Você está na página 1de 10

AURORA ano II número 3 - DEZEMBRO DE 2008_____________________________________________ISSN: 1982-8004 www.marilia.unesp.

br/aurora

NEOLIBERALISMO, REFORMA DO ESTADO


E POLÍTICAS SOCIAIS NAS ÚLTIMAS DÉCADAS DO SÉCULO XX NO BRASIL

PEDRO HENRIQUE CARINHATOi

Resumo: Este artigo analisa a articulação entre o Estado brasileiro e as políticas sociais nas últimas
décadas do século XX. Buscamos salientar a reorientação aplicada ao aparelho social, consoante às
transformações políticas e econômicas ocorridas em âmbito internacional, caracterizadas pelas crises
econômicas que atingiu os países periféricos e o próprio processo de globalização neoliberal ou
mundialização do capital, bem como as determinações impostas pelos governantes brasileiros no marco
do neoliberalismo.
Palavras-chave: Política Social; Neoliberalismo; Reforma do Estado; Política focalizada; Política
universal.

Abstract: This article analyzes the articulation between the Brazilian State and social politics in the 1990's
decade. We pointed out the applied reorientation to the social apparel, according to the political and
economical transformations happened in international extent, characterized for the economic crises that
the peripheral countries and the process of neoliberal globalization or mundialization of the capital as
well as the determinations imposed by the Brazilian rulers in the mark of the neoliberalism.
Key words: Social politics; Neoliberalism; Reform of the State; Focused politics; Universal politics.

INTRODUÇÃO econômica, buscaremos aferir acerca de como se


concebeu a ideologia neoliberal, por quais razões ela
se instalou no Brasil e em toda a América Latina e
por fim, pensar suas implicações para o espaço de
O momento que o Brasil passava no ação das políticas sociais dos governos vigentes no
início da década de 1990 pode ser sintetizado em transcurso dos anos 90, evidenciando os mandatos
desafios e contradições centradas num regime de de Fernando Henrique Cardoso. Este artigo
altíssima inflação e incertezas quanto à condução apreende desde a conformação ideológica do
política que seria tomada para uma nova tentativa Neoliberalismo, passando para o contexto
de arrefecimento desse fenômeno econômico. específico mundial e latino-americano, até os
Nessa acepção, buscou-se uma forma que equaliza- aspectos mais pormenorizados, como a reforma
se a aporia econômica e, simultaneamente, abrisse administrativa, a participação dos setores não
espaço para um novo caminho para a acumulação públicos na área social e, sobretudo, a conformação
de capital, qual seja: a financeira. Diante desse novo da política social inserta na disjuntiva políticas
espectro, o Brasil – com um histórico de “atrasos” - sociais universais e focalizadas. Utilizaremos essa
é sugado para uma nova etapa do capitalismo opção metodológica de conjugar política social e
mundial. questões do campo político e econômico,
Conformam-se novas concepções e idéias porquanto segundo Armando Boito Jr: “a pobreza
acerca de como gerir um Estado e qual seu real não é um dado natural com o qual se deparam os
papel ante a essa nova realidade que é imposta. A governos neoliberais; ela é produzida pela própria
visão de mundo vencedora solapou as antigas bases política econômica neoliberal, que reduz o emprego
em que estavam compostas as áreas e os salários e reconcentra a renda” (BOITO JR,
governamentais. Partindo de um novo paradigma 1999, p. 77).
econômico, este se espraiou com intensidade abissal
para as outras áreas da gerência pública, de forma
que lhes restou apenas a possibilidade de adaptar-se.
Como reflexo das reformas aplicadas à área

37
AURORA ano II número 3 - DEZEMBRO DE 2008_____________________________________________ISSN: 1982-8004 www.marilia.unesp.br/aurora

A IDEOLOGIA NEOLIBERAL E SUA ENTRADA NA plano político, a ação econômica do Estado criaria
AMÉRICA LATINA privilégio para alguns e dependência para muitos.
Os cidadãos acostumar-se-iam ao paternalismo do
Para realizar o estudo das políticas sociais Estado, e assim deixariam de desenvolver sua
dos anos 90, é preciso perscrutar seu entorno. Em capacidade de iniciativa para resolver seus próprios
outros termos, deve-se fazer uma reconstituição dos problemas. E quanto aos serviços públicos, eles não
processos políticos, econômicos e sociais mais seriam valorizados por seus usuários, uma vez que
recentes que levaram à vitória política do não seriam eles que o pagariam (BOITO JR, 1999).
neoliberalismo no Brasil. Para este Estes apontamentos defrontam-se com o
empreendimento, destacaremos na análise: i) a Estado de Bem-Estar Social europeu. Os
ideologia neoliberal e sua implementação no pensadores neoliberais argumentam que o
mundo, na América Latina e no Brasil; ii) os ajustes igualitarismo (relativo) promovido por esse modelo,
macroeconômicos engendrados a partir de uma destruiria a liberdade dos cidadãos e a vitalidade da
determinada concepção de estabilização monetária; concorrência, da qual dependia a prosperidade de
iii) a Reforma do Estado e suas determinações, todos. Ademais, a desigualdade seria um valor
como parte constitutiva de um projeto ambicioso de positivo, pois disso precisariam as sociedades
realocar o poderio estatal para a promoção do ocidentais (ANDERSON, 1998).
desenvolvimento; iv) e as mudanças ocorridas na É a partir da crise do modelo econômico
concepção da política social a partir e ao longo do do pós-guerra, em 1974, quando a economia
período citado. mundial foi jogada numa recessão1, que as idéias
A ideologia neoliberal contemporânea é, neoliberais passaram a ter espaço. O receituário
fundamentalmente, um liberalismo econômico, que liberal era duro: a manutenção do Estado forte na
exalta o mercado, a concorrência e a liberdade de capacidade de romper com o poder dos sindicatos e
iniciativa privada, rejeitando veemente a intervenção no controle do dinheiro, mas parco em todos os
estatal na economia. Segundo Boito Jr: gastos sociais e nas intervenções econômicas. Em
sua aplicação prática, a construção da hegemonia
Essa ideologia de exaltação do mercado se expressa
através de um discurso polêmico: ela assume, no mais neoliberal iniciou-se ao final dos anos 70, quando
das vezes, a forma de uma crítica agressiva a foi eleita Margaret Tatcher2 em 1979 na Inglaterra e
intervenção do Estado na economia. O discurso Ronald Reagan em 1981 nos EUA. É pertinente
neoliberal procurava mostrar a superioridade do salientar a capacidade da ideologia neoliberal tornar-
mercado frente à ação estatal (BOITO JR, 1999, p.
45).
se hegemônica para boa parte dos países que
anteriormente tinham como paradigma o Estado de
Dentre essas superioridades, podemos Bem-Estar Social. Uma das razões para a
distinguir quatro delas, as quais são normalmente constituição de sua hegemonia pode ser explicada
propaladas pelos ideólogos do neoliberalismo: Em através da desregulamentação financeira. Fruto do
primeiro lugar, a superioridade econômica, já que o processo de mundialização, trata-se de um
livre jogo da oferta e procura e o sistema de preços mecanismo para a manutenção da acumulação de
a ele ligado permitiria uma alocação ótima dos capital por parte das elites, como forma a substituir
recursos disponíveis. Dessa forma, cresceria a a pujança e a lucratividade da produção de
riqueza geral. Em segundo, a superioridade política mercadorias reais de outrora. Ademais, o próprio
e moral, já que a soberania do consumidor, num colapso da URSS contribuiu tangencialmente para o
ambiente de concorrência, possibilitaria o
desenvolvimento moral e intelectual dos cidadãos.
Poder-se-ia apontar certas similitudes nesta etapa 1 Segundo Chesnais (1996), o capitalismo havia entrado em uma
com o liberalismo político de John Stuart Mill, no crise de superprodução a partir do início dos anos 1970, que
teria se tornado crônica. O forte incremento da produção e da
que tange à liberdade de pensamento e o direito ao
capacidade produtiva mundial decorrente da entrada maciça de
voto. A terceira é propriamente uma constatação e produtos alemães e japoneses no mercado mundial acabou
crítica quanto à ação econômica do Estado: afetando a lucratividade das empresas e gerou capacidade
diferentemente do mercado, a ação estatal, seja ociosa acima da planejada. Apontamos também para a elevação
como produtor de bens e serviços, seja como dos juros norte-americanos pelo governo Reagan, que causaram
a explosão do serviço da dívida externa em diversos países,
regulador das relações entre os agentes econômicos, inclusive no Brasil.
seria danosa. Economicamente, ela deformaria o 2 O modelo inglês foi, ao mesmo tempo, o pioneiro e o mais

sistema de preços – o principal indicador das puro. O governo Tatcher contraiu a emissão monetária, elevou
necessidades econômicas da sociedade – criaria a taxa de juros, baixou os impostos, aboliu os controles sobre
fluxos financeiros e cortou gastos sociais, dentre outras
monopólios, eliminando a soberania do consumidor realizações (ANDERSON, 1998).
e, desse modo, deixaria de punir a ineficiência. No

38
AURORA ano II número 3 - DEZEMBRO DE 2008_____________________________________________ISSN: 1982-8004 www.marilia.unesp.br/aurora

triunfo do neoliberalismo liderado e simbolizado posteriormente no PT, que coadunaram para que o
por Tatcher e Reagan. projeto neoliberal não fosse implementado de
A América Latina3 vem a ser a terceira forma cabal, como foi tanto na Argentina quando
grande cena de experimentações neoliberais. De no Chile (FILGUEIRAS, 2000).
modo a adaptar a ideologia neoliberal para a Após longo período o povo brasileiro
América Latina, segundo seus ideólogos, nessa voltava às urnas, em 1989, para eleger pelo voto
região o adversário da prosperidade econômica direto o presidente e o vice-presidente da República.
estaria no modelo de governo gerado pelas A eleição foi realizada num momento de profunda
ideologias nacionalistas e desenvolvimentistas. A frustração da sociedade brasileiro como o governo
entrada destes países se deu pela renegociação das Sarney, que fracassara no cumprimento de
dívidas externas, que obrigaram a pôr em prática um promessas proclamadas amiúde: controle da
ajuste fiscal com o objetivo de saldar essas dívidas inflação, equacionamento do problema da dívida
com seus países credores. Concebeu-se uma externa, retomada do crescimento econômico e
inserção eminentemente financeira para os países distribuição de renda. Após uma disputa eleitoral
dessa região. Há de se ressaltar o importante papel bastante concorrida, o candidato – até então
de chanceleres que as instituições financeiras desconhecido da grande mídia – pelo Partido de
multilaterais como FMI (Fundo Monetário Renovação Nacional (PRN), Fernando Collor de
Internacional) e Banco Mundial tiveram. Para Mello elegeu-se para a presidência. Teve sua
auferirem empréstimos e um prazo maior para o imagem construída pela mídia, tendo sua base de
pagamento das dívidas, os países foram obrigados a apoio eleitoral assentando-se principalmente no
aquiescer ante as prescrições. grande capital, nos setores mais atrasados do
capitalismo brasileiro e em amplos contingentes das
camadas médias.
A VIGÊNCIA NEOLIBERAL NO BRASIL Malogrado seu plano econômico Brasil
Novo4 (Plano Collor), a viragem econômica estava
O Brasil, objeto de nosso interesse maior, embasada no pensamento neoliberal e consistia na
foi apresentado às políticas neoliberais a partir do reorientação do desenvolvimento brasileiro e na
governo Collor, mas somente com eleição de redefinição do papel do Estado. Seu discurso, que
Fernando Henrique Cardoso e o Plano Real – mais tarde seria apropriado pelos seus sucessores,
constituído na administração Itamar Franco – que o dizia promover a passagem de um capitalismo
aplicou seus ditames no Estado Brasileiro. Segundo tutelado pelo Estado para um capitalismo moderno,
Fiori, baseado na eficiência e competitividade. Numa
frase, tratava-se de idéias apregoadas por parte dos
FHC é que foi concebido para viabilizar no Brasil a políticos e da burguesia, acerca da necessidade do
coalizão de poder capaz de dar sustentação e
permanência ao programa de estabilização do FMI, e país de um “choque de capitalismo” (BRUM, 2002).
viabilidade política ao que falta ser feito das reformas Vendo seu plano econômico não
preconizadas pelo Banco Mundial. (FIORI, 1997, p. apresentar o desempenho imaginado, o regime de
14). alta inflação ser mantido, Collor ainda teve seu
nome ligado à corrupção, fato este que o levou a ser
Entretanto, o Brasil aderiu à lógica retirado da presidência e assim ter postergado por
neoliberal de forma retardatária. Acerca desse algum tempo a entrada definitiva do Neoliberalismo
“atraso”, é possível aduzir um fator de suma no Brasil. Concluído o processo de impeachment, o
importância como forma de retardar o advento vice-presidente Itamar Franco assumiu o posto para
neoliberal em nosso país. A ampliação da frente completar os dois últimos anos restantes daquele
política de oposição ao regime militar no momento mandato. Suas principais orientações eram resgatar
final da crise desse regime – acordos para a eleição a ética na política e preparar o país para implantação
direta de Tancredo Neves e José Sarney. Tal de um novo plano de estabilização. Esta nova
estratégia estreitava as possibilidades de política tentativa foi idealizada por um grupo de
econômica. Além deste, temos a crescente economistas comandados pelo então Ministro da
mobilização social durante os anos 70 e 80 Fazendo, Fernando Henrique Cardoso. Sua tese era
representada no Novo Sindicalismo, no MST e
4 Este plano se caracterizou por ser um programa de
3 Não obstante ocorrido um processo de privatização em estabilização articulado a um projeto de mudanças estruturais,
massa, o continente latino-americano foi testemunha da de longo prazo. No seu conjunto, constituiu-se numa reforma
primeira experiência neoliberal sistemática do mundo. Nessa monetária, um ajuste fiscal e uma política de renda associada a
região, apenas o Chile dos tempos ditatoriais de Pinochet foi o medidas de liberalização do comércio exterior e uma nova
primeiro país a adotar, de forma austera, o neoliberalismo. política cambial (FILGUEIRAS, 2000).

39
AURORA ano II número 3 - DEZEMBRO DE 2008_____________________________________________ISSN: 1982-8004 www.marilia.unesp.br/aurora

baseada na necessidade de uma “liberalização” das burocrático weberiano6, ao qual cabia tornar os
travas corporativas, que bloqueavam o surgimento setores públicos eficazes, meritocráticos e
de um empresariado dinâmico. O sucesso de sua impessoais. Após ter seu momento áureo no pós-
estratégia, o Plano Real, o levou a vencer as eleições guerra, a crise do modelo está enraizada na crise
em 1994 e dar prosseguimento em seu projeto. Este estrutural da economia, potencializada pelos dois
plano faz parte de uma série de medidas que choques do petróleo que ocorreram no decurso dos
visavam a estabilização monetária e o fim de um anos 70. Utilizando políticas recessivas, como forma
duradouro regime de hiperinflação. Como é sabido, de combate à crise, viram suas receitas diminuírem e
todos os planos de estabilização adotados nos suas despesas continuarem altas, ou até mesmo
últimos anos no continente latino-americano são da aumentando, fato este que os levaram ao
mesma ordem do Consenso de Washington5. Este endividamento e conseqüentemente, à
na realidade organizou um plano único de impossibilidade de desenvolver políticas e
ajustamento das economias periferias, chanceladas orientações econômicas com a autonomia de
por órgãos supranacionais como FMI E Banco outrora. Ademais, assinalamos outro ponto
Mundial (FIORI, 1997). Esta estratégia tinha o importante: o Estado teve parte de seu poder
seguinte receituário: combate à inflação, através da econômico dilapidado com as transformações
dolarização da economia e valorização das moedas estruturais do sistema produtivo capitalista,
nacionais, associado a uma ênfase na necessidade de sobretudo com a intensificação dos fluxos
ajuste fiscal. Junto dessas orientações, ainda financeiros e comerciais em âmbito global. Nesse
podemos citar a reforma do Estado – mormente sentindo, concomitantemente à perda da capacidade
privatizações e reforma administrativa – de regular os fluxos de capitais e mercadorias que
desregulamentação dos mercados e liberalização circulavam na economia internacional, em sua face
comercial e financeira. Aplicadas tais políticas interna a crise figurou-se na redução da capacidade
reformistas, o país estaria apto para o crescimento dos governos de regular o mercado interno,
econômico. coordenar a alocação dos investimentos e arbitrar o
conflito distributivo (Abrucio e Costa, 1998).
Partindo desse cenário, constitui-se um paradigma
REFORMA DO ESTADO de reforma do Estado, que no Brasil foi balisada
por quatro grandes problemas durante o processo
A temática da Reforma do Estado tem de reformulação do Estado:
dominado a agenda política internacional desde os
primeiros anos da década de 80. De certa forma, a [...] (a) um problema econômico-político – a
reformulação do aparelho estatal se tornou uma delimitação do tamanho do Estado; (b) um outro
questão praticamente universal, enquanto resposta à também econômico-político, mas que merece
tratamento especial – a redefinição do papel
crise econômica que paralisou econômico- regulador do Estado; (c) um econômico-
politicamente os países nos últimos decênios do administrativo - a recuperação da governança ou
século XX. Tais reformas justificar-se-iam na capacidade financeira e administrativa de
medida em que o esgotamento fiscal do antigo implementar as decisões políticas tomadas pelo
governo; e (d) um político – o aumento da
modelo de desenvolvimento econômico-social governabilidade ou capacidade política do governo de
montado no pós-guerra se mostrava cada vez mais intermediar interesses, garantir legitimidade, e
patente. governar (BRESSER-PEREIRA, 1998, pp. 49-50).
O Estado de Bem-Estar Social - paradigma
econômico-social do pós-guerra - foi conformado a A agenda de reformas no Brasil foi
partir de três principais características: a orientação introduzida pelo ex-presidente Fernando Collor de
econômica keynesiana; a forte capacidade Mello, embora seus primeiro resultados tenham
redistributiva e compensatória, que ampliou o leque sido tímidos, com apenas algumas privatizações e
de políticas sociais e o número de pessoas atingidas; muito alvoroço em relação aos serviços público,
e por último, no âmbito administrativo, um modelo considerado o principal responsável pelos
problemas do Estado. 7 Foi somente no governo de

5 Trata-se de uma reunião sem caráter deliberativo, realizada 6 No modelo burocrático weberiano, a ação deverá ser sempre
ano de 1989, entre acadêmicos e políticos norte-americanos e referente a fins, havendo uma racionalidade pública e uma
latino-americanos para buscar soluções que findassem com a privada em seu modelo. Este serviu de base à formação da
estagnação reinante por mais de vinte anos na América Latina. burocracia pública brasileira e à administração para o
Ao cabo do evento, conformou-se um paper composto por dez desenvolvimento.
recomendações, que posteriormente daria origem a um livro do 7 Para análises do governo Collor no tocante às reformas, ver
economista John Williamson intitulado Washington Consensus. Diniz (1998).

40
AURORA ano II número 3 - DEZEMBRO DE 2008_____________________________________________ISSN: 1982-8004 www.marilia.unesp.br/aurora

Fernando Henrique que o tema foi tratado como Mundial e FMI, no sentindo de cortar os gastos
conditio sine qua non para a volta do crescimento públicos, agravou ainda mais o histórico problema
econômico e continuação da estabilização da pobreza no Brasil. Reforçou-se a retórica da
econômica. Constituiu-se um Ministério da reforma como um caminho para a promoção das
Administração e Reforma do Estado – MARE -, chamadas políticas sociais, voltando-se a atenção
que teve como titular Bresser-Pereira, como carro para o agravamento do problema do desemprego e
chefe do processo de reformulação do Estado.8 A da pobreza e para a necessidade de regular
reforma foi, de certo modo, bem aceita tanto pela minimamente o movimento do capital. Assim,
sociedade quanto pela coalizão política de alguns projetos foram criados para o combate à
sustentação do governo. Para isso, houve uma forte pobreza (Fiori, 2000; Santos, 1998). Entretanto, essa
associação entre a reforma e a crise fiscal do Estado, mudança de rota não significou uma crítica ao
uma substancial associação entre reforma e caráter das políticas neoliberais. Pelo contrário,
continuidade do sucesso do Plano Real e por fim, a avaliou-se que as políticas neoliberais foram
promessa de que a reforma tornaria o serviço insuficientes para abrir um novo ciclo de
público eficiente (Souza e Carvalho, 1999). desenvolvimento econômico, sendo necessário
Como parte constitutiva de um processo aprimorá-las (Gomes Silva, 2001). De acordo com
abrangente que buscava criar um novo modelo Souza, o Plano Diretor da Reforma do aparelho do
econômico fundamentado no neoliberalismo, Estado, concebido pelo governo FHC, está
“estimulado” a partir do Consenso de Washington, centrado na busca de melhoria da atuação
a reforma do Estado brasileiro seria, segundo seus burocrática, pela via da valorização do servidor que
defensores, uma alternativa capaz de liberar a integra as chamadas funções exclusivas de Estado e
economia para uma nova etapa do crescimento. na separação das atividades de regulação das de
Embora de alcance diferenciado em cada país e execução, transferindo a execução, principalmente,
condicionada às relações centro/periferia, a reforma para as Organizações Sociais” (Souza e Carvalho,
passou por dois momentos. O primeiro 1999).
correspondeu ao período de retomada da ofensiva Na ótica do governo Cardoso era preciso
do neoliberalismo estendendo-se até o início da que o Estado não somente sustentasse a
década de 1990. O Estado foi fortemente criticado competitividade, mas também se reestruturasse,
pelo seu caráter intervencionista, exigindo-se a visando implementar uma administração pública
redução do seu “tamanho” como uma condição ao gerencial que deveria se orientar pela eficiência e
livre funcionamento do mercado (Gomes Silva, qualidade dos serviços (Faleiros, 2004). Para
2001). O debate girou em torno da distinção entre justificar tal posição, o Plano Diretor da Reforma
as funções exclusivas e não exclusivas do Estado. do Estado considerou a Constituição de 1988 um
Como solução primária foi enfatizada a retrocesso burocrático sem precedentes, propondo
racionalização dos recursos fiscais, através de abolir a estabilidade dos servidores, reduzir os
abertura dos mercados, privatizações, etc, que foi gastos (principalmente com os chamados inativos),
iniciado e levado a cabo pelo governo federal. avaliar o desempenho e diminuir a cultura
Num segundo momento, esboçou-se uma burocrática (Brasil, 1998).
suposta alternativa ao malogro das políticas Em meados da década de 90, Cardoso
neoliberais, figurando uma mudança parcial de inaugurou uma nova ofensiva neoliberal ao
orientação mediante o reconhecimento da situação encaminhar o Projeto de Emenda Constitucional nº
sócio-econômica reinante em alguns Estados 173 sobre a reforma do aparelho do Estado
Nacionais. Este segundo momento perseguiu outros brasileiro. Com o suporte da popularidade
objetivos adicionais: a eficiência dos serviços conquistada pela estabilização da economia refletido
públicos, a ser alcançada pela otimização dos nas urnas, o novo presidente principiou sua
recursos humanos e financeiros, efetividade e administração estruturando uma ampla reforma nas
democratização (Souza e Carvalho, 1999). Dessa políticas e nos aparelhos de Estado, pretendendo
forma, com o recrudescimento da carestia oriunda reduzir o “custo Brasil”, solucionar a crise da
de décadas de desempenho pífio tanto social quanto economia brasileira e garantir as condições de
economicamente, a orientação das políticas inserção do país na economia globalizada (Cardoso,
neoliberais tuteladas por órgãos como Banco 1998). Entretanto, a entrada no mundo globalizado
não se dá nas mesmas condições para os diversos
8O MARE foi transformado em SEAP – Secretaria de Estado países. Nas economias periféricas, como o Brasil, a
da Administração e do Patrimônio – em janeiro de 1999. transnacionalização não elimina a relação de
Entretanto, a saída do ministro Bresser do MARE, assim como dominação centro/periferia (Gonçalves, 2002).
a perda de status de ministério não significou que a proposta Nesse sentido, segundo Borón (1996), o caminho
oficial de reforma havia sido abandonada.

41
AURORA ano II número 3 - DEZEMBRO DE 2008_____________________________________________ISSN: 1982-8004 www.marilia.unesp.br/aurora

neoliberal para o primeiro mundo não é senão um controle (BRASIL, 1995). Na prática, a terceirização
mito, habilmente manejado pelas classes e frações se estendeu a outros tipos de serviço como a saúde
que detinham a hegemonia no sistema capitalista (GOMES SILVA, 2003). Segundo Bresser Pereira
internacional. (1998), as organizações sociais, executoras das
O discurso implícito no documento oficial atividades da área social, seriam controladas não
apresentava o modelo do Estado das últimas apenas através da administração gerencial, mas
décadas como o agente responsável pela emergência também e principalmente através do controle social
da crise econômica mundial, devido à forte e da constituição de quase-mercados10.
intervenção na economia e aos consideráveis gastos A Reforma do Estado no governo Cardoso
sociais. O governo aduziu como única alternativa articulou medidas legislativas, mudança regulatória e
para a resolução dessa crise a “reconstrução do ações governamentais para uma reordenação
Estado” ou seja, reformá-lo (Gomes Silva, 2001). estratégica do papel do Estado, que deveria passar
Em agosto de 2002, Bresser Pereira concluiu: de impulsionador do desenvolvimento para o de
impulsionador da competitividade da economia.
A Reforma do Aparelho do Estado voltada para a Para tanto, transferiu patrimônio público para o
gestão e busca de resultados, inclusive com mercado, mudou a relação do Estado com o
indicadores, metas e avaliação de desempenho, é um
processo de mudanças da instrumentalidade da ação mercado e a sociedade, considerando o Estado
do Estado, dos meios da governança, no manejo ou como complementar ao mercado.
gerenciamento de seus recursos econômicos e sociais,
na busca da eficiência (BRESSER PEREIRA apud
FALEIROS, 2004, p. 51). REFORMA E REORIENTAÇÃO DA POLÍTICA
SOCIAL
O então ministro do MARE reafirmou
amiúde ser contrário à idéia do Estado Mínimo A política social é uma dimensão necessária
neoliberal, dizia buscar com a reforma não da democracia nas sociedades modernas e está
enfraquecer o Estado, mas sim fortalecê-lo. estreitamente ligada aos valores da equidade. No
(Bresser-Pereira, 1998) E para isso seria através do quadro institucional, as políticas sociais integram
modelo de Estado Social-liberal capaz de estimular um sistema de ação complexo resultante de
e preparar as empresas e o país para a competição inúmeras causalidades e distintos atores e campos
generalizada. 9 Nesse sentido, o ministro Bresser- de ação social e pública: proteção contra riscos,
Pereira a reapresentou num momento politicamente combate à miséria, desenvolvimento de capacidades
mais favorável, obscurecendo os traços que possibilitem a superação das desigualdades e o
identificados como neoliberalismo e concedendo exercício pleno da cidadania (IVO, 2004). Nesse
proeminência ao chamado aspecto social. De sentido, elas são instrumentos institucionais
acordo com seus formuladores, o Estado social- forjados com o objetivo de assegurar a cada um as
liberal não seria um Estado social-burocrático, que condições materiais de vida que permitam ao
contrata diretamente professores, médicos e cidadão exercer seus direitos sociais e cívicos.
assistentes sociais para realizar de forma As políticas sociais brasileiras
monopolista e ineficiente os serviços sociais e desenvolveram-se a partir do início do século XX,
científicos, nem tampouco um Estado neoliberal por um período de 80 anos, configurando um
que se pretende mínimo e renuncia a suas modelo de proteção social somente alterado com a
responsabilidades sociais. Constituição Federal de 1988. O sistema de
Outro método de delimitação do espaço de proteção social brasileiro, até o final da década de
atuação do Estado é a terceirização, mediante a qual 80, combinou um modelo de seguro social na área
o governo transfere para o setor privado, através de da previdência, incluindo a atenção à saúde, com
licitação pública e contratos, serviços auxiliares ou um modelo assistencial para a população sem
de apoio, como a limpeza, o processamento de vínculos trabalhistas formais (FLEURY, 2004).
dados e o transporte. Por meio do Programa
Nacional de Publicização (PNP), o governo
transferiu para “o setor público não-estatal” - o
10 Bresser tomou emprestado de Le Grand a expressão quase-
mercado, formulada com o objetivo de analisar as modificações
chamado terceiro setor -, a produção dos serviços da política social na Inglaterra. De acordo com seu criador, os
competitivos ou não, exclusivos do Estado, “quase-mercados” são mercados porque substituem aos
estabelecendo-se um sistema de parceria entre provedores estatais monopolistas por provedores
Estado e sociedade para seu financiamento e independentes que atuam com competência. São “quase”
porque se diferencia dos mercados convencionais em vários
aspectos, como a competição entre as instituições por recursos
9Faz-se importante ressaltar que tal proposta social-liberal já públicos ou contratos, a compra dos benefícios, que ocorre
havia sido apresentada por Collor. utilizando-se os vales e não por meios monetários.

42
AURORA ano II número 3 - DEZEMBRO DE 2008_____________________________________________ISSN: 1982-8004 www.marilia.unesp.br/aurora

Denominado por Draibe como primeiro de proteção social que se conformou no período
ciclo de reformas, a Constituição Federal de 1988 posterior apresentou as mesmas características de
foi um relevante marco institucional ao apresentar tempos anteriores, ou seja, o mesmo sistema
um novo modelo de seguridade social. Tal padrão histórico construído desde os anos de 1930, de base
passou a estruturar a organização e o formato da categorial e meritocrático. Em boa medida, foi esta
proteção social brasileira, em busca da a retórica utilizada pelos ideólogos do
universalização da cidadania e da consagração dos neoliberalismo que, ao assumirem o poder
direitos sociais. No novo formato de seguridade presidencial em meados dos anos 90, disseminaram
social buscou-se romper com as noções de a idéia de ineficiência estatal e necessidade de
cobertura restrita a setores inseridos no mercado reformas que colocassem o país na rota do
formal e abrandar os vínculos entre contribuições e crescimento econômico que minoraria as
benefícios, gerando mecanismos mais solidários e desigualdades sociais. A retórica acima descrita é
redistributivos. Os benefícios passaram a ser visto a ilustrada nas palavras de Sérgio Tiezzi, acessor da
partir da ótica das necessidades, com fundamento área social na Casa Civil do governo Cardoso:
nos princípios da justiça social, o que tornou
compulsório a extensão da cobertura da população O sistema de proteção social consolidado ao longo
(FALEIROS, 2004). Segundo Fleury: do tempo acabou se caracterizando por um esforço
de gasto relativamente elevado (cerca de 18% do
PIB), grande centralização administrativa, escasso
A inclusão da previdência, da saúde e da assistência controle democrático, grandes ineficiências
no âmbito da seguridade social introduziu a noção de operacionais e por uma estrutura de benefícios com
direitos sociais universais como parte da condição de baixo conteúdo distributivo. (...) Neste sentido, era
cidadania. Antes, esses direitos eram restritos à absolutamente indispensável assegura as condições de
população beneficiária da previdência. (FLEURY, estabilidade macroeconômica, realizar a reforma do
2004, p. 113). Estado (TIEZZI, 2004, pp. 49-50).

De forma sintética, o novo padrão No entanto, a correlação de forças que


constitucional de política social caracterizou-se pela favorecera a promulgação do modelo constitucional
universalização da cobertura, reconhecimento dos havia mudado. As propostas neoliberais – oriundas
direitos sociais, afirmação do dever do Estado, do bloco conservador que gravitava no entorno da
subordinação das ações privadas à regulação estatal, candidatura de Collor de Mello - ganharam espaço
em função da relevância pública das práticas e no cenário político e econômico, de forma a minar
serviços nessas áreas. A nova formatação da os avanços propostos pela Constituição Cidadã. A
seguridade social estava subordinada a dois outros Seguridade Social, por exemplo, foi um dos focos
componentes: a participação da sociedade e a privilegiados dessa nova investida conservadora.
descentralização político-administrativa. Assim, ao tempo em que, no Brasil,
Um aspecto do modelo de financiamento criavam-se dispositivos político-democráticos de
seria realizado com a criação do Orçamento da regulação da dinâmica capitalista, no âmbito político
Seguridade Social11, modalidade – nunca e econômico mundial tais mecanismos perdiam
implementada – de todos os recursos vindos de vigência e tendiam a serem substituídos, com a
diferentes fontes, a serem distribuídos entre os legitimação oferecida pela ideologia neoliberal, pela
componentes da saúde, previdência e assistência. O desregulação, pela flexibilização e pela privatização
arcabouço jurídico da Seguridade Social seria – elementos inerentes a mundialização
completado com a promulgação das Leis Orgânicas, (globalização) operada sob o comando do grande
em cada setor, que definiriam as condições capital.
concretas a partir das quais esses princípios Ao encetar o ano de 1995, com um
constitucionais e as diretivas organizacionais governo controlado por uma coalizão de centro-
materializar-se-iam (DELGADO E CASTRO, direita, a reforma do sistema de proteção social
2004; FLEURY, 2004). Segundo a cientista política voltou à ordem do dia. Em outro ambiente
Sonia Draibe, apesar do fortalecimento de algumas intelectual e valorativo e em meio às restrições
áreas, como a saúde e a assistência social, o sistema fiscais que acompanhavam o programa de
estabilização e as reformas pró-mercado, um outro
11
ciclo de mudanças veio alterar a fisionomia do
Este deveria primar pela diversidade das bases de
financiamento, principalmente porque contava com uma série sistema brasileiro de proteção social (DRAIBE,
de Contribuições Sociais. Além disso, refletia o espírito 2003). Explicitado em 1996, a estratégia de
descentralizador do período, mediante o fortalecimento fiscal e desenvolvimento social do Executivo federal
financeiro de estados e municípios, com a ampliação de sua desenhava um conjunto de mudanças alinhavadas
autonomia na responsabilidade de gastos em determinadas
áreas (DELGADO E CASTRO, 2004).
por três eixos:

43
AURORA ano II número 3 - DEZEMBRO DE 2008_____________________________________________ISSN: 1982-8004 www.marilia.unesp.br/aurora

- O reforço dos serviços básicos de caráter do Estado no campo social. No caso da


universal; publicização, a defesa desse ponto de vista residiu
- A ênfase nos programas de trabalho, numa constatação dos limites estruturais do próprio
emprego e renda; do Estado. Por conseguinte, concebeu-se a
- O destaque a programas prioritários, exigência de se buscar novos modelos de
voltados para o combate à pobreza, porém solidariedade social que permitissem ao Estado ver-
concebidos com a mescla entre políticas universais e se aliviado de tamanha responsabilidade enquanto
políticas focalizadas (DRAIBE, 2003; TIEZZI, provedor dos direitos sociais básicos dos cidadãos
2004). brasileiros.
A definição das linhas-mestra apresentadas Ao se utilizar o mecanismo de terceirização
acima foi feita através da identificação dos dos serviços públicos para empresas privadas ou
obstáculos e necessidades existentes, segundos os ONGs – visto que o governo via como necessário o
autores da estratégia de desenvolvimento social, caráter competitivo na área social – estes passaram a
naquele momento. O primeiro determinante para tal serem consideradas mercadorias. Assim, fatalmente
estratagema era a consecução da estabilização o caráter de direito social é perdido, pois os serviços
econômica e a Reforma do Estado – esta ficaram disponíveis àqueles que tiverem recursos
compreendida como a reforma administrativa, fiscal financeiros ou outros equivalentes para adquiri-los.
e da previdência. Além desse, seria preciso Transfigurasse a noção de direitos sociais para a
concentrar esforços e atenções nos serviços sociais noção de um mercado de políticas sociais (SILVA,
básicos de vocação universal: educação, saúde e 2003). Essa parceria institucional conferiria às
previdência social. A reestruturação e a reforma chamadas organizações sociais uma suposta
profunda desses setores requeriam a eliminação de modalidade que transitório entre o privado e o
desperdícios, o aumento da eficiência desses setores, estatal, constituindo a esfera do público não-estatal
a promoção da descentralização, a universalização, (BRESSER PEREIRA, 1998).
sempre que necessário e legítima, de sua cobertura, O modelo das Organizações Sociais12
a melhoria da qualidade e, sobretudo, a surgiu com a proposta de reforma do Estado no
reestruturação dos benefícios e serviços para governo Cardoso, cuja necessidade institucional e
aumentar o seu impacto redistributivo. Em terceiro política foi apresentada como conseqüência da
e último lugar, programas de curto prazo, como globalização. Esse modelo tem elementos que
ações e programas considerados relevantes para colocam em questão o caráter universalista das
enfrentar pontos de estrangulamento mais políticas sociais dos campos da saúde e da educação.
dramáticos, como a redução da mortalidade infantil Na verdade, individualizam os direitos sociais e
(TIEZZI, 2004). intensifica-se a mercantilização dos serviços,
As orientações das políticas sociais foram transferindo para o mercado a realização dessas
permeadas, segundo BOITO JR (1999), pela necessidades. Ao se compactuar de tal modelo, o
racionalização dos recursos, pela descentralização cidadão deixa de compartilhar direitos iguais e
participativa e pela focalização dos serviços universais, enquanto isso, a disponibilidade
públicos. Além destas principais, devemos ressaltar financeira determina o direito de ter acesso aos
a idéia de publicização, ou seja, a terceirização de serviços públicos13 (FALEIROS, 2004; SILVA,
serviços públicos para a iniciativa privada. 2003). Além dos dispositivos já explicitados,
Reiteramos que tais propostas foram elaboradas e destacamos as políticas sociais focalizadas. Ao se
induzidas por agências internacionais como o Banco conceber a guinada de orientação, porquanto a
Mundial e o FMI, segundo as quais, tais propostas
poderiam fazer da política social neoliberal um 12 Sejam empresas privadas ou ONGs (Organizações Não
verdadeiro instrumento de erradicação da pobreza Governamentais).
na América Latina. As orientações estão imbricadas 13 James Petras (1996) tece considerações acerca da “fusão”

numa visão neoliberal de predomínio do perfil de entre o público e o privado na prestação de serviços
eminentemente públicos. Segundo o autor, esse modelo debilita
políticas sociais focalizadas, de cunho a democracia no momento em que o processo decisório está
compensatório, isto é, de políticas que supõem, nas mãos dos financiadores; reforça a ideologia da
como ambiente prévio e “dado”, um outro projeto responsabilidade individual pela busca das condições de vida
de sociedade definido em um campo oposto ao da em contraposição à responsabilidade do Estado em prover aos
deliberação coletiva e da planificação. seus cidadãos do um sistema de proteção social; seus projetos
setorizados, fragmentados e limitados à resolução de um
Segundo Amélia Cohn (2003), o governo problema específico dificultam a identificação do problema de
Cardoso, ao pautar suas políticas sociais nas um ponto de vista estrutural; despolitiza a luta por melhores
premissas acima referidas, buscava questionar a condições de vida no momento em que enfatizam as questões
amplitude das áreas de responsabilidade de atuação técnicas e as apresentam como apolíticas.

44
AURORA ano II número 3 - DEZEMBRO DE 2008_____________________________________________ISSN: 1982-8004 www.marilia.unesp.br/aurora

Constituição de 1988 preconizou as políticas sociais inserida na lógica neoliberal de restrição dos gastos
universalistas, o discurso da focalização fez toda a sociais.
discussão entorno das políticas sociais enveredar A escolha por políticas sociais focalizadas,
para o âmbito da “escolha pública eficiente”, em pelo racionamento dos gastos, pela redução da
face de uma restrição absoluta, daí desenvolvendo responsabilidade do Estado enquanto provedor de
algumas premissas: que os recursos governamentais direitos sociais básicos à população foram
destinados para a política social eram suficientes, corolários direitos da negação de uma política social
restando apenas serem bem direcionados; que, inclusiva, a qual se mostra como única resposta
desse modo, essa política social deveria ser razoável em um país de milhões de miseráveis que,
concebida como uma política de focalização da durante o governo FHC, passaram a depender uma
pobreza; que a formatação é um problema técnico ajuda monetária relevante enquanto forma de
de ajuste; e que a política social deveria buscar atuar mantê-los vivos, porém ínfima em relação a um
após o mercado, como forma de oferecer paliativo modelo que buscasse a emancipação da extrema
para suas imprecisões. pobreza que os acomete. Em outros termos, é
Tais premissas retomam a idéia da evidente a importância de mecanismos de
necessidade de se gastar menos e melhor, ou seja, a transferência de renda para segmentos carentes.
idéia que o problema está na ineficiência do Entretanto, esse não pode ser o núcleo de políticas
gerenciamento das políticas (TIEZZI, 2004). Assim, sociais ou de uma política de redução da
tal idéia foi na realidade uma intencional sabotagem desigualdade, sob pena de engessar essas
das políticas sociais pelo governo Cardoso. Quanto desigualdades e, por conseqüência, inviabilizar o
à necessidade de focalização, a utilização destas projeto de desenvolvimento social.
num país com tamanha desigualdade social,
inevitavelmente consolida e engessa a desigualdade,
pois tais políticas não buscaram enfrentar a pobreza REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
numa ótica estrutural, mas tão somente aliviar a
pobreza dos “grupos socialmente mais vulneráveis”, ANDERSON, Perry. Balanço do Neoliberalismo
através da assistência social. Desse modo, tal In: SADER, E. e GENTILI, P. Pós-Neoliberalismo:
sistema acabou por estigmatizar os pobres e As políticas sociais e o Estado Democrático. Ed. Paz e
conformar um processe de naturalização da pobreza Terra, São Paulo, p. 09 – 23, 1995.
(COHN, 1999). Em outras palavras, as políticas,
nessa perspectiva, tiveram a função da chamada BOITO JR, Armando. Política Neoliberal e Sindicalismo
“gestão da pobreza e da miséria”. no Brasil. Ed. Xamã, São Paulo, 1999.

BRASIL. Presidência da República. Plano Diretor da


CONCLUSÕES reforma do aparelho do Estado. Brasília, 1995.

Como foi expresso na introdução deste BRESSER PEREIRA, Luís C. A Reforma do


artigo, empreendeu-se nesse estudo conjugar Estado nos anos 90: Lógica e mecanismos de
determinantes e concepções políticas e econômicas controle. Rev. Lua Nova, nº 45, p. 45 – 95, 1998.
que, ao se equacionar tal formulação, a área social ______. A Reforma do Estado para a Cidadania.
figurou como subproduto da relação. Em outros Ed. 34, São Paulo, 1999.
termos, a política social do governo FHC foi fruto
de uma opção de desenvolvimento econômico que BRUM, Argemiro. J. Desenvolvimento Econômico
não privilegiou as prescrições da Constituição de Brasileiro. Ed. Vozes, Petrópolis, 2002.
1988.
Ao se buscar a inserção do Brasil na CHESNAIS, François. A mundialização do capital. Ed.
economia mundial pela via da financeirização, Xamã: São Paulo, 1996.
estreitou-se a priori as possibilidades do sistema de
proteção social brasileiro se fortalecer e apresentar- COHN, Amélia. As políticas sociais no governo FHC.
se capaz de dar respostas às demandas da Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2):
população. E isso se explica pela permuta de valores 183-197, out. 1999. (editado em fev. 2000).
ocorridos no governo FHC. Ao trocar a idéia de
solidariedade, presente na Constituição de 88, pela DELGADO, Guilherme. C. e CASTRO, José. A.
competitividade, expressa a elevação das questões Direitos sociais no Brasil sob risco de
econômicas a um primeiro plano, de forma a relegar desconstrução. IPEA, nº 9, p. 146 – 151, 2004.
a questão social a um simples pano de fundo,

45
AURORA ano II número 3 - DEZEMBRO DE 2008_____________________________________________ISSN: 1982-8004 www.marilia.unesp.br/aurora

DRAIBE, Sônia. M. A política social no período GOMES SILVA, Ilse. Democracia e participação na
FHC e o sistema de proteção social. Tempo Social; “reforma” do Estado. Ed. Cortez: São Paulo, 2003.
Rev. Sociol. USP, São Paulo, 15(2) p. 64-101, nov.
2003. IVO, Ana. B. L A Reconversão do social: dilemas da
FALEIROS, V. P. A Reforma do Estado no período redistribuição no tratamento focalizado. Rev. São Paulo
FHC e as propostas do governo Lula. INESC, p. 35 – em Perspectiva, 18(2): 57-67, 2004.
55, 2004.
PETRAS, James. Armadilha neoliberal e alternativas
FILGUEIRAS, Luís. História do Plano Real. Ed. para a América Latina. Ed. Xamã: São Paulo, 1999.
Boitempo, São Paulo, 2000.
SOUZA, C. & CARVALHO, I. M. M. Reforma do
FIORI, José. L Ajustes e milagres latino- Estado, Descentralização e Desigualdades: 187-212 Rev.
americanos. In: Os Moedeiros Falsos: 65-78. Lua Nova 48, 1999.
Petrópolis, Ed. Vozes, 1997.
TIEZZI, S. A organização da política social do governo
FLEURY, Silvia. Seguridade Social. INESC, p. 110 Fernando Henrique. Rev. São Paulo em Perspectiva,
– 119, 2004. 18(2): 49-56, 2004.

i
Bacharel e Licenciado em Ciências Sociais pela Unesp/Marília. Mestrando em Ciência Política pela Unicamp.

46

Você também pode gostar