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INSTITUTO SANTO TOMÁS DE AQUINO

Teologia 3° período- 27/06/2016


Lucas e Atos/ Solange Maria do Carmo
Aluno: José Roney de Freitas Machado

Palavra, linguagem e comunicação: o significado da palavra à luz da teologia


lucana.

A religião judaica sempre se distinguiu pelo seu rigor moral. Tendo como núcleo
central a Torá, palavra de Deus “formalizada” nos preceitos da lei, os judeus orientavam
o seu agir mediante tais normativas, e isso, de maneira demasiado radical. Na lógica
legalista mosaica, virtudes como a pureza, a justiça e a santidade passavam
necessariamente pela restrita obediência aos códigos legais (Lv 11-16; 17-26). A lei era
a razão última, o horizonte de sentido daquele povo, por assim dizer, sobretudo, das
castas mais conservadoras. Não obstante, Também é verdade que na contra mão da
jurisprudência, outra palavra circulava nos meios populares, nas “periferias” da
diáspora, fomentando a esperança do pequeno resto de Israel. Tal palavra, menos
determinativa e prescritiva, ora tenaz, ora suave, fazia denunciar as injustiças vigentes
na sociedade (Is 5, 8-24) e anunciar um novo tempo onde, a dor e a tristeza cederiam
espaço à plena alegria (Is 7, 14-17; 61, 1-2).
Essa é a palavra profética que inspirou Lucas na elaboração de sua teologia da
história. Ao mirar no passado Israelita, o evangelista se deparou com uma palavra, uma
promessa que, segundo os Cristãos, cumpriu-se definitivamente na pessoa de Jesus, o
verbo de Deus encarnado (Lc 4, 21), e que pela misericórdia do Pai, continua a se
cumprir na vida das comunidades de fé que se configuraram a partir do firme
testemunho dos discípulos e discípulas do mestre (At 11, 19-26), pela força do Espírito
Santo que inscreveu a Lei de Deus em seus corações (At 1, 8; 2, 1-11). Mediante essa
chave interpretativa, Lucas articulou passado, presente e futuro, dando linearidade e
coerência à história da salvação, à história da palavra salvadora.
Nos tempos de agora, vivemos no mundo da comunicação rápida, da palavra
fácil que mediante os sofisticados aparatos de vinculação é capaz de atingir os quatro
cantos do globo num átimo. A esse tipo linguagem o mundo tem se inclinado, por meio
dela as pessoas tem se comunicado, e ao mesmo tempo em que dela se aproximam,
distanciam-se umas das outras, porque a presença e o contato deixaram de ser
imprescindíveis na lógica da instantaneidade técnico-comunicativa.
A palavra fácil diz muitas coisas, porque a linguagem admite que muitas coisas
sejam ditas, mas ao que parece, falta-lhe o essencial, o fundamental, o conteúdo que lhe
confere permanência e consistência. Ora, pois, por detrás das palavras podem existir
muitas coisas, ou mesmo o nada. Nelas podem se esconder caminhos de vida ou veredas
de morte - metafórica ou concreta - e não há nada mais nadificante que a morte, seja
qual for a sua faceta, exatamente porque ela faz cessar as palavras, isto é, a verdadeira
palavra (encarnada no encontro e na relação), e onde não há verdadeira palavra, titubeia
a comunicação e a interação, e o silêncio que impera impossibilita a comunhão. Afinal,
a palavra fácil é descomprometida, desencarnada, e por vezes, “nega o que é” e “afirma
o que não é” (porque é demasiado ideológica), dá-nos signos a serem decodificados,
mas não nos dá o real mundo por detrás do texto, não nos dá o contexto vital, o sentido
último sob o qual atribuímos significado as coisas, desde à nossa interioridade.
Neste sentido, numa atitude, talvez, mais honesta que a nossa, os antigos bem
sabiam do potencial da palavra, por isso, por intermédio dela, fizeram chegar à nós um
mundo que, sem a mesma, estaria fadado ao esquecimento, perdido. Tal consciência
historiográfica tiveram os escritores Bíblicos. Esses artistas da linguagem de várias
épocas e lugares, bem intuíram que não basta o fato, por mais significativo que ele seja,
mas que se faz igualmente necessário que o factual, por meio da palavra, torne-se
notícia, boa notícia, e de notícia a evento, circunstância, experiência na qual as pessoas
possam se reconhecer e com a qual possam se identificar.
Essa é a palavra a qual Lucas se refere, uma palavra que não se perde no tempo,
que não se finda com a morte, pois uma vez materializada, diz e se diz por meio do
testemunho vivo de todos aqueles que por ela tiveram sua vida transformada (At 4, 4;
31-32). A palavra lucana é o significante que jamais penderá de significado, porque é o
próprio verbo encarnado, humanidade em ação, promessa realizada e a se realizar. Os
discípulos se configuram as testemunhas existenciais dessa palavra na medida em que a
anunciam com a vida, assim como o Filho de Deus o fizera, pelo influxo do Espírito (At
5, 42; 10, 37-39).
Os aparatos técnicos de comunicação funcionam a partir da capacidade receptiva
dos satélites (que recepcionam dados e os transmitem) e do espaço virtual disponível em
rede para sua rápida propagação. O aparato comunicativo humano, por sua vez,
funciona desde outras fontes. Ele possui um cérebro que registra memórias, uma
dimensão afetiva que as elabora, um espaço físico e geográfico no qual se comunica e
estabelece relações, bem como uma força impulsionadora que, na obra lucana é
denominada de Espírito, dádiva potencializadora de Deus que, ao agir, possibilita ao ser
humano, não instantaneamente, mas mediante processo, por vezes longo, aprender,
apreender, com a vida, com as experiências humanas e com as vivências cotidianas,
como fizera Paulo, um dos maiores comunicadores da fé de todos os tempos.
Personagem central na trama dos Atos dos Apóstolos, Paulo, após ter tido sua
vida ressignificada pela palavra que é o Cristo (At 9, 1-35), fez anuncia-la a todos,
judeus e gentios (At 19, 8-10), entendendo que a “boa moral”, a Lei, embora
importante, não bastava para justificar, para dar fundamento à vida das pessoas. À
começar por Jerusalém, perpassando a Judéia, a Samaria, e atingindo os confins da terra
- naquele tempo, Roma - seu anúncio atravessou os séculos, e apesar de tantos
percalços, chegou até nós com a mesma força e intensidade de outrora, não
empobrecida semanticamente pelo tempo, mas enriquecida pelo testemunho de homens
e mulheres que ao longo da história fizeram dela sua razão de ser.
Essa é a palavra que não passa, que não se pode apagar, porque avessa à fluidez,
foi inscrita na carne da existencialidade humana, e tem como expressão máxima a
relação, a comunicação, o diálogo e a comunhão.

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