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Henri Lefebvre

A VIDA
COTIDIANA NO
MUNDO MODERNO

1001042775

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Henri ·Lefebvre I

i·. A monotonia. da vida


otidiana sempre oprimiu ·a o NA ÚLTIMA DATA
umanidade, pesando sobre MAR CAD A I. '
la como um rochedo. Já os
regos simbolizaram no mito
e Sísifo o labor da vida diária
1cessantemente recomeçado.
~0 07
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A VIDA
COTIDIANA NO
I
, rotina do dia-a-dia é em geral I,

onsiderada desimportante,
I
'·i

1as até que ponto esse '
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otidiano tão desprezado e
lesprezível não influi nas
1randes decisões que
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I
: 1.
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t'~
·MUNDO MODERNO
,.
nodificam a História - ou não :
:onstitui, ele mesmo, a
-iistória?
Em A vida cotidiana no ~
~{ Tradução:
nundo moderno Henri Lefebvre .~ ?>~'ro ~
lxpõe suas considerações
.J
i Alcides Joã o de Barros --~"~'~~
3cerca desse aspecto da vida 'j

~ue sempre foi relegado a um


)!ano secundário. Retomando ll'~..
~ ;
r ··~ 1001042775

i
1 pensamento de autores
~orno Barthes e Marcuse, sua
3nálise abrange várias facetas
ja existência: a moda, a I
I\
I 1111111111
I
noradia, a culinária, a . .
)ublicidade, o uso do
3utomóvel, a fala e a escrita.

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L :)Q~ V'
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Série

Temas
Volume 24
Sociol<;>gia e Polftica
SUMÁRIO
··A monc
cotidiana~
Título original: La vie quotidienne dans te monde moderne
humanidac Copyright © Éditions Gallimard, 1968
ela como t
gregos sin
de Sísifo c
incessantE Tradução
Alcides João de Barros
I. Apresentação de uma pesquisa e de alguns achados 5
A rotina d1 1. Em meio século...
TEXTO 5
considera' 2. Filosofia e conhecimento do cotidiano 17
Editor
mas até q Fernando Paixão 3. Primeira etapa, primeiro momento 33
cotidiano Assistência editorial 4 . Segunda etapa, segundo momento 45
desprezív, lsa Mara Lando 5. Como designar a sociedade atual? 53
Preparação dos originais 6. O que aconteceu, então (na França, entre 1950 e 1960)? _ 68
~.:::randes d
,• ..,;
Alzira Moreira d'Angelo Braz 7. Terceiro período - a partir de 1960 72
;modifican
ARTE II . A sociedade burocrática de consumo dirigido
constitui, 77
Capa
· História? Ettore Bottini 1. Coesões e contradições - - - -- - - - -- -- - 77
EmA · Projeto gráfico (miolo)
2. Os fundamentos do mal-estar - - - - - - - - - - - 88
Milton Takeda 3. Quatro passos dentro do imaginário - - -- - - - - 95
mundom 4. Alguns subsistem as------- ----- -- -
Composição e paginação em vídeo 108
expõe su
Sueli Keiko Nakáo III. Fenômenos da linguagem - - - - - -- - - - - - -
acerca dE Eliana Apareçida Fernandes Santos 120
que sem1 1. A queda dos referenciais 120
2. A metalinguagem 138
plano sec
3. O pândego 146
t o pensan
como Ba IV. Terrorismo e cotidianidade - - -- - -- - - -- - - 154
enálise a 1. O conceito de terrorismo - - - - - - - - - - - - - 154
: da existé 2. Escrita e terrorism o - - -- - - - - - - - - - - - 163
1 moradia, ISBN 85 08 03792 9
3. Teoria das f o r m a s - - - - - - - - - - - - - - 186
4 . A abertura - - - - -- -- - -- - -- - - - 200
, publicid~ 5. Breve d i á l o g o - - - - - - - - - - - - - - - 202
· automó~
1991
V. Rumo à revolução cultural permanente 205
Todos os direitos reservados 1. Primeiras conclusões - - - - - - - - - - - - - - 205
Editora Ática S.A. - R. Barão de lguape, 110- CEP 015o'7 2. Filosofia das opressões e opressões da filosofia
Ter.: (P~BX) 278-9322- Caixa Postal 8656
210
End. Telegráfico "Bomlivro" - São Paulo - SP
3. Nossa revolução cultural 213
Capítulo I
APRESENTAÇÃO DE UMA
PESQUISA EDE
ALGUNS ACHADOS

1. Em meio século ...

Supon ha que você lenha d iamc dos olh os a col~o dos


ndcndár iP~ imprc.ssos :1 partir de l900 . Dessa pilha você tira
um ao a(<lSll. que vem a ser de.: um ano do inicio do século.
Em ..;q~u i cb ,..,,((- fe, h·~ os olhos c m:1rca u m dia às ceg~ . com
a pt HI U d ~..· um l.ipis. E 11 d i:1 lú de junho . Agora voe~ procura
,,d,~..·t o '"ftH: ,..... p:ts~n• nesse Jia semel hante a tantos
outros .
1111111 ano rl'buv: lllW illl' lf:ll\qü iln c: próspero . pelo
menos no
li< IS~co l'af'o Ocu k m~..· l' na nossa querid a vdha pátria . Você
vai.
! ' llf :ico . :i llihlio tna N:a Í1..111al c wnsul ta a impre nsa .
Ali encon-
ll a l•:t~~;didalln. :•t·idt·m c.:s , as rc.:soluç ões das pessoa
s impon a.n-
u·.; d;t <:·p1•t a. uma gr.md c qu:Lm idade de inform ações etnpo~·
rada'i l ' ck n,>tkia s dc.:lcrioradas. indicações $Uspeiras sobre ~
guerras c revoluções do mome nto. Você não encon tra quase
nada que permita prever (ou imagin~ que as pessoas im~
tc:s que deixaram sua marca no que restou desse di--. dentte
os outros . previr am) o que aconteceria, o -que se pre.~ .
7
6
irrup -
escondido nas profu ndez as do temp o. Por outro
lado , você não Não deixemos passar sem um exam e cuid ados o essa
exata ment e, a
enco ntra muit a coisa sobre a man eira como as
pessoas sem ção do cotid iano na literatura. Não seria ela, via
ia, pela
impo rtânc ia viveram esse dia: suas ocupações e
preo cupa ções , entra da do cotid iano no pens amen to e na consciênc ela o
Teria
seus traba lhos e dive rtime ntos. Apen as a publ
icida de (aind a literá ria, ou seja, pela lingu agem e pela escrita? is
s anos depo
ingênua) , as bana lidad es, as pequ enas infor maçõ
es marg inais aspecto estro ndos o que assum e para nós, tanto
auto r, depo is da publ icaçã o do livro,
lhe dão idéia do que emer giu no centr o da vida cotid iana do desa parec imen to do
cotid ianid ade
dura nte essas hora s . depo is de cont ada a história? Essa irrup ção da
Zola e tanto s
époc a já não fora anun ciada desd e Balzac, Flau bert,
Debr uçad o sobre a impr ensa e os perió dicos dessa
liares e com outro s?
não tão dista nte, espa ntad o com manc hetes fami mas
apresentações tipográficas de um outro temp o, você
pode agor a Ame s de respo nder (e a resposta que virá, lenta -
evist o), apro
sonh ar. Nesse dia, não teria acon tecid o nada de
essencial que segu ra, conterá, talvez, mais de um elem ento impr que
uma obra
não figur a no noticiário? Você pode imag inar que nesse dia, veite mos a ocasião para lemb rar algun s traços de
celeb ridad e, mas se afast a sem ter reve-
em Zuri que, um certo Eins tein, com pleta men te desc onhe cido , se elevo u ao zênit e da
da narração
inven ção , e, solitário, lado todo s os seus segredos. Ulisses é o antíp oda
no local onde exam inava as pate ntes de roma nce tra-
oscilava entre o delírio e a razão , vislu mbro u a relat ivida de. que artic ula figuras ester eotip adas , e tamb ém do
, a ascensão e
Ning uém pode rá censurá-lo se você pens ar que nesse dia um dicio nal que cont a a form ação de um indiv íduo
o. O cotid iano
deslize impe rcept ível, mas irreversível (uma decis ão sem gravi- o declí nio de uma famí lia, o desti no de um grup
, por másc aras, por vesti men-
dade apar ente de um banq ueiro ou de um mini stro) , acele rou entra em cena revestido pelo épico
e a vida univ ersal e o espír ito
um outro capit a- tas e por cenários. É exata ment
a passagem do capit alism o de comp etitiv o a porq ue se inves tem nele, con-
revol uçõe s e de do temp o que se apod eram dele
lismo , e prep arou o prim eiro ciclo mun dial de Todo s os recur sos da lingu a-
verão, sob o ferin do-lh e uma amp litud e teatr al.
guerras. Você pode até imag inar, no começo do expr ima a cotid ianid ade,
s habi tuais gem vão ser empr egad os para que se
sol do solstício e no signo d e Gêm eos, entre os ruído ém todo s os recur sos de
to de crianças com sua misé ria e sua rique za. E tamb
de uma aldei a ou de algu ma cidad e, o nasc imen sepa ra da lingu agem
ia agud a des- uma musi calid ade esco ndid a que não se
desti nada s (mas por quê? ) a toma r uma consciênc pred omin am. Ao
e da escrita literárias. Enig máti cos pode res
sas coisas e desse temp o. lidad e de Bloo m
o, não é redo r, em cima , emba ixo da prof unda trivia
Por cons eguin te, é por acaso e, ao mesm o temp está a Cida de (Dub lin), está a especulação meta física e o hom em
dos prim ei-
por acaso que esse dia - um_l_6_de_j.u..o.h.Q. d e um labir íntic o (Step hen Deda lus) e a simplicid ade
dos impu lsos
legia da por
ros anos do século - foi vivido de mane ira privi instin tivos (Molly). Estão o mun do , a histó ria, o
hom em. Estão
amig o fu.e-
um certo _BloG m,po r sua _ITI..lJlhe.r__M_Q.lJy e por seu o imag inário, o simbolismo e a escrita esclareced ora. O empr ego
suas minú cias ,
P-h.en..Dedalus,._~ depo is narra do em toda s as de todas as forças do discurso não ocorre sem uma
dupl a disso-
.Ç.Q_tictiana
de tal mod o que esse dia se torno u símb olo da ''vidª'- lução da lingu agem literá ria e corre nte. O inven
tário do coti-
~egundo a expressão de Herm
ann Broch, vida impos- o, pelo ima-
idad e, e que dian o faz-se acom panh ar de sua nega ção pelo sonh
. sível de ser apre endi da em sua finit ude e sua infin ginár io, pelo simb olism o, nega ção que supõ e tamb
ém a ironi a
e incon cebí-
ence rra o espír ito dessa époc a e sua face "já quas dian te dos símbolos e do imag inári o. O obje to e
o sujei to clás-
do anon imat o cada uma das s. Que r dizer
vel" ; a narra tiva de Joyc1 e tirou sicos da filosofia lá estão, pens ados , conc ebido
facetas da cotid ianid ade • adas e conce-
que as coisas e as pessoas de que se trata são pens
fia clássica.
bidas em função do obje to e do sujei to da filoso
to se mod ifica m, se enriq ue-
, u. fr., Paris. 1966. ed . Galli-
No enta nto, esse obje to e esse sujei dian te
Cf. Hermann Broch, Création littéraire et connaissance ico, simp les, posto
cem, se empo brece m. O obje to estát
1

mard, pp. 193-200, 243 e segs.


! I

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9
8
a mulher e o rio, ligados, associados, misturados, Anna Llivía
de nós (nós: o filósofo e seu leitor) se dissolve com a evocação
Plurabelle, amnis • Liffey, Molly e a animalidade onírica do
de atos e de acontecimentos de uma outra ordem. O objeto é ·
desejo no semi-sonho sem limites e sem pontuação.
um superobjeto: ~u~ Cid~, encerra_t~~as as cidades;
A fim de preparar a continuação, tentemos organizar um
0 Rio • encerra as ~s e oS11Uldos e a femimhdade.
Quanto
ao Sujeito, este já ~ um Proteu, um conjunto de metamorfoses pouco essas notas.
>nC (um grupo de substituições). Este Sujeito perdeu a imanência- a) _Para e:sa. narrativa existe um referencial, um lugar,
-
o •( transcendência substancial dos filósofos, o "penso que penso ur:n conJunto _to piCo (bem como toponímico e topográfico): a
jac que penso ... ''. Ele se desdobra no monólogo interior. Durante CI~~de,_ Dublm, com seu rio e sua baía, não apenas uma vista
;) I essas vinte e quatro horas épicas, na história de Ulisses (Odis- p_nvilegiada, lugar de um momento , mas presença mítica,
;in seu , Outis-Zeus, pessoa-Deus, um homem qualquer no abso- cidade concreta e imagem da cidade, Paraíso e Inferno, Ítaca,
) ( luto, o anônimo e o divino se identificando), o Eu se junta ao Adântida, sonho e realidade numa transição perpétua onde a
ltE Homem e o Homem resvala justamente na banalidade. realidade nunca cessa de ser referência (e covil). Essa cidade é
de O que vem em seguida é a subjetividade, portanto o tempo , apropríaduara.Qs_q_u e_a_habitam.;.-ªS_pessoas de Dublin mode-
com seus traços provenientes das dualidades: o ,humano e o -laram seu - ~~.J?.~ç_q_ __uão_ gJhª.dgs_p,<~f _ele. O homem inseg;;;- ---
ra•
divino, o cotidiano e o cósmico, o aqui e o alhureslMas também q~e parece vagar pela Cidade recolhe os fragmentos e aspectos
q dispersos dessa dupla adequação.
o com suas triplicidades: o homem, a mulher e o outro - a vigí-
lia, o sono, o sonho - o banal, o heróico, o divino - o coti- b) As pluralidades de sentido (o literal, o próprio e o figu-
ÍV•
diano , o histórico, o cósmico;Y\s vezes "eles" são quatro: qua- rado, o analógico, o simbólico, o oculto, o metafísico , o mítico
c tro viandantes que são tambem os quatro Anciãos, os Evangelis- ou místico , s_em contar _o sentido último e indecifrável ligado
tas, os Cantos do Mundo, as Dimensões, os Cavaleiros do Apoca- talvez aos emgmas da divagação, da morte e da ausência, bem
lipse. O tempo é o tempo da mudança. Não aquele de uma sim- como as diferenças de níveis no discurso, o familiar , o histórico,
? ples modificação local , parcial, mas o tempo das transições e dos o próximo e o longínquo etc.) são percebidas continuamente.
I •
transitórios, o dos conflitos; da dialética e do trágico. Nessa tem- Os sentidos coexistem. Joyce é excelente ao trançar os sentidos,
poralidade que tem por símbolo o Rio, o real e o sonho não se a_o tratar os temas num estilo de fuga. A reserva de poder da
separam. O tempo não tem estrutura. A escrita agarra o mundo linguagem nunca se esgota. Alguém propôs que se escrevessem
do desejo, e a narrativa é onírica na sua cotidianidade (exata- os s~ntidos sobre pautas musicais, superpondo-as como numa
mente: na sua cotidianidade). Não tem nada de combinatório. partitura de orquestra. Joyce trabalha com uma matéria: a lin-
~zà narrativa dá a imagem em movimento de um dia cósmico, guagem escrita. Ele a modela para torná-la polifônica, para
n Introduzindo o leitor numa espécie de carnaval lingüístico: festa que ela recolha e acolha a palavra, para que o leitor ouça sob
3 da linguagem, loucura da escrita literári~ o 9-~e está escri~o, através do discurso escrito, a palavra do
.g; O tempo, esse tempo em questão, com sua fluidez e sua SuJeito e as múluplas conotações d a subjetividade. A musicali-
a
continuidade, com sua lentidão (cheia de surpresas e de suspi- dade ?ão cessa d~ sobrepuj ar o caráter literal e próprio da escrita.
É
ros , de debates e de silêncios, suntuosa, monótona e variada, O traJeto melódico e a marcha harmônica determinam o frase-
tediosa e fascinante) , é o fluxo heraclitiano sem cortes, princi- ado, co~ transições obrigatórias (a volta à dominante, palavra
é
palmente entre o cósmico (objetivo) ou o subjetivo. A história que destgna às vezes um símbolo, às vezes uma palavra ou
de um dia engloba a do mundo e a da sociedade. Esse tempo, um simples som _repetido): A escrita tenta armar ciladas para
cuja origem não se revela jamais, simboliza-se perpetuamente: essa profundeza mdetermmada, essa musicalidade inerente à

• Termo latino que significa rio . corrente de água. (N.T.)


• No original. Riviere. do gênero feminino. (N .T .)

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I '
10
11

ou talvez de Nietzsche. O cotidiano se compõe de ciclos e entra


' I
linguagem ou, antes, à palavra, essa polifonia que somente a
I· orquestra pode dominar plenamente. As conotações desem~e­ em ciclos mais largos. Os começos são recomeças e renascimen-
nham o papel sutil dos harmônicos. Trabalhando sobre o escnto tos. Esse grande rio, o vir-a-ser heraclitiano, nos reserva surpre-
(sobre a coisa escrita), o artista não renuncia a em~regar co_ns- sas. Não há nada linear. As correspondên cias desvendadas pelos
cientemente a polissemia, a polirritmia, a polivalêne1a, a pohfo- símb<:lo~ e pelas palavras (e suas reaparições) têm um alcance
~~ia. !:e_~os_~gl:li três termos: -~escrit.ª=' a ling_~~~5:m, a palavra, ontolog1co. Eles se fundem no Ser. As horas, os dias, os meses,
_alé~ê - ri:íllsiêal que as aJunta organ~camente e as os anos, os p_eríodos e os séculos se implicam. Repetição, evoca-
determina. ç~o, ressurre1ç~o ~ão categorias da mágica, do imaginário e tam-
~~retanto, o vir-a-ser não é completamen~e desprovi~o bem do real d1ss1mulado sob a aparência. Ulisses é verdadeira-
t de estrutura. Há em Joyce, e não apenas em U!zsses, um sts- mente Bloom; Bloom revive Ulisses e a Odisséia. O cotidiano
Vtema, ou melhor, sistemas simbólicos, com remissão coerente e o épico se identificam como o Mesmo e o Outro na visão do
de um a outro. A coerência é bem dissimulada sob os sustos Eterno Retorno. Tanto quanto um místico ou um metafísico
e porque é poeta, Joyce recusa o que é apenas fato. A cotidia~
provocados pela expressão, sob as afrontas infligidas à gramá-
nidade lhe permite tsso~rdo ret~r!VOãOabSOlUto ser- ._
tica e sob as violências contra o léxico. Em todas as suas obras,
~~dess a m~o. "" '
Joyce trabalha como um virtuose das palavr~s e_ sobre as_ pa_la- ~ - --·
e como introdu-
.i - -,-rPor que diabo você toma como garantia
vras. Enquanto outros formalizam a relação slg~u~c~nte-slg_m~­
cado, esse escritor, espontaneam ente, a torna dtalenca. O signi- ror um escritor cuja obra se perde na bruma luminosa, estiva!,
ficante se torna significado e vice-versa. O acento muda de de um pomposo tédio ? Durante páginas e páginas só se vê ape-
luo-ar. Num conjunto predomina o significante; noutro, o sig- nas a ~ua sonolenta Molly! . .. Como você se permite citar um
nificado. E tudo devido a este ou àquele signo. Assim, a femi- autor lntraduzível? Seguramente , é preciso conhecer bem a lín-
nilidade é significada pelo elemento fluido; ela tem como sig- gua inglesa para entender o que você diz dele. Tanto melhor,
nificados o rio , a água. Mas quando, ao crepúsculo, duas lava- ou tanto pior. Tão distante quanto as Kreisslerianas ·, quanto
deiras contam a lenda do rio, este passa de significado a signifi- Floresta?- e Eusebius, quanto a música do século XIX após a
harmoma atonal , após os conjuntos sonoros da música concre-
cante. Todos os rios do mundo afluem e confluem. Talvez se
ta, após a música algorítmica e o emprego do aleatório, Joyce
possa discernir o sistema simbólico da feminilidade, o siste~a
marcou sua data. Ele tornava a escrita incerta, pela intervenção
da cidade, o do pensamento metafísico (o Dédalo), o dos obJe-
perpétua deste aquém e deste além, o Sujeito. Nunca reduzida
tos usuais (o charuto aceso na obscuridade evoca o olho do cíclo-
ao rigor de uma dimensão, a escrita de Joyce e de seus contem-
pe). Também não deixaria de ser interessante construir um
porâneos remete à palavra, a musicalização a desvia para o inde-
conhecimento do cotidiano a partir desses simbolismos, com a terminado , aproximando o discurso do canto. Joyce explora a
ressalva de que semelhante "ciência" remete a um período fundo o conflito ' palavra-escrita' , que está próximo das rela-
I)
em que os simbolismos tinham muito vigor. O que talvez não ções ' melodia-harm onia' e 'harmonia-rit mo', embora bem dis-
seja mais verdadeiro·.. Em Joyce, no início do século, cada con- tinto. Ele em~rega todos os subterfúgios, trucagens e procedi-
junto de símbolos se liga a uma ·temática, da qual é separável , mentos: a me1a palavra (com uma piscadela), o trocadilho , a
mas não separado. O homem, ao contrário, talvez tenha por falsa forma verbal, o som enganador, todas as lacunas do dis-
.. símbolo o pássaro profético: "Seja meu guia, caro pássaro . O curso coerente por meio das quais ele pretende dar a entender
' que o pássaro fez ontem, o~ homem fará amanh~: vôo, canto, outra coisa. O que, então? Mas o quê? Em Zaratustra, não
harmonia no ninho ... '' . E otimista o simbolismo de uma em Ulisses, a linguagem se supera, ' o discurso se ultrapassa
aurora, ou seja, de um início de século.
d) Por trás de tudo, sob o tempo vivido, cotidiano e cós-
mico, há em Joyce uma visão do tempo cíclico, vinda de Vico ·De Fricz Kreisslcr, violinista austríaco_. 1875-1962. (N .T. )

_U
12 13

devido à ~usicalidade e ao canto profundo, em v_ez de ~e redu- nidade, apresentar o tempo e o espaço ou o espaço no tempo,
zir e de se definir pelo simples rigor sintático. E por lsso,que tornar-se mundo sem deixar de ser uma gota que se reduz a nada.
Nietzsche se aproxima de nós, enquanto Joyce se afasta... . Há muitas maneiras de se interpretar o que ainda hoje se
'Á Talvez. Mas as estruturas simbólicas transmiti?as na _o~r_a denomina nouveau roman (além das considerações sobre seus
de Joyce pelo tempo heraclitiano nã? asseguram a lntele~lblh­ sucessos ou fracassos, sobre o tédio ou o interesse que ele desper--
dade e a "tradutibilidade"? Os conJuntos coerentes de slmbo- ta). Pode-se reconhecer no nouveau roman um esforço metódico
los passam bastante facilmente de uma língua à outra, de uma para criar uma sintaxe literária racional, sacrificando-se delibera-
"cultura" a uma outra "cultura" (desde que haja uma "cultu- damente o trágico, o lirismo, a perturbação, a dialética, e bus-
ra" daí o uso das aspas). Eles podem desempenhar o papel cando-se uma pura transparência do que é escrito sobre o modelo
dos' "universais". Sob a apologia do fluido, do contínuo, do
do espaço. Seríamos tentados a mostrar na clareza "objetal"
transitório, não se ouve ainda em Joyce uma espécie de sistema
aquela que transforma a coisa em espetáculo, esquecendo a pro-
tonal? Fraseado claro, retorno à tônica, tensão e logo repouso
encontrado na cadência, começos e fins, pontuação em profun- dução das coisas. A certeza "objetai'' não provém nem do sujeito
didade (o que começa e o que acaba), tudo isso não mais seria como ato, nem da coisa como obra, mas unicamente da lingua-
compreensível? Beethoven viraria folclore? _E Wagner? O que gem, cujas estruturas se identificam com o "real" . Coma-se real-
i(
é esse neodogmatismo? Nietzsche? Sem dúv1da os tempos p_are- mente uma história? Sem palavra subjacente, uma história não
lO cem mudados . Um pouco? Muito! Imensamente? Nada d1sso, é mais uma história. O tempo é negado na sua exploração, e a
ív como veremos. Joyce, ou melhodlflúses. é o cotidiano apreseQ:_ simultaneidade é atingida por meio da pura escrita: da escrita
; ( !, _!.ado transfigurad_Q.ll.ão ~-a imlp_ç.ã.o_d~__gma Luz_uie..um...c~to. no estado de pureza, sem dúvida pela busca da recorrência per-
ar y so_Qre-humanO_§_,....l]l~.....P--ela....p.ala,yr_a_qQ._pome:n, Oll ...takeL _Slrr:- feita, a ida e volta no tempo. Esta simultaneidade do passado,
Ji , _g_lesmente pda lirexat..ugj\ Se te~ razão_ o mt~rlocutor ~ ~bah­ do presente e do futuro dissolve o tempo no espaço e se conse-
? zado cujas questões acabam de mterfenr, ma1s .nec~s~ano se gue mais claramente nos filmes que numa narrativa que ainda
torna dizer o que mudou em meio século, se é o cond1anC? ou pretenda ser ' 'romanesca' ' . Também é necessário tirar daí a maté-
a arte de apresentá-lo, metamorfoseando-o, ou as duas co1sas , ria dessa elaboração formal: as coisas, as pessoas, seus gestos e
7l
e o que resulta dessa mudança. suas palavras. Quem é que garante essa permanência sem a apa-
;u
di
·i,
II Cerca de meio século mais tarde, o que mudou? Não ensi- rência do tempo? A vida cotidiana, suas estabilidades! A escrita
naremos nada a ninguém se lembrarmos que o Sujeito se ?esfez, cinematográfica, assim como a literária, toma como referência a
nl
que perdeu seus fracos contornos, que não parece mrus nem cotidianidade, mas dissimula cuidadosamente a referência. Ela a
e' li m esmo uma fonte ou um fluxo. E com ele e antes dele, o cará- encobre pelo simples fato de desdobrar alguns de seus aspectos
tr ter, a personagem e a pessoa._Q__Q_ue se disti~~é o Objeto. ''objetais' ' ou espetaculares. O escrito só conserva do cotidiano
a Não n:a objerividad_e-{..que_s.ó--l.inha sell..ti.dSLP-~,_Relo e d~ o inscrito e o prescrito. A palavra foge; só o estipulado subsiste.
ê I ct~eit;Q)..Jll.~ conf_Qrme a sua essênçia d~ obi!EO-~g_uas~ comQ.
. 'I Vejamos um exemplo, mesmo que não seja incontestável.
ti 'fOrma pura1 Se quero escrever hoje , digo "escrev~r liter~n~en-
3, I -te" , escolfío um objeto qualquer. Temo descreve-lo mmuclOsa- Para analisar de acordo com o nosso desejo a escrita "objeta!",
meme. Permanecendo . voluntariamente ao nível do sensível, e a escrita do rigor formal, quem tomaremos? Um sábio exegeta?
Ié ,·I
,, não do concreto, relaciono as características, faço um inventário Um autor? Qual deles? Com um pouco de arbitrariedade, esco-
lhemos La route de Flandres 2 • Por quê? Porque essa narração
desse objeto tomado do cotidiano: uma taça, UIJ:?-a laranja, _uma
mosca. Por que não esta gota-d'água que deshza pelo v1dro?
Possó escrever uma página, dez páginas a respeito dessa ~o~a.
Para mim ela vai representar o cotidiano desvendando a coud1a- ~ Claude Simon. Edições 10/ 18, p . 16-17 (texto seguido de uma entrevista do autor e
de um comentário de]. Ricardou).
15
I 14
migo . É ele que extingu e o tempo, que absorve a realização do
I tem alguma coisa em comum com Ulisses, apesar da imensa dis-
tância que separa as duas obras. Esse elemen to comum as toma
possível na fixidez do inelutá vel.
b) A sorte dos homen s é d~liberada num mundo não-coti-
comparáveis e permit e perceb er a distância. Nos dois livros, bre-
diano: a guerra. No entanto , o que se evoca é o cotidian~
ves horas se alargar n.JL sonho e a lembra nça fazem encont rar aí.
· . Nos dois livros: a mulher , o esposo . embora camufl ado. O ouuora , o que acontec eu ames do arama,
a cotidi · antes do d:ia do destino , isso parecia respeitar uma ordem, ·uma
o outro. Com símbol e com jogos de palavras. Sem contar
os
razão. Todavia, a única razão, a ordem e o sentido eram de pre-
que há em Claude Simon, assim como em Joyce, um Bloom ou
parar e de conduz ir o drama. A ordem já continh a sua decom po-
Blum, o que dá a entend er que a aproxim ação não é tão arbitrá- sição. A vida ordinár ia parecia o invólucro do exuaor dinário : ero-
ria nem incompatível com a intenção declarada do autor modern o. tismo, paixão , amor. A seqüên cia põe à mosua a decepção. O
''Uah! '', exclamou Blum (e agora estávamos deitado s no extraor dinário do cotidia no era a co idianid ade finalm ent Ye--
escuro, isto é, imbrica dos - amonto ados - de tal modo que lada: a dece.r-ção-' ;cresen canto . O amor-paiXao e pouco diferen te
não podíam os mover mais um braço ou uma perna sem ter, ou do amor sem paixao que exaspera tanto a falta quanto a ausên-
melhor , sem pedir permissão a um outro braço ou a uma ouua
I

cia que, suposta mente, ela deveria suprir e de onde ela provém .
I I
'
perna, sufocan do, o suor escorrendo sobre nós, nossos pulmõe s Ou seria o gênero cool que substim i decidid amente o estilo hot
procura ndo o ar como peixes em terra seca, o vagão pára mais da época preced ente? É uma questão a verificar. Sem paixão , a
uma vez na noite, não ouvíam os mais nada além do ruído das voz neutra do autor dita a paixão, suas ilusões, sua falsidade.
respirações, os pulmõe s se enchen do desesp eradam ente dessa Impossível sair do cotidia no. As persona gens que o pretend em
espessa umidad e, o mau cheiro se exalando dos corpos emaran ha- não conseguem. Esposos e amante s são igualm ente frustrados ,
dos, como se já estivéssemos mais mortos que os mortos , já que logrados, uns no cotidia no, outros no não-co tidiano ; o ciclo do
éramos capazes de perceb er a situação ... ). E Blum pagou bebida . logro e da frusuaç ão gira desde o tempo de que se tem memór ia
E eu: "Sim, era .. . Escute, parecia um desses cartazes de propa- (desde um século e meio, com as histórias passan do de geração
ganda de uma marca de cerveja inglesa, sabe? O pátio do velho em geração). A evocação do tempo extingu e a tempor alidade .
albergu e com as parede s de tijolo vermel ho-escuro e juntas claras c) Desuui ndo-se a si mesmo o referencial " real", por força
e as janelas com pequen os azulejos, o caixilho pintado de branco de sua própria verdad e, o único referencial que subsiste é a lin-
e a criada levando a jarra de cobre ... ''. guagem . A estruru ra que o autor quis forjar é uma estrutu ra de
Bem. Retom emos a ordem de nossas considerações sobre linguag em: a frase traduz a contigü idade e a descon tinuida de ,
Ulisses. a ordem e a desord em das impressões, das emoções, das sensa-
a) Não há mais um referencial declara do, evidenciado. O ções, dos diálogos (que de diálogo têm pouco) , das solidões, dos
conjun to tópico, o lugar ao qual o autor se refere, é o lugar de temas aos quais as "perso nagens " são reduzid as. Essa frase escrita
uma decomposição: um campo assolado pela guerra e pela chuva, simula a palavra, faz o papel do falado. É para expurgá-lo melhor ,
um cadáver- sendo absorvido pelo solo, singula r união de culrura ou, se o leitor prefere, para exorciz á-lo melhor . "Avess o da escri-
com naturez a. O simbol ismo torna-s e espacial. Único ponto ftxo: ta", diz o comen tador J. Ricardou. Pode ser, mas esse verso cor-
_o lugar, local da fixidez. Em que momen to se sima a narrativa, respond e ponto por ponto ao anverso. Não é a essência da escrita,
,.' I'. ' em que tempo ela se desenvolve? O leitor não tem n ecessid ade a escr~ta no estado decanta do e purific ado que o autor "forja" ?
' i de sabê-lo. As lembra nças giram em torno desse lugar, vindas Essa literam ra passou pela literalid ade, prova purificadora. Dela
I' de um passado longínq uo que simbol iza e arualiza. No decorre r se exige o rigor. Ela simula a palavra , mas a palavra desapareceu.
li da narrativa, que adquire um ritmo cíclico, o destino delas faz Tudo é escrito num trajeto linear. Os sentido s - próprio e figu-
I
os h<:>mens girarem . Eles giram em torno desse lugar, e esse rede- rado, analógico e oculto - desapareceram. Tudo é explicitado.
moinho os conduz em direção à morte ou à sua capmra pelo ini-
16 17

Os signos se distinguem nas suas diferenças e essas difer~nças são cebido. Basta-nos aqui assinalar a funcão metafórica da escrita
inteiramente fornecidas nas significações. Uma ou malS vozes? (literária) acuai. Em caminho reencontraremos esses problemas,
É uma voz neuua, destimbrada. Voz branca, escrita exata e pura, e várias vezes vistos de diversos ângulos[9 "mundo~es~Q:_ ­
assim como os intervalos musicais estabelecidos pelos diapasões. brou-se em mundo do cotidiano o real......o erp..P.Jrico, _o_práu_ço)
Conotações e sons harmônicos são reconstituídos com os diai?~­ éiDundo a orá. 'A escrita metafórica (ou o mundo meta-
:;nc sões, o que suprime a fluência, o prolongamento de son:, o. !li- onco . a escrita) pode u ou em d~reção à oposição simulada,,
ra: mitado. O tempo se divide em contigüidades e desconn7n:_1d~­ a contestação ilusória - ou em direção à autodestruição de si
des ames de se fundir na memória e no destino, quase Idenu- através da comédia da loucura (em direção ao existencialismo
da•
cos.' Até mesmo os uocadilhos são expostos, anunciados, detalha- ou em direção a Anaud). Daí a necessidade de novos desdo-
lO
dos. Escrita em estado puro não seria seu ''grau zero'' ,. posto bramentos. Não é aqui qtie vamos examinar as orientações.
si r
que o zero seja uma pura transparência? Uma cena analog1a.c?m
O•
o atonal pode ajudar a compreender. Não há uma nota pnvde-
nt giada (referencial), portanto não há pausa. Há cones, mas não 2. Filosofia e conhecimento do cotidiano
l d
começos; descontinuidades, mas não fins. Há intervalos, mas sem
~r a atos nem acontecimentos propriamente ditos. Há lembranças e Vamos agora atacar o cotidiano por outro lado e anngl-
~ ( frases. O campo semântico mudou, perdeu as tensões e ~isten­ lo por outro caminho: partindo da filosofia.
10 sões alternadas que devem corresponder aos começos e aos fins , No século XIX o centro da reflexão se desloca; ele deixa
~Í'II aos atos ou acontecimentos, às situações nascentes ou terminadas. a ~_cu.laçãQ...p.a.ra..s..e..ap.mxi roa r da..r.ealida.de...empirica_e_prática,
5 ( O expressivo se apaga diante do significativo, este mesmo consti- dos " dados" da vida e da...çQ..tlli:~ncia. A obra de_.tyf_ª-~-<:; as ciên-
:ar tui-se numa matéria verbal de uma sintaxe muito elaborada. O cias sociais n~sce~tes nessa época delineiam esse traçado. Marx
UI campo desestruturou-se e reestruturou-se em torno da literali- estudo.u , entre outros '.:.Suj.eiw.s", no quadro social do capita-
3? dade, sem ambigüidade nem poli (fonia, ritmia, valência, semia). ii~~o de livre concorrência, a vida real dos trabalhadores e seu
4 O sentido do escrito é de dizer tudo , tudo o que se pode escre- · duplo aspecto: atividade produtora e ilusões a superar.
rr ver. A escrita escuta a profundez e só a tolera se for transparente No entanto, a despeito do _posjrjyjsma._e_do..p.r.agro.arismo..
Sl e perfeitamente peneuada. Não é mais a cilada para agarrar as que Ef.~t_<:._ndefll__ê.~:~a filosofia continua a dominar ess~s
d profundezas, é o lugar por excelência. investigações. Ela- e apenas ela- reata as reflexões fragmenta-
m Ao longo de um trajeto balizado por~tes_,__p_ei..­ rias e os conhecimentos parcelares. Impossível fazer abstração da
;e cebemos, no iní<;!ç..--ª desco~do cotidiano e a expr~~ filosofia como pesquisa sobre o homem (essência e existência),
ar ~~~n · (f.Ja ch~gad~, reenconuamo.s o sobre o conhecimento (verdadeiro ou falso), sobre o possível e o
3; cotidiano, mas percebido de maneira muito diferente. O escntor impossível. Não há outra referência para se apreciar e pôr em
..
.. o revela, desmascara, descobre. Ele o mostra cada vez menos tole-
rável e muito pouco interessante; _mas ao mesmo tempo torna-o
conexão os elementos e fragmentos descobertos. Por quê? Por-
;t que a filos.Qfia, considerada_nn_s.eJJ.s.Q!1j.JJP.12.z. ._na .~ua -~tali_~~~e,
interessante pela maneira de dizê-lo, de pô-lo em forma: pela e~g.....Q._ p..c_QjeJ;g_ d e um .' 'ser h~a_g9_:'. )_.i_~J.9ID..Q.leÇ.Q_,_ Pl~
es~rita .Cliterária.D Es~a anál~e traz _en~ão à l~z mo~caç~e$ r:_a mente realizado,. racional e. real-ao mesm0 tempo; numa ,pal~a:\( / 1
d
ó
coiSa d ita e na rhaneua de d1zer. Nao e nossa mtençao aqUI leva-
la mais longe e situar ao longo desse crajeto o teatro contemporâ-
í.õ.ti.lEsse projeto, implícito na maiê~tita de Sócrates, ~oi apu- 'Y-L
rado, revisado, c~n;estado, desenvolv1do, o.rnado~ de adJunço~s, ~
neo na França (Ionesco, Beckett, Dubillard), o romance (Margue- superfetações e h1perboles, durante quase vmte seculos. -....J
rite Duras), a poesia (Ponge), o cinema (Resnais, Godard) etc. Com relação à filosofia, a vida cotidiana se apresenta como
Também não pretendemos tentar a generalização do que foi per- não-filosófica. como mundo real em relação ao ideal (e ao con-
I
li
18 19.

ceito de mundo).- Diante da vida cotidiana, a vida filosófica fico , procurando simultaneamente ir além _da alie_nação do filó-
pretende ser superior, e descobre que é vida ~bstrata e _ausente, sofo e da alienação do não-filósofo , este pnvado de clareza con-
distanciada, separada. A .. filosofia tenta decifrar o emgma do ceptual, cego e tateante, fechado numa existência estreitamente
real e logo em seguida -diagnostica sua própria falta de reali- limitada. O conceito de cotz'dz'anz'dade provém da filosofia e
dade; essa apreciação lhe é inerente. Ela quer realizar-se e a rea- não pode ser compreendido sem ela. Ele designa o não-filosó-
lização lhe escapa; é preciso que ela se supere enquanto vida fico para c pela filosofia. Mas o pensamento só pode levá-lo
filosófica. O homem da filosofia e o homem cotidiano, vamos em consideração no decorrer de uma crítica da filosofia. O con-
deixá-los um ao lado do outro, um frente a frente com o outro? ceito de cotidianidade não vem do cotidiano nem o reflete: ele
É impossível do ponto de vista filosófico , pois a filosofia que! exprime antes de tudo a transformação do cotidiano vista como
jl
I
pensar '' tudo'', o mundo e o homem, depois se realizar. E possível em nome da filosofia. Também não provém ~a filoso-
1 11
: I igualmente impossível do ponto de vista do homem cotidiano, fia isolada; ele nasce da filosofia que reflete sobre a nao-filoso-
I ·; já que a filosofia lhe traz uma consciência e um testemunho
decisivos, porquanto ela é a crítica ao mesmo tempo vã e radi-
fia, o que é sem dúvida o arren:-ate supremo da sua própria
superação! .... ,
I cal do cotidiano. O cotidiano não seria apenas um grau inferior da reflexão ·\
!I
I
Quando o filósofo se considera razão completa, enquanto e do "vivido" em que essas duas formas da experiência se con- )
filósofo , entra numa vida imaginária. Quando quer realizar as fundiriam ainda, em que tudo o que se verifica parece perren- (
possibilidades humanas por seus próprios meios, descobre que cer ao universo, em que o mundo é encarado e enfrentado \ (/ )
não há meios. Quando a filosofia se proclama totalidade defi- como a soma das coisas? Seria somente uma interpretação d~\QV
nida e acabada, excluindo o não-filosófico, realiza sua própria e>..'Periência, interpretação de bem baixo nível filosófico , segund? ...
contradição e se destrói a si mesma. a qual o "mundo" e o "universo" aparecem como u.rz: conti-
Vamos separar definitivamente a pureza filosófica e a impu- nente, como um vasto recipiente, como uma moldura g1gante ?
reza cotidiana? Vamos considerar desamparado o cocidian<l.' Seria, enfim , uma coleção de objetos fúteis, indignos de entra
abandonado pela sabedoria à sua própria sone? Podemos dizer nas esferas da Physis ·, do Divino, do Humano profundo, temas
que é a tela que impede a profundidade luminosa de jorrar sérios da filosofia moderna? - Não dei.xaremos escapar nenhuma
sobre o mundo? Que a inevitável trivialidade dirigida ao ser e ocasião de protestar contra os filósofos que mantêm assim a tra-
contra o ser, deturpação da verdade, e "na medida em que é dição filosófica e fazem de suas filosofias uma barragem; elas
isso tudo'', faz parte da verdade e do ser? Ou tornamos vã a filo- interditam qualquer projeto de transformação desse "mundo";
sofia, ou fazemos dela a cabeça e o ponto de partida de uma elas consagram a separação entre o fútil e o sério; elas apartam
transformação do mundo não-filosófico, na medida em que ele definitivamente , de um lado, o Ser, a Profundeza, a Substân-
se revela trivialidade, banalidade prática e prática banal. cia e, de outro, os fenômenos, o superficial, as manifestações.
Fica então aberto apenas um caminho: descrever e analisar O cotidiano , como conjunto de atividades em aparência
o cotidiano a partir da filosofia, para mostrar sua dualidade, sua modestas, como conjunto de produtos e de obras bem diferen-
decadência e fecundidade, sua miséria e riqueza. Isso implica o tes dos seres vivos (plantas, animais , oriundos da Physis, perten-
projeto revolucionário de um pano que tirasse do cotidiano a ati- centes à Natureza), não seria apenas aquilo que esca~a ~?S
vidade criadora inerente, a obra inacabada. mitos da natureza, do divino e do humano. Não consntuma
Partimos, pois, da filosofia , da sua linguagem, dos seus ele uma primeira esfera de sentido, um domínio no qual a ati-
mais elaborados conceitos, destacando-os, porém, das sistemati-
zações especulativas para confrontá-los com o mundo não-filosó-
• N atureza . em grego. (N.T.)
20 21

vidade produtora (criadora) se projeta, precedendo assim cria- sofia como sistema de referência para conhecer o que ela designa
ções novas? Esse campo, esse domínio não se resumiria nem a como não-filosófico, tendo esses dois termos (a filosofia e o coti-
uma determinação da subjetividade dos filósofos, nem a uma diano não-filosófico), como sentido, designar-se mutuamente,
representação objetiva (ou "objeta!") de objetos classificados superar-se recíproca e simultaneamente. Essa posição revolucio-
em. categorias (roupas, alimentação 1 mobília etc .). Seria algo nária não admite uma racionalidade inerente à história, à socie-
on< ma1s : não uma queda vertiginosa, nem um bloqueio ou obstá- dade, ao conjunto das atividades e dos trabalhos parcelares?
1a culo, mas um campo e uma renovação simultânea, uma etapa Essa racionalidade explícita pela filosofia, implícita na cotidia-
da e um trampolim , um momento composto de momentos (neces- nidade, de onde vem? Onde nasce, de onde vem esse sentido?
10 sidades, trabalho, diversão - produtos e obras - passividade Para Hegel é claro: a racionalidade vem da Razão , da Idéia,
si r e criatividade - meios e finalidade etc.), interação dialética do Espírito. Para Marx e para o marxismo também é bastam ·
O• da qual seria impossível não partir para realizar o possível (a claro: a razão nasce da prática, do trabalho e de sua organiza-
nt totalidade dos possíveis). ção, da produção e da reflexão inerente à atividade criadora
l d É aos filósofos que se dirige esse discurso em termos filosó- considerada em toda a sua amplidão. Mas atribuir um sentido
~r a ficos. O problema é saber em que medida uma soma de opres- (este sentido) à "história" e à "sociedade" não é também torná-
~ c sões e de determinismos (necessidades - trabalhos parcelares las responsáveis pelas ausências de sentido, pelas violências sem
- conhecimentos fragmentários - determinismos biolóo-icos 1:> ,
nome, pelas absurdidades, pelos impasses? Quem diz "respon-
10
geográficos, econômicos, histórico-políticos etc.) pode ainda sável" diz "culpado'·'. Imputar a quem a responsabilidade?
~ív
aparecer como um "mundo", obra da liberdade, perspectiva Descobrimos que a inocência do vir-a-ser pressupõe sua falta
) (
de uma obra mais alta dessa mesma liberdade. Mesmo que o de sentido. A hipótese nietzschiana, isto é, o niilismo como
ar etapa e momento , como situação a superar, não é então elimi-
filósofo salte sobre esses fragmentos, esses determinismos e
Jl nada por antecipação. Se aceitarmos a orientação hegeliana e
opressões, para se estabelecer na sua verdade, não resolverá
t? em nada o problema. À alienação filosófica, verdade sem reali- marxista - a realização do racional pela filosofia - , a análise
4 dade, corresponderia ainda e sempre a alienação cotidiana, rea- crítica do cotidiano decorre daí. Se aceitarmos a hipótese
rr. lidade sem verdade. nietzschiana de uma avaliação, de uma visão em perspectiva,
)L
"i A problemática (para continuar falando aos filósofos) for- de um sentido decretado sobre a falta de sentido dos fatos, a
d mula-se claramente. Existe um dilema. Ou ir mais lono-e que análise e a transformação do cotidiano aderem a essa hipótese:
n Hegel, buscando a unidade entre a razão (filosófica) e ~ reali- é um ato inaugural.
e dade (social), ou seja, buscando a realização da filosofia - não Formularemos aqui outros dilemas. Ou empregamos nof)s
H aceitar mais a separação do filosófico e do não-filosófico, do sas energias práticas (aquelas de que todo indivíduo dispõe
Ié superior e do inferior, do espiritual e do material, do teórico enquanto ser social) , para fortificar as instituições, as ideolo-
e do prático, do "cultivado" e do inculto-, procurando desde gias existentes - o Estado ou uma igreja, um sistema filosófico
t e:1tão uma transformação não apenas do Estado, da vida polí- ou uma organização política - e ao mesmo tempo rios empe-
tica, da produção econômica ou da estrutura jurídica e social, nhamos em consolidar o cotidiano sobre o qual se estabelecem
mas também do cotidiano. Ou voltar à metafísica,· à angústia e se mantêm essas ''superestruturas'' ; ou nos dedicamos a
e_ao desespero kierkegaardianos , ao niilismo que Nietzsche que- ''mudar a vida''. Em outras palavras, ou erigimos em absolu-
na superar - retornar a 'mitos, enfim, fazer da própria filoso- tos, em Idéias platônicas as instâncias que se elevam acima do
fia o último dos mitos cosmogônicos e teológicos. cotidiano com a pretensão de regê-lo - ou então tornamos rela-
Teremos de examinar se essa posição regula completa- tivas essas entidades (Estado, igrejas, culturas etc.), recusamos
mente as contas da antiga filosofia, se podemos entender a filo- substancializar (descobrir a substância delas, o ser escondido
da realidade humana), desvalorizamo-las, valorizando o que.
23

po
22 a<? prole~ariado ao me smo tem
aqu ele s ~m qu e Marx atr ibu i de cri ar
l elas pes am , con sid era ndo -o
nad a acr dad e rnc ond icio nal 0
elas dep rec iam e sob re o qua par a esm a- a negaçao abs olu ta e a cap uid ade rad ica l da his tór ia
ano . O_u tra bal ham os con tin
ma is qu e um res ídu o: o cot idi nov o ao lon go de um a des ~
era mo s o irre dut íve l, o pre cio so
os acr esc ent am aos pri me iro s alo-umas afirmaçõe
gar esse res idu al, ou o con sid Estes últ im o
e das dif ere nça s concretas. Ou um pou co ráp ida s.
con teú do das for ma s abs tra tas ora dam ent e nessa encr:uzi-
usa s'', ou aju dam os a hu mi lde Par em os um pou co ma is dem e aco mp anh am seu racio-
nos colocamos a serviço das ''ca eles qu
raz ão do cot idi ano . l~a~a on de nós (o aut or e aqu os
aprovação do leit or ou ao seu o paí s e a paisag em , exa mi nem
Estamos apr ese nta ndo aqu i à ta? crn w) c,hegamos. Olh em os nós cam inh
Marx ou do pen sam ent o marxis tor nar . Atr ás de
os obstaculos a vencer , a con po nto d~
0
ceticismo um a interpretação de
os a história da filo sof ia, a situ a- idi ano . Est am os no s~u
,I
Nã o. Nó s (o aut or) int erp ret am e da filosofia e a rot a do cot a a filosofia
A tes e de qu s os sep ara m, em bor
enc ont ro. ~lgumas n:o nta nha
ado s do século XIX .
ção filosófica e teórica em me tem pla ção não cum es com vista do alt o sob
re a
a filosofia não per ma nec e filo
sofia, de qu e a con ten_h~ se:gurdo u~a lm ha de rta , com
de qu e a especulação não se
con- , um a est rad a ma l abe
se con ten ta em con tem pla r e
e da rea liza ção :on dta md ade . D tar: te de nós inh os e brejos. ·
e abs tra ta , essa tes arvores a cortar, mo itas de esp
ten ta em atin gir um a tot ali dad cia (a ide nti da- a cot idi ana obj eto da filoso-
a ele, a coincidên Em_res um o, declar~os a vid
da filosofia está em Hegel. Par nem ter mi nad a e já fei ta , nem ta-
é em qu e é não-filosofia. Decre
de) do real e do racional não fia, pre,crsamente na me drd a
da. Ele sur pre end e a his tór ia no ela é o obj eto filosóf ico . As sim
ide al, fut ura e ind ete rm ina sua m? s ate que~ po r essa raz ão,
essa uni dad e. Ele a aga rra em seu s obj eto s tra dic ion ais . Em
mo me nto em qu e ela pro duz
ional e real, filosóf ica e pol ític a, agmd~, des v~amos a filosofia de os ing enu am ent e filosóficos ,
dup la e un a det erm ina ção , rac face drsso, au~d~ qu e con tin
uem
p~rdiçl_Q_:_ _e.n.tr.a_-..:_a<;J.o, pre so po_r o /;(
ma is lon ge \-
dessa tese? Ela recua ndr ano
teó rica e prática. Qu al a ori gem rir-lhe a em erg ênc ia no raciona- " Q~~,o
_o-:'h se mo st:a
õC -Ã .
ffj
no passado, e pod erí am os des
cob l pr? ble mi nha s miõi:lscuf
a razão filosófica não é teo ria
de mrl laç<?J.,_ jlS voltas com mi .srã o ... ele_ po de arriscar; sab e
lismo cartesiano. Par a He gel , via de mes~o tem po, con for me
a _oc(l -
um a realid ade pre exi ste nte . Ela
se realiza no Est ado em
er. A cer tez a de qu e o filósofo pro cur a nad a te-
com o seu concurso. O sist em a .ga nha r e p erd ano ·
constituição sob os seus olhos, son had a pelo ho me m cot idi
de com um com a seg ura nça ri~
per igo alg um , alé m dos espi
hec er o seu
à histór ia ao dar a con
filosófico-político põe um fim a a~entura ,filosófica não corre
sen tid o, não ape nas com o sist
prático (político) do Dir eito e
ema filosófico, mas com o sistem
do Estado.
a
tua1s. O filo sof o pro
segue. O l}omem c~:>tidiano
cur a se fec har na sua esp ecu laç
se fec ha em suas pro pri eda
ão e não con
des J
est.i
-

~
Os textos de Marx sob re a
realização da filosofia ·co nti - ben s e sua s san sfa çõe s, e às vezes se arr epe nde . Ele
si seus da
, faz end o -o voltar-se con tra da nat ure za do qu e 0 suj eito
nu am o pen sam ent o heg eli ano filo sof ia heg e- ou pa!ece est ar ma is pró xim o cot idi ana : ma is
, por qu e seria a ito ma is a mu lhe r
me sm o. Se a filosofia se rea liza tes reflexao ou, da cul tur a. E mu viz inh a
filosofia enf im livre dos aci den r capaz d e colera, de alegria, de
pai xão e de ação, m ais
lia na e não a tot ali dad e da He gel ? E po re a vid a e a
des de Pla tão até ade , dos laços ent
e das sup erf eta çõe s qu e vêm o das tempest~des, da sen sua lid -
co con stit uci ona l? E por qu e e esp ont âne as. Mas isso é ver
que seria no Est ado mo nár qui or, se def i- mort~, das nqu eza s ele me nta res fun do?
sup ort e ou seu por tad real, sup erf icia l ou pro
"su jei to" dessa realização , seu sse dad euo ou falso_, apa ren te ou
a burocracia do Est ado ? A cla sofo qu e ass um iu e apr end eu
a
nir ia pel a classe mé dia e pel tór ia qu e con tin ua? . Ne ste s,enttdo , par a o filó vid a cot idi ana
his ão, esp ecu laç ão) , a
ope rár ia não int erv ém nu ma
o des tin o do heg eli ani sm o a mu de frl~sofi~a (co nte mp laç ela-
Esses pou cos tex tos esclarecem irá vel qu e esc apa m aos sistemas
ocu lta o mi ste nos o e o adm
to 3 . Eles não se con fun dem com end em com ela ma is do qu e com
e só se esclarecem nesse con tex borados. Os filósofos se sur pre es
za ou da art e . Qu ant as vez
qua lqu er out ra coisa da nat ure
.
3 Cf. Marx phil oso phe . P.U .F.. 1964
24 25

e
eles obser varam como o prime iro filósofo profis sional , aquel longá -lo; no entan to, a essência do imagi nário situa-se, talvez
,
de coisas corriq u:iras repeti -
que nada escreveu, Sócrates, só falava na evocação, na ressurreição do passa do, ou seja, numa
ista,
para iniciar o diálog o filosófico: falava de vasos com o ceram ção. Isso aprox imari a a image m da lembr ança e o imagi
nário
cimen to,
de sapato s com o sapate iro! da memó ria, assim como do conhe cimen to: O conhe
Diant e do cotidi ano a filosofia reenc ontrar á essa surpre sa os filósofos soube ram desde o início que ele comp ortava
remi-
acon- reflex ão; do outro ,
ingên ua e anunc iador a? Pode ser, mas , mesm o 9-ue isso niscência e recon hecim ento (de si mesm o, na
ci-
teça, a surpre sa oscilará entre o desdé m e a admir ação . no conceito; do ser , na certeza). Imag em, memó ria , conhe
uma unida de quebr ada, uma
Se desvia mos a filoso fia e nos fixamos na metaf ilosof ia, mento não reenc ontra m assim
não é para liquid ar com o passa do filosófico. Não é a atitud
e convergência perdi da? Ning uém ignor a que a psicanálise ressal-
um
positi vista que se opõe aqui à atitud e espec ulativ a. Para ating
ir tou a eficácia mórb ida da volta para trás, da reaparição de
a unida de "racio nal-re al", traum a, e tamb ém a eficácia terapê utica da reapa rição eluci-
a razão dos filósofos , para defin ir
uma
prolo ngam os a filosofia e pergu ntamo s ao filósofo qual
é o dada. Que é feito então da repetição? O cotidi ano é a
risco de modif icar essas varian te dela ou o lugar de reenc ontro ? Pode ele respo nder
modo de empr ego dos conce itos, com
à metaf ilosof ia? Cite-
reo-ras e de introd uzir outro s conceitos . Não nos esque çamo
s algum a das questõ es que a filosofia lega
d; que até certo ponto se trata de uma maiêu tica: ajuda r a coti- mos, entre elas: ''Com o confr ontar a visão do vir-a-ser desde
ção?
diani dade a engen drar uma pleni tude prese nte-a usent e
nela. Heráclito até Hege l e Marx com o fato crucial da repeti
desde Sócra tes e da Como resolver o confli to entre a teoria herac litian a do Outro
Por outro lado, a situaç ão mudo u muito Par-
razão na cidad e grega . Trata-se de produ zir um home m novo ; perpé tuo , que se debat e contr a a repeti ção, e a teoria de
onto com mênid es sobre a ident idade e sobre o Mesm o imutá veis, teoria
o conce ito de maiêu tica não poder á escapar ao confr lecer
as idéias de mutaç ão e de revolução . que se dilui na mobi lidade universal? Seria possível estabe
arx e a trajetó -
um diálogo entre a trajet ória Herác lito-H egel-M
Com esse objeti vo, não vamos dissim ular intenç ões mais de pen-
de ria que parte do Orien te e termi na em Nietz sche, linha
inqui etas ou mais inqui etante s. Não se trata, por exem plo, seria
, o cotidi ano se com- samen to da qual Herác lito tamb ém faz parte? O cotidi ano
explo rar o repeti tivo. Em sua trivia lidade itisse
movi- o lugar _desse confr onto? Ele conte ria o critério que perm
; . põe de repetições: gestos no trabal ho e fora do traba lho, desco bnr ou o segred o do enigm a ou a indica ção de uma ver-
de peças
mento s mecân icos (das mãos e do corpo , assim como ~
~.,

~
seman as, dade mais elevad a? ''.
e de dispositivos, rotação, vaivén s) , horas , dias ,
o da A reflexão sobre a lingu agem , result ado de uma longa
meses, anos; repeti ções lineares e repeti ções cíclicas, temp e-
:;
natur eza e temp o da racion alidad e etc. O estud o da ativid
ade r~flexão sobre o Logos (ligad a à essência desse Logos), caract
e nza o pensa mento mode rno . Esse exam e da lingu agem , assim
nadar a (da produ ção no sentid o mais amplo ) condu z à anális
)
-
r
da re-pro dução , isto é, das condições em que as ativid ades
pro- como da leitur a e da escrita como ativid ades ligada s à lingua
ação
:: dutor as de objeto s ou de obras se re-pro duzem elas mesm as , gem, relega um pouco para a somb ra uma longa medit
re-com eçam , re-tom am seus elos const itutiv os ou , ao contrá rio, que acom panha a filosofia desde o seu nascim ento. Muito antes
er a
das pesquisas sobre a lingu agem , tentou -se comp reend
)
se transf ormam por modif icaçõe s gradu ais ou por saltos. de;
música. Ora, a músic a é mobi lidade , fluxo , tempo ralida
3 A teoria do vir-a-ser depar a-se com o enigm a da repeti ção. no entan to ela se baseia na repeti ção. Todo canto comu nicáv el
,
O imens o fluxo do tempo herac litian o na natur eza e no cosmo e comu n_icad o, com mais razão ainda quand o é escrito, pode
~

idual e na social , esta tempo ralida de


I! na histór ia, na vida indiv se repeu r, bem como toda music alidad e defin ida s::>bre o
con-
m,
inesgo tável, cuja visão algun s dos maior es filósofos tivera t~nuo sonoro. Toda melod ia vai em direçã o a um fim (cadê n-
menta l? A image m, a imagi na-
não camu flaria a repetição funda Cla) que pode ser o come ço da retom ada, como a tônica no fim
pro-
l
ção, o imagi nário parec em merg ulhar no fluxo tempo ral e de uma oitava dividi da em intervalos (gama ) assinala igualm
ente

J
t:.
27

stu ra vito-
da mo s ao ma tem áti co a po
26 lev ant am os um a mu ral ha , o dra ma existe.
de mo tiv os, de tem as, rid e. No en tan to,
ava seg uin te. Há rep eti ção riosa do he rói qu e tra nsg o qu e ele cerca,
iní cio da oit gim ent o e ele nã o ap ree nd e,
0
alos na me lod ia. Há res sur Di an te do nú me ro, há o qu sem pre lá.
de combinações de interv o do s ídu o, o irr edu tív el. Est á
sen tim en tos clesaparecidos, ret orn ma s qu e lhe esçapa, o res nos apr ox im a-
das em oçõ es e dos stências na da , o '' na da ''. Se
evo caç ão das ausências e· das exi Re cua , par ece po uc a coisa: de , o oce anq
mo me nto s aca bad os, rio , e nó s, qu e som os fin itu
pe la mú sic a. Co mo no im ag iná defi- n:o s, é o inf ini to dia nte de nã o é "n a-
dis tan tes , na mú sic a e
das oitavas na escala do s son
s e a "cien tifi cid ade "? Isso
na arte em geral. A rep etição dia nte da pra ia. A ciência e diq ue s,
nça , a relação en tre o nú me
ro e a uis tad o ao ma r por me io d
ere da"=. um ter ren o baixo co nq co mb a-
nid os, a un ida de na dif
on ia. Essa ha rm on ia co nst
itu iu- ra evacuar as águ as , lag , os
qu ali da de são ine ren tes à ha rm
teo ria can ais , navios , má qu ina s pa s avanços da ressaca. O cie nti sta
art e, em co nh eci me nto , em téc nic a musical pe la sco
tes con tra as ma rés , e os bru eresse. Pe da nti sm o rid ícu lo qu e
se em nci a
ção , do seu des arr anj o , da oco rrê dec lar a qu e o res to não tem int
ta, o
do s aco rde s, da sua rep eti
um a lógica ao Ess e "re sto " é o qu e a ciência co nq uisini ta-
~ essa teo ria for ma tap a o _horizonte.
do s intervalos e das séries fica, qu e pe rm ite um a sin tax e e, e inf
. Se o resto nã o é inf ini to
me sm o tem po ger al e esp
ecí con heC im ent o do am an hã ada à do
o seu co nte úd o (at é qu e se
esgo- o sábio? Su a sor te está lig vid a e
, for ma me nte precioso, qu e far á :
do mi na nd o a alt era ção al e sua . O drama: tud o é dra ma
a não-clássica, o sis tem a ton po eta , me sm o qu e a ign ore no me tro a
tem a ha rm on ia clássica e Co nto os ago niz an tes, cro
mo rte , de rro ta ou vitória. o na da .
dissolução, a ato na lid ad e). e é o sof rim en to, o qu e é
a , de um lad o , e a filosofia,
a ago nia , e na da me diz o qu vitórias.
Se há relação en tre a mú sic s laç os das con qu ist as, das criações, das
, nã o hav erá tam bé m alg un O res to é o lug ar
é pró pri o do filósofo tra dic ser
ion al ,
art e , a lin gu ag em , do ou tro Se rá qu e a mú sic a revela a essên- Ne ga r o nú me ro e a ciê nci a
po de
en tre a mú sic a e o cot idi ano
? Af irm ar qu e o resto nã o
idi ano , ou , ao con trá rio , co mp en sa sua
tri- é a l~ucura do metafísico. a sua pá tri a, é pró -
cia esc on did a do cot ser ia e avr a e o can to têm aí
e sup erf ici ali dad e sub sti tui nd o-l he o can to? Nã o re~uz ido ,_ ~ ~u a pal
sua raz ão . Mas e o cotidiano? Aí
tud o
via lid ade E se e d e
o en tre a vid a "p ro fu nd a" e a vid a "su pe rfi cia l"? pn o da civ ihz açã o
nta do : des de o din he iro até os
mi nu -
lig açã ar, é co
reu niu ou tro ra, ess a un ida de po de ain da en co ntr ar lug co nta , po rqu e tud o
me tros, qu ilo s, calorias. E nã o
ape -
ela as a (at é um era em
e mo me nto , ten do em .vista a cisão qu e se ace ntu tos. Aí tud o se en
m os viv ent es e os pe nsa
nte s. Há
raz ão
ura l) en tre o cot idi ano e·o
n ão- cot i- nas os ob jet os, ma s tam bé e me de o seu nú me ro e a du ra-
ao po nto de tor nar -se est rut ção da po bre za cot idi ana ? Nã o um a deq1ografia das coisas
, qu
an im ais
, em dec orr ênc ia da agr ava com o um a de mo gra fia do s
dia no
- as da dif ere nça e da esp uit e-
ecifici- ção da sua exi stê ncia, assim , viv em e mo r-
haveria qu estões aná log as ~essas pessoas nas cem
s ou tro s ''o bje tos '', com o arq e das pessoas. No en tan to, ele s ua nh am ou
da de - a respeito de mu ito rem . Vivem be m ou ma l.
E no co tid ian o qu e
o sob revi-
a, jog o? a, nu m du plo sen tid o: nã
tur a, pin tur a, dan ça, po esi sde de ixa m de ga nh ar sua vid
da mú sic a e da reflexão, de sobreviver ou viver ple na me nte . É
De sde os pri me iro s teóricos s" (pa la- ver ou sobreviver, ap en as
os qu e há dois "as pe cto s", do is "la do zer ou se sofre. Aq ui e ago ra.
Pit ágo ras , sab em
a a riq ue za de con ota ção ,
e até a no co tid ian o qu e se tem pra la
qu e pe rde ram tod pe r est e dis cur so. Ele acu mu
vra s gas tas
ten tar reavivá-las): o nú me este
ro e o · O int erl oc uto r vai int err om ica?
retórica filo sófica fal ha ao os a ap res en tar tos . E co mo acu mu la! "E a rea lid ade não-filosóf
ara m aos filó sof arg um en ciências
dra ma . Os mú sicos en sin erv alo s, é jus tam en te disso qu e se oc up am as
a: na mú sic a tud o é nú mero e qu an tid ad e (os int A_ vid a rea l? Nã o
h á ma is de um século , co mo a eco
no -
eni gm Tu do iais
os tim bre s) e tud o é lirism o, org ia ou son ho . d1tas hu ma na s ou soc
a sociologia, a his tória? Co
mo ciên-
os ritm os, te an~lise, mi a po líti ca, a psicol og ia,
ilidad e, e tud o é igu alm en en te fra gm en tam ess a en orm e reali-
é vital e vit ali dad e é sen sib ram ma nte r esses cias parcelares, elas cer tam
os gra nd es sou be for a de si me sm a. É a ess es sábios
pre cisão, fixidez. So me nte se me de . Co mo da de qu e a fllosofia dei xa
: tud o se co nta e es e das sua s buscas qu e po de sai r a
dois '-'a spe cto s". O nú ml ro ext rem os ao cálculo, bar rei ras às qu e pe rte nc e o real. É del
,
criar lim ite s à en um era ção loc am . Se
po is esses ext rem os se des
ma tem áti cas ? Impossível,
29

-
28 cias .nasce ram no mom ento em que o home m (se esse "sujei
) quis e acred itou
·d d do real e do racional, através , da fragmentaçã~. Com to " não lhe agrad a, digam os: o pensa mento
, 1 d d esta nar
un1 a e o você trata de mane·ua gc;nen
· ue direit
·
ca, ~ ':lz o ta, . poder sobre pujar o destin o , dome sticar sua realid ade, domi
. , ou o p~tco­
vã . As ciênci as
qentl·d ad e .. 0 cotidi ano? O que . é ele? E o, econo . miCo , suas leis. Essa prevenção racional não é de todo
, o mais
lógico, ou 0 sociol ógico , obJeto s e ~omt m~s par_u cu 1ares atmgt - parcelares se julga m operatórias e o são. Vejamos como
s,
. r métod os e diligênctas espec íficas. E o alime nto , a veste,
dores. Cham e próxi mo possível. Elas possu em métod os, conceitos, objeto
. . h inam? ·
vets po' e ·s a casa , a habitação, a vtzm .
ança, os- arre nf d - setores e domín ios. Em que condições elas os determ
os mov 1 , ial', se qms~r , ma_:; _nao co un a , nao Não nos esque çamo s de que "o home m" e "o pensa ment
o"
a isso 'cultu ra mater No
enfie tudo no mesm o saco. O seu mven tano , a sua -~e~ografi_a não saltar am de repen te do destin o cego para a liberd ade.
dos objeto s serão apena s um. capítu lo de uma oenc~a
m::.1s século XIX, com a era indus trial, a vida social emerg e lenta-
ia,
ampl a. A obsolescênc ia das cotsas e sua espera_nça de v1da nao ment e de condições que domi naram duran te milên ios: penúr
e
passa m de um caso partic ular do env~lheomen~o .. Mes~
o domin ação incert a e cega das leis natura is. Entre esse estado
visado pela razão , não há uma longa
a com um pouco de cmda do as stgmficaçoes o estado contrário e novo
q uando você estud A

transição? A escassez não acaba de uma vez, numa bela manh


ã.
das coisa s- os móveis, o ahme nto, ~roupas_-, voe~ ~e
o

con-
m
dena a enfati zar o dram a, a pronu nciar um ~hs~ur so lm.~o ~m Algun s bens , respo ndend o a necessidades eleme ntares , deixa
as , nos países indus triais. Outro s,
prejuí zo do erudi to, porqu e você tende a ehmm ar as cteno de ser raros numa parte do globo
Além do mais , há novas rari-
. . mais preciosos, continuam raros.
comp erente s! " o, o
Este interl ocuto r, cuja interv enção conté m multa~ obJe- dades , das quais ainda não termi namo s de falar: o espaç
tempo , os desejos ou o desejo. Essas ciênci as, com as quais
: ~s
ções contra o nosso objeti vo.'. formu la . arg~mentos sénos você conta , não impli cam uma prátic a, a organ ização das
con-
e~tao
argum entos do sério, do posmvo , do ctentt f!;o . . Vamo s rarida des antiga s e novas ,
~­ dições existentes, da repart ição das
respo nder- lhe com seried ade:_Por 9-':le uma :tencta. em pamc contri - numa distrib uição desigu al e ainda injust a batiza da com belos
lar _ a histór ia ou a econo mta pohtt ca - nao trana sua
a?
o nome s: restrições , determ inism os, leis, racion alidad e, cultur
buiçã o para o estud o da vida cotidia,n~? E por que esse e~tud ada em nome do direit o
a Essa repartição injust a d a escassez, realiz
não poder ia se estabe lecer n? _do~rmo de uma d_eter~~unad nome da cienti fici-
ciência mom entan eame nte pnvtle g1ada , como a soool oota,
por duran te longos séculos, não se faria hoje em
bem
exem plo? Vamos mais longe . Você se parece c?m aquel es
que dade , da racion alidad e e do conhe cimen to dos fatos? Veja
qualid ade explic a-
que não transformamos aqui a escassez numa
aband onam o relativismo científico e que eng~m co_mo
um a
da- tiva da histór ia e meno s ainda numa teoria econô mica, mas
absol uto a cienti ficida de. Você já deve saber quats as d
_ tficul
. O objeto de
essas ciênci as parce lares cup comp e- toma mos como um dado explicativo de atitud es
des que result am daí para posi-
de. Qual é ~ estatu to d::l~? tal ciência estari a isento de intenç ões suspeitas? Teria ele a
tência e jurisdição você defen ém
Nunc a se soube se elas delim itam seus obJetos e ~omu:
nos tivida de que os especialistas interessados lhe atribu em? Conv
as
numa totali dade daí em diant e irredu tível às suas pamcu l~nda ­ acred itar piame nte nos especialistas? As tentat ivas d as ciênci
coe-
sobre uma r~ahd ade ditas ''hum anas' ' não se desem baraç am facilm ente de um
des ou se elas lança m luzes partic ulares elas contê m ideolo gias. Assim , o soció-
ficien te ideológico, pois
globa l. Partin do da "cient~~ci~ade", você está desun ado
a
e se
plo_ : em ?-orr:.e da logo D u rkhei m defin ia a realid ade social como opres são
recusá-la a esta ou àquel a ctencta. Por exem és dessas contra diçõe s (com
lingüí stica, consi derad a c?mo protó tipo do _ngor _crentt
:?c~, julgav a defen sor da liberd ade. Atrav
-
ogt~, ~ que direit o os especialistas, e só eles, evitariam qualq uer contra
você vai privar dessa propn edade sober ana a pstcol h_tsto-
ram uma racion alidad e mais
lmas, dição?) as ciências parcelares procu
ria, a sociologia. Você se esque ce de que ess~s dt~ctp da
como se diz têm uma existência apena s relanv a, hgada de eleva da, não sem conflitos, seja com a racion alidad e limita
didad es legali zadas
um lado a açÕes prátic as, e de outro a ideolo gias que elas
J?~O­ da socied ade existe nte, seja com suas absur
ente ou conso lidar ou decan tar. Essas cren-
curam incess antem
31
-- ,
30 er :to , pe la re fle xã o? 0 im po rta nt e ·é , /) 1
am ··:
co tid ia na of er ec e um
po nt o el a? or ad os pe lo pe ns su a sim ul ta ne id ad e e su a re la ç-ao . 0 co tt ~
do da vi da dehsd e ag or a ~ r;
e in sti tu cio na is! O es tu
re s e al gu m a coisa
m ai s.
das.
sm al ar
, · qu e vai po r si m es m o , ~~
m nu m em pr ego ~
nc ias pa rc ela o só lid o, aq ui lo
de en co nt ro pa ra as ciê
o ra cio na l e o irr ac io
na l na Iar:o e o_ um lld e e se en ca de ia
aq ui lo CUJas ~artes
nf lit os en tre e fra gm en to s
M os tra o lu ga r do s co lu ga r in ar a s
a. D et er m in a assim o re ss ad o te nh a de ex am
a ép oc e, o in te m-à~ K
o aq ui lo qu e pã o re
e na no ss ão em O se m qu
nossa so ci ed ad e ob le m as co nc re to s da pr od uç do . tem p2 '. E ISS s. _§ po rta nt
~Ic~la~oe~ dess
am os pr social as pa rte pa e,
em qu e se fo rm ul od uz id a a ex ist ên cia un - re n~ em en te ); el e oc up a e pr eo cu
se nt id o am pl o: a m an ei ra co m o é pr
E o mstgnilic~te (a pa bj a-
escassez pa ra a ab r di to , é um a ét ic a su e
os , co m as transições da ítica se ria m ne ce ss td ad e de se
do s se re s hu m an
iação. Essa an ál ise cr no en ta nt o, na o te a da de co ra çã o dess I
io so pa ra a de pr ec visa a o d<? _ te m po , um a es té tic ta li
dâ nc ia e do prec s de te rm in ism os parciais. El a ce nt e ao em pr eg
e se un e à m od er ni da de . Po r es
I I
õe s, do os e as E o qu -
es tu do da s opress un do em qu e os de te rm in ism te m po em pr eg ad o. qu e tra z o sig no do no vo e da no vi
es se m pr e nd er o
virar pe lo avesso
ra cio na is, ao pa ss o qu e a ra zã o se m pa la vr a é p: ec iso en te oxal m ar ca do pe la te cn ic id ad e ou pe lo
r r_ad -
opressões pa ss am po in ism os . To rn ar
o do m ín io do s de te rm belecer os direi- da de : o bnl,ho, o pa so (a pa re nt em en te ), o ef êm er o a av en
tev e co m o se nt id o e fim
é resta m un da no . E o au da ciO
É a ar te e o e~ et is mo
de s do cotid ia no nã o e qu e se faz aclamar.
pa te nt es as vi rru ali da
es se traço cara cte rís tic o da at iv id ad e cria- tu ra qu e se pr oc la m a
pe tá cu lo s qu e o m un do di to modem~
ap ro pr ia çã o, ne ce ss id ad e se ní ve is no s es a si m es m o.
to s da
e ve m da na tu re za e da m al discer de si qu e el e ap re se nt a I
al o qu pe la at iv id ad e tá cu lo
do ra , pe la qu
em um "b em " pa ra e ap re se nt a e no es pe
no e o m od er no , m ar ca e m as ca ra , I
ra , l se m pr e in ci- o co tid ia
Or~,_cada um deles,
tra ns fo rm a em ob er sa l da
da de ? O co nh ec im en to ra cio na a o ou tro . A vi da
co tid ia na un iv
hu m an a, e em lib er o as ac ei to u le gm m a e co m pe ns n Br oc h, é 0 inverso
s ex ist en tes , m as ne m po r iss de H er m an
di u so br e as co nd iç õe
es um at es ta do de
áe nt ifi ci da de ! ép oc a, seg~ndo a ex pr es sã o
po . Se us aspectos ou
face -
en do -lh o do te m
ou ra tif ico u, co nc ed to um a id eo lo - da n:_oderrudade, é o es pí :ir
qu an to 0 te rro r at ôm -
ic o
qu e va lo riz a as op ressões co nt ém de fa os di sp os to s r, tã o rm po rta nt es
A at itu de
ci on al id ad e e de ciê
ncia. Es ta m tas sao , a_ nosso ve lid ár io s nisso? Vere
gi a di sfa rç ad a de ra ap re se nt a- es pa ço . Nã o se ria m eles so
m os tra re m os ao fim de sta
, e a co n9 -u 1s ta do
es de um a re al id ad e
tã o es pa nt os a
a re fu ta r es sa id eo lo gi a. E is co nj un to s ~ã o d~ as fac
. U m nã o é de
s, ou du as en tid ad es , m as do m os ad ta nt e. as
ade em qu e vivemos
ção , nã o do is ab so lu to a moderni.,_ - a so Ci ed fic ad o. Essas
co rre lat iv os : a c9 tid ia oi da de e quan~o a fic ça o:
te , e o ou tro o sig ni
de fatos lig ad os e e , ilu m in a e o sig ni fic an
m e a pa rti da e
é um a au ré ol a dà qu el a e a en co br co tid ia no ,
J mane!'ra al gu n: a
re ci pr oc am en te . Co nf or
âa·de-:· Es ta pí rit o do te m po . Ao du as faces se sig ni fic am r su a ve z
as du as fa ce s do es
, re sp on de ~n á! is e as de sc ob re , ca da um a po você só
-e sc on de . São
co nj un to do in sig ni fic an te (c on ce nt ra do pe lo conceito)
s qu ais essa ? a?d~mentoe e significado. At é ch eg ar a essa análise , nifica-
da qu e
, co nj un to do s sig no s pe lo a id eo lo - e stg m fic am an te s e co m sig
e co rre sp on de o m od er no
faz pa rte da su te nd er co m sig ni fic an tes flu tu Você é
a, se ju sti fic a, e qu e ni da de ? te m de se en rd id o nesse m un do .
so ci ed ad e se sig ni fic cê ne ga ria a m od er do s de sta ca do s. E se se nt e m ei o pe ad os
ci en tif ic id ad e vo nt ifi - ao tra ze r os se us sig ni fic
gi a. Em no m e da ci ên ci a ou a su a "c ie tape~do. po r m úl tip
la s m ira ge ns _ e
e ap re se nt ar a su a
et en - ag en s, ob je to s, pa lav ra s
Pr ef er iri a an ex á- la do m od er no ? Co nt ra essa pr aos sign~fic~ntes ev an es ce nt es , im
s e declaracões
ci da de " co m o a en ca rn aç ão
ar iç ão sim ul tâ ne a
dessas ni fic ad os , de cl am aç õe
to na ap os seus sig m fic an te s ao s sig qu e você dev~
são, en co ntra m os ar gu m en
ro sas qu an to po uc o
cons-
da s qu ai s lh e in di ca m aq ui lo em ss ar so br e si
so lid ár ias , tã o po de
e pa ra prop~gan pe la s
cê de ix a pa
du as "r ea lid ad es " s pa ra a lin gu ag em ve ser. Assim, se vo
re m sid o tra ns po sta
de su a ac re di ta r e o q~e de evisão , pe rá di o , no
lo ci ne m a, na
cie nt es an te s de te od er ni da de . A re sp ei to de s1 gn ?s , pe la tel
ou tro s fix am
ia ni da de e a m to s, ~s nu ve ns emários pe lo s qu ai s
o co nc eit o: a co tid re m os de in te rro ga r os fa se r~t ifi ca os co _m
ví tim a pa s-
re laç õe s, te De 1m pr en s:, e s, en tã o você será a
de fin iç ão e de suas ur so s . Tr at a-se de essência? ,?n do de ss es stg no ex em pl o,
s e se us di sc
O u de co nj un - ~ara voce_ o se m as di sti nç õe s, po r
in cl ui nd o as pessoa pl íc ito s ou explícitos? o. In tro du za al gu
de sig ni fic aç õe s im an to nã o são Siva da stt ua ça
sistemas nã o significativos en qu
s pr ec isa m en te
tos de fato

-- ----
33
32
hori zont e. O
entr e a coti dian id ade e a mod erni dad e,
e a situa ção mud a; ~os dete r e~quanto avan çam os em dire ção a essea; nad a de que-
os. orta nte e a~ançar e enco ntra r algu ma cois
você se torn ará um inté rpre te ativ o dos sign Imp
sem term o ...
utor , que você dar esfo mea do as voltas com uma pesq uisa
Des de já, com pree nda bem , leito r, inte rloc
gêne ro , dest inad o
não tem dian te de si um guia de um novo
das coisas, das necessi-
a cond uzi-lo no labi rinto dos inst ante s e 3. Primeira etapa, primeiro momento
4
do do bom uso da
dade s e das satisfações. Não é um trata
está send o ofer ecid o
mod erni dade e da coti dian idad e o que lhe - Afin al , do que é que se trata ? De uma pesq
uisa bast ante
pod er safar-se de
aqui . Nem um man ual de orie ntaç ão para rado s arbi -
vast_a sobr e fato s de~~eD:hados _P~los filósofos sua man eira os
ou sepa
ual, esse trata do pode -
situações complicadas. Esse guia , esse man tran a.:n :nte pela s cienClas soCiais. Cad a
um à
ósit o aqui . E, além
ria ser escrito. Mas não é esse o nosso prop e~peClahstas das ciên cias parc elare s reco rtam os fatos; eles os clas-
em orga niza r razo a-
do mais , o auto r não está tão preo cupa do Sificam _de acor do com cate gori as às veze
s emp írica s ou abst ra-
fose á-lo . Seria surp re-
velm ente o coti dian o qua nto em meta mor ta~; atn~mem-nos a setores dife rent es:
sociologia da fam ília,
inst ante associados)
end ente que nós (leit or e auto r por um .ps1col?gia do cons umo , antr opo logi a ou
etno logi a este ndid as
ico: mod erni dad e- hábi tos e dos com -
dem orássem os nesse conf ront o, nesse dípt as soci edad es cont emp orân eas, descrição dos
iro term o apar ece
-cot idia nida de. Nes te mom ento um terce port ame ntos . Eles deix am a~s prá tico s-
publ icitá rios , plan ifi-
pref ere, o razoável. O que fabr icar uma coesão
no hori zont e: o racio nal ou, se se mod erno ? Qua l cado res - a tare fa de orga niza r tudo e de
dian o e no mel hor aind a des-
é que está do lado d a razão no coti com o queb ra-c abeç a dos frag men tos . Ou,
que stão , já apre - fossem dign~s de
denha~ os fato s co~idi_anos co~o se nãomun
l? Essa
a relação entr e o racio nal e o irrac iona e a nov as des-
ênci as tos
sent ada diversas vezes, leva rá a nova s dilig rio, suas funç ões conh ecim ento : os moveis , os O~Je e o do dos obje tos,
giná
cobe rtas: cons ider ar ou reconsid erar o ima a refle xão os emp r:go s do tefn:po , as bana lida des, os anún cios nos jorn ais.
talve z leve
e seu luga r. O and ame nto dos trab alho s diss ésse mos a Eles se JUntam assrm aos filósofos , chei os de desp rezo pela
(talv ez
a outr os term os: a Cida de, por exem plo tipli car esses Aflt agli chke it •. .
os mul
urba nida de ou o urba no, se não temê ssem O obje tivo , em sua form ulaç ão inicial, é
reco ndu zir esses
gnam conc eito s, mas esco rreg am em dire ção
" term os " que desi ento e reag rupá -los
f::_tos at:are~temente info rme s ao conh ecim
a enti dade s ou essências). e segu ndo uma teo-
sent ar algu mas D:ao arbi tran ame nte, mas segu ndo conceitos
Para term inar esta intro duçã o, falta apre na. Alg uns avanços conh ecim ento . não se deve m, pelo e
?o
mos da vid~ coti dian a de fato s bem conh e-
desc ulpa s. É evid ente dem ais que fala res? E dife rent e n_o pens ame nto reflextvo, à "rec upe raçã o" , ao mes mo tem po
os luga
na França. A vida é a mes ma em outr , não simu - . cido_s _e, no enta nto, despreza dos, disp ersa
dos
s não imit am do com ''val ores ' ',
} ou específica? Hoj e em dia, os francese as resis tências,_ famll~ares e desder:hados,_ apre ciad os de acor
Ond e ficam o trab alho (Marx), 0
.( lam , bem ou mal , o ame rica nism o? eiza - ou seJa , segu ndo Ideologias contestáveis:
sté uma hóm Õgen rentemente insig nifi-
\ as especificidades? Em escala mun diale5::i
as dife renç as são cada sexo (Fre ud)? _Esses a:vanç?s capt am o _aJ?~
\ ção <fõcotía lã9ô -e do "mo dern o"? Ou part e da noss a ~aD:te ~ l~e ~ao um sent ido. E o coti dian
o não é a som a das
faze m
\. vez maiores? E claro que essas ques tões a mai or acui - msig mfic anci as?
do-l hes
prob lemá tica, e volt arem os a elas , conf erin eira satis fató -
de man
dad e possível. Não pod erem os resp ond er extr e-
conh ecim ento
ria. Um estu do com para tivo exig iria um 4
Resun;iremos aqui ~s tr~s prime!ros volum
es de Critique de la vie quoti dienn e (Edi-
dife rent es país es, de dife rent es socie- foi reedit ado em 1959. É uma intro-
mam ente apro fund ado de ções_ L Arche ). O pnme 1ro. publi cado em 1946,
, rein cidi mos num a m o essencial do terceiro volum e.
dade s, de diferent es líng uas. Na falta disso du~ao . O segundo apareceu em 1963. Esta obra conté
• de1xando de lado_ u_m bom !l~mero de (N.T .)
ie). O que invoca- fatos, anális es e argum entaç ões.
bana l psicologia dos povo s (Volkerpsycholog Em alemão no ongmal: coud1anidade.
ndo que tere mos de
mos aqui é o hori zont e da pesq uisa , sabe
35
34
f:d;nclusive o risc~rrodenia
.
soa as im pli - ~!c . erro. E nã o
um a ati tud e cn oc a. É im siva-
possível
se comprom~:~~e ~: ix : , a estacio-
Se me lha nte visão supõe " pas o hu m? r ou a
tal , aceitando, "v ive nd o-o
t~~Ibu~o da ci~ntificidao,de.e
.
mo na r no "s éri o" qu e ,
ca pta r o co tid ian o co
rec uo. Distância crítica, conte
stação e co m-
. que sti on~ ao qe u; ~~ f~ n: ~~
me nte , sem faz er um
o. Se houvesse u m sistem
a (social, Ele se f::..' ds ale i?d de SI me sm
paraç ão ca mi nh am lad o a lad
sse ao pri n- suas an tud es, e su a ser ied ad e ou .ut a e se ne ad e ·
co ou me taf ísi co ) a ace itar, se a ve rda de obedece po real
E
ste me tod o ' qu e ati ng e op os lço · -
es qu e co nc ern em à
políti esse sistema ao me sm o tem ne m ad e soc ial op õe se ·Jr
na da ", se glo ba lid pir ism o, à
cípio do "tu do ou ría mo s
distância crítica, nã o po de , seríamos a int erm iná ve l de fat ~s o~vd en tem en te f:ao em o existem
no s s/ pr~1 en_:os atos .. Nã ide oló -
e verdadeiro impedisse a o co let
tam bé m) estaríam
me sm o captá-lo. Nós (você ão e lin gu ag em . Nã o seria possível
os de ntr
ma is fatos sociais ou hu ma
gru po s s:i~ .oaçao (c~nce
itu_a1,
gica ou teórica) do qu e o e~ ~Jam reu ni-
nto Tr ata lSd:~a
raz
essência como existência, ria possibilidade de consc
iência.
um a ou tra co nsc iên cia , ne m ha ve
co nh ec im en to, dos po r relações nu m co nju r a .soc~ edad r - . ou e vrvIan
Q.Ç_sm _ q_,__U:?:.m.:.. / . . .
tema de sd e a ori ge m do oJ
s.s.__portant·d · · de ca raq eri za e em em os -~- I (.. -:-::=.
y---~ -- -..'"" _ -- !. 9..~ \. -·
Ou conheceríamos tal sis co tid iana, dis tin ta ----a··--
mo
--- .·-
de r.
- dàcC)~~
Õi
o o sem pre . A vida cr da de (e
Pera a co ti ram ran sfo rm a ões e ~ rata-s~ ae a:e fin r-l a,
ou ele nos escaparia po r tod da filosofia, nã o é a pro va flagrante o

ee ae d" eti ru rS üã ST ec nv as, re te nd op


do co nh ec im en to , da art iste, e não é
an te sistema? Ou ela ex o est á po r ap ar en te me n~ . . s'7fi pe rsp
~m_a c_oisa de
fa~ m~ni rcantes, alg
cia de sem elh en tre os fat os
da inexistên e, e tud essencial, e or de na nd o. dos nd ian rd ad e é
ou en tão ela nã o exist ao ap en as a co
preciso diz er mais na da , lusivo, acabado o co mo ods . ·
esse sistema un itá rio , exc um conceit ' a.tn a po em os tom sse concerto co mo
dizer. Po r ou tro lad o, se ideologia. A aná- ec er a "s . d d ,a r e
_
tin gu ir co nh ec im en to de fio co nd uto r pa ra conh ' . ocie a e • Slt ua nd o o co tid ian
(h ão existe, é difícil dis so qu e o conhe- rio glo ba l·· 0 Es tad o , a tecn1ea e aE"tec ni cr"d ad e, a cu1tur a (ou a
\ do co tid ian o revelará analogias, ao pas ideológica e,
4::__ lise crí tic a
mp ree nd erá um a crítica decomposição da cu ltu ra)
5 et
a me lho r
; cim en to do cotidiano co o c~ Is, a _nosso ve r, .
~~d~mJfio .-~aa.lsNr~aociovanalel
da ue stã
/ ma ne ira de tra tar
_~ be m en ten did o, um
a autocrítica pe rpé tua .
en to, a no sso ver, não sep ara a ciência
da
par~ captar ,nonãssao ésoma ci~ade, ~ealne~;~- . . e Inr
r~ do q':le ~mpreen­
Esse pro ce dim o. Al ém do is racion
ea me nte po lêm ico e teóric mars a pe na am par~g1r ass
crítica. Ele será sim ult an bre um a rea lid ad e pa rci al da vid a r e
. on~e. O ma is s~gulaPa
lon go s de svi os qu e lev
so de r
mais, en qu an to reflexão po rq ue ela co ns ide ra rev
ela- ma is po pu lar de sse s d . ra
de rno e~vws _e o da em olo
- , ma s tam bé m o gra
ida de
social - a co tid ian
al, a análise nã o po de rá
dis pe ns ar teses co mp ree nd er o mu nd o mo S : ave~ra vamag~m em pa ssa r
do ra essa rea lid ad e parci do estu~o
on s
O me sm o acon- pelos Bororos e pe los Do â~ac~fecrso aproveitarura
nju nto da so cie da de .
ne m hip óte ses so bre o co rica. Ce do ou tar de ela se liga a la_ çõe s os co! cei t~s o
teó de ssa s po pu
tais . tur a, de est rut ... Na
tece co m ca da pe sq uis a iedade, do "h om em " ou do mu nd o. ne garemos o mteresseOde ue pesqursas, tan to para este est ud o
um a concepção ge ral da soc e pa rec e cor- qu an to pa ra ou tro s ida de de
nto e do glo bal - o qu ho comest~~s é a po ssi bil
Se nã o pa rti mo s do co nju do ló gi co -, ac ab are mo s ch eg an do chegarmos, po r esse ·cami~
ssa s~~i~~~n eCiment~ d~ ap~nas um a
eto nossa época,
ret o do po nto de vista m rm an ec er vo lun tar iam en te ao nível do n~s so tem po e da no
e. O hdes~whae m
ete nd em os pe de fiugr·r · Nd_ret zsc e tm , a.ts am p1·l-
lá, salvo se pr
s conceitos ma l ligados
teo ric am en te ma ne rra de se esquivar • ' ;
do parcial, dos fat os e do -
d ao qu e esse rom an tis mo etn ol as fon tes d a
a, po is, con-
a da vid a coti~iana im~lic do . d ~g.co, ~o .vo!tar
(po r um a teo ria ). A crític ~ Ela co nd uz nossa civilização aq ué m OJ':l arsm(Zo-cnsnamsmo, ao lad o da
escala de ton ;un to socral Grécia (pr é-socrã.tica) e do ne nte oroastro).
epções e apreciações em ratégicas: a
de ligar-se a variáveis est
isso. E nã o po de de ixa r o caso, isso
ég ia do co nh ec im en to e da ação . Em tod
ma est rat os ve nh am
ica qu e os pro ce dim en tos teóricos e prátic ~A ce o na • · da vida cot id 1"an
· Cflt
, lca ções imerpessoaisa ase
· · ngue pore
d IStt di 1m ent e dos escu dos
. d , . an co_. ra ca
nã o sig nif au tor ou
da ind ivi du ali da de ou do
. psicossocio16gi-
que VIsam as rela qu:Uf se eng em teo rias
a faz er ab str açã o co mp let a al ne sta o ' "especirlc:~r as soem ·· (Cf. L 'ho mm e et la
soci iti n?
um a res po ns ab ili da de pesso cas que pre ten dem isolar ent e
tor . O au tor ass um e tra pes- 1II. 1967, p. 63).
do lei pu rra pa ra ne nh um a ou
op era çõ es. Ele n~ o em
" série de
37
36
A esquisa assim posta em prática se distingue da9uelas unidade da forma, da função e da estrutura constitu ía o estilo.
:Stituem 0 objeto de uma coleção bem conh ecida: a Para a compreensão das sociedades passadas (e para o conheci-
que co V' · 1 d 1
vi·da cotidiana em diferentes épocas. . .anos vo umes dessa co e- mento da nossa sociedade) não é recomendável nem dissociar
- sa-0 notáveis pelo fato de permmrem compreen er como a casa, a mobília, a roupa, a alimentação , classificando-as de
çao .
uma determinada sociedade, em d etermma · d a epoc~,
, - t eve
_nao acordo com sistemas de significação separados, nem reuni-las
vida cotidiana. Entre os incas ou os astecas, na Grec1a ou em num conceito global e unitário. O conceito de " cultura", por
Roma, um estilo caracterizava os_.r:nínimos ~etalhes: gestos, p~a­ exemplo. Ainda por cima, desde a. generalização do mercado
vras , instrumentos, objeto~ ~amlliare~, vesu~en~as etc. O; obJe- (o de produtos e o de capitais) tudo muda: as coisas, as pes-
tos usuais, familiares (coudianos), amda nao unham ca1do na soas, as relações, marcadas por esse caráter dominante que reduz
rosa do mundo. E a prosa do mundo não se separ~va da P?e- o mundo à sua prosa. ,
a. Nossa vida cotidiana se caracteriz~ pela nostalgia do esulo,
_/ '
D or sua ausência e pela procura obsnnada que dele empree~-
(_Jr- emos. Ela não tem estilo e, apesar dos esforços para se servir
dos estilos antigos ou de se instalar n?s restos, .ruínas e le:nbra~­
ças desses estilos, fracassa na te~lt~nva_ de cr~ar um es~Ilo pro-
Escrita logo após o fim da ocupação alemã, no início de
1946, a lntroduction à la critique de la vie quotidienne 7 seres-
sente dos acontecimentos. Naquele momento se reconstituía
na França a vid a econômica e social. Muitos acreditavam estar
construindo uma outra socied ade, enquanto trabalhavam para
prio. A tal ponto que se pode ~Istmgu_u_e ate opor estilo e cul- restabelecer, um pouco modificadas, as antigas relações sociais.
tura. A coleção consagrada à vida condi~na. em baralha ~ ~on­ Esta obra comporta u ma interpretação do pensamento marxista
funde os conceitos por não separ~r a especi~Cidade do, c?ndia?o sobre a qual é p reciso insistir. Ela rejeita de um lado o filoso~
após a generalização da economia mercannl e monet~na, ass~m fismo e, de outro , o economismo. Ela não admite q ue a herança
que 0 capitalismo se instaurou no século XIX. ~ntao e assim deixada por Marx se reduza a um sistema filosófico (do materia-
cresceu a prosa do mundo, invadiu tudo, os textos, o que se lismo dialético) ou a uma teoria de economia política. Num
escreve, os objetos como os escritos, chegando a expulsar a poe- retorno às fontes, ou seja, às obras da juventude de Marx (sem,
sia para longe. no entanto, deixar de lado O capital), o termo produção read-
Assim nossa análise distinguiu-se , desde o início, das pes- quire um sentido amplo e vigoroso. Sentido esse que se desdo-
quisas sobr~ a vida e a cultura materiais. Para o historiador que bra. A produção não se reduz à fabricação de produtos. O termo
não se contenta em datar os aconteciment~s, é importa,nte_saber designa, de uma parte, a criação de obras (incluindo o tempo
0 que as pessoas comiam, com que se_ ":estiam,,que m~veis usa-_ e o espaço sociais), em resumo, a produção "espiritu al" , e,
vam, segundo os grupos, as classes soc1a1s, ~s parses_, as_ epocas. ~ de outra parte, a produção material, a fabricação de coisas. Ele
história da cama, do armário, do enxoval e do maior mteres:e . . designa também a produção d o ''ser humano' ' por si mesmo,
De qualquer modo, o que importa para ?ós é que ~ ~rmar!o no decorrer do seu desenvolvimento· histórico. Isso implica a
camponês (desde qu~ndo os camp~neses n~eram ~rmano_s) r:ao produção de relações sociais. Enfim, tomado em toda a sua
era desprovido de esnlo, que os ob)et~s n:a1s usuais e mars sim - amplitude, o termo envolve a reprodução . Não há apenas
ples (recipientes, vasos, tigelas etc.) d1fenam conforme os luga- reprodução biológica (e conseqüente aumento demográfico),
/
res e as camadas sociais. Em outras palavras, as ~orm~ , as fu n- mas também reprodução material dos utensílios necessários à
1 ções, as estruturas das coisas não eran; nem diss?cia~as nem produção, instrumentos técnicos e, ainda, reprodução das rela-
/ confundidas. Elas se prestavam~ um ?umero .:on~1deravel , tal-
1lt ções sociais. Até que uma desestruturação as quebre, as rela-
vez ilimitado, de variações (por smal, mventanaveis). Uma certa ções sociais inerentes a uma sociedade se mantêm; mas não é

7
6 Cf. F. Braudel: La civilisation matérielle. 1967. Tomo I, primeira edição Grasser. 1946: 2~ edição: Arche .
39
38
rodu zida s num mov i- , em luga r de emp o-
por inér cia, pass ivam ente . Elas são re-p esquAema mar xista , a f~ de· erui quec ê-ló
ime nto, essa prod u- ao econ omi smo . Na ,...
bre:_e-lo .P,ela red~ç.~o ao . flios ofism o e
men to com plex o. Ond e se pass a esse mov
ante s se divi de, de mod o a tido vigoroso do term o · ·
ção cujo conc eito se desd obra , ou_ noça o de prod uçao se rem trod uz o -sen
as e a ação sobr e os seres ser hum ano . Além disso , ~
com pree nder a ação sobr e as cois pria ção da J prod ução de sua próp ria vida pelo
reza e a apro nce da prod ução , mas
9 hum anos , a dom inaç ão sobr e a natu
is e a poíe sis? Esse I cons umo ~ea!'arece no, esquem~, dep e?de cult ura, as inst itui-
hum ano , a práx a Ideo logr a, a
.}- ...J natu reza ao e pelo
"ser " com med iaço es específicas:
altas esfe ras da soci edad e: o çõ~s e orga ni:aç ões. No _e:_q ~ema revi sado há fted bac k (equi lí-
.l' '·' mov ime nto não se dese nvol ve nas
E na vida coti dian a que se situ a
~
relações de prod ução
'
, 3 ("ts tado , a ciên cia, a '' cult ura' '. bno m<;>mencaneo , provr~on?) den tro de
real da práx is. Essa é a afirm ação prod ução e cons umo ,
·-~· -~núcleo racio nal, o cent ro dete rmm adas (as do capn ahsm o) entr e
,.::::. ~ fundamental ou, se se pref ere , o post
ulad o teór ico dest a lntro - e~l.tre ~struturas e supe restr utur
as, entr e conh ecim ento e ideo lo-
O que é uma soci edad e? a cult ura não é uma
""" duçã o . Veja mo- la sob outr o pris ma. gia. Fica subei?-te ndid o, de um lado , que
tudo , uma base econ ô- cífic a, liga da a um
Con form e a anál ise mar xista é, ante s de vã efervesc~ncia, mas ela é ativa e espe
bens mate riais , divisão esse s de classe (liga -
mica : trab alho prod utor de obje tos e de
é uma estrutura: rela- mod o de vida ; de o~tro lad_o, que os inter
e de cons umo ) não
e orga niza ção do trab alho . Em segu ida, dos estru tura lme nte as relaçoe~ de prod ução
adas e estr utur ante s, da soci edad e em sua
ções sociais ao mes mo tem po estr utur basta~ para asse gura r o func iOna men to
o relaç ões de prop rie- func iona r. A vida coti-
dete rmin adas pela "ba se" e dete rmin and gl?b al!d ade dura nte o tem po em que ela
dade . Segu em- se, enfi m, as supe rest rutu
ras, que com pree nde m o luga r soci al dess e fted bac L U m 1ugar
ões (o Esta do, entr e dzana se ddefi ned com . . "'·
elab oraç ões juríd icas (cód igos ), insti tuiç d d h a o e ecisivo, 9~e apar ece sob um dup lo aspe cto: é
. Ora , a inte rpre taçã o es :n
adas e parc elare s que
outr as) e ideo logi as. Tal é o esqu ema
rutu ras a não pass arem o reszduo (de t?da s as auvrda~es dete rmin
gera lme nte adm itida redu zia as supe rest prát ica soci al) e 0 prod uto
rpos tos (bas e, estru - pod em? s consid_erar e abst rau da
de um refle xo da base . Com o os níve is supe ' do cOnJ unto_ socral. Lug ar de equi líbri o , é tam bém 0 luga r em
relaç ão, o prob lem a . Qua ndo as (
tura , supe restr utur a) não pod iam ficar sem supe riore s a uma que se manrfesta~ os dese quil íbrio s ame açad ores
se resolvia faci lmen te redu zind o-se os níve
is não pod emm.ãisc~
~esso~s, _n:r~-~ soci~d~_de_ assim anal isad a,
redu ção rece- u~a revol~çãoj
_t:,?._~ar ._~.. -~I.':e.r_sua couâiani_d_~(}e_,-·e9-t:~q. ·çom o , as anti eras rela
ca. Essa
mer a expressão ou reflexo da base econ ômi ider ado dog mat i-
eça ..
o cons
bia um nom e filosófico: o mat eria lism ~_:er:: ..~!':'e r o coti dian
ema torn ava- se ina- S-:?- ~ntao · E~q-~_anto _P~-~
cam ente (e pouc o dial etic ame nte) . O esqu ; inte rmin ávei s e
o
çoes se reco nsut uem . -
plifi cado
plicá vel por ser gros seira men te sim ta" qua nto aos
o da eficá cia das supe - Essa concep5~o. "rev isio nist a" ou "dir eitis
biza ntin as discussões se trav avam em torn uma atitu de
esq~~mas dog~auc?.s, na verd ade traz ia cons igo
restr utur as. . Em luga r de reco nstr uir a
tidie nne part i- pol_mca extr emis ta esqu erdi sta''
A Intr odu ct ion à la cn'tique de la vie quo er cheg ar ao pod er
s nasc em ao níve l das soCied::_de fran cesa ex:n :r~se e de pret end
cipa dessas discussões. Os conh ecim ento que não utili zar essa prof und a
logi as. Ora , eles são co_mo llde r da reco nsttt urça o, por
supe restr uturas relac iona dos com as ideo cnse para " mud ar d e vida "? ·
ução mate rial. E o que
efica zes, pois a ciên cia inte rvém na prod trad a - a cn·-
é uma ideo logi a? Essa mist ura de conh ecim
ento s, d e inte rpre ta- . Ape sar dessa gran de amb ição - locro frus ~ue foi
a data em
ções (reli gios as, filosóficas) do mun do e
do sabe r, enfi m, essa tzqu_e de la vie quo tzdi enne bem mos t;a se defi ne
ura" . Mas o que é o " hom em"
mist ura de ilu~ões pod e cham ar-se " sult e~cma. Nesse_n:om enco histó rico (194 6), idad e
Fran ça , pela ativ
uma cult ura? E tam bém uma práx is. E
um mod o de repa rtir amd a , na opu~Ião gera l , pelo men os na expl ícito
prod ut?r a e cnad ora. ~á um "con sens o"
nte, de orie ntar a pro- imp lícit o ou
os recur~os da soci edad e e, por cons egui ênfa se sobr e os com -
sent ido forte do term o. a resp eito dess~ ~etermir:taç ão . Clar o que a
cJução . E uma man eira de prod uzir , no rent e, e ness a ênfa se
E uma font e de açõe s e de ativ idad es ideo
logi cam ente mot iva- ~onentes da ~uvrdade_ cnad ora é mui to dife
o rein serir -se no Na Fran ça certa s pes-
das . O pape l ativo das ideo logi as devi
a entã e q ue se man ifes tam rdeo logi as de classe.
41
40 .

soas conservam a ideologia de quem vive de renda e consideram cluindo os filões da criação artística latentes na "realidade ")
numa consciência passiva e infeliz.
com condescend ência o trabalho,_ sobr~n:do o trabalho manual.
~a mesma época, escritores e poetas desejavam também
Outras, impregnad as de ideologias rehgwsas, descobrem o tr~­
recobnr ou retomar as verdadeiras riquezas. Onde as procura-
balho, insistindo no que há _de peno?o, no _e~forço ~ no sofn- vam? Do lado da natureza e do lado do imao-inário, numa
mento. Vários grupos valonzam mais _a auvidade :nt~~ectual pureza fictícia do imaginário ou do contato co;; o ori o-inal. O
(em 1946 ainda não se empregav~ multo a expressao cultu-
Surre~ismo, o Naturalism o, o Existencialismo, cada ;ual na
ra1") . Mas ,
apesar das controvérsias em torno dda natureza .b . e sua ~h~~ção, p~nham entre parênteses o "real" social, com as
da essência da "criativida de" , existe um acor o. Atn u~-se
poss1b1:1~ades merentes à r~alidade. A exploração crítica desse
geralmente ao tr~balho um va~?r tant? ét.i~o quanto práu:o.
real proXImo. e pouco v~lonzado , o cotidiano, ligava-se então
Muitas pessoas amda querem se reahzar na s_ua profis_:;~o,
a u~. huma~Ismo. _R~lacwnando-~e com o clima da Libertação,
no seu ofício. Muitas ainda, próximas do povo , SeJam operanas
a_ crmca da vtd~ coudtana pretendta renovar o velho humanism o
ou simpatizan tes do operariado , atribuem ao trabalho manual
hberal ~ subsmuí-lo por um humanism o revolucionário . Este
uma eminente dio-nidade. Nessa crença a classe trabalhado ra
hum~msmo _não tinha por objetivo acrescentar uma retórica e
encontra justificaçÕes para sua consciência de classe. E_ acr_:s-
~m~ tdeologia a algumas modificações nas superestrut uras (cons-
centa a isso o projeto político -: elaborado p_elas orgamzaço es tttmções, Estado , governo), mas "mudar a vida".
competent es - de uma reorgamza ção da soCiedade de acordo
com os ' 'valores'' do trabalho e dos trabalhado res. Propõe-se . Para avivar a memória, lembremos um certo número de
à classe trabalhado ra um modelo no qual a produção desen:pe- ver~c,aç?es que, ao cabo de vinte anos, caíram na banalidade
nha 0 papel essencial, onde a racionalid~de social romana a soci~logi~a e jo~nalística. Em 1946, a vida cotidiana não diferia
dupla forma de uma vasta pr~m?ção social ~~s trab~lhadores (e nao difere amda) segundo as classes sociais apenas em fun-
e de um planejame nto economico . Na prauca social, l?g~ ção da soma dos rendimento s, mas pela natureza do rendi-
depois d a Libertação, ~ so_cied~d_e exis;e.nte. na F:ar:.ça constitui mento (modo de paga:n_ento: por hora , por mês , por ano etc.,
ainda um todo (economico -socw- polmco-Id~ologtco). A pe:ar segundo :e trate de s~lanos, emolumen tos, honorários , rendas),
de ou exatament e por causa das lutas encarntçad as: controver- pela gestao ?os ~endtmentos, pela organizaçã o . A classe média
sia~ , combates políticos. Essa totalidade apa_rece (~~- reapa:_ec.~) e a ~~rguesia _a tmgem ~ma racionalida de mais alta . O pai de
ameaçada , mas virn.~almente comp~e,ta . A segunda hb:_n~çao . famtl~a, o_u seJa, o mando ou o esposo, nessas classes, dispõe
a transforma ção sooal que se segmra em pouco _tempo a l~ben:a­ do dmheiro e concede a sua mulher as quantias necessárias
ção política (a vitória sobre o opressor ~strangeiro), est~ hber~a­ para a _manutençã~ da família ; o excedente é consagrado à acu-
ção será o advento desse !~d? . O proJeto e a expectanv~ c01_n: mulaçao. S~ ele -?ao acumula, não poupa; se deseja aproveitar
cidem num 1momento histonco. Ora, esse momento nao vua em vez de mvestir, entra em conflito com sua consciência sua
nem voltará jamais; ele se afasta;. até pela m~di:a~ão é difícil fa:nília e sua sociedade. A família burguesa clássica econo~iza
evocá-lo. Nessa situação , nessa reviravolta ~a htstona e _na pers- e m~est_e em aplicações mais ou menos seguras, mais ou menos
pectiva que se anuncia, a alienação ad9.mre um _se~ndo pro: rentave_ts. O bom Pai constitui um patrimônio e o aumenta,
fundo . Ela afasta o cotidiano de sua · nqueza. Dtsstmu~a esse transmite-o por herança, s: bem que a experiência mostra que
lugar da produção e da criação h~milhando-_o e ~ecobnn~o -o as fortunas burguesas se dissolvem na terceira geração, que só
com o falso esplendor. das ideologias. Uma a~1~naça~ espec~fica a passagem para a Grande Burguesia evita a catástrofe. A
transforma a pobreza material em pobreza esp1~1tu~l, Impedmdo :nulherA(a_ esposa) tem a seu cargo o consumo, função cuja
que a riqueza seja libert_ada das relações consc;t~mvas do traba- Importanci a não cessou de crescer, mas que na data em ques-
tão (1946) era limitada.
lho criador conectadas duetament e com a matena e com a na~u­
reza . A alienação social transforma a consciência criadora (m-
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42
e perí odo com nto, "suj eito s" essen-
Os cam pone ses viveram e vivem aind a ness tos" da história e da vida social e, no enta
disp õem de pou co mun do prát ico- sen-
uma econ omi a natu ral ou fech ada. Eles ciais, bases,_fundamentos). A criação de um
a da casa com suas ntro das necessida-
dinh eiro ; disti ngue m-se dua s gestões: sível a part tr dos gestos repe titiv os. O enco
e rein a a mul her, . os bens , mas pod e-
depe ndên cias (jard im, gali nhei ro etc.) , ond des e dos bens; a posse, aind a mais rara que
provisões in natura, criar uma obra a par-
e a do cultivo, dom ínio do hom em. As r?sa. A o~r~ e as obra s (a capa cida de de
fund o que o cam - - a poss ibili dade de
em sem ente s, em conservas, cons titue m um nr do cot1drano , dos seus altos e baixos
da Festa. Qua nto indi vídu os, os gru-
pon ês gasta às vezes atira ndo -o no turb ilhã o faze r da vida coti dian a uma obra , para os
a. Não sabe e não pod e ões essenciais, o feed -
à classe oper ária, esta vive o dia- a-di pos, ~:classes). A re-p rodu ção das relaç
o a tota lida de do a ativ idad e prod utor a,
prever. A mul her rece be a mai or part e, senã back Ja menc10nado entr e a cult ura e
quan tias para seus luga r de nasc ime nto
salário. Ela devolve ao mar ido peq uen as entr e o conh ecim ento e as ideo logi as, o
pequ enos prazeres, se, ao men os, ele se
com port a com o bom r das lutas entr e sexos,
prol etar iado das contradições entr e esses termos , o luga
her
esposo e ela com o boa don a-de-casa. A mul teia: pag a o que
do entr e o apro pria do e
gera_ções, grup os, ideologia~. O c<:nflito
gast a, mas não disc ute os preços. Ela não
rega da vida subj etiv a e o
o nao-apro pna do, entr e a mfo rmrd ade
orgu lho e por hum ilda de. Os o entr e esses term os
é preciso, o que lhe ped em. Por
suas orig ens agrárias caos do mun do (da nam reza ). A med iaçã
prol etári os não econ omi zam . Rec ebem de ond e adqu irem vida ,
r (a boa cozi nha) e e, por cons egui.n te, o inte :val o prof und o
e tran smit em um certo gost o pelo bem vive gon ismo s que explo-
uese s e os burg ue- no mom ento .de seu nasc tmen to, os anta
um sent ido da festa, que os peq uen os burg , supe restr utur as) . ..
dem nos nívers "sup erio res" (ins titui ções
ses dest roem . nte se apre sent a:
ctio n à la cnú- Sob essa orie ntaç ão, uma ques tão imp orta
Era esse o cont eúdo sociológico da lntr odu além , bus- a q~estão da Festa. O jogo (o lúdi co) não
passa de um caso
m, ia mais de la vie quo -
que de la vie quo tidienne . O livro, poré dete r nos por- P.a~tcular ou de um aspe cto da Fest a. A Cn"t ique
s de se pon esa da Festa e
cand o o glo bal - a tota lida de- , ao invé as ao níve l tzdzenne pun ha em evid ênci a a orig em cam
es, apen
men ores , nas diferenças entr e grup os e class da dege nere scên cia simu ltân ea do Estilo
e da Festa na socie-
Esti se degr ada em
dad e ond e o coti~iano se esta bele ceu. O
do sent ido com um. lo
to contrastado_.
Resulta daí uma espécie de dípt ico mui cult ura, que se crnd e em cult ura coti dian
a (de massa) e alta
zano , com os trab alho s enfa - taçã o e a deco mpo si-
Primeiro quad ro: misé na do cotid cult ura, crsão que o arrasta para a frag men
oper ária , a vida das
don hos, as hum ilha ções , a vida da classe ção: A arte não pod e se fazer passar por
uma reco nqui sta do
coti dian idad e. A criança e a idad e cada vez mais
mul here s sobr e as quai s pesa a Est1lo e da Fest a, mas apen as por uma ativ
elem enta res com as
infâ ncia sem pre recomeçadas. As relações com o com os especi~li~ada , por uma paró dia de festa
, . p·~r um orna men to
eiro , assim
coisas, com as necessidades e o dinh A relação do cotl dtan o, que não se tran sfor ma. No
enta nto a festa não
comerciantes e as mer cado rias. É o rein o do núm ero. e: encon~ros festins
o dese jo , desaparece inte iram ente da coti dian idad
ime diat a com o seto r não dom inad o do real (a saúd e,
amp litud e an~io-a , sã~
titiv o. A sobr eviv ênCia festivais, emb ora sem reen cont rar sua
a espo ntan eida de, a vita lida de). O repe ínio da eco- ~gradáveis minian~ras do que já foram. É isso
que mot iv: o pro-
: o dom
da penú ria e o prol ong ame nto da escassez o dos dese jos, Jeto de ~m rena scrm ento da Festa num a soci
edad e dup lam ente
essã
nom ia, da abst inên cia, da priv ação , da repr do cotid iano , cara cten zada pelo fim da pen úria e pela
vida urba na. A part ir
deza
da mes quin ha avareza. Seg und o quad ro: gran , esta bele cida daí, a Revolução (vio lent a ou não) adq uire
um sent ido novo:
etua
com sua cont inui dade . A vida que se perp As revoluções passa-
prát ica inco mpr eend ida: a apropnação do rupt ura do coti dian o, resti tuiçã o da Festa.
sobre este solo. A não hou ve sem pre nas
A mor adia , a casa. das fora m festas (cruéis, é verd ade, mas
corp o , do espaço e do tem po, do desejo. ?). A revolução pos-
ero. O trágico laten te festas um lado crue l, dese nfre ado, viol ento
O dram a, que não se pod e redu zir ao núm odu zir nela - brusca
(opr imid as, "ob je- sível acabará com a coti dian idad e ao intr
do coti dian o. As mul here s: sua imp ortâ ncia
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ou lentamente - a prodigalidade , a gastanç~, o es~acelamento . Es~as ~rmaçõe_s, essas indag_!l.ções, esses projetos não se
das:opressões. A revol~_ão nã~ se ~e~ne_J?_O:S , EfllC_ameme no dtstanctam trremedtavelm ente? E necessário abandoná-los ,
plano econômico ! _polít~<:_9_2~=\-~$eolog~co_, _2_ore~.!lla1s conc:_eta- reformá-los o~ re~ormulá-l?s sem ingenuidade? A questão será
.-:-:;;.-;; m~~laefí_!;ljnação do_..s_~ud~an~ Quanto ao f~moso penodo r~tOJ:?ada mats adtante. SeJa como for, a análise crítica da coti-
"ã.e transtção, ele mesmo adquue um novo senudo. Recusa o ~tantda~e co?~inha retrospectivam ente uma certa visão da histó-
cotidiano e o reorganiza para dissolvê-lo e transformá-lo . Acaba na. A htstonctdade do cotidiano devia estabelecer-se voltando
com 0 se~ prestígio, com a sua racionalidade ilusória, com a para trás, a fim de mostrar sua formação. Evidentemen te sem-
oposição entre o cotidiano e a Festa (entre o trabalho e o lazer) pre foi pr_eciso alimentar-se, vestir-se, habitar, produzir objetos,
como fundamento da sociedade. reproduztr o que o consumo devora. No entanto, até o século
Depois de vinte anos, é possível resumir e elucidar as XIX , até o capitalismo de concorrência, até o desdobramen to
intenções e os projetos deste livro. Esses ~ime a?os o escla:ece- desse "mundo da mercadoria" , não tinha chegado o reino da
ram , mas também mostraram as suas mgenU1dades. Nao se cotidianidade , insistamos sobre esse pomo decisivo. Está aí
um dos paradoxos da história. Houve estilo no seio da miséria
pode esquecer que ainda ~stávamos na é~o~a da Freme P_?P~­
lar e da Libertação, que uveram, sem duv1da, uma apare~o_a e da opressão (direta). Durante os períodos passados houve
obras mais que produtos. A obra quase desapareceu, substituída
de festas gigantes. A ruptura do cotidiano _fazia parte ~a a~tl~l­
pelo produto (comercializado), enquanto a exploração substi-
dade revolucionári a e sobretudo do romamtsmo revoluoonano .
tuía a opressão violenta. O estilo conferia um sentido aos míni-
Em seguida a revolução traiu essa esperança, tornando-se igual-
mos objetos, aos atos e atividades, aos gestos , um sentido sensí-
mente cotidiana: instituição, burocracia, organização da econo- vel e não abstrato (cultural) tirado diretamente de um simbo-
mia, racionalidade produtivista (no sentido estreito do .~ermo lismo. Entre os estilos seria possível distinguir o da crueldade,
produção). Di~me desses fatos , perguntamos se o termo revo- o do poder, o da sabedoria. Crueldade e poàer (os astes_as{
lução" não perdeu seu sentido . Roma) deram grandes estilos e grandes civilizações, assim cómo
Revelar a riqueza escondida sob a aparente pobreza do a sabedoria aristocrática do Egito ou da Índia. A ascensão das
cotidiano, descobrir a profundeza sob a trivialidade , atingi~ o massas (que não impede em nada sua exploração), a democra-
extraordinário do ordinário , só era claro e talvez verdadetro cia (mesma observação!) acompanham o fim dos grandes esti-·
quando feito com base na vid~ dos tra?alhador_:s, distinguindo- los, dos símbolos e dos mitos, das obras coletivas: monumen-
se, para exaltá-la, a sua capactdade cnadora. Ja era bem mer:os tos e festas. 'Já o homem moderno (aquele que exalta sua
claro e bem mais contestável quando se tomava por base a vtda modernidade ) não passa de um homem de transição, a meio
urbana , do que quando a base era a vida rural e a vida ~as caminho entre o fim do Estilo e sua re-criação. Isso obriga a
aldeias. Era ainda mais contestável quando se baseava na vtda opor estilo e cultura, a sublinhar a dissociação da cultura e sua
familiar não obstante a miséria e a grandeza da feminilidade decomposição . Isso legitima a formulação do projeto revolucio-
sacrificada. Onde exatamente situava-se a ingenuidade? Esta n~rio: recriar um estilo, reanimar a festa, reunir os fragmentos
teoria do cotidiano associava-se talvez a um populismo , a um dtspersos da cultura numa metamorfose do cotidiano. .
trabalhismo· ela exaltou a vida do povo , a vida da rua, das pes-
soas que sabem se divertir, se apaixonar , arriscar, dizer o que
sentem e o que fazem . Ela implicava ao mesmo tempo a obses- 4. Segunda etapa, segundo momento
são do proletariado (a riqueza da profissão, do trabal~o, dos
liames de solidariedade no trabalho) e a obsessão filosofica da Se retomamos esses temas já abordados, nós (o autor)
·a utenticidade , dissimulada sob a ambigüidade do ''vivido'', temos uma razão. A seqüência à Introdu'ction, que acaba de
sob o artificial e o inautêntico. ser resumida , e por conseguinte a Cnúque de la vie quotidz.e nne
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~etafísica ou positivista, racionalismo sutil ou grosseiro, falha
propriamente dita, deviam aprofund.ar essa problemática, expl~­ Igualmente .. Longe de transfigurar a realidade trivial, ela acen-
citar a temática, elaborar as categonas. O corpo da obra dev1.a tua ~ banalidade. A classe operária mero-ulha no cotidiano e
então expor historicamente a constituição e a formação da con- c?m Isso pode (ou poderia) negá-lo e tran~ormá-lo. A buro-ue-
dianidade, mostrando: ~ . . _ d { esta
Sia d a arru maçao
. ' faz - do con·d·Iano e crê que pode escapar o

a) A lenta e profunda ruptura entre o condta~o c o nao- vi~~, .viven ? graças a_o djnh:iro um perpétuo ''domingo da
cotidiano (religião, arte, filosofia), rul?rura .correlat:va a outras . . · Mas e uma aspuaçao va. Talvez a burguesia ascendente
cisões (entre o econômico e as relações Imediatas e duetas, entre n:~I~nte e sofredora pudesse chegar a transfigurar sua cotidia~
a obra e o produto, entre o privado e o público); m a e, co.mo fez ~ burguesia holandesa no século XVII. 0
b) A deterioração dos estilos, o fim da inserção dos obje- povo quena aproveitar os frutos. do seu trabalho·, as pessoas
impo f.
tos, dos atos, dos gestos no estilo como um todo, a substitui- rtantes,
_ con.ortave
. 1mente Instaladas na sua época e n as
ção do estilo pela cultura, pela arte e pela "arte pela arte" (isto suas. mansoes, quenam contemplar sua riqueza no espelho que
o.s pmtores lhes apresentavam. Aí elas liam também as suas vitó-
é, pelo estetismo); nas: sobre o mar, que as desc:fiava, sob::e os povos distantes,
c) A separação "homem-naturez a", a deslocação dos rit-
sobre os opressores. A arte podia, então, unir fidelidade e liber-
mos, a ascensão da nostalgia (saudade da natureza perdida, pelo durável, insignificância
dade, amor pel_o efêmero e gosto
do passado), o enfraquecimento do drama, ou melhor, do trá-
aparente. e senndo profundo, frescor de concepção e vivacidade
gico e da temporalidade; ~os sentt~e.ntos, em resumo: estilo e cultura. Momento histó-
d) A rejeição dos símbolos e dos simbolismos em proveito nco ~efinmvamente perdido. A burguesia moderna vive de
dos signos e, em seguida, dos sinais; uma Ilusão que se tornou ridícula: o estetismo no lugar da ane.
e) A dissolução da comunidade e a ascensão do individua- A obra assi~ projetada destinava-se a figurar num uíptico
lismo (não idêntico à realização do indivíduo, longe disso); que compo~tava I.gu~l~ente uma ciência (crítica) das ideologias
/) A atenuação, mas não o desaparecimento, do sagrado e ~~a teon.a d_o .mdiV:Iduo (acompanhada obviamente de uma
e do maldito, deslocados mas não substituídos pelo profano; crm.ca ~o . mdividu~~Ismo) . ~sta~ úl~~as partes do uíptico
g) A acentuação da divisão do trabalho, levada ao parce- d.evi~ murular-se: A conse1ene1a mistificada" e "A consciên-
lamento extremo, com nostalgia da unidade e compensação Cia pnvada' '.
do fragmentário pela ideologia; _ Pois bem, esse conjunto teórico foi parcialmente escrito,
h) A inquietação diante da invasão do insignificante, mal nao completame~te. E .não foi publicado. Por quê? Porque 0
compensado pela intensificação dos signos e significados. ~uto~ .verific_o~ trus modificações na vida social em que seus "ob-
A Critique de la vie quotidienne devia vincular esse con- Jetos se diSSipavam sob seus olhos ou se modificavam até o
junto de fatos à burguesia como classe, revelando os resuitad.os ponto de. se torr::a~ irreconhecíveis. A apresentação da pesquisa
de suas ideologias (o racionalismo baseado numa noção estrelta s?bre a vida condiana não pode deixar de voltar a essa "histó-
da lei e do contrato), o fetichismo da propriedade privada, da na' ', que est~ tão próxima que talvez ainda não tenha eso-o-
predominância exacerbada do econômico na sociedade. ~ livro tado seus ensmamentos. o

proj etado devia também mostrar o fracasso das tentanvas ~e . Emre 1950 e 1960 se diluem (lentamente ao correr dos
se sair da situação sem que se quebrassem os moldes da soCie- dtas - com uma.;xc~aordi~ária velocidade em escala histórica)
1 dade capitalista. A arte falha tanto na tentativa de reunir o a for~a- de conse1ene1~ e a I~eologia proveniente da produção,
1 que está cindido e fragmentado, quanto na de metamorfosear da ~naçao, do humamsmo ligado à noção de obra. A libertação
} 9 que escapa à "cultura", de substituir o estilo, de impregnar social fracassou, e a classe operária , que, numa certa medida,
de não-cocidianidade o cotidiano. A ideologia, estética ou ética,
48 49

cresce quantitat iva e qualitativ amente, não deixa de perder, . Está claro que semelhan te processo é de uma extrema com-
com isso, uma parte do seu peso social e político. Ela se vê des- .plextdade. E, p~ra começar, trata-se de um processo. Aqui o
pojada (podemo s dizer: expropria da) de sua consciência. Não mterlo;>cutor Aarnsca. tomar a palavra e pergunta r: ' 'Quem? .
logrou êxito a tentativa de construir uma outra sociedad e a par- Como_. Voce acredna mesmo que tenha ocorrido uma vasta
tir dessa consciência. Ainda mais: a União Soviética, modelo conspiração contra a c.las~e operária para expropriá -la ? Você
de semelhan te sociedade , perde crédito. Ao malogro da Liberta- ach.a ;que um maestro mvisível tenha dirigido a operação ? ' ' É
ção na Europa ocidental responde o malogro (ou, se se prefere , a.cenavel essa questão. Ela é própria dos historiado res e da histó-
o meio-ma logro , sob certos aspectos pior que um malogro evi- r~a. Be~ entendid o, não houve "sujeito" plename nte cons-
dente) do socialismo de Stalin. A idéia da revolução e a ideolo- ~Ien~e, Situação teoricam ente elucidada , ''estratég ia de classe' '
gia socialista se desvalorizam e perdem o seu radicalismo (aquela mteuame nte ela~orada. No er:tanto, existe situação, estratégia
ambição de ir até as raízes do homem e da sociedad e). de ~!asse, execuça~ de um proJeto; uma classe não pode- não
mais qu: um~ sooedade - comparar-se ao ''sujeito' ' dos filó-
Que foi que aconteceu? Ao cabo de dez anos ninguém o sofos. Nao existe, entretant o, unidade , globalida de, tOtalidad e,
sabe, embora muitos degraus tenham sido escalados no cami- e_:n resumo: processo? Colocaremos aqui entre parêntese s a ques-
nho da verdade histórica, e muitas verdades parciais tenham
~ao ap:ese~~ada, ;q~e não deixa d e ser i?t.~r~ssante: "A quem
vindo à luz. O essencial é que o capitalism o (um pouco modi- Imputa-l o. Ela e Importan te, mas subs1d1ana. O essencial não
ficado , mas sem que a " estrutura " tenha sido atingida) e a é o resultado do. P.e:ío?o considera do, soma de uma quanti-
burguesia (por fora e acima de suas frações múltiplas , nacio- dade enorme de mtcianva s pessoais, de dramas sociais de ten -
nais e internaci onais) retomara m a iniciativa das operaçõe s. tativas ideológicas, de ações em todos os níveis? '
Haviam- na perdido? Sem dúvida, durante alguns anos, entre O " processo " passou por cima d e muitos como as ondas
1917 e 1933. A partir de 1950 a situação se inverte. Vencido
de .um. m~r agitado passam sobre os banhistas , numa praia
militarm ente, reduzido à impotênc ia, o fascismo entregou -se. muno .mcltnad~.. Alguns emergira m. Essa imagem faz parte
Enquanto episódio estratégico da ação conduzid a pela burgue- da escn~a metafonc a, mas não é falsa. Aqueles que se mantive-
sia em escala mundial, ele deixou algumas seqüelas. A burgue- ram acima d a . supe~ície consegui ram acompan har a onda,
sia como classe (mundial ) consegui u absorver ou neutraliz ar o embora se sentissem as vezes engolido s pelo vagalhão , quase
marxismo , desviar as implicações práticas da teoria marxista . afogados . O processo teve diversos aspectos:
Ela assimila a racionali dade planifica dora ao mesmo tempo que
perverte a sociedade que havia realizado essa racionali dade em
. <:) Introd~ção do ?eo~apitalismo, com modificações institu-
ciOnais ;d_? anngo capitahsm o (de concorrência e, depois , de
nível filosofica mente superior. O movimen to dialético da histó- monopol w) sem transform ação das relações de produção ;
ria se volta (moment aneamen te) contra si mesmo e se aniquila;
b) D esvio da capacida de criadora, que tendia à transfor-
o pensame nto dialético perde o atrativo e se desnortei a. E é
m::çã~ revolu.cAion.ária (ofuscand o e, se possível , extirpand o a
assim que, em escala mundial, um pensame nto e uma consciên-
propna consoen oa da produção em sentido amplo enquanto
cia que pareciam profunda e definitiv amente enraizado s per- atividade criadora); '
d em sentido. O papel e a contribui ção histórica da classe operá-
ria se obscurec em com a sua ideologia . Surge uma nova mistifi- c) Ao me~m? .tempo, liquidaçã o d e um passado, dos tra-
cação: as classes médias não terão mais que uma sombra de ços de uma htstona , tudo recusado pela estratégia vitoriosa
(moment aneamen te).
poder, mais que uma migalha de riqueza, mas é em torno
delas que o cenário se organiza. Seus "valores ", sua "cultura " . Sem contestação possível, a França da Libertaçã o se ressen-
levam vantagem ou parecem levar porque são "superio res" aos t:_a dos anos ame:ior.es à Segu~da Guerra Mundial , da estagna-
da classe operária. çao, do malthust antsmo, da Ideologia de "viver de rendas"
51
50
ta-
te; '-a liberd ade), cai por terra a ética indiv idual do trabal ho quali
dos Notáv eis da Terceira Repú blica. Incon testav elmen sro:-
cia agrár~ a, ~ot~d o tivo~ _l'e~:_f~~~o, __da realização do indiví duo nãe"p da profís
Franç a era um velho país
de institu ições baseadas num
de predo
comp
mi?ân
romis so entre a mdus tna e Repre semaç ão idêõlõ gica mterm eâl.ár ia entre- .. o
proãu to e- a
fico).
a agricu ltura , entre o campo_ e a ci~a~ e. Essa origin ali_d~ d:_ tir:ha obra (entre o valor de troca e o ''valo r ' ' de sentid o filosó
solidá ria de uma. valori za-
lá suas ilusões e suas nostalgias estereis. Quan tas remtmscenc
tas, essa ética do trabal ho e da profissão,
nos ' 'valor es' '! Os mar- ção da ativid ade criado ra, tende a desap arecer . O "cons enso"
cada vez mais em desus o, na ideolo gia,
ou
xistas tinha m afirm ado que eles , e só eles, eram capaz
es de a esse respei to se dissolve e apena s algum as profissões mais
ideolo gia, que
uma renovação radical. Mas não tivera m êxito. A renov ação se meno s liberais (ditas "liber ais") conse rvam essa
cos,
realizava sem eles, porta nto, contr a eles. Era uma verda deira abran ge a conso lidação dessas ativid ad es profissiona is (médi
ituí-
renovação? Uma revolução malsu cedid a traz a marca do fracas
so , advog ados, arqui tetos, engen heiros etc.) em corpos const
a-
mesm o quand o tem a aparê ncia de sucess o , mesm o quand o dos, armad ura social e institu ciona l da nova França. O prolet
ho
bons espíritos a cham am de " revolução silenc iosa" . " revolu ção riado pára de acred itar imens amen te na digni dade d o trabal
esper ança se transf orma m em
invisível e pacífica' '. Não passa de uma paród ia. e do trabal hador . Essa fé e essa
Em que consis tiam essas reminiscências das épocas camp o- retóri ca ou em niilism o .
nesas e artesa nais do capita lismo de conco rrênci a? Quais ideolo
- Antigamen te, num " mund o" ainda preso à natur eza,
s medo
gias , quais "valo res" , quais sistem as parcia is de signif icaçõe ainda fortem ente marca do pelas amiga s privações, o
a.
se esfacelaram duran te esse períod o, invisivelmente, quase insen- domi nava invisivelmente: medo da escass ez, medo da doenç
rado a.
sivelmente, por defin hame nto , por aband ono? Seria demo medo das forças ocultas, pânic o diant e da mulh er e da crianç
ema de histór ia das ideolo gias s medo da morte mas
e difícil dizer. É ainda um probl medo diant e da sexua lidade , e não apena
alidad e desap a- is-
e das instituições. Resum indo: uma certa racion
do tamb ém medo dos morto s. Esses medo s suscit avam mecan
uma atitud e indivi dual e magia . A Cn"ti-
receu , aquel a que fazia da razão
e até mos de defesa e de proteç ão: encan tamen to,
racionalismo uma opini ão (profa na, leiga , anti-religiosa que de la vie quoti dienn e propu nha-s e, entre outro s objeti
vos,
o racion alism o , parale la- pala-
mesm o anticl erical ). Desd e longa data
conex ões, de analisar o papel de mil peque nas super stiçõe s ligadas a
mente ao ensin o filosófico , entrav a em estrei tas r-
ciênci a, e de vras, a gestos , para mostr ar-lhe s a funçã o , invisível mas impo
um lado com a ciência e as aplicações técnic as da Ora.
derad o predo mi- tante: afasta mento e repúd io do medo funda menta l.
outro com o Estad o. Dura nte o perío do consi duran te o perío do consi derad o, os medo s se atenu am . São reco-
ali-
nam esses aspectos "posi tivos ", isto é, eficazes da racion bertos pelo racionalismo gener alizad o. Te riam desap arecid
o?
escala glo-
dade . Esta se vincu la às idéias de plane jamen to (em Não, apena s se desloc aram . O terror subst ituiu o medo : terror
e de
bal, noção marxi sta desvia da e assim ilada pela burgu esia) diant e dos perigo s de guerr a atômi ca, diant e das ameaç
as de
alizad a). A
organ ização (em escala empresarial , d epois gener crise econômica. Não mais terror da natur eza, mas terror da
l e polí-
noção d e racionalidade se transf orma. Torna -se estata socied ade, apesa r da passa gem à racion alidad e ideoló gica e prá-
s
tica, despo litizan do (apar entem ente) a ação das organ izaçõe tica. O terror não suprim e os medo s , mas sobre põe-se a
eles .
ü:o de
estatais. Separ ado do organ icism o tradic ional , o conce As peque nas superstições da cotidi anida de são então não preci-
prá-
organização se junta ao de instituição na prátic a social, a same nte suprim idas, mas ''supe rdeter minad as'', supla ntada
s
tica da socied ade neoca pitalis ta (que poder ia até certo pomo por grand es elaborações ideológicas, invers o de racion alidad e:
assim se defin ir, sob a condi ção de esclarecer as relações desses mas,
da horóscopos, revivescências de religião . Isso não imped e,
conceitos e de marca r os limite s da racion alidad e assim torna rança " , de
ao contrá rio, estim ula uma neces sidade de "segu
''oper atória ''). a
moral ismo e de ordem (mora l). A partir de uma certa época
Simu ltanea mente com a racion alidad e de opini ão (e com segur ança torna-se institu ciona l.
a
a tese libera l segun do a qual as opiniõ es elevam e encar nam
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52

A irracionalidade do raro e do precioso (a côdea de pão, com estudos parciais sobre a mudança, ou simplesmente pro-
o pedaço de barbante, o coto de vela, o "raro" e o "caro"), por modelos de mudança ?
que tomava conta do cotidiano, agora cede lugar a uma irracio- Esta série de questões se apresenta ao espírito científico
nalidade inco!?paravelmente mais vasta e mais profunda, com- em geral, pois tem um alcance geral. No entanto, cada ciência
plementar da· racionalidade oficial. O trágico se atenua porque parcelar se dedica a procurar uma resposta, de modo especial
a sociologia. A segunda série d e diligências parece mais limi-
se generaliza no terror e porque o próprio terror é repelido
pela racionalidade vitoriosa. A natureza "se afasta"; no decor-
l tada. Numa tal sociedade, o conceito de cotz"diano tem ainda
rer do próprio trabalho produtivo, o contato com a matéria algum alcance? Se essa sociedade coloca no primeiro plano de
desaparece no encadeamento dos atos e dos gestos. No entanto, suas preocupações a racionalidade, a organização, o planeja-
como se fosse o avesso do racionalismo, por sua vez uma jun- mento mais ou menos aprofundados, pode-se ainda distinguir
ção do irracionalismo e da racionalidade, transparece uma espé- um nível ou uma dimensão suscetível de se chamar cotidiani·
cie de naturalização geral do pensamento, da reflexão, das rela- dade? Nessa sociedade, ou o cotidiano se confunde com o oro-a-
nizado e com o razoável e ponto final - ou então não é nada!
ções sociais. Segundo Marx, a exemplo do valor de troca e da
Este conceito não cai por terra com a antiga escassez, com a~
mercadoria , as formas abstratas aparecem através d e coisas,
reminiscências e prolongamentos das épocas anteriores marca-
como propriedade das coisas, em resumo: naturalidade. A forma
das p ela vida camponesa e artesanal, ou pela burguesia do capi-
social e a forma mental parecem dadas num " mundo ", assim
talismo de con.c orrência?
como as formas da arte, da estética ou do estetismo e assim
como as formas ritualizadas das relações sociais. o' racional Detenhamo-nos, antes de tudo, no pnmetro grupo de
passa por normal, segundo as normas de uma sociedade bas- questões.
tante refletida e suficientemente organizada para que o qüipro-
quó, ou, se se prefere , a metonímia se instale. O normal torna-
5. Como designar a sociedade atual?
se habitua~ e o ~abitua~ se confunde com o natural e o próprio
natural se tdennfica ass1m com o racional , formando-se um cir-
Até se chegar a essa pergunta (de início formulada de
cuito ou um fechamento. Nessa lógica aparente (e forçada), maneira bastante confusa, entre 1950 e 1960, depois cada vez
nesse naturalismo que duplica o racionalismo , as contradições mais explicitamente, sobretudo pelos sociólogos), dizia-se: "a
se dissipam: real e racional se identificam, realidade e fantasia sociedade'', sem epíteto, o que transformava a realidade social
se misturam, saber e ideologia se confundem. numa entidade- numa "natureza social" - oposta aos indi-
Nessas condições, duas questões (ou melhor: duas séries víduos ou superposta aos grupos. Muitas vezes, com intenção
de questões) se colocam. Primeiro: essa sociedade muda de polêmica, falava-se de "capitalismo" ou de "sociedade burgue-
fisionomia . Na França, principalmente, a estagnação caracterís- sa". Essas denominações, sem desaparecer , perdem prestígio e
tica de uma certa época, com sua ideologia própria de uma alcance durante esse período.
burguesia que vivia de rendas e que aceitava o seu próprio Inspirando-se em Saint-Simon, os sociólogos lançam então
declínio, quer dizer, o malthusianismo generalizado, sem mesmo a denominação de "socied ade industrial". E , de fato , verificam
~e dar ~onta dele , essa estagnação cedeu. lugar à mudança e à que a produção industrial , com suas implicações (papel cada
tdeo~ogta da mudança. Essa sociedade transformou-se? Em que vez maior do Estado e da racionalidade organizadora), não
medtda? Na França e no mundo , as antigas denominações de .pán~ d~ crc:_scer, pelo menos. nos grandes países .m oderr:os . A) J
"cápitalismo", sociedade burguesa, economia liberal etc., tor- mdu.stna na? completa a agncultura; a produção mdustnal não (.
naram-~e falsas? Em caso positivo, como designar essa socie- coex1ste pacificamente com a produção agrícola: ela a absorve. I
dade? E preciso designá-la? Não basta cada um se contentar
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54 · ·
cim ento. ou seu emp ob recu · nent o ) em .1avo r r da racw nahd ade
o lado , as dife renç as ·
A agri cult ura se indu stria liza. Por outr d
econ omi. sta._ Corr e o risco. t am b'em d e per er de vista outr as
mo" não coin cide m com Impo nan~ · d ·a1 ·
reais entr e "cap itali smo " e "soc ialis . gran
açoe s de de ci·a p d h
. o e aver 1n ustn Iza-
resp ectiv as. Elem ento s _ rmm
dete
as dife renç as indi cada s pelas ideo logi as çao s~m urb~ n~~a ç~o? O_ cará ter esse ncia l da pret ensa ''soc ie-
polí tico s, que aleg am · a d o cresCI- ·
com uns apar ecem entr e os dois regi mes dad e mdu stna. l . nao sena (par alel ame nte a e acun
siste mas . Sob retu do
dife rir radi calm ente e opor -se com o dois prod utiv o e mem_o qua nma uvo da prod ução mate rial) 0 dese nvo lvim ento
a raci onal idad e vind a da orga niza ção do
trab alho
cida des, ou,,mel hor da soci edad e urba na~· N-ao sena · conv e-
se man ifes ta com mui - das· ., . '
da emp resa na "socieda de indu stria l " tom ar com o pon to de
ialis mo ''. Não seria m men_te para a Ciencia da soci edad e''
tas anal ogia s no ''cap itali smo '' e no ''soc pam da este dup f? proce!s~, ou , se se pref ere, este proc esso de
eles duas espécies de um mes mo gêne ro? urba niza ção? Diss ocia r os
seus argu men tos, dup lo aspe cto: zndustnalzzação e
Essa deno min ação , que apre sent ava os dele s, elev á-lo ao
dois aspec~os dess e proc esso , priv ileg
I iar um
(.
. Ten tem os resu mir ndo , é uma oper ação
susc itou mui tas disc ussões e cont rové rsias a~sol_uto cien tífic o, negl igen cian do o segu
uma soci edad e indu stria l ou cien ufic ame nte cont está vel.
os argu men tos cont rário s. Existe
a país enco ntra (ou não cons e- indu stria l" não
vánas soci edad es indu stria is? Cad Em outr os term os, a expr essã o "socieda de
na e pela indu stria liza- end em os prom oto-
gue enco ntra r) o seu cam inho orig inal é falsa. Ela _é ver~adejra,. mas não_ com o pret
as com o um rápi do ~mica de prod ução
res da_ teon_a. A. mdus_ma, cap~cidade econ
ção? O "soc ialis mo" pod e defi nir-s e apen
país subd esen volv ido, . E a part ir do dup lo
cam inho de indu stria lizaç ão para um mat enal , nao foi dom mad a raciO nalm ente
soci edad e e a uma civi- indu stria l pod e se
ou cond uz, por cam inho s novo s, a uma processo e nes~e P_rocesso que o cres cime nto isto é uma orie n-
ando de adm itir- se
lizaç ão espe cífic as, orig inais ? Mes mo deix soci edad e conc eber e se sigm fica r (adq uirir um sent ido
que o capi talis mo inevitav elm ente cede
luga r a uma e a ~eoria da indú stria
lizaç ão da indú stria e taçã o e uma sign ifica ção) . O conc eito
soci alist a, pode -se afirm ar que a univ ersa da emp resa , plan ejam ento
ção a uma hom o- dera m luga r a técn icas (org aniz ação
a indu stria lizaç ão mun dial cam inha m em
dire
S? com Mar x é que ultra pass aram a barr eira do sent ido ;
são " racio nais " em glob al).
gene idad e, a estru tura s anál ogas porq ue o a class e oper ária dest i-
se acen tuar ou desa pare cer? mas depo is de Mar x, e sobr etud o send reto rno para
tuíd : dos seus ~'valores:' da prod ução
todo s os países? As dife renç as vão , hou ve um
osta apre ssad a e pre-
A deno min ação prop osta imp lica uma resp apro
aqu~r:: do __sent~do, ao rnvés de se expl icitá da indu strializaç ão .
-lo. fund á-lo e
mat ura a essas nova s ques tões . reali za-lo . E a vida urba na que dá o sent
ido
essa deno min ação proc esso . É pos; ível
Além do mais. o soci ólog o que acei ta que a con~ ém com o segu ndo aspe cto do
prob lem as cam - e pod emo s nos situa r) ,
que a p_aru : de certo pon to ,c~ítico (or:d
cola e os
tend e a esqu ecer que a prod ução agrí
a part e do mun do. O o proc esso de indu s-
pone ses desa pare cem unic ame nte num de agrá ria" a ~r~:>an~zaçao e sua prob lem anca dom mem
"cam po mun dial " pers iste. Ora , uma "soc ieda à ' 'soc ieda de indu s-
nceb ível . tr:al rzaç ao. O que resta com o pers pect iva
fora da "soc ieda de indu stria l", em torn
o dela , é inco
tnal ' ', se_ ela não prod uz a vzda urba
na em sua plen itud e?
s ("o cam inho chi- Ora , uma classe pod e
Essa situa ção cheg a a terrí veis anta gon ismo ia con'e s- Nad a C?ais que produ:z:zr por prod uzzr .
nês" ) . A deno min ação prop osta , os conc
eitos ·e a teor Um a soci edad e. mes mo
- pro_d uzir para ter prov eito : a burg uesi a.
ular as ques o da burg uesi a, dific il-
gen da pela burgues~a ou por uma fraçã
item form
p.on dent es a essa den omi naçã o não perm s a ratif icar
tões e proc urar uma resp osta . Eles tend
eria m ante . Ou ela prod uz para
a enfa tiza r o cresci- men te pod e prod~zir aper :as por prod uzir
e tam bém ra , ou entã o toda
a situa ção. Essa desi gnaç ão tend
o pod erá não per~r
? pode~ e a dom rnaç ão , Isto é, para a guer idad e e todo sent ido
men to econ ômi co. Sem dúv ida, o soci ólog Ideo logi a, toda "cu ltur a", toda raci onal
social. Se, no enta nto, outr o .
de vista os outr os aspe ctos da real idad e se deco mpõ em. Um caso não imp ede o
não enfa tiza r o dese n- ensa uma part e
priv ileg ia o econ ômi co, corr e o risco de Em resu mo , a deno min ação prop osta cond
(o aum ento da com - e apen as uma part e
volv imen to e de aban don ar o qual itati vo dos fato s a sere m expo stos e expl icad os,
lific ação , seu enri que-
plex idad e das relações sociais ou sua simp
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Ela teima contra uma "problemática" que suas categorias não móvel um pouco modificado passa por uma escultura, e três ou
permitem nem explicitar_ nem mesmo form~~ar, m_:rito menos qua~;o pedaços de objetos técnicos passam por ''um espaço plás-
ainda resolver. Esta teon~, com a sua_ tem_auca, nao pa~sa de uco . Com o Op e o Pop essa tendência tecnicista é acrescida
uma ideologia: uma vanante do racwnallsmo modermzado. d<: um estetism?. Mais precisamente, o olhar sobre o objeto téc-
Ela extrapola e totaliza ilegitimamente, dissimulando os dra- nzco, olhar passivo, atento apenas ao funcionamento , interessado
mas. Ela tende a uma mitologia da industriali~ação. A coloca- somente pela estrutura (desmontagem, remontagem), fascinado
ção em forma teóric~ reflete (em vez . de significar) a ~usên~ia por esse espetáculo sem segundo plano, completo, na sua trans-
de sentido e a maneua como essa soCiedade preenche llusor~a­ parente superfície, esse olhar torna-se protótipo do ato social.
mente a ausência. Ela reflete a falsa identidade entre o racro- II
Tal é_ a eficácia da televisão. O meio, isto é, o aparelho, é a ver-
nal e o real, a verdadeira identidade entre o absurdo e a racio- daderra mensagem, afirma Mcluhan. Não . A mensagem é o
nalidade (limitada e ratificando seus limites).
I puro reflexo: o olhar sobre uma imagem, olhar que se produz e
>{
Impressionados, : c?m jus~iça , pela impo~rtância da ~é~­ se reprod~z enquanto relação social, olhar frio (coo/), dotado.
nica nessa sociedade dna mdustnal, um certo numero de teon- neste senndo, de um feedback, ·de um equilíbrio, de uma coe-
cos propuseram chamá-la de soâedade técnica. Eles sugeriram rência, de uma perpetuação. As imagens mudam, o olhar pe.tma-
a imagem de um "meio técnico" oposto ao "meio natural" nece. Os ruídos, os sons, as palavras são auxiliares e subsidiários,
e característico dessa sociedade. símbolos do efêmero.
Esta teoria retém um certo número de fatos exatos e ela- O que subsiste da tese hegeliana, segundo a qual a arte
bora, a partir desses fatos e temas incontestáveis, uma defini- é um sistema parcial, um conjunto de significações confiadas
ção , uma concepção, uma problemática. a objetos privilegiados e servindo como mediações (ativas) entre
Na sociedade em que vivemos é certo que a técnica adquire os outros sistemas ou subsistemas constitutivos da sociedade:
um caráter determinante. Isso não quer dizer apenas que ela "re- as necessidades, a moral, o direito, a política, a filosofia?
voluciona' ' incessantemente as condições da produção, que a ciên- Segundo esta análise, . semelhante sistema parcial não é mais
cia se torna direta e imediatamente ''força produtiva'' através que uma mediação, mas tem uma atualidade contagiante que
de suas conseqüênci~s técnicas. Esta análise e esta apre.:iaç~o vão confere à sociedade uma poderosa coesão. O reflexo das rela-
muito mais lonue. E verdade (e quanto!) que a conscrencra e as ções com o objeto técnico, com o " meio" (tela de cinema, apa-
formas de consciência (sociais e individuais) derivam da técnica relho de rádio , televisor etc.), este reflexo de um reflexo, su bs-
sem a mediação de um pensamento que domina a técnica, de titui a a.r te como "mediação" e desempenha um papel aná-
uma cultura que lhe confere um sentido. Através da imagem e logo; a cultura não é mais que um mito em decomposição,
do objeto (e do discurso sobre a imagem e_sobre o_objeto), a cons- uma ideologia gravada sobre a tecnicidade .
ciência, social e individual, reflete a técmca. Assim, a fotografia Ao intenso consumo dos signos da tecnicidade sobrepõe-
obtida com um má..ximo de tecnicidade e um mínimo de inter- se um gênero altamente consumível: o estetismo (discurso sobre
venção do "sujeito" entra diretamente na !embrança_e no :on?o, a arte ·e sobre a estética). Uma tecnicidade disfarçada de este·
no álbum de família, no jornal e na televisão, O obJeto_ tecmco , tismo, sem a mediação específica da arte, sem cultura (o que
com sua dupla constituição , funcional e estrutural, perfertam~nte supõe o fetichismo do "cultural" ), tais são os traços mais sim-
anaiisável e "transparente", não recebe um estatuto determma- ples que legitimam esta definição: sociedade técnica.
do. Ele invade a prática social inteira: uma cidade, por exemplo, Apresentemos agora as razões que impedem de aceitá-la.
torna-se objeto técnico; uma caixa de música cbtida _mediante Pode-se perguntar se essa sociedade ainda é uma sociedade, na
uma técnica aperfeiçoada fornece um elemento musiCal. Uma medida exata em que é técnica. Ela pretende ser objeto técnico
seqüência de imagens tecnicamente notáveis (qualidade das fotos, e se vê como tal . Tende a eliminar as mediações que geraram a
corte e montagem) torna-se um fragmento de filme. Um auto- alta complexidade da vida social, que agregaram à produção
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forma das em entida des autôno mas, remet em uma à outra se
materi al, ideologias, valores, conjun tos; ~e si~nos e de_ signifi_ca- justifi cam reciprocam.ente, servin do cada qual de álibi pa;a a
ção, rivais muitas veze,s.' m~ q~e ~an;-~e~ amma m a vtda soctal..: outra. Descobre-se dtante de nós um sistem a de álibis· cada
Quant o à expressão me10 tecmco , pode ser contes tada. E conjun to ?e significações, que parece autôn omo e prete~de se
mais correto e mais exato falar de um meio urbano que de um bastar a st m~smo , remete a um outro numa rotação vertigi -
meio técnico. É na e pela cidade que a técnica entra na socie- nosa. Não sena o que se escond e sob a racion alidad e e sob ·as
dade e produz um "meio ". Fora do urban o, a técnica produ z racion alidad es aparen tes?
apenas objetos isolados: um foguet e, u~a estação de radar. Seria defini tiva essa situação? Seria o coroam ento da histó-
Na medid a em que a denom inação de "socie dade técni- ria, mesm o se dispen samos a histori cidade e se essa situação
ca" é exata, ela supõe a transfo rmaçã o ' da técnica - amiga - implic a a eliminação do histórico como processo, como sentid o?
mente subord inada e mesm o reprim ida· pelo malth usiani smo Parece, ao contrá rio, que ela nasce d e uma conjun tura determ i-
-em fator autôno mo, econô mico e socialm ente determ inante . nada e limita da: o desafio dos regimes e dos sistemas polític os,
Tal fator só pode se consti tuir e agir por meio de uma "cama - nova forma da concor rência em escala mund ial, com múltip las
da" social que tende a se tornar casta ou classe: os tecnocratas. conseq üência s. Nessa conjun tura - corrid a armam entista ,
A denom inação se modif ica e convé m dizer ''socie dade tecno- deprec iação extrem ament e rápida do equip ament o técnico e
crátic a''. Porém os tecnoc ratas só agem pelo camin ho da orga-
milita r, obsolescência dos objeto s técnicos - a tecnic idade
nização e da instituição. Sua racion alidad e tem fins e meios
adqui re um caráter revolucionário. Ela repres enta o papel da
especíúcos. Dir-se-á emão "socie dade tecno-buroc rática " , o
revolução inacab ada, mas se erige em " fator" indep enden te.
que anula todo o prestíg io da defini ção.
autôno mo , que pesa sobre o conjun to da prática social, ou
Ela não perde apena s a sua nobrez a ; també m manif esta melho r, separa-se dela (não sem pesar, parado xalme nte) para
a sua falsidade. Com efeito, nessa socied ade, que podem os produ zir aconte cimen tos nas estrato sferas dos espaços polític os
observar cada dia, o que impres siona a análise crítica é a fra- e dos espaços cósmicos! Aliás , pode-se temer que semel hante
queza da tecnicidade. O prime iro e o maior erro da "tecno cra- conjun tura se transfo rme em estrutu ra. Somen te o futuro pode
cia'' é que ela não existe: não passa de um mito e de uma ideo- respon der a uma interro gação sobre esse pomo .
logia. O preten so reino da técnica escond e uma realid ade
inversa. Os grande s objeto s técnicos têm uma eficáci a de prestí- Em resum o , a denom inação d e " socied ade técnic a" con-
gio (exploração do espaço) ou um alcance estratégico (fogue tes , tém també m uma verdad e parcial, mas é verdad eira difere nte-
mísseis etc.). Têm pouco dos objeto s sociais de uso corren te , mente do que pensar am os teóricos que a adotar am. Quand o
que modif icam a vida social coman dando -a. A realid ade coti- essa verdad e relativa quer se transf ormar em. verdad e defini tiva
diana só se beneficia das "sobra s da técnic a". Quant o aos gad- - em definição - , ela se transfo rma igualm ente em erro ,
gets, eles simula m a tecnic idade. Para a análise crítica, a técnic a em ilusão ideológica, em mito justifi cador de uma situação:
e a tecnic idade aparec em como álibis. A tecnocracia tem como disfarç ando o que tem de insupo rtável e valori zando o que tem
álibi as aplicações da técnic a à vida social; ela própri a é um de novo na história, em detrim ento da história e da historicidade.
álibi, ou seja, o álibi dos verdad eiros dirige ntes da econo mia Sociedade da abund ância. A passag em à socied ade da
e da polític a. A socied ade parece evoluir pacifi camen te rumo abund ância caracterizaria nossa época e poder- se-ia tirar daí
a uma racion alidad e superi or; ela se transf ormar ia sob nossos uma definiç ão. Efetiv ament e, a produ ção indust rial e a "tecni -
·olhos em sociedade científica: aplicação racional do mais alto cidad e'' permi tem entrev er uma produ tivida de sem limites,
saber, conhe cimen to da matér ia e conhe cimen to d a realid ade com a autom atizaç ão das ativida des produ toras. Para infelici-
human a. Essa ' ' cientif icidad e' ' justifica a racion alidad e burocrá- dade da definiç ão (que vem dos ideólo gos da socied ade ameri-
tica, estabelece (ilusor iamen te) a compe tência dos tecnoc ratas. cana, Galbr aith, Rostow etc.), a autom atizaç ão acarre ta um
Tecnic idade e "cient ificida de", tant o u m a quanto a outra trans-
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Evident emente é certo que os " lazeres" assumem uma
certo número de conseqü ências q.ue a refreiam . É po~sível ~~e
importâ ncia cada vez maior na sociedad e francesa e na socie-
essas conseqü ências chegu~m mars longe do que mu1_;os . teo:_r-
cos acredita m. A automa nzação exagera da e a abun~anoa f!-a_o dade dita ind~srrial. Quem o negará? Eles entram nas necessi-
acarreta riam a passage m à gratuida de dos .produto s mdustn ars dades e modrfic am as necessidades preexist entes. As fadigas
verdade irament e abundan tes? Não afetana m o fundam ento d~ "vida mo~erna" tornam indispen sáveis o divertim ento , a
do valor de troca? Não é essa perspec tiva que segura a automa - f drs~ração, .a dlSt.ensão. Os teóricos do lazer, seguido s por uma
tização, mais ainda que as ameaças de desemp rego para uma legrão de)?rnahst~ e de vulgariz adores , já disseram e repeti-
fração da classe operária? ram: as fenas, fenome no recente em toda a escala social modi-
Deixem os de lado essa problem ática. Nas sociedad es ditas ficaram essa sociedad e , deslocar am as preocup ações, ror,nando-
se o centro dessas preocup ações.
de abundâ ncia e mesmo de desperd ício, nos Estados Unidos e
nos países altamen te industri alizados da Europa subsiste m cla- Co:no as ::nteriores, a presente denomin ação se apóia sobre
reiras de antiga pobreza : a miséria materia l. Por outro lado, a faros. Vao aqll1 outros fat?s que a tornam pouco aceitável. Os
nova pobreza se observa um pouco por toda parte. Estand_o empreg os do tempo, anal1Sados de forma comparativa deixam
satisfeitas algumas necessidades element ares (ao preço de qua~s t~bém aparecer fenô~enos novos. Classificando-se as horas (do
renúnci as, de quais privações?), as necessidades refinada s, que dra, da semana, do mes, do ano) em três categorias, a saber: o
são ch::tmadas "culturais", e outras necessidades básicas, que tempo obrigatóno (o d_o trabalho prof1Ssional), o tempo livre (o
podem ser chamad as "sociais ", ficam profund amente : 'insatis- dos lazeres) , o tempo zmposto (o das exigências diversas fora do
feitas" nesta sociedad e produtiv ista. A nova pobreza se rnstaura , trabalho , como transp_orte, idas e vindas, formalidades etc.), veri-
se o-eneraliza, proletar iza camada s sociais novas (os "colarin hos- fica-se que o tempo 1mposto ganha terreno . Ele aument a mais
br:'ncos ' ', os empreg ados, uma boa parte dos técnicos e d as rápido que o tempo dos Jazeres. O tempo imposto se inscreve
"profissões liberais " etc.). r:a cotidianidad~ e tende a definir o cotidiano pela soma das impo-
Ainda mais: no seio dessa socieda de, dita de abundân cia, srções (pelo conJunt o delas). A modern idade não entra então de
novas carências se manifes tam. Antigam ente, em nosso país, maneira evidente na era dos lazeres? Na verdade, os "valores "
o pão era raro e o espaço abunda nte. Agora o trigo é abun- ~tigamente.ligados ao trabalho , ~o ofício, ao qualitativo na ação
dante (o pão continu a raro em muitos outros países), mas o cnadora se d1Ssolvem. Os valores ligados ao lazer estãó começando
espaço se rorna raro. Essa escassez. do espaço nos países i~dus­ a nascer. Que as pessoas pensem nas suas férias ' durante todo o
triais avançad os se observa em parncul ar em tudo o que drz res- a.no ; isso não quer di:er que um .. estilo" tenhá surg1do dessa
peito à cidade e ao urbanis mo. O tempo també~ s~ faz raro , srtuação e que esse estilo tenha dado um sentido novo ao laí:er.
assim como o desejo . Já assinala mos como a admrms tração da Talvez estilo esteja sendo procura do no âmbito das "cidade s de
escassez se rorna ciência e se legitima ao pretend er se firmar lazer", mas não é evidente . O não-trab alho contém o futuro e
como "ciemif icidade " . Último argume nto, não o m enor: se a é o horizon te, mas a transição se anuncia longa, confusa e peri-
abundân cia não sio-nifica a Festa, se ela não reprodu z uma reno- gosa. Soment e uma automat ização integral da produçã o tornaria
vação triunfal da °Festa, p ara que serve e o que significa ela? .possív~l a sociedad e ~os lazeres. Para se chegar a esse ponto, os
Conclus ão: como as precede ntes, a definiçã o propost a conserva mvesnm entos de caprtal são tão altos que uma ou duas gerações
alguns faros, mas extrapo la a partir desses mesmos fatos, o que dev~riam se sacrificar. Aí. está a nossa perspectiva, ou a nossa pros-
impede que seja aceita. pecuva: trabalhar. encarruçadamente para se legar às gerações futu-
Socieda de de lazer? A grande mudanç a, a transição hoje ras a possibilidade de se criar a sociedade dos lazeres, superando-
a caminh o, não seria tanto a passage m da escassez para a ab':n- se as exigências e imposições do trabalho produtiv o material, pas-
dância quanto a passage m do trabalho para o lazer. Tro:an~­ sando-se às atividades múltipla s produto ras de obras, ou simples-
mos de era, de ''valore s'' domina ntes , uma mudanç a drfícrl. mente de prazer e de alegria. Por enquant o, o trabalho, com

J
63
62
ão das necessidades indi -
as, con tinu a a _dom i- sociais e ' 'cul tura is' ' , mas uma prospecç
ma extrema divisão das operações prod utor vzduais (~, ~~r con segu inte , ape nas da
dem and a solv ente ).
izad a não há ma1.s con-
~ar a prática social. Na indústria autoomat alho , e mes mo o con- Nad a mais facrl mosrra-r com o fora m mal
e tard iam ente desco-
tato com a mat éria sobre a qua l age trab bert as as necess.i dad es sociais próp rias à vida urbana.
-~as esse não -tra balh o
tato com a próp ria máq~ina desa parece, vidu ais (qu e não são
. Alé m do mais, essas necessidades indi desi nter essa do. A
dian o. Um pou co em
(controle vigilância) é aJ.llda trab alho couio, sem supr imir (e tal- ob;etos!) não são "ob jeto " de um sabe
r
todos os ~ampos, a carreira subs titui o ofíc ma? eira de ~stu~á-las age sobre elas , faz part e de uma prát ica
que pesa m sobre o "tra -
vez agravando) as imposições cotidianas social ~ as cr~stalrza. Aliás, a ação sobr
e as n ecessidades disp õe
s de tudo e para todo s ,
balhador". No mom ento , o lazer é ame de mer cad o e das mot i-
com o cotidi~o. ~,vive- _ . de mew s mar s pod eros os que o estu do
ou quase todos, a ~p~ua (mo men tâne a) vaçõ~s. Qua l é ? pap el da pub licid
ade ? O pub licit ário é o
qua l os a~ugos valo-
se uma mut ação difícil no transcorrer da dem rurg o _da ~ocredade mod erna , o mág ico todo -pod eros o que
nte obscurea dos . O lazer
res" foram inconsiderada e prem atur ame con ceb e vrto nos ame nte a estr atég ia do desejo? Ou não pass a
labo r, taml?ém não é
não é mais a Festa ou a recompensa do que info rma as neces-
si mes ma. E o espetá- ~e um mod esto e hon esto inte rme diár ioobje
aind a a atividade livre que se exerce para Sida~es e faz sabe r que este ou aqu ele
to se prep ara para
mo.
culo generalizado: televisão , cine ma, turis a satisfação do con sum idor ? Ent re esses
dois caso s extr emo s apa -
ão , com a teor ia
Sociedade de consumo? Esta den omi naç rece ~r_n~ _verdade que condu_z a uma teor
ia da pub licid ade . O
odo con side rado (19_?0,
corr espo nde nte, difu ndiu -se desd e o p~rí pub lrct tano prod~z ~s necessid ades? Mod
ela o dese jo, a serviço
ente s, qu~ nos pais~s idéi as
1960). Mostra-se, com núm eros con vmc do produ~or capn alts ta? Talvez não ,
aind a que seja m
s mat ena is e culturaJ.s
indu stria is avançados o con sum o dos ben defensáveis. Nem por isso a pub licid ade
deix a de ter um pod er
que o~ ~en s dito s "de sum í-
aum ento u, que ele vai se amp lian do, televisao etc. ) dese m- ex~raordinário. Não é ela próp ria o prim
eiro dos ben s con
con sum o dur áve l" (carros, apa relh os de vers_? Não oferec~ ao con sum o um ime
nso volu me de sign os,
mais~ 7onside~~vel._ Estas
pen ham um pap el n<?vo e ca?~ ':'ez teon cos da soci edad e de Ima gen s, de dtscurso s? Não é ela a retó rica dessa soci eda de?
constatações são exatas, mas tnvt ais. Os ~ão é ~la que i~pregna _a ling_uagem , a.
liter atur a e o ima giná -
nde m ou sub ente nde m
de con sum o" por estas palavras ente r~o social sem_ ~eixar de tnte rvtr . na prát
ica, em meio às aspi ra-
ente , no iníc io da eco-
outr a coisa. Eles afir mam que , anti gam çoes? A pub lrctd ade não tend ena a forn
ecer e mes mo a se tor-
ial, nessa pré-hist ória
nom ia capi talis ta e da prod uçã o ind ustr nar a ideologia dom inan te dessa soci
edad e, com o o mos tram
não orie ntav am essa as que imi tam os pro-
da sociedade mod erna , as nece ssid ades mer cado , igno rava m a irJ?-p orcância e a eficácia das pro pag and
o do-se, a pub licid ade
prod ução . Os empresários não con heci am and o suas mer cad o-
ao acas o, lanç cc:_drment~s .I?~ blicitári~s? Instit~ciona lizan usive a arte ? Não se
os con sum idor es. Pro duz iam nao subsutu ma as anti gas med iaçõ es,
incl
or, espe rand o o consu- pro duto r e con sum idor
rias no mer cado e espe rand o o com prad torn aria central, únic a med iaçã o entr e
a prod uçã o afir mam al e pod er polí tico ? Ma~
mid or. Hoj e, aqu eles que orga niza m entr e técnica e prát ica, entr e vida soci
and a solv ente , m~ os lda, a n ão ser um nível
conhecer o m ercado, não apen as a dem ~or con segu inte , en tão, o que essa ideo logia cob re e amo
es.
desejos e as nece ssid ades dos con sum idor osa entr ada na de real idad e social, dist into com o tal:
o coti dian o, que con tém
glon
a ativ idad e con sum idor a teria feito sua a coti dian a'', ela todo s os "ob jeto s" - roup as, alim ento s, mob ílias ?
''vid
raci ona lida de orga niza da. Pos to que haja grad a com o tal na enta nto não é acei -
A den omi nação prop osta n ão é falsa, no ssez à abu ndâ n-
inte
seria tom ada em con side raçã o e mes mo soci edad e alta - tável. Existe efet ivam ente uma passagem
da esca
de uma
razão científica enc arna da na prát ica para dist ingu i-la, cia, da prod ução insu ficie nte a um con sum o ime nso e mes mo a
razão
men te orga niza da. Não hav eria mai s os com sunt uosi dad e e pres-
e. ~U:. supe rcon sum o _(desperdício,_ ga~r
para con side rá-la um nível da real idad ugro etc.) n~s amb ient es do caprtaltsmo
mod ifica do. Existe passa-
Respondel'émos em p rime iro luga r que não se v~rifica mem " das necessidades
fun dad o das necessidades gem da pnv ação ao praz er, do "ho
em nossos países um estu do apro
64 65
"h mem" das necessidades múl~iplas e ricas sarnento marxista e muitas vezes reclamando abusivamente dela,
Pobres eacidade
escassas ao o .
de ação e de prazer)_, mas essa passagem, como eles· rejeitaram uma das teses mais famosas, a da "decadênci a
(em cap si ões ocorre de maneua penosa, arrastando co n- do Estado". Na maioria dos casos eles pareciam ignorar que reto-
a:> oux~ ~~np;ssad~ sob a influência de imposiçõe~ pouc_o ~la­ mavam teses hegelianas, que opunham Hegel a Marx, e que a
SigO E~ agem 'de uma velha cultura alicerçada na hmlta- nossa época continua a viver esse co_nfronto. Em vez de realizar
ras
- . d xtste pass c1m· · - d a escas- a filosofia no sentido da totalidade hwnana, esta época vai reali-
.d
çao as necess1 ades , na ''economia ', e na a dirustraçao
, a cultura baseada na abundanC1a a pro uçao
A • d - zar o hegelianismo e a totalidade estatal? Efetivamen te, o Estado
sez a nov · e na
am litude do consumo, mas atra~és de uma c~se general._lzad ~- se reconstruiu, após a Segunda Guerra Mundial, com muito
É ~ssa conjuntura que a ideologta da pr?duçao_ e o senudo da mais poder que antes, em todos os países, incluindo países do
atividade criadora se transforma ram ;~ zdeologza_ C:? con~~mo~ ''Terceiro Mundo'', países ''socialistas'' e países anglo-saxões que
Essa ideolo<ria destituiu a classe operana de suas ~de1as e valo até então haviam iludido as exigências da intervenção estatal, do
res" conse~ando a superiorida de para a burg~?sla , par~,a qua1 planejamen to econômico e da racionalidade organizadora. Ape-
' · · · · Ela apagou a imagem do homem anvo, nas a Iugoslávia (talvez) escapa a essa regra . Muito alto se elevam
reservou a mlCiauva. .d - e se exercem os poderes de decisão. Num plano muito arrogante
colocando em seu lugar a imagem do consuffil or c?mo ~azao
de felicidade como racionalidade suprema, c?r:no idennda_de se elaboram as estratégias e se confrontam as variáveis estratégicas.
' ·d al (do "eu" ou "suJ·eito" individual, que v1ve Mas sobre o que se exercem os poderes? O que é que eles põem
d 0 r eal com o 1 e ·d em causa? Sobre o que pesam as instituições, senão sobre o coti-
e ue age, com 0 seu "objeto"). ~ão_ é o co_?-~1 ornem tam-
!co o objeto conswnido que tem imp?rtanCia nesse mercad~ diano que elas retalham e dispõem de acordo com imposições
~e imagens é a representação do consumido r e do ato de consu que representam as exigências e atualizam as estratégias dos Esta-
· transf;rma do em arte de consumir. A_o longo dess~ processo dos? Tais questões podem parecer vãs, assirp como todo protesto
e contestação diante dos monstros estatais. E igualmente inadmis-
~:s,ubstituiçãO e de deslocamentO ideológlCOS, consegmu-se ar~­ sível confirmar pelo conhecimento teórico essa situação e atribuir
tar e até ap~gar a consciência da alienação, acrescentando-se a !e- ao Estado um ceri:ificado de boa consciência . Além do mais, gran-
nações novas às amigas. . , . des rachaduras incomodam esses edifícios, e as relações (nª' França
Já. mencionamos a existência de um exuaordma no f~no­
A

e noutros países) do "público" com o "privado" não andam lá


meno no qual nós (cada um de nós) estamo~ n:ergulha os. muito bem.
Ocorre uma liberação de enormes massas de szgnificantes mal A técnica aperfeiçoou -se extraordina riamente, mas é ao
ligados a seus significados ou separados, de_les Cp:lav~:s, ~~i~~ nível do Estado, das pesquisas espaciais e nucleares, dos arma-
imagens signos diversos). Eles flutuam a disposlça~ f: .d d h
dade e da propagand a: o sorriso tor?-a-se sí~b?~o a , ~ c1 a ,~
m entos e das estratégias que ela apresenta seus resultados. Já
notamos o contraste entre esta força e a miséria técnica do coti-
otidiana 0 do consumido r esclarecido e a tdeia de Pll:rez~ diano, entre o esplendor dos verdadeiro s objetos técnicos e as
~derem à, brancura obtida pelos deterge_nt:s: Quanto aos stgm~­ pobres pequenas invenções em sua embalagem ideológica. Assim
cados deixados de lado (os estilos, o histonco etc.), eles se cUi- também , a "cultura" se decompõe após uma cisão interna.
dam como podem. Algumas pessoas os redescob:_em. em nome Muito alto pairam a intelectual idade sutil, os jogos bizantinos
de uma alta-cultura quase clandestina e reservada a elite. Outros a respeito da linguagem e d a escrita literária, a compreens ão
tentam recuperá-los para transformá-los em bens de ~onsum? dos estilos e da história. Muito baixo se exibem a vulgarização ,
(móveis casas, jóias inspiradas em obras de adrte e eN e~tilos ~nln­ . os trocadilhos de gosto duvidoso, os jogos por demais grossei-
gos). A~sim, eles ocupam o quê? Um nível e rea i a e so~a. ros, a cultura para as massas.
Muitas vezes, desde que se ope_ram essas uansf?rmaç~~s e É, portanto, uma diferença de nível que se impõe ao exame
que se instaura a modernida de, os sociólogos, economiStas e po- e não . a unidade racional das necessidades, do consumo e da
líticos" puseram em evidência o papel do Estado. Contra o pen- comunicação. Essa diferença de níveis se organiza, se planifica.
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monia burguesa o encantament o melódico: o canto da beleza
E é sobre 0 plano inferi~r, s~bre a larg~ base da_ cotidianidade dos ofícios, da qualidade, do trabalho bem-amado. Na Europa,
que repousa 0 edifício puami~al da sooeda~e ~1ta moderna: depois da guerra, alguns homens dotados e inteligentes (Quais?
Em nossos países (o Ocidente neocapitahsta ) o _ pla_?eJ~­ Não interessa isso aqui. ) perceberam a possibilidade de agir
mento da produção - a racionalização gl?bal da ~nd';lstna sobre o consumo e por meio do consumo, ou seja, de organi-
_ não aconteceu. No entanto, um planeJamento mdueto, zar e de estruturar a vida cotidiana. Os fragmentos da vida coti-
uma certa organização glo~~l se tornam p:e~entes, mas p_?r diana se recortam, se separam em seu próprio "terreno" e se
um caminho desviado. A anvidade dos escn~onos, dos org~ms­ acomodam como as peças de um quebra-cabeça. Cada um deles
mos públicos e das instituições ar:exas funciOna nesse senudo. pressupõe uma soma de organizações e de instituições. Cada
0 conjunto é pouco coerente , vai rangendo e aos solavancos, um deles- o trabalho, a vida privada e a vida familiar, os laze-
mas chega a caminhar. Essa estruturação um . tantoAfr~ca se res- é explorado de maneira racional, incluindo-se aí a novís-
cobre de uma ideologia da estrutura, e essa mcoere_ncia, d_e sima organização (comercial e semiplanifica da) dos lazeres.
uma obsessão de coerência; do mesmo modo, es~a mcap~ci­ O fenômeno característico, significativo, no qual e sobre
dade para a integração cria~iva se reveste ~e nostalgiaS mult~co­ o qual essa organização se lê, porque ela está escrita nele, é a
lores: participação, comum_dade. O q~e _e que essas orgamza- cidade nova. Deixemos de lado seus outros traços e marcas:
ções organizam ? Nada mais que o coudia~o. _ rápido crescimento da cidade tradicional, segregação, vigilância
Mais ou menos a partir de 1960 a situaçao se es~larece. policial etc. Na cidade nova, nesse texto social legível para
0 cotidiano não é mais o abandonado, o desapropnad o , o quem sabe ler, que é que se inscreve? Que é que se projeta
lugar-comum das ·atividades especializadas, o lugar neutro. Os nesse terreno? A administração do cotidiano, sua subdivisão
dirigentes do neocapitalism o, na Fr:-n5a e _no:J.tr?s lugares, com- (trabalho, vida privada, lazer) , organização controlada e minu-
preenderam muito bem que as colomas sao mcomodas e pouco ciosa do emprego do tempo. Qualquer que seja a sua renda,
rentáveis. A estratégia deles mudou. Adot~ram uma nov~ pe:_s- e qualquer que seja a classe a que pertence (empregados , ' 'cola-
pectiva: os investimentos no território naci~n~l, a orgamzaçao rinhos-brancos", pequenos e médios técnicos, grupos peque-
do mercado interior (o que absolutament e nao 1mpede o recu_:so nos e médios), o habitante _da cidade nova recebe o estatuto
aos países "em vias de de~envolvimento" como f~ntes ~e mao- generalizado de proletário. Além do mais, essas cidades novas
de-obra e de matérias-pnm as, como ~ugares de mvesnmento) - Sarcelles, Moureux e tantas outras - não deixam de lem-
porém não é mais a pre?cupa~ão dommante). Q_ue fazem eles. brar estranhament e as cidades construídas nas colônias e semico-
8
Fazem a exploração semKolomal de tudo _o que c;rc':lnda os ce~­ lônias, bem divididas em quadras e estritamente vigiadas .
uos de decisões políticas e de concencraçao economi~a dos /capi- Elas têm ainda alguma coisa de mais severo, por causa da falta
tais: regiões periféricas, campos e zonas de produçao agncola, de cafés e de lugares de prazer. A colonização da metrópole
afasta as ocasiões de fuga ao comportamen to padrão.
subúrbios, populações compostas não apena: d~ trabalhadores
manuais mas também de empregados e de tecmcos._O _estatuto Essas considerações e muitas outras que virão mais tarde
do proletariado tende a se generalizar, o que contnbui para se permitem anunciar algumas conclusões.
diluírem os contornos da classe operária e para se ofuscare!? 1. As modificações da prática social, na França e em outros
os seus ''valores'' e a sua ideologia. A exploração bem orgar:_I- países neocapitalistas, não afastam a noção de cotidianidade .
zada da sociedade inteira atinge também o consu~o, e nao
mais apenas a classe produtora. O capitalismo, efeuvamente~ 8 Esses faros significativos não são os únicos. nem separáveis de muitos outros. No que
"adaptou-se" enquanto reclamava a adaptação das _pessoas a concerne a França. lembremos aqui o papel essencial do semiplanejamemo . das Pres-
"vida moderna". Antes, os empresários "produziam" /ui? tações de Comas da Nação e a importância dos estudos sobre as despesas da família
e o consumo. A extensão do crédito (e da situação de crédito) figura entre esses faros
pouco ao acaso, para um mercado aleatório. A empresa media significativos.
e a familiar predominava m, fazendo acompanhar de uma har-
68 69
_ . lh entre moderni dade e cotidiani dade. O con-
N~o Tes~~t~~~~noase modifica , mas essa modificação o con~rma Negligen ciando também um certo domínio (incompl eto)
do mercado e das leis do mercado, obtido pela ação sobre os
celdor a É reciso abandon ar uma parte d? ~s:u .cor~.teudo,
e r d ç · ntep0 contraste pungent e entre m1sena e nquez:, consumid ores, deixamos aos economis tas essas questões, mas
nota não sem rejeitar o economi'smo por uma crítica radical.
entre ame ~ ·
o ordinário e o exuaord"man_o. F ·
ertas essas re servas. , nao
.
a e nas o conceito persiste, mas amda passa para o pmr~;uo a) Um contraste se estende até a contradiç ão entre o tempo
1ano 9_ 0 cotidiano , no mundo moderno , de1xo.u de s~~ s_u- cíclico e o tempo linear(ra cional), mas sobretud o entre os pro-
p · ,, (rico de subjetivi dade possível) para se t~rnar o~r­ cessos (sociais) cumulati vos e os processos não-cumu lativos. A
~~l't'o (objeto da organiza ção social). Eriq~anto ob;eto ~a re e7
xão , longe de desaparec~r (? que po~ena ter aconteCidO se ~
li teoria da acumulaç ão, já elaborad a na obra de Marx , ficou
incomple ta. Em O capital e em obras anexas, ela se baseia
·mento revolucio náno uvesse obudo sucesso), ele, ao con somente na história da Europa ocidental e da Inglaterra . Há
mov l i um século vêm aparecen do fenômen os novos. O caráter cumu-
trário, se reafirmo u e se conso l"d1 ou. - lativo não pertence apenas ao capital, mas aos conhecim entos,
2 Nessas condições, as d~nominações propos_tas nao pare- às técnicas, em certa medida à populaçã o (não sem tendência s
. · ~ ·s Como seO'urar· e J·umar nwn enunaad o os traços
cem ace1tave1 . b ~ . d. contrária s que refreiam em todos os níveis ou impedem a acu-
levados em consideraçã~? "Sociedade bu:ocratzc~. e c~nsu17!~ mulação) . A memória é o tipo de processo cumulati vo (e, por
diri ·do,,, t.al é a defimção proposta aq~ para nossa . soc1e consegui nte, o órgão essencial das máquina s que materiali zam
d dgz Marcam-se assim tanto o caráter rac1onal dessa so;:1~~ade,
e tornam técnico o processo considera do). Ora, o cotidiano não
c~m~ também os limites dessa racionalidade (burocrat~ca), o tem esse caráter cumulati vo. O uso social do corpo muda no
ob"eto que ela organiza (o consumo no lugar da produçao ) ~ o
correr dos séculos; o "gestual " se modifica ; as expressões físi-
/~no ara 0 qual dirige seu e_sfo:ço a fim_ de se sen~tar so.bre.:_ ~ cas, enquanto conjunto s significantes (gestos, caretas, mímicas),
pcon·diano.
p A essa definição atnbmmo s entao um carater czentífi
. . s to Ela se transform am ; mas o corpo não se metamor foseia. Quanto
co. Ela se formula de maneira maiS rzgorosa qu~ as outra ·. , . às necessidades fisiológicas e biológicas e às capacidad es corres-
- ~ · anto na literatura como numa filosofia soc1al
nao se apo1a t pondente s, recebem a marca dos estilos, das civilizações, das
externa em relação ao conhecim ento d a rea lid ad e socla
·1
. culturas. As maneiras de satisfazer (ou frustrar) as necessidades
se modifica m. Na medida em que são psicológicas e biológicas,
6. o que aconteceu, então (na França, entre as carências e atividade s têm uma certa estabilid ade que per-
1950 e 1960)? mite acreditar numa ''naturez a humana" , numa continuid ade
Estamos agora em condiçõe s de precisar alg':ln_s fat~s , d ei- evolutiva . As emoções e os sentimen tos mudam, m as não se
xando de lado 0 que se refere ao Estad_o, à adm1mstra~ao_, aos acumulam , nem os sonhos. Um milionário american o e um
problema s propriam ente urbanos e mu1tos de outros mve1s. cule de Hong-Ko ng não têm, com relação a calorias, exigências
diferente s ; o cule teria necessidades maiores. O desempe nho
físico , a capacidad e erótica, os anos de maturaçã o e de envelhe-
h · ai um cimento , a fecundid ade natural oscilam entre limites relativa-
9 O autor intervém aqui para reconhe~er que est~o~O ~ais tempo antes de chegar
de uma vez encarou a
a essas conclusões. Durante esse p~nodo (l 95â~ ~m~reendid o. Isso explica o longo
mente estreitos. O número de objetos que verdadei ramente se
possibilidad e de ab~nd~nar 0 c:;e(~c;:t;o~:::~n à la critique de la vie quotidienne. podem utilizar na vida cotidiana não pode crescer indefinid a-
mtervalo entre o p n metro vo 1u mente. Em resumo , sem poder escapar inteirame nte das conse-
1946) e o segundo vol';lme (l96~). uma outra or exemplo: capitalismo qüências das acumulações, o cotidiano recebe delas nada mais
lO Esta defi~i~ão não é mcompauve l co~ .:Jg da permit~ ~elhor analisar
as funções que um reflexo. Ele evolui (quando se transform a) segundo rit-
monop::~e~~ ;;~fe~o;d;~E~o:~ ~~~~:~ge, no atual e no poss~vd, que "capit~-
el_estru mos que não coincidem com o tempo da acumulaç ão, e em
tsmo monopo I'tsttc
. o de Estado" que estatiza o econômico e favonza um cconomzs·
· .
mo. ideologia e "valor" da sociedade constderada. espaços que não se identifica m com os campos dos processos
71
70 ~I

cumulativos. Isso permite crer numa estrita continuidade da O _d:slt:amen~o do _c~po em direção ao sinal implica a
casa, do lar, da cidade, desde a cidade oriental proto-histórica predoml?~noa das Imposi~oes sobre os sentidos, a generalização
até os nossos dias ... do cond1c10namemo
. _ ( dna . vida
. cotidiana , a redução do coti.diano
Ora, uma sociedade perde roda a coesão, se não restabe- a uma d rmensao a_ Ispo_stção d?s elementos recortados), afas-
lece a unidade . Como a sociedade "moderna" enfrenta o pro- tando-se as OU:tr!-s d:m<:nsoes da hng_uagem e do sentido, os sím-
blema? Organizando a mudança da cotidianidade. A deprecia- bolos, as opos1çoes s1gruficantes. O smal e o sistema de sinais for-
neceo:~ ur:n modelo cômodo ~e manzpulação das pessoas e das
ção dos objetos e das "mod_a s" se acelera ~om o processo cumu-
lativo. O desgaste moral va1, cada vez ma1s depressa, ganhando ~onsc~enc1as, ?, que não exd~,I outros m~ios mais sutis. E agora
em velocidade o desgaste material (das máquinas, como das 1magme um homem novo que funcwna sobre a memória.
aplicações técnicas e dos objetos de uso). Essa sociedade cami- Suponha que de cada "outro" esse homem registre um fato,
nha para a destruição e para a autodestruição, e aqui como um g_esto, um~ palavra, de uma vez por todas, à maneira de
• 11 um sznal. Imagme agora a bela humanidade que daí resulta.
entre outros lugares a guerra prolonga a paz por outros mews .
Ou o cotidiano é mantido na pobreza, ou então ele se volta à _ c) O de:vio ~a energia criadora de obr;is para a dramatiza-
destruição (brutal ou não, mas sempre sob opressão). ç~o, para a v1s~ahz~ção espetacular do mundo (cinema, televi-
O conflito entre o cumulativo e o não-cumulativo se resolve sao) tem suas Implicações. O "espetáculo do mundo" tOrna-
se consumo de espetáculo e espetáculo do consumo, o que for-
assim pela subordinação metódica do não-cumulativo, por sua

l
nece um b~m e~emplo de tom_Iquete, uma espécie de pleonasmo
destruição ordenada: por uma racionalidade que roca as raias
que os racwn~hstas _da orgamzação romam por um equilíbrio
do absurdo, mas que é ótima na manipulação das coisas e das
((eedback) sat~sfatón?. Esse desvio traz consigo uma consciên-
pessoas. oa bastante viva da Impotência criadora, do caráter decepcio-
b) Se considerarmos o campo semântico global (isto é, a nante de um consumo devorad?r das obras e dos estilos passa-
sociedade inteira como campo de significações, com lugares diver- dos, o que acar~~ta u~a te_2lt~,nva de compe~sação ideológica:
sos, centros e núcleos disseminados), verificaremos transforma- com o tema da paruc1paçao emerge tambem o da ''criativi-
ções apreciáveis. Durante longos períodos históricos, os símbolos dade" . C~em as antig~s certezas ligadas a conteúdos (aparen-
dominaram esse campo (símbolos provenientes da natureza, mas t~s ou rea1s). E decepcwnam as formas de conteúdo privadas
dotados de uma força social considerável). Já no início da nossa ndas como formas " puras" e incumbidas como tal de uma fun:
civilização, e notadamente após a invenção da imprensa, o campo ç~o ~str~turado~a . Daí vem a impressão de uma perda de subs-
semântico inteiro desliza do símbolo para o signo. No período tar;,cza. E uma lmpre,s,sã~ dramática ,_ mai~ impress!onante que
considerado, um outro deslizamento se configura, ou melhor, o desencantamento d1a~te da r~cwnahdade, cup teorização
se confirma: do signo para o sinal. Figurando no campo semân- M~ Weber tentou (acreditando amda na substancialidade do
tico (global) com os símbolos e os signos, o sinal difere deles. raoo?al): De onde vinha essa impressão de substancialidade
Ele não tem outra significação a não ser a ordem estipulada, e na h1stón~ ou na pré-história, ou seja, nas épocas que precedem
pode comparar-se aos signos sem significação (assim como as a modermdade? Da natureza? Da escassez de muiros objetOs
letras) que entram em unidades articuladas (as palavras ou mone- e do valor que lhes era atribuído? Do trágico, da morte? Do
mas) . Ele comanda, ordena comportamentos e os regulariza. que restou. das comunidades? Dos estilos, da ética ou da arte
Compõe-se de oposições definidas unicamente por sua oposição como med1ação substancial entre as formas? A questão aí está.
(o vermelho e o verde). No entanto, os signos se agrupam em d) Na vida social, ames da' Segunda Guerra Mundial, pelo
códigos (o código da estrada, exemplo simples e muito conheci- menos_ na Fr~nça e na Europa, prolongavam-se as reminiscências
do) e constituem redes que atrapalham. da anu~a sooedade. A produção industrial não tinha ainda liqui-
d_a~o e_1megrado os restOs de produção anesanal e rural. A aldeia
11 Reencontraremos mais adiante a noção de obsolescéncia.
vivia amda e o campo rodeava a cidade, mesmo no interior dos
73
72

países induStrializados. Numerosos prolongamentos do pré-cap!·ta- A vida cotidiana se organiza como resultado de uma ação
fismo ainda não tinham sido relegados ao folclore (nem reavlv~­ combinada, semiplanejada (na França). Cada vez mais clara e
dos como folclore para o consumo turísti~o ). Aos objet?s de fab~l­ fortemente as atividades chamadas superiores (formas, modelos,
cação industrial sobrepur:ham-s_e os objetos <l:r:_resana.ts e rura.ts. conhecimentos aplicados) não apenas se situam em relação ao
Simbolicamente, esses objetos unham valores ja ultrapassado~ e, cotidiano, mas ainda o tomam por objeto. Ele se torna ó plano
por sinal, contraditórios; .':J?-5 fal~van; da escassez e do precioso sobre o qual se projetam os claros e os escuros, os vazios e· os
que provém do escasso (j01as, b1belos e_tc.), outros ~~av~ da cheios, as forças e as fraquezas dessa sociedade. Forças políticas
fecundidade, da profusão, da abundância para os pnvlleg1ados, e formas sociais convergem nesta orientação: consolidar o coti-
em meio à penúria. Assim, entre os móveis, o grande armário, diano, estruturá-lo, torná-lo funcional. Os outros níveis do
social (exceto o Estado, que funciona muito alto na estratosfera
0 leito de centro, o vasto espelho, o relógio de parede, v~iculavam
lembranças quase mitológicas utilizadas pela aristocraaa e pela sociológica) existem apenas em função da cotidianidade. A
burguesia (grande ou pequena) para se ''expr~ir' '. O mes~o importância das estruturas e seu interesse medem-se de acordo
acontecia com os monumentos . .No período considerado, o capita- com essa capacidade de ''estruturar'' a vida cotidiana.
lismo oro-anizador
0
do consumo acabou com essa superposição de Não há drama aparente. Cada um se instala no co o!. Há
camadas de objetos datados de maneira diferente . O mercad_?
capitalista encarregou-se dos bens ?e consumo chamad~s dura-
veis. Em outras palavras, a econom1a de mercado, sob o Impulso
do neocapitalismo, invadiu o que se denomina algumas vezes _a
I uma desdramatização ostensiva. Não há mais drama; apenas
coisas, certezas, "valores" , " papéis", satisfações, "jobs" ,
empregos, situações e funções. No entanto, forças colossais e
derrisórias se abatem sobre o entretanto, à crítica do individua-
"cultura material", eliminando as reminiscências e a superposi- lismo (privação de contatos e de comunicações) se sobrepõe
ção de camadas de objetos que lembravru:n épocas c;liversas. Exce- hoje uma reivindicação nova: o direito à solidão, à vida pri-
ção aparente: os objetos de ane e de estilo, de b~a ou de alta vada , o direito de fugir dos terrorismos que apavoram. Quanto
época. Não passa de uma exceção aparente. Os obJetos que tra- à mistificação, em primeiro lugar ela se generalizou; em
zem as marcas da obra são destinados à "elite" ; um mercado espe- segundo , o termo penetrou até no jornalismo ; em terceiro,
cial e um ramo específico de produção (a cópia, simulação do ori- muito conscientes, os ideólogos apresentam hoje a ideologia
ginal) ocupam-se disso 12 • como não-ideológica e como recurso contra as mistificações (ci-
ência "pura", alta cultura etc.). Daí o abandono do projeto
cotidiano. Elas o agarram para amassá-lo e sufocá-lo; elas o acos-
7. Terceiro período - a partir de 1960 sam até a separação, a ruptura, o sonho, o imaginário, a evasão.
Não temos diante de nós apenas o recorte e a organização O novo , de alguns anos para cá, é que as conseqüências
do cotidiano, mas também a sua programação . A so~iedade da industrialização, numa sociedade dominada pelas relações
burocrática de consumo dirigido, segura d e suas capaCidades, de produção e de propriedade capitalistas (um pouco modifica-
orgulhosa de suas vi~órias, e~tá se apro:cin:ando ~o seu o?jetiv~. das, mas conservadas em sua essência), se aproximam de seu
Sua finalidade melO consciente, me10 mconsc1ente ate aqu1, termo: uma cotidianidade programada num ambiente urbano
torna-se uansp~rente: a cibernetização da sociedade pelo cami- adaptado para esse fim. A cidade tradicional explode, enquanto
nho do cotidiano 1,; . a urbanização se estende, o que permite hoje semelhante
empresa. A cibernetização da sociedade corre o risco de produ-
zir-se por este caminho: organização do território, instituição
12A Critica da vida cotidiana. de acordo com o projeto inicial, devia figurar num tríp·
rico com A consciência mistificada e A consciência pn"vada. A consciência não dei- I
de vastos dispositivos eficazes, reconstituição de uma vida
xou de ser privada e frustrada . . . .. urbana de acordo com um modelo adequado (centros de deci-
13 Cf. o capítulo seguinte da presente obra e mats tarde o tercelfO volume da Cnt:que

I
são, circulação e informação a serviço do poder).
de la vie quotidienne, cujo esboço apresentamos aqui.
75
74
de
Assim 0 recorte, ainda vis!vel nas cidad es novas, che~a ao ponto de bloqu ear toda possib ilidad e?15 Contr a as idéias
ao fim. Te~de-se a uma r~con stituição prá~ica de u~~ espé~I
e Marcuse, persis timos dizen do o contrá rio .
is-
de unida de. Essa tendê ncia cham a-se oficia lment e urban A sociologia crítica ameri cana, não obsta nte o peso colos-
ra- por
mo". O probl ema da síntes e volta ao prime iro plano . Procu sal da "pesq uisa" (entre aspas) confo rmista , que qpera
candi datos : filóso fos, s grand es proble m.as,
se "o home m de síntes e". Há muito s s,
encom enda da indús tria, levan tou muito ,
econo mista s, sociólogos, arqui tetos, urban istas, demó grafo entre outro s o da funçã o social da empre sa. Sabem os agora
inaçõ es. Quase todos letam a exper iência prátic a,
tecnocratas diversos e de diversas denom pelos estud os publi cados , que comp
uma
apost am, sem o .recon hecer , numa "robotização~ ' da qua~
eles que a grand e empre sa "mod erna" não se conte nta de ser
par~1r do o de unida des), nem
seriam os progr amad ores, porqu e ela e.xe~uta~Ia a unida de econô mica (ou uma conce ntraçã
a invad ir
entes vislum - ca, mas que ela tende
mode lo sintét ico criado por eles. Os mais mtehg de fazer pressão sobre a políti
racion ali-
a e não auto- a prátic a social. Ela propõ e à socied ade inteir a sua
bram a realização ''espo ntâne a'' , isto é, demo crátic nta a
. ~ . d o seu mo d e1o 14 .
ntana dade como mode lo de organ ização e de gestão. Ela supla
o papel desta; a "soci edade ".,
Nossas análises juntam -se (seria mais exato dizer que foram cidad e e quer mono poliza r
de funçõ es que perten ciam
juntad as por) àquel as d~s sociól ogos críticos .~a sociedade.
ame- empre sa ou comp anhia , apode ra-se
alo-
ricana. Em todo caso, difere m delas. Os soc10logos amen canos à cidad e e dever iam aman hã perten cer à socied ade urban a:
etc. Ela chega a instal ar
troux eram à luz muito s ponto s impor tantes ; eles não elabor
~­ jamen to, educação, prom oção, lazer
quia, pressi onand o
ram os conceitos-mestres, os de cotidi anida de ou de mode rni- seus funcionários em habita ções da alta hierar
a. O co!lu ole
dade, os da urban ização e do urban ismo. Deixa ram a últim
a (e aliena ndo) até nos limite s da vida privad
sua
palavra aos economist~, por falta de ~ma crític.a globa l d.a adqui re às vezes forma s incríveis: nada lhe escapa. A
, subor dina- a às suas
sociedade , das ideolo gias e do econo mism o (teon a do cresci
- mane ira, a empre sa unific a a vida social
mento ). Não opom os, como Riesm an, um "hom em extrad eter- exigências totalit árias e camin ha para uma "sínte se".
mina do" (other direct ed) a um home m "intra deter mina
do" A cibern etização parec ia opera r-se por meio da políci a
cami-
(inne r direct ed). De prefe rência , mostr aríam os um home m (Orwe ll) ou da burocracia. Ora, o condi ciona mento geral
para dentr o do.co tidian o, e, por conse guinte ,
determ inado e até mesm o pré-fa bricad o de fora nha através da organ ização
res , da ' 'femin ili-
mulhe
(pelas opressões, estere ótipos , funções: mode!os, i~eologias
etc.), comp leta-s e pelo condi ciona mento das
rei-
mas que se crê ainda e semp re e multo mais auton omo •. e
que dade ''. Acon tece que ''fem inilid ade '' é tamb ém rebeli ão,
. r, não tenha mos medo
só perce be a sua consciência espon tânea até na robonAzaç~o vindicação. Do robô e do comp utado
esse
Mas procu ramos tamb ém mostr ar o fracasso dessas tenden
e1as: de repeti r que são dispositivos de produ ção. Para se iludir
racion al em escala globa l,
os "irred utíve is", as contra diçõe s que nasce m ou renas cem, uso, que supõe um plane jamen to
o mode lo da produ ção.
embo ra a bafad as, afastadas, desvia das. Pressõ es e repres sões ·ter- organ iza-se o consu mo de acord o com
a tra-
roristas conse guem reforçar a auto-r epres são perso naliza da até Ora, o desejo figura entre os irredutíveis. E não se chega
a) segun do um
tar o consu mido r (e meno s ainda a consu midor
, não sonha ,
que pensam como ele) mode lo cibern ético. O robô , até segun da ordem
Sem dúvida é bom repetir aqui que nós (o autor e aqueles não tem lacun a.
I4
smo, que não incri:n i~amos ": '?áquin a". el:t:ô- não come , não bebe. Apen as a sua memó ria
rejeitamos as nostalgias e o passadi ação
nica ou não. pela informação ou pela force depend~nc1a energcn
ca. Ao con_:rano. Então , o que se trata não é o consu midor , mas a inform
.a programaçao dos r a racion alidad e
A não-aut omatiza ção planeja da ~o apa~elh o produn vo aca.rreta
s cnadoras de obr~ . A
do consu midor , o que talvez venha a limita
consumidores. A automa tização hbercan a (talvez) as energia a novas contradições. cibern ética e a progr amaçã o do cotidi ano.
"socied ade burocrática de consum o dirigido " vai em direçao
dor foge: é preciso
Só a produçã o industri al pode ser automa tizada. O c~nsumi
ndo-se a questão fundam ental, es.sa ~oc1eda de corre o :1sco ~e fra-
agarrá) o. Desloca
do humam smo unpo-
cassar. Quanto à vida social, ela já fracasso u, e a hqu1dação
I) Cf. One dimensional man, Beacon Press, Boston, 1964.
tcme contém uma confissão.
76
Acabamos de ajuntar à nossa "problemática" um problema
escabroso, flor particularmente venenosa num lindo ramalhete.
A organização da coti~~anidade_(con:;, seu ~'brilho". e seu cint~­
lante revestimento, o modermsmo ) sena o caminho frances
para a americanização? Reencontramos as questões anterior-
mente formuladas. Caminha-se para uma homogeneidade mun-
dial que geraria ou revelaria um sistema único e absoluto? Ou
as diferenças e resistências vão se acentuando até a desestrutura-
cão dessa estrutura? A sociedade economicamente superior for-
~eceria necessariamente um modelo (uma ideologia e uma prá-
tica) às sociedades em atraso relativo? O crescimento pesaria
sobre o desenvolvimento até o ponto de se integrarem? A téc-
nica e a ideologia da tecnicidade, o crescimento e a ideologia
Capítulo li
produtiva predominarão na Europa e na França? Sob o guarda-
chuva político de uma estratégia antiamericana, servindo-se
de um grupo social aberrante no início, mas que procura o
A SOCIEDADE .BUROCRÁTICA
poder (os tecnocratas), a americanização da França estaria no ·
caminho certo? Deixamos abertas aqui essas perguntas, e pen-
DE CONSUMO DIRIGIDO
dentes as respostas.

-1 . Coesões e contradições

Retomaremos agora alguns dos traços que caracterizam


essa sociedade e entram na definição, não tanto para esgotar
os temas , quanto para mostrar a coerência da teoria. Se alguns
ideólogos fizerem a honra d e contestá-la, dirigirão o ataque
contra a "cientificidade" da definição; tentarão mostrar que
ela tem apenas um valor subjetivo e um alcance polêmico. A
nosso ver, o caráter polêmico nada tira à "cientificidade" . Ao
contrário. O conhecimento se alimenta de ironia e de contesta-
ção. As lutas teóricas o impedem de estagnar. Tão velha quanto
a reflexão filosófica e a pesquisa científica, essa discussão conti-
nuará ainda por muito tempo. Em nossa opinião, repetimos,
uma ciência " pura", discanóada prudentemente em relação à
ação, não é mais uma ciência verdadeira, mesmo sendo exata.
A epistemologia ''pura' ' e a conclusão rigorosa fornecem uma
posição de reforço estratégico diante do assalto dos problemas
reais. Esse reforço, ou essa prega, cobre outra coisa: um "opera-
79
78
ideologias, funções e sistemas de ' 'valores'', mas também obras
cionismo" que reparte os problemas e a pesquisa das soluções
de arte e de pensamento) , por meio das relações estruturádas-
à sua maneira, segundo pe(spectivas e interesses que não se
estruturante$ de produção e de propriedade; neste caso, a prin-
formulam a fim de evitar protestos e contestações. Tomar dis-
cipal ideologia fica sendo o individualism o, que dissimula e
tância para captar e apreciar não é dobrar-se sobre a formaliza-
justifica o fundamento dessa sociedade;
ção do saber. Este segundo procedimento é caricatura do pri-
meiro . De bom grado acrescentaríam os a algumas outras uma e) Uma linguagem coerente que abranja na sua unidade
fórmula peremptória: ''O cientificismo contra a ciência! O a vida prática, a ciência, a Revolução (em outras palavras, o
racionalismo contra a razão! O rigorismo contra o rigor! O estru- mundo da mercadoria, o conhecimento científico desse mundo,
turalismo contra a estrutura! etc.'' . Quanto à negação crítica, a ação destinada a dominar e a. metamorfose ar), linguagem
não seria o caminho para a verdadeira positividade? Só há uma desembaraçad a e posta em prática em O capz.tal. E isso em rela-
maneira de se inutilizar a definição apresentada: deixar de ção a referenciai~ determinados (a razão dialética , o tempo his-
designar a sociedade no seu conjunto e de considerá-la global- tórico, o espaço social, o bom senso etc. ). Essa posição implica
mente , reduzindo-se o . conhecimento a uma coleção d e fatos uma unidade entre o sábio e o revolucionári o, entre o conheci-
. mento e a ação, entre a teoria e a prática;
sem conce1tos nem teona.
Há um século Marx publicava a primeira parte de O capi- f) Contradições específicas no interior da totalidade consi-
tal. Essa obra continha ao mesmo tempo uma exposição cientí- derada (principalmen te entre o caráter social do trabalho produ-
fica da realidade social e propostas que diziam respeito às pos- tivo e as relações de propriedade "privada");
sibilidades da sociedade em questão. Isso implicava: g) Possibilidade s de crescimento quantitativo e de desen-
a) Uma totalidade passível de ser apreendida pela razão volvimento qualitativo da sociedade.
(dialética), dotada de dispositivos auto-regulado res espontâ- Um séc':!lo mais tarde, que é que subsiste dessa magistral
neos , mas limitados (o capitalismo de concorrência com a ten- elaboração? E uma questão "capital", se ousamos exprimir-
dência à formação da taxa de lucro médio), incapaz, portanto, nos assim, e ainda mal resolvida. É suficiente afirmar que a
de se estabilizar, de evitar a história e a transformação ; obra de Marx é necessária mas insuficiente para se compreen-
b) Um sujeito determinado: a sociedade dominada e gerida der a segunda metade do século XX? Não. No entanto, conten-
por uma classe, a burguesia (uma só, apesar das frações e das tar-nos-emos aqui com essa afirmação, indicando o contorno
lutas fracionárias pelo poder), detentora dos meios de produção; das lacunas a preencher. E o sujeito? Estamos procurando. O
c) Uma forma passível de ser apreendida pelo conheci- sujeito criador (coletivo, produtivo) fica menos claro. Qual é o
mento , a forma de mercado (valor de troca), .dotada de uma sujeito organizador? O chefe político? O exército? A burocracia
capacidade de extensão ilimitada, constitutiva de um "mun- · e o Estado? A empresa? O "sujeito" exaurido de todos os lados,
do", ligada a uma ideologia, a uma linguagem, mas igual- desfiado, não pode mais ser visto como cimento do conjunto.
mente inseparável de um conteúdo, o trabalho social (determi- Mas existe mesmo um conjunto, uma totalidade? Se a totali-
nado dialeticament e: qualitativo e quantitativo , individual e dade se dilui, não é apenas na e para a consciência dos indiví-
social, parcelar e global, simples e complexo, particularizad o duos, como afirma a escola de Lukács. Não é apenas o caráter
ou, de preferência, dividido e subordinado a distribuições jus- global das relações e suportes sociais que se apaga. O "total"
tas que constituiriam as médias sociais). Assim, por meio d o captado e definido exatamente há um século por Marx esgotou-
trabalho social se esboça a possibilidade de se '' domesticar o se, por falta de uma revolução que mantivesse e promovesse
mundo" da mercadoria e de se limitar sua cega extensão; uma totalidade ''humana''. Tanto na escala de cada país como
d) Uma estrutura social mediadora entre a base (organiza- na escala mundial, não percebemos nada mais que fragmentos:
I
fragmentos de cultura, fragmentos de ciências parcelares, siste-
ção e divisão do trabalho) e as superestruturas (instituições e I
80 81
mas ou "subsistem as" fragmentár ios. E como definir as possi- funcionar como um todo sem cair aos pedaços. Segundo suas
bilidades, senão por meio de prospectivas que representa m próprias categorias, essa sociedade não é mais uma sociedade.
uma estratégia? A classe operária e o seu papel parecem apagar- Isso permite talvez descobrir um mal-estar, mas só deixa
se, no entanto continuam sendo o último recurso. As institui- conhecê-lo ao se referir a um outro expediente , a uma outra
ções e funções com sua finalidade, os sistemas de valores que análise. O problema, tanto para a sociedade quanto para ~le­
as fortificam e as justificam, não podem passar por "sujeito" mentos sociais tão importante s quanto a Cidade, é evitar as
a não ser por abuso de linguagem . Não se pode resistir à impres- metáforas organicistas sem perder de vista o conjunto e, ainda,
são de que o Estado tem como finalidade o seu próprio funcio- sem esquecer as distorções , lacunas, rachaduras e buracos.
namento, muito mais que o funcionam ento racional de uma
A tese aqui defendida é que não é necessário compreen-
sociedade em que o homem do Estado seria o servidor responsá-
der essa sociedade segundo suas próprias representações, por-
vel, e diante da qual ele ::se anularia. Os sistemas parciais de
valores tendem a se transfbrma r em sistemas de comunicaç ão.
·, que suas categorias também têm uma finalidad~. Elas figuram
Que têm eles a comunicar? Seus próprios princípios de funcio- entre as peças de um jogo estratégico. Elas não têm nada de
namento, sua forma sem conteúdo. Os "sistemas de valores" gratuito nem de desinteressado e servem duplament e: na prá-
que conservam uma substância aparente pressupost amente tica e na ideologia. Há um século o individuali smo dominava;
interditam o que eles abrangem. Assim , toda burocracia de ele fornecia aos filósofos e sábios (historiado res, economista s
Estado tem como ideal moral a honestidad e, sobretudo a mais etc.) categorias e representações. Para atingir a realidade, isto
é, também os possíveis, era preciso levantar o véu. Hoje as ide-
corruptora e a mais corrompid a. A própria noção de "sistema
de valores'' é suspeita, e Nietzsche nos legou sua desconfian ça , ologias mudaram; elas têm nome: funcionalis mo, formalismo ,
exatament e porque foi um teórico de ''valores''. Não se trata estruturalis mo, operaciona lismo, cientificismo. Elas se apresen-
tam como não-ideologzas, misturando -se mais sutilmente que
apenas de ideologia, mas de pôr em questão uma seqüência
antes ao imaginário . Elas mascaram o fato fundament al, isto é,
de substituiçõ es. A "estrutura latente" é constituída de um
o fundament o de fato: tudo importa, tudo tem peso sobre a
encadeame nto de álibis tão numerosos quanto as funções e as
cotidianida de, que revela o "tudo" em questão (ou seja, que
instituições. A tecnicidade serve de álibi para a tecnocracia , e
sua análise crítica mostra o "tudo" colocando-o em questão).
a racionalida de, aos funcionam entos que giram em torno de
si mesmos (pleonasmo s sociais). O "sistema" - supondo-s e · A problemáti ca j_á formulada anteriorme nte fica sendo
que exista um - esconde-se embaixo dos "subsistem as": é então a seguinte:
aquele sistema dos álibis mútuos e multiplicad os. A natureza a) Pode-se definir a cotidianida de? Pode-se definir, a par-
fornece um álibi àqueles que querem fugir das contradiçõ es tir dela, a sociedade contempor ânea (a Modernida de), de
ou dissimulá-las. A cultura da elite é álibi da cultura de mas- modo que o estudo não se reduza a um ponto de vista irônico ,
sas, e assim por diante. à determinaç ão de uma fração ou nível parcial , mas permita
Pode-se conceber uma análise dessa sociedade segundo
( captar o essencial e o global?
suas próprias categorias? Sem dúvida. Assim se analisaria o fun- b) Chega-se por esse caminho a uma teoria coerente (não
cional (instituições) , o estrutural (grupos , estratégias) , o formal contraditór ia) das contradições e conflitos na "realidade " social?
(redes e ramificações, canais de informação , filtros etc.). Des- A uma concepção do ·r eal e do possível?
montar-se- ia essa sociedade como um objeto técnico, como A essas questões, formuladas da maneira mais científica
um automóvel : motor , chassi, equipamen tos diversos e apare- possível, respondere mos condensan do nossas afirmações. O coti-
lhos. Já recusamos e continuam os recusando esse procedime nto. diano não é um espaço-tem po abandonad o , não é mais o campo
Não se separa uma sociedade em peças sem perder alguma coisa: deixado à liberdade e à razão ou à bisbilhotice individuais .
o "todo" , o que resta dele ou o que permite a essa sociedade Não é mais o lugar em que se confrontav am a miséria e a gran-
83
82

deza da condição humana. Não é mai~ apena.s um setor co~oni: sua maioria, elas ficam presas na pesada massa . Para as outras ,
zado racionalm ente explorad o, da vtda soe1al, porque nao e pensar é evadir-se, não ver mais , esquecer o atolamen to, não
mais 'um ''setor' ' e porque a exploraçã o racional inventou ~or­ perceber mais a massa pegajosa. As mulheres têm álibis; el~
mas mais sutis que as de outrora. O cotidiano torna-se obJeto são um álibi. E se queixam. De quê? Dos homens, da condt-
de todos os cuidados : domínio da organizaç ão , espaço-te mpo ção humana da vida, dos deuses e de Deus. Elas passam ao
da auto-regu lação voluntári a e planifica da. Bem cuidado, ele largo. São ao mesmo tempo sujeitos na cotidiani dade e vítimas
tende a constituir um sistema com um bloqueio próprio (produ- f da vida cotidiana , portanto objetos, álibis (a beleza, a feminili-
ção-con sumo-pr odução) . Ao se d~linear as nec~ssi.d:ades, pro- ' dade, a moda etc.) e é a elas que os álibis maltratam . São
cura-se prevê-las; encurrala -se o deseJO . Isso subsntuma~as ~uto­ igualmen te comprado ras e consumid oras e mercador ias e símbo-
regulações espontân eas e cegas do período da cor:corren~ta: A los da mercador ia (na publicida de: o nu e o sorriso). A ambi-
cotidiani dade se tornaria assim, a curto prazo, o ststema umco, güidade de sua situação no cotidiano , que faz parte , precisa-
0 sistema perfeito, dissimula do sob .os outros que
o ~ensament_o mente, da cotidiani dade e da modernid ade, fecha-lhe s o acesso
sistemáti co e a ação estrutura nte vtsam. N~sse senn?o , a cot~­ à compreen são. A modernid ade, par~ elas, por elas, dissimula
dianidad e seria o principal produto da soctedad e dua orgam- notavelm ente bem a c:otidianidade. E possível que a robotiza-
zada, ou de consumo dirigido, assim como a sua moldura, a ção consiga suas vitórias entre as mulheres , ou sobre as mulhe-
Modernid ade. Se o círculo não consegue fechar-se, não é por res, em função do que para elas tem importân cia (a moda, a
falta de vontade nem de inteligên cia estratégic a: é porque ''al- arrumação do seu espaço familiar, a pesquisa do ambiente e
guma coi:a" de irredu~ível se opõe. C! Deselo estaria aqu~m da personali zação pela combinaç ão de elemento s etc.). E isso ,
dessa reahdade (ou abatxo dela)? Estanam alem dela e aba1xo apesar de ou por causa da sua "esponta neidade" . Quanto à
a Razão (dialética ) ou a Cidade, o urbano? Para quebrar o cí~­ juventud e e aos estudante s, o caso deles é o inverso. Eles não
culo vicioso e infernal, para impedir que se feche, é necessár~a sentiram muito a cotidiani dade. Aspiram a entrar nela, mas
nada menos que a conquist a da cotidiani dade, por uma séne não sem recuar um pouco antes de entrar; conhecem o cotidiano
de ações- investime ntos, assaltos , transform ações- que 5a~­ apenas através da família, como possibilid ade longínqu a, em
bém devem ser conduzid as de acordo com uma estrategta . preto e branco. Para uso deles funciona m uma ideologia , uma
Somente o futuro dirá se nós (os que quiserem ) reencontr are- ~
I
mitologia da idade adulta: a maturaçã o junta os Pais, reúne a
mos assim a unidade entre a linguage m e a vida real, entre a Paternida de e a Maternid ade, a cultura e a resignaçã o.
ação que muda a vida e o conhecim ento. Passemos aos intelectua is. Eles estão aí. Têm profissão ,
Essa tese coerente e lógica abre-se ao mesmo tempo para mulher, filhos , emprego do tempo, vida privada, vida de traba-
uma ação prática. No início , contudo, ela supõe .u~ ato, ou lho, vida d e lazeres, habitação aqui ou ali etc. Estão dentro,
melhor, um pensame nto-ato. Para conceber o condtano , para mas um pouco marginai s, de modo que pensam e se conside-
tomar em considera ção a teoria da cotidiani dade, há .algur:nas ram fora e em outros lugares. Têm os procedim entos bem apro-
considerações prelimina res: primeiro fazer ~m~ es~ág1~,. vtver vados de evasão. A seu serviço têm todos os álibis: o sonho, o
nela - em seguida rejeitá-la e tomar uma diStancia crmca. A ,. imaginár io, a arte, o classicismo e a alta cultura, a história. E.
ausência dessa dupla condição torna impossív el a compr~ensão muito mais. Eles podem admitir como "ciência da sociedad e",
e suscita os mal-entendidos. A partir deste ponto , o dtscurso ou "ciência da cidade", ou "ciência da organiza ção" a soma
sobre o cotidiano dirige-se a surdos, dos quais os piores são dos procedim entos pelos quais a prática social e a vida cotidiana
aqueles que não querem ouvir. ~ são submetid as às pressões, aos condicio namentos , às "estrutu-
Pesa sobre as mulheres o fardo da cotidiani dade. E prová- ras" e programa s. A honestida de intelectu al desse "operaci ona-
vel que tirem vantagem disso. Sua tática: inverter a situação. lismo" não se impõe. Os mais sérios entre os teóricos dessa cor-
Nem por isso deixam de agüentar a carga. Acontece que , em rente trazem à baila os subsistem as, os códigos parciais por
85
84
e a poe-
iza a J:?e fato, não adm~~im?s as cisões entre o conh ecim ento
meio dos quais a socie dade exist ente se organ iza e organ o sta, nem entre a ctenc ta e a ação, entre o abstr ato e o concr eto
ou orden s próxi mas: negat ivo:
cotid ianid ade segun do uma ordem entre o imed iato e as mediações, entre o positivo e o
, o turism o , a cozi-
mora r e a mora dia, a mobí lia , o horós copo entre a afi~ma~ão e a crítica, entre o~ fatos e as aprec iações,
a publi ca-
nha , a moda , todas ativid ades parci ais que dão lugar entre o ob;et o e o sujeit o. Mas sem deixa r de assin alar a cada
hone stos limit am-
ções, tratados, catálogos, guias. Esses teóricos ocasião a insuficiência dessas categ orias filosó ficas (ao mesm o
ão a ordem dista nte
se a si mesm os . Eles recusam pôr em quest temp o _que su~ .utili dade e sua neces sidad e). Em outra s pala-
o geral . Cien-
e omite m o fato impo rtant e: a ausên cia de códig vras, nao admt nmos a separação, e isso em virtu de de
um ato
s de discu rso,
tificismo e positivismo forne cem excelentes tema de pens amen to const itutiv o, inaug ural, não despr ovido em sua
atism o,
excelentes álibis que são opost os e se supõ em: o pragm do seqüê ncia de argum entos teóricos e práticos. Àque les que toma m
lado , e,
o funcionalismo e o ativismo opera ciona l, de um essa afirmação com? um P?Stulado, e que ratificam a separ ação
dos espe-
outro , o aban dono e a entre ga dos probl emas às mãos em nome de. um ngor epist emol ógico , desej amos que mant e-
ment o
cialistàs. Para os que suste ntam essa ideol ogia, todo pensa nham essa amud e até o fim, sem capit ular diant e das desgr a-
uma aber-
crítico, todo prote sto e conte staçã q, toda pro·c ura de ças de sua consciência dilac erada , sem ceder ao torm ento da
" revel a utopi a. E como eles têm razão! filosofia.
tura sobre "outr a coisa
nalism o: unida de, postu lado da filosofia e tamb ém da derro ta da
Têm para si mesmos uma certa razão , um estre ito racio longa
se fazia a . ~ ~ão te~hamos med? de evoc.ar brevement e uma
o racionalismo deles! Não era essa a objeç ão que hts.tona .. ~n.ngamente. a vtda era miserável, estrei ta, opres siva.
a Saim -Sim on, dura nte o sécul o
Marx, assim como a Fouri er ou com Remo dtvtd ldo em mtl feudo s, a terra tinha como rei e como
ão que não se come nta
XIX? Efeti vame nte, toda reflex e essa opres -
com aceita r os pode res e lega- r~inha Deus ~ a Morte. No entan to, essa misér ia
refletir, com ratificar as pressões, sao nunc a detxavam de ter estilo. Relio- ioso em sua essência
utopi a.
lizar a força das coisas, toda outra reflexão conté m uma ou metafísico (que impo rtânc ia tem o fund amen to da ideolo:
de inserç ão na prátic a
Isso significa que ela procu ra seu pomo idi- gia?), o estilo reinava, impr egna ndo até ao mínim o detal he.
polít ica que não coinc
e não separ a o conh ecim ento de uma A histó ria, se fosse conta da, diria como as pesso as vivia m mal
ria com a do pode r em vigor. velh~
res- mas d e mane ira calorosa e quen te (hot) . Desd e esse bom
Utop ia? A esse epíte to, a essa injúr ia, a essa melo péia temp o houv e muito ''prog resso ''. A trivia lidad e
cotid iana,
Todo s utopi stas, inclu sive você, ianid ade
pond erem os: "Mas é claro! quem não a prefere à fome , e não desej a uma cotid
que
desde que não seja inteir a e cegam ente subm isso, desde ro.'' aos povos da India? A "segu rança social", mesm o forte e o
ment e
seja um execu tante , um esbir dono
você d eseje outra coisa e não buroc rática , pode ser consi derad a melh or que o aban
a a ela,
- '' Dogm atismo! Você dá uma defin ição e se agarr amos des~mparo no ,r,eino da dor. De acordo. Não se trata
de nega r
s!'' Claro que não. Cheg ida, o
tiran do conseqüências desm edida os progr essos , mas de comp reend er a sua contr apart
consu mo
a essa defin ição, ou seja, a "soci edad e buroc rática de preço que custa ram. Não há com que ficar pasm ado
diant e
defin ições propo stas; já
dirig ido '', levando em conta outra s do espet áculo deste plane ta, onde o reino da mort e recua mas
ment os, que não pre~i são:
enum eram os seus argum entos e seus funda
relati va nossa própr ia sim diam~ do terror nu~lear (que tem a vanta gem da
parec eram sólidos. Aind a mais: dei.xamos pode ser snua do e espectficado! ). Não devem os ceder
às nosta l-
a, ela destr uiria
defin ição. Se fosse dogm ática , plena e inteir ~ias, mas explicá-las, e explicar como elas inspi ram uma "crí-
os enga-
toda esperança e fecharia qualq uer abert ura. Ora, estam ttca de direi ta" da nossa sociedade, uma consc iência boa e
staçõ es que
jados em most rar o irredutível: conflitos, conte uma consciência má, semp re meno sprez ando as possi bilida des.
lhas. "Li-
impe dem o fecha ment o e causa m racha duras nas ·mura A~ estão indag ações simp les (mas concretas)
e quest ões
injúr ias.
teratura! Poesia! Liris mo!" Aí estão agora as supre mas que, altás, não tratar emos aqui em toda a sua ampl itude . Por
Defe sa
Mais suti:lmente, essa injúr ia se escreve: "Sub jetivi smo! que acontece de ser restau rado o centr o das cidad es, mais ou
ntism o! ''.
da subje tivida de e do sujei to ultra passados! Roma
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no mercado) aos intelectuais, aos técnicos, às p essoas bem situa-
menos abandonado, podre, deteriorado? Por que as pessoas
d.as e ~o poder. A consciência tranqüila, racionalizada, institu-
de cinema e de teatro, assim como os grandes burgueses cultos, cwnaltzada pe.la ~iência e burocratizada em seu nome, pode
deixam os "bairros nobres" e os "subúrbios residenciais" para haver algo mars fero que ela? Não hesitemos em unir a avalia-
se instalar nesses núcleos reconstituídos? A cidade e o urbano ção ~A co-':ltestação: estamos segurando um fruto podre da árvore
correm assim o risco de se tornar a riqueza suprema dos privile- da crencr~. D esde sempre as elites fazem do saber a sua justifi-
giados, o bem de consumo superio~ que confere um certo sen- cação. Pors contra essa ciência levantemos a nossa.
tido a esse consumo. Por que as pessoas " que estão bem de
Quantas contradições emergem nessa sociedade da esuu-
vida'' se precipitam sobre as antigüidades, sobre os móveis de
tura e da .estrutur_ação, do fuAnci?nalismo, do racionalismo apli-
estilo? E por que essas multidões nas cidades italianas, flamen- cado, ~a rntegraçao, d~ coerencra! Antes de mais nada, está aí
gas, espanholas, gregas? A organização turística como modali- o conflrto que se arualrza entre a necessidade de sério, de rio-or
dade de consumo e de exploração dos lazeres, o gosto do pito- (E por que bater em retirada diante das palavras forres? D i:.a-
resco e do produto de "qualidade" não conseguem explicar n:os também nece~ida?e d e veracidade e de verdade?) e a ausên-
tudo . Há alguma outra coisa. O que seria? Seriam as nostal- cia de qualquer c.nténo absoluto, ~e. referência que permita a
gias, a ruptura do cotidiano, o abandono da Modernidade e COJ?~reensao e o JUlgamento, de codigo geral. E depois vem a
do espetáculo~de si mesma que ela oferece a si mesma , o recurso soltdao, celebrada em canções e em silêncios, que contrasta amar-
ao passado. E precisamente para não cair nessas nostalgias e gamente com a enorme abundância de mensagens, de informa-
nesse passadismo que é preciso compreender. Isso conduz a ções, de '_'notícias" . A "segu~ança" ou os "seguros" adquirem
um conhecimento comparativo, a uma história da vida coti- um valor Imenso e desmesuraao, um sentido humano considerá-
diana . Essa história possível e indispensável corre o risco de per- vel, no mundo da aventura cósmica e do terror nuclear. As faça-
der-se em minúcias descritivas (os objetos) ou nos mal-entendi- n~as fabulosas (em custo social, em tecnicidade) para salvar uma
dos , se ela não se prender ao global em cada sociedade, para cnança doente ou uma pessoa ferida, para prolongar a agonia
cada época, isto é, as relações sociais, os modos de produção, de algué~ .. não comr~.tam com os genocídios, com a situação
as ideologias. dos .hos~Itais, da medrcma, da venda de remédios? A satisfação
A história do cotidiano compreenderia pelo menos três e a msansfação andam l~do a lado , se afrontam segundo os luga-
partes: a) os estilos; b) o fim dos estilos e os começos da cul- res e as pessoas. O conflrto não aparece sempre nem é dito. Evita-
tura (século XIX); c) a instalação e a consolidação da cotidiani- se falar d ele e torná-lo manifesto. Mas ele está aí constante
dade, que mostraria como o cotidiano se cristaliza há mais de latente, implícito. Tiraríamos daí o inconsciente o 'sio-nificant~
um século, com o fracasso de cada tentativa revolucionária. "desejo" escondido sob os significados? Não é, preciso ir tão
Desse fracasso ele é efeito e causa. Causa, porque é obstáculo, longe, estamos falando do cotidiano.
dique, balaústre; é em torno dele que a existência se reorga- Numerosos sociólogos dão a entender que a classe traba-
niza depois de cada sacudida. Efeito, porque depois de cada lhadora, em escala mundial, prefere a segurança; a segurança
fracasso (o mais grave foi o da· Libertação) as pressões e opres- do emprego, às aventuras revolucionárias. Ela teria "escolhi-
sões apertam o cerco. do'' ou ''optado'' , abandonando sua missão histórica. Afirma-
A ciência não deve recuar diante dos temas e problemas ções suspeitas, a última mais ainda que as outras. Se isso é ver-
propostos pela práxis sob pretexto de que eles são pouco rigoro- d~de.' deve-se ~ insta~ração do cotidiano, a instalação na coti-
sos. Por que não considerar o jogo um objeto da ciência? Por dla;ud.ad:, .mu1~0 m~1s d<;> que à satisfação "escolhida" de pre-
que deixar aos filósofos o lado lúdico da vida social, enquanto ferencia _a ms~nsfaçao cnadora. Mesmo que haja aí uma ver-
os sábios estudam já as estratégias e os jogos formalizados? dade, · nao sena uma das contradições atuais? .O proletariado
Inversamente, o saber não tem o direito de fornecer a consciên- não pode abandonar sua missão histórica sem renunciar a si
cia tranqüila (mercadoria sem peso, transportável, bem cotada
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mesmo. Se ele "escolhe" a integração à sociedade gerida pela
burguesia e organizada segundo as relações de produção capita- de'' substancial as brumas verbais que flutuam nessas rachadu-
lista, ele abandona sua existência de classe. Para ele, a integra- ras ou nesses abismos.
ção coincide com a desintegração. Ora, o suicídio de uma classe O fim, o objetivo, a legitimação oficial dessa sociedade é
dificilmente se concebe e se realiza ainda mais dificilmente. a satisfação: ~ossas necessidad es conhecidas, estipuladas são
Que é que vemos? Uma sociedade inclinada tática e estrategi- ou serao sansfenas. Em que consiste a satisfação? Em uma satu-
camente para a integração da classe operária atinge em parte ração tão rápida quanto po~sível (quanto às necessidades que
esse objetivo (pela cotidianidade organizada repressivamente podem ser_ pagas). A necess1dade se compara a um vazio, mas
de acordo com opressões, pela ideologia persuasiva do consumo, bem defimdo , a um oco bem delimitado. O consumo e o con-
mais ainda que pela realidade desse consumo), mas perde, por sumidor en:he~ esse v~zio, ocupam esse oco. É a saturação.
outro lado, toda capacidade de integração desses elementos: ~o~o que atmgida, a sansfação é solicitada pelos mesmos dispo-
juventude, etnias, mulheres, intelectuais, ciências, culturas. smvos que engendraram a saturação. Para que a necessidade
Levando o proletariado a renunciar-se a si mesmo, promulgando se torne rentável, é estimulada de novo, mas de maneira um
esse haraquiri , o neocapitalismo se suicida enquanto sociedade. pou~uin~o diferente. As necessidades oscilam entre a satisfação
O proletariado o arrasta em sua ruína. e a msatiSfação, provocadas pelas mesmas manipulações. Desse
Tomemos ao acaso, entre as contradições desvendadas, modo , o_ cor:_sum? organizadc: não divide apenas os objetos
esta aqui: de um lado , a degradação do lúdico , o espírito de mas a sansfaçao cnada pelos obJetos. O jogo em torno das moti-
lerdeza na programação do cotidiano, na racionalidade organi- va~ões as desmente e destrói, _na própria medida em que pode
zadora - e do outro, a d escoberta científica do acaso, do risco , agu sobre elas. Mas nem por Isso confessa a regra desse jogo.
do jogo , da estratégia, no coração das forças naturais e das ati- De fato e. em verdade (mas quem o ignora? ) paira um
vidades sociais. mal-estar. A sausfa~ão general_izada (em princípio) faz-se acom-
O estudo desse nível fundamental - o cotidiano - faz panhar de uma cnse generalizada dos ''valores'', das idéias,
então aparecerem contradições novas , de importância diferente , da filosofia, da arte, da cultura. O sentido desaparece, mas rea-
mas numa escala global. Uma das mais importantes situa-se parece de outra forma: há um vazio enorme o vazio de sen-
entre a ideologia da tecnicidade e os mitos da tecnocracia , de tido, que nada vem encher, a não ser a retóric~, mas essa situa-
um lado , e de outro a realidade do cotidiano. A mais grave se ção tem um sentido, ou vários. O primeiro deles não seria que
determina como conflito entre o conjunto das opressões, consi- a "saturação"_ (das necessidades, dos " meios", dos tempos e
deradas como constitutivas de uma ordem social e de um plano, dos espaços) nao pode fornecer um frm , que ela não tem final.i-
o cotidiano, e a ideologia da Liberdade mantida como aparên- d~d~, q:re ~1~ é desprovida de significação? Não é necessário
cia, apesar de todas as opressões e repressões reveladoras de drsungurr nmdamente satisfação, prazer e felicidade? A aristo-
um trajeto e de um projeto muito mais essenciais. cracia atingiu e soube definir o prazer. A burguesia mal conse-
gue chegar à satisfação. Quem dirá, ou quem dará a felicidade?
. Q~antas obras recentes giram em torno do cotidiano para
2. Os fundamentos do mal-estar expnm1r esse mal-estar! Há dezenas de anos, todas as obras
de valor o confirmam aberta ou indiretamente. Na "crise"
Esta sociedade traz em si própria a sua crítica. A distância mais ou menos permanente do teatro, do cinema, da literatura,
crítica indispensável para compreendê-la, os conceitos críticos da filosofia, só conseguem uma atenção duradoura essas obras
necessários, ela os indica sem formulá-los nem exprimi-los características, qualquer que seja o sucesso das outras. Umas
:/
como críticos. Para percebê-los basta verificar as lacunas da prá- d~screvem com uma minúcia sádica (ou masoquista) a cotidia-
tica social e não tapar os buracos entendendo como '' realida- mdade, ou então a d~amam. Outras tentam restituir o trágico
que desaparece na satisfação, desmontando os dispositivos que
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Onde vai essa socied ade com suas modif icaçõe s, cujo cará-
provoc am ou confir mam essa aparen te satisfação. Através do ter pouco profun do contra sta com a preten são à mudan ça per-
que resta de cultur a (por fora do que é oficia lmente '' cultu- pétua que passa por essencial no "espír ito mode rno"? Nem
ral"), o mal-es tar ineren te a essa socied ade torna- se també m ela sabe. Talyez procur e a fuga para a frente , de olhos fecha-
um fato social e cultur al. dos, às apalpa delas, n o túnel, à noite , espera ndo encon trar a
Essa so~iedade conhece, já dissemos e escrevemos, um cres- saída do labirin to, se não ficasse patina ndo no mesm o lugar.
cimen to (econômico, quanti tativo , medid o em tonela das e em Mas não, não se trata apena s de patina r: trata-s e da autode strui-
quilôm etros)· notável e um desenv olvim ento fraco. As relações ção no própri o lugar em que se encon tra.
sociais consti tutivas (estru turada s-estru turant es), isto é, as rela- Não nos detenh amos sobre a devora dora destru ição, pelo
ções de produ ção e de propri edade que subor dinam a socie- consu mo maciço, das obras, dos estilos, da ane , da cultur a pas-
dade a uma classe (cham ada burgu esia), à qual atribu em ages- sada. Exami nemos de mais perto o dispositivo ineren te a esse
tão dessa socied ade, pouco mudar am, a não ser em função da consu mo. A obsolescência foi estuda da e transf ormad a em téc-
estraté gia de çlasse (a consolidação do cotidia no). O que a estra- nica. Os especialistas da obsolescência conhe cem a espera nça
téo-ia de classe visa não é o desenv olvim ento, mas o " equilí- de vida das coisas: três anos, um banhe iro; cinco anos, uma
brio" e a "harm onia" do cresci mento como tal. O desenv olvi- sala de estar; oito anos , um eleme nto de quarto de dormi r;
mento , a complexidad e crescente e o enriqu ecime nto das rela- três anos, a organi zação de um ponto de venda local, um ca~ro
ções svciais, inclui ndo as da vida urban a, se relega m no '' cultu- etc. Essas média s estatísticas figura m na demog rafia dos obJe-
ral" e, por essa razão, se institu cional izam. Daí em diante , ao tos em correlacão com os custos de produ ção e os lucros . Os
domín io técnico sobre a nature za materi al não corres ponde esc~itórios que ~rganizarn a produ ção sabem levá-las em conta
uma apropr iação pelo ser huma no de ._seu próp~io ser natura l para reduzi r a espera nça de · vida, para aceler ar a rotação dos
(o corpo, o desejo, o tempo , o espaço). A contradição entre ~res­ produ tos e do capita l. No que se refere ao autom óvel, o escân-
cimen to e desenv olvime nto se sobrep õe então uma contra dição dalo atingi u propor ções mundi ais.
mais grave e mais essencial entre domín io (técnico) e apropria- A essa teoria agora bem conhe cida acrescentaremos duas
ção. Essas proposições, que não são novas , só adqui rem seu
sen- observações. Em prime iro lugar, a obsolescência da nece~sidade
tido pleno se lhes especificamo s os tempo s . O cresci7nento coa- deveri a també m ser levada em conta. Aquel es que mamp ulam
cerne ao processo de indust rializa ção, e o desen volvim ento coa- os objeto s para torná-los efême ros manit :uiam tamb_ém as moti-
cerne à urbanização. Air0sso ver (já demos e darem os argum en- vações, e é talvez a elas, expressão social do deseJO, que eles
tos), a urban ização contém o sentid o da industri~ização ;. este atacam , dissolvendo-as. Para que a usura "mora l" e a obsoles-
último aspecto do processo global torna- se essencial depois d e cência das coisas trabal hem rapida mente , é preciso també m
um lono-o períod o que o subord inava ao prime iro; a situaç ão que as necessidades envelh eçam, que jovens necessidades as sub~­
se inver~e, mas a estraté gia de classe manté m essa subord inação , tituam . É a estraté gia do desejo! Em segun do lugar, a capao~
provoc ando assim uma situaçã o intoler ável, uma crise da cidade dade produ~ora tornaria_ possível desde agora ~ma extrema, ~ob~­
que se acrescenta a todas as outras crises perma nentes . lidade da vida, dos obJetos, das casas, das cidade s, do habi-
Essa sociedade traz em si mesm a os seus limite s, os do tar" . A "vida real" poder ia deixar de estacio nar na cotidi ani-
capita lismo, que não são os limite s da produ ção capita lista pro- dade. A obsolescência, ideolo gia e prátic a, encara o efême ro
priam ente dita. Não podem os por nenhu ma razão, em nenhu m apena s corno métod o para tornar o cotidi ano rer:tável. Ness_a
nível, aceitar e ratificar o economz"smo. Ele é falso porqu e des- perspectiva, um contra ste, ou melho r, uma contradi~ão_ se roam-
denha o que consti tui uma socied ade. O que não é uma razão festa entre o duráv el institu ído, "estru turado " obJeti vamen te
para compl etá-lo com um filosofismo ou um sociologismo tam- (segun do urna lógica das forma s, er:tre o_urras, tudo_ o q ue se
refere ao Estado e à admin istraçã o, mclum do a da cidade , do
bém limita dos.
92 93

morar e do hábitat concebidos como estáveis), e o efêmero '_'Que~ é você? Aprenda a se conhecer" . Psicologia e psicaná-
manobrado, que consiste numa deterioração rápida dos objetos. liSe deiXam de s7r conh_ecimento clínico e terapêutica para se
O efêmero não suportado, mas desejado, querido, qualitativo, transformar em tdeologta. Observa-se facilmente nos Estados
com seus lados agradáveis, não é o monopólio de uma classe Unidos _essa ~udança. Essa ideologia pede uma compensação,
· social, essa que faz a moda e o gosto, essa que tem o mundo o oculnsmo. E possível estudar metodicamente os textos dos
por espaço. Quanto à deterioração das coisas (quantitativa, ava- horóscopos, de fazer um repertório dos seus temas, considerando
liável em tempos quantificados, e suportada, não querida, não esses texcos ~m corp_us (um c~njunto coerente e bem definido).
desejada), ela faz parte de uma estratégia de classe que visa à Pode-se emao e:crrau do conJ~nto dos horóscopos um sistema
exploração racionalizada, embora irracional como procedimento, (e, por consegumte, u:n subsiStema na nossa sociedade). Não
do cotidiano. O culto do efêmero revela o essencial da Moder- tentaremos essa formalização. Contentamo-nos com assinalar a
nidade , mas revela-a como estratégia de classe 1 . Em plena con- p_ossibilidade. El~ passa ao lado do nosso problema, que é 0 fun-
tradição com o culto (e a exigência) da estabilidade, do equilí- Cionamento do Sistema. Dos horóscopos, que é que as pessoas
brio, do rigor durável... esper_:un? C_o~o e por que elas se dirigem a esses textos? Que
Essa sociedade pretende ser e se diz racional. Ela põe em atraçao as dmge? Como Interpretam as indicações? Que acolhida
primeiro plano os "valores" de finalidade. Organiza-se com dão aos temas? Será que as pessoas não estabelecem uma zona
todas a.s forças , o tempo todo. Estrutura-se , planifica-se, pro- d~ ambigüidade, metade representação, metade sonho , embora
grama-se. A cientificidade alimenta as máquinas (de quê? onentada para a ação, justificando as táticas individuais, de tal
como?). Esse detalhe não tem importância, desde que haja modo que os interessados creiam e não creiam no que dizem,
computador, cérebro eletrônico, calculadoras IBM n~ Tanto , mas fazem como se cressem, enquanto inclinam os vaticínios
programação. Cozinhas de qualidade inferior passam como a de acordo com seus gostos, sentimentos ou interesses? ...
última palavra da ciência, e o primeiro imbecil que aparece, Essa seqüência de interrogações não autoriza a esquecer
dizendo-se "especialista" , goza de um prestígio ilimitado. Ora, que os textos de horóscopos contêm os restos de uma visão do
o irracionalismo não pára de se agravar. A mais modesta pes- mundo: o zodíaco, as constelações, os destinos inscritos nas
quisa sobre a vida real das pessoas revela o papel das cartoman- e~trelas, o firmame~uo como escrita div~na, decifrável pelos ini-
tes, dos feiticeiros e curandeiros, dos horóscopos. Aliás , basta Ciados,_ao uso dos Interessados. Vasto simbolismo que inspirou
ler a imprensa. Tudo se passa como se as pessoas não tivessem a arqultetura! que se lê em muitos monumentos, que resume
nada para dar um sentido à sua vida cotidiana, nem mesmo uma topologia (demarcação e orientáção do espaço, projeção
para se orientar e dirigi-la, posta de lado a publicidade. Recor- do tempo no espaço cósmico e social, o dos pastores, dos cam-
rem então às velhas magias, às feitiçarias. Tentam sem dúvida poneses e, depois, dos urbanos) .
assim, por um caminho desviado , a apropnação (revelação e É possível que essa cosmogonia não esteja inteiramente
orientação) do desejo. A racionalidade do economismo e do esgotada? O papel privilegiado que ela atribui aos ciclos aos
tecnicismo revela assim seus limites, suscitando o contrário que Números que resumem os ciclos (o número 12 e seus rn'últi-
os completa "estruturalmente". Racionalismo limitado e irra- plos), parece indicar essa possibilidade. A vida cotidiana não
cionalismo invadem o cotidiano, enfrentando-se, cada um colo- sai da zona mista entre os ciclos e o tempo racionalizado, linear.
cando o espelho diante do outro. T~do leva a crer qll:e _hoje em dia surge da cotidianidade opri-
Na cotidianidade e no que a informa (imprensa , cinema), mida uma nova reltgtão do Cosmos. Ela se situa afetivamente
vê-se que proliferam o psicologismo e os testes do gênero: (irracionalmente) entre dois pólos: num extremo, os horósco-
pos - no outro, os cosmonautas, seus mitos e sua mitologia,
a explora~~o. publicitária d_e suas vitórias, a exploração do espaço
1
Cf. Ut opie. n ~ 1. pp. 96-107. artigo de). Aubcrc. notas dcJc:an Baudrillard. e os sacnficzos que ela exige. Diante dessa religiosidade renas-
95
·9.4
A menor das análises mostra que há duas espécies de lazer,
cente do Mundo (ou antes, do Cosmos), par~ce-?os ver nascer
bem distintos, "estrutura lmente" opostos:
uma religião mais " humana" (entre aspa~ uômcas) , comple-
mentar e compensat ória, do Eros. O eronsmo torna-se obse- .aJ O lazer integrado na cotidianida de (leitura de jornais,
dante, 0 que confuma apenas em aparência uma virilid~de revi- televisão etc_.), que deixa uma insatisfação radical, que se inte-
gorada (ou uma "f~minil~dade"), b:m com~o UJ!la maJ.<?r capa- ressa. pela Si~uação daquele senhor .kierkegaardiano que rasga
cidade para a volúpia. Facilmente venamos ai o Sintoma mverso: seu JOrnal diante da mulher e dos filhos, gritando: "Coisas
possíveis! Coisas possíveis!' '. ·
desvirilização e desfeminiz ação, frigidezes não superadas mas
tornadas mais conscientes, exigência de uma compensaç ão . A b) A espera da partida, a exigência de uma ruptura , a von-
tade de uma evasão: o mundo, as férias, o LSD a natureza a
reliaião do Eros parece confirmar uma tendência a reconstitui
b
es que
. r
danam festa, a loucura. ' '
as proibições antigas para recriar as transgressõ
um sentido (desapareci do) aos atos eróticos. Daí vem o número
impression ante de estupros coletivos, de r~tos sádi~o~ e _maso-
quistas . As proibições se prolongam no se10 da condiamda de, 3. Quatro passos dentro do imaginário
mesmo quando suas justificações ideológicas desaparece m. Basta
No decorrer de seus tateamento s experimen tais e concep-
evocar aqui os obstáculos psíquicos, psicológicos (reais ou fictí-
cios), ideológicos, políticos opostos ao uso de anticoncepcionais. tuais, a filosofia e a sociologia contemporâneas descobriram
alguma coisa: o imaginário social, distinto da imaginação indi-
A apropriação pelo ser humano do seu desejo acha-se suspensa
vidual e também dos grandes simbolismo s herdados d os estilos
a meio caminho entre o real e o possível, na transição entre a
desaparecid os 2 .
ação prática e o imaginário . Ela se choca também contra as
repressões fundament ais, a começar pela ligação ideológica, reli- A melhor ilustração desse imaginário social não a encon-
giosa na sua raiz (isto é, ligação que sanciona e consagra o fato tramos num determinad o filme ou numa determinad a obra de
ficção científica, mas na imprensa feminina. O imaginário e a
fisiológico e o determinis mo cego), entre fecundação e ato
prática interferem nos semanários destinados em princípio ao
sexual . Persistindo esse fundamen to religioso, é para uma reli-
renovada que deriva e se desvia uma sexualidad e público feminino. A leitora e o leitor ficam meio perdidos. O s
uiosidade
b .
mesmos fascículos contêm sobre os objetos indicações precisas
para a qual a prática social proíbe encontrar a aproprzação. (como confeccionar por coma própria um determinad o modelo ,
Contrarian do-se, opondo-se , implicando -se , misturam-s e o preço e o lugar de compra de um outro) e a retórica pela
de um lado a satisfação, a procura obstinada do estado "satis- qual esses objetos são dotados de uma segunda existência. Há
feito" , e , de outro, a insatisfação , o mal-estar. O consumo de todas as roupas (possíveis e impossíveis), todos os pratos e todas
espetáculo torna-se espetáculo do consumo. O consumo devora- as iguarias (das mais simples às que exigem uma qualificação
dor du passado (obras de arte, estilos, cidades) , a saturação profissional), todos os móveis (dos que preenchem funções tri-
rápida e o tédio se encadeiam . A partir daí, como não aspirar viais aos que ornam palácios e castelos), todas as casas, todos
à ruptura? Como não querer fugir do cotidiano? Bem enten- os apartamentos. E ainda os códigos que rirualizam e tornam
dido, esse desejo, essa aspiração, essa ruptura e essa fuga são práticas essas ''mensagen s'', programan do o cotidiano . Cada
rápida e facilmente recuperáveis: organizaçã o do turismo, insti- um e cada uma lê à sua maneira, situa de acordo com os seus
tucionalização, programaç ão , miragens codificadas, colocação gostos o que lê no concreto ou no abstrato, no pragmático ou
em movimento de vastas migrações controlada s. Daí decorre a no sonho. Cada um sonha com o que vê e vê aquilo com que
autodestrui ção do objeto e do objetivo: a cidade pitoresca, a
região turística , o museu desaparece m sob o afluxo dos consu- 2
Entre os exploradores do imaginário social, podemos citar ao acaso: G. Bachelard,
midores, que acabam consumind o apenas a sua própria pre- J. · P. Same, E. e V. Morin, R. Banhes, Jean Duvignaud, H. Raymond . Sem esque·
sença e a sua própria acumulaçã o. cer aqueles cuja lista seria longa: autores de teatro e de ficção científica, cineastas c: te .
96 97

sonha. Do mesmo modo, a literatura e a publicidade se distin- aproxima-se do limite superior. Ela é menor para o habitante
guem pela montagem (a maneira de organizar as páginas) que de setores de pavilhões, menor ainda para o citadino bem insta-
utilizam para chamar a atenção. A retórica publicitária é freqüen- lado que vive num núcleo urbano. Apropriação e pressões têm
temente mais escrita (e melhor) que a literatura. A obra literá- relações confli~osas e complexas. Quem diz apropriação diz pres-
ria apela para os mesmos procedimentos que a escrita publicitá- são dominada, mas o domínio técnico dos determinismos "natu-
ria e tem a mesma função metafórica: tornar ''apiixonante'' rais'', ainda qtie necessário , não é suf"1ciente. Pode-se dizer, ·a
(sem paixão) o desinteressante, transcrever o cotidiano no imagi- grosso m?do , que , quanto mais p_ressões há (e pressões organiza-
nário, obrigar o consumidor e a consumidora a arvorar o sorriso das, codiÍ!cadas), menos apropnação. Não é uma relação de
de felicidade. Os textos introduzem em cada vida cotidiana (a inversão lógica, mas de conflito dialético. A apropriação capta
vida de cada leitora e de cada leitor) todas as vidas cotidianas as pressões, altera-as, transforma-as em obras.
possíveis, e alguma coisa a mais que a vida cotidiana: a vida
louca (ou julgada louca) das personalidades olímpicas, a felici- NÍVEIS DE REALIDADE SOCIAL
dade possível. Que as mulheres lêem a parte prática desses tex-
tos acerca da moda imaginária, e a parte imaginária (que com- Estr~tégias do e poder de oposição. Perspectivas e pros-
p ecavas.
preende a publicidade) acerca da moda prática, isso podemos Conhecimento conceitual e teórico (descendo novamente
estabelecer. Esse fato reaFirma nossa tese de um nível ou plano { p ara a prática)
de realidade, no ponto em que uma análise superficial verifica
e formaliza setores justapostos (a moradia, a alimentação, a
roupa e a moda, a mobília , o turismo, a cidade e a urbanidade
etc.) , sendo cada setor regido por um sistema e constituindo Ideologias da propriedade, da racionalidade, do Estado
uma entidade social. Veríamos aí subsistemas que permitem Representações Sistemas de valores (ética e moralismo, estética e estecismo,
organizar funcionalmente a cotidianidade, sujeitá-la a pressões e ideologias pattems e modelos, ideologias que se dizem não-ideoló-
pouco desinteressadas. N osso objetivo, é preciso lembrar, é mos-
trar aqui que não há sistema da cotidianidade apesar dos esfor-
ços para constituí-lo e fechá-lo . Há som ente subsistemas separa-
dos por lacunas irredutíveis, e no entanto situados sobre um
plano ou ligados a esse plano.
(''cultura''
fragmentada)
1 gicas: cientificismo, positivismo, estruturalismo, funciona-
lismo etc.). Subsistemas organizadores e justificados por
"valores".

Ideologia do consumo
A análise , sobre a qual não nos deteremos no momento,
{ Publicidade como ideologia
fornece o quadro das páginas 97 e 98.
Comentaremos esse quadro, incluindo nossas observações
entre os argumentos a seu favor e as provas. Ele não é incompa- Ilusões e mitos ligados à ideologia e à retórica correntes
tível com o código tridimensional (cf. Le langage et la société,
cap. VII), isto é, com a análise que distingue formalmente três
dimensões e a realidade expressa p elos discursos: os símbolos, IMAGINÁRIO (social) vocabulário função metafón'ca
os paradigmas, as ligações. São duas análises da m esma realida- (envolvendo a Linguagem oposições (da escrita)
imaginação { ligações função metonímica
de, uma segundo os níveis , a outra, segundo as dimensões. As individual e os { (do discurso)
pressões poderiam distribuir-se numa escala de O a 100, por simbolismos
exemplo. Para o habitante de um "grande conjunto" , isto é, coletivos) Retórica { das palavras
para uma modalidade de h ábitat urbano e uma modulação da · das imagens
cotidianidade particularmente significativa, a soma das pressões das coisas
99
98

································· ······ ··· ········ ································· ··· ············ curso de segundo grau sobre a arte e a estética, ilusória apropria- .
Invescimemos afetivos que reforçam o imaginário ção, metamorfose fictícia do cotidiano, consumo verbal, tería-
ou ~e corporificam numa apropriação mos razões para situá-lo entre o imaginário e o ideológico. Isso.
depende da "qualidade" do discurso.
··· ·· ············ ······ ········ · ··········· ·· ······· ·· ···· ······· ········· ··· ·········· ······ ·····
O estilo foi ~propriação : _uso de objetos apropriados não
POÍESIS e PRÁXIS {Apropriação {corpo {".Valores:· em formação
(pelo ser huma- tempo ou em v1as de desapare- para uma determmada necessidade classificada, isolada como
no de seu espaço cimento: festa, lazer, tal, mas para o conj~nto da vida social. Que possa haver con-
ser natural) desejo espone. cidade e urba- sumo sem essa apropnação, por correspondên cia prescrita, termo
nidade, natureza etc. a termo, entre necessidades e bens, é o postulado da sociedade
dita de consumo ~ é a base de sua ideologia, e da publicidade
pressões como ideologia. E o p rin cípio suposto da satisfação.
Cotidianidade
(determinismos biológicos {múltiplos. mas É importante notar que o esquema apresentado aqui é
geográficos agrupados na
verificados por
{ eco n ômicos etc. dominação social reencontrado na análise dos "setores" de objetos e de ativida-
ciências. sub- des: roupas, alimentação, mobília, " habitar" ou "hábitat" e
jugados por da natureza, na
técnicas) prá.xis. sem dúvida também sexo e sexualidade. Ele se aplica à cidade
e à " urbanidade". Ao automóvel. Não se aplica literalmente
Os conflitos e problemas da cotidianidade remetem a solu- a cada subconjunto ou subsistema; a análise deve modificá-lo
ções con;-1itivas que se sobrepõem ~ solu ções reais, quando especificamem e para agarrar cada setor. Parece-nos que ele sub-
siste no essencial. Cada análise prescreve uma modulação do
estas são ou parecem impossíveis. A~s1:n os p~oble~~s. e a pro-
cura de uma solução transpõem o hm1ar do 1magmano. Entre esquema inicial para cercar, descrever e agarrar analiticament e
a prática e o imaginário se insere, ou melhor , se insinua o "in- um setor. Assim, podem ser reconhecidas aqui e ali pressões
vestimento''; as pessoas projetam seu desejo sobre estes ou aque- (mais ou menos aceitas) e apropriações (mais ou menos conse-
les grupos de objetos, estas ou aquelas atividades: a casa, o apar- guidas). Um certo número de objetos transpõem o limiar que
tamento, a mobília , a <:ozinha, a viagem de férias, a "nature- separa o nível prático do imaginário e se impregnam de afetivi-
za'' etc. Esse investimento confere ao objeto uma dupla existên- dade e de sonho, porque são ao mesmo tempo percebidos (so-
cia, real e imaginária. cialmente) e falados. Alguns chegam ao estatutO ''superior'' e
Quanto à linguagem como veículo do imaginário e as con- recebem uma sobrecarga ideológica. Dessa forma, a "casa de
tradições nesse nível, já examinamos o que se passa e voltare- campo" é praticada como uma possibilidade de apropriação
mos a falar disso. Há deslocamento , deterioração de símbolos, para o ' 'habitante' ', mas também sonhada, ideologizada. Assim
escorregamen to geral em direção ao sinal e às ligações sintagm~­ são, por exemplo, à sua maneira, a roupa (confecção normal,
ticas, em detrimento tanto d o simbolismo quanto das oposi- prêt-à-porter, alta-costura) ou os alimentos (cozinha ordinária,
ções. Enquanto houver imaginário esse deslocamento não será cozinha refinada, cozinha de festim ou de festa), cada nível
completo. Por outro lado, a metalinguage m, isto é, o discurso com seu contexto de imagens e seu comentário verbal. O ima-
no segundo grau, representa um papel compensador . ginário propriamente dito faz parte do cotidiano. Cada um
Pode-se afirmar que a arte · foi apropriação (do tempo, pede a cada dia (ou cada semana) sua ração de cotidiano. No
do espaço, do desejo). No nível do sensível, a obra m<;>delava entanto, o imaginário, com relação à cotidianidade prática (pres-
um tempo e um espaço, e isso às vezes numa escala soe1al; por são e apropriação) , tem um papel: mascarar a predominânc ia
exemplo, na cidade, a arquitetura e. os ~o:n~mentos. ~ esté- das pressões , a fraca capacidade de apropriação, a acuidade dos
tica se situaria sobretudo no nível do 1magmano, como d1scurso conflitos e os problemas "reais" . E às vezes preparar uma apro-
sobre a arte, interpretação e retórica. Q uanto ao estetismo, dis- . priação, um investimento prático.
-4 J_--Y--r::J ~
~
100 '{~'1-
êtro f s soei:.\. 101
· A publici a e nao fornece apenas uma ideologia do con- como " jovens" eles permanece m marginais . Não chegam a
sumo; uma representação do "eu" consumi_do~ , que se sat~sfaz formular seus quadros de valores, e menos ainda a impô-los.
como consumido r, que se realiza em ato e comc1de com sua Ima- Assim, o que eles consomem de maneira ao mesmo tempo nega-
gem (ou seu ideal). Ela se ~as~ia t:UU~ém na. exi~~ência ín_:a%iná- tiva e maciça são os objetos dos a~dultos que os cercam com sua
ria das coisas, da qual ela e a mstanc1a. Ela rmphca a retonca, a existência material e seus signos. E uma situação da qual decorre
poesia, sobrepostas ao ato de consumir, inerentes às represe~ta­ uma frustração profunda e múltipla, mal compensad a por afir-
ções. Ess"a retórica não é ap~nas verbal mas tam~ém mater_1al: mações brutais.
uma exposição de mercadona s numa rua do bamo de Sarn~­
Honoré um desfile de alta-costura não devem ser compreend i- Mais penosamen te ainda, a classe operária vive no meio
dos signos de consumo e consome uma massa enorme de sig-
dos co~o um discurso objetivo, como uma retórica das coisas?
nos . Sua cotidíanída de se compõe sobretudo de pressões e com-
Mas voltaremos a falar da publicidad e. No momento dedicamo-
porta um mínimo de apropriaçõe s. A consciência , nessa situa-
nos a captar os contornos do mal-estar e da insatisfação .
ção, se realiza no nível go imaginário , mas logo sente aí uma
O caráter decepciona nte do consumo tem múltiplas razões. decepção fundament al. E que as modalidad es de sujeição e de
Estamos longe de conhecê-las integralme nte. Aqui, entrevemo s exploração dissimulam à classe operária sua verdadeira condi-
alguma coisa. Não há separação por camadas ou cortes entre o ção. Ela não percebe que é facilmente explorada e subjugada
consumo do objeto e o consumo dos signos, imagens, represen- no plano da cotidianída de e do consumo, assim como no plano
tações de que o objeto fornece o meio e o suporte sensíveis. da produção. Já durante a bel/e époque, a estrutura d a produ-
O ato de consumir é um ato imaginário (portanto, fictício) ção e, por conseguint e , de sua exploração escapava à classe ope-
tanto quanto um ato real (sendo o próprio "real" dividido rária. A representaç ão (ideologia) da troca, "trabalho contra
em pressões e apropriaçõ es). Ele adquire então um aspecto salário'', dissimulav a as relações de produção, essas relações
metafórico (a felicidade em cada bocado, em cada erosão do estruturada s-estrutura ntes (a venda da força de trabalho, a pro-
obieto) e metonímic o (todo o consumo e toda a felicidade de p riedade e a gestão dos meios de produção por uma classe). A
co~sumir em cada objeto e em cada ato). Não seria grave se o par~ir daí as relações se obscurecer am ainda mais. A ideologia
consumo não se apresentass e a si mesmo como ato pleno, como do consumo acaba por encobri-las, o consumo serve de álibi
atualidade , inteiro à pane, sem trapaça, sem ilusão. Consumo para a produção. Logo de início, tendo se tornado mais com-
imaginário , consumo do imaginário -_ os textos de pu_blici- p leta, a exploração se cobre de um véu mais espesso. A classe
dade - e consumo real não têm fronteuas que os dehm1tem . operári~ não pode mais deixar de ser profundam ente decepcio-
Pode-se admitir que tenham uma fronteira móvel , transposta nada. E a primeira entre as camadas e classes sociais que sente
incessantem ente; apenas a análise discerne níveis. Não apenas essa frustração. Sua "consciência de classe" se restabelece com
os signos aureolam os bens, e os bens somente são "bens" por- dificuldade , e no entanto não pode desaparece r. Ela se torna
·q ue são afetados pelos signos, mas também o grande consu_mo "mal-ente ndido" das classes, mas, por essa razão, está presente
conduz aos signos dos ''bens'' sem esses bens. Como não senam em toda reivindicação. A reivindicação tende obscurame nte a
imensas a decepção e a frustração daqueles que têm pouco ultrapassar as questões de salário (que não desaparece m) para ·
m ais do q ue signos para pôr entre seus dentes vorazes ? Os "jo- se est ender à organizaçã o do cotidiano.
vens'' querem consumir agora. E rápido. O mercado foi logo
No que concerne às mulheres, já reconhecem os a ambi-
detectado e explorado, de modo que os ''jovens'' tend.em a
güidade da sua condição. Relegadas no cotidiano, elas fazem
se estabelecer numa vida cotidiana paralela, a deles, e única,
dele uma fortaleza e se esforçam mais ainda para sair, iludindo,
hostil à dos país, mas semelhante a ela o máximo possível.
porém, as implicaçõe s da consciência. Decorre daí um perpétuo
Eles marcam com sua presença e com seus ''valores'' os adul-
mas desajeitado protesto que só origina reivindicações pouco
tos, os bens dos adultos, o m ercado dos adultos. No entanto,
orientadas.
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"hab itan-
Quan to aos intele ctuai s, eles prend em no imag inário ,
lite- cio a palác io ou de um castelo a outro . Está acim a do
pico, criatu ra de sonh o,
ralme nte carregado pela retórica, a lingu agem e a meta lingu a- te''. Para~ comu m dos morta is, o Olím
muit o caro) do imaginá-
gem, um perpé tuo álibi que lhes perm ite esque cer a medi ocri- fornece as Imag ens sensíveis (vend idas
na. É uma outra coti-
dade da sua condição: nenh um pode r, pouc o dinheiro,
necessi- rio. O possível, todo o possível, se encar
hecid a: pisci na,
dade de passar pelas pressões e pelos mitos para subir algun s diani dade , mal conh ecida e, no entan to, recon néia:
da escal a social telefo ne branco, mesa de estilo. Mas há uma trans cendê
degra us e se empo leirar nos cabid es superiores fixado no
(escri tores de fama , grand es jornalistas, emin_emes técnic
os que o Olím pico não habit a mais. Quan to ao habit ante
le.' As classes
consu ltam as autor idade s etc.). solo, a cotid ianid ade o sitia, o imerg e, o engo m
elas se sente
dica- médi as se acom odam na satisfação. Acontece que
Resu lta . daí que o prote sto, a contestação e as reivin somb ra de
Cada um por sua . obscu rame nte rouba das. Não têm mais que uma
ções não cessam e não pode m desaparecer . sem influ ência : ~i~alhas de riq~eza , n~nhuma parce la
de pode r
stam , mas não
vez, esses grupo s parciais conte stam e prote nem _de pres~IglO .. Sua mane ira de viver parece ter conqelas têm
uista do
é a recusa
tenta r tirar parti do da situaç ão. O mais significativo a soCiedade, Inclu mdo a classe operá ria. Pode ser, mas
renov ados, de "jo-
opos ta pelos grupo s mino ritári os mas semp re ~e agora em diant e a mesm a mane ira de viver que
o prole ta-
sem esper ança,
vens ", a essa sociedade. Recusa total, globa l, nado . Com um pouc o mais de meios e algun s ganh
os suple-
s que recu-
sem futur o, absol uta, semp re recomeçada. Os grupo memar~s , o que comp õe estrat os e
não classes, como já foi dito
iolem os.
sam desdo bram -se, como se sabe, em viole mos e não-v rar e repen do. Ora, as classe s médi as, recus ando a quali dade de
e procu
A recusa supõ e uma tenta tiva de sair do cotid iano "clas se" aos operários, se atrib uem a si mesm as, em
confr onto
a vida"
uma outra vida que seja obra, aprop riaçã o. Essa "outr com o prole tariad o, um estat uto super ior, uma digni dade emi-
, droga s,
é expe rimen tada de diversas .man eiras: vaga bund agem nente , em resum o, uma consc iência de classe . Assim , elas ser-
signos de adesão e de cump licida de etc. viam estra tegic amen te a burgu esia (sem o saber ). Atua lmen te,
-
Quan to às classes médi as , uma vez mais elas foram tapea as cama das médi as da socie dade de consu mo dirig ido se sente m
égia de class e" talvez
das. Tape adas? Mas por quem ? A " estrat confu same nte como presa da gener alizaç ão do prole tariad o.
se "con s-
tenha um "suje ito", mas ele não é observável; ele Os ~ome~s de " colar inho- branc o", os pequ enos técnic
os, os
o temp o que
trói'' pelo conh ecim ento, mais tarde . Ao mesm funcw náno s dos escalões médi os resistem teimo same nte a essa
os objet os e
pivôs da mano bra, as classes médi as são tamb ém situaç ão e a essa consciência. No entan to ela os invad e não
os bens que
as vítim as. É a relação delas com as coisas e com as por meio da ideol ogia, mas pela perce pção de uma seme lhant e
das médi
se gener aliza. Desd e que elas existem, essas cama cotid ianid ade e de uma certa fuga para o vazio do cotid iano.
hes da
procu raram sua satisfação: satisfações detal hada s e detal a von- A ~omragosto, o mem bro das classes médi as press ente
que na
a,
satisfação. A vonta de de força e de pode r lhes escap socie dade de consu mo o consu mido r é consu mido . Não ele,
ito delas
tade de criação mais ainda , por outra s razões. A respe em carne e osso, que conti nua tão livre quan to o prole tário.
de uma
seria inopo rtuno falar de um "estilo"; trata- se antes ~ão ele, mas o seu temp o de viver. A teoria d
a aliep.ação é
gêner o
ausên cia de estilo . Esten deu-s e à socie dade inteir a esse nda como ultrap assad a. E necessário volta r a falar lono- ado,
amen te
de vida. Só emer gem as perso nalid ades olímp icas, grand
e bur-
sobre essa quest ão? Tal alienação talvez se tenha
at~nu
cracia
guesi a que corre spond e em nosso temp o à antig a aristo como , por exem plo, a alienação sexual. Aind a não é nada
ceno ,
As perso nalid ades olímp icas não ral" man-
da qual recolhe as miga lhas. e o fund amen to da repressão sexual (a ligação "natu
que as imag ens que as popu lariz am fecun da-
têm vida cotid iana, se bem tida prátic a e "cult uralm ente" entre o ato sexua l e a
uma cotid ianid ade super ior. Em vie-
lhes atrib uam, preci same nte, ção) ~bsolutameme não desap arece u. Às amig as alien ações
cílio fixo;
últim a análise, o Olím pico não tem nem mesm o domi ram JUntar-se novos gêner os, e a tipolo gia da alien ação se enri-
s do pode rio, a vaga-
ele recon stitui na opulê ncia, com os meio quec eu: políti ca, ideológica, tecnológica, buroc rática
, urban a
iate, vai de palá-
bund agem "livr e", o noma dism o ; vive no seu
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etc. Sustentamos que a alienação tende para uma totalidade e um sentido. Ele o devorou. Pode-se liqüidar o sentido decla-
se toma tão poderosa que apaga os traços (a consciência) da alie- rar absurda a procura do sentido, confundir e identific~ absur-
nação. Pomos sob acusação, aqui e alhures, os ideólogos que pre- didad~> realidade,, racion~idade .. Cava-se um buraco gigantesco.
tendem relegar a teoria aos filósofos que já estão fora de moda. Os ~losofos não t~m :na1s ,a :rerngem, I?as a soci~dade que não
Apesar de sua~ questões prete?;SaJ?~nt~ ,maliciosas sob~e o~ "com- detem outros mews 1deolog1cos perde sua capae1dade integra-
plôs" ideológiCos. e sobre os SUJeitos . dessas cons~:raç?es, eles tiva. Sua cultura, tradução abstrata de exigências econômicas
servem à estratégia de classe, em perfe1ta boa consc1enc1a. Nem
e tecnológicas, é impotente. Vem daí o paradoxo, muitas vezes
melhor nem pior que os outros: os que sabem e os que não com- posto em evidência mas raramente analisado até as suas raízes,
preendem nada de nada. A novidade é que a teoria da alienação de uma sociedade que funciona, que é atormentada pela inte-
não tem mais do que uma referência filosófica que se distancia.
gração e pela participação, e que não chega a integrar nenhum
Ela se tomou uma prática social: uma estratégia de classe que
dos seus grupos , nem os jovens, nem os intelectuais, nem as
precisa afastar a filosofia como a história para atrapalhar o assunto
e inibir a mnsciência da alienação generalizada. Esta estratégia etnias, nem as regiões, nem as cidades, nem as empresas, nem
tem massas de mão-de-obra: as classes médias, às quais escapa a mesmo as mulheres. Protótipo de uma sociedade poderosa e
consciência de sua própria alienação, embora elas tenham alimen- impotente: os Estados Unidos da América. A burguesia fran-
tado a crônica e os cronistas da alienação, por estarem sujeitas cesa e européia possuía uma capacidade imegrativa quando
aos mal-estares. Como as damas de outrora, como a personagem tinha uma ideologia (o universalismo da Razão) e uma prática
kierkegaardiana que grita: "Mas isso é possível!", o pequeno- social (a construção de uma nacionalidade). O desvio dessa ide-
burguês se sente mal um belo dia. O salto do real ao imaginário ologia universalista para a racionalidade limitada do tecnicismo
e do imaginário ao real, ou seja, a confusão entre os planos, não e do Estado priva-a dessa amiga capacidade estratégica. Decorre
o comenta mais. Que é preciso fazer? Alguma outra coisa. Con- daí uma impotência que se traduz no plano da cultura e sobre-
sumir o satisfaz e não o satisfaz, o consumo não é felicidade. O tudo no da capacidade integrativa.
bem-estar e o conforto não bastam para trazer a alegria. Ele se Para responder às exigências da situação, procuram-se ideo-
enche de tédio. logias novas. Compreende-se que não é mais possível viver
Essa sociedade quer integrar. Mas integrar o quê? Seus no cenário americano dos anos de 1950 a 1960: desideologiza-
membros , grupos , indivíduos , átomos e moléculas. Integrar a ção, resolução cada vez mais harmoniosa das tensões, fim das
quê? A ela, da qual ninguém mais pensa que seja um "sujei- classes. O ''fim das ideologias'' foi a palavra de ordem do ame-
to". Tal é o seu problema e a sua contradição (uma das mais ricanismo ofensivo. Com esse aríete, com essa artilharia, ele
importantes entre as suas contradições). Ela não é desprovida derruba as muralhas que protegiam a velha Europa. Os desem-
de uma certa capacidade imegrativa, forte por meio da merca- barques maciços de especialistas, sociólogos, psicólogos e outros
doria e do mercado , mais fraca, porém efetiva no nível cultu- seguiram de perto esse desmantelamento. E agora? A Europa
ral. A cotidianidade integra aqueles que a aceitam, e mesmo não passa de um campo de ruínas filosóficas e teóricas. Sozi-
aqueles que ela decepciona. Os descontentes que aspiram a nhas, no entanto, aqui, ali, cidadelas,. fortalezas muitas vezes
uma cotidianidade mais completa são logo tragados e absorvi- abaladas (marxismo, historicidade) resistem. A ofensiva ameri-
dos. Para os ouvidos deles, as mais bombásticas palavras da sub- cana coincidiu com a derrocada do dogmatismo stalinista. E
versão não passam de frases sonoras. Esta sociedade, com o seu agora? A procura de ideologias mais sutis é considerável, tanto
imenso estetismo , não integrou o velho Romantismo? O Surre- na América quanto na Europa, o que obriga a apurar o próprio
alismo? O Existencialismo? E uma boa parte do Marxismo? Inte- conceito de ideologia. Em nossa opinião, o conceito abrange
grou muito bem, por meio do mercado, como mercadorias . hoje, de um lado, não-representações que pretendem passar
Ontem conte~tação, hoje produto de qualidade, para o con- por não-ideológicas, por "rigorosas", e , de outro lado, uma
sumo cultural. Este consumo engoliu aquilo que procurava dar boa parte do imaginário social, mantido pela publicidade (que
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tende a se tornar ideologia e prática, simultanea mente). Hoje "cultura de massas" e o consumo de "produtos de qualida-
uma ideologia não pode mais se permitir aparecer como ideolo- de' ', obras que se pretende que permaneça m ' 'intactas''.
gia: fazer apelo ao _afetivo, administra r a _filiação ~ u~ grupo As ideologias da/unção (funcionali smo), daforma (forma-
dirigente. Ela precisa tomar um procedime nto cientifico. A lismo) , da estrutura (estruturalismo) têm em comum com o cien-
menos que ela mire ousadamen te o irracional, como uma certa tificismo e com o positivismo o fato de que elas se apresentam
psicanálise, um certo ocultismo. como não-ideológicas. No entanto, o processo de ideologizaç ão
Num nível bastante baixo de elaboração , para lançar um é bastante claro, consiste numa extrapolaç ão-redução . A ideolo-
pouco de aliment() aos pequenos funcionário s, aos pequenos e gia transforma em absoluto um conceito parcial e uma verdade
médios técnicos, aos burocratas de níveis inferiores, está o eco- relativa. A ideologia da linguagem oferece interesse suficiente
nomúmo. Vulgar e vulgarizad o , ele tem vida dura, porque para que lhe consagremos mais adiante um capítulo particular.
serve: ideologia do crescimento, produtivism o, racionalida de e Com efeito, ela se enxerta de um lado nas notáveis descobertas
organização, ·perspectiv a da abundânci a próxima. Esses temas de uma ciência em desenvolvi mento, a lingüística , e, de outro,
já abandonad os nos Estados Unidos conhecerão ainda dias boni- em "fenômeno s de linguagem " que ocorrem na vida cotidiana.
tos numa França em atraso. Talvez a Universida de os adote ofi- Contentem o-nos aqui em indicar que a ideologia consiste no
ciosamente ou oficialmen te, ou uma outra instituição apoiada fato de que se apresenta a linguagem simultanea mente como
pelo Estado. O economism o tem o considerável interesse de a chave da realidade social (que seria então conhecível e conhe-
aliar o marxismo degenerad o e o racionalismo burguês abastar- cida por sua forma de linguagem ) e como um sistema (que
dado. Além do mais, ele cobre muito bem a cotidianida de, compreend e e comporta a unidade do real e do inteligível) .
sua arrumação , sua exploração racionalizada. Não é, pois, des- Ocorre que , segundo a tese que será defendida mais a<:fiante,
provido dos méritos que fazem a eficácia de uma ideologia. movimenta mo-nos na meta!ingua gem , discurso a respeito do
' . discurso, decodificação das mensagens antigas sem nenhum
Há -tentativas mais sutis. A ideologia da feminzJida de,
direito a se considerar em mensagens novas ou decodificação
ou melhor, da felicidade pela (e na) feminilida de , parece parte
do ''real''.
integrante da ideologia do consumo (da felicidade pelo ato de
consumir) e da ideologia da tecnicidade (as técnicas da felici- A publicidad e faz parte dos "fenômeno s de linguagem "
dade pertenceria m às mulheres!) com algo de mais sedutor. que pedem um exame atento. Ela apresenta numerosos proble-
A ideologia da cultura, ou culturalism o, essora a oscila~lte mas. O problema da sua eficácia, da natureza e do alcance de
tese da coerência e da unicidade ''da' ' cultura. E a tese oficial, sua influência não é o menor. Mostraremos por qual processo
de substituiçã o (é apenas um dos seus processos) a publicidad e
ao passo que com toda a evidência a cultura se pulveriza. Há
assume uma parte do papel amigo das ideologias: encobrir,
muito tempo que não há mais do que subcultura s de origens
dissimular, transpor o real, ou seja, as relações de produção.
diversas: campo e vida rural , vida urbana, aristocracia, proleta-
riado , burguesia, países e setores ditos "subdesen volvidos", Só poderia haver ideologia no amigo sentido (ou seja, com
cultura de massas etc. Várias "subcultur as", mesmo revestidas a força que agarra, o poder liberador, a capacidade integrativa
de um mamo de Arlequim fabricado por uma delas, ou .seja, que o racionalismo teve antigamen te) se pudéssemo s conside-
pelo "classicism o", não chegam a constituir uma cultura. A rar a cotidianida de um sistema dotado de uma coerência com-
fragmentação dos conhecime ntos parcelares e dos trabalhos espe- pleta. Ora, isso é impossível. Em primeiro lugar, o sistema
cializados não contribui para reconstitui r a unida,de. A cultura deve ames de tudo se mostrar na prática; entender o cotidiano
não seria um mito? Não . Ela é mais que isso: é uma ideologia como um sistema quer dizer estruturar o sistema, bloqueá-lo .
do Estado. A unidade da cultura se situaria no mais elevado Para infelicidad e dessa teorização , assim que o cotidiano apa-
nível, o das instituiçõe s culturais, o que permite alimentar a rece como sistema (como conjunto de significação), ele desmo-
I.

108 109

rona. Revela-se desprovido de sentido, é um conjunto de não- Para que haja subsistemas, é preciso que haja (são condi-
significações ao qual se ·pretende dar um sentido. As insignifi- ções necessárias):
câncias do cotidiano só podem adquirir sentido quando trans- a) Atos, uma atividade (social) distinta, especificada ou .
formadas , metamorfoseadas num conjunto diferente da atual especializada: Objetos que correspondam a uma atividade, isto
cotidianidade. Em outras palavras, é impossível constituir um é, específicos, suscetíveis, por isso, de ser organizados, classifica-
sistema teórico e prático tal que as minúcias da vida cotidiana dos, etiquetados. Situações determinadas pelas relações entre
adquiram um sentido nesse e por esse sistema. Em segundo as atividades (sujeitos ou agentes sociais: indivíduos e grupos)
lugar , se não há um sistema, é porque há múltiplos subsiste- e as coisas sensíveis (objetos), o que constitui um conjunto
mas que, como já mostramos, situavam-se não num sistema indissociável;
único, mas sobre um plano ou um nível da realidade . Entre b) Organizações e instituições, estas legalizando aquelas,
eles, percebemos lacunas, buracos - e nuvens flutuantes . . . O ao nível do Estado ou de outra instituição ligada ao Estado. A
único "sistema" que revela um sufióente grau de generali- instituição opera em cima desse "material", a organização,
dade para merecer essa designação é o dos álibis (que vai tão que, por sua vez, opera em cima da atividade social. Uma buro-
longe que a "problemática" e o "questionamento" e a "colo- cracia competente, dedicada, logo toma conta da coisa social,
cação do problema" podem se tornar álibis para iludir os pro- dando imediatamente lugar a uma hierarquia (ou a várias hie-
blemas e manter um "sistema" que só existe nas palavras!). rarquias);
c) Textos (dos quais se pode separar antecipadamente
um corpus) que garantem a comunicação da atividade, a parti-
4. Alguns subsistemas cipação nas medidas que a organizam, a influência e a autori-
dade das instituições correspondentes. Esses textos podem já
Os teóricos do estruturalismo empregam com simplici- constituir um código, mas podem também consistir em docu-
dade o termo "sistema". Mas a linguagem deles carece de pre- mentos, tratados, manuais , guias, imagens ou escritos publicitá-
cisão. Pouco a pouco esta palavra toma uma significação vaga, rios dos quais o corpus e o código explícito serão extraídos por
análise. Esta análise, se chega a termo, revela e define o que
imprecisa. O rigor faz parte de suas conotações, de sua retórica,
certos lingüistas (Hjemslev, A.]. Greimas) chamam de lingua-
não de sua denotação. Ela não significa nada mais que "enge-
gem de conotação.
nhoca" ou "maquinismo". Portanto, é claro que o sistema
ou é único ou não existe 3 . Se há vários sistemas, cada um deles De acordo com tal definição, a moda é um subsistema 4
não tem mais que uma existência e uma importância relativas . assim como a cozinha. Esta se torna um subsistema ao perder
Nenhum deles pode isolar-se. Não seria mais justo falar de sub- seu antigo estatuto de produção local, artesanal e familial , qua-
sistemas? Mas então o estruturalismo perde prestígio e impo- litativa, feita de receitas transmitidas oralmente - para se tor-
nar atividade formalizada, especializada, matéria para tratados,
nência. Ele os obteve do seu obscuro profetismo a respeito do
guias "gastronômicos" , para uma hierarquia de lugares, de
Sistema absoluto, exclusivo, total. O hegelianismo já retacio-
iguarias, pretexto de uma ritualização mundana. Aliás, em boa
nava subsistemas, concebendo o sistema filosófico-político
parte ela escapa à sistematização, permanecendo qualitativa ,
como envelope, como círculo dos círculos, como esfera que
engloba todas as esferas.
4
Cf. R. Banhes, O sistema da moda. Basta apenas observar que nesse livro a análise
metódica da linguagem da Moda é de primeira ordem , mas falta a "realidade " da
moda (sociológica: as mulheres, os tecidos, os preços, em suma, a influência ou a
3 Como bem viu e demonstrou Michel Foucault nas últimas páginas , tão sibilinas, de importância do sistema). Tal era, de fato, o propósito do autor. Nosso interesse
seu livro As palavras e as coisas. começa onde o dele acab.: : a inserção da moda na cotidianidade. ·
110 111

familíal, local. Uma espécie de núcleo de significações se cons- fragmento essencial. Talvez fosse bom insistir em alguns facos
tituí, privilegiando uma região do espaç~ social por conferir- curiosos. No trânsitO autOmobilístico, as p~ssoas e as coisas se
lhe uma força de atração ou de repulsão. E uma isotopia (A.]. acumulam, se misturam sem se encontrar. E um caso surpreen -
Greimas). Este núcleo da linguagem atraí para si a atividade, dente de simultaneidade sem troca, ficando cada elemento na
desviando-a da apropriação para formalizá-I~ e metamorfosear sua caixa, cada um bem fechado na sua carapaça. Isso contri-
os atos e as obras em signos e significações. E ao nível do ima- bui também para deteriorar a vida urbana e para criar a ''psico-
ginário que se desenvolvem tais processos. logia", ou melhor, a psicose do motorista. Por outro lado, o
perigo real mas fraco e calculado por antecipação impede que
O Turismo, à sua maneira, se erige em subsistema na
somente poucas pessoas "enfrentem os riscos". O aucomóvel,
chamada sociedad e de consumo. Ou a ''Cultura'', que , nessa
com seus mortos e feridos, com as estradas sangrentas, é um
iluminação, constitui uma entidade. Neste sentido seria possí-
resto de aventura no cotidiano, um pouco de prazer sensível,
vel analisar também a sexualidade, o erotismo. Mas, no
um pouco de jogo. Interessante notar o lugar do carro no .úpico
momento, na perspectiva da cotidianidade programada, o sistema global que descobrimos: a estrutura dos álibis. Alíbi
melhor exemplo não seria o Automóvel? para o erotismo, álibi para a aventura , álibi para o "habitar"
O escudo formal e material do Automóvel até agora não e para a sociabilidade urbana, o Aucomóvel é uma peça desse
foi muito aprofundado. Os inumeráveis artigos e as obras ares- "sistema" que cai em pedaços assim que o descobrimos.
peito desse tema mereceriam uma limpeza; alguns poderiam Objeto técnico pobre que permite uma análise funcional (circu-
fornecer um corpus como ponto de partida para a análise. A lar, portanto, rodar - utilizar uma energia considerável, des-
maioria desses cexcos devem ser considerados mais síncomas perdiçando-a - iluminar a estrada, mudar de direção e de velo-
do que informação e saber. Deixando para outros o trabalho cidade) e estrutural (motor, chassi e carroceria, aparelhagem)
de levar mais longe a exploração metódica, tentaremos lançar bastante simples, o Automóvel figura igualmente numa análise
uma luz sobre o Automóvel, em sua relação com a cotidiani- funcional e estrutural simples e pobre da sociedade. Ele tem
dade. Mostraremos rapidamente a formação de um "subsiste- aí um lugar importante que tende a se tornar preponderante.
ma'', de um campo semântico parcial que invade a cotidiani- Ele determina uma prática (econômica, psíquica, sociológica
dade e intervém nela: etc.). Ele se considera (nós o consideramos '' inconscientemen-
a) O Automóvel é o Objeco-Rei, a Coisa-Piloco. Nunca é te") o objeco cocal. Ele tem um sentido (absurdo). De faco e
demais repetir. Este Objeco por excelência rege múltiplos com- na verdade não é a sociedade que o Aucomóvel conquista e "es-
portamentos em muitos domínios, da economia ao discurso. trutura" , é o cotidiano. O Aucomóvel impõe sua lei ao coti-
O TrânsitO entra no meio das funções sociais e se classifica em diano , contribui fortemente para consolidá-lo, para fixá-lo no
primeiro lugar, o que resulta na prioridade dos estacionamen- seu plano: para planificá-lo. O cotidiano, em larga proporção
tos, das vias de acesso, do sistema viário adequado. Diante hoje em dia , é o ruído dos motores, seu uso "racional", as exi-
desse "sistema", a cidade se defende mal. No lugar em que gências da produção e da distribuição dos carros etc.
ela existiu, em que ela sobrevive, as pessoas (os tecnocratas) b) Não é só isso. O veículo automóvel não se reduz a
estão prestes a demoli-la. Alguns especialistas chegam a desig- um objeco material dotado de uma cerca cecnicidade, meio e
nar por um termo geral que tem ressonâncias racionais - o lugar sócio-econômico, portador de exigências e de pressões.
urbanismo - ·as conseqüências do trânsito generalizado, levado O Aucomóvel dá lugar às hierarquias: a hierarquia perceptível
ao absoluco . Concebe-se o espaço de acordo com as pressões e sensível (tamanho, potência, preço) e se desdobra numa hie-
dq aucomóvel. O Circular substituí o Habitar, e isso na pre- rarquia mais complexa e mais sutil, a das performances.
tensa racionalidade técnica. É verdade que, para muitas pes- O jogo dessas duas hierarquias é flexível. Elas não .coinci-
soas, o carro é um pedaço de sua "moradia", até mesmo o dem. Há entre elas uma boa margem , um entremeio , isco é,
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um lugar para a conversa, para a discussão, para a controvérsia. gem, seus discursos, sua retórica). Signo do consumo e con-
Logo, para o discurso. Ao lugar definido na escala material não sumo de signos, signos da felicidade e felicidade pelos signos ,
corresponde termo a termo um lugar na escala das performan- tudo se encavalando, se intensificando ou se neutralizando reci-
ces. Eu posso subir alguns degraus, ganhar pontos. No meio I procamente. O veículo automóvel acumula os papéis, resume
~

de um pequeno grupo, posso me tornar (por alguns minutos as pressões da cotidianidade, leva ao extremo o privilégio sqcial
ou por alguns dias) o campeão. Tenho limites, é claro, mas concedido ao intermediário, ao meio. E, ao mesmo tempo, con-
onde? Se ultrapassei um carro mais potente, modifiquei meu densa os esforços para sair do cotidiano, reintegrando-lhe o
lugar na hierarquia, subindo um degrau na segunda, aquela jogo, o risco , o sentido.
que se abre aos audaciosos, que exige habilidade, esperteza, d) Esse objeto tem o seu código: o Código da estrada. Sem
portanto, liberdade. E passo a discutir sobre isso com meus pas- comentários. A exegese semântica, semiológica, semiótica do
sageiros, meus amigos, longa e orgulhosamente, sobretudo se código da estrada já enche volumes . Ele continua sendo o pro-
corri riscos. Nessas condições, a hierarquia não parece muito tótipo dos "subcódigos" opressores, cuja importância mascara
opressiva, pois ela se torna integrativa. a ausência de sentido e de código geral da sociedade. Ele mos-
Observemos que esse estatuto do objeto automóvel se tra o papel dos sinais. O corpus sobre o qual um exegeta deci-
parece com o estatuto do corpo humano em sua relação com dido a levar até o fim a exploração semiológica (e sociológica)
o esporte. Há uma hierarquia física (peso, força, tamanho etc.), do Automóvel poderia se apoiar sobre esse código, deveria
hierarquia das performances, engavetamento das duas escalas. ultrapassá-lo e anexar outros documentos, textos legais , jornalís-
Ora, essa dupla hierarquia corresponde (inadequadamente, ticos ou literários, anúncios publicitários etc. O Objeto-Piloto
portanto de maneira muito flexível, e é esse o seu interesse suscitou não apenas um sistema de comunicação mas também
para todos, inclusive para o analista) à hierarquia social. Há os organismos e instituições que se servem dele e que o servem .
uma analogia (não uma estrita homologia) entre a hierarquia E aqui atingimos o cômico, ou melhor, o pândega da
do status social e a dos carros. Como essas escalas não coincidem, situação. Desses subsistemas, afirmamos que eles tendem para
passamos continuamente de uma para a outra, sem encontrar o pleonasmo, para a destruição pela tautologia. O objeto, aqui,
o ponto de parada definitivo. O caráter jamais definido nem destrói e dep,ois se destrói. O turismo destrói o lugar turístico
definitivo , sempre reversível, sempre posto novamente em ques- pelo simples fato de atrair multidões e porque o lugar (cidade,
tão - e todavia imperioso - da classificação permite- um paisagem, museu) não tem outro interesse a não ser o de um
número elevado de combinações, confrontações, cálculos. encontro que poderia acontecer em outro lugar , não importa
c) Resulta daí que a existência prática do Automóvel, onde. A Moda? Perguntamos quantas mulheres seguem a
enquanto instrumento de circulação e utensílio de transporte , moda. Um punhado de manequins , de cover girls , de persona-
é apenas uma porção da sua existência social. Esse objeto verda- lidades olímpicas. E elas mesmas tremem de medo de não estar
deiramente privilegiado tem uma dupla realidade mais intensa, mais na moda, pois são elas que a fazem, e a moda lhes escapa
dotada de uma duplicidade mais forte que os outros: sensível ao controle assim que é lançada, e elas têm de encontrar outra
e simbólica, prática e imaginária. A hierarquização é ao.mesmo moda. O Esporte? Para que haja Esporte, bastariam alguns
tempo dita e significada, suportada, agravada pelo simbolismo. campeões e milhares, milhões , bilhões de espectadores. A Cozi-
O carro é símbolo de posição social e de prestígio. Nele tudo nha formalizada desaparece; os amadores pouco esclarecidos
é sonho e simbolismo: de conforto, de poder, de prestígio, de chegam a saborear o cerimonial, a apresentação e o cenário
velocidade. Ao uso prático se sobrepõe o consumo dos signos. mais que os pratos; em busca do lucro, os donos de hotéis subs-
O objeto se torna mágico, entra no sonho. O discurso a sey. res- tituem a qualidade pela forma; então, os amadores esclareci-
peito se .alimenta de retórica e envolve o imaginário. E um dos se refugiam num "boteco escondido", num simples e
objeto significante num conjunto significante (com sua língua- modesto restaurante onde funciona um chef ansioso para fir-
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mar sua reputação . Quanto ao Automóvel, é inútil devastar do ponto de vista da forma " pura" e quando a análise a separa,
cidades e campos, pois ele chegará, mais cedo ou mais tarde, se coloca entre parênteses (o conteúdo) ou se afasta (as condi-
ao ponto de saturação. Ele caminha para esse limite, terror dos ções), sendo reconsiderada logo em seguida. É o que permite à
especialistas de trânsito : o congelamento final, a imobilidade forma ligar-se a uma prática social, trilhar o seu caminho e sus-
coagulada do inextricável. Enquanto aguardam esse limite sem- citar por conta própria uma prática social: ser essa prá~ica.
pre adiado, sempre fascinante, os motoristas, na Alemanha· Tomar o valor de troca como um sistema já constituído, escon-
ou na América, se detêm demoradamente nos motéis para con- dido embaixo das palavras e dos gestos das pessoas que trocam
templar a onda de carros nas auto-estradas s e encontram no (clientes e vendedores , mercadores, capitalistas que se ocupam
espetáculo uma satisfação (grande, quando não perfeita). do comércio etc.), seria ingenuidade. Enquanto forma, a merca-
Sabemos pela prática e pela teoria da obsolescência como doria tem uma lógica. Sendo produto do trabalho, ela produz
o envelhecimento dos carros é previsto, arrumado, programado. encadeamentos, atos inteligentemente ligados. Ela é ao mesmo
Forçaremos um pouquinho a nota (seria metáfora ou trocadi- tempo coisa social e mental. Esta forma se apodera também
lho?), dizendo que o Auto se constitui assim em símbolo geral da linguagem que existe antes dela. Ela amolda essa linguagem
da autodestruição. E que, por essa razão, passando por um à sua maneira. Ela constituiria mais que uma simples lingua-
"bem de consumo durável", pedindo a construção de estrutu- gem de conotações (embora um determinado grupo , como o
ras permanentes (eixos d e tráfego , fluxos calculados), o carro grupo dos comerciantes, possa possuir semelhante sistema semió-
tem uma posição mais que honrosa no sistema dos álibis. tico ). Não sem algumas resistências enfurecidas e talvez irredu-
tíveis, do lado do passado e das nostalgias , como do lado das
E a publicidade, constitui um subsistema? Poderíamos
possibilidades revolucionárias, a mercadoria tende a constituir
achar que sim. No entanto, essa hipótese não parece aceitável. um "mundo" (ou, s~ se prefere, um "sistema" que já tem o
A publicidade não seria acima de tudo a linguagem da merca- seu nome: o capitalismo), mas nunca o constitui completa-
doria levada à mais alta elaboração, dotada de uma expressão mente. A publicidade? Ela descreve, de modo a excitar o com-
simbólica, de uma retórica , de uma metalinguagem? Não é o prador ao ato da compra, os objetos destinados a um determi-
modo de existência do objeto trocado e do valor d e troca (am- nado uso e dotados de um valor de troca, com cotação no mer-
bíguo: abstrato-concreto, formal-prático) que assim se mani- cado. Essa descrição é apenas um começo. Foi esse o caráter
festa? Esta é a teoria que retemos de Marx e de O capital como da publicidade no século XIX: informar, descrever, excitar o
contribuição decisiva. A mercadoria é uma forma que a análise desejo. Ele não desapareceu, mas outros caracteres predominam.
separa tanto do conteúdo (o trabalho social) como dos aciden- Na segunda metade do século XX, na Europa e na França,
tes que a acompanham (as negociações, discussões, palavras e nada (um objeto, um indivíduo, um grupo social) vale, a não
discursos, gestos, ritos que acompanham a troca). Essa análise ser através da sua duplicata: a imagem publicitária que o aureo-
dialética reduz o ato de troca à sua forma pura, como mais la. Esta imagem duplica não apenas a materialidade sensível
tarde a análise semântica afastará a palavra para separar a forma do objeto, mas o desejo, o prazer. Ao mesmo tempo , ela torna
do ato de comunicação, a linguagem. Ora, essa forma é sepa- fictícios o desejo e o prazer, situa-os no imaginário. É ela que
rada do conteúdo e das contingências que a envolvem apenas traz "felicidade", isto é, satisfação ao estado de consumidor.
por uma redução primária. As providências ulteriores do conhe- A publicidade, destinada a suscitar o consumo dos bens, torna-
cimento restituem tanto o conteúdo quanto as modalidades se assim o primeiro dos bens de consumo. Ela produz mitos,
concretas (históricas, sociológicas) da troca dos objetos, que, ou melhor, não produzindo nada, apodera-se dos mitos anterio-
res. Ela drena os significantes em direção a um duplo objetivo:
oferecê-los tais quais ao consumo geral - estimular o consumo
~ Ver os dc~cnhos de .Scmpé (muito embora seu humor com laivos de pândega seja determinado de uma coisa. Assim, ela recupera os mitos: o
pouco pcngoso c facilm ente recuperável. ou seja. intcgrável ao existente).
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mito do Sorriso (a felicidade de consumir identificada com a do texto , na verdade um duplo terrorismo: "Cuide-se bem.
felicidade imaginária daquela ou daquele que mostra o objeto Torne-se , a cada manhã, um tipo formidável que está contente
a ser consumido), o mito da Apresentação (o ato. social que consigo mesmo e que agrada às mulheres. Para isso , use este
torna present~s os objetos, atividade que, por sua vez, cede afie r shave, ou então tenha a certeza de ser um pé-de-chinelo".
lugar a objetos, como a. vitrina, por exemplo). Desse modo, a publicidade torna-se a.poesia da Moderni-
Eis aqui a imagem (foto) de um rapaz atlético, nu ou quase, dade, o motivo e o pretexto dos espetáculos mai~ bem-sucedi-
com todos os músculos, braços e coxas retesados pelo esforço, agar- dos. Ela captura a arte, a literatura, o conjunto dos significan-
rado à amurada e ao cordame de um iate que singra o oceano a tes disponíveis e dos significados vazios. Torna-se arte e litera-
grande velocidade. A máxima velocidade possível é evocada pela tura, apodera-se das migalhas da Festa a fim de reconstituí-las
espuma, pela ten_são dos cabos. Os olhos desse magnífico rapaz para seu p róprio uso. Assim como faz com a mercadoria, que
perscrutam o honzonte; que é que ele discerne e que escapa ao ela empurra até as últimas conseqüências da sua lógica, confere
leitor da revista? Um perigo, um risco, uma maravilha? Ou sim- a todo objeto e a todo ser humano plenitude da dualidade e
plesmente_ nada? Aliás, ele não faz nada; não bordeja, não da duplicidade: o duplo valor como objeto (valor de uso) e
muda a direção. Ele é formidável. E eis o texto que estipu la o como mercadoria (valor de troca), organizando cuidadosamente
sentido da imagem : '' Uma verdadeira vida de homem, sim, é a confusão entre esses ''valores' ' em proveito do segundo deles .
formidável uma vida de homem. É formidável reencontrar a A publicidade ganha a importância de uma ideologia. É a
cada manhã a suavidade tônica do seu after shave ... ". ideologia da mercadoria. Ela substitui o que foi filosofia , moral,
Vamos comentar um pouco. religião, estética. Vai longe o tempo em que os publicitários pre-
a)_ Há u~a imagem com um texto. Sem o texto , a imagem tendiam condicionar os ''sujeitos" consumidores pela repetição
n~o tena sen_udo, ou então teria vários, como é sabido e já foi de um slogan. As mais sutis fórmulas publicitárias de hoje em
dno. Sem a Imagem, o texto seria ridículo, já se sabe. Ressalte- dia ocultam uma concepção do mundo. Se você sabe escolher,
mos apenas a disponibilidade dos significantes (o homem nu escolha esta marca. Um d eterminado utensílio (doméstico) libera
ao sol, o oceano, o navio etc.) e a ausência de significados (a ver- a mulher. Aquela "essência" (com um vago jogo de palavras
dadeira vida , a plenitude, o humano). A publicidade do after em torno desse termo) combina melhor com você. Este vastís-
shave X engancha uma na outra essas imprecisões por meio de simo "conteúdo", estas ideologias capturadas, não impedem a
uma coisa (mercadoria), em proveito de um ato de venda; mais concreta solicitude. As injunções que interrompem fumes
b) Ela restitui assim mitos que nada têm de novo: natu- e novelas na televisão americana mostram até que pomo essa soli-
reza, virilidade, virilidade diante da natureza, naturalidade citude pode ir. Você está em casa, diante da lareira , que é povo-
do viril. Por esses grandes temas e com eles , d eixamos o mito ada pela telinha (mais do que pelas mensagens que ela trans-
propriamente di~o (salvo se dermos a esse termo uma aceitação mite, como afuma McLuhan), e alguém se ocupa de você. Esse
mais vaga e mars geral que englobe a ideologia). A publici- alguém lhe diz como viver cada vez melhor: o que deve comer
dade exe~ce função de ideologia; ela vincula o tema ideológico e beber, como vestir-se e mobiliar a casa, como habitar. E aí
a.uri?a cotsa (o_after_ska~e) à qu~l confere assim uma dupla exis- está você programado. Salvo neste pomo: sobra a você a tarefa
tencta, real e rmagmana. Ela vmcula os termos das ideologias de escolher entre todas estas coisas boas, e o ato de consumir con-
e amarra, para além das mitologias, os significantes aos signifi- tinua sendo uma escrutura permanente. Já foi ultrapassado o
cados, já recuperados e utilizados; mito do sorriso. O consumo é coisa séria. Benevolente e benéfica,
c) Encontrou-se um fotógrafo a serviço de uma agência, o
a sociedade inteira está do seu lado. Ela é atenciosa e pensa em
qual surpreendeu no convés de um iate o gesto "espontâneo" você, tratando-o como um indivíduo. Prepara para você objetos
desse rapaz, que era realmente soberbo. Para mostrar-lhe as personalizados, ou melhor ainda, entregues como objetos de uso
vantagens de um after shave, utilizou a retórica da imagem e à sua liberdade personalizante: esta poltrona, esta reunião de ele-
mentos , estes lençóis, esta lingerie. Isto , não aquilo . Nós temos
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menosprez ado a Sociedade. Nós quem? Todos, ora! Ela é mater- redemoinh os ao nível desse solo, turbulência s que carregam pes-
nal, fraternal. A família visível se desdobra nesta família invisí- soas e coisas, dissolvendo-se depois no grande turbilhão da troca
vel, melhor e sobretudo mais eficaz, a Sociedade de consumo , das mercadorias? É um pouco dramático demais. Dando muito
que cerca com suas atenções e seus charmes protetores cada um ·lugar à mobilidade , escondemos sob o culto do efêmero o gosto
de nós. Como é que ainda pode subsistir algum mal-estar? do estruturado , do durável , do que é duro, ao ascetismo subja-
Quanta ingratidão! cente. De preferência veríamos uma superfície terrestre, a cotidia-
Os torniquetes giram ao nível do solo. Consumo de espe- nidade; abaixo dela , os subterrâneo s do inconsciente; acima, um
táculos, espetáculo do consumo, consumo do espetáculo do con- horizonte cheio de dúvidas e de miragens: a Modernida de; e
sumo. Consumo de signos e signos do consumo. Cada subsis- depois, o Permanent e, o Firmament o. Entre os grandes astros
tema que tenta se fechar dá ao torniquete um desses apertos coloquemo s a Cientificid ade, com sua clareza fria e um tanto cre-
aurodestru idores. Ao nível da cotidianida de. puscular, a Feminilida de e a Virilidade, sol duplo. E estrelas e
constelações e nebulosas. Bem alto no horizonte, numa posição
O consumo de signos é particularm ente digno de interes-
polar, lá está a Tecnicidade; em algum lugar por aí, a Juvenili-
se. Ele tem modalidad es bem estabelecid as; por exemplo, o
dade. E há novae · , tais como a Confiabilid ade, algumas estrelas
stnp -tease, consumo ritualizado dos signos do erotismo. Mas
às vezes ele assume o jeito de um frenesi. Houve a temporada congeladas e morras, como a Beleza, e os signos estranhos do Ero-
tismo . Entre as estrelas fixas de primeira grandeza colocaremos a
dos "scubidus " (Signo de quê? Do inútil, do combinató rio e
do racional absurdo, maníaco e sem alegria) e a temporada dos Urbanidad e ou a "Urbanicid ade"? Por que não, desde que não
chaveiros (signo d a propriedad e). Em algumas semanas ou se esqueçam a Naturalida de, a Racionalidade e algumas outras
alguns meses o turbilhão nasceu , cresceu, arrastou milhares de entidades? E alguns satélites sublunares : a Moda (ou a " modeida-
pessoas, depois desaparece u sem deixar traços. de' '), localizável não longe da Feminilida de; a Esporrividade etc.
A "cultura" nessa sociedade é também artigo de consumo . Esta sociedade devoradora , que ama o efêmero, que se
Um pouco excepcional: passando por livre, essa atividade consu- diz produtivist a, que se pretende móvel , dinâmica, mas que
midora (um pouco menos passiva do que as outras maneiras de adora equilíbrios , honra estabilidad es e eleva ao pináculo as
receber as coisas já completam ente feitas) assume ares de festa , coerências e as estruturas, esta sociedade incoerente sempre pró-
o que lhe confere uma espécie de unidade fictícia e, no entanto, xima do pomo de ruptura, que tipo de filosofia ela pratica?
socialmente real, embora situada no imaginário . As obras, os esti- Um neo-hegeli anismo? Um neoplatoni smo? Ela produz a sua
los são entregues ao consumo devorador. A Cidade se devora com própria filosofia ou recusa a referência filosófica tal como temos
um júbilo particular, o que parece indicar uma n ecessidade e reservado para conhecer e apreciar o real? Vamos formular a
uma frustração particularm ente vivas: moradores de cidades vizi- mesma questão de outra maneira. Como pode funcionar uma
nhas, estrangeiros, gente de arrabaldes, turistas se precipitam sociedade que pôs entre parênteses a capacidade criadora, que
sobre o coração das cidades (se ainda não foi destrUído) com se baseia ela mesma na atividade devoradora (consumo, destrui-
um apetite particularm ente voraz. Cada objeto e cada obra ção e autodestru ição), para a qual a coerência se torna uma
ganham assim sua dupla vida: sensível e imaginária . Todo objeto obsessão, e o rigor , uma ideologia, e na qual o ato consumido r
de consumo torna-se signo de consumo. O consumido r se ali- reduzido a um esquema se repete indefinida mente?
menta de signos, como os da técnica, da riqueza, da felicidade , Responder emos mais adiante . Por enquanto, ao tratar do
do amor. Os signos e as significações suplantam o sensível. Opera- consumo dos signos, já começamo s o exame dos fenômenos
se uma gigantesca substituiçã o, uma transferência maciça, mas da linguagem .
é apenas numa vertigem de torniquetes !
Daremos desta sociedade em que vivemos esta imao-em irô-
nica (que ilustra uma análise estrutural): um solo, o cotidiano, e • Em latim, no original: novidades. (N.T. )
121

mas) designam isto ou aquilo. Elas denotam. Entre a denota-


ção e o significado há uma relação estreita; no entanto, o pri-
meiro conceito envolve algo mais que o segundo. A palavra
"cadeira" tein como significado um conceito , o da "cadeira".
Pouco importa que o objeto "cadeira" exista ou não. O signi-
ficado ''cadeira", perfeitamente isolado, é uma espécie de abso-
luto formal. ' ' Eu comprei esta cadeira no bairro de Santo Antô-
nio.'' Um enunciado como este supõe um contexto não apenas

Capítulo m
A
lingüístico, mas prático e social. Como situar ou definir isto
ou aquilo, o objeto "cadeira" , a realidade "rua", a língua
em questão, sem a sociedade que a fala, sem uma determina-
FENOMENOS DA ção do tempo , do espaço? Somente o contexto eleva as denota-
ções ao nível de determinações comunicáveis. A função denota-

LINGUAGEM tiva implica uma função referencial ou contextual, supõe uma


referência pela qual se especificam a isotopia (ou heterotopia),
a isocronia (ou heterocronia) dos significados, os quais, com
relação ao referencial, se localizam ou não num mesmo lugar,
num mesmo tempo. Como confrontar e ligar signos. como
garantir o encadeamento, sem esse referencial? Podemos redu-
zir o contexto às palavras e frases (agrupamento de signos) que
precedem ou que seguem a mensagem considerada? Essa redu-
1. A queda dos referenciais ção pode se manter de outra forma que não seja uma decisão
arbitrária do lingüista? A asserção, com reservas, parece mais
O estudo dos fenômenos· da linguagem, no mundo con- aceitável quando se trata da coisa escrita. No que se refere à
temporâneo , tem dois aspectos. Em primeiro lugar, pode-se fala , ela não é exata.
examinar a linguagem como realidade social, estudando-se a
linguagem (ou melhor, a língua) da nossa época, seus traços Se admitirmos a resposta negativa , sairemos legitimamente
morfológicos, sintáticos, léxicos. Por este caminho chegaremos da lingüística. A reflexão não fica mais no interior da lingua-
a definir os subsistemas, as linguagens das conotações (as da gem como forma (no "imanente"), e não é para atingir um
vida sexual e do erotismo , do trabalho e da vida operária, da nível translingüístico, mas porque os referenciais são fatos sociais
vida urbana, sem esquecer, é claro, as linguagens escritas, a lite- (vinculados à sociologia). Retomemos aqui teses expostas em
ratura etc.). Podemos também partir do fato de que a ciência -r
outra obra 1 , enfatizando-as. Primeiro vamos chamar a atenção
da linguagem passou ao primeiro plano, não como uma ciência para a queda dos referenciais, no início do século XX.
parcelar e especializada, mas como protótipo de ciência. Dessa Há cem anos, em torno da fala e do discurso, no contexto
forma, se denunciam algumas preocupações gerais, como a social, reinavam referenciais sólidos. Ligados entre si, sem por
informação e a comunicação. Isso constitui um fato social (his- isso formar um sistema único e formulado como tal, eles tinham
tórico-sociológico), um fenômeno culturaL Perguntamos, então: uma .coesão, ou mesmo uma coerência lógica. A unidade dos
o que significa isso? Isso teria um sentido? A procura ou arejei- referenciais se manifesta então no bom senso ou no senso
ção do sentido têm um sentido?
Recordemos um pouco de teoria. As palavras e os agrupa-
mentos de palavras (de unidades significantes distintas, os mone- 1 Le langage et la société, col. Idées, 1966.
123
122

comum, na percepção sensível (espaço e1:1clidiano de três dimen- Pode-se dizer que a partir dessa data o sentido da vista,
sões, tempo dos relógios), na concepção da natureza, na memó- antes desfavorizado em razão da precedência do ouvido e do
ria histórica, na cidade e na circunvizinhança urbana, na esté- discurso (verbal ou escrito), ganha novamente importância?
tica e na ética geralmente aceitas. Assim o caráter global dessa De tal modo que o audiovisual em andamento enriquece a
sociedade como "sujeito" se fazia sensível e a sociedade pos- compreensão do prático-sensível? Pode-se admitir; seria injusto
suía (ou acreditava possuir, o que dá_na mesma) um Código e inexato interpretar todos os fatos conforme um esquema de
geral, predominante, o código da honestidade e da honra, ou empobrecimento e de desvio. Enriquecimento? Sim, mas com
da dignidade. Como pano de fundo, já: salientamos, para essa algumas reservas. Não se trata apenas de uma '' complexifica-
sociedade, a referência às atividades produtoras, aos ''valores'' ção" dos sentidos e da informação dada por eles, mas de uma
de criação inseparáveis da produção ." .Interpretada de outra capacidade aumentada de interpretar pelo ouvido as percep-
maneira (e contraditoriamen te), de acordo com as classes sociais ções visuais, e, pela vista , as sensações auditivas. As percepções
e com as ideologias, essa referência, que associa fato e valor, visuais e sensações auditivas se tornam, assim, os signos umas
não era menos d ensa. Nesse sentido, O capital (1867) confere das outras. Aumenta o grau de educação dos sentidos e de sua
à linguagem teórica um "consenso" filosófico pouco consciente capacidade teórica. Os sentidos tornam-se ''teóricos''; afastando-
fora dessa obra, desconhecido e desconhecendo suas próprias se do imediato, eles trazem mediações, e a abstração se associa
condições. O "homem" e o "humano" não consistiam numa à imediatidade para constituir o "concreto". Em decorrência
entidade, numa essência abstrata, nada mais que o ''sujeito'' . disso, na prática, os objetos se tornam signos e os signos se tor-
A filosofia "pura" já estava ultrapassada. O homem e o humano nam objetos. Uma "segunda natureza" substitui a primeira
se defmiam então como ações e atividades: como "sujeitos" espe- natureza ou primeira camada de realidade prático-sensível. Não
cíficos e concretos que agem sobre "objetos" e para "objetivos" é o que emerge na pintura e na música por volta de 1910? Os
igualmente específicos, concretos, situados num contexto históri- pintores imediatamente se dividem. Uns (na Europa central)
co. Apesar dos conflitos, ou talvez em razão desses conflitos, a dão primazia ao significado: deixam o "espectador" trazer (se
práxis dessa sociedade (o capitalismo de concorrência) tinha uma puder) os significantes; é o Expressionismo. Outros (em Paris)
unidade. insistem no significante e deixam o interessado trazer o signifi-
Ora, por volta dos anos 1905-1910, sob pressões variadas cado; é o Cubismo (Picasso, Braque etc.). Nos dois casos, a
(ciências, técnicas, transformações sociais), os referenciais saltam intervenção maciça dos signos e a passagem do expressivo para
uns após os outros. A unidade do "bom senso" e da "razão" o significativo quebraram a unidade do significante e do signi-
vacila e desmorona. Desaparece o caráter absoluto do real ficado. Não há mais referencial no prático-sensível.
diante do "sentido comum". A esse real da percepção bem No mesmo período. a experiência e a representação das
informada (ou assim pretendida) se substitui ou a ele se sobre- grandes velocidades modificam a percepção dos movimentos.
põe um outro real, um outro mundo sensível. Os objetos fun- O repouso e a .mobilidade, como a sombra e a luz , como os
cionais e técnicos (ou que se acreditava que fossem técnicos) contornos, cessam de ser absolutos isolados q' justapostos; eles
tomam o lugar dos objetos tradicionais. Em termos mais sim- se relátivizam. A teoria física da relatividade não tem nenhuma
ples, o reino da e~etricidade, da luz elétrica, da sinalização elé- relação imediata com esses.fenômenos sociais ao nível do sensí-
trica, dos objetos movidos e comandados eletricamente começa vel, no entanto a convergência é evidente. No mesmo tempo
por volta de 1910. Essa importante inovação não atingiu· ape- em que o absoluto espacial (o espaço de Euclides e de New-
nas a produção industrial; ela penetrou na cotidianidade, modi- ton) e temporal, o prático-sensível perde também os caracteres
ficou as relações do dia e da noite, a percepção dos contornos. de um referencial estável, fato que se traduz logo ao nível da
Essa mudança não é única, absolutamente, e a entendemos elaboração estética. A perspectiva muda; a linha do horizonte,
mais como símbolo do que como essencial. índice do espaço geométrico elaborado, desaparece. E também
125
124

o sistema tonal em música, com o privilégio da tônica , índice vem, o lazer tira proveito disso. E reciprocamente. Quando a
de uma fixidez conferida ao campo assim recortado no contí- História perde a nitidez, a Natureza passa ·ao primeiro plano.
nuo sonoro. O sistema tonal, como o sistema da perspectiva, E inversamente. O quadro sincrônico dos desmoronamentos
era ao mesmo tempo erudito e popular. Ambos correspondiam não mostra toda a verdade. Atualmente essas explosões-implo-
a percepções socialmente elaboradas durante séculos. Eles se sões se sucedem há mais de meio século. Desde a Libertação,
identificavam com o senso comum: A música mais erudita (a fato histórico, perdeu-se a referência à História como processo
harmonia) e a canção mais difundida, a grande composição pie- temporal bem estabelecido, conhecível e reconhecível. A ideolo-
rural e a aprendizagem do desenho na escola baseavam-se nos gia sancionou um aspecto da prática social, da " cultura": um
mesmos princípios, nas mesmas leis tidas como fixas , gerais, fato concluído. A historicidade se apaga. Também a Cidade,
absolutas. Os sistemas racionalizados, a perspectiva e a tonali- que subsiste cÓmo nostalgia, como imagem do pitoresco, como
valor de troca comercializada e organizada em nome do lazer.
dade garantiam o acordo formal entre o artista, que procurava
significantes para suas emoções e representações, e o especta- Obscureceram-se então as relações de produção . Não desa-
dor ou ouvinte, que trazia a esses significantes, percebidos por pareceram por completo do campo da consciência, pois se fosse
ele, os seus significados. Aliás, a obra podia também remeter assim não se saberia mais de que se fala nem quem fala. O con-
a significantes mais ocultos, à subjetividade e aos ''segredos'' sumo nada criou, nem mesmo relações entre os consumidores.
do art;<;ta: angústias, pesares, desejos . Esse conjunto, ligado a Ele é apenas devorador. O ato de consumir, embora provido
uma certa racionalidade que parecia adquirida, sofre um abalo de significações na chamada sociedade de consumo, é um ato
por volta de 1910; na Europa. Ao nível teórico, começamos a solitário. Ele se comunica por um efeito de espelho e um jogo
compreender que o "nosso espaço" é apenas um entre os pos- de reflexos no I pelo outro consumidor.
síveis, que talvez ele só exista relativamente a nós (à nossa esca- Com a consciência das relações de produção, a imagem e
la) e que em outro lugar ou numa outra escala pode haver a idéia do "homem" ativo, criador, produtor em sentido
outros espaços , outras temporalidades. A descoberta da relativi- amplo , também tendem a desaparecer. Portanto, também a ima-
dade acentua a descoberta da nova realidade sensível: da segunda gem e a idéia da sociedade como conjunto (como totalidade).
" natureza" anexada à primeira, do objeto-signo ou do signo- Para evitar certas interpretações, deixem·o s claro que não
obj_eto. São mudanças práticas nos critérios de apreciação que se trata aqui de deplorar o desaparecimento dos critérios éticos
se 1mpõem, ao mesmo tempo que mudanças conceituais. Mas ou religiosos, dos absolutos metafísicos e teológicos. A frase
os sentimentos e as emoções também se dissolvem. A psicolo- de Nietzsche e de Dostoievski: "Deus morreu" talvez tenha
gia e a psicanálise vão tornar suspeita a inocência da criança, ressoado menos que as palavras misteriosas que um marinheiro
mito que no cristianismo compensava o do pecado original. grego ouviu há dois mil anos: "O grande Pan morreu!". Mas
Elas tornam igualmente suspeitas a espontaneidade, a pureza res~0ou forte. Poderíamos perguntar se para Marx, para o mate-
e a virgindade . rialismo marxi~ta, Deus estava morto de verdade, pois Marx
admite sem provas suficientes uma finalidade do vir-a-ser, uma
Após o bom senso prático-sensível, todos os outros referen-
racionalidade da ação e do trabalho, um sentido da vida e d a
ciais vão desaparecer: a Natureza, a História, a Cidade. Sem totalidade. A filosofia chega a realizar-se? Qual filosofia? Não
contar o Absoluto filosófico, o dogma religioso, o imperativo se trata exatamente de ju lgar a modernidade, de descobrir nela
moral, o que chama a atenção para uma crítica das ideologias os sintomas de uma caduquice, de um declínio, de uma deca-
tanto ·q uanto para uma análise dos referenciais. Uma história dência. Se tomarmos como critério o Grande Estilo, o que é
mais minuciosa desses tremores de terra mostraria como, após que · não poderemos incluir entre as caduquices e as decadên-
cada abalo, uma nova certeza, mais firme, parecia próxima, cias? Ora, por que não conservar como referência, tanto quanto
mas não sem provocar z"nvestimentos maciços de afetividade e possível, a maior obra, Veneza, e o maior estilo: Atenas ou Flo-
engasgos curiosos. Quando os ''valores'' do trabalho se disso!-
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rença, ou seja, numa palavra, a Cidade? Por que não manter é necessana, mas não basta. Nunca ela foi suficiente, embora
a severidade do julgamento que resulta daí, mesmo se outros os filósofos tenham muitas vezes feito da necessidade uma vir-
a consideram insuportável? Bem, chega dessa questão. Aqui tude. Defronte está a cotidianidade, mas basta tomá-la como
deixamos de lado (por enquanto) essa problemática nietzschiana. referencial para que ela se torne insuportável. E não dispomos
O propósito é mais limitado, mais preciso. Procurando evitar de mais do que uma outra referência, acessível somente à mais
o sociologismo (privilégio de totalidade aplicado a uma ciência alta cultura. Vale dizer que os referenciais desapareceram, mas
parcelar), mas não d eixando de criticar esta ciência, a sociolo- não a lembrança e a exigência de um sistema de referências.
gia, o propósito é d e ordem sociológica. Por exemplo, durante Nessas condições, o que é que acontece? Somente o dis-
longos séculos a Cidade foi percebida, concebida, apreciada curso persiste, como fundamento das relações sociais. Sem crité-
em face do campo, mas através do campo , em face da Nature- rio , nem de veracidade nem de autenticidade, nem mesmo de
za. Ora, há um século a situação se reverteu: o campo é perce- objetividade, o que quer dizer que as relações perdem a sua
bido e concebido em referência à Cidade. Ele recua diante da base. O discur~, forma da comunicação , torna-se também o
Cidade, que o invade. O peso específico dos termos mudou. seu instrumento e conteúdo. Às vezes, através d e uma nuvem
É nesse momento que a Cidade explode (o que não quer dizer verbal que logo se faz mais espessa, pode-se entrever o conteúdo
que a realidade e a sociedade urbanas se dissolvem numa ultra- escondido: o cotidiano. Mas não queremos vê-lo; queremos
passagem da antiga oposição, que não deixaria sinais). Nesse ainda menos sabê-lo, porque não podemos aceitá-lo. Só fala-
momento em que a Cidade se torna referencial, ela desaparece mos disso e, no entanto, jamais falamos disso. Isso, no caso ,
como certeza sensível. A que é que nós podemos nos referir? não é o desejo, mas sim o cotidiano. "Aqui eu o interrompo",
(''Nós'', aqui, indica tanto o citadino quanto o rural). Este grita o interlocutor, presumivelmente válido. "O senhor fala
conjunto de fenômenos, relacionado à sociologia, não pode da cotidianidade em termos quase psicanalíticos. Onde se loca-
dei..xar de ter conseqüências. Uma observação: a Lógica, tomada liza, para o senhor, o cotidiano? Por toda parte e em nenhum
à parte, não constitui um referencial , salvo para os filósofos e lugar , evidente e escondido. Recusamos vê-lo e o repelimos.
para alguns intelectuais especializados. Que é que ela prescreve? Há uma consciência do cotidiano na linguagem do cotidiano.
A coerência, as regras a seguir para que uma mensagem não Se existe uma relação entre o cotidiano e o inconsciente, entre
se destrua a si mesma, o que convém a toda mensagem . o cotidiano e o desejo , faça o favor de explicitá-la."
Quanto à ciência, ou melhor, à cientificidade, esta pretende Muito bem. A primeira diferença é a historicidade do coti-
representar hoje o papel de referencial e até de código geral. diano. Ele nasce estando misturados degradação e progresso.
Pretensão que inverte os termos. Não é a ciência, por definição , Ele não jaz por baixo dps atos e das relações que desde o início
conhecimento do real? O real não é o real da ciência, menos estão fora da história . E um fato e um encadeamento de fatos,
ainda da cientificidade, exceto para uma m etafísica do saber. de ordem social ou sociológica. Se há estrutura escondida, a
Que é que subsiste como referencial ? Não há mais que dos álibis, ela faz parte integrada, embora não integrante do
dois: um ao nível da mais alta cultura, o outro ao nível mais cotidiano. Toda vez que o pensamento quer agarrar o cotidiano,
trivial e comum: a filosofia e a cotidianidade. Eis por que atri- este não foge para o inconsciente, mas desmorona. E, no
buímos tanta importância, tanto ''valor'' à filosofia. Não a entanto, ele é significado de todas as partes: publicidade, téc-
uma determinada filosofia, mas à Filosofia como mensagem, nicas de felicidade, ou melhor, de satisfação, organismos e orga-
como elaboração, através de uma longa história, de uma ima- nizações. Além do mais , que é que permite afirmar que o
gem do Universo e de uma idéia do Homem. Os lados efême- inconsciente se situa abaixo da consciência, como os bastidores
ros das filosofias caem: os acidentes, os usos e abusos das pala- de um teatro? O inconsciente é a própria consciência, na
vras, as metáforas, a retórica dos filósofos. Subsiste o essencial, medida em que ignora suas próprias leis (suas estruturas, se
ao qual a reflexão e a meditação podem referir-se. A filosofia pode parecer melhor). Nesse sentido, a cotidianidade é efetiva-
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mente a inconsc1encia e o inconsciente da modernidade. Q ue mesmo flutua no espaço. Ela parece apoiar-se na imagem , e é
é o desejo? Os psicólogos, psicanalistas e outros que fazem ela que precisa de apoio ; mas o próprio discurso não sabe mais
essa pergunta (que fazem assim a pergunta) carecem de con?e- sobre o que se apoiar e se aplicar.
cimentos filosóficos. O desejo não é. Os filósofos sabem d1sso Olh ando de mais perto, percebe-se que o desengate dos
há muito tempo. Ele "quer" . Quer o quê? Na medida em significantes e dos significados não é um fenômeno parcial,
que esse termo que designa o "ser" tem um sentido, o_ desejo local ou localizado. Verifica-se este fenômeno quando se des-
se quer a si mesmo. Ele quer c seu fim: seu desaparecimento creve a maneira pela qual uma determinada imagem - uma
num lampejo de prazer. Desejar isto ou aquilo, gozar e desfru- foto, por exemplo - tem várias significações explicitadas pela
tar, isso é significado. O significante (o psicanalista o descobre) linguagem do comentador, o qual, aliás, pode enganar-se
foge como tal. Ora, o cotidiano é designado por um número dizendo demais ou não dizendo o suficiente, deixando escapar
incalculável de textos escritos na imprensa (sobretudo n a a ''verdadeira significação''. A queda dos referenciais gen era-
imprensa dita feminina). No entanto, não se pode sistematizá- liza esse desengate. Por falta de um referencial e de um código
lo como tal , mas apenas aproximar do limite em que ele (sua que forneça lugares-comuns (os topoi e os koina, o tópico social),
intolerabilidade) explode. Ora, o desejo não pode nem se extin- a articulação não é mais assegurada entre as duas faces dos sig-
guir nem se reduzir; não se sabe qual é a sua essência, nem nos. Já assinalamos a existência dessas massas flutuantes de sig-
mesmo se ele tem uma, pois ele foge. Assim que se pretende nificantes (imagens errantes na nossa consciência e no nosso
defini-lo como instintivo ou sexual, ele se manifesta de ou tra inconsciente), desprovidas de sentido. Antigamente as obras
maneira, como total, mas assim que se pretende agarrá-lo de arte foram massas significantes oferecidas aos sentidos (à
como totalidade - vontade de poder ou de razão escondida vista e ao ouvido, à percepção sensível), mas não flutuantes.
- , ele irrompe como crueldade, delírio, violên cia, posse do Os "espectadores" ou "ouvintes", que não eram inteira e pas-
"outro" em forma de imprevisível etc. Pode-se dizer que o sivamente espectadores ou ouvintes, acrescentavam o signifi-
cotidiano é o lugar do desejo? Sim, com a condição de especifi- cado aos significantes, penduravam o significante no signifi-
car que é primeiramente e também o lugar do não-desejo , ou cado. Esses dois lados do signo e da significação apenas momen-
o não-lugar do desejo, o lugar onde o desejo morre na satisfa- taneamente ficavam um sem o outro; a ausência, provisória,
ção e depois renasce das suas cinzas. A uma pergunta pérfida não era um divórcio, mas uma exigência; um chamava o outro,
vamos responder como os normandos· . Sim, existe relação entre em vez de ir embora separadamente seguindo seu caminho;
cotidianidade e inconsciente, entre o cotidiano e o desejo. Entre- cada um (dos participantes) sabia como reencontrar significado
canto, não há. É outra coisa. Visto que a cotidianidade detém no significante, ou inversamente . A mensagem se reconstituía
a força das coisas, ela se inclina do lado das coisas. O desejo ' 'livremente'' e, no entanto , se decifrava de acordo com um
não. Mas ele é essa força . .. código conhecido que se reportava a um referencial aceito.
A ausência do referencial tem tanto mais gravidade na Assim se percebiam um monumento, uma catedral, um tem-
medida em que o discurso se mistura à imagem, numa ilusão plo grego, um palácio do século XVIII: uma obra, um estilo.
de estrutura: a imagem parece um referencial; ora, ela não tem Por falta de referencial , a margem de incerteza é dificilmente
(nem pode ter) essa qualidade. A imagem e o discurso remetem suprimida. Consomem-se significantes maciçamente, indistin-
um ao outro. A imagem traz um campo de significações (de tamente, no consumo dos signos. O engate se faz não interessa
significantes) muito vasto, sempre incerto e múltiplo, que só como , não interessa onde. Um ''sistema'' parcial pode assim
o discurso pode dizer (mudar em significado), enquanto ele captar significantes disponíveis. A Moda, por exemplo. Pode-
se dizer tudo com vestidos, assim como com flores: a natureza,
a primavera e o inverno, a manhã e a tarde, a festa e o hito,
• ''Responder como os normandos'' significa esquivar-se com uma resposta dúbia. (N.T.) o desejo e a liberdade. O "sistema" se apodera de tudo, até
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a-
mesm o da aprop riação , qu e se..-t orna fictícia, imagi nária. Pode- da" só tem uma existência suspe ita (não suspe ita de "priv
za
se dizer não impo rta o quê? Sim e não. Do engat e é a autor
i- ção", mas de escapar aos regul amen tos). A lingu agem valori
ou elas só têm existê ncia social quan do
dade que se ocupa . Ela pode impo r não intere ssa o quê, as coisas. Muito mais:
uma
quase . É verda de que em certos mome ntos esse irredu tível, nome adas, .desig nadas , sistem atizad as (esta afirm ação é
faca de do1s gume s: bem enten dido uma "cois a" só existe
esse "quas e", torna-se essencial.
social mente quar:d o nome a?a, no en~anto, aquel e que trans-
Contu do, é na vida cotidi ana que se cump re mais ou forma este enunc iado em le1 e em regul amen to autori tário
rea-
meno s, mais mal que bem, o reeng ate, o ajusta mento dos signi- liza a mais perigo sa das operações, aquel a que legiti ma o pode r
ficantes e dos significados. Lá é preciso viver. Atrib uímos como absol uto, poder que perten cerá àquel e que " nome ia": ontem ,
o
podem os os significados aos significantes, cada qual prete ndend Deus e seus repres entan tes, hoje ou a:manhã, o Prínc ipe
e sua
r fascin ante dos
ter razão, o que explicaria muito bem o caráte corte;_e ~eremos saltad o da trivia lidade e da tautol ogia para o
se
signos. Flutu ando por massas, por nuven s, por névoas, eles autor nansm o sober ano!) .
ituem ·os atos, e
oferecem. Semp re ao nosso alcance, eles subst Sem deixar de se desvalorizar, a lingua gem faz os seus valo-
o interesse atribu ído às obras se transfere para os signos . e
res. Ao mesm o tempo , ela faz o cotidiano; ela é o cotidi ano
Entre os processos muito comp lexos de substituiÇão, de o ilude; mascara-o recusa ndo-s e a desve ndá-lo . Ao contrá rio, dis-
u-
deslo camen to e de recolocação, aí está, porta nto, um partic simul a o cotidiano, enfeit ando- o de retórica e de imagi nário.
A
s
larme nte curioso. Relações de lingu agem , isto é, const ituída lingu agem e as relações de lingu agem tornam-se assim, no trans-
es
pela forma da lingu agem e nessa forma , subst ituem as relaçõ correr do cotidiano, negação da cotidi anida de. O discurso
se
lho e divisã o do trabal ho, coope ra-
baseadas na ativid ade (traba desdo bra. De um lado, contin ua a repres entar seu papel de ins-
ção em e para uma "obr a" ou um "prod uto", sentim entos trume nto de análise prática do real (prático-sensível e social).
Ele
se
etc.). Os grupo s ativos e as relações ativas dos grupo s que cump re as suas funções, denot a, desig na situaç ões. Mas, por essa
ncia aos costu mes, aos objeto s e objeti -
comu nicav am por referê razão , ele se empobrece. Nada mais curioso e mais significativo
relaçõ es basea das na comu nicaç ão for-
vos são subst ituído s por que as entrevistas não-d irigid as 2
(tão "livre s" e espon tânea s
con-
mal, elevando-se o meio a fim, e a forma , a conte údo. Por quant o possível) regist radas por um grava dor e em segui da anali-
s basea dos na ativid ade produ tora (em-
segui nte, os grupo s sociai sadas semanticamente. Dois ou três adjeti vos voltam com uma
atin-
presa, sindic ato) se espec ializa m e se localizam . Se tenta m freqü ência temível (é moch e, está bien) . Dois ou três advérbios
é por interm édio da ideolo gia (a racion a- · ent, auto-
gir um estatu to geral, bastam para denot ar o conju nto das pressõ es: forcém
",
lidade da empresa, por exem plo). Grand es grupo s "info rmais matiq ueme nt, y a, y a pas, c 'est com me ça •. As mesm as ·pala-
ocu-
isto é, baseados na lingu agem e em relações de lingu agem , vras conot am muito pobre mente as conseqüências das pressõ
es,
l, o lugar dos grupo s destit uídos . Esses am de
pam, na escala globa a os desgostos, as decepções. Algumas palavras design
grand es grupo s são mais biológicos que sociais: as mulh eres, mane ira demo nstrat iva e desilu dida as coisas , confu ndida s na
para si
juven tude, os velhos. Eles prepa ram uma lingu agem coisa geral: o ' 'negó cio'' , ' 'o troço '' (sem nenhu ma ironia
), ou
sen-
mesmos , nada mais . Nesses grupo s fala-se por falar , para se mais simpl esmen te: "isso ". Para se designar, a pessoa usa humil
-
de
tir junto (in). Para comu nicar, para mant er tamb ém a vida deme nte "a geme ", que tem a vanta gem de designar tamb ém
obje-
grupo!. qu e só consiste em comu nicaç ão, sem objeto nem
o, do bate-p apo, da tagare lice, que
tivo. E o reino da falaçã
a na prime ira ocasiã o. Essa profu são de lin-
passa para a escrit 2
cf. Inscituto de Sociologia Urbana : Les pavil/onnaires, Paris, C.R.U .. 1966. t. II (N.
guage m, notad a pelos escritores, tem corolários de ordem socio- .Haum om).
-
econô mica: a prolif eraçã o dos escritórios e dos empre gados Trata-se de expressões coloquiais muito comuns em francês,
,
que. em portugu ês, cor-
cafona: bien- bom, "le-
a racionalização "séria " que se confu nde com a eficácia racio- respondem aproximadamen te a: moch e- feio. horrível
ticamen te; y a, y a
gal": forcém ent - forçosamente; automa tiquem ent - automa
nal , a indiscrição de uma buroc racia para a qual a ''vida priva- pas- há, não há: c'est comme ça- é assim, é isso aí. (N.T.)
132 133
outras pessoas e de disfarçar o individual. O pronome ''nós'' é prescrito, formulado, funcionalizad o; escreve-se nos muros,
·d mo audacioso· ele afirma e se afirma Imprudentem ente. no que resta das ruas, nos "centros comerciais", nos estaciona-
n o co , · l · "E
0 outro em geral é "eles" .. Eles fizeraiD: 1~0, <:. es v1eram. . - mentos e nos postos de atendimento, nas paradas de ônibus e
les" é a intervenção, a autOndade, a-·admuustraç ao, a burocracia, de metrô. O habitante do barracão monologa. O habitante das
os poderes (diante do~ qu:is as palavra: se des~m~ e se ~tornam cidades novas dialoga com os poderes, com o Estado onipre-
suplicantes por antec1paçao ). Quanto a apropnaçao, ela e deno- sente e ausente. Este habitante fala a linguagem da sabedoria ,
tada ainda mais miseravelmente e. ~parece s?bretudo em algu- de uma sabedoria organizada, que reclama ainda mais, sempre
mas conotações: ''Como a gente v1v1a bem la em casa .... 1
E essa mais da organização. Ao delírio racional de um - o habitante
agora? ... ''. Aí está a pobre expressão da pobreza real (da pobreza
do barracão - responde o racionalismo delirante do outro. O
do real). E agora este habitante d: ~m~ c~a d~ :_a:npo, ou este imaginário, para o habitante do "grande conjunto", é a racio-
casal, peça-lhe para falar da sua ex1stene1a rmagmar1a, dos praze-
res maravilhosos da sua casa de campo, esquecendo-se das pres- nalidade das prescrições que legitimam o emprego do seu
tempo, o consumo da sua vida. A cotidianidade do "íntimo"
sões e desgostos: ele se manifesta inesgotável. Pass: ~o coo! ao
escondido no coração do cotidiano se identifica com a rápida
hot, a mais ingênua retórica se desdobra. Op?stas a ~1dad:_ e ao
centro urbano (ilusoriament e, pois o subúrb10, proliferaça<? da e fugaz recuperação dos dias, semanas, meses que passaram,
cidade, ainda faz parte dela; o habitante da casa de campo amda após a fadiga . Para todos, o sentido da vida é a vida despro-
é urbano; ainda que ele se veja fora ~a cidade e pense estar con- vida de sentido; realizar-se é ter uma vida sem história, a coti-
. tra a cidade, ele não está fora da soe1edade urbana\ as casas de dianidade perfeita. Mas é também não vê-la e fugir dela assim
campo representam a Natureza, _o sol, o _verde, a saude e, fmAal- que for possível.
mente a liberdade. Enqua.m o 1sso, a cidade e· seu centro tem Eis algumas anotações a sublinhar. Se fixamos a realidade,
como ~tributos· a facticidade, a morbidez, a servidão. , se imobilizamos o pensamento nessas categorias congeladas,
Assim transparecem no seio da linguagem (apesa7 de . o~ temos diante de nós um quadro de oposições·. Cada termo
através da sua pobreza) moda).idades ou modu~a~ões da vid_a coti- remete a outro numa relação transparente . O repouso se opõe
diana , segundo o hábitat: subsistemas _no condia~o . s:> d1scurS? ao trabalho , e inversamente . A cotidianidade se opõe às férias ,
ao mesmo tempo oculta e desvenda, diz o q':le nao diz.:. O co~­ e reciprocamen te. Se paramos de fixar o pensamento em suas
diano se revela sempre feito de dobras, de cu~nvoh:-çoes: t;T~o próprias categorias, uma vez mais percebemos qu e, de fato ,
há cotidianidade que não tapeie , an~es. de fugir. O 1magmar1o na prática cada termo fornece um álibi aos outros. O lazer serve
tem esta função e a cumpre. No coudiano que ~re_nde a,s, pes- de álibi para o trabalho, e este para aquele . A partida e a rup- '
soas, a cotidianidade se opõe para elas ao não-cond1ano: e~tar tura do cotidiano (férias) servem de álibi para a cotidianidade .
em casa'' no trabalho para alguns, nos lazeres para outros. Assrm, E inversamente . Entre essas duas perspectivas, existe a diferença
a cotidianidade se desdobra e uma das suas panes to~a o .IIl:odo de uma reflexão estática para um pensamento, de uma ideolo-
de existência do imaginário. Na representação , o 11?-a1s cond1ano gia estruturalista para uma razão dialética .
escapa à cotidianidade . Para muitos, entre os quaiS os mo~ado- Mas não esqueçamos o caso dos habitantes da Cidade (do
_... res das casas de campo, é a intimidade (im~ginada e enfeitada centro ou do que restou dele). Hoje, mesmo pobres, são privi-
como fora do alcance dos que estão no extenor, dos olhares, d? legiados. Amanhã, isto é, dentro de alguns anos, o centro das
sol da vizinhanca e até do resto da família, por paredes, com- Cidades (Paris, Nova York) penencerá, .sem dúvida e salvo algum
n~. ·tapeçarias, ~om muitos objetOs, na tranqüilidade , na dis~i­ acidente, aos únicos privilegiados do dinheiro e do poder. Sua
ção, no silêncio, num canto onde não acontece nada , na perfeit31- relação com a cotidianidade difere daquela que involuntaria-
propriedade de um resíduo de espaço e de ~empo). Para o habi- mente os periféricos contraem (as pessoas dos subúrbios, mora-
tante de um grande conjunto e de uma c1dade nova, tudo s~ dores dos barracões, habitantes dos novos conjuntos etc.). A
passa de maneira diferente . Seu emprego do tempo e apropriação balança as pressões. Mesmo pob.res, dizemos, eles
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iam do passado e sua margem de iniciativa con:inua rer, como também uma casa de sitiante ou de um arrendatário
se b enefic . " . · · "' · d d d ganham hoje elevado status, quando não adquirem um certo
considerável. Em torno dele~, a eXlstencia un~gma~Ia a _ci, ~ ~
fica menos fictícia e decepcwnante que na Situaçao perifenca, esnobismo.
os monumentos a sustentam, assim como os e~c.ontros ~a rua, · Poderíamos anunciar o urbano como resistência efetiva e
e as atividades múltiplas, não separadas do pratico-sensivel. O virtualmente vitoriosa contra a cotidianidade. Poderíamos cercá-
imaginário urbano exalta a apropri_ação do, ;empo ~do ~~paç?. lo e discerni-lo não como um imaginário acima das pressões
Os habitantes da cidade se apropnam da centrahdade , d_Is- ne_m como um sistema de signos a ser contemplado ou consu~
pondo de uma massa de significantes pouco separados d<:>s sig- ~Id~ , mas como "outra coisa" que supera efetivamente a coti-
nificados. É lá numa determinada rua do centro de Pans que diamdade relegada e degradada , funcionalizada estruturada e
se pode ainda surpreender o viço da l~nguagem popular, sua por assim dizer, ''especializada'' . Seria o ''urbano'' indicad~
verve, sua riqueza. Por algum tempo amda .... . també.O: como referencial possível, o ''urbano'', isto é, a vida
No centro das cidades antigas, e pamcularm~nte em e a sociedade urbanas, e não a cidade morfológica, plantada
alguns lugares privilegiados, socialmente be~-sucedidos (em no terreno e encarnada por símbolos e sianos, e menos ainda
Paris, a estação St. Lazare ou o ~ulevar St. MI~~el, talvez ~t. a ~idad~ tradi~ional pa~a sempre explodida? É possível, mas
Germain-des-Prés e os Champs Elysées; em Müao, _as gal~nas eXIste a1 um nsco. Qua1s são as c"ondições da urbanidade do
da praça do Domo; em Nova York, o seto~ que vai ~e T!JlleS "urbano"? Quais são as bases materiais, os fundamentos t~óri­
Square ao Central Park), seria somente _a vida de ~nngame_nte cos? Não sabemos ainda, nem temos obrigação de saber. Evite-
que se prolonga com as marcas do esnlo?. E~a resi~te pass~va­ mos por enquanto proclamar uma nova entidade uma nova
mente, pelas nostalgias , à irrupção do condiano, ~ :u.a plena idé~a platônica, uma essência. Enquanto a tendê~cia (para a
(se ousamos dizer) realização n~s fragmentos perifencos das soc1edade urbana) não for elucidada, concebida teoricamente,
cidades que explodiram morfologicamente , os setores dos barra: algumas reservas são necessárias.
cões, as cidadelas novas e novos conjuntos? Não se pode ver ai Dos falsos abismos, dos buracos onde se enrosca no seio
uma promessa, um anúncio? do cotidiano, a mais estreita e a mais especializada c~tidiani­
Sem dúvida alauma. Uma coisa não impede a ~utra. A dade, sobe o grito da solidão. Solidão impossível: pela comuni-
nostalgia não susten~a a promessa, mas também não a u~pede. cação que_não cessa, pela avalanche de informações. A comuni-
Nesses lugares favorizados, o "urbano", germe da soc_Iedade cação efenva torna-se o possível-impossível, obsessão e tormento:
urbana virtual, se mantém e talvez se confir_me. O esnlo hot possível a cada momento, impossível porque falta uma condi-
se conserva aí e, quem sabe, prepara o seu tnunfo. O valor de ção. As _pessoas (indivíduos e grupos) podem comunicar sem
uso da cidade predomina ainda nesses lugares sobre os valores referencial? Não é através do referencial que se comunicam?
venais (para os turistas e os ~oml?radores). O~ encontros se mu~­ Se nenhum referencial irrefutável não transparece para as pes-
tiplicam, imprevistos e previsíveis nesse ambient_e .. EI:s teatrah- soas, e em torno delas, não vão elas buscar em outro lugar
zam (dão ressonâncias, prolongamentos) a condiamdade. Os (mas onde?) um referencial fictício, um referencial qualquer?
diálogos têm sentido, e as pessoas sabem de que e por que fa!am Se os campos semiológicos considerados incontestados (não ape-
(até um certo ponto). A violência _latente, longamente connda, nas o bo~ se~so ~as também a música e a canção, os gestos ,
explode aí. As inform~ções _se aJU_?t~, se acumulam e, d_e as maneuas ntua1s , os rostos) não se encarregam mais desse
súbito, algo de novo vai surgir. O ludico r;n?va as formas ann- papel, quem ;~i a~s~mi- lo? Ele deve ser assumido! E não ape-
gas e às vezes inventa. Este reto~no nostalgico para as ~ormas nas quando ha md1v1duos presentes (ou ausentes) ou vários indi-
antigas para se apoderar delas e mar delas algo de n<?~o e segu- víduos (um grupo grande ou pequeno), mas em escala social.
ramente paradoxal. Um aparta.:nento yobre, mob_:h~~o co~ Para a mais alta consciência (não vamos permitir que a ironia
móveis que um pequeno-burgues do seculo XIX nao ma que alce vôo; trata-se efetivamente da mais penetrante reflexão,
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b) Reflexão sobre essas linguagens, em busca d e uma meta-
da mais intensa meditação sobre o conjunto das coisas sociais ciência geral das linguagens (cientificismo positivista), metalin-
e mentais), se não há mais referenciais para a linguagem, é guagem das ciências divididas (parcelares);
porque a linguagem se torna o seu próprio referencial. A mais
alta consciência ignora ou fmge ignorar: a) que assim ela se
c) Transformação da ciência da linguagem em protótipo
retrai sobre si mesma e se dispõe a usar e abusar de sua lingua- de ~o da ciência e de todo conhecimento , elevação da epistemo-
gem; b) que ela abre o caminho ou segue a rota da consciência logia em forma e modelo do conhecimento sistemático (rigmo-
popular, da cotidianidade. so), em tipo de inteligibilidade, de realidade, de existência (ao
mesmo tempo teórica e prática, a ciência da informação e da
Na literatura, o movimento se anuncia muito cedo, desde comunicação apareceria como a ciência das ciências e como a
meados do século XIX (fracasso da Revolução, primeira consoli- realidade sociológica "em pessoa").
dação do capitalismo, extensão do mundo da mercadoria e do
Não é empolgante esse tríplice movimento, pdo qual
poder do dinheiro etc.). Discernimos três momentos: emergem estruturas mentais que são ao mesmo tempo estrutu -
a) A alquimia do verbo (a palavra do poeta e seu discurso ras sociais (e superestruturas da sociedade), ou seja, simultanea-
livre de entraves bastam para metamorfosear o cotidiano, a mente do ideológico e do institucional? Essa sociedad e "é"
transgredir e a transfigurar o real: de Baudelaire a Joyce ); funcionalista, formalista, estruturalista. Ela extrai a sua repre-
b) A linguagem como outra realidade (a poesia como sentação (ideológica) dos conceitos de função, de forma e de
outra natureza superposta à primeira, material e social; o lirismo estrutura tomados isoladamente e interpretados com acréscimo
"quente" , o surreal e o Surrealismo, mas também o Expressio- de uma fi!osofia. As representações que essa sociedade apre-
nismo , o Futurismo, o Cubismo etc.); senta de SI mesma (que os seus ideólogos fornecem e lançam
c) A forma como realidade (a escrita no estado puro, a no _mer~ado das idéias) a partir dos seus próprios conceitos ope-
prosa do mundo na sua frieza e rigor, por exemplo no nouveau raclOnais, essas representações acabam mal: em impasse, sem
r:_oman, mas também no neoformalismo em geral, na literatura c?nclusão, em águas turvas. Uma sociedade não poderia consis-
com pretensões estruturalistas etc.). tir numa soma de formas, de funções e de estruturas. A socie-
Movimento perceptível na filosofia, que passa também dade não podia - não mais do que a sociedade do tempo
para estes movimentos encadeados: em que Marx analisava o individualismo, ideologia dominante
e prática social da burguesia como classe - consistir (existir
a) Reflexão sobre o Lagos filosófico, linguagem conside- de maneira coerente) numa soma de indivíduos. Para conhecer
rada expressão da Razão absoluta, sujeito supremo, anexa a essa sociedade, é preciso empregar os três conceitos da mesma
um conteúdo, forma desse conteúdo (objetivo ou metafísico) maneira, sem privilégio nem extrapolação. A análise dessa socie-
com Hegel e seus sucessores; dade de acordo com esses três conceitos-chave conduz em dire-
b) Reflexão sobre a linguagem filosófica , isto é, sobre o ção a uma outra análise, a que se efetua aqui conforme os dois
vocabulário dos filósofos, considerado essencial pela filosofia, conceitos associados: cotidianidade-mo dernidade. Assim, reen-
herança e legado dos filósofos (colocação do vocabulário , da contr~-se os r;notivos da importância prática assu~ida pelos
semântica, dos termos filosóficos em primeiro plano); conceitos menc10nados e as razões de sua importância ideoló-
c) A linguagem como filosofia (dois pólos: o positivismo gica. A análise permite compreender como essa sociedade se
.lógico, a ontologia fundamental de Heidegger). prescreve e se vê, a partir do que ela é, bem como a maneira
. Enfim, no conhecimento científico, fora da filosofia, mas pela qual ela re-produz suas relações constitutivas estranha-
não sem conexão: mente frágeis e sólidas, singularmente estáveis (o cotidiano)
sob o fetichismo do efêmero e da mobilidade (a Modernidade).
a) Elaboração das linguagens das ciências especializadas e
A solução dessa contradição nos aparece agora no nível das rela-
parcelares (desde meados do século XIX);
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ções da linguag em, onde se reconcil iam o durável e o fugaz. A redução que os lingüistas efetuam legitima mente (pondo
Essa sociedad e se sustenta e funcion a pelo discurso. Daí a trí- entre parêntes es a palavra, o conteúd o do discurso , o contexto
plice emergên cia dos três aspectos do discurso, na reflexão (filo- social) permite que eles se instalem no inten'or da linguag em
sófica), na ciência, na retórica literária ou não. como forma (princíp io de imanênc ia). Restitui ndo o contexto ,
Não é nosso propósi to aqui expor os motivos , razões e cau- uma análise sociológica faz aparece r de maneira diferent e as
sas desse tríplice movime nto e de mostrar a homolo gia entre formas, as funções e estrutur as da linguag em, os níveis e as
esses três aspectos. Esse capítulo de uma história das ideologias dimensõ es, os sistemas secundá rios, ou subsiste mas (de conota-
e das idéias no mundo modern o tem seu lugar em outra obra •
3 ções) no interior dos sistemas formaliz ados ou sistemas denota-
Basta-nos, para abrir o horizon te ao invés de fechá-lo, utilizar tivos. Dessa análise , o lingüist a dirá talvez que ela é "transli n-
o que já foi adquirid o (sobretu do a análise dos níveis e dimen- güística ", o que quer dizer logo em seguida "transci entífica ".
sões na linguag em). I
Por exemplo , se mostro como Marx conside rou a troca e o valor
-I de troca uma forma (separad a por uma redução específica) e
em seguida conside rou-os uma lógica, uma linguag em, uma
2. A metalinguagem dupla cadeia de coisas e de significações, portant o um '' mun-
do" , e se afirmo que Marx teve razão e que esse início do Capi-
A teoria da metalin guagem baseia-se nas pesquisas dos tal é particul armente notável, se bem que muitas vezes despre-
lógicos , dos filósofos, dos lingüist as (e nas críticas a essas pes- zado, estou pratican do, segundo alguns, um ato não-científico.
quisas). Lembre mos a definiçã o: a metalin guagem consiste Lanço-me na ideolog ia, na filosofia subjetiv a. Não é ultrapas -
numa mensag em (ajuntam ento de signos) voltada para o código sar o direito de uma especial idade levantá- la como regra para
de uma mensag em, que pode ser uma outra ou a própria. a ação e contesta r a cientific idade de qualque r outro procedi -
Ocorre metalin guagem quando alguém (o locutor) se refere a mento? Se o procedi mento sociológico não convém a um lin-
uma parte do seu código, nem que seja para definir uma pala- güista, ele se induz ao erro. Não existe, entretan to, tribuna l
.
vra ou voltar atrás para explicitar uma significação . Isso quer· para julgar.
dizer que a função metalin güística é normal, corrente , essen- A restituição do contexto social restabel ece assim o movi-
cial ao discurso (R. Jakobso n). A metalin guagem , discurso sobre mento dialético. Se examino somente a forma da troca, do valor
o discurso, discurso em segundo grau, aparece no discurso; não de troca, da mercado ria , destaco sua lógica , suas possibil idades
haveria mesmo discurso possível sem comunic ação prévia do de extensão sem limites, sua linguag em e seu mundo. Esse pro-
código e, por consegu inte, sem metalin guagem ; ela faz parte cedimen to rigoroso em aparênc ia implica erro e até mesmo
da aprendi zagem d e uma língua. Retoma ndo uma metáfor a representação que se pode dizer falsificada. Soment e a análise
filosófica, podemo s dizer que uma almofad a de metalin guagem dialética, que leva em consideração tanto o trabalho social
envolve a linguagem. O próprio lingüista faz o quê? Ele decripta , quanto o contexto no qual se insere a forma, somente essa aná-
decodifica e sistematiza essa operação. A lingüística é uma meta- lise atinge o concreto , ou seja, o movime nto e os conflitos que
linguag em que se eleva acima da linguag em e confere a si ele envolve e desenvolve. Por exemplo , se estudo in abstracto
mesma um estatuto epistem ológico . Anterio r ao uso da lingua- o mundo da mercado ria como riqueza , sua extensão como cres-
gem e da língua, isto é, anterior ao discurso , a metalin guagem cimento , esqueço os limites que a existênc ia de outros '' mun-
é também posterio r. Ela envolve o discurso como condiçã o e dos'' lhe impõe, como a Pólis de outrora , a Cidade possível,
como reflexão. o mundo que precede e o que segue o reino soberan o do valor
de troca e da mercadoria. Procede ndo assim, com toda boa cons-
ciência (ignoran do e rejeitan do o pensam ento de Marx), com-
> Cf. principalm ente: Introduction à la modemité , Ed . de Minuit, m as também o ponho a metafz"nguagem da mercado ria. Acredit o estar fazendo
volume Ili de Critique de la vie quotidienn e (ed. Arche).
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economia política. Ponho entre parênteses os mais violemos rura) obedeçam como as matemancas e o capital a uma lei
dramas da modernidade e da cotidianidade. Muito mais: esse cumulativa refreada unicamente por fatores inessenciais. Múlti-
silêncio "científico" legitima indiretamente a estratégia que plas mensagens são ilusões de mensagens .. Elas decodificam
visa à integração ao mundo "livre" (aquele em que a mercado- mensagens antigas, são discursos sobre discursos, procedem por
ria se desenvolve livremente) dos setores e dos países ditos sub- recorrência. Aceitáveis como exegeses, como "reflexões" de
desenvolvidos, assim como dos chamados países socialistas. valor histórico, elas não são aceitáveis na própria medida · em
Em tal situação, uma pretensa ciência não diz nada sobre a rea- que recusam sua referência e a relegam à sombra, onde postu-
lidade . A metalinguagem não pode ser tida como inofensiva lam a refutação da sua própria historicidade. O caso mais " ino-
nem como inocente! cente'' é aquele - bastante freqüente - do ·livro composto
A restituição do movimento dialético - com relação à de citações invisíveis.
redução e à formalização legítimas que o lingüista opera - faz Atingimos aqui o ponto de partida e o fio de uma crítica
aparecer conflitos de que o lingüista não pode suspeitar. Ainda radical da modernidade. Essa crítica, bem entendido, vem de
uma vez, é seu direito, mas ele não tem o direito de impedir encontro a preconceitos favoráveis, a entusiasmos excitados e
que essas contradições sejam trazidas inteiramente à luz. Existe interessados, a representações fabricadas pelos apologistas . Não
conflito entre a função referencial e a função metalingüística. há um justo meio-termo concebível entre essa crítica radical e
Esta corrói e suplanta aquela. Quanto mais opaco se torna o a auto-satisfação, a autocongratulação que cada dia e cada
referencial , mais cresce a importância da metalinguagem. semana o leitor lê n a imprensa. É tudo ou nada. No que se
Quando a linguagem e o discurso são tomados como referen- refere ao século XX, temos um princípio de crítica análogo
ciais, estamos no reino da metalinguagem. Operando no segundo àquele que Marx captou na análise do indivíduo e do indivi-
grau (e às vezes no terceiro) , a· metalinguagem afasta e dissolve dualismo, representação (ideologia) dominante em meados do
os referenciais. Reciprocamente, cada desaparecimento de um século XIX. Se as preocupações relativas à linguagem ocupam
referencial anuncia a extensão de uma metalinguagem (ou da a cena, é porque nós passamos, sem o saber, da linguagem à
metalinguagem num setor particular), de modo que a metalin- metalinguagefl}. A esse nós a boa consciência cochicha: ' 'Eis
guagem substitui a linguagem, transferindo para si mesma os aí o essencial! E assim mesmo. Nossa problemática é ao mesmo
atributos de linguagem dotada de um referencial. Cada referen- tempo atual e eterna... ''. A crítica radical replica: ''Você se
cial que cai libera significantes soltos, destacados e, por conse- estabelece na superfetação. Você pretende passar··da ilusão para
guinte, disponíveis. A metalinguagem se apodera desses signifi- a verdade; cujo sistema o envolveria de todos os lados com a
cantes e os utiliza num emprego "no segundo grau". Esse linguagem - verdade cuja irrupção seria iminente. Pois bem,
emprego contribui para dissolver os referenciais , e a meralin- não! Não é sem conseqüências que as revoluções têm fracassado
guagem reina sob uma luz fria (o gênero cool). na Europa desde mais de um século, que as capacidades criado-
A tese defendida aqui e noutros trabalhos é que ampliar ras imanentes à produção industrial foram obscurecidas , que a
e submeter à mais viva iluminação o discurso e a linguagem , ênfase foi dada ao que devora. E essas preocupações que o tor-
nam cão orgulhoso não indicam uma grande prosperidade cul-
tanto na vida social quanto na cultura e na ciência, comportam
tural. Seriam ames os indícios de uma crise radical que vai até
uma estranha ambigüidade. O que se traz ao primeiro plano
as raízes . . . ''. Eis alguns indícios.
é a metalinguagem. O conceito de mensagem (formalmente
rigoroso , na teoria abstrata das comunicações) deve passar por a) As obras. Entre essas obras que parecem obedecer a uma
uma crítica ainda mais rigorosa. Existem pseudomensagens, lei da acumulação, pela mesma razão que a memória ou o conhe-
cimento, quantas devem à metalinguagem a sua "mensagem" ?
como existem pseudo-acontecimentos, pseudonotícias, pseudo- !' Uma grande parte das obras e, entre aquelas que resistem, uma
novo . E uma pseudoprodução e pretensas obras. Apenas um
delírio racionalista pretende que as obras (filosofia, arte, litera- boa parte da sua contribuição aparente. Tratar-se-ia de obras

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tão inextricável que não se consegu e mais desenre dá-las. Na
menores, daquelas que podem ser atribuíd as à imitação , à cópia melhor das hipótese s, esses filósofos desvelam o que Platão,
dos modelos? Absolut amente. Trata-se precisam ente de obras Spinoza ou Fichte pensara m "em profund idade". Filosofa-se
tidas como magistrais, exemplares, profund amente originais, na/ sobre a fllosofia, como se faz poesia na/ sobre a poesia,
expressivas ou significativas (coisa nova, coisa modern a). romanc e sobre o romanc e (e sobre o romanci sta), teatro sobre
Exemplos? Há muitos. Eis aqui um: Picasso. Por que não o teatro (cinema sobre o cinema , sobre o romanc e, sobre o tea-
se dirigir diretam ente a ele , em apóstrofe, com uma insolêncta tro , sobre a fllosofia). Por toda parte, o discurso sobre o dis-
proporc ional à sua grandez a? "Pablo Picasso! Você é o maior curso , o segundo grau, o cool, a metalin guagem com sua ilu-
artista atual, e como tal conheci do, reconhecido, saudado no são, o reflexo que é tomado por algo novo. E que às vezes traz
mundo inteiro. Que a glória o inquieta , disso não há nenhum a algo de novo, quando ele sabe que é reflexo, frio e branco,
dúvida. Mas como você a concebe? Acha que realmen te essas destruid or e autodes truidor. ·
pessoas se inclinam diante do seu gênio? Onde está a falha , o O interloc utor se impacie nta e se indigna , e com razão:
fmgime nto (o seu), a falta? Sabe como Marx viveu, como mor-
"Belo trabalho de difamaç ão! Você não poupa nada. Diante
reu? E como é preciso encontr ar hoje, no pensam ento dele , o
irredutível? Se é verdade que você procuro u a Revolução como dos seus olhos nada merece conside ração'' . Não se trata disso.
uma pessoa sedenta procura a fonte, como e por que a sua obra Assim, a questão é apresen tada muito mal. O único problem a
foi absorvida, assimilada, integrad a? Ela é testemu nho de quê? é saber se a argume ntação conta, se ela presta contas de alguma
Da Revolução ou dos fracassos? Quem é você, Pablo Picasso, e coisa, se ela tomou e se restitui alguma coisa (no objeto, no
onde você está? Que é que não se pode reconhecer nas suas telas? objetivo e nos objetivos, no sujeito e nos sujeitos , ou seja, nas
Velasquez, a pintura espanho la e a arte negra, e o espírito grego, estratég ias efetivas). Ainda por cima, não é nada exato. No
e o Mediterrâneo, e o touro de Minos e o que mais ainda? Será horizon te e no caminh o desentu lhados pela crítica radical há
que somente o oceano lhe escapou? Você é o museu imaginá rio obras que existem e que subsiste m. Quais? Obras que são ou
realizado em pessoa. Você termina um mundo. Eis aí o balanço foram durante muito tempo conside radas menores, mas que,
e o inventário. Os séculos estão diante de você, reduzid os aos por outro lado, tratam (direta ou indireta mente) da cotidian i-
seus elementos, desman telados, demolid os, jogo magnífi co e dade, muitas vezes girando em torno dela sem nomeá- la, mas
enganad or. Você atingiu o cume da sua vida no fun dela, mostran do-a de tal modo que é não nomeá- la e sim descrevê-
quando compree ndeu o seu tema: O Pintor e seu Modelo. Então, la face a face . "Pois então cite essas obras!" Aqui estão alguns
com alegria triste e humor sereno e crueldad e contra você mesmo, títulos: Le p ere, Ubu, Voyage au bout de la nuit, Demain les
disse enfun o que tinha a dizer. Você elucidou a pintura como chiens, Sous les t/olcans, Nai'ves hirondelles, L 'extn'cable, Les
linguag em, como conjunt o de signos, como escrita. Você disse choses. - "Mas você está abusand o! De quem você fala?"
tudo: como, em sua relação com o que pinta, o pintor é alterna- - ''De pessoas que me agradam . Tanto pior para você se não
dament e exaltação e depreciação, ternura e crueldad e, admiraç ão as conhece .. . Nada o obriga a achar que esta lista é exaustiva.
e desencantament o , respeito e mau trato que escarnece. O Comple te-a, se isso o diverte! " - "Você está tentand o sair-se
Modelo é o mundo e a arte inteira, não apenas a mulher. Obri- bem da situação . O problem a era a cotidian idade , depois você
gado por essa vintena de telas, obrigad o pela destruição jubilosa envered ou por uma grande diatribe contra a literatur a e a arte
e pela.aut odestruição sacrame ntal ... ''. modern as, e agora está querend o voltar ao cotidian o. Pelo
Esse discurso, a quem não poderia ser dirigido ? Àqueles menos não vá querer dizer que o Ubu faz parte do cotidian o."
que fabricar am ou utilizara m a metalin guagem da Revolução? - "Pois faz, é exatame nte isso. E desconfio que você anda com
Do amor? Para o filósofo é ainda mais simples: a temátic a, a um pouco de má-fé. Você sabe perfeita mente que Ubu é o Pai
problem ática, as categorias daquele s que tentam prolong ar a e o Chefe (inclusive o chefe de repartiç ão), e o Patrão, e o Mes-
velha filosofia se mistura m à história dessa filosofia de forma tre , e tudo o mais que figura na cotidian idade. Ubu une o coti-
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diano à modernidade. Como você explica que essa farsa, essa · Ora, essa metalinguagem não é muito modesta, jamais des-
zombaria, esse arremedo de peça nos obseda, a você e a mim, provida de pretensão. Ao contrário. Suas ambiçõ"es vão longe.
e não apenas a você e a mim, que se coloque em evidência, Ela quer "fazer participar", "fazer introdução a .. . ". Ao turis-
que este século seja o século do Ubu?" Jarry conseguiu nomear mo, aos consumidores em massa , aos espectadores, são entregues
o inominável, levantar uma estátua de barro , erigir um monu- a Cidade, a Beleza, a Natureza ou a Naturalidade. Sem omitir
mento ~ abjeção. E, ainda por cima, essas obras não escapam a Humanidade. Esta função metonúnica do discurso não é nada
à crítica radical. Elas fazem rir , enquanto mostram o caos san- menos que inocente. Ela cultiva as essências, as entidades, as for-
guinolento. Elas tornam interessante o que destrói qualquer inte- mas, deixando crer que entramos em contato com elas. O dis-
resse, cumprem a função metafórica e realçam a metalingua- curso passa facilmente da parte para o todo (de alguns termos
gem. A alusão ao cotidiano, que o transforma em tema de iro- de estética e de algumas fórmulas de estetismo para a Arte, de
nia e de humor, torna-o suportável e contribui para encobri-lo 4 , algumas pedras para a Cidade, de uma imagem para a Moda, e
envolvendo-o num discurso metafórico. assim por diante). Ela passa também do relativo ao absoluto. À
b) O imenso consumo cultural, que parece consumo das metalinguagem e ao seu uso por I para o consumidor: corresponde
obras e dos estilos, não passa de consumo de signos (signos das a visão neoplatônica. Mais uma vez um álibi! Não vale a pena
obras, signos da "cultura"). O consumidor engole metalingua- zombar das multidões exaustas que atravessam, a passo acelerado,
gem, o que permite que os valores em uso só se gastem lenta- a Galeria Uffizzi (em Florença) ou o Palácio dos Doges (em Vene-
mente. Em Veneza, o turista não devora Veneza, mas o dis- za), que ficam por alguns momentos estagnadas como se fossem
curso sobre Veneza: discursos dos guias (escritos), dos conferen- poças, sob o bombardeio dos conferencistas, multidões que não
cistas (orais), dos gravadores e discos. Ele escuta e olha. O artigo vêem nada, que não podem ver nada e que, apesar de tudo,
usam as coisas e pagam caro por esse " uso".
que lhe é fornecido mediante pagamento, a mercadoria, o valor
de troca , é o comentário verbal sobre a praça São Marcos, sobre c) Estratégia combinada ou efeito global de um caos de
o Palácio dos Doges, sobre Tintoretto. O valor de uso, a coisa ações contingentes, o resultado aí está. Desenrola-se um duplo
em si (a obra) escapa ao consumo devorador, ficando limitado processo: industrialização e urbanização . Marx havia captado o
ao discurso . primeiro aspecto e indicado como dominar o processo: como
planejá-lo racionalmente e dar-lhe um sentido, isto é, "o
Não será abusar do termo "metalinguagem"? Trata-se homem social'' como capacidade criadora de produtos e de
mesmo do segundo grau, de discurso sobre o discurso? Sim. obras. A classe operária devia assumir essa missão histórica.
A cidade (Veneza, Florença), o museu, a obra (de determinado Que foi que ocorreu? A classe operária foi em parte (de maneira
pintor, o conjunto de suas telas ou uma dessas telas) existem desigual , conforme os países e os setores) destituída de sua mis-
no plano do pensamento. Impossível percebê-los de outra são, reduzida a um grupo de pressão econômica. Grupos políti-
maneira que não seja por meio dos historiadores. O discurso cos ou técnicos ocuparam o seu lugar. Por conseguinte, numa
didático se interpõe necessariamente entre as obras e a compreen- <
certa medida (desigual), organizou-se a produção, mas privan-
são. Esse discurso permite um acesso difícil , de penosa prepara- do-a de sentido. Dominou-se tecnicamente a natureza, mas sem
ção, para a percepção concreta dos estilos e das obras. Essa pre- que o ser humano se apropriasse da sua própria natureza vital
paração, esse encaminhamento caracteriza a " alta cultura". O e social. Quanto ao segundo aspecto do processo, isto é, a urba-
consumo na cultura de massa e o turismo se contentam com o nização , não tinha sido percebido por Marx por razões históri-
discurso sobre o discurso: com a metalinguagem . cas. No momento em que apareceu O capital, já faz mais de
um século, a urbanização estava apenas começando. O processo
não foi captado pelo conhecimento. Quando se quis estudá-lo
4
Exemplo: ôs romances de Christiane Rochefon. cientificamente, esse processo foi pura e simplesmente redu-
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zido à organização e às imposições da produção industria l, sendo da edição Pléiade não vê nessa obra mais que uma caricatur a
que ele não se reduz exatamen te à industria lização, mas dá do cientifici smo e dos autodida tas, um aperfeiço amento do sr.
um sentido a esta, e que nesse domínio a apropriação (teórica Homais, o que não combina com o imenso alcance que o autor
e prática) passa ao primeiro plano. A capacida de criadora, atribuía ao seu livro).
liberta e realizada na produção industria l, teria podido ocupar- Em plena cidade, ao lado da Bastilha ("Como fizesse
se dessa obra capital: a cidade, a vida urbana. Nessa cidade , um calor de trinta e três graus, o bulevar Bourdon estava abso-
obra das obras, a vida cotidiana se tornaria obra, cada um (in- lutament e deserto" ), numa paisagem urbana onde os grafis-
divíduos e grupos) se reveland o capaz de criar. mos declaram o que têm a declarar ("o canal Saint-Ma rtin,
É somente na urbanizaç ão (conduzi da não de acordo com fechado pelas duas eclusas, estendia em linha reta sua água cor
uma ideologia , mas sim com uma idéia da cidade e da vida de tinta. Havia no meio um barco cheio de madeira e, na mar-
urbana como obra) que a industria lização pode encontra r a sua gem, duas fileiras de barricas" ), nesse lugar que um domingo
finalidad e. Em si mesma, a indústria não passa de u~ meio. torna desértico , vai acontecer alguma coisa: um encontro , obra
Se o meio se decreta (ou se é decretado ) um fim, a racionali- do acaso e do destino. " Dois homens aparecera m. Um vinha
dade se transform a em absurdid ade . da Bastilha, o outro , do Jardim Bo;:ânico .. . Sentaram -se no
Qual seria o resultado ? Não se atribuíra m à linguage m mesmo minuto, no mesmo banco.'' Quem são eles? Dois fun-
nem ao sentido, isto é, ao pensame nto, à consciência agente, cionários de escritório . Trabalha m em escrita. Um seduziu com
condiçõe s de esperar e de exigir semelhan te procedim ento prá- seu talento um chefe de divisão que o alistou como expedicio -
tico e teórico . A metaling uagem - o discurso sobre o que já nário; o outro teve espontan eamente a inspiraçã o de utilizar
está realizado e sobre os discursos que acompan ham a realiza- sua mão hábil. Seguram ente os dois compadr es, cada qual por
ção - substitui u, pois, a linguage m. Em outras palavras, um conta própria, puseram sobre a carteira da escola um compên-
vazio enorme se cavou, sendo logo povoado por signos! A meta- dio que contribui u para a fortuna d e uma ilustre ediwra (La-
linguage m ocupa o lugar da cidade e do urbano ausentes, que rousse) e que se intitulava : " Escolha graduada de cinqüent a
estão faltando porque foram dispensad os. Nuvens de vapores tipos de escrita. Para se exercer na leitura de manuscri tos. Con-
e de insetos giram, se arrastam e zumbem sobre este fundo tém: 1 ~ Preceitos de comporta mento para as crianças e historie-
pantanos o: o cotidiano . A metaling uagem é o grande álibi tas instrutiva s; 2 <? Principai s acontecim entos da História; 3?
para mascarar e esquecer as tarefas históricas e as missões que Modelos de faturas. Notícias industria is; 4? Modelos de estilo
não foram levadas a cabo , para apagar as responsa bilidades , epistolar ." Esse livrinho , hoje esquecido , começa assim: "O
para difundir uma culpabili dade latente, um sentimen to impre- espetácul o do universo, o brilho do sol, a prodigios a variedade
ciso de frustração e de mal-estar . de plantas e de animais, todas essas maravilh as nos ensinam
-' que existe um Deus'' . Tudo isso escrito numa letra bem redon-
dinha. Mas voltemos às nossas personag ens. Um é viúvo, o
3. O pândego outro, solteirão; aquele talvez seja um pouco libertino , este é
um donzelo, e ambos têm o mesmo tipo de vida, bem coti-
Flaubert inventou o pândego . Foi em Bouvard e Pécu- diana . Cada um conserva o seu individua lismo, sem muitas dife-
chet 5 , obra enigmáti ca, obra incompre endida (o prefaciad or renças. Exclamam quase ao mesmo tempo: "Como estaríamo s
bem se vivêssemos no campo!" . Eles se comunic am, pois t êm
. fome e sede de comunica ção. " Se tivessem mais idéias, teriam
5
Muitas anotações o anunciam: ·'A decência das figuras temperava as provocações do mais sofrimen tos.'' E lá vão os dois companh eiros viver em
vestuário ... Esse agrupament o de mulheres seminuas fazia imaginar o interior de Chavigno lles. Que é que eles vão fazer? Esquecer e transcend er
um harém ; veio ao espírito do rapaz uma comparação mais grosseira. De faro. todas o cotidiano . Ao término de cada tentativa , eles vão recair no
as espécies de belezas se encontravam lá ... " (L 'éducation sentimento/e. Pléiade. p. 191 ).
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cotidiano: a cozinha, a casa, os vizinhos, as mulheres. A que que absorveram foram comentários, exegeses, tratados, manuais,
é que consagram seu tempo? A consumir. Consumir coisas que guias, em resumo: metalinguagem. O que lhes permite que
eles não produziram e que não são produtos: nem pão, nem se reconheçam (um pouco) e se reencontrem um pouco nas espe-
móveis (embora possa ocorrer entre eles uma questão de móveis cialidades. E os significados? Ora, o que foram eles para os
rústicos ou antigos), nem vinhos (mesmo que um golinho seja Enciclopedistas que os nossos compadres pretendem imitar?
agradável), nem pratos nem objetos. Eles vão consumir a obra, Não foram luxo e prazer? Eles disseram, eles não disseram
a cultura, toda a cultura. Todos os livros. Bouvard e Pécuchet nada mais que isso. Nossos compadres não viram, não tiveram,
nos arrastam para um pesadelo: o consumo livremente obrigató- não captaram nada mais que palavras e vento. O compadre
rio da cultura, do livro , da coisa escrita. O pesadelo é o nosso Flaubert sabe disso. E aí está o significado, o dele! ... E, no
pão cotidiano. E lá estão eles com a mão na massa. Dedicam- entanto, Bouvard e Pécuchet não são imbecis. Não mais imbe-
se éom uma coragem exemplar: a nossa coragem. Mergulham cis do que Flaubert, que se identifica com eles. Longe de serem
nos significantes, nadam e bebem nesse mar delicioso que os idiotas, querem se cultivar, se educar, se formar, se instruir.
embala. Ficam exaustos, mas recomeçam o trabalho. Tudo aí Como liberais e como intelectuais de esquerda, hoje, em 1968,
acontece numa ordem implacável: primeiro ,a agronomia (pois eles acrescentariam à sua coroa estas flores: o existencialismo ,
desejaram o campo, a natureza, a liberdade), depois a química, o marxismo, a tecnologia, as ciências sociais. Depenariam meto-
a fisiologia, a astronomia e a física, a geologia , a arqueologia, dicamente a coleção Que saisje?, leriam L 'Express, Le Nouvel
a história, a literatura, a lingüística, a estética, a filosofia, a Observateur e, bem entendido, La Quinzaine Littéraire . E ainda
pedagogia. Então o círculo se fecha, pois a pedagogia ensina Le jardin des Modes, Elle e Man·e-Ciaire, nem seria necessário
aos seus alunos e discípulos a natureza e a agronomia, a quí- dizer.
mica, a filosofia etc. Muito m al fechado, acaba saltando. No Quando o círculo se fecha, que é que lhes resta fazer?
meio do caminho, círculo vicioso, Bouvard e Pécuchet dão de Nada, a não ser recomeçar. Voltam a ser o que eram: escriturá-
cara com sistemas. Muitos deles. O espiritualismo, o materia- rios. Entram de novo no reino que jamais abandonaram, o da
lismo, o hegelianismo. Tudo o que é racional e real . .O abso- coisa escrita. Que ·esperança ficou? Talvez a de receber nova-
luto é ao mesmo tempo sujeito e objeto. Deus, assumindo mente uma herança e recomeçar.
uma forma visível, mostrou uma união consubstanciai com a
. Bouvard e Pécuchet, dupla ilustre entre as duplas conde-
natureza; sua morte deu testemunho da essência da morte,
pois a morte estava nele. Mas há também o sistema lógico nadas à imortalidade, quem são vocês? Vocês nos apresentam
segundo o qual os erros têm uma causa principal: quase todos a nossa imagem. Por um extremo escárnio, vocês foram escn"tos
nascem do mau emprego das palavras. Seguem-se alguns siste- antes que o autor se ocupasse de vocês. ''Era uma vez dois escri-
mas combinatórios, como os de Allery, de Páris e de Fenaigle turários ... ' '. Mas eis que, graças à coragem intelectual, este
(Allery transforma os algarismos em figuras: o número 1 é repre- conto de escritório , esta insignificante história de dois pobres
sentado por uma torre, o 2 por um pássaro, o 3 por um camelo, joões-ninguém que cresceram nas escritas e na metalinguagem
e assim vai. Fenaigle divide o universo em casas que contêm se transforma numa obra magistral. Nasce um novo riso, amargo ,
quartos, cada quarto tem quatro paredes com nove telas, e amarelo, que vai se tornando negro. Então vocês não eram tolos;
cada tela tem um emblema). De passagem, Bouvard e Pécu- pegos nas armadilhas das palavras, tropeçando nas máscaras e
chet assistem como espectadores pouco interessados a aconteci- nos véu s, vocês fizeram também a sua experienciazinha. "Bou-
mentos espetaculares: a Revolução de 1848, o golpe do Estado ... vard estava surpreso com o contraste ·entre as coisas que o rode-
No final das contas, quando acaba essa volta ao mundo avam e as que eram ditas, pois sempre parece que as palavras
imaginário, que é que eles absorveram? Palavras, linguagem, devem corresponder aos meios e que os tetos altos são feitos
vento. Que é que eles consumiram ? Obras? Muito pouco . O para os grandes pensamentos ... ''.
·,

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passara m os romano s, os bárbaro s e os francos. E tantas inva-
Eis aí o pândeg o. A Morte de Deus é algo grande , algo sões e tantas guerras , inclusive a última . Depois vieram os ale-
trágico. Seu "faleci mento "? Imagin e vagam ente (contex to? mães, os ingleses e os americ anos. Depois disso , a França comi-
referencial? ou simple smente conota ção) a família chorosa, as nua sendo a Fr.ança e a Gália, mas também não é a Gália. As
lágrimas da viúva, os lame~tos dos órfãos, as cerimô nias do coisas são o que elas são. No entanto , elas não são o que são,
enterro , a chegad a do tabehã o, a abertu ra do testam ento e _as pois escond em sempre alguma outra coisa. Há alguma distân-
disputa s em torno da heranç a. E está sepulta da a Sexta-F eua cia entre.::> que você conhec e e quem você conhec e. É uma his-
Santa especu lativa ou teológica, não obstan te o vigário (''o tória diverti da. Se você olha de perto uma rachad ura, ela se
padre se levanto u , outros assunto s o chama vam em outros luga- transfo rma em buraco que deve ser tapado . Com quê? Ora,
res''). Foi Pécuch et quem falou, esse maland ro. co~ linguag em, com discurso a respeit o da história : com
meta-
E Flaube rt, este ladino, este maland ro, este pseudo burguê s linguag em. Massas de signific antes flutuam separad as de seu
em seu pseudo -roman ce adverte as pessoas do que as espera signific ado, a história real conhec ida e despre zada. São signifi-
quando as revoluções falham. Ele aproveita para nos_ dizer como cantes pronto s para o consum o. O lugar estava lá para ser
e por que, na sua opinião , e de acordo com o que vm como tes- tomado , mas ainda era preciso descob ri-lo, para dar à França ,
temun ha ocular, as revoluções falham . O lado mau do homem gaulesa e gaullis ta, sua epopéi a pân~ega. Epopéi a que ela espe-
e dos homen s quer mudar alguma coisa e declara a cada ocasião rava e sobre a qual lançou-se como se fosse um só homem .
que é preciso mudar tudo. O lado bom, o bon vivant, acha a Parece que foi escrito para crianças e o adulto gosta disso. O
vida boa para ser vivida como ela é. E ponto final. adulto por excelência, o jovem do médio escalão, instruí do,
O pândeg o, variant e n ova do riso e do cômico , difere do educad o, que conhec e as palavras e as coisas. Que signific a isso ,
riso clássico , da ironia, do humor . Nem a situaçã o nem a ação senão que existe um mundo , um só, para a criança e para o
fazem rir; não h á situaçã o nem ação bem definid as; no pân- adulto , para a crian ça precoce e para o adulto infanti l?
dego não há necessi dade disso. A "credib ilidade " da narrati va Faça então com que a· distânc ia que separa os signific an-
não é mais proble ma. Essa questão desapa rece como os referen - tes dos significados (e inversa mente) seja preenc hida por um
ciais, o que dá uma grande sensação de desemb araço , de liber- pequen o ato intelec tual que aprecia exatam ente o parado xo
dade de linguag em. Se subsist e um terreno , um lugar-c omum, da falta de nexo e a surpres a de ver supera da essa distânc ia:
é o cotidia no, do qual nos distanc iamos sobre as as__as da lingua- você terá o riso do pândeg o. Ele implica um "nível cultura l"
gem. O riso vem das palavras, e somen te delas. E um cômico relativa mente elevado: conhec imento s, agilida de de espírito .
de linguag em, formal: a vis comica dos jogos de palavras, troca- O vaivém do passad o ao present e e do presen te ao passad o,
dilhos, as inversões de sílabas, aliterações e assonâncias utiliza- · do estranh o· ao familia r (cotidi ano) e do familia r ao estranh o,
das metodi camen te. E não apenas para uma brincad eira de este ir e vir sabiam ente mantid o pelos equívo cos da linguag em
·um gosto geralm ente duvido so (do pomo de vista "clássi co"), supõe uma educaç ão. É preciso segurar a ponta do parado xo
para uma astúcia, mas em centena s de página s. A perform ance verbal, alusivo , num sistema de reenvio perpét uo (sem referên -
desse cômico não está ao alcance de qualque~ um. cia). A imagem vem apoiar e facilitar a operaç ão: anacro nismo
recorta do em unidad es significantes-significados, com o signifi-
Quem não conhec e os gauleses? Qu em não aprend eu, na
cante verbal remete ndo ao suporte imagem . E inversa mente,
escola, alguma s fórmul as famosas , alguns estereó tipos a respeit o sendo a atualid ade o significado último . E aí está o épico ao
da Gália e dos gauleses? Quem eram os gauleses? Fortes e estú- alcance de todos, ao alcance da mão , em casa, no lar, com as
pidos? Passavam mantei ga no cabelo? Foram vencidos pelos suas crianças e a sua esposa, no cotidia no .
romano s? É impossível rejeitar a história que não lisonje ia
muito; é preciso descob rir uma explicação, a boa explicação. Este simula cro, esta simula ção analóg ica da história pelos
jogos de linguag em é mito? É ideolog ia ? São palavras muito
A França é a Gália e no entanto não é a Gália, porque por ela
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bonitas. E, no entanto, não é mais do que Asterix, o Gaulês, mos u ma coisa) e ideal (ou ideológico: consumimo s representa-
por que não dizê-lo? A França encontra ao mesmo tempo o seu ção, imagem, significantes, linguagem e metalingua gem). Ele
mito e a sua ideologia. Nessa simulação o trágico desaparece u. é total (tendendo a um sistema do consumo, sob a organização
Não há mais mortos. Os inimigos levam pancadas. Logo eles racionaliza da do cotidiano) e parcial (ficando o sistema sempre
saem da coma e rimos com prazer. Não há paixão nem erotismo. inacabado, sempre desmentid o , sempre ameaçado, não se
As mulheres são poucas. O pândego adquire espontane amente fechando jamais, abrindo para o vazio). Ele é satisfação (de
uma estrutura: aqui , o cool (mesmo que a personagem gesticule, uma necessidade, esta ou aquela, necessidade disto ou daquilo,
é cool), lá, o hot. Aqui, o bom humor sem violência, mais portanto saturação a um prazo mais ou menos longo) e frustra-
adiante, roda a violência (mais ou menos simulada: erotismo, ção (consumim os o vento e o desejo renasce). Ele é personali-
massacres, Lucky Luke, ]ames Bond, Satanik). zante (escolha dos objetos, disposição, classificação, liberdade
Compare Bouvard e Pécuchet com esse pândego que jorra combinató ria) e deformado r do real (com o consumido r se per-
' 'livremente ''. O jogo de palavras não salta à vista em cada dendo no meio das coisas, escorregan do na ladeira da acumula-
linha. Não há dois trocadilhos por página. Como é longo esse ção dos objetos, sem desejo e até sem necessidade). A chamada
divertido alfarrábio . .. sociedade de consumo é ao mesmo tempo de abundânci a e de
privação, com tendência à gastança e a um ascetismo (do inte-
Flaubert criou o gênero, a categoria (que disfarça a morte lecto, do rigor, da frieza). Dualidade múltipla. Cada termo
das categorias "clássicas" e "romântic as" da arte e da estética, remete ao que está diante de si (seu oposto pertinente , seu con-
assim como o nascimento do estetismo da linguagem ). Ele ainda trário, seu espelho). Ele significa esse oposto e se deixa signifi-
não estava livre dos referenciais e contribuiu para miná-los. O car por ele. Cada um serve para o outro, reciprocament~ , de
p ândego não tinha atingido a sua plenitude: a dignidade álibi e de garantia. Cada um remete a rodos os ou tros. E um
cômica da pura escrita, dos lazeres , da metalingua gem e do pseudo-sis tema, uma estrutura de álibis: o sistema do não-sis-
consumo de linguagem pelas massas . tema, a coesão da incoerência. Podemos sempre nos aproximar
Não parece indispensável insistir sobre alguns outros aspec- do ponto de ruptura sem atingi-lo: é o limite.
tos desse consumo de linguagem : os jogos e concursos na tele-
visão, as palavras cruzadas. Mais próxima do nosso propósito
seria a análise do lúdico combinató rio (precisame nte as pala-
vras cruzadas, mas também as apostas no turfe) e a junção bas-
tante artificial do erotismo com o combinató rio: a máquina
caça-níque is, usada em escala colossal em Las Vegas e noutros
lugares, na qual o número se associa a significant es eróticos
para significar a satisfação momentân ea, quase onírica do desejo .
Nossa intenção, com efeito, é mostrar o não-cotidia no , disfarce
do cotidiano, voltar a ele e dissimulá-l o para ele mesmo. O con-
sumo de linguagem (consumo de rnetalingua gem) realiza mara-
vilhosamente essa função, melhor aill.da que o consumo de espe-
táculos, que, por sinal, ele determina.
O consumo cotidiano assume assim , diante de nós e para
nós , a sua dupla figura, sua ambigüida de constitutiv a. Conside-
rado globalmen te, cotidianida de e não-cotidi anidade, o con-
sumo é material (prático-sensível: pegamos, usamos, devora-
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ou men os
O conceito de sociedade terrorista agora está mais
s vário s mom ento s e
elab orad o. Nest a orientação disti ngui remo
várias etapas:
1) Tod a socie dade que com port a, de um
lado , penú ria e
a de uma classe
não-abun dânc ia , e de outr o, pred omin ânci
ora, que orga niza , que tom a
(que poss ui e governa, que expl
ltado do trab alho social,
para si a maio r part e possível do resu
és da acum ula-
Capítulo IV seja através de um cons umo sunt uoso
ção, seja aind a através dessas duas form
, seja
as de
dupl
atrav

o
dom
meio
inaç ão), toda
d a pers ua-
soci edad e dessa orde m man teve -se pelo
TERRORISMO E são (ideo logia ) e da opressão (pun içõe s ,
nais , violência prep arad a para não prec isar
leis
se
e
servi
códi

socie
r
gos,
dela
dade
,
de
tribu -
violê n-
clas-
COTIDIANIDADE cia aber ta, tropas arma das, políc ia etc.) . Tod a
tipo ) é uma socie-
ses (e não se conh ece aind a nenh um outr o
ênci a e com o o cato-
dade repressz'va. Sabe mos com que mag nific
edad e repressiva na
licismo repr esen tou o seu pape l na soci
e rival do Esta do
Euro pa ocid enta l. Send o ela próp ria um Esta do
carreiras "esp iri-
polít ico, a Igreja oferecia poss ibili dades de elho buro crá-
apar
tuai s''. Bem cedo ela teve ao seu- disp or um
a) e um sabe r
tico , uma h ierar quia , uma onto logi a (filosófic
1. O conceito de terrorismo prof ano, o espi -
real (um a práti ca). Ela disd ngui a o sagr ado do
para o "esp íri-
ritua l do temp oral. A part ir daí, ela orien tava
lhe perte nce. gias. As outr as
. A Césa r? .que é. de C_ésar, e à liter atura o que to:' e para o pode r espi ritua l as mais fortes ener
olho s afiad os (por ela julga va, con-
Literatos e crmcos ht.erános de ouvi dos e ela dissu adia . As pessoas e as idéias perigosas
de um certo bom lar para execução.
uma mald ade profissiOnal não desp rovi da dena va, depo is as entre gava ao braço secu
os prim eiros que perc ebe- Adm iráve l dispositivo, hoje caru ncha do.
hum or charr:ado espír ito) estão entr e
no ar com tudo 0 ssiva leva
ram o terro nsm o. Eles o sent iram flutu ando O estu do dos fund ame ntos da soci edad e repre
uage m, form as abstr a- lista e anar qui-
que, v~ga e flutu a: significantes, meta ling
ntos de pode r. mui to long e. Som ente uma inter preta ção simp classe o
s fami laçõe s de
ta: av!d.as de se enca rnar, pens ame ntos puro zant e do marx ismo limi ta à políc ia e às legis
são pressões que
as nda orde m, o lado
Ha mun o temp o eles com pree nder am quai s cont eúdo do conceito de repressão. Até segu ravel-
fato que pare ce a repressivo de toda socie dade tem fund ame ntos
inco mpa
se exerce_:n sob-:e a arte de escr.ev_er, sobr e o s têm
ciência de ideo lo- men te mais prof undo s. Grup os, castas, class
es , socie dade
e-?carnaçao da hber dade (de opm1ão, de cons
não sã~ exteriores sem pre elevado a verd ades e a ''val ores ''
suas cond içõe s de
gia). As mais inqu ietan tes dessas pressões pret açõe s ideo -
ao ato. f-!omens de ~osto, que a~a m os praz eres do espírito, sobrevivência (com pree ndid as por meio das inter
ada de posição seria nece ssári o
que co~s1dera:n a açao um nervosism o e a tom lógicas). Para edificar uma soci edad e coer ente
eles não apro - "ped esta l" cons oli-
uma bnncadeu~ .que nunc a de~e ser prol onga
da, estab elecê -la.s obre um roch edo , sobr e um
su bsti- o adm item mui to
fund aram a anah se. Algu ns ps1canahstas e soció o s os
loo-o dado por uma repressão fund ame ntal? Uns
facil idad e . A proi-
tuíra m .1
rapi dam ente , outr os o cont estam com mui ta
do ser social e da
biçã o do incesto é tida com o fund ame nto
Seria mais cien tífico e
1 s, H . Marcuse. D. Riesm an etc.
"cul tura " , como alicerce do edifício.
Alusões aJcan Paulh an. M. Blanchoc, R. Banhe
156 157

mais coerente afirmar que toda sociedade foi pega numa con- a vida privada e familiar, a infância, a adolescência, a juven-
tradição. Sua força, sua riqueza, suas capacidades defensivas e tude, em resumo, o que aparentemente escapa à repressão
ofensivas provinham do número de seus membros; ao mesmo social, porque está próximo da espontaneidade e da natureza.
tempo, os recursos limitados pela circunvizinhança natural, 2) A sociedade super-repressiva modifica as modalidades
pelos meios tecnológicos e pelas retiradas antecipadas de parte da repressão, ~eus procedimentos, seus meios e os suportes des-
do trabalho social limitavam esse número. As sociedades resol- . tes. De manetra aparentemente inofensiva, ela orienta a apro-
veram mais ou menos bem esse problema, umas, decaindo, pnação , pel? _jogo a_e op~essõe_s, para a vida "puramente" pri-
outras, chegando à sobrevivência ou à expansão. A limitação vada, a famtha e o mdtvtduahsmo; ela concebe a liberdade de
dos nascimentos pelos mais diversos meios sempre fez parte tal r:nodo \espiritual, ideal) que a repressão não seja perturbada.
dos procedimentos de sobrevivência. O fundamento da repres- Mutto mats: ela confia as tarefas represssivas aos pequenos gru-
são situa-se, pgis, na junção çontrolada da sexualidade com a pos (à família e ao Pai), ou melhor, à consciência de cada um .
fecundidade. As vezes a repressão trabalha no sentido da limi- O modelo da sociedade super-repressiva é aquela que teve por
tação dos nascimentos; é o momento do celibato obrigatório ideologia dominante o protestantismo. Muito mais fina e mais
para uma pane dos membros da sociedade, do sacrifício dos racional que o catolicismo enquanto teologia e filosofia, muito
recém-nascidos, da importância da prostituição, da pederastia, menos repressiva em seu aparelho, em seus dogmas e ritos, a
do onanismo. Outras vezes, a repressão trabalha no sentido religião protestante realizou mais sutilmente as funções repres-
de um crescimento da população; prega-se então a dissociação sivas da religião. Cada um traz em si seu Deus e sua razão .
entre prazer e sexualidade, a associação forçada do ato sexual Cada um se torna um sacerdote. Cada um se encarrega de
com a fecundidade . Bem entendido, entre esses extremos há reprimir os desejos , de conter as necessidades. Isso equivale a
nuanças de múltiplas combinações, entrando em jogo outros um ascetismo sem dogma ascético, sem autoridade que ordene
elementos. A repressão se estende à vida biológica e fisiológica, o ascetismo. A ovelha negra, o bode expiatório, é o sexo e a
à natureza, à infância, à educação, à pedagogia, à entrada na sexualidade. Reprimido , recalcado , transformado em inimigo ,
vzda. Ela impõe a abstinência, o ascetismo, chegando, pelo desapropnado, o desejo se torna fermento de rebelião e de
c~minho ideológic?, a fazer crer que a privação é mérito e ple- revolta. Não voltaremos a falar desse elo histórico entre protes-
nuude. Neste sentido a repressão se estende às classes dominan- tantismo e capitalismo. A religião protestante forneceu as repre-
tes, pelo menos em certos períodos. Seus "valores" e suas estra- sentações e a linguagem· nas quais o capitalismo se insinuou
tégias exigem disciplinas e opressões que se exercem até mesmo sem aparecer como capitalismo . Onde o catolicismo não era
entre eles. suficiente para executar a tarefa, houve transferência, desloca-
Esse jogo complexo de repressão e de escapatórias, de mento, substituição. A intenção tomou o lugar do rito e a fé
opressões e de apropriações preenche a históna da vzda cotidzana, suplantou a obra. Essa religião permitiu que o valor de troca,
que apenas esboçamos (sublinhando o paradoxo: nas socieda- a mercadoria se generalizassem, captando os valores de uso
des antigas, as mais brutalmente dominadoras , fundadas na enquanto fingia respeitá-los e deter-se diante do seu domínio:
violênci_a e na <?pressão, _ocorreram a maior apropriação, as obras a consciência, a fé, a relação pessoal com a divindade. A socie-
e os esnlos mais notáveis . . . ). dade super-repressiva se definia como aquela cuja linguagem
e representações, iludindo os conflitos, não se prestando para
Portanto, é inexato e falso limitar a crítica da repressão
a expressão dos conflitos, embotam ou até mesmo eliminam
se~a ~ c<:n.dições ~cor:ô~icas (é um ?os erros do economismo ),
SeJa a análise das msutlllções ou das Ideologias. Esses preconcei- as contradições. Uma certa democracia (liberal) parece o resul-
tos mascaram o estudo da cotidianidade, isto é, das pressões e tado e o desabrochar da sociedade super-repressiva. As opres-
repressões que se exercem em todos os níveis, a todos os instan- sões não são percebidas nem vividas como tais . Elas são ou admi-
tes, sobre todos os planos, até mesmo a vida sexual e afetiva, tidas e justificadas, ou interpretadas como condições da liber-
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dade (interior). Essa d emocracia guarda em reserva a violência massa conservadora, em nome do jogo (ou da ausência de jogo)
e só deixa a força intervir em última instância e como supremo das forças , das instituições, das estruturas. Seus ' 'valores'' não
recurso. Ela conta muito mais com a auto-repressão na cotidia- precisam se explicitar; eles bastam a si mesmos, se impõem.
nidade organizada. A repressão torna-se inútil na exata medida Conhecê-los, qu,estionar a respeito deles para formulá-los, isso já
em que a auto-repre.s.são (grupos e indivíduos) se encarrega do tem ar de sacrilégio. A sociedade terrorista tem coerência, força,
problema. A sociedade pode proclamar que ~ chegado o reir:o pelo menos aparentemente. Não haveria, não há nada a replicar
da Liberdade, as opressões parecem espontaneidade, a aproprza- ao seu terrorismo se ela não utiliza uma ideologia da Razão, da
ção não tem mais nem linguagem nem conceito. Liberdade, o que reintroduz a irracionalidade nessa razão, a opres-
3) A sociedade super-repressiva encontra na .sociedade terro- são nessa liberdade, a violência nessa pretensa força persuasiva,
ri.rta seu resultado lógico e estrutural. Convergem então as opres- em resumo, a contradição na coerência ilusória.
sões e o sentimento ''vivido'' da Liberdade. As opressões não A tese constante aqui exposta é que a sociedade terrorista,
reconhecidas e não reconhecíveis assediam a vida dos grupos (e caso extremo da sociedade représs.\va, não pode se manter por
dos indivíduos nesses grupos) e os regularizam de acordo com a muito tempo. Ela visa à estabilidade, às estruturas, à manuten-
estratégia geral. A diferença entre a consciência dirigida de fora ção de suas próprias condições e de sua sobrevivência. Mas é em
(other directed, segundo Riesman) e aquela que se dirige a si vão, pois no fmal das contas ela explode. Ela tem como suporte
mesma (inner directed) cai por terra, pois o que se mostra como e como objetivo a organização da cotidianidade. Essa organiza-
o de dentro não é mais que o de fora investido e travestido, inte- ção faz reinar o ~error. As infrações à cotidianidade se tornam
riorizado e legitimado. A contestação se vê imediatamente ou proscritas, rejeitadas à demência, à marginalidade. O cotidiano
reduzida ao silêncio, ou marginalizada e, por isso mesmo, neutra- se faz a regra, e no entanto ele não pode erigir-se em valor, nem
lizada, ou absorvida e integrada. Não chamaremos ''terrorista'' sistematizar-se, nem mesmo aparecer como sistema. .
uma sociedade onde grassa a violência, onde corre sangue. O ter-
Para sustentar esta tese, não basta, entretanto, afirmar
ror político, vermelho ou branco, não pode durar muito tempo. que as satisfações acumuladas não trazem a felicidade, que mil
Um grupo defmido o exerce para estabelecer ou manter a sua prazeres não valem uma alegria 2 •
ditadura. O terror político se localiza, ele não pode se atribuir à
sociedade "inteira". Uma tal sociedade é aterrorizada, não terro-
rista. Na ''sociedade terrorista'' reina um terror difuso. A violên- 2
Seria este, sem dúvida. o lugar de resolver algumas dificuldades, de pôr fun a algu-
cia permanece em estado latente. As pressões se exercem de todos ·mas controvérsias. Deixemos expressamente de lado as questões de datas, de priorida-
os lados sobre os membros dessa sociedade; eles têm uma enorme d es. Quando problemas e idéias estão ''no ar ''. eles são percebidos também na terra.
dificuldade para se desembaraçar delas, para afastar esse peso. a partir da análise do real. O conceito de "sociedade repressiva" vem de Malinovski .
Ninguém "ignora que Malinovski não encontrou, entre os habitantes das ilhas Tro-
Cada um se torna terrorista dos outros e seu próprio terrorista; briand, nem sinal de censura, de recalque, de complexo de Édipo. O controle social
cada um aspira a tornar-se terrorista exercendo (nem que seja por sobre a vida sexual e a fecundidade se exerce ar. segundo ele. por outros meios que
um momento) o Poder. Não é preciso ditador, cada um se denun- não são os da repressão. Para de, a censura e o recalq•1e têm causas e razões defmí-
cia a si mesmo e se pune. O terror não se localiza, ele nasce do veis, portamo limitadas. Se existe socied ade repressiva é porque a repressão é social.
Por conseguinte, ele critica Freud por ter ratificado e levado ao :tbsoluto circunstân-
conjunto e do pormenor; o "sistema" (se é que se pode falar cias locais (as da família na sociedade ocidental, em Viena, no começo do século
de sistema) segura cada membro e o submete ao conjunto, isto XX) e de ter assim erigido em proposições científicas e em regra geral da existência
é, a uma estratégia, a uma fmalidade escondida, a objetivos que social uma forma de repressão. Crítica em parte injusta, porque Freud tinha con-
fi ança no papel libertador do conhecimento, neste caso. confiança na psicanálise.
somente os poderes de decisão conhecem, mas que ninguém ques- Ora, depois de Freud, uma corrente importante, talvez a mais importante da psicaná-
tiona verdadeiramente. Semelhante sociedade nem por isso evita lise saída da sua obra. parece ter abandonado qualquer função libertadora do conhe-
as mudanças. Ela pode entrar em crise fazendo tudo· para evitá- cimento para não ver nele mais do que o re-conhecimento e a consagração das opres-
-sões. Assim, a proibição do inc«5to (e. correlativamence, do Édipo) foi erigida sobre
las. Quando se vê presa de uma mutação, ela pretende fixar-lhe "alicerces" ao mesmo tempo epistemológicos e práticos da vida social. Herbert Mar-
um sentido (ou uma ausência de sentido) e orientá-la. Ela é uma cuse chama d e " revisionista" essa tendência. Esse psicanalista de inspiração marxista
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Não basta denunciar uma certa filosofia da necessidad e e simples. Queremos dar-lhes de comer, de beber, dar-lhes com
a confusão entre plenitude e saturação. A resposta do suposto que se vestir, deixá-los dormir. Nossa problemática é a da neces-
interlocutor vem imediatamente: ''Chega de dramatização! sidade, do sofrimento, da morte. Vocês se propõem um obje-
As pessoas não estão contentes? Que podemos desejar-lhes de tivo delirante e longínquo. Vocês querem uma vida ardente,
melhor que a satisfação das necessidades elementares, mesmo imensa, feita de alegrias e volúpias. Nós refutamos o ' huma-
se, para satisfazer essas necessidades , privamos as pessoas de no' para ajudar os homens . Vocês querem o sobre-humano e·
algumas liberdades, de algumas aspirações desmesuradas, de a poesia. Vocês guardam o humano como base sem adotar a
algumas ilusões da subjetividade? A ação em busca de um bem- imagem do Super-homem . Mas então por quê ? Atiçar o desejo,
estar melhor visa então à cura das velhas angústias que persis- excitar o mal-estar, retomar os valores do tempo d a escassez
tem sob a satisfação e a saturação. A sua problemática (e vocês· - a obra,· a totalidade, o 'homem' - isso pode ser qualifi-
estão errados por não adotar este termo, de achá-lo feio, pois cado de empreendimento criminoso! Essa sociedade talvez não
ele obriga à coerência), a sua problemática não é a nossa. Pen- tenha atingido seu ponto de equilíbrio e sua finalidade últi-
samos na fome dos homens, na sua sede, nas suas necessidades ma. Ajudem-na, em lugar de cavar lacunas, d e agravar o pro-
blema. Ela vai em frente como pode, sem saber aonde vai. Por
acusa então a psicanálise em geral de dar sua contribuição ao terrorismo, de recupe·
uma sorte extraordinária, essa fuga para a frente deu um resul-
rar as marginalizações depois de ré-las classificado entre as neuroses, de fornecer um tado apreciável, ensinando-nos os limites da condição humana.
suplemento ideológico à antiga pressão social exercida em nome das normas e do Aceitemo-los. Tiremos da filosofia este ensinamento: a finitude
normal sobre as "consciências" e as "inconsciências". Ele expõe, porramo, a repres-
são e a super-repressão em rermos psicanalíticos (o id, o ego, o su perego - Eros e
do homem empírico e da sociedade real , em lugar de arrancar
Tanaros - o princípio do prazer e o da realidade). Procurou então a elaboração de dos filósofos um d esafio ao real e o sentimento da impossibili-
conceitos de sociedade repressiva e de sociedade super-repressiva . Gira em torno da dade. Contamos com vocês, sociólogos e outros representantes
noção de "terrorismo" sem atingi-la, porque sua análise crítica continua sendo psico-
lógica e não vai com clareza até o social (ou "sociológico") e, por conseguinte, aré das ciências sociais, para formular essa lição de história que
o duplo conceito de cotidianidade e de modernidade. A Marcuse, e a muiros ourros. torna inútil a história. Abaixo os nostálgicos! Eles desertam.
falta também o conceito de rnundiafidade (bem como o conceito correlativo de dife- Fuga para a frente? É claro. Durante as batalhas, há soldados
renças acuais ou possíveis dentro da engrenagem mundial).
Recentemente viu-se na França a psicanálise cindir-se em tendências e em esco- que têm vontad e d e fugir, mas na retaguarda do front outros
las rivais. Para uns. a relação conflitiva da criança com a família e com os pais perma- soldados - os da polícia - os esperam para fuzilar os deserto-
nece essencial; Édipo continua sendo o conceito central da psicanálise. Para ourros, res. Então fugimos para a freme, mesmo sem saber aonde
é a relação do inconsciente com a linguagem (e, por conseguinte, da criança com o
discurso) que passa para o primeiro plano. Seríamos tentados aqui a rejeitar ambas vamos . Vocês, desertores por nostalgia, nós nos contentaremos
as teses e a tomar como "fundamento" a relação da criança com a sociedade, isto é. em neutralizá-los ... '' .
com a cotidianidade. O pequeno " ser humano" se beneficia com a sua fraqueza c:
compensa na vida social a sua vulnerabilidade. Ele tem desde o início aspirações e Eis aí um discurso terrorista que emprestamos ao nosso
desejos contraditórios (segurança. aventura, proteção, independência). De um lado interlocutor porque já foi pronunciado muitas vezes, oralmente
ele se aproprio das condições da sua própria existência social, mais ou menos segundo ou por escrito , e que.nos comentamos aqui em reduzir ao essen-
as condições c as suas atividades. De outro lado ele se sujeita às opressões. Assim ele
atinge no quadro familiar uma cotidianidade que resolve ou não resolve o conflito cial .
entre sujeições e aprendizagem (opressões e apropriação). O desenvolvimento da Com efeito, os argumentos mencionados mais acima não
criança e do adolescente vai mais ou menos longe e acaba por atolar-se na maturi-
dade, por tropeçar contra o cotidiano da idade adulta. A linguagem, o discurso e tam- bastam. É preciso estabelecer as modalidades do terrorismo ,
bém as pressões paternas e as relações afetivas do indivíduo com a constelação fami- mostrar como e por que explode a sociedade terrorista, e sobre-
liar têm papéis importantes, embora desiguais nesse processo dialético . tudo indicar a abertura. E isso sem ambigüidade.
Mais uma tese ou hipótese: nos fundamentos da repressão figuram as relações
dos grupos sociais com a terra. Essas relações têm um d u plo aspecto: de um lado os Entre as contradições analisadas ou analisáveis da socie-
recursos naturaú (limitados), de outro , as sociedades tornam sagrado o solo ao qual dade existente figuram algumas que parecem mostrar com o
estão presas. o que acarreta imensos sacnficios (isto é, religiões que praticam o sacrifi-
cio). A 11ida urbana põe fim a essa sacralizaçào. dedo a saída. É certo que entre as condições perceptíveis na atua-
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162
recru tado
!idad e algum as possu em uma espeete de privil égio.
Elas têm da habit ação exige ainda de um vasto grup o social
do prole tariad o e das clas-
um sentid o. De um lado, a " histó ria", que conti nua, quere ndo sobre tudo entre os jovens, o grupo
ício dos mais belos anos da sua
ou não quere ndo (apes ar das ideol ogias que a nega m ou areje i- ·ses médi as ' 'infer iores ' ' , o sacrif
ganh ar um meio
tam), leva todas as socie dades altam ente indus triali zadas a uma vida. _Eles dev.e~ an_tes de tudo ''se insta lar'',
erem fatiga dos, pode rão
socie dade urban a, na qual viverão e se enco ntrar ão
enorm es de vtda. Dei?ots d1sso, se não estiv atin airido
refor mista s sonh ar com vtver. Eles não fazem mais do que isso
massas. A "soci alizaç ão da socie dade ", cara aos 0
Mas terão
, assum e essa "a vida" depo is de ,um longo sacrifício cotid iano.'
que se inspi ram mais ou meno s no marx ismo culos e de
as espé- apen as sobrevivido. E por entre essa mass a de obstá
form a. As barreiras saltam , as comu nicaç ões de todas s abrem o seu cami nho. Na
m com- arma dilha s que os direit os novo
cies (materiais, sociais, ment ais) se multi plica m, se torna ões, eles fazem parte
ializa ção. med~d~_em _que são aspir_ações e reivin dicaç
plexas. É um aspecto ou o aspec to essencial da mund da czvzlzzaçao. Nessa soete dade apare cem, atrav és de dificu lda-
plane tária,
De outro lado, n essa massificação, nessa persp ectiv a des e probl emas , certo núme ro de fatos de civili zação . Pode -
arece r, sobre vivem curio sos fenô-
onde o indiv íduo parec e desap iano. se então pergu ntar se não se desco bre assim uma nova contr adi-
Eles acont ecem no nível do cotid
meno s de indiv iduaç ão. ção, que não t~ria nada de infer ior, entre a civzliZação
e a socie-
te (nos paíse s "des envo lvido s",
Hoje em dia quem não admi dade _(esta soe1edade). Os fatos de civili zação assim verifi cados
que um rapaz ou uma moça
indus triali zados , bem enten dido) auton zam esper ança e confi ança no futur o desta socie dade?
vida autô-
de vinte a vinte e cinco anos tenha o direi to a uma Ol~and<? de perto , não ~ã? t~nto_ fatos , mas vinua lidad
es, aspi-
ia, de ter e, se possí vel, de
noma , o direit o de deixa r sua famíl raçoe s, s_1mp lesm ente retvtn dtcau vas. Apen as os apolo gistas e
um lugar para mora r, de
escolher uma profissão, de procu rar seio os polm cos pode m ver aí fatos comp letos . São ''valo res'' mais
indiv idual izaçã o no
dispo r de si? Há, porta nto, uma certa ao do que fatos , e mesm o não sendo recon hecid os como direit os
ões de direit o: direi to
da massificação , o que acarr eta quest (a _não _ser mora lmen te, o que não é de se despr ezar, mas não
ção, à habit ação. Essas
traba lho, ao lazer, à profissão, à educa va1 mun o longe ), nada garan te que eles não venh am
a desap a-
seu cami -
extensões do habeas-corpus abrem com dific uldad e o recer. Que sobre venh a uma crise, ou simp lesme nte que as con-
dicaç ões, a se for-
nho. Elas tende m a se trans form ar em reivin seqüências da "mas sifica ção" se agrav em, esses direit os apen as
o se apod era delas
mula r num plano mora l e juríd ico. O Estad esboçados não serão varrid os? No entan to, algun s "valo res"
por isso as reco-
para realizar as suas estrat égias , mas justa ment e o que parec em inscritos nos fatos desap arece ram , ao meno s
ca o direit
nhece e as ratifica até um certo ponto . Assim se expli pal- mome':ltanea~_ente. O que é irreve rsível no temp o socia l? O
, prim eira
à habitação (prim eira expressão muit o impe rfeita que fot adqu mdo no temp o histó rico? Onde situa r os
limia res ,
preciso
pitaç ão, pode r-se-i a dizer , de um direit o que logo será os ponto s de ruptu ra e de não-r etorn o? .
form ular: o direit o à cidad e). -
o . Levar em consideração esses fatos de civilização não basta
Essas aspirações que se torna m reivindicativas impe dem na para nos conte ntar. Se eles têm um senti do, não most ram
faria da const rução e não
terrorismo? Não. O direi to à habit ação, que por onde _achá-lo. A argum entaç ão ficaria incom pleta
o como nho
um serviço públi co , está bem longe de ser recon hecid apres entan a nenh uma prova se não most rássemos
o cami
o Estad o modi ficou a reforç arão até for-
tal. Inter vindo na quest ão da habit ação,
cujas no qu al esses valores ou direit os nasce ntes se
des nova s"
prátic a, mas não o códig o. Ele criou "cida çar o recon hecim ento social.
mani festa ram: cida-
características princ ipais imed iatam ente se s
todos os ponto
des-d ormit órios , lugar es de recup eraçã o - sob
expul sos dos
de vista - para os traba lhado res e empr egad os 2. Escrita e terrorismo
a falta
centr os urban os. Dura nte esse perío do, que conti nua, n-
de habit ação faz parte do terror ismo . O Estad o fez pesar
sobre A análise crític~ das opressões (cuja ênfas e e predo minâ
ca m a socie dade terror ista)
a juven tude (e não apena s sobre ela) uma amea ça. A políti Cia sobre a aprop nação carac teriza
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revela 0 papel da coisa escr:zta. O.f?ress~va e não violenta , a escrita,
primordial , ames mesmo que houvesse ideologias. Numa certa
ou mais exatament e a coisa escnta, e o fundamen to do terro~.
medida , a cidade nasceu como uma escrita feita no chão. Ela
o etnólogo, o historiador, o especialista em pré-história ai?r?xi- prescrevia, ela significava sua força, sua capacidade administra-
mam do que o papel da escrita? Da seden_tari~ação? Da, divisão
tiva, seu poder político e militar. Ela impunha a lei aos cam-
do trabalho social em funções desproporc wnais, como e o caso
pos e às aldeias. Mais tarde, a exigência de uma restituição .da
do escriba que passa. a exercer atividades superiore__s~ Ou da fala , da presença calorosa no texto escrito, não teve um grande
inquietação genealógica, da nomenclat ura ~a famih~ e dos papel no decorrer da história do teatro e da poesia?
ancestrais? As divergências entre essas teonas podenam ser
mais aparentes que reais. A sedemariza ção implica a sagração Fundamen to da civilização e, até certo ponto, da própria
do solo. A posse exclusiva de um território por um grupo e sua sociedade, a escrita foi também coisa mental e social, fria e
consagração religiosa se justifican: pelos ancestrais míticos, pelos estratificada. E isso, sem dúvida, de maneira desigual, segundo
heróis semideuses e deuses da tnbo. Ao lado das tabelas gene- os períodos históricos: às vezes reduzia os grupos sociais à passi-
alóo-ic~ que constituem uma memória e um método de classifi- vidade, às vezes fazia-se de fundamen to sobre o qual se cons-
truíam d e maneira ativa as atividades sociais, as cidades, os rei-
cação social dos lugares e dos tempos, as. demarcaçõ es po~em
se comar entre os signos primitivos de escnta. Ames da agncul- nos e os impérios. Um caso não impede o outro: a civilização
tura sedemariza da ou independe ntemente dela, caçadores e se mantém para e pela coisa escrita, mas cria inércia ao se fazer
colhedores de alimentos, pastores nômades , balizam os territó- durável; ela tende a sobreviver a si mesma. O que condiciona
rios, definem percursos, itinerários, fronteiras. Balizamen to e a história tende também a fixá-la.
orientação caminham. juntos. Uma moita ou uma árvore, um Quando Moisés d esce do monte Sinai e mostra ao povo
rochedo ou um montículo tornam-se signos sob as estrelas, que as tábuas escritas pelo dedo do Senhor, acaba de inventar o
também são significantes. Depois vêm os signos que constit:xem Pai Eterno. Seu gesto inaugura os séculos, assim como o seu
uma escrita ·n o chão: um galho partido, um monte de seixos, comentário verbal: o como sagrado que o justifica. Ele funda.
uma trilha aberta uma maneira de situar a paisagem ou local Sua mistificação torna-se verdade. Essas tábuas de valores con-
(da vila ou da cid~de) com relação às constelações .. Por sinal , a servarão sua perenidade por causa da escrita divina. Os cremes
teoria sobre as origens tem apenas um peque~o mter~sse .. O pensarão que elas d evem durar até o fim dos tempos . Segura-
importante é notar o caráter imp~rativo_ da esc!Ita_ e do mscr;to mente Moisés adquirira de uma civilização superior seu conhe-
e sua duração. A escrita faz a le1. Multo mais amda: ela e a cimento das virtudes da escrita. Diante dos ingênuos beduínos
lei. Ela obrio-a pela atitude imposta, pela fixação (do texto e que conduzia para o seu grande destino histórico, realizou o
do contexto)~ pela recorrência implacável (a volta atrá_s, a ~-emó­ ato ao mesmo tempo mágico e funcional por excelência. A
ria) , pelo testemunh o (transmissão e ensino), pela histoncida de pedra dura e fria simbolizav a perfeitame nte o caráter .i ntempo-
assim estabelecid a para a eternidade e pelo eterno. ral, portanto, permanent e e definitivo (em aparência), e por
conseguint e trans-histórico das Escrituras Sagradas. A escrita é
Seria necessário sublinhar que a escrita é também o fun- a antifala. Depois de haver escrito diante dos séculos e para os
damento e o ponto de partida para aquisições inumeráveis? Jun- séculos, Deus se cala. Seus representan tes não têm mais nada
tamente com a lei ela estabelece a imelegibili dade. Com a recor- a fazer, além de interpretar e comentar as Tábuas da Lei.
rência, ela constitui a reflexão e a racionalida de. Com a sabedo- Outros os contestarão , inaugurand o a relação conflituosa entre
ria adquirida, definitiva e definida, ela perrr:i~e a a~umulação a Fala e a Escrita, em outras palavras , entre o Espírito e a Letra.
(dos conhecime ntos, das téc~icas) e a memo~Ia sociaL S:o~o
condição da arte e do conhecime nto, ela permite a orgamzaça o Não há sociedad e sem escrita, se emendemo s esse conceito
em sua generalida de. Não há sociedade sem signos: demarca-
social e a civilização. Com o trabalho social e a divisão do tra-
ções, balizagens, orientação. Entretanto , há um pulo para a
balho, melhor dizendo: com base nisso , ela foi superestru tura
freme , passagem para um nível superior , por conseguint e , rup-
I ·.
I
167
166
ada nas escri-
ta: Tábu as da rias para prev enir esse desvio? Uma socie dade base
cura e corte , assim que é inve ntad a a coisa escri . A ideol ogia
Lei, grafismos, inscrições que fixam a lemb ranç a dos atos e dos tas e. na coisa escrit~ camin~a p~ra o terro rismo
escn ta a;un ta à força persu asiva a inti-
ões sobe ranas inscritas q~e Inter preta a tradi ção
acon tecim entos , batal has, vitór ias, decis a coisa escri ta cons egue supla ntar
logia deter mina - mida ção. Toda via, jar:nais
para semp re na mem ória. A histó ria e a socio a Palav ra trans mitid a de boca
ta no espaç o e com pleta men te a tradi ção oral,
rão as datas e os princ ípios : a cidad e como escri nto, o com bate entre a Letra e o
to por costu me em boca. Nun ca cessa, porta
no temp o orien tados - as passa gens do direi ortar de inter preta -
ao direi to estip uiad o, isto é, a passa gem dos hábi
tos às codif ica- E_:;pírito, ~om tudo o que isso possa comp
que se
socie dade
ções form aliza das - , a gene raliz ação da escrita
pela impr ensa , çoes _abusivas, ~e heresias e de desvios. Uma
ica e man tém
o caráter cumu lativ o adqu irido pela: ·coisa escri
ta no mun do baseia n~ Escm uras Sagr adas (isto é, que justif
ções ligad as à coisa
(a bibli oteca sua~ condições. de exist ência por repre senta
mod erno , acen tuad o pela repro duçã o das imag ens rever as minú -
escri to absor- e~cma) s~ basera nas prescrições. Ela tend e a presc
infin ita, o livro abso luto; em últim a análi se, o a alim entaç ão, a
cias d~ vida práti ca, a ritua lizar o vestu ário,
vend o o dito, o sabid o , o perc ebid o). proib ições os dois
raria na sexu alida de (send o os man dam ento s e as
A histó ria da escrita (para e pela socie dade ) most aspe ctos. dessa _regulamentação). Tend e igua lmen te a prote ger
qua non das insti tui-
coisa escrita o protó tipo e a cond ição sine escri ta essas esnp ulaço es por amea ças e sanções. Ela não se cont enta
Send o a coisa
ções. Não há insti tuiçã o sem nada escrito. socia l com proib ições gerais, deix ando o resto para a
inici ativa dos
na práti ca
a prim eira insti tucio naliz ação , ela se inser e vem seus mem bros . A man uten ção das condições de
sobrevivência
s. Esse fato
para capta r a obra e a ativi dade , orga nizan do-a pode torna r-se, ao long o do temp o, muit o minu
ciosa . Entre -
tituições. A
most rar o meca nism o inicial e cons tante das subs tanto ,. não se pode falar, nesse estád io, de uma
cotid ianid ade
outra coisa '',
coisa escrita toma como refer ência ' 'qua lque r organ~zada (se beE:? q~e já .exista essa tendê ncia)
. Com efeit o,
se torna refe-
como costu me, práti ca, acon tecim ento , depo is ela ·o escrtto e o presc nto (mcl umd o-se aí o que as
coisas reo-istram:
ta. A refle- ·
rência. A coisa escri ta subs titui o referencial da escri a form a das habit açõe s e das cidad es, os mon ume
ntos o 0 dire-
to já menc io- não r~presen­
xão crítica perce be aqui o conf lito e o d esloc amen cion amen to das porta s para os centr os etc., que
, na fome . A
nado s e analisados; ela os agarr a no nasci men to tam apen as uma ocup ação do espaço mas tamb
ém um certo
, a rejeitar a Palavra ~rítica,
coisa escn'ta tend e a func iona r como meta fingu agem e~ preg o do temp o) n ão pode m nunc a proib ir
encia l Ante s
o cont exto e o referencz'a!, a se instz'tuir como refer a m~erpela~ão, a form ulaçã o de novos prob lema
s. Além disso ,
ras. J á como
da coisa escrita, o que há são atos ligad os a palav a co~sa escnt a conserva os carac teres da obra . Ela deve legit imar -
ite a glosa , a exeg ese, o discurso tada no escrito,
meta lingu agem , a escrita perm tido e se dian te do povo reun ido. A religião, fund amen
sobre isto ou aqui lo,
de segu ndo ou de terceiro grau agem ~ustent~ um pode r polít ico; ela o cons agra e lhe fornece uma
a escri ta. A meta lingu
man tido porq ue é fixad o de form cons e- Ideologia. Mas não pode livrá -lo nem livra r-se a si m esma do
sobre a palav ra; por
tend e desd e entã o a levar vant agem retó- co:nr ole da comu nida de; esta cont inua send o, mesm o para os
o tal mud ismo e a
guin te, a escolástica, o bizan tinis mo, t~ologos do pode r, a fonte da sobe rania (asso ciada ao territ ó-
s fund adas
rica dese mpe nham um .enor me pape l nas socie dade no ). A amea ça impe de os padr es, os guerr eiros , os reis de se
nda mens agem gra-
sobre as Escrituras Sagradas. Aqu ela segu inscreve entre garem aos seus caprichos. Os mais cruéi s e os mais tirân i-
por sua vez
vada sobre uma prim eira mens agem , que mens a- cos se justif icam por obras: mon ume ntos e festa s. E é some nte
inici al, aque la
(ou supõ e-se que inscreva) uma palav ra quan do a amea ça desaparece com a comu nida de,
quan do acaba
nte uma escolha
gem talvez cn'tique, o que perm ite a cada insta te, a festa, quan do o mon ume nto e a próp ria cidad
e se enfra que-
cons eguin
perig osa e inqu ietan te, inere nte à reflexão e, por a- cem enqu ant? ~or:na. quan do o senti do da obra to? A buro -
se perd e, que
segu nda mens
à histó ria do pens amen to. Send o deriv ada , a ta com_eça a cond ianid ade. Qual é o seu supo rte escn
a coisa escri
gem pode desviar-se. Com o aque les que detê m sá- cracia e os seus méto dos de organização.
das neces
e a autor idade que ela confe re não toma riam as medi
168 169

Chamemos a atenção para a forma da escrita: a recorrên- Desde então a máquina de informação e de memória se
cia. A coisa escrita permite a cada instante voltar atrás . Os seus apresenta como último termo, científico e prático ao mesmo
olhos, leitor, privilegiados. pela natureza do que eles perce- tempo, da escrita e da recorrência. Ela inscreve e prescreve. Ela
bem, abrangem esta página numa visão simultânea. Você folheia pode se dar bem com o Deus dos teólogos, ainda que tenha a
um volume, começa a lê-lo desde a primeira linha, se tem von- pretensão de substituí-lo , pois ela o "encarna" num arranjo
tade. À primeira sucede-se uma segunda leitura, uma terceira, de circuitos e de lâmpadas. Será por acaso que esses fanáticos
se for o caso. O tempo muda de forma. Ele se reduz à duração da máquina, que vivem em simbiose com ela, são também as
formal da leitura e não o incomoda mais. Você o domina , pessoas da escrita rigorosa, do livro e do saber absolutos (que
embora ele se resseque , se resfrie sob o seu olhar, ou melhor, eles chamam de "epistemologia"), os Cibernantropos?
no seu olhar. É aqui que se indicam as correspondências ainda A coisa e.scrita tem ainda uma propriedade. As operações
pouco exploradas entre o mental e o social (unidade, mas tam- mentais, a codificação e a decodificação lhe são inerentés , mas
bém diferença entre esses termos). Sobre o papel se projetam não estão contidas como tais na mensagem. Essa é a regra do
a operação da memória e a da recepção das mensagens. O jogo; assim funcionam as formas; sua transparência não exclu.i
movimento para a frente nunca impede o movimento inverso, nem o aleatório nem o oculw; ao contrário, elas os contêm no
a partir do presente, sendo recorrente a segunda leitura. O livro seio do seu rigor e da sua pureza. O grave é que os codificado-
dá a ilusão de não envelhecer, de submeter o tempo ao conhe- res e os canais reais por onde passa a mensagem se dissimulam
cimento , de torná-lo inteiramente linear e cumulativo. Segue- também, até o ponto de não se suspeitar mais da própria exis-
se uma redução (ilusória) da temporalidade à simult~aneidade, tência deles . A coisa escrita está lá, apresentada inteiramente
do desenvolvimento e da decadência ao instantâneo . E uma ilu- (em aparência) nesse "estar lá" , diria um filósofo. Ela parece
são? Sim e não. Se se aproveitar disso para negar a histÓria , o inocente e abusa da inocência do leitor. Daí provém o poder
passado e o futuro , você vai se enganar; vai confundir o mundo do escrito (e do impresso) sobre os ingênuos e sobre alguns
com o livro , ou , o que é pior , com a Biblioteca. Entretanto, outros. A coisa escrita provoca a adesão . Sua fixidez fascina.
para você que lê, diante de quem os signos se desencadeiam Coincidem nela o mágico e o racional. Como a escrita poderia
de uma forma prevista e composta sobre o papel branco, orga- mentir? ''Está escrito no jornal'', dizem os ingênuos. ''Tenho
diante dos olhos um testemunho , um documento'', declaram
niza-se uma plenitude, um prazer incomparável. A extrapola- ·i aqueles que não se julgam ingênuos. A própria metalinguagem
cão, que muda a escrita e a coisa escrita em modelos da socie-
tem o privilégio de não revelar a sua "natureza" (ou, se se pre-
dade e do mundo, que, por sua vez, transformam "ideologica-
mente" a situação e o prazer do leitor em absoluto, faz nascer fere, a sua "estrutura") . .Ela pode passar linguagem, por uma
mensagem. Ainda que, em princípio, gire em torno de um
a ilusão e o erro filosófico . Percorre-se implacavelmente o livro
código, ela pode trapacear e revelar códigos truncados e falsifi-
absoluto . "Está escrito." Ele tem como autor e também como
cados por " decodificadores" que abusam da situação para
leitor soberano o Senhor, criador do destino . Portanto, não há
enganar sobre a mercadoria, que é o código.
nada que não esteja previsto. Se Deus, como criador, fez 9
Que a burocracia estabelece o seu poder sobre a coisa
homem à sua imagem , portanto livre e ativo, na função de
Padre eterno ele o pune; como Providência ele ordena o mínimo escrita e sobre o acúmulo das coisas escritas, não é demais repe-
tir nesta aclaração que fazemos de uma sociologia da escrita e
gesto e prevê até o mais insignificante dos vermes. Deus repre-
do terrorismo. A força da coisa escrita ultrapassa as fronteiras,
senta a recorrência suprema, que lê o tempo num relance, do
derruba os entraves , não conhece mais limites. Competência,
começo ao fim e do fim ao começo. Em nome da memória, i saber, racionalidade burocrática fundada sobre a escrita e justi-
suprimiu-se a história; em nome da transparência, esvaziou-se .I ficada por ela se estendem até o mais insignificante pormenor.
a busca tateante do sentido: a razão. O Estado substitui a Providência. A burocracia, tecnicamente
I

I
I
.t
171
170
o espaço jurídico. Seria possível estudar semiolog icamente cada
ajudada pela máquina , suplanta o Senhor e o encarna. Nada
espaço, tais como regulame ntos, decretos, estatutos , como se
escapa nem deve escapar no regime da cotidiani dade organi-
zada. As opressões se identifica m com o conhecim ento e a pre- fossem um subsistem a, a partir de um corpus? Sem dúvida
visão. A apropriação como conceito e como prática quase desa- semelhan te estudo ofereceria apenas um interesse .menor. À
parece (com exceção de um resíduo imprescri tível). No caso soma (ou o conjunto ) desses espaços constitui o espaço de uma
pouco provável de os burocrata s ''human os'' quererem cuidar racionali dade limitada: a da burocraci a. Esse espaço adquire
da parte da apropriaç ão, sua maneira de intervir a suprimiri a. caracteres patológic os (esquizóid es) não exatamen te por ser
Assim se delineia a face da sociedade terrorista , onde cada um espaço, mas porque revela sinais de patologia social: a identi-
treme de medo de ignorar a lei, mas só pensa em y.sar ·a lei dade final entre o racional e o absurdo. Os espaços não se jun-
em seu proveito , desviand o a culpa para os outros. E, pois, a ta~ em qualquer lugar, assim como as peças de um quebra-
sociedad e em qu e cada um se sente culpado e é mesmo. Cada cabeça. Entre eles persistem alguns buracos. As burocracias par-
um se sente culpado de ter uma últim a pequena margem de ciais, fragment os de uma burocrati zação total jamais efetuada ,
liberdade e de apropriaç ão , da qual usufrui por meio de tra- não combina m entre si. Elas se aliam contra o tempo. Eis aí o
paça, na sombra pouco profunda de uma clandesti nidade cujos inimigo, o tempo , sempre a investir, a cercar, a tornar inofen-
segredos se percebem facilmen te. Novas Igrejas, isto é, Igrejas sivo, o tempo que desgasta os regulame ntos e permite que os
com um sentido novo , as burocracias moderna s, estatais, políti- "objetos " sejam dispostos astuciosa mente no espaço burocrá-
cas, rivalizam com as antigas Igrejas e prescreve m as minúcias . tico, objetos que nunca ficam tranqüilo s. A burocracia prescreve
Elas obtêm resultado s análogos: a ordem moral e o imoralism o o emprego do tempo e proscreve o que não se submete às suas
profundo , a culpabili zação e a fuga diante da lei, dos anjos e prescrições.
das trevas exteriores combatid as pela luz. Que relações se estabelec em entre as mais antigas institui-
A lei de Parkinso n, segundo a qual os escritórios segregam ções (a religião institucio nal) e as mais modernas, estatais e polí-
e engendra m outros escritórios, não descreve completa mente o ticas? Existe~ rivalidad e e concorrên cia. As burocracias políti-
processo , isto é , a organizaç ão burocráti ca da cotidiani dade. cas produzem sua filosofia e se vêem obrigada s a combater a
Chega-se a um grau tão elevado de terrorism o que a burocraci a filosofia e a ontologia justificad oras da burocracia eclesiástica.
amarra o ''indivíd uo'' entregan do-o à mais completa explora- Ao mes11)o tempo,. essas instituiçõ es, veneráveis ou não, se com-
ção e ainda por cima o obriga a fazer uma parte cada vez maior pletam, seus esforços converge m. Umas reprimem o desejo,
do seu trabalho: preenche r impresso s, responde r a circulares . outras se ocupam das necessida des. As primeiras fazem reinar
A burocraci a burocrati za as pessoas muito mais do que as admi- a ordem no inconscie nte, as segundas , na consciência. As mais
nistra. Ela tende a integrá-lo s tornando -os burocrata s (e, por antigas refinaram suas represent ações e suas práticas em função
consegui nte, fazendo deles seus delegado s na gestão burocrá- das "profund ezas" que elas organiza m, mantend o sua estra-
tica de sua vida cotidiana ). Ela racionali za à sua maneira as nheza, enquanto as segundas têm por objetivo o superfici al,
vidas ''privada s''; a consciência burocráti ca se identifica com a os atos exteriores (consumo , vida cotidiana). As instituiçõ es " es-
consciência social como a razão burocráti ca se identifica CO!If a pirituais '' têm como domínio a vida privada e administ ram
razão pura, e o saber burocráti co com o conhecim ento e, por esse domínio aterroriza ndo a sexualida de; as instituiçõ es mais
consegui nte, a persuasão se identifica com a opressão, definindo - recentes judiam aterroriza ndo a cotiqiani dade. Qual é o resul-
se assim o terror perfeito. Abrem-s e aos olhares (interiore s) ape- tado dessa convergência? A ordem moral, figura da sociedad e
nas as avenidas do imaginár io . Parecem permitir uma apropria- terrorista . Sempre rachada e sempre tapando suas rachadur as ,
ção (sonhada ) apenas a violência e o erotismo , isto é, os signos a ordem moral não é nada mais que a face da vida cotidiana
da violência e do erotismo oferecidos ao consumo . bem administ rada que se expõe aos olhares. A ordem espiri-
Cada burocraci a arruma· (para si mesma) o seu espaço. Ela tual e a ordem cívica (uma sociedad e bem determin ada e quali-
baliza e demarca. Há o espaço fiscal, o espaço administr ativo ,
172 173
ficada) coincidem nessa ordem moral. Não é esse o significado em isótopos e heterótopos, com relações e implicações de posse,
supremo da enorme acumulação de significantes gráficos? de inclusão e de exclusão, como também de exterioridade. Tal
Será preciso reivindicar os direitos da palavra? Sim, mas classificação pode tomar como referência a coisa escrita (que,
não importa qual palavra nem quais direitos. Será possível colo- precisamente, se erige ela própria em contexto mental e social
car o direito à palavra ao lado do direito ao trabalho, do direito e suplanta os outros referenciais), o que não deixa de ter inte-
à instrução, à saúde, à habitação, à Cidade? Uma declaração resse para o estudo analítico do espaço urbano (ou dos espaços).
dos direitos concretos do Homem, ou dos direitos do Homem Mas essa análise formal e estrutural, em elaboração, não teria
concreto, não teria nem mais nem menos eficácia que a antiga. mais do que um interesse limitado se não permitisse surpreen-
Pode ser que o direito à palavra se situe ao lado do direito à der o movimento que engendra e relaciona esses espaços. Em
Cidade, como horizonte de civilização mais que como direito ouuos termos, chegou o momento em que a análise pode envol-
que tende ao seu reconhecimento institucional. Só pode se tra- ver a classificação formal e as relações estruturais num movi-
tar da Palavra poética e crítica, que deve o reconhecimento ape- mento histórico e dialético. Então o tempo recupera seus direi-
nas à sua própria força. Sobre ela se abate o terrorismo, para tos. Que tempo? Esses espaços não se ajustam muito bem, eles
abafá-la. Cabe então a ela encontrar os ouvidos que a escutem não compõem um conjunto perfeito, coerente, imobilizável
e as rachaduras no muro da ordem pelas quais passarão as num determinado instante. As peças do espaço mental e social
vozes. Além do mais , não poderia estar em questão um domí- não esgotam suas relações na sua justaposição formal e na sua
nio reservado à Palavra, aquele domínio dos poetas ou da filo- oposição estrutural. Que é que os aproxima e os liga? Um "su-
sofia, ou o das relações interpessoais. Aceitar semelhante esta- jeito"? Uma consciência? Esta tese filosófica não tem mais força.
tuto para a palavra e crer que assim ela está reconhecida é per- Não seria antes um ato, a Palavra, que os ajunta, que os apro-
mitir que seja confinada num gueto. Com esta agravante: seria xima, que os engendra? A Palavra conserva reunidos os frag-
o gueto da intelfigentsia aceita e justificada em nome do Verbo mentos dispersos da escrita, assim como os do espaço social.
(divino). Vale mais a pena a perseguição que o direito à impo- O tempo da criação e da história não seria o tempo da Palavra,
tência. Quanto ao conhecimento da Palavra, ao nível teórico, tendo os agentes históricos se apoderado da Palavra num deter-
ele só pode ser elaborado quando se opõe ao conhecimento minado momento e numa determinada conjuntura?
da escrita , não ao da ciência da linguagem . Estamos muito longe de ter completamente efetuado o
Estamos longe de ter levado a bom termo a sociologia da encadeamento:
escrita , de ter esgotado a análise crítica das suas implicações.
A palavra escrita, o signo estável têm um estatuto e possuem atividade
propriedades próprias. E isso tanto no domínio musical quanto
no da linguagem. A isotopia descoberta pelos lingüistas (Grei-
mas) não constitui apenas um espaço lingüístico , mas também obras } -- ---organização
um espaço social (ou melhor, espaços sociais). A isotopia da produtos {racionalidade ativa
palavra, do ajuntamento das palavras, da frase, do sentido e --- --- instituição
do sistema tem como conseqüência a isotopia da coisa escrita, racionalidade estratificada
o que permita levar mais longe a elucidação do seu modo de
existência, singularmente estranho, pois temqs diante de nós fixando-se a racionalidade como burocracia sobre o modelo da
a existência ao mesmo tempo mental e social de uma forma, Escritura Sagrada e promulgando a sociedade terrorista.
dotada de propriedades formais (entre outras, a recorrência). Examinemos um pouco mais de perto o livro de. Roland
Como a noção de isotopia leva à de heterotopia, segue-se uma Banhes, O sistema da moda. É uma obra de arte que pretende
classificação formal (estrutural) dos espaços mentais e sociais ser conhecimento? É a descoberta de um sistema. Ou o conhe-
175
174
separa? Não, mas simult ânea e conju ntame nte nos dois, na sua
cimen to científico de um "obje to"? Não temos aqui obriga ção associação ou contig üidade . É uma Idéia dotad a de podere s
4
de nos pronun ciar. De que trata esse livro? Dos fatos e das coi- múlti plos, de influê ncias (sobre a socied ade, sobre as
sas? Dos vestidos da moda ou d as mulhe res da moda que usam idéias e sobre a ideolo gia), planta da como uma bande ira acima
esses vestidos? Dos atos e das situações? Por acaso ele nos diz de um setor da vida menta l e social tão estreit ament e associa-
o significa isto: estar (ou não estar) de acordo com a moda? dos quant o o real e o imagin ário. Numa palavr a, é uma inSti-
Não. Rolan d Banhe s tem um outro objetiv o, um outro méto- tuiÇão que deu forma à ''reali dade'' na qual se defron tavam
do, uma outra estraté gia científ ica. Seu proced iment o inicial- opressões e apropr iação, que organi zou uma ativida de ao mesm o
mente reduz o objeto e põe entre parênt eses uma parte do con- te~po prod_utiva e_ criado ra .. que a fixou numa essênc
ia por
teúdo , senão o conteú do todo. Ao longo das trezen tas página s mew da co1sa escnta , a revista de moda e sua retóric a. Em
sobre a moda há pouca s ilusões ao fato de que são as mulhe res qual contex to? Aqui o autor nos aband ona . Ele proced eu como
que usam esses trajes "na moda ", e se o perceb emos é atravé s os retóricos, que antiga mente constr uíam uma entida de, u ma
de um padrão institu cional : a foto de moda, a model o profis- essência, uma Idéia que servia de model o: a eloqüê ncia. Como f
sional. Que é que o autor estuda ? O corpo e os corpos se sepa- outros hoje em dia constr oem o Literá rio, outros o Direit o ou
ram como a Palavra, na reduçã o semân tica. A análise susten ta a Lógica. O admirá vel é a capaci dade dessas essências situad as
o discurso sobre a moda, a roupa escrita, isto é, a escrita sobre num lugar social e menta l , uma "isoto pia", de se apode rar
a roupa , ou seja, a revista de moda. O corpus é consti tuído de todas as significações, de todos os signifi cantes , para se sig-
por dois anos de um periód ico. O autor compõ e admira vel- nificar a si mesma s. Não é isso , social mente , "estar na moda "?
mente um discurso sobre o discurso sobre3 a Moda. Ele se esta- O admirá vel també m é que o efême ro aparen te, na precis a
belece (lucid ament e) na metali nguag em e escreve um tratad o medid a em que é apariç ão transp arente e que se torna visível ,
de retórica. Ele sabe disso e o reconh ece, sem talvez ir até o fim revela-se estável , forma l, rigoroso (bem entend ido, com a con-
de um pensa mento que escond e com cuidad o sua ponta afiada . dição de dei..xar de lado o conteú do como aciden tal, contin gen-
Com esse proced imento ele deixa a ' 'realid ade'', os conteú dos, te , aband onado para outros ). Um "mun do" se revela na cons-
as coisas (matér ia das roupas , técnicas, condiç ões econô micas trução que o descob re e se descob re, o "mun do" da Moda. É
etc.) e as pessoas (quem são e onde estão as mulhe res que um mund o factício? Não mais do que o direito ou a filosofia.
seguem a moda? ) para uma outra ciência, digam os a sociolo gia, ''A mais social das institu ições é exatam ente esse poder que
ou a econo mia ou a históri a. Que é que ele faz? Constr ói , a permi te aos homen s produ zir coisas natura is'', escrev e R. Bar-
partir da lingua gem, uma entida de, uma espécie de essência thes. Nem mais nem menos factício que a escrita, que exist e
intem poral e estável, uma forma pura defini da por sua pureza : como coisa e no entant o não existe sem o olhar, pois ela só
a moda. Parado xalme nte, ela presid e ao efême ro e manif esta existe co.mo forma . O factício não é a moda , mas o que se passa
sua pureza formal na aceleração desse efême ro. Que é a Moda? em torno dela: o merca do da moda. A constr ução de R. Bar-
Uma espécie de utopia . Supon hamos que não haja mulhe res thes é irrefut ável, irrepre ensíve l. A hipóte se de um confro nto
seguin do a moda, a não ser em fotos, e que as person alidad es entre essa forma pura e o impur o do conteú do (do real) parece
olímpi cas corram atrás da Moda, sem jamais ''estar '' na moda , de antem ão marca da pela ilegiti midad e, recusa da pelo proced i-
e tendo apena s a ilusão de ''fazê-la''. Nem por isso a Moda mento do autor. Ainda uma vez , para que a descob erta/ cons-
deixaria de conservar a mesm a existên cia. Supon hamos que a trução do sistem a da moda seja ''verd adeira '' , não é necessário
"mulh er que segue a moda " seja somen te a leitora da revista que mulhe res reais usem esses vestid os ou casacos; é necessário
de moda. A existência social dessa essência se reforçaria com apena s que mulhe res reais, leitora s de revistas, leiam o discurso
isso. Ela situa-s e no imagin ário e no real. Na fronte ira que os

~ Cf. p. 248 da edição francesa.


3 Cf. p. 38 e ss . . p. 251 da edição franc esa.
r
176 177

que acompanha as "apresentações". Talvez as leitoras reais sin- O reino da coisa escrita, pela orientação imanente à escrita,
tam apenas as conotações das palavras e dos textos que comen- pela acumulação das coisas, permite a constituição e a institui-
tam as fotos. Talvez elas leiam ou encontrem apenas informa- ção de tais entidades. Essas essências têm uma existência ao
ções (o costureiro, a loja, os preços). A única coisa que importa mesmo tempo mental e social, ao mesmo tempo fictícia e real.
é o fato de que está escn.to. Banhes levou até ao paradoxo a Elas definem lugares sociais, pomos-chaves do espaço social,
eliminação do Sujeito. A moda (ele tem razão) elimina ao elementos de uma topologia (ou melhor, de um tópico) da
mesmo tempo o corpo como sujeito físico e o apropriado como Modernidade.
sujeito social. É por isso que ela difere da confecção e do prêt- O caráter terrorista da moda se exprime principalmente
à-porter. Ela distancia o seu próprio conteúdo: a mulher com- pela indiferença à apropriação. Ela tem como objetivo a varia-
pradora e consumidora, a mulher símbolo de consumo, a ção dos objetos e sua obsolescência, negligenciando tanto o
mulher mercadoria (incluindo-se aí o seu corpo). corpo quanto as atividades sociais. Se a apropriação consegue
Estamos dominados por esse ' 'sistema''? Só nos resta inver- abrir o seu caminho é por um subterfúgio, introduzindo-se
ter a situação. Como as construções sistemáticas, incluindo a entre a confecção corrente e a alta-costura, por meio do prêt-à-
filosofia. Como definir a sociedade onde se constitui esse sis- porter. Assim, a racionalidade concreta utiliza as lacunas, os
tema que se fecha sobre si mesmo , que não tem outra quali- espaços vazios, as rachaduras, em outras palavras, as contradi-
dade nem outro sentido a não ser ele mesmo , que se apodera ções, para se infiltrar sorrateiramente. Mas não sem dificulda-
de todos os significados para incorporá-los a si mesmo? Quais des. Não precisamos aqui estabelecer em minúcias o histórico
são as condições (não a pn"on·, à maneira dos filósofos, mas prá- da roupa , fora do sistema da moda: os materiais, o mercado e
ticas) de sua existência, de seu funcionamento? A essa questão sua extensão, a entrada em cena do prêt-à-porter, suas vanta-
podemos responder sem rodeios: uma condição , talvez a condi- gens e suas inconveniências. Mas não deixa de ser um capítulo
ção essencial, é a sociedade terrorista. Não que a moda faça iso- importante do estudo crítico do cotidiano.
ladamente, por si própria, reinar o terror. Mas ela faz parte inte-
Querendo atingir a Moda e a Literatura, Roland Banhes
grante-integrada da sociedade terrorista. Ela faz reinar um certo
terror, um terror certo. Estar na moda ou não estar na moda, traz uma contribuição de primeira ordem à sociologia da coisa
eis aí a formulação moderna do problema de Hamlet. A moda escrita. Essa sociologia da escrita não lhe saí da cabeça. Esse con-
rege o cotidiano, excluindo-o. A cotidíanidade não pode estar ceito, literário em sua origem, permite captar realidades de
na moda. Portanto, não está. As personalidades olímpicas não ordem sociológica, a saber, o lugar do social e do mental. Se
têm (ou acredita-se que não tenham) cotidianidade. A vida Banhes, em nome da semíología, afasta a sociologia, define-a
delas de cada dia vai de maravilha em maravilha , na esfera da também (consciente ou inconscientemente) e deixa para aque-
moda . Emretamo , a cotidianidade existe na exclusão perma- les que querem explorar esse terreno , o que exige a reviravolta
nente . É o regime do terror, visto que o fenômeno " moda". (inversão) do seu procedimento e a recolocação sobre seus pró-
se estende ao pensamento, à arte, à " cultura", a todos os domí- prios pés do Sistema (subsistema) constituído pela semiologia,
nios . A capacidade do sistema, que capta o que passa ao seu que confirma a institucionalização de uma ''essência'' ou de
alcance , não tem fronteira. Pressão sem grupo de pressão bem uma entidade.
determinável, a Moda estende à sociedade inteira a sua influên- Essa essência, a Moda, seria única? Teria ela como rival e
cia; seu campo de ação se cruza com ou interfere em outros complementar apenas a Literatura? Certamente que não . Quais
·campos igualmente sem fronteiras definíveis . Por meio da meta- são as outras essências? Trata-se da política, da economia, da
linguagem , o conjunto da sociedade se encontra delimitado e filosofia, ou ainda da religião e da ciência (ou espírito científi-
consignado por alguns sistemas (ou melhor, por subsistemas) co)? Metodológica e conceptualmeme (teoricamente) as maio-
rivais e complementares . res preocupações e reservas se impõem. A metamorfose de uma
179
178
e da coisa escrita. Por essa razão, a arte e a cultura podem aspi-
ativida de parcial em ideolog ia e de uma discipl ina parcela r
rar ao nível de essências, de subsist emas. Elas reúnem as condi-
em "essên cia", essa operaç ão escabro sa recebe o nome de extra-
ções, existira m de maneir a viva, antes de seu próprio conceit o,
pofaçã o, geralm ente após. u:na reduç~o abusiva . A :_eli~ião ,
nas obras. Depois disso, em nome do conceit o (do conhec imen-
durant e séculos, tentou eng1r-se em s1stema e em essene1a: a
to) e da metalin guagem , pode-s e imagin ar que a arte e a cul-
teologi a, a teocrac ia. Mas ela falhou ; como sistema fracass ou.
tura existam "em si", fora das obras e não nas obras. Nessa
Os restos das religiõe s demarc am a história . Alguém vai querer
elevaçã o da arte e da cultura há abuso de linguag em , u so de
constit uir em essênci a a "religi osidad e"? Muitos se esforça m
metalin guagem e ilusões iman entes ao "segun do grau".
por conseg ui-lo. Por que não? É uma maneir a de localiz ar a
religião , ao lado da moda, na topolo gia ou tópico social. A A análise crítica já denunc iou muitas vezes a ilusão meta-
política ? Ningué m pode defini- la correta mente (racion almen- física. O filósofo começa por classificar as árvores , operaç ão legí-
te) senão como prática que se serve de instrum entos ideológ i- tima. Depois ele toma as pereira s e as macieir as como encarn a-
cos para realizar objetiv os estratég icos numa estraté gia de classe. ção da Pereira em geral, da Maciei ra em geral, e ;::stas como
Isso não se constit ui numa essênci a, apesar da fortíssi ma institu - encarn ação da árvore em geral, ou como Idéia de Arvore . Em
cionali zação nesse setor (o Estado , a "const ituição " política seguid a ele atribui à Idéia (à classificação transfo rmada em sis-
etc.). A filosofi a, tal como a religião , quis erigir-se em sistema tema e em essênci a) o poder de gerar árvores reais, pereira s e
total e nesse sentido se desped açou. Seus fragme ntos , que tam- macieir as. O mesmo acontec e com as obras de arte , as obras
bém demarc am a história , podem ser utilizad os, mas com a de civilização e de cultura (em condiçõ es a serem descob ertas,
condiçã o de que a filosofi a não seja conside rada uma essênci a, com funções , formas e estrutu ras analisáveis). Das obras o conhe-
e sim confro ntada com a práxis. ciment o se elevou ao conceit o; depois, a arte e a cultura foram
tomada s como razão das obras de arte e de cultura ; enfim , atri-
As essências, na medid a em que sã:o formas sociais e men-
buiu-se à "Cultu ra" organi zada e institu cionali zada o poder
tais, têm uma prestig iosa aparên cia de intemp oralida de inerent e
de produz ir obras cultura is. Desde os último s anos do século
à influên cia delas. Atribui -se a elas essa aparên cia. O homem
XIX, a " arte pela arte" implica va uma concep ção da arte
de fé , o teólogo , o filósofo , o moralis ta, atribue m-se a eterni-
como entidad e, acima das obras, de suas condiçõ es. Em que
dade. A Moda , em sentido moder no , nasceu com a revista de
consist ia a arte pela arte? Em arte sobre a arte , em metali ngua-
moda; ela se instaur ou com a metalin guagem ; estrutu ra do
gem, em um discurs o já de segund o grau. A obra de arte já
efêmer o, ela muda sem trégua. As pessoas que lançara m a deixava o lugar ao estético , e o estetism o, por essa mediação,
moda de hoje prepar am já a moda d e amanh ã (as coleçõe s, as
enquan to metalin guagem , substit uía as obras e a arte erigida
apresen tações) . As person alidade s olí~picas já relegam ao p~s­
em poder autôno mo. Reprod uz-se assim a ilusão filosófi ca,
sado o que compra ram esta manhã . E assim que a Moda v1ve
mas numa escala maior, numa prática institu cional, e , enfim,
da sua própria destrui ção. No entanto , para as pessoas que não
precisa mente nas condiçõ es em que a criação é ameaça da, em
seguem a moda, ela tem um gosto de eternid ade. Do exterio r ,
que se fornece m bens cultura is ao consum o devora dor. Dissim u-
as pessoas não compr eendem mais o que se usou ontem , nem
lam-se assim as entidad es: "Cultu ra", "Arte" .
sabem o que se usará amanh ã. A moda de ontem é ridícul a,
a de amanh ã, inconce bível. O hoje se eterniz a: é o ser (ou o També m não é absolu tament e imposs ível que especia lis-
não ser). Essas são também as proprie dades da escrita, da meta- tas dotado s de podere s, utilizan do plenam ente os proced imen-
linguag em, do discurs o de segund o grau: a ilusão do eterno, tos da metalin guagem , não chegue m a constit uir e a institu ir
a não-his toricid ade aparen te. E o terror que vem junto . Para em essências o Religio so, o Filosóf ico, o Jurídic o, o Político , o
que haja essenci alidade (subsis tema), condiçõ es necessá rias, das Econôm ico e mesmo o Lógico ou ainda o urbano e o urbani s-
quais nenhum a é suficie nte, descob rem-se : uma ativida de, mo. Eles tentari am assim, na prática , colocar as essências no
uma organiz ação , uma institui ção a partir da metali nguage m lugar das relações reais e de reduzir estas à definiç ão formal .
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Tentativa que deve ser denunciada com antecedência, mos- entidades simultaneamente formas e forças parece mais justa.
trando-se a sua vaidade. -Essas essências ideológicas, erigindo- Tornar autônomas, constituir em coisas mentais e sociais, institu-
se em setores ou domínios absolutos, se chocarão entre si. Elas cionalizar como tais capacidades e atividades d eterminadas por
já se quebraram umas contra as outras. Para umas, já é tarde seus próprios fins, essa convergência resulta na formação de seme-
demais; para outras, o irredutível se vinga e começa a contra- lhante ''mundo''. Daí vem a imagem cósmica já evocada de cons-
ofensiva. A mais perigosa dessas tentativas concerne à econo- telações, de planetas e de estrelas espalhando seus influxos diver-
mia. Em vez de considerar a produção industrial e sua organiza- sos sobre o solo do cotidiano, fixando seu céu, incapazes, con-
ção meios de se chegar a um fim (a vida social e, por conse- tudo, de fechar o horizonte . Diante desse quadro de um ''mun-
guinte , a vida urbana) , ela as toma como o fim e as institucio- do" que pára (sob as nuvens, sob os turbilhões e redemoinhos
naliza como fim. Ela constrói uma doutrina, o economismo, do efêmero) também vamos parar. Cada sociedade fone e multi-
que passa por ciência e até por essência do pensamento marxista plamente hierarquizada (e, por conseguinte, muito escrita, bem
aceitável cientificamente; mas é apenas uma ideologia. fundada sobre escrituras e sobre a coisa escrita) caminhou prova-
Procuramos, anteriormente, a face filosófica deste mundo velmente para essa forma. Uma escala mental e social, meio fic-
moderno. Apresentamos a seguinte questão: ''Já que esta socie- tícia, meio real só pode ligar o seu ponto culminante a um astro
dade não conseguiu extrair da filosofia inteira, de toda a sua ao mesmo tempo fictício (m entalmente) e real (socialmente).
história, a figura do Homem , que os ftlósofos procuravam atra- Que há de novo em casa? Os astros mudaram ; não temos mais
vés das incertezas, dos. tateamentos e das controvérsias - já o mesmo céu nem o mesmo horizonte. Antigamente o influxo
que a história, no entanto, proporcionou a prática social na era dos astros criava estilo , suscitava obras. · Nossas estrelas brilham
em que a filosofia não é mais sistematizada, mas realizada, já por cima da cotidianidade e os sóis negros espalham o terror.
que é um projeto filosófico particular que se efetua e não a filo- Entre os astros que presidem ao destino cotidiano, podemos con~
sofia como projeto do ser humano, de qual filosofia vamos tar de novo a Moda (ou a "modeidade"), a técnica e a ciência
encontrar aqui e agora a marca, ou antes, a projeção?'' A hipó- (ou melhor, a cientificidade).
tese do neo-hegelianismo realizado pode defender-se: trata-se Desde alguns anos tem-se tentado (alguém ou alguns) lite-
de subsistemas parciais envolvidos por uma sistematização glo- ralmente institucionalizar a juventude. Essa preocupação com
bal , filosófico-política, ao nível do Estado. Assim, o relativo fra- ela é para permitir-lhe levar uma vida específica, com ativida-
casso do pensamento revolucionário marxista se soldaria (mo- des apropriadas? Aqui ou onde quer que seja, pessoas de boa
mentânea ou duradouramente) por uma certa volta ao passado. vontade pensam nisso . .Mas em vão. O q)..le acaba acontecendo
E não apenas na reflexão filosófica que procura ainda uma sis- é a integração da juventude no mercado , no consumo, procu-
tematização , mas na "realidade",· isto é, na prática social regida rando-se para ela uma cotidianidade paralela. Tende-se a cons-
pela ideologia. No entanto, essa hipótese não satisfaz à análise tituir uma essência , a juvenilidade, dotada de atributos e de
crítica. O hegelianismo ou o neo-hegelianismo implicam uma propriedades comercializáveis, possuída por uma pane da popu-
concepção da racionalidade como força persuasiva mais que lação privilegiada, ou assim considerada , justificando-se desse
como poder opressor. Claro que a coincidência suposta entre .(
modo a produção e o consumo de objetos marcados (roupas,
o real e o racional implica virtualmente a coincidência entre
entre outras coisas, que resumem e simbolizam os blue jeans).
opressão e persuasão. No entanto, não é fazer injustiça a Hegel
Essa entidade confere ao consumo em geral um certificado de
imputar-lhe a sociedade terrorista, a falta de apropriação meta-
inocência, e ao consumo dos jovens, um certificado de bom
morfoseada em valores e sistem as, a superestima das opressões
comportamento. Coloquemos então a juvenilidade entre os
. em nome do conhecimento subordinado a estratégias?
mais brilhantes astros desse firmamento. O corpus para se estu-
A imagem de um universo neoplatônico governado d e
dar esse sistema se encontraria facilmente em expressões como
maneira ao mesmo tempo fictícia e real, de muito alto , por
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·.
"Oi, turma!" • À sua maneua, na sua esfera de influência O amor, num mundo cotidiano sem amor, é o erotismo
(que se estende, atenuando-se, até a sociedade inteira, de alto que pretende proporcioná-lo. Pode-se conceber, constituir e
a baixo), a juvenilidade traz a sua contribuição ao terror. Quem instituir uma entidade (portanto, um "subsistema' .' presidido,
não tem medo de não parecer jovem? Quem não opõe a matu- nesse regime presidencial , pela essência), a Sexualidade? Tudo
ridade à inocência e o Adulto à Juventude? Quem não escolh e se passa como se houvesse uma tentativa nesse sentido, como
entre a juvenilidade e a sensatez, entre a cotidianidade paralela se a essência tentasse formar-se. Essa instituição está implícita
e a cotidianidade primordial, entre o in{tcabado e a resignação? na religiosidade de Eros , cujos sintomas aparecem aqui e ali.
Assim se apresenta a cada um, na sua cotidianidade , a opção Religiosidade difusa e oculta, com seus papéis e sacrifícios
dilacerante da não-liberdade , da não-apropriaç ão. humanos, e antífrase das religiões oficializadas. O Grande
A juvenilidade, com sua assessoria operacional (organiza- Sacerdo(e é o Divino Marquês. A proliferação de escritos que
ção e instituição), hipóstase da juventude real, permite a essa têm por tema o sexo, a sexualidade, o prazer sexual e seus exci-
juventude apoderar-se das significações existentes, consumir os
signos da alegria, da volúpia, da potência do cosmos, tudo isso
por meio de metalinguage ns elaboradas para essa finalidade:
canções, artigos, publicidade. Ajunta-se a isso o consumo de
l tantes normais ou anormais confirma a hipótese. Assim como
a utilização publicitária e comercial do sexual. Erigida em essên-
cia, a sexualidade confisca os signos do desejo . Todavia, essa
tentativa não pode dar certo. Ela epcontra logo a irredutibili-
objetos reais, o que situa a cotidianidade paralela. Por sua pró- dade do desejo, que morre quando queremos estabelecer-lh e
pria conta a juventude exprime essa situação e a acentua e com- condições. O caráter anômico (isto é, social extra-social) do
pensa pelos transes e êxtases (simulados ou não) da dança. desejo resiste a uma sistematizaçã o social e mental que o reduz
Assim, a metalinguage m desempenha até o final o seu papel: a uma necessidade classific?-da, separada, satisfeita como tal.
compêndio enciclopédico deste mundo, ponto de honra da esté- A cotidianidade sufoca o desejo, mas ele morre num contexto
tica, reflexo desencantado que pretende passar por substância especializado . A organização do desejo quer apoderar-se dos
e encantamento , perfume de um mundo sem aroma etc. Qual significantes para significá-lo, para estimulá-lo a partir dos sig-
é então o significado dos significantes disponíveis assim engoli- nos: a visão, ou melhor, a ação ritualizada do desnudament o,
dos? A própria juventude e sua essência: a juvenilidade. Eis aí os tormentos cuja visão evocaria os tormentos do d esejo. No
mais um pleonasmo , uma tautologia, um torniquete. A juveni- entanto, o desejo não se deixa significar, porque ele cria seus
lidade é significada por meio de significantes que significaram signos ao surgir, ou então não surge. A partir dos signos do
outra coisa. Ela se torna sinônimo de alegria, d e plenitude , desejo, diante dos ornamentos pode nascer um desfile de ima-
de realização , porque autoriza o consumo dos signos dessas gens: nada mais que uma simulação do desejo.
situações. A juventude afirma a alegria ~ser jovem, de estar A sexualidade como essência soéial e mental cristalizada
na e pela juventude, a qual existe socialmente, em virtude da acaba por desapropriar o cotidiano; é a sua contribuição ao ter-
juvenilidade. Quanto aos que não estão colocados na órbita rorismo. Mas então o desejo se refugia na cotidianidade , renasce
dessa juvenilidade, que é qué lhes resta? 'Resta-lhes simular de um acaso, de um encontro imprevisto, de um conflito.
essa juventude que simula a realização, a plenitude, a graça, Impossível aplicar ao desejo técnicas análogas às que dominam
a alegria, a totalidade. D esses redemoin hos multiplicados e as forças da natureza. Ele está mais próximo da apropriação
reduzidos não poderia deixar de sair um vasto mal-estar, o sen- que da opressão. Se quisermos estimulá-lo por processos de
tir,nento mal discernível de uma frustração das satisfações, das opressão, ele fugirá para o imaginário. Aliás, é no decorrer
compensações pelo imaginário, das fugas pelo sonho. dessa fuga que o esperamos para utilizá-lo (explorá-lo). A coti-
dianidade prática se sobrepõe à cotidianidade do imaginário ,
onde o desejo encontra satisfações imaginárias, vive e sobrevive
• No original. ··salut les copains" . (N .T. ) de maneira imaginária, estabelece para si m esmo uma p~rma-
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)l nência imaginária e saturações imaginá:ias. Depois disso, psicó~ e mantém em seu influxo. São caracteres? Não. Naturezas?
logos e analistas o ·c hamam de volta a s1 mesmo, quando conse- Não. São pseudonaturezas, produtos de cultura,· isto é, formas ·
auem. O desejo ignora a recorrência, assim como a acumula- puras rodeadas de artifícios. Uma grande desconfiança diante
~ão. Ele nasce da palavra e não da escrita, ou melhor, ele se da natureza considerada produto induz a pensar que a automa-
perde e só renasce de maneira fictícia. Ele não tem nada em tização abre seu caminho por esse desvio. A Natureza? Essa
palavra pode designar unicamente o desejo, que não se deixa
comum com uma operação mental, como não tem nada a ver
com uma coisa social. l. agarrar por. meio de uma palavra. Sabemos muito bem (por
Segue-se, por conseguinte, fracasso para uma sistematiza- inúmeras experiências) que o automatismo tem o "puro"
ção do Eros, mas possibilidades para uma religiosidade estra- espontâneo como forma de aparecimento (de aparência), o que
nha. En~retanto, surge uma espécie de entidade, fictícia ou desesperou alguns poetas e lhes deu vontade de morrer. A
real, social e mental: a Feminilidade. E isso pelo fato já men- escrita e a recorrência do escrito não dão a ilusão da pura espon-
cionado, mas que reencontra lugar neste momento da análise, taneidade? Da liberdade profunda? Sob e pela aparente espon-
que: taneidade, a organização do cotidiano se efetua, ou seja, torna-
se eficaz. A Feminilidade governaria muito bem uma cotidiani-
a) As mulheres, consumidoras, orientam (em aparência)
dade de cibernantropos na qual o desejo não seria mais que fic-
o consumo da sociedade burocrática de consumo dirigido (em . ção, não apenas jogo, mas papel e função . A importância das
outras palavras, a manipulação das necessidades se faz em fun-
mulheres no cotidiano é grande demais para que o pensamento
ção da Feminilidade, assim como daJuvenilidade);
crítico a confie à Feminilidade. Se houver drama, se houver
b) As mulheres simbolizam essa sociedade (objetivos da apostapossível em torno do individual e a favor do individual,
estratégia publicitária, são também temas publicitários: nudez, é nesse campo que se representará o drama e que a parada será
sorriso, apresentação graças à presença delas ... ); ganha ou perdida. Ora, essa Feminilidade proí be às mulheres
c) As mulheres são também mercadoria e valor de troca reais o acesso à sua própria vida: a apropriação da sua vida. Ela
supremos na medida em que são realidade física (um corpo subordina a individualidade e as particularidades (diferenças
apresentável é suficiente para se conseguir a riqueza e a celebri- específicas) a generalidades estranhamente traiçoeiras. O mesmo
dade). Assim, a exploração do corpo e do desnudamento femi- acontece com a "criatividade", essência inventada por especia-
ninos contribui para o estabelecimento e para a justificação da listas, que localizaria a capacidade criativa dos grupos e dos indi-
ideologia publicitária, fundamento da ideologia do consumo. víduos. Onde se situaria esse local social? Nos hobbies, no
O ato de consumir perde sua monotonia se. apresentado não "faça-você-mesmo"? Tal fato determina o fracasso e o aban-
simplesmente a partir do olhar sobre o objeto, não a partir da dono das capacidades criativas numa escala global.
destruição do objeto pelo consumo, mas a partir do corpo femi- Sob o laser, claridade penetrante do pensamento crítico,
nino e do que ele evoca. Tomado como significante do ato a cotidianidade perde seus contornos aparentes e assume sua
geral do consumidor , ele promete sair (em aparência) da retó- verdadeira forma . Como escolher entre essas imagens, cada
rica e da metalinguagem. Ele desvia o olhar e substitui o ato uma das quais contém uma metáfora ou uma metonímia: fir-
de consumir por um outro ato (uma mulher, na verdade, não mamento platônico, árvore de pleonasmos, coleção de círculos
se consome como um objeto). Esse desvio traz um estetismo viciosos? Cada figura diz a mesma coisa que as outras, de
consumível inerente ao que se costuma chamar ''cultura''. A maneira um pouco diferente. Firmamento supra-sensível, estre-
Feminilidade em geral, estrela de primeira grandeza, brilha las, constelações, signos zodiacais, lugares sociais e mentais,
no centro de uma constelação de astros particulares entre os regiões do espaço e do tempo regidas por essências. Círculos
quais percebemos a Espontânea, a Natural , a Culta, a Alegre, viciosos: torniquetes, redemoinhos , finalidades fictícias , meios
a Amorosa, em resumo, os papéis que a Feminilidade suscita
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escrita se erigia em suporte , em pedesta l do Sagrado . Ela pas-
transfor mados em fins e que se tornam seu próprio fim. Pleo-
sava por protótip o da obra quando era sobretu do moddo das
nasmos: formas ''puras' ' tornada s autônom as, sortilégios pro-
instituiç ões.
clamado s e aclamad os na Identid ade de si mesmos consigo
mesmos , auto-suf iciência , auto-sig nificaçã o (e, em decorrên cia, Não é o conheci mento das proprie dades gerais da coisa
autocon sumo, autodes truição) . escrita que permite concebê -la, e portam o limitá-l a, dessacrali-
zando-a?
Os Ídolos simboli zam a unidade desse conjunt o, esses Ído-
los que têm o notável privilégio de ser perfeita mente qualque r No contexto ancestra l onde predom ina o conflito (a uni-
um (nem muito feios nem muito bonitos , nem muito vulga- dade conflitu al) do sagrado-maldit o, que o Profano e a Profa-
res nem muito finos, nem desprov idos de talento nem muito nação diluem , predom ina também a relação conflitu al entre a
Letra e o Espírito. O cristiani smo não sai da ambigü idade e
dotados ), de ter a mesma vida (cotidia na) que qualque r um,
não resolve o conflito , atribuin do a Letra e as Sagrada s Escritu-
de a cada um dar uma imagem da sua vida (cotidia na) meta-
ras ao Pai Eterno, a leitura do Livro absoluto ao Filho, e a Pala-
morfose ada pelo fato de que não é a sua vida (cotidia na), mas vra ao Espírito, do qual não se fala muito mais, depois que foi
~ cotidian idade de um ou de uma outra (rico, célebre porque
nomead o.
!dolo). Assim, é apaixon ame ver um Ídolo que figura entre as
No contexto modern o , o texto social se profana a si
constelações, tomar um banho, beijar uma criança, dirigir seu
carro,~ fazer o ·que qualque r um faz, mas não como qualque r
mesmo. Ele se afasta dos ciclos e _do tempo cíclico da naturez a,
um . E isso o que , sem atingir comple tamente , estas metáfor as dos pavores inerentes à afetivid ade e ·às emoçõe s que depend em
de causas naturais , dos medos advindo s da escassez . O escrito
cercam: o Firmam ento, o Pleonas mo, o Círculo (vicioso, infer-
nal). se manifes ta como signific ante carregad o de prescrições, mergu-
lhando o indivídu o e os grupos nesse contexto que projeta no
Como se sustenta esse conjunt o? Pelo poder das palavras? ambien te uma ordem social e mental. A racional idade indus-
Sim não. As palavras (na medida em que são palavras: sig-
e trial e urbana permite , enfim , captar esse duplo movime nto
nos distinto s, significantes isoláveis) não têm nenhum poder. dialético: a forma mental e a forma social. Nosso conheci mento,
O discurso tem poder e faz parte dos meios do poder. As for- superan do a separaçã o, concebe como a Escritura se separou
mas têm um poder; a lógica tem um poder, a matemá tica tem da Palavra e mesmo inscreveu essa separaçã o nos seus imperat i-
uma eficácia, o valor de troca tem um poder (colossal). É seguro vos, tornand o suspeita a Palavra; simulta neamen te, a teoria con-
e certo. A Palavra tem um poder. Qual? Eis aí uma problem á- cebe como a escrita serve de trampol im, de novo pomo de par-
tica que surge no horizon te. tida para a Palavra e lhe permite dar um salto. Ela oferece
um objeto definido para esse "sujeito " que se constitu i na rela-
ção crítica a esse objeto. A coisá escrita é ao mesmo tempo con-
3. Teoria das formas dição e obstácu lo, razão do sujeito e reificação última. Por
uma contradi ção supleme ntar, ela continu ava a tirar proveito
Procura mos determi nar o modo de extstencia (social e do seu caráter sacrame ntal , tradição ultrapas sada, enquan to
m ental , termos diferent es e definido s por sua diferenç a especí- incorporava os caracteres e as proprie dades do racional, do
fica) das formas. Por isso , o primeir o passo é a dessacralização linear e do profano . Essa última contrad ição foi resolvid a por
da escritura. Esse ato profana dor segue com algum atraso a des- um procedi mento crítico, a partir da análise da metalin guagem .
sacralização da terra e da mulher. Ele as acompa nha. Conside - Esse procedi mento tem condições? Sem dúvida. A cidade se
remo-lo significativo da vida urbana que se acentua e se reforça define (entre outras determi nações) como a leitura de um texto
através de múltipl as contradi ções. No amigo contexto (social) social, de um compên dio que materia liza uma sociedad e e que
agrário, a sacralização do solo e da mulher, a valorização do foi legado pelas gerações, te~do cada uma anexado as suas pági-
raro e precioso estendia -se à forma da escrita. Mais ainda: a
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nas. A cidade é também o lugar de uma palavra que se sobre- e o desejo , entre a operação intelectual e as pulsações ou impul-
põe à leitura da coisa escrita, que interpreta, comenta, contesta. sões (um dos fundamentos do terror).
Esta cidade foi, antigamente, caracterizada por religiões, por O desejo, se. bem que não possa ignorar o passado, ignora
ritos de origem rural. Ela se estendia em torno do templo, do a recorrência. Se bem que o pensamento não possa declarar sem
santuário, lugares privilegiados pelo investimento maciço no dificuldade que ele "seja" ou que ele "não seja", ele é ou não
Sagrado. Ela própria era investida (rodeada, cercada, mas tam- é. Ele se declara e se diz; ele se quer, nem que seja para se des-
bém dotada de poderes) pelo território , do qual condensava o truir ao realizar-se, ou para não se realizar. Ele é ato, atualida-
caráter sagrado, expulsando para o estrangeiro o que fosse mal- de, atualização: presença. O rigor do escrito tende à pureza
dito. Ora, a antiga forma urbana anunciou a morte do Sagrado gelada, estranha ao desejo, sempre semelhante a si mesma. Res-
ao subordiná-lo à razão, à previsão, à vi9.a política. Por conse- tituir a palavra, presença, desejo, é incendiar o gelo, e é esse o
guinte, o texto social e a escrita perderam esse traço que os paradoxo da poesia (que talvez o poeta realize por meio da desor-
caracterizava. Ele pertence ao folclore , Sendo razões e causas, dem das palavras com relação à ordem de recorrência, desordem
a dessacralização do território e a profanação do texto social que constitui ainda uma ordem e não poderia se definir pela
na realidade urbana provocaram a dessacralização e a profana- supressão do rigor, mas que arranca a escrita da tentação da meta-
ção do escrito . Mas não foi sem atraso. Por outro lado, a vida linguagem, substituindo a ausência de referenciais e os referen-
urbana não d esapareceu com a explosão da sua morfologia. ciais comumente aceitos por este referencial privilegiado, susci-
Ao contrário , o processo de explosão se faz acompanhar parado~ tado pelo ato poético: o desejo, o tempo do desejo ... ).
xalmente por uma implosão. Aqui , a vida urbana se concentra
e se acentua no que resta da amiga morfologia (cidades e bair- O poeta não faz desaparecer a escrita nem o rigor da
ros antigos). Lá, ela tende a existir como forma nova que espera escrita. Por um ato que parece milagroso · ele metamorfoseia o
por uma base morfológica; em germe, virtualidade ou possibili- frio em calor, a ausência em presença, o pavor do desejo em
dade, ela exige a plena existência social e a base material ( espa- desejo, a espacialidade em temporalidade, a recorrência em atua-
cial), provocando o questionamento das formas existentes e lização. Se então o desejo passa para a escrita e se lhe confere
do modo de existência (social e mental) das formas . Isso pede a sua vibração, ele se amplifica, se supera forÇando uma barra-
uma nova racionalidade, através das dificuldades da razão. gem, comunicando-se por meio do que parecia obstáculo e bar-
A Palavra revela uma presença (às vezes uma ausência, reira. Se a coisa escrita se põe a tremer, se sua pureza se turva
esta ou aquela, fuga ou mentira, mas relativas à presença). Tal e ganha, por meio dessa turvação, uma outra transparência que
presença tem como referência, dissimulada ou desvendada - lhe tira suas qualidades de coisa (mental e social), o efeito se
dissimulando-se ou desvendando-se a si mesma - , o Desejo. multiplica. Desse' milagre, que nada tem de irracional, que
A Palavra pode ter uma frieza apenas intencional. Em si mesma possui a sua ordem própria , vem o encanto de um simples
ela é hot. Por sua vez, o escrito, ausência (presença também, poema de amor reduzido (em aparência) a uma forma quase
mas de maneira longínqua, que se atinge por inferência), recor- pura , a uma retórica.
rente e cumulativo, dotado de propriedades da.coisa (socialmen- As relações conflituosas entre a Palavra e a Escrita nãQ se
te) e da memória (mentalmente) só pode ter um calor causado reduzem às relações entre o sexo e a coisa escrita, como não se
pela leitura, pelo ato desse leitor particular , o ledor , o recita- reduzem às relações entre o espírito e a letra. Elas vão mais
dor, o ator. Ele é por essência cool. Ele inscreve e prescreve; longe. Comentemo-nos aqui de lembrar que aqueles que fala-
sua primeira prescrição consiste na própria leitura que o atua- ram sem escrever pagaram c:om a vida por. esse ato destruidor
liza. Frio porque opressor, opressor porque frio, ele acompanha da Lei, criador de tempo e de acontecimentos: Sócrates, Cristo,
a fuga do desejo. Assexuada na medida em que é escrita, indi- talvez Joana d' Are. Quanto a Nietzsche, nesse horizonte, o seu
ferente e imperiosa na medida em que é lei, esta coisa tende Zaratustra apela à Palavra, à Presença, ao tempo, ao desejo ,
a consagrar a separação . Ela inscreve a cisão entre a realidade
19!
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não apenas para reanimar a escrita congelada, mas também venda da força de traba:lho. E assim por diante. No entanto,
para ir contra a coisa escrita e a sua ac~mulação desde. a auro~a há uma forma geral dos contratos, a forma jurídica, relacio-
da sociedade ocidental. O poeta quena dar um senndo ma1s nada com o código civil. Observemos como toda relação contra-
puro às palavras da tribo ou simplesmente dar-lhes um sentido? tual supõe discussão, determinação , por uma troca verbal entre
Sempre ocorreu que "a morte triunfou sobre essa voz estranha". as partes contratantes, dos termos "justos" do contrato. Essas
preliminares, entretanto, desaparecem em seguida. Um escri"to
O espaço puro (formal) define o mundo do terror. Se
inspira fé: é o ato do tabelião. E o contrato se conclui por
invertermos a proposição, ela conservará o seu sentido: o terror
meio da forma última de escrita, a assinatura.
define um espaço puro, formal: o seu espaço, o espaço do seu
poder e dos seus po?eres. O tempo f<?i evacuado desse espaço Do mesmo modo, não há pensamento sem um objeto,
homogêneo. A escnta que o determma caçou a palavra e o não há reflexão sem um conteúdo. No entanto , há uma forma
desejo. Nesse espaço literal , separado do ato, da presença, da geral do pensamento, que concerne a uma codificação: a lógica.
palavra, os atos ditos humanos, assim como as coisas, se classifi- Condensemo s em alguns enunciados o movimento dialético
cam, se organizam, se colocam em estantes, em gavetas. Com da forma e do conteúdo, muitas vezes negligenciado em nome
5
os escritos, como eles, alinhados sobre a coisa escrita • Um da forma "pura" existente como tal, ao m esmo tempo mental
poder superior os mantém nessa ordem: o cotidiano. e social. Não há forma sem conteúdo e, reciprocamen te, não
A dupla existência das formas, assim concebida (mental há conteúdo sem uma forma. A reflexão separa a forma do con-
e social), convida a reflexão a ir até o fim dessa oposição, que teúdo . Ela apóia, então, a tendência das formas à existência
dissimula uma ambigüidade , a qual, por sua vez, dissimula como essências puras. Ela própria, a reflexão, constitui uma
um movimento dialético (conflituoso). Compreender esse duplo forma que aspira à existência como essência do u niver.so (é a
aspecto, ou melhor , esses duplos aspectos, permite captar outras ambição e a ilusão dos filósofos). A forma "pura" adquire na
relações, como a do real e do possível, do produto e do ato (o pureza a transparência inteligível. Ela se torna operatória,
gue os filósofos chamam de relação entre o objeto e o sujeito). como meio de classificação e de ação. Contudo, ela não pode
E também a relação da forma com o conteúdo. A forma se existir assim. Na medida em que é forma, não passa de uma
esforça por existir no estado puro como abstração mental e abstração. O que se faz reconhecer como existente é a unidade
como coisa social. No entanto, ela não pode existir no estado (conflituosa , dialética) da forma e do conteúdo. A forma sepa-
puro sem conteúdo. O esforço da forma em busca da pureza, rada do conteúdo, separada dos referenciais, impõe-se pelo ter-
que impõe sua lei e seu rigor, faz parte da sua força. Ela dá ror. Ela tem como conteúdo o terror. Combatendo por meio
uma força à pureza: a sua capacidade terrorista. de uma classificação a mania classificadora, voltando contra
Há contratos específicos, caracterizado s por um conteúdo. eles mesmos o formalismo, o estruturalism o e o funcionalismo ,
O contrato de casamento especifica e regulamenta as relações a crítica radical propõe aqui uma classificação das formas e
entre indivíduos de sexo diferente, de acordo com um código mostra o conteúdo geral delas: a cotidianidade mantida pelo
(uma ordem) social determinado , subordinando , por conse- terror. Indo do mais para o menos abstrato, a reflexão descobre:
auinte, as relações sexuais a relações de propriedade (o patrimô- a) A forma lógica. Mentalmente : o princípio absoluto da
~io , o dote, a herança e sua transmissão, a repartição das aqui- identidade: A = A, enunciado vazio , tautológico, portanto
sições etc.). O contrato de trabalho regulariza a compra e a inteligível, puro e transparente porque sem conteúdo. Social-
mente: o torniquete, o pJeonasmo (meio tomado como fim,
entidade tornando-se autônoma e se esvaziando);
5 Não é, pois. o espaço da falsa consciência (tese de J. Gabei: La fausse conscience,
Edições Minuir. coleção Argumentos), mas o espaço da consciência real, ou da cons· b) A forma matemática. Mentalmente : a enumeração e a
ciência do real, separada do possível, do virrual, da atividade formadora. Ela não é classificação, a ordem e a medida, a igualdade na diferença, o
apenas patógena. O terror se: no rmaliza .
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conjunto e os subconjuntos. Socialmente: a programação, a dúvida alguma, do fato de permitir ela a análise, isto é, os
organização racional; recortes do "real" de acordo com suas linhas de menor resistên-
c) A forma da linguagem. Mentalmente: a coerência. cia, suas articulações e desarticulações, seus níveis e suas dimen-
.Jocialmente: a coesão das relações, a codificação; sões. A análise mata, é um velho chavão. Ela tem o temível
d) A forma da troca. Mentalmente: a equivalência, a dis- poder da m:orte e da vida, que dissociam e reorganizam .em
tribuição igualitária da renda, a comparação (das qualidades e novas arquiteturas os destroços, os fragmentos, os elementos
das quantidades , das atividades e produtos, das necessidades e deixados disponíveis pela separação.
satisfações). Socialmente: o valor de troca, a mercadoria (que, Assim a forma volta para o conteúdo, variado e resistente,
desde então, tem uma lógica e um discurso, e tende a consti- para impor-lhe ordem e opressões. Tod~via, esse conteúdo é
tuir, a partir da sua forma, um "mundo"); irredutível. Ele é o irredutível. O movrmento complexo do
. e) A forma contratual. Mentalmente: a reciprocidade. conhecimento (analítico) e da práxis, envolvido no moyiment_?
Socialmente: a formalização jurídica das relações fundadas na da forma e do conteúdo, envolve o da redução e o do uredun-
reciprocidade, a codificação desenvolvida até a elaboração de vel. E o conteúdo? Em última instância, em última análise
princípios abstratos; ~ (mas aí talvez não haja necessidade nem d~ última in~tância
nem de última análise), o conteúdo é o desejO, esse desejo que
/) A forma do objeto prático-sensível. Mentalmente: o
não pode se considerar nem desejo de ser, .nem desejo de não
equilíbrio percebido e concebido no objeto. Socialmente: a
ser, nem desejo de perseverar nem desejo de aca~ar, nem
simetria dos objetos (encerrando relações escondidas entre coi-
desejo de sobreviver nem desejo de morrer, mas d~sejO de ato
sas, entre cada coisa e sua vizinhança, em:re o indivíduo e seu
e de obra, que é significado por tudo s~m ser designado, que
duplo etc.); se dissimula nos significados e sob os sig~os: que, por cor:se-
g) A forma urbana. Mentalmente: a simultaneidade. guinte, se revela como o significante sem significado que anrma
Socialmente: o encontro (que reúne os produtos e as atividades todos os signos, que se situa na Palavra, no Tempo, e não no
circunvizinhas), que, pela atualização e pela dessacralização , espaço, no escrito, nos significados postos à mostra.
condensa a paisagem, obra do trabalho , forma imposta à natu-
A cotidianidade figura no conteúdo? Sem dúvi~a: mas
reza sobre um território; de maneira ambígua. De um lado, ela resulta. da eficacia ~as
h) A forma escn·ta. Mentalmente: a recorrência. Social- formas: ela é o resultado delas, ou a resultante, como se queua.
mente: o cumulativo. Produto e resíduo, assim se define o cotidiano. As formas, .
DeL'Xemos de lado aqui a repetição , que alguns (Nietzsche simultaneamente, organizam o cotidiano e se pro~etam sobr.e
por último) concebem como forma da existência. a cotidianidade. Todas juntas não chegam a reduzi-la. A con-
Por que , n essa hierarquia que vai do mais ao menos abs- dianidade resiste, residual e irredutível. Apesar dos eSÍQrços
trato, colocar a forma da escrita depois da forma da cidade? A para institucionalizá-lo, o cotidiano foge; sua base se furta, ele
classificação não estipula nenhuma prioridade lógica, nem onto- escapa ao assalto das formas. A cotidianid~de é também ~empo
lógica, nem histórica. Ela vai da forma pura e transparente ao do desejo: extinção e renascimento. A soe1ed~~e r.epressiva e o.
conteúdo substancial, movimento que esconde uma relação dia- I terrorismo jamais conseguiram dar cabo da coudiamdade. Encar-
I
lética muitas vezes mencionada, a da forma e do conteúdo. A ·J niçamo-nos em cima dela, acuando-a e emparedando-~ no seu
forma. a?solutamente pura (A = A) é absolutamente incapaz 1 espaço. Para acabar com ela seria preciso matá-la, mas 1sso não
de ex1sm. O grande paradoxo da reflexão é, antes de tudo , .I é possível, pois temos necessidade dela! . . .
que essa forma se formule e se formalize tão perfeitamente, e Precisamos provar que uma forma não pode eXIstir por SI
que em seguida ela seja eficaz. Como e por quê? De onde vem mesma? Temos de mostrar sobretudo a vã pretensão das for-
essa eficácia, essa capacidade operatória da forma pura? Sem mas à existência "substancial", isto é, à essencialidade. Do ponto
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de vista racional, é evidente que a forma "pura", a da lógica, mação) chegarem a uma espécie de racismo generalizado, coro-
como a do contrato ou da escritura, não tem direito à autono- lário da incapacidade de integração. Todos contra todos: suces-
mia, embora tenha essa ambição. A "pureza" da forma se sivamente as mulheres, as crianças, os jovens, os proletários,
junta à do não-existente. A análise crítica tem, portanto, como os estrangeiros, as etnias diversas são objeto de ostracismo, de
função mostrar a existência social do que não tem existência ressentimento, concentrando-se sobre eles um terror difuso. O
exterior e "substancial" . Resulta daí que as formas dependem conjunto resiste ainda, por uma pedra angular (o discurso) e
da consciência social, mesmo agindo sobre ela. Como poderiam uma base (a co.tidianidade). ·
elas prescindir da palavra, apesar de a esvaziarem em proveito Como o conceito de terrorismo e o de escrita, o conceito
da forma, de esvaziarem a atividade em proveito do interme- de "grau zero" provém da crítica literária, o que se explica
diário, o ato em proveito da mediação? Reconhecemos uma ao mesmo tempo pela perspicácia dos melhores críticos, que
idéia ou tese: a Palavra mantém, reúne, unifica, não numa (_ assumem seu papel de penetrar "até as raízes", e porque a lite-
forma (ou numa estrutura ou numa função), mas num ato, as ratura serviu de veículo mental e de suporte social para a.ascen-
formas dispersas. são da metalinguagem: da coisa escrita. Deixamos de lado
A palavra é necessária, mas não suficiente. Ela tem neces- aqui esse conceito estilístico elaborado por R. Banhes 6 para
sidade de um fundamento, de uma base material e substancial. compreender as transformações da escrita propriamente literária.
Percebemos essa base na produção (com o seu duplo processo: O "grau zero" se define pela neutralização e pelo desapareci-
produção de obras e de produtos) e também na cotidianz"d.a de, mento dos símbolos, pela atenuação das pertinências (oposi-
na medida em que é produto das relações atuais de produção , ções), pela predominância da ligação das palavras e das frases,
bem como resultado e resíduo do conjunto das formas já men- ligação mostrada como testemunho de "o que acontece por si
cionadas. mesmo' ' . A escrita pretende dizer simples e friamente o que
A esta análise crítica podemos aqui acrescentar o singular é, ao passo que expõe sua coerência formal. O grau zero é um
quadro da integração-desintegração da sociedade contemporâ- estado (não um ato ou uma situação) neutro caracterizado por
nea. Integrar-se e integrar é a obsessão dos membros dessa uma pseudopresença, a de uma simples testemunha, e, por con-
sociedade (indivíduos e grupos) e também do conjunto, desde seguinte, presença-ausência.
que haja conjunto, "cukura", instituições. Essa obsessão não Existe, portanto, um grau zero da linguagem (o discurso
é acompanhada nem por uma capacidade integradora considerá- da cotidianidade) - do objeto (a coisa funcional, dissociável
vel e sempre presente, nem por uma incapacidade completa e em elementos, organizada com arranjos e combinações desses
uma ausência de integração. Integrações parciais ocorrem elementos) - do espaço (o espaço mostrado em espetáculo,
quando a integração se julga total. Pelo desvio da cotidiani- seja coberto de árvores e de gramados, o espaço aberto à circu-
dade organizada, a classe operária se deixou parcialmente inte- lação, o espaço desértico, seja no coração da cidade)- da neces-
grar na sociedade existente (o que significa sua desintegração sidade (previsível, prevista, satisfeita por antecipação pela ima-
como classe). Nesse mesmo tempo e por causa disso a socie- gem da ·satisfação). Existe também o grau zero do tempo : o
dade inteira se desintegra: sua cultura, sua globalidade, seus tempo condenado a decorrer segundo um programa, o tempo
valores. Mostramos como essa sociedade não constitui mais organizado em função de um espaço preexistente, no qual ele
um sistema (apesar do poder do Estado e da força armada, ape- nada inscreve, mas segundo o qual ele se deixa prescrever. O
sar do reforço das opressões e do terrorismo), mas uma soma grau zero é uma transparência que rompe a comunicação e a
de subsistemas, uma reunião de torniquetes ameaçados de des- relação no momento em que tudo parece comunicável, por ser
truição mútua ou de autodestruição. Que ninguém se espante
se a integração obsessiva e as integrações muito limitadas (no
mercado, pela publicidade; na cotidianidade, pela sua progra- 6 Cf. O grau zero da escritura. e também Paul Valéry, Variétés. 11. p. 231.
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racional e real ao mesmo tempo, mas justamente no momento necessidade. Ao grau zero podemos imputar uma espécie de
em que não há mais nada a comunicar! ascetismo (mental e social) escondido sob a abundância, o des-
A topologia ou tópico social que desenhamos adquire perdício, as despesas pródigas, bem como sob o seu oposto, a
aqui uma nova figura. Mais sombria? Não, mais crepuscular. I racionalidade econômica, e sob a oposição. Podemos também
Uma coleção de lugares neutralizados, tão neutros quanto pos-
i atribuir-lhe a decadência da festa, dos estilos e da obra ou
I
sível, mas destinados a este ou àquele uso. Acima de ou no I melhor, resumir assim os traços e as propriedades que resultam
turbilhão de uma entidade. Guetos mais higiênicos e funcio- dessa decadência. Numa palavra, o grau zero caracteriza a coti-
nais: o gueto da criatividade e da miniaturização .(os pequenos d ianidade (feita abstração do .desejo que vive e sobrevive nela).
trabalhos manuais, o hobby, a coleção, a jardinagem) - os Não vamos dramatizar esse quadro do "frio absoluto".
guetos da alegria e da liberdade (os acampamentos de férias) Ele não tem nada de uma paisagem intergaláctica. É apenas o
- o gueto da palavra (o grupinho do bate-papo). Os lugares quadro do tédio. Por outro lado, quem não conhece o perigo
da Feminilidade, da Juvenilidade, os do úânsito, da troca e do tédio no seio da modernidade? Quem ignora que países
do consumo, e também os da Comunicação. inteiros se entediam? E que outros deslizam para o tédio do
Não vamos dramatizar. Existem (real e verdadeiramente) grau. zero? Mas você pergunta se as pessoas estão satisfeitas,
bastante felizes. Claro que sim. Elas acabam por aceitar e mesmo
muitos diálogos e muitas comunicações. Eles não acontecem
por amar o tédio do ''grau zero'', que é preferível aos riscos
lá onde são esperados, lá onde se institui o lugar para a comu-
do desejo.
nicação , para o diálogo. É em outro lugar, é onde a Palavra
nasce de um confronto muitas vezes breve, muita.S vezes vivo A investigação concernente ao modo de existência das for-
e até violento, escapando à neutralização do lugar preparado. mas conduz a uma interrogação sobre a realidade social. Não
Lá, em outro lugar , "alguma coisa" se diz, acima do escrito seria necessário reconsiderar e modificar o conceito de '' realida-
que sitia os ''sujeitos'' e os suprime. Mais ou menos por toda de''? As formas não existem e não agem nem sobre o modelo
parte, os corpos (sociais, constituídos), que bloqueiam a comu- do objeto sensível, nem de acordo com o modelo do objeto téc-
nicação ao pretender instituí-la, lhe estabelecem um lugar e nico, nem sobre o modelo da substância metafísica, nem como
abstrações "puras". Em si mesmas elas são abstratas, e no
um tempo na cotidianidade. Mas, por mais que grupos ou clas-
entanto são coiSas mentais e sociais. Elas têm necessidade de
ses se enfrentem ou se confrontem, o diálogo surge com o
um suporte sensível, material, prático, mas não se reduzem a
movimento dialético. esse veículo. Assim, o valor de troca exige uma coisa (um pro-
O obsessivo, para essa sociedade, é então o· diálogo, a duto) e uma confron~ação entre as coisas para aparecer e para
comunicação, a participação, a integração, a coerência. É aquilo manifestar seu conteúdo, o trabalho social produtivo, e a con-
que nos falta, aquilo de que "a gente" sente necessidade. São frontação entre esses trabalhos. Mas coisa e conteúdo sem forma
temas e problemas. E acreditamos resolver os problemas evo- não têm nenhuma realidade nem especificamente social nem·
cando os temas, tagarelando douta ou obsessivamente sobre ·I,· mental. A forma definiria a significação de uma coisa? Sim e
esses temas. A solidão, a ausência de comunjcação, as queixas, não. Há na forma alguma coisa de mais e de menos, alguma
nada disso é novo. O novo é a solidão no meio da redundância, coisa que vai além da significação. As formas conferem·signifi-
a aus§ncia em meio à superabundância dos signos de comunica- cações e captam significações. Elas se fazem significar e captam
I
ção. E também o fato de que o lugar seja sempre outro, consti- 'I significantes. Assim, a língua do mun.do do comércio consti-
tuindo um álibi. O "grau zero" representa uma espécie de tuiu-se utilizando as línguas anteriores; ela as modificou. Os
limite inferior da realidade social que não podemos atingir, I encadeamentos de causas eficientes e de efeitos não bastam
• ~ I
mas do qual nos aproximamos: o frio absoluto. Ele acumula para se expor a "realidade" social; a causalidade e o determi-
os "graus zeros" parciais, espaço, tempo, objeto, discurso, nismo clássicos devem ceder lugar ·a um outro procedimento

l
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de e>..-posição e de expli~ação. Não é uma razã~ s~fici~-?'te r:em · . 0 que é um traço característico da sociedade terrorista. Uma
para se rejeitar a ca~sahd~de, ~em para sub~muu a real~~a­ estreita minoria tira conclusões do que sabe. A experiência coti-
de" por· uma espécie de ureahsmo. Nos dois casos, a analise . diana não se acumula , embora se atribua às pessoas idosas uma
passa ao lado de uma problemática, o modo de existência d~ ''experiência'' que não está muito longe de uma forma de
formas e ação delas. Elas são "reais", mas não segundo os ain~­ ·I desencanto e de aceitação. ·
oo-os modelos . ; elas
de " realidade" se projetam num solo; o cou- A prática cotidiana se deixa desviar, enquanto experiência,
diano, sem o qual não tenam nada a esclarecer, nada a deter- e valorizar, enquanto prática limitada, a prática de uma vida
minar, nada a organizar. Assim, clarezas distintas e que, no individual que cedo ou tarde acaba encalhando na resignação.
entanto, formam uma luz , iluminam um terreno que, sem ela, E o oponente? Lá está ele isolado, absorto, reduzido ao silêncio
não passaria de uma massa obscura. Aqui ainda a metáfora diz ou recuperado. Para uns ele não tem experiência, para outros,
muito, mas não o suficiente. não tem bom senso . O opositor fica sendo o não-dito. O mundo
Até aqui o procedimento analítico ca~inhou de alto a do terror, das formas e do espaço "puros", é também o mundo
baixo: das formas para a -materialidade, para o conteúdo, para 1 . do silêncio, quando as metalinguagens se esgotam e têm vergo-
esse baixo que é também uma base. Instalemo-nos agora na . nha de si mesmas.
cotidianidade, sem esquecer, entretanto, o caminho percorrido. Assim se delineia um conhecimento (ou, se não hesitar-
Tentemos nos colocar na situação daquele que vê a sua cotidia- mos no uso das palavras) uma ciência. Esta ciência descobriria
nidade sem conhecimentos históricos, sociológicos, econômicos, a situação cotidiana em sua relação com as formas e as institui-
e até sem lucidez crítica particularmente vigilante. Nessa situa- ções. Ela desvendaria essas relações implicadas na cotidianidade,
ção, alguma coisa imediat~ent<:; chama a atenção, espanta, mas implícitas e veladas no seio do cotidiano 7 • No cotidiano
pede uma nova análise. Ele (esse "sujeito " do cotidiano vivido, o homem percebe transparências onde h á véus espessos,
homem ou mulher, membro deste ou daquele grupo social) e espessuras onde não há mais que uma fina aparência. Para
não suspeita de nada ou de quase nada do que já descobrimos romper essa dupla ilusão, impõe-se uma operação quase cirú~­
e revelamos. O que ele verifica, o que ele vê e percebe, o que gica. A exploração das situações cotidianas supõe uma capao-
ele vive, para ele é muito normal. Acontece aqui e agora. Para dade de intervenção, uma possibilidade de mudança (de reorga-
ele talvez não seja nem justo, nem justificado, nem justificável, nização) no cotidiano, que não são do domínio d e uma insti-
mas é assim . As coi\as são o que elas são .- Mal pressente ele tuição racionalizadora ou planificadora. Semelhante práxis
(salvo casos de estado patológico ou anômico ), abaixo, a pro- pode ser preparada seja pela análise conceptual, sej a por
fundeza do desejo; acima, os astros que o governam. Ele não experiências ''sócio-analíticas''. Enquanto práxis na escala glo-
levanta nem abaixa muitas vezes os olhos; olha em torno de si bal da sociedade, ela faz parte da revolução cultural baseada
mesmo, para a superfície que lhe parece a " realidade". Este
ser da cotidianidade vive numa dupla ilusão: a da transparên-
. cia e da evidência ("é assim ") e a da realidade substancial 7 Pesquisas nesse sentido já estão sendo desenvolvidas por Georges Lapassade. René
("não pode ser diferente" ). Assim se define a ilusão do ime- Lourau e os membros de Grupos de Pesquisa Institucional. Podemos chamar de iócio-
análise essa pesquisa . Ela supõe uma intervenção na situação existente. _a cotidian~ ­
diato no cotidiano . dade de um grupo .. A intervenção sócio-analítica dissocia os aspectos da Siruaç_ão coti-
O terrorismo alimenta essa ilusão, esse grau· zero do pen- diana, misturados a uma falsa evidência. num lugar e num tempo. Ela assocza expe·
sament~ crítico. A ação terrorista das formas (e das instituições ciências que até ali eram exteriores. Procede em seguida por indução e por transdu-
ção. Assim, a ação oponente anti-stalinista no seio do partido comun i st~ foi. no seu
extraídas dessas formas) alimenta a falsa transparência do real tempo. uma notável sócio-análise; uma parre das descobertas se encon~am no pen-
e mascara as formas que ·mantêm essa realidade. Na vida coti- samento (sociológico em particular. marxista em geral) dos anos postenores. O ter-
edro volume de Critique de la vie quotidienne. que explicitará certos pontos da pre-
diana as pessoas impedem a si mesmâs de crer na própria expe- sente exposição, será, sem dúvida. construído a partir deste esquema: primeiro, o
riência e de perceb~-la. Nada lhes proíbe, mas elas se proíbem , imediato cotidiano. suas variedades c,suas ignorâncias, depois. a elucidação das formas.
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no fim do terrorismo, ou , pelo menos, na possibilid ade de as duas perspectivas, eles ameaçam de morte este germe, virtua-
inte;:venções contrater ronstas. lidade em vias de nascimen to: a vida urbana. Por outro lado,
somente os ideólogos podem crer que a sociedade urbana se
compõe de categorias sociais já livres da divisão do trabalho,
4. A abertura das classes (sociais), e que há um "sistema " urbano. Esses idea-
listas pensam nostalgic amente na cidadela grega, ignorand o
Supondo -se que haja demonstr ação nesse procedim ento, sua ligação com as relações de produção escravagistas. A vida
o não-fech amento foi demonst rado. Não há um sistema único, urbana se compõe de encontros ; ela exclui a segregação e se
absoluto, privilegia do, mas subsistem as; entre eles, rachadur as , define como tempo e lugar de reunião de indivíduo s e grupos
buracos, lacunas. Não há convergência das formas; elas não che- ainda marcados pela divisão do trabalho, reunião de classes,
gam a encerrar o conteúdo . Nem a reduzi-lo . O irredutív el se de modelos (patterns) de vida diferente s. A sociedade urbana
manifest a depois de cada redução . Necessária ao procedim ertto possível a partir de agora se baseia não no desapare cimento das
científico , a redução logo se revela provisória, momentâ nea , classes, mas no fim de um antagoni smo que se traduz precisa-
relativa, trazendo um procedim ento ulterior. A ciência apóia- mente pela segregação. Ela implica um conjunto de diferenças
se numa p ráxis, implica e supõe uma práxis, ou conduz a ela. e por aí se define. No e pelo urbano, o tempo se livra dos ciclos
O cotidiano , falsa espessura, ilusória transparê ncia, faz fronteira naturais, mas não obedece aos recortes lineares da duração racio-
e superfície entre a profunde za e a claridade . Está longe de se nalizada. É o tempo do imprevist o: não um tempo sem lugar,
fechar e não passa de um plano. mas um tempo que domina o lugar, no qual aparece e transpa-
Resta agora a saída mostrada , onde se deve engajar o pen- rece. Sendo lugar e tempo do desejo, aquém e além das neces-
samento . E a abertura? Ela já tem o seu nome: a vzda urbana sidades, porque ela tem este sentido, a vida urbana implica a
(ou a sociedade urbana). realização de múltiplas funções, mas é transform ativa. Lugar
A vida urbana começa ao mesmo tempo nos restos da do tempo diferente da espacialid ade formal, lugar da palavra
vida rural e nos destroços da cidade tradicion al. A vida campes- que determin a a escrita e a metaling uagem, a realidade urbana
tre, a realidade agrária dominara m durante longos séculos. não deixa também de implicar escritas (espaciais, formais). A
Elas cercavam e sitiavam a cidade de outrora e a marcavam . realidade material da cidade se define de maneira prática (ins-
Hoje principia a era da vida urbana, onde o valor de uso pode crições e prescrições) e, no entanto, essa morfolog ia projeta
dominar o valor d e troca, que ainda predomi na sobre o uso e sobre o ambiente (inscrito, prescrito) relações cuja existência
o valor de uso, nascidos no contexto agrário. Para defini-la e social e mental não se reduz a essa projeção. É nela que a pala-
realizá-la o pensame nto se livra das nostalgias, das id~ologias vra reúne os elemento s dispersos da realidade social: funções e
(sobrevivências ou construções utópicas ultrapass adas). As vezes estrutura s, espaços sem conexão, tempos constrang idos. No
a vida urbana persiste ou tenta manter-s e nos antigos centros urbano existe vida cotidiana , contudo a cotidiani dade se supera.
urbanos , nos lugares outrora bem-suce didos nas cidades, geral- Mais sensível que noutros lugares, o terror é combatid o aí mais
mente com homens novos, que não são mais os que fizeram eficazme nte, ora pela violência (sempre latente), ora pela não-
esses centros e esses lugares. Às vezes ela se forma, isto é, se violência e pela persuasão. A vida urbana é, por essência, con-
constitui numa forma mental e social, aspirando a criar uma testadora do terrorismo e pode opor-lhe um contrater rorismo.
nova ''cemrali dade''. Apenas os defensores de uma ideologia Na medida em que o urbano se realiza criando sua obra (mor-
chamada ''econom ismo' ' podem definir a vida urbana a partir fologia, estrutura urbana, lugares modelad os e moldado s,
da produção industria l e da sua organização. Apenas os adep- espaço ou espaços adequado s), a apropriação volta . à cena,
tos do racionalis mo burocráti co podem conceber esta realidade sobrepuj a as opressões e subordin a o imaginár io ao estilo e à
nova a partir da arrumaçã o do território e do planejam ento. Sob obra: pelo monume nto e na festa. Desde então a vida urbana
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devolve à atividade lúdica (ao jogo) sua importância perdida, com o seu ''objeto'', cu;a formação ele estuda, e para cujo nas-
cimento e crescimento contribui ativamente.
suas condições de possibilidade s. O movimento em direção à
restituição da festa se acus~, desde que haja vida urbana. Para- - lJtopista!
doxalmente, o lúdico e o jogo, restituindo-se, contribuem para ·l
- Com efeito. Não considero essa palavra uma injúria.
se restituir o valor de uso, o uso dos lugares e dos tempos, De fato: visto que não ratifico as opressões, as normas, os regu-
situando-os acima do valor de troca. A vida urbana não proíbe lamentos e regras, visto que enfatizo a apropriação, visto que
as mass media, as uocas , as comunicações , as significações; ela não aceito a " realidade", e que para mim o possível faz parte
exclui a metamorfose da atividade criadora em passividade, do real, então sou um amante da utopia. Não digo utopista,
em olhar puro e vazio , em consumo de espetáculos e de sign.o~. veja bem. Amante da utopia, partidário do possível. Quem
A vida urbana pressupõe essa intensificação das trocas ma~enats não é, exceto você?
e não-materiais , mas por hipótese transforma a quantidade - Não estou sozinho .. E nós não confundimos a instrução
em qualidade. Ela ajunta à forma da comunicação um conteú- com a acusação, o julgamento com o requisitório. Segundo
do, uma matéria-prim a. A sociedade urbana não tr~nsfi~ura a você, as pessoas são infelizes, aterrorizadas.
cotidianidade no imaginário e não se contenta com tlummar a - Você não compreendeu absolutamen te nada. Eu não
cotidianidade com uma outra luz . Ela a muda e metamorfose ia disse que as pes~oas são aterrorizadas, mas terroristas. Eu disse
a partir da própria cotidianidade . que muitas pessoas estão satisfeitas e que, no entanto, reina
um enorme mal-estar. Esse contraste, que revela uma contradi-
ção , é ele o tema, o problema.
- Esperávamos de você minúcias sobre a vida cotidiana
5. Breve diálogo
das classes sociais, sobre a vida da burguesia e a das famílias
.operárias. No meio do caminho você esqueceu as classes. A coti-
- Como era previsto, você abandonou toda ambição cien- dianidade seria a mesma para todos? Você elimina as diferenças .
tífica e passou de uma análise (ou de um escrito que pretendia
-Nada disso. Este livro não tinha como meta uma des-
ser analítico) para um panfleto. crição da cotidianidade de acordo com as classes, com os gru-
- Você foi prevenido. Somente uma "cientificidad e" pos. Ele não tinha a intenção de fornecer receitas e despesas
que como foi mostrado , figura entre as formas pretensament e
, (de tempo, de dinheiro). Tal estudo merece ser realizado, mas
puras e os arquétipos semiplatônico s deste pequeno mundo , corre o risco de não sair da trivialidade sociológica e de se per-
proíbe ao mesmo tempo a intervenção e a crítica. De aco~do der na anedota, nas d escobertas banais provadas com muitos
com o procedimento seguido nest~ obra ( q~e tenta ser prects~ , dados numéricos, com uma grande aparelhagem científica ou
determinar uma orientação e abnr um honzonte), o conheci- pseudocientíf ica. Um estudo que mereceria os elogios de um
mento científico inclui tanto a ação quanto a crítica e o com- punhado de especialistas se dedicaria ao exame dos estereóti- .
bate teórico . De resto, a hipercrítica vale mais que a ausência pos, dos pattems, quando não ao exame dos rendimentos, dos
de crítica. Ela estimula até m esmo os conformistas como você. extratos, das estatísticas. Não iria ao fundo das coisas. Repito :
- Você termina com uma apologia da vida urbana, num ao fundo das coisas enquanto coisas. A estratégia que visa a.
tom profético. · programação do cotidiano é global; é uma estratégia de classe.
- D e jeito nenhum . Já existe:: um conhecimento das reali- Desse plano, da sua realização, alguns se beneficiam; os outros,
dades e das possibilidade s urbanas, que não coincide nem com .l a maioria, o suportam mais ou menos. No alto da escala hierár-
a história ou a ciência da cidade tal como ela existe, nem com quica, alguns (as personalidade s olímpicas) transcendem, em
a -ideologia chamada urbanismo. Esse conhecimento se forma aparência, a cotidianidade . Na · parte baixa da escala, na nova

I
204

pobreza, uma enorme massa sup<?rta o peso, suporta a pirâ-


mide, vive na ambigüidade ''satisfação-frustr ação'', experimen-
tando-a até ao-conflito. As conclusões se anunciam ...
- Você às vezes não se considera esquerdista?
. 1
- Mil perdões! Há ideólogos de direita e ideólogos de
esquerda, embora a classificação das ideologias não se efetue
sempre de acordo com critérios precisos. A crítica de esquerda
e a de direita não coincidem, quer elas se apóiem na história, Capítulo ....V
quer na tecnicidade, quer na chamada sociedade de consumo.
Fala-se de esquerdismo quando a crítica de esquerda visa a
uma ideologia chamada de esquerda: o economismo, o ''tecno-
RUMO A IV

cratismo". Eis a minha resposta, ainda uma palavra sobre o


' ' utopismo ''. REVOLUÇAO CULTURAL
A menor mudança da vida cotidiana parece impossível.
Pôr em qu.estão seja o que for que concerne à cotidianidade é PERMANENTE
grave, inquietante. Pense nas ínfimas modificações no tráfego
dos carros ou no próprio carro, que os especialistas, entendidos .'
e competentes decretam irrealizáveis, muito dispendiosas, cau- ·
sadoras de conseqüências em demasia. O que é que isso prova?
Que a cotidianidade inteira deve ser questionada. O homo
sapiens, o homo faber, o homo ludens se transformam em
homo quotidianus, e nisso perdem até sua qualidade de homo. 1 . Primeiras conclusões
Será o quotidianus ainda um homem? Ele é virtualmente um
autômato. Para que reencontre a qualidade e as propriedades Condensemos primeiro, em alguns enu nciados (ou teses),
do ser humano, é preciso que supere o cotidiano, dentro do o essencial da crítica da vida cotidiana.
cotidiano, a partir da cotidianidade! a) Transpor para a linguagem, para o conceito , para o sen-
tido, a produção industrial no seu aparecimento, mostrar as
capacidades criadoras novas que a indústria nascente envolvia,
este foi o papel e o sentido da teoria marxista. Depois dos gran-
des economistas ingleses (Smith , Ricardo), depois de Saim-
Simon, utilizando e voltando contra a filosofia hegeliana o seu
'· próprio método e os seus próprios conceitos, e, de .modo mais
geral, voltando contra o "mundo ao inverso" as aquisições
d esse mundo, Marx realizou essa missão histórica. Ele ind.icou
as possibilidades da indústria, explicitou suas virtualidades ,
I ou seja, o domínio da natureza, a transformação do mundo

{
I material e social existente rtum outro mundo.
b) Um século após a publicação do primeiro tomo de O
capital (1867), é possível saber aonde se chegou, discernir as
aquisições do pensamento marxista e os seus limites.' Depois
206 207

de captar o duplo aspecto da produção (produção de coisas e abrigo _de um filosofismo da história ou da natureza material) .
de relações, produção de obras e de produtos), Marx enfatizou A teona do mercado, do valor e de suas leis, da caducidade
a produção de produtos, isto é, o aspecto essencial e específico delas_, obscureceu-s~; ela própria dissociou-se num· esquerdismo
da produção industrial no capitalismo. Ele permitiu assim (sem utoprsta (que quena transcender a troca e a lei do valor por
autorizá-las, bem entendido) interpretações unilaterais do seu um ato revolucionário absoluto) e num oportunismo de direita,
pensamento, do conhecimento e da realidade social. Além disso, concedendo ao economismo a m~ior parte de suas teses . Desde
um processo ligado à industrialização, mas distinto e específico, então o conceito de apropriação desapareceu literalmente do
a urbanização, estava se iniciando no tempo de Marx. Ele não pensamento marxista. A missão essencial da classe operária
podia captar nem a importância desse processo nem sua relação passaA p~r. política. (mudança das instituições do Estado) ou por
com a industrialização. E não soube nem pôde descobrir na economrca ( cresomento da produção com extensão do merca-
produção do urbano a finalidade, o objetivo e o sentido da pro- do), subestimando as limitações a serem impostas ao mundo
dução industrial. Vem daí uma segunda limitação ·do seu pen- da _mercadoria e não ~or1:cebendo ne~ o_ método nem o lugar
samento e uma possibilidade reforçada de interpretações muti- sooal e mental dessa hm1tação . Uma mdrcação central de Marx
ladoras, e a indústri.a passaria a ser considerada como se tivesse e de O capital desgarrou-se , por assim d izer , caindo fora da
em si o seu sentido, a sua racionalidade, a sua finalidade. A consciência social, fora da ideologia e da teoria.
sociedade atual se crê, se vê, se considera dinâmica. Na ver- d) Aproveitando essas fraquezas históricas em favor de uma
dade ela está estagnada no meio-termo entre a industrialização conjuntura histórica, com um custo social incalculável (duas o-uer-
e a urbanização; a indústria e o crescimento econômico são . ras mundiais, uma terceira em perspectiva), com base em t~ans­
tidos ainda como fim, enquanto o objetivo é visto como um formações técnicas aceleradas, as relações de produção capitalis-
acidente, como um resultado contingente . tas não desapareceram. Elas se adaptaram e se consolidaram
(momentaneamente) numa parte do mundo, sem deixar de pesar
Em O capital, Marx analisava dialeticamente (de maneira sobre a ou~ra parte. ~essas cir~unstâncias, operou-se um gigan-
crítica) o modo de produção capitalista. Ele desvendava (de- tesc<? desvzo da capacrdade · cnadora. A classe operária devia e
pois de Smith e de Ricardo, mas indo mais fundo e mais lon- podra tomar a seu cargo esse desdobramento de virtualidades
ge) a forma do valor de troca e da mercadoria como chave mes- iman~ntes à produção industrial. Ela não cumprit'r essa missão
tra, fundamento teórico e base histórica desse modo de produ- (até segunda ordem). Aconteceram razões e causas substituições
ção . Retomando teses anteriores , Marx denunciava o risco de deslocamentos, recolocações e derivações . Proce~so complexo:
uma extensão praticamente ilimitada do valor de troca, do que reclama métodos e procedimentos intelectuais novos para
dinheiro, do seu poder real. Descobrindo na mercadoria uma su~ análise crítica. Por falt~ dess~ análise, pôde-se pretender que
forma, uma lógica, uma linguagem, um mundo, ele mostrava exrstam estruturas escondrdas, mconhecíveis, desta e de toda
ao mesmo tempo seu poder destruidor e criador, suas conse- sociedade. Se é verdade que não se pode imputar o processo a
qüências graves, suas virtualidades, de um lado ;. do outro , a um "sujeit?'.', a an~ise, no entanto, revela uma estratégia de
força social capaz de limitar esse temível poder, de dominar o . ~ : c~asse. A auvrdade ~nadora de obras é substituída por uma passi-
mercado e suas leis, de subordinar o domínio sobre a natureza I vrdade contemplauva, por um consumo devorador de signos,
à apropriação pelo ser humano do seu próprio ser natural e social. i de espetáculos, de produtos, mas também d e obras, as obras
c) A advertência de Marx não foi bem compreendida, par- do pa~ado. Consumo ingrato: vivendo da história, das obras e
ticularmente nos movimentos políticos que buscavam apoio ·I dos esulos, ele nega a história, não compreende mais as obras,
na sua teoria . O pensamento marxista ci-ndiu-se em interpreta-
I recusa e refuta as condições delas. A redução foi inicialmente
ções e versões que o dissociaram (de um lado , economiSmo ~ p~ática, antes de receber uma consagração ideológica. As ideolo-
isto é, prioridade da organização, do planejamento. e da racio- J gras contemporâneas são redutoras , inclusive aquelas que preten-
d_em se _constitui~ ~m ciência operatória. Elas ratificam uma prá-
nalidade industriais- do outro, politismo, ou seja, prioridade
do ativismo, das instituições , das ideologias - os dois sob o xrs mutiladora drssrmulada sob as aparências e as ilusões de uma


208 209
1 realização final. As ideologias transformam o fato em direito, e No nível político, o objetivo da estrategra revolucionária
a redução em ''cientificidade' '. não mudou de um século para cá. Sob esse aspecto, não há
e) Assim se estabelece, se consolida, se programa a cotidia- nenhuma razão para se modificar, revisar ou completar o pensa-
nidade, espaço social e solo do consumo organizado, da passivi- mento de Marx. O enfraquecimento do Estado continua sendo
dade mantida pelo terrorismo. Esse espaço social pode ser des- o ftm e o sentido. No nível político considerado isoladamente,
crito. A análise descobre nele uma irracionalidade latente sob a revolução produziu o stalinismo: a.idolatria do Estado , o meio
o racionalismo manifesto, uma incoerên:::ia sob a ideologia da t~m~do coz:no frm. Nenhuma estrutura estatal e política tem o
coerência. E mostra subsistemas, espaços disjuntos porém reata- d1re1to de mvocar em seu favor o testemunho do marxismo , a
dos pelo discurso. A análise responde também à pergunta: menos que tenha este fim e este sentido expressamente formula-
"Como pode funcionar essa sociedade? Por que ela não cai dos, e entre na prática social, não apenas a título de ftm estraté-
por terra em pedaços espalhados?" Resposta: "Pela linguagem gico,. mas agin~o ta:_nbém no p_lano tático. Sem isso, é proibido
e pela metalinguagem, pela palavra, que se mantém viva, sob (teoncamen:e, rsto e, pe}a. teona) falar de revolução, de pensa-
o discurso de primeiro e de segundo graus, sob as avalanchas mento marxrsca, de estrategra e de ação com vistas a uma mudança
de material escrito''. O chão aparentemente sólido não é inaba- do mundo, d a vida e da sociedade. De mais a mais, é bem ver-
lável. Longe disso. Nunca Marx concebeu o econômico como dade que, ao se aproximarem desse cume, o poder do Estado e
determinante ou como determinismo, mas sim o capitalismo a dialética parecem perder seus direitos. Tudo se passa como se
como modo de produção em que predomina o econômico. Por o poder pudesse esmagar o movimento, todo movimento - como
conseguinte , ele designou o econômico como o nível responsá- se pudesse não exatamente resolver, r.pas separar as contradições.
vel por tudo . Hoje em dia a cotidianidade desempenha esse No entanto, o movimento continua: a história continua, pois o
papel. Ela domina, resulta de · um~ estratégia global (econô- poder afirma que ela continua, porque ele a faz.
mica, política, cultural) de classe. E nesse nível que é preciso . No nível cultural, as interpretações economistas, politizan-
combater, lançando-se as palavras de ordem de uma revolução tes e_filosofa~tes do pensamento marxista bloquearam essa pers-
cultural com implicações econômicas e políticas. pectiva. Sabra-se que a ação revolucionária se lançava contra a
f) A idéia de revolução, e até a de revolução total, comi- base econômi·ca e contra as superestruturas políticas, e que o
nua intacta. Melhor ainda: só se pode conceber a revolução resto viria em seguida: ideologias, instituições diversas, enfim,
total. Se o conceito se obscureceu, foi por causa das reduções cultura. Ora, este nível retomou, reconquistou ou conquistou
aceitas sem crítica e sem contestação e, depois, dogmatizadas. sua especificidade 1 . Ele foi reconhecido por ocasião das dificul-
Restituída em sua totalidade, a idéia de revolução deixa aparen- dades e do recuo da revolução nos outros planos. Pouco após
tes três níveis: a_ tomada do poder, por volta de 1920, Lenin percebeu a urgên-
No nível econômico, a estratégia da revolução explícita o cra de uma transformação " cultural" da classe operária sovié-
seu objetivo. O crescimento da produção industrial e seu planeja- tica, que a tornasse capaz de administrar o país, de gerir a
mento são necessários, mas não suficientes. O f1rn , o sentido (isto indústria, de dominar a técnica, de assimilar a ciência e a racio-
é, a orientação e a finalidade) se determinam assim: realização nalidade ocidentais, e de ultrapassá-las. Hoje, a especificidade
da economia de abundância, produção industrial em crescimento reconhecida desse nível (desse plano) cultural autoriza a elabora-
pela automatização completa, em fu.nção das necessidades sociais ção de projetos nesse nível. Em que medida pode-se contornar·
(e não das necessidades individuais programadas), as quais se
detectam como demandas da sociedade urbana em gestação. A 1
Não se trata aqui de tomar partido pró ou coritra a revolução cultural chinesa. Pode-
automatização da produção não pode ter como fim e sentido a se ver nela uma volta da sociedade chinesa ou do movimento revoluci., ·Iário na China
automatização dos consumidores. Essa substituição revela uma às origens? Essa revolução - nova ou renovada - opõe um concraterror ao terrorismo
trapaça colossal. No nível econômico considerado isoladamente, burocrático? Ou será que ela reintroduz o jogo. o lúdico. a festa na revolução? Ou
não se propõe nada mais que uma mobilização das energias. tendo em perspectiva
o ato revolucionário vai a pique, perde de vista o objetivo. uma nova guerra mundial? O essencial, o importante, é a revivescência do conceito.
211
210

Estado e suas instituições? É possível desviar as instituições "cul- duz sentido, introduz um sentido novo: o domínio sobre a natu-
0
turais'' de suas finalidades terroristas? Talvez, na medida em reza material (em lugar do conhecimento "desinteressa do" dos
que aberta, se não oficialmente, existe uma crise da cultura, das fenômenos e das leis). Volta então a um conhecimento transfor-
ideologias, das própri~ instituições, cujo microcosmo o terror mando o papel que a filosofia detinha. A fttosofia acompanha
não chega a obstruir. E possível iludir as opressões provenientes o conflito entre a cidade e o campo, a aceitação da " natureza"
do economismo, da racionalidad_e ' econômica, do planejamento , como tal, a predominânci a da produção agrári~ e anesanal, a
da racionalidade limitada que se. pretende completamen te reali- obsessão da escassez, a divisão do trabalho numa sociedade em
zada? Talvez, na medida em que essas opressões não chegarem que as funções são desiguais etc. Acabou o seu papel? Está morta
a fechar o círculo, a fechar os circuitos de acordo com a progra- a filosofia? Tomou-se folclórica? De maneira alguma. O próprio
mação deles, a sistematizar o conjunto da sociedade. Vem daí o pensamento crítico formado pela tradição filosófica refuta a tese
interesse despertado, p or um lado, pelas rachaduras do edifício positivista. A filosofia não sobrevive na memória e na cultura. ·
e, por outro, pelas exigências imprevistas da ·" realidade" em Ela entra numa vida nova, que não consiste mais na elaboração
avanço ascendente e imperioso: a realidade urbana. de sistemas, mas num incessante confronto entre, de um lado,
Com o conceito de homem, com o antigo humanismo (o a imagem, o conceito, o projeto do ser humano elaborados pelos
filósof~s, e, de outro, a "realidade", a prática. Isso implica o
do capitalismo de concorrência e da burguesia liberal), a noção
de criação se desacreditou . A revolução cultural tem como pri- ~onh~cunento da filosofia como totalidade, coino trajeto e pro-
meira condição e procedimento , como exigência inicial e fun- ;eto, Isto é, de todos os filósofos, das condições e contextos histó-
damental , a reabilitação plena e completa destas noções: obra, ricos das filosofias, das suas contradições, do movimento que per-
criação, liberdade, apropriação, estilo, valor (de uso), ser corre o conjunto. Reinterpretar as filosofias que interpretaram o
humano. Isso não pode ser levado a termo sem uma severa crí- mundo, tirar delas os instrumentos teóricos de mudança, execu-
tica da ideologia prod~tivista, do racionalismo econômico e tar a revolução teórica, aí está o horizonte do pensamento revolu-
cionário renovado. .
do economismo, assim como dos mitos e ps~udoconceitos de
participação, de integração, de criatividade, incluindo suas apli- Em conseqüência , a tendência a elaborar sistemas filosófi-
cações práticas. A revolução cultural busca uma estratégia cultu- cos novos (em aparência) não deixa de correr algum perigo.
ral, da qual alguns princípios podem ser anunciados. Hoje, um sistema filosófico corre o risco de retomar temas, cate-
gorias, problemas já elaborados e sem dúvida esgotados. Arrisca-
se, além do mais, a trazer a sua contribuição ao terrorismo. O
2. Filosofia das opressões e opressões da filosofia dogmatismo não é um dos aspectos - e dos mais significativos
- desse terrorismo generalizado?
Durante dois mil anos foi confiada aos filósofos a procura Hoje em dia certas palavras irromperam no vocabulário da
teórica de um estatuto do ser" humano natural e social, no mundo reflexão que pretende ser filosófica ou que estuda o problema
e na circunvizinhança natural. O pensamento filosófico apresen- da filosofia. Elas se valorizam, têm significados privilegiados:
tava e representava a criação do ser humano por seus esforços; normas, opressões, exigências, imperativos. Não esqueçamos as
ele resumia prática e conhecimento s esparsos em atividades dife- palavras "rigor" e, bem entendido, "sistema". Esses termos,
rentes. O aparecimento da indústria modificou inteiramente o como já mostramos, refletem ou simplesmente espelham um
estatuto da filosofia e a situação do filósofo. Nessa práxis nova racionalismo limitado, o racionalismo da burocracia, da ideologia
está colocada como objeto da reflexão a capacidade criadora do tecno;r~cica, do planejamento industrial (que negligencia a pro-
ser social que a filosofia compreendia, infligindo-lhe , porém, as blematlca nova do urbano em proveito de uma única organiza-
limitações próprias à especulação, à contemplação e à sistematiza- ção, a do crescimento industrial, e comanda iinperativame nte a
ção filosóficas. Antes cabia ao filósofo a missão de procurar e de arrumação do terri tório e a distribuição do _POvoamento).
formUlar o sentido das relações e das coisas. Ora, a indústria pro-
212 213

Você está presenciando, então, a formação de um sistema: transformá-lo, elucidando-o. Transformar o cotidiano é produ-
a filosofia das opressões. Os determinismos sociais não se conce- zir algo novo que pede palavras novas .
bem mais como obstáculos a vencer, dados a dominar ou dos A disciplina filosófica conserva fins pedagógicos, didáticos.
quais uma ação consciente deve se apropriar , mas sim como Com a cidade e na cidade, ao lado dos monumentos e das fes-
fundamentos, constituintes, determinantes, em outras palavras, tas, a filosofia foi obra por excelência. As filosofias não apenas
como princípios que obrigam a observar e a respeitar. E tudo demarcam o tempo histórico como também designam uma rela-
isto por razões políticas igualmente denunciadas ao longo do ção "temporalidade-espacialidade", um espaço. subordinado
caminho. A filosofia transformada em metalinguagem da estra- ao tempo, marcado por ele, inscrevendo-se o tempo no espaço.
tégia de classe abre e justifica essa estratégia. Ela não a apre- Ora, esses temas passam pelo centro de uma cultura renovada
senta como projeto em escala global nem como projeção de pela preocupação com o cotidiano, por sua crítica e por sua
uma vontade política, mas sim sob a rubrica das necessidades transformação. Reabilitar a obra sem com isso depreciar o pro-
que fazem lei. Da filosofia do finito e da finitude passamos à duto, restituir o tempo como bem supremo (o tempo de viver),
aceitação das coisas como elas são, da vida tal qual ela é. Sofisma isso faz parte dos objetivos da revolução cultural. Não se trata
em contradição com a filosofia. de apagar da cultura a filosofia, mas, ao contrário, de dar-lhe
A tradição filosófica provoca opressões inicialmente negati- um sentido diferente e novo restituindo-lhe (a ela, assim como
vas. Ela proíbe afirmar certas bobagens , enunciar tautologias ao tempo e à obra) valor de uso .
ou incoerências. Por essa razão, como a lógica, ela é uma disci- A compreensão da obra a partir da filosofia legitima uma
plina insuficiente mas necessária. À filosofia de aceitação, a tra- crítica radical do estético e do estetismo como metalinguagem.
dição filosófica _s>põe a crítica radical, a distanciação, a revolta O~a_, o ~steti~mo parodia hoje _a metamorfose do cotidiano por
e a liberdade. A filosofia da finitude, ela opõe a filosofia do unhzar: unediatamente as técmcas (saltando a ·m ediação da arte
desejo. Desses conflitos nasce um pensamento renovado, que como apropriação). Móbiles que giram e cantam, paredes que
sai da metalinguagem filosófica, passando entre os dois recifes : mudam de cor conforme os passos ou as palavras das pessoas,
o fim da filosofia clássica e a continuação da antiga filosofia.
Quem pretendesse prescindir da linguagem filosófica men-
tiria. Aliás, esse sofista se serviria dela para anunciar a sua pre-
tensão. Além disso, é verdade que a metalinguagem acaba por
condenar-se a si mesma (inclusive a metalinguagem da filosofia
I um corredor musical, um jardim enfeitado como se fosse uma
decoração de ópera, esse estetismo anuncia possibilidades e não
as realiza. Ainda pertence ao mundo do consumo de signos,
da metalinguagem. A restituição da obra fará justiça a essas ridí-
culas coisas ' ' modernas''.
e a filosofia como metalinguagem). Para resolver o problema,
uma filosofia nova ou um filósofo de gênio terão de inventar
3 . Nossa revolução cultural
palavras novas e mudar os nomes das coisas? Se existe no mundo
algo de estrambótico, é exatamente o projeto de mudar a vida
mudando-se as palavras. Tão logo se enuncia, essa proposição A ''revolução cultural'', como tentamos mostrar, é um
se vê condenada. No ponto culminante da metalinguagem, o conceito . Ele está implícito no pensamento de Marx, explícito
orador leva o seu discurso ao enésimo grau (haveria um grau nas obras de Lenin e de Trotski. Na China, Mao-Tsé-Tung o
último?) para a mensagem absoluta, para o fiat lux da nossa reton:o~ em co~dições específicas. Sendo c~nceito, liga-se à pro-
época. Pura ilusão! Para contornar essa dificuldade é preciso blemanca manasta. Qua1s são as relações entre base, estrutura
captar de novo a cotidianidade (e não desmenti-la ou aban- e superestrutura? Entre teoria e prática, entre ideologia, conhe-
doná-la, ou ainda abstrair-se e fugir dela) , mas de maneira ativa, · cimento, ação e estratégia? Essas relações são estáveis ou cam-
contribuindo para transformá-la. Tais operações comportam a biantes, estruturais ou conjunturais?
criação de uma linguagem (ou mais exatamente: uma criação Seria o caso de tomar a revolução cultural chinesa como
de ling).lagem). Pôr ao alcance da linguagem o cotidiano já é modelo? Jamais. Seu interesse, sua importância é de ter tirado
214 215

o conceito da sombra, de · tê-lo trazido à luz da linguagem ção do cotidiano!" Mentalmente, o termo "obra" não designa
''moderna''. Como conceber um esquema idêntico para um mais um objeto de arte, mas uma atividade que se conhece
país de.predominância agrária e para um outro altamente indus- que se .concebe, que ~e-produz suas próprias condições, que s~
trializado? Como transportar semelhante esquema? Somente apropna dessas cond1ções e de sua natureza (corpo, desejo,
teóricos influenciados pelos processos estranhos analisados ante- ) tempo, espaço), que se torna a sua obra. Socialmente, o termo
riormente (deslocamentos, substituições, recolocações) podem I designa a atividade de um grupo que toma em suas mãos ·e a
desejar essa transposição. seu cargo seu papel e seu destino social, ou seja, uma autoges-
Nossa revqlução cultural não pode querer ser ascética. tão . ~bservadores superficiais notam a distância que separa
Não é ·a revolução a partir de uma cultura, menos ainda para Pequ1m de Belgrado e podem opor autogestão à revolução cul-
e pela cultura. Ela não pode pretender encarnar no real e na tur~l: No plano dos conceitos e das significações essa oposição
prática social uma cultura, justamente quando a nossa cultura pohuca ca1 por terra. A autogestão revela na sua escala certo
se fragmenta, se esmigalha, se decompõe no moralismo, no este- número de contradições, incluindo contradições "culturais".
cismo e na ideologia da técnica. Essa dissolução apareceria Ela faz parte da revolução cultural, em lugar de refutá-la. Isso
m elhor se a "cultura" não tivesse uma função terrorista bem não resolve os problemas que a autogestão apresenta, mas per-
definida. Nessa cultura, apenas a filosofia persiste, com a con- mite formulá-los em toda a sua amplitude.
dição de que a sustentemos dando-lhe um sentido. Nossa revo- Enumeremos agora alguns aspectos ou elementos do pro-
lução cultural tem como fim e sentido a criação de uma cul- cesso revolucionário:
tura que não seja instituição, mas estilo de vida. Ela se define a) Reforma e revolução sexual. A mudança a ser efetuada
primeiro pela realização da filosofia no espírito da filosofia. A não conceme apenas às relações ' 'feminino-masculino'' , à igual-
crítica radical da cultura, do prestígio e das ilusões ligadas a dade jurídica e política das partes contratantes e interessadas, à
essa palavra, da sua institucionalização, acaba restituindo ple- desfeudalização das relações de sexo a sexo e à democratização
namente a filosofia e sua importância teórica e prática, pedagó- . i' delas. A transformação deveria modificar as relações (afetivas e
gica e vital, mental e social. De qual filosofia estamos falando? ; ideológicas) entre a sexualidade e a sociedade. Que a sociedade
Da filosofia ocidental, aquela que vai de Platão a Hegel. Não repressiva e o terrorismo sexual sejam rechaçados e abatidos por
se trata nem do pragmatismo americano, nem de Confúcio nem todos os meios da teoria e da práxis. Que a repressão sexual não
de Buda. Nos Estados U nidos, ninguém ignora, a cultura sofre sejã mais questão (e até mesmo questão essencial) de instituiçõe~.
cruelmente por não ter uma filosofia. Na União Soviética, a ; I Que ela acabe. Ultrapassando consideravelmente o controle da
' cultura oficial achou conveniente constituir uma filosofia com vida se~ual, a repressão e o teqor se estendem a todas as forças
o pensamento de Marx, enquanto esse pensamento visava à rea- e capaadades do ser humano. E o caso de se suprimir todo con-
lização do projeto filosófico. Enfim, o Oriente tem suas filoso- trole da vida sexual? Certamente que não . Essa ausência de con-
fias próprias, e nos absteremos de qualquer pronunciamento a trole traria o risco de se degradar e se destruir o desejo, que se
respeito delas. A realização da filosofia define a revolução teó- reduziria a uma necessidade no imediato. Nada de desejo sem
rica pela qual começa a revolução cultural. ·~ controle, se bem que a repressão construída sobre o controle acabe
.R
A restituição da obra e do sentido da obra não tem um com o desejo ou o faça mudar de rumo. Que o controle seja
objetivo "cultural", mas prático. De fato, nossa revolução cul- uma questão dos interessados, não das instituições, menos ainda
tural não pode ter finalidades simplesmente ''culturais''. Ela da ordem moral e do terrorismo reunidos.
orienta a cultura em direção a uma prática: a cotidianidade b) Reforma e revolução urbanas. Nada de confusões a esse
transformada. A revolução muda a vida, não apenas o Estado respeito. A revolução fará o "urbano", e não o contrário,
ou as relações de propriedade·. Não tomemos mais os meios embora a vida urbana, e sobretudo a luta pela cidade (pela sua
como fim! Isso se enuncia desta maneira: "Que o cotidiano se conservação e renovação, pelo direito à cidade), possam forne-
torne obra! Que toda técnica esteja a serviço dessa transforma- cer condições e objetivos a mais de uma ação revolucionária .
' ~. ,.
. <' .......
.. .. .. ..........

216

Sem uma metamorfose da racionalidade no planejamento .mdus-


trial, sem uma outra gestão da indústria, a produção não terá
. como finalidade e sentido a vida urbana, as necessidades sociais
da sociedade urbana como tal. Nesse nível, portanto, é no plano
194 42775
.l
da produção que se joga a partida e que a estratégia designa
L522Y
~ndo o Autor, a opress'
1
seus objetivos. A realização da sociedade urbana implica ao UHSP- FRIICI
mesmo tempo um programa político (que concerne áo conjunto p IIIBLIOTECA
tudo - ou seja, no'
da sociedade, ao território inteiro) e o domínio do econômico. no. É no cotidiano q~..r.
AutorLefebvre, Henri
Entretanto, a reforma urbana pode ter hoje o papel e a
importância que a reforma agrána teve durante cerca de meio
-··-······----···-··--··--------·-------·--·- ···-··-·····-·-·-···· ~~-a a sociedade ..
Tftulo.A vida cotidiana no mun- tica de consumo
século (e que ela conserva aqui ou ali). Como reforma revolu- ·-··-·······--·-·- ..----·-·-----------······---······· ·-------······· no cotidiano, o laze
cionária ela abala as estruturas da propriedade, do direito e
....I!!.ad.e.:r:n..o.........---------------··· ............. ··. ); o gera o tédio, a ,
da ideologia neocapitalistas. Sustar, no caminho da degradação,
a vida urbana ainda existente, inventar formas novas, permitir ...;:~ niza, a sexualidad~.-.
.
. <":
'':~

que essas formas se desdobrem, abram seu caminho aos ger- NO M E 11 Devolver em rma numa espécir_
mes da sociedade urbana são objetivos que ultrapassam as pos- ,:.:_'-· mo.
sibilidades do neocapitalismo e da sociedade de consumo diri- · ~~ ída? Sim, ela exist
' ·J
gido. A mais culta burguesia não tem muitas condições de con- -~-; o desenvolvimentt.
ceber o lúdico como obra, a cidade lúdica, e menos ainda de '}l cão deverá levar ' ...
·realizar-lhe as condições espaço-temporais. 194
•. '? •

'.~~ ína transformacão


4·277-5 .
c) A festa reencontrada, amplificada, superando a oposi- ·L522v ..i~ mes e das relaÇõe5
ção ''.cotidianidade-festividad e'', realizando-se na e pela socie- p .. -~ ~ o resgate do sentic
dade urbana essa passagem do cotidiano para a festa. Assim
se formula o último artigo do projeto. Voltando ao ponto de BIBLIOTECA .·:r~: Festa e do Desej
partida, essa indicaÇão retoma o conceito de apropnação para UNESP ·· ~~~ forma urbana", tf_
designar-lhe o lugar: acima dos conceitos de dominação (sobre CAMPUS DE FRANCA :; e quanto a "reforrr
·'~
a natureza material) e de práxis na acepção corrente. .' I ~ .;·
...

Saint-Just dizia que a idéia de felicidade era nova na ..~ nião de Lefebvre, ·t.-
França e no mundo. Poderíamos dizer o mesmo da idéia de Se o livro não for devolvido no tempo . .. ;, e uma "revolucão
~~ . .._
infelicidade. A consciência da infelicidade supõe a possibili- determinado, será cobrado uma multa. · >.~ ermanente" que o
dade de outra coisa (de uma vida diferente) além da existência >~ oderá encontrar
infeliz. Hoje, talvez, o conflito "felicidade-infelicidade" (ou Livros perdidos ou ra~gados devem ser
il)denlzados.
. · : ;~: de vencer a rotinc.
melhor: consciência da felicidade possível-consciência da infeli- ·,• .
:: ·-~ nte e dar um senti
cidade real) substitua e suplante a antiga idéia de destino. Não O praz~ p/ · consulta· poderá ser prorro-
seria esse o segredo do mal-estar generalizado? gado se não houver pedido para .~ste livrei. •. :.~ amente humano à
· ,Mod. ~ - 10 óoo - 04/94

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