Você está na página 1de 4

EDITORIAL

EDITORIAL

DIGNIDADE SEXUAL E PROTEÇÃO NO SISTEMA PENAL

SEXUAL DIGNITY AND PROTECTION CRIMINAL SYSTEM

José Henrique Rodrigues Torres *

Torres JHR. Dignidade sexual e proteção no sistema penal. Rev. Bras. Cresc. e Desenv.
Hum. 2011; 21(2): 7-10

De nada adiantou Hércules libertar Pro- ameaça ou fraude, para fim libidinoso: Pena –
meteu dos rochedos que o aprisionavam, pois o reclusão, de dois a quatro anos), mesmo ha-
miserável Titã continuou a eles acorrentado, vendo violência ou grave ameaça, era preciso
eternamente, por um anel feito com uma pedra demonstrar que a mulher raptada era honesta.
deles extraída. Com relação ao tratamento E o conceito de honestidade da mulher era
legislativo dado à sexualidade, especialmente determinado, exclusivamente, por padrões
no âmbito do direito penal, o sistema jurídico androcêntricos, que estabeleciam rigoroso contro-
brasileiro sofreu, recentemente, profundas mu- le sobre a expressão da sexualidade feminina.
danças, mas, de nada adiantará a edição de no- Além disso, sempre estaria caracterizado o crime
vos e inovadores dispositivos legais se, ao de rapto se a mulher contasse menos de vinte e
aplicá-los, os seus intérpretes continuarem um anos de idade, ainda que houvesse o consenti-
acorrentados aos paradigmas que estruturavam mento da raptada (Código Penal, artigo 220. Se
os rochedos da antiga sistemática jurídica, a raptada é maior de catorze anos e menor de
construída no terreno pantanoso e traiçoeiro da vinte e um e o rapto se dá com o seu consentimen-
ideologia patriarcal. Como diria Alberto to: pena de detenção, de um a três anos). Como
Caeiros, heterônimo de Fernando Pessoa, não se vê, a criminalização dessa conduta não tinha o
basta abrir a janela para ver os campos e os objetivo de proteger as mulheres, mas, sim, de
rios. É preciso romper com os antigos sujeitá-las ao controle absoluto de sua sexualida-
paradigmas. de até os vinte e um anos de idade.
Até 2005, o nosso sistema jurídico-pe- Além disso, como consagração da ideo-
nal, a pretexto de dar proteção à sexualidade, logia patriarcal no âmbito do sistema penal bra-
especialmente das mulheres, mantinha, em vá- sileiro, a virgindade da mulher era considerada
rios dispositivos incriminadores, a expressão como um bem ou um valor, que, na sua dimen-
mulher honesta, cunhada, à evidência, por uma são jurídica e social, era merecedor de proteção,
ideologia embasada nos paradigmas da domi- como ocorria na criminalização da sedução (Có-
nação masculina, em concepções morais ultra- digo Penal, artigo 217. Seduzir mulher virgem,
passadas, na submissão carnal e na subordina- menor de dezoito anos e maior de catorze, e ter
ção entre os sexos1. com ela conjunção carnal, aproveitando-se de
Assim, até a edição da Lei n. 11.106/ sua inexperiência ou justificável confiança: Pena
2005, para que alguém fosse condenado pelo de reclusão, de dois a quatro anos). E, obvia-
crime de rapto (Código Penal, artigo 219. Rap- mente, a previsão desse crime não visava à pro-
tar mulher honesta, mediante violência, grave teção das mulheres, como enganadamente era

* Juiz de Direito Titular da Primeira Vara Criminal de Campinas. Professor Titular de Direito Penal da Pontifícia Universidade
Católica de Campinas - PUCCamp.

– 185 –
afirmado. Tratava-se, na realidade, de uma ver- o objetivo de afastar aquela indesejável con-
dadeira capitis de minucia para elas1. cepção patriarcal de sexualidade. Lembre-se,
Todavia, apesar da extinção desses dis- por exemplo, de que, para consagrar o princí-
positivos androcêntricos, revogados apenas em pio constitucional da igualdade entre homens e
2005, o sistema penal brasileiro continuou con- mulheres, corolário da dignidade humana, eli-
vivendo com a ultrapassada concepção de que minou-se do crime de estupro a referência à
a sexualidade deveria ser controlada por uma mulher como vítima exclusiva desse delito.
pauta moral de comportamento, segundo pa- Mas, não se olvide que, desde a promul-
drões ditados pela ideologia patriarcal. Assim, gação da Constituição de 1988, a dignidade
os delitos contra a liberdade sexual continua- humana já era reconhecida pela sociedade bra-
ram inseridos no capítulo dos crimes contra os sileira como um princípio fundamental e
costumes1. E foi somente no final da primeira norteador de todo o sistema jurídico, político e
década do século XXI, com a aprovação da Lei social do nosso país. E a sexualidade, como
n. 12.015, de 7 de agosto de 2009, que a sexua- atributo da pessoa humana, já deveria ter sido,
lidade foi reconhecida como um atributo da desde então, submetida à proteção no âmbito
pessoa humana e como uma expressão de sua da dignidade humana. Além disso, é preciso
dignidade: essa lei abandonou a antiga e patriar- lembrar, também, que o Brasil, em face de suas
cal concepção de crimes contra os costumes e normas e princípios constitucionais, submete-
passou a cuidar da proteção da sexualidade no se, também, às normas e princípios de Direitos
âmbito da dignidade sexual. Humanos, ou seja, de um sistema internacional
Portanto, o estupro (Código Penal, artigo de proteção do ser humano, especialmente dos
213. Constranger alguém, mediante violência ou mais débeis e fragilizados.
grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a prati- Assim, cabia ao Brasil adaptar a sua le-
car ou permitir que com ele se pratique outro ato gislação e as suas políticas públicas a esses prin-
libidinoso: Pena – reclusão, de seis a dez anos), cípios. Aliás, não se olvide que, na Conferên-
o assédio sexual (Código Penal, artigo 216-A. cia do Cairo (1994), ficou afirmado o
Constranger alguém com o intuito de obter van- compromisso do sistema de Direitos Humanos
tagem ou favorecimento sexual, prevalecendo- com a necessidade do abandono da concepção
se o agente da sua condição de superior hierár- patriarcal de controle da sexualidade das mu-
quico ou ascendência inerentes ao exercício de lheres3. E, na Conferência de Beijing (1995),
emprego, cargo ou função: Pena – detenção, de foram expressamente reconhecidos os Direitos
um a dois anos), o estupro de vulnerável (Códi- Sexuais e Reprodutivos e enfatizada a necessi-
go Penal, artigo 217-A. Ter conjunção carnal ou dade da garantia da autodeterminação, da igual-
praticar outro ato libidinoso com menor de 14 dade e da segurança sexual e reprodutiva das
(catorze) anos: Pena – reclusão de 8 a 15 anos), mulheres para a plena vivência de sua saúde
o favorecimento da prostituição (Código Penal, sexual e reprodutiva, estabelecendo-se que os
artigo 228. Induzir ou atrair alguém à prostitui- Estados-Partes, como o Brasil, têm o dever de
ção ou outra forma de exploração sexual, facilitá- proteger tais direitos4.
la, impedir ou dificultar que alguém a abando- Assim, a dignidade sexual, como um va-
ne: pena – reclusão, de dois a cinco anos) e outros lor fundamental, há muito tempo já deveria ter
delitos contra o exercício da sexualidade passa- merecido uma adequada proteção do sistema le-
ram a ser considerados crimes contra a dignida- gal brasileiro. Demorou muito tempo para que o
de sexual2. legislador, atuando no âmbito abstrato e formal
Além disso, outras alterações legislativas das leis, promovesse a eliminação ou a modifi-
no sistema penal foram aprovadas em 2009 com cação daqueles dispositivos penais forjados em

– 186 –
uma concepção machista, preconceituosa e desbancando mitos, que é baixa a freqüência
discriminatória da sexualidade. de uso de violência física na prática dos cri-
Contudo, apesar desse avanço legislativo, mes sexuais. Com efeito, de acordo com a sua
outro desafio há de ser enfrentado, em especial definição típica, esses delitos podem e são
pelos juízes, responsáveis pela aplicação jurí- muita vez praticados mediante ameaça ou até
dica desses novos e inovadores dispositivos le- mediante o uso de fraude ou abuso da relação
gais, mas, também, por todos os órgãos respon- parental2. Mas, como verificado, em nosso
sáveis pela efetivação material de políticas meio se constata que muitos crimes sexuais
públicas que devem ser construídas e implan- contra adolescentes não são submetidos a jul-
tadas para garantir a indenidade da dignidade gamento por falta de provas materiais, apesar
sexual, especialmente das mulheres. É o que da existência de técnicas bastante precisas para
evidencia o artigo Influência do exame médi- demonstrar a ocorrência do contato sexual.
co-legal na responsabilização do autor da vio- Finalmente, demonstrando a influência
lência sexual contra adolescentes5. decisiva da concepção patriarcal no sistema
Com efeito, como lembrado nesse estu- judiciário, os autores do referido estudo verifi-
do, a violência sexual é uma das mais antigas cam que o conceito e a dinâmica da violência
expressões da violência de gênero e uma brutal sexual intrafamiliar ainda não estão devidamen-
violação de direitos humanos, de direitos se- te incorporados pelos operadores do direito, o
xuais e de direitos reprodutivos. E, embora com- que pode influenciar negativamente sua convic-
prometa pessoas de ambos os sexos e em qual- ção sobre a veracidade dos fatos relatados pela
quer idade, as evidências apontam que o vítima. Assim, em face de todos os resultados
fenômeno declina contundentemente sobre as do estudo realizado, concluem que, embora te-
mulheres, particularmente as mais jovens e vul- nham sido verificados “avanços importantes
neráveis5. Daí a necessidade da efetiva aplica- para a redução da impunidade nos crimes se-
ção dos dispositivos legais disponíveis, bem xuais contra a adolescente”, ainda permanece
como de recursos materiais, técnicos e científi- sem resposta a injustificada absolvição de
cos, para garantir uma maior proteção à digni- 16,7% dos acusados, mesmo com exame médi-
dade sexual, especialmente dessas mulheres co-legal positivo e concordante com o crime
mais jovens e vulneráveis. sexual alegado pela adolescente5.
Mas, como também evidencia o estudo Como se vê, para a efetiva garantia da se-
em referência, embora o sistema judiciário en- xualidade como um atributo da dignidade huma-
tenda que é imprescindível e decisiva a realiza- na, especialmente no âmbito do sistema penal,
ção do exame médico-legal para a comprova- resta ainda o enfrentamento da ideologia patriar-
ção material da autoria dos crimes sexuais e, cal, que continua sendo um grande obstáculo para
conseqüentemente, para a responsabilização de a efetivação da desejada e necessária proteção
seus autores, os exames e testes científicos exis- de um valor jurídico que, segundo a Constitui-
tentes, que poderiam ser utilizados para a com- ção Federal de 1988, bem como de acordo com
plementação e precisão dessa prova, nem sem- a principiologia dos Direitos Humanos, tem im-
pre estão disponíveis ou são rotineiramente portância fundamental para a convivência social.
aplicados durante exame médico-legal, particu- Infelizmente, a ideologia patriarcal, no sistema
larmente nos países em desenvolvimento 5. protetivo da dignidade sexual, tem funcionado
Aliás, a realização desses exames também é como o Porteiro que, na obra kafkaniana, impe-
importante para garantir a saúde das mulheres6. dia o acesso à lei, ou seja, à justiça.
Além disso, não se pode olvidar, como Ora, segundo Rui Guerra, em um de seus
também demonstra o referido estudo, mais belos poemas, introduzido na letra da mú-

– 187 –
sica Fado Tropical, que compôs em parceria integridade dos direitos sexuais e reprodutivos.
com Chico Buarque de Holanda, se a mão fica O sistema penal não é o apanágio para todos os
distante do coração, é porque existe uma gran- males. Acreditar na proteção exclusiva do sis-
de distância entre a intenção é o gesto. Assim, tema penal é um grande equívoco. É preciso,
para que as mulheres não continuem antes de qualquer outra coisa, adotar políticas
acorrentadas ao antigo paradigma patriarcal, e públicas que considerem a dimensão humana,
recebam a proteção que o sistema constitucio- que sejam hábeis para mudar costumes e con-
nal exige, é preciso aproximar a mão do cora- cepções culturais, que promovam práticas edu-
ção, ou seja, é preciso transformar em ações cacionais destinadas a concretizar a igualdade
concretas os dispositivos legais que, no âmbito de gêneros e que fortaleçam as mulheres como
meramente formal, garantem o exercício da se- cidadãs e seres humanos.
xualidade como um atributo da dignidade hu- Enfim, as mulheres não podem continu-
mana. E, para que isso seja possível, é impres- ar sendo tratadas como Mérope, que, domina-
cindível romper com os antigos paradigmas. da e controlada pelo poder patriarcal, foi vio-
Por derradeiro, contudo, também é im- lentada pelo poder sexual masculino,
prescindível lembrar que o sistema penal não invisibilizada em sua condição humana, despre-
tem função promocional, ou seja, não é eficaz zada como sujeito de direitos e abandonada e
para promover o valor da dignidade sexual nem esquecida em uma dimensão mítica andro-
para garantir, de forma isolada, o respeito e a cêntrica.

REFERÊNCIAS 4. United Nations. Report of the Fourth World


Conference on Women, Beijing. New York,
1. BRASIL. Ministério da Saúde. Aspectos ju- United Nations. 1995.
rídicos do atendimento às vítimas de vio- 5. Drezett J, Junqueira L, Tardelli R, Antonio
lência sexual: perguntas e respostas para IP, Macedo Jr. H, Vertamatti MAF, Abreu
profissionais de saúde. Brasília: Ministé- LC. Influência do exame médico-legal na
rio da Saúde; 2010. responsabilização do autor da violência se-
2. Delmanto C, Delmanto R, Delmanto-Jr R, xual contra adolescentes. Rev Bras Cresc
Delmanto FMA, editors. Código penal co- e Desenv Hum 2011; 21(2): 189-197.
mentado. São Paulo: Saraiva; 2010. 6. BRASIL. Ministério da Saúde. Prevenção
3. United Nations. Report of the International e tratamento dos agravos resultantes da vio-
Conference on Population and lência sexual contra mulheres e adolescen-
Development, Cairo. New York: United tes. Norma técnica. 3ª ed. atualizada e am-
Nations. 1994. pliada. Brasília: Ministério da Saúde; 2010.

III Congresso Internacional de Saúde da


Criança e do Adolescente
Período: de 02 a 05 DE SETEMBRO DE 2011
Local: Centro de Convenções Rebouças
Informações: www.congressocdh.com.br
cdh.fsp@gmail.com - (11) 7959-0253 / 3061- 7775

– 188 –

Você também pode gostar