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Literatura e história: diálogos e contaminações

Pós 2018
Júlio Pimentel Pinto
Aula 5

Ficção e realidade: verdades e mentiras,


a visibilidade e a leitura criativa do passado

Dominick LaCapra. “History, Time, and the Novel: Reading Woolf’s To The Lighthouse”. History, Politics and the
Novel. Ithaca: Cornell University Press, 1987, p. 129-149.
Philip Roth. Os fatos: a autobiografia de um romancista. São Paulo: Companhia das Letras, 2016 (original: 1988), p.
9-16.
Mario Vargas Llosa. “La verdad de las mentiras”; “La vida intensa y suntuosa de lo banal”; “La literatura y la vida”.
La verdad de las mentiras. Buenos Aires: Alfaguara, 2002, p. 15-30; 77-85; 383-402.
Erich Auerbach. “A meia marrom”; “Epílogo”. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. São
Paulo: Perspectiva, 1971 (original: 1946), p. 459-489.
seminário: Jacques Rancière. O fio perdido: ensaios sobre a ficção moderna. São Paulo: Martins Fontes, 2017
(original: 2013).

dos limites do projeto realista no romance do XIX à sua transformação no XX


(exemplificando com Ao farol, de Virginia Woolf)

— Stendhal, num texto de 1822, ironizou, de forma divertida, a metáfora do espelho,


reorientando-a, e comparou a ficção a um espelho que se move ao longo de uma
estrada: “um espelho que alguém carrega, e que reflete a realidade comezinha a cercar
esse alguém, uma realidade muito específica que a esse indivíduo acomete” (De l’amour,
p. 34)
— Peter Gay, em obra bastante posterior, completou: é um espelho que se move
ao longo de uma rodovia e que, sobretudo, distorce (Gay, p. 18)
[ou seja, fracassa o esforço de se tornar a “inscrição pura, imediata, imanente do
mundo, e mesmo superior a ele, por revelar a estrutura que nele se esconde” (Fuks, p.
13)]

— também Flaubert, ao apontar, ainda no XIX, a “agonia do romance”, enfatizou que o


que se pretendia universal era, na verdade, uma sensibilidade singular, criada num
tempo e por um olhar, tempo e olhar específicos (Cartas, p. 110)
— ou seja, Flaubert propõe a intromissão da especificidade, da individualidade
(logo, da diversidade e do perspectivismo) no que se supunha total e uno

— Auerbach conclui: “o realismo moderno sério não pode representar o homem senão
engastado numa realidade político-socioeconômica concreta e em constante evolução”
(movimento), “o realismo precisa ser adjetivado”
— nenhum realismo (assim como nenhuma verdade) é isento de caracterização
que o especifique e elimine o sentido de plenitude, nenhuma obra se refere a um
“contexto”: ela remete a uma experiência histórica ampla e pouco ou nada
apreensível na sua completude (Auerbach, p. 480)

— Woolf mostra a “‘representação da consciência pluripessoal’ [...] As representações


da consciência não estão presas à presença do acontecimento exterior, pelo qual foram
liberadas”: perspectiva como consciência (Auerbach, p. 475-476)
[os “ritmos escorredios da consciência”, para Vargas Llosa, p. 78]
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— “a realidade exterior, objetiva do presente de cada instante, que é relatada pelo


autor de forma imediata e que aparece como fato seguro, isto é, a mediação da meia,
nada é senão ocasião (ainda que não seja uma ocasião totalmente casual): todo o peso
repousa naquilo que é desencadeado, o que não é visto de forma imediata, mas como o
reflexo e o que não está preso ao presente do acontecimento periférico liberador.”
(Auerbach, p. 475)
[“reflexo” não é empregado pro Auerbach como reproduão da realidade exterior, mas
justamente como o oposto: como distorção]

— o referente desencadeia, mas não conduz, nem completa o processo; o


significado é construído fora dele, e multiplamente, pelas múltiplas consciências
— a elisão do discurso, própria da representação de pendor realista (e de esforço
mimético), é substituída pela valorização extrema do processo de construção
(jamais única) de significados
— Auerbach levanta a hipótese de que a nova percepção da realidade seja própria
do XX e tenha derivado da angústia da I GGM; a memória, para Auerbach (no
romance de Woolf), é “randômica” (LaCapra, p. 133-136); logo, a percepção do
tempo não é linear, nem controlada
— outra característica importante em Woolf: o evento exterior desencadeador
fica “fixado na consciência rememorante”, os “acontecimentos são sempre
pequenos, insignificantes, escolhidos ao acaso [...]. Não ocorrem grandes
mudanças, momentos cruciais exteriores da vida, ou catástrofes” (Auerbach, p.
480)
— ou seja, o evento externo vale mais pela persistência na memória (onde
é reinventado na “rememoração”) e é banal, cotidiano, um detalhe, “as
miúdas sabedorias” (Borges), um “indício imperceptível”, uma “pista”
(Ginzburg, “Sinais: raízes de um paradigma indiciário”)
[é possível, a partir dessa consideração, cogitar que a virada epistemológica do final do
XIX, baseada na semiologia médica, tenha tido mais peso na construção dessa
sensibilidade do que a I GGM (como aventa Auerbach); ou (mais pertinente) que não
haja apenas um evento fundador]

— é a proposta de Kracauer na epígrafe usada por LaCapra: para “atacar” um


texto, é preferível concentrar-se nos close-ups, nos detalhes que permitem a
percepção casual do conjunto (um relampejar benjaminiano?) (LaCapra, p. 129)
— LaCapra ainda considera, através de Joseph Frank, um retorno ao idealismo (o
“neoplatonismo proustiano/joyceano/poundiano/elliotiano” inclui a retomada de
referências míticas, que agora surgem combinadas com a história) como
contraponto ao realismo do XIX e como base para a técnica de “justaposição
entre aspectos do passado e do presente, que se fundem numa perspectiva
compreensiva” (LaCapra, p. 132)
[substituindo a linearidade da representação (didática?) cronológica, obediente à linha
do tempo; La Capra, sempre via Frank, considera a possível ahistoricidade do
procedimento (“A história torna-se ahistórica”), mas conclui (também com Frank) que o
que ocorre, por trás da unidade temporal provocada pela justaposição, é uma apreensão
“espacial” (tridimensional/com profundidade) do tempo — que acentua as diferenças e
reintroduz a história]

— LaCapra propõe sua leitura do romance de Woolf


[após contrastar sucintamente Frank e Auerbach e constatar que, apesar das diferenças,
ambos centram sua discussão sobre Woolf na dicotomia tempo/temporalidade]
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— Ao farol “problematiza a dicotomia”: não há simples justaposição (Frank), nem


contraposição entre tempo linear e atemporalidade (Auerbach): a memória
suporta o passado, mas não consegue interromper o fluxo do tempo, ou sua
rememoração como uma “repetição com diferenças” (Deleuze); “Eventos
particulares reaparecem com variações mais ou menos significativas a partir [da
ocorrência] de eventos que permitem, de forma fluida, a manifestação de
perspectivas variadas e modulações explosivas na voz narrativa” (LaCapra, p. 138)
— diagrama dos deslocamentos (LaCapra, p. 138): da diacronia (dos eventos)
passa-se à sincronia (entre momentos, que são provocados pela ocorrência dos
eventos); os grandes eventos (por exemplo, a I GGM) aparecem de forma indireta,
sutil, mas palpável, e podem transformar “os momentos” (LaCapra, p. 141); a
“grande história” (diacrônica) invade a vida privada e subverte as reações e
relações (sincrônicas), combinando a esfera pública e a esfera privada,
transitando entre o realismo e o lirismo (LaCapra, p. 142), entre dimensões
concretas e evocativas
— a história diacrônica é o “tempo que passa”, lembra Rancière: “não é apenas o
intervalo dos anos de guerra durante os quais a casa de veraneio é abandonada. É
um intervalo em que o tempo age sozinho sobre as coisas, produz sozinho os
acontecimentos, sem ser medido por nenhum limite temporal ou por nenhuma
escansão de alguma atividade ou projeto humano. [...] É assim que os
acontecimentos identificáveis da vida pessoal são colocados entre parênteses.
[...] Mas é em vão que o texto opõe a segurança desse diamante impessoal aos
incidentes da vida doméstica simbolizados pela morte entre parênteses da
desafortunada Prue Ramsay. [...] O tempo autônomo da grande vida impessoal
continua sendo um parêntese entre duas cenas familiares, entre a noite do
passeio recusado e a manhã do passeio imposto” (Rancière, p. 60-63)
[ainda que a leitura de Ao farol de Rancière não se compare às de Auerbach ou LaCapra
— e soe um pouco limitada na sua insistência na separação das dimensões do tempo (a
“grande história” vs. a “história pessoal”) —, ela propõe com argúcia o tema do impasse
na representação do real]

— é por isso que Vargas Llosa atesta o fim do realismo mimético e afirma que, em
termos formais, as transformações (ou modulações) em Woolf manifestam-se na
“alternância entre o estilo indireto livre e o monólogo interior” (Vargas Llosa, p.
83)
[Vargas Llosa cola o movimento de Woolf a Flaubert (pelo emprego sistemático do
indireto livre) e a Joyce (pela insistência nos monólogos interiores); nos dois casos,
Woolf deriva de autores e obras que rejeitaram frontalmente o mimetismo]

— a combinação entre esferas e percepções distintas também se manifesta na


concepção de arte (o quadro de Lily Briscoe): da constatação (na parte I) sobre os
limites da sua autonomia (uma vez que, no início, a pintura é sempre associada às,
ou limitada pelas, relações sociais que a cercam, à relativa libertação (na parte
III) do trabalho da artista (LaCapra, p. 148)

— problema, porém, é: a que ponto chegamos? Sem espelhamento ou reflexo, teríamos


atestado a impossibilidade do recurso à ficção por historiadores?
— caminho oferecido por Woolf e seus comentadores (Auerbach, Frank, LaCapra):
pensar o tempo, as relações entre o tempo e as temporalidades; refletir sobre as
apreensões e representações das temporalidades e sobre a “filtração” do evento
pelos momentos
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das verdades e das mentiras (ou: a ficção lendo criativamente o passado)

— Reinhart Koselleck: “a teoria da história é sobretudo a teoria das condições de


possibilidade da história” (Koselleck, L’expérience de l’histoire, p. 228): qual é a
“possibilidade da história” que a ficção nos abre? Sigamos dois “depoimentos”: Roth e
Vargas Llosa

— Vargas Llosa:
“A literatura é, por excelência, o reino da ambiguidade. Suas verdades são sempre
subjetivas, meias-verdades, relativas, verdades literárias constituem-se, com frequência,
em inexatidões, mentiras flagrantes ou históricas. [...] Os homens não vivem apenas de
verdades; também precisam das mentiras: as que inventam livremente, não as que lhes
são impostas; as que se apresentam como o que são, não as contrabandeadas sob a
roupagem da história.” (Vargas Llosa, p. 23 e 29)

“Para conquistar sua soberania, um romance deve emancipar-se da realidade real,


impor-se ao leitor como uma realidade distinta, dotada de certas leis, de um tempo, uns
mitos ou outras características próprias e intransferíveis. Aquilo que confere a um
romance sua originalidade — sua diferença frente ao mundo real — é o elemento
acrescentado, soma ou resto do que a fantasia e a arte do criador levam a cabo na
experiência objetiva e histórica — ou seja, no reconhecível por qualquer pessoa através
de sua própria vivencia — ao transmutá-la em ficção. O elemento acrescentado nunca é
apenas um enredo, um estilo, uma ordem temporal, um ponto de vista: é sempre uma
complexa combinação de fatores que incidem tanto na forma como no enredo e nos
personagens de uma história, para dotá-la de autonomia. Só as ficções fracassadas
reproduzem o real; as bem sucedidas o aniquilam e o transfiguram.” (Vargas Llosa, p.
79)

— Roth:
“Até hoje sempre utilizei o passado como base para uma transfiguração, entre outras
coisas como uma espécie de intrincada explicação de meu mundo para mim mesmo. Por
que me expor sem transfigurações diante das pessoas [...]?” (Roth, p. 10)

“este manuscrito contém o avesso da minha vida [...] Se este manuscrito significa
alguma coisa, essa coisa é meu cansaço com as máscaras, com os disfarces, com as
distorções e as mentiras. [...] [para escrever ficção, é preciso] chicotear os fatos
suficientemente para tornar a vida real mais instigante. Remoer a experiência,
embelezar a experiência, rearrumar e expandir a experiência numa espécie de mitologia”
(Roth, p. 12-13)
[não esqueçamos que a autobiografia de Roth, de cuja inocência ele próprio suspeita, é
apresentada em carta a Zuckerman, seu personagem de ficção, que responde à carta e
questiona seus pressupostos “verazes” no final do volume)

— para concluir: a construção da ficção (afastada da disposição realista mimética) é a


combinação discursiva de múltiplas temporalidades; é o cruzamento da experiência
vivida com a imaginação, que se intromete e permite ultrapassar significados restritos,
constituindo significados amplos. Sobretudo (e mais importante) expondo os mecanismos
textuais de invenção e valorizando, por meio do privilégio dado aos detalhes, a
diversidade de consciências e de perspectivas (sempre instáveis e sincrônicas).

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