– Cultura, culturas: uma perspectiva historiográfica
1 Retomar hoje o mesmo diagnostico a propósito do “todo cultural” que se impôs a nossos olhos. Parece ser o sintoma de dois fenômenos maiores cujos efeitos marcaram a atividade historiográfica das últimas décadas. O primeiro é a deterioração, e até a decadência, dos grandes modelos teóricos que por longo tempo pareceram garantir a possibilidade de uma inteligência global do mundo sócio-histórico no interior de um quadro analítico e explicativo comum. A ideia da sociedade concebida como uma totalidade ou como um sistema que se viu abalada no momento em que, também em nossas sociedades, findava a confiança nas possibilidades do porvir, nas promessas do progresso. Esta “crise do porvir” é um componente essencial de nossa relação atual com o tempo histórico. Afetou o poder de convicção que as gerações precedentes concediam a amplos programas analíticos, interpretativos ou explicativos, dos quais esperavam respostas globais (o marxismo, as grandes arquiteturas funcionalistas, o funcionalismo americano, o positivismo, o estruturalismo). É preciso reconhecer isso: teve de tudo nessas revisões, às vezes drásticas, o pior e o melhor. O pior, quer dizer, a renúncia a toda pretensão de possuir um discurso de conhecimento. O melhor: uma liberdade crítica e uma capacidade de renovação. Toda uma série de debates foi assim aberta em torno dos objetos sobre os quais trabalhamos e sobre os instrumentos conceituais de que dispomos para tentar apreendê-los. O segundo fenômeno essencial é a redefinição da noção de cultura, ou antes, daquilo que os historiadores colocam sob este termo. Durante muito tempo existiu uma versão dominante, às vezes limitadora e prescritiva, daquilo de que se ocupava a história da cultura. Ela se interessava pelos autores e pelas obras, pela cultura “autorizada” no sentido literal do termo. Vários especialistas disciplinares assumiram a tarefa de estuda- la, a história das ideias, da literatura e das artes, a das ciências etc. Começou a ser substituída por outra. Trata-se de uma definição muito mais ampla, abrangente, a propósito da qual se fala frequentemente, sem nem sempre especificar o que se entende como cultural “no sentido antropológico” do termo. O repertorio e o estatuto dos objetos que os historiadores reconhecem desde então como “culturais” aumentaram e diversificaram desmedidamente. Eles se conformaram às convicções do que é chamado, há uns trinta anos, de multiculturalismo. Além do fato de se tratar de uma antropologia principalmente cultural, ela teve como consequência uma ampliação espetacular daquilo que é coberto pela noção de cultura, na qual, desde então, praticamente tudo pode entrar. Logo se traduziu pela multiplicação acelerada de novos objetos de estudo: mas também pela redescoberta ou pela releitura de textos clássicos. Hoje a lição da antropologia conduz os historiadores a não se encerrarem na singularidade, a fazerem da comparação o fundamento de uma generalização possível. Ela parece impor uma releitura a partir do(s) ponto(s) de vista que ela propõe ao conjunto das realidades políticas, sociais e econômicas que os historiadores tradicionalmente analisam. 2 A história da cultura foi construída, consciente e inconscientemente, sobre alicerces hegelianos que desmoronaram. Continuamos a pensar em termos de épocas, de séculos, de culturas no sentido holístico e dialético do termo. É necessário acabar com a ideia de que uma cultura é necessariamente um todo coerente e significativo em sua coerência. 3 A noção de mentalidade foi uma tentativa de responder às indagações do que é menos explicitamente formado que uma ideia, cuja primeira natureza é a de informar representações e comportamentos coletivos. Tratava-se de compreender enunciados que não encontravam lugar no repertório das práticas culturais, em particular modalidades do raciocínio e da analogia. A noção de mentalidade proporcionou um status cultural a realidades, a tipos de enunciados, tidos até então como ilegítimos e, digamos, sem interesse. Febvre acreditou na possibilidade de uma psicologia coletiva histórica e, até mesmo, mais além no que poderíamos chamar de uma história das condições de pensamento. As possibilidades oferecidas e as limitações impostas pela mentalidade iniciam uma versão que se poderia dizer pré-estruturalista da análise cultural. Cada fato cultural singular não pode, segundo Febvre, ser compreendido senão como um dos componentes de “uma rede complicada e movente de acontecimentos sociais” em constante interação uns com os outros. 4 A experiência francesa, sejam quais forem suas singularidades, não é de modo algum isolada. Existiram antecipações relativamente próximas a ela, mais subjetivas, mais descritivas e mais psicológicas também. A abordagem holística, que coloca como princípio a existência de uma cultura como um conjunto coerente e distinto, foi paradoxalmente renovada pela reabordagem relativamente recente desde os anos 1960, de história e antropologia. Nos usos que os historiadores fizeram de modelos antropológicos parecem predominar os que valorizam os caracteres unitários de um conjunto cultural. Uma das obras mais notórias entre os historiadores nos últimos 30 anos: Marshall Sahlins. Parece expressivo que desse livro denso com frequência se tenha retido precisamente apenas a exterioridade dos conjuntos culturais de uma e de outra. Deixando de lado os longos desenvolvimentos que Sahlins consagra à maneira como os acontecimentos históricos, contingentes, agem sobre as estruturas que os integram, engajando-os assim em um processo de transformação. Clifford Geertz é sem dúvida um dos antropólogos mais frequentes. Ele propõe uma teoria interpretativa da cultura. Uma cultura deve ser compreendida, segundo ele, como uma interpretação pública de símbolos cuja significação pode ser múltipla (e, portanto, ambígua) e cuja interpretação depende de contextos de referências nos quais eles se inscrevem. Da proposição do antropólogo, os historiadores retiveram, mais frequentemente, o que não ia em direção ao sentido da ambiguidade das situações de interação, mas, ao contrário, no sentido da maior coerência dos fatos de cultura. 5 Ernst Gombrich sugere levar em conta o conjunto de formas de participação e de níveis de identificação, que afetam os atores de modo desigual e que devem ser distinguidos e comparados, caso se queira compreender melhor a maneira como efetivamente são construídas as identidades culturais. A primeira das respostas foi a de uma sociografia das práticas culturais, que passava pela análise de distribuições dos comportamentos, mais raramente das produções, no interior de um dado conjunto social. Baseando-se em fontes quantificáveis, dedicava-se a precisar as estruturas em torno das quais se organizavam e, sobretudo, se diferenciavam as sociedades do passado. Essa problemática envelheceu e foi muito criticada. Concomitantemente, um profundo reexame de nossas concepções do social impôs novas configurações. Nos anos 1950-1960, os processos sociais eram pensados como autônomos, qualquer que fosse o modo metafórico sobre o qual se manifestasse sua eficácia. Permitiam pensar sociedades sem atores ou que não deixavam outro papel a estes últimos senão o de servir de ilustrações singulares para mecanismos abrangentes e anônimos. A partir dos anos 1980, o que às vezes foi chamado de um “redemoinho pragmático” afirmou-se, a partir da retomada das práticas, recolocou os atores e as formas da ação no centro da análise. O imaginário comumente aceito de um maquinário acéfalo, produzindo incansavelmente efeitos imperturbáveis, foi substituído pela análise de um mundo social irregular. A partir de um jogo de posições e de relações singulares, eles participam aí da construção do social em temporalidades particulares. E.P. Thompson. As práticas aparecem como produtoras de normas, não mais submetidas a essas últimas. Roger Chartier. Transitou de uma história do livro para uma história da leitura; isto é, passou a levar em conta formas de apropriação que, ao mesmo tempo, qualificam os objetos culturais e diferenciam públicos ou comunidades de leitores. Furet e Ozouf. A história abrangente da alfabetização. Estiveram em condição de identificar diferentes formas de acesso à escrita e procuraram valorizar o papel da demanda social na instrução para a base. Identificar os pontos essenciais em torno dos quais se elaborou um novo questionário da história cultural, que privilegia a abordagem pelas práticas daquela que, durante muito tempo, esteve preferencialmente interessada pelos sistemas. Os historiadores aventuram-se com menos frequência que antes a analisar as totalidades culturais. O projeto de estudar um conjunto fechado em todos os seus aspectos, que foi tão característico dos grandes estudos monográficos durante uma boa parte do século XX, perdeu sua força de convicção. Natalie Zemon Davis. A ambição do livro não é mais a de oferecer uma imagem global de uma entidade social compreendida como uma unidade, mas de compreender certos aspectos relevantes de uma transformação histórica por intermédio da localização de formas de diferenciação e de descontinuidade significativas. A cidade deixou de ser uma evidencia para se tornar um enigma a ser resolvido. Edward P. Thompson. Ele escolheu seguir as etapas de um processo que culminou, em algumas décadas, na constituição e na afirmação de uma nova entidade cuja presença tornou-se evidente no começo de 1830. Quer trata-se das formas de agregação social e de sua dinâmica, ou ainda das razões que os atores sociais se dão para agir, as transformações inscrevem-se em planos diferentes que o historiador deve respeitar. Renuncia-se a analisar as produções e representações culturais como expressões de um conjunto coerente, para inscrevê-los em uma dimensão pragmática, ou seja, também relacional, coloca-se imediatamente mais ênfase nas diferenciações do que na suposta unidade dessas manifestações. As realidades culturais são apreendidas como ligadas a atos ou situações que colocam os homens ou os grupos humanos em relação com outros homens ou outros grupos humanos. Assim pode-se ainda compreender o interesse por momentos e situações nas quais duas (ou várias) culturas que existem ao mesmo tempo ao seio de um mesmo conjunto social encontram-se frente a frente. E.P. Thompson. Em torno da instituição do mercado de grãos, central na vida cotidiana das sociedades do Antigo Regime, Thompson mostrou como duas culturais defrontavam-se em suas concepções, em suas intenções, em suas práticas: uma delas, tradicional, de pequenos consumidores que esperam da oferta e das transações efetuadas no mercado uma transparência em todos os momentos, e a outra, dos promotores de uma nova economia política, a do livre-mercado que pretende emancipar-se das antigas formas de regulação. O conflito é recorrente e frequentemente violento. Essa própria violência encontra seu verdadeiro significado quando é colocada em seu contexto cultural específico: compreendida como uma chamada à ordem e às normas que impõem uma moral social amplamente partilhada e que se encontra radicalmente questionada pelas transformações do mercado. Duas perspectivas opostas. A primeira dá ênfase aos fenômenos de dominação, de controle, de coação, que são exercidos de cima para baixo no mundo social. A segunda perspectiva insiste mais na capacidade de ação e de transformação dos atores sociais a partir do lugar específico que eles ocupam. Pode ser mais útil articular uma a outra. Bourdieu. Teoria do campo: a identificação de espaços específicos de interdependência entre os atores. Bourdieu mostra realmente que as práticas culturais têm sua própria eficácia. Elas são por si próprias classificadoras, elas produzem distinção social e contribuem, portanto, na produção do mundo social, simultaneamente por meio do repertorio de objetos que elas visam e pela maneira como utilizam esse repertorio e esses objetos. Norbert Elias. Em todos os níveis do jogo social, do mais simples ao mais complexo, do cara a cara aos grandes grupos, relações dinâmicas são construídas e reformuladas no interior de configurações que são o espaço de confrontação entre os atores que se observam, se avaliam, aprendem a orientar-se e são levados a fazer suas escolhas. Mas a regra do jogo não é imposta de fora. Ela também não é imposta de cima de modo unívoco. Ela é inseparável da natureza e da forma de cada configuração particular. Para Elias, de uma “sociogênese”, isto é, da dinâmica das relações sociais, se desdobra uma “psicogênese”, isto é, da interiorização de normas que regulam o jogo em um dado momento do tempo. Os lugares jamais são definitivamente adquiridos e o equilíbrio permanece sempre provisório e instável. Da noção de contexto. A partir do momento em que se renuncia à ideia de uma totalidade cultural correspondente a uma civilização ou a um momento histórico, coloca-se o problema de especificar o contexto no qual um tema deve ser recolocado para ser plenamente apreendido. Quentin Skinner. Ele julga necessário recolocar os enunciados em contexto. Uma série de contextos que devem permitir especificar não somente os usos que são feitos das palavras e conceitos, mas também as intenções que foram as dos autores em situações históricas particulares e que é importante reconstituir. Skinner propõe, portanto, levar em conta a dimensão performativa de um enunciado, dos efeitos que ele pretende produzir dentro de um dado sistema de comunicação. Carlo Ginzburg. Demonstra o que é possível restabelecer hoje das leituras de Menocchio, e a maneira como ele utilizou e modificou os materiais que tomou emprestado para adaptá-los a suas próprias concepções, segundo sua própria lógica. A concepção de um contexto global e englobante, tão facilmente aceita sob formas diversas durante muito tempo, não é mais reconhecida como uma resposta aceitável, pois é geral demais, indiferenciada demais para ser operatória. A micro- história tinha como efeito multiplicar as variáveis consideradas, complicando assim a observação e a análise, sem dúvida, mas enriquecendo-a igualmente. Ela parece propor a substituição da ideia de um contexto unificado, homogêneo, pela de um contexto que se poderia chamar de “folheado”. É uma maneira de lembrar que os atores do passado viviam, como é nosso caso, simultaneamente em vários mundos de significações e ações.