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Nesse meio, tem aqueles críticos que nunca gostaram muito da ideia e usam frases
como as três acima como exemplo para justificar sua opinião, diagnosticando que tudo se
trata de fragmentação identitária, pensamento pós-moderno, censura à liberdade de
expressão, desqualificação do interlocutor (falácia Ad Hominem), ou qualquer outra coisa
que considerem desprezível.
Mas e se déssemos dez passos para trás para questionar se afirmações como “você
não tem lugar de fala” não estariam baseadas em um profundo mal entendido? Estamos
todos falando sobre a mesma coisa?
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Isso não seria necessariamente ruim, se não tivesse sido apropriada por quem que
nunca mostrou se preocupar com a promoção de equidade social, ou seja, de
oportunidades iguais para todos os grupos sociais, embora a expressão em si tenha surgido
nesse sentido. Fora que muitos parecem usá-la em trocas de acusações que não costumam
chegar a lugar nenhum. A não ser ganho de likes e seguidores.
Segundo Ribeiro, a expressão tem uma origem incerta. Porém, sabe-se que ganhou
força desde a segunda metade do século XX com o questionamento de movimentos
sociais feministas, antirracistas e críticos ao colonialismo acerca da autoridade discursiva
(quem pode falar?) e de sua pauta pela marcação do lugar social a partir do qual cada um
fala.
Isso não quer dizer que só oprimidos podem falar sobre oprimidos, pois a filósofa
enfatiza que quem se beneficia de uma opressão não pode ser dispensado da
responsabilidade de combatê-la, seja falando, escrevendo, lendo ou escutando. Inclusive,
estudando temas pouco populares como a branquitude, a masculinidade e as relações de
poder na sociedade.
Ao invés de calar alguém, perguntar sobre lugares de fala é questionar por que
tanta gente foi calada até hoje. Por que a autoridade para falar sobre tudo e todos foi
sistematicamente a de quem se beneficiou das opressões? Por que costumam falar como
se estivessem num não-lugar, como se fossem sujeitos universais?
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Acontece que foi provado por A + B que a montanha não existe. Isto é, nenhuma
análise científica é feita no cume da montanha, como se o sujeito da ciência fosse um
“deus único, cujo Olho produz, apropria e ordena toda a diferença”, como bem
argumentou Donna Haraway no artigo “Saberes Localizados” de 1988.
Mesmo assim, tem quem se agarre no cume da montanha e acuse essa visão crítica
de “pós-moderna” ou identitarista. Em contraposição a acusações como essas, basta
lembrar da vertente teórico-política que analisa as interseções de opressões, que está longe
de se colocar para além da modernidade, do capitalismo ou de pautar o reconhecimento
de identidades e vivências particulares sem relação entre si. O título de um dos livros da
feminista negra socialista Angela Davis resume tudo: Mulheres, Raça e Classe (1981).
As hierarquizações da modernidade permanecem e a nossa posição social se dá numa
matriz de dominação.
Dog das Humanas: “Tem ponto de vista que não quer se reconhecer como ponto de vista…”
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Contudo, é bom lembrar que o ato de duvidar do que cremos saber não se restringe
às Humanas. É parte da tal da “vigilância epistemológica” do “espírito científico” que
deveria permear todas as ciências para não se confundirem com opiniões, como defendia
o filósofo e poeta Gaston Bachelard.
Que bom que sabemos dos perigos da opinião! Senão em pleno século XXI ainda
teria cientista que naturalizaria diferenças socialmente construídas. E que direta ou
indiretamente buscaria provar preconceitos e justificar discriminações com a máscara de
ciência.
É inevitável que nós cientistas sejamos tentados a buscar “encontrar” aquilo que,
pelos nossos valores, gostaríamos ou supomos que fosse a realidade. Mas como Bachelard
já alertava em “A Formação do Espírito Científico” (1938), isso é um obstáculo ao
conhecimento, pois a realidade não pode ser achada: “Se não há pergunta, não pode haver
conhecimento científico. Nada é evidente. Nada é gratuito. Tudo é construído”.
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Produzimos dados científicos através das perguntas que fazemos. E como a crítica
à neutralidade evidenciou, essas perguntas são feitas a partir de nossos pontos de vista,
marcados por diferenças construídas historicamente. Por isso é fundamental explicitá-los.
Ou sejE, a pergunta inicial desse texto, “cientistas têm lugar de fala?”, está mal
formulada de propósito, porque o debate por vezes desandou para esse “ter ou não ter
lugar de fala, eis a questão”. E isso foi apropriado até por correntes que defendem a
desigualdade de oportunidades e o silenciamento de vozes plurais. Como na ideia de que
“só pode falar sobre a ditadura militar quem viveu o período e que concorda com minha
opinião favorável à ditadura” (Bachelard se revira no túmulo). Ou ainda “você homem
que discorda da minha opinião, está roubando meu lugar de fala de mulher”, sendo que
esta defende falas machistas e aquele denuncia o machismo (pois é, tá tendo!).
Esse texto é apenas o primeiro de uma série sobre a produção científica: quem faz,
como se reproduz, como é representada?