente quem a danifica, como a Marimonda, na
Colômbia, ou o Caipora, no Brasil; barcos amaldiçoados, a navegar sem
jamais encontrarem porto, como o Caleuche, no Chile, ou o Barco Negro, na
Nicarágua; e há também mulheres demoníacas seduzindo homens que andam
longe de casa. São mulheres belíssimas, atraentes e estranhas. Quando os
homens as abraçam, espantam-nos com o seu rosto de caveira. É o caso da
Saiona ou da Dientona, de muitos países do continente.
O sinal-da-cruz, a água ou o canto dos gaios fazem desaparecer esses
espíritos da morte e da noite.
Este livro, que reúne onze contos de assombração, faz parte da Co-
edição Latino-americana, série auspiciada pelo CERLAL (Centro Regional
para Fomento do Livro na América Latina e no Caribe) e pela UNESCO, e
realizada mediante o trabalho conjunto dos editores participantes.
O propósito deste volume é oferecer às crianças e aos jovens da América
Latina a possibilidade de se reencontrarem com as velhas tradições orais
do continente, com as histórias contadas à luz de vela e ao calor do
braseiro, e de desfrutar de relatos que conservam ainda hoje o atrativo
de tudo aquilo que é misterioso e inexplicável.
Queremos também que os leitores descubram que os
países latino-americanos formam uma grande comunidade que compartilha
crenças, costumes, relatos, alegrias e, sem dúvida, mais de um susto.
As lágrimas do Sombreirão
Guatemala
"As lágrimas do Sombreirão" é um conto da tradição oral guatemalteca.
O Sombreirão é um duende tão pequenino que cabe na palma da mão. Mal se
consegue enxergá-lo, debaixo do seu chapéu de abas enormes, um sombreiro
daí o seu nome. Ele usa sapatinhos de verniz com esporas de prata e
leva sempre um violãozinho de madrepérola, com o qual se acompanha quando
canta para enfeitiçar as meninas bonitas. Anda sempre seguido de algumas
mulas carregadas com sacos de carvão.
O autor desta versão, Luis Alfredo Arango, nasceu em Totoniçapán,
em 1935. Foi professor primário rural e pesquisador de campo do
Instituto Indigenista Nacional da Guatemala.
Recebeu vários prêmios centro-americanos de narrativa e poesia, e parte
de sua obra está traduzida para o inglês, o francês e o italiano.
O recopilador, Celso Lara, é diretor do Centro de Estudos Folclóricos
da Universidade de São Carlos da Guatemala.
A ilustradora, Marcela Valdeavellano, nasceu na cidade da Guatemala,
em 1951. É chefe do Departamento de Desenho da Universidade Nacional
Autônoma de São Carlos da Guatemala e produz um programa infantil de
televisão.
GLOSSÁRIO
Tortilha de milho: pão ázimo, isto é, sem fermento, à base de farinha
de milho, que constitui um complemento essencial da alimentação, tanto na
Guatemala como em outros países centro e sul-americanos e também no
México.
Trata-se apenas de uma adaptação do nome em espanhol, uma vez que não
há correspondente perfeito para o termo na língua portuguesa.
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Celina era uma menina muito bonita. Os moradores do beco do Carroceiro,
no bairro do Belém, viam-na todos os dias, mas não se cansavam nunca de
admirá-la. É que quanto mais Celina crescia, mais bonita ficava.
Que olhos tão lindos!
É mesmo, são tão grandes!
E que cabelos ela tem!
Tão longos e ondulados!
Ela é idêntica à Virgem do Socorro da Catedral!
E era verdade. Celina se parecia muito à pequena estátua da Virgem do
Socorro, morena e cheia de graça. Até o seu nome era especial, como vindo
do céu ou então tirado de algum livro de histórias.
A fama de sua beleza começou a se espalhar por toda a cidade. Além de
ser bonita, mas muito bonita mesmo, Celina era muito trabalhadeira:
ajudava a mãe a fazer tortilhas de milho para vender nas mansões dos
ricos.
Vê-la correr pelas ruas, vendendo as tortilhas que a mãe fazia, era o
deleite de jovens e velhos. Todos ficavam impressionados com a sua
beleza.
Uma tarde, por volta das seis horas, na esquina da rua Belém com o beco
do Carroceiro, sem mais nem menos apareceram quatro mulas amarradas ao
poste de luz. Elas traziam no lombo cargas de carvão.
Não serão as mulas do Sombreirão? sugeriu uma mulher.
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Cruz-credo, moça, vire essa boca pra lá! retrucou
outra ao passar.
Essa noite Celina se sentia muito cansada de tanto trabalhar o dia
inteiro; e já estava quase pegando no sono quando ouviu uma canção muito
linda: era a voz de alguém que cantava acompanhado por um violão.
Mãe, ouça essa música!
Que música? Você está sonhando, menina.
Não, mãe, ouça que beleza!
Mas a mulher não ouvia música alguma.
É melhor você dormir, minha filha.
Celina, no entanto, não conseguia adormecer, ouvindo aquela canção tão
encantadora. A voz do cantor chegava claramente aos seus ouvidos:
És uma pombinha branca
Tal como a flor do limão.
Ou tu me dás tua palavra,
ou morrerei de paixão.
Às onze horas da noite, o beco do Carroceiro mergulhou num completo
silêncio, e as mulas carvoeiras sumiram na escuridão.
Noite após noite, aquilo se repetia. A única coisa que as demais
pessoas notavam eram as mulas, com a sua carga de carvão, amarradas ao
poste. Celina, no entanto, deleitava-se com as canções que escutava.
Certa noite, às escondidas da mãe, a menina saiu para espiar na
escuridão, pois desejava muito conhecer o dono daquela voz maravilhosa.
Por pouco não morre de susto. Era o Sombreirão! Um homenzinho minúsculo
com um chapéu enorme, sapatinhos de verniz e esporas de prata. Enquanto
dançava e cantava tocando o seu violãozinho de madrepérola, ia cativando
a garota:
As estrelas lá no céu
caminham a par e par.
Assim caminham meus olhos
quando te vejo passar.
Essa noite Celina mal conseguiu dormir. Não podia parar de pensar no
Sombreirão. E passou o dia seguinte inteirinho lembrando-se dos versos
que ouvira. Queria e ao mesmo tempo não queria que chegasse a noite.
Queria e ao mesmo tempo não queria rever o Sombreirão. Desde então,
Celina parou de comer e parou de sorrir.
O que é que você tem, minha filha? perguntava-lhe a mãe. Está
sentindo alguma dor? Você está doente?
Mas Celina não respondia.
Isso é coisa do Sombreirão, que deve ter enfeitiçado a menina disse
alguém à mãe de Celina que, desesperada, seguindo os conselhos dos
vizinhos, levou-a para bem longe de casa e trancou-a numa igreja. O povo
acredita que os fantasmas não podem entrar nas igrejas.
Na noite seguinte, chegando ao beco do Carroceiro, o Sombreirão não
encontrou mais a jovem. Ficou feito louco e começou a procurar Celina por
toda a cidade, sem encontrá-la. Ao amanhecer, ele se foi, em silêncio,
levando as suas mulas.
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A mãe de Celina e os vizinhos ficaram muito contentes por terem
conseguido livrá-la do Sombreirão. Celina, porém, encerrada na igreja,
adoeceu de tristeza e, certo dia, amanheceu morta.
Estavam todos velando a menina na casa de sua mãe, quando escutaram um
pranto de partir o coração, mas que os deixou gelados de susto. Era o
Sombreirão, que vinha arrastando as suas mulas! Parou junto ao poste da
esquina e, chorando, começou a cantar esta canção:
Oh, coração de pau-santo,
ramo de limão florido!
Por que deixas esquecido
a quem sempre te quis tanto?
Aaaaaaai...aaai!
Amanhã, quando te fores,
sairei pelos caminhos
para cobrir o teu lenço
de lágrimas e suspiros...
Ninguém soube a que horas partiu o Sombreirão. Foi-se afastando,
chorando, chorando, até se fundir com a escuridão da noite. Pela manhã,
quando saíam desolados da casa da mãe de Celina, todos ficaram
maravilhados: um rastro de lágrimas cristalizadas, como gotas de
brilhante, estendia-se ao longo do caminho!
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Caipora, o pai-do-mato
Brasil
Recopiladora: Ruth Guimarães
Versão: Sônia Junqueira
Ilustradora: Sandra Abdalla
CAIPORA, O PAI-DO-MATO
O Caipora, Caapora ou Curupira, protetor da floresta e da caça, é um
mito que aparece em todas as regiões do Brasil, representado de várias
maneiras diferentes: como uma mulher de um pé só, como um tapuio
encantado, que anda nu e fuma cachimbo, um caboclo de um olho só,
no meio da testa, um homem peludo que percorre as matas montado num
porco-espinho, ou ainda como um caçador muito feio, com pêlos verdes e
pés virados para trás.
Sônia Junqueira escreveu este relato baseada na versão compilada por
Ruth Guimarães. Sônia nasceu em Minas Gerais, em 1945. Estudou Letras
licenciando-se em Português. Exerceu o magistério durante algum tempo,
dedicando-se depois a editar material didático, em São Paulo. Daí para
frente, começou a escrever histórias infantis paradidáticas e livros
didáticos. O grande sonho de sua vida é virar bruxa. Sandra Abdalla, que
fez a ilustração, nasceu em São Paulo, em 1945. Estudou pintura e é
ilustradora do Jornal da Tarde há 13 anos. Gosta muito de ilustrar livros
infantis, tendo tido a sua primeira experiência nessa área em 1972.
GLOSSÁRIO
Caititu: mamífero que vive em bandos, chamados varas, principalmente na
região amazônica. É perseguido pelos caçadores, porque sua carne
é muito saborosa e sua pele tem grande valor.
Capanga: espécie de bolsa pequena, que os viajantes usam a tiracolo
para carregar pequenos objetos.
Embornal: saco ou bolsa, geralmente usada a tiracolo, para transportar
alimentos, ferramentas etc.
Jaburu: ave pernalta, que vive em bandos, na beira dos rios e lagos,
na região Centro-Oeste do Brasil. Por ser uma ave grande e bonita,
o jaburu é muito perseguido pelos caçadores, estando atualmente
ameaçado de extinção.
Pito: cachimbo.
Semovente: ser que anda ou se move por si mesmo.
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Toda manhã, bem cedinho, dois compadres iam juntos para a mata cortar
lenha.
A mata era uma beleza. Clara-escura, com tudo quanto é tipo de planta.
E mais o canto dos pássaros e um mundaréu de borboletas amarelas!
Com seus machados, os lenhadores iam cortando a madeira. Compadre Tonho
procurava cortar sempre os galhos mais baixos, pra não ferir muito as
árvores. E vivia chamando a atenção do Compadre Chico, que cortava
troncos, quebrava galhos sem necessidade e às vezes até matava um bicho,
só pra treinar a pontaria.
Um dia, o Compadre Chico não foi. Tonho entrou sozinho na mata, e
parecia que estava tudo diferente. Uns barulhos esquisitos, uns
sussurros, estalos de folhas secas, o riacho no meio das pedras mais
barulhento do que nunca... Aqui e ali, a corrida de um gato-do-mato ou o
bater das asas de um pássaro. Um vento frio de doer, e um silêncio
estranho entre um som e outro.
Compadre Tonho apertou o cabo do machado, as juntas doendo de frio.
Forçou a vista: era difícil enxergar na escuridão cinzenta da mata.
De repente, apertou mais os olhos: não era possível! Devia estar vendo
coisas... Mas não: lá adiante, aquele vulto escuro, aquela visagem...
Esfregou os olhos, olhou de novo: a visagem continuava lá. Atrás dela,
parecia que vinham todos os bichos do mundo, grandes e pequenos, de penas
e de pêlos, comedores de carne e de ervas.
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O coração do lenhador disparou. Era o Caipora, o pai-do-mato!
O lenhador, paralisado de medo, viu a figura vir vindo, chegando mais
perto, bem devagar. Era enorme, verde da cabeça aos pés, parecendo uma
planta semovente. Os membros grossos, grandes, o corpo coberto de pêlos
grossos como cerdas. Os braços, compridos, quase tocavam o chão. Focinho
de cachorro-do-mato, orelhas em pé, curtas, de pontas viradas pra fora.
Imóvel, sem fala, o lenhador se lembrava das histórias sobre o Caipora:
que dá risada como qualquer pessoa. Que fuma cigarro de palha e pito de
barro. Que persegue quem estraga as plantas e mata bichos sem
necessidade... Que é castanho, de pêlos se arrastando no chão mas
este era verde, bem verde...
O coisa parou. Tinha os pés virados: dedos pra trás, calcanhares pra
frente. O homem tremeu. Então, de repente, o Caipora perguntou, com voz
rouca:
Tem fumo aí, siô?
E... e... eu? Fumo?
O lenhador, estatelado, olhava pra figura à sua frente.
Tem fumo? repetiu o bicho num ronco surdo, estendendo a mão peluda.
O lenhador parou de tremer. Mesmo assim, não conseguia falar. Acenou
que sim, abriu a capanga, retirou um naco de fumo e estendeu.
Mais que depressa o Caipora agarrou o fumo e saiu trotando, com a
bicharada atrás. Compadre Tonho saltou de lado pra dar passagem e ficou
olhando. O rastro do Caipora se imprimia ao contrário no chão: as pegadas
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viradas pra cá, enquanto o dono delas corria pra lá... Atrás, a
bicharada: cachorros-do-mato, pacas, caititus, antas, capivaras,
jaburus... No ar, acima da cabeça dele, a suave revoada das rolas.
O lenhador enxugou o suor da testa:
Ufa! Vom'trabalhar! resmungou. Arre, que não ganhei pro susto!
Nesse dia ele voltou tarde, com o carrinho pesado de lenha boa, madeira
de lei, que tinha encontrado não sabia como. A alma, essa estava leve.
Uma estranha alegria tomou conta do coração dele. Pôs-se a cantar, um
pouco desafinado pela falta de hábito...
No outro dia, acendeu o forno para fabricar o carvão que ia vender na
cidade. Os troncos eram tão lisos e bonitos, tão agradáveis à vista que
seu coração se aqueceu de novo. A lenha crepitava, nunca acabava de
queimar.
Quando Compadre Tonho apagou com água as brasas vermelhas, o carvão
continuou cintilando seu negro brilho. Ele ficou sabendo então que, nesse
dia, a mão de um deus caridoso o havia ajudado.
Na vila, os carvões brilhantes do Compadre Tonho causaram alvoroço.
Isso é de muito valor, moço!
Quer comprar?
Eu não! Sei lá se foram roubados!
Que é isso? Eu sou lenhador! Fazer carvão é o meu ofício! Então eu lá
preciso roubar carvão?
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Onde achou isso?
Pra falar a verdade, não achei. Queimei a lenha, e sobrou esse carvão
no meio.
E o lenhador contou a viagem daquele dia, o encontro com o bicho dos
pés virados.
Ah! disse o outro. É o pai-do-mato!
Acho que era. Mas eu lá tenho alguma coisa com o Caipora? Diz que o
bicho enfeitiça e persegue quem anda no mato...
Nem sempre. Você deu fumo pro pitinho dele, ganhou uma fortuna. Sorte
sua!
Pelo sim, pelo não, Compadre Tonho não foi mais à floresta. Compadre
Chico, seu companheiro, ouviu falar de sua sorte. Invejoso, foi atrás
dele, pra arrancar o segredo de sua riqueza. Mas só ouviu uns grunhidos e
umas desculpas:
Sei não... Penso que a minha sorte foi por causa do encontro, mas não
tenho certeza...
E ficou nisso.
Um belo dia, Compadre Chico andava pela mata quando escutou um tropel.
E viu: passou correndo uma criatura esquisita, de pés virados. Atrás dela
um mundaréu de bichos fazendo um barulhão. O Caipora!
O homem correu atrás, oferecido, gritando, até que o pai-do-mato parou.
O lenhador tremia de cobiça. E foi logo perguntando:
Pode me dar daquele carvão? Eu tenho fumo aqui, no embornal. Tenho
muito!
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A cara do bicho escureceu. Dos seus olhos saíram chispas verdes de
ódio. Em volta, tudo virou um silêncio só. Nem uma folhinha se mexia. Com
um ronco surdo, o bicho avançou sobre o homem e o agarrou...
E daquele dia em diante, surgiu uma nova assombração nas matas: um
homem que fica vagando pra baixo e pra cima, que nem alma penada, virado
pelo avesso...
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A Mulata de Córdoba
México
Versão: Francisco Serrano
Ilustradora: Maria Figueroa
A MULATA DE CÓRDOBA
"A Mulata de Córdoba" é uma lenda mexicana dos tempos coloniais, da
qual também se encontram versões na América Central.
O relato que aparece neste livro foi inspirado em textos do historiador
Luis González Obregón (1865-1938) e do poeta Xavier Villaurrutia (1903-
1950). A adaptação foi feita por Francisco Serrano, cujos textos têm
aparecido em diversas publicações, e que é autor de La luciérnaga (O
pirilampo), uma antologia de poesia contemporânea para crianças (1983).
GLOSSÁRIO
Santa Inquisição: assim eram chamados os tribunais eclesiásticos que,
na Idade Média e, em certos países, na Moderna, dedicavam-se a descobrir
e a castigar os hereges e os que supostamente se dedicavam à bruxaria,
à magia e à feitiçaria.
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Diz a lenda que, há mais de dois séculos, viveu na cidade de Córdoba,
no Estado de Vera Cruz, no México, uma bela mulher: uma jovem que nunca
envelhecia, apesar dos anos.
Chamavam-na de Mulata, e tinha fama de advogada de casos impossíveis:
as moças sem namorado, os operários sem trabalho, os médicos sem
pacientes, os advogados sem clientes, os militares na reserva, todos
recorriam a ela e ela a todos contentava.
Os homens, fascinados pela sua beleza, disputavam o seu coração. Mas
não eram correspondidos; a todos ela desdenhava.
As pessoas comentavam os poderes da Mulata e diziam que se tratava de
uma bruxa, de uma feiticeira. Alguns garantiam tê-la visto voar pelos
telhados e afirmavam que os seus olhos negros lançavam olhares satânicos
enquanto ela sorria com aqueles lábios vermelhos e aqueles dentes
alvíssimos. Outros contavam que a Mulata havia feito um pacto com o Diabo
e que o recebia em sua casa. Juravam que, passando-se diante da casa da
bruxa à meia-noite, via-se uma luz sinistra que saía pelas frestas
das portas e das janelas, uma luz infernal, como se o interior da casa
estivesse sendo devorado por um poderoso incêndio.
A fama daquela mulher era enorme. Por toda parte falava-se dela e em
muitos lugares do México o seu nome
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era repetido de boca em boca. O mistério das suas origens aparecia até
mesmo em canções:
Faz tempo, mas muito tempo,
que vive na vizinhança,
bem do lado da pracinha.
Na vizinhança? Mentira!
Nunca ninguém a encontrou
no pátio nem no saguão
nem na rua nem na igreja,
no mercado também não.
Logo, não é deste bairro.
Logo, chegou de repente.
Em Córdoba apareceu
um dia subitamente.
Ninguém sabe ao certo por quanto tempo perdurou o mistério da Mulata. O
fato é que, certo dia, levaram-na de Córdoba e prenderam-na nos sombrios
cárceres do Tribunal da Inquisição, na Cidade do México, acusada de
bruxaria e satanismo. Foi julgada e condenada à morte.
Na manhã do dia em que seria executada, o carcereiro entrou no
calabouço da Mulata e ficou surpreso ao contemplar numa das paredes da
cela o desenho do casco de um barco, feito a carvão pela feiticeira, a
qual lhe perguntou sorrindo:
Bom dia, carcereiro. Poderias tu me dizer o que falta a este barco?
Oh mulher desventurada! respondeu o carcereiro. Se te
arrependesses dos teus erros, não estarias a ponto de morrer.
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Anda, diz-me. O que falta a este barco? insistiu a Mulata.
Por que me perguntas? Falta-lhe o mastro.
Se é isso o que lhe falta, isso ele terá respondeu ela
misteriosamente.
O carcereiro, sem compreender o que ocorria, retirou-se confuso.
Ao meio-dia, ele voltou a entrar no calabouço da Mulata e contemplou
maravilhado o barco desenhado na parede.
Carcereiro, o que falta a este barco? perguntou a mulher novamente.
Desafortunada! replicou o carcereiro, desconcertado. Se quisesses
salvar a tua alma das chamas do inferno, terias poupado a Santa
inquisição deste julgamento. O que pretendes? São as velas que faltam a
esse barco.
Se é isso o que lhe falta, isso ele terá respondeu como sempre a
Mulata.
E o carcereiro se retirou, intrigado com o fato de que aquela
misteriosa mulher passasse as suas últimas horas desenhando, sem temer a
morte.
Ao crepúsculo, hora fixada para a execução, o carcereiro entrou pela
terceira vez no calabouço da Mulata e ela, sorridente, perguntou-lhe mais
uma vez:
O que falta ao meu barco?
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Infeliz! respondeu o carcereiro. Põe a tua alma nas mãos de Deus
Nosso Senhor e arrepende-te dos teus pecados. Nada falta ao teu barco, a
não ser navegar. É perfeito!
Pois se assim quiseres, se nisso puseres empenho, ele navegará. E
para muito longe...
Como assim? Quero ver!
Pois veja! disse a Mulata e, rápida como o vento, pulou no barco.
Este, devagar a princípio e depois rápido e a toda vela, desapareceu com
a bela mulher por um dos cantos do calabouço.
O carcereiro ficou mudo, imóvel, com os olhos saltando das órbitas, os
cabelos em pé e boquiaberto.
Ninguém soube mais nada da Mulata.
Supõe-se que ela esteja com o Diabo.
Quem queira acreditar em bruxaria,
no muro, com carvão, que pinte um barco...
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Maria Angula
Equador
Informante: Maria Gómez
Versão: Jorge Renán de la Torre
Ilustradora: Mariana Kuonqui
MARIA ANGULA
"Maria Angula" é um conto da tradição oral equatoriana. Esta versão foi
escrita por Jorge Renán de la Torre, a partir de um relato que lhe fez
Maria Gómez, uma mulher de mais de setenta anos, que vive no povoado de
Otán.
Jorge Renán de la Torre nasceu em Quito, em 1945, e já publicou contos,
fábulas e obras de teatro infantil. A ilustradora, Mariana Kuonqui,
nasceu em Bahia de Caraquez, em 1951. Estudou na Escola de Artes
elásticas da Universidade Central do Equador. Especializou-se em desenho
e ilustração de livros infantis e já recebeu vários prêmios em seu país.
GLOSSÁRIO
Colorau: condimento de cor vermelha, no caso deste conto, feito
especificamente da semente do urucu, como manda o costume equatoriano,
mas que pode ser feito também à base de pimentão, e que serve sobretudo
para dar cor aos alimentos.
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Maria Angula era uma menina alegre e viva, filha de um fazendeiro de
Cayambe. Era louca por uma fofoca e vivia fazendo intrigas com os amigos
para jogá-los uns contra os outros. Por isso tinha fama de leva-e-traz,
linguaruda, e era chamada de moleca fofoqueira.
Assim viveu Maria Angula até os dezesseis anos, dedicada a armar
confusão entre os vizinhos, sem ter tempo para aprender a cuidar da casa
e a preparar pratos saborosos.
Quando Maria Angula se casou, começaram os seus problemas. No primeiro
dia, o marido pediu-lhe que fizesse uma sopa de pão com miúdos, mas ela
não tinha a menor idéia de como prepará-la.
Queimando as mãos com uma mecha embebida em gordura, acendeu o carvão e
levou ao fogo um caldeirão com água, sal e colorau, mas não conseguiu
sair disso: não fazia idéia de como continuar.
Maria lembrou-se então de que na casa vizinha morava dona Mercedes,
cozinheira de mão-cheia, e, sem pensar duas vezes, correu até lá.
Minha cara vizinha, por acaso a senhora sabe fazer sopa de pão com
miúdos?
Claro, dona Maria. É assim: primeiro coloca-se o pão de molho em uma
xícara de leite, depois despeja-se este pão no caldo e, antes que ferva,
acrescentam-se os miúdos.
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Só isso?
Só, vizinha.
Ah disse Maria Angula , mas isso eu já sabia!
E voou para a sua cozinha a fim de não esquecer a receita.
No dia seguinte, como o marido lhe pediu que fizesse um ensopado de
batatas com toicinho, a história se repetiu:
Dona Mercedes, a senhora sabe como se faz o ensopado de batatas com
toicinho?
E como da outra vez, tão logo a sua boa amiga lhe deu todas as
explicações, Maria Angula exclamou:
Ah! É só? Mas isso eu já sabia! E correu imediatamente para casa a
fim de prepará-lo.
Como isso acontecia todas as manhãs, dona Mercedes acabou se enfezando.
Maria Angula vinha sempre com a mesma história: "Ah, é assim que se faz o
arroz com carneiro? Mas isso eu já sabia! Ah, é assim que se prepara a
dobradinha? Mas isso eu já sabia!" Por isso a mulher decidiu dar-lhe uma
lição e, no dia seguinte...
Dona Mercedinha!
O que deseja, dona Maria?
Nada, querida, só que o meu marido quer comer no jantar um caldo de
tripas e bucho e eu...
Ah, mas isso é fácil demais! disse dona Mercedes. E antes que Maria
Angula a interrompesse, continuou:
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Veja: vá ao cemitério levando um facão bem afiado. Depois espere
chegar o último defunto do dia e, sem que ninguém a veja, retire as
tripas e o estômago dele. Ao chegar em casa, lave-os muito bem e cozinhe-
os com água, sal e cebolas. Depois que ferver uns dez minutos, acrescente
alguns grãos de amendoim e está pronto. É o prato mais saboroso que
existe.
Ah! disse como sempre Maria Angula. É só? Mas isso eu já sabia!
E, num piscar de olhos, estava ela no cemitério, esperando pela chegada
do defunto mais fresquinho. Quando já não havia mais ninguém por perto,
dirigiu-se em silêncio à tumba escolhida. Tirou a terra que cobria o
caixão, levantou a tampa e... Ali estava o pavoroso semblante do defunto!
Teve ímpetos de fugir, mas o próprio medo a deteve ali. Tremendo dos pés
à cabeça, pegou o facão e cravou-o uma, duas, três vezes na barriga do
finado e, com desespero, arrancou-lhe as tripas e o estômago. Então
voltou correndo para casa. Logo que conseguiu recuperar a calma, preparou
a janta macabra que, sem saber, o marido comeu lambendo-se os beiços.
Nessa mesma noite, enquanto Maria Angula e o marido dormiam, escutaram-
se uns gemidos nas redondezas.
Ela acordou sobressaltada. O vento zumbia misteriosamente nas janelas,
sacudindo-as, e de fora vinham uns ruídos muito estranhos, de meter medo
a qualquer um.
De súbito, Maria Angula começou a ouvir um rangido nas escadas. Eram os
passos de alguém que subia em direção
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ao seu quarto, com um andar dificultoso e retumbante, e que se deteve
diante da porta. Fez-se um minuto eterno de silêncio e logo depois Maria
Angula viu o resplendor fosforescente de um fantasma. Um grito surdo e
prolongado paralisou-a.
Maria Angula, devolva as minhas tripas e o meu estômago, que você
roubou da minha santa sepultura!
Maria Angula sentou-se na cama, horrorizada, e, com os olhos
esbugalhados de tanto medo, viu a porta se abrir, empurrada lentamente
por essa figura luminosa e descarnada.
A mulher perdeu a fala. Ali, diante dela, estava o defunto, que
avançava mostrando-lhe o seu semblante rígido e o seu ventre esvaziado.
Maria Angula, devolva as minhas tripas e o meu estômago, que você
roubou da minha santa sepultura!
Aterrorizada, escondeu-se debaixo das cobertas para não vê-lo, mas
imediatamente sentiu umas mãos frias e ossudas puxarem-na pelas pernas e
arrastarem-na gritando:
Maria Angula, devolva as minhas tripas e o meu estômago, que você
roubou da minha santa sepultura!
Quando Manuel acordou, não encontrou mais a esposa e, muito embora
tenha procurado por ela em toda parte, jamais soube do seu paradeiro.
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