Você está na página 1de 8

1674 ARTIGO ARTICLE

Nutrição e promoção da saúde: perspectivas


atuais

Nutrition and health promotion: recent


perspectives

Vanessa A. Ferreira 1
Rosana Magalhães 2

Abstract Introdução

1 Centro de Ciências da
In recent years, health promotion has been in- Inicialmente podemos dizer que os primeiros
Saúde, Faculdades Federais
Integradas de Diamantina, troduced as a promising strategy for the public autores que fizeram referência ao conceito de
Diamantina, Brasil. health field. The current study is intended to promoção da saúde foram Winslow 1 e Sigerist 2.
2 Escola Nacional de Saúde
link nutrition into the recent debate on health Ambos relacionaram o termo promoção da saú-
Pública Sergio Arouca,
Fundação Oswaldo Cruz, promotion, analyzing the role of nutritionists in de às condições de vida das populações. Mais
Rio de Janeiro, Brasil. this process. Given the complexity of the Brazil- adiante Leavell & Clark 3 se apropriaram do con-
ian nutritional situation due to the nutritional ceito ao formularem o modelo da história natu-
Correspondência
V. A. Ferreira transition currently under way in the country, ral da doença. Segundo os autores, a medicina
Departamento de Nutrição, the health promotion proposal points to both preventiva compreenderia três níveis de preven-
Centro de Ciências da
new perspectives and challenges for eating and ção e a promoção da saúde estaria incluída no
Saúde, Faculdades Federais
Integradas de Diamantina. nutrition. New demands in academic training nível primário, relacionada à saúde e ao bem-
Rua da Glória 187, and the nutritional care model tend to foster a estar dos indivíduos. Na realidade, o discurso da
Diamantina, MG
39100-000, Brasil.
search for partnerships, innovation in eating medicina social no século XIX também mante-
vanessa.nutr@ig.com.br practices, and nutritional education aimed at ve aproximação com a promoção da saúde, ao
the achievement of nutritional citizenship. correlacionar saúde e condições de vida, através
das obras de autores como Villermé, na Fran-
Health Promotion; Food and Nutrition Educa- ça e Chadwick, na Inglaterra 4,5. Nesse sentido,
tion; Nutritional Transition; Nutrition o termo promoção da saúde não é recente. No
entanto, somente nos últimos vinte anos é que a
promoção da saúde reaparece enquanto estraté-
gia promissora para o campo da Saúde Pública.
A valorização do conceito de promoção da saúde
na atualidade surge como resposta à crescente
medicalização, à baixa eficácia dos serviços de
saúde e aos altos custos do setor.
Nessa direção, o movimento de promoção
da saúde emerge de forma mais vigorosa, a par-
tir da década de 70 nos países desenvolvidos
– Canadá, Estados Unidos e Europa Ocidental.
É particularmente no Canadá que se observa a

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 23(7):1674-1681, jul, 2007


NUTRIÇÃO E PROMOÇÃO DA SAÚDE 1675

retomada do conceito de promoção da saúde, Mais adiante realizaram-se outras conferências


com a divulgação no ano de 1974, do Informe internacionais, que propiciaram aprofundar as
Lalonde (A New Perspective on the Health of Ca- discussões em torno do tema da promoção da
nadians). Esse documento colocou a promoção saúde.
da saúde no patamar do planejamento estraté- Atualmente a promoção da saúde se apresen-
gico. Tal proposta visava, sobretudo, a enfrentar ta como uma proposta inovadora para o setor,
os altos custos com a assistência médica no país. pois favorece a superação de impasses importan-
O Informe Lalonde obteve significativo impacto, tes no campo da Saúde Pública. Dentre eles, os
propiciando o desdobramento do recente movi- desafios relacionados ao modelo biomédico do-
mento de promoção da saúde em todo o mundo. minante, reducionista, fragmentado, que não res-
Mais adiante, em 1978, a Organização Mundial ponde às demandas atuais de saúde. A promoção
da Saúde (OMS) realizou em Alma-Ata, a I Con- da saúde incorpora ainda, um conceito ampliado
ferência Internacional sobre Cuidados Primários de saúde, que tem como objetivo propiciar um
de Saúde. Esse evento repercutiu de forma ex- nível ótimo de vida e saúde às populações. Buss 4
pressiva os sistemas de saúde em todo o mundo, (p. 165) sintetizou de forma apropriada a propos-
estabelecendo a meta Saúde para Todos no Ano ta de promoção da saúde ao afirmar: “A promoção
2000. Nessa conferência reafirmou-se enfatica- da saúde, como vem sendo entendida nos últimos
mente um conceito amplo de saúde. Saúde como 20-25 anos, representa uma estratégia promissora
o estado de completo bem-estar físico, mental e para enfrentar os múltiplos problemas de saúde
social, e não apenas como ausência de doença. que afetam as populações humanas e seus entor-
Essa reconceituação de saúde foi fundamental nos neste final de século (...) propõe a articulação
nesse processo porque serviu de alicerce para o de saberes técnicos e populares, e a mobilização de
atual movimento de promoção da saúde. recursos institucionais e comunitários, públicos e
Posteriormente, o Ministério da Saúde do Ca- privados, para seu enfrentamento e solução”.
nadá e a OMS passaram a estruturar conceitos e
práticas sobre promoção da saúde, favorecendo
a realização da I Conferência Internacional sobre A promoção da saúde no Brasil
Promoção da Saúde realizada em Ottawa, no Ca-
nadá, no ano de 1986. Desse encontro resultou a No Brasil, o movimento de promoção da saú-
Carta de Ottawa, considerada marco referencial de assume destaque no ano de 1986 com a re-
da promoção da saúde 6. A conferência reuniu alização da VIII Conferência Nacional de Saúde
participantes de todo o mundo e teve por intuito (CNS/MS). Em seu relatório final frisou-se: “O
compartilhar experiências no setor. Na Carta de direito à saúde significa a garantia, pelo Estado,
Ottawa foram definidas cinco áreas prioritárias de condições dignas de vida e de acesso univer-
de ação em promoção da saúde: políticas públi- sal e igualitário às ações e serviços de promoção,
cas saudáveis, criação de ambientes saudáveis, proteção e recuperação da saúde, em todos os ní-
reforço à ação comunitária, desenvolvimento de veis, a todos os habitantes do território nacional,
habilidades pessoais e reorientação dos servi- levando ao desenvolvimento pleno do ser huma-
ços de saúde. Ainda nessa Carta, são descritos no em sua individualidade” 8 (p. 382). Em 1988,
os pré-requisitos para a saúde: paz, educação, a Constituição Federal brasileira reforça o tema
moradia, alimentação, renda, ecossistema sau- da promoção quando declara no seu art. 196: “A
dável, justiça social e eqüidade. A promoção da saúde é um direito de todos e dever do Estado, ga-
saúde incorpora, portanto, uma noção ampliada rantido mediante políticas sociais e econômicas
de saúde e passa a se aproximar da idéia de qua- que visem à redução do risco de doenças e outros
lidade de vida. Nessa abordagem, a saúde seria agravos e ao acesso universal e igualitário às ações
resultado de um amplo espectro associado com e serviços para sua promoção, proteção e recupe-
a qualidade de vida, compreendendo um con- ração”. Na década de 90 o Sistema Único de Saú-
junto de valores: justiça social, educação, renda, de (SUS), por meio da Lei nº. 8080/90, incorpora
habitação, alimentação, nutrição, trabalho etc. a noção ampla de saúde dentro do contexto da
Qualidade de vida por sua vez seria uma noção promoção 9. Seguem-se em 1992 os eventos Cú-
relacionada ao grau de satisfação dos indivíduos pula da Terra e Rio 90: Agenda 21, em que se dis-
com o seu meio familiar, social e ambiental. Para cutiu o tema dos ambientes saudáveis. Em 1999,
Minayo et al. 7 (p. 8) “o termo abrange muitos sig- o Ministério da Saúde no Brasil realiza o I Fórum
nificados, que refletem conhecimentos, experiên- Nacional sobre Promoção da Saúde, em Brasília.
cias e valores de indivíduos e coletividades que a O objetivo do fórum consistiu na divulgação das
ele se reportam em variadas épocas, espaços e his- experiências e na criação de espaços para debate
tórias diferentes, sendo, portanto uma constru- em promoção da saúde no país. Posteriormente,
ção social com a marca da relatividade cultural”. a realização da X Conferência Nacional de Saúde

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 23(7):1674-1681, jul, 2007


1676 Ferreira VA, Magalhães R

promoveu o debate acerca dos modelos de aten- torno da promoção da saúde, a partir da aproxi-
ção voltados para a qualidade de vida. mação do tema com o campo da alimentação e
Atualmente, o Ministério da Saúde no Brasil nutrição.
tem subsidiado ações de educação em saúde,
vigilância e reorganização da rede de assistên-
cia básica, com a implementação do Programa O campo da alimentação e nutrição no
Saúde da Família (PSF), Programa Agentes Co- debate da promoção da saúde
munitários de Saúde (PACS), Bolsa Família e Ren-
da Mínima, Aleitamento Materno, Programa de A alimentação e nutrição constituem direitos
Educação e Saúde através do exercício físico e do humanos fundamentais consignados na Decla-
esporte, Programa de Humanização no Pré-Natal ração Universal dos Direitos Humanos e são re-
e Nascimento, entre outros 10. Essas ações têm quisitos básicos para a promoção e a proteção
favorecido a inclusão do tema da promoção na da saúde, possibilitando a afirmação plena do
agenda política de saúde do país 10. Recentemen- potencial de crescimento e desenvolvimento
te realizou-se no Rio de Janeiro, em maio de 2005, humano com qualidade de vida e cidadania. O
o I Seminário Brasileiro de Efetividade da Pro- direito à alimentação é um direito do cidadão,
moção da Saúde, evento promovido pela Escola portanto, dever do Estado e responsabilidade da
Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fun- sociedade. Nesse sentido, a busca em garantir o
dação Oswaldo Cruz, cujo propósito foi analisar direito à alimentação de qualidade para todos os
o impacto das ações sobre promoção da saúde indivíduos, passa pela construção de um novo
no Brasil. Desse encontro resultou as propostas paradigma de sociedade, que tenha como eixo
de expansão das experiências em promoção no central a qualidade de vida do ser humano 11.
país, a construção de uma rede de promoção da Nessa direção, a Declaração de Adelaide 12,
saúde e a criação de um programa de evidência documento produzido na II Conferência Interna-
de efetividade em promoção da saúde no Brasil, cional de Promoção da Saúde realizada em 1988
reunindo a Oficina Regional Latino-Americana na Austrália, destacou como uma das áreas prio-
da União Internacional de Promoção da Saúde e ritárias para a promoção da saúde: a alimentação
Educação para a Saúde (UIPES/ORLA), Associa- e nutrição. A eliminação da fome, da má nutrição
ção Brasileira de Pós-graduação em Saúde Coleti- e dos agravos relacionados ao excesso de peso,
va (ABRASCO) e outras instituições nacionais 10. foi considerada meta essencial para a melhoria
Torna-se apropriado ressaltar, que o discurso da qualidade de vida das coletividades. De acor-
da promoção da saúde se insere no contexto das do com essa declaração, as ações no setor de ali-
limitações do modelo biomédico, que estrutura mentação devem se estruturar no contexto da
toda a organização do complexo médico-indus- segurança alimentar e nutricional, para a garan-
trial. As críticas a esse modelo se dirigem à hege- tia do acesso universal à ração de qualidade em
monia do enfoque curativo, reducionista, hos- quantidade suficiente, com respeito aos aspectos
pitalocêntrico e de alto custo. Tal proposta não sócio-culturais das populações. Para tal, são pro-
equaciona os agravos decorrentes do perfil de postas medidas de integração entre os setores de
morbimortalidade das sociedades contemporâ- produção, distribuição e acesso aos alimentos,
neas 4. Nesse sentido, a promoção da saúde favo- a fim de assegurar o direito eqüitativo e justo à
rece a superação desses impasses, porque amplia alimentação 11. Nesse mesmo ano, a Constituição
o conceito de saúde, incorpora novos princípios Federal brasileira reconhece a alimentação co-
às práticas médicas, diferentes campos de co- mo um direito humano universal. Mas adiante,
nhecimento e, ainda, propõe estratégias organi- no ano de 1999, o Ministério da Saúde no Brasil
zacionais para os serviços de saúde. Dessa forma, elabora a Política Nacional de Alimentação e Nu-
a promoção da saúde visa a enfrentar os limites trição, reforçando a questão da garantia à ração
do modelo biomédico hegemônico e dos mode- alimentar digna 13.
los de intervenção em saúde pública, apontan- No Brasil, inúmeros são os desafios encontra-
do novos direcionamentos para o setor. Dentro dos para que a população alcance um nível óti-
desse contexto, acreditamos que a promoção da mo de nutrição. A complexidade dos problemas
saúde situa-se em processo de construção teóri- alimentares, advindos da transição nutricional
ca e prática. Aponta para o redirecionamento das em curso no país, tem imposto reformulações
políticas e programas de saúde no país. Assim urgentes ao setor, a fim de responder as novas de-
sendo, o debate sobre promoção da saúde nos mandas alimentares. A transição nutricional po-
remete a mudanças nas ações tradicionais no de ser conceituada como um fenômeno no qual
campo da saúde pública e, conseqüentemente, ocorrem mudanças nos padrões de distribuição
elas incluem as práticas nutricionais. Este traba- dos problemas alimentares de uma população.
lho tem por objetivo contribuir para o debate em Em geral, refere-se à passagem da desnutrição

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 23(7):1674-1681, jul, 2007


NUTRIÇÃO E PROMOÇÃO DA SAÚDE 1677

para a obesidade 14. No Brasil, a transição nu- ções se apresentam sob a difícil tarefa encontrada
tricional assumiu um perfil singular 14,15. Assim, pelo nutricionista em realizar uma análise mais
sem equacionar satisfatoriamente os problemas aprofundada acerca da dinâmica dos problemas
alimentares relacionados à carência absoluta de alimentares 17. Conseqüentemente, esse fato gera
alimentos, o país convive com perfis nutricio- entraves na implementação de medidas de in-
nais distintos, por vezes, sobrepostos. Nota-se tervenção mais consistentes. Vale ressaltar que
a evolução da desnutrição, a permanência das essa tem sido uma tendência das profissões da
anemias carenciais e o incremento da obesidade área da saúde. A formação tecnicista se apresen-
e dos agravos relacionados a ela. Tal perfil tem ta como um dos principais empecilhos para a
exigido dos profissionais nutricionistas uma re- prática da integralidade. De tal forma que, atu-
flexão mais aprofundada de seu papel enquan- almente, emerge o movimento para a reforma na
to agente ativo nesse processo. Sem dúvida, a graduação. Nesse sentido, há urgência na defini-
superação dos problemas alimentares no país ção de uma política de Estado para a formação
envolve aspectos intricados. Nesse contexto, a de profissionais de saúde, com base no modelo
proposta de promoção da saúde sugere um ca- da integralidade 18,19,20. Ainda sob esse aspecto,
minho promissor para o campo da alimentação não tem sido incomum verificar a insatisfação
e nutrição. Fundamentalmente por se tratar de dos profissionais nutricionistas com a sua prá-
uma estratégia que articula diferentes setores e tica, deflagrada através de sentimentos de frus-
atores sociais, onde perpassam questões como: tração e impotência frente ao seu trabalho coti-
modelo de saúde sob o enfoque da integralida- diano, como têm demonstrado alguns estudos
de; articulação de saberes técnicos e populares; nacionais com esta categoria 21,22,23. A inclusão
capacitação dos indivíduos; parcerias nas ações; do campo da alimentação e nutrição no debate
intersetorialidade de órgãos públicos e privados; da promoção da saúde parece apontar para avan-
reforço à ação comunitária; educação popular; ços importantes, abrindo novos horizontes para
cidadania; ética pública; entre outros. Qual seria a atuação desses profissionais, os nutricionistas
então o papel da nutrição frente à proposta de sociais. Se por um lado temos a possibilidade de
promoção da saúde? O que esse debate poderia repensar nossa prática enquanto profissionais de
apontar de novo para as práticas nutricionais? saúde e nossa atuação no campo da saúde públi-
Quais as implicações desse modelo para o pro- ca, de outro temos importantes percalços a serem
fissional nutricionista? superados. O desafio, portanto, está em superar
práticas convencionais e fragmentadas, decor-
rentes desse modelo de formação profissional.
Nutrição para a promoção da saúde A ação que envolve o segundo campo de atu-
ação em promoção da saúde refere-se à articula-
Tomando como referência os campos de ação ção de saberes técnicos e populares. Essa ação se
em promoção da saúde supracitados, a proposta aproxima fundamentalmente da discussão ante-
deste trabalho é refletir sobre a atuação do pro- rior, pois implica transcender modelos tradicio-
fissional nutricionista no contexto da promoção nais de atuação em nutrição. Ações de promoção
da saúde. Nessa direção, no que compreende a da saúde impõem a criação de espaços democrá-
adoção do modelo de atenção sob o enfoque da ticos e participativos, a fim de estabelecer uma
integralidade, o desafio imposto à categoria dos aproximação com a realidade dos indivíduos e
nutricionistas remete a mudanças estruturais, das populações. O objetivo é tentar responder
que têm início na própria formação acadêmi- melhor às demandas de saúde e nutrição. Des-
ca do profissional. Analisando os currículos dos sa forma, abordagens persuasivas e ações verti-
cursos de nutrição, notamos que eles se apresen- cais devem ser substituídas por estratégias mais
tam moldados sob a vertente biológica da aten- amplas provenientes da relação profissional-pa-
ção clínico-assistencial estruturada no modelo ciente, a partir do somatório de saberes técnicos
biomédico dominante. E, em contrapartida, na e populares. Nesse aspecto, torna-se imprescin-
deficiente abordagem prestada às questões po- dível superar a relação hierárquica entre o profis-
líticas, sócio-econômicas e culturais necessárias, sional e o usuário.
não somente para a construção de uma análise No âmbito das ações direcionadas à capacita-
crítica a respeito da conjuntura alimentar dos ção dos indivíduos, o propósito será garantir con-
grupos populacionais, mas para as medidas de dições para que a população possa exercer sua
atenção em saúde. A repercussão desse fato es- autonomia decisória, optando por escolhas ali-
tá na dificuldade de articular os conhecimentos mentares mais saudáveis. Nesse aspecto, a edu-
biológicos da nutrição com sua dimensão social, cação nutricional assume um papel fundamental
prejudicando a percepção da totalidade do fenô- para o exercício e fortalecimento da cidadania
meno sob estudo 16,17. Na prática, essas implica- alimentar. A prática do nutricionista assume o

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 23(7):1674-1681, jul, 2007


1678 Ferreira VA, Magalhães R

desafio de promover uma educação nutricional sociedades onde existem agravos relacionados
eficaz, com ações que promovam mudanças nos à má nutrição tal como o Brasil, verifica-se tam-
hábitos alimentares dos indivíduos e de suas fa- bém desigualdades no acesso e na produção dos
mílias. Sob esse aspecto é interessante destacar alimentos 27. Nesse aspecto, medidas de demo-
que na primeira publicação da OMS, que tratou cratização dos recursos produtivos por meio da
especificamente da questão da educação nutri- inclusão dos indivíduos e das comunidades nes-
cional, já se fazia referência sobre a importância se processo são fundamentais. As ações de incen-
do ensino de bons hábitos alimentares para as tivo à agricultura familiar, a hortas comunitárias,
populações 24. Assim, outro ponto fundamental a a cooperativas agrícolas, se apresentam como al-
ser destacado quando se propõe a articulação do ternativas viáveis. Devemos destacar que as desi-
campo da alimentação e nutrição no contexto de gualdades no acesso à ração alimentar digna, se
promoção da saúde é justamente o tema da edu- refere a uma produção social e econômica, que
cação nutricional. Destacamos que a educação deve ser combatida pelos nutricionistas sociais.
nutricional a qual nos referimos, diz respeito a Torna-se necessário ressaltar ainda, a importân-
um processo de aprendizagem e não de adestra- cia do diagnóstico consistente por parte dos nu-
mento. Educar no sentido de um processo amplo tricionistas, a fim de reconhecer as reais condi-
de desenvolvimento da pessoa, na busca de sua ções de nutrição dos indivíduos e comunidades
integração e harmonização, nos diversos níveis assistidas. A partir dele será possível propor me-
do físico, do emocional e do intelectual 25. Deve didas educativas de maior resolutividade. Dessa
envolver metodologia de ensino-aprendizagem maneira, se os problemas alimentares decorrem
para o desenvolvimento de habilidades individu- da dificuldade de acesso aos alimentos, pouco
ais, que permitam enfrentar as questões relacio- impacto terão as técnicas de aconselhamento e
nadas à alimentação e nutrição. orientação alimentar.
A análise acerca da educação nutricional no Ações que se propõem ao reforço à ação co-
Brasil 26 revela desafios importantes à categoria munitária devem sobrepor atividades de educa-
profissional dos nutricionistas. Embora seja dis- ção nutricional de aconselhamento. Demandam
ciplina obrigatória dos currículos de nutrição e a criação de espaços públicos, que possam de-
conteúdo das práticas desenvolvidas por esses senvolver o pensamento crítico para a identifi-
profissionais, a fragilidade de integrá-la com dis- cação de problemas e a elaboração de estratégias
ciplinas de cunho social tal como nos referimos para sua superação. Implica a valorização de es-
anteriormente, tende a comprometer a qua- paços para o debate e o estabelecimento de par-
lidade e a eficácia dos programas de educação cerias entre profissional-usuário-comunidade.
nutricional. Isso porque a contextualização dos No âmbito coletivo, ao educador caberia assumir
problemas alimentares, a partir da agregação de seu papel de agente político. A participação na
disciplinas provenientes do campo das ciências formulação das políticas, programas e ações em
humanas e sociais, mostra-se essencial nesse alimentação e nutrição junto ao poder público,
processo 17. Observa-se que o modelo tradicio- assim como, sua articulação com as organiza-
nal da educação nutricional normalmente não ções não-governamentais, o setor privado e a
propõe métodos de ensino problematizadores e sociedade civil são fundamentais. A inserção nos
construtivistas. Em geral, o método tradicional espaços educativos, tais como creches, escolas
de educação nutricional se concentra nos efei- e nos meios de comunicação de massa também
tos biológicos dos nutrientes no organismo, na devem ser fomentadas. É imprescindível ainda,
orientação alimentar, e ainda, na preservação que o educador promova, ou esteja engajado, em
das propriedades nutritivas dos alimentos envol- debates, encontros, seminários, sejam eles locais
vendo as técnicas de preparo e armazenamento. ou nacionais, para o fortalecimento das ações de
Tais ações podem ser consideradas benéficas já educação nutricional.
que, em algumas circunstâncias, verifica-se que A educação popular, por sua vez, compreen-
os indivíduos apresentam desconhecimento de todos os aspectos já discutidos. Deve envolver
sobre a questão alimentar. Entretanto, é preciso atividades direcionadas a: mudança comporta-
reconhecer que o Brasil é um país extenso, que mental, informações sobre políticas públicas vi-
apresenta contrastes e desigualdades sociais que gentes, assim como o incentivo ao exercício per-
acabam por comprometer o acesso da população manente dos diretos e deveres, especialmente os
ao direito universal à alimentação. A desigualda- relacionados à alimentação. Importante enfocar
de no acesso à ração alimentar é uma realidade nessas ações, informações nutricionais e educa-
vivenciada por parcelas significativas da popu- ção com enfoque na higiene e saúde. Por fim, o
lação brasileira. Ou seja, o país apresenta uma último campo de ação em promoção da saúde re-
enorme fragilidade no que se refere à questão da monta à questão da intersetorialidade das ações e
segurança alimentar e nutricional 27. Assim, nas será discutido a seguir.

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 23(7):1674-1681, jul, 2007


NUTRIÇÃO E PROMOÇÃO DA SAÚDE 1679

O desafio da intersetorialidade Importante destacar que a estratégia da in-


tersetorialidade é especialmente importante pa-
O debate em torno da promoção da saúde parte ra a área de segurança alimentar e nutricional.
do pressuposto de que saúde e qualidade de vida Reconhecidamente a questão alimentar é com-
não dependem do oferecimento isolado de um plexa e impõe a formação de alianças por envol-
dado serviço, mas sim, da oferta de um conjunto ver diferentes esferas das políticas públicas, tais
de condições de vida e de trabalho 28. Trata-se, como a produção, comercialização, distribuição
portanto, de uma proposta que implica formação e consumo de alimentos, controle de qualidade,
de alianças, estabelecimento de parcerias e inter- estímulo à educação nutricional, dentre outras
setorialidade nas ações. A questão da interseto- ações 30. A intersetorialidade se apresenta, assim,
rialidade apresenta-se como principal estratégia como uma estratégia prioritária na construção
para implementação da proposta de promoção de espaços legítimos para o diálogo entre os di-
da saúde. Consiste no reconhecimento de que o ferentes setores envolvidos na dinâmica alimen-
setor saúde isoladamente não consegue respon- tar, visando a assegurar o acesso à alimentação
der às demandas de saúde da população, criando digna.
com isso a necessidade de articular as ações de O estabelecimento de parcerias impõe des-
saúde com os demais setores da sociedade. Buss prendimento, ousadia, envolvimento e criativi-
& Ramos 29, ao fazerem referência ao tema da in- dade para os profissionais nutricionistas porque
tersetorialidade, alertam que, para sua efetivação, rompe com as formas convencionais de atuação
há necessidade de superar e romper as barreiras da categoria. Nesse sentido, parcerias setoriais, o
comunicacionais. Para os autores são elas que somatório de saberes técnicos e populares, a su-
impedem o diálogo entre os diferentes setores. peração do modelo biomédico dominante com
Refletindo especificamente sobre a prática a incorporação da visão integral dos indivíduos,
do nutricionista, a questão intersetorial pode assim como, a habilidade técnica desses profis-
nortear a atuação destes profissionais nos diver- sionais (com ênfase na educação nutricional),
sos cenários, que ultrapassam o âmbito das uni- nos parece ser o caminho para incorporar a nu-
dades de saúde. Isso porque, tradicionalmente, a trição dentro da proposta de promoção da saúde.
prática do nutricionista em unidades de atenção Sabemos não se tratar de tarefa fácil, porém ela
primária de saúde se configura pela atuação do nos é requisitada e, portanto, necessária. Como
profissional no consultório, por meio do atendi- mencionamos anteriormente, a transição nutri-
mento ambulatorial, integrado ou não, ao traba- cional em curso no país, justifica a mobilização
lho em equipe. Cabe ao nutricionista promover dos nutricionistas sociais nas ações de promoção
intervenção alimentar através do atendimento da saúde.
individualizado ou em grupo, e realizar ativi-
dade preventiva de educação nutricional. São
ainda atribuições do profissional nutricionista Conclusão
nas unidades locais: a vigilância nutricional e a
elaboração de estatísticas sobre as atividades de- Por fim, destacamos que os desafios impostos
sempenhadas nas unidades. Assim, o cotidiano para o campo da nutrição no contexto da pro-
de práticas desempenhadas por esses profissio- moção da saúde são inúmeros. No entanto,
nais nas unidades básicas de saúde apresenta-se tais desafios apontam para a possibilidade de
circunscrito ao consultório, ou no máximo, em compatibilizar diferentes olhares e perspectivas
atividades dentro da própria unidade. A partir teórico-metodológicas na direção do diálogo
da intersetorialidade é possível inserir a nutri- interdisciplinar. Repensando seu lugar como
ção em outros ambientes sociais, tais como nas profissional da área da saúde e reintegrando as
escolas públicas e privadas; na comunidade por práticas alimentares ao conjunto de experiên-
intermédio dos agentes comunitários de saúde, cias, saberes e intervenções voltadas ao atendi-
das associações de moradores e do próprio PSF mento das necessidades sociais dos indivíduos e
proposto pelo Ministério da Saúde; no ambiente grupos sociais, o nutricionista pode avançar na
de trabalho formal; nas ações de vigilância sani- construção de uma proposta de atuação capaz
tária; nos órgãos de comunicação em geral; nas de contribuir para a redução das iniqüidades em
organizações não-governamentais (ONGs); em saúde e a garantia da qualidade de vida. Nesse
zonas agrícolas; enfim, inúmeros são os espaços esforço, portanto, a discussão da efetividade das
nos quais a nutrição pode estar articulada. Fun- ações, o aprendizado com as experiências em
damentalmente, essa inserção coloca a temática curso, a escolha de novas ferramentas metodo-
da nutrição no cerne das discussões nos diversos lógicas devem penetrar na formação e no exer-
espaços sociais, fortalecendo dessa maneira, es- cício profissional, tendo por intuito romper a
se campo de práticas. fragmentação tecnicista tradicional e promover

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 23(7):1674-1681, jul, 2007


1680 Ferreira VA, Magalhães R

a integralidade, a intersetorialidade, a eqüidade belece, assim, elos fortes com o debate acerca
e a participação social. A mobilização em torno da formulação e implementação de políticas e
de uma nova prática para o nutricionista esta- ações de promoção da saúde.

Resumo Colaboradores

A promoção da saúde tem ao longo dos últimos anos V. A. Ferreira foi responsável pela elaboração, redação
se apresentado como uma estratégia promissora para e revisão do artigo. R. Magalhães participou da elabo-
o campo da Saúde Pública. Este estudo propõe articu- ração e revisão do artigo.
lar o tema da nutrição no debate contemporâneo da
promoção da saúde, analisando o papel dos nutri-
cionistas neste processo. Frente ao reconhecimento da
complexidade do quadro alimentar brasileiro advindo
da transição nutricional em curso no país, a proposta
de promoção da saúde aponta perspectivas, mas tam-
bém desafios ao campo da alimentação e nutrição. Em
linhas gerais, novas exigências relacionadas à forma-
ção acadêmica e ao modelo de atenção tendem a for-
talecer a busca de parcerias, inovação das práticas ali-
mentares à educação nutricional voltada à construção
da cidadania alimentar.

Promoção da Saúde; Educação Alimentar e Nutricio-


nal; Transição Nutricional; Nutrição

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 23(7):1674-1681, jul, 2007


NUTRIÇÃO E PROMOÇÃO DA SAÚDE 1681

Referências

1. Winslow CEA. The untilled fields of public health. 17. Bosi MLM. A face oculta da nutrição: ciência e
Science 1920; 51:23. ideologia. Rio de Janeiro: Editora Espaço e Tempo;
2. Sigerist H, editor. The university at the crossroad. 1988.
Nova York: Henry Schumann Publisher; 1946. 18. Bosi MLM. Profissionalização e conhecimento: a
3. Leavell S, Clark EG. Medicina preventiva. São Pau- nutrição em questão. São Paulo: Editora Hucitec;
lo: McGraw-Hill; 1976. 1996.
4. Buss PM. Promoção da saúde e qualidade de vida. 19. Pinheiro R, Mattos RA, organizadores. Construção
Ciênc Saúde Coletiva 2000; 5:163-77. da integralidade: cotidiano, saberes e práticas em
5. Czeresnia D, Freitas CM, organizadores. Promoção saúde. Rio de Janeiro: Eduerj/ABRASCO; 2003.
da saúde: conceitos, reflexões, tendências. Rio de 20. Ceccim RB, Feuerwerker LCM. Mudança na gradu-
Janeiro: Editora Fiocruz; 2003. ação das profissões de saúde sob o eixo da integra-
6. Buss PM. Uma introdução ao conceito de promo- lidade. Cad Saúde Pública 2004; 20:1400-10.
ção da saúde. In: Czeresnia D, Freitas CM, organi- 21. Mattos RA. A integralidade na prática (ou sobre a
zadores. Promoção da saúde: conceitos, reflexões, prática da integralidade). Cad Saúde Pública 2004;
tendências. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2003. 20:1411-6.
p. 15-38. 22. Prado SD. Autonomia tentadora e reificada: estu-
7. Minayo MCM, Hartz ZMA, Buss PM. Qualidade de do sobre nutricionistas dos Centros Municipais de
vida e saúde: um debate necessário. Ciênc Saúde Saúde do Rio de Janeiro [Dissertação de Mestra-
Coletiva 2000; 5:7-18. do]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pú-
8. Ministério da Saúde. 8a Conferência Nacional de blica, Fundação Oswaldo Cruz; 1993.
Saúde: relatório final. Brasília: Ministério da Saú- 23. Amorim STSP, Moreira H, Carraro TE. A formação
de; 1986. de pediatras e nutricionistas: a dimensão humana.
9. Ministério da Saúde. Lei Federal nº. 8.080, de 19 Rev Nutr 2001; 14:111-8.
de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições 24. Bosi MLM. Trabalho e subjetividade: cargas e so-
para a promoção, proteção e recuperação da saú- frimentos na prática da nutrição social. Rev Nutr
de, a organização e o funcionamento dos serviços 2000; 13:107-15.
correspondentes e dá outras providências. Diário 25. Ritchie JAS. Buenos hábitos en la alimentación:
Oficial da União 1990; 19 set. métodos para inculcarlos al público. Rome: Food
10. Buss PM. Promoção da saúde no Brasil. I Seminá- and Agricultural Organization; 1951. (Estudios so-
rio Brasileiro de Efetividade da Promoção da Saú- bre Nutrición, 6).
de. http://www.ensp.fiocruz.br/eventos_novo/ 26. Boog MCF. Educação nutricional: passado, presen-
dados/arq547.ppt (acessado em 20/Jul/2005). te e futuro. Rev Nutr 1997; 10:5-19.
11. Valente FLS. Direito humano à alimentação: desa- 27. L’Abbate S. As políticas de alimentação e nutrição
fios e conquistas. São Paulo: Editora Cortez; 2002. no Brasil. II. A partir dos anos setenta. Rev Nutr
12. Ministério da Saúde. As cartas da promoção da 1989; 2:7-54.
saúde. Brasília: Ministério da Saúde; 2002. 28. Valente FLS. Fome e desnutrição: determinantes
13. Ministério da Saúde. Política nacional de alimen- sociais. São Paulo: Editora Cortez; 1988.
tação e nutrição. Brasília: Ministério da Saúde; 29. Buss PM, Ramos CL. Desenvolvimento local e
1999. agenda 21: desafios da cidadania. Cadernos da
14. Kac G, Velásquez-Melendez G. A transição nutri- Oficina Social 2000; 3:13-65.
cional e a epidemiologia da obesidade na América 30. Inojosa RM, Junqueira LAP. O setor saúde e o de-
Latina. Cad Saúde Pública 2003; 19 Suppl 1:S4-5. safio da intersetorialidade. Cad FUNDAP 1997;
15. Escoda MSQ. Para a crítica da transição nutricio- 21:156-64.
nal. Ciênc Saúde Coletiva 2002; 7:219-26.
16. Sichieri R, Coitinho D, Pereira R, Marins V, Moura A. Recebido em 01/Jun/2005
Variações temporais do estado nutricional e do Versão final reapresentada em 04/Jan/2007
consumo alimentar no Brasil. Physis (Rio de J) Aprovado em 10/Jan/2007
1997; 7:31-50.

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 23(7):1674-1681, jul, 2007

Você também pode gostar