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Ensaios No Real - o Documentario Brasileiro Hoje LIVRO PDF
Ensaios No Real - o Documentario Brasileiro Hoje LIVRO PDF
Ensaios no real
Apresentação
Cezar Migliorin
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Cezar Migliorin
(org.)
Ensaios no real
azougue editorial
2010
4
Coordenação editorial
Amélia Cohn e Sergio Cohn
Capa
Carolina Noury
Foto
Pablo Lobato e Cao Guimarães
Equipe Azougue
Carolina Noury, Eduardo Coelho, Elisa Ramone, Evelyn Rocha, Filipe Gonçalves, Giselle
Andrade, Ingrid Vieira, Karina Lopes, Luana Maria e Marta Lozano
Revisão
Gabriel Cohn
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
E52
Ensaios no real / Cezar Migliorin (org.). - Rio de Janeiro : Beco do Azougue, 2010.
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-7920-040-3
[ 2010 ]
Beco do Azougue Editorial Ltda.
Rua Jardim Botânico, 674 sala 605
CEP 22461-000 - Rio de Janeiro - RJ
Tel/fax 55_21_2259-7712
www.azougue.com.br
azougue - mais que uma editora, um pacto com a cultura
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A câmera lúcida
José Carlos Avellar
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Na contramão do confessional:
O ensaísmo em Santiago, Jogo de cena e Pan-Cinema Permanente
Ilana Feldman
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A superfície do cotidiano
Uma aproximação a Acidente e Uma encruzilhada aprazível
Cláudia Mesquita
199
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Cotidianos em performance:
Estamira encontra as mulheres de Jogo de Cena
Mariana Baltar
217
Bibliografia
235
Sobre os autores
247
Agradecimentos
253
8
9
*
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algo que já vinha acontecendo em Edifício Master (2002), Santo forte (1999) ou
Babilônia 2000 (2000), mas que nesse filme ganha contornos comoventes.
O texto é dito por alguém, mas ao mesmo tempo que é dito faz a pessoa
desaparecer como indivíduo para ser uma ponte para a própria linguagem.
Uma enunciação sem propriedade. Eis a dimensão coletiva da linguagem,
uma luz que Coutinho lança sobre seus outros filmes recentes. A fala sai de
“um” e se torna “infinita”; do “um” ao “múltiplo” com um corte. Nesse
gesto, a fala não pertence a mais ninguém e, ao mesmo tempo, pertence
a todo mundo. É o que acontece quando percebemos que duas mulheres
contam a mesma história como o mesmo grau de envolvimento. Maneira
explícita de destruir as fronteiras entre o individual e o coletivo. E não sei
mais quem é Fernanda ou Andréa, Marília ou… A “prisão” de Coutinho
aqui ganhou asas e se liberou, nem por isso deixou de ser um dispositivo.
Eis uma das mais fortes dimensões políticas dessas imagens. Momento
em que o filme nos apresenta o que há de mais singular circulando de
maneira desregrada pela comunidade.
Mas não são apenas as falas e entrevistas que circulam. Depois de
abrir o século com a entrevista pautando o documentário brasileiro, o
silêncio é uma reação, como Cláudia Mesquita nos lembra em seu artigo.
Ao mesmo tempo, ao incorporar o encontro, operação fundamental
no cinema de Jean Rouch nos 1950, o documentário contemporâneo
com frequência duvidou dele também. Até que ponto o encontro não
é apenas um jogo, um conexionismo desprovido das tensões lentas e a
longo prazo? Quanto de desafio pessoal é o que move o encontro? No
lugar da presença do outro, da relação e da imaginação, inseparável do
estar junto, o encontro não pode se tornar apenas um desafio de perfor-
mance? Uma ansiedade em instaurar a transformação já com o filme. Eis
o risco, e mais uma tensão: que o documentário não se confunda com
o audiovisual que coloca o espectador no lugar daquele que julga se o
realizador e os filmados estão se saindo bem diante do risco do encontro,
mobilização fundamental dos reality shows.
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A representação da política
no documentário brasileiro
Miguel Pereira
Vocação
Quando Eduardo Escorel e José Joffily decidiram investigar o que
motiva uma pessoa a optar pela carreira política, tinham saído de uma
outra experiência em que a pergunta era mais ou menos a mesma. O
chamado de Deus, filme anterior de ambos, focava jovens que decidiram
ser padres. Investigavam, portanto, a formação dos futuros sacerdotes
católicos, os chamados seminaristas. De certo modo, Vocação do poder
também focaliza a formação do político, embora não do ponto de vista
intelectual ou doutrinário. O que está em jogo neste filme é o processo
eleitoral e, em especial, a campanha eleitoral. O mesmo acontece com
Entreatos, filme de João Moreira Salles, que registra a fase final da cam-
panha de Lula à presidência da República, onde a construção do político
se expressa em sua maturidade e domínio da cena. Em pouquíssimos
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de Lula. Lula nos carros, nos hotéis, nos aviões, nos camarins”, isto é,
“cenas mais reservadas”. João diz isso em off, logo no início do filme,
mas não explica com mais detalhes o porquê da escolha. Simplesmente
realiza o filme com este critério básico. Dos poucos discursos regis-
trados na versão final do filme está o que poderíamos chamar de a sua
“vocação da política”, logo no início do filme. É quando Lula fala para
representantes de mais de 25 sindicatos de Osasco e diz:
Espaço e tempo
Construções diferenciadas que privilegiam espaços e tempos
diversos. Se Entreatos focaliza um personagem que se desloca por inú-
meros espaços na dimensão do nacional, Vocação do poder se concentra
no município do Rio de Janeiro e registra a trajetória de seis persona-
gens, enquanto Utopia e barbárie tem como palco o mundo e grandes
personagens da história do século XX. Mas, os três filmes nos propõem
aquilo que Tomás Gutiérrez Alea define como “o outro em nós”. Na
verdade, os três buscam fora de si o sentido para o “acontecimento” ou
os “acontecimentos” que também estão em nós, ou, melhor dizendo,
que nos dizem respeito. Assim, da épica ao drama, a construção passa
pela emoção e pela razão. Citando Gutiérrez Alea na comparação que
faz entre Eisenstein e Brecht:
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final. É curiosa, por exemplo, a fala de João Moreira Salles quando afirma,
em off, que Lula em nenhum momento pediu para exercer algum controle
sobre o filme. A observação faz sentido, pois talvez não existisse filme
caso o candidato fizesse essa exigência. Afinal, não se tratava de um filme
publicitário. Lula não era o cliente de João Moreira Salles.
Assim, os atores dessas representações estão em posições espa-
ciais diferentes e se encontram ou desencontram em tempos iguais. A
variável tempo não muda. Foi o que foi no primeiro tempo e é o que
é nos tempos seguintes. Encurta apenas em função da narração. Mas é
sempre presente, toda vez que a obra é exposta. Atravessa todos os es-
paços mapeados pelas imagens dos fatos ou dos objetos e a imaginação,
sentimento e razão dos sujeitos últimos, ou seja, dos espectadores. O
documentário exerce um poder de ambiguidade talvez maior que a ficção,
pois sua construção é reconstruída infinitas vezes. É quase sempre uma
obra em aberto, mesmo que conduzida pela mão firme de seu autor.
Entreatos, visto hoje, depois da crise vivida pelo governo Lula,
da sua aparente superação e da sua significativa popularidade, adquire
o sentido de uma história de fadas. Nem parece um filme político. É a
história de uma vitória que impactou o país e o mundo, pois Lula teve
uma estrondosa votação e vem construindo a figura de um lider mun-
dial reconhecido. Um capital de grande poder simbólico que resiste a
muitos estragos que ainda poderão aparecer. A opção de João Moreira
Salles por se fixar nas cenas menos públicas do candidato revelou-se
um instrumento eficaz de observação da atitude humana, dando ao
documentário um sentido em que o político não se separa do pessoal,
comprovando, portanto, o que Foucault chama de biopolítica. Além
disso, seu filme atravessa as conjunturas e revela um personagem vi-
torioso, determinado, condutor de sua cena, autônomo. Mesmo em
conversas ao pé do ouvido, a imagem que o filme constrói de Lula é de
uma pessoa que escolhe da gravata ao tipo de vida que deseja. Trata-se
de um personagem que parece realizado. Concretizou o sonho. Fez
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Intervalo
Como dizia Dziga Vertov, o intervalo não é apenas um espaço entre
uma coisa e outra. Na imagem do cineasta russo, é uma casa de doze
paredes, tomadas em diferentes partes do mundo, formando uma “sala
de intervalos” que não tem existência real, senão através do filme e de
sua montagem. Isto é, tudo se toca, num movimento contínuo. Dizia ele:
Deslocamentos subjetivos
e reservas de mundo
Ivana Bentes
1 “No ano de 2001, em uma visita à comunidade para a realização de um documentário sobre a
maquete, os diretores Fábio Gavião, Marco Oliveira e Francisco Franca convidaram os garotos
para participar do trabalho de captação de imagens.” Fonte: www.tvmorrinho.com
2 A Piscina do Peri. O que acontece quando Peri constrói uma piscina e tem Dicró como vizinho?;
Fico assim sem você. Videoclipe da versão remix da música “Fico assim sem você”, com interpretação
de Adriana Calcanhotto, inspirado em Romeu e Julieta, de Shakespeare. Baile Funk. Baile funk na
maquete do morrinho e na vida área. Acadêmicos do Morrinho parte 1 e 2 MC. Maiquinho, convicto
cantor de funk, tem um grande desafio: cantar na escola de samba Acadêmicos do Morrinho; “A
Revolta dos Bonecos”. Bonecos-Lego iniciam uma revolta no Morrinho, na tentativa de viajar
para a Bienal de Veneza acompanhados de seus autores. Fonte: www.morrinho.com
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A inclusão subjetiva
A questão trazida por Rancière se aplica aos documentários e
ficções realizados pelos novos sujeitos do discurso, quando ele insiste
que “o que falta aos proletários não é a consciência da condição de-
les, mas a possibilidade de mudar o ser sensível que está ligado a essa
condição”.4 No momento em que a cidade é pensada como a “nova
fábrica”, como propõe Antonio Negri, ou ainda como laboratório
experimental do capitalismo cognitivo, podemos dizer que a cultura
urbana está na gênese da própria ideia dessa “multidão” produtiva,
formada por singularidades que não podem mais ser representadas
de forma tradicional e que começam a atuar de forma comum ou em
projetos e ações partilhadas.
A cultura urbana hoje passa a ser entendida como produção de
riqueza e a cidade; as metrópoles estariam para a multidão como a fábrica
estava para os operários, o laboratório a céu aberto dessas bioestéticas. A
difusão da produtividade e da criação de valor se desloca para o campo
das relações sociais, dos fluxos e trocas. A cidade se informatiza, assim
como a produção e o trabalho. A cultura urbana torna-se uma das bases
do capital que busca extrair valor das redes espalhadas pela cidade: redes
de cultura, redes de saber, redes de afetividade e sociabilidade.
Mais quais as condições de possibilidade para que as redes de cul-
tura urbana se apropriem e dinamizem o território urbano? “Não existe
inclusão sem inclusão subjetiva”. Essa proposição do projeto Reperiferia
A posse da linguagem
Nesse contexto das redes e cultura urbanas, podemos destacar a
diversidade das linguagens e sua incorporação como elemento determi-
nante das novas formas do político e da ação. Entre essas linguagens
urbanas a produção audiovisual e a música estão presentes na produção
cultural, educacional, estética, contemporânea, de forma ampla.
A maioria dos grupos culturais urbanos no Brasil não trabalha
com uma linguagem exclusiva. Diferentes linguagens são mobilizadas
na sua produção, mas todos reconhecem uma dimensão decisiva hoje
5 Citado por Marcus Faustini, coordenador do projeto Reperiferia no evento Onda Cidadã,
promovido pelo Itaú Cultural no Circo Voador, Rio de Janeiro, novembro de 2007, onde par-
ticipamos coordenando o grupo de audiovisual.
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6 Experiências relatadas por Marcos Faustini, criador da Escola Livre de Cinema de Nova Iguaçu.
56
Outros Circuitos
Na TV Ovo, do Rio Grande do Sul, a formação de jovens através
do audiovisual tem como objetivo formar e multiplicar formadores,
passar da formação para a produção e exibição e criar um circuito novo.
7 http://www.kinooikos.com
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1 Nota do Autor: Este texto foi publicado no Catálogo da Mostra “Eduardo Coutinho: cinema do
encontro”, organizada por Cláudia Mesquita e Leandro Saraiva no CCBB, São Paulo, em outubro
de 2003. Naquele momento, eu estava lançando o livro O olhar e a cena: Hollywood, melodrama,
Cinema Novo, Nelson Rodrigues, pela CosacNaify, que focaliza as relações entre cinema e teatro,
e encontrei no cinema de Coutinho um notável experimento para a reflexão pelo que já se via até
Edifício Máster. Sua forma de compor o ritual da entrevista ensejou esta análise do seu depurado
jogo de cena. Mais tarde, ele decidiu desdobrar este jogo, fazê-lo exibir a sua própria lógica no
espaço de um teatro, com a arquitetura típica, o que foi feito em Jogo de cena (2007). Se antes o
espaço da conversa era a casa do(a) entrevistado(a), agora um grupo de mulheres subia efetiva-
mente a um palco para encontrar o cineasta e o olhar da câmera, sentadas e dando as costas para
uma platéia vazia, pois os espectadores éramos nós do lado de cá da tela. No espaço do teatro,
houve a mistura feita de entrevistas com pessoas que seguiam a regra usual, ou seja, o falar de si,
e entrevistas envolvendo atrizes (super conhecidas ou desconhecidas) cuja regra era seguir, em
primeira instância, um script, transcrição de depoimento de uma outra pessoa que, por sua vez,
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outros relatos, quando nos é dada uma imagem indireta, mediada por
outros discursos. É o que acontece com Paulinho da Viola, mas não
propriamente no filme Nelson Freire, onde se evita o discurso crítico,
o depoimento de fãs, tudo o que redundaria em comentário explícito
sobre a personalidade do músico. Por sua vez, Sandro é construído
como uma personagem clássica no relato de Ônibus 174, numa mon-
tagem paralela que alterna a cena decisiva, definidora de um destino,
com o retrospecto construído pelo “mosaico de depoimentos”. Não
temos, porém, a sua entrevista, a menos que se tome o que ele diz
quando se assoma para fora da janela do ônibus como uma espécie
de coletiva de imprensa, no calor da hora e segundo a sua estratégia.
De qualquer modo, nestes três casos há um contexto para as situações
de entrevista; e esta tem função variável, notadamente em Ônibus 174,
pois nem todos os entrevistados são personagens no mesmo sentido.
Tudo muda conforme a posição de cada um no jogo e conforme sua
relação com o “assunto” (protagonista, observador teórico, porta-voz
da “opinião pública”, testemunha-fonte de dados) – há uma hierarquia,
como nos filmes de ficção que, por sua vez, não excluem entrevistas,
depoimentos, desde Cidadão Kane.
O que me interessa aqui é o caso extremo em que a entrevista
(ou a conversa, como prefere Coutinho) é a forma dramática exclusiva,
e a presença das personagens não está acoplada a um antes e depois,
nem a uma interação continuada com outras figuras de seu entorno.
teria ou não entrado em cena ao longo do filme, incluindo-se as situações de acoplagem direta
entre seu depoimento e o das atrizes. Montou-se um jogo de espelhos que convidou à decifração
de suas regras e do estatuto de suas falas. No caminho, o filme nos fez testemunhar a atitude
das atrizes e sua eventual passagem ao confessional pelo abandono do script e pela conversa em
que tomaram a palavra, assumindo a enunciação, o dizer “eu”, em outra chave. A partir desse
jogo de espelhos e de identidades trocadas, Coutinho criou o laboratório em que o efeito-câmera
torna mais radical sua sempre ambígua teatralização de gestos e falas, de modo a tornar tudo
mais instável quando se pensa a relação entre o sujeito da enunciação e o sujeito do enunciado,
para usar um jargão talvez fora de moda, mas que configura bem o problema. Em entrevista a
Felipe Bragança, que organizou o livro Encontros/Eduardo Coutinho (Azougue, 2008), Coutinho
comenta o seu diálogo com este meu artigo na gestação de Jogo de cena.
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Ela exige a abertura efetiva para o diálogo (que não basta programar),
o talento e a experiência que permitam compor a cena apta a fazer
com que aconteça o que não seria possível sem a presença da câmera.
O conhecido efeito catalisador do olhar do cinema na gestação da fala
inesperada deve chegar à sua potência máxima, de modo a compensar
a assimetria dos poderes. Assimetria que o cineasta deve trabalhar sem
a ilusão de subtraí-la, pois ela está lá mesmo que seu objetivo não seja
extrair do entrevistado o que julga útil para uma causa. De um modo ou
de outro, as tensões permanecem, por maior que seja a disposição para
a escuta – porque, afinal, há a montagem, o agenciamento, o contexto;
e há a mise en scène (um espaço, uma cenografia, um enquadramento, um
“clima”, uma disposição dos corpos que condiciona o registro da fala).
Tomemos dois exemplos. No caso de Alessandra o plano é mais fecha-
do, sem nada de muito “marcado” à sua volta, enquanto que o senhor
Henrique, também de Edifício Master, cuja entrevista é mais demorada,
pode se mover e nos mostrar mais do seu espaço: uma imagem de Cristo
na parede, a modéstia do mobiliário escasso, o aparelho de som de onde
vai sair a voz redentora de Frank Sinatra. Ou seja, cada qual recebe o que
o cineasta julga melhor como efeito de produção de sentido na imagem
que dá conotação às falas; ora é a força do rosto, ora do gesto, ora do
ambiente, tudo dependendo da duração dos planos. Em Coutinho, esta
é generosa, pois ele busca atenuar o efeito dos fatores que condicionam
a atuação da “personagem”. Todas precisam de tempo para se por em
cena, conseguir criar as condições para que o momento se adense e
seja expressivo, com surpresas e acasos, revelações nos pormenores,
seja a felicidade de uma palavra, o drama de uma hesitação ou o um
gesto extraordinário feito por mãos seguras, como o de Dona Teresa,
em Santo forte (1999). A duração é a condição para que se possa compor
um olhar e uma escuta capazes de satisfazer às demandas de uma des-
crição fenomenológica, com uma abertura para o acontecimento e uma
compreensão não escorada em categorias pré-definidas, atenta ao que
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ponto de vista da verdade de cada um, seja o que for que se diga, seja o
que for que resulte como imagem, ninguém precisará confirmar expec-
tativas ou desmentir-se em outra cena, em outra ação. Como observei,
o sentido da ação da personagem, neste tipo de documentário, não está
na relação com os seus pares numa trama, mas na exclusiva força de
sua oralidade quando em interação com o cineasta e o aparato técnico.
Ao minimizar o contexto e os recursos narrativos, o documen-
tário procura se otimizar como forma dramática feita deste embate de-
cisivo que traz ao centro a fala, ressalvada a dimensão de relato tácito
(caminho de investigação) que se insinua na descontinuidade que
separa as entrevistas. Muito de nosso interesse se apoia neste drama,
na “agonia” do entrevistado, não aqui no sentido de sofrimento, mas
de competição, desafio ao encarar o efeito-câmera. Se o que se quer
ressaltar é a força do instante, a espessura própria de um momento
de vida, melhor que se faça a câmera participar desta situação (não
por mera ideia de autenticidade, honestidade para com o espectador,
mas para não se perder o que a câmera pode abrir à percepção, o que
pode se produzir de acontecimento nesta situação). Este é um proce-
dimento que a “ficção moderna” incorporou na relação entre o ator e
a câmera, favorecendo o que, no clássico, seria da ordem do “aciden-
te”, do “irracional”, buscando a irrupção de “algo” (inconsciente?)
que trairia a verdade do sujeito, para além de sua representação pelo
discurso. Enfim, algo que, a seu modo, o documentário tem estado a
buscar apoiado na performance diante da câmera assumida como ação
na esfera do contingente, do que ocorre e pode desafiar uma rede de
noções e saberes.
No entanto, trata-se de um “contingente” que não se pode tomar
como lugar do espontâneo, da ação autônoma, absorvida em si mesma,
mas como atuação para um interlocutor e dois olhares (o do cineasta e
aquele ao qual me refiro como efeito-câmera, gerador de performances).
Arma-se a cena como momento de vida, passagem efêmera, pela sua
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2 O exemplo de outra forma de se comportar vem de O prisioneiro da grade de ferro, de Paulo Sacra-
mento, onde os presos olham e falam para a câmera, além de manuseá-la, definindo o seu olhar,
apropriando-se, enfim, do aparato – ainda com molduras de controle, pois não chegam à montagem.
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3 Nesta direção, ver Consuelo Lins, “Coutinho encontra as fissuras do Edifício Master”. Sinopse,
São Paulo, nº 9, ano IV, 2002.
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4 Embora haja quase um consenso quanto ao que de bem sucedido há no cinema de Coutinho
nesse fazer emergir o singular (o campo de um imaginário pessoal na instância da conversa com
o cineasta), um exemplo de debate é o artigo de Francisco Elinaldo Teixeira, “Enunciação do
documentário: o problema de ‘dar a voz ao outro’”, in Estudos Socine de Cinema – Ano III, org.
por Mariarosaria Fabris e João Guilherme Barone Reis e Silva (Porto Alegre, ed. Sulina, 2003),
que traz uma crítica incisiva aos pressupostos da leitura mais corrente do cineasta, não sem
ressalvar que o cinema de Coutinho apresenta instâncias em que realiza uma operação dialógica
mais consistente, tal como o autor a concebe em seu texto, recuperando as formulações de
Pasolini e Deleuze.
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está a lhes sabotar: a condição de sujeito, mesmo que se saiba ser talvez
impossível que esta se exerça plenamente nos termos da auto-formação
e do auto-cultivo tal como postos pela tradição humanista.
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Cinema documentário
e efeitos de real na arte
Andréa França
Introdução
As raízes das artes – a pintura, a poesia, o futurismo, o surrealismo,
o construtivismo – no campo do cinema documentário não são novas.
A história do cinema mostra que realizadores como Jean Vigo, Dziga
Vertov, Joris Ivens, Alberto Cavalcanti, Luis Buñuel, para citar alguns,
viram no procedimento da montagem, na fotogenia e no ritmo da
imagem cinematográfica um modo de retirar os objetos e as coisas das
sombras da indiferença, tornando-os revestidos de propriedades poéticas
e expressivas jamais imaginadas. Se, de um lado, o cinema documentá-
rio se consolida como um campo em diálogo com a cultura científica
moderna que valorizaria os fatos e os documentos na sua relação com
o conhecimento e o saber positivistas, por outro, esse mesmo cinema
manteria, em vários momentos de sua história, um diálogo profícuo com
os movimentos de vanguarda dos anos 1920, dando espaço para outras
formas de experiência, onde o conhecimento do outro e do mundo im-
plicaria em aproximações mais associativas, intuitivas, reflexivas, poéticas.
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1 A metodologia de entregar a câmera para o personagem, recurso utilizado por Aluysio Raulino
no documentário Jardim Nova Bahia, de 1971, será retomada por Paulo Sacramento em O prisio-
neiro da grade de ferro (2004), filme em que é Aluysio Raulino quem assina a direção de fotografia.
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2 Carlos Nader é documentarista e videomaker. Realizou, entre outros, O beijoqueiro (1992, com
muitos prêmios internacionais), Trovoada (vídeo experimental, 1995), Território do invisível (1994,
com Marcello Dantas), Concepção (2001), Carlos Nader (1998). Lucas Bambozzi é documentarista
e videomaker. Realizou, entre outros, O fim do sem fim (2001, documentário em longa metragem),
Aqui de novo (2002, vídeo experimental de 6’), Eu não posso imaginar (1999, vídeo experimental,
22’), Ali é um lugar que não conheço (1997, vídeo experimental, 7’).
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3 Para uma discussão mais ampliada e analítica desta série realizada pelo Itaú Cultural, em 1998,
ver artigo de minha autoria, “Viagens na fronteira do Brasil e do cinema”, na revista Devires:
Cinema e Humanidades v. 4.
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ele é dos “gendarmes”, que ele foi enganado pela produção, ameaçando
equipe e diretor. Em Preto e branco, após a leitura do resultado do exame,
Eduardo se cansa das perguntas de Nader e questiona, mal-humorado, a
relevância e os objetivos do filme que estão fazendo, deixando sua mãe
constrangida.
Essas imagens criam momentos de suspensão do tempo, de fratura,
de “documento”, mostrando que o importante para o resultado do filme
é que as personagens possam se constituir gesto por gesto, palavra por
palavra, fabricando a si próprias à medida que o documentário avança,
gradualmente, de modo que o momento da filmagem possa agir sobre
elas como um revelador. Para cada pequeno avanço do filme, a possibi-
lidade de desenvolver ou inventar um novo comportamento, a duração
do documentário e da personagem convergindo e coincidindo, como
assinala Comolli.
Em função destes momentos, e a partir deles, podemos retomar
a frase de Godard – “o cinema é a verdade 24 vezes por segundo” –,
pois eles revelam histórias onde o filme também é o documentário de
sua própria filmagem. São nestes momentos de suspensão que as per-
sonagens ganham em complexidade e densidade, liberando o filme que
fazem para uma espécie de falha, de ranhura, de inconsistência. Não resta
dúvida que essas imbricações entre o documentário de cunho social e as
experimentações de linguagem, de meios, de métodos, não qualificam
nem desqualificam, a priori, filmes, obras ou projetos. Há que se estudar
caso a caso, claro, e o que interessa, nos limites deste artigo, é que existem
consequências estéticas e políticas nessa hibridação.
Brasis imaginados
Há nos documentários de Bambozzi e Nader uma pesquisa sen-
sorial e plástica que busca enlaçar os múltiplos imaginários do Brasil,
longe de estabelecer uma falsa totalidade ou de querer retratar o país
com o mote “o Brasil que o Brasil não conhece”. Destacaria o modo
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pensa. É ela que obriga a refletir, a separar prós e contras. Mesmo uma
pergunta inocente, como a direção de uma rua, faz o inquirido parar,
interromper o fluxo de seus pensamentos e, ao aceitar respondê-la, o
obriga a desenhar um “mapa mental” onde passará a buscar o local
procurado. É por causa de seu decisivo poder de corte, de sua “afiação”,
que a pergunta é tão mais poderosa quando, certeira, pede apenas duas
respostas, o sim e o não – a aquiescência à resposta implicando, por sua
vez, um grau de comprometimento sem volta possível.
Sem dúvida certas situações podem restringir a ação – e, portanto,
a força – do inquiridor. Assim, diz Canetti, as formas da civilidade impe-
dem que se façam certas perguntas a um estranho; enquanto manter-se
nessa reserva dá a este a sensação de ser respeitado – e, portanto, de ser
mais forte. É o suposto equilíbrio de forças propiciado por tal distância
que permite a convivência entre os homens.
Canetti opõe dois tipos de pergunta, segundo a distribuição de
poder na qual operam: a pergunta dirigida aos mais fortes, pergunta
“suprema”, “colossal”, que diz respeito ao futuro e é endereçada aos
deuses; desobrigados de responder, eles podem também dar respostas
ambíguas, difíceis de decifrar. No polo oposto, a pergunta endereçada
ao mais fraco, cuja situação extrema é o interrogatório que obriga à
resposta sob pena de tortura e morte.
De acordo com esse ponto de vista, o ato de perguntar implica,
como todo exercício de força, a constituição de uma estratégia; e esta
desencadeará, por sua vez, no campo do inquirido, o uso de procedi-
mentos ou de “métodos” de defesa: responder com outra pergunta,
usar da astúcia para desencorajar o inquiridor, recorrer ao silêncio são
alguns dos mecanismos que o inquirido pode acionar para se opor à
intromissão da pergunta.
Além de obter a satisfação de seu desejo, o efeito das pergun-
tas sobre o inquiridor é, naturalmente, o aumento de sua sensação de
poder, observa Canetti. O que provoca nele a vontade de fazer mais e
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O lugar do político
É essa dinâmica instituída pela pergunta – o exercício do poder, por
um lado, e o acionamento de mecanismos de defesa, por outro – que o
cineasta Glauber Rocha explora na série de “entrevistas” postas em cena
nos anos 1979-1980, ao longo de sua intervenção no programa Abertura
da TV Tupi.1 Ao participar desse programa que tirava proveito do pro-
cesso de abertura política para incrementar o debate democrático no país,
o diretor de cinema, que sempre acreditara na importância da televisão,
aproveitava-se de seu tempo de antena para uma intervenção política ra-
dical, tanto na forma quanto no conteúdo. Intervenção na qual o uso da
forma-entrevista – ou melhor, a “política” da pergunta –, ao encenar as am-
bíguas relações de poder da sociedade brasileira, não se limitava a deslocar
o eixo do debate que então se travava, buscando ainda pôr em discussão
uma série de temas (o cinema, a literatura, a psicanálise...) que visavam
destacar o papel decisivo da dinâmica cultural naquele momento político.
Como Rosselini tinha apostado, em seu tempo, no uso pedagó-
gico da televisão, Glauber estava apostando no seu uso político ao pôr
o poder de comunicação desse veículo a serviço da incipiente abertura
democrática – tema que já vinha evocando com insistência em suas
intervenções públicas desde o final dos anos 1970. Mas para o autor de
Estética da fome, que nunca separou estética e política, pôr a proveito a
1 Abertura foi ao ar de fevereiro de 1979 a julho de 1980 na rede Tupi de Televisão, dos Diários
Associados, com direção geral de Fernando Barbosa Lima e direção de imagem de Alberto Loffler.
Regina Mota relata que ele reuniu um dos melhores times de intelectuais, artistas e jornalistas jamais
mostrados pela TV brasileira e foi o primeiro, depois do período da censura, a abordar aspectos
políticos da realidade brasileira. O programa era composto por vários quadros, cada um apresentado
por uma pessoa. Ele fornecia o equipamento e liberdade para a concepção de cada um. Barbosa
Lima editava, a partir do material que recebia. À precariedade da produção modesta correspondia
a liberdade de expressão de ideias e do tratamento televisual. Ver Regina Mota, A épica eletrônica de
Glauber Rocha - Um estudo sobre cinema e TV. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2001.
101
“O povo no poder”
Em seu livro A épica eletrônica de Glauber Rocha, Regina Mota enume-
ra algumas das rupturas das normas televisivas que o diretor promoveu,
relacionando-as de preferência com o cinema e com a linguagem cinema-
tográfica que ele tanto inovou. Aqui se trata de considerar o programa
de Glauber do ponto de vista de seu embate direto com a televisão e,
particularmente, com a linguagem da informação.
A postura de Glauber se contrapunha à clássica oposição entre
redação e rua, que fixara dois regimes de linguagem para a informação.
Na redação, a estabilidade do quadro, a pequena variação dos ângulos de
tomada, a “boa” distância da câmera (nem muito perto nem muito longe),
a disposição equilibrada dos jornalistas no centro do quadro e sempre atrás
da mesa “de trabalho”; as vozes pausadas e o olhar para a câmera (em
geral duas e não mais), a redação (ou o logo da emissora) como fundo, o
corte harmônico e em sintonia com o olhar/câmera – tudo concebido para
2 Glauber se valia da imprensa para abordar temas da atualidade. Além de servirem como “fon-
te” – em geral criticada –, jornais e revistas e também livros se prestavam a experimentos com o
uso da palavra impressa na tela; ademais, ao movimentá-los criava uma nova dinâmica no quadro,
usando-os, como notou Regina Mota, como elementos internos da edição para “cortar” e “montar”.
105
As vozes
Glauber foi sempre uma figura forte, de opinião, que fez valer
sua persona em inúmeras circunstâncias. Também evocamos o termo
“personagem” a propósito de sua atuação. Mas algo a mais se passa
nessa entrevista, algo que se repete também nas várias intervenções
do nordestino Severino – na verdade o responsável pelos cabos no
programa, que aparece muitas vezes em vez de ficar detrás da câmera,
é entrevistado e assume diferentes papéis. Agora é hora de precisar que
não se tratava propriamente de “persona”, nem de “se fazer personagem”
– como é hoje tão corriqueiro – mas de uma operação de outra ordem.
Para tanto, há ainda um longo caminho a percorrer.
Como Glauber tem uma concepção política da entrevista, ele a utiliza
para explicitar uma relação desigual de forças, utilizando criticamente a
distância que o separa do entrevistado para expor as relações de poder na
sociedade brasileira. Atuando na contracorrente dos jornalistas sempre
“amáveis” com o entrevistado, que agem como detentores de um man-
dato do leitor e como se fossem, eles próprios, isentos de opiniões e de
compromissos, Glauber sempre manifestava sua opinião; além de assumir
a distância que o separa de seu entrevistado, ele tomava a pergunta “como
a faca que corta na carne do outro” para pôr em evidência as formas que
assume a dinâmica do poder na sociedade brasileira. Em vez de entrevista,
propriamente, trata-se do recurso à forma-entrevista para uma mise-en-scène
do exercício do poder e dos seus diferentes discursos, por um lado; por
outro, das modalidades de fuga ou das formas de resistência a ele.
A entrevista anunciada fazia esperar o líder Leonel Brizola, então
no exílio. Mas esse é o apelido de um negro favelado, apostador de cavalos
e torcedor do Flamengo. No lugar do branquíssimo caudilho populista,
109
3 Glauber pode inverter a situação, quando é ele o entrevistado. Na entrevista que concedeu a
Célia Portela, sua crítica à figura do jornalista é arrasadora. O espaço fechado não se identifica
– talvez seja uma sala de montagem. A jornalista, toda maquiada, está sentada num banquinho
giratório – o que já rompe com qualquer “estabilidade” da parte de quem pergunta. Glauber
vai, de fato, fazê-la “balançar”: não apenas “literalmente”, mas no seu papel de entrevistadora.
Não responde sua única pergunta e fala do que bem quer, brandindo a revista Veja no ar. De
pé, não para de se movimentar, obrigando a câmera a persegui-lo e impedindo que se constitua
“a cena” da entrevista: é praticamente impossível captar os dois interlocutores juntos; muito
112
menos a jornalista, patética no seu silêncio constrangedor. Quando Glauber finalmente “pede” a
pergunta, a jornalista já perdeu o pé. Sem ação, ela conclui que “está respondida a sua pergunta”
e ele ordena, como diretor: então corta, porque já acabou....
113
A “virada subjetiva”
São grandes as transformações que o Brasil conheceu a partir dos
anos 1980, quando Glauber encerrou sua participação no Abertura. Elas
não se limitam ao fim da ditadura, com todos os seus desdobramentos,
mas derivam também da conjuntura mundial: com a globalização, a queda
do muro, o mundo se redimensionou do ponto de vista econômico e
político, transformando-se profundamente o vínculo entre representação
cultural e imaginário político. Os novos temas e as novas problemáticas
que emergiram no campo cultural pediram novas posições dos criado-
res, dos intelectuais. No cinema, essas transformações vêm mostrando
a necessidade de se pensar, do ponto de vista crítico, uma redefinição
do estatuto do político nos filmes.
O que caracteriza a produção cultural das últimas duas décadas
e meia é sua filiação ao que a crítica Beatriz Sarlo chamou de “virada
subjetiva”, que se manifesta tanto como tendência acadêmica quanto no
mercado de bens simbólicos e se propõe a reconstituir “a textura da vida”,
a verdade contida na rememoração da experiência, a promover tanto a
valorização da primeira pessoa como ponto de vista, quanto a reivindi-
cação de uma dimensão subjetiva. “A atualidade é otimista” – escreve a
crítica – “e aceitou a construção da experiência como relato na primeira
pessoa, até mesmo quando não acredita que todos os demais relatos
possam remeter de modo mais ou menos pleno ao seu referente”. Por
isso, nota ela, “se multiplicam em diferentes formas as narrações chama-
das de não-ficcionais nos jornais, na etnografia social e na literatura: são
testemunhos, histórias de vida, entrevistas, autobiografias, recordações
e memórias, relatos identitários”.
Sarlo observa que a dimensão intensamente subjetiva, “um verda-
deiro renascimento do sujeito que se acreditava morto nos anos 1960 e
1970”, é uma das características do presente, o que acontece igualmente nos
discursos cinematográfico, plástico, literário e midiático. “Um movimento
de devolução da palavra, de conquista da palavra e de direito à palavra se
114
5 Citado por Consuelo Lins. O próprio diretor evoca a metafísica ao descrever a filmagem como
“momento único, não houve antes, não há depois”; o que pode ser relacionado, numa outra
chave, com outra de suas afirmações: “O que o outro diz é sagrado.”
117
que costuma ser evocado. O que leva de imediato à pergunta: seria o en-
contro propiciado pela entrevista, aquela “experiência única” (expressão
também do diretor) vivida no ato de filmar, o responsável pela anulação
da diferença? Com certeza a “igualdade” alcançada por Coutinho não
se mede pelos mesmos parâmetros que aferem a “diferença” fundadora
do político. Mas se ela se realiza em outro plano, numa dimensão que
não é aquela em que a diferença se manifesta, é porque o político, no
cinema de Coutinho, passa para o terreno da utopia.
6 É nesses termos que Cezar Migliorin define o dispositivo em sua análise dessa mesma obra:
http://www.estacio.br/graduacao/cinema/digitagrama/numero3/cmigliorin.asp
118
Cao revela as linhas grosseiras por meio das quais fomos “esboçados”
(pela história? pela sociedade? pela cultura?), nossa baixa “definição”,
os conteúdos “comuns” partilhados por tantos, nossa unidade impos-
sível. Somos ao mesmo tempo “muito pouco” e “muitos” – ou seja,
não sabemos quem somos; e o que o dispositivo faz é a mise en abîme da
identidade, revelando-a como construção (histórica, cultural, ideológica).
Um dos participantes parece levar o dispositivo até as suas últimas
consequências. O poeta negro, para quem ser recebido na casa de um
desconhecido, que generosamente lhe abre as portas e deixa à vista sua
intimidade, é um gesto comovente. Ele não chega a elaborar um retrato
de seu personagem; acumula perguntas, aponta sinais, se angustia com a
força do mistério desse outro ausente. “Quem será ele?” “Quem somos
nós?” São as únicas perguntas enunciadas no vídeo – a primeira reatando
com aquela que pôs o dispositivo em ação e a última “encerrando” o
experimento do poeta, e dando por encerrada a função do dispositivo.
Em Rua de mão dupla não há pergunta formulada ao outro, no
sentido da entrevista. ”Chega-se” a uma pergunta, se levarmos em con-
ta esta que o personagem endereça a si mesmo. Ora, esta não é mais
uma pergunta que se faz no registro do poder, mas justamente porque
foi perdido o poder que estávamos certos de deter, no mais fundo de
nós – o de sabermos quem somos. Uma pergunta que só pode ser feita
quando já se sabe que ela não tem resposta.
Onde estaria, agora, o político? Ao que parece, ele é acionado pelo
próprio dispositivo, que põe em dúvida a suposta unidade, a identidade; e
pela própria estratégia narrativa do documentário, por sua vez constituída
pelo dispositivo. Dispositivo de mão dupla, portanto, capaz de operar,
ao mesmo tempo, como experimento e narrativa, para quem participa,
e como narrativa e experimento para o espectador.
*
121
A câmera lúcida
José Carlos Avellar
interpreta, mas sim o jovem que interpreta. Este quase-ator não faz
parte da cena, mas está numa outra cena que se superpõe àquela que
interpreta, está em cena como a pessoa que realmente é. Está presente,
visível, mas como se fosse o fora de quadro da cena, como se fosse
apenas uma sombra do que realmente se encontra na luz do ponto
de vista dramático. Sem perder de vista a luz, vemos a sombra. Isto
que, numa ficção, desmontaria a encenação – o ator, por uma razão
qualquer, mais aparente que o personagem que interpreta –, aqui, ao
contrário, torna a cena mais expressiva.
O espectador é solicitado a estabelecer uma outra relação com a
imagem: juízes, procuradores, defensores, inspetores, familiares, as pes-
soas reais na Vara de Justiça e no Padre Severino, são percebidas como
fragmentos de realidade usados, digamos assim, para montar uma quase
ficção. Como é normal no cinema, o sentido da imagem ultrapassa o
simples reconhecimento da forma. O registro, o pedaço de cena real
registrado é a matéria bruta para a construção de uma representação,
uma composição cinematográfica. A realidade, uma vez transposta para
a imagem do filme, passa a existir como ficção.
Ao contrário, os intérpretes que repetem as respostas dos me-
nores infratores no julgamento real são fragmentos de ficção usados,
digamos assim, para ultrapassar a carga de encenação que possuem e
retornar à realidade que originou a cena. A ficção, ao mesmo tempo
em que não deixa de ser o que efetivamente é, uma encenação, deixa
de ser o que é para se transformar num registro vivo: documenta a
realidade do quase-ator, capaz de reconstituir uma experiência real-
mente ocorrida porque direta ou indiretamente ela também foi vivida
por ele. O infrator, o que esteve de verdade no banco dos réus, é seu
outro eu. Ao interpretar o outro, cada um dos jovens não-atores inter-
preta a si mesmo. A grande semelhança entre os meninos e meninas
vistos de costas na sala de audiências e os meninos e meninas que se
voltam para a câmera cara a cara não se deve a nenhum especial efeito
129
uma hipótese, uma dúvida, para deflagrar (e flagrar) a cena real que se
produz a partir da pergunta. Cena real que se produz porque o cinema
se insere na realidade, provoca a cena. Que se produz essencialmente
como cena de cinema, embora o cinema, depois de provocar a cena,
não tenha mais controle sobre ela.
A pergunta pode provocar uma cena, um instante, um encontro,
como os filmados por Coutinho em Edifício Master. Instante em que
uma pessoa resume sua experiência num depoimento: Henrique conta
como foi importante subir no palco e cantar um verso de My way ao lado
de Frank Sinatra – os versos da canção contam a história dele. Esther
conta como se desesperou ao ser assaltada e como ainda hoje sofre com
a lembrança do roubo. Antônio Carlos fala da timidez, da gagueira, da
infância pobre e explica como foi importante receber o reconhecimento
de seus méritos pelo chefe de seu departamento.
A pergunta ou hipótese formulada por um documentário pode
flagrar um instante em que se define a experiência que as personagens
vão viver a partir daí, como as audiências na Segunda Vara de Justiça do
Rio de Janeiro, filmadas por Maria Augusta em Juízo.
A pergunta pode ainda gerar um instante qualquer, um instante
que não condensa uma experiência vivida nem antecipa uma experiência
por viver. A pergunta pode não querer como resposta nada além do que
se produz, ou não, por acidente naquele exato momento, como occorre
na conversa de beira de estrada surpreendida por Cao Guimarães em
Andarilho (2006) – o estrondo que vem do céu bate na imagem como
uma resposta zangada às ofensas de um dos andarilhos contra Deus.
A pergunta que Coutinho propõe a Daniela talvez possa ser retirada
do preciso contexto em que se faz (ele queria saber porque ela conversava
com ele mas não olhava para ele) para representar algo que se encontra
na raiz do gesto documentário, empenhado em construir uma realidade
outra para representar a realidade diante da câmera: “Posso perguntar uma
coisa? Por que a gente conversa e você não olha para mim?”
142
exagero é possível dizer que Sandra escreveu um filme não para filmá-lo
assim como anotado, mas para estimular na filmagem a invenção de um
processo cinematográfico semelhante ao processo de criação literária de
Guimarães Rosa. Uma adaptação mais fiel ao escritor, a seu modo de
se relacionar com o sertão e as pessoas, do que ao texto propriamente
dito (“Não é exatamente uma adaptação, acho que é mais uma conversa
com o livro”). Mais conversa do que texto – por isso a decisão de não
mostrar o roteiro a ninguém, nem aos intérpretes, nem à equipe técnica
(“Tudo foi transmitido oralmente”).
Na filmagem, um certo quê de cinema documentário. Intérpre-
tes não-profissionais escolhidos entre gente da região (“As crianças e
os vaqueiros nunca haviam ido a um cinema”). Reunidos na fazenda
onde a história acontece, foram convidados a viver a história com seus
nomes verdadeiros, e não com os dos personagens de Guimarães Rosa
(“O trabalho dos intérpretes se construiu a partir da proximidade entre
a vida deles e a de seus personagens”). Em improvisações estimuladas
pela diretora, deixaram-se filmar (quase exatamente) assim como são.
A ficção, aqui, para se realizar como ficção e não para fingir que é outra
coisa, estimulou a mais ou menos livre invenção de situações não-con-
troladas pela câmera. De certo modo, a ficção de Mutum documenta a
rotina de uma fazenda que continuou funcionando durante as filmagens
(“Cuidavam dos bichos, capinavam, trabalhavam juntos com as roupas
deles, brincavam os brinquedos também”).
O Tiago do filme, por exemplo, é em parte o protagonista da história
de Guimarães Rosa e em parte ele mesmo, Tiago da Silva Mariz, menino
de dez anos que não sabia o que era cinema e que não ouvira falar de
Guimarães Rosa, e em parte o Tiago que interpreta no filme. Todo esse
cuidado (chamemos assim) documental não resulta de uma preocupação
etnográfica, mas de um processo de conhecimento dos personagens ins-
pirado no texto do escritor, esclarece a diretora. Nos livros, Guimarães
Rosa “documenta” (“Muitos detalhes da natureza, da vida no sertão”) em
145
forma de ficção (“O texto não é descritivo, tudo ali fala do mundo interno
dos personagens, as paisagens do livro são para mim paisagens internas”).
Na contramão do confessional:
O ensaísmo em Santiago, de João Moreira
Salles, Jogo de cena, de Eduardo Coutinho,
e Pan-Cinema Permanente, de Carlos Nader
Ilana Feldman
1 A esse respeito, ver FELDMAN, Ilana. “O apelo realista”, in: Revista FAMECOS, Dossiê
“Menções de Destaque” - Compós 2008”, Porto Alegre, n.36, 2008.
151
2 “Para ser espectador é preciso aceitar crer no que vemos; e para sê-lo ainda mais seria preciso
começar a duvidar – sem deixar de crer”, escreve Jean-Louis Comolli em Ver e poder.
152
“por trás do pano”, pois tudo o que há, no âmbito do filme, é a verdade
do cinema, a realidade do pôr-em-cena e a autenticidade-em-encenação,
vem dialogar com uma tradição em cujo centro se encontrava o problema
da verdade e da palavra. Tal como a máscara da tragédia grega, que oculta
ao mesmo tempo em que revela, ou revela justamente porque oculta, as
renovadas práticas interativas, reflexivas e ensaísticas, filiadas à tradição
do cinéma verité francês, têm semeado a ultrapassagem – não desprovida de
tensão e de problematização – das dicotomias tão caras à nossa tradição
de pensamento socrático-platônica, como os pares essência-aparência,
profundidade-superfície, autenticidade-encenação e realidade-ficção.
Antes de prosseguirmos, cabe salientar que, ao afirmar tal ultrapas-
sagem, não se trata de dizer que a verdade e a autenticidade não existam,
ou que elas sejam uma farsa, uma dissimulação. Esta perspectiva seria um
tanto ingênua, se não fosse também cínica, pois parte do pressuposto –
novamente remetido a nossa herança metafísica – de que toda encenação é
negativamente falsificante. Ao contrário dessa visada, ainda hoje hegemoni-
camente compartilhada, deve-se compreender a verdade e a autenticidade,
no âmbito da linguagem audiovisual, como um efeito de uma construção
que se dá em relação e em reação à câmera. Desse modo, a câmera deixa
de ser somente um instrumento de captação ou registro para tornar-se,
simultaneamente, um instrumento de catalisação e de produção das verda-
des dos personagens. Como já dissera o “mestre dos mestres” Jean Rouch,
para quem a ficção era o único caminho para se penetrar a realidade, “a
câmera não deve ser um obstáculo para a expressão dos personagens, mas
uma testemunha indispensável que motivará sua expressão”3.
Aí está, portanto, a função produtiva da interação reflexiva pro-
posta por João Salles e Eduardo Coutinho, intervenção como condição
3 Citado por Felipe em “Mestres dos mestres”, Contracampo, 2004. Disponível em: http://www.
contracampo.com.br/58/jeanrouch.htm. Decerto, trata-se aqui, diferentemente do ideal de
“testemunha ocular” do cinema-direto norte-americano, movimento aliás bem mais complexo
do que as leituras posteriores nos fazem acreditar, de um outro tipo de testemunha, espécie de
“estimulante psicanalítico”, segundo Rouch, com o qual é possível interagir.
153
lacunas, apesar de todos os riscos, que é possível trabalhar com elas” (para
emprestar a expressão de Consuelo Lins e Cláudia Mesquita). Ao privilegiar,
portanto, determinadas aproximações e recortes em detrimento de tantos
outros, que, por força do caráter sintético de um texto e da complexidade
dos objetos, ficam obscurecidos, opta-se por uma entrada também parcial,
contingente e lacunar nos universos fílmicos. Após a negatividade fun-
damental de que parte Dom Casmurro, em que o fundamento do sujeito
não se encontra no cogito, mas justamente naquilo que lhe escapa ou que
lhe falta (tal como o “sou onde não penso” lacaniano), há que se crer que,
assim como acontece com as imagens, aquilo que se oculta de um texto –
seu contracampo, seu negativo – é tão revelador quanto aquilo que se diz.
4 Em seu mais recente filme, Moscou (2009), sobre o acompanhamento dos ensaios da peça “As
três irmãs”, de Tchekov, pelo grupo teatral Galpão, Eduardo Coutinho aprofunda a investigação
da linguagem. Subvertendo seus métodos e procedimentos usuais (o emprego da entrevista e a
presença de homens e mulheres “comuns”) e debruçando-se radicalmente sobre si, Coutinho
rompe qualquer ligação com o referente, a ponto de a “documentação” do processo de ensaio
“real” ser completamente enredada pelo texto ficcional. Ver Ilana Feldman, “Moscou: do ina-
cabamento ao filme que não acabou”. Revista Cinética, abril de 2009. Disponível em: http://
www.revistacinetica.com.br/moscouilana
156
5 Etimologicamente, a aletheia grega é formada por a+lethé, isto é, a negação (o prefixo “a”)
daquilo que estaria oculto, obscurecido ou esquecido (“lethé”). A verdade, portanto, em grego,
está etimologicamente relacionada à memória.
157
6 Ver Maria Rita Kehl, Deslocamentos de feminino (Imago, 2008). Segundo Kehl, a personagem Mada-
me Bovary, centro de seu estudo, teria posto fim à sua vida porque não conseguira escrever, não
conseguira tornar-se autora – de textos, cartas, poemas – e, afinal, da própria vida. No entanto,
se Emma Bovary sucumbiu, algumas personagens de nossa moderna literatura conseguiram criar
outras perspectivas narrativas, tal como a pintora do romance Água viva, de Clarice Lispector, para
quem, aliás, ao fundo de cada cor nada haveria por trás: “Não quero ter a terrível limitação de
quem vive apenas do que é passível de fazer sentido. Eu não: quero é uma verdade inventada.”
7 A temática da promessa e da esperança é também colocada pela personagem GH, de Clarice
Lispector: “Prescindir da esperança significa que eu tenho que passar a viver, e não apenas a me
prometer a vida (...) [Mas] eu preferia continuar pedindo, sem a coragem de já ter.”
8 Temos a impressão de que a não-adesão, por parte de alguns críticos, a Moscou (2009), de
158
Eduardo Coutinho, advém desse impasse da linguagem que o filme coloca. Para além de sua
estrutura dispersiva (e não mais concentrada, como em seu cinema pautado pela entrevista), em
Moscou a linguagem deixa de ser revelatória, deixa de repor a singularidade dos sujeitos falantes
(nos termos em que a crítica valorizava até aqui o trabalho de Coutinho) para alcançar, por
meio da ficção, sua autonomia – que, no limite, dissolveria a ideia de sujeito singular, já que as
biografias dos personagens (ficcionais ou não) são partilhadas e os enunciados coletivizados.
9 Ver Mariana Baltar, “Pacto de intimidade – ou possibilidades de diálogo entre o documentário
de Eduardo Coutinho e a imaginação melodramática”. (Compós, 2005).
159
Na contramão do confessional:
a impossibilidade de acesso à “verdade” e ao “real”
Em um momento histórico marcado por uma “indústria da pri-
meira pessoa”, quando a exposição da intimidade e a declaração de uma
unívoca “verdade sobre si” são tiranicamente requeridas e demandadas,
Santiago e Jogo de cena, por meio da opção pelo ensaísmo documental, em
que, como vimos, está em jogo o privilégio da opacidade e a tensão entre
as subjetividades e seus horizontes ficcionais, livram-se da estabilidade
e da unidade de “eus já acabados”, escovando a contrapelo “a eloquên-
cia do confessional midiático”.11 Essa forma de astúcia parece dialogar
criticamente, conscientemente ou não, com a histórica concepção do
interior do sujeito como lugar privilegiado da autenticidade e da verda-
de, uma perspectiva que se tornaria fundamental na cultura moderna
e que hoje estaria em mutação, em função de tendências confessionais
exibicionistas e performáticas, em um mundo saturado de estímulos
visuais, de acordo com o argumento do livro O show do eu – a intimidade
como espetáculo, de Paula Sibilia.
Das confissões nos séculos IV e V de Agostinho, o inventor das
primeiras metáforas cristãs da introspecção e da autoexploração, pas-
sando pela secularização da ideia de interioridade por meio das virtudes
autorreflexivas da escrita ensaística de Michel de Montaigne no século
XVI, ao regime da autenticidade na criação de si e na interação com os
outros, pleiteado pelas confissões de Jean-Jacques Rousseau em meados
do século XVIII, poderíamos afirmar que aquilo que modernamente
foi se consolidando como a intimidade burguesa, espaço privado onde
residiria a verdade mais recôndita de cada um de nós, é colocado em
xeque, e no centro da cena, por Santiago e Jogo de cena. Assim, enquanto
Eduardo Coutinho coloca, em Jogo de cena, a cena na sede por excelência
do espetáculo, o teatro – pela primeira vez, aliás, em sua obra, descon-
textualizando os espaços sociais e geográficos em que habitam seus per-
12 “Hoje essa técnica [a confissão] tão eficaz brilha com novas roupagens nas telas eletrônicas
da internet e da televisão, bem como nas páginas coloridas das revistas e dos jornais. Assim, no
século XXI, a confissão se torna midiática.”
163
13 Tal como ensina a “ensaísta” GH, de Clarice Lispector, para quem o erro é um de seus fatais
modos de trabalho: “E não me esquecer, ao começar o trabalho, de me preparar para errar (...),
pois só quando erro é que saio do que conheço e do que entendo.”
167
“Conhecimento, seja.
Mas sempre tão recente
que apenas se desprende
do não-conhecimento.”
(Duda Machado)
Não há, contudo, a ilusão de que basta olhar o mundo para que ele se
revele aos nossos olhos: objetivo e transparente. Nada é puro, natural.
Apesar de seu aparente naturalismo, estas são paisagens eletrônicas,
acontecimentos mediados, mundos que só podem emergir entre: o evento
e sua dissolução em pixels. A paisagem eletrônica, que se produz entre o
artifício e a natureza, é ainda uma paisagem temporal. Nela, a duração
possui uma dimensão estética, mas também política. No caso da obra
de Marcellvs, é a duração que nos permite entrever no mundano, no
banal, no ordinário, sua potência inaudita. E se o acontecimento é raro
– ao contrário do que nos querem fazer crer os telejornais – é porque
ele precisa da duração, em sua multiplicidade de tempos desordenados,
para acontecer.
Em sua estranha banalidade, esses eventos só ganham visibilidade
porque a imagem dura, daí o seu caráter excessivo. Há, em man.road.river,
uma intrigante confluência entre a espera do artista, a precisão na captura
das imagens e a aleatoriedade do que acontece. O evento é justamente
o que transborda o cálculo do artista, a expectativa do espectador. Ele
é tão excessivo quanto raro, sua apreensão é tão fortuita quanto difícil.
O tempo no qual está imerso é, em certo sentido, um tempo suspenso,
tempo extraído do fluxo do tempo. Mas ele é também um segmento
que dura e que, em sua duração, preserva o excessivo do evento, sua
heterogênea singularidade.
O pensamento que deriva dessa imagem, que dura em sua eventu-
alidade, é um pensamento precário, indissociável do acontecimento: se
desenvolve enquanto acontece, enquanto dura. A imagem será cortada,
mas, antes e depois do corte, o pensamento vinha e agora continua,
atravessa.
Há também um transbordamento em Herança, filme de Thiago
Rocha Pitta: um barco está abandonado em alto mar com duas pequenas
árvores plantadas em seu interior. A câmera acompanha sua deriva em
um instável plano-sequência de 11 minutos. Na verdade, o que deriva
176
não é um barco, mas uma obra: alguém esteve ali, plantou as árvores na
embarcação e saiu de cena, deixando apenas os vestígios (as forças e os
desdobramentos) de sua intervenção. A duração da imagem nos permite
testemunhar lentamente este estranho abandono. À medida que o vídeo
se desenvolve, pouco a pouco, a câmera se afasta, e, com isso, vai-se
distanciando também o gesto do artista em embate com a natureza. Até
que, a partir de certo momento, vez ou outra, o barco some, tomado pelo
movimento das ondas, e, brevemente, vemos apenas as árvores plantadas
em alto mar. Como se, por meio do artifício do artista, acabássemos por
reencontrar uma natureza inaudita.
Em alguns aspectos, os filmes de Rocha Pitta – podemos citar
ainda Homenagem a JMW Turner (2002) e Fonte dupla ou Paisagem cozida
(2005) – guardam semelhanças com os videorizomas de Marcellvs L. Em
todos estes trabalhos, a duração é o que permite a experiência do tempo
(e da paisagem) em sua heterogeneidade. Neles, também se percebe o
embate entre filme e natureza, entre o enquadramento e o que o excede.
Percebe-se ainda o caráter contingencial das imagens, em uma economia
que privilegia o momento da captação, em detrimento da pós-produção.
Por fim, diríamos que há em comum entre eles a recusa à explicação, em
imagens que se apresentam em sua “força de aparição”.
Mas se nos videorizomas o embate entre imagem e natureza se
dá por meio de uma espera, ou melhor, de uma atenção desatenta, nos
filmes de Rocha Pitta os eventos são provocados pelo artista. O que
a imagem capta será então o naufrágio do artifício no ambiente natu-
ral, o gesto irônico do artista que intervém para depois, novamente,
ser tomado pela passiva grandiosidade do mar. Apesar de seu caráter
explícito de artifício, essa intervenção física, material, no domínio da
natureza, não resulta em imagens calculadas, mas em descontrole,
transbordamento, excesso.
Bem diferente é a estratégia de Rafael Lain e Ângela Detanico em
Flatland. Nesse vídeo digital, o embate com a natureza também é pre-
177
Pensamento branco
A imagem branca, estourada, torna essa uma paisagem indecisa.
Em primeiro plano, se esboça a figura de um homem que, muito len-
tamente, entra no quadro e ali permanece por um longo tempo. Aos
poucos, percebemos que ele pesca. Entre uma e outra tentativa, contudo,
apenas os movimentos do corpo, que se repetem. Se em Man.Road.River
a câmera é fixa, precisa, neste outro vídeo de Marcellvs – Man.Canoe.
Ocean (2005) – a precisão não se sustenta, desequilibrada pelo balanço
da embarcação ao longe. Um homem insiste em pescar, mas o que
consegue é pouco, quase nada. Se há uma urgência para o pensamento
ensaístico é a de nos levar para o mar alto, nos retirando, momentane-
amente, o chão de nossas certezas. Mas, em via inversa, é ele que nos
permite criar, inventar novamente os caminhos que nos trazem de volta
à terra (nunca a mesma, sempre outra terra). As imagens são parte dessa
experiência que nos leva do acontecimento à sua rarefação e, de novo,
à possibilidade do acontecimento.
Em O Amante da China do Norte, de Marguerite Duras, o barco dei-
xa o Rio Mekong em direção ao mar. A criança observa um rapaz com
sua câmera fotográfica a tiracolo: “Fotografava as pontes. Pendurava-se
para fora da amurada e fotografava também a proa do navio. Depois
fotografava apenas o mar. Depois mais nada”.
180
181
Moreira Salles e Kátia Lund; O rap do pequeno príncipe contra as almas sebosas (2000), de Paulo Caldas
e Marcelo Luna; Ônibus 174 (2002), de José Padilha; O prisioneiro da grade de ferro: auto-retratos
(2003), de Paulo Sacramento; À margem da imagem (2003) e À margem do concreto (2006), ambos
de Evaldo Mocarzel; Falcão: meninos do tráfico (2006), de MV Bill e Celso Athayde.
3 RAMOS, Fernão Pessoa. Mas afinal...o que é mesmo documentário? São Paulo: Senac, 2008, p. 211.
184
que não tem parcela” (segundo a expressão de Jacques Rancière). Por mais
“inclusiva” que essa representação queira ser, sempre sobrará, fora dessa
conta, a parcela não-incluída. A conta das partes do todo da comunidade
restará sempre mal-feita. É por um outro viés, portanto, que gostaríamos de
abordar a questão da representação do “popular” (que não é senão – como
explicaremos mais adiante – apenas uma das diversas figurações que tomou
o homem ordinário no documentário brasileiro recente).
11 AGAMBEN, Giorgio.El ser especial. In:___. Profanaciones. Buenos Aires: Adriana Hidalgo,
2005, p. 75.
189
12 DELEUZE, Gilles, GUATTARI, Felix. Ano zero: rostidade. In:___Mil platôs. Capitalismo
e esquizofrenia, vol. 3, Ed. 43, 1996, p. 31-62.
13 COMOLLI, Jean-Louis. Os homens ordinários, a ficção documentária. In: SEDLMAYER,
Sabrina; GUIMARÃES, César; OTTE, Georg (org). O comum e a experiência da linguagem. Belo
Horizonte: Ed. UFMG, 2007, p. 128.
190
19 Pensamos aqui nas passagens em que Gilles Deleuze, ao falar das diferenças ente o cinema
político clássico e moderno, dedica aos filmes de Resnais, Straub, Glauber Rocha, Pierre Per-
rault e Jean Rouch, dentre outros. Cf. DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo.São Paulo: Brasiliense,
1990, p. 257-266. Entre nós, talvez a última aparição dessa figura do “povo que falta” tenha
sido em Cabra marcado para morrer, de Eduardo Coutinho (1984).
20 RANCIÈRE. A partilha do sensível. Estética e política. São Paulo: Ed. 34, 2005, p. 49.
193
A superfície do cotidiano 1
por uma defesa da radicalidade da arte concebida como “potência singular de presença, de
aparição e de inscrição”, que rompe com a experiência ordinária. (Ver Rancière, Malaise dans
l’esthétique). Apoio-me aqui na leitura e sistematização realizadas por César Guimarães no dossiê
do II Simpósio Comunicação e Experiência Estética.
5 Refiro-me ao projeto “Uma encruzilhada aprazível”, bastante preciso em sua proposta de
objetos e abordagem, apresentado por Vasconcelos ao concurso público DOCTV III, no
202
Ceará, em 2006. Sou grata à equipe do DOCTV nacional pelo acesso à cópia do filme, e a Ruy
Vasconcelos por disponibilizar gentilmente o projeto escrito.
6 Refiro-me à noção exposta no capítulo IV (“O realismo revelatório e a crítica à montagem”)
de O discurso cinematográfico – a opacidade e a transparência, de Ismail Xavier. Segundo esta concep-
ção, a experiência imediata e a realidade palpável do cotidiano devem ser “núcleo e limite da
verdade humana a ser revelada pelo testemunho do cinema”. Para Kracauer, por exemplo, o
filme “realista” se caracterizaria pela recusa de um princípio organizador que imprimisse “um
sentido definido ao desenvolvimento dos fatos” na montagem. Impossível representar o mundo
como totalidade organizada porque ele é fragmentado, assim como a consciência que temos
dele – melhor investir na “experiência do momento singular e do ‘pequeno fato’”. A “ginástica”
conceitual que efetuo nesta sugestão de analogia é de minha inteira responsabilidade, já que
me valho de conceitos engendrados em outros contextos e propostos, de modo geral, para a
produção ficcional.
7 Tentei uma caracterização geral e panorâmica do “documentário da retomada” no texo “Ou-
tros retratos: ensaiando um panorama do documentário independente no Brasil”. Consuelo
Lins e eu retomamos a discussão no artigo citado, sobre aspectos do documentário brasileiro
contemporâneo, e no livro Filmar o real.
203
8 Concepção oposta àquela de “realismo de presença” (ver cap. III do livro O discurso cinematográfico:
a opacidade e a transparência, de Ismail Xavier, o ensaio “Do naturalismo ao realismo crítico”). A
pretensão dos filmes realistas, segundo esta visão, seria identificar as forças sociais e históricas
que regem os acontecimentos, os eventos, as experiências; não apenas descrever, mas narrar, pôr
em evidência as determinantes sócio-históricas da experiência imediata. Segundo esta concepção,
“a imagem e o som não se combinam com o objetivo de mostrar algo, mas com o objetivo de
significar algo; o que implica na apresentação do fato, não como um ato de testemunho (...) mas
em nome de uma compreensão de seu significado histórico”.
9 Neste aspecto, poderiam ser associados à definição de “documentário poético” de Bill Nichols.
Neste “tipo” de documentário, segundo o autor, “os atores sociais raramente assumem a forma
vigorosa dos personagens com complexidade psicológica e uma visão definida do mundo. As
pessoas funcionam, mais caracteristicamente, em igualdade de condições com outros objetos,
como a matéria-prima que os cineastas selecionam e organizam em associações e padrões
escolhidos por eles”.
204
desde fins dos anos 1990, mas alertava que tal boom não correspondia
a um “enriquecimento da dramaturgia e das estratégias narrativas”; ao
contrário, evidenciava a repetição de um mesmo procedimento, banali-
zado pelo jornalismo televisivo: “Não se pensa mais em documentário
sem entrevista, e o mais das vezes dirigir uma pergunta ao entrevistado
é como ligar o piloto automático”.
Um pouco mais tarde, relacionando-se com os escritos de Ber-
nardet, Stella Senra publicava na revista Sinopse o texto “Interrogando
o documentário brasileiro” (2004). Nele, questionava o rebaixamento
da “contundência política” e a “complacência estética” do documen-
tário contemporâneo no Brasil (expressões de Bernardet, que a autora
endossava), usando como contraponto (e exemplo desejável de “novas
maneiras de negociar com o real”) as obras que integraram duas exposi-
ções de artes plásticas. Stella relacionava tal “complacência” à utilização
de uma “metodologia surrada” e de procedimentos recorrentes (como a
prática das entrevistas), sem muita reflexão, por parte dos realizadores,
em relação a qual a melhor “relação” (sempre construída) a se estabe-
lecer com seus assuntos, objetos e personagens reais. E propunha uma
abertura do campo cinematográfico a outras manifestações artísticas
– movimento análogo ao das obras analisadas por ela, que se valiam de
elementos mais próprios a um “terreno habitualmente dominado pelo
documentário”. Como exemplo, portanto, focalizava o trabalho de ar-
tistas que criaram métodos rigorosos de relacionamento com situações
reais complexas – “verdadeiros protocolos de aproximação”, segundo
a ensaísta – capazes de evidenciar que o “acesso” a tais situações não
é “direto nem espontâneo”. Em resumo, Stella Senra elogiava nestas
obras a produção prévia de parâmetros que pautavam o relacionamento
com as situações reais focalizadas – ou, para usar o termo em voga, de
dispositivos adequados, produtivos.10
10 Stella Senra analisa em seu texto trabalhos reunidos em duas exposições de 2003: “A res-
peito de situações reais” (Paço das Artes, São Paulo) e “Movimentos improváveis – o efeito
205
cinema na arte contemporânea” (Centro Cultural Banco do Brasil, Rio de Janeiro). Sua escolha
é estratégica e envolve obras de cineastas-artistas como Pedro Costa, Chantal Akerman e Efrat
Schvily, responsáveis, segundo sua análise, pela criação de dispositivos muito consistentes.
Evidentemente, Stella não defende o “dispositivo pelo dispositivo”. A simples adoção de um
dispositivo não garante, digamos assim, a produção de um protocolo consistente e o “sucesso”
de um filme (em termos de representação e potencial de revelação da experiência real). Tudo
depende da adequação à temática eleita e do trabalho concreto de filmagem, da relação travada
entre realizadores e sujeitos filmados, que a maquinação anterior não dispensa.
11 Neste sentido, a obra de Eduardo Coutinho é exemplar. Como se sabe, a partir de Santo
forte (1999) Coutinho trabalhou em uma série de filmes com rígidas demarcações espaciais e
procedimentos recorrentes, sobretudo a prática da entrevista (pondo ênfase sobre a expressão
verbal dos sujeitos filmados).
12 “O filme-dispositivo no documentário brasileiro contemporâneo” No texto, Lins aborda o
conceito e a presença do dispositivo no documentário brasileiro, analisando alguns filmes, dentre
os quais Acidente. Ela retoma a análise do filme no texto “Tempo e dispositivo no documentário
de Cao Guimarães”.
206
Acidente
Acidente (2006), de Cao Guimarães e Pablo Lobato, resultou da
proposição de um dispositivo inusual. O filme não parte de um tema,
assunto ou situação preexistentes, mas da criação de um poema composto
com nomes de 20 cidades mineiras – nomes selecionados na internet, sem
qualquer conhecimento prévio, segundo revelam os cineastas, a respeito
das cidades (o que mostra, de saída, uma recusa aos preconceitos, imagens
prévias, assuntos típicos, e um investimento na “cegueira”, na ignorância,
no desconhecimento). As estrofes do poema forneceram o mapa inicial
para a viagem de realização. Na ausência de temática anterior ou questão
norteadora, o dispositivo coloca uma espécie de aleatoriedade desejada
(ou acidente programado, que reduz o excesso de intencionalidade) na
escolha e aproximação das cidades visitadas.
No filme, cada cidade corresponde a uma sequência, a uma peça
independente (separadas por tela preta e letreiros, como capítulos, cada
um nomeado pelo nome da cidade em questão e pelo desenho de uma
forma equivalente a seu mapa); as sequências estão organizadas em séries,
formando três blocos, cada um deles correspondendo a uma estrofe do
poema – estrofe esta que só se revela depois de apresentadas todas as
sequências/cidades que compõem um bloco.
Em cada sequência, diferentes objetos, situações e durações, dis-
tintas formas de abordagem e de composição. Em todos os casos, não
há dados, falas sobre o lugar, informações, comparações entre dinâmicas
sociais, políticas, econômicas ou populacionais. O que parece importar
é propor atenção a pequenos acontecimentos, às vezes dotando-os de
interesse estético – uma rua molhada pela chuva e iluminada por trovões
e faróis de carros; microeventos em um bar/mercearia onde se passa um
dia e quase nada acontece; uma divertida procissão e encenação infantil
da Paixão na Semana Santa... A par das diferenças, a tônica de cada
sequência em Acidente poderia ser descrita como o investimento incon-
dicional na superfície do cotidiano, com o que ele carrega de aleatório
207
13 Interessante notar, além do gosto pelos planos-sequência estáticos, o interesse por superfícies
de vidro, espelhos, mediações óticas presentes nos ambientes e que por si só refratam, criam
efeitos óticos, investem cenas banais e cotidianas de um potencial plástico inusitado, como que
metaforizando as operações do próprio filme, como se nota em alguns trechos de Encruzilhada.
208
A superfície do cotidiano
Para concluir, retomo algumas sugestões elaboradas a partir das
análises. Tendo como evidência a exterioridade do olhar e uma recusa
(ou desistência prévia) em explicitar informações contextuais e temáticas,
ou elaborações verbais sobre a experiência dos moradores, passantes,
viventes, estes filmes se apoiam em molduras ou limites dados sobretudo
pelas locações espaciais, para a partir delas criar alguma imagem possível.
Esses limites espaciais liberam os realizadores do caos da banalidade
cotidiana e passam a pautar a produção de cada plano, cujos conteúdos
envolvem microacontecimentos e incidentes rotineiros, segundo parâ-
metros plásticos e de composição.
Contrários à objetividade e à relevância temáticas, Acidente e Uma
encruzilhada aprazível apostam no aleatório, no incidente ordinário e banal.
É posta em crise, de saída, toda pretensão de explicação totalizante sobre
a experiência local. As localidades fornecem matéria para ensaios pautados
por uma espécie de poética da insignificância, que poderia ter outras cidades ou
outros lugares como mote. Em cada lugar, a pergunta de fundo não é tanto
“o que seria mais importante filmar aqui e agora?”, mas sim “segundo que
parâmetros apoiar o meu olhar?”. É preciso se impor limites ou molduras
(que variam de lugar para lugar e muitas vezes dependem do acaso e da
sorte, em Acidente) para, a partir daí, exercitar um olhar contemplativo
que investe de potencial estético a superfície do mundo visível. A falta de
luz; uma rua em ladeira; o quadrado de um posto de gasolina; sugestões
pautadas pelo nome da cidade. Eleitos os parâmetros, os filmes se liberam
de um excesso de possibilidades para exercitar modos de olhar.
Nesta aposta ousada, o que se produz de modo mais consistente
– mesmo assim, como significação sutil – sobre a experiência dos viven-
tes refere-se, a meu ver, à temporalidade. A vivência do tempo nessas
localidades é sugerida pela duração e repetição de planos ou enquadres,
numa convergência entre a aposta estética dos dois filmes e um suposto
conteúdo de estagnação – tempo que escorre ou mudança lenta – que
214
14 Fernão Ramos, em Mas afinal...(p. 38-39) fala em um regime de “ética modesta”, para carac-
terizar parte significativa da produção documental recente. Ele refletiria o “fim das ilusões das
grandes ideologias, conforme apregoa o pós-modernismo. O sujeito pós-moderno, não podendo
mais adquirir altura para emitir saber, se restringe a voos modestos, que, em geral, se esgotam
no criticismo dos enunciados de saber”. Neste regime, o sujeito que enuncia “vai diminuindo
o campo de abrangência de seu discurso sobre o mundo até restringi-lo a si mesmo”. Quando
abandona a narração em primeira pessoa, bastante frequente, a “ética modesta” se utilizaria de
“procedimentos de rarefação do discurso para sustentar a enunciação. Vozes múltiplas se sobre-
põem em uma narrativa extremamente fragmentada, centrada em impressões fugazes do mundo”.
215
Cotidianos em performance:
Estamira encontra as mulheres
de Jogo de Cena
Mariana Baltar1
1 Mariana Baltar é professora da UFF, doutora em Análise da Imagem e do Som pelo Programa
de Pós Graduação em Comunicação/UFF, com passagem pela New York University, onde
desenvolveu parte das pesquisas para a tese “Realidade lacrimosa – diálogos entre o universo
do documentário e a imaginação melodramática”, em que analisou uma parcela da produção de
documentários brasileiros contemporâneos sob o ponto de vista da constituição de seus perso-
nagens no diálogo crítico com a tradição inspirada no universo melodramático. Sua dissertação
de mestrado, também desenvolvida na Universidade Federal Fluminense, dedicou-se a analisar
documentários cujos temas se centravam no imaginário sobre o Nordeste e o nordestino. Em
2007, integrou a equipe de pesquisa de texto e imagem no Projeto Memória Globo, vinculado
à Rede Globo de Televisão, para a organização e editoração do livro Entre tramas, rendas e fuxicos,
sobre a história do figurino na teledramaturgia da emissora. Sua pesquisa mais recente envolve
o universo dos gêneros que compartilham a mesma matriz cultural do excesso, tais como o
melodrama, a pornografia e o horror.
218
2 Algumas exceções merecem destaque, sobretudo o trabalho de Thomas Waugh (1990), Acting
to play oneself: notes on performance in documentary, a tese de Vinicius do Valle Navarro (2005), minha
própria tese (Baltar, 2007), bem como de alguns artigos do professor Fernando Salis
220
4 Em diversos artigos, bem como na tese “Realidade lacrimosa – diálogos entre o universo
do documentário e a imaginação melodramática” (Baltar, 2007), desenvolvi uma reflexão que
correlacionava o documentário, inclusive e sobretudo o de Eduardo Coutinho, com um certo
tipo de apropriação reflexiva e crítica da imaginação melodramática. Não retomarei esse diálogo
mais extensamente aqui, mas reitero a pertinência de tal argumentação ao se tratar de Jogo de cena.
223
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244
Filmografia
Sobre os autores
José Carlos Avellar Crítico de cinema, autor, entre outros, dos livros O
Cinema Dilacerado, editora Alhambra, Rio de Janeiro, 1986; Deus
e o Diabo na Terra do Sol, editora Rocco, Rio de Janeiro, 1995; A
Ponte Clandestina, editora 34 e Edusp, São Paulo, 1996; Glauber
Rocha, editorial Cátedra, Madrid, 2002 e O chão da palavra, editora
250