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Universidade de São Paulo

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Continuidade Autoritária e Construção da Democracia


Relatório Final

Projeto Integrado de Pesquisa

Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – FAPESP


Processo no. 92/3141-0
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq
Processo no. 521271/96-7
Fundação FORD, escritório do Brasil
Doação no. 870-0989-3

PAULO SÉRGIO PINHEIRO


Professor Titular de Ciência Política
Coordenador Científico – NEV/USP

Fevereiro 1999
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 1

Edição 2002 - Carolline Silva da Cunha Rocha


EQUIPE DE PESQUISADORES

Coordenação
Paulo Sérgio Pinheiro
Sérgio Adorno
Nancy Cardia
Malak Poppovic (1993 –1994)

Coordenadores de Campo
Anamaria Cristina Schindler (1993)
Flávia Schilling (1994 –1995)
Helena Singer
Iolanda Maria Alves Évora (1994 – 1998)
Maria Inês Caetano Ferreira (1995- 1998)
Marina Albuquerque de Macedo Soares (1994 – 1995)
Wânia Pasinato Izumino

Pesquisadores Comissionados
Fernando Afonso Salla (Prefeitura de São Paulo)
Luís Antônio Francisco de Souza (Prefeitura de São Paulo)

Pesquisadores
Adriana Hanff da Silva (1993 – 1994)
Adriana Loche
Amarilys Nóbrega de Almeida (1993 – 1994)
Cristina Eiko Sakai, (1993 – 1994)
Cristina Neme (1993 – 1994)
Glauber Silva de Carvalho, (1994-1998)
Helder Rogério Sant’Ana Ferreira
Jacqueline Sinhoretto (1993-1998)
Marcelo Gomes Justo (1993 –1998)
Mônica Varasquim Pedro (1995 – 1998)
Olaya Sylvia Portela Hanashiro (1993 – 1994)
Petronella Maria Boonen (1995-1998)

Auxiliares de Pesquisa
Adriana Tintori (1997-1998)
Alessandra Olivato (1995-1997)
Carlos César Grama (1994-1995)
Célio Luis Batista Leite
Cláudia Garcia Magalhães (1997-1998)
Cristiane Lamin Souza Aguiar (1997)
Daniela Resende Flório (1996 – 1997)
Débora Pereira Medeiros (1995 – 1998)
Dione do Espírito Santo (1996 – 1996)
Fraya Frehse (1994)
José Henrique Garcia (1995)
Moisés Baptista (1997)
Simone de Cássia Ribeiro (1995 – 1997)
Sueli Solange Pereira (1997)
Vilma Aparecida da Silva (1995 – 1997)
Viviane Oliveira Cubas
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 2

SUMÁRIO

RESUMO DO PROJETO E DOS RESULTADOS DA PESQUISA 6

PARTE I - CONTINUIDADE AUTORITÁRIA E CONSTRUÇÃO DA DEMOCRACIA


CAPÍTULO 1. TRANSIÇÕES POLÍTICAS: CONTINUIDADES E RUPTURAS, AUTORITARISMO E DEMOCRACIA - OS DESAFIOS
PARA A CONSOLIDAÇÃO DEMOCRÁTICA - Nancy Cardia 11
1. Transições e consolidação: a relação entre os eventos 12
2. A consolidação da democracia 14
3. Obstáculos e facilidades para a consolidação da democracia na América Latina 18
4. Obstáculos à consolidação no Leste Europeu 21
5. América Latina e Leste Europeu: convergências e divergências 23
6. O novo e os legados autoritários: os obstáculos apontados para a consolidação 26
7. As graves violações de direitos humanos e a consolidação da democracia 28
8. A continuidade das violações dos direitos humanos 37

CAPÍTULO 2. O PASSADO NÃO ESTÁ MORTO: NEM PASSADO É AINDA - Paulo Sérgio Pinheiro 40
1. Consolidação democrática e direitos humanos 42
2. Instituições e impunidade 56
3. Sociedade civil, ONGs e tomada da consciência dos direitos 68
4. Perspectivas 70

CAPÍTULO 3. VIOLÊNCIA URBANA E CRIME NO BRASIL: O CASO DE SÃO PAULO - Paulo Sérgio Pinheiro 74
1. Overview da violência no Brasil 74
2. Padrões sócio-demográficos da violência urbana 78
3. Algumas vítimas preferenciais 83
4. A “rede de causas” em contexto 87
5. Violência institucional: o arbítrio da polícia 98
6. A violência na sociedade incivil 101
7. Violência e mídia 102

CAPÍTULO 4. AS GRAVES VIOLAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS: O TEMA E A PESQUISA- Sérgio Adorno e Wânia
Pasinato Izumino 104
1.Objetivo e perspectiva teórico-metodológica: o Estado moderno, o monopólio da violência e a proteção
dos direitos humanos 104
2. Indagações, hipóteses e objetivos empíricos 114
3. Etapas da investigação empírica e técnicas de levantamento de dados 120
4 Considerações metodológicas 147
5. Plano de análise 166

PARTE II - AS GRAVES VIOLAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS E A IMPRENSA (1980-1996)


INTRODUÇÃO: A IMPRENSA E A VIOLÊNCIA - Sérgio Adorno 169

CAPÍTULO 5. LINCHAMENTOS: JUSTIÇAMENTO COTIDIANO NO BRASIL - Helena Singer, Jacqueline Sinhoretto e


Célio Luis Batista Leite 175

CAPÍTULO 6. EXECUÇÕES SUMÁRIAS: ACERTO DE CONTAS E JUSTIÇAMENTO PRIVADO NOS GRANDES CENTROS
URBANOS BRASILEIROS - Iolanda Évora, Maria Inês Caetano Ferreira, Adriana Tintori, Mônica Aparecida
Varasquim Pedro 224

CAPÍTULO 7. VIOLÊNCIA POLICIAL: A AÇÃO JUSTIFICADA PELO ESTRITO CUMPRIMENTO DO DEVER. - Wânia Pasinato
Izumino, Adriana Alves Loche e Viviane de Oliveira Cubas
293

CAPÍTULO 8. VIOLÊNCIA RURAL: UMA DÉCADA DE LUTAS EM TORNO DA TERRA - Marcelo Gomes Justo, Helder
Rogério Sant’Anna Ferreira e Petronella Boonen 363

PARTE III - AS GRAVES VIOLAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS EM SÃO PAULO E BRASIL RURAL (1980-1989): UMA
HISTÓRIA OFICIAL
CAPÍTULO 9. LINCHAMENTOS EM SÃO PAULO - Sérgio Adorno 404
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 3

1. Casos selecionados 405


2. Morfologia dos litígios 445
3. Protagonistas 446
4. Relações hierárquicas, contextos e cenários 456
5. “Física” dos acontecimentos 471

CAPÍTULO 10. EXECUÇÕES SUMÁRIAS EM SÃO PAULO - Helena Singer 482


1. Casos selecionados 482
2. Justiceiros e matadores 513
3. Grupos de extermínio, vigilantismo e esquadrões da morte 517
4. Extermínio de crianças e adolescentes 520
5. As vítimas sacrificiais 523

CAPÍTULO 11. VIOLÊNCIA POLICIAL EM SÃO PAULO - Helena Singer 526


1. Casos selecionados 526
2. A violência da Polícia Militar: perseguição e execução de suspeitos 571
3. A violência da Polícia Civil: a tortura em busca de confissão 575
4. A violência da Guarda Civil Metropolitana: a força em nome da defesa da propriedade 578
5. A violência do Estado e a manutenção da ordem excludente 580

CAPÍTULO 12. VIOLÊNCIA NO CAMPO - Helena Singer 583


1. Casos selecionados 583
2. Violência em conflitos de terra no Nordeste 625
3. Assassinato de líder sindical no Sudeste 608
4. Violência em conflitos envolvendo povos indígenas na Amazônia 632

CAPÍTULO 13. VIOLÊNCIA DE AGENTES DO ESTADO: O CASO JOILSON - Helena Singer


1. O caso Joilson
2. Joilson: a vítima preferencial
3. A institucionalização e a construção do delinqüente
4. As organizações da sociedade civil e a questão da infância em situação de risco
5. O medo das elites diante das “classes bárbaras”
6. O Estado como autoridade designada para a resolução do conflito

PARTE IV - A MEMÓRIA DOS ACONTECIMENTOS E A VIVÊNCIA DOS LITÍGIOS


CAPÍTULO 14. MEMÓRIA E CONFLITO SOCIAL - Sérgio Adorno

CAPÍTULO 15. MEMÓRIA E VIVÊNCIA DE LITIGIOS - Nancy Cardia


1. Os acontecimentos sob a perspectiva daqueles que estiveram presentes
2. Os acontecimentos sob a perspectiva daqueles que ouviram falar
3. A perspectiva dos operadores do direito que intervieram nos acontecimentos
4. A intervenção das ONGs: memória e participação social
5. Condições de vida e conflitualidade local
6. Os moradores e as instituições
7. Re(des)conhecimento dos direitos e a violência

PARTE V - O ESTADO, DIREITOS HUMANOS E A VIOLÊNCIA


INTRODUÇÃO: A JUSTIÇA PENAL E A PROTEÇÃO DOS DIREITOS - Sérgio Adorno

CAPÍTULO 16. JUSTIÇA FORMAL: ESTRUTURA E FUNCIONAMENTO DO SISTEMA DE JUSTIÇA PENAL - Sérgio Adorno

CAPÍTULO 17. JUSTIÇA VIRTUAL: O INQUÉRITO E O PROCESSO PENAL SOB A ÓTICA DOS OPERADORES DO DIREITO -
Nancy Cardia
1. O inquérito policial ideal
2. O processo penal ideal
3. O inquérito policial real
4. O processo penal real
5. Outros temas abordados

CAPÍTULO 18. JUSTIÇA REAL: A JUSTIÇA NO TEMPO - Sérgio Adorno, Wânia Pasinato Izumino, Jacqueline
Sinhoretto, Fernando Salla e Luís Antônio Francisco de Souza

1. Requisitos, formalidades e garantias processuais


2. Os processos de linchamento
3. Os processos de grupos de extermínio e justiceiros
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 4

CAPÍTULO 19. O TEMPO DA JUSTIÇA: A QUESTÃO DA MOROSIDADE PROCESSUAL - Sérgio Adorno, Wânia
Pasinato Izumino, Jacqueline Sinhoretto
1. Os processos de linchamento

CAPÍTULO 20. O DESFECHO PROCESSUAL: DECISÕES JUDICIAIS E PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS - Fernando
Salla e Luís Antônio Francisco de Souza
1. Os processos de linchamento
2. Os processos de grupo de extermínio e justiceiros

PARTE VI - CONCLUSÕES: VIOLÊNCIA, DIREITOS HUMANOS E CONTROLE DO ARBÍTRIO DO ESTADO

BIBLIOGRAFIA
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 5

RESUMO DO PROJETO E DOS RESULTADOS DA PESQUISA

O principal objetivo de pesquisa "Continuidade Autoritária e Construção da Democracia" é


examinar o papel das violações dos direitos humanos no processo de democratização no Brasil,
em especial na implantação da cidadania e do Estado de Direito para todos, bem como o
significado da persistência destas violações na cultura política brasileira. No Brasil, vive-se,
depois de mais de cem anos de governo republicano em que se alternam regimes autoritários e
regimes não autoritários, uma nova experiência de reconstrução democrática, mais ampla do que
as anteriores. Formalmente, vivemos em uma democracia, como deixam entrever os direitos
individuais, sociais e políticos inscritos na Constituição de 1988. Ao mesmo tempo, convivemos
com profundas desigualdades sociais, com amplas camadas de cidadãos de "segunda classe",
com imensos obstáculos de acesso à justiça e com a violação de direitos humanos.

O projeto investigou a hipótese segundo a qual a continuidade das violações dos direitos
humanos são um dos elementos básicos que minam a construção de uma cidadania universal e
que questionam a credibilidade das instituições básicas para a democracia: em especial as
agências e atores encarregados da aplicação das leis e da pacificação da sociedade. Esta
cidadania restrita seria parte constitutiva de uma cultura política marcada pela não
institucionalização dos conflitos sociais, pela normalização da violência, pela reprodução das
violações de direitos humanos e pela reprodução da estrutura vigente de relações de poder. Ao
que tudo parece indicar, tais aspectos interagem de forma perversa, criando círculos viciosos que
diferentes movimentos sociais e distintas formas de organizações populares não conseguem
romper.

A pesquisa procurou responder a um pequeno elenco de indagações: Como se dá a


convivência das violações dos direitos humanos com regras e procedimentos formais da
democracia? Quais as conseqüências dessa convivência para a cultura política, para as relações
entre grupos e para a estrutura das relações de poder? Quais as ações das organizações de
defesa dos direitos humanos para romper com essa convivência? Como o Estado encara seu
papel de guardião da lei?

As respostas a tais indagações ensejaram o exame dos dados empíricos segundo três
recortes analíticos: (1) atuação do Estado na apuração das violações: tratou-se de verificar em
que medida esta atuação funciona como dissuasor ou como elemento facilitador da reprodução
destas violações; ou, ainda, em que medida se pauta por uma ambigüidade, ora dissuadindo-as
ora reproduzindo-as; (2) aspectos de cultura política de comunidades que vivenciaram violações
de direitos humanos, observando-se com maior ênfase a percepção de justiça e de polícia, as
relações entre violência e reprodução da estrutura de poder, a presença de um processo de
exclusão moral; (3) atuação das organizações não-governamentais (ONGs) e outros grupos
organizados da sociedade civil com vistas a examinar seu papel, desempenho e alcance na
consolidação da democracia.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 6

A execução do projeto temático e integrado de pesquisa consistiu na reconstrução de


múltiplos casos de violações de direitos humanos, que ocorreram em diferentes momentos da
década de 1980 até o ano de 1989. Esse universo empírico compreende casos de violações do
direito à vida que têm como agente tanto autoridades investidas de poder público quanto cidadãos
civis, violações perpetradas através de ações desencadeadas seja por indivíduos isolados, seja
por coletivos, organizados ou não. Privilegiou-se a observação de quatro tipos de fenômenos:
linchamentos; execuções sumárias e grupos de extermínio; violência policial e violência rural.

A reconstrução de casos teve por fontes de informação primária e secundária: relatórios


oficiais, inquéritos policiais e processos penais, dossiês e boletins de ONGs, relato de debates,
notícias veiculadas em jornais e revistas (nacionais e estrangeiros). A par dessas fontes, recorre-
se a informações extraídas de entrevistas realizadas com diferentes atores: membros de
comunidades onde ocorreram as violações, representantes das organizações policiais, do
Ministério Público, do Poder Judiciário, das organizações não-governamentais, dos movimentos
de defesa dos direitos humanos e de outros grupos que intervieram ou participaram do processo.

A pesquisa adotou uma abordagem interdisciplinar e buscou estabelecer redes de


causalidade múltipla a partir de um tripé constituído pela sociedade, pelo Estado e pela cultura
política.

Os resultados preliminares concentram-se nos 28 casos de violação de direitos humanos


ocorridos na cidade.

A análise desses casos revela a natureza dos litígios que via de regra tendem a convergir
para desfechos fatais. A análise enfatizou a caracterização dos protagonistas, a caracterização
dos contextos e cenários que estimulam tais acontecimentos e a caracterização do
encadeamento e do nexo de ações que redundam nas modalidades observadas de resolução de
litígios. Buscou-se explorar a hipótese segundo a qual conflitos tais como os observados tendem
a explodir no contexto de agudas rupturas nas relações hierárquicas entre cidadãos comuns e
autoridades públicas, o que remete à crise do poder pessoal na sociedade brasileira. Esta
hipótese foi sustentada sobretudo pelo exame do contexto e dos cenários que armam tais
acontecimentos, constituídos às voltas da criminalidade urbana violenta cuja emergência e
extensão nos bairros populares do município e da região metropolitana de São Paulo
promoveram ao longo da década de 1980 acentuados desarranjos no tecido social urbano
colocando em confronto tête-à-tête modalidades rústicas e plebéias de distribuição de justiça e
modalidades oficiais de aplicação das leis penais.

No curso desta análise foi possível responder às quatro indagações iniciais: quem tem
direitos violados, quem viola direitos, quais as relações hierárquicas entre os protagonistas e
quais cenários sociais desencadeiam as modalidades observadas de violação de direitos
humanos. As respostas a estas indagações apontaram para a importância de uma detida análise
do papel do Estado, através de suas agências de contenção da violência e de pacificação social,
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 7

na reprodução daqueles acontecimentos. Tudo indica que a crise do poder pessoal está
relacionada ou toma a forma de crise do sistema de justiça criminal diante da escalada da
violência urbana. A seqüência desta análise buscou responder a duas questões: o que fez o
Estado diante destes casos, o que equivale a indagar como as agências de justiça criminal
promoveram a apuração da responsabilidade penal? Com quais resultados intervieram? Puniram
ou não os agressores?

Para responder a estas indagações, a análise que se seguiu teve por objeto a morfologia
da intervenção judicial/judiciária. Buscou-se descrever com minúcia e acuidade todos os aspectos
implicados na ação do poder público em suas atribuições de pacificação social e de controle
repressivo da violência dentro dos limites da legalidade própria do Estado democrático. Ao fazê-
lo, o percurso analítico promoveu três recortes: o primeiro privilegiou a observação da justiça
formal. Neste recorte, o enfoque recaiu sobre as estruturas formais da justiça penal, suas formas
de organização e funcionamento, seus rituais institucionais, suas atribuições, funções e
competências, a par de uma análise do fluxo do processo penal e de seu subjacente sistema de
produção da verdade jurídica, materializado em um sistema de provas o qual, por sua vez,
sustém o contraditório penal.

O segundo concentrou sua atenção na observação dos atores que põem o sistema de
justiça criminal em funcionamento. Neste segundo recorte, cuidou-se de examinar como os
operadores do direito se apropriam das regras formais, interpretando-as subjetivamente quer sob
a ótica de suas experiências sociais mais gerais, quer sob a ótica de suas experiências
profissionais, portanto mais próximas e diretamente referidas ao objeto empiricamente observado.
Institui-se deste modo uma sorte de justiça virtual que diz respeito ao modo como as formalidades
judiciais sofrem acomodações, ajustes, adaptações que se traduzem em normas de orientação da
conduta diante de casos e situações concretas, como são aqueles relatados nos processos
penais examinados. Do ponto de vista analítico, este segundo recorte adotou como estratégia
comparar permanentemente a justiça ideal com a justiça real. Esta estratégia possibilitou uma
espécie de “mensuração qualitativa” das distâncias que se estabelecem entre o mundo abstrato
das leis e o mundo concreto das normas, entre a justiça que pretende o monopólio da violência
física legítima e a justiça que claudica diante de obstáculos intransponíveis, que vacila em suas
atribuições investigativas e de apuração da responsabilidade penal, que hesita em punir e que, no
limite, abdica de exercer a soberania que lhe deveria facultar aquele monopólio.

Por fim, o terceiro recorte justapôs estruturas e atores. Neste nível, todo o esforço
analítico enfocou o andamento do processo penal e seu correspondente desfecho processual.
Inicialmente, abordaram-se as dificuldades e óbices na produção de provas judiciais que remetam
à identificação de réus penalmente responsáveis. Contemplou-se aqui um exame dos requisitos
legais e processuais pertinentes às diligências, à junção de provas, às perícias técnicas e seus
correspondentes laudos bem como a outras providências que deixam de ser cumpridas ou são
cumpridas de modo inadequado com flagrantes equívocos técnico-administrativos. O ponto
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 8

central da análise concentrou-se detidamente no exame da morosidade processual. Tratou-se,


neste momento, não apenas de avaliar o tempo de duração dos feitos penais, mas sobretudo
identificar suas razões e agentes responsáveis. Teve-se em vista aquilatar o quanto a morosidade
interfere no curso das investigações, provocando a diluição dos fatos, a fluidez da memória dos
acontecimentos, a caducidade das provas recolhidas e reunidas. Seguiu-se a análise do desfecho
processual, uma espécie de epílogo patético pois que acentua a impotência e paralisia da justiça
penal diante dos casos de linchamento observados e, mais grave ainda, diante das modalidades
rústicas e plebéias de resolução de litígios. É como se a justiça penal excluísse tais transgressões
à ordem pública do escopo de suas competências e do raio de sua intervenção oficial.

Palavras-chaves: direitos humanos; violência; justiça penal; Estado de Direito; violência policial;
assassinatos de crianças e adolescentes; grupos de extermínio; linchamentos; violência rural.
Brasil e Estado de São Paulo, 1980-1989.
PARTE I
CONTINUIDADE AUTORITÁRIA E
CONSTRUÇÃO DA DEMOCRACIA

CAPÍTULO 1
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 10

Transições Políticas: continuidades e rupturas, autoritarismo e


democracia - os desafios para a consolidação democrática

Nancy Cardia

Um dos principais paradoxos das transições, decisivo para a consolidação


democrática é a sobrevivência de práticas autoritárias. Em tese as transições
representam oportunidades para mudanças e para rupturas que permitam a
emergência (ou retomada) de padrões de relacionamento e de controle, mais
condizentes com a democracia. A continuidade autoritária se evidencia pela
persistência de práticas que impedem mudanças profundas nos processos de
decisão e na amplitude e profundidade da proteção legal vivida pelos cidadãos.
Proteção essa contra violências por parte de agentes do Estado ou de outros
cidadãos. A hipótese que orienta a pesquisa é que a persistência de graves
violações dos direitos humanos sinaliza a presença dessa continuidade
autoritária e é um sério obstáculo para a consolidação democrática. Seria esta
continuidade das graves violações dos direitos humanos, uma peculiaridade do
caso brasileiro ou estaria presente em outras transições? Como a literatura
internacional trata a continuidade autoritária na consolidação da democracia? O
que podemos aprender destas análises do processo de transição para o caso
brasileiro? Estas perguntas guiaram uma revisão da literatura internacional sobre
as transições e consolidações democráticas.

A literatura sobre transição e consolidação democrática apresenta várias


dificuldades. Os conceitos de transição e consolidação são usados de modo
intercambiável sem preocupação em delimitar claramente os processos. Não se
pode dizer que exista uma teoria das transições e menos ainda da consolidação.
Apesar dos esforços por comparações e portanto para se produzir explicações
mais universais, quase todos os estudos revisados são profundamente afetados
pelas culturas nas quais se baseiam e têm seu poder explicativo reduzido. É
difícil traçar os limites entre o que é legado do período autoritário e o que é
constitutivo daquela cultura e que se torna mais visível quando muda o regime.
Estas limitações acabam se refletindo em explicações e previsões que não
podem ser generalizadas, prevalecendo uma série de descrições de processos a
partir de diferentes critérios e enfoques (Liebert, 1988).

O estudo das transições foi fortemente influenciado em seus primórdios


pelo o que ocorreu na Europa durante o período entre as duas guerras mundiais
com a ascensão de regimes autoritários na Itália, Alemanha, Espanha e Portugal.
O retorno à democracia na Alemanha, na Itália e no Japão após a segunda
grande guerra representou mais um marco nessas teorizações. O tema retomou
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 11

interesse com o redemocratização dos países do sul da Europa: Espanha,


Portugal, e posteriormente Grécia e Turquia. As transições na América Latina
representaram a oportunidade para alguns autores estabelecerem comparações
entre estes países e o que ocorreu no sul da Europa. No final da década de 80 e
começo da década de 90, com as mudanças no Leste Europeu, surgem as
comparações entre aquelas transições e as da América Latina. A legitimidade
deste tipo de comparação só foi contestada por Offe (1991), que alega serem as
realidades comparadas muito diversas: no Leste Europeu, além dos desafios de
se ter que construir simultaneamente uma sociedade civil e uma classe
empresarial, tem-se que redefinir territorialmente as nações.

1. Transições e consolidação: as relações entre os eventos


Os diferentes momentos do processo de reconstrução da democracia são
caracterizados (Morlino, 1986) como: a transição, quando ainda existem
estruturas do regime anterior; a instauração, quando se planejam as novas
instituições e procedimentos; a consolidação quando são fixadas as novas regras
e a institucionalização, quando são formadas ou reforçadas as instituições na
esfera política1.

No estudo da consolidação, segundo Morlino (1986) é necessário levar em


conta as experiências anteriores ao regime autoritário e da existência ou não de
sucessivas rupturas/regressões autoritárias na consolidação, pois a transição não
poderia ser uma ruptura completa com o regime anterior2. Isso exige que se
considere não só o legado do período autoritário mas também aqueles de
períodos democráticos, ampliando o horizonte histórico para a análise da
consolidação. As diferentes continuidades (democrática e a autoritária) afetam
não só o tipo de transição mas também o tipo de democracia que emerge3.
As variáveis mais apontadas como tendo algum efeito sobre a
consolidação são o tipo de transição que levou à democracia e os motivos da
transição. O tipo de transição é conseqüência dos motivos da perda de
legitimidade do regime anterior: ter recorrido a medidas repressivas drásticas, ter

1
Esta perspectiva difere de outras por considerar que as instituições decorrem da estabilidade
social e política e que portanto exigem a consolidação e não o contrário que é a visão mais
consensual de que a consolidação exige como condição prévia, a institucionalização de
procedimentos, acordos e processos.
2
Exceto em circunstâncias muito especiais como nas transições impostas externamente como na
Alemanha e no Japão após a segunda Guerra Mundial.
3
Um exemplo disso estaria, no caso brasileiro, na democracia vivida no período entre 1946-1964,
que teria sido um regime misto de democracia e autoritarismo devido a cultura política herdada do
período 1937-1945 (Weffort, 1992).
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 12

se distanciado da base social de apoio, ter envolvido o país em guerras


fracassadas ou por ter responsabilidade por desastre econômico. Estes motivos
não são exclusivos mas podem se combinar (Morlino, 1986) o importante é que a
democracia tenha se tornado a única alternativa. Existem três tipos de transição
(Huntington, 1983): por substituição do regime autoritário, isto é, quando o regime
é derrubado; por transformação do regime a partir da iniciativa de reformadores
dentro elites do governo através de acordos e pelo se denominou de
"transplacement" que envolveria negociação entre os representantes do regime e
a oposição. A relevância do tipo de transição para a consolidação é que define
"perdedores" e "vitoriosos". Se estes últimos são aqueles grupos pró-democracia,
aumenta a pressão sobre os grupos não-democráticos para aceitarem o
compromisso democrático. As transições que decorrem da derrota do regime
autoritário em alguma disputa/guerra ou por fracasso econômico, são
consideradas como favorecendo a consolidação da democracia porque permitem
uma ruptura mais clara e encorajam a "aquisição do costume de viver em
democracia" (Rustow, apud Morlino, 1986). Se a transição decorre de reforma é
possível que elites do antigo regime permaneçam no poder e a adesão destes ao
regime democrático pode ser provisória, decorrente de uma estratégia de
sobrevivência das elites frente a situações de incerteza e se a memória do antigo
regime não for muito negativa, pode haver a tentação de regressão (Morlino,
1986).

A transição terminaria quando existirem instituições e uma Constituição,


quando os dirigentes democráticos controlam todo o poder de coerção e as
nomenclaturas, e quando ocorre a alternância de poder presidencial (Hermet,
1991). Este final da transição corresponde em larga medida à chamada
"instauração" (Morlino, 1986) que terminaria com a aprovação de uma
Constituição, com a entrada em vigor de uma nova lei eleitoral, com a formação
de novos partidos democráticos, com o nascimento de sindicatos, e formas de
representação de grupos de interesse, isto é, com o ressurgimento da sociedade
civil. A partir da transição ou da instauração começaria o processo de
consolidação que pode se desenvolver em uma democracia estável. Este
intervalo é denominado por O'Donnell (1988) de segunda transição.

2. A consolidação da democracia
A democracia estável pode ou não ser o resultado deste processo de
transição, podendo haver ainda (Morlino, 1986) diferentes graus de consolidação
e de debilidade ou força da democracia. Isso vai depender de uma série de
fatores que serão examinados a seguir. É possível que o regime não se consolide
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 13

e que haja uma regressão. Há modelos de democratização que se caracterizam


por uma alternância entre períodos de democracia e períodos autoritários que
foram denominados de modelo cíclico (Huntington, 1984).
A consolidação da democracia implicaria a rejeição de outras alternativas que
permitem a regressão. Para que haja consolidação é necessário que a democracia se
torne "the only game in town" (Stepan, apud Poppovic e Pinheiro, 1995), que crie raízes
em todos os grupos necessários para a sua sobrevivência (Schmitter, apud Di Palma,
1988) que a sociedade não conceba outro regime como sendo possível (Hermet, 1991) e
que o acordo democrático seja estendido a todos os estratos da população (Rustow,
apud Morlino, 1986) o que sugere um equilíbrio entre o poder das elites e das não elites
(Bollen, apud Pinheiro, 1995).

Consolidar a democracia é então institucionalizar a competição pacífica


entre elites o que requer partidos institucionalizados e a presença de uma
sociedade civil (Lipset, 1993). Exige fortalecer a organização dos partidos e a
representação de grupos de interesse. Os partidos devem estabelecer uma base
partidária fiel capaz inclusive de suportar derrotas políticas, fracassos eleitorais,
escândalos e disputas internas de modo a serem um contra poder estável (Lipset,
1993). O governo precisa deter o poder de coerção controlando toda a segurança
nacional. Os militares devem ser excluídos da política. O Estado deve garantir o
bom funcionamento da administração pública e do judiciário. A sociedade deve
valorizar estruturas intermediárias de representação: partidos políticos e grupos
de interesse. Além disso a cultura política não pode ser radical, é essencial ter a
confiança entre as pessoas, se tolerar incerteza, se aceitar a dissidência e a
oposição e se valorizar o compromisso (Morlino, 1986). As elites precisam ter
consciência que a democracia é o melhor regime para os seus interesses
(Huntington, 1984).

A análise do processo de consolidação, nessa perspectiva, requer que se


leve em conta as experiências democráticas anteriores ao período autoritário, em
especial, os tipos de representação política e de interesses que existiam:
partidos, alianças que realizavam; sindicatos e associações e os fatores que
permitiram o surgimento do regime autoritário. Deve-se considerar alguns
aspectos da experiência autoritária: duração, repressão sobre partidos, sindicatos
e associações (Morlino, 1986). Estas análises da transição, em geral ignoram o
desempenho econômico do regime autoritário. o papel desse desempenho na
transição é realçado na abordagem de O'Donnell (1988a).

Os motivos da transição e os atores que dela participam ajudam a prever


se a consolidação será facilitada ou terá obstáculos. Os motivos da transição
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 14

(Hermet, 1991), definem o grau de recursos democráticos a dispor do novo


regime: uma transição motivada por insatisfação com os governantes ou com o
regime autoritário seria diferente de uma motivada por uma valorização da
democracia, pois definem diferentes predisposições para enfrentar as
dificuldades da transição e para que a democracia se torne um hábito. O grau de
abertura da transição para a participação de diferentes atores permite que sejam
feitas previsões sobre o sucesso da consolidação: se há participação das
massas, se a elite aceita a organização e representação política e sindical da
classe trabalhadora, há uma experiência coletiva compartilhada e esta permite
que surjam memórias e símbolos coletivos. Isto dá ao regime maior legitimidade
e maior probabilidade de se consolidar facilitando a identificação da classe
trabalhadora com os novos partidos que emergem.

A probabilidade da consolidação democrática ocorrer seria também


afetada por outras variáveis que têm sido associadas às democracias estáveis,
quer como pré-condições, quer como características destas democracias
(Huntington, 1984). Maior desenvolvimento econômico, menor desigualdade
social e econômica, maior pluralismo e tolerância com diferenças, maior
participação da sociedade, existência de uma burguesia forte e autônoma em
uma economia orientada para o mercado favoreceriam a democracia e sua
consolidação (Huntington, 1984)4. O problema desta abordagem é que se
estabelece uma relação de causalidade muito simplificada entre desenvolvimento
econômico e democracia e entre economia de mercado e democracia. O'Donnell
(1988) mostrou que governos autoritários fortes podem levar a um grande
desenvolvimento econômico, principalmente quando estes governos estimulam a
substituição de importações o que gera uma forte presença do estado na
regulação da atividade econômica e podem (Singapura, Malásia, Indonésia,
Coréia do Sul) promover melhorias sensíveis nas condições de vida de seus
habitantes, melhoria no nível educacional e na informação, criação de classe
média e se manter no poder apesar de um alto grau de falta de liberdade
individual e política5.

4
Alguns autores defendem que estas características não são pré-condições mas conseqüências
da democracia é o caso, por exemplo, de Karl e Schmitter (1991).
5
Em Singapura, por exemplo, a população tolera que o governo interfira profundamente na vida
privada: determine o número de filhos que podem ter, tipo de casamento que devem fazer, o
número de carros que podem comprar, etc. A dissidência política é praticamente proibida, aqueles
que ousam discordar são punidos não com prisão (que geraria reclamações da organizações de
defesa de direitos humanos) mas com penas financeiras determinadas de modo a levar os
dissidentes à ruína financeira (Simons, 1991). Estes regimes do Sudeste Asiático, apesar de
todos os desafios que apresentam para a teoria da democracia, parecem não provocar o
interesse dos estudiosos da relação entre democracia e economia de mercado e, menos ainda,
da relação entre desenvolvimento econômico e social e democracia.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 15

Apesar desse sucesso, só a democracia poderia levar a um crescimento


contínuo segundo alguns autores como Olson (1993). Lucro a longo prazo, exige
moedas estáveis, garantia de que as propriedades acumuladas serão respeitadas
e que os contratos firmados serão respeitados ou serão aplicados de modo
imparcial. Isso requer um governo que respeite os direitos individuais, em
especial o direito à propriedade privada, um sistema jurídico independente que
force os indivíduos a cumprirem as obrigações contratadas e que ofereça
proteção aos cidadãos contra o poder do governo. Estas condições para o
desenvolvimento econômico máximo coincidiriam com aquelas para a
democracia estável: direito à liberdade de expressão, segurança para
investimentos contratados e estado de direito. Nesta perspectiva Olson ignora
que além da proteção dos interesses individuais há que existir a proteção das
instituições governamentais frente os interesses de grupos privados. A relação
entre democracia e desenvolvimento econômico não seria automática, mas
dependeria do grau de dispersão dos recursos econômicos, intelectuais e de
poder na população (Vanhanen, apud Poppovic e Pinheiro, 1995). A democracia
estável estaria associada ao desenvolvimento econômico quando os frutos deste
desenvolvimento estão distribuídos por diferentes segmentos da sociedade.

Segundo Touraine (1991) a democracia, nos países ricos, pode ser


definida como o equivalente político do mercado. O vínculo desta democracia
com os cidadãos dependeria em larga medida da crença que os cidadãos têm
que a democracia é o regime que permite uma combinação sólida da defesa de
seus interesses e suas idéias com as leis e decisões políticas que definem a vida
coletiva. Quanto mais segmentada a sociedade, quanto maior o isolamento
pessoal e quanto menor a comunicação entre as pessoas, maiores são os
obstáculos para essa democracia. A existência de profundas desigualdades
sociais, evidenciadas pela presença de formas de exclusão social, indicaria que
não há livre escolha de representantes. A livre escolha exige participação política,
exige que os grupos mais ricos não dominem as campanhas políticas e que as
desigualdades sociais não sejam tão grandes a ponto de reduzir a cidadania.

Nos países do Leste europeu, um dos obstáculos apontados para na


transição democrática seria o alto grau de homogeneidade da sociedade e a
intolerância que existiria com as desigualdades geradas pela economia de
mercado (Offe, 1991)6. Haveria um antagonismo entre a democracia e a
economia de mercado. O mercado traz incertezas que aumentam a insegurança

6
Nessas sociedades a introdução do direito de propriedade e dos mecanismos de mercado não
seriam percebidos como sendo do interesse do conjunto da sociedade, mas como beneficiando a
poucos, sem garantias de que a longo prazo tais benefícios irão ocorrer.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 16

sobre o processo de decisão democrático, principalmente no que diz respeito a


capacidade de respeitar tanto as necessidades de indivíduos como aquelas
coletivas. O dilema das transições no Leste Europeu estaria na necessidade de
transformações simultâneas que se condicionam mutuamente: a democracia
seria condição para economia de mercado e a economia de mercado exigiria, por
sua vez, uma "pré-democracia". Nos países latino-americanos, os obstáculos
econômicos para a consolidação estariam na grande desigualdade social e nas
relações promíscuas da elite com o estado e n a dificuldade em separar o público
do privado, expressos na continuidade do prebendalismo, o que impediria que os
cidadãos percebessem o processo de tomada de decisão democrático como
contemplando tanto os interesses individuais como os coletivos.

Apesar das diferenças entre os países do Leste Europeu e da América


Latina alguns dos obstáculos para a consolidação democrática seriam
semelhantes: a distribuição de recursos nessas sociedades não seria um
elemento que facilitaria a estabilidade democrática, em umas há excesso de
homogeneidade em outras excesso de desigualdade. Porém o obstáculo para a
consolidação democrática mais estudado no Leste europeu7 tem sido a
composição das novas lideranças que surgem e os vínculos dessa liderança com
o período autoritário. O comprometimento dos funcionários públicos, a
qualificação deles e a disponibilidade de recursos humanos na sociedade são
três elementos chave na atuação do novo regime e na probabilidade de
consolidação (Peters, 1995). Estes funcionários podem contribuir para a
consolidação colocando seu conhecimento do fazer a política pública a favor da
democracia ou podem ameaçar a democracia resistindo a mudança, boicotando,
e até sabotando a implementação de políticas públicas dependendo do
compromisso dos servidores públicos com o regime autoritário. Dependendo da
intensidade do envolvimento destes funcionários com o regime e dos recursos
disponíveis será necessário: trocar todos, trocar alguns em postos chaves,
cooptar alguns ou reorganizar substancialmente a burocracia pública.8

3. Obstáculos e facilidades para a consolidação da democracia na


América Latina

7
Róna-Tas,1994; Szelényi et al, 1995; Szelényi e Szelényi, 1995; Rose, 1996; Hanley et al.,
1995; Fodor et al, 1995; Böröcz e Róna-Tas, 1995; Eyal e Townsley, 1995; Wasilewski e Wnuk-
Lipinski, 1995.
8
A transição na Alemanha e no Japão no pós-guerra exigiu uma troca radical de todo o pessoal
envolvido com o regime nazista, na Itália também ocorreram mudanças, mas no judiciário onde
não havia possibilidade de se trocar todos os juízes, levou muitos anos para isto ocorrer, o que foi
considerado um elemento responsável pela demora na estabilidade política e nas mudanças nas
práticas de nepotismo dos partidos políticos (Colombo, 1993) .
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 17

No Leste europeu o duplo desafio da transição seria de ter que construir


uma economia civil (Rose, 1992) e construir uma sociedade civil autônoma frente
ao estado. Na América Latina as transições democráticas coincidem com um
esgotamento do modelo de desenvolvimento econômico que exige mudanças no
relacionamento do Estado com a sociedade, em especial uma redefinição de seu
papel na economia e nas políticas públicas em um contexto onde a maioria da
população sempre teve pouco acesso a benefícios.

Na América Latina a existência de uma “economia civil” não garantiu


qualidade de vida à população, em geral, esses indicadores eram inferiores aos
do Leste da Europa mesmo quando consideramos os custos das mudanças
econômicas por eles vividas. Escolaridade, moradia, saúde, expectativa de vida,
mortalidade infantil, acesso a infra-estrutura, entre outros itens, nos países do
Leste Europeu eram superiores aos países latino-americanos9.

Os obstáculos para a consolidação, nos dois contextos, não podem ser


subestimados, e se referem aos legados autoritários. Um aspecto negligenciado
pela literatura da transição e da consolidação é o da a relação entre o legado
autoritário e as dificuldades para a formação de partidos, de grupos de interesse
autônomos, e para a implantação do estado de direito. Esse tem sido um grande
desafio no países do Leste e na América Latina.

Não há sociedade civil sem o estado de direito e sem um amplo


desenvolvimento de "instituições autônomas, isto é, instituições que não são
dirigidas pelo governo, mas que atuam como agentes da vontade do povo", como
afirma Dahrendorf (1990). Estas instituições incluem partidos políticos, sindicatos,
empresas independentes, movimentos sociais, igrejas livres, profissões liberais,
universidades autônomas." A sociedade civil é essencial para assegurar uma
sociedade aberta. Nenhum grupo é detentor da verdade, mas que grupos
competem em projetos, propostas e visões de mundo. Este "caos criativo", na
expressão de Dahrendorf, garante a abertura da sociedade, constituições não
bastam: "Você tem que criar, como argumentou James Madison em "Federalist
Papers", a realidade social na qual a Constituição possa viver" (Dahrendorf,
1990). Alguns estimam (Morlino, 1986) que são necessários dez anos entre a
instauração do regime democrático e sua consolidação, Dahrendorf é menos
otimista: "São necessários seis meses para criar novas instituições políticas, para
escrever uma constituição e leis eleitorais. Pode levar seis anos para criar uma

9
Esses indicadores tem sofrido quedas no leste europeu, em especial a expectativa de vida que
na Rússia tem declinado rapidamente em conseqüência do stress e das dificuldades de vida
provocadas em grande parte pela incapacidade do Estado em garantir salários, pensões e
aposentadorias.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 18

economia viável, mas provavelmente levará 60 anos para criar uma sociedade
civil". (Dahrendorf, 1990).

Suas observações têm sido fundamentadas pelos estudiosos da transição


no Leste Europeu como Rose (1993) e Kolarska-Bobinska (1991). Ambos
concordam que as mudanças políticas são as mais difíceis de se implantar e de
consolidar. Estes autores observam que de fato as mudanças econômicas estão
se consolidando mais rápido do que as mudanças políticas. Aparentemente, as
dificuldades em construir um estado democrático: desenvolver instituições
autônomas e implantar o estado de direito se refletem na economia, que é pouco
civil. É o estado que torna o mercado civil, é ele que legisla sobre a propriedade
privada, que assegura o cumprimento dos contratos, que mantém a ordem
pública, que dá a segurança que encoraja investimentos (Rose, 1992). Esta visão
também é partilhada por Dahrendorf (1990) que vê uma incivilidade do mercado
também no fato de que seus defensores consideram que os atores são indivíduos
isolados, o que configura um ataque à sociedade civil e quando subscrita por
políticos torna-se uma verdadeira ameaça à sociedade civil. Esta teoria
econômica da sociedade negaria a existência e importância de instituições que
façam a mediação entre o estado e o indivíduo, transformando tudo em relações
econômicas e cidadãos em consumidores.

Uma economia civil exige respeito às leis, recolhimento de impostos,


propriedade privada, respeito aos contratos, prestação pública de contas, criação
de sociedades anônimas com participação acionária, entre outros aspectos,
exigindo um estado forte que consiga fazer respeitar as leis. As empresas devem
estar dissociadas do estado, ser financiadas por bancos e correr risco de
falência. O mercado que vai se criando, no Leste Europeu, expressa a dificuldade
destas sociedades em reconstruírem o estado e a sociedade civil: não se está
conseguindo romper os monopólios (Burowoy e Krotow, 1992). A ausência de um
poder central redistribuidor e regulador, transforma diferenças entre regiões e
entre grupos em desigualdades. As desigualdades e a mobilidade descendente
de largos grupos da população ficam ainda mais insuportáveis pela população
porque não desaparecem a intervenção da política na economia ou os privilégios
de alguns. Ao contrário, muitas privatizações, beneficiaram funcionários das
antigas empresas estatais e servidores públicos se uniram para comprá-las a
baixos preços que se transformam nos novos ricos (Simons, 1993). Estas
mudanças ocorrem em um vazio ético, no antigo regime, o partido comunista
controlava a voracidade dos membros da nomenklatura, perde este poder e a
sociedade não consegue aplicar as leis que criou. Criam-se ilhas de privilégios
em meio a um aumento da miséria, e a uma crescente incapacidade do estado
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 19

em prover benefícios sem que surjam instituições que as pessoas percebam


como as protegendo.

O Estado enfraquecido, não consegue regular as trocas e a competição


nem alterar a ética dos funcionários públicos que continuam tomando decisões
de modo centralizador, clientelista e corrupto, ou até mesmo coletar impostos
(Lloyd, 1993). Em conseqüência não consegue criar um clima de confiança entre
governantes e governados e mudar a percepção dos cidadãos a cerca das leis.
As leis continuam sendo percebidas como limites à ação dos cidadãos e não dos
governantes (Rumyantsev, 1990). Como o judiciário continua a operar segundo
práticas incompatíveis com a democracia (Rose,1993) permanece a sensação de
desigualdade das pessoas perante as leis.

Estes aspectos não favorecem o envolvimento dos cidadãos com a


política e até estimulam a apatia deles. A apatia combinada com a desconfiança,
com falta de controle sobre a própria vida, com a perda de qualidade de vida,
com a incerteza sobre o futuro não está levando as pessoas a se unirem mas a
uma fragmentação social. Este problema tem sido apontado por vários autores10
como um dos mais graves obstáculos para a constituição da sociedade civil.

As mudanças de valores que se exige das sociedades do Leste europeu


representam outro obstáculo: da valorização da igualdade social têm que
valorizar o enriquecimento e a competição (Kolarska-Bobinska, 1991), ao mesmo
tempo em que devem valorizar: 1 - a igualdade de direitos políticos e civis e a
liberdade individual; 2 - a responsabilidade dos governantes prestarem contas
aos cidadãos; 3 - a participação dos cidadãos nos grupos de interesse e a
solidariedade social; 4- o pluralismo não só como tolerância das diferenças mas
como percepção "de que a sociedade é melhor por ser diferente" (Rose, 1993).
Em meio aos temores causados pelas perdas da segurança social, têm que
aprender a valorizar o conflito, e a transparência do processo de decisão,
abandonando as práticas clientelistas e de nepotismo. Devem ainda aprender a
valorizar relações de poder horizontais, quando a experiência anterior
recompensava a aceitação de hierarquias rígidas. Essas mudanças são
complexas e os autores reconhecem é longo o caminho para surgir o "bom
cidadão" (Dahl, 1992): que se preocupa com assuntos políticos e com a vida
política, que é bem informado sobre temas, candidatos e partidos, que busca
influenciar as decisões de governo pelo voto, se comunicando com membros do
governo motivado pelo bem comum, ou o "cidadão bom o suficiente": que tem

10
Benhard (1993); Lloyd (1993); Guenov (1991); Geremek (1992) e Kolarska-Bobinska (1991).
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 20

alguma informação sobre política, sobre as escolhas políticas disponíveis e


algum incentivo para agir para que elas se concretizem.

Outro grande desafio tem sido a organização e o funcionamento de novos


partidos. Em muitos países do Leste europeu até recentemente o único partido
que tinha estrutura de partido e que conseguia a fidelidade dos eleitores era o
Partido Comunista (Lloyd, 1993; Jasiewicz, 1992; Rumyantsev, 1990). Os
movimentos de oposição que participaram da transição eram movimentos muito
amplos que abrigavam precariamente grupos muito diferentes. Quando a
democratização começou estes grupos se fragmentaram. Até mesmo o
Solidariedade, na Polônia, que era o maior movimento, um dos mais longevos e
experientes sofreu grande perda de apoio (Jasiewicz, 1992).11 Os partidos que
têm surgido não têm uma definição ideológica clara. Os políticos que neles
militam têm as mesmas dificuldades em agir na democracia que a população:
lidar com conflitos abertos, em debater, criticar e estabelecer acordos sem
violentarem os princípios partidários.

4. Obstáculos à consolidação no Leste Europeu


Os obstáculos à consolidação no Leste Europeu decorreriam dos motivos
para a transição e dos legados autoritários. Essas transições, em sua maioria,
decorreram de uma descrença da sociedade no sistema econômico de um
cinismo com os privilégios recebidos pelos membros da "nomenklatura" e de uma
aspiração por padrões de consumo ocidental. As transições (à exceção da
Romênia) ocorreram através de negociações entre os grupos no poder e
opositores ou dissidentes, sem ruptura e portanto com um alto grau de
continuidade. A burocracia estatal, com forte compromisso com o partido
comunista era a única com experiência em negociar com o exterior, detinha forte
poder para sabotar o novo regime e não podia ser substituída. O novo regime
não podia recuperar experiências democráticas anteriores porque o período
autoritário foi longo e a memória de outros regimes tornou-se muito distante,
agravado pelo fato destas experiências terem sido pouco expressivas. O sistema
de partido único e a forte punição da dissidência restringiram a formação de
quadros com experiência em negociar conflitos e estabelecer acordos. Em razão
da politização dos militares e de sua presença na economia e na política externa
estes quadros não têm a neutralidade necessária para serem subordinados ao

11
Há uma diferença grande entre participar de uma dissidência a atuar no parlamento,
examinando e questionando propostas de governo, negociando conflitos, e estabelecendo
compromissos (Rose, 1993). Os grupos devem organizar-se, recrutar pessoas, estabelecer
programas partidários, levantar fundos, estabelecer regras de conduta para seus representantes e
vínculos com o eleitorado.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 21

executivo e submetidos ao controle do parlamento. Estes aspectos seriam mais


difíceis de reverter quando a transição ocorre junto com ajustes econômicos que
produzem perdas para estes setores.

O judiciário, que funciona sem autonomia e sem neutralidade, deve


aprender a atuar segundo um novo conjunto de leis e de novos princípios. Estas
mudanças exigem mudanças profundas no comportamento, nos valores e na
ética das pessoas, sem que se possa- a curto prazo- recompensá-las ou garantir
que os benefícios destas mudanças justificam os custos. Ao contrário, os
primeiros a lucrar com as mudanças são justamente aqueles identificados como
os beneficiados no antigo regime: a "nomenklatura", os burocratas do governo e
do partido e as máfias. O controle civil dos militares é dificultado pelas disputas
étnicas que ameaçam a integridade do país. O estado enfraquecido não
consegue desmontar os serviços de segurança e obter o controle da coerção. A
corrupção que acompanhou a perda de legitimidade do regime anterior se torna
mais visível e continua impune. Os prêmios à obediência foram retirados, as
estratégias de cooptação das minorias étnicas eliminados, as diferenças entre os
grupos se ampliam, a fragmentação da sociedade se torna visível.

A transição ao invés de resolver os dilemas anteriores parece agravá-los


de modo ainda mais perverso sem ao menos o conforto dos benefícios sociais
que existiam, e com a agravante, como mencionado, que quem deveria ser
"perdedor" (os opositores da democracia) se torna "vencedor". Nestas condições
como fazer a sociedade confiar na eficiência e justiça do sistema?

Uma pergunta que guiou a revisão da literatura foi sobre qual o papel dos
direitos humanos na transição para a democracia nos países do Leste da Europa:
as violações e as garantias aos direitos humanos não aparecem na literatura
sobre transição ou consolidação- quer como um dos fatores desencadeadores do
desencanto com o regime anterior, quer sobre o que representa para a
consolidação da democracia. Pode-se dizer que os direitos humanos não são um
tema da transição no Leste da Europa, apesar da experiência de controle e
punição da dissidência durante o regime anterior. Essas lacunas são alimentadas
pelo fato de que as tentativas de reforma das polícias e da magistratura, quando
ocorrem têm sido realizadas com a assistência de profissionais dessas áreas
vindos do Ocidente: por exemplo, as polícias americanas e canadenses têm
colocado suas expertises à disposição dos países do Leste, assim como as
associações de juristas e de advogados. Tentativas de mudanças e de reformas
têm ocorrido sem o acompanhamento de pesquisadores e acadêmicos mas
movidas por esses profissionais, com resultados muito heterogêneos. O
essencial é que até o momento não se percebem mudanças substanciais nas
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 22

práticas desses grupos e com freqüência o Estado é descrito como não detendo
o controle sobre as forças de coerção e de repressão (que continuariam a agir
contra a população e não para deter a atuação das máfias). É razoável imaginar
que as graves violações não tenham desaparecido, mas que, assim como na
América Latina, o alvo preferencial agora seja outro, o das populações com
menos poder e não mais a dissidência política. Se isto for verdade, o impacto
sobre a democracia é ignorado e esta lacuna pode estar indicando uma
normalização destas violações.

5. América Latina e Leste Europeu: convergências e divergências


A literatura sobre a transição e a consolidação democrática na América
Latina se diferencia daquela do Leste Europeu em vários pontos. A principal
pergunta, feita refere-se ao tipo de democracia que irá se estabilizar. Os
consensos são: apesar da democracia ser considerada, em toda a região, como
o regime ideal (Garretón, 1991) não existem garantias de que será possível
consolidá-la segundo o modelo anglo-saxão. Fala-se em "democracia protegida"
(Flisfich, 1989), "limitada" (Roniger, 1989), "formas autoritárias de democracia"
(Lechner, 1991), "democracias delegativas" (Weffort, 1992) "diferentes" (Karl e
Schmitter, 1991) ou "poliarquias diferentes" (O'Donnell, 1993). Qualquer que seja
esta democracia, ela não deverá ser estável, tendo em vista o número de
obstáculos que os autores arrolam para a consolidação democrática. O que
estaria ocorrendo não é uma etapa do processo de transição ou de instauração
mas: uma "transição sem consolidação" (Boron, 1989), "incompleta" (Garretón,
1991), "que não chega a lugar algum" (Peralta, 1993).
Esta previsão pessimista decorre dos obstáculos para a consolidação.
Segundo vários autores a severa crise econômica que atingiu a América Latina
da década dos anos 80, revelaria o esgotamento de um modelo de
desenvolvimento centrado no Estado. A crise exigiu ajustes econômicos muito
fortes, que têm sido aplicados em meio ao processo de redemocratização. O que
levou alguns autores (Rial, 1991 e O'Donnell, 1993) a enfatizarem que há muitas
semelhanças entre este processo e o que está ocorrendo no Leste Europeu12:
nas duas regiões as transições surgem junto com o esgotamento do modelo da
forte presença do estado na economia e na sociedade. A origem dos obstáculos
para a consolidação não estaria apenas no período autoritário, no tipo de
transição, ou nos motivos da perda de legitimidade do regime autoritário mas está
na história destes países, nas relações que se desenvolveram entre o estado e a

12
Rial (1991); Cavarozzi (1991) e Cammack (1994).
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 23

sociedade, nas relações de poder, na estrutura social e na cultura política que


emergiu. A transição para a democracia aumenta a visibilidade destes obstáculos
mas a longevidade deles é evidenciada pela alternância dos regimes
democráticos e autoritários na região e pela mistura de elementos autoritários e
democráticos nos valores, crenças e comportamentos destas populações.

Obstáculos para a consolidação na América Latina

As transições na América Latina apesar de iniciadas por diferentes


motivos13 foram, em geral, produto de negociações entre as elites: "transições
pela cúpula" (Garretón, 1991). Não houve transição imposta pela oposição ou por
ruptura, não ocorreu colapso completo do regime autoritário. As negociações, em
geral, garantiram algum tipo de proteção aos membros do antigo regime (anistia,
imunidades)14 principalmente no que se refere às violações de direitos humanos.
A não punição destas violações restringe o controle civil sobre o aparato
repressivo (Franco, 1990), dificulta a neutralização dos militares (Garretón, 1991),
permite a manutenção de núcleos de resistência à redemocratização, reforça a
sensação de que as leis não são iguais para todos e provoca um desencanto na
população.

Desse modo as transições, em geral, não tiveram participação das massas


ou de seus representantes nas negociações ou na instauração. Esta exclusão
prenuncia que o novo regime terá dificuldades em preencher uma das exigências
da democracia: ampliar a participação da sociedade no processo de tomada de
decisão (Garretón, 1991; Roniger, 1989) e fortalecer as formas de representação
de interesses. Prenuncia também uma forte resistência da elite consolidada à
presença das populações mais pobres na política e aos partidos políticos com
raízes sociais (O'Donnell, 1988). Sem esta aceitação o pluralismo, como
reconhecimento do outro ser diferente e mais como a valorização desta
diferença, não existe de fato, só no discurso. Há indícios fortes nas transições
latino-americanas, que não se altera o que Weffort (1991) denominou (no caso do
Brasil) de horror das elites à presença das massas na política, temerosas que
são que tal participação levasse a sua destruição. Este horror faria com que a
elite da direita tivesse sido incapaz (entre 1946 e 1964) e continuasse sendo de

13
da perda da legitimidade por fracasso econômico, pela violência da repressão ou pelo fracasso
em empreitada militar, ou até porque o sucesso econômico levou a uma abertura paulatina
(Roniger, 1989),
14
No Chile, por exemplo, a transição levou a uma democracia protegida, segundo Flisfich (1989)
com a tutela dos militares. Na Argentina, após o julgamentos dos militares, o regime democrático
parecia ter estabelecido o controle civil das forças armadas esta impressão foi afetada pela anistia
concedida aos militares, após a insurreição por membros das forças armadas (Cheresky, 1990).
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 24

"conjugar a defesa da liberdade política à defesa da igualdade social" (Weffort,


1992).

As transições decorrem assim de arranjos entre as elites, muito


permeáveis às "escolhas precipitadas e alianças oportunistas" (Karl e Schmitter,
1991). Um exemplo disto, segundo O'Donnell (1988a e 1988b), é a transição
brasileira uma "transição pactuada" na qual o governo autoritário impôs a
agenda. Isso garantiu aos conservadores ganhos superiores nas negociações ao
que teriam obtido através das urnas, conseguindo postos no governo e poder,
reforçando-se as práticas clientelistas e prebendalistas e impedindo uma clara
definição de "vencedores" e "perdedores", de quem era a favor da democracia e
quem era contra. Os políticos autoritários ao invés de derrotados entraram na
transição fortalecidos, controlando recursos importantes. Estes políticos, recém
convertidos à democracia15, representam uma armadilha para a consolidação,
pois o compromisso deles com a democracia pode ser apenas uma estratégia de
sobrevivência. Não temem uma regressão autoritária16, pois não têm receio de
perder seu papel caso isto ocorra logo não fazem uma opção irreversível pela
democracia. Os políticos autoritários irão resistir às mudanças que alterem suas
bases de poder fundeados que estão no patrimonialismo, no clientelismo, no
regionalismo, na pouca disciplina partidária, e na pouca ideologia partidária. Para
estes políticos, a democracia ideal é aquela delegativa na qual se percebem
como tendo recebido uma delegação de seus eleitores para fazerem o que
acharem melhor para o país, estando isentos de controles internos e de
prestarem contas a seus eleitores (O'Donnell, 1993).

15
Este fenômeno da conversão dos políticos conservadores, no Brasil, é muito bem abordado por
Bonfim (1993) descrevendo a conversão dos monarquistas à República no dia seguinte da
proclamação da mesma: "Trava-se uma nova batalha, desaparece finalmente a monarquia; a
batalha é incruenta, proclama-se a República, ninguém protesta; ninguém se espanta mesmo ao
ver que, no dia seguinte - literalmente no dia seguinte, toda a gente é republicana. O instinto lhes
diz que a República vem a ser o que era a monarquia; não há razão para que fique alguém de
fora. A República, dentro da qual há uns raros republicanos e democratas, traz algumas
veleidades de reformas (....) mas tem contra si, logo, alguns dos que a fizeram. (...) Já vemos
confundidos, de um lado e do outro, republicanos de ontem e de hoje. Agora, neste primeiro
momento, não se trata verdadeiramente de combater os revolucionários e democratas, mas sim
de conquistar um lugar entre eles: ir entrando, entrando, até superá-los e absorvê-los. Não se
quer combater a República, e sim conquistá-la". (pg.278).
16
Como mostra O'Donnell (1988), ao contrário do que ocorreu em outros países latino-
americanos o regime autoritário ao manter eleições para postos não majoritários, ao manter as
câmaras municipais, assembléias legislativas estaduais, e o Congresso Nacional, e ao manter
partidos políticos permitiu a continuidade do tipo de política que se fazia antes do regime
autoritário e a presença da maioria dos políticos que não ameaçavam a nova ordem. Estes
políticos sobrevivendo ao período autoritário, não sentem neste regime uma ameaça a sua
existência, logo não têm incentivos para fazerem uma opção irreversível pela democracia, pois
este não é o único regime no qual podem existir como tal.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 25

6. O novo e os legados autoritários: os obstáculos apontados para a


consolidação
A transição e a instauração, que deveriam ser momentos de ruptura com o
passado, ao contrário, parecem ser momentos de grande ambigüidade, em que
elementos francamente democráticos se mesclam com outros do passado
autoritário, provocando forte frustração e apresentando alguns paradoxos. Alguns
ganhos apontados pela literatura se referem principalmente no campo político e
na seleção de representantes: amplia-se a franquia, elegem-se representantes
para os principais postos de governo, surgem novos partidos, inclusive de
esquerda, juntamente com os velhos partidos.

Estas mudanças, no caso do Brasil, revelam-se razoavelmente


consolidadas: há maior competição política, há alternância de partidos no poder,
o regime democrático resistiu ao impeachment de um presidente eleito, não há
coalizão pela volta do regime autoritário. Produziu-se uma nova constituição com
novas leis, novos direitos sociais, e novas garantias. Eliminou-se a censura, a
liberdade de imprensa permite maior acesso à informação, as pessoas perderam
o medo de expressar suas idéias, há dissidência, oposição e crítica. Surgiram
várias organizações de interesses na sociedade civil, existem mobilizações
espontâneas e autônomas. Aumentou na população as atitudes anti-autoritárias e
o discurso democrático tem prestígio (O'Donnell, 1988). Existe algum controle
civil sobre os militares. A participação nas eleições e a crença no voto como
instrumento de mudança são altos a despeito da forte descrença nos partidos
políticos e nos políticos porque estes não percebidos como garantindo que suas
decisões conciliam interesses individuais e coletivos.
Mas as práticas de poder e de negociação, os processos de tomada de
decisão, a divisão de poder dentro do país (entre regiões) e dentro da sociedade,
permanecem os mesmos do período autoritário. No caso do Brasil, em particular
não se consegue institucionalizar uma democracia de procedimentos. O processo
de decisão continua limitado nas mãos de poucos sem ampla consulta e, com
freqüência é marcado pelo patrimonialismo e até mesmo pelo arbítrio. Há pouco
questionamento da legitimidade deste processo, principalmente no que se refere
a política econômica17. Não se consegue garantir que as desigualdades

17
Um exemplo está na aceitação, por amplos setores da população, da elite à classe
trabalhadora, do confisco determinado pelo Plano Collor. É interessante que, em geral, há pouca
crítica, por parte da elite econômica, a qualquer política econômica quando de seu anúncio, quase
como se a dissidência neste tema fosse algo que devesse ser mantido privadamente.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 26

econômicas não se transformem em desigualdades políticas e civis e isso não


provoca indignação junto à população, ao menos no Brasil18.

Parte destas continuidades talvez se explique pela sobrevivência de


elementos associados ao regime autoritário. Isso se observa em todos os países
latino-americanos, nos principais atores no plano político, na burocracia do
estado no judiciário, nas forças armadas, nas agências de controle social. Os
formuladores das leis, os que devem implementar decisões e as leis
permanecem, em larga medida, os mesmos do regime anterior19. Mas estas
continuidades não explicam porque na democracia não são resolvidos alguns dos
principais problemas dessas nações, principalmente a extrema desigualdade na
distribuição de rendas na sociedade.

A consolidação na América Latina estaria sendo dificultada por uma outra


característica destes países que é o sistema de governo: o presidencialismo, um
sistema de governo interpretado pelos teóricos da transição como menos propício
para a estabilização da democracia (Morlino, 1986). O presidencialismo
dificultaria a consolidação por representar uma concentração de poder de
decisão e não estimular acordos (Lechner, 1991), permitir uma grande autonomia
do poder presidencial em relação aos grupos de interesse e pressão e uma
subordinação a interesses políticos (Chreresky, 1990), encorajar a competição e
não a cooperação. Estas características em um contexto de sistema de partidos e
da representação política fracos facilitariam a continuidade do corporativismo.
(Lechner, 1991)

A grande continuidade autoritária na transição e a crise econômica,


ampliando os obstáculos para a consolidação da democracia, dominam a
literatura latino-americana sobre a transição e a consolidação. Se no Leste
Europeu a grande dificuldade que se apresenta para a democracia é a
construção de uma sociedade civil, na América Latina o grande desafio é
descontaminar a sociedade civil das práticas autoritárias e democratizar, de fato,
as ações do estado, do legislativo e do judiciário. O desafio da transição é a
construção de uma cidadania democrática. Esta cidadania não se constrói
automaticamente com a transição.

18
Pesquisa realizada pelo IBOPE (1990/1989) para a Comissão de Justiça e Paz de São Paulo,
em São Paulo, Recife e Rio de Janeiro, mostrou que apesar a maioria das pessoas nestas
cidades considerarem que é freqüente (ou sempre) políticos se elegerem só porque têm mais
dinheiro na campanha, isto não é considerado como muito grave. Estes dados sugerem uma
aceitação da transformação da desigualdade econômica em desigualdade política.
19
Esta continuidade dos atores não é privilégio do caso brasileiro, mas é um fenômeno observado
nas transições latino-americanas (e também nas do Leste Europeu, como já citado). Garretón
(1991) elaborou longamente sobre os efeitos deste tipo de continuidade sobre a consolidação.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 27

Se no regime autoritário, na América Latina, havia uma mistura de


componentes autoritários e democráticos o mesmo ocorre na transição e daí
deriva outro paradoxo: porque, na democracia, os componentes democráticos da
sociedade não se sobrepõem aos autoritários? Neste ponto a literatura latino-
americana sobre a transição e consolidação democrática nos permite visualizar
que o caso brasileiro não é tão único quanto poderia parecer. Haveria pouca
cultura política democrática em todos os países latino-americanos: muita
aceitação da incerteza, da instabilidade, da desigualdade do clientelismo e do
corporativismo (Roniger, 1989; Jelin, 1989 e Franco, 1990); normalização da
violência, e pouca crença no funcionamento das instituições (Boron, 1989 e
Franco, 1990) descrita como sendo "uma verdadeira praga na América Latina”
(Boron, 1989).

Outros obstáculos compartilhados pelos países latino-americanos,


segundo esta literatura, são várias continuidades: de atores autoritários no poder
e do arbítrio; da existência de limites à participação da população; de partidos
oligárquicos; da ausência de controle civil das forças de coerção; do receio de
regressão autoritária e o obstáculo considerado como o maior deles - da
dificuldade em se reformar, transformar ou desmantelar instituições autoritárias
de modo a adequá-las à democracia (Jelin, 1989). A reconstrução destas
instituições é uma tarefa essencial para que a sociedade civil deixe de "estar
subordinada ao aparato do Estado" (Weffort, 1992), como para que ocorra a
democratização do Estado no sentido tanto de aumentar a participação da
sociedade em decisões que a afetem, como o seu acesso aos benefícios e
serviços e às leis.

7. As graves violações dos direitos humanos e a consolidação da


democracia

O papel das instituições

A reconstrução de instituições, nos países latino americanos,


principalmente no que se refere aos partidos políticos, ao judiciário, à polícia e
aos serviços públicos em geral, não tem ocorrido. Há uma continuidade na
estrutura organizacional destas instituições, em seu funcionamento e em sua
forma de se relacionar com a sociedade e de atendê-la. A construção institucional
é básica para a eliminação dos vícios autoritários: a concentração de poder na
tomada de decisão e a conseqüente falta de transparência contidos no
"informalismo" do patrimonialismo, do corporativismo e do prebendalismo.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 28

Uma das características autoritárias da sociedade estaria na dificuldade


em perceber o conflito de modo criativo e em valorizar mecanismos neutros
institucionalizados de resolução destes conflitos. Isto impede que processos
próprios de democracia sejam considerados como estratégias legítimas de
negociação, por exemplo, o estabelecimento de limites mútuos, com regras para
a competição pelo poder e por recursos públicos (Roniger, 1989). Estas
sociedades também descrêem de instituições mediadoras (Cheresky, 1990;
Cavorazzi, 1991). O fracasso das instituições em mediarem os conflitos,
realimenta estas crenças. Outra característica destas sociedades, que afeta a
capacidade de mobilização delas, é a dificuldade de emergir uma forte identidade
da classe trabalhadora (O'Donnell, 1988) e vínculos de solidariedade dentro
desta classe.

A presença destas características significa que dificilmente surgirão


desafios à hierarquia de poder, e exigências de redistribuição deste poder, de
prestação de contas à população ou demandas por regras claras, transparentes e
universais. A presença destas regras exigiria o abandono das práticas
patrimonialistas e clientelistas cujas margens de incerteza estão perfeitamente
delimitadas e que se aceitasse um processo de decisão neutro, independente de
pressões mas eivado de incertezas. Estes legados autoritários, quer no Estado e
em suas instituições quer na sociedade civil, seriam obstáculos para a
transformação de práticas, valores e atitudes essenciais para a que a democracia
se torne "a única regra de jogo" (parafraseando Stepan).

Os partidos políticos e o funcionamento dos parlamentos

Os partidos que surgem não consultam as bases para selecionarem


candidatos, não prestam contas aos eleitores e não admitem a representação
dos estratos mais pobres. Estes partidos também não aceitam mudanças
profundas nas regras que permitiriam aumentar as exigências de fidelidade
partidária, que alterem a distribuição da representação política, que incorporem
quem está fora, ou encorajando amplo debate sobre as políticas públicas
(O'Donnell, 1988; Roniger, 1989; Garretón, 1991; Franco, 1990 e Cammack,
1994). A representação que daí resulta é uma representação empobrecida, que
não consegue fortalecer o estado de direito e que mantém a distância entre a
elite e a população (O'Donnell, 1988). Este tipo de representação sobrevive às
custas do clientelismo e do prebendalismo, obtendo recursos para seus bolsões
de eleitores sem nenhuma preocupação com o bem comum ou com a separação
entre o público e o privado, ao contrário misturando-os (O'Donnell, 1993). Estes
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 29

mesmos partidos têm conseguido quando instados pela sociedade, em alguma


medida aplicar as leis contra os governantes20.

O Executivo e o Judiciário

Se o legislativo não consegue alterar suas práticas e valores para torná-los


mais compatíveis com a democracia, o mesmo ocorre com o executivo e com o
judiciário. A uma forte crise econômica estimula a divisão da sociedade entre
aqueles que dão prioridade à "modernização do Estado" entendida como a
redução de sua presença na economia pela: privatização de empresas estatais e
de serviços prestados pelo estado e pela desregulação de setores e aqueles que
priorizam a democratização do Estado através da maior participação da
população nas decisões que a afeta. Isso exige um estado fortalecido capaz de
implementar políticas que desagradem as elites econômicas. Com maior
freqüência, os estados têm reduzido o acesso e/ou a qualidade dos benefícios
garantidos pelos direitos sociais ampliando a ambigüidade da população em
relação a ele, percebendo-o como garantindo e desrespeitando os direitos sociais
e econômicos (Jelin, 1992).

As pressões econômicas (e políticas) pela redução do Estado agravam a


"fraqueza" do estado, expressa na incapacidade em garantir a aplicação das
suas próprias leis em todo o território nacional. Para O'Donnell (1993), o Estado
que se constitui é um estado misto, "estado esquizofrênico", onde predomina
uma alta heterogeneidade legal territorial e funcional- poderes locais autônomos
operam segundo regras contraditórias com aquelas que, em tese, valem a nível
nacional, estabelecendo governos "personalistas e violentos, patrimoniais abertos
a toda sorte de práticas violentas e arbitrárias" negando de fato as garantias
democráticas. A legalidade que se estabelece é "truncada" porque o sistema
legal não contém garantias que permitam que cidadãos comuns o acione contra
os governantes ou contra outros com poder. Mas pode-se dizer que a legalidade
também é truncada em outros níveis: não atinge todo o território, e não atinge
todos os cidadãos: mulheres, pobres e índios e negros não têm acesso a

20
Exemplos disto têm sido muito freqüentes, além do impeachment do ex-presidente Collor, no
Brasil, tivemos o impeachment do ex-presidente Andrés Perez na Venezuela e em uma mesma
semana de setembro de 1995 a imprensa noticiava as seguintes investigações pelos parlamentos
dos respectivos países: do ex-presidente do Peru (Alan Garcia), do ex-presidente de Honduras
(por corrupção), do ex-presidente da Venezuela e do presidente (por suspeita de envolvimento
com a falência fraudulenta de bancos), do presidente da Colômbia (financiamento de campanha
pelos narcotraficantes), do presidente da República Dominicana (por corrupção), do vice
presidente do Equador (por corrupção) e a destituição do Ministro da Economia do Equador (por
tráfico de influência).
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 30

tratamento justo pelos tribunais ou serviços públicos e não estão livres da


violência policial.

É possível que a ausência destas garantias explique porque não se


consegue remover o "arcaísmo das relações entre classes" (O'Donnell, 1988). As
classes dominadas continuariam sem recursos para desafiar as classes
dominantes. A cidadania que emerge seria uma cidadania de "baixa intensidade"
(O'Donnell, 1993). Já para alguns autores (Cammack, 1994) não há cidadania e a
América Latina estaria produzindo um outro desafio para a teoria da democracia
levantando a possibilidade de uma democracia sem cidadania.

Qual é o papel do Judiciário e das violações dos direitos humanos na


construção de uma democracia tão peculiar? Na transição e na instauração,
como vimos, mudam as leis mas não mudam aqueles grupos encarregados de
colocá-las em prática. Tanto no caso do Judiciário como no caso da polícia, a
continuidade de pessoal é problemática. Estas instituições, com freqüência,
foram duramente afetadas pelo regime autoritário, tendo sofrido investigações,
expurgos e punições para se garantir a submissão (quando não a cumplicidade)
destes setores ao regime autoritário. A transição democrática raramente introduz
mudanças na estrutura destas instituições e nas formas de controle externo, e
mais raramente apareceram desafios que representem um divisor de águas entre
o regime autoritário e a democracia, tal como ocorreu na Argentina durante o
julgamento dos militares.

Estes julgamentos, na Argentina, deixaram entrever o potencial de atuação


do Judiciário na consolidação da democracia. Os julgamentos, segundo vários
autores21 tiveram profundo impacto sobre a sociedade argentina e sobre o próprio
Judiciário permitindo uma ressocialização da sociedade em relação a aplicação
das leis. Renascerem crenças e valores democráticos: "a sociedade podia
reconhecer-se na figura de uma justiça que não se dobrava ante os muito
poderosos" (Cheresky, 1990), até os militares podiam ser punidos por
desrespeitarem as leis22. Isso confirma a autoridade do sistema Judiciário,
satisfeito as noções populares de justiça e aumenta a credibilidade do estado de
direito e da democracia, institucionalizado o respeito pela vida humana (Jelin,
1989). Teria permitido ainda mais, que temporariamente, houvesse uma
neutralização das forças armadas (Garretón, 1991) e sua subordinação ao poder
civil. Este efeito do Judiciário seria tão profundo que teria permitido que a imagem

21
Cheresky (1990); Jelin (1989); Boron (1989); Franco, (1990) e Garretón, (1991).
22
Processo semelhante parece ocorrer na África do Sul com a atuação da Comissão pela
Verdade e Reconciliação.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 31

daquele poder, como garantia constitucional da cidadania, se mantivesse


intocada a despeito da posterior anistia concedida aos militares (Jelin, 1992)23

Este efeito do Judiciário, observado na Argentina, não é a norma das


transições nos países latino-americanos. Na maioria deles a transição parece ter
tido pouca (ou nenhuma) influência na estrutura, organização, composição e na
forma de atuar do sistema Judiciário ou da polícia. No caso brasileiro, como
mostra Pinheiro (1995) não houve reforma efetiva, não se ampliou a presença do
Judiciário no país (o número de juízes permaneceu o mesmo- insuficiente), não
se aumentou o acesso dos pobres ao Judiciário, e a corporação tem se mostrado
tímida em punir abusos de poder cometidos pelas forças policiais. O Judiciário
não se apresenta como uma instituição comprometida com a extensão das
garantias constitucionais a toda população sem distinção de classe, sexo, ou cor.

Mesmo na Argentina, onde inicialmente houve a sensação de que o


Judiciário mudara radicalmente (Abregú, 1993), em relação às populações mais
pobres isto não ocorreu. Ele é visto como facilitando a continuidade da violência
institucional exemplificada pela violência policial. O Judiciário, na Argentina, não
incorpora reformas legais que reduziriam as violações de direitos humanos,
principalmente aquelas que restringiriam a prática da tortura pelas forças
policiais. Esta prática é codificada como maus tratos, o que juridicamente garante
a impunidade dos acusados por ser praticamente impossível de ser provada.
Além disso os tribunais continuam aceitando como prova "declarações
espontâneas" que segundo a legislação vigente deveriam ser substituídas pela
obtenção de provas por meios legais. Esta aceitação seria um estímulo a abusos
por parte dos policiais. Se o legislativo argentino não se preocupa com o impacto
das normas e leis que gera sobre os direitos humanos da população, o Judiciário,
por sua vez, não prioriza este tema e não se dispõe a limitar a autonomia das
forças policiais e impedir a continuidade das práticas violentas. Esta postura do
Judiciário sugere que ao menos um dos poderes do Estado democrático não está
preocupado em fechar o que O'Donnell (1993) chama de "o círculo virtuoso da
democracia" e universalizar a legalidade, garantindo a efetividade de direitos e de
proteções, individuais e grupais, contra os governantes e o aparato do estado. O
Judiciário na democracia contribuiria para a manutenção do que é, para
O'Donnell (1993), o principal atributo do autoritarismo. Assim não surpreende que
a imagem que predomina na América Latina, e no Brasil em particular, é de que o
Judiciário: não é neutro, só funciona para os ricos, não consegue assegurar
contratos, não consegue ser acionado pelos pobres, é lento e não é submetido a

23
Esta interpretação não é consensual, Boron (1989), por exemplo discorda e acha que a anistia
aos militares provocou um desencanto generalizado.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 32

controles democráticos (Franco, 1990). Quando a Justiça não funciona, quando


não garante o castigo ela justifica a justiça com as próprias mãos e o uso da
violência por parte da polícia (Jelin, 1992). A melhoria do desempenho da justiça
ou a exigência de controles democráticos da polícia ou da justiça, controles estes
essenciais para ao menos neutralizar "enclaves autoritários" (Garretón, 1991),
não se tornam demandas prioritárias da sociedade. Em parte porque as
dificuldades cotidianas desviam a atenção da sociedade para outros temas -em
especial a economia- e em parte porque se estabelece um círculo vicioso: pior é
o funcionamento da Justiça mais provável é que a sociedade não se sinta segura
o suficiente para cobrar melhor desempenho das forças encarregadas da
aplicação das leis e a continuidade das violações dos direitos humanos. Como
veremos a seguir, esta prática está associada à insegurança.

A continuidade da violência institucional ilegal

A ausência de mudanças no Judiciário está associada à continuidade de


outra característica do regime autoritário: a violência institucional, exemplificada
pela violência ilegal, "as práticas autoritárias não foram alteradas pelas mudanças
políticas e pelas eleições competitivas" (Poppovic e Pinheiro, 1995). A violência
institucional na transição, no caso brasileiro, derivaria da falta de reformas na
estrutura das forças de segurança. A transição não afetou o que Pinheiro (1991)
chamou de "tecnologias de exercício de poder", pois não ampliou o controle, quer
do estado quer da sociedade, sobre as práticas ilegais das polícias, não mudou a
organização destas forças, não alterou a jurisdição dos julgamentos por crimes
cometidos contra civis por policiais militares e deste modo não reduziu a
autonomia destas forças. O mesmo foi observado na Argentina (Abregú, 1993),
onde a contenção das violações dos direitos humanos dos pobres não é uma
prioridade para o Estado. Enquanto a impunidade das violações de direitos
humanos ocorridas durante o regime autoritário é considerada um obstáculo para
a estabilização da democracia (Garretón, 1991; Franco, 1990 e Peralta, 1993). A
punição das violações seria uma demonstração de que estas violações são
incompatíveis com a democracia mas o mesmo não ocorre com a impunidade
cotidiana.

O respeito aos direitos humanos na democracia é considerado


fundamental e reiterado por vários autores24, entretanto a maioria destes autores
parece ignorar que tais violações continuam a ocorrer. Por que a continuidade
das violações junto a população da baixa renda não é priorizada pelos autores e

24
Flisfich (1989); Lechner (1991); Rial (1991); Jelin (1992); Cheresky (1990); Garretón (1991) e
Abregú, (1993).
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 33

por que não se transforma em um problema, não sabemos responder. No caso


do Brasil, onde a freqüência destas violações é muito alta é mais difícil não notá-
las, ainda assim há pouca consciência de que representam um obstáculo à
consolidação democrática. A continuidade destas violações é largamente
ignorada pela literatura sobre transição e consolidação na América Latina à
exceção de Pinheiro, Abregú e Rial, os únicos autores que se referem a este
problema25. Destes Pinheiro é quem aprofunda as relações entre esta
continuidade- a presença das violações estruturais (direitos sociais e
econômicos)- e a dificuldade em se consolidar a democracia.

A continuidade destas violações é interpretada por Abregú e por Rial como


sendo "funcional". Para Abregú (1993) estas violações provam que para os
pobres não houve "o desterro do terror", elas seriam funcionais porque
permitiriam que se legitimem privilégios imerecidos e porque faz parte das
práticas sociais onde a negação da comunidade se expressa através do
desprezo pela vida do outro. Rial (1991) considera que a sobrevivência destas
violações é uma forma de se controlar insatisfações sociais e de se limitar o
pluralismo, calando-se demandas e excluindo-se grupos de decisões. Esta
interpretação é semelhante à de Pinheiro (1991) para quem as violações têm um
caráter de "pedagogia do medo" que sustenta violações estruturais (econômicas
e sociais).

A continuidade das violações, no caso do Brasil, dar-se-ia não mais como


parte de uma política deliberada do Estado mas por omissão deste (Pinheiro,
1995)26. O Estado não age para punir de modo exemplar seus funcionários que
praticam violações deste modo tem uma responsabilidade indireta em sua
continuidade. Esta continuidade faz com que apesar da democracia, das eleições
livres, de uma nova Constituição, das liberdades e garantias para a dissidência,
da tolerância com as diferenças e da presença de pluralismo, as pessoas não se
sintam protegidas do arbítrio.

Isto é bem visível no caso brasileiro, já que dispomos de alguns dados de


pesquisa, mas pode estar ocorrendo em outros países latino-americanos: México,
Colômbia, Guatemala, por exemplo, pois são países onde a violência está

25
Como mencionado a continuidade destas violações também é ignorada pelos estudiosos da
transição e da consolidação no Leste Europeu e pelos teóricos da transição e da consolidação em
geral.
26
Outros autores, como Sanderson (sem data), acham que a omissão do Estado brasileiro no
caso da violência no campo é funcional. Esta violência por parte de latifundiários, e políticos locais
serviria para "manter a ordem" entre os posseiros, sem terras, poupado o Estado de usar seu
recursos para a manutenção da paz.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 34

profundamente enraizada na sociedade. A pesquisa realizada pelo NEV27 revelou


a existência de profunda sensação de desproteção que as pessoas sentem em
relação à possibilidade de abuso de poder por parte do Estado. Estas avaliações
sugerem que se predominam atitudes e valores anti-autoritários (O'Donnell, 1988)
não temos certeza de que estes são democráticos. A democracia não teria,
ainda, se transformado em um valor absoluto do qual não estamos dispostos a
abrir mão28. Os ganhos da democracia não são tão visíveis para a maioria da
população quanto as dificuldades econômicas e sociais experimentadas. Além
disso, nos acostumamos rapidamente com as liberdades conquistadas de modo
a até a esquecermos como era viver sem elas no período autoritário. A isto se
acrescem as dificuldades em se conquistar mudanças profundas nas práticas de
instituições chaves para alterar as relações de poder e o processo de tomada de
decisões, elementos básicos para que a democracia seja percebida como
responsável por uma mudança sensível na qualidade de vida das pessoas. Estes
elementos realçam a imagem das continuidades e dos legados autoritários e
obscurecem os ganhos.

Os estudos da transição e da consolidação democrática nos ajudam a


entender que os processos aqui vivenciados não são únicos mas compartilhados
por diversas nações na América Latina e no Leste Europeu, porém, apresentam
uma série de limitações. A principal delas está em subestimar a dificuldade em se
mudar práticas enraizadas nas sociedades. Esta literatura reconhece que há uma
série de perguntas ainda não respondidas: como consolidar as instituições? (Di
Palma, 1988) Como diferentes tipos de sociedade civil afetam a consolidação?
(Bernhard, 1993). Qual é papel dos direitos humanos, das pressões externas, do
contexto internacional, e autonomia das instituições militares após a transição na
consolidação? (Rial, 1991). Como diferentes tratamentos dispensados às
violações dos direitos humanos durante o regime autoritário (pune ou não) afetam
o tipo de democracia que se constrói? (Jelin, 1989).

Poucas perguntas são levantadas sobre como se muda as relações de


poder, como se reduz a assimetria da sociedade, como se amplia o processo de
tomada de decisão, como se garante um funcionamento democrático das
instituições, como então se sepulta o patrimonialismo, o elitismo e como se
modernizam as relações sociais. A cidadania democrática não emerge

27
A ideologia autoritária na vida cotidiana, subprojeto da pesquisa: "Continuidade autoritária e
consolidação democrática I" NEV/CNPq 1990-1994.
28
Os brasileiros seriam, entre os povos latino-americanos, aquele que menos preferência tem
pela democracia. Segundo pesquisa realizada pelo IDESP em maio/junho de 1995 apenas 41%
dos entrevistados, no Brasil fazem questão da democracia em qualquer circunstância enquanto
86% dos uruguaios e 76% dos argentinos têm esta posição.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 35

automaticamente, com a transição. Se Karl e Schmitter (1991) estiverem


corretos, ela decorre da democracia, mas o que é esta cidadania? Ela deve ser
tolerante com as diferenças, deve valorizar a dissidência e o pluralismo, precisa
haver confiança entre as pessoas, ter alguma informação sobre temas políticos
de seu interesse e sobre as escolhas políticas disponíveis e algum incentivo para
agir para que elas se concretizem, isto é, ser o "cidadão bom o suficiente" (Dahl,
1992).

Este cidadão bom o suficiente deve sentir um mínimo de eficácia política


ou competência cívica: a sensação de que são capazes de influenciar o processo
de decisão de políticas públicas. Esta eficácia ou competência é um traço que os
regimes autoritários procuram evitar tanto no plano individual como coletivo.
Estes regimes tratam de eliminar as formas de organização da sociedade e que
possam atuar como grupos intermediários entre o indivíduo e o Estado (Lipset,
1993). Tratam de punir severamente as críticas e de restringir as garantias e
proteções individuais. Uma cidadania modelada de modo a se sentir sem poder
frente os governantes, como ocorreu tanto na América Latina como no Leste
Europeu, exige uma ressocialização política para se tornar democrática.

A existência de leis não é suficiente para garantir a cidadania. A realidade


necessita ser congruente com as leis, é preciso de fato viver a proteção das leis,
receber tratamento justo das agências do Estado e proteção contra a violência
delas (O'Donnell, 1993). Viver a tolerância e o pluralismo demanda que a
burguesia se civilize e aceite a "emergência dos dominados" (O'Donnell, 1988).
Ter confiança nas pessoas exige o império da lei. A confiança de que as leis
garantem a igualdade de tratamento necessita que as instituições estejam a
serviço dos cidadãos, que ninguém seja "dono" delas. Mas onde começariam
estas mudanças quando a população é tão submissa que leva O'Donnell (1988) a
dizer "que eu saiba não existe outro caso na história de uma burguesia
economicamente tão bem sucedida que haja sido tão pouco desafiada"? Se a
população não irá exigir mudanças, se elite econômica não tem incentivos para
mudar e se as instituições não parecem automotivadas para fazê-lo, como
garantir as mudanças estruturais necessárias para a consolidação da
democracia? Esta consolidação não está garantida por mudanças legais, por
modelos de desenvolvimento econômico ou por modelos de democracia política.
Ela tem que ser buscada (Garretón, 1991) mas a contradição está em que não
tem oferecido oportunidade para que esta profunda ressocialização política
ocorra e para que se crie essa busca. Este é um dos fortes obstáculos para a
consolidação.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 36

A hipótese que perseguimos no presente trabalho e que tem sido


negligenciada pelos estudos da transição e da consolidação, é que a
continuidade das violações dos direitos humanos é um dos elementos para se
entender porque a ressocialização política que ocorre é parcial. Esta continuidade
é indicador que a impunidade destas violações não é eliminada, que a lei
continua a ser aplicada de modo parcial e não universal e que o medo daqueles
em posição de poder continua a existir na sociedade. A continuidade da
impunidade e do medo são obstáculos para a construção da cidadania
democrática. Examinar estas questões exige que aprofundemos entre outros
temas, o estudo das instituições encarregadas da aplicação das leis.

8. A continuidade das violações dos direitos humanos


Estudar os obstáculos para a democracia exige, além da identificação da
presença dos elementos da democracia formal, a identificação dos legados
autoritários. Alguns deste legados são facilmente identificados, outros não. Estes
últimos representam um grande desafio teórico e prático. Os estudos da transição
e da consolidação baseados no que ocorreu no pós-guerra na Alemanha e no
Japão de certo modo subestimam as dificuldades das transições em países com
experiência de alternar entre períodos de democracia e de autoritarismo, as
dificuldades das transições sem ruptura, sem a imposição externa de um modelo
de democracia, de constituição e de estado e sem recursos financeiros (sem
plano Marshall) para consolidar a democracia.
Bonfim (1993) em seu texto originalmente publicado em 1905, fala a
respeito da relação de desconfiança e medo que teria permeado a relação entre
o governo, seus representantes e a população no Brasil colonial. Tanto o medo
como a desconfiança teriam sido cuidadosamente alimentados pela matriz como
uma forma de controle29. Uma das táticas adotadas era a proibição de que
pessoas aqui nascidas tivessem qualquer cargo de poder para evitar vínculos de
confiança entre eles e a população e, certamente, qualquer sensação de controle
por parte da população sobre estes governantes: "Os funcionários vinham
sempre da metrópole. Evitava-se com muito cuidado admitir em empregos até
mesmo os próprios descendentes de europeus, nascidos na América... e foi
assim que se gerou entre os povos das colônias e das metrópoles essa

29
Como descreve Bonfim: "para garantir a cobrança desses tributos e tornar efetivos os seus
privilégios, os governos da metrópole mandam cá seus representantes, espalham por toda a
colônia uma rede de agentes, opressores e vorazes, impostos como diretores da vida pública; e
desde logo é defeso às novas sociedades o organizarem-se espontaneamente, segundo os seus
interesses e inclinações... o governo da coroa deixa ao colono toda a plenitude da ação para o
mal; ele é livre para fazer o que quiser, contanto que pague e não pense em modificar o regime
social e político."(Bonfim, 1993, pg.142).
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 37

rivalidade, que em breve se transformou em aversão." (Bonfim, 1993; pg. 143)


Esta relação de distância entre governantes e governados ocorreu em todas as
colônias de modo mais ou menos acentuado e estas colônias desenvolveram
diferentes estratégias para conviver com isto. No Brasil, a sobrevivência da frase
"Aos amigos tudo e aos inimigos o peso da lei" revela a base de uma das
estratégias adotadas o patrimonialismo, o prebendalismo e o clientelismo. Esta
frase significa que até certo ponto não se espera que as leis sejam aplicadas de
modo neutro. As leis são para ser usadas contra as pessoas, de preferência
contra os desafetos. Em alguma medida as leis são usadas para se garantir a
submissão e não a proteção. A manutenção da submissão é funcional à
continuidade da assimetria de poder (O'Donnell, 1988)30.

As expectativas de que a democracia revolucione estas relações entre


estado e governados e de que as leis enfim predominem e sejam fonte de
proteção e de limites ao poder do Estado, não se realizam e como tudo mais não
se realizam em parte. Se antes o Estado era o "inimigo"31 ameaçador, se não era
percebido como uma fonte de apoio, essa percepção não sofre uma
transformação radical pelas continuidades relatadas. A ruptura é dificultada pelo
fato de que muitas práticas estão profundamente enraizadas, não são
estranhadas ou identificadas com o autoritarismo. Se a democracia não
consegue se consolidar também raramente foram vividos períodos longos de
regime autoritário: "poder absoluto, medo das críticas, das traições e dos desvios,
presença de polícias políticas e obsessão pela homogeneidade" (Touraine,
1991). Os períodos de governo autoritário mesclaram alguns destes elementos
com outros permitindo alguma liberdade individual. O arbítrio era exercido ora
claramente e ora dissimuladamente. Isso torna as práticas autoritárias mais
difíceis de serem identificadas e eliminadas.

Na democracia algumas destas práticas chamam a atenção, enquanto


outras permanecem insidiosamente ignoradas. Uma novidade no caso brasileiro,

30
Um dos aspectos menos explorados da manutenção tanto da assimetria como da submissão,
refere-se ao tipo de legitimidade que os dominados dão para a dominação e os "ganhos" que dela
retiram, ou seja ao processo de introjeção da submissão quando, em teoria, não mais existem
elementos claramente voltados para a coerção: polícias secretas, de segurança interna etc.
31
Ainda segundo Bonfim, o Estado na colônia: "tem por função, apenas, cobrar e coagir ....A
justiça aparece para condenar os que se rebelem contra os Estado ou contra os parasitas criados
e patrocinados por ele" (pg.142) "Fora disto, não há mais nada: nem polícia, nem higiene, nem
obras de interesse público, nada que represente a ação benéfica e pacífica dos poderes
públicos.... O estado existe para fazer o mal, exclusivamente; e esta feição ...tem uma influência
decisiva e funestíssima na vida posterior destas nacionalidades; o Estado é o inimigo, o opressor
e o espoliador; a ele não se liga nenhuma idéia de bem ou de útil; só inspira ódio e
desconfiança... Tal é a tradição; ainda hoje se notam estes sentimentos, porque ainda hoje, ele
não perdeu o seu caráter duplamente maléfico-tirânico e espoliador." (Bonfim, 1993, pg 143).
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 38

como mencionado, é estranharmos a continuidade das violações dos direitos


humanos. A presença destas violações até recentemente era ignorada pela
agenda dos partidos políticos, pelos sindicatos e pela sociedade em geral
(Pinheiro, 1991). Mesmo hoje em dia não há consenso na sociedade de que
estas violações não podem coexistir com a democracia. Existe até mesmo apoio
a essas práticas dissociadas que estão do tema da democracia.

Há também dificuldade em perceber que os casos de graves violações aos


direitos humanos não são eventos neutros e que o modo como a justiça aborda
estes casos tem forte impacto sobre a sociedade. Estes eventos são carregados
de significados. O resultado dos casos tem o poder de reforçar ou alterar noções
de justiça e de poder, podem facilitar ou dificultar a introjeção das leis e facilitar
ou impedir novas violações, dependendo se ocorre punição ou não. A identidade
dos agressores também é relevante. Se perpetrados por poderosos e/ou agentes
do Estado e estes são punidos podem servir, como na Argentina32 com os
julgamentos dos militares, que ninguém está acima da lei e que todos são
puníveis. Isto aumentaria a sensação de igualdade perante a lei, reduziria o
despoder em relação aos poderosos e o medo e a submissão , criando condições
para se desenvolver a competência cívica. Neste caso a legalidade seria
completa e se fecharia o círculo virtuoso da democracia (O'Donnell, 1993).
Quando estas violações são causadas por iguais, ou por aqueles
hierarquicamente inferiores e há punição, esta facilita que as leis sejam
introjetadas como formas de resolução de conflito. Ao se punir, por exemplo, as
tentativas de "fazer justiça com as próprias mãos", além de auxiliar o
fortalecimento das instituições aumenta a credibilidade delas.

A não punição ratifica não só a desigualdade perante a lei mas até mesmo
a ausência das leis. Se isto ocorre porque os responsáveis pelas graves
violações são agentes do governo, a impunidade reforça a "legalidade truncada"
e de certo modo encoraja a crença na maior eficácia das soluções de cunho
individual: o clientelismo. Se a impunidade protege um igual ou hierarquicamente
inferior, encoraja-se a justiça pelas próprias mãos. Nas duas circunstâncias a
impunidade estará alimentando a continuidade das graves violações e, através
destas práticas autoritárias, dificultando o surgimento de uma cultura política
democrática.

32
Não é só na Argentina que o Judiciário tem um importante papel na socialização política. Nos
Estados Unidos decisões da Suprema Corte têm tamanha credibilidade que mesmo aqueles que
discordam do conteúdo das decisões reformulam suas opiniões na direção destas decisões.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 39

CAPÍTULO 2
O PASSADO NÃO ESTÁ MORTO: NEM PASSADO É AINDA33

Paulo Sérgio Pinheiro

Para Severo Gomes

Há dez anos se encerrava o regime autoritário e inaugurava-se o governo


civil de transição . Há sete, a Constituição de 1988 foi promulgada, com a carta de
direitos mais precisa e abrangente em toda a história política do país. Apesar das
garantias democráticas desde então vigentes, subsiste uma violência sistêmica,
em que o arbítrio das instituições do Estado se combina com altos índices de
criminalidade violenta, crime organizado, grande intensidade de violência física
nos conflitos entre os cidadãos e impunidade generalizada.

Essa violência de caráter endêmico, implantada no sistema de relações


sociais profundamente assimétricas não é um fenômeno novo no Brasil: é a
continuação de longa tradição de práticas de autoritarismo, das elites contra as
"não-elites" e nas interações entre as classes, cuja expressão foi dissimulada
pela repressão e censura impostas pelos governos militares. A configuração
política formal da democracia abriu condições para as manifestações de protesto,
e graves conflitos sociais e econômicos passaram a ser expressos com maior
liberdade. Esses movimentos, apesar do retorno ao constitucionalismo
democrático, se chocaram com a continuidade das antigas práticas arbitrárias
que sempre coibiram quaisquer tentativas de protesto autônomo na sociedade.

Nota-se, entretanto, uma diferença fundamental entre os dias de hoje e o


passado quando se avaliam as violações de direitos humanos: o Estado não
organiza, não coordena diretamente, como na ditadura, as ações de violência
ilegal - mesmo que muitos de seus agentes continuem cometendo abusos. No
atual momento, sob o regime democrático, os dissidentes políticos ou os grupos
de oposição não são mais reprimidos: não há hoje stricto sensu nenhum
prisioneiro.

Como mostram, neste rigoroso estudo de Gilberto Dimenstein, os


pungentes depoimentos pessoais por ele colhidos, as graves violações de
direitos humanos que ocorreram nos períodos democráticos anteriores a 1964

(quando a percepção da questão dos direitos humanos, apesar de a


Declaração Universal dos Direitos Humanos datar de 1948, era praticamente

33
Este texto foi originalmente publicado em DIMENSTEIN, Giberto (1996) Democracia em
Pedaços. Direitos humanos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 40

nula), e na ditadura militar, persistem no atual regime democrático. As oposições


políticas não são mais perseguidas mas os pobres, os não-brancos, moradores
das periferias metropolitanas, minorias raciais, grupos discriminados por
orientação sexual, ativistas sindicais ou de direitos humanos, religiosos, grupos
indígenas, crianças e adolescentes continuam, como em toda a história
republicana, sendo as vítimas preferenciais da violência e da criminalidade.

Se na democracia o Estado não organiza mais a coerção paralela e ilegal,


sua responsabilidade consiste em não se omitir, em impedir as práticas
repressivas ilegais por parte de agências do Estado e em debelar a impunidade
desses crimes como daqueles cometidos por particulares. Ora, o Estado
democrático instalado após 1985 e os diversos governos, quando não têm sido
coniventes, têm mostrado grande incompetência em controlar a violência e rara
incapacidade em debelar essas práticas criminais e garantir a pacificação na
sociedade.

Para o direito internacional, para a Organização das Nações Unidas (ONU)


e para a comunidade dos direitos humanos, a responsabilidade primordial pelas
garantias do estado de direito cabe aos Estados nacionais. Não serve como
desculpa para a inação ou omissão o fato de o controle da ordem pública e da
administração judiciária, assim como do sistema penitenciário, estar em quase
todos os casos sob a alçada dos estados da Federação. Em conseqüência,
desde que ingressou na plena legalidade do sistema de proteção internacional
dos direitos humanos, muitas vezes o governo brasileiro se tem visto diante do
paradoxo de ter a responsabilidade e não ter os meios de agir . Sobretudo
quando a omissão por parte das autoridades estaduais diretamente responsáveis
pelas instituições de controle da violência (a polícia, tanto militar como civil,
colocada sob a autoridade dos governadores) assume os contornos de
tolerância, quando não de estímulo, para com essas ações criminosas.

Em contraste com essa omissão por parte das autoridades em quase


todas as unidades da Federação, as administrações federais progrediram no
reconhecimento da necessidade de fazer respeitar tanto o estado de direito como
as normas do direito internacional dos direitos humanos, apesar de muito restar
por ser feito. Esse avanço do governo federal começou a acontecer somente a
partir dos anos 1990, por decisão de uma política de governo, especialmente no
âmbito externo, em boa parte como conseqüência da pressão exercida pelas
organizações não governamentais (ONGs), nacionais e internacionais, da
necessidade de respeitar as obrigações assumidas pela adesão do Brasil dos
principais instrumentos de proteção internacional dos direitos humanos e sua
ratificação.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 41

Apesar dessas mudanças positivas dos quadros político e legal, a falência


em controlar efetivamente a violência ilegal fica patente: tortura de suspeitos e
criminosos nos distritos policiais, maus-tratos a prisioneiros e internos em
instituições fechadas, execuções deliberadas pelas polícias militares, grupos de
extermínio, com participação de agentes do Estado. A repetida ocorrência dessas
violações tem por denominador comum a impunidade, assegurada pela
ineficiência e omissão governamental, especialmente por parte das
administrações dos estados. Essa falência em implementar a lei enfraquece a
vigência das garantias constitucionais, perpetua o círculo ilegal da violência e
dificulta o fortalecimento da legitimidade do governo democrático como promotor
da cidadania.

1. Consolidação democrática e direitos humanos


A presente conjuntura de consolidação democrática, entendida como um
processo contínuo de realização do atendimento de um elenco mínimo de pré-
requisitos - como a liberdade de opinião, expressão, reunião e organização,
eleições livres e competitivas, alternância no poder, mecanismos de
responsabilização dos governantes, livre manifestação dos movimentos da
sociedade civil e adesão do Estado à proteção dos direitos humanos -, constitui
um momento privilegiado para entender-se a permanência das práticas do
arbítrio. Para tanto devemos distinguir entre três modalidades de direitos: I) o
estado dos direitos políticos - participação política, a expressão da vontade
popular em processos eleitorais, as instituições políticas e a accountability, a
responsabilização dos governantes por seus atos; 2) o estado dos direitos civis -
onde incidem as graves violações de direitos humanos; 3) o estado dos direitos
sociais e econômicos. Entre esses conjuntos de direitos há efetiva
indivisibilidade, reafirmada na Declaração e Programa de Ação de Viena. Não se
trata de mera questão doutrinária mas de efetiva interdependência entre vários
elementos desses grandes conjuntos: liberdade de organização e construção da
solidariedade; distribuição de recursos econômicos e de poder e a pacificação da
sociedade; acesso à informação e controle das elites pelas "não-elites";
educação e sistema judiciário. Apenas para efeito de análise distinguimos entre
os conjuntos de direito, mas são numerosas as conexões entre esses elementos.
Neste estudo a ênfase é dada aos direitos civis e políticos. Mencionamos apenas
para melhor compreensão do contexto algumas relações entre desigualdade e
violência.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 42

Direitos políticos
Há uma tendência do senso comum a constatar que as instituições
políticas estão consolidadas e que persistem problemas apenas na esfera dos
direitos civis e dos direitos sociais e econômicos. Como veremos, nem as
instituições democráticas - tanto da representação política quanto aquelas ligadas
ao exercício do monopólio da violência física legítima, como a polícia e o sistema
judiciário atendem os requisitos mínimos da formalidade democrática. As
instituições políticas de representação da cidadania apresentam diversas
limitações, definidas sob o regime autoritário - desenhadas com o intuito de
limitar o poder das áreas urbanas e mais populosas muitas mantidas na
Constituição de 1988 .

No Brasil pós-1988 houve, efetivamente, mudança de regime, mas, apesar de


a configuração dos grupos no poder ser mais ampliada e complexa com a
agregação de representantes de novos grupos sociais e de partidos políticos
comprometidos com os direitos humanos, como o PSDB na esfera federal,
estadual, municipal, e o PT, em dois governos estaduais e em várias
administrações municipais, há vários elementos da ditadura que se mantêm.
Entre esses, sobressai, se compararmos com outros processos de consolidação ,
a permanência do pessoal político dos governos militares, como governadores,
ministros e representantes políticos ligados às oligarquias políticas , e muitas
dessas lideranças em seus estados se omitem diante de graves violações de
direitos humanos quando não coonestam. Se examinarmos, como fazemos aqui,
a combinação da sobrevivência das práticas desses contingentes políticos com a
manutenção de alguns preceitos legais da organização política da ditadura, em
pleno regime democrático, concluiremos que prevalece um sistema de governo
marcado pela continuidade, diferente daquele do regime autoritário que o
precede mas incapaz de atender satisfatoriamente os pré-requisitos da
formalidade democrática. Entre a democracia populista, o regime militar e o atual
regime democrático com o governo civil após o fim da ditadura e os governos
eleitos, tanto federal como estaduais, se considerados sob a perspectiva da
garantia dos direitos humanos, ressalvado o fim da repressão política, há muito
mais pontos de contato que diferenças. Diante da corrupção, do agravamento
das violações de direitos humanos e de sua impunidade, o regime autoritário
(l964-85) e o regime constitucional de 1988 com os governos civis, de transição e
eleitos, dada a ausência de rupturas significativas na área da cidadania, foram
expressões diferenciadas de uma mesma estrutura de dominação fundada na
hierarquia, discriminação, impunidade e exclusão social.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 43

Clientelismo e super-representação eleitoral. Um dos aspectos mais


surpreendentes desses preceitos legais não afetados pela reconstitucionalização
de 1988, e que a nosso ver bloqueia as possibilidades de alargamento da
formalidade democrática, é a super-representação política dos estados menos
populosos em comparação com os mais populosos: o estado de São Paulo tem
apenas sessenta deputados (11,9% do total dos membros da Câmara dos
Deputados) representando 20.774.910, ou seja, 21,9% de todos os eleitores
brasileiros (94 milhões) . Em comparação, o estado de Roraima elege o número
mínimo de representantes por estado, oito (I,6% do total da Câmara), quando o
total de seus eleitores corresponde a 119 399, ou seja, O,I% do total de todos os
eleitores no país. Foi essa super-representação que garantiu na Constituinte e
nas legislaturas que se seguiram a resistência a reformas da organização
política.

Desde o primeiro governo civil as relações entre as legislaturas e o


Executivo têm sido marcadas por demandas clientelistas que correspondem ao
tipo de relacionamento que os representantes políticos dos estados menos
populosos e com cidadania menos desenvolvida mantêm com seus eleitores.
Apesar da adesão verbal das correntes políticas tradicionais às reformas de
enxugamento do Estado, o controle dos investimentos públicos regionais por
parte das elites continua sendo recurso relevante de poder numa população com
fraca cidadania política onde há largos contingentes de analfabetos . " Para esses
grupos políticos dominantes, além dos investimentos do Estado, a distribuição de
cargos é crucial recurso de poder . " Esse loteamento é facilitado em razão de o
Congresso, composto por 513 deputados e 81 senadores, estar virtualmente
dividido entre 23 bancadas de interesses corporativos que defendem
prioritariamente seus projetos, entre as quais a mais extensa é a ruralista, que
sempre vota de forma compacta. Os interesses das bancadas se articulam para
obter o máximo de recursos possível, muitas vezes valendo-se de expedientes
ilegais - como a manipulação do orçamento federal - para a defesa de seus
interesses que, no caso de bancadas de áreas da economia, financiaram suas
candidaturas - e de empregos conexos com essas áreas .

É nos estados do Norte e do Nordeste, mais super-representados no


Congresso, que se concentram, não por acaso, os maiores contingentes de
analfabetos: 46% no Nordeste e 35% nos estados do Norte. " Em alguns dos
estados dessas regiões, os percentuais de analfabetos são muito maiores do que
em outros estados: Sergipe, 23,30%; Alagoas, 32,22%, Maranhão, 21,68%;
Paraíba, 21,64%, quase dez vezes maiores do que aqueles dos estados mais
populosos - São Paulo, 3,07%, e Rio de Janeiro, 3,09%." Nesses estados super-
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 44

representados, as populações são mantidas pelas elites locais e por seus


governantes e representantes com limitada cidadania e sob os piores indicadores
sociais.
Não-transparência para não-accountability. Naqueles estados, onde os
elementos de autoritarismo social são mais visíveis, tem sido contínua a
presença de representantes da oligarquia no poder, pelo menos, desde 1964. Ali
o acesso à informação e à transparência é mais limitado e os políticos locais
controlam a mídia - televisão e rádio, por meio de concessões públicas,
referendadas pelas próprias comissões do Congresso em que participam, e a
imprensa escrita, de empresas de sua propriedade.

O flagrante desequilíbrio entre a relativa transparência no Sul e Sudeste e


os constrangimentos do acesso à informação nos estados do Norte, Nordeste e
Centro-Oeste sobrevive. O desenvolvimento e o progresso técnico dos meios de
comunicação promovidos pelo regime autoritário paradoxalmente contribuíram
para que as mídias, impressa e sobretudo eletrônica; se tornassem menos
provincianas, atingindo públicos novos e mais largos. Desde a política até a
discussão científica, dos movimentos sociais às microinstituições, os espaços da
comunicação crítica a partir da transição se ampliaram com o crescimento das
redes comercializadas e muitas vezes manipuladas da publicidade e da cultura
industrial. "Apesar dessas limitações estruturais, deve-se reconhecer que toda
forma de censura foi abolida e as mídias escrita e eletrônica discutem temas
polêmicos e fiscalizam os atos dos governantes. Um jornalismo investigativo,
presente nas empresas jornalísticas do Sul do país, desenvolveu-se
intensamente, como mostraram as campanhas pelo impeachment e contra a
corrupção no Congresso Nacional. Toda a mídia, como em outras democracias,
dá uma grande atenção para as questões do crime e da violência, mas também
cobre com regularidade as violações de direitos humanos. As organizações de
direitos civis e seus ativistas são regularmente convidados a expressar seus
pontos de vista e suas atividades recebem larga cobertura.

Como explicar tal contraste entre expansão técnica dos meios de


comunicação, aumento da transparência e a sobrevivência de limitações ao
acesso à informação para largos contingentes de eleitores? Houve inegável
abertura do espaço do debate público - muito mais intensa e sofisticada do que
em outras novas democracias na América Latina e maior do que nos países da
Europa do Leste -, mas a estrutura de controle oligopólico dos meios de
comunicação, apesar de importantes alterações previstas pelo texto
constitucional, permaneceu inalterada. Até o momento não foram efetivamente
implantados os mecanismos previstos na Constituição de 1988 - sem mencionar
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 45

o desrespeito à maioria dos preceitos legais de propriedade - para impedir o atual


conluio entre setores da mídia eletrônica, representantes políticos e grandes
grupos econômicos, tornado mais visível em períodos eleitorais. O fato de não
haver no Brasil, como há em outras democracias, restrições ao broadcast
newspaper cross ownership, ou seja, à propriedade ou controle acionário, por um
mesmo grupo econômico, de diferentes meios de comunicação, permite que aqui
grupos privados tenham empresas em todas as faixas da mídia.

Em grande parte essa continuidade se deve ao fato de o poder político na


maior parte dos estados estar assentado no controle da mídia. Seria incorreto
dizer que tal situação caracteriza apenas o Norte, Nordeste e Centro-Oeste,
porque no Sul e no Sudeste as mesmas distorções ocorrem. O contexto daqueles
estados menos populosos, super-representados no Congresso Nacional - com
eleitores mais subjugados à manipulação clientelista, organização mais frágil da
sociedade civil, maior precariedade e menor autonomia das instituições de
controle da violência, como o judiciário e a polícia, em face do poder político,
maior submissão do cidadão em face do arbítrio do Estado, me ' nos cidadania -,
torna os limites da transparência ali presentes mais nítidos. E faz o acesso à
mídia um recurso de poder mais decisivo ainda para o poder político.
As bases do "coronelismo eletrônico". Estes limites estão ligados ao fato de
cerca de 115 parlamentares, muitos deles membros da comissão de
comunicação do Congresso Nacional, poder que aliás decide sobre a concessão
das empresas de comunicação (em imensa maioria - há apenas algumas redes
públicas - são empresas privadas mas concessões públicas por tempo
determinado), terem redes de televisão e rádio. Os que não têm empresas de
comunicação eletrônica ou jornais, sem acesso à antena, como observou o jurista
Leônidas Xauza, temem os que têm. Além do conflito de interesse entre esses
parlamentares deterem poder concedente, fiscalizador e dele serem
autobeneficiários, há um desequilíbrio de poder entre representantes legislativos
(em muitos estados já beneficiados pela super-representação). Graças ao fato de
serem proprietários de empresas da mídia eletrônica, cerceiam, censuram e
manipulam as informações nos noticiários em proveito próprio; durante o período
eleitoral, parlamentares, governadores e ministros burlam as restrições da
propaganda eleitoral em benefício próprio ou das candidaturas que apóiam ao
arrepio da lei.

No que diz respeito à televisão - principal meio de informação dos eleitores


-, o desrespeito ao texto constitucional é flagrante. Sete grupos privados, numa
situação de virtual oligopólio que cobre 70% dos televisores, controlam a
televisão em todo o país. Muitas concessões estão divididas entre membros da
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 46

mesma família para burlar a exigência legal que proíbe a concentração de mais
de dez concessões de televisão por proprietário. Não se pretende obviamente
estabelecer vínculo mecânico entre o acesso dos políticos à mídia e sua
influência política, mas chamar a atenção para mais um aspecto do desrespeito à
lei, com a conivência dos legisladores, garantindo-se a impunidade. Essas falhas
na democratização do acesso à mídia - essa incapacidade das novas
democracias, como o Brasil, em tornar a mídia “independente e
responsabilizável, livre e justa”, como diz Jorge Castañeda - , somadas a falhas
no sistema de representação, restringem a publicidade da política, diminuem as
possibilidades de accountability, criando obstáculos para o desenvolvimento
humano e para as possibilidades de organização da sociedade civil.

O subdesenvolvimento acentuado a que estão submetidas as populações


do Norte e do Nordeste não é o resultado de uma fatalidade ou patologia: é o
resultado da manutenção de um autoritarismo social mediante a complexa
interação entre o controle de instituições políticas (representação, acesso à
mídia, instituições judiciais, polícia) e o controle de recursos econômicos
(empresas favorecidas por subsídios e empréstimos estatais, apropriação privada
dos recursos do Estado por meio da corrupção) por parte de oligarquias políticas,
como a investigação da máfia do Congresso demonstrou. Pobreza,
analfabetismo, endemias são produto da continuada presença das elites
tradicionais e autoritárias na atual consolidação democrática. Tais elites, não
submetidas ao controle das "não-elites", muitas vezes se valem sistematicamente
da violência ilegal e até mesmo do terror, como se vê aqui nos conflitos rurais. A
não-transparência, a não-accountability, a impunidade são os pilares da
dominação política e econômica tradicionais. Com a ajuda do monopólio da mídia
eletrônica, tornam o requisito da transparência impossível e impedem o
fortalecimento das instituições democráticas.

A transparência por meio da mídia, ao propiciar elementos para tornar os


governantes e funcionários do Estado passíveis de serem responsabilizados
pelos eleitores, é requisito indispensável para debelar as violações de direitos
humanos. Graças à amplificação do debate suscitada pela mídia, as
investigações parlamentares, seguidas de inquérito policial e processo criminal,
provocaram largas mobilizações em todo o país. As audiências parlamentares e o
julgamento do presidente pelo Supremo Tribunal Federal em setembro de 1992
foram transmitidos ao vivo pela mídia eletrônica.
O impeachment do presidente Collor e os esquemas da máfia do
orçamento no Congresso, por outro lado, oferecem importantes elementos para
se entender a permanência de corrupção e o exercício do poder político. Mesmo
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 47

depois da transição política, no Brasil, como em outras novas democracias, as


decisões políticas continuam a estar concentradas no Executivo - que, por sua
vez continua a deter como na ditadura muitos poderes legislativos e judiciários.
Em razão dessa concentração, combinada com a impunidade, muitos
funcionários podem ficar tentados a impor um preço para suas decisões. No caso
deve ser considerado que o Congresso Nacional, durante mais de vinte anos sob
o regime militar, nada teve a dizer sobre a preparação do orçamento. Quando,
depois do retorno à democracia, o Congresso Nacional, assumiu o controle do
orçamento, as decisões passaram a serem tomadas sob a forma de conluio entre
os parlamentares e funcionários do Executivo, cuja ação criminosa é tornada
viável precisamente pela concentração e pelo segredo das decisões do
Executivo. Esse mesmo concluio, muitos parlamentares praticam em outras
esferas locais, com a mídia, polícia, judiciário, empresa privada, buscando
otimizar seus recursos de poder numa sociedade desigual, protegidos por
imunidades estendidas ao crime comum. Complementam-se assim concentração
de poder, super-representação, impunidade. Ainda que parlamentares tenham
tido seus mandados cassados depois das investigações sobre a máfia do
orçamento em 1992, é revelador das resistências das instituições políticas às
reformas darmo-nos conta de que um bom número dos acusados de corrupção
continuam a deliberar na comissão de orçamento para 1994, como se nada
houvera acontecido. Sem acesso democrático à mídia eletrônica torna-se mais
difícil mobilizar o judiciário e o sistema policial, para se debelar essas práticas.

Direitos civis: leis e impunidade


O Brasil vive sob o paradoxo e uma definição estrita das garantias
constitucionais e uma cidadania muito fraca. A Constituição de 1988 estabeleceu
nos 77 incisos do artigo 5, no capítulo I, “Dos direitos e deveres individuais e
coletivos”, a mais abrangente e precisa definição de direitos civis de toda a
história. Esses direitos e as garantias individuais fazem parte ainda do núcleo
irreformável do texto, não é possível qualquer deliberação de emenda visando
abolir ou restringir o elenco de direitos e garantias individuais. A Constituição
trouxe enorme progresso na área de proteção dos direitos individuais ao conferir
tratamento especial aos direitos humanos, reconhecendo sua universalidade e
eficácia imediata. Em flagrante contraste com o Código Penal dos anos 1940,
que dá ênfase à defesa do patrimônio, toma uma clara posição na enumeração
das garantias fundamentais, pela defesa da vida e da pessoa humana.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 48

Violações que sempre marcaram a vida da maioria da população pobre,


como a tortura e a discriminação racial, passaram a ser tratadas como crime: o
direito à vida, liberdade e segurança da pessoa foram reforçados. Em inúmeros
preceitos estão bem definidos os direitos de integridade física da pessoa -
justamente a área onde são mais freqüentes as violações de direitos humanos: a
dignidade da pessoa humana (art.1º, III), a prevalência dos direitos humanos
(art.4º, II), a punibilidade de qualquer comportamento atentatório aos direitos e
liberdades fundamentais (art.5º, XLI) e da tortura que deve ser considerada por
lei como crime inafiançável e imprescritível (art.5º, XLIII), a intangibilidade física e
a incolumidade moral das pessoas sujeitas à custódia do Estado (art.5º, XLIX), a
decretabilidade da intervenção federal, por desrespeito aos direitos da pessoa
humana, nos estados-membros e no Distrito Federal (art.34, VII, b); controle
externo da atividade policial pelo Ministério Público (art.129, VII) ; incriminação da
prática cotidiana de discriminação de qualquer natureza, como o racismo, que de
contravenção penal se tornou crime inafiançável e imprescritível (art. 5º, XLII).

Entretanto, o reconhecimento formal desses direitos, que constitui um


formidável progresso em termos de constitucionalismo, não foi suficiente nestes
sete anos de vigência da Constituição para modificar substancialmente, como
aqui está demonstrado, o padrão das graves violações dos direitos civis, em
muitas áreas mais largo do que nos períodos anteriores. O Brasil, como apontou
Alfred Stepan, é um país com graves problemas quanto à presença normativa e
institucional do Estado. Grande número de brasileiros não acreditam que o
Estado tem ou tenha tido qualquer empenho em implementar as leis com
igualdade e imparcialmente para todos os cidadãos e, muitos estão convencidos
de que o sistema judiciário existe para proteger os poderosos . Esse
descompasso entre as garantias formais e as violações persiste porque
corresponde a outro descompasso entre a letra da Constituição e o
funcionamento das institucionais encarregadas de sua proteção e
implementação, e as práticas de seus agentes, como a polícia e o judiciário.
As políticas de governo. Seria inexato fazer supor que apenas o texto
constitucional foi alterado na perspectiva dos direitos humanos. Os governos
civis, o de transição e os eleitos - especialmente no nível federal -, depois de
1985, além de terem promovido o ingresso do Brasil na legalidade plena do
sistema internacional de proteção dos direitos humanos, como analisaremos mais
tarde, puseram em prática iniciativas, mesmo algumas vezes intermitentes e
interrompidas, de uma nova abordagem oficial das violações de direitos
humanos. O governo José Sarney, sendo ministro da Justiça o deputado
Fernando Lyra, lançou um “mutirão contra a violência”, com a colaboração da
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 49

Comissão Teotônio Vilela de Direitos Humanos, tendo o texto inicial do programa


sido redigido pelo antigo exilado político da ditadura, e hoje deputado federal,
Fernando Gabeira . O governador de São Paulo, Franco Montoro (1983-87)
tornou seu governo um padrão de referência, e alvo de pesados ataques dos
setores conservadores, por ter, a partir dos seus dois primeiros anos de mandato,
em plena ditadura militar, assumindo uma postura de defesa dos direitos
humanos e da necessidade de o Estado controlar a violência ilegal dos aparelhos
policiais contra o crime comum e no interior das instituições fechadas . No Rio de
Janeiro, o governador Leonel Brizola, no mesmo período, propôs novas políticas
de atuação e de formação para as polícias militares . Os ministros da Justiça do
governo Fernando Collor, senador Jarbas Passarinho e o ex-ministro do Supremo
Tribunal Federal Célio Borja, mantiveram um diálogo aberto com as entidades de
direitos humanos.

O maior avanço ocorreu sob o governo Itamar Franco, depois da


realização da Conferência Mundial de Direitos Humanos, em Viena, 1993,
quando, atendendo a solicitação formulada pelos representantes das ONGs
brasileiras em Viena, o ministro da Justiça, hoje ministro do STF, Maurício Corrêa
convocou várias reuniões de julho a outubro de 1993, entre o governo e a
sociedade civil, para definição de uma agenda nacional de direitos humanos.
Entre os meses de julho e outubro representantes de cerca de trinta entidades de
direitos humanos se reuniram com ministros civis e militares, parlamentares,
representantes de diversas polícias e suas associações profissionais. Essas
reuniões, as primeiras no gênero na história brasileira, prolongavam outra reunião
entre ONGs de direitos humanos e o Ministério das Relações Exteriores,
convocada no Itamaraty pelo então chanceler Fernando Henrique Cardoso, em
maio de 1993, para a preparação da agenda brasileira para a Conferência
Mundial de Viena. As discussões no Ministério da Justiça tiveram como objetivo
aperfeiçoar a legislação existente e agilizar os mecanismos de proteção
existentes. Foram constituídos grupos de trabalho para debater as diferentes
questões entre as duas grandes reuniões gerais. Em seguida, consolidando as
sugestões apresentadas, o ministro da Justiça, senador Maurício Corrêa,
anunciou no Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo em
10 de dezembro de 1993, na comemoração dos 45 anos da Declaração Universal
de Direitos Humanos, um Programa Nacional de Combate à Violência
compreendendo as seguintes propostas: instauração de um fórum de ministros
para a definição de uma política de cidadania; reformulação do Conselho
Nacional de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana; e seis projetos de lei. Esses
projetos a serem encaminhados em regime de urgência urgentíssima
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 50

contemplavam entre outros tópicos: transformação da Secretaria de Polícia


Federal em Secretaria Federal de Segurança Pública; obrigação da prestação de
assistência jurídica aos presos; bolsas de estudos para crianças e adolescentes;
proteção às vítimas; projeto de lei especificando os crimes de direitos humanos.
Apesar do apoio do Conselho Nacional de Defesa dos Direitos da Pessoa
Humana e do próprio ministro da Justiça não foi incluído no conjunto de
propostas medida determinando a competência da justiça civil para os crimes
comuns das polícias militares. Com a mudança do titular no Ministério da Justiça
e o início de um ano de campanha eleitoral, o empenho do governo deixou de
existir, o novo ministro elegeu outras prioridades e o Congresso Nacional não
examinou as medidas apresentadas.
Política externa e direitos humanos. A alteração das práticas
governamentais após o retorno ao governo civil também se tem feito sentir na
política externa de direitos humanos. O controle da violência do Estado no Brasil,
das graves violações de direitos humanos, até a transição política era tão
ausente que qualquer referência aos textos internacionais era meramente
retórica, dada a enorme distância entre as práticas ilegais dos agentes do Estado
e as exigências do direito internacional dos direitos humanos. Na realidade, a
gramática dos direitos humanos no Brasil somente consegue ser conjugada pelos
governos brasileiros após 1985, quando vários instrumentos, essenciais para a
proteção dos cidadãos contra as graves violações de direitos humanos, foram
submetidos pelo Executivo brasileiro ao Congresso Nacional, como o Pacto
Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, o Pacto sobre Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos. O
presidente José Sarney assinou a Convenção sobre a Tortura quando de sua
participação na Assembléia Geral da ONU em 1985. Mais ênfase a esse aspecto
passou a ser dada depois de 1989, com intensificação dos processos de
ratificação, estimulada pelos chanceleres Francisco Rezek e Celso Lafer. É
igualmente na década de 1990 que o governo brasileiro defende a transparência
em relação às violações de direitos humanos no Brasil, aceitando as iniciativas
de monitoramento que visem a superação dos obstáculos institucionais e
estruturais para a plena realização do império da lei .
A formulação expressa pelo ministro das Relações Exteriores, embaixador
Celso Amorim, no discurso de abertura da Assembléia das Nações Unidas, em
setembro de 1993, oferece uma boa síntese da posição atual do governo
brasileiro: “A transparência nas decisões e ações do governo constitui importante
aspecto da política brasileira. Tal transparência se manifesta, inclusive, no
diálogo fluido e cooperativo com os segmentos e organizações da sociedade
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 51

dedicados à luta pela observância dos direitos humanos no país.” O novo governo
tem aprofundado essa política com a apresentação do Relatório Inicial Brasileiro
relativo ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, realizado em
colaboração, inédita na área, com o Núcleo de Estudos da Violência da
Universidade de São Paulo. A criação do Departamento de Direitos Humanos e
Assuntos Sociais no âmbito do Itamaraty pelo governo Fernando Henrique
Cardoso constitui um claro sinal do aprofundamento da política de transparência.
O aprofundamento dessa política foi assinalado pelo embaixador Luís Felipe
Lampreia, ministro das Relações Exteriores, quando do lançamento daquele
Relatório: “O compromisso do governo brasileiro com os direitos humanos é um
corolário necessário e insubstituível da democracia e do nosso desejo de
transformar para melhor a sociedade brasileira, seus padrões sociais e até sua
estrutura econômica. Esse compromisso não é simples resposta ao interesse
internacional, é um reflexo da cidadania que se consolida no país.”

Para se controlar a violência do Estado, a incorporação das normas do


direito internacional dos direitos humanos, previstas como norma na Constituição,
à legislação interna é da mais imediata relevância. As ratificações e a política de
transparência em curso no Ministério das Relações Exteriores, apesar das
dificuldades institucionais aqui apontadas, tornam mais viável a aplicação pelo
judiciário dessas normas. Por outro lado, a referência de seus princípios, pelo
Estado e pela sociedade civil, pode contribuir para transformar as práticas das
agências encarregadas da violência do Estado, permitindo um enfrentamento
mais eficaz das violações e abusos que marcam o perfil da violência do Estado
no Brasil.

Violência e desigualdade
Como vimos, os direitos políticos estão diretamente intrincados com as
condições de vida da população. O que obriga a colocar a questão – ainda que
este livro não pretenda tratar de modo específico dos direitos econômicos e
sociais – sobre poderem os direitos civis e políticos ser adequadamente
protegidos em países como o Brasil, nos quais as “violações estruturais” dos
direitos sociais, econômicos e culturais parecem ser uma característica da
sociedade .
A implementação dos direitos sociais e econômicos não pode ser
considerada separadamente ou como adicional à consolidação da democracia: a
realização da cidadania, essencial para a democracia política tornar-se ela
mesma realidade, requer reformas sociais e econômicas. O que é urgente não é
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 52

apenas a extensão da já existente democracia política para novas áreas sociais e


econômicas, mas reformas substantivas para remover obstáculos sociais e
econômicos que impedem a própria cidadania . Evidentemente não pode haver
cidadania significativa sem democracia. Há um sério risco diante das reformas
neoliberais sem políticas sociais (como é o caso presente da Argentina) na atual
conjuntura do capitalismo global de se preconizar a institucionalização da
democracia sem o efetivo emporwerment da população como cidadãos. Caso
reformas sociais não enfrentem emergencialmente as violações estruturais,
estará sendo consolidado no Brasil, como em outros países, um modelo de
democracia sem cidadania.

O caso brasileiro ilustra com grande clareza os problemas enfrentados


pelas novas democracias ao tentar diminuir as enormes distâncias entre as
conquistas políticas da consolidação democrática e as persistentes violações dos
direitos civis, sociais e econômicos da maioria da população. O Brasil oferece o
paradoxo de estar hoje ao mesmo tempo no que poderia ser o melhor dos
mundos e também no pior: o país é hoje a décima maior economia mundial com
um Produto Interno Bruto (PIB) de 414,1 bilhões de dólares, em 1991 – estando
portanto no conjunto composto pelo EUA, Japão, Alemanha França, Itália, Grã-
Bretanha, Canadá, Espanha, Rússia (com os quais nosso padrão de graves
violações de direitos humanos deve ser cotejado) e logo seguido pela China,
Austrália, Índia, Holanda, Coréia do Sul, Suécia e México.

Além de ser uma das maiores economias industriais, com a quinta


população do mundo, em 1991, 153.16 milhões de habitantes, é um país
eminentemente urbano, 77%, dos quais 39% do total da população vivem em
cidades com mais de 1 milhão de habitantes. Se tomarmos apenas a população
urbana, esse percentual passa da metade: em 1990, 51% viviam em cidades com
mais de 1 milhão de habitantes, sendo que São Paulo nos anos 1980 já era a
cidade com maior população do mundo (11,3 milhões), ultrapassando Seul e
Cidade do México.

Ainda que a violência ilegal esteja disseminada pelas áreas rurais e pelo
interior do Brasil, as manifestações mais visíveis dessa “violência endêmica”
ocorrem nas áreas urbanas. Na maior parte das regiões metropolitanas há uma
coincidência entre os lugares onde os pobres vivem e a violência: ali a morte é
principalmente provocada por causas violentas. O padrão da cidade de São
Paulo se repete em outras áreas metropolitanas. Há clara correlação entre as
condições de vida, violência e as taxas de mortalidade, onde confluem violações
de direitos civis e políticos e violações de direitos sociais e econômicos – a
violência é claramente uma parte significativa da privação social.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 53

Qualquer tentativa de identificar uma relação causal entre fatores sociais e


econômicos e violência seria profundamente enganadora. Mas o crime, ainda que
seja uma questão de responsabilidade moral individual, é irrecusavelmente uma
questão social e econômica. O ambiente, compreendido como o meio familiar, o
meio cultural e a condição social, contribui para que os grupos mais espoliados,
desempregados, aqueles fora do sistema de educação e os marginalizados
estejam mais envolvidos em conflitos violentos e crimes do que os entitled e os
remediados (que por sua vez cometem também crimes violentos, e outros,
contando até com maior impunidade).

Os espoliados estão ameaçados de serem mais vitimados pela violência e


criminados pelos aparelhos repressivos. Aqueles cuja renda familiar está abaixo
da linha de pobreza, conforme demonstra a Pesquisa Nacional de Amostra
Domiciliar (PNAD) em 1988 foram mais vitimados por crimes violentos. Um
levantamento recente do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas
(IBASE) mostra que no Rio de Janeiro o perfil da maioria das crianças e
adolescentes (menores de 18 anos) assassinados, em um conjunto de 265
inquéritos para apurar 306 homicídios, é de pobres, do sexo masculino, negros
ou mulatos, moradores de bairros populares e favelas. A faixa etária mais
atingida pela violência se situa entre os quinze e dezessete anos (78,9%),
seguidos pelos de dez a catorze anos (13,9%); os crimes atingem principalmente
os negros e os mulatos, que foram 70,9% do total das vítimas.

No ano de 1994, em São Paulo, foram registradas 4.494 vítimas de


homicídio, um crescimento de 14,7% em relação a 1993 (3.917). As mortes
violentas ocasionadas por agentes externos são a terceira causa de morte no
município, perdendo apenas para as doenças do aparelho circulatório e os
diversos tipos de câncer. A maior parte (3.391) dos homicídios atingiram homens
entre 20 e 49 anos; a segunda faixa etária mais atingida foi a de dez a dezenove
anos (787 mortes). Em São Paulo, à medida que se caminha do centro para a
periferia, a causa mortis deixa de ser o câncer e doenças cardíacas para ser a
morte violenta e os acidentes de trânsito: 85% dos homicídios praticados pela
Polícia Militar (PM) que estudei entre 1977 e 1987 ocorreram na periferia de São
Paulo. Os negros e os pardos (conforme a classificação do censo) são agredidos
em percentual extremamente superior a sua presença relativa na população. Nas
ruas de São Paulo, onde circula mais de um quarto (cerca de 4,5 milhões) dos
automóveis que transitam no país, os acidentes de trânsito ficaram em segundo
lugar (18,3%) entre as causas de morte sendo responsáveis por 2,5% dos óbitos.

Periferização e favelização ocorrem num contexto de profunda


desigualdade entre ricos e pobres, muito maior do que aquela vigente em
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 54

diversos países em desenvolvimento médio entre os quais o Brasil está situado,


configurando um hiato amplíssimo que divide toda a sociedade brasileira. A
décima economia industrial do mundo convive com a segunda pior distribuição de
renda em todo o mundo: a racio dos 20% mais ricos para os 20% mais pobres,
entre 1980-1991, era de 32,1. Esse número somente era ultrapassado por
Botsuana, com um PNB de 3,6 bilhões de dólares, 1991, e uma população
estimadas de 1,3 milhão, 1992 , com uma racio de 47,4 . A gravidade do problema
da concentração da renda, mesmo que esse índice esteja sujeito a correções,
reflete-se igualmente se for levado em conta o índice de desenvolvimento
humano, proposto e medido desde 1990, pelo Programa das Nações Unidas para
o Desenvolvimento (PNUD) . Entre 173 países cujos indicadores foram analisados
pelo PNUD em 1994, o Brasil se situa em 63º lugar, entre os países de
desenvolvimento humano médio, numa posição inferior a países com recursos
econômicos e humanos largamente menores. O Brasil experimentou entre 1980 e
1987 um aumento da renda per capita de onze vezes, enquanto a Alemanha
aumentou a sua dez vezes e os EUA nove . Mas esse formidável incremento não
teve como contrapartida uma distribuição mais eqüitativa da renda nem a
promoção dos setores mais desfavorecidos da sociedade que continuam a
corresponder à maioria: em 1990 os 10% mais ricos detêm 49,7% da renda
nacional e os 5% mais ricos, 35,5% .

Ao apontar de maneira breve essas características sócio-econômicas, não


se pretende obviamente, estabelecer uma correlação estreita entre tais dados e a
violência sistêmica. O baixo índice de desenvolvimento humano no Brasil
enfraquece as possibilidades de a população modificar esse quadro, pois afeta as
condições de mobilização e de participação capazes de construir a solidariedade
entre cidadãos. Toda promoção dos direitos humanos tem necessariamente de
levar em conta como esses fatores podem transformar-se em obstáculos sociais
e econômicos: para alcançar a cidadania plena os constraints estruturais têm de
ser superados.

Enquanto esses bloqueios não forem superados, em face dos direitos civis
constitucionalmente definidos pelo texto de 1988, pelas obrigações assumidas
por parte do Estado brasileiro perante a comunidade internacional, as violações
de direitos humanos devem ser coibidas e seus responsáveis processados. O
Estado federal é responsável pela promoção e realização da proteção aos
direitos humanos, não podendo alegar a carência social e econômica ou
dificuldades internas do sistema político ou jurídico para desatender às
obrigações assumidas. No caso brasileiro, situando-se o país entre as dez
maiores potências industriais, as alegações de falta de recursos pelo
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 55

descumprimento das responsabilidades assumidas são inaceitáveis. Em vez de


apresentar justificativas para a continuidade das violações, melhor o Estado
promover reformas que façam cessar a impunidade.

2. Instituições e impunidade
A avaliação estrita das instituições do controle do crime revela formidável
descompasso entre o texto constitucional, os princípios das convenções
internacionais ratificadas pelo Brasil e o funcionamento efetivo das agências de
controle do crime, como as polícias, o judiciário e o Ministério Público, tanto no
âmbito federal como estadual. É evidente que as situações variam em cada
região ou estado, entre o nível federal e o estadual, e seria inexato deixar de
registrar os avanços que em todas as instituições foram feitos depois do retorno
às eleições direitas para governador e presidente, provocados por governantes
mais sensibilizados para a necessidade de promover o estado de direito. O
quadro legal definido pelo Constituição, se guarda continuidades – o “entulho
autoritário” da legislação, na expressão do então senador Fernando Henrique
Cardoso em 1985, está longe de ter sido integralmente removido -, permitiu
conquistas de autonomia por parte de várias instituições e aperfeiçoamentos em
sua atuação. Um largo elenco de novas ações legais foi posto ao alcance da
sociedade para pressionar pela concretização dos dispositivos constitucionais .
Muitas graves violações de direitos humanos seriam drasticamente diminuídas
mediante reformas políticas, um melhor controle sobre os aparelhos repressivos
e um melhor funcionamento do aparelho judiciário, mesmo no presente quadro
legal.

O sistema policial
A polícia civil. No direito criminal brasileiro a peça básica para o processo
criminal é a investigação da polícia, realizada sob a presidência do delegado de
polícia. Ora, na maioria dos estados os inquéritos policiais são realizados de
forma precária, com carências enormes de pessoal e de equipamento.

No estado mais desenvolvido da federação, São Paulo, em 1992, os


efetivos da Polícia Civil, com atribuições precisas da investigação judiciária, eram
de 29.317 policiais, sendo que escrivães e investigadores correspondiam a 53%
desse total . Há uma grande disparidade em outubro de 1994 entre o salário mais
alto (US$ 2.604,01), sem contar adicionais gratificações por cargo e função,
correspondendo aos delegados de classe especial, com mais de trinta anos de
carreira, e o mais baixo (US$ 169,16), correspondendo a carcereiro e policial
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 56

ingressantes. A maioria dos policiais se enquadra em faixas intermediárias entre


o pequeno contingente de delegados e os graus mais inferiores da carreira.

Na maior parte dos estados, especialmente aqueles do Norte e do


Nordeste, às disparidades salariais e funcionais se somam os fatos de não estar
implantada a carreira de policial e de os delegados de polícia em grande número
não serem bacharéis em direito ; além disso, os delegados, como o restante dos
policiais, não são concursados, mas nomeados por indicação política dos
governadores, secretários de Segurança Pública e lideranças políticas,
agravando o caciquismo. Segundo levantamento recente realizado por órgãos
sindicais da profissão policial , a situação em alguns estados revela um padrão
comum a muitos: na Bahia, cerca de 60% não são concursados e não são
bacharéis em direito. Órgãos essenciais para a investigação, como os institutos
médicos legais e de criminalistas, continuam atados à polícia e com atraso
científico de no mínimo meio século. Como provar a culpa de um homicida se as
polícias não contam com um arquivo unificado de impressões digitais para todo o
país?
O policiamento ostensivo militarizado. A mesma ineficiência, com outros
conteúdos, caracteriza as forças responsáveis pelo policiamento ostensivo, as
polícias militares. Apesar do controle do governo civil sobre as polícias militares,
a concepção militarizada da segurança pública, formulada pelos governos
militares depois de 1967, foi confirmada na Constituição de 1988, que manteve
intocada a organização policial, por meio do TÍTULO V, CAPÍTULO III, Da Segurança
Pública, art. 144, um dos textos mais flagrantes da grande insensibilidade para a
necessidade de desmilitarizar o aparelho de Estado depois da ditadura como
condição da plena formalidade da democracia. A continuidade dessa estrutura
militarizada também revela o peso que a corporação militar deixou de exercer no
regime democrático, pois, sendo as polícias militares forças auxiliares, as forças
armadas continuam a ser ouvidas em tudo o que lhes diga respeito, por
intermédio de uma inspetoria geral das polícias militares.

Esses antigos exércitos estaduais, como afirmava o ex-ministro do


Supremo Tribunal Federal Clóvis Ramalhete, não tem mais razão de existir. As
forças militares estaduais foram produto de um equívoco gerado pela
necessidade de os novos governos estaduais se armarem para enfrentar os
bandos das oligarquias locais. Hoje, quando nenhum governador enfrenta o
desafio armado das oligarquias, essas forças armadas estaduais, na sua
presente estruturação, são um anacronismo. Nenhuma grande democracia,
mesmo Estados federados como a Alemanha e o Canadá, mantém exército à
disposição das unidades federadas.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 57

Tal equívoco foi agravado, durante a ditadura militar, quando os pequenos


exércitos foram fundidos com o policiamento ostensivo civil. A extinção das
guardas civis uniformizadas e sua unificação com esses exércitos estaduais, sob
a égide do exército, a partir de 1967, foi uma decisão motivada pela estratégia de
enfrentamento da ditadura com as dissidências. A mesma inspiração determinou
que o “pacote de abril” de 1977 retirasse da alçada da justiça civil, atribuindo às
justiças militares estaduais, o exame dos crimes civis do policiamento ostensivo
desde o começo da ditadura sob a rsponsabilidade das polícias militares.
Nenhuma das duas decisões tinha algo a ver com a política de segurança pública
ou luta contra a criminalidade. O que estava em questão era a segurança do
Estado e a dos dirigentes da ditadura.

O policiamento ostensivo e a preservação da ordem pública, além de


permanecerem militarizados, continuaram a contar com a proteção do foro
especial da justiça das polícias militares estaduais. Como durante o regime
militar, após o retorno à organização democrática, em ficado patente que essa
justiça tem servido para proteger policiais militares em ações criminosas – em
vários governos estaduais mesmo depois do retorno às eleições diretas –,
encorajados e premiados apesar da honestidade dos juízes civis de primeira
instância e dos juízes militares e civis de segunda instância em São Paulo, Minas
Gerais e Rio Grande do Sul, e da dedicação de promotores (todos civis e da
carreira de cada ministério público estadual) ao pedirem condenações, a
administração interna da justiça militar e suas carências tornam quase impossível
para a promotoria denunciar mais que poucos casos envolvendo violência. O
Código Militar e o Código do Processo Penal Militar, voltados para os crimes de
operações militares, das forças armadas propriamente ditas, não estão
adequados para considerar os crimes civis cotidianamente praticados pelo
policiamento. A limitação corporativa da justiça militar, presente no inquérito
policial militar e nas duas instâncias de julgamento (tanto nos conselhos de
auditoria como nos tribunais de segunda instância), conjuga-se com falhas de
técnica jurídica, concorrendo para uma atribuição de justiça falha.

A mesma precariedade dos inquéritos da polícia judiciária, civil, caracteriza


os inquéritos policiais militares, IPMs, realizados dentro dos próprios batalhões
por policiais em geral de limitada formação jurídica e praticamente sem os
modernos recursos da técnica de investigação criminal ou da medicina legal.
Muitas vezes, IPMs sobre mortes praticadas por policiais militares aparecem
como homicídios justificáveis, independentemente das circunstâncias em que
foram cometidos. São raros esses IPMs conseguirem caracterizar práticas
correntes nas polícias militares que dissimulam homicídios praticados por
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 58

policiais em alegados confrontos: muitas vezes uma pessoa leva um tiro quando
fugia da polícia ou, porque foi morta deliberadamente, levará outros tiros até
morrer. Mesmo quando morta, a vítima será levada para o hospital, para fazer de
conta que se prestaram socorros, quando na realidade o que estão fazendo é
obstruir a investigação.

Além dessas limitações corporativas e técnicas, diante do crescimento da


criminalidade violenta, ações policiais têm aumentado e os efetivos policiais
também têm se expandido, o que contribui para agravar a precariedade do
funcionamento do sistema da justiça das polícias militares estaduais: os
processos concluídos diminuem embora os casos tenham aumentado. Apesar da
falta de transparência sobre os dados relativos à atribuição da justiça das polícias
militares, apesar de algumas iniciativas visando o seu aperfeiçoamento, o padrão
apurado no final de 1992 continua a prevalecer: havia 14 mil casos pendentes
distribuídos por quatro auditorias, cada uma com um promotor, ou seja, cada um
deles com 3.500 casos para denúncia. Acusações menos sérias do que
homicídio, como lesões corporais graves, são regularmente prescritas por não
exercer o Estado seu direito de ação. Os processos estendem-se por muitos
anos e durante esse tempo os policiais acusados continuam em serviço
normalmente, podendo até receber elogios funcionais, promoções e
condecorações.

Enquanto os policiais civis responsáveis no caso da asfixia de dezoito


detentos do 42º distrito policial, em São Paulo, já foram julgados e um
condenado, até hoje o IPM foi incapaz de ouvir os policiais militares
responsáveis; o julgamento dos responsáveis pelo massacre do Carandiru, em
fevereiro de 1992, ainda está na fase de depoimentos de testemunhas e, apesar
de ter havido 111 mortes, além de os oficiais comandantes da ação criminosa
terem apenas sido removidos de suas funções de comando, até hoje, passados
três anos, nenhum policial sofreu qualquer tipo de sanção, nem foi afastado da
PM.

Essa situação não é acidental nem se deve simplesmente à falta de


recursos: é intencional, como observaram em 1993 o Human Rights
Watch/Americas e o Núcleo de Estudos da Violência. Não se espera que a justiça
militar atue eficientemente em ações violentas, já que essa justiça é muito mais
expedita em crimes da hierarquia que representem uma ameaça para a
corporação militar, como a quebra de disciplina, ou de corrupção do que em
crime contra a integridade física dos cidadãos. Esse sistema da justiça militar, no
qual a Polícia Militar investiga e julga seus próprios membros (ainda que com a
participação de juízes togados e de membros do Ministério Público) em crimes
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 59

civis do policiamento, é um incentivo para a arbitrariedade e deve ser alterado. O


policiamento ostensivo e preventivo feito pelos policiais militares é uma função
civil e seus crimes devem ser, como em todas as democracias, da alçada da
justiça civil, para que o governo civil tenha o pleno controle sobre as polícias
militares.

Um projeto de lei do deputado Hélio Bicudo restaurando a competência da


justiça civil foi aprovado, com algumas restrições (limita-a a homicídios e a
investigação continuaria sob a responsabilidade dos IPMS), na Câmara dos
Deputados e passou por algumas comissões do Senado Federal.
Lamentavelmente, o governo Itamar Franco, quando enviou ao Congresso
Nacional um elenco de medidas para o enfrentamento da violência, não
apresentou proposta corroborando o projeto Bicudo e há indícios de que os
ministros militares deram manifestações concretas de mal-estar ante esse projeto
ou desacordo com o mesmo. Para atender os requisitos plenos da democracia o
policiamento ostensivo deve ser desmilitarizado e o foro especial para os crimes
de policiamento, extinto de imediato. E em conseqüência, além de razões
prementes de eficiência, a organização policial brasileira, militar e civil precisa ser
inteiramente reestruturada.
A polícia federal. Na esfera federal, a Polícia Federal, instrumento
essencial para as investigações de crimes federais, tem desempenhado inúmeras
funções nas investigações sobre corrupção e no combate às violações de direitos
humanos. Criada há 26 anos, tem apenas 5 mil homens, compreendendo
agentes, delegados, escrivães, peritos, técnicos, mas incluindo o pessoal
administrativo chega a 7 mil funcionários. Seus salários estão aviltados, os
efetivos concentrados em Brasília e nas grandes capitais, muitos funcionários em
desvio de função. Em São Paulo, os quadros da Polícia Federal mal ultrapassam
mil funcionários, entre os quais setenta delegados, que às vezes chegam a ser
responsáveis por mais de trezentas investigações. Em razão dessas carências,
cerca de 30 mil inquéritos, envolvendo desde fraude na previdência social,
narcotráfico, corrupção parlamentar, aguardam solução, muitos prescrevendo, o
que agrava a impunidade. Em conseqüência dessas carências, as fronteiras
estão desguarnecidas por inteiro, tendo muitos postos apenas dois agentes, e o
contrabando, sobretudo de armas, e o narcotráfico fluem livres, agravando a
violência endêmica. Dificilmente uma política de controle do contrabando de
armas, do controle da circulação do estoque de armas e de repressão ao
narcotráfico poderá ser ativada com seriedade sem que o governo federal de
dote de instrumentos eficazes, como uma Polícia Federal com melhores
recursos.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 60

Crime organizado e militarização. Apesar de todas os avanços ocorridos


no estado de direito, o crescimento da violência e da criminalidade, ao lado do
agravamento das já graves violações de direitos humanos no ano de 1994,
conduziu as autoridades a uma militarização crescente do enfrentamento da
violência. Os resultados bastante limitados, para dizer o mínimo, atingidos pela
ocupação militar da cidade do Rio de Janeiro mostram claramente a ineficiência
dessa abordagem. O equívoco não é apenas logístico, mas reside na concepção
mesma da abordagem militarizada.

O estereótipo das sociedades modernas, em especial as cidades, como


lugar da violência faz crer que a violência urbana tenha aumentado de forma
ininterrupta desde a formação das grandes cidades, mas isso não corresponde à
realidade. Na realidade, o crescente monopólio da violência física e o
autocontrole que os habitantes da cidade progressivamente se impuseram
levaram a uma crescente “pacificação” do espaço urbano. Se os níveis de
criminalidade forem tomados como um indicador da violência, fica claro que esta
declinou desde meados do século XIX até meados do século XX: somente por
volta dos anos 1960 a violência e o crime começaram a aumentar, tornando-se o
crime mais violento depois dos anos 1980.

Apesar da violência, do crime, das graves violações de direitos humanos,


não está em curso no Brasil uma “guerra civil” que exige uma crescente
militarização, com a intervenção das forças armadas – como ocorreu na cidade
do Rio de Janeiro. A noção de guerra é equivocada porque os conflitos ocorrem
no interior da sociedade, onde seus membros e grupos sociais – especialmente
em sociedades com má distribuição de renda – jamais cessam de viver em
situações antagônicas. É a democracia que permite à sociedade conviver com o
conflito, graças as respeito das regras do jogo definidas pela constitucionalidade
e dos direitos humanos, tanto direitos civis e políticos como sociais e
econômicos: o enfrentamento militarizado do crime não é compatível com a
organização democrática da sociedade. Nenhuma pacificação na sociedade é
completa. A matança pela polícia, a violência do crime, as chacinas, os arrastões,
a guerra do tráfico não são episódios de uma guerra civil nem o retorno ao estado
de natureza. São conseqüências de conflitos e políticas de Estado
permanentemente produzidas pelas relações de poder numa sociedade
autoritária ao extremo, por meio das instituições e das desigualdades sociais.

Não são duas ou mais facções armadas e organizadas que se atacam


entre si ou se contrapõem ao Estado. Aqueles que recorrem à violência ilegal e
desrespeitam a lei estão em muitos grupos sociais, e muitas vezes criminosos e
Estado atuam em conluio. O Brasil não é um país em guerra civil. A segurança
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 61

nacional não está ameaçada pela guerra social. A retórica da guerra civil anda de
mãos dadas com sociedades que são extremamente hierarquizadas e assoladas
pelo racismo e pela desumanização dos pobres.

A visão militarizada da segurança pública, que motivou a ocupação militar


dos morros e bairros populares do Rio de Janeiro no final do ano de 1994, tem
raízes difusas e profundas. A questão do crime organizado, especialmente do
narcotráfico, não é militar: o alegado “Estado paralelo” nas favelas cariocas e em
outras porções do território brasileiro não tem nada a ver com “territórios
liberados”. A atual situação de desrespeito da legalidade somente se consolidou
e subsiste graças as conluio entre o crime organizado, funcionários públicos e
comerciantes e agentes do Estado, como aliás ficou claro no inquérito da chacina
de Vigário Geral, realizado pelo Ministério Público do Rio de Janeiro.

O crime organizado, os narcotraficantes, os bicheiros continuam nas


favelas, mesmo depois de desastradas operações militares, porque agentes do
poder público toleram (ou empresariam) suas atividades ilícitas e consumidores
das elites asseguram um mercado. As populações das favelas cariocas foram
abandonadas de tal maneira pelo poder público e pelo Estado que dele
conhecem quase somente a face do achaque da polícia e da repressão ilegal.
Quando os traficantes nos morros – na verdade meros pequenos intermediários
dos verdadeiros traficantes que moram na cidade – doam algumas migalhas dos
enormes lucros de seus patrões oferecendo empregos miseráveis e proteção,
não admira que sejam venerados como beneméritos.

A ocupação do Rio de Janeiro foi uma operação de duvidosa eficiência


para a luta contra o crime organizado – se é que em algum momento as
autoridades envolvidas contemplaram seriamente esse objetivo. A operação
agravou o sofrimento, e a revolta, de trabalhadores honestos, perturbou a já
sofrida existência de famílias honradas, de mulheres, idosos, suspeitos por
morarem nos morros – aliás, em nenhum momento levados em conta pela
logística das batalhas contra o crime. Flagrantes violações de direitos
constitucionais foram perpetradas: enquadramento e controle de identidade ilegal
de populações inteiras, revistas de crianças, invasões de domicílio, detenções,
prisões e interrogatórios em estabelecimento militares. Houve denúncias e
constatações de torturas, o que foi alvo de investigação militar que desconsiderou
os exames de corpo de delito, realizados por peritos militares, os quais
confirmavam as torturas. Há um caso de desaparecimento de um funcionário
público, desde 26 de novembro de 1994, durante uma das operações militares,
que até o momento não foi esclarecido.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 62

Não obstante todos esses erros, a operação militar no Rio de Janeiro foi
prorrogada durante o ano de 1995, apesar de todas as vezes que o exército se
retirou dos morros a situação ter permanecido a mesma. Os traficantes e o crime
organizado em geral continuarão se armando porque a operação não colocou em
prática esquemas eficazes de fiscalização e controle do comércio de armas, de
repressão ao contrabando e não implantou o controle individual das armas
utilizadas pelos agentes do Estado. De pouco adianta “limpar a área”, como
parece ter sido pretensão do governo e dos comandos militares, sem melhorar as
condições de vida daquelas populações, alargando sua cidadania.

Essa crítica às operações militares e ao equívoco, a nosso ver, do governo


federal e do governo do estado do Rio de Janeiro em prolongar, com pequenas
modificações, um convênio de duvidosa legitimidade constitucional não visa
pregar a inação do governo federal, ou até mesmo das forças armadas. É
intolerável para o estado de direito e para a forma democrática de governo que
largas porções do território nacional estejam controladas pelo crime organizado
como em várias favelas e bairros ou nas fronteiras dos estados. Mas é
inaceitável, na perspectiva de uma política de segurança sob a democracia, uma
delegação do governo civil às forças armadas para um enfrentamento do crime
que tem contornos das antigas operações antigurerrilhas. De alguma forma essa
intervenção militar velada no estado do Rio de Janeiro confere novas formas
inquietantes da militarização das questões civis da segurança pública, agravando
a continuidade da influência das forças armadas já presente na manutenção do
policiamento ostensivo por forças com o estatuto de subsidiárias às forças
armadas e pelo foro especial das justiças militares estaduais. Ora a formalidade
estrita da democracia requer que o governo civil exerça a plenitude de seu poder
na definição e no exercício da política de segurança.

Sistema judiciário e o Ministério Público


Quanto ao sistema judicial – o mesmo se aplica à polícia -, tem o seu
funcionamento efetivo determinado por procedimentos distanciados de códigos.
Essas práticas estão ligadas à forma hierárquica e discriminatória que marcam as
relações interpessoais na sociedade, na qual as “não-elites” não têm controle
sobre as elites, como em outras sociedades democráticas em que o império da
lei vale igualmente para as classes governantes. Há em conseqüência uma
percepção extremamente desfavorável do poder judicial, como demostram as
taxas de utilização do poder policial pela população. A intervenção da justiça,
conforme apurou pesquisa da Pesquisa Nacional de Amostragem Domiciliar
(PNAD) em 1991, é preponderante nos conflitos por pensão alimentícia (73,4%),
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 63

questões trabalhistas (66,6%) e nos conflitos de posse da terra (51,3%). Mas em


relação ao conflito entre vizinhos (85%) e problemas criminais (72%) foi bastante
alto o percentual das pessoas que não recorreram ao judiciário. No conjunto de
todos esses conflitos, apenas 33% das pessoas envolvidas em algum tipo de
conflito buscaram o judiciário para a solução de seus problemas . Não espanta
portanto que, conforme pesquisa de opinião, do Datafolha, publicada em 12/3/94,
35% dos brasileiros tivessem considerado o judiciário como “regular”, 25% como
“ruim e péssimo” e apenas 24% como “ótimo e bom” .

A Constituição de 1988 assegurou a independência e a autonomia


administrativa e judiciária, mas graves problemas estruturais afetam o
funcionamento do sistema. Uma pesquisa realizada pelo Instituto de Estudos
Econômicos, Sociais e Políticos de São Paulo (IDESP), entrevistando 20% dos
juízes em cinco estados – São Paulo, Rio Grande do Sul, Paraná, Goiás e
Pernambuco –, além de 41 da Justiça Federal, compreendendo 570 entrevistas,
indagou quais os obstáculos ao bom funcionamento do judiciário. O elenco de
problemas julgados mais relevantes permite delinear os principais fatores da crise
estrutural que afeta o funcionamento do judiciário: falta de recursos materiais,
excesso de formalidades nos procedimentos, número insuficiente de juízes e de
varas, legislação ultrapassada, elevado número de litígios.

Em 1990, havia apenas 5164 juízes no Brasil. Justamente naqueles


estados onde a impunidade é mais flagrante – sobretudo para os conflitos rurais
e mortes violentas em geral – é menor a relação entre o número de juízes e a
população: no estado de Alagoas, um juiz para 44 mil pessoas; em Pernambuco,
um juiz para cada 40 228 pessoas; no Maranhão, um para 39 383; na Bahia, um
para cada 38 774 . Enfim, enquanto no Brasil há um juiz em média para cada 29
542 habitantes, na Alemanha a relação é de um juiz para cada 3 448 habitantes,
na Itália de um para 7 692 e na França de um para 7 142 .

Desse modo, o Brasil segue o padrão dos países em desenvolvimento que


alocam maior proporção dos recursos humanos à polícia, em detrimento do
judiciário. Orçamentos ridículos são destinados ao judiciário: o STF recebeu em
1995 0,22% do orçamento geral da União, apesar de ter julgado 19 mil processos
em 1992. Nos países em desenvolvimento a proporção de pessoal judiciário,
juízes, alocados à justiça criminal, é extremamente exígua, atingindo 2% para
76% de policiais (nos países desenvolvidos, a mesma relação foi de 8% para
76% em 1986). Estabelecer e manter um sólido sistema judicial requer
investimento substantivo num completo sistema de educação, que as classes
governantes jamais implantaram. As carências da educação, por exemplo,
refletem-se nas estratégias de enfrentamento do crime. Não surpreende que o
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 64

diagnóstico dos juízes, já referido, aponte como obstáculos o despreparo dos


advogados e a insuficiência na formação de juízes .

Outro aspecto da crise do judiciário, apontado por Maria Tereza Sadek, é a


grande defasagem existente entre os processos que entram na justiça e seus
respectivos julgamentos. Em todo o Brasil, entraram na primeira instância da
justiça comum 4 209 623 processos em 1990 e foram resolvidos, no mesmo
período, apenas 2 434 842, ou seja, 57,5%. Estima-se que esse nível,
extremamente baixo, corresponda ao rendimento do judiciário nos últimos anos,
levando em conta que várias mudanças provocadas pela Constituição de 1988
muito lentamente têm tido efeito. E como o número de processos a que se deu
entrada tende a aumentar o acúmulo de defasagem também tende sempre a
aumentar. Devido a esse acúmulo de processos, como muitos julgamentos não
são realizados dentro dos prazos previstos, muitos crimes prescrevem, impunes
– o que permite a juízes corruptos ou submetidos a interesses locais
propositadamente deixar prescrever alguns crimes. Na aplicação das sentenças,
segundo pesquisa recente de Sérgio Adorno, há uma desigualdade jurídica, com
marcado viés racial, na atribuição das sentenças: as penas são extremamente
mais pesadas para os réus não brancos do que para os réus brancos. Nas áreas
rurais, onde o judiciário está mais sujeito – como a Polícia Civil e Militar – à
influência dos proprietários de terra locais, em particular nos casos relacionados
com os militantes sindicais e índios, a polícia local é menos rigorosa na
investigação, os promotores estão menos dispostos a abrir inquérito, e os juízes,
muitas vezes ligados às elites locais, encontram desculpas para arrastar os
processos em casos envolvendo pistoleiros contratados pelos proprietários de
terra para eliminar posseiros ou ativistas sindicais. Em Manaus, as autoridades
judiciais não tomam nenhuma iniciativa em 80% dos crimes contra a vida que
deveriam ser submetidos a júri popular, devido à omissão de ação policial em
produzir provas; no estado de Pernambuco, entre as 176 comarcas existentes, 73
não têm juízes.

Apesar da fraqueza da prestação judicial, atos de intimidação, inclusive


ameaças de morte, são freqüentes contra testemunhas, promotores, juízes,
advogados e ativistas de direitos humanos. Essas ameaças não se restringem às
áreas rurais, no Norte e no Nordeste, onde é prática comum a intimidação de
juízes, promotores e até da própria polícia: em São Paulo, os promotores da
justiça militar Marco Antonio Ferreira Lima e Stella Kuhlman receberam ameaças
para interromperem investigações de crimes de policiais militares; uma outra
promotora, Eliana Passareli, investigando casos de corrupção também foi
ameaçada. No Rio de Janeiro, juízes e o procurador do Ministério Público,
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 65

investigando as ligações da polícia com o crime organizado, receberam ameaças


de morte. Inúmeros juízes e promotores estão em listas de ameaças de morte e
vivem com a proteção da Polícia Federal. No estado do Acre, como em muitas
outras comarcas do Norte e do Nordeste, muitas vezes há juiz, mas falta o
promotor público ou vice-versa. A assistência judiciária, exigida pela Constituição
e fornecida pelas procuradorias estaduais, é precária e apesar de haver cerca de
300 mil advogados no país, um terço está concentrado no estado de São Paulo,
onde tramitam 3,1 milhões de processos.

O Ministério Público em todos os estados, após a Constituição de 1988,


teve a sua autonomia aumentada e sua competência alargada. Em muitos
estados os promotores públicos e procuradores de justiça passaram a atuar em
causas de defesa da cidadania envolvendo os diversos conjuntos de direitos
humanos. No Ministério Público de estados mais desenvolvidos, como São
Paulo, foram criadas procuradorias especializadas que passaram a identificar
várias violações a grupos específicos, como crianças e adolescentes, ou
referentes aos direitos coletivos como o meio ambiente. No estado do Rio de
Janeiro, o Ministério Público teve um papel de protagonista, ao lado de alguns
juízes, nas investigações sobre a corrupção do crime organizado, expondo as
ligações entre o jogo do bicho, a polícia e representantes políticos. Naqueles
estados onde os conflitos rurais estão presentes, muitos promotores, revelando
autonomia diante das oligarquias locais, têm investigado crimes de pistolagem e
oferecido acusação contra eles. No conjunto do país, apesar da escassez dos
efetivos e dos recursos disponíveis, o Ministério Público tem acompanhado
subsidiariamente, muitas vezes a pedido de ONGs, as investigações policiais
envolvendo graves violações de direitos humanos.

Grandes avanços ocorreram na estrutura da Procuradoria Geral da


República, o Ministério Público federal, graças aos poderes e autonomia
assegurados pela Constituição de 1988. Muito contribuiu para a ação firme da
Procuradoria a atuação do procurador geral da República, Aristides Junqueira, e
do subprocurador geral, Álvaro Ribeiro da Costa, que deram decidida ênfase à
investigação das graves violações de direitos humanos. Embora a Constituição
atribua competência à justiça federal para os crimes de direitos humanos, ainda
falta legislação específica a respeito. Os procuradores da República têm atuado
em várias frentes contra as violações de direitos humanos, pode-se dizer pela
primeira vez na história republicana. Eles têm intervindo regularmente em todos
os casos de homicídio em conflitos rurais; arrogam-se a competência para a
investigação invocando a infração à convenção internacional contra a liberdade
de organização do trabalho, pois esses crimes se abatem sobre organizadores
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 66

sindicais e seus apoios. Os crimes contra as crianças e adolescentes motivaram


inúmeras iniciativas de articulação com os ministérios públicos estaduais. A
Procuradoria dinamizou a atuação do Conselho Federal de Defesa dos Direitos
da Pessoa Humana, promovendo a formação de comissões especiais de
investigação que se deslocaram para vários estados como São Paulo, Rio de
Janeiro e Alagoas em casos de massacres ou crimes policiais. Foi criada em
cada um dos estados da federação uma procuradoria da cidadania destinada
especificamente a tratar das graves violações de direitos humanos.

Prisões
Se a polícia e o judiciário pouco foram afetados por reformas nesses dez
anos de governo civil, uma outra instituição crucial para o enfrentamento da
impunidade no Brasil, o sistema penitenciário, padece carências que se
acumulam há décadas. No Brasil, a prisão e a detenção ilegais, apesar de todas
as restrições claramente definidas pela Constituição de 1988, continuam de todo
banalizadas em seu emprego contra a maioria da população trabalhadora, pobre
e não branca. As regras apenas são seguidas em proveito dos que detêm alguma
parcela de poder ou riqueza, em geral brancos – mas mesmo em relação a esses
contingentes abusos são comuns. Em razão da forma indiscriminada com que a
detenção e a prisão são realizadas em nosso país, há um desrespeito deliberado
e continuado, apesar da democracia, dos preceitos constitucionais e dos direitos
internacionais de direitos humanos, válidos para a lei interna.

A maior reclamação dos presos em todo país, além, é claro, das próprias
condições de cumprimento da pena, é a falta de assistência judiciária. A imensa
maioria, 98% segundo o censo nacional analisado neste livro, não dispõe de
recursos para contratar advogados particulares, dependendo das assistências
judiciárias dos estados, em sua maior parte com escassos recursos, ou de
advogados nomeados pelos juízes. Em especial depois da condenação, a
assistência judiciária é praticamente nula, apesar do esforço de se aperfeiçoar
esse atendimento por parte das procuradorias dos estados, e os presos sem
recursos ficam abandonados a sua própria sorte. As expectativas dos presos
sobre o retorno a sua vida em liberdade fundam-se praticamente sobre suas
possibilidades individuais. O censo penitenciário mostra que, de cada cinco
presos, apenas dois elaboram projetos de vida futura a partir da família, queixam-
se da solidão, de supressão da vida afetiva e da ausência de vínculo familiar
permanente. Desse modo, a prisão no Brasil é uma instituição ineficiente, com
recursos mal administrados e dominados pela corrupção, inútil para a reinserção
social do condenado ou para a segurança da população. Em conseqüência da
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 67

fragilidade do inquérito policial, das carências do judiciário e da falência da


administração carcerária, largos contingentes de presos poderiam estar
cumprindo penas alternativas, de prestação de serviços à comunidade, com
possibilidades muito maiores de reintegração. A prisão é fundamentalmente uma
instituição de repressão a delinqüentes das “não-elites”.

Em contrapartida, o crime organizado não é alvo da repressão organizada


do Estado, que não dispõe de nenhuma política bem definida, nem de
estabelecimentos destinados a acolher chefes e membros dos circuitos do crime
organizado.

3. Sociedade civil, ONGs e a tomada de consciência dos direitos


Fica evidente que todas as políticas do governo e a reforma das
instituições de controle da violência terão muito poucas chances de serem bem-
sucedidas ou de se tornarem realidades sem a mobilização e a organização das
ONGs. Nesse sentido, a Conferência Mundial de Direitos Humanos reconheceu “o
importante papel desempenhado por organizações não governamentais na
promoção dos direitos humanos e nas atividades humanitárias em níveis
nacional, regional e internacional. A Conferência Mundial sobre os Direitos
Humanos aprecia a contribuição dessas organizações na conscientização pública
das questões de direitos humanos, as atividades de educação, treinamento e
pesquisa nessa área e na promoção e proteção dos direitos humanos e das
liberdades fundamentais”.

O movimento de direitos humanos tem tido um papel decisivo no que Alice


Henkin, do Justice and Society Program, do The Aspen Institute, chama de
“mobilização da vergonha” dos Estados e das sociedades; fazendo denúncias e
elaborando relatórios, pressionando pela definição de padrões, pela adoção de
convenções, lutando pelas ratificações e pela eliminação de reservas. Enfim,
chamando a atenção para a necessidade de incorporação das normas do direito
internacional dos direitos humanos na existência cotidiana da democracia no
Brasil. Por mais que o recurso ao sistema de proteção internacional possa ser
limitado, os órgãos internacionais de investigação de direitos humanos, à medida
que se tornaram mais numerosos e especializados, justamente porque continua a
caber aos Estados nacionais a responsabilidade primordial pela adoção das
normas, têm sempre o power to embarass os governos que perpetram violações.
Nenhum governo se sente à vontade para ver expostas violações sistemáticas de
direitos humanos por parte de agências sob sua responsabilidade ou sua
omissão em promover obrigações com as quais se comprometeu.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 68

O novo quadro constitucional abriu espaço para novos movimentos e


organizações, defendendo os direitos das mulheres, dos negros, dos índios, dos
trabalhadores rurais, dos grupos com orientação sexual diferenciada. Esses
movimentos emergentes tiveram capacidade de introduzir novo dinamismo aos
movimentos sociais, enfrentando as limitações dos partidos políticos e dos
sindicatos, assim como as preocupações estreitas dos grupos de interesse, para
assumirem as novas agendas impostas pelos direitos humanos. As ONGs
experimentaram um enorme desenvolvimento depois do retorno à organização
democrática. Pesquisa realizada em 1988 já mostrava que as ONGs eram 1208
entidades (entre as quais cem tratavam exclusivamente de direitos humanos)
situadas em 378 cidades, sendo que 85% delas haviam sido criadas nos quinze
anos anteriores. Apesar dessa vitalidade, as atividades dos grupos de defesa dos
direitos humanos, embora presentes em muitas partes do território nacional, são
ainda fragmentadas e localizadas: essas ONGs podem complementar mas não
podem substituir a sociedade política. A maioria esmagadora da população
brasileira não participa de organizações formais da sociedade: pode valer para as
ONGs a mesma constatação relativa a sindicatos e associações. Segundo
pesquisa do PNAD somente 28% da população brasileira de dezoito anos ou mais
estava filiada a um sindicato ou a uma associação de empregados em 1988.

Uma dificuldade que deve ser levada em conta para entender esses limites
presentes na atuação das ONGs de direitos humanos é a das populações mais
pobres de reconhecerem os direitos humanos como sendo seus próprios direitos.
Essa limitação, combinada com um alto nível de aceitação das práticas ilegais
dos agentes do Estado – que cometem arbitrariedades alegando proteger essas
populações –, tem como conseqüência uma aquiescência generalizada, como
forma de, apesar de serem essas populações as vítimas preferenciais da
violência, se distanciarem dos marginais e dos criminosos. Mas essa
aquiescência não é monolítica nem está cristalizada. Pesquisas realizadas por
ocasião da matança no Carandiru, São Paulo, em 1992, mostram índices de
desaprovação de mais da metade da população; em relação à chacina da
Candelária essa tendência se confirmou.

Mesmo registrando esse padrão de aquiescência com as políticas públicas


de segurança ou de direitos humanos, não se pode esperar a evolução das
práticas populares ou uma reforma de cultura, que como nós sabemos não
podem ser planejadas. Ao lado de uma compreensão cada vez mais sofisticada
do pensamento, das atitudes, das práticas das classes médias ou populares, e
dos jovens delinqüentes, os aparelhos do estado continuam a ter uma autonomia
relativa em relação à sociedade e devem ser alvo de escrutinação específica e
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 69

campo para a invenção reformadora por meio dos mecanismos da democracia.


As reformas têm de se beneficiar de tudo o que se conquista em termos de
conhecimento das atitudes da população. Mas os governos não podem ficar
imobilizados sob a desculpa das amarras da cultura ou do imaginário popular ou
das classes médias. O Estado, além do dever de fazer respeitar os direitos
humanos, tem um papel pedagógico em relação à sociedade na promoção dos
direitos humanos por meio da educação.

4. Perspectivas
As atuais violações de direitos humanos serão debeladas se a atual
administração federal aprofundar o curso da reforma das instituições de controle
da violência e da legislação apenas esboçado no governo Itamar Franco e
continuar assumindo suas responsabilidades perante a comunidade
internacional. O governo do presidente Fernando Henrique Cardoso tem dado
muitos sinais de empenho em tornar realidade a promoção das garantias
fundamentais e dos direitos humanos. Esse engajamento do governo federal
poderá contribuir para que as administrações estaduais, assim como o Poder
Judiciário, o Ministério Público e o Poder Legislativo, se mobilizem para a
promoção dos direitos humanos. A sociedade espera que a disposição indicada
pelo apoio do atual governo a uma política externa de transparência dos direitos
humanos – traduzida pela criação do Departamento de Direitos Humanos e
Assuntos Sociais do Itamaraty – seja prolongada na ordem interna por atos e
reformas urgentes das instituições de controle da violência.

Deve-se reconhecer que o governo Fernando Henrique Cardoso tem


demonstrado, em diversos momentos, compromisso com a promoção dos direitos
humanos e disposição para enfrentar a impunidade generalizada para as graves
violações desses direitos. Em relação ao passado do regime autoritário, o
governo encaminhou um projeto de lei, elaborado após amplo processo de
debate no interior do governo e da sociedade civil, conduzido por José Gregori –
chefe de gabinete do ministro da Justiça, Nelson Jobim. Este projeto de lei
contempla o reconhecimento das mortes dos desaparecidos e estabelece uma
comissão de investigação de fatos, que virtualmente poderá abrir condições para
a reconstituição desses assassinatos cometidos por agentes do Estado. Em
cerimônia na data da Independência, em 1995, o presidente da República fez
referência clara a violações de direitos humanos após o retorno à democracia e à
necessidade de puni-las: “Eu acho que nós temos violações graves,
investigações que não puderam, ainda, chegar a seu termo, no Carandiru, na
candelária, em Vigário Geral, nos jovens desaparecidos de Acari e, mais
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 70

recentemente, em Corumbiara. E nós precisamos ter instrumentos que permitam


uma punição exemplar”. Nessa mesma ocasião, o presidente anunciou sua
disposição de preparar um Plano Nacional de Direitos Humanos, a ser elaborado
em diálogo com a sociedade civil, pondo em prática uma das recomendações do
Programa de Ação da Conferência Mundial dos Direitos Humanos de Viena,
1993.

Em diversas intervenções do governo que se seguiram, foram enfrentadas


as questões do trabalho escravo, da violência contra crianças e adolescentes, a
prostituição infantil, a tortura, comunidade negra e discriminação. O Conselho
nacional dos Direitos da Pessoa Humana do Ministério da Justiça tem tido uma
atuação alargada, apesar de ainda não ter sido realizado o projeto de reforma
que amplia a sua competência e representatividade da sociedade civil. Na área
das propostas legislativas, o governo federal e o ministro Nelson Jobim
assumiram posição de apoio ao projeto Hélio Bicudo à justiça civil a competência
dos crimes comuns das polícias militares, à federalização de alguns crimes de
direitos humanos, e se comprometeram a consolidar, em colaboração com o
Poder Legislativo, os diversos projetos em curso sobre a regulamentação da
criminalização da tortura.

Terão essas políticas o efeito de debelar as graves violações de direitos


humanos que persistem no governo democrático? É evidente que nenhum efeito
mágico se espera. Mas esse reconhecimento da gramática dos direitos humanos
pelo estado desencadeia uma nova dinâmica na luta contra o autoritarismo que
sobrevive na democracia, abrindo melhores condições para os cidadãos, para os
movimentos da sociedade civil fazerem avançar suas denúncias, aprofundarem a
mobilização, pressionarem os governantes por mudanças, exigirem a punição
dos crimes, o aperfeiçoamento do judiciário e o controle dos governantes. O
compromisso dos governos com os direitos humanos contribui para o
alargamento da cidadania e o aprofundamento da democracia para a qual as
violações dos direitos humanos, banalizados no Brasil há séculos, são
intoleráveis.

O crime organizado e a violência sistêmica subvertem os valores da


cidadania e do império da lei. A tolerância de muitas autoridades que assistem
impávidas ao armamento da população, a incompetência das repressão à
criminalidade organizada, a bonomia diante de expressões desse crime (como o
jogo o bicho) e os conluios entre polícia e crime devem ser quebrados pelo
Estado democrático mediante a plena atuação dos instrumentos legais do estado
de direito e o aperfeiçoamento urgente do judiciário.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 71

Ao fazermos o balanço dos direitos humanos, devemos nos perguntar se


estamos numa situação pior ou participamos de uma tendência internacional. Se
levarmos em conta a violência sistêmica fatal e nos colocarmos entre as doze
maiores democracias industriais (onde o Brasil se situa), a situação brasileira é a
de um país que ainda não implementou a contento o estado de direito. Mas para
não mergulharmos num pessimismo imobilista, apesar das violações aqui
repassadas, e podemos colocar em perspectiva histórica o estudo de Gilberto
Dimenstein e esta breve análise preliminar, perguntemo-nos qual era a situação
dos nossos direitos políticos há cem anos (1895), qual era a situação dos nossos
direitos civis há 50 anos (1945), qual era o estado dos direitos humanos no seu
conjunto há trinta anos (1965) e qual era o nível de transparência dos negócios
públicos há 20 anos (1975).

Se olharmos para trás e compararmos outras décadas com o momento


presente, constataremos que a mobilização popular da sociedade civil e a
participação política eram mais limitadas e as instituições do Estado mais
precárias. E os direitos humanos não eram reconhecidos e a transparência era
mínima. Apesar da violência sistêmica e do aumento da privação econômica, a
volta à organização democrática abriu condições para uma luta mais efetiva da
sociedade pelo estado de direito. Mas mesmo que a consolidação democrática se
aprofunde, com a reforma das instituições e da legislação, as garantias plenas do
estado de direitos humanos somente podem vir a ser reais se o movimento dos
direitos humanos souber estar ligado às aspirações populares. Não basta a
formalidade democrática: em muitos países desenvolvidos os sistemas
governamentais de proteção dos direitos humanos, que apenas começamos a
conquistar, já começam a apresentar sinais de inadequação diante dos desafios
contemporâneos (novas formas de racismo, migrações, narcotráfico, crime
organizado). Jamais se deve perder de vista a necessidade de articular as lutas
pelas reformas institucionais, pelos sistemas nacionais e internacionais de
proteção, com o atendimento emergencial das reivindicações das populações
cujo acesso à cidadania tem sido tradicionalmente barrado. Sem a realização dos
direitos sociais, econômicos e culturais das populações carentes, os direitos civis
e políticos estarão sempre incompletos e ameaçados, as graves violações de
direitos humanos continuarão a piorar nas novas democracias.

Antonio Candido recentemente dizia que talvez a ameaça da violência e


do crime afinal consiga gerar na sociedade brasileira aquele instante de
consciência capaz de desencadear as reformas sociais que mais de uma século
de revolta popular e protesto operário não conseguiram realizar aqui no Brasil. Os
relatórios do Human Rights Watch/Americas dedicados ao Brasil, que inspiram o
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 72

candente e rigoroso estudo de Gilberto Dimenstein, são uma formidável


contribuição para essa tomada de consciência e para a ação imediata.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 73

CAPÍTULO 3
VIOLÊNCIA URBANA E CRIME NO BRASIL : O CASO DE SÃO PAULO34

Paulo Sérgio Pinheiro

1. Overview da violência no Brasil.


Após a década dos anos 1960, as estatísticas criminais em todo o mundo
apontaram uma tendência para o crescimento da criminalidade. Essa tendência
foi constatada dos dois lados do Atlântico, tanto na Europa como nos Estados
Unidos 35. O Brasil não escapa dessa tendência aqui agravada por enormes
carências sociais, com uma das distribuições de renda mais altas do mundo,
contribuindo para a exacerbação dos conflitos interpessoais. Esse quadro
desfavorável para a construção da pacificação conjuga-se com taxas de
homicídios que atingem em algumas comunidades níveis epidêmicos36. Nós
acreditamos, como propõe James Gilligan37, entre outros autores, que a melhor
maneira de explicar as causas da violência de modo que possamos aprender
como preveni-la, “is to approach violence as a problem in public health and
preventive medicine”. Dessa forma será possível nos distanciarmos de uma
abordagem moral de pensar a violência “for one capable of utilizing all methods
and concepts of the human sciences; time, in fact, to build a truly humane
science, for the first time, for the study of violence”38.

Como síntese da caracterização da violência no Brasil podemos dizer que


estamos em face de uma violência endêmica, implantada num contexto de largas
desigualdades econômicas, de relações sociais profundamente assimétricas e de
acentuada discrepância se considerados os diferentes grupos raciais.

É claro que não pretendemos atribuir aos determinantes sócio-econômicos


um papel direto sobre as manifestações da violência e da criminalidade: esses

34
Texto originalmente preparado para o Wold Bank, agosto de 1998. Dada a natureza deste
relatório, foram suprimidas do texto original as últimas partes relativas às iniciativas para
prevenção da violência.
35
Adorno, Sérgio. ”O Gerenciamento Público da Violência Urbana: A justiça em Ação”, paper
Seminário São Paulo Sem Medo, maio 1997, p.5-6.
36
Utilizamos o termo “epidêmico” no sentido utilizado nas abordagens da criminalidade inspirados
na perspectiva da saúde pública. Ver por exemplo Rober Sampson, sociólogo da Universidade de
Chicago: “Once crime reaches a certain level, a lot of gang violence we see is reciprocal [...] Acts
of violence lead to further acts fo violence. You get defensive gun ownership. You get retaliation.
There is a nonlinear phenomenon. With a gang shooting, you have a particular act, then a counter
response” in Gladwell, Malcom. “The Tipping Point”. The New Yorker, June 3, 1996, p. 32-38.
37
Gilligan, M.D. Reflections on a National Epidemic. New York, Vintage, 1997, p. 92.
38
idem, p. 94.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 74

determinantes atuam como uma “rede de causas” que precisa ser posta em
evidência: na presente análise queremos apreender fatores pertinentes que
possam ser capazes de contribuir para entender as múltiplas causalidades39. De
qualquer modo é impossível - basta examinarmos as populações que estão na
prisão - ao tratarmos da violência física e da criminalidade não nos damos conta
da pobreza extrema e da discriminação que caracteriza a maior parte dos
indivíduos que recorrem à violência40.

Em conseqüência dessa constatação qualquer abordagem da violência,


seja no Estados Unidos ou no Brasil, tem também de levar em conta o que pode
ser chamado de violência estrutural. A violência direta, ou do comportamento,
que aqui estamos tratando, se reduz em última instância ao uso da força física
para atingir, ou sem responder a ações de outros seres humanos. A violência
estrutural, por outro lado, é o resultado de estruturas sociais que afetam os
indivíduos indiretamente - a distribuição de renda, a fome, o desemprego, a
discriminação racial41. Os efeitos letais da violência estrutural (por exemplo a
mortalidade infantil) operam mais continuamente do que esporadicamente, como
os homicídios, suicídios, execuções, guerras ou outras formas de violência
aberta; a violência estrutural opera mais ou menos independentemente de atos
individuais e de indivíduos ou grupos (políticos, partidos políticos, governantes)
cujas decisões não obstante podem ter decisões letais para largos setores da
população; enfim a violência estrutural normalmente é invisível porque ela pode
aparecer através da mediação de outras causas violentas ou naturais.

A abordagem da violência através do estudo de risco, que utilizamos aqui,


permite conjugar a análise da violência aberta, comportamental com a violência
estrutural. O risco é um conceito de probabilidade, significando a chance que um
indivíduo ou uma população tem de sofrer um dano futuro no seu equilíbrio vital42.
Ao levarmos em consideração as cidades brasileiras veremos que há enormes
diferenciais nas condições de vida dependendo do bairro onde se mora, e em
conseqüência os danos sofridos pelas pessoas (tanto pela violência
comportamental como estrutural) também serão diferentes, permitindo introduzir
a idéia de risco coletivo a que está submetida a população de determinado
território. Evidentemente essa análise, aplicada à violência, não pretende isolar

39
Goldberg, Marcel. “Este obscuro objeto da epidemiologia” in Costa, Dina Czeresnia,
org..Epidemiologia. Teoria e Objeto.São Paulo. São Paulo, Hucitec/ Abrasco, 1994, p. 104.
40
Gilligan op. cit. p.191.
41
John Galtung in Violence and its Causes. Paris, Unesco, 1981.
42
Essa discussão de risco é retomada de “ O que risco afinal ?” CEDEC/MJ[ Ministério da
Justiça]. Mapa de Risco da Violência: cidade de São Paulo. São Paulo, CEDEC, 1996, p. 3.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 75

um único fator preponderante aos outros que determinaria o risco: essa


determinação se dá pela sinergia e interconexão de todos os fatores envolvidos,
que compõem uma rede de causas.

Uma das vantagens do estudo da violência através da taxa de homicídio é


o fato de ser esse melhor indicador das condições de vida dos diferentes grupos
sociais levando em conta sua acentuada variação entre os distritos paulistanos.
Na mortalidade infantil, eliminando-se os dois extremos para evitar distorções, a
diferença entre os menores e maiores índices é de apenas três vezes - o risco de
morte de uma criança com menos 1 ano é três vezes maior em Guaianazes do
que na Consolação. Já quanto à taxa de homicídio, a discrepância é maior: o
risco de um morador morrer assassinado é 12 vezes maior que um morador da
Lapa43. Nancy Cardia, pesquisadora associada do Núcleo de Estudos da
Violência da Universidade de São Paulo, NEV/USP, acredita que a qualidade de
vida é melhor expressa pela taxa de homicídios sempre em crescimento,
especialmente se levarmos em conta quanto a taxa de mortalidade infantil baixou
na cidade na cidade. Os homicídios decorrem de problemas extremamente mais
complexos que a mortalidade infantil. A mortalidade infantil está sujeita a
melhorar com ações pontuais como a assistência à saúde e a imunização, que
não afetam as estruturas sócio-econômicas. Em relação aos homicídios, as
ações pontuais são mais raras e pouco consensuais: “Talvez só se consiga
diminuir os homicídios atuando na melhoria das condições de vida, como
emprego, educação, lazer, salário. Ou seja: projetos de médio e longo prazo que
necessitariam serem adotados por toda a sociedade”44.

A compreensão da violência e da criminalidade em muitas sociedades,


especialmente em sociedades tão desiguais, como o Brasil tem sido
essencialmente restrita às “classes perigosas”, as classes populares. Mas em
todas as sociedades emergiram outras formas de criminalidade, sob a
responsabilidade de categorias sociais afluentes, como a fraude fiscal, os golpes
financeiros, a malversação de fundos da previdência social, a falsificação dos
remédios, cujo custo é de longe superior à delinqüência dos roubos e furtos e
individuais. Nem sempre essas práticas ilegais são percebidas pelas elites como
crime ou punidas pelas instituições penais. Esses delitos são manifestações de
“incivilidade” tanto quanto a violência nas comunidades populares ou a
criminalidade organizada. Apesar desse paper não ter condições de analisar
todas essas manifestações, deve ficar claro que aquela “rede de causas” não

43
idem.
44
ibidem, ver observações do médico Marcos Drummond, um dos coordenadores do PRO-AIM.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 76

pode ser buscada apenas em explicações morais do comportamento de apenas


uma parte da sociedade (os marginalizados e os excluídos) mas a partir de uma
interpretação da sociedade no seu conjunto. Em outras palavras: “não é numa
soma de comportamentos individuais, que ganhariam significado por sua adição,
que se deve buscar a razão do fenômeno, mas numa fonte comum que tudo
influencia, e que não pode então se situar senão no funcionamento do próprio
espaço público. Nós somos então confrontados com um paradoxo inquietante,
pois devemos situar-nos na esfera pública, que precisamente funciona para a
socialização dos indivíduos através de valores comuns (...) o germe de seu
contrário, isto é a incivilidade”45.

A sociedade civil, longe das idealizações dos pais fundadores do Estado


moderno e das celebrações das transições democráticas na América Latina e na
Europa Central, segrega o melhor e o pior dos mundos. As redes de
solidariedade, estruturas de base para as relações sociais que engendram a
convivência e a pacificação, podem vir também a segregar comunidades
criminosas voltadas para elas mesmas, como os grupos fundamentalistas, as
máfias, as organizações criminosas. Umas e outras florescem em conseqüência
da incapacidade do Estado, como acontece em largos espaços urbanos no
Brasil, onde seus operadores não podem nem ingressar, nem os serviços
públicos assegurados, sob ameaças de morte46.
Para complicar ainda mais, a violência, combina-se com práticas
arbitrárias por parte dos operadores do monopólio da violência física estatal,
pelas polícias, que apesar do processo de consolidação democrática, ainda
recorrem sistematicamente às execuções sumárias e à tortura. Evidentemente
essas graves violações de direitos humanos não contam, como ocorria durante o
regime autoritário, com o apoio do Estado, do governo federal que desde o
retorno ao governo civil, especialmente depois da Constituição de 1988, tem tido
uma política pró-ativa de construção do estado de direito. Entretanto, esses
abusos contam na maior parte dos estados da federação, responsáveis pela
investigação e processo judicial, com generalizada impunidade.
Na impossibilidade de darmos conta nesse background paper de todas as
formas de violência ou de criminalidade, utilizaremos aqui como indicador da
violência sistêmica as causas externas de mortalidade, dando relevo aos
homicídios, e os crimes contra a integridade física dos cidadãos, praticados por

45
Ver Maillard, Jean de, “Citoyenneté et Pratiques civiques” in Damon, Julien[org.] La politique de
la ville. Problèmes Politiques et sociaux, n.784, 9 mai 1997op.cit,p.45-50.
46
Ver a respeito Pinheiro, P.S. “Democratic Consolidation and Human Rights in Brazil”. Kellogg
Institute. Working Paper,256, june 1998.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 77

particulares ou por agentes do Estado. A taxa de mortalidade por homicídios


aumentou 84% na população total entre 1980 e 1994. Depois de 1991, a taxa de
homicídios ultrapassou aquela de acidentes de trânsito, considerada a população
total47. O homicídio é a principal causa de morte externa entre os adolescentes e
os jovens. Mesmo que os homicídios também sejam afetados pelo sub-registro
que caracteriza o conjunto da criminalidade, as informações sobre mortalidade,
razoavelmente sistematizadas em todo o país, podem oferecer um quadro
aproximativo da realidade.

2. Padrões sócio-demográficos da violência urbana

No Brasil
Desde a década de 1980 há no Brasil um crescimento generalizado das
taxas de homicídio por 100.000 habitantes, segundo os dados do Sistema de
Informações sobre mortalidade do Ministério da Saúde48. Os estados de
Rondônia, Roraima, Pernambuco, Alagoas, Espírito Santo, Rio de Janeiro e São
Paulo em 1981 já apresentavam altas taxas de homicídio ainda que bem
inferiores as de 1990.

Os estados mais pobres como Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do


Norte e Bahia são aqueles com as menores taxas de mortalidade em todo o país,
confirmando que é equivocado estabelecer uma relação direta em pobreza e
criminalidade. A pobreza conta mais através de muitas mediações, como
veremos, e depende da interveniência de outros determinantes. A pobreza numa
periferia metropolitana existe num contexto mais conflitivo do que aquela em
áreas de isolamento ou de baixa densidade demográfica das áreas rurais do
Nordeste. Ainda que a sobrevivência naquelas áreas seja igualmente penosa, o

47
Yunes, J & Zubarew,T. “Mortality from Homicides in Adolescents and Young People: A
challenge for the region of the Americas”, paper, Seminário São Paulo Sem Medo, May 1997.
48
O SIM-MS [Serviço de Informação sobre Mortalidade - Ministério da Saúde] reúne informações
sobre mortalidade geradas em todas as unidades da federação. Os atestados de óbitos,
obrigatoriamente registrados em Cartório do Registro Civil, são agregados pelos órgãos
competentes. Cada óbito apresenta a seguintes variáveis: tipo do óbito, mês do óbito, ano do
óbito, estado civil, sexo, idade, local de ocorrência, município por ocorrência, ocupação habitual,
naturalidade, grau de instrução, causa básica do óbito segundo a Classificação Internacional de
Doenças. Para causas externas de mortalidade existe a especificação entre acidente de trabalho
e tipo de violência, sendo que esta última pode ser subdividida em suicídio, acidente e homicídio.
Segundo o MS os dados do SIM-MS representam 80% dos óbitos do país, estando entre os seus
principais problemas a cobertura incompleta do sistema nas regiões Norte, Nordeste e Centro
Oeste e o sub-registro de óbitos. Com respeito ao sub-registro, especialistas ponderam que
ocorre de forma bem menos acentuada em relação às causas externa, inclusive homicídios,
devido à própria visibilidade do evento. Ver Ratton Jr., José Luiz de Amorim. Violência e Crime no
Brasil Contemporâneo. Brasília, Cidade Gráfica e Editora, 1996,p. 25-26.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 78

recurso à violência nas interações pessoais nas áreas rurais tem características
diferentes e os números de homicídios em termos absolutos e mesmo relativos
(dada a menor densidade demográfica) são menores.

Há um crescimento da mortalidade por homicídios em quase todos os


estados do país. Entre os 26 estados do país, apenas Rio Grande do Norte,
Ceará e Minas Gerais não experimentaram crescimento das taxas de mortalidade
por homicídio entre 1981 e 1990. Em 15 unidades da federação o aumento é de
mais de 60% em toda a década.

Se considerarmos as grandes regiões brasileiras, no início da década de


1980 as mortes por 100.000, além de mais reduzidas, apresentavam níveis mais
próximos entre si do que na década de 90, quando as regiões do Norte e do
Sudeste disparam como as mais atingidas pela criminalidade violenta relacionada
a homicídios.

A mortalidade por causas externas, considerada a população total do


Brasil, aumentou de 20% durante o período de 1980 a 1994, em boa parte como
resultado do aumento da população masculina. O grupo mais afetado por esse
aumento foram os homens entre 15-19, que experimentaram um aumento de
51% na taxa de mortalidade por causas externas, atingindo uma taxa de
122.9/100.000 em 1994. Os homicídios e os acidentes de tráfico foram as duas
principais causas de mortes no total da população 49.

Nas cidades
Se considerarmos somente as capitais do estado, 17 apresentam
crescimento de mais de 50% nas taxas de mortalidade por homicídio entre 1890
e 1991; entre estas, 12 apresentam aumentos superiores a 100% e 7 delas
apresentam queda das mesmas taxas. As capitais com quedas são Belo
Horizonte, Salvador, Florianópolis e Rio de Janeiro, com quedas moderadas, e
Fortaleza, Natal e João Pessoa com quedas acentuadas. Quanto ao Rio de
Janeiro deve-se levar em conta que as taxas para este estado já eram elevadas
no início da década de 1980 e permanecem elevadas no final da década. Note-se
que Aracaju, Belém, Boa Vista, Brasília, Goiânia, Maceió, Manaus, Porto Alegre,
Recife, Rio Branco, São Luís, São Paulo e Vitória, ou seja mais da metade das
capitais, apresentam taxas acima de 25 homicídios/100.000.

São Paulo

49
Yunes and Zobarev.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 79

Nos primeiros três meses de 1998, 2129 pessoas foram assassinadas em


São Paulo (no mesmo período no ano de 1997 haviam sido 1900), ou seja um
por hora ou 24 por dia50. Os estudos sobre violência urbana têm demonstrado
que depois de 1980 ocorreu uma escalada da criminalidade violenta. No
município de São Paulo, entre 1984 e 1993, a participação de crimes violentos no
total da massa de crimes registrados cresceu 10,1%, tendo o crescimento sido
mais acelerado a partir de 1988, quando essa modalidade de delinqüência
passou a representar, em média 28,8% do total das ocorrências registradas51.

A criminalidade no município de São Paulo, considerado o período de


1984 -1993, teve um aumento de 20,5% dos registros de delitos, mas a partir de
1988 o crescimento é mais acentuado, 27,2%. Se examinarmos o período 1988 -
1993, os crimes contra o patrimônio apresentam o maior crescimento, seguidos
dos crimes contra a pessoa, 20,7%, crimes contra a incolumidade pública
(categoria que inclui o uso e tráfico de drogas), 16,1% e contra os costumes,
6,1%52. No mês de janeiro de 1998 ocorreram 753 homicídios em 31 dias (média
de 24,3 por dia ou mais de um homicídio por hora). Não foram apenas os
homicídios que aumentaram, mas em relação a janeiro de 1997 cresceu o
número de furtos (15,9%), roubos (34%), e furtos e roubos de veículos (20%)53.

Os crimes contra o patrimônio alcançam em 1993 uma participação de


68,5% do total de registros efetuados nos Distritos Policiais do Município de São
Paulo: no período 1988-1993 os roubos e suas tentativas aumentaram 39,2% e o
furto e suas tentativas 24,4%. Entre os crimes contra as pessoas, os homicídios e
suas tentativas apresentam uma tendência crescente: 27,2%, mas os delitos
decorrentes de acidentes de trânsito têm participação mais expressiva, 28,8%.

Se a criminalidade urbana segundo as estatísticas policiais for ponderada


com o aumento da população do município veremos que os crimes violentos
saltaram de uma taxa de 945,1 por 100.000 habitantes em 1988, para 1119,2 por
100.000 em 1993. Trata-se de um crescimento de 18,4 % num período de seis
anos.

Ao desagregarmos a criminalidade violenta constataremos que o roubo e


suas tentativas lideram, com taxas de 567,0 e 750,3 por 100.000,
respectivamente para 1988 e 1993. Neste período o roubo cresceu 32,3. As

50
“Brazil’s troubled megalopolis”.The Economist May 23, 1998, p.34.
51
Sobre o crime em São Paulo valho-me aqui de Feiguin, Dora e Lima, Renato Sérgio de, “Tempo
de violência, medo e insegurança em São Paulo”, São Paulo em perspectiva, 9(2), 1995.
52
: idem, p.75-78.
53
Marinheiro, Vaguinaldo. “Cidades Titanic””. FSP [ Folha de S.Paulo], 23.2.98, p.2.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 80

lesões corporais dolosas ocupam a segunda posição: em 1988, 308,9 por


100.000; em 1992, 273,2/100.000 e em 1993, 289,8/100.000.

Em relação aos homicídios e suas tentativas, há uma tendência ao


crescimento, com algumas oscilações: em 1988, 41,6/100.000, em
1991,50,6/100.000; em 1992, 44,0; em 1993, 50,2. Há entretanto uma
discrepância se comparadas às ocorrências nos Distritos Policiais com os
atestados de óbitos: em 1991, 3741 ocorrências policiais e 4980 atestados de
óbito por homicídio na capital, uma diferença de 43,5% entre uma fonte e outra,
ou seja 1509 a mais; em 1993, 3464 ocorrências e 4438 atestados, implicando
uma diferença de 28,1% ou 974 casos.

Essas informações de fontes diversas têm de ser necessariamente


contextualizadas. Várias hipóteses são apresentadas para essa discrepância54:
os atestados de óbito individualizam as vítimas de homicídio, os registros policiais
captam uma ocorrência apenas, na qual pode haver mais de um homicídio, por
exemplo, nos casos de chacinas, extermínio de crianças e adolescentes, acerto
de contas por dívidas do tráfico. Outra hipótese levantada é que o local da
ocorrência é onde o crime ocorreu, enquanto o atestado de óbito tem por base o
hospital onde ocorreu o falecimento, o que poderia estar inflacionando as
estatísticas do município de São Paulo, envolvendo ocorrências cometidas em
outros municípios da Região Metropolitana de São Paulo ou mesmo do Estado.

Uma das manifestações mais freqüente da violência epidêmica nessa


comunidades carentes são as chacinas, que tem ocorrido com regularidade
desde os anos 90, em especial na periferia da região metropolitana de São
Paulo. Em 1997 foram 47 chacinas, com 162 mortes. Em 1998, em menos de
seis meses ocorreram 46, com igual número de mortes. Nos últimos quatro anos,
o Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo55 vem
constatando que essas chacinas não poupam mulheres grávidas, crianças,
idosos, trabalhadores comuns ou donas de casa. Nenhum cidadão que habita as
áreas de alvo potencial de risco está a salvo dessa violência indiscriminada.

Rio de Janeiro
Se forem considerados, como foi feito para São Paulo, os crimes contra a
pessoa, como o homicídio doloso, a tentativa de homicídio e a lesão corporal
dolosa, constata-se que para esses crimes entre 1985 e 1989 há uma tendência

54
Feiguin e Lima, op. cit,p. 77).
55
Pinheiro, P.S. Adorno, Sérgio e Cardia, Nancy, “Chacinas: a violência epidêmica”. FSP,
19.6.98, p. 1-3.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 81

ascendente no período entre 1985 e 1989: 38,23 homicídios dolosos/ 100.000,


em 1985; 41,61, em 1986; 45,26 em 1987; 49,24 em 1988 e 61,98 em 1989. Para
os anos seguintes, ainda que não haja base para comparação segura56, temos
em 1990, 63,03 registros e/ou vítimas de homicídios dolosos por 100.000; em
1991, 55,65 e em 1992, 55,21. Essa tendência à queda (Soares, 1996: 172-173)
deve-se à inflexão da curva de homicídios na chamada Baixada Fluminense57:
entre 1985 e 1989, 63,22/100.00 para 96,04; em 1991 80,26 e em 1992,74,67.
Curva semelhante pode ser constatada no interior do estado, onde os homicídios
dolosos sobem entre 1985 e 1989, passando de 30,44/100.000 para 46,80; em
1991, há 36,68 e em 1992, 38,59. Na capital, há uma reversão na tendência entre
1985 e 1989 de crescimento acelerado dos homicídios dolosos : em 1985,
33,35/100.00 e em 1989, 59,16. Em 1991, 60,73 e em 1992, 60,75.

A violência no Rio de Janeiro, da mesma forma como mostramos em


relação a São Paulo, quando desagregados os dados manifesta-se de forma
diferenciada. A cidade do Rio de Janeiro, como outras metrópoles, não é um
espaço homogêneo, coexistindo diversos “territórios” na sua área geográfica,
abrangendo taxas de homicídios díspares e situações sócio-econômicas muito
diferentes. De um lado a cidade afluente, de outro favelas e periferia com
precário acesso da população a bens e serviços. Os dados58 mostram a
população dos bairros da zona sul da cidade do Rio de Janeiro como a de maior
renda e escolaridade, desde Laranjeiras à Barra da Tijuca, com as exceções de
Gávea e Vidigal. Por sua vez a metade oeste do município delimita a área mais
pobre e com menor nível de educação. A zona norte apresenta níveis
relativamente baixos, mas de forma não homogênea, ali convivendo bairros de
nível de vida relativamente altos com áreas empobrecidas.

56
As autoridades passaram a exigir a indicação do número de vítimas e não apenas de registros,
que podem incluir uma ou várias vítimas. Em média foi calculado a partir das diferenças
observadas em 1991 e 1992, anos em que ambas as indicações foram oferecidas, houve cerca
de 8% de redução, quando a referência são os registros, mas várias delegacias confundiram-se
durante o ano da implantação da nova codificação misturando vítimas e registros. Ver Soares,
Luiz Eduardo et al. “Criminalidade urbana e violência: o Rio de Janeiro no contexto internacional”,
in Soares, Luiz Eduardo, et. al. Violência e Política no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Iser/
Relume Dumará, 1996, p.172-174.
57
Essa divisão do estado do Rio de Janeiro corresponde à divisão em que opera a Polícia Civil,
responsável pelos dados dessa pesquisa: município do Rio de Janeiro; baixada, composta pelos
municípios de Duque de Caxias, Nilópolis, Nova Iguaçu e São João do Meriti; interior, que
abrange todos os demais municípios inclusive Niterói e São Gonçalo, nota 4, Soares et al, op. cit.,
p.172.

58
Um índice foi construído como média aritmética de dois indicadores: percentagem de chefes de
família com uma renda igual ou maior a dois salários mínimos e percentagem de chefes de família
com primeiro grau completo. Ver MJ[ Ministério da Justiça] CEDEC [Centro de Estudos de Cultura
Contemporânea] Mapa da Violência cidade do Rio de Janeiro, São Paulo, CEDEC, 1997, p. 7.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 82

O mapa das taxas de homicídio indica que os menores níveis de violência


letal acontecem na zona sul, a mais afluente da cidade, enquanto o maior risco
de se morrer assassinado manifesta-se na zona norte, a mais empobrecida da
cidade, juntamente com a zona oeste. Os homicídios dolosos e as lesões dolosas
são ocorrências mais freqüentes nas delegacias do Norte e Oeste da cidade. O
risco de sofrer violência no seu grau extremo, o homicídio, é até sete vezes mais
alto para os moradores de certas áreas do que para outras; o risco de morrer
assassinado para a população de 15 a 34 anos se distribui desigualmente na
cidade do Rio, entre bairros e/ou regiões administrativas. Os menores níveis de
violência letal acontecem na zona sul, a região mais afluente da cidade, enquanto
o maior risco de se morrer assassinado se manifesta na zona norte, a mais
empobrecida junto com a zona oeste59.

3. Algumas vítimas preferenciais

Os homens jovens
Os jovens em toda a América Latina tem sido o alvo preferencial da
criminalidade violenta nas maiores cidades da América Latina. In São Paulo, an
average of 102 youths between 15 and 24 years of age are murdered for every
100.000 inhabitants in that same age60.

In some poor neighborhoods in São Paulo, the figures for this age group
qual grupo also reach epidemic proportions of up to 222 homicides per 100.000 -
more than five times de national average. The same happes with the homicide
rates for youths between 20-24 years (precisely that group with the highest rates
of homicides in the city of São Paulo: if we compare the violent deaths among that
age group in Santo Amaro District (with the highest rate, 175,40 homicides per
100.000) with Leste-Penha District (with lowest rate, 48,7 per 100.000) those
youth who live in Santo-Amaro have a risk probability of being killed 3.6 times
greates than those that live in Leste-Penha61.

59
É preciso ter em conta que os dados da polícia aparecem registrados espacialmente segundo o
lugar onde aconteceu a violência e não segundo a residência das vítimas: logo esses dados tem
um valor meramente ilustrativo ver M.J./CEDEC. Mapa de Risco da Violência. Cidade do Rio de
Janeiro. São Paulo, CEDEC, 1997, p. 7-11.
60
Yunes, J & Zubarew,T. “Mortality from Homicides in Adolescents and Young People: A
challenge for the region of the Americas”, paper, Seminário São Paulo Sem Medo, May
1997,p:14-15.
61
Idem.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 83

Young people, 20 to 24 years, represents the group with the highest rates
(197 per 100,000 in 1994), increasing mortality from external causes by 47%
during that period. Females, 15 to 24 years of age having maintained a stable
rate, approximately 24 per 100,000. The increase in mortality from external
causes in Brazil among adolescents and young people is primarily a resulta of an
increase in deaths due to traffic accidents and homicides, and secondarily from an
increase in suicides in the total population. The increase in the homicide rate is
especially noteworthy in the 15 to 19 year age group62.

Esta tendência já podia ser observada a partir de 1960, quando as causas


externas de mortes de jovens estão em primeiro lugar, com coeficientes elevados
e crescentes. No período de 1930 a 1991 elevou-se de 40,0% para 185,1 por
cem mil habitantes no RJ e de 58.2 para 170.7 /100.000, mostrando aumentos
respectivos de 362,8% e 193,3%. Esses aumentos foram maiores no sexo
masculino, onde os coeficientes são ainda mais elevados.

Os tipos de causas externas mais freqüentes foram os acidentes de


trânsito, que mostraram seus maiores coeficientes em 1970 no RJ e em 1991 e
os homicídios que apresentam seus maiores coeficientes em 1991, para o Rio de
Janeiro e São Paulo. Os coeficientes por violência apresentaram ampla variação
entre os sexos masculino e feminino, chegando a mostrar, no caso dos
homicídios, uma relação de 22:1 e 16:1, respectivamente no Rio de Janeiro e
São Paulo63.
Há um aumento significativo de homicídios considerados todos os grupos
de idade e sexo. Entre 1980 e 1984, as taxas de homicídio entre os
adolescentes, que examinaremos mais adiante, de 10 a 14 anos, dobraram. As
taxas de homicídio entre adolescentes masculinos, entre 15 e 19 anos,
aumentaram 174%, atingindo um nível de 52,9/ 100.000 em 1994. Para as
mulheres entre 15 a 19 anos a taxa aumentou 42%, com 5,4/100.000. As taxas
mais altas de homicídio foram encontradas entre os homens de 20 a 24 anos,
com 93,3/ 100.000 em 1994 (um aumento de 114% desde 1980). A disparidade
entre os sexos é bastante expressiva nesse grupo de idade, com uma ratio
masculina/ feminina de 16:1 em 1994 64.

O alto ritmo de urbanização do país, o elevado processo de migração


interna de jovens (no período 1980-1985 a população urbana de jovens crescia a

62
Yunes, J & Zubarew,T. “Mortality from Homicides in Adolescents and Young People: A challenge
for the region of the Americas”, paper, Seminário São Paulo Sem Medo, May 1997,p:14-15.
63
idem.p.325.
64
ibidem.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 84

taxas de 20,5 por mil habitantes enquanto a população rural de jovens crescia a
taxas de 5,5 por mil habitantes, contribuindo para formar cinturões de miséria e
marginalidade na periferia das grandes cidades, somadas à baixa qualidade de
vida, aquisição de doenças e produção de mortes).

Segundo estimativas da Fundação SEADE, São Paulo, no ano de 1995


havia cerca de 1 milhão e oitocentos mil adolescentes (10-19 anos) no município
de São Paulo, representando 18,6% do total da população. Houve no ano de
1995 uma grande concentração de mortes por causas externas (violência e
acidentes) nesse grupo de idade, que representaram 2,8% do total de mortes no
município, compreendendo 1854 óbitos, sendo 78,2% do sexo masculino e
21,8% do sexo feminino.

Analisando-se o perfil das causas de morte naquela faixa, as causas


externas responderam por 72% dos óbitos (1331). Os homicídios ocuparam a
primeira entre todas as causas: foram assassinados 833 adolescentes ou 45%
desse óbitos65. O número de agressões fatais entre adolescentes do sexo
masculino foi crescente com a idade. Nas faixas de 10 a 13 anos, de 14 a 17
anos e de 18 a 19 anos, ocorreram respectivamente, 20, 334 e 424 homicídios:
mais de 50% dos adolescentes assassinados tinham entre 14 e 19 anos. Numa
comparação entre os riscos de morte de adolescentes do sexo masculino, a faixa
etária de 10 a 14 anos, o coeficiente de mortalidade por homicídio foi de 9,6 por
100.000 e na faixa de 15 a 19, o coeficiente foi de 166,5%.Esse coeficiente foi
maior do que aquele para o total da população masculina do município, que ficou
em 95,4 por 100.000.

O local de residência do adolescente revela outros diferenciais nos riscos


de morrer assassinado. Em ordem decrescente, os distritos administrativos que
apresentaram em 1995 maiores coeficientes de mortalidade por homicídio
(sempre por 100.000 adolescentes): Jardim Ângela (108), Cachoeirinha (88),
Capão Redondo, Grajaú e Jaguaré (84), Jardim São Luiz (70), Vila Curuca e
Sacomã (66), Jardim Helena (62), Brasilândia (62) e Santo Amaro(60),
justamente entre aqueles com as maiores carências sócio-econômicas. No
mesmo ano, não houve assassinatos de adolescentes em distritos com melhor

65
Outras causas foram: acidentes de trânsito de veículo a motor, 246 ou 13,4%; neoplasias,
6,5%; doenças do aparelho respiratório, 5,6%; seguidos de suicídios (38), Aids (24), acidentes de
trabalho (11) e complicações de gravidez, parto e puerpério (11), ver “Adolescentes: A violência
em questão”, PRO-AIM [Programa de Aprimoramento das Informações de Mortalidade do
o
Município de São Paulo], n.22, 1996 [dados referentes ao 4 . trimestre/95].
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 85

situação sócio-econômica, como Consolação, Liberdade, Santa Cecília e Vila


Leopoldina.66

As mulheres
Os homicídios de mulheres jovens entre 15 e 29 anos têm crescido do
município de São Paulo entre 1993 (121) e 1997 (188), ano em que foram a
segunda causa de morte, vindo logo depois das doenças em geral (441), sendo a
primeira entre as mortes por causas externas67.

A maioria dos homicídios contra mulheres noticiados em parte da imprensa


do país (15 estados) nos anos de 1995 e 1996, foram cometidos por maridos,
companheiros, amantes, namorados, noivos ou homens que já tiveram alguma
relação amorosa ou sexual com as vítimas. A casa é o cenário mais freqüente da
morte, que acontece sobretudo entre os 22 e 35 anos de idade, faixa etária em
que se concentra 35% das ocorrências registradas. Considerado o conjunto de
homens e mulheres no período pesquisado, o levantamento revela que a
violência interpessoal responde por 46% das circunstâncias em que o homicídio
ocorreu. Desse número está excluída a ação individual de criminoso (13,5%).

A violência institucionalizada que engloba a ação policial, a ação dos


grupos de extermínio, reação a crimes, ação de quadrilhas, conflito de terras,
linchamento, motivação política e crime de mando resulta em 27,2% dos
assassinatos68. No total de homicídios levantados nesses dois anos (21 mil) as
mulheres aparecem como vítimas em 10,3% dos caso; elas correspondem a
somente 2,9% dos acusados.

Os homicídios, entre todas as violências e nos últimos anos, foram os que


apresentaram as maiores taxas de mortalidade, sempre ascendentes nas duas
cidades. As taxas de mortalidade por violências em geral, para o sexo masculino,
no Rio de Janeiro, foram maiores que em São Paulo, no período de 1980 a 1991,
o que fez aproximar as duas taxas. Os homicídios deixam patentes aspectos
bastante negativos das mudanças de perfil, para o sexo masculino, embora os
óbitos por violências não sejam exclusividade deste sexo69.

66
ver nota 18.
67
Dados PRO-AIM (Programa de informações sobre mortalidade) in reportagem de Vieira,
Adriana e Michelotti, “Droga de amor””, Revista da Folha, 28.6.1998, p.8.
68
Bernardes, Betina. “Crime contra mulheres é cometido por parceiro”. FSP, 15.3.1998, p. 3-9
Ver também Oliveira, Dijaci David ; Geraldes, Elen Cristina; Lima, Ricardo Barbosa, orgs.,
Primavera já partiu. Retrato dos homicídios femininos no Brasil. Petrópolis, Editora Vozes, 1998.
69
idem.p. 329.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 86

4. A “rede de causas” em contexto


Ainda que tradicionalmente a análise da criminalidade tenha
historicamente se concentrado na personalidade do criminoso, o contexto do
crime fornece uma alternativa promissora para a identificação da rede de causas
que podem contribuir para a erupção da violência e do crime. A perspectiva do
contexto, ocupando um lugar central para entender o problema do crime, permite
a identificação de um foco mais previsível e estável para a prevenção do crime
que simplesmente o conhecimento da personalidade do criminoso.

Nessa abordagem devemos perguntar-nos porque o crime ocorre mais


num determinado lugar, situação ou contexto organizacional. Dessa forma
poderemos conhecer melhor as razões porque alguns contextos de crime incluem
uma alta taxa de atividade criminal e outros somente pouco incidentes, ou porque
em outros crimes mais sérios. Temos de entender os fatores que influenciam a
“freqüência” ou a intensidade de crimes e seu potencial de violência70. Nós
julgamos que essa perspectiva pode ser utilizada para compreendermos a
epidemia de violência através de homicídios em muitas cidades no Brasil e em
particular no município de São Paulo.

Violência e Carência Social


Quando os números referentes a homicídios são desagregados segundo
sua localização espacial constataremos que há uma coincidência entre carência
sócio-econômica e risco de vitimização. Segundo o Mapa da Violência, Cidade de
São Paulo71 há uma associação entre os distritos com as menores “notas” sócio-
econômicas72 e maiores taxas de homicídios e vice-versa maiores notas/
menores taxas: haveria uma associação importante entre condições sócio-
econômicas e risco de violência, aqui representada pela taxa de homicídios. Se

70
Inspiramo-nos aqui em Weisburd, David. “Reorienting Crime Prevention Research and Policy:
From the Causes of Criminality to the Context of Crime”. National Instituto of Justice, Research
Report , 1996, p. 7-8.
71
Mapa da Violência etc. As taxas de homicídio (/ 100.000) foram produzidas com dados de
mortalidade (1995) fornecidos pelo Programa de Aperfeiçoamento das Informações de
Mortalidade (PRO-AIM) da Prefeitura Municipal de São Paulo.
72
Para compor as notas sócio-econômicas dos distritos foram utilizados os indicadores do
CENSO IBGE 1991, como percentuais de chefes de família sem rendimento, com renda acima de
vinte SM, com 1 a 3 anos de estudo; número de pessoas por domicílio, por banheiros, acesso
precário à rede de água, de esgoto, à coleta de lixo, e indicadores do Banco de Dados do Mapa
de Exclusão Social da Cidade de São Paulo, como taxa de emprego. Foram criados ainda dois
outros indicadores: potencial de renda e potencial educacional que mediram a discrepância intra
distrital entre os dois extremos de renda e educação. Ver Mapa da Violência, Cidade de São
Paulo, p.4.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 87

compararmos, por exemplo o distrito de Jardim Ângela, com uma “nota”


extremamente baixa (2,2) e a mais alta taxa de homicídios, 111,52/100.000 com
o Jardim Paulista, com nota alta (8,44) e baixa taxa de homicídios, 13,04/100.000
poderemos concluir que um morador do Jardim Ângela tem 9 vezes mais risco de
morrer assassinado do que um morador de Jardim Paulista.

Fica claro que a relação entre o número de assassinatos e a população é


um indicador claro da qualidade de vida numa determinada região confirmando o
que Amartya Sen73 já havia observado - a violência é um elemento da privação
social. Como vimos há uma correlação irrefutável entre os lugares onde os povos
vivem e a violência, a morte violenta. Aqueles bairros na cidade de São Paulo
com os piores indicadores sociais são precisamente aqueles onde ocorreram às
taxas mais altas de homicídios. Os bairros afluentes onde as elites e as classes
médias vivem apresentam baixas taxas de homicídio (sempre por 100.000
habitantes): por exemplo Perdizes, 3, Pinheiros, 9, Moema 10; nas áreas mais
pobres e com os indicadores sociais mais baixos, essas taxas atingem níveis
epidêmicos: Jardim Ângela, 111, Grajaú, 101, Parelheiros, 9674. Tiroteios,
facadas e acidentes de trânsito matam mais na periferia pobre de São Paulo que
todos os tipos de câncer. Quanto mais se for das regiões centrais da cidade para
a periferia onde há maiores concentrações de pobres, grande parte deles vivendo
em favelas, maiores serão as taxas de homicídios.

Crescimento urbano, periferização e criminalidade


A cidade de São Paulo, a maior capital do Brasil, tem uma população de
9.839.436. A população residente na área urbana representa 78,36%, sendo
30,11% nas regiões metropolitanas75. Em 1990 51% já viviam em cidades com
mais de um milhão de habitantes. Essa acentuada tendência à urbanização fica
evidente se levarmos em conta que entre 1990 e 1991, a população urbana teve
um acréscimo de 30,5 milhões de habitantes, enquanto o contingente rural sofreu
redução de 2,7 milhões de pessoas76.

73
Sem, Amartya. “The Economics of Life and Death”, Scientific American, May 1993, p. 46.
74
CEDEC/ Ministério da Justiça, Brasil, Mapa de Risco da Violência: Cidade de São Paulo”. São
Paulo, CEDEC, 1996, 12 p.
75
Anuário Estatístico do Brasil / Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística -IBGE,
vol.55. Rio de Janeiro, IBGE, pp.2-12, 2-13.
76
A taxa de urbanização mais alta, 88%, é da região Sudeste, a mais populosa do país,
abrigando 62,7 milhões de brasileiros. Seguem-se a região Nordeste, 60,65% e 42,4 milhões de
pessoas; a região sul com 74,1 % urbanos e 22.2 milhões e a região Centro-Oeste, com 9.4
milhões, com 81.28% em área urbana. Ver entrevista com o chefe do Departamento de população
da Fundação IBGE, Luiz Antônio Pinto de Oliveira Durão, Vera Saavedra “Aumenta a população
das periferias dos grandes centros urbanos nos anos 80”. Gazeta Mercantil, 29.12.94.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 88

O processo de urbanização experimentado pelo país nos últimos trinta


anos, somado à crise econômica dos anos 1980, provocou a “periferização” das
regiões metropolitanas. Enquanto as capitais, especialmente as mais populosas,
como Rio e São Paulo, apresentaram menores taxas de crescimento demográfico
por ano, suas periferias incharam, principalmente com pessoas de baixa renda
vindas do interior e do campo ou mesmo “expulsas” da capital por redução de
sua renda77. Depois do começo dos anos 1980, com efeito, a tendência
metropolitana para a segregação pode ser ilustrada pela migração da população
desde o centro para a periferia das grandes aglomerações. Entre 1970 e 1980
este fluxo corresponde a mais de 50% das migrações internas nas regiões
metropolitanas do país. Uma outra conseqüência do aumento das periferias das
regiões metropolitanas no período foi o crescimento da população favelada. A
população favelada no município do Rio de Janeiro cresceu 34% entre 1980 e
1981.

Mas para o período 1980-1991, os dados indicam que a periferização


continua, mas com uma taxa de crescimento inferior. Na região metropolitana de
São Paulo, o centro conhece um saldo migratório negativo de 900.000 enquanto
os distritos periféricos apresentam um saldo migratório positivo de 450.000
pessoas78 e quase o mesmo montante mudou-se para municípios vizinhos79. No
caso do Rio de Janeiro, ocorreu uma fuga para o exterior da região
metropolitana, com um saldo negativo de 580.000 pessoas. Mais de 90.000
pessoas se deslocaram no interior da região metropolitana, muito provavelmente
do centro para a periferia80.

A periferia recebe portanto, essencialmente, uma população expulsa da


própria metrópole. Mas essa constatação deve ser feita com alguma nuance
porque esse movimento tende no período mais recente a se enfraquecer, em

77
A participação da população total da periferia das regiões metropolitanas cresceu
substancialmente na maioria delas: em 1980, o total das 9 regiões metropolitanas somava 11,9
milhões, que subiriam para 16,6 milhões em 1991. Na região metropolitana de São Paulo, que
concentra 15,4 milhões de habitantes, 34,89% estão na periferia. Em toda a região Sudeste, a
mais populosa do país, a participação da população periférica nas regiões metropolitanas (11.5
milhões em vez de 8,6 milhões) é de 69,48% e de 65,67% nas capitais. Na região sul, a periferia
das regiões metropolitanas concentra 14,73 de seus habitantes ou 2.4 milhões, em vez de 1.5
milhão em 1980, e 9.87% nas capitais tenderá a se agravar caso os habitantes da zona rural
continuem a emigrar para as cidades. Ainda que esses fluxos tenham diminuído na direção do Rio
e de São Paulo, continuaram no começo dos anos 1990 a deslocar-se do interior do Nordeste
para as próprias capitais nordestinas, razão do crescimento de sua taxa demográfica idem n.4.
78
Pattarra e Baenninger, 1992, cit. Ribeiro, Luiz Cesar de Queiroz e Lago, Luciana Corrêa.
“Brésil: évolution métropolitaine et nouveaux modèles d’inégalité sociale.Problèmes d’Amérique
Latine, N. 14, juillet-septembre 1994, p. 270-274.
79
Toledo, José Roberto de, ”Assassinato aumenta em novos bairros”, FSP, 7.9.97,p.3-4
80
(Ribeiro e Lago, 1992) cit. Queiroz,op.cit.,p. 271.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 89

conseqüência da diminuição do fluxo migratório para as regiões metropolitanas e


porque a corrente migratória não se dirige mais para a periferia mas para o
exterior da área metropolitana81.

Deve ser também levado em conta que ocorre uma diminuição da


supremacia das metrópoles no tecido urbano, o que não significa seu
despovoamento: há uma expansão das cidades médias situadas em torno das
áreas metropolitanas, especialmente nas regiões de São Paulo, Rio de Janeiro e
Belo Horizonte. Estamos diante de uma “reestruturação” do espaço urbano82
onde as cidades médias funcionam como novos pólos de atração. Essa
desconcentração econômica e demográfica em direção às cidades médias
provoca uma expansão da pobreza para essas regiões onde se reproduz o
modelo de segregação espacial das metrópoles. O aumento das favelas em
vários desses centros urbanos confirma essa tendência83.

Densidade populacional e ausência de infra-estrutura: a sociedade


incivil
There is a clear relationship between uncivil behavior and uncivil public
spaces. A uncivil public space is a collective space without quality, which,
because its negative caracteristics, doesn’t favor conviviality. It doesn’t offer any
possibility of a normal development for social relations and citizenship, and what
is much more serious, it creates serious obstacles to social attachments and
provokes a predisposition to uncivil behavior. The responsables for this uncivility
are the public policies, particularly those urban policies. This uncivil public space
is marked by several needs which are not met: absence or insufficience of public
services (schools, cultural and sports equipment, transport, water, street
illumination) and commercial infrastruture; isolation or very limited access to these
neighborhoods, transforming them in enclaves more or less isolates; absence of
participation of the citizens in the management of these spaces.

Antes mais nada devemos levar em conta que esse fenômeno não é
específico a São Paulo ou a outras cidades brasileiras, mas universal: quanto
mais aumenta a densidade populacional, especialmente quando há situação
aguda de carência e pobreza generalizada a violência tende a aumentar. A
população metropolitana foi especialmente atingida pela crise dos anos 1980, na
medida em que os ramos de produção mais dinâmicos e sensíveis às

81
idem, p.271.
82
ibdem p.271.
83
ibidem.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 90

dificuldades econômicas se encontravam nas regiões metropolitanas84. Os


migrantes inter-municipais são empurrados para a periferia pelo custo de vida
mais alto no centro da cidade.

Esses espaços para onde se dirigem essas migrações são particularmente


afetados pelo desemprego, insegurança, fracasso escolar, relações sociais
conflitivas. Nesses lugares a violência física é uma realidade concreta que
perturba todos os aspectos da existência quotidiana. A freqüência dos
homicídios, atingindo níveis epidêmicos, roubos, furtos, agressão é tal que
causaram o desaparecimento virtual do espaço público85.

Certas comunidades repentinamente tiveram de enfrentar problemas


novos, inesperados e para os quais provavelmente não dispunham de saber
acumulado para enfrentá-los. Não há privacidade, vida privada: tudo é feito em
público, desde por a roupa para secar até as brincadeiras das crianças. Essa
falta de definição de um espaço público e de uma vida privada aumenta o número
de conflitos, pela eterna disputa de bens escassos por famílias extremamente
carentes. Nessas localidades habitadas homogeneamente pelos excluídos,
segregados espacialmente, não há referências próximas visíveis de grupos
sociais com melhores condições de vida, não há perspectiva de mobilidade
social86.
A criminalidade violenta, que põe em risco ou ameaça permanentemente a
integridade física das pessoas, irrompeu ou veio instalar-se, especialmente
depois dos anos 80, no interior das comunidades, em parte desorganizando (ou
impedindo) formas tradicionais de sociabilidade, promovendo rupturas bruscas e
brutais na rede de relações sociais, desarmando arranjos consolidados e
sobretudo bloqueando resoluções de conflitos nas relações interpessoais.

Essa mudança de grandes contingentes para áreas distantes e sem infra-


estrutura urbana ou para as periferias das cidades médias (as “pré-cidades” de
que fala Ignacy Sachs) provavelmente desencadearam processos penosos de
integração e acomodação, em população de renda extremamente baixa,
contribuindo para um aumento de conflitos interpessoais e da violência. A
infraestrutura existente que já era precária para uma população menor, piora
ainda mais quando aumenta a densidade populacional.

84
Queiroz op. cit. P. 273.
85
Inspiro-me aqui de Wacquant, Loic J.D “Banlieues françaises et ghetto noir américain: de
l’amalgame à la comparaison”. French Politics and Society, Harvard, n.4, vol. 10. 1992,pp.81 -
97(extraits) in Damon, Julien[org.] La politique de la ville. Problèmes Politiques et sociaux, n.784,
9 mai 1997, p.12-16.
86
ibidem, ver análise proposta pela professora Nancy Cardia nessa matéria.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 91

Alguns dos distritos que mais receberam população entre 1991 e 1996
tiveram saltos em número de homicídios entre seus moradores. Por exemplo
Anhanguera foi o distrito paulista que mais cresceu nessa década: sua população
dobrou num período de apenas cinco anos e o número de homicídios cresceu de
forma ainda mais acentuada. Segundo o Pro-Aim em 1994 não se registraram
homicídios em Anhanguera: em 1995 houve 11,85/100.000 e em 1996 a taxa
dobrou para 21,03. Na zona noroeste em Brasilândia houve um crescimento
populacional oito vezes maior do que a média da cidade, 3,1 ao ano e o
coeficiente de homicídios do distrito saltou de 50,04 homicídios para 57,31/100
mil no ano seguinte e 78,19/100 mil em 1996. Os distritos que apresentam em
São Paulo o maior número de homicídios são aqueles com maior crescimento
populacional 87.

Fenômeno semelhante ocorreu nas cidades em torno da capital para onde,


como vimos se dirigiu o fluxo migratório, tendo aumentado sua população, que
experimentaram igualmente o crescimento da violência. Entre 1981 e 1993
aumentaram dramaticamente os números de homicídios. Em São Bernardo do
Campo cresceram 1010% os homicídios dolosos; no Embu, 713%; em Cotia, 60;
em Mauá, 346%; Jaguaré, 250%; Campo Limpo, 248%; Carapicuíba, 234%. No
Jardim Miriam, a taxa de homicídios por 100.000 h. foi de 61,65 (1995) e entre
jovens de 14 a 24 anos foi de 137,75, números bastante superiores às médias
(também altas) para o município de São Paulo, que foram respectivamente de
49,8 e 102,58 naquele mesmo ano. Em Carapicuíba, a taxa de homicídio, 55,64/
100.000, neste mesmo ano, é sensivelmente superior à média do município da
Capital88.
Em todas essas regiões com altas de taxa de homicídios predominam
trabalhadores de baixa renda e em quase todos os bairros é aguda e flagrante a
carência de infra-estrutura urbana, de serviços públicos de promoção social e de
segurança pública. Praticamente não há calçamento, arruamento, iluminação.
São precários os serviços de transportes urbanos, particularmente suas ligações
com os municípios vizinhos, dotados de centros comerciais e administrativos de
maior importância. Em Carapicuíba, em 1984, município da Região Metropolitana
da Grande São Paulo, havia apenas um leito hospitalar para cada 2292
habitantes média muito inferior ao que se pode considerar como minimamente
satisfatório. No mesmo ano, somente 6,83% dos alunos de primeiro grau

87
Idem.
88
Pinheiro, P.S; Adorno; S. e Cardia, N. Relatório “Continuidade Autoritária e Construção da
Democracia”[ Projeto Integrado de Pesquisa, FAPESP], no.3, vol. 1995/1997, p.189-193,
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 92

ingressavam no segundo grau. A proporção de pessoas alfabetizadas atingiu


naquele ano, 66,04%89.

Nesse contexto de extrema precariedade, de deterioração das condições


sociais de existência coletiva, de carência de serviços de promoção e proteção,
da inexistência de políticas sociais compensatórias é cenário privilegiado para a
explosão de conflitos e litígios diversos. Por isso, dadas as condições da
existência, a menores questões da vida quotidiana -lixo depositado numa porta
alheia, bola que cai no terreno do vizinho, um muro levantado sem autorização
prévia, jogos de azar no bar, opiniões sobre futebol -além dos aborrecimentos
banais nas relações interpessoais entre parentes, vizinhos, conhecidos (disputas
conjugais, crises vividas como quebra de lealdade e reciprocidade num contexto
de grande competitividade e carência) -muitas vezes derivam para um confronto
violento. Ocasião na qual se medem as forças, uns e outros tendem a fazer
prevalecer suas opiniões e vontades, sob a influência e peso de uma perspectiva
machista da luta que supõe a vitória a qualquer custo, mesmo que seja preciso
chegar ao emprego da força e da violência. Felizmente, na maior parte das vezes
essas situações conflitivas mantém-se nos limites do confronto verbal, das
ameaças ou na luta corporal, mas por vezes o confronto torna-se mais intenso e
podem ocorrer desfechos fatais90.
Os grupos de adolescentes nas periferias das grandes metrópoles têm a
particularidade de se organizarem em contextos urbanos cada vez mais
“guetificados”, em concentrações extremas de miséria, o que faz surgir um
acentuado sentimento de exclusão. Ao contrário do que se poderia esperar, a
consciência de partilhar a mesma sorte não forja entre os jovens nem laços
duráveis nem uma “sub-cultura”. Ainda que alguns encontrem formas de integrar-
se socialmente, outros deslizam para o álcool e as drogas ou numa delinqüência
desajeitada e arriscada, outros aderem a redes de economia paralela mais ou
menos organizada.

Os negros (pretos e pardos) são visivelmente penalizados no plano da


educação: enfrentam maiores dificuldades no acesso e permanência na escola e
freqüentam estabelecimentos de ensino de pior qualidade, resultando em maior
índice de reprovação e atraso escolar que o observado entre os brancos. Os
negros apresentam piores indicadores educacionais: a taxa de analfabetismo é
pior entre pretos e pardos do que entre brancos e amarelos; a percentagem dos
negros com nove anos ou mais de escolaridade é significativamente menor.

89
idem p.183-184.
90
Idem.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 93

No caso do Rio de Janeiro91 pesquisa em duas escolas públicas -uma na


Zona Norte, outra na Zona Sul -mostrou que uma das escolas estava tão tomada
por grupos ligados direta ou indiretamente ao tráfico, que a escola não conseguia
funcionar. Não havia nessas escolas muitos trabalhadores no sentido tradicional :
muitos alunos estavam no tráfico. A presença do narcotráfico nas escolas acirra a
violência.

Desemprego,(des) educação e criminalização


O índice de presos por 100.00 habitantes aumentou em 1995 de 95,47
para 108,36 em 1997. Segundo o Censo Penitenciário do Ministério da Justiça,
concluído em março de 1998, há um preso para cada 923 brasileiros. Já em SP a
taxa de presos é o dobro da registrada no país: 198,66 havendo um preso para
cada 503 moradores. No total há 170.207 detentos (há dois anos esse número
era 148.760). O estado com a maior população carcerária é São Paulo com
39,83% do total; seguem-se Rio de Janeiro com 19.080, taxa de 142,32 por
100.000; Minas Gerais com 14.653 (87,88/100mil). No extremo oposto está o
Acre, com 305 e 63,05/100.000. Em 1950 havia apenas 32 presos por 100.00
habitantes. Entre 1950 e 1997 a população do estado de São Paulo cresceu 39%
e a população carcerária 239%92.
Quanto à composição da população carcerária por sexo: 95.720 homens
(96%); mulheres 3985, 4% do total, situação extremamente semelhante ao do
censo anterior de 1995 (respectivamente, 96,3% de homens e 3,7% mulheres).

Os tipos de crime pelo qual os encarcerados foram condenados permite


ver um perfil aproximado da criminalidade no Brasil.

Em relação à cor (dados extremamente precários pois 41,7% não há


declararam) há 48% de brancos, 30% de mulatos e 17% de negros (quase três
vezes o número do mesmo grupo no censo) e 5% de outras raças93.
Ainda que as tentativas de estabelecer correlação entre pobreza e
violência sejam temerárias, não se deve afastar a possibilidade de se examinar
as conseqüências do desemprego, especialmente, entre os jovens, e o aumento
da criminalidade. Essa relação não ocorre diretamente mas não há como recusar

91
Valho-me aqui da entrevista com a professora Eloísa Guimarães, “Escola depredada atrai o
tráfico”. Jornal do Brasil , 13.6.98, p.6.
92
Para ver a comparação com outros países na relação com 100.000 hab.: Rússia,690; EUA 529;
Escócia, 110; Portugal 125; França (95), Inglaterra (100), Espanha (105); Grécia, Irlanda e
Noruega (55), segundo levantamento feito pelo ILANUD, em 1997. Ver Cabral, Otávio. “ Um em
cada 503 paulistas está preso”. FSP, 20.3.98, p.3.1.
93
“Déficit nas prisões chega a 96 mil vagas”. FSP. 20.3.1998, p. 3-3.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 94

que a ausência de perspectivas para os jovens aumenta a conflitualidade e


transformar o recurso à violência e o crime como escolha racional. Consideremos
os dados. Segundo os dados oficias, o desemprego declarado na região
metropolitana de São Paulo atingiu em março de 1998 a taxa de 9% a mais alta
desde 1982; se for considerado o sub-emprego essa taxa duplica,
correspondendo a 1,5 milhão de pessoas. Por trás dessa situação está uma
mudança estrutural na economia da cidade.

Em 1996, o estado de São Paulo ainda era responsável por 53% do


produto industrial brasileiro, um percentual inalterável desde 1990. A diferença é
que a indústria está disseminada por uma área muito mais larga: em termos
econômicos a região metropolitana de São Paulo se irradia num raio de 100 km.
nos quais se incluem cidades “satélites” como Campinas e São José dos
Campos. Em contraste, a antigo cinturão industrial ao sul da cidade e o ABC
(Santo André, São Bernardo do Campo e São Caetano), cidades tornadas
prósperas pela indústria automobilística, agora tem de lutar para atrair novas
indústrias.

O índice de desemprego entre os jovens de 15 a 17 anos chega aos 50%


na Grande São Paulo, sendo mais de duas vezes o percentual de dez anos atrás.
Os desempregados jovens de até 24 anos, chegam a 800.000.O desemprego
atinge muito diretamente o jovem94.
Um terço dos presos brasileiros está na faixa dos 18 a 25 anos e a
formação desses presos corresponde àquela dos jovens brasileiros de 15 a 19
anos: 82% tem menos de oito anos de escolaridade, segundo o Censo
Penitenciário do Estado de São Paulo de 1996 e o PNAD (Pesquisa Nacional Por
Amostra por Domicílio) de 199595.
Antes de estabelecer uma equação direta desemprego mais baixa
escolaridade igual a criminalidade outros fatores devem ser analisados para
entendermos porque a violência incide especialmente num contingente de jovens
pobres: não há políticas públicas e falta lazer. A popularização das drogas, como
o crack, droga barata. “Os jovens estão encontrando dificuldade no mercado de
trabalho e facilidade no mercado da transgressão”96. Diante da perspectiva: virar
office boy ou pedreiro com salário miserável, os “empregos” oferecidos pelo crime
organizado tendem a aparecer como atraentes

94
Dados preliminares da pesquisa Dieese/Seade, maio 1998 ver Dimenstein, Gilberto; Rossetti,
Fernando. “Sem estudo e trabalho, jovem cai no crime”.FSP,3-1.
95
ver “Sonho do menino de rua é trabalhar”, FSP, 21.6.98 p.3-2.
96
idem Felícia Madeira, diretora de análise sócio econômica do SEADE.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 95

O contexto de reputação e status a defender


Não se pode querer viver quando não se existe socialmente. Poderíamos
falar de uma epidemia específica às periferias, às favelas, as comunidades
pobres das metrópoles?97

Em meios sociais como estes, a reputação de um homem depende em


boa parte de uma “ameaça acreditável de violência”: na moderna sociedade
estatal esse fato geralmente é esquecido por causa do monopólio da violência
física do Estado. Mas onde quer que esse monopólio esteja relaxado -como é
efetivamente o caso da periferia de São Paulo ou das favelas do Rio de Janeiro
na quais os operadores da violência estatal, as polícias, não conseguem nem
dominar o território do próprio Estado - a utilidade (ou até mesmo a necessidade)
daquela ameaça torna-se evidente. Num tal contexto “a seemingly minor affront is
not merely a ‘stimulus to action’, isolated in time and space. It must understood
within a larger social context of reputations, face, relative social status, and
enduring relationships. Men are known by their fellows as [...] people who are full
of hot air.” Um dos objetivos básicos da violência é exibir-se, mostrar - convencer
seus pares que você vai defender seu status. Quando os homens matam os
homens que eles conhecem geralmente há uma audiência, mesmo que essas
tenham o risco de se transformarem em testemunhas. A violência é em grande
parte performance98.

A localização espacial das altas taxas de homicídio nas periferias mais


pobres não deve conduzir a uma explicação da existência de uma “subcultura da
violência”, para explicar as diferenças regionais ou étnicas (visto que elas
atingem comunidades com grande número de negros): no interior de certos
grupos de referência, a violência é freqüente e a exibição da capacidade de
alguém de ser violento é admirada ou mesmo obrigatória; outros grupos na
sociedade condenam a violência e seus membros raramente recorrem a ela 99.
Essa teoria, atribuindo violência de certos grupos étnicos a uma subcultura
sutilmente querem fazer crer que “ the social problems of disavadvantaged
minorities are intrinsically generated rather being the products of exploitation and

97
A expressão é de Defert, Daniel, “Peut-on parler dúne epidémie spécifique aux banlieues ?.
Libération, 282.1998.
98
Daly and Wilson, cit. Wright, Robert. “The Biology of Violence”, The New Yorker, March 13,
1995, p.72 -73.
99
Retomo aqui a argumentação desenvolvida por Daly,Martin and Wilson, Margo. Homicide. New
York, Aldine de Gruyter, 1988, especialmente no capítulo 12 ”On Cultural Variation”, a parte
“Subcultures of Violence”, p. 286-291.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 96

economic inopportunity, and that is mere happenstance that the poorer classes in
industrial society exhibit more face-to-face violence than the privileged, rather
than the reverse”100.

Na realidade os jovens pobres, com poucas perspectivas para o futuro têm


boas razões para escalar suas táticas de competição social e tornar-se violentos.
Aplica-se especialmente ao caso brasileiro a correlação que várias pesquisas
fazem entre a desigualdade de renda e as taxas de homicídio: “it is not simply
poverty that seems to be associated with relatively high rates of violent crime so
much as the the within-society variance in material welfare101”. Essa correlação
verificável parece ajustar-se com muita propriedade no caso do Brasil, tanto no
que diz respeito a uma das distribuições de renda mais iníquas do mundo, com
altas taxas de homicídios entre homens, como manifestação de uma competição
pela escalada social mais racional do que pode aparecer. Em vez da abordagem
da “subcultura da violência” uma teoria mais satisfatória sobre as causas das
taxas de violência, como indicam Daly e Wilson, “will have to incorporate a
specific account of the waus in which the effective variables influence the
individual actors and interpersonal interactions that are the stuff of aggregate
statistics”102.

Enfim, o comportamento violento deve ser analisado como uma resposta


compreensível a um conjunto de condições identificáveis e específicas.103 Cada
vez mais temos de nos conscientizar que as ações são representações
simbólicas dos pensamentos: para entender a violência nós precisamos
interpretar ação como linguagem simbólica -com uma “lógica simbólica”
própria104. Talvez devamos considerar duas pré-condições básicas para a prática
de um crime violento. A primeira é o sentimento de sentir vergonha [shame] por
alguma coisa, de algo, a respeito de temas tão triviais e banais que parece
vergonhoso sentir esse sentimento: nada é mais vergonhoso do que sentir-se
envergonhado. Muitas vezes os homens escondem esse sentimento sob uma
máscara defensiva de bravata, arrogância, machismo, indiferença estudada. A
segunda pré-condição para a violência “is met when these men perceive
themselves as having no nonviolent means of warding off or diminishing their

100
Idem.
101
ver Krahn,H., Hartnagel, T.F and Gartrell, J.W(1986) “ Income inequality and homicide rates:
Cross-national data and criminological theories”. Criminology, 24, 1986, 269-295 também cit. Daly
and Wilson.
102
Daly and Wilson, op.cit.,p. 288.
103
Gilligan, Reflections on a National Epidemic.New York, Vintage, 1997, p.102.
104
É a proposta de Gilligan, James., op. cit. p. 61.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 97

feelings of shame or low-esteem -such as socially rewarded economic or cultural


achievement, or high social status,position and prestige. Violence is a “last
resort”, a strategy they will use only when no other alternatives appear
possible”105. As condições de vida impostas às populações mais afetadas pela
violência impedem que essas tenham acesso a meios não violentos de solução
de conflitos e aqueles indivíduos nesses espaços com menos capacidade
emocional para inibir o comportamento violento (por exemplo, pela história
psicológica individual) ou por cálculos racionais quanto ao futuro de suas vidas
poderão recorrer a práticas criminosas

5. A violência institucional: o arbítrio da polícia


As autoridades públicas não parecem ter compreendido a extrema
gravidade dessa epidemia nem sequer a urgência de implementar medidas de
impacto imediato. As instituições de controle da violência demonstram ter
baixíssima credibilidade junto à população. Estamos diante de um círculo vicioso:
a polícia é arbitrária e ineficiente, a investigação judicial é precaríssima, as taxas
de impunidade, em especial, o crime violento, permanecem intocadas, e o
sistema penitenciário, há décadas, falido.

O envolvimento do aparelho de justiça no enfrentamento dessa


emergência é insuficiente e inadequado, em razão da ausência de uma política
de prevenção efetiva dos conflitos e por abdicar do poder de acompanhar a
apuração da responsabilidade penal dos criminosos. Não é a população que
dever ser obrigada a acreditar e confiar na atuação desses agentes, com
frustração garantida. A contrário, são os agentes que tem de conquistar, por sua
eficiência e dedicação, a confiança da população. Somente dessa forma a
população poderá vir a colaborar com a polícia na investigação das chacinas e na
identificação dos responsáveis pelos crimes106.
À falta de políticas específicas, conjugando abordagem interdisciplinar e
interinstitucional, contribui a inexistência de medidas de emergência adequadas
para dar respostas a problemas como o abuso de drogas, desajuste familiar e na
escola, gravidez não desejada, falta de trabalho e lazer, o que contribui para o
aumento da conflitualidade nas relações pessoais, aumentando a violência. É

105
idem p. 112-113 Gilligan ainda faz referência a uma terceira pré-condição: “the person lacks
the emotional capacities or the feelings that normally inhibit the violent impulses that are
stimulated by shame”. Essa pré-condição torna clara a razão pela qual quanto mais severamene
punimos os criminosos, ou crianças, mais violentos eles se tornam: “the punishment increases
their feeling of shame and simultaneously decreases their capacities for feelings of love for others,
and of guilt toward others”.
106
Idem.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 98

claro que essa violência não se restringe aos jovens, pois se alastra igualmente
por outros grupos etários: mas entre os adolescentes essa violência adquire
características peculiares pois este grupo está sujeito a transformações
biológicas e sociais que marcam sua transição para a vida adulta107.

O aumento da criminalidade urbana violenta, ao longo das décadas de


1980 e 90, provocou grave impacto nas agências de contenção e controle da
ordem pública. Esse impacto pressionou a expansão dos serviços da polícia
judiciária e de vigilância, alterando rotinas consolidadas, inclinando os agentes à
busca de expedientes alternativos e de arranjos transitórios. Essa mudança
provocou necessidade de realocação de recursos materiais e humanos cujo
resultado deve ter afetado a operacionalização das políticas de segurança e
justiça, o que não impediu que na década de 1980 a despesa com segurança e
justiça tivesse declinado.

Essa pressão sobre as agências policiais foi transmitida em cadeia para as


agências judiciárias e penitenciárias resultando no aumento de detenções e de
processos instaurados, ao mesmo tempo que se viam compelidas a rever suas
regras de funcionamento. Como não puderam fazer essa revisão, nem tinham
recursos para tanto, entraram em grave crise em seu funcionamento. Como as
diferentes agências dispõem de lógicas próprias e como cada uma procura
assegurar e defender sua autonomia, aumentam os conflitos entre si e a
fragmentação do sistema agrava-se. Um dos seus resultados mais flagrantes é o
aumento do arbítrio policial, apesar da consolidação democrática.

A polícia civil, que tem funções de polícia judiciária, com responsabilidade


pelo inquérito policial, por causa da escassez de recursos tornou-se cada vez
mais seletiva, reservando-se sua atuação para os delitos considerados mais
“graves” ou mais importantes. Expandem-se assim os mecanismos informais de
atuação policial, relegando ao segundo plano os formalismos legais e
transformando certas ocorrências criminais em espaço privilegiado de atenção.
Assim, a despeito do acentuado crescimento da criminalidade, especialmente a
de tipo violento, como homicídios, como já indicamos, a capacidade de
elucidação de casos - que pode ser medida entre outros indicadores pela taxa de
conversão das ocorrências policiais em inquéritos policiais - manteve-se estável.
Com efeito, pouco mais de 10% de todas as ocorrências registradas - isto é, a
criminalidade oficialmente detectada - transforma-se em investigação policial.

É possível que essas taxas sejam mais elevadas para os casos de


homicídio ou para outros crimes violentos, em especial aqueles que ganharam

107
ver nota 18.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 99

repercussão na mídia. Nada indica, entretanto, que toda e qualquer ocorrência de


homicídio seja seguido obrigatoriamente de um inquérito policial, e em
decorrência, suponha a realização de investigação policial. E mesmo que se
considere o número limitado de ocorrências que se converte em inquérito policial,
essa situação privilegiada não se traduz necessariamente em elucidação
definitiva do caso. O resultado mais evidente deste processo é a impunidade,
cuja magnitude desconhecemos, mas, com certeza, essa taxa é mais elevada
que em outras democracias mais consolidadas. Em conseqüência dessa espécie
de desistência consentida na apuração da responsabilidade penal e na aplicação
das leis penais aumentam os conflitos entre cidadãos comuns e autoridades
policiais. A polícia é vista com desconfiança porque parece ser incapaz de
oferecer respostas imediatas aos problemas de segurança das populações que
moram nos bairros populares, sujeitas à insegurança e à falta de proteção108.

Esse sentimento de desconfiança acentua-se ainda mais pelo poder


arbitrário, submetido a pouco controle civil, que se arroga o policiamento
ostensivo, atribuição das polícias militares em cada estado. Um indicador desse
arbítrio são as mortes praticadas pela polícia militar que representaram 23,3% em
1982 e 14,9 em 1985 dos homicídios registrados109. A maioria esmagadora
dessas mortes pela polícia ocorre nos bairros da periferia e atingem cidadãos
pobres: 85% dos homicídios perpetrados pela Polícia Militar em São Paulo entre
1977 e 1987 ocorreram na periferia de São Paulo. Entre 1983 e 1987, mais de
3900 pessoas foram mortas pela Polícia Militar, em alegados conflitos. O número
de mortes chega à média de 1,2 morte por dia no período com a máxima de 1,6
em 1985 110. No ano de 1992, as mortes da Polícia Militar atingiram o ápice com
1359 mortes. A polícia militar concebe o controle da criminalidade como uma
guerra entre autoridades e criminosos: o objetivo que a polícia se propõe é
baixar, a qualquer custo, as taxas de criminalidade, mesmo que esses conflitos,
como é comum, comprometam a vida dos civis. À medida que a violência criminal
aumenta e os padrões de comportamento delinqüente cedem lugar à organização
criminosa em moldes empresariais, a conduta policial tende a tornar-se ainda
mais agressiva.

108
Americas Watch. Violência Policial no Brasil. Execuções Sumárias e Tortura em São Paulo e
no Rio de Janeiro. São Paulo, OAB/SP-NEV/USP, 1987.
109
idem,p. 195.
110
Pinheiro, P.S et al. [ Revista da USP] p. 196.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 100

6. A violência da sociedade incivil


Ao lado da violência policial “oficial”, há uma outra que se desenvolve
correspondendo a uma espécie de “privatização” da função pública, em
conseqüência de uma decomposição profunda, através da qual toda pretensão à
manutenção da ordem pública e da segurança interna, quando os agentes da
polícia transformam-se em assassinos, em vigilantes, agindo por iniciativa própria
ou a soldo da comunidade111. O incidente mais recente em São Paulo foi o
episódio na Favela Naval, documentado em video-tape em que um bando de
policiais militares, fardados torturaram, espancaram diversas pessoas e
assassinaram uma, em março de 1997.

Em contrapeso às dificuldades das instituições policiais e judiciais de


acompanharem o crescimento da criminalidade, a sociedade civil põe em prática
um arremedo de “justiça” ilegal, com justiceiros, grupos de extermínio e
linchamentos. Entre 1980 e 1993 pelo menos 402 pessoas foram linchadas em
diversos estados brasileiros112. A prática de pessoas reunirem-se com o objetivo
de eliminar alguns membros da comunidade parece ter-se generalizado para
grupos externos da forças policiais. A ação de grupos de civis, similarmente ao
que aconteceu com grupos de policiais, move-se da pretensão de fazer a limpeza
[cleaning up] dos criminosos para um envolvimento maior com outros aspectos
da criminalidade -assim deixando de ser um grupo de vigilantes para cometerem
todo tipo de crimes113. Em São Paulo, durante o período de 1980-1996 as ações
dos grupos de extermínio resultaram em 2000 casos de homicídio. Cerca de 604
casos entre 1990 e 1996 resultaram em 1595 vítimas fatais, esses casos
envolvendo em média duas vítimas. Através da década, ainda que o padrão
dessas práticas se mantém estável, houve obviamente mudanças na freqüência
dos casos, na composição dos grupos, nas áreas das cidades onde esses grupos
atuam, o perfil da ação e a resposta do estado a essas atividades: qualquer
iniciativa de prevenção obrigatoriamente tem de levar em conta além das
características gerais do fenômeno, essas alterações.

Muitas dessas mortes podem ser caracterizadas como chacinas, como são
chamadas as execuções de grupos de pessoas em casas, em bares ou em

111
Ver Peralva, Angelina. ”Démocratie et violence à Rio de Janeiro”. “Le Brésil entre réformes et
blocages” Problèmes de l’Amérique Latine, 23, octo.-déc. 1996, p. 82.
112
Hanashiro, Olaya, Sinhoretto, Jacqueline et Singer, Helena ”Linchamentos: a democracia
mudou alguma coisa ?”Direitos Humanos no Brasil, 2, NEV-USP, 1995.
113
Ver Adorno, Sérgio and Cardia, Nancy. “The Judicial System and Human Rights Violations”
(São Paulo, Brazil, 1980 -1990). Paper presented at the 14th World Congress of Sociology.
Montréal (Québec), University of Montréal, Canada. 26 July/02 August 1998.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 101

lugares ermos. Explicar as razões dessas chacinas tem sido um grande desafio
para a pesquisa e para as políticas públicas de segurança. Pouco se sabe a
respeito e há muitas hipóteses que não podem ser descartadas. É bem provável
que esse crescimento esteja relacionado, direta ou indiretamente, com o novo
perfil do crime organizado, em especial no entorno do narcotráfico, que vem
dominando as regiões da periferia da cidade e se expandindo para os municípios
da região metropolitana, implicando cada vez mais o envolvimento de jovens e
até mesmo de crianças. É claro que esse novo perfil introduziu um novo potencial
de conflitos interpessoais pelo controle do comércio, cuja estrutura de
funcionamento é praticamente desconhecida. O quanto esse perfil dos conflitos
pesa nos homicídios em geral e nas chacinas em particular é ainda objeto de
pesquisas em curso. A ausência de informações conclusivas para entender-se a
perversa dinâmica da escalada das taxas de homicídios, e de outros fenômenos
como as chacinas, não exclui a necessidade premente de uma reflexão exaustiva
sobre o papel das instituições do Estado – polícias, Ministério Público, Judiciário
e sistema prisional – na prevenção da mortalidade violenta, que no estado de
São Paulo, como já apontamos, é verdadeira epidemia. 114

7. Violência e mídia
Ainda que toda relação direta de causalidade entre mídia e violência deva
ser descartada, a mediatização da violência urbana, especialmente na mídia
eletrônica, tem alguma responsabilidade. A informação por melhor que ela seja,
tem pelo menos três efeitos perversos. Por um lado, ela contribui a manter,
quando não gera, acirra na opinião pública um sentimento de insegurança sem
relação com a realidade. Por outro lado, o foco da mídia se concentra sobre a
delinqüência na periferia e nos bairros pobres, realçando somente as disfunções
e uma imagem social negativa, freqüentemente racista. Finalmente, muitas vezes
os jovens delinqüentes instrumentalizam a mídia e dessa cobertura tiram alguns
benefícios psicológicos ou sociais115.

A televisão ocupa um lugar central nas práticas culturais contemporâneas


no Brasil. No estado de São Paulo, em 1990 91,5 dos lares tinham aparelhos de

114
Pinheiro, P.S., Adorno, Sérgio e Cardia, Nancy. “Chacinas: a violência epidêmica”. FSP,
19.6.98, p. 1-3.
O Banco de Dados do NEV/USP tem coletados 463 casos de grupos de extermínio durante os
anos 1980 envolvendo adultos, mais 68 casos nos quais as vítimas são crianças e adolescentes e
1316 casos no Brasil para o período 1990-1996 que resultaram em 4856 vítimas, entre as quais
92% fatais. A maioria desses casos ocorreram em São Paulo (788) seguidos pelo Rio de Janeiro
(774).
115
Faget, Jacques. “Violence urbaine: faire la part du feu”. Libération [Débats] 15.1.98.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 102

televisão comparados a 73,7 do Brasil, segundo dados da Fundação SEADE116.


Apesar da impossibilidade de estabelecer uma causalidade precisa entre mídia e
violência, deve-se reconhecer que a brutalidade das mídias, na televisão pode
contribuir para dar-lhe um sentido. A televisão, por exemplo, influencia o estilo
agressivo da sociedade, a forma pela qual as pessoas agem no interior da família
e nas relações interpessoais. Não há dúvidas que altos níveis de exposição à
violência tem alguma correlação no aumento da aceitação de atitudes agressivas
e de um comportamento agressivo.

Em vez de um laço de causalidade ou mesmo uma correlação entre a


mídia e a violência, devemos levar em consideração uma convergência de
causas e de efeitos. O que se escuta no rádio ou se vê na televisão soma-se às
noções e às imagens que compõem a vida quotidiana dos indivíduos e essas tem
poderosas repercussões sobre a experiência pessoal. Nesse caso, os elementos
relativos à violência ou ao crime na mídia podem convergir com o quotidiano e
terem uma influência sobre o comportamento do indivíduo.

Porque a violência interessa tanto à maioria da população que assiste à


televisão ou lê os jornais sensacionalistas? O interesse pela violência é uma
espécie de exercício moral, um recurso ritualizado a um “panteão simbólico”
através do qual os leitores/ espectadores podem fazer face às preocupações que
lhes afligem no quotidiano.

CAPÍTULO 4

116
Ver Pinheiro, P.S. “ Médias, violence et droits de l’homme”in Institut International des Droits de
l’Homme. Défis Actuels. Actes & Documents, 1. 1996,p.71-86.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 103

AS GRAVES VIOLAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS: O TEMA E A PESQUISA

Sérgio Adorno
Wânia Pasinato Izumino

1. Objeto e perspectiva teórico-metodológica

O Estado moderno, o monopólio da violência e a proteção dos direitos humanos

A moderna sociedade e Estado democráticos floresceram, como se sabe,


no contexto da transição do feudalismo ao capitalismo, verificado na Europa
ocidental entre os séculos XV e XVIII. No curso desse processo, operaram-se
substantivas transformações na economia, na sociedade, no Estado e na cultura.
A dissolução do mundo social e intelectual da Idade Média acelerou-se no último
quartel do século XVIII, conhecido como a “era das revoluções” (Hobsbawn,
1977; Nisbet, 1977), convergindo para o fenômeno que Max Weber nomeou
“desencantamento do mundo”. Foi no bojo desse processo de desencantamento
das visões mágicas do mundo e de laicização da cultura, que se consolidaram as
sociedades modernas, caracterizadas por acentuada e progressiva diferenciação
de suas estruturas sociais e econômicas, no interior das quais nasceram e se
desenvolveram a empresa capitalista e o Estado burocrático e se separaram da
esfera religiosa a ciência, a arte e a moral (Weber, 1981).

O irreversível processo de modernização da sociedade fez com que a


economia capitalista e o Estado moderno se completassem em suas funções de
estabilização recíproca. A empresa capitalista diferenciou-se da gestão
doméstica e passou a orientar suas decisões de investimento em função das
oportunidades oferecidas pelo mercado de bens, de capital e de força de
trabalho. Por sua vez, o núcleo articulador do Estado burocrático moderno
centrou-se em torno do aparelho racional de gestão político-administrativa
constituído em torno de: primeiro, um sistema fiscal centralizado e estável;
segundo, uma força militar profissional, permanente e sujeita a um comando
central; terceiro, uma justiça cujas atribuições e prerrogativas constituem
monopólio do poder público; quarto, uma administração burocrática fundada na
existência de funcionários especializados (Weber, 1974; Bendix, 1977). Essas
mudanças, que invadem todas as esferas da existência social, atingem também o
direito. Segundo o mesmo Weber, o traço distintivo do direito moderno é seu
caráter sistemático: é um direito de juristas. Apelando para a formação
especializada, a racionalização do direito se fundou na profissionalização das
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 104

funções da justiça e da administração pública. Seus princípios fundamentais


consistiram em: positividade, legalidade e formalidade117.

A racionalização do direito não se restringiu, entretanto, a seu aspecto


formal. O constitucionalismo moderno, que se pode rastrear a partir de Locke,
consagrou a separação entre as esferas pública e privada da existência social118.
Nesse processo, o direito natural não mais terá inspiração religiosa. Seu
conteúdo será fruto da vontade racional dos homens e sua missão será garantir a
liberdade e a autonomia dos indivíduos frente ao Estado. Em outras palavras, a
racionalização do direito, historicamente consentânea à racionalização do
aparelho de Justiça e da administração burocrática do Estado, supôs a
separação entre a coisa pública e negócios privados. Supôs igualmente o império
da lei na gestão da esfera comum da existência e o princípio da limitação
constitucional do poder de Estado, pressupostos sobre os quais se assentaram
os direitos fundamentais da pessoa humana e a moderna concepção de
cidadania.

No curso desse processo, o Estado de Direito vem cumprindo papel


decisivo na pacificação da sociedade. O Estado moderno constituiu-se como
centro que detém o monopólio quer da soberania jurídico-política quer da
violência física legítima, processo que resultou na progressiva extinção dos
diversos núcleos beligerantes que caracterizavam a fragmentação do poder na
Idade Média (Weber, 1970; Bobbio, 1984). Porém, o simples fato dos meios de
realização da violência física legítima estarem concentrados nas mãos do Estado
não foi condição suficiente para assegurar a pacificação dos costumes e hábitos
enraizados na sociedade desde tempos imemoriais. Daí a necessidade de um

117
Positividade porque o direito moderno exprime a vontade de um legislador soberano o qual,
por intermédio de meios jurídicos de organização, regulamenta as atividades da vida social.
Legalidade porque “não reconhece outro ordenamento jurídico que não seja estatal, e outra forma
de ordenamento estatal que não seja a lei” (Bobbio, 1984). Formalidade porque o direito moderno
define o domínio onde se pode exercer legitimamente o livre arbítrio das pessoas privadas (cf.
Habermas, 1987, t.1).
118
“...o pensamento político moderno fez (distinção) entre pactum unionis, resultante do acordo
celebrado entre os homens no sentido de se unirem visando à consolidação de seus interesses
privado comuns, e o pactum subjectionis, através do qual os homens, ao se unirem, delegam
poderes de representação desses interesses a indivíduos escolhidos segundo expedientes
eletivos. A esses indivíduos é atribuída a função de proteger esses interesses e torná-los imunes
às investidas, tanto do poder despótico, quanto daqueles estranhos ao elenco de interesses
conveniados no pactum unionis. Essa distinção deu margem a que o pensamento político
moderno considerasse a realidade da vida social em dupla dimensão: por um lado, a sociedade
civil, esfera das pessoas privadas, regulada pelo direito que se aplica aos iguais, isto é, direito
civil; de outro, a sociedade política, esfera do cidadão, regulada pelo direito que se aplica aos
desiguais, isto é, o direito público” (Adorno de Abreu, 1985: 23-24). Uma concepção diferente de
público e privado encontra-se em Arendt (1987) e Habermas (1980). Para uma crítica dos
conceitos de sociedade civil e sociedade política, reporto-me a Santos (1995, pp. 115-133).
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 105

direito positivo, fruto da vontade racional dos homens, voltado, por um lado, para
restringir e regular o uso dessa força e, por outro lado, para mediar os
contenciosos dos indivíduos entre si. A eficácia dessa pacificação relacionou-se,
como demonstrou Elias (1990 e 1993), com o grau de auto-contenção dos
indivíduos, ou seja, sua obediência voluntária às normas de convivência, bem
como se relacionou com a capacidade coatora do Estado face àqueles que
descumprem o direito.

No contexto desse processo civilizatório ocidental, a sociedade brasileira


também conheceu acentuada modernização de suas estruturas sociais. Desde o
último quartel do século XIX, os desdobramentos econômico-sociais da
cafeicultura no Oeste paulista já apontavam para decisivas transformações como
sejam: superação da propriedade escrava, formação do mercado de trabalho
livre, industrialização e urbanização, mudanças nas bases do poder político de
que resultou a substituição da monarquia pela forma republicana de governo, a
instauração de um novo pacto constitucional que formalmente consagrava
direitos civis e políticos e instituía um modelo liberal-democrático de poder
político.

A emergência da sociedade capitalista no Brasil (último quartel do século


XIX) e o advento da forma republicana de governo (1889) pareciam anunciar
uma era nova, marcada pelo crescimento econômico, pelo desenvolvimento
social, pelo progresso técnico e sobretudo pela consolidação de governos
estáveis, regidos por leis pactadas e justas, pela existência de instituições
políticas modernas e capazes de conduzir o país ao compasso das “nações
civilizadas” (Carvalho, 1987) e, por conseguinte, instituições qualificadas para
coibir a violência nas suas mais variadas formas de manifestação. As pendências
pessoais bem como os conflitos sociais seriam carreados para os tribunais e
seriam julgados segundo critérios fundados em leis universais, válidas para todos
os cidadãos, independentemente de clivagens econômicas, sociais ou culturais.
A institucionalização de um poder único, reconhecido e legitimado, enfeixando
todos os sistemas possíveis e paralelos de poder, haveria de tornar a violência
um fenômeno anacrônico na vida social brasileira, uma patologia própria de
alguns indivíduos incapazes de se adequarem à marcha civilizatória. Daí que os
casos de repercussão pública somente poderiam ser objeto de escândalo e como
tais considerados abjectos. Contra eles, a espada da lei, a interdição das
sanções penais.

Esse conjunto de mudanças ocorreu em menos de um século. Inspiradas


pelo processo democrático em curso em algumas sociedades do mundo
ocidental capitalista, essas transformações não foram assimiladas pelas práticas
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 106

políticas e sequer pela sociedade. As garantias constitucionais e os direitos civis


e políticos permaneceram, tal como na forma de governo monárquica, restritos à
órbita das elites proprietárias. Estabeleceu-se uma sorte de “cidadania regulada”
(Santos, 1979), que excluía dos direitos de participação e de representação
políticas a maior parte da população brasileira, constituída de trabalhadores do
campo e das cidades, de baixa renda, situados nos estratos inferiores da
hierarquia ocupacional bem assim carentes de direitos sociais. Subjugado pela
vontade das elites proprietárias, esse contingente de “não-cidadãos” foi
violentamente reprimido todas as vezes em que se rebelou e jamais teve
assegurados seus direitos humanos. A violência, seja como repressão ou reação,
mediou a história social e política desses sujeitos.

Ao longo de mais de cem anos de vida republicana, a violência em suas


múltiplas formas de manifestação permaneceu enraizada como modo costumeiro,
institucionalizado e positivamente valorizado - isto é, moralmente imperativo -, de
solução de conflitos decorrentes das diferenças étnicas, de gênero, de classe, de
propriedade e de riqueza, de poder, de privilégio, de prestígio. Permaneceu
atravessando todo o tecido social, penetrando em seus espaços mais recônditos
e se instalando resolutamente nas instituições sociais e políticas em princípio
destinadas a ofertar segurança e proteção aos cidadãos. Trata-se de formas de
violência que imbricam e conectam atores e instituições, base sob a qual se
constitui uma densa rede de solidariedade entre espaços institucionais tão
díspares como família, trabalho, escola, polícia, prisões tudo convergindo para a
afirmação de uma sorte de subjetividade autoritária na sociedade brasileira.

Na sociedade agrária tradicional brasileira, a violência esteve incorporada


regularmente ao cotidiano dos homens livres, libertos e escravizados,
apresentando-se via de regra como solução para os conflitos sociais e para o
desfecho de tensões nas relações intersubjetivas. As respostas violentas, não
necessariamente restritas aos indivíduos envolvidos nos contenciosos, tendiam a
estimular reações mais ou menos uniformes em agrupamentos sociais
diferenciados, constituindo um modelo socialmente válido de conduta, aceito e
reconhecido publicamente, visto como legítimo e também como imperativo
(Franco, 1976). Este cenário parece referir-se exclusivamente ao Brasil
tradicional, ainda dependente de práticas herdadas do passado colonial, onde
predominava um padrão de vida associativa, “cujas bases materiais assentavam
no parentesco, no escravismo e nos interesses ditados pela grande propriedade
rural e cujas expressões culturais se materializavam na intensidade dos vínculos
emocionais, no elevado grau de intimidade e de proximidade pessoais e na
perspectiva de sua continuidade no tempo e no espaço, sem precedentes”
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 107

(Adorno, 1988: 28). Um mundo marcado por rígidas hierarquias cuja quebra das
normas consuetudinárias e cuja transgressão das fronteiras sociais constituíam
sério estímulo ao recurso à violência como forma de repor laços e elos rompidos
na rede de relações sociais.

A história recente da sociedade brasileira não tem sido diferente. Após 21


anos de vigência de regime autoritário (1964-85), a sociedade brasileira retornou
à normalidade constitucional e ao governo civil. A reconstrução democrática e o
novo regime político acenaram para substantivas mudanças, entre as quais
conviria destacar as seguintes: ampliação dos canais de participação e
representação políticas; alargamento do elenco dos direitos (civis, sociais e
políticos); desbloqueio da comunicação entre sociedade civil e Estado;
reconhecimento das liberdades civis e públicas; abolição das organizações para-
militares ou organismos paralelos à segurança pública; maior transparência nas
decisões e procedimentos políticos; sujeição do poder público ao império da lei
democraticamente votada; existência de eleições livres.

A nova Constituição, promulgada em 5 de outubro de 1988, consagrou


esse conjunto de mudanças institucionais. No domínio dos direitos fundamentais
da pessoa humana, tornou inalienável o direito à vida ao mesmo tempo em que
estabeleceu garantias à integridade física e moral. O racismo e a tortura
converteram-se em crimes inafiançáveis e imprescritíveis. Assegurou ainda
direitos quanto à privacidade, à igualdade sem distinção de qualquer espécie, à
liberdade em todas as suas formas de expressão e de manifestação (liberdade
física, de locomoção, de circulação, de pensamento e de convicções políticas e
religiosas, de reunião e de associação coletiva). A par dessas iniciativas, inovou
no campo dos direitos sociais, ampliando a proteção ao trabalho e ao
trabalhador, à maternidade e à infância, ao consumidor e ao meio ambiente. No
terreno político, estendeu o direito de voto aos analfabetos, criou institutos
jurídicos antes inexistentes como o Mandato de Injunção com vistas a garantir a
eficácia das normas constitucionais, conferiu autonomia ao Ministério Público e
consagrou a assistência judiciária aos desprovidos de recursos para constituição
de defensoria própria. Em síntese, a nova Constituição procurou munir a
sociedade de instrumentos de defesa contra o arbítrio do poder de Estado.

Finalmente, em 1996, o governo brasileiro, em cumprimento ao decidido


na Cúpula Mundial da ONU para os Direitos Humanos (Viena, 1994), instituiu um
Plano Nacional dos Direitos Humanos, o primeiro na América Latina, o terceiro no
mundo. Resultado de um amplo processo de mobilização e de amplas consultas
a múltiplos segmentos da sociedade brasileira - especialmente aqueles
representantes de grupos tradicionalmente discriminados, excluídos de direitos e
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 108

do acesso à Justiça, inclusive ONGs, movimentos sociais e organizações de


interesses profissionais -, o Plano colocou os direitos humanos na agenda política
dos governos federal e estadual. Ao fazê-lo, contribuiu para perturbar a
tradicional tolerância do cidadão comum para com a sistemática violação de
direitos humanos e conseqüentemente para reduzir as resistências à introdução
de uma política governamental de defesa desses direitos para o conjunto da
sociedade brasileira.

Neste domínio, os avanços não foram poucos, sequer irrelevantes:


transferência da competência para julgamento de policiais militares acusados de
crimes dolosos contra a vida da Justiça Militar para a Justiça comum (agosto de
1996); instituição de lei complementar regulamentando o rito sumário nos
processos de desapropriação para fins de reforma agrária (dezembro de 1996);
instituição de lei sancionando como crime o porte ilegal de armas e criando o
Sistema Nacional de Armas (fevereiro de 1997); aprovação de projeto, na
Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, conferindo competência à
Justiça federal para julgamento de crimes contra os direitos humanos (abril de
1997); criação da Secretaria Nacional de Direitos Humanos (abril de 1997),
elevada ao status de Ministério (janeiro de 1999); instituição de lei tipificando o
crime de tortura (abril de 1997). Ademais, foi prevista ou estimulada uma série de
outras iniciativas (algumas das quais já em andamento), no domínio da parceria
entre sociedade civil organizada e Estado, entre as quais: elaboração de relatório
sobre a eliminação de todas as formas de discriminação racial; elaboração de
mapas de risco para várias capitais brasileiras (São Paulo, Curitiba, Rio de
Janeiro, Salvador); criação dos Balcões de Direito, facultando prestação de
serviços de assistência jurídica gratuita à população de baixa renda; expansão de
Rede de Proteção de Testemunhas e de vítimas no Nordeste (inicialmente criado
pelo Gabinete de Assessoria Jurídica - GAJOP, de Recife) bem como de
atendimento às vítimas (Paraná); promoção de cursos de reciclagem para
policiais civis e militares, sob a responsabilidade da CLACSO; desenvolvimento
do Programa Nacional de Informações Criminais e Conselhos Regionais de
Segurança; elaboração e instituição de projeto de lei para ampliar a aplicação de
penas alternativas à prisão, além de programas para coibir o trabalho infantil119.

Não obstante esses avanços democráticos, não se lograram a efetiva


instauração do Estado de Direito. O poder público, especialmente na esfera
estadual, não conquistou o monopólio do "uso legítimo da violência física"
(Weber, 1970; Elias, 1993) dentro dos limites da legalidade. Persistiram graves

119
Um balanço analítico dos primeiros resultados alcançados com o Plano Nacional dos Direitos
Humanos encontra-se em Pinheiro & Mesquita Neto (1997).
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 109

violações de direitos humanos, produto de uma violência endêmica, radicada nas


estruturas sociais, enraizada nos costumes, manifesta quer no comportamento de
grupos da sociedade civil, quer no dos agentes incumbidos de preservar a ordem
pública. O controle legal da violência permaneceu aquém do desejado. Seus
principais obstáculos repousam, em linhas gerais, em circunstâncias sócio-
políticas, entre as quais: primeiro, o restrito raio de ação dos grupos organizados
da sociedade civil. De fato, a despeito do papel essencial que os movimentos de
defesa dos direitos humanos exerceram no processo de reconstrução
democrática nesta sociedade - sobretudo porque ao denunciarem casos de
violação de direitos humanos, de arbitrariedade e de abuso de poder exigiram
das autoridades públicas o cumprimento de suas funções constitucionais -, pouco
se avançou no sentido do controle democrático da violência. Segundo, a
pronunciada impunidade dos agressores. De modo geral, não se vislumbrou, ao
longo de todo o processo, uma efetiva vontade política no sentido de apurar a
responsabilidade penal dos possíveis agressores, mesmo quando o poder
público tenha, através de uma ou outra autoridade, acenado para a introdução de
mudanças nesse quadro. Terceiro, ausência de efetivo controle do aparato
repressivo por parte do poder civil. Neste domínio, parece não ter havido efetiva
desmobilização das forças repressivas comprometidas com o regime autoritário.
Essas forças mantiveram-se presentes, acomodando-se ao contexto de
transição política.

Tudo indica que, no curso do processo de transição e consolidação


democráticas, recrudesceram as oportunidades de solução violenta dos conflitos
sociais e de tensões nas relações intersubjetivas. A violência adquiriu estatuto de
questão pública. Denúncias de abusos cometidos contra populações desprovidas
de proteção legal multiplicaram-se. Um apreciável número de situações e
acontecimentos acumulou-se no tempo, como sejam os maus tratos e torturas
impingidos a suspeitos, presos nas delegacias e distritos policiais bem como no
sistema penitenciário; assassinatos e ameaças a trabalhadores e suas lideranças
no campo; homicídios, ao que parecem deliberados, de crianças e de
adolescentes; violências de toda ordem cometidas contra mulheres e crianças,
sobretudo no espaço doméstico; linchamentos e justiçamentos privados;
extermínio de minorias étnicas. Ademais, o período experimentou acentuado
crescimento da criminalidade violenta, em termos antes desconhecidos.

Por um lado, persistiram as graves violações de direitos humanos


praticadas por agentes do Estado na implementação do controle social. As
mortes extrajudiciais praticadas pela Polícia Militar, em geral sob a rubrica de
“estrito cumprimento do dever” ou “resistência à voz de prisão” mantiveram-se ao
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 110

longo dos anos 80 como estratégia institucional “normal” de contenção da


criminalidade. Contra a espiral crescente de violência policial, muito pouco
fizeram os governos estaduais recém-egressos do regime autoritário. Não
enfrentaram decisivamente a flagrante impunidade nestes crimes, certamente
porque buscaram evitar confrontos acirrados entre autoridades civis e militares
tanto quanto procuram evitar desgastes políticos frente a uma opinião pública
nada tolerante e tampouco favorável à implementação de uma política de
respeito aos direitos humanos, opinião essa inclinada a uma contenção rigorosa
e mesmo violenta da ordem pública diante do crescimento dos crimes.

Não sem motivos, a década foi palco do aumento da violência policial. Não
há dados confiáveis para o Brasil em seu conjunto. Na cidade de São Paulo,
aumentou significativamente o número de civis mortos em confrontos com a
polícia, no período de 89-92 enquanto que o número de policiais mortos tem se
mantido constante (exceção dos anos de 1990-91 que variaram bruscamente).
Nos últimos 15 anos morreram 15 vezes mais civis do que policiais nesses
confrontos. No ano de 1992, essa razão foi de 23 vezes mais civis. A média de
mortos, nessas circunstâncias, nesse ano, foi 3,7/dia, o que significa um
homicídio a cada 6h (excluídos os 111 mortos na Casa de Detenção). Enquanto a
PM paulista matou 1140 civis, nesses confrontos, no ano de 1991, a de New York
- onde as taxas de criminalidade violenta são elevadíssimas - feriu 20 e matou 27
(NEV-USP, 1993)120. Embora essa modalidade de violência policial tenha
oscilado a partir de 1993, ela foi constante e voltou novamente a crescer no curso
de 1998, conforme apontam registros oficiais e especialmente os relatórios da
Ouvidoria da Polícia, instituto criado pelo governo do estado de São Paulo, em
1996, justamente para o monitoramento desses casos.

Por outro lado, verificou-se verdadeira explosão de litigiosidade no seio da


sociedade civil, em particular nos bairros onde habitam majoritariamente classes
trabalhadoras de baixa renda, resultando em desfechos fatais. Nesse domínio,
como sugerem alguns estudos brasileiros (Adorno, 1994; Caldeira, 1989 e 1992;
Mello Jorge, 1981, 1982 e 1986; Soares & outros, 1996; Yazabi & Ortiz Flores,
1988; Zaluar, 1993a) desde a última década vem crescendo de modo acentuado
a mortalidade por causas externas, motivada pela violência121. É provável que

120
Para uma análise complementar da violência policial, consulte-se Pinheiro e outros (1991).
121
As fontes que servem de subsídios para mensurar os óbitos por causas externas, nisto
compreendidos os homicídios voluntários, comportam igualmente uma série de problemas.
Embora a implantação do Sistema de Informações sobre Mortalidade/SIM tenha representado
uma grande avanço no sentido da melhoria substantiva dos dados estatísticos e indicadores
disponíveis de mortalidade, estima-se que os registros abranjam cerca de 75% dos casos de
óbitos nessas circunstâncias. Nas regiões Norte, Nordeste e Centro Oeste acredita-se que parte
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 111

grande parte dessas mortes esteja associada às disputas entre quadrilhas, as


quais, não raro, gravitam em torno do tráfico de drogas como demonstrou Zaluar
(1994) em seus estudos sobre o crime e a criminalidade entre as classes
populares no Rio de Janeiro.

Quanto à cidade de São Paulo, pouco se sabe a respeito da extensão e


peso do narcotráfico na composição da violência urbana, em especial sua
influência no abrupto e acelerado crescimento dos homicídios, desconhecimento
motivado pela ausência de estudos similares ao realizado por Zaluar para a
cidade do Rio de Janeiro. Autoridades policiais afirmam com freqüência e
veemência que as chacinas que ocorrem na maior cidade do país estão
associadas à cobrança por dívidas contraídas no comércio de drogas, cenário
que viria confirmar aquele dominante nos morros e bairros populares do Rio de
Janeiro. Inclusive, garantem que esses conflitos teriam sido acirrados por força
da entrada e rápida difusão do crack entre as classes populares. Trata-se de
conflitos pelo controle do território - requisito vital para o controle dos “pontos” da
venda da droga -, cujos desfechos convergiriam para soluções fatais. Impossível
saber no momento quanto das mortes podem ser atribuídas a esse tipo de
motivo. O crescimento dos homicídios de autoria desconhecida na última década
é assustador, principalmente porque parte desses homicídios não é esclarecida.

Compõe ainda esse mesmo cenário social as mortes violentas provocadas


por tensões nas relações intersubjetivas e que nada parecem ter em comum com
a criminalidade cotidiana. Estes são em sua maioria os homicídios de autoria
conhecida. Trata-se de um infindável número de situações, em geral envolvendo
conflitos entre pessoas conhecidas, cujo desfecho acaba, muitas vezes até
acidental e inesperadamente, na morte de um dos contendores. Compreendem
conflitos entre companheiros e suas companheiras, entre parentes, entre
vizinhos, entre amigos, entre colegas de trabalho, entre conhecidos que
freqüentam os mesmos espaços de lazer, entre pessoas que se cruzam
diariamente nas vias públicas, entre patrões e empregados, entre comerciantes e
seus clientes. Resultam, em não poucas circunstâncias, de desentendimentos
variados acerca da posse ou propriedade de algum bem, acerca de paixões não
correspondidas, acerca de compromissos não saldados, acerca de
reciprocidades rompidas, acerca de expectativas não preenchidas quanto ao

dos óbitos não é submetida a registro civil, em cartório ou o próprio cartório deixa de comunicar o
fato ao Ministério da Saúde. Ademais, é elevada a proporção de causas mal definidas, o que
acaba por inflacionar a categoria “demais causas externas”, agrupamento indicativo de indefinição
quanto à natureza da violência. Cf. Camargo e outros (1995). Ademais, há sérios problemas de
compatibilização de informações entre fontes diversas, como os dados fornecidos pelo Ministério
da Saúde, aqueles contabilizados pelo PROAIM, da Prefeitura Municipal de São Paulo e os
registros policiais. Cf. Feiguin & Lima (1995).
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 112

desempenho convencional de papéis como os de pai, mãe, mulher, filho,


estudante, trabalhador, provedor do lar etc.

Ocorrem, com maior freqüência, nos bares, nos lares e nas ruas. Os bares
parecem ser espaço privilegiado onde os homens se confrontam. Um olhar
atravessado, um desafio lançado, uma opinião mal acolhida, tudo serve de
pretexto para o desencadeamento de uma luta que pode - como de fato ocorre -
evoluir para um desenlace fatal, ainda mais se apenas um dos contendores
estiver armado e encorajado por bebida alcoólica. Nos lares, o desfecho se dá
como ponto culminante de tensões que vem se desencadeando no dia-a-dia. A
suspeita de uma traição amorosa, as desconfianças de uns em relação a outros,
a imposição de regras de comportamento mal aceitas por um ou algum dos
residentes, a irritação diante de uma criança que chora ou diante de um idoso
que reclama permanentemente de tudo e de todos, são cenários que constróem
oportunidades de confronto verbal violento que, vez ou outra, ultrapassa os
limites do tolerável e culmina com a supressão física de alguém. Nas ruas, as
mortes ocorrem por terem sido premeditadas em outros espaços de realização
social, como festas comunitárias e bailes públicos, ou resultam de conflitos no
tráfego.

O que mais surpreende nesses cenários é a banalidade das mortes. O


relato minudente de cada fato deixa entrever, aqui igualmente, uma certa
gratuidade, como se a vida fosse energia que brotasse aqui e acolá, despida do
valor que lhe atribuímos em nossa cultura ocidental moderna e, por conseguinte,
passível de ser consumida como bem aprouver a cada um. Daí que, na leitura fria
dos processos penais, as mortes não parecem comover ninguém. São vistas
como uma sorte de destino trágico, grafado na trajetória biográfica de alguns.
Daí também que ser agressor ou vítima é meramente circunstancial. Entre os
fatos e as pessoas envolvidas nessas mortes, intervém uma espécie de
liminaridade diáfana, que embaralha todas as pedras do tabuleiro de xadrez e
impede que se saiba, de antemão, quem é o melhor jogador e possível vencedor.

Tudo indica, portanto, a partir da análise de cenários distintos, porém


interconectados, que fatos dessa natureza não são episódicos, ocasionais ou
conjunturais. Todas suas características - modus operandi, dinâmica, relações
entre agressores, vítimas e autoridades etc. - apontam para conclusão inversa:
trata-se de fatos rotineiros, cotidianos, com larga aceitação entre diferentes
grupos da sociedade. Parece haver uma inclinação ou disposição da sociedade
para aceitá-los como "normais", como se fossem meios naturais de resolução de
conflitos seja nas relações entre classes sociais seja nas relações intersubjetivas.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 113

Sob esta perspectiva, a violência no Brasil revela facetas ambíguas e


contraditórias. Por um lado, constitui expressão de uma cultura autoritária cujas
raízes se reportam à tradição e ao passado colonial. Sob essa perspectiva, ainda
que se possa dizer que a violência esteja igualmente presente em outras
sociedades de modo tão agudo e dramático, nesta sociedade ela se manifesta
como uma espécie de linguagem da vida social que cumpre perversamente a
função de integrar as distintas hierarquias e eixos de poder. Por outro lado, essa
mesma cultura autoritária convive com uma cultura política democrática, no
interior da qual é possível condenar a violência em nome de uma racionalidade
jurídico-política e de uma ética que reclamam respeito às liberdades e aos
direitos civis e pretendem a consolidação do Estado de Direito.

É mediante essa cultura política democrática que se torna possível


decodificar essa linguagem que naturaliza e normaliza a violência. Ao fazê-lo,
acena-se para a construção de outra linguagem que nega os atributos que
prevalecem na cultura política autoritária: as diferenças não se convertam em
desigualdades “naturais” entre fortes e fracos; a vontade de poucos não se impõe
sobre a vontade de muitos, agora colocados em situação de autonomia e não de
heteronomia; o poder não se dissolve em puras relações de força; o direito não
aparece como mera exigência formal; e a justiça não é cultivada tão somente
como valor abstrato. Trata-se enfim de uma sociedade que se recusa a perpetuar
infinitamente o divórcio entre o mundo das leis e o mundo das relações pessoais.

2. Indagações, hipóteses e objetivos empíricos


O principal objetivo de pesquisa Continuidade Autoritária e Construção da
Democracia é portanto examinar o papel das violações dos direitos humanos no
processo de transição e consolidação democráticas no Brasil, em especial na
implantação do Estado de Direito e na universalização da cidadania, bem como o
significado da persistência destas violações na cultura política brasileira.

A pesquisa procurou responder a um pequeno elenco de indagações:


Como se dá a convivência das violações dos direitos humanos com regras e
procedimentos formais da democracia? Quais as conseqüências dessa
convivência para a cultura política, para as relações entre grupos e para a
estrutura das relações de poder? Como o Estado encara seu papel de guardião
da lei? Como isto se reflete na atuação das agências de pacificação e de
aplicação das leis? Quais as ações da sociedade civil, sobretudo de sua faceta
organizada representada das organizações de defesa dos direitos humanos, para
romper com essa convivência?
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 114

Para responder a tais questões, a investigação procurou explorar uma


hipótese geral: a incompatibilidade entre a vida social e política democrática e a
persistência da sistemática violação de direitos humanos. Sob esta ótica, a
continuidade das violações dos direitos humanos, no curso do processo de
transição e consolidação democráticas, é um dos elementos básicos que
impedem a universalização da cidadania e que questionam a credibilidade das
instituições básicas para a democracia, em especial as agências e atores
encarregados da aplicação das leis e da pacificação da sociedade. Esta
cidadania restrita seria parte constitutiva de uma cultura política marcada pela
não institucionalização dos conflitos sociais, pela normalização da violência, pela
reprodução das violações de direitos humanos e pela reprodução da estrutura
vigente de relações de poder. Ao que tudo parece indicar, tais aspectos
interagem de forma perversa, criando círculos viciosos que se reforçam
mutuamente. Neste contexto, diferentes movimentos sociais, inclusive as ONGs
de defesa de direitos humanos, ao lado de distintas outras formas de
organizações populares não conseguem rompê-los.

O tratamento desta hipótese geral impôs seu desdobramento em quatro


hipóteses complementares:
• Hiato entre direitos civis, sociais e políticos. Em primeiro lugar, parece
haver, no Brasil, um grande hiato entre esses direitos. Esse hiato
manifesta-se sobretudo através de um conflito entre as exigências de
democracia política e as de democracia social. Se hoje, na sociedade
brasileira, pode-se dizer que o processo de transição democrática
promoveu a ampliação da participação e da representação política,
esse movimento de ampliação dos direitos políticos não resultou em
ampliação da justiça social. O aprofundamento das desigualdades
sociais persiste sendo um dos grandes desafios à preservação e
respeito dos direitos humanos para a grande maioria da população.
Neste horizonte social e político, convém lembrar que o Brasil continua
a ter o pior índice de concentração de renda entre todos os países do
mundo com mais de dez milhões de habitantes. Há fortes disparidades
regionais entre os estados do Sudeste e Nordeste (Lampreia, 1995);
• Baixa credibilidade nas instituições de justiça. Uma segunda pista diz
respeito ao mundo das instituições públicas e à participação político-
social. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), realizada
em 1987 e publicada em 1988, investigou o comportamento social face
à Justiça Pública. Os resultados são surpreendentes. Eles revelaram
que cerca de 45% de todas as pessoas que, naquele ano, se
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 115

envolveram em diferentes conflitos (trabalhistas, criminais, disputas de


terras, pensão alimentícia, cobrança de dívida), não recorreram à
justiça. Entre estes, o motivo preponderantemente alegado é: "resolveu
por conta própria". Esse dado é indicativo da baixa confiabilidade nas
instituições públicas e, em particular, na Justiça. A justiça não é vista,
pelos cidadãos, como instrumento adequado de superação da
conflitualidade social cujo efeito é “objetivar” o recurso à violência como
uma forma imperativa e moralmente válida de solucionar pendências as
mais diversas. Ademais, a ausência de mediações institucionais é
facilitada pelas estruturas fortemente corporativas que sustêm a
organização de interesses de classes e grupos profissionais nesta
sociedade.
• Autoritarismo social. No caso brasileiro, tendo em conta esses
aspectos, estamos diante do que O’Donnell e mais particularmente
Paulo Sérgio Pinheiro denominaram “autoritarismo socialmente
implantado” que procede e sobrevive a alternância de períodos em que
vigoram regimes políticos autoritários e outros em que vigoram regimes
democráticos. Esse “autoritarismo socialmente implantado” parece
estar inscrito em uma grande continuidade de práticas autoritárias, que
transpassam toda a estrutura social e que são diretamente
dependentes dos sistemas de hierarquia sustentados pelas classes e
grupos sociais dominantes.
Esta perspectiva implica enraizar a problemática da violência na
sociedade e na cultura. Esta hipótese permite rever um certo
modo “convencional” de tratamento da questão que identifica o
essencial da violência nos planos político e do Estado. Ainda que
não se desconheça a importância desses planos - não há por que
desconhecê-los, eles devem ser considerados -, esse modo de
tratamento da questão não é suficiente para explicar a
persistência da violência a despeito da transição democrática.
Enfatizar a problemática da violência no plano da sociedade e da
cultura, compreendendo suas conexões com o poder político
estatal, requer problematizar a complexidade do social.
Por um lado, trata-se de considerar o peso e a importância que
ocupa o modo pelo qual a sociedade se encontra hierarquizada.
Conforme apontam não poucas análises, sob o manto de uma
aparente mélange democrática de classes, etnias, gêneros,
gerações se ocultam rígidas fronteiras que separam os superiores
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 116

dos inferiores, mediatizadas por um fluído sistema de


reciprocidade que se apoia em uma troca desigual de favores. Por
outro lado, trata-se também de considerar os diferentes eixos de
poder que atravessam as hierarquias, que realizam a dominação,
que convergem para o Estado e que suscitam a formação de
ideologias autoritárias e discriminatórias.
• Baixa representatividade e participação social, corporativismo e
ausência de rupturas. Não são poucos os obstáculos que contribuem
para impedir a universalização da cidadania plena. Além da
persistência das extremas desigualdades sociais, é preciso considerar
a vigência de acentuado corporativismo que introduz sério desequilíbrio
na organização de interesses coletivos, baixa participação dos
cidadãos nas organizações representativas dos distintos grupos
sociais. Tudo converge no sentido de preservar uma sociedade
profundamente dividida, atravessada por diferentes identidades
culturais, estilos de vida e padrões de consumo que impedem a
constituição de uma esfera de realização do bem-comum. Tais
características societárias dificultam sobremodo a institucionalização
dos conflitos, cujas soluções, com muita freqüência, apelam para o
domínio das relações intersubjetivas, permanecendo restritas à esfera
do mundo privado, cujas regras de regulamentação da conduta não
obedecem, como se sabe, aos mesmos princípios que regulam o
Estado democrático de Direito. Tais conflitos tendem a ser solvidos à
base das relações entre fortes e fracos, sem a mediação do mundo das
instituições públicas e das leis (Cardoso, F.H., 1991; Gianotti, 1991;
Santos, 1991).

Com referência a esta última questão, poderosos impedimentos


encontram-se incrustados no aparato judicial, cujo funcionamento não
parece assegurar uma efetiva distribuição da justiça social. No caso do
sistema de justiça criminal, os principais obstáculos residem no
conservadorismo que caracteriza a ação de não poucos agentes judiciários,
entre os quais expressivos segmentos da magistratura, a par da rígida
estrutura corporativa que o sustém bem assim do estilo patrimonial de
administração pública que ainda singulariza o cotidiano de suas agências
(Adorno, 1990; Faria, 1989 e 1991; Lopes, 1989). O principal efeito deste
funcionamento é a consolidação de um sistema de justiça criminal que
restringe direitos e que é incapaz de manter a ordem nos termos estritos de
um controle democrático da criminalidade (Adorno, 1991).
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 117

A execução do projeto temático e integrado de pesquisa consistiu na


reconstrução de múltiplos casos de violações de direitos humanos, que
ocorreram em diferentes momentos da década de 1980 até o ano de 1989. Esse
universo empírico compreende casos de violações do direito à vida que têm
como agente tanto autoridades investidas de poder público quanto cidadãos civis,
violações perpetradas através de ações desencadeadas seja por indivíduos
isolados, seja por coletivos, organizados ou não. Privilegiou-se a observação de
quatro tipos de fenômenos: linchamentos; justiceiros e grupos de extermínio;
violência policial e violência rural.

Para fins de análise, esse universo foi observado em três conjunturas


políticas distintas: janeiro de 1980 a fevereiro de 1985; março de 1985 a
setembro de 1988; e de outubro de 1988 até dezembro de 1996. Trata-se de
períodos em que se verificaram importantes mudanças político-institucionais.
Cogita-se de avaliar em que medida essas mudanças influenciaram o quadro de
violações de direitos humanos.

As modalidades de violações de direitos humanos foram escolhidas por


envolver o desrespeito a um direito humano básico, ao que parece ainda não
universalizado nesta sociedade, que é o direito à vida e à integridade física dos
cidadãos (gross human rights violations). Sob esta perspectiva, entende-se que o
exercício democrático do poder e o Estado de direito ficam irremediavelmente
comprometidos caso não protegidos legal e institucionalmente esses princípios
lapidares dos direitos universais da pessoa humana.

Empiricamente, a pesquisa procurou alcançar os seguintes objetivos


específicos:

a) Construir o quadro geral da violação de direitos humanos no Brasil


[objetivo alcançado]. Cuidou-se de caracterizar, segundo as fontes
disponíveis, o quadro de violação dos direitos humanos (no período
considerado e segundo as modalidades consideradas), nos seguintes
termos:

• Ocorrência, freqüência, distribuição temporal e espacial, mobilidade e


natureza, modos de execução;

• Atores envolvidos – agressores, vítimas e testemunhas – identificando


traços biográficos, posição social e institucional, grau de participação e
responsabilidade;

• Presença de instituições, organizações e movimentos da sociedade


civil, caracterizando a natureza de sua participação;
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 118

• Presença e participação das agências públicas de contenção à


violência e de preservação dos direitos, mais particularmente da
agência policial e do aparelho judiciário, verificando sua atuação e os
resultados alcançados na apuração da responsabilidade penal;

b) comparação entre a magnitude das violações de direitos humanos no


Brasil e aquela detectada em outras sociedades [objetivo parcialmente
alcançado];

c) Reconstrução dos casos de violação tendo em vista a observação dos


principais atores e mecanismos na contenção e reprodução das
violações [objetivo alcançado]. Analisar a atuação dos diferentes atores e
instituições mediante estudo de casos escolhidos com o propósito de:

• Identificar e analisar valores, atitudes, crenças e papel da exclusão


moral na reprodução das violações, bem como na resistência a tais
violações;

• Analisar a intervenção dos operadores técnicos do direito,


encarregados do controle social e da pacificação da sociedade
segundo as regras que regulamentam o Estado de direito;

• Analisar as reações da opinião pública face às denúncias bem como a


intervenção de movimentos organizados de direitos humanos;

Além desses objetivos de pesquisa, os resultados pretenderam:

a) elaborar documentos e organizar seminários junto aos setores


acadêmicos que tratam destes temas (ANPOCS, SBPC, ABRAPSO e
eventos congêneres). Desse modo, teve-se em vista reforçar a
presença do tema no interior do debate acadêmico;

b) formar novos pesquisadores preparados para proceder o planejamento


de pesquisas, levantamentos, estudos, diagnósticos de situação,
avaliações de dados estatísticos; preparação de relatórios, dossiês e
boletins, bem como constituição de um banco de informações
processadas eletronicamente para acompanhamento de casos
denunciados de violações de direitos humanos e seus
desdobramentos;

c) discussão dos resultados com setores interessados e divulgação junto


aos meios de comunicação;

d) elaborar diagnósticos sobre a atuação das agências encarregadas de


controle social e de pacificação da sociedade, considerando-se:
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 119

agências policiais (Polícia Militar e Polícia Civil, em níveis estadual e


federal); Ministério Público e tribunais de Justiça penal;

e) propor ações com vistas a influir na formulação de políticas públicas de


proteção de direitos humanos contribuindo para ampliar a participação
da sociedade neste debate;

f) elaborar documentos relatando resultados da pesquisa para divulgação


para amplos setores da sociedade através da mídia eletrônica e
impressa.

3. Etapas da investigação empírica e técnicas de levantamento de dados

A pesquisa documental e bibliográfica


Inicialmente, procedeu-se a um grande levantamento, junto a diferentes
acervos documentais e bibliotecas do município de São Paulo, de fontes
estatísticas (nacionais e internacionais) que permitam uma comparação da
magnitude e caracterização da violação de direitos humanos com outras
sociedades, congêneres e/ou distintas da sociedade brasileira em termos de
desenvolvimento econômico-social e político. Esse levantamento resultou na
construção de listagem em que se consideraram a natureza da fonte, o período e
local de abrangência dos dados, temas tratados, natureza dos dados,
características da disposição dos dados e dos indicadores. As fontes
compreendem: anuários, relatórios técnicos, informes, perfis estatísticos, boletins
institucionais, arquivos de documentos, suplementos, recenseamentos,
conjunturas demográficas, sinopses estatísticas. Referem-se ao período de 1980-
1992. Entre essas fontes figuram: World Urbanization Prospect (NY, 1991); World
Population Prospects (NY, 1980-90); Anuário Estatístico do Brasil (IBGE, 1980-
90) e Anuário do Estado de São Paulo (SEADE, 1980-90); Anuário Rais (1985-
89); Situação Mundial da Infância (1984-92); Boletim do DIEESE (1982-90);
Arquivos da Polícia Civil (São Paulo, 1980-84); Bulletin of Labor Statistics
(Genebra, 1980-1990); Revista do Supremo Tribunal Militar (1981-89); Trends in
Population Policy (ONU, NY, 1974-1989); Statistical Yearbook (ONU, NY, 1982-
89); Conjuntura Demográfica (SEADE, 1987-92).

Quanto ao programa de leituras, realizou-se criterioso levantamento


bibliográfico junto ao Humanities Index, mediante sistema CD-ROM, instalado na
Biblioteca Central da FFLCH/USP bem como junto aos acervos das Bibliotecas
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 120

de Ciências Sociais e Filosofia, do Instituto de Psicologia e da Escola de


Comunicações e Artes (USP). Esse levantamento, periodicamente atualizado,
priorizou três eixos temáticos: (1) transições políticas; (2) cultura política; (3)
sistema de justiça penal. Cada um desses eixos, por sua vez, conferiu maior
atenção a determinados sub-temas. Assim, no domínio das transições políticas
abordaram-se, entre outros sub-temas, o papel das ideologias políticas - nisto
compreendida a persistência do autoritarismo - bem como o desempenho das
instituições encarregadas de aplicação das leis na consolidação da experiência e
das práticas democráticas. Já, no domínio da cultura política enfatizaram-se os
aspectos teórico-metodológicos deste conceito, os problemas relacionados à
socialização política, às relações entre cidadania e identidade política e entre
cultura democrática e cultura autoritária, além do exame dos processos históricos
através dos quais se consolidaram, em diferentes sociedades e em distintos
momentos históricos, culturas democráticas. Por fim, no domínio do sistema de
justiça penal a preocupação concentra-se em torno do papel das instituições
incumbidas de distribuição das sanções penais e de pacificação social.

Constituição do Banco de Dados


O Banco de Dados da Imprensa sobre as graves violações de Direitos
Humanos surgiu para dar continuidade à base de dados que se formou durante a
execução do projeto de pesquisa “Continuidade Autoritária e Construção da
Democracia”. A partir de 1995 o banco de dados passou a se constituir numa
atividade contínua e independente.

A equipe do banco de dados hoje é composta por 7 bolsistas de iniciação


científica que cuidam exclusivamente da alimentação e atualização do acervo de
notícias. Todos os problemas que envolvem atividades referentes ao Banco de
Dados - discussão a respeito dos temas tratados, conceituação das variáveis,
supervisão da coleta de dados, atualização do acervo e informatização do banco
- são discutidas em conjunto com os pesquisadores vinculados ao projeto de
pesquisa. Além disso, os pesquisadores do banco de dados participam das
reuniões semanais com a coordenação, oportunidade em que há uma maior
integração entre as atividades desenvolvidas em ambos projetos; dos seminários
com professores visitantes (brasileiros e estrangeiros) e dos seminários teóricos.

As atividades desenvolvidas para a organização do Banco de Dados da


Imprensa consistem na organização do acervo, classificação e tratamento das
notícias, informatização e treinamento dos pesquisadores.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 121

Organização do Acervo Documental


O acervo de casos que compõem o Banco de Dados da Imprensa é
composto por notícias selecionadas a partir dos jornais Folha de S. Paulo, O
Estado de S. Paulo, Jornal do Brasil e Notícias Populares122 e, mais
recentemente (a partir de 01/01/97), do Diário Popular.

A primeira tarefa realizada na organização do acervo consistiu na


reorganização do banco de dados já existente no NEV/USP. Trata-se de um
arquivo de notícias selecionadas nos jornais Folha de S.Paulo, O Estado de
S.Paulo; Jornal do Brasil e Notícias Populares, referentes ao período de
setembro de 1990 a setembro de 1992. Todas as notícias encontravam-se
organizadas cronológica e geograficamente. Esse material foi novamente
separado e organizado cronologicamente, segundo os temas definidos para o
Banco de Dados da Imprensa. Além dessa classificação, há também uma
distribuição geográfica dos casos que são distribuídos em 3 grandes regiões: São
Paulo, Rio de Janeiro e Brasil.

A segunda tarefa realizada consistiu na seleção, recorte e classificação


das notícias publicadas pela Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo e Jornal do
Brasil, a partir de outubro de 1992. Os exemplares dos jornais encontravam-se
arquivados na sede do NEV/USP. As notícias selecionadas foram catalogadas
cronologicamente por tema e região.

Para a seleção das notícias foi definida uma lista de temas que se dividem
em dois blocos. O primeiro bloco agrega os temas relacionados ao projeto
“Continuidade Autoritária e Construção da Democracia”: violência policial,
linchamentos, execuções sumárias, violência praticada por outros agentes do
Estado e violência rural. O segundo bloco reúne temas que foram incorporados
ao Banco de Dados a partir de 1990, com o objetivo de ampliar a cobertura do
noticiário sobre as violações de direitos humanos (ver lista em Anexo)

Além das notícias relacionadas a esses temas são selecionadas também


crônicas e editoriais que abordam questões sobre justiça criminal, segurança,
criminalidade, direito, violência. Todas as crônicas são arquivadas segundo os
temas.

Classificação e Tratamento das Notícias

122
Eventualmente são anexadas também notícias dos jornais Gazeta Mercantil, Jornal da Tarde e
Folha da Tarde. A coleta nesses periódicos não é sistemática, mas ocorre quando há a
publicação de algum tema de grande interesse para as pesquisas do NEV/USP.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 122

Na primeira fase dos trabalhos, as notícias selecionadas foram


classificadas apenas por tema, região e ano. A segunda fase de organização do
Banco de Dados da Imprensa teve início com a organização de casos, ou seja,
reunião num mesmo dossiê de todas as notícias que tratam de uma única
ocorrência, independente do número de agentes envolvidos e de suas
características. Esse trabalho de organização do material demandou grande
esforço dos pesquisadores, uma vez que uma violação pode aparecer na
imprensa em diferentes períodos (dias, meses ou anos), seja porque há um
acompanhamento do caso na esfera judicial, seja porque seus agentes aparecem
envolvidos em mais de uma violação. Mesmo que não acrescentem novas
informações sobre a ocorrência, cada notícia deve ser anexada ao dossiê e
contabilizada pois este procedimento permite avaliar a repercussão que
determinadas violações alcançam na sociedade. Além disso, o tratamento das
notícias como casos permite que não haja duplicação das informações
registradas.

A etapa seguinte consistiu no tratamento dos dados que permitem traçar o


perfil das violações, segundo os casos, os agentes envolvidos, as entidades de
defesa dos direitos humanos e os agentes envolvidos na contenção da
criminalidade bem assim o perfil da imprensa que veicula as notícias. A
metodologia para o tratamento dos casos teve como base as análises realizadas
no projeto “Continuidade Autoritária e Construção da Democracia”. Esse
conhecimento prévio a respeito do material que seria trabalhado permitiu à
equipe definir com maior clareza quais as variáveis que deveriam ser
privilegiadas e quais as categorias mais indicadas na análise dos casos.

O tratamento das notícias se divide em 5 partes:


• Caracterização do caso: contém informações que permitam localizar e
identificar um caso de violação de direitos humanos noticiado pela
imprensa. Formam essa caracterização as informações a respeito do
tipo de violação, a data da ocorrência, o local da ocorrência (cidade,
região, Estado e local onde o crime ocorreu, por exemplo, rua, matagal,
etc.), tipo de delito, motivo desencadeador da violação, complemento
informativo sobre o tipo de violação;
• Caracterização dos agentes: contém informações que permitam traçar
um perfil das pessoas que se envolveram nas violações, seja como
vítima ou como agressor. Os agentes são classificados como vítimas
ou como agressores e segundo o sexo, idade, cor e grau de
escolaridade; profissão e ocupação; antecedentes criminais;
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 123

qualificação; maioridade ou menoridade do agente e situação dos


agentes menores de idade (se estavam em grupo ou sozinhos, etc.);
• Caracterização das manifestações públicas: contém informações que
permitam identificar se houve algum tipo de manifestação da
comunidade ou da sociedade civil organizada, seja a favor ou contra a
violação. Registram-se as informações sobre o tipo de manifestação e
quem (pessoas ou entidades) se manifestou;
• Caracterização dos desdobramentos do caso nas esferas policial e
judicial: contém informações veiculadas a respeito da atuação da
polícia e da justiça na apuração das responsabilidades e punição dos
agressores. Registra-se a fase em que houve providência (policial,
judicial, etc.) e o tipo de providência adotada (registro de ocorrência,
denúncia pelo Ministério Público, julgamento, etc.). Há também um
campo para complemento das informações, no qual são registradas
informações não quantificáveis, como por exemplo, o quantum da pena
ou o Distrito Policial responsável pelas investigações;
• Caracterização da notícia: esse bloco destina-se ao registro das
informações que permitam caracterizar a imprensa como fonte de
dados. São registrados os nomes dos jornais que publicaram notícias a
respeito daquele caso; o número de notícias publicadas, a data da
primeira notícia publicada e um resumo do caso.

Informatização de Dados
O projeto inicial do banco de dados previa que sua informatização deveria
permitir não apenas armazenar e recuperar dados, mas também realizar
cruzamentos e confeccionar tabelas que possibilitassem uma análise do
comportamento da imprensa em relação à violação dos direitos humanos. Por se
tratar de uma fonte de dados com características próprias123, foram necessárias
várias discussões visando conceituar a natureza e perfil do banco.
O banco de dados foi criado a partir do programa Access 2.0, for Windows,
tendo como ponto de partida o formulário desenvolvido para o registro dos dados.
O resultado foi um banco de dados inter-relacional que tem como unidade
referencial os casos retirados da imprensa, ou seja, para cada bloco de

123
Por um lado, deve-se considerar a deficiência de informações sobre algumas variáveis, por
exemplo, quanto ao perfil dos agentes. Por outro lado, deve-se também considerar que uma
informação pode ser atualizada rapidamente e que um mesmo caso pode aparecer na imprensa
durante meses, requerendo que seja recuperado a atualizado.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 124

caracterizações definidos no formulário, foi criada uma tela de entrada dos dados.
Todas as telas estão interligadas pelo número do caso.

Cada tema constitui um banco de dados que se encontra relacionado aos


outros, permitindo a recuperação dos dados e seus cruzamentos apenas para
uma violação, bem como comparando-se as informações entre as violações.

A agilidade na obtenção desses cruzamentos e sua plasticidade são duas


características que devem ser ressaltadas.

Para inserir os dados e efetuar as consultas nos dados toda a equipe de


pesquisadores recebeu treinamento especializado, inclusive quanto à construção
de tabelas, gráficos e figuras e à preparação de relatórios.

Estágio Atual da pesquisa


Entre novembro de 1996 e novembro de 1997 o Banco de Dados contou
com o financiamento da Secretaria Nacional de Direitos Humanos do Ministério
da Justiça que, através do Projeto Cidadania e Direitos Humanos – BRA96/013,
possibilitou a contratação de pesquisadores para a atualização do acervo de
notícias e informatização do material de Violência Policial, Linchamentos ,
Execuções Sumárias e Violência Rural para os anos de 1990-1996. O resultado
deste trabalho está apresentado sob a forma dos relatórios de pesquisa e artigos
(no prelo). Nos relatórios foram apresentadas análises comparativas entre os
dados dos anos 80 (analisados na pesquisa Continuidade Autoritária e
Construção da Democracia) e dos anos 1990-96.

A partir destes relatórios foi apresentado novo projeto à Secretaria


Nacional de Direitos Humanos para a informatização dos dados dos anos 1980-
89. Este projeto está em curso desde julho de 1998 e deverá ser concluído em
maio de 1999, com a apresentação de um relatório de atividades e da pesquisa.

As atividades do Banco de Dados dividem-se em: manutenção do acervo


de notícias com a leitura diária dos quatro jornais, seleção, recorte, classificação
e arquivamento das notícias; tratamento dos casos dos anos 80 para serem
informatizados; digitação dos dados, conferência e correções na base de dados.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 125

Figura 1
BANCO DE DADOS - VIOLAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS NO BRASIL
1980-1996

Objetivos Objetivos
1a. Fase características geo- (2a. Fase)
gráficas
Freqüência

Perfil dos protagonistas

Quantificação e caracterização características sócio-


de casos econômicas
Intervenção Judicial

Intervenção sociedade
civil organizada

Comparação Conjuntura política Seleção e reconstru-


internacional (1980/85/89) ção de casos

Seleção de casos para reconstrução

No período selecionado para observação (1980-1989), foram identificadas


aproximadamente 5000124 notícias de violação de direitos humanos, nas
modalidades consideradas, em todo o país. Este universo compreende, em
verdade, 3519 casos ocorridos no país em seu conjunto, noticiados pelas fontes
consultadas. Cada caso permitiu a constituição de um dossier, o qual contém
todas as notícias veiculadas em distintos períodos e por variados veículos de
imprensa. Esse trabalho permitiu verificar que a maior parte dos casos, salvo os
de violência rural, concentra-se no eixo Rio-São Paulo, circunstância que não
traduz necessariamente a distribuição geográfica dos casos porém o maior
interesse da chamada imprensa nacional em noticiar fatos ocorridos nesse eixo,
como aliás se sublinhou anteriormente. Dado o grande volume de informações e
a opção do projeto por trabalhar com a reconstrução sociológica de casos -
opção que requer sofisticado processo de coleta de dados primários e
secundários bem como sofisticada abordagem analítica - a coordenação do
projeto decidiu, em um primeiro momento, restringir a observação dos casos de
violência policial, grupo de extermínio e violência contra a criança e a

124
Trata-se de uma estimativa realizada a partir dos casos de violência policial, violação que tem
o maior número de casos no período aqui tratado e a única para a qual havia o registro do
número de notícias por caso.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 126

adolescente àquele eixo. Para os casos de linchamento, foi possível continuar


trabalhando com todos os Estados, o que era particularmente importante uma
vez que o Estado da Bahia apresentava maior número de casos do que o Rio de
Janeiro. Já para violência rural, entendeu-se também ser mais adequado
trabalhar com todos os Estados, mas o período analisado restringiu-se aos anos
de 1987 a 1989, já que este era período melhor coberto pela Comissão Pastoral
da Terra, principal fonte de dados para essa violação.

Para que a reconstrução de casos fosse possível, impunha-se trabalhar


com aqueles que dispusessem de informações indicativas da instrução do
inquérito policial ou do processo penal, sem o que seria inviável a localização
dessa documentação. A ausência desta informação nas notícias veiculadas pela
imprensa observada não significa necessariamente que não tenham sido
instaurados procedimentos de investigação policial ou procedimentos penais. No
entanto, trabalhamos com a hipótese de que, quando essas informações existem,
elas traduzem o interesse da imprensa e, quiçá, da opinião pública no
desdobramento do caso de violação de direitos humanos. Portanto, a partir de
uma primeira definição de alcance geográfico, os critérios de seleção foram o da
repercussão do caso na imprensa, medido pela quantidade de notícias
veiculadas em distintos periódicos e pela permanência por certo período de
tempo no noticiário, e a identificação de feitos policiais e judiciais.

Seguiu-se leitura de todo o material disponível. Percebeu-se extrema falta


de uniformidade na existência ou não das informações necessárias à
identificação desses feitos. Disto resultou a necessidade de estabelecer-se um
sistema de “crivos”, classificando os casos de violação de direitos humanos,
ocorridos no Brasil, em três e sucessivas categorias: casos de repercussão,
casos interessantes e casos muito interessantes.

Os casos "de repercussão" compreendiam todos aqueles que preenchiam


o primeiro requisito acima indicado, isto é, maior presença ou exposição à mídia.
Resultaram em 1208 casos. Em seguida, aplicou-se um segundo crivo. Ele
compreendeu casos que trouxessem alguma informação sobre intervenção
policial ou judicial e a identificação de algum dos agressores, uma vez que
somente com esta identificação seria possível localizar o correspondente
inquérito policial ou processo judicial. Compreendem os casos “interessantes”.
Totalizaram 818 unidades.

Finalmente, entre estes, foi preciso ainda recorrer a um terceiro crivo.


Consideraram-se aqueles casos que, além de preencherem os requisitos
anteriormente mencionados, dispunham de informações a propósito da
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 127

intervenção da sociedade civil organizada, através dos movimentos de defesa


dos direitos humanos, ou da intervenção de populares, não raro aprovando a
violência contra suspeitos de haverem cometido crimes. Compreendem os casos
“muito interessantes” porque contêm todos os elementos indispensáveis à sua
reconstrução: presença da opinião pública por intermédio da mídia; intervenção
do poder público por meio das agências policiais, judiciais e judiciárias; e
participação da sociedade civil, organizada e não-organizada, seja em virtude da
identificação das comunidades onde os casos ocorreram seja em virtude da
intervenção dos movimentos sociais. Desse modo, tornou-se possível “fechar” o
circuito da observação e reconstrução empíricas, como outrossim “fechar” o
circuito analítico constituído pelo tripé sociedade/Estado/cultura política.

O resultado desse trabalho possibilitou a identificação de 162 casos,


compreendendo aqueles de violência policial, grupo de extermínio e violência
contra crianças e adolescentes ocorridos no eixo Rio - São Paulo, e casos de
linchamentos e violência rural ocorridos em todo o país. Ainda assim, a
coordenação entendeu excessivo e volumoso o número de casos para
reconstrução sociológica face à disponibilidade de recursos humanos e do tempo
destinado à conclusão do projeto, inclinando-se a uma nova decisão: a de
centralizar-se a observação nos casos no Estado de São Paulo, a par dos casos
de violência rural espalhados pelo país. Finalmente, chegou-se a identificar 64
casos "muito interessantes", ocorridos no Estado de São Paulo e 14 de violência
rural, com estas mesmas características, em todos os Estados da federação125.
Por fim, foi possível a recuperação da documentação judicial para 35 desses
casos. São estes que constituem o universo empírico para reconstrução
sociológica de casos, objetos do projeto temático e integrado de equipe.

125
Cf. Listagens contidas no relatório anterior.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 128

Figura 2
Seleção de Casos de Violação de Direitos Humanos para Reconstrução
Brasil
1980-1989

5000 notícias

3519 casos

1208 casos
repercussão

818 casos
interessantes

162 casos
muitos
interessantes
35 casos para os quais
houve recuperação de
64 casos em documentação oficial
São Paulo

Fonte: Banco de Dados da Imprensa do Núcleo de Estudos da Violência.

Quadro 1
Distribuição dos casos segundo o tipo de violação
Brasil, 1980-1989

Totais Repercuss Interessant Muito Selecionad Recuperad


Violações dos ão es Interessant os os
casos es
Violência Policial 2184 611 346 23 16 7
Grupos Extermínio 463 186 151 73 13 7
Linchamento 370 101 70 29 14 8
Violência c. 325 141 82 23 16 6
Criança
Violência Rural 177 169 169 14 14 7
Total 3519 1208 818 162 73 35
Fonte: Banco de Dados da Imprensa do Núcleo de Estudos da Violência.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 129

Quadro 2
Distribuição dos casos segundo o tipo de violação
São Paulo, 1980-1989

Totais Repercuss Interessant Muito Selecionad Recuperad


Violações dos ão es interessant os os
casos es
Violência Policial 1683 537 292 16 16 7
Grupo Extermínio 184 77 62 30 13 7
Linchamento 188 42 29 9 14 8
Violência 234 70 48 9 16 6
c.Criança
Total 2289 726 431 64 59 28
Fonte: Banco de Dados da Imprensa do Núcleo de Estudos da Violência.

A reconstrução de casos selecionados de violação de direitos


humanos: uma perspectiva oficial
Entende-se por reconstrução oficial a versão dos fatos e acontecimentos
sob a ótica das agências encarregadas de conter a violência dentro dos marcos
da legalidade, isto é, das agências que compõem o sistema de justiça criminal
(agências policiais, Ministério Público e tribunais de Justiça Penal). Nesta etapa,
a fonte de informação consiste de processos instaurados para apuração de
responsabilidade penal, tanto nas instâncias estaduais quanto federais (neste
caso, em particular nas ocorrências de violência rural).

Para tanto, foram cumpridas as seguintes atividades:

• localização dos respectivos inquéritos policiais e conseqüente identificação


dos processos penais (número, instância de trâmite processual,
arquivamento etc.);

• reprodução das peças que compõem os autos, organização e classificação


do material documental em pastas e arquivos para manuseio;

• preparação de manual de instrução para leitura e coleta de dados dos


processos penais, o que demandou estudos especiais, entre os quais
consulta a manuais técnicos da área de direito penal, bem como recurso à
consultoria especializada. O manual teve em vista padronizar o tratamento a
ser conferido à fonte, face sobretudo às suas particularidades;

• treinamento dos pesquisadores para o trabalho de coleta de dados;

• construção de formulários para registro de informações, que permitissem:


a) identificar e caracterizar o perfil dos fatos; o perfil dos agressores, das
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 130

vítimas, das testemunhas e dos agentes do direito; o desfecho processual; b)


acompanhar e verificar o cumprimento das formalidades legais e, nessa
medida, o desempenho do sistema de justiça criminal diante dos casos de
violação de direitos humanos selecionados; c) reconstruir a versão oficial dos
casos, tendo em vista o encaminhamento dos processos penais para um
desfecho determinado (arquivamento, extinção de punibilidade, impronúncia,
absolvição, condenação etc.).

• realização de entrevistas com agentes do sistema de justiça criminal


(delegados, promotores públicos, magistrados) com vistas à construção dos
instrumentos de análise que possibilitem comparar os requisitos legais, tais
como inscritos na legislação penal, com as efetivas práticas judiciais;

Confecção de resumo dos casos observados

Após as sucessivas leituras dos processos penais - para a apreensão dos


dados que descreviam objetivamente os casos e seus agentes e para a avaliação
dos procedimentos da justiça quanto aos tempos consumidos em cada uma de
suas fases - foi possível delinear um roteiro básico para a leitura e análise
qualitativas desta fonte documental assim como dos dados dela extraídos.

Esta abordagem foi planejada para permitir a qualificação dos casos em


seus múltiplos aspectos, nas linhas básicas que norteiam a pesquisa -
relacionamento da população com as instituições mediadoras de conflitos,
atuação das organizações não governamentais, impacto da repercussão do caso
na mídia no andamento do processo, visões compartilhadas de justiça e de
direitos, comportamentos e atitudes discriminatórios e autoritários. Assim, a partir
da leitura detida e acurada de um processo instaurado para apurar
responsabilidade penal nos casos de violação de direitos humanos observados -
linchamento, grupo de extermínio, violência policial e violência rural -
esquematizou-se um "resumo qualitativo" com os recortes básicos que
subsidiaram a análise.

Estes recortes referem-se:

(1) às varias versões para os fatos apresentadas pelas instâncias


mediadoras, pelos envolvidos, pelas testemunhas e por eventual noticiário
anexado. Neste aspecto, percebeu-se que, para alguns casos, sobretudo os de
violência rural, foi necessário construir um histórico do conflito, uma vez que os
assassinatos descritos nos processos são sempre o desfecho (não
necessariamente final) de conflitos de terra ou de trabalho que remontam há
anos;
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 131

(2) à qualificação, segundo as descrições dos agentes envolvidos e das


perícias realizadas, do bairro, da cidade ou da área em que ocorre o crime. Esta
qualificação tinha em vista possibilitar a apreensão da situação sócio-econômica
da região e o modo como diferentes agentes sociais a vivenciam;

(3) à caracterização social dos agentes - vítimas, agressores e


testemunhas: sexo, cor, idade, naturalidade, organização familiar, profissão,
ocupação, grau de escolaridade, tipo de moradia, antecedentes criminais. O
objetivo aqui foi tentar apreender os setores sociais mais envolvidos com as
ocorrências observadas e o modo como se dá esse envolvimento: se há uma
clara diferença de posição no processo - réu, vítima ou testemunha relacionada
com o estrato social a que pertence o agente. Buscou-se também apreender as
relações de parentesco, de amizade, profissionais, de vizinhança, de mero
conhecimento etc. que envolvem réus, vítimas e testemunhas de sorte a elaborar
uma espécie de sociografia dos laços e dos conflitos sociais;

(4) à caracterização social dos outros personagens envolvidos. A análise


dos processos mostrou que é muito freqüente a menção, presente nos
depoimentos, a outras pessoas envolvidas no conflito, que não são arroladas
como testemunhas sequer como réus. Sobre estas pessoas também foi possível
arrolar dados sócio-econômicos, bem como a sua organização familiar e o
relacionamento com os demais personagens. Esta listagem permitiu, de um lado,
uma melhor compreensão do caso; de outro, a avaliação da eficácia de uma das
mais importantes tarefas da investigação policial, qual seja a de arrolar
testemunhas e indiciar suspeitos;

(5) à cotidianização da violência, especificamente à facilidade com que se


tem acesso a vários tipos de armas como igualmente à recorrência de casos de
violência vividos ou presenciados pelos agentes sociais implicados em
ocorrências desta espécie. Pretendeu-se apreender o crime observado não como
um fato isolado e extemporâneo, mas sim articulado em um cotidiano de
constantes violações aos direitos;

(6) ao modo como os agentes, as instâncias mediadoras e a imprensa


qualificam os envolvidos e também à construção social do(s) "culpado(s)". A
atenção voltou-se aqui para as visões de "bem" e "mal" que perpassam as falas,
denotando mundos com princípios morais próprios que podem transformar a
vítima no culpado de sua própria morte, uma vez que se trata sempre de crimes
cometidos ou por pessoas integradas às comunidades onde as ocorrências
observadas tiveram lugar, ou pelos que se arvoram dela defensores - justiceiros,
grupos de extermínio, policiais, agentes do Estado - contra prováveis agressores
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 132

da ordem social e moral tida como legítima e imperativa. Recolheram-se os


argumentos empregados para a justificação do crime - tanto por parte dos réus e
testemunhas, quanto pelos delegados, promotores, advogados e juizes - que
apelam ora para a esfera privada, ora para a esfera pública, ou mesmo para a
natureza ou a vontade divina, ressaltando os mecanismos acionados para a
superação de seus conflitos;

(7) às referências discriminatórias que podem aparecer nas falas dos


agentes, nos pareceres técnicos dos mediadores e no eventual noticiário de
imprensa anexado. Cogitou-se aqui de identificar as articulações existentes entre
distinções de raça, gênero, idade, religião ou origem social - freqüentemente
invocadas como forma de qualificação ou desqualificação dos protagonistas
destes acontecimentos - e comportamentos considerados desviantes. Deste
modo, pretendeu-se, na seqüência, examinar em que medida o recurso a tais
distinções concorrem ou contribuem para perturbar o curso das investigações e
do processo penal assim como influenciam o desfecho processual;

(8) à repercussão do caso na mídia. Todos os processos analisados


tiveram boa repercussão na imprensa à época dos fatos, uma vez que este foi
um dos critérios para a escolha dos casos. Essas notícias, que permitiram a
identificação dos casos e a localização dos processos, não serão ainda objeto de
análise, com exceção daquelas anexadas ao próprio processo, que são
manipuladas por uma das partes (ou pelas duas) para a reconstrução de uma
certa versão dos fatos. Procurou-se, em primeiro lugar, verificar o quanto a
repercussão do caso na mídia influi no desenrolar do processo e o modo como
isso se dá. A transcrição de trechos de depoimentos ou de documentos que
mencionam estas notícias ilustra um pouco os resultados desta análise. Em
segundo lugar, anotaram-se as menções a programas de rádio ou televisão que
também repercurtiram o caso, para que, posteriormente, se pudesse localizá-los
e analisá-los;

(9) ao relacionamento dos envolvidos com as instâncias mediadoras


estatais (polícia e aparato judiciário) e civis (partidos políticos, organizações não
governamentais, sindicatos, associações, Igreja). O objetivo foi analisar o
relacionamento e a visão dos envolvidos com os aparelhos de controle social e
com as organizações da sociedade civil, mencionando apelos e pressões
anteriores desencadeados pela população com vistas a motivar maior empenho
dessas instituições na repressão aos crimes ou na proteção dos direitos dos
cidadãos que habitam regiões onde os conflitos observados ocorreram.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 133

Igualmente foi possível apreender a visão dos próprios agentes destas


instâncias sobre sua corporação e sobre a relação desta com a população,
especialmente nos casos de violência policial, nos quais esta questão fica mais
premente;

(10) ao desfecho do caso. Finalmente, procura-se avaliar o desempenho


da polícia e da justiça em relação ao desfecho - condenação ou absolvição. Essa
avaliação se faz de modo geral, ressaltando-se as pistas que não foram
seguidas, os depoimentos que traziam novos dados mas foram relegados pelas
partes, as testemunhas que não foram arroladas, os suspeitos que não foram
indiciados, as contradições nos pareceres e nas sentenças, os documentos não
solicitados, os viéses dos mediadores. Articula-se esta avaliação com uma
análise geral do caso, do modo como foi vivenciado na comunidade e de sua
repercussão na mídia.

Ao contrário das outras possíveis leituras dos processos, os requisitos


para a análise qualitativa recomendaram não selecionar documentos para a
extração de dados específicos. Todos os documentos foram trabalhados na
medida em que traziam alguma das informações ou dos recortes que se estava
buscando, uma vez que esta análise cuidava de explorar não somente aqueles
dados considerados “objetivos”, como também aquelas construções subjetivas -
vale dizer, as representações sociais dos diferentes agentes - que concorrem
para um desfecho objetivo e objetivado dos acontecimentos.

A partir da definição final destes recortes e do modo como seriam


trabalhados os documentos, elaborou-se um manual para os resumos qualitativos
e iniciou-se o treinamento da equipe de pesquisadores. Desta forma, foi possível
estabelecer um padrão normativo, cuja estrutura compreende os seguintes itens:
data da ocorrência, resumo propriamente do caso, descrição do local, das
vítimas, dos indiciados, das testemunhas, das relações hierárquicas entre os
indiciados, dos contextos/cenários em que os casos se inserem, “física126” dos
acontecimentos e observações finais.

Realização de entrevistas com operadores do direito

Como afirmado anteriormente, a atuação do Estado na apuração das


violações - objeto desta etapa da pesquisa - constitui um dos recortes analíticos
propostos para responder algumas das indagações que a norteiam. Pretendeu-se
verificar em que medida o poder público, através de suas agências

126
Sobre o conceito de “física” dos acontecimentos, vide considerações metodológicas neste
capítulo.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 134

especializadas na contenção da violência, funciona como dissuasor ou como


elemento facilitador da reprodução das violações de direitos humanos; ou, ainda,
em que medida se pauta por uma ambigüidade, ora dissuadindo-as ora
reproduzindo-as.

Para alcançar esse objetivo a pesquisa apoiou-se na análise de processos


penais. Uma das dimensões desta análise diz respeito ao exame do cumprimento
das garantias constitucionais e processuais e de suas correspondentes
formalidades, como aquelas pertinentes à apresentação de testemunhos, ao
acompanhamento do caso por defensoria constituída, ao contraditório penal e ao
cumprimento de prazos legais e regulamentares. Desde logo, percebeu-se
profundo hiato entre as exigências legais contidas nos códigos e regulamentos
penais e as práticas institucionais dos agentes encarregados de aplicar leis e
implementar diretrizes pertinentes às políticas públicas de segurança e justiça.
Tudo indicava que, no interior deste hiato, era possível entrever o modo como
distintos operadores do direito se apropriavam dos códigos, interpretando-os
subjetivamente e disto extraindo critérios e categorias para orientação de suas
ações diante dos casos concretos. A realização de entrevistas com operadores
do direito - delegado, promotor público, juízes - impôs-se assim como requisito
para análise das formalidades legais.

Considerou-se, como ponto de partida, o modelo processual subjacente


aos casos de homicídio doloso, figura penal que domina a maior parte dos casos
de violação de direitos humanos observados nesta investigação – as exceções
são três casos de tortura envolvendo policiais civis. Com as entrevistas, cuidou-
se de reconstruir uma espécie de “tipo ideal” dessa modalidade processual com
base na leitura que os agentes judiciários fazem dos códigos e no modo como
julgam adequada a aplicação dos preceitos legais. Deste modo, cogitou-se
qualificar o hiato entre o ideal e a realidade, entre a realidade dos códigos e a
realidade das práticas sociais mediante identificação de uma primeira cesura
entre a justiça formal e a justiça virtual127.

A elaboração do roteiro e realização das entrevistas ocorreram em


simultâneo à atividade da análise do andamento dos processos penais, o que
possibilitou uma adaptação favorável das questões a serem incluídas no roteiro
em relação às indagações suscitadas pela leitura desta fonte documental. As
indagações que nortearam a elaboração dos roteiros das entrevistas realizadas
com operadores do direito correspondem aos objetivos a seguir descritos:

127
Uma análise um pouco mais detalhada desta cesura entre justiça formal e justiça virtual
encontra-se na Parte V deste relatório.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 135

• conhecer o cenário em que, sob o ponto de vista dos agentes, as práticas


judiciais se efetivam;

• identificar o elenco de dificuldades enfrentadas na implementação das leis


e nos procedimentos de apuração da responsabilidade penal, atentando em
especial para a associação que os agentes judiciais promovem entre estas
dificuldades e as condições de trabalho ou outras afetas ao cotidiano das
instituições observadas;

• identificar o contexto em que os casos de homicídio doloso são julgados


bem assim a cultura organizacional que sustenta a construção dos
processos penais observados;

• identificar critérios que permitissem inferir como os operadores do direito


prevêem, em circunstâncias determinadas, possíveis desfechos processuais
para os casos de violação de direitos humanos observados;

• conhecer a avaliação dos operadores do direito face ao cumprimento das


formalidades legais e ao andamento processual e, desta forma, verificar
como avaliam o funcionamento do aparelho penal;

Foram realizadas 18 entrevistas assim distribuídas: 9 delegados128 e 5


promotores e juízes, respectivamente.

Conforme o local de trabalho, os nove delegados entrevistados (nos oito


encontros) distribuem-se do seguinte modo: 5 trabalham em distritos policiais, 3
trabalham no Divisão de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) e 1 exerce
cargo de chefia junto à Secretaria de Segurança Pública. Excluiu-se da
transcrição duas entrevistas: uma realizada para teste do roteiro e outra com uma
delegada assistente. As entrevistas com delegados exigiram um total de 12
contatos telefônicos. Entre os argumentos para a desistência de alguns
entrevistados encontra-se a indisponibilidade de tempo, acúmulo de trabalho,
medo de se comprometer com as respostas ao roteiro ou, ainda, não resposta ao
contato efetuado.

Para a realização das 5 entrevistas com promotores foram efetuados 8


contatos incluindo o que foi realizado com um promotor de uma cidade do interior
que, por este motivo, não consta da amostra, apesar da sua disponibilidade.
Também não foi entrevistada uma promotora que atualmente não trabalha mais
com o tribunal de júri e se prontificou a indicar outros colegas. Por último, apenas
um dos promotores não respondeu a nenhuma das nossas tentativas de contato

128
Uma das entrevistas foi realizada com dois delegados simultaneamente apesar de ter sido
inicialmente marcada apenas com um.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 136

e, após verificarmos que não correspondia ao perfil desejado, foi excluído da


amostra. Das 5 entrevistas realizadas, dois dos sujeitos são do sexo feminino e
outro desempenha atualmente as funções de procurador da justiça. Pelo menos
dois dos entrevistados e a promotora cuja entrevista não foi realizada pertencem
à Associação dos Promotores para a Democracia.

Quanto aos juízes, os cinco contatos realizados resultaram em entrevistas


mesmo quando não realizadas com a pessoa inicialmente contatada, como foi o
caso de uma das juízas que indicou outra colega. A destacar que dois dos juízes
pertencem à Associação dos Magistrados para a Democracia.

As entrevistas foram realizadas mediante um roteiro de questões abertas,


a partir de um conjunto inicial de temas que deveriam ser explorados no
encontro. Não houve objeções a que se fizesse o registro sonoro; apenas um dos
entrevistados solicitou que o seu nome não constasse do registro final. A duração
média das entrevistas foi de sessenta a noventa minutos, aproximadamente.

Para a escolha dos agentes judiciários o critério mais importante foi o seu
local de trabalho pois restringimos a amostra à cidade de São Paulo, local onde
ocorreram cerca de 30% dos casos escolhidos para reconstrução. Por esta
delimitação, não foram abrangidas as regiões da Grande São Paulo (onde
ocorreram a maioria dos casos da pesquisa) e as do interior do estado. Com este
procedimento, procurou-se reduzir a possibilidade de envolver um agente que
tivesse trabalhado com qualquer um dos processos analisados e, uma vez
entrevistado nesta etapa, não pudesse ser abordado em momento posterior,
conforme previsto no projeto.

Para a escolha dos entrevistados, recorreu-se, inicialmente, aos contatos


do próprio NEV/USP, ou seja, os primeiros agentes judiciários contatados, são
pessoas que, em alguma ocasião se envolveram em atividades conjuntas com o
NEV/USP ou que, devido às suas atividades funcionais, mantêm um contato
permanente com o Núcleo. A seguir, apoiamo-nos na técnica conhecida como
“bola de neve”, através da qual um primeiro entrevistado indica o subseqüente ou
subseqüentes de sorte a ampliar o elenco de profissionais que poderiam estar
disponíveis para conceder entrevistas.

Por este método de seleção, verificamos que, no caso dos delegados, na


primeira indicação da pessoa conhecida do NEV, houve a preocupação de serem
pessoas que pudessem passar uma imagem positiva da profissão e da forma
como o trabalho é realizado. Verificamos, ainda, que se trata de delegados que
trabalham numa das unidades mais valorizadas da polícia. A partir do segundo
encontro, a indicação privilegiou os delegados que trabalham em distritos
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 137

policiais, com destaque para os colegas do próprio local de trabalho ou de outro


distrito policial.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 138

Figura 3
Reconstrução de Casos de Violação de Direitos Humanos
Estado de São Paulo e Brasil
1980-1989

TIPOS E FONTES RECONSTRUÇÃO DE CASOS

Tipos de Linchamentos Execuções sumárias Violência Violência


Violações Grupos de extermínio policial e rural
Justiceiros institucional

Fontes de Imprensa Polícia Ministério Poder Sociedade Sociedade


informação Público Judiciário civil civil
(cidadãos organizada
comuns) ONGs

Natureza Notícias Inquérito Inquérito Processo Entrevistas Dossiês


da fonte/ Dossiês Policial Policial Penal Relatórios
natureza Processo
do dado Penal

+ + +
Entrevistas Entrevistas Entrevistas

Técnica observatório, leitura, fichamento, resumo, aplicação leitura,


levantamento seleção, verificação de procedimentos, de roteiro fichamento,
classificação, contabilização de prazos previamente resumo
armazenamento, + testado,
quantificação aplicação de roteiro reconstrução
previamente testado de memória,
identificação de valo-
res e representações

Sujeitos delegado promotor juiz cidadãos


entrevistados público comuns e
autoridades
judiciais,
protagonistas
dos acontecimentos
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 139

Figura 4
Análise de Casos de Violação de Direitos Humanos no Brasil
São Paulo e Brasil
1980-1989

RECONSTRUÇÃO DE CASOS

Linchamentos Execuções sumárias Violência Violência


Grupos de extermínio policial e rural
Justiceiros institucional

QUESTÕES PROTAGONISTAS CARACTERIZAÇÃO DOS ATORES E DO CENÁRIO DAS VIOLAÇÕES

Quem tem os direi- Vítimas Perfil das sexo


tos violados? Vítimas raça/etnia
idade
ocupação
local de residência
local de ocorrência

Polícia Civil
Quem viola Agressores Perfil Estado Polícia Militar
direitos? dos Guarda Municipal
Agressores Polícia Federal
Forças Armadas

Indivíduos
Profissionais remunerados ou
Sociedade não (pistoleiros, justiceiros)

Amadores

Organizados
Grupos
Não-organizados

Qual a relação hie- Vítimas,


rárquica entre prota- agressores e Caracterização das relações de poder e hierarquia
gonistas? autoridades judiciais

Qual o contexto só- Vítimas, Indicadores econômicos (taxas de crescimento e


cio-econômico e po- agressores e Conjuntura emprego/desemprego)
lítico mais amplo? autoridades judiciais Indicadores sociais (escolarização, saúde, habita-
ção, ocorrências criminais)
Indicadores políticos (representação e participação
políticas, associativismo)
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 140

A reconstrução de casos selecionados de violação de direitos


humanos: uma perspectiva não-oficial
Entende-se por reconstrução não-oficial a versão dos fatos e
acontecimentos sob a ótica dos cidadãos que vivem em bairros populares,
localizados no município de São Paulo, em municípios que compõem a Região
Metropolitana de São Paulo e em alguns municípios do interior deste estado da
federação, onde ocorreram os casos selecionados de graves violações de
direitos humanos. Compreende cidadãos, socialmente hierarquizados segundo
clivagens de gênero, geração e etnia, que vivenciaram os fatos seja na condição,
de protagonistas ou espectadores, foram contemporâneos dos acontecimentos
ou deles ouviram falar. Daí porque a investigação apelou para a exploração da
memória coletiva, cuja reconstrução incluiu ainda a memória dos agentes oficiais
(operadores técnicos do direito) que atuaram naqueles casos, os quais, uma vez
identificados e localizados, se predispuseram a dar entrevistas. Trata-se, neste
caso, de uma memória não escrita, recomposta a partir de fragmentos de
representações sociais que simbolizam o modo como tais comunidades
populares lidam com o crime, a violência, os direitos humanos, a justiça pública e
seus representantes oficiais.

Para tanto, foram cumpridas as seguintes atividades:

• levantamento de informações documentais e estatísticas sobre os


municípios, bairros e localidades onde os casos selecionados ocorreram;

• realização de estudo-piloto para avaliar problemas a serem


enfrentados em campo;

• construção dos instrumentos de observação (roteiro de entrevistas a


ser aplicado em campo);

• realização de entrevistas com cidadãos selecionados;

• transcrição das entrevistas;

• análise de dados projetivos.

Atividades preparatórias à pesquisa nas comunidades populares


O levantamento de dados sobre infra-estrutura das comunidades tem o
objetivo de possibilitar um melhor reconhecimento dos locais onde ocorreram as
violações de direitos humanos observadas nesta pesquisa. Não se trata de
construir relações causais entre condições do ambiente social onde habitavam as
personagens dos processos estudados e a fatalidade da violência que afetou as
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 141

suas vidas. Pretendeu-se desenhar o cenário onde viviam as personagens, as


melhorias públicas que dispunham ou os eventuais percalços enfrentados em
função das carências a que se encontravam submetidos em suas condições
sociais de vida. O simples levantamento dos dados numéricos de infra-estrutura
não possibilitará a caracterização mais refinada das vidas e dos cenários dos
protagonistas destes acontecimentos. O melhor aproveitamento dos dados
ocorrerá principalmente quando for possível realizar o “cruzamento” dos
resultados do levantamento da infra-estrutura com as informações extraídas das
entrevistas que foram realizadas nas comunidades onde ocorreram os fatos
observados. Neste momento, apenas se cuidou de uma primeira aproximação
com o cenário social enfocado a partir de sua caracterização fundada em um
conjunto de variáveis sócio-econômicas.

O primeiro passo na coleta de dados foi levantar os endereços onde


ocorreram os eventos selecionados nesta pesquisa, o nome das ruas, o bairro e
as administrações regionais onde estão localizados. Um procedimento que
aparentemente suspeitava-se simples, logo suscitou dificuldades. Alguns
endereços foram muito difíceis de se localizar. O procedimento foi procurar a rua
no guia de endereços de São Paulo, o que possibilitou identificar os bairros e seu
correspondente enquadramento em regiões municipais administrativas bem como
localizá-los em mapas. Entretanto, algumas ruas não constam do guia. Por
exemplo, a viela 1, em frente ao número 31 da rua 10, em Parelheiros, ou a rua C
em Mauá, a rua Existente, em Embu. Em visita a este último município, foi
possível saber que uma rua com nome “existente” significa que a rua não tem
nome, pois naquele município há diversas localidades denominadas “existente”.
A solução foi procurar nos processos o maior número possível de informações a
respeito da localidade, a fim de levantar pontos de referência.

Em seguida, realizou-se levantamento dos números e natureza de crime


registrados nas regiões observadas. As ocorrências registradas em todos os
distritos policiais do Estado, em cada ano, estão publicadas no Anuário
Estatístico do Estado de São Paulo, publicação da Fundação SEADE. Através da
pesquisa nestes anuários, pôde-se caracterizar a distribuição dos crimes, nas
regiões recortadas pela pesquisa desde o ano de 1980 até 1993. Foi necessário
identificar a que distrito policial se referia os crimes que estamos observando. Isto
porque, se até 1984 havia 44 distritos policiais no município de São Paulo, no ano
de 1992 o número de distritos no município subiu para 103. Isto significa que um
crime ocorrido em 1983 podia estar sob a jurisdição de um distrito que,
posteriormente a esse ano, foi removido para outra jurisdição. Assim, as regiões
foram subdividas. Por exemplo, a antiga área do DP 44, Guaianazes, atualmente
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 142

está dividida em quatro distritos, Jardim Robru, Lajeado, Guaianazes e Cidade


Tiradentes. Neste levantamento, cuidou-se para que fossem registrados os
números da região correspondente à década de 80 assim como aquele novo
distrito que atualmente corresponde ao local do crime que se escolheu para
trabalhar. A identificação do atual distrito responsável pela área de nosso
interesse só foi possível através de contatos com os DPs, após ter-se tentado
obter da polícia civil um mapa que registrasse as fronteiras que delimitam as
áreas dos distritos, com as respectivas ruas, não se tendo logrado êxito nesta
empreitada.

Segundo a natureza, os crimes classificam-se em várias categorias,


conforme vem explicitado no Código Penal. No cotidiano, os crimes que maior
preocupação causam à opinião pública são aqueles contra a vida, contra o
patrimônio, contra os costumes e contra a incolumidade pública (nestas duas
últimas categorias estão incluídos o estupro e o tráfico de drogas,
respectivamente). A observação dos números de ocorrências, segundo a
natureza do crime, permite identificar qual o crime que mais afeta a população
local e a evolução nos diversos tipos de ocorrência durante a década. Em alguns
pontos da cidade, como a região Sé, por exemplo, que faz parte do universo
empírico da investigação, a incidência de crimes contra o patrimônio é mais
elevada do que os crimes contra vida. Em bairros da periferia da cidade, o
número de crimes contra o patrimônio também é bastante significativo, mas, ao
contrário da região Sé, os crimes contra a vida ocorrem proporcionalmente em
números muito mais elevados.

A inconveniência de trabalhar com dados obtidos a partir de ocorrências


em distritos policiais diz respeito à existência das chamadas “cifras negras”, isto
é, um número - no Brasil, desconhecido face à ausência de estudos de
vitimização129 - de crimes que não chegam a ser comunicado à autoridade
policial. Negociações entre as partes envolvidas, desinteresse da vítima,
sobretudo nos casos de violência sexual ou ocorrências de menor gravidade,
falhas nos registros oficiais, tudo concorre para turvar a fidedignidade das
informações e por conseguinte das estatísticas oficiais de criminalidade (cf.
Adorno, 1994). Entretanto, considerando que as ocorrências policiais são as

129
Não há, no Brasil, estudos de vitimização, tal como eles se desenvolveram nos Estados
Unidos, Canadá e em diferentes países europeus. O inquérito anual da PNAD para o ano de 1987
procurou levantar o perfil das vítimas de crimes bem como o acesso à Justiça. (Cf. IBGE-PNAD,
1988) A despeito da importância deste levantamento, não se pode rigorosamente classificá-lo
nesta categoria dado que empregou técnicas distintas das habituais nos estudos de vitimização.
Um primeiro estudo desta ordem encontra-se em curso no Instituto Superior de Estudos da
Religião - ISER (Rio de Janeiro).
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 143

únicas fontes presentemente disponíveis e mesmo levando em conta as


limitações indicadas, é de se supor que o perfil da criminalidade nas regiões
observadas não deva ser muito diferente daquele apresentado pelos números
oficiais. Importa ressaltar que todos os casos de homicídio são obrigatoriamente
registrados pela polícia, pois a informação da ocorrência de um homicídio não é
uma opção da vítima e de seus familiares, como ocorre com o furto, por exemplo.
Portanto, acredita-se que a violação do direito à vida abordada nesta
investigação esteja registrada em sua quase sua totalidade, não devendo haver
grandes variações no que concerne à sua distribuição regional130.

Após realizar o levantamento dos diversos tipos de ocorrências policiais,


segundo as regiões de interesse nesta pesquisa, foi possível constatar que os
dados de homicídio contidos nos anuários estavam agregados. Os números
registrados como homicídio englobam os casos consumados e as tentativas,
além de casos com autoria conhecida e desconhecida. O desmembramento
destas informações poderia fornecer novas variáveis para a compreensão do
perfil da violência. O desagregamento dos dados foi possível através da coleta
das ocorrências nos arquivos da própria Fundação SEADE, que autorizou consulta
à sua base de dados.

Outro procedimento adotado foi adquirir mapas das localidades onde


ocorreram os crimes, de forma a proporcionar maior conhecimento das regiões
observadas bem assim proporcionar melhor posicionamento para a equipe de
pesquisadores, na etapa subseqüente da investigação. Isto foi possível através
das cartas do sistema cartográfico metropolitano que são elaboradas pela
Companhia de Planejamento do Estado de São Paulo - EMPLASA. Deste modo,
tornou-se praticamente viável o acesso a todas as localidades selecionadas para
investigação in loco.

A maior dificuldade residiu na coleta dos dados de infra-estrutura, como o


número de redes de esgoto, ligações de luz, coleta de lixo, hospitais e leitos,
equipamentos de lazer, esporte, cultura e outros. Em um primeiro momento,
pensou-se possível resgatar a história destes dados durante a década para as
diversas regiões. Entretanto, a prática de levantamento, registro e trabalho com
os dados no país é muito recente, não havendo disponibilidade de séries
históricas divulgadas em publicações regulares.

130
Diga-se quase totalidade pois que, mesmo neste caso, há suspeitas de sub-notificação. Ver, a
respeito, as observações de Feiguin e Lima (1995) e Camargo, A.B.M.; Ortiz, L.P.; e Fonseca,
L.A.M. (1995).
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 144

A primeira iniciativa consistiu em levantar as possíveis fontes que


pudessem dispor dos dados de nosso interesse, entre as quais a EMPLASA, a
Fundação SEADE, a Secretaria Municipal de Planejamento de São Paulo (SEMPLA)
e os próprios municípios contemplados pela pesquisa.

Na SEMPLA constatou-se a inexistência de registro dos equipamentos da


Prefeitura ao longo das décadas. Não se pode saber quantos postos de saúde
havia no Capão Redondo em 1983, por exemplo. As únicas informações
disponíveis encontram-se nos Cadernos Regionais, onde constam os números de
todos os equipamentos municipais nas diversas administrações regionais do
município. Estes Cadernos possibilitaram o mapeamento, para os dias atuais, da
distribuição dos equipamentos. O principal aspecto positivo dos Cadernos é o
detalhamento dos dados. Assim, a regional do Campo Limpo, que é bastante
ampla, está subdividida em várias regiões, entre elas, Capão Redondo e Campo
Limpo. Para a investigação, isto é importante, porque se pode melhor mapear a
região específica de nosso interesse. Se os Cadernos registrassem os dados
apenas pelas regionais, sem as subdivisões, os dados seriam muito gerais, e os
equipamentos apresentados talvez estivessem localizados muito distantes de
onde ocorreu a violação observada. Entretanto, a publicação dos Cadernos
Regionais é recente, para cada regional há apenas um Caderno publicado; os
novos números ainda não foram divulgados. Os dados dos Cadernos referem-se
aos anos de 92 ou 93, dependendo da região.

Os Cadernos da SEMPLA apresentam informações apenas sobre o


município de São Paulo e somente equipamentos municipais. Portanto, dados
referentes às funções e atribuições pública de competência do governo estadual
não foram arrolados nos Cadernos. Os números sobre consumo de energia,
ligações de esgoto, hospitais, leitos etc. estão disponíveis no Sumário de Dados
da Grande São Paulo, da EMPLASA. Através dos Sumários pôde-se realizar o
levantamento destes índices para toda a década, observando a evolução dos
números. Registraram-se informações sobre população total, número de
matrículas no primeiro e segundo graus, ligações de água e esgoto, veículos
cadastrados, consumo de energia, número de nascidos vivos, óbito fetal, óbito
menor de um ano, hospitais e total de leitos. Estes dados se referem aos
municípios da Grande São Paulo e às administrações regionais da Capital. O
inconveniente do levantamento é que compreendem regiões amplas, não há
subdivisões como aquelas efetuadas pela SEMPLA, não se pode conhecer a
particularidade da localidade observada. Entretanto, esta é a única fonte
disponível. Foram coletados dados referentes ao ano de 1980 até 1992, as
últimas informações publicadas.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 145

Os municípios de Campinas e Campos do Jordão não são cobertos pela


EMPLASA, cuja área de atuação é apenas a Grande São Paulo. Há o Perfil
Municipal, da Fundação SEADE. O problema desta publicação é que os dados são
mais gerais do que os apresentados pela EMPLASA. Neste caso, somente seria
possível obter informações sobre todo o município de Campinas e não das quatro
regiões que compõem a cidade, o que dificulta sobremodo o cumprimento de
nossos objetivos.

Realizaram-se visitas aos municípios que compõem o universo da


pesquisa. O objetivo foi levantar o perfil dos equipamentos municipais, a exemplo
do trabalho realizado pela SEMPLA. Para isso, utilizaram-se inclusive as variáveis
apresentadas nos Cadernos Regionais, como equipamentos de saúde, pré-
escolas, equipamentos de cultura, esporte, lazer. Este trabalho permitiu obter
informações sobre os endereços onde ocorreram os fatos observados nesta
investigação. Os dados se referem apenas ao ano de 1995. Um
acompanhamento da evolução dos serviços e equipamentos seria impossível,
porque os próprios municípios não dispõem destes registros. As visitas
permitiram também estabelecer alguns contatos com membros das comunidades,
que poderiam ser acionados quando iniciadas as entrevistas com a população.

Entrevistas nas comunidades populares e com operadores técnicos do


direito que atuaram nos casos selecionados de violação de direitos
humanos
O trabalho de campo desta última fase da pesquisa “Continuidade
Autoritária e Construção da Democracia” constituiu-se em entrevistas com os
operadores do direito e com a comunidade onde os casos ocorreram. Delegados,
promotores de justiça e juízes que atuaram nos inquéritos policiais e/ou nos
processos dos casos selecionados para a reconstrução são os operadores do
direito, e todas aquelas pessoas que vivem e/ou trabalham nas localidades onde
ocorreram as violações foram considerados como comunidade.

Entre operadores de direito e comunidade foram realizadas 186


entrevistas, que foram gravadas e transcritas na íntegra. Todo esse material
encontra-se agora em fase de análise.
O principal objetivo das entrevistas com os operadores do Direito131
consistiu em resgatar a memória do caso, a partir de sua atuação no processo
criminal. Procurou-se entrevistar todos os operadores do direito que tiveram

131
Os operadores do direito serão sempre tratados no masculino, ainda que o entrevistado possa
ter sido um profissional do sexo feminino.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 146

alguma atuação relevante no processo criminal, desde a fase policial até à fase
judicial. Consideraram-se atuação relevante as seguintes situações: abertura de
inquérito ou relatório final - no caso dos delegados; pedido de arquivamento do
inquérito, oferecimento da denúncia, alegações finais e libelo-crime acusatório -
no caso dos promotores; recebimento da denúncia, sentença de pronúncia ou
impronúncia e sentença final - no caso dos juízes.
Dos 28 casos selecionados para a reconstrução deveriam ter sido
entrevistados 65 operadores do Direito, posto que alguns deles trabalharam em
mais de um processo. Foram entrevistados, ao todo, 46 agentes: 13 delegados,
18 promotores e 15 juízes. Entre as entrevistas não realizadas, os motivos
variaram desde a recusa em receber a equipe ao cancelamento no momento da
entrevista. Quatro operadores já se encontravam aposentados e não foram
localizados pela equipe, e para outros três não se obteve nenhuma informação.
As entrevistas com a comunidade tiveram por objetivo perceber aspectos
da cultura política de comunidades que vivenciaram violações de direitos
humanos, observando-se com maior ênfase a percepção de justiça e de polícia,
as relações entre violência e reprodução da estrutura de poder, a presença de
um processo de exclusão moral. O roteiro da entrevistas compreendeu: 1) uma
descrição do entrevistado sobre o bairro, seu dia-a-dia; 2) sua opinião sobre
temas envolvendo: situação do país, violência, atuação da polícia e da justiça e
dos governos em relação à violência, atuação de justiceiros, linchamentos,
direitos humanos; 3) conhecimentos do entrevistado sobre leis e sobre os órgãos
e agentes públicos de pacificação da sociedade; 4) constatar se os entrevistados
revelavam algum conhecimento do caso enfocado e; 5) em caso de resposta
positiva, obter a narrativa dos acontecimentos.
Foram realizadas, ao todo, 140 entrevistas. Entrevistaram-se 5 pessoas
para cada um dos 28 casos selecionados. Os entrevistados foram escolhidos
aleatoriamente, entre aqueles que moravam ou trabalhavam próximos do local
onde ocorrera a violação. O perfil dos entrevistados variou bastante,
compreendendo homens e mulheres; jovens e idosos; moradores da região;
trabalhadores.
As primeiras entrevistas foram realizadas no centro da cidade de São
Paulo, mais especificamente nos arredores da Rua Senador Paulo Egydio, na
Praça da Sé e na Liberdade, entre as estações de metrô Liberdade e Vergueiro.
Foram feitas, ainda, entrevistas em outras duas localidades: Lapa e São
Bernardo do Campo, consideradas regiões de fácil acesso.
Esta fase demorou dois meses para ser finalizada, devido aos inúmeros
obstáculos encontrados. Nestes primeiros contatos, a equipe se dirigia em duplas
até a localidade, e tentava entrevistar as pessoas que ali trabalhassem ou
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 147

morassem. Muitas vezes a equipe teve de retornar à localidade ou porque não


foi possível fazer todas as entrevistas ou porque o entrevistado não dispunha de
tempo para terminar a entrevista, dificultando o trabalho de campo.

Optou-se, então, por uma outra forma de abordagem: uma dupla de


pesquisadores ia à comunidade e marcava cinco entrevistas para um outro dia.
Assim, o entrevistado poderia se preparar para receber o pesquisador e este, por
sua vez, não teria de ficar preocupado em localizar um interlocutor. Esse método
foi mais eficaz, possibilitando que se realizassem entrevistas em duas
comunidades por semana. Nesta fase, que compreendeu 23 localidades, foram
necessários três meses para a realização de todas as entrevistas.

4. Considerações metodológicas
As considerações metodológicas que se seguem dizem respeito:

a) à perspectiva teórico-metodológica adotada;

b) aos diferentes problemas e questões enfrentados ao longo do processo


de investigação empírica. Neste domínio, envolvem problemas de três
ordens: conceituais; problemas relacionados ao acesso às fontes
documentais e de informação; e problemas técnicos relativos aos
procedimentos de coleta, armazenamento, classificação e análise de
dados empíricos. Ao lado destes problemas, enfrentaram-se “clássicos”
problemas relativos à carência de fontes subsidiárias, sobretudo dados
estatísticos, não raro indispensáveis quer para caracterizar cenários e
contextos sociais quer para possibilitar o estabelecimento de conexões
sociológicas entre os fenômenos observados e as estruturas macro-
sociais, em especial aquelas indicativas de relação entre as graves
violações de direitos humanos e o agravamento das desigualdades
sociais na Região Metropolitana de São Paulo, no período considerado.

A exposição que se segue identifica os principais problemas de ordem


metodológica enfrentados.

Perspectiva teórico-metodológica: o estudo de caso

Conforme afirmado anteriormente, o núcleo teórico que articula nossas


preocupações científicas diz respeito à persistência do autoritarismo no interior
da sociedade democrática, no caso a sociedade brasileira em sua etapa
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 148

contemporânea de realização. A sobrevivência do autoritarismo social em suas


múltiplas formas de manifestação – segregação, isolamento, preconceito,
carência de direitos, injustiças, opressão, permanentes agressões às liberdades
civis e públicas, em síntese violação de direitos humanos – indica que as forças
comprometidas com os avanços democráticos não lograram superar as forças
comprometidas com heranças conservadoras e autoritárias, não raro legadas do
passado colonial, escravista e patrimonialista.

A perspectiva teórico-metodológica escolhida exigiu uma abordagem que


respeitasse a complexidade das interações entre os diferentes fenômenos
observados. Trata-se de uma abordagem interdisciplinar voltada para estabelecer
redes de causalidade a partir de um tripé constituído pela sociedade, Estado e
cultura política. O plano de pesquisa consistiu em múltiplos estudos de caso com
o objetivo de clarificar a rede complexa de causalidade entre as violações de
direitos humanos e o Estado de direito. Este plano diferencia-se dos estudos de
caso (múltiplos) tradicional por não se referir a um mesmo evento, grupo,
comunidade ou atividade, mas a diferentes formas de violações de direitos
humanos que têm em comum o direito à vida e à integridade física.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 149

Figura 5
Análise de Casos de Violação de Direitos Humanos no Brasil
São Paulo e Brasil
1980-1989

RECONSTRUÇÃO DE CASOS

Linchamentos Execuções sumárias Violência Violência


Grupos de extermínio policial e rural
Justiceiros institucional

QUESTÕES PROTAGONISTAS CARACTERIZAÇÃO DO PROCESSO DE INTERVENÇÃO JUDICIAL E SOCIAL

O que fez o Polícia Estadual e Observância dos Inquérito Policial Polícia civil
Estado? Federal
procedimentos Denúncia Ministério Público
Ministério Público
Estadual e Federal legais Julgamento e Justiça civil
responsabilização
Poder Judiciário penal Justiça Militar
(Justiça civil estadual
e federal
Justiça Militar)

O que fez a socie- informantes Reações da comunidade identificação dos responsáveis


de? testemunhas avaliação da intervenção policial/judicial
Como reagiu a lideranças comunitárias avaliação do desfecho processual
sociedade? moradores

Crenças e valores ordem e estrutura hierárquica da


sociedade
atuação da polícia
intervenção judiciária
leis, direitos e deveres

Identidade do grupo vulne- percepções de relações entre


rável aos acontecimentos grupos
percepções de relações no in-
terior do grupo

O que fez a socieda- ONGs


de organizada?
Como reagiu a so- Movimentos de defe-
ciedade organizada? as de DHs Caracterização da agência

Organizações profis-
sionais

Associações espon- Estratégias de ação/formas de intervenção


tâneas

O que disse a Imprensa Caracterização do perfil político-ideológico


imprensa? nacional
Caracterização da veiculação (localização da notícia, espaço alo-
cado, persistência da cobertura, existência de editoriais)

Caracterização da linguagem

Caracterização do perfil do caso


Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 150

O levantamento de dados na imprensa: problemas conceituais


O projeto inicial previu a utilização da imprensa para identificação dos
casos com potencial de impacto junto à sociedade. Partiu-se do pressuposto que
os casos que atraíram a atenção dos jornais e que apareceram repetidas vezes
nas páginas de diferentes publicações são casos que expressam maior
preocupação dos cidadãos, em especial porque envolvem a ação de instituições
como a polícia e a justiça, consideradas instrumentos fundamentais de
preservação da ordem pública. Supõe-se, por conseguinte, que estes casos
manifestariam maior potencial de ressocialização em relação à eficiência que se
espera destas instituições.

A fonte imprensa foi privilegiada porque, a despeito das dificuldades no


acesso ao material (descritas no relatório anterior), ainda é a fonte mais acessível
para esta identificação132. Mesmo se levarmos em conta o baixo índice de leitores
de jornais, a imprensa é um dos meios de comunicação de maior credibilidade
pública, razão por que, com freqüência, é utilizada como fonte primária por outros
meios, tais como o rádio e a televisão. Casos que repercutiram na imprensa têm
maior probabilidade de terem sido abordados por outros meios de comunicação
que atingem uma parcela maior da sociedade.

Além do mais, a imprensa pode ser considerada uma das fontes para a
reconstrução dos casos selecionados visto ser um dos elementos chaves na
circulação e difusão de representações sociais. Por tudo isso, entende-se que a
imprensa é fonte indispensável para contextualizar e aprofundar a compreensão
das reações das comunidades que vivenciaram ou testemunharam casos de
violações de direitos humanos. Nesta análise da imprensa, privilegiou-se a
observação dos seguintes tópicos: (a) características da linguagem, em particular
o tipo de relato (descrições, análises, críticas, editoriais); (b) expressões
utilizadas; (c) equilíbrio no uso de fontes de informação (polícia, promotoria,
justiça, testemunhas, familiares, entidades de defesa dos direitos humanos, etc.);
(d) o acompanhamento dos casos, entre outros aspectos. A propósito, previu-se
análise mais detalhada da imprensa na parte final da pesquisa.

132
A consulta às fontes oficiais - ou seja, a registros policiais e judiciais - não permite distinguir,
entre os casos de homicídios dolosos, aqueles que compreendem o universo empírico de
investigação. Devido à forma como esses registros se encontram organizados, seria necessário
levantar todos os registros oficiais relativos a essas ocorrências para identificar mortes
provocadas pela violência policial, pelos linchamentos, pelos grupos de extermínio e pelos litígios
rurais. Ademais, sabe-se que mesmo esses registros oficiais (policiais e judiciais) oferecem não
poucos problemas relacionados à sub-notificação. Veja-se, a propósito, os esclarecedores
estudos de Feiguin e Lima (1995) e de Camargo, Ortiz e Fonseca (1995).
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 151

A análise do material da imprensa revelou uma série de dados importantes


para os objetivos da pesquisa. Uma primeira constatação é que a imprensa dita
nacional - O Globo, Jornal do Brasil, Folha de S.Paulo e O Estado de S.Paulo -
se concentra em noticiar os eventos que ocorrem no eixo Rio-São Paulo. Mesmo
neste eixo são determinadas ocorrências que merecem maior atenção. A
imprensa dita popular, ao menos em São Paulo, é menos seletiva em termos dos
eventos e portanto noticia um número muito superior de casos de violação. A
cobertura de eventos em outros Estados fora do eixo Rio-São Paulo ocorre para
casos excepcionais ou quando há casos que se repetem com freqüência como,
por exemplo, quando se detectam ondas de linchamentos em determinadas
cidades ou regiões do país. Os dados revelam uma flutuação do interesse desta
imprensa por eventos em outros Estados. Esta observação poder ser
exemplificada pelo tratamento dispensado aos casos de linchamentos ocorridos
no Estado da Bahia. Periodicamente os jornais tratam de "onda de linchamentos
na Bahia" quando aparentemente estes linchamentos nunca chegam a
desaparecer.

Outra constatação da pesquisa é que as graves violações do direito à vida


não desaparecem das páginas dos jornais ao longo da década a despeito da
formação de Comissões de Inquérito, das sindicâncias instauradas para
apuração dos fatos, das investigações policiais, das denúncias expressas nos
noticiários (por famílias, por amigos e colegas das vítimas, além da própria
imprensa) e das ações das ONGs reportadas anteriormente. Aparentemente, o
máximo que as Comissões conseguem é que o padrão de atuação dos
violadores mude mas não que cessem suas atividades (cf. Relatório anterior).
Desde a década de 70, a imprensa registra denúncias e demandas visando coibir
estas violações (sobretudo os casos de violência contra crianças e adolescentes
e da ação de grupos de extermínio). A reconstrução dos casos exemplares
permite, portanto, aprofundar o papel da impunidade na contínua reprodução das
violações.

Observamos também dificuldades em identificar casos de violação "puros",


isto é, que seguissem estritamente os recortes que privilegiamos. Não raro, a
violência policial se confunde com a ação de grupos de extermínio e com
linchamentos; grupos de extermínio atuam como linchadores; crianças e
adolescentes são linchados, são mortos por grupos de extermínio e sofrem
violência policial, ou seja os tipos de violação cometidos pela sociedade se
confundem e se mesclam. O importante a realçar é a dificuldade em isolar
claramente os tipos de caso, sobretudo quando, em determinados contextos, a
ação da polícia emula aquela dos grupos de extermínio.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 152

O perfil das violações que construímos a partir dos dados coletados da


imprensa é o mesmo detectado em outros estudos sobre: linchamentos
(Benevides,1981; Martins, 1989; Souza e Menandro, 1991); violência policial
(Pinheiro, 1991); grupos de extermínio (Fernandes, 1989; Bicudo, 1989); e
assassinatos de crianças e de adolescentes (Castro e col., 1992; Gregori e
Soares, 1994). O interessante é que alguns destes estudos não tiveram na
imprensa sua principal fonte de informações. Este é o caso do estudo de Pinheiro
que trabalhou com dados cuja fonte é a Polícia Militar. Isto sugere que, se a
imprensa não é fonte confiável em termos da quantificação dos fenômenos
observados, ela descreve de modo acurado o padrão destes eventos.

No tratamento dos casos de violação do direito à vida enfatizamos a busca


de explicações para os motivos que levam alguns casos a terem repercussão.
Dado que nos ocupamos de reconstruir apenas os casos com grande
repercussão era necessário detectar em que medida estes casos diferem dos
casos "não excepcionais" e deste modo ter algum controle do viés deste tipo de
seleção de casos. Esta análise confirmou que diferentes fatores explicam a
repercussão das diferentes violações.

Os linchamentos que mais repercutem são aqueles onde há uma


exacerbação do padrão do linchamento, cujos principais indicadores consistem
em: (a) envolvimento de maior número de pessoas; (b) intensificação no emprego
da violência; (c) determinação coletiva em linchar, mesmo diante de obstáculos
como a presença de policiais ou o fato do acusado encontrar-se encarcerado; (d)
existência de onda de linchamentos (quando o fenômeno ocorre repetidas vezes
em curto espaço de tempo); (e) , suspeitas quanto à possível ação de justiceiros;
(f) existência de “vítima errada”, isto é trabalhador que foi confundido com
delinqüente, apesar de não dispor de antecedentes criminais e de não ser
suspeito de delito.

Nos casos de grupos de extermínio e de violência policial a identificação


dos agressores é condição básica para a repercussão do evento. No Rio de
Janeiro, os casos de "vítima errada" são os que mais provocam denúncias da
comunidade e que, por conseguinte, têm repercussão. Outro fator que concorre
para conferir repercussão de determinado caso na opinião pública é a
manifestação da família. Se bem sucedida (isto é, se a pressão familiar logra
mobilizar o interesse e acelerar a intervenção da autoridade pública), pode até
transformar um caso no qual a vítima é "suspeita" ou até mesmo qualificada de
"marginal" em um caso de "vítima errada". Igualmente, têm repercussão casos de
violência policial que vitimam inocentes por "bala perdida" (estudantes,
transeuntes, profissionais, cidadãos acima de qualquer suspeita). É interessante
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 153

notar que os casos de violência policial que mais têm repercussão não envolvem
em grande número ações da ROTA apesar de ser este o grupamento policial que
mais aparece no noticiário sobre violência policial. Estes casos são paradoxais
porque, a despeito dos agressores serem conhecidos, não há contestação da
versão apresentada sobre a natureza da vítima.

Este primeiro tratamento dos dados resultou em avanço da pesquisa no


que concerne a: (a) refinamento da compreensão das violações e do papel dos
diferentes atores; (b) introdução da dimensão temporal - os anos 80; (c) seleção
criteriosa dos casos a serem reconstruídos; (d) refinamento das hipóteses que
orientam a pesquisa.

Para a continuidade da atividade do Banco de Dados, duas modificações


foram feitas em relação à pesquisa. A primeira refere-se ao tema Execuções
Sumárias. Os casos analisados pela pesquisa foram classificados como grupos
de extermínio quando envolviam justiceiros e outros agentes que a própria
imprensa definia como pertencendo a um grupo de extermínio. Esses grupos
agiam principalmente na periferia de São Paulo e em alguns municípios
limítrofes. Nos casos ocorridos no Rio de Janeiro o perfil desses grupos era
diferente, envolvendo em geral a ação de policiais atuando em conjunto com
traficantes e banqueiros do jogo do bicho.

A partir de 1990 observam-se algumas modificações nesse perfil, que


foram se acentuando ao longo do período. Surgem as chacinas, os pistoleiros -
que antes apareciam apenas em casos noticiados para o Norte e Nordeste -
passam a agir também no meio urbano, sob encomenda do tráfico de drogas e
do jogo do bicho. A imprensa não relata tantos casos de justiceiros e a
denominação grupo de extermínio praticamente caiu em desuso. Essas
mudanças na forma como a imprensa trata as violações foram acompanhadas,
por um lado, de uma mudança nos motivos que levaram aos crimes e, por outro
lado, de uma maior indefinição a respeito dos agentes envolvidos na prática dos
delitos. Todas essas mudanças levaram a uma necessidade de repensar o tema
e sua definição, correndo-se o risco de, se fosse mantida a definição adotada na
pesquisa, perder-se parte das notícias veiculadas pela imprensa devido à
impossibilidade de classificá-las. O tema foi redefinido como execuções
sumárias, sendo assim classificadas as notícias sobre grupos de extermínio
(envolvendo civis e policiais), os justiceiros, as chacinas; a atuação dos
pistoleiros; casos decorrentes do crime organizado, especialmente o tráfico de
drogas, o jogo do bicho e roubo de carga. Finalmente, foram também incluídos
sob esta rubrica aqueles casos sobre homicídios de autoria desconhecida. Por
ocasião do primeiro relatório de atividades do Banco de Dados, na análise dos
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 154

dados, percebeu-se que esta classificação estava sendo insatisfatória, posto que
ora ela se apoiava nos padrões de autoria - justiceiro, pistoleiros, grupos de
extermínio - ora se apoiava nos motivos - conflitos decorrentes do crime
organizado. Desta forma, para a continuidade do Banco de Dados, a definição do
tema Execuções Sumárias está passando por nova reformulação, com vistas à
superação de suas limitações metodológicas.
A segunda modificação referiu-se ao tema violência contra a criança e
adolescente. Na composição da base de dados para a pesquisa, privilegiou-se a
situação de menoridade da vítima, condição a partir da qual eram examinadas as
violações - violência policial, linchamentos e grupos de extermínio e outros
agentes do Estado - contra crianças e jovens. O objetivo dessa classificação era
identificar especificidades nas violações dos direitos humanos desses segmentos
da população, além de identificar diferenças no tratamento dispensado pela
imprensa a esses casos. Com esse procedimento, pretendeu-se facilitar o
tratamento e quantificação dos dados devido ao excessivo volume de notícias
reunidas.

Com a informatização do banco essa distinção tornou-se desnecessária,


uma vez que esse recurso permite a recuperação dos dados sob diferentes
recortes, seja pela violação em seu conjunto, seja através de recortes que
privilegiem o perfil da vítima ou de seu agressor.

Nos assassinatos de crianças e adolescentes, os casos de maior


repercussão são aqueles em que os agressores são policiais, ou quando
envolvem participação de grupos de extermínio (como freqüentemente se sucede
com os casos verificados no Rio de Janeiro), ou ainda quando as famílias
questionam a suspeita de que o jovem morto tivesse antecedentes criminais ou
se encontrasse em situação de confronto com a polícia. As mortes de meninas,
de crianças que se encontravam em grupos, que estavam confinadas em
instituições sob a tutela do Estado dispõem de grande capacidade para mobilizar
a atenção da imprensa.

Convém observar que uma resoluta e tenaz atuação da família de um


jovem assassinado não se traduz necessariamente em investigações policiais
visando à identificação e responsabilização penal de culpados. Na maior parte
dos casos observados, os principais alvos das denúncias apresentadas por
familiares das vítimas dizem respeito à violência cometida contra a "vítima
errada" e à atuação das instituições encarregadas de investigar e punir. Nestas
circunstâncias, não se costuma questionar a versão oficial ou oficiosa dos fatos e
sequer os meios e modos empregados de violência; o que se questiona é a
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 155

aplicação da violência policial à "vítima errada". Esta ausência de pressão pela


apuração e investigação repercute na quase total ausência de informações sobre
julgamentos e sentenciamentos nas notícias veiculadas na imprensa sobre
violação de direitos humanos. Por isso, muitos casos com repercussão na mídia
impressa não são “interessantes” para a pesquisa porque não houve identificação
dos agressores o que dificulta muito (quando não inviabiliza) a recuperação dos
processos na justiça.

A análise dos casos que obtêm repercussão revelou a normalização da


violência contra os "suspeitos" que não dispõem de quem os defenda, sejam
agentes profissionais ou movimentos e grupos organizados da sociedade civil. É
nestes casos igualmente que se observa ausência de contestação sobre a
natureza dos fatos que convergiram para a violação de direitos. A análise revela
ainda que os casos que ensejaram a instauração de processos penais e que
inclusive foram a julgamento deixam de ter interesse para a imprensa (que não
mais os noticia e sequer acompanha seu desenrolar na fase judicial). Isso é
particularmente o que se sucede com casos envolvendo grupos de extermínio.
Eles surpreendem justamente porque um percentual elevado de casos foi
julgado. Se a ação desses grupos não desaparece da imprensa, pouco se sabe a
respeito de seus desdobramentos posteriores, notadamente no que concerne à
intervenção das autoridades encarregadas de reprimi-los e contê-los dentro dos
marcos da legalidade democrática.
Além dessas modificações, o tema da violência rural também precisou ser
retrabalhado a partir da pesquisa. Conforme descrito no relatório anterior, devido
ao pequeno número de casos noticiados pela imprensa sobre questões
envolvendo violência no campo durante os anos 80, a equipe optou por trabalhar
com listagens produzidas pela Comissão Pastoral da Terra - CPT, que contêm
informações sobre casos ocorridos em todo o país para o período observado.
Para o banco de dados, a imprensa foi retomada como fonte primária de
informações, o que requereu a identificação de variáveis próprias a esses
fenômenos sociais, fundamento a partir do qual foi possível elaborar categorias
analíticas adequadas para o tratamento dos casos observados. Para essa fase
do trabalho, optou-se por trabalhar tão somente com aqueles casos passíveis de
identificação de vítimas e agressores, compreendendo crimes tais como
homicídios, lesões corporais, cárcere privado, maus tratos, trabalho escravo, etc.
Aqueles casos que envolveram conflito pela posse da terra e que não
preenchiam essas condições porque as informações não estavam disponíveis ou
eram insuficientes, foram excluídos do banco de dados. Devido às
especificidades deste tema, a equipe responsável pelo tema da violência rural,
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 156

em conjunto com os pesquisadores do banco de dados, introduziu modificações


na configuração deste banco, criando outro banco de dados paralelo, de sorte a
adequá-lo quer às especificidades dessa modalidade de violência quer aos
imperativos de recuperação rápida e funcional das informações.

O conceito de cultura política

Como é amplamente conhecido, o marco de referência para compreensão


deste conceito é o estudo realizado por Almond e Verba (1963), os quais definem
cultura política a partir da idéia de cultura cívica, estabelecendo clara identidade
entre participação e democracia. Esse conceito orientou um grande survey, em
diferentes países, através do qual se observou o comportamento de segmentos
populacionais diferenciados diante de problemas concretos determinados, cujas
reações possibilitaram aos pesquisadores construir tipologias e escalas de
atitudes, indicativas de maior ou menor participação cívica. Na conclusão dos
autores, a maior participação associava-se à cultura democrática; em
contrapartida, a menor participação vinculava-se à cultura autoritária. Logo se
seguiram estudos que buscavam empiricamente avaliar a pertinência das
conclusões de Almond e Verba, introduzindo outras variáveis explicativas como
nível de renda, nível de escolarização, nível de informação e formação política.
Seguiram-se, igualmente, estudos que buscavam retificar as conclusões daquele
estudo pioneiro, apontando-lhe suas inconsistências conceituais: em particular,
ao fato de que o conceito tinha sido forjado no interior da cultura anglo-saxã,
cujos parâmetros não se ajustavam a culturas políticas gestadas fora daquela
experiência. Assim, por exemplo, muitos dos valores indicativos de maior
participação pouco significado tinham, por exemplo, para as culturas políticas
vigentes em países de tradição latina, marcados por forte experiência católica.

Um segundo aspecto a merecer destaque diz respeito ao próprio estatuto


epistemológico do conceito. Cultura e política são termos que não podem ser
analisados separadamente. Por cultura política compreende-se um tipo de
experiência cultural que faz referência ao poder: às suas estruturas e instituições,
ao comportamento político, à capacidade decisória de distintos grupos quanto à
distribuição de recursos materiais, à participação em associações de diversa
natureza. Compreende manifestações simbólicas heterogêneas, expressas
através de valores, emoções, sentimentos, imagens coletivas, a respeito do
poder e dos poderosos. Por essa via, não se confunde com pensamento político
e sequer com cultura dos políticos profissionais. Está enraizada na sociedade e
não no Estado. Desta perspectiva resulta sua complexidade metodológica. Não
basta por conseguinte ajustar o conceito à realidade empírica, como o fazem
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 157

muitos estudos, porém promover a própria crítica do conceito para libertá-lo de


esquemas pré-concebidos. Daí também o imperativo de considerar a
heterogeneidade das representações coletivas sobre o poder e os poderosos
(isto é, a pluralidade complexa dos elementos que compõem a cultura política),
assim como considerar a intersecção entre micro e macro perspectivas teórico-
metodológicas.

Por fim, um terceiro aspecto, que se ressalta dos estudos examinados, é a


íntima relação entre cultura política e o sistema político. Na maior parte dos
estudos, não há como desvinculá-los. Em não poucos, a ausência de crenças e
valores democráticos aparece como sintoma inquestionável de autoritarismo
político. Gravitam em torno dessa ótica questões relativas às desigualdades
sociais e à carência de justiça social, bem assim problemas relacionados à
violação de direitos humanos.

Por conseguinte, é igualmente sob esta perspectiva - qual seja, a das


relações entre cultura e política - que se cuidou de reconstruir os casos de
violação de direitos humanos selecionados. Neste domínio, a análise de casos
incide sobre a fenomenologia dos litígios sociais e suas formas violentas de
resolução, tendo por eixos: por um lado, a identificação e explicação sociológica
dos distintos bloqueios e obstáculos que operam no interior do sistema de justiça
penal - sistema, em princípio, responsável pela pacificação da sociedade e pela
oferta de segurança pública aos cidadãos - e que contribuem para que os
distintos conflitos nas relações sociais e nas relações intersubjetivas escapem
aos mecanismos oficiais de sua resolução e permaneçam no domínio das
relações privadas, mediadas pelo emprego de força física.

Por outro lado, exploração do significado sociológico desses mecanismos


de mediação privada, quase sempre baseados no princípio da vingança pessoal,
extraídos do funcionamento de uma justiça penal rústica que não se atém aos
princípios da universalidade abstrata e impessoal da justiça penal moderna. É por
essa via que se pretende interconectar cultura e poder: cultura entendida como o
conjunto complexo de modelos de atualização do comportamento individual,
intersubjetivo e coletivo, referida assim tanto às formas de ação quanto ao
universo simbólico que as mediatiza; poder, aqui entendido como poder social,
conjunto de recursos apropriado por uns em detrimento de outros, capaz de
impor disciplina social e obter obediência à moralidade pública e privada vigentes
em dada sociedade em momento igualmente determinado de sua história. Sob
esta perspectiva, o âmbito da justiça penal é privilegiado campo de observação
empírica, uma vez que nele se cruzam moralidade pública e privada, força e
resistência, indisciplina e consenso, obediência e desobediência civis.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 158

Morfologia sociológica dos casos


Como se sabe, o termo morfologia social é tributário do legado
durkheimiano. N’As Regras do Método Sociológico (1895; ed. Bras 1975), o
sociólogo francês argumenta que “a origem primeira de todo processo social de
alguma importância deve ser buscada na constituição do meio social interno”
(1975, p. 98). Com essa proposição, pretendeu Durkheim sustentar que o
processo de explicação científica principia com a descrição minudente do
conjunto de elementos, de toda e qualquer natureza, que entra na composição de
uma sociedade determinada. No entanto, a explicação sociológica requer ainda
um nível maior de precisão, disto resultando o imperativo metodológico de se
levar em consideração o meio social externo, ou seja os elementos - coisas e
pessoas - além de todas as propriedades capazes de exercer algum tipo de
influência sobre o curso dos fenômenos sociais enfocados.

Fortemente inspirado pelas ciências naturais, Durkheim à sua época


identificava duas séries de propriedades como responsáveis pelo curso dos fatos
sociais: primeiro, o número de unidades sociais ou o volume da sociedade;
segundo, o grau de concentração da massa ou a intensidade dinâmica. Com o
primeiro termo, ele referia-se mais propriamente à densidade material do meio
social, o que compreendia o número de habitantes por unidade de superfície, o
desenvolvimento das vias de comunicação e de transmissão etc. Com o segundo
termo, ele referia-se à intensidade dos contatos e laços sociais que constituíam o
substrato da vida coletiva comum, o que lhe acenava para os fundamentos
morais da solidariedade social. Por conseguinte, no modelo durkheimiano,
morfologia social compreendia a descrição exaustiva das densidades materiais e
morais de um fenômeno social determinado, objeto de observação científica.

Nesta investigação, o termo morfologia é empregado no sentido da


descrição de todas as propriedades, condições, situações e contextos sociais que
concorrem para a produção dos casos de linchamento observados. Não se está,
com este procedimento, adotando a perspectiva durkheimiana em todas as suas
conseqüências, em particular no que concerne à sua leitura positivista da
realidade social. De fato, não se pretende sustentar a tese durkheimiana segundo
a qual, em última instância, fenômenos como os que estão sendo observado
nesta investigação resultam de uma crise de solidariedade social fundada em
uma espécie de déficit de moralidade ou de um descompasso entre o
desenvolvimento material e o desenvolvimento moral da sociedade. Se for
verdade que valores morais em transformação também concorrem para a
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 159

liberação de forças sociais que movimentam pessoas, grupos e associações na


busca de soluções alternativas para os problemas com que se defrontam ou
pensam se defrontar, é igualmente verdade que, no interior de um universo moral
em crise, seja possível identificar conflitos e litígios sociais, ora latentes ora
manifestos, cuja superação aponta, não raro, para desfechos violentos e fatais.
Sob esta ótica, o eixo da morfologia aqui referido é a idéia de litígio e não a
de crise moral. Por litígio está se compreendendo um tipo especial de conflito
social. Como se sabe, toda e qualquer forma de associação social - envolva
vínculos comunitários ou societários - supõe a existência de distintas formas de
conflitualidade social, seja em uma perspectiva macro ou microsocial, que
compreende disputas em torno dos mais variados objetos (materiais ou
simbólicos). Tais conflitos podem atravessar toda uma densa rede de relações
sociais ou estarem concentrados em regiões sociais determinadas. Podem
assumir a forma de conflitos de classe, étnicos, raciais, de gênero, geração ou
conflitos nas relações intersubjetivas (impulsionados pelos mais diversos móveis)
ou mesmo mesclarem-se entre si. Em geral, buscam superar-se, seja através da
supressão dos adversários ou através de modalidades de acordo, de negociação
ou de acomodação. O litígio é uma dessas modalidades que demandam
necessariamente o apelo a uma instância de mediação e de julgamento, qualquer
que seja, cujo resultado supõe a realização de um sentimento coletivo de
aplicação e de distribuição de justiça.

A análise desses casos revela a natureza dos litígios que via de regra
tendem a convergir para desfechos fatais. A análise enfatizou a caracterização
dos protagonistas, a caracterização dos contextos e cenários que estimulam tais
acontecimentos e a caracterização do encadeamento e do nexo de ações que
redundam nas modalidades observadas de resolução de litígios. Buscou-se
explorar a hipótese segundo a qual conflitos tais como os observados tendem a
explodir no contexto de agudas rupturas nas relações hierárquicas entre cidadãos
comuns e autoridades públicas, o que remete à crise do poder pessoal na
sociedade brasileira. Esta hipótese foi sustentada sobretudo pelo exame do
contexto e dos cenários que armam tais acontecimentos, constituídos às voltas
da criminalidade urbana violenta cuja emergência e extensão nos bairros
populares do município e da região metropolitana de São Paulo promoveram ao
longo da década de 1980 acentuados desarranjos no tecido social urbano
colocando em confronto tête-à-tête modalidades rústicas e plebéias de
distribuição de justiça e modalidades oficiais de aplicação das leis penais.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 160

Tratamento metodológico dos processos penais


“Os processos penais compulsam falas de diferentes protagonistas, sejam
eles julgadores ou julgados; ordenam, em certa temporalidade, uma complexa
seqüência de procedimentos técnicos e administrativos; dispõem em série os
diversos elementos que concorrem para o desfecho processual. Como resultado,
traduzem o modo de produzir a verdade jurídica que compreende tanto a
atribuição de responsabilidade penal quanto a atribuição de identidade aos
sujeitos que se defrontam no embate judiciário. Ademais, em circunstâncias
específicas, os processos penais expressam um momento extremo nas relações
interpessoais - a supressão física de uma pessoa pela outra - que põe a nu os
pressupostos da existência social, permitindo visualizar a sociedade em seu
funcionamento, o jogo pelo qual no torvelinho de conflitos e tensões subjetivas se
materializa a ação de uns sobre outros em pontos críticos das articulações
sociais, transformando o drama pessoal em social (Corrêa, 1983).

Sob essa ótica, o drama pode ser observado em seu duplo registro: por
um lado, em sua tradução jurídica, em que os acontecimentos são ordenados
segundo códigos pré-estabelecidos, nos termos de regras fixas e formais; por
outro lado, em sua versão moral, na qual os acontecimentos são reconstruídos a
partir de normas sociais não escritas, informais, nos termos de quem julga e de
quem processa. Tratam-se de versões que podem estar ora em conflito, ora
justapostas, ora convergentes. No cômputo final, no momento em que o ritual
judiciário proclama sua verdade, todas as versões se reencontram, compondo o
desfecho processual que tanto pode resultar em condenação quanto em
absolvição.

Essa leitura microsociológica dos processos penais requer, no entanto,


sua articulação com uma leitura macrosociológica do aparelho judiciário. É
preciso pensar simultaneamente o drama enquanto expressão tanto dos
pequenos acontecimentos que regem a vida cotidiana, quanto dos grandes
acontecimentos que regem o direito de punir. Essa é a perspectiva que possibilita
inserir o aparelho judiciário no interior da organização social do crime, definindo-
lhe o lugar e funcionalidade, bem como seus impasses e dilemas no controle da
criminalidade. Nisso também reside o papel desse aparelho na construção de
uma ordem democrática na medida em que deixa transparecer a direção que
assumem as instâncias judiciárias na defesa dos bens supremos, materiais e
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 161

simbólicos, dos cidadãos que compõem o corpo social, não importando suas
diferenças de raça, de classe, de etnia, de sexo e de cultura”133.

Antes de iniciar o trabalho de coleta de dados nos processos, a equipe


assistiu a um ciclo de seminários internos, com o objetivo de conhecer a estrutura
e o funcionamento do sistema de justiça criminal, quer em sua organização
estadual ou federal, quer civil ou militar.

O tempo da justiça: uma análise das formalidades e dos prazos no


andamento dos processos penais.

Como afirmando anteriormente, um dos objetivos desta pesquisa consiste


em avaliar a eficácia das instituições encarregadas da pacificação dos conflitos
na sociedade, destacando-se o papel da Polícia, do Ministério Público e do
Judiciário na apuração de responsabilidades penais nos casos de violações de
direitos humanos.

Trata-se de contribuir para o debate a respeito das desigualdades na


aplicação da justiça e da morosidade no cumprimento dos preceitos legais,
questões presentes no debate público a respeito das funções do Poder Judiciário
nas sociedades contemporâneas (Santos e outros, 1996). Nessa mesma direção,
nossa análise contempla igualmente um exame das formalidades previstas no
Código do Processo Penal - CPP, cujo excesso é apontado por especialistas
como um entrave ao bom funcionamento regular, eficiente e eficaz do sistema de
justiça criminal.

Três questões nortearam a análise:

o na formulação dos inquéritos e processos penais os prazos


previstos no CPP são ou não respeitados?

o Os requisitos legais para a apuração das responsabilidades são


cumpridos?

o Qual o grau de observância das garantias legalmente previstas na


condução dos processos?

Estas questões revelaram-se importantes na medida em que, no contato


com os processos penais, percebeu-se que os procedimentos judiciais (policiais e
judiciários) estendiam-se durante longo tempo, sem que houvesse algum
acontecimento específico que justificasse retardo na apuração dos crimes

133
Trecho extraído de Adorno, S. “Violência urbana, justiça criminal e organização social do
crime”. Revista Crítica de Ciências Sociais. Coimbra: CES, 33: 145-56, outubro, 1991.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 162

observados. Desta forma, o mapeamento sistemático de todos os procedimentos


adotados na condução dos processos penais bem como a identificação do tempo
dispendido para o cumprimento desses procedimentos foram tarefas necessárias
para a compreensão das razões que explicam a morosidade no andamento dos
processos penais e em seu desfecho final.

Para a realização dessa tarefa os processos foram lidos, abstraindo-se o


caso que estava sendo julgado, observando-se apenas as solicitações
formuladas, os carimbos com as datas que formalizam os pedidos, a anexação
dos documentos e o cumprimento das providências134.

A primeira tarefa realizada consistiu na construção de um quadro com a


cronologia dos procedimentos, para cada caso. Neste quadro foram anotados os
procedimentos e a data de sua realização. Quando eram feitas solicitações a
outros órgãos (Instituto Médico Legal - IML; Instituto de Criminalística - IC;
Instituto de Identificação Ricardo G. Daunt - IIRGD) ou a outros agentes (quando
o promotor solicita algo ao delegado, por exemplo) anotaram-se a data do pedido
e a data da realização da providência, o que permitiu contabilizar o tempo
dispendido com o cumprimento de cada uma das providências solicitadas durante
o inquérito policial e durante a fase de instrução criminal.

Para a análise desses quadros foi necessário desenvolver outras duas


tarefas, paralelamente. A primeira consistiu na leitura do CCP com vistas a
identificar os artigos pertinentes aos ritos processuais135 nos processos de
competência do tribunal do júri, sistematizando-se as informações descritas.
Inicialmente foram retirados do CPP todos os prazos estabelecidos para o
andamento de um processo , em caso de homicídio, de acordo com a situação do
réu, isto é, se ele se encontrava preso ou em liberdade. A seguir apresenta-se a
seqüência dos atos e dos prazos definidos no CPP para os casos de
competência do tribunal do júri.

134
Deve-se ressaltar , porém, que uma análise dos prazos e das formalidades, ainda que possa
ser realizada abstraindo-se os depoimentos, não pode prescindir inteiramente da história que está
sendo narrada, uma vez que é necessário conhecer o crime que está sendo apurado para que se
possa entender as solicitações formuladas pelos operadores do direito nas diferentes fases da
investigação, além de entender qual o ônus que a demora em atendê-las pode acarretar para o
desfecho processual. Não se trata aqui de avaliar a validade das solicitações, ou julgar o mérito
das decisões judiciais, mas entender qual é a trajetória das investigações e como as provas
solicitadas contribuem para a apuração das responsabilidades.
135
O Código do Processo Penal - CPP - descreve os procedimentos e as formalidades que
devem ser seguidas na condução de um processo penal. É este código que estipula todas as
fases pelas quais deve passar a apuração das responsabilidades por um crime e como deve ser
efetuado o julgamento do ponto de vista formal. Ele ainda determina prazos para o cumprimento
das providências e dos atos do processo. A tipificação dos crimes é constante de outro código, o
Código penal Brasileiro - CPB.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 163

Q uadro 3
Andamento do processo no Tribunal do Júri de acordo com a
situação do réu (prazos extraídos do CPP)

Ritos Processuais Réu Solto Réu Preso


Inquérito Policial 30 dias 10 dias
anexação de laudos 10 dias 10 dias
Manifestação do Ministério Público
oferecimento da denúncia 15 dias 5 dias
outras manifestações 5 dias 5 dias
Despacho do Juiz 1 dia 1 dia
Cumprimento dos despachos pelo cartório 2 dias 2 dias
Apresentação da Defesa Prévia 3 dias 3 dias
Audiência para oitiva de testemunhas 40 dias 20 dias
Apresentação das alegações finais pelo MP 5 dias 5 dias
Apresentação das alegações finais pela 5 dias 5 dias
defesa
Saneamento de Nulidades 2 dias 2 dias
Sentença Intermediária 10 dias 10 dias
Apresentação do Libelo Acusatório pelo MP 5 dias 5 dias
Apresentação do Libelo Acusatório ao Réu 3 dias 3 dias
Apresentação do Contra Libelo pela Defesa 5 dias 5 dias
Fonte: Código do Processo Penal

A leitura dos processos havia revelado que, além dos prazos formais, a
condução dos processos também se pauta pelas práticas jurídicas, ou seja, pelo
cotidiano dos cartórios, nos fóruns e nas delegacias, que permitem criar
exceções às regras do CPP, bem como formalizar novos procedimentos à
margem do que a legislação estabelece. Foi justamente com o objetivo de
conhecer essas práticas institucionais que se recorreu à realização de entrevistas
com os operadores do direito, conforme descrição contida no item anterior. A
realização dessas entrevistas durante essa fase da pesquisa foi muito importante,
pois ajudou na compreensão de procedimentos que, se à primeira vista
causavam estranheza, quando observados da ótica dos entrevistados se
revelaram como práticas rotineiras e incorporadas aos ritos processuais.

Foi possível abordar os processos segundo 3 níveis de entendimento,


denominados: ideal, virtual e real. Como ideal foram entendidos os
procedimentos e prazos descritos no Código do Processo Penal [Cf. Figura 7].
Considerou-se como virtual os procedimentos descritos nas entrevistas,
destacando-se a forma de aplicação da lei e a tolerância formalizada na prática
jurídica em relação aos desvios à regra. Por fim, o real é representado pelos
casos analisados pela pesquisa, nos quais se pode constatar empiricamente a
convivência entre práticas e formalidades. Nesse nível, constatou-se uma enorme
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 164

distância entre a lei e a prática, o que resulta em processos e inquéritos que se


estendem no tempo, sem que haja a punição dos acusados.

A análise dos quadros cronológicos resultou na elaboração de um texto no


qual todos os procedimentos foram observados em comparação ao CPP e às
entrevistas. Nessa análise foram destacadas observações a respeito do tempo de
duração de cada fase, bem como os motivos observados para sua demora. A
descrição de cada processo estruturou-se em torno dos seguintes itens:

• o tempo de duração dos inquéritos;

• o tempo para a anexação aos autos dos exames técnicos;

• a quantidade de pedidos de dilação de prazo durante o inquérito e o


tempo de tramitação de cada pedido;

• períodos de tempo em que nenhuma providência foi realizada;

• tempo entre o oferecimento da denúncia pelo promotor público e o


interrogatório do réu; tempo gasto por promotores, juizes e advogados para
suas manifestações;

• duração da instrução criminal;

• tempo gasto com as interrupções provocadas pelo aguardo do


cumprimento das solicitações (como exemplo localização de testemunhas,
de réus, certidões oficiais, levantamento de provas);

• tempo gasto com a substituição de defensores, principalmente nos


casos de defensores dativos;

• tempo gasto com as providências ordinárias do rito processual:


abertura do inquérito, conclusão do inquérito, denúncia, recebimento da
denúncia, interrogatório dos réus, oitiva de testemunhas, defesa prévia,
alegações finais, pronúncia, libelo e contra-libelo acusatório e julgamento
pelo Tribunal do júri;

• Duração total do processo.

Na leitura dos processos foi possível observar em sua trajetória elementos


que apontam para a existência de “tumultos”136 que, embora encontrem respaldo
jurídico, muitas vezes acabam por comprometer a objetividade necessária à
apuração dos fatos.

136
Nos capítulos subseqüentes deste relatório, será realizada análise mais pormenorizada dos
“tumultos” no andamento processual e de seus possíveis efeitos no desfecho judicial do caso.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 165

No processo penal todos os procedimentos devem ser registrados por


escrito, contendo as datas de solicitação e de realização das providências. Além
disso, deve conter também o nome dos agentes que solicitaram e daqueles que
atenderam as solicitações. Dessa forma, um processo se constitui numa rica
fonte documental, tornando-se relativamente fácil identificar qual foi a
participação de cada agente, e qual a sua responsabilidade nas demoras
ocorridas no andamento do processo. Por fim, podem-se identificar as possíveis
causas dessa morosidade e suas implicações em relação ao desfecho
processual.

Com o objetivo de definir e sistematizar esses tumultos, eles foram


classificados como sendo de duas naturezas: de um lado, concentra-se todo o
tempo que é dispendido com a localização de réus e testemunhas bem assim
com a anexação de laudos e outros documentos. Esse tempo encontra-se
justificado no processo, assegurado pelo CCP através dos prazos estipulados
para cada procedimento. De outro lado, estão concentrados aqueles intervalos de
tempo, em que não são observadas quaisquer medidas e que não encontram
justificativa nos processos e nem respaldo na lei.

A segunda fase da análise das formalidades nos processos penais,


consistiu no entendimento do uso do tempo na aplicação da justiça e na
sistematização do tempo de duração de cada fase do processo, desde a
instauração do inquérito policial, até o desfecho processual. O objetivo é
contabilizar a duração de cada fase, identificando-se quem atuou e quanto tempo
o inquérito ou o processo esteve sob sua responsabilidade aguardando
providências. Dessa forma torna-se possível observar as fases que apresentam
maior morosidade e seus agentes responsáveis.

Para a realização dessa análise foi necessário desenvolver uma


metodologia que permitisse realizar uma contagem, em dias, da atuação de cada
um dos agentes, em cada fase identificada no processo. Além disso foi preciso
também contemplar nessa análise a presença dos tumultos e sua convivência
com o andamento do processo.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 166

5. Plano de análise

A análise dos casos orientou-se segundo quatro recortes determinados:


• Recorte estrutural. Este recorte supõe dois planos de leitura: micro e
macro. O primeiro recomendou a “descoberta” da estrutura que move
cada uma das modalidades de casos de violação de direitos humanos
estudados (violência policial, assassinato de crianças e adolescentes,
linchamentos, grupos de extermínio, violência no campo). Tratou-se,
igualmente, de verificar o que há de comum e o que há de divergente
entre as diferentes modalidades de violação de direitos humanos
observadas. O segundo pretendeu estabelecer as conexões entre
essas estruturas e as estruturas sociais mais abrangentes, em
particular aquelas que dizem respeito às formas de hierarquização e
dominação na sociedade brasileira e aquelas que regem a Justiça
pública em suas tarefas de pacificação social;
• Recorte conjuntural. Este recorte recomendou a análise das relações
entre os casos observados e conjunturas determinadas, quais sejam:
1980 (início do processo de distensão política); 1985 (eleição dos
primeiros governadores por via direta, após 21 anos de regime
autoritário); 1989 (eleição do primeiro presidente civil por via direta,
início do processo de consolidação democrático). Neste plano, cuidou-
se de verificar o quanto mudanças na economia (em especial no
mercado de trabalho), na sociedade (perfil demográfico, formas de
mobilidade social, as políticas sociais), na política (reconstrução da
normalidade democrática) e na cultura (emergência dos valores
democráticos) interferem na explosão de litigiosidade social enfocada
na pesquisa;
• Recorte relações sociedade civil e Estado. Este recorte supôs análise
em dois planos: primeiro, o modo como os diferentes atores, em
cenários de intensificação de conflitos, se relacionam com autoridades
e instituições públicas; segundo, o modo como as autoridades públicas
intervêm no sentido de conter a violência. Tratou-se, no caso, de
examinar como se dá a articulação entre poder social e poder público
em pontos delicados das intersecções sociais justamente quando os
mecanismos de ajustamento/acomodação na resolução de conflitos
são colocados à prova. Este recorte permitiu analisar, por sua vez, a
dialética entre tradicionalismo e modernidade que constitui
seguramente uma das facetas mais destacadas da violação de direitos
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 167

humanos no Brasil; Permitiu outrossim avaliar a hipótese de uma crise


do poder pessoal no Brasil, que vem sendo apontada no estágio atual
da análise;
• Recorte cultura política. Este recorte propôs análise dos modelos de
comportamento político que informam a ação dos protagonistas dos
acontecimentos observados. Neste plano, pretendeu-se adentrar no
processo de socialização política, enfocando em especial questões
relativas às desigualdades sociais, à carência de justiça social e à
ausência de mediações institucionais na superação dos conflitos, quer
seja nas relações intersubjetivas, quer seja nas relações entre as
classes e grupos sociais. Assim procedendo, cogitou-se saber até que
ponto a violência aparece como imperativo moral na superação dos
conflitos sociais.
PARTE II
AS GRAVES VIOLAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS
E A IMPRENSA (1980-1996)

INTRODUÇÃO
A IMPRENSA E A VIOLÊNCIA
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 169

Sérgio Adorno

No mundo contemporâneo, além de suas tradicionais funções de veículo


de comunicação de massa, a mídia eletrônica e impressa vem se consolidando
como poderosa fonte documental sobre fatos da vida cotidiana. O extraordinário
desenvolvimento da tecnologia de informática associada e articulada a outros
importantes implementos técnicos no campo da edição de textos e de imagens
contribuíram para tornar mais complexo e preciso o processo de produção,
distribuição, veiculação e consumo de mensagens variadas. Um dos resultados
mais evidentes deste processo em curso é sem dúvida a maior sensibilidade dos
veículos para captação de informações, processamento e armazenamento de
dados, inclusive ampliando sobremodo a rede de relações entre a mídia e as
instituições públicas e privadas. Daí porque a constituição de bancos de dados
informatizados tenha se tornado tão essencial para as agências de veiculação de
notícias. Não é de se estranhar portanto que a mídia, em particular a impressa,
tenha se tornado importante fonte de informação para a pesquisa no campo das
ciências sociais.

Embora seu emprego pelos cientistas sociais não seja recente, ele parece
ter se intensificado ao longo desse processo de amplo desenvolvimento
tecnológico no campo das comunicações de massa. Nos mais diferentes campos
temáticos, em especial a imprensa escrita tem sido uma fonte privilegiada seja
porque permite acompanhamento sistemático de problemas sociais determinados
até com certo detalhamento, seja porque permite adentrar e perfilar os contornos
do contexto social enfocado.

No terreno da violência e da violação dos direitos humanos, esse emprego


tem sido quase um imperativo. E suas razões não são poucas, sequer
irrelevantes. Inicialmente, devido à ausência de fontes oficiais confiáveis ou que
possibilitem recuperar informações de forma a atender precisos objetivos de
investigação. No caso dos fenômenos que envolvem graves violações de direitos
humanos com desfechos fatais - como são os casos analisados nesta
investigação -, os problemas inerentes às fontes oficiais são, pelo momento,
intransponíveis. As estatísticas oficiais, baseadas em Boletins de Ocorrência
Policial (BO's) e Inquéritos Policiais, não diferenciam as mortes violentas, mais
propriamente homicídios, segundo a natureza do conflito que os motivou. Um
desfecho fatal decorrente de conflitos nas relações interpessoais - conflitos
domésticos e familiares, por exemplo - é classificado na mesma categoria
(homicídios dolosos) em que são classificados desfechos fatais nas relações
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 170

entre gangs e quadrilhas, em casos de roubos seguidos de morte, ou em casos


de linchamentos, de execuções sumárias e da ação de grupos de extermínio.
Assim, para apoiar-se nas fontes oficiais, o pesquisador teria que valer-se de
moroso e custoso trabalho de observação de milhares de BO's e inquéritos para
selecionar aqueles casos de seu interesse. Se ele pretende abordar séries
históricas, então o tempo despendido para esse trabalho de coleta, classificação
e processamento de informações será multiplicado por tantos quantos sejam os
anos que pretende observar, propósito cujo cumprimento produz fortes pressões
orçamentárias nos custos de pesquisa, quase sempre insuportáveis.

Por esse motivo, o recurso à imprensa tornou-se uma fonte subsidiária


importante. A par de ser fonte acessível e dotada de regularidade, a maior parte
das grandes agências contém bancos de dados organizados tematicamente,
muitos dos quais em sistema CD-ROM ou já inseridos em home-pages na
internet que facilitam sobremodo a localização de notícias de interesse do
pesquisador. No que concerne aos estudos sobre violência e violação de direitos
humanos, a imprensa de modo geral veicula notícias contendo não apenas os
fatos, muitas vezes colhidos no calor dos acontecimentos, como também deixa
entrever a participação de atores e a intervenção das instituições.

Certamente, as ponderações e mesmo objeções no emprego desta fonte


não são poucas. Muitos dirão que a imprensa não pode ser considerada uma
fonte fidedigna que veicula informações sobre determinados fatos sociais de
modo esporádico e segundo interesses momentâneos condicionados pelo
mercado noticioso. Enquanto determinado assunto, como por exemplo uma grave
violação de direitos humanos, prender a atenção de segmentos expressivos da
sociedade ele certamente ganhará espaço na mídia, podendo manter-se em
evidência por períodos relativamente longos. Em circunstâncias como esta, é
mesmo comum que um grande acontecimento que tenha provocado comoção na
opinião pública nacional ou mesmo local possa, por sua vez, atrair a atenção da
mídia para outros casos, suscitando uma falsa impressão de que estaríamos
diante de uma conjuntura de crescimento de casos de violência. Sob esta
perspectiva, o crescimento ou declínio de ocorrências desta natureza resultaria
menos do crescimento ou declínio da conflitualidade social, porém do maior ou
menor interesse das agências noticiosas em colocá-los em evidência.

Além do mais, dirão outros que não há quaisquer garantias de que os fatos
relatados pela mídia correspondam à realidade. Suspeita-se que muitas vezes as
informações sejam destorcidas ou até mesmo inventadas, não havendo
quaisquer mecanismos de controle por parte da sociedade civil ou de parte de
algum organismo encarregado de fazê-lo. A isto, acrescentar-se-ia argumentos
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 171

de ordem ideológica. Os casos são veiculados por agências noticiosas que não
apenas possuem interesses de mercado - isto é, interesse em vender a notícia
como mercadoria que possui valor de troca -, mas também dispõem de perfis
ideológicos demarcados que influenciam o modo pelo qual os casos são
relatados. Assim, por exemplo, uma agência com perfil liberal inclinar-se-ia a ser
menos condescendente para com a violência institucional, denunciando
desmandos no funcionamento das instituições encarregadas de controle da
ordem pública e responsabilizando-as pelo crescimento da violência. Uma
agência de perfil mais conservador e mais identificado com as classes populares
tenderia a ter um comportamento oposto. Não havendo neutralidade político-
ideológica na veiculação de casos, não estaria assegurado um dos fundamentos
da objetividade do conhecimento científico.

Todas essas objeções e ponderações constituem verdades parciais. Em


primeiro lugar, muitos dos problemas apontados que parecem turvar a
fidedignidade da imprensa como fonte documental para investigação científica
também estão presentes em outras fontes documentais, inclusive as ditas
oficiais. Nem as estatísticas oficiais de criminalidade e violência deles
escapariam. Por mais que as ocorrências policiais pretendam ser fidedignas e
refletir a "realidade" da violência e do crime, estão muito longe de fazê-lo, como
aliás já apontou a literatura especializada137. Pelo menos dois fatores influenciam
a produção de estatísticas oficiais de crime e violência, fundadas no registro de
BO's: a) muitas das ocorrências dependem da vontade das vítimas ou de
testemunhas em denunciar os fatos às autoridades policiais; b) não raro, o
movimento e a "evolução" da criminalidade e da violência refletem mais as
políticas públicas de segurança implementadas em determinado momento do que
o movimento efetivo das ocorrências. Deste modo, se essas políticas conferirem
ênfase à repressão a alguma modalidade de crime ou violência, todo o aparelho
policial e penal estará fortemente estimulado a detectá-la. Assim, seu
crescimento nas estatísticas oficiais não refletirá o crescimento desta ou daquela
modalidade de violência, porém a maior sensibilidade e/ou mesmo o maior rigor
das agências de contenção na aplicação desta diretriz.

137
Conforme já apontaram inúmeros estudos, as estatísticas oficiais de criminalidade padecem de
graves dificuldades metodológicas. Embora elas venham sendo utilizadas, pelos analistas sociais,
como indicadores de mudanças experimentadas nos níveis e nos padrões de criminalidade, elas
se prestam mais a identificar efeitos de mudanças na legislação penal bem como declínios na
eficácia que se espera do desempenho das agências de controle da ordem pública. Sobre as
dificuldades metodológicas, ver, entre outros: Gurr e outros (1977), Curtis (1985), Robert e
Fogeron (1980), Wright (1987), Paixão (1983), Fundação João Pinheiro (1986).
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 172

Em segundo lugar, as mesmas objeções quanto à veracidade dos fatos


também podem ser aplicadas aos BO's. Esses registros, embora oficiais, são tão
pouco elucidativos quanto pequenas notícias veiculadas na imprensa periódica.
Com freqüência, esses registros apoiam-se em testemunhos de pessoas que
sequer presenciaram os fatos, apenas ouviram falar. Portanto, eles também não
estariam isentos da mesma imputação de carência de credibilidade que pesa
sobre as notícias veiculadas na imprensa periódica. Na mesma direção, não há
fontes, mesmo documentais, politicamente neutras. De um modo ou outro,
qualquer delas é atravessada por pontos de vista singulares que podem estar
refletindo imagens que segmentos da sociedade produzem sobre fatos
determinados. Se na imprensa a competição instituída pelo mercado de notícias
parece tornar mais transparentes suas motivações político-ideológicas, estas não
se encontram sob qualquer hipótese ausentes das estatísticas oficiais de crime e
de violência.

Aliás, convém observar, à medida que avança a passos rápidos a


expansão tecnológica no domínio da indústria de notícias, aperfeiçoam-se os
instrumentos do trabalho jornalístico. Em particular, ganha destaque o chamado
jornalismo investigativo que envolve permanente consulta a múltiplas fontes,
documentais e não documentais e sobretudo requer checagem permanente de
pistas e informações. Não raro, quando estão em evidência acontecimentos com
grande repercussão na opinião pública nacional - como, por exemplo, graves
violações de direitos humanos, entre outros -, esse tipo de jornalismo acaba
sendo ainda mais eficiente do que as próprias investigações policiais. Não é
incomum que contribuam para elucidar, com maior rapidez, fatos obscuros ou
mesmo para lançar dúvidas sobre resultados anunciados de investigações
policiais. Deste modo, também não se pode dizer que estas sejam
necessariamente mais verossímeis que o trabalho de imprensa.

A propósito, nunca seria demais lembrar, para as ciências sociais o


problema da objetividade do conhecimento científico coloca problemas
epistemológicos muito distintos daqueles oferecidos pelas ciências da natureza e
pelas ciências biológicas. Para as ciências sociais, o que se pode nomear como
"realidade social" é algo complexo e multifacetado, constituído não apenas de
fatos "objetivos" como de representações sociais. A construção "objetiva" dos
fatos da vida social não pode abstrair do universo de valores, emoções,
sentimentos, modos de ser, pontos de vista, numa palavra a subjetividade dos
atores sociais constitui também condição de objetivação da vida social, razão por
que ela não pode ser simplesmente descartada da produção do conhecimento
como se fosse distorção ideológica que turva a confiabilidade dos procedimentos
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 173

que conduzem à verdade científica. Sob esta perspectiva, todas as imagens e


representações subjacentes aos casos de violação de direitos humanos
veiculados pela imprensa periódica constituem elementos indispensáveis à sua
compreensão analítica.

Finalmente, conviria estabelecer outro tipo de relação entre a imprensa e a


violência. Até que ponto a imprensa e a mídia eletrônica em geral traduzem de
fato sentimentos coletivos de medo e insegurança diante da escalada da
violência? Até que ponto esses veículos estimulam a violência, criando um
cenário que não corresponderia à realidade? Não há uma relação direta e
mecânica entre a mídia, impressa e eletrônica, e a violência. É muito difícil
estabelecer uma relação de causalidade imediata, sem mediações, entre o
receptor e o emissor de mensagens. O receptor - seja um indivíduo ou grupos
sociais - é constitutivo de um universo cultural amplo, complexo e diversificado,
explorável de distintos modos, por diferentes agências, quer sejam veículos de
comunicação de massa quer agências de socialização às quais ele esteja
submetido em sua vida cotidiana. Em decorrência, o receptor encontra-se
inserido em contextos comunicativos abertos que lhe facultam leituras próprias de
uma série de experiências pelas quais passa no mundo social que o rodeiam e
nas relações que o cercam. Sob esta perspectiva, as mensagens veiculadas pela
imprensa e pela mídia eletrônica são necessariamente relidas pelo receptor. Por
isso, a relação entre a mídia e a violência não é de causalidade, porém de
comprometimentos recíprocos.

Por um lado, é evidente que a mídia eletrônica e impressa não inventa


fatos. Se há, na atualidade, um grande interesse na veiculação de notícias sobre
crime e violências de toda sorte - o que inclusive parece ter contribuído para uma
certa especialização e autonomização das reportagens policiais -, é porque
conflitos da mais distinta ordem têm resultado com maior freqüência em
desfechos fatais de sorte que a mídia impressa e eletrônica tendem, de modo
geral, a traduzir conflitos de valores no interior da própria sociedade, manifestos
sob a forma de sentimentos desmesurados de medo, insegurança e desejo
obsessivo de punição contra indivíduos suspeitos de serem autores de crimes.
Por outro lado, é certo também que certos segmentos da mídia, tanto eletrônica
quanto impressa, tendem a "dramatizar" a violência cotidiana. O mundo da
violência e do crime passa a ser visto como uma luta, quase "cósmica", entre o
bem e o mal, entre bandidos e mocinhos, entre forças da ordem e as da
desordem. Nessa luta cósmica, o mundo aparece completamente dicotomizado
vencedores e vencidos, de modo que o mal deve ser extirpado e eliminado a
qualquer custo.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 174

Por todas essas ponderações, as informações extraídas da imprensa não


podem ser tomadas tout court como se fossem dados puros da experiência social
sensível. O tratamento dessas informações deve considerar todos esses
"condicionantes" que influenciam a produção e veiculação das notícias e que
certamente afetam o modo como os casos de violência e de violação de direitos
humanos são retratados. Nesta investigação, tomou-se uma série de precauções,
entre as quais:
a) Considerou-se o contexto social e político em que os casos foram
veiculados pela imprensa observada de modo a "controlar" interesses
das agências noticiosas em conjunturas determinadas, especialmente
sensíveis como aquelas que condensam inflexões nos conflitos sociais
e intersubjetivos;
b) Acompanharam-se possíveis modificações no estilo da imprensa ao
veicular graves violações de direitos humanos ao longo do período
observado com o propósito de verificar o quanto novos "conceitos
jornalísticos" buscavam traduzir fenômenos emergentes ou apontar
para mudanças no comportamento social e no desempenho das
agências de controle da ordem pública. Em particular, este foi o caso
das execuções sumárias, como se buscará demonstrar no curso da
análise;
c) Tiveram-se sempre em vista as diferenças entre os distintos jornais
consultados, até porque eles tendem a revelar maior ou menor
preocupação para com casos de violência, detendo-se em detalhes que
via de regra destoam dos padrões habituais. Este é particularmente o
caso de jornais dito populares, como Notícias Populares em São Paulo
e O Dia no Rio de Janeiro;
d) Levou-se também em consideração a abrangência da imprensa
consultada. A chamada imprensa nacional concentra sua atenção nos
fatos econômicos, sociais, políticos, culturais além de variares do eixo
São Paulo/Rio de Janeiro/Brasília. Casos que ocorrem fora desse eixo
tendem a ser pouco ou nenhum espaço nesta imprensa, exceto se
houver grande impacto e repercussão na opinião pública nacional.
Deste modo, considerou-se essa abrangência como um dos limites à
generalização de resultados para o conjunto das ocorrências
observadas. A despeito desta limitação, a imprensa revela-se uma
fonte respeitável para a constatação de tendências gerais, razão por
que se optou pela quantificação dos casos detectados.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 175

CAPÍTULO 5
LINCHAMENTO: JUSTIÇAMENTO COTIDIANO NO BRASIL

Helena Singer
Jacqueline Sinhoretto
Débora Pereira Medeiros
Célio Luís Batista Leite

“Criaturas do regime de exceção”, “incapacidade das forças da ordem para


garantir o império da lei”, “esporte autoritário”, “prazer de matar”, “autopunição”,
“desumanidade”, “barbárie”, “guerra de todos contra todos”, “inquisição”, “justiça
do porrete”. Estas são algumas das muitas qualificações que a grande imprensa
nacional tem se utilizado para tratar dos casos que serão aqui analisados: os
chamados linchamentos. Para eles buscam-se explicações que costumam olhar
apenas para os contextos mais conjunturais, mas de fato os linchamentos já
fazem parte da história do país e não há sinais de que estejam em vias de
desaparecimento.

Foi com o intuito de acompanhar mais de perto o fenômeno que o Núcleo


de Estudos da Violência da USP incorporou o tema a seu Banco de Dados da
Imprensa sobre as graves violações aos direitos humanos ocorridas no Brasil nas
últimas duas décadas. De 1980 a 1996, 795 linchamentos contra 1109 pessoas
foram registrados pela imprensa de circulação nacional, em todos os estados
brasileiros. Essas ações ocorrem predominantemente em grandes cidades e as
vítimas, em geral, pertencem aos estratos sociais mais desfavorecidos da
sociedade.

OS LINCHAMENTOS NA LITERATURA
Para poder selecionar as notícias e reconstruir os casos, foi necessário,
antes de mais nada, chegar a uma definição precisa dos linchamentos. Isto
porque a palavra “linchamento” é usada de modo indiscriminado pela mídia, o
que cria uma série de dificuldades para a seleção de casos em uma pesquisa
que tenha este fenômeno como recorte. Um mesmo caso pode ser definido por
um órgão da imprensa como linchamento, em outro aparece como homicídio
cometido por “grupo de extermínio”, por outro jornal é qualificado como “chacina”,
ou ainda “justiçamento”. Além do uso variar entre jornais, um mesmo jornal usa o
termo linchamento para designar os mais diferentes tipos de delitos, quase
aleatoriamente. Desse modo, torna-se primordial estabelecer uma definição do
conceito que deixe claros os tipos de casos ali enquadrados. Mas essa também
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 176

não é uma tarefa simples no que se refere aos linchamentos. Uma revisão da
literatura sobre o tema ajuda a identificar as dificuldades.

A origem etimológica da palavra linchamento vem de uma forma de


justiçamento que teria sido criada por um americano do século XVIII. Mas não há
consenso sobre essa origem. Três são as versões sobre o criador desse tipo de
punição, sobre o qual sabe-se apenas que viveu no estado da Virgínia: Charles
Lynch, não se sabe se magistrado, fazendeiro ou ambos, que viveu entre 1736-
1796; William Lynch, juiz do condado da Pensilvânia, nascido em 1742 e morto
em 1820; ou um certo Coronel Lynch, do final do século XVIII. Esse senhor teria,
durante a Revolução Americana, liderado uma organização privada para a
punição dos criminosos e de fiéis à Coroa. Desta origem, já podemos ressaltar o
paradoxo de que o termo linchamento nasceu para designar uma prática em
favor da democratização, representada pelo fim do regime colonialista.

Desde então, o termo passou a designar um certo tipo de prática (como


apedrejamento, enforcamento ou espancamento) que já era conhecida da
humanidade há muitos séculos e que permanece na história até os dias de hoje:
aparecem episódios de apedrejamento na Bíblia; na Rússia e na Polônia havia os
progronim contra judeus; e posteriormente a atuação da Ku-Klux-Klan contra os
negros no sul dos Estados Unidos. O termo associa-se também a outras várias
formas de violência coletiva, entre as quais aquelas cometidas por “grupos de
vigilantes” que atuavam no Oeste dos Estados Unidos, para assassinar supostos
criminosos ou pessoas pertencentes a grupos religiosos, étnicos ou políticos
específicos.

Os linchamentos se disseminaram no Sul dos Estados Unidos, sobretudo


após a abolição da escravatura no final do século XIX. É importante ressaltar que
existem distinções entre os linchamentos ocorridos no Oeste americano e os
ocorridos no Sul. No primeiro caso, estávamos diante de uma prática acionada
para marcar os limites entre as condutas aceitas e as desviantes, num contexto
em que poder público ainda não estava plenamente consolidado. Já no Sul, o
contexto era de tensão acirrada entre a população branca, que não aceitava a
perda de sua hegemonia, e a população negra, recém-liberta. Ali, os
linchamentos eram perpretados contra negros que tivessem ou não sido
apontados como desviantes, tratando-se bem mais de formas de marcar as
distinções raciais e os “lugares” reservados a cada um.

Em vista dessa recorrência dos linchamentos na história americana, o


tema tem sido bastante trabalhado naquele país, desde o início deste século. Os
estudos concentram-se nas áreas de Sociologia e Psicologia Social,
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 177

principalmente sob as perspectivas da Sociologia das massas e da Psicologia


das multidões138. O linchamento é especialmente importante naquele país porque
foi um fenômeno muito recorrente no período em que os conflitos raciais eram
muito agudos e os negros não tinham garantidos seus direitos civis. Entre 1882 e
1946 quase 5.000 afro-americanos foram linchados (HALL, 1992: 398).

A partir dos anos 30, os linchamentos entraram no debate acadêmico


americano e permanecem como objeto de vários estudos até os dias hoje,
mesmo sendo muito poucos os casos deflagrados atualmente139.

Detendo-se na dinâmica dos acontecimentos, alguns autores como


Hovland e Sears, definem o linchamento com base em sua espontaneidade e
publicidade, enfatizando o caráter desafiador do acontecimento (HOVLAND &
SEARS, 1940). Já Cantril enfatiza o motivo desencadeador do linchamento,
definindo-os como atos de grupos que sentem fortemente que alguns de seus
valores foram ameaçados (CANTRIL, 1941). Neste sentido, Cantril é
acompanhado por Lieberson e Silverman, que também definem o linchamento
como uma resposta coletiva a algum ato específico - crime ou desafio à ordem.
Diferenciam assim os linchamentos dos conflitos raciais, que são ataques a
pessoas ou propriedades somente por pertencerem a um grupo ou comunidade
específicos. Enfatizam que os linchamentos podem, por vezes, serem seguidos
por conflitos generalizados (LIEBERSON & SILVERMAN, 1965).

Alguns autores distinguem linchamentos dos atos de justiçamento


perpetrados por grupos de patrulhamento local, conhecidos como vigilantismo,
que podem assumir formas de execução muito parecidas. O vigilantismo
propriamente dito seria caracterizado pela constituição de um grupo
relativamente organizado e regular, com existência definida por um período
determinado de tempo, como por exemplo a Ku-Klux-Klan e outros grupos que
proliferaram nos EUA. Ao passo que o linchamento seria levado a cabo por um

138
Problematizações dos linchamentos no interior destas duas linhas ficam mais claras nos
trabalhos de LE BON, 1910; HOBSBAWN, 1958; e CANETTI, 1960, sendo que os últimos dois
não falam exatamente em linchamento mas sim em "turbas urbanas" e "massas de perseguição"
respectivamente. Mais recentemente, a perspectiva da psicologia das multidões tem sido criticada
por negar a influência das mudanças sociais no comportamento das massas e por reforçar os
esquemas etnocêntricos de análise. Ver a respeito REICHER, 1997; ALMEIDA, 1997.
139
Nos dias que correm, os linchamentos como prática de controle social de um grupo sobre os
demais foram substituídos, nos Estados Unidos, pelos chamados “crimes de ódio”, que se referem
a agressões (estupros, maus-tratos, agressão física, intimidação, incêndio, destruição ou
vandalismo de edifícios públicos ou privados e, algumas vezes, até homicídios) motivadas pelo
ódio contra uma raça, religião, orientação sexual, deficiência, etnia ou origem nacional. Não raro
membros da mesma Ku Klux Klan estão envolvidos nestes casos e os afro-americanos continuam
sendo as vítimas preferenciais (U. S. Department of Justice, 1997).
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 178

grupo efêmero, ou seja, que se reuniu exclusivamente para praticar aquele ato
(LITTLE & SHEFFIELD, 1983).

No Brasil, onde os linchamentos parecem-se muito mais com os que


ocorriam no Oeste americano do que os do Sul daquele país, percebemos que a
literatura internacional foi apropriada pelos estudiosos do tema, para construir
suas definições. Maria Victória Benevides e Rosa Maria Fischer Ferreira
aproximam-se mais da definição de Hovland e Sears, incluindo nos linchamentos
os casos de execução sumária de indivíduos pertencentes a grupos específicos
(BENEVIDES & FERREIRA, 1983: 225). Já Menandro e Souza preferem adotar a
definição de linchamento mais associada à punição de um ato específico e
enfatizam a presença das testemunhas, incluindo nos casos de linchamento
aqueles em que somente uma pessoa executou a vítima, mas fora observada e
incentivada por um grupo de espectadores.

Na pesquisa do NEV, optou-se por considerar um ato de execução


sumária como linchamento somente quando contasse com a participação ativa
de mais de um agressor, tratando-se de ação cometida por um grupo efêmero,
em lugar público, em que o caráter de exemplaridade do ato estivesse garantido
(caráter de espetáculo). Desta forma, distinguem-se os linchamentos das
execuções cometidas por grupos de extermínio pela exclusividade da
associação, ou seja trata-se de atos únicos de grupos formados tão somente
para realizá-los, mesmo que sob nítida liderança e algum grau de planejamento.
Além disso, observa-se que as execuções praticadas por grupos de extermínio
em geral ocorrem em lugares e momentos com pouca movimentação.

Para se chegar a uma boa definição do fenômeno deve-se considerar


ainda que, muitas vezes, as pessoas têm intenção de linchar, mas são impedidas
- tipicamente nos casos em que a população vai, armada, para a frente das
delegacias exigir que um preso seja entregue para ser "justiçado", mas o aparato
policial consegue controlar a multidão, garantindo a segurança do preso. Do
ponto de vista desta pesquisa, esses casos também caracterizam o linchamento,
mais especificamente ameaça ou tentativa de linchamento, porque denunciam o
mesmo tipo de disposição da população, que apenas não consegue consumar
sua intenção.

Assim, o conceito de linchamento utilizado nesta pesquisa é:


ação espetacular de grupo de organização efêmera em que todos os
participantes são autores diretos, com o objetivo revelado por indícios
observáveis - gritos de intenção, posse de instrumentos letais (instrumentos
contundentes e, às vezes também armas brancas), depredações - de executar
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 179

sumariamente um ou mais indivíduos supostamente responsáveis pela prática de


uma ação determinada ou identificada com estigmas sociais.

Definido o fenômeno, foi preciso retomar a caracterização construída pela


literatura especializada, a fim de selecionar as variáveis a serem trabalhadas
nesta pesquisa. De um modo geral, observa-se a predominância de uma tipologia
dualista.

Baseado no estudo de Raper (1933), Cantril distingue dois tipos de


linchamentos comuns no passado norte-americano: o "reacionário" e o
"proletário". Os linchamentos reacionários eram aqueles programados, que
ocorriam geralmente em áreas onde moravam negros com uma rígida
demarcação com os brancos, organizados por líderes comunitários, com o
conhecimento das autoridades locais, cujos motivos desencadeadores eram
crimes supostamente cometidos por um negro e que mobilizavam poucas
pessoas. Já os linchamentos proletários ocorriam em áreas onde os negros eram
minoria, havendo uma grande competição econômica entre eles e os brancos
pobres, sendo esses os agentes das execuções, que eram, em geral, reprovadas
pelos ricos. Os linchamentos proletários eram caracterizados por uma maior
brutalização e publicidade do que os reacionários, e seu maior objetivo não era a
punição de um culpado, mas sim a perseguição a uma raça, desencadeando, por
isso mesmo, a perseguição dos negros em geral, provocando outras agressões a
pessoas e suas propriedades (CANTRIL, 1941).

Jean Stoetzel sistematiza os resultados de Cantril e também de Miller e


Dollard, mantendo a distinção dos dois tipos básicos de linchamentos: um
primeiro bem ordenado, que ele denomina bourboniano, cujos agentes são
pessoas ricas e cuja ação limita-se ao "castigo do culpado" por um ato
reprovável; o segundo tipo é desordenado, difuso, realizado por pessoas pobres
e pode desencadear outras ações contra pessoas pertencentes ao mesmo grupo
social daquele "culpado". (MILLER & DOLLARD, 1941; STOETZEL, 1963).

Já a literatura americana mais recente tem se restringido a examinar,


mediante correlações estatísticas, as relações entre a ocorrência de
linchamentos e outros fatores sociais, na esteira do que fizeram Hovland e Sears
(1940) em relação aos fatores econômicos. Entre estes estudos recentes
ressaltam-se as correlações com a discriminação racial (TOLNAY, BECK &
MASSEY, 1989a; 1989b; BLALOCK, 1989; CREECH, CORZINE & HUFF-
CORZINE, 1989; REED, 1989; OLZAK, 1990); com os índices de outros tipos de
criminalidade (HALL, 1992); e com as oscilações político-partidárias (SOULE,
1992).
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 180

José de Souza Martins ressalta, nessa literatura americana, um equívoco


resultante da busca de causas estruturais para a ocorrência dos linchamentos,
fenômenos não estruturais. Ao invés, ele propõe que ”a hipótese mais provável é
a de que a população não lincha apenas para punir, mas sobretudo para indicar
seu desacordo com alternativas de mudança social que violam concepções,
valores e normas de conduta tradicionais, relativas a uma certa concepção do
humano.” (MARTINS, 1995: 299).

OS LINCHAMENTOS TORNAM-SE QUESTÃO SOCIAL NO BRASIL


O primeiro estudo sobre linchamento no Brasil foi realizado, sob
coordenação de Thales de Azevedo, em 1959 na Bahia. Trata-se de um estudo
de caso sobre uma tentativa de linchamento ocorrida em uma das maiores
cidades do estado. A pesquisa concluiu que o linchamento decorreu de tensões
entre os antigos moradores e os que chegavam de fora, que começavam a
ocupar posições antes privativas da população local. Ressalte-se que a
referência à pesquisa foi feita em 1974 quando, segundo o autor, os jornais
começavam a falar de uma “rotina preocupante de linchamentos” (AZEVEDO,
1974).

Essa preocupação parece então ter permanecido e em 1982, Maria


Victória Benevides e Rosa Maria Fischer Ferreira iniciaram uma pesquisa nos
moldes dos trabalhos americanos, que são em geral baseados em levantamentos
da imprensa, uma vez que não há estatísticas oficiais sobre os linchamentos140.
As autoras levantaram 82 casos noticiados pela imprensa nacional entre 1979 e
1982. Os casos levaram à diferenciação entre o linchamento que ocorre nos
centros das grandes cidades e aquele das periferias e das cidades pequenas: o
primeiro seria marcado pela revolta coletiva, pela explosão da violência punitiva
de pessoas não diretamente atingidas pelo suposto criminoso; já o segundo
caracterizar-se-ia pelo desejo de vingança imediata de pessoas vitimadas (ou
seus parentes e amigos) pelo extermínio do delinqüente conhecido e contaria
com uma certa coordenação e com lideranças estratégicas (BENEVIDES e
FERREIRA, 1983).

Alba Zaluar não fez propriamente uma pesquisa sobre linchamentos, mas
teve que enfrentar o tema quando realizou estudo de campo em um conjunto
habitacional da zona Sul do Rio de Janeiro. Ali, ela percebeu que os
linchamentos decorriam de conflitos emergentes entre a ética do trabalho e a

140
Exceção no Brasil é o caso do estado da Bahia, cuja Secretaria de Segurança Pública tem
produzido totalizações a respeito dos casos ocorridos na Região Metropolitana de Salvador e no
estado como um todo, como veremos adiante.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 181

contestação do mesmo. Os moradores que se pautavam pela ética do trabalho


toleravam os “bandidos” desde que os respeitassem, seguissem as regras do
local e não ultrapassassem certos limites; mas acabariam castigando ou
eliminando os “pivetes” ou “porcos” que os roubassem, humilhassem,
provocassem ou matassem (ZALUAR, 1983).

Tendo os linchamentos como objeto central, Menandro e Souza


analisaram 533 casos ocorridos no Brasil entre 1853 e 1990, com base no
noticiário da imprensa de todo esse período. Também eles confirmam a tipologia
de Benevides e Ferreira. A seu ver, os linchamentos que ocorrem nos centros e
bairros valorizados das grandes cidades e capitais diferenciar-se-iam daqueles
das periferias das grandes cidades. No primeiro tipo, predominariam as tentativas
(linchamentos que não resultam na morte das vítimas geralmente devido à
interferência policial), e o anonimato entre os linchadores que se contraporia à
“fama” da vítima. Já no segundo tipo, predominariam os casos de linchamentos
consumados, em que os linchadores também atuariam em pequenos grupos, nos
quais todos se conheceriam, ao passo que a vítima geralmente seria
desconhecida. Em ambos, a maior parte dos casos ocorre em locais públicos
como ruas, praças e bares, o número de linchadores não chega a uma centena e
não há organização prévia do acontecimento. Os linchamentos que ocorrem nas
cidades pequenas e na zona rural assemelhar-se-iam mais com aqueles dos
centros das grandes cidades (MENANDRO & SOUZA, 1991).

O estudo de Marcelo de Carvalho (1994) foi feito sobre 141 casos


noticiados pela imprensa entre 1986 e setembro de 1991. O autor diferencia os
casos ocorridos nos grandes centros urbanos e os das pequenas cidades,
caracterizando os agressores do primeiro tipo como pobres defendendo o
patrimônio e os do segundo, como membros conservadores da classe média, que
se organizam para justiçar.

José de Souza Martins analisou 677 linchamentos ocorridos no Brasil entre


1970 e 1995, tendo também como fonte os órgãos da imprensa. Martins
aprofunda a distinção entre os linchamentos ocorridos nas periferias das capitais
e aqueles das cidades do interior. No primeiro tipo, haveria participação da
população pobre como sujeito dotado de vontade e juízo, com desejo de justiça.
Já no segundo, ocorreria a participação da classe média, e o linchamento
realizar-se-ia como uma crítica às instituições judiciárias e policiais, havendo um
cunho moral e repressivo no ato. Neste segundo tipo haveria uma maior
possibilidade de recorrência (MARTINS, 1989; 1995; 1996).
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 182

Trabalho coordenado por Alfredo Wagner de Almeida sobre violência


contra crianças e adolescentes no campo teve os linchamentos como uma de
suas variáveis, fazendo-se uma análise qualitativa de cinco casos ocorridos em
1991. Nesse estudo, enfatizou-se o caráter organizado, premeditado e dirigido
dos linchamentos (ALMEIDA, 1991).

Em 1997, Alfredo Wagner publicou pesquisa iniciada em 1986, relativa a


estudo de caso - realizado por meio de observação, entrevistas e análise do
processo penal - de linchamento ocorrido no meio rural, naquele ano, quando um
grupo de posseiros resolveu justiçar um pistoleiro, em um povoado no estado do
Maranhão. Assim como José de Souza Martins, o autor propõe-se a romper com
os esquemas interpretativos que consideram o linchamento como uma
manifestação primitiva de justiça em contraposição aos modernos tribunais,
inseridos na oposição entre civilização e barbárie (ALMEIDA, 1997). Um exemplo
clássico deste tipo de tratamento do fenômeno no Brasil seria o mencionado
trabalho de Thales de Azevedo, que, segundo Alfredo Wagner, limita o
entendimento de situações sociais concretas ao dualismo representado pela
oposição entre a justiça dos tribunais, por um lado, e a violência primitiva, por
outro. A seu ver, este tipo de análise remeteria a um esquema interpretativo
etnocêntrico, como também seria o conceito de “psicologia das multidões” de
Gustave Le Bon. Em direção oposta, Almeida situa o linchamento como um
episódio na negociação de conflitos, em que se evidencia o recurso trágico.

O Núcleo de Estudos da Violência, com a colaboração da Comissão


Teotônio Vilela, realizou um levantamento dos linchamentos noticiados de 1980 a
1989 e de 1991 a 1993, registrando 370 ocorrências em todo o país (SINGER,
SINHORETTO & HANASHIRO, 1995). Com base neste levantamento, o NEV
selecionou dez casos no estado de São Paulo para serem tratados
qualitativamente, mediante a análise dos inquéritos policiais e processos penais
decorrentes (ADORNO, 1995). A reconstrução destes casos mostrou que as
distinções entre linchamentos e execuções realizadas por grupos de
patrulhamento (o vigilantismo americano) são muito pouco claras141.

141
Exemplo claro desta confusão é o caso ocorrido em 1982 em Ribeirão Pires. O alto grau de
violência do bairro levou vários dos moradores a irem, no dia 05 de janeiro, à delegacia,
acompanhados de um vereador da cidade, pedir reforço policial. Naquela mesma noite,
desacreditando da promessa do delegado de encaminhar solução, armaram-se de pedaços de
paus, porretes, foices e revólveres para fazer o patrulhamento por conta própria. O grupo foi
então encontrado por policiais civis que o advertiram, tendo então se dispersado. Cinco dias
depois, no entanto, um grupo de moradores, portando paus, porretes, armas de fogo e facas
domésticas, saiu à caça de "bandidos". Nessa operação, o grupo deparou-se com dois jovens -
um adolescente branco e um negro um pouco mais velho -, suspeitou tratar-se de delinqüentes e
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 183

Parte-se agora para uma análise mais abrangente dos linchamentos


noticiados pela imprensa entre 1980 e 1996 no país, atentando-se para o perfil
das ocorrências, das vítimas, dos agressores e da atuação das agências de
justiça, tendo como eixo de análise as recorrências e as mudanças do fenômeno
em um período mais extenso de tempo.

Distribuição espacial e temporal dos linchamentos


Percebeu-se que a imprensa noticia apenas uma parte dos linchamentos
que acontecem. O Estado da Bahia é o único que produz estatísticas oficiais
sobre a ocorrência de linchamentos, através de informações policiais.
Confrontando-se os dados colhidos na imprensa com as estatísticas policiais
para o mesmo período percebe-se uma divergência nas informações. O gráfico
abaixo mostra que há muito mais linchamentos registrados pela polícia do que
aqueles noticiados na imprensa. Neste período, só 17% dos casos ocorridos na
Bahia foram noticiados. No entanto, percebe-se que a proporção entre os casos
registrados e noticiados varia a cada ano. Pelas estatísticas oficiais, há um
decréscimo das ocorrências de linchamento, mas esse decréscimo não é
constatado através das notícias de jornal. De acordo com os dados oficiais do
Estado da Bahia, foram registrados 581 casos entre 1988 e 1996, sendo que em
1988 ocorreram 105 casos e em 1996 houve 20 casos. Ao longo dos 17 anos
pesquisados, a imprensa noticiou 147 linchamentos na Bahia, sendo que 101
deles no período entre 1988 e 1996 (17% dos casos oficialmente registrados). No
noticiário da imprensa, a tendência decrescente não aparece: há uma relativa
constância dos linchamentos baianos que são noticiados.

Entretanto, não há que se esperar uma constância nos casos de


linchamento no Brasil, uma vez que aqui parece não se tratar nem de uma forma
de punição sistematizada para a manutenção da ordem (como no Oeste
americano do século passado) e tampouco de uma forma de perseguição a um
grupo social específico (como nas ações da Ku-Klux-Klan naquele mesmo país).
O que o gráfico demonstra é que a imprensa é fonte limitada para a análise da
distribuição espaço-temporal dos linchamentos, sendo mais adequada para a
análise dos perfis dos envolvidos e da forma como se deu a execução.

passou a persegui-los. Ao alcançá-los, rendeu a ambos. O primeiro a ser sacrificado foi o jovem
negro. Recebeu um tiro na região frontal da cabeça além de socos e pontapés. Enquanto
vitimizavam o negro, mantiveram o adolescente branco imobilizado. Concluída a primeira morte,
discutiram rapidamente entre si se deveriam sacrificar o segundo. Decidiram fazê-lo, a golpes de
paus, porretes, socos e pontapés. Os corpos foram abandonados em terreno baldio. No dia
seguinte, ao amanhecer, alguém divulgou a descoberta dos cadáveres.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 184

Proporção de linchamentos oficialmente registrados e noticiados,


Bahia 88-96

120

100
No. de linchamentos

80

60 Registrados
Noticiados
40

20

1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996


Fonte: Banco de Dados da Im prensa do NEV-USP

Uma ressalva necessária refere-se à separação analítica entre os anos 80


e os 90. Esta se deve a mudanças na metodologia da pesquisa, tanto em relação
à coleta dos dados quanto ao seu processamento. Para os anos 80, foram
consultados os arquivos relativos aos linchamentos dos jornais de circulação
nacional (empresa Folha da Manhã, agência Estado, agência Globo de Notícias e
empresa Jornal do Brasil), e foi feito um acompanhamento diário do jornal
Notícias Populares. As notícias foram agrupadas de modo a possibilitar a
reconstrução dos casos em fichas preenchidas manualmente. Para os anos 90, já
foi possível realizar um acompanhamento diário de alguns jornais (Folha de S.
Paulo, O Estado de S. Paulo e Jornal do Brasil) e o jornal Notícias Populares só
foi trabalhado até 1992. As notícias foram agrupadas em torno de casos e os
dados foram inseridos em um Banco de Dados informatizado, que possibilita um
armazenamento maior de informações e uma ampla variedade de cruzamentos
das variáveis.

Em relação ao país todo, a pesquisa mostrou uma tendência para o


crescimento do número de casos noticiados pela imprensa, que somaram 795 ao
longo de 17 anos. O estado de São Paulo apresentou o maior número de
linchamentos noticiados, 351 casos (44%). A seguir aparecem os estados de Rio
de Janeiro (17%) e Bahia (18%), sendo que o Rio contava com mais casos nos
anos 80 e a Bahia conta com mais casos nos anos 90. Os demais estados da
federação somados representaram 20% dos linchamentos noticiados, mas de
uma década para a outra, aumentaram sua participação em 10%. Destacam-se
entre esses estados, os de Minas Gerais, Paraná e Pará. A maior concentração
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 185

de casos no eixo Rio-São Paulo indica que a imprensa dita nacional de fato
privilegia os acontecimentos nos locais em que ela é produzida.

Distribuição temporal dos linchamentos, Brasil 80-96

150 142

100
Casos

76
68
52 55
50 43 44
33 36 32 34 37 36
30 29
25 23

0
1980 1982 1984 1986 1988 1990 1992 1994 1996

Fonte: Banco de Dados da Imprensa do NEV-USP

Durante os anos 80 foram levantados 415 casos. Os picos em 1984 e


1987 foram determinados pelos casos que ocorreram nos estados de São Paulo
e Bahia. Em São Paulo, no Rio de Janeiro e na Bahia maior parte das
ocorrências deu-se nas regiões metropolitanas das capitais. Isso indica que o
linchamento é um fenômeno sobretudo urbano, com maior incidência nas áreas
de grande concentração populacional. Mas temos que considerar também uma
certa proporcionalidade entre o número de linchamentos, o tamanho das
populações e a densidade demográfica da região. Assim, se não surpreende que
os estados com maior concentração de casos sejam São Paulo, Rio de Janeiro e
Bahia, é de especial relevância que um estado populoso como Minas Gerais
apresente praticamente o mesmo número de casos que um estado bem menor
como o Pará.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 186

Entre 1990 e 1996 foram noticiados 380 linchamentos no Brasil, com pico
de ocorrências em 1991 (37% dos casos dos anos 90). Este pico certamente
resulta da maior atenção dada pelos meios de comunicação de massa ao
fenômeno do linchamento após a eclosão de um grande caso no final de 1990,
no Mato Grosso142. Este caso estimulou a veiculação pela imprensa de muitos
outros pelo país todo, mas o estado de São Paulo manteve-se com o maior
número de casos (35% nos anos 90).

O predomínio de São Paulo deve-se à maior cobertura dada pela


imprensa nacional a este estado, pelo fato de a maior parte dos jornais
consultados ser paulista. A baixa incidência de casos nos estados fora do eixo
Rio-São Paulo indica bem mais o exíguo espaço que ocupam na imprensa
nacional do que uma freqüência de linchamentos muito menor, o que seria
improvável.

Caracterização Geral das Vítimas


A imprensa revela-se uma fonte adequada para definição do perfil das
vítimas de linchamentos porque, em mais de 75% dos casos, elas são
identificadas. Esse índice de identificação pelos jornais corresponde basicamente
às informações passadas pela polícia. O perfil da vítima de linchamentos no
Brasil é bastante claro e invariável ao longo do período pesquisado: trata-se de
homens, jovens, precariamente inseridos no mercado de trabalho.

142
No dia 23 de novembro, na pequena cidade de Matupá, três assaltantes fizeram reféns em
uma casa, que foi então cercada pela polícia e pela população local. Os assaltantes acabaram
por render-se e foram baleados pelos policiais e linchados pela população, que ateou fogo às
vítimas ainda vivas. Um cinegrafista amador filmou os acontecimentos e as imagens foram
divulgadas pela televisão e pela imprensa, o que trouxe muita visibilidade ao caso.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 187

O sexo masculino compõe a quase totalidade dos casos: foram 1042


homens de um total de 1109 vítimas. Desse modo, o fenômeno dos linchamentos
parece acompanhar uma tendência geral da violência (não-doméstica) no Brasil,
a de vitimização preferencial de homens.

Em relação à idade das vítimas, no Brasil, a maioria está concentrada na


faixa etária que vai dos 20 aos 29 anos, sendo também muito representada a
faixa de 18 e 19 anos. Comparando esses números com a divisão etária da
população brasileira, percebemos que há grande diferença: as vítimas de
linchamentos concentram índices muito maiores do que a população de 18 a 29
anos.

*No gráfico acima excluiu-se os casos que não trouxeram informação sobre a idade da vítima

Em relação à etnia, a ausência de informação corresponde a quase a


totalidade dos dados disponíveis, o que compromete qualquer afirmação a este
respeito, sobretudo porque entre nos poucos casos que trazem a informação não
há distinções relevantes entre as vítimas negras, pardas, e brancas. A ausência
de informação sobre a cor da vítima segue o mesmo padrão adotado pela mídia
para divulgar os casos sobre violência, que deste modo reforça a impossibilidade
de caracterização do racismo brasileiro143. Em geral, os poucos casos que

143
Cf. análise apresentada por Suely Carneiro no painel “Sociedade e Proteção dos Direitos
Humanos”, integrante do colóquio “Direitos Humanos no Limiar do Século XXI”, no Centro
Universitário Maria Antônia (USP), 08 de julho de 1997.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 188

informam a etnia das vítimas são aqueles em que a polícia não conseguiu
identificá-la e por isso fornece aos jornais apenas a sua descrição física.

Predomina também a não informação sobre os antecedentes criminais das


vítimas, que ultrapassa 70%. Entre os casos que trazem a informação, a quase
totalidade das vítimas apresentava antecedentes. A maior incidência de vítimas
com antecedentes criminais pode indicar apenas que a imprensa tende a
fornecer a informação prioritariamente quando ela é positiva, assim como a
polícia parece ter uma maior inclinação nesse sentido. Se articularmos este dado
com a ausência de informação sobre a origem étnica e a ocupação das vítimas,
apesar do alto grau de identificação, poderemos perceber que o tipo de
seletividade da informação que a imprensa (tendo a polícia como fonte principal)
opera reforça a imagem de que os linchamentos (assim como outras formas de
justiçamento empreendidas por grupos de extermínio ou pelas próprias forças
policiais) atingem somente aqueles que se envolveram com a criminalidade,
sugerindo assim um certo grau de “merecimento” na execução.

1. Perfil dos Linchamentos no Brasil, anos 80

Durante os anos 80 foram levantados 415 casos, havendo picos em 1984


e 1987 determinados pelos casos que ocorreram nos estados de São Paulo e
Bahia.
Houve uma proporção equilibrada entre os linchamentos consumados por
um lado, e as tentativas e ameaças por outro. Os linchamentos consumados são
aqueles que têm um desfecho fatal; já as tentativas se referem aos casos em que
a população inicia o ato de linchar, mas a vítima é salva por alguém e, apesar de
ferida, acaba sobrevivendo; por fim, as ameaças de linchamento referem-se aos
casos em que a população persegue algum suspeito para linchá-lo, mas não o
consegue alcançar, ou ainda quando a população tenta retirar alguém de
delegacias, cadeias, presídios, fóruns, viaturas policiais, quartéis etc, mas é
impedida pela polícia. Observamos que ao longo dos anos 80, os linchamentos
consumados concentram metade das ocorrências, sendo a outra metade de
tentativas e ameaças.
Nota-se uma maior tendência para a divulgação de tentativas e ameaças
no estado de São Paulo (59%) e de linchamentos consumados nos demais
estados (62%). Esta distinção deve-se basicamente ao peso do jornal Notícias
Populares, que tendo uma linha editorial basicamente voltada para os
acontecimentos violentos do estado, noticia casos que a chamada imprensa
nacional não considera relevantes, como espancamentos de pessoas sem
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 189

desfecho fatal. No entanto, certamente essas ocorrências são muito mais


freqüentes do que os linchamentos que levam à morte das vítimas.

Dos 415 casos de linchamentos no Brasil noticiados pela imprensa durante


os anos 80, 68% vitimaram apenas uma pessoa, sendo que foi registrado o
máximo de seis vítimas em um único caso. Assim, o número de vítimas de
linchamentos e tentativas registrados pela imprensa pesquisada nos anos 80 foi
de 594 pessoas, com uma média de 1,4 vítimas por caso. Observamos, contudo,
que os casos com mais vítimas foram registrados com maior freqüência fora do
estado de São Paulo. Casos com ao menos duas vítimas somam 26% em São
Paulo e 38% no restante do país. Mais uma vez essa distinção deve estar ligada
à tendência da imprensa em noticiar os linchamentos dos demais estados
quando são mais “espetaculares”, com desfecho fatal e mais de uma vítima, ao
passo que Notícias Populares divulga casos com menor impacto ocorridos em
São Paulo.

Em relação ao local de ocorrência dos linchamentos, em todo o Banco de


Dados, predominam os casos em locais de circulação, que englobam: ruas,
vielas, praias, praças, largos, feiras livres. Este fato indica o caráter espetacular
que é definidor do linchamento. De fato, a ação de linchar tem na exemplaridade
uma de suas mais importantes motivações e para garanti-la, a cena pública, “em
praça aberta” é fundamental. Esta categoria representa quase 40% dos casos
nos anos 80.
Em seguida aparecem os casos ocorridos em locais de trabalho: fábricas,
prédios públicos, postos de saúde, armazéns, lojas, mercados. A maioria dos
casos nesses locais refere-se a momentos em que funcionários e clientes
reagem a uma tentativa de roubo ou furto. Nos anos 80, linchamentos com esse
perfil representavam 19% do total.

Casos similares puderam ser observados em situações de ajuntamento


fora dos ambientes de trabalho, que incluem locais de lazer, estadia, práticas
religiosas e alimentação: bares, lanchonetes, salões de bailes e festas, casas de
diversões eletrônicas, escolas de samba, forrós, igrejas, estádios, clubes,
pizzarias, restaurantes, padarias, motéis e hotéis. Nesses locais, predominam
dois tipos de linchamento: em reação a uma tentativa de furto ou roubo; ou em
conseqüência de brigas, quando parte dos freqüentadores decide justiçar alguém
que está agredindo (às vezes, armado) outras pessoas. Nestes casos, o alto
consumo de bebida alcoólica contribui largamente para o desfecho. Nos anos 80,
representavam mais de 10% dos linchamentos.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 190

A seguir, vêem os locais de moradia: - residência da vítima, residência em


que a vítima foi flagrada cometendo algum delito, conjuntos habitacionais,
habitações coletivas, favelas - com cerca de 6% dos casos nos anos 80. A
pequena proporção de casos nestes locais não surpreende, uma vez que neles é
bloqueada a publicidade do ato. Também os mesmos índices de ocorrência dos
linchamentos em lugares ermos (terrenos baldios, matagais, capinzais, estradas,
pontes, cemitérios, aldeias e fazendas) atestam, por um lado, a mencionada
importância da espetacularidade do linchamento, e, por outro, o caráter urbano
dos linchamentos noticiados no Brasil.
É ainda menor a incidência de casos ocorridos em meios de transporte:
ônibus, garagens de ônibus, pontos de ônibus, estações de metrô e trens. Esses
casos aparecem como represália a uma tentativa de furto ou roubo contra a qual
os passageiros reagem. Representam 2,4% dos linchamentos nos anos 80.

Com a mesma porcentagem está a categoria referente a casos em


instituições de controle social: delegacias, cadeias, presídios, fóruns, viaturas
policiais, quartéis144. Nesses locais ocorreram basicamente dois tipos
linchamento: conseqüência de ação dos presos que brigam ou que decidem
justiçar a seu modo o autor de um crime considerado muito grave; ou quando a
população busca seqüestrar algum detido, o que incorre, muitas vezes, em atos
de vandalismo e depredação, manifestando sua insatisfação com o sistema penal
institucional.

Outro aspecto a se considerar para qualificar a ação dos linchamentos é a


sua motivação. Nos anos 80, os linchamentos são predominantemente motivados
por delitos cometidos contra a pessoa145. Entre esses, aparecem em primeiro
lugar, com cerca de um terço do total, os casos de homicídio, que incluem
latrocínios e estupros seguidos de morte, ressaltando o fato que as vítimas
destes crimes muitas vezes eram crianças.

Com pouco mais de um quarto das ocorrências, aparece a categoria:


atentados ao patrimônio (roubos146, furtos, invasão de residências,

144
Os quartéis foram inseridos na categoria instituições de controle social porque os linchamentos
que ai ocorrem se referem a atentados da população contra policiais militares presos, tal como
ocorre nas demais instituições de mesmo tipo.
145
Quando um linchamento decorria de mais de um crime, considerávamos o mais grave de
acordo com a maior exacerbação da violência.
146
De acordo com o Código Penal, o roubo é o ato de subtrair bens mediante o uso da violência.
Mas nesta pesquisa, foram enquadrados nessa categoria apenas os casos em que o uso da
violência era latente - tipicamente ameaça mediante o uso de armas - ficando os casos em que a
violência foi manifesta com agressões à integridade física na categoria lesões corporais. Do
mesmo modo, nesta categoria lesões corporais incluíram-se os casos de seqüestro, que são
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 191

arrombamentos, assaltos). Convém atentar para o fato, já mencionado por José


de Souza Martins, que a maior parte dos linchamentos ocorre entre a população
de baixa renda, para quem um atentado ao patrimônio tem a dimensão de
atentado à sobrevivência (MARTINS, 1989).
É ainda maior a proporção de linchamentos desencadeados por estupros,
atentados violentos ao pudor ou abuso sexual de adultos, adolescentes e
crianças. Essa categoria representa, no Brasil, perto de 15% dos casos dos anos
80.

Em quarto lugar, e com quase a mesma proporção, estão os linchamentos


provocados por lesões corporais: agressões, assaltos com agressão,
baleamento, esfaqueamento, tiros a esmo, atropelamento, tortura, brigas,
tentativas de homicídio e seqüestros.
A categoria vários crimes refere-se a casos cujas vítimas eram
identificadas como autoras de uma série de delitos que vinham ocorrendo na
região - estupros, roubos, agressões, assassinatos - e, em dado momento, a
população decide eliminá-la. Ressalte-se que essas vítimas por vezes definem a
si mesmos como delinqüentes, e utilizam-se disso para impor o medo,
publicizando seus atos delinqüenciais, extorquindo e ameaçando. Em outras
vezes, porém, são “suspeitos”, pessoas a quem são atribuídos delitos que estão
ocorrendo na região, mas cujos autores não estão claramente identificados.
Linchamentos desse tipo são os que mais freqüentemente decorrem da ação de
grupos de patrulhamento formados por moradores do bairro, para garantir a
segurança da região, em épocas em que a freqüência de delitos é muito alta.
Esse tipo de linchamento conta com mais organização, planejamento e, por
vezes, até com lideranças. Nesta pesquisa, os linchamentos motivados por vários
crimes representam pouco mais de 3% nos anos 80.
Por fim, aparecem como fator de motivação de linchamento os estigmas:
casos de pessoas espancadas por serem portadores de alguma doença
contagiosa, como a AIDS, ou por apresentarem aparência e atitudes “suspeitas”,
que, por vezes acabam motivando os linchamentos cometidos “por engano”, em
que alguém é confundido com o autor de um delito e morto em decorrência dessa
confusão. Casos desse tipo não passam de 1% do total.

É importante atentar que muitas das notícias sobre linchamentos estão


inseridas em matérias muito mais amplas relativas ao crime supostamente
cometido pelo linchado. Isso certamente influencia no fato de a maior parte das

considerados, pelo Código Penal, atentado ao patrimônio. No entanto, a violência contra a pessoa
é o fator que mais parece instigar a ira da população.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 192

notícias tratar de linchamentos motivados por crimes contra a pessoa com


exacerbação da violência.
Vítimas

Como vimos, o perfil da vítima do linchamento corresponde ao da vítima


da criminalidade urbana geral: homens jovens, inseridos de forma precária no
mercado de trabalho. O aspecto que melhor indica este perfil é a sua
ocupação147: 45% pertenciam ao mercado informal e/ou setor de serviços gerais
(ajudante de pedreiro, ajudante geral, biscateiro, camelô, catador de papéis,
carroceiro, sorveteiro, vassoureiro); quase um terço dos casos é composto por
trabalhadores com pouca qualificação (garçom, gari, sapateiro, pintor de paredes,
encanador, funileiro, pedreiro, serralheiro, servente, operário, agricultor, bóia-fria,
vaqueiro); 10% eram excluídos do mercado (desempregado, estudante,
aposentado). Os dados corroboram o que José de Souza Martins afirma sobre a
predominância de ocupações “situadas no limite do mercado de trabalho urbano
e no limite do que a própria população parece classificar como trabalho”
(1989:26).

Linchamentos segundo ocupação da vítima, Brasil 80-89

79,3

80,0

40,0
9,4 6,6
2,2 0,5 0,8 1,2

0,0

Excluído do mercado Mercado informal/ serviços gerais


Profissionais liberais/ nível superior Proprietários
Setor de segurança Trabalhadores pouco qualificados
Não informa

Fonte: Banco de Dados da Imprensa NEV-USP

Proprietários (comerciante, empresário, fazendeiro, usineiro)


correspondem a 4%; profissionais liberais e/ou de nível superior (médico, músico,

147
Neste item, a ausência de informação corresponde a 79% dos casos e por isso a análise tem
que ser feita com base nos totais válidos (que excluem a não informação).
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 193

pastor, produtor teatral, professor, advogado, construtor, educador, lutador de


artes marciais) constituem 1%. Os dados sugerem que os linchamentos, apesar
de serem uma forma de justiçamento alternativa ao sistema oficial, reforçam o
claro viés classista que configura a distribuição da justiça no país148. Ressalta, no
entanto, o fato de 6% das vítimas de linchamento do período pertencerem ao
setor de segurança (forças armadas, polícia civil, polícia militar e segurança
privada), em casos caracterizados pela revolta da população contra agentes de
segurança ou autoridades policiais e militares - casos deste tipo são mais
freqüentes no Rio de Janeiro. Nos linchamentos de cidadãos procedentes dos
estratos mais altos e dos agentes de segurança, o questionamento da justiça
formal e da hierarquia social ficam mais evidentes.

Agressores
A genérica categoria populares ultrapassa os 40%. Esta categoria é
utilizada nos casos em que as notícias são muito vagas, não possibilitando
qualquer identificação dos agressores, tratando-se possivelmente de transeuntes,
anônimos que passavam pelo local e reagiram a algum apelo de perseguição a
suspeito, formando o mob lynching mencionado anteriormente.

Outro tipo de agressor também característico dos mob lynchings


corresponde aos freqüentadores do local (cerca de 7%) que aparecem nos casos
de linchamentos ocorridos sobretudo em locais de lazer, estadia, práticas
religiosas e alimentação. São detonados por clientes e empregados do
estabelecimento contra assaltantes ou em decorrência de brigas. Incluem-se
ainda, nesta categoria, os linchamentos cometidos por usuários de
estabelecimentos públicos e comerciais também reagindo a assaltos ou
envolvendo-se em brigas. Não muito distintos, são os linchamentos provocados
por passageiros de transportes públicos (2,2%).
A categoria moradores do local, que se refere a casos em que vizinhos,
familiares da vítima do delito desencadeador do linchamento e outros moradores
do bairro ou da cidade fazem o justiçamento sumário de um suspeito, representa
no Brasil, 34% nos anos 80. Esta categoria aproxima-se mais do vigilantism.

148
Esse predomínio marcante de trabalhadores das extrações mais pobres da população
ultrapassa em muito a fatia representada por essa população no Brasil. Em 1987, as famílias que
ganhavam até 3 salários mínimos compunham 16% da população e a mesma porcentagem era
apresentada pelas famílias de 3 a 5 SMs. Já os linchamentos de pessoas de mais alta renda
ficam bastante abaixo da proporção de famílias brasileiras com mais de 30 SMs, que é de 10% e
também da proporção de chefes de família com nível superior, que é de 13% (Cf. Pesquisa de
Orçamentos Familiares do IBGE, 1997).
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 194
L in c h a m e n to s s e g u n d o p e rfil d o s a g re s s o re s , B ra s il 8 0 -
89

0 ,7
8 ,0
2 ,7
2 ,2
1 ,9
7 ,2
3 4 ,5
4 2 ,9

0 ,0 1 0 ,0 2 0 ,0 3 0 ,0 4 0 ,0 5 0 ,0
P op u la re s /tra ns e u n te s M orad o re s d o lo c a l
F req u en ta do re s d o lo c a l P re s o s /d e ten to s
P as s ag e iro s d o tra n s po rte p úb lic o T rab a lh ad o re s dive rs o s
T a xis ta s N ã o in fo rm a

F o n te : B a n c o d e D a do s d a Im p re n s a d o N E V -U S P

Também semelhante a esse tipo de linchamento, são aqueles provocados


por trabalhadores diversos que, incluindo os taxistas - categoria que se ressalta
sobretudo no estado da Bahia, onde eram comuns os casos de perseguição e
linchamento de supostos assaltantes e assassinos de profissionais da área -
somam mais de 10% do Banco de Dados.

Finalmente, o outro tipo de linchadores dentre aqueles que se


caracterizam por se conhecerem previamente ao ato é o formado por presos e
detentos (1,9%), que resolvem justiçar a seu modo outros detentos dos quais
querem se diferenciar ou lincham em decorrência de alguma briga ou disputa.

Atuação do Estado
Os casos em que a polícia estava presente no momento do linchamento
tentando impedir a sua consumação foram classificados como polícia presente e
reagindo e representam 41% do total noticiado nos anos 80. Este dado é
importante, pois contraria a idéia de que os linchamentos só ocorrem em
ocasiões e localidades em que a polícia não está presente. Em uma parcela
considerável de casos a polícia pôde evitar o confronto e salvar a vítima.
Observa-se assim que na maior parte dos casos em que a polícia está presente,
ela age no sentido de salvar a vítima. Entretanto, em 38% dos casos noticiados a
polícia estava ausente do local no momento do linchamento.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 195

Os casos em que a polícia assiste a violação mas não intervém para salvar
a vítima, por estar num grupo muito pequeno ou não dispor de meios para a
intervenção imediata, definem a categoria polícia presente e impotente. Estes
casos somam pouco mais de 10% do total e aparecem com muito menor
incidência no estado de São Paulo (1,8%) do que nos demais (20%). Esses
casos são, geralmente, aqueles ocorridos em pequenas cidades, em que a
população local vai para as delegacias - normalmente, pouco equipadas e com
pequeno número de policiais, buscar o “justiçamento” de algum preso.

Em 1,2% dos casos, a polícia age no sentido de incentivar o linchamento


ou parece estar de comum acordo com os linchadores, situações em que se
classifica a ação como polícia presente e conivente.

A tu a ç ã o d a p o líc ia n o m o m e n to d o lin c h a m e n to ,
B r a s il 8 0 -8 9

4 5 ,0

3 0 ,0

3 8 ,5 4 1 ,2

1 5 ,0
1 0 ,6 1 ,2 8 ,4

0 ,0
A u s e n te R e a g in d o Im p o te n te C o n iv e n te N ão
in fo r m a
F o n te : B a n c o d e D a d o s d a Im p re n s a d o N E V -U S P

Apesar de a imprensa informar em alguma medida se a polícia está


presente e o que faz durante o linchamento, ela pouco relata sobre providências
posteriores. Em alguns casos, menciona-se que a polícia, além de evitar o
linchamento, ofereceu socorro à vítima, conduzindo-a para ser atendida por um
serviço de saúde. Foram classificados nessa categoria 8% dos casos dos anos
80.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 196

Em 39% dos casos identificou-se alguma informação sobre providências


como registro de boletim de ocorrência (9% do total válido), instauração de
inquérito policial (66%) ou prisão preventiva de algum linchador (7%). Ressalte-se
que o predomínio dos inquéritos policiais é muito mais importante do que a baixa
incidência dos boletins de ocorrência, uma vez que o inquérito é um andamento
posterior que ou inclui o boletim ou dele prescinde.

A tu a ç ã o d a p o líc ia a p ó s o lin c h a m e n to , B r a s il 8 0 -8 9

6 0 ,0

4 0 ,0

5 1 ,1

2 0 ,0
3 2 ,3

8 ,9
4 ,3 3 ,4
-
B. de I n q . P o l ic ia l P r is ã o S o c o rro N ã o in fo r m a
o c o r r ê n c ia

B a n c o d e D a d o s d a Im p re n s a d o N E V -U S P

Há menor incidência de informação sobre andamentos judiciais em geral


no estado de São Paulo (45%) do que nos demais (55%). Isto talvez possa ser
entendido como um viés da imprensa nacional em divulgar um caso ocorrido nos
outros estados apenas quando este tem uma resposta do sistema policial, ou
seja, casos em que não há investigação têm menor probabilidade de serem
divulgados. Outra hipótese é a de que os casos de outros estados são publicados
com um certo atraso em relação àqueles ocorridos em São Paulo, pois
dependem da informação circular por correspondentes e redações diferentes, o
que daria maior possibilidade de já se conhecer a atuação da polícia, ao passo
que a informação em São Paulo circularia com maior rapidez, pelas facilidades
de comunicação, e seriam publicadas antes mesmo de a polícia iniciar as
investigações – o que, não raro, pode ocorrer nos dias subseqüentes ao fato.

De qualquer forma, é importante notar que, de acordo com o que a


imprensa noticia, há casos em que a polícia esteve presente no momento do
linchamento mas não tomou providências para responsabilizar os linchadores. É
possível supor que os casos não consumados (mais da metade) sejam
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 197

considerados de menor gravidade pelas autoridades e por isso, muitas vezes,


não se tornem objeto de registro policial. Pode acontecer também que as
providências policiais sejam tomadas nos dias subseqüentes aos fatos, depois
portanto da publicação da notícia. Por fim pode ocorrer ainda que as notícias de
jornal não dêem importância em divulgar o andamento do caso e excluam essa
informação.

Observe-se que foram colhidas apenas as informações sobre providências


tomadas para apurar as responsabilidades dos linchadores, no entanto aparecem
com muito maior freqüência informações sobre providências tomadas para apurar
o delito cuja autoria é atribuída ao linchado.

2. Perfil dos linchamentos em São Paulo, anos 80


Conforme foi visto, o estado de São Paulo é o que concentra maior
número de casos do Brasil, nos anos 80 - 218 ao todo - com picos nos anos de
1984 e 1986. A maior cobertura dada pela imprensa nacional ao estado de São
Paulo e o uso do jornal Notícias Populares como fonte provavelmente aproximam
mais os dados registrados por esse meio com a realidade das ocorrências neste
estado.

Predominam os casos ocorridos na capital, que representam 45% do total


dos anos 80.

Há um predomínio das tentativas e ameaças de linchamento, que


compõem 59% do total dos casos. Observa-se que há menos casos que
registram um número maior de vítimas, sendo que cerca de 74% dos
linchamentos noticiados pela imprensa no período vitimaram uma pessoa. Ao
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 198

todo foram 294 as vítimas de linchamentos, tentativas e ameaças e a média foi


de 1,3 vítimas por caso.

Quanto ao local de ocorrência, verificamos que o estado de São Paulo


registrava mais da metade de seus casos nos locais de circulação.

No que se refere aos motivos desencadeadores, o predomínio é dos


linchamentos iniciados em decorrência de homicídios e de atentados ao
patrimônio, que totalizam, cada qual, quase um terço dos casos dos anos 80. A
alta incidência de linchamentos provocados por atentados ao patrimônio
correlaciona-se com a maior quantidade das tentativas de linchamentos, uma vez
que esses são os casos mais típicos de reação de transeuntes a apelos para
perseguição de “ladrões”, em locais mais movimentados onde, correntemente, a
presença de policiais consegue impedir o desfecho fatal. Esse tipo de caso é
mais freqüentemente noticiado pelo jornal Notícias Populares e por isso da sua
alta freqüência em São Paulo.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 199

O percentual de identificação das vítimas em São Paulo supera a média


para o Brasil, chegando a 83% do total. Essa melhor qualidade da informação
provavelmente decorre do fato de a maior parte das fontes ser produzida nesse
estado.

Entre os casos que informam a ocupação das vítimas, o predomínio é do


mercado informal (42%), seguido pelos trabalhadores pouco qualificados (37%)
e, em bem menor quantidade, os linchamentos de excluídos do mercado (12%).
Desse modo mostra-se que em São Paulo a quase totalidade dos linchamentos
cometidos nos anos 80 vitimou os segmentos mais pobres da população149.

Também em relação à idade da vítima, a ausência de informação é menor


do que para o país como um todo, embora ainda seja alta - 28%. A maioria das
vítimas está concentrada na faixa etária que vai dos 20 aos 29 anos,
correspondendo a 33% do total. Os homens compõem a quase totalidade dos
casos: foram 291 vítimas de um total de 294, ou seja, 99%.

Seguindo a tendência geral, nos anos 80 em São Paulo, existe um


predomínio da não informação sobre os antecedentes criminais das vítimas, em
incidência tão alta quanto para o Brasil todo: 76%. Para o restante, temos que
22% apresentavam antecedentes.

149
Essa alta incidência de linchamentos contra os mais pobres ultrapassa consideravelmente as
proporções representadas por esses segmentos na população: entre 1980 e 1984, as famílias
pobres e miseráveis, na região metropolitana de São Paulo, representavam respectivamente 43%
e 19% da população (LOPES & GOTTSCHALK, 1990).
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 200

Com relação à das vítimas de linchamento, o índice de não informa


corresponde à quase totalidade dos dados disponíveis para os anos 80: 93%, o
que inviabiliza qualquer tentativa de análise desse aspecto, mas corrobora o que
já foi mencionado sobre o desinteresse da imprensa brasileira para a divulgação
desse tipo de dado.
Em relação à qualificação dos agressores, a categoria populares, que
caracteriza os casos de mob lynching, corresponde a 44% do total. A categoria
moradores do local, que se aproxima mais do vigilantism, representa em São
Paulo, 33% nos anos 80.

No que se refere à atuação da polícia durante os linchamentos, em São


Paulo nos anos 80, predominam os casos em que a polícia aparece como
presente e reagindo: 47% do total noticiado. No entanto, em 45% dos casos a
polícia estava ausente do local no momento do linchamento.

Em relação ao andamento do caso na justiça, entre os que trouxeram a


informação, 13% referia-se a registro de boletim de ocorrência; 58% a inquéritos
policiais; 3% a prisão preventiva. A categoria socorro à vítima prestado pela
polícia nos casos de tentativa de linchamento aparece em 25% dos casos dos
anos 80.

3. Perfil dos linchamentos nos outros estados, anos 80


De um modo geral, o perfil dos casos de linchamento do Banco de Dados
ocorridos no restante do país não difere muito dos casos de São Paulo. As
particularidades dos casos nesses estados referem-se sobretudo ao número de
vítimas por caso de linchamento, que é mais elevado nos demais estados (1,5
vítima/caso) do que em São Paulo (1,3). Também há diferença em relação à
atuação da polícia, com participação maior de casos em que ela estava presente,
porém impotente para salvar a vítima (20%). Além disso, observa-se que os
casos no restante do país trazem com maior freqüência informações sobre
inquéritos policiais (29%) e prisões de linchadores (5%).
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 201

Essa análise aponta que os casos ocorridos fora do estado de São Paulo
ganham espaço nos jornais nacionais quando são “grandes casos” de
linchamento, em que há participação de muitas pessoas e também várias vítimas.
São casos que resultam em morte, às vezes provocada de forma
exageradamente cruel, nos quais a polícia se vê incapaz de intervir, mas que,
devido ao seu grande impacto local, geram uma resposta do aparato judicial, sob
forma de investigações, indiciamentos e prisões. Essa tendência dificilmente
pode ser comprovada com dados quantitativos, na forma como está organizado
este Banco de Dados. No entanto, a experiência do trabalho qualitativo, realizado
em outras pesquisas, permite observar que trata-se de casos de grande impacto
local.

Distribuição da atuação da polícia depois do linchamento,


outros estados 80-89

50,0
40,0
30,0 46,7
39,1
20,0
10,0 6,1 5,6 2,5
-
Inquérito Socorro Prisão Boletim de Não
Policial Ocorrência informa

Fonte: Banco de Dados da Imprensa do NEV-USP


Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 202

4. PERFIL DOS LINCHAMENTOS NO BRASIL, ANOS 90

Entre 1990 e 1996 foram noticiados 380 linchamentos no Brasil, com pico
de ocorrências em 1991, ano que concentra 37% do total. Este pico certamente
resulta da maior atenção dada pelos meios de comunicação de massa ao
fenômeno do linchamento após a eclosão de um grande caso no final de 1990,
em Mato Grosso, conhecido como “linchamento de Matupá”150.

O linchamento de Matupá estimulou a veiculação pela imprensa de muitos


outros pelo país todo, mas o predomínio do estado de São Paulo no total do
Banco de Dados manteve-se, representando, entre 1990 e 1996, 35% dos casos.
A principal mudança, nesse período em relação aos anos 80, ocorreu em relação
ao estado do Rio de Janeiro, em que a imprensa noticiou menos casos, fazendo
cair sua representatividade no total para 15%, com um pico em 1993. Esta queda
na proporção de casos no Rio de uma década para outra provavelmente decorre
da mudança da metodologia da pesquisa no que se refere à seleção das fontes
entre os jornais cariocas mencionada anteriormente. O Rio de Janeiro foi
ultrapassado pelo estado da Bahia, onde se deu 24% dos linchamentos
noticiados entre 1990 e 1996.

D is t r ib u iç ã o d o s lin c h a m e n t o s p o r e s t a d o , B r a s il 9 0 - 9 6

26% 35%

24% 15%

S ã o P a u lo R io d e J a n e ir o B a h ia O u tro s e s ta d o s

F o n te : B a n c o d e D a d o s d a Im p re n s a N E V -U S P

150
No dia 23 de novembro, na pequena cidade de Matupá, três assaltantes fizeram reféns em
uma casa, que foi então cercada pela polícia e pela população local. Os assaltantes acabaram
por render-se e foram baleados pelos policiais e linchados pela população, que ateou fogo às
vítimas ainda vivas. Um cinegrafista amador registrou os acontecimentos e as imagens foram
divulgadas pela televisão e pela imprensa, o que deu mais impacto ao caso.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 203

A seguir aparecem, em proporções muito menores, Minas Gerais,


Pernambuco e Paraná. Nesses estados, há maior ocorrência de linchamentos em
cidades pequenas (52%). Ao contrário, nos três estados de maior incidência de
casos - São Paulo, Rio e Bahia - mais de 80% dos linchamentos se deram nas
regiões metropolitanas formadas pelas capitais.

Ao longo dos anos 90, observamos que metade dos casos resultou na
morte da vítima. Atentando-se apenas para os linchamentos que não tiveram um
desfecho fatal, vemos que as tentativas apresentam incidência duas vezes maior
que as ameaças - 34% e 16% respectivamente. Desse modo, verifica-se uma
tendência de a imprensa noticiar casos com maior violência.

Cerca de 80% dos casos de linchamento noticiados pela imprensa no


período vitimaram uma pessoa e o caso mais excepcional tinha 12 vítimas. Deste
modo, a média de vítimas por caso não ultrapassa 1,3. Apesar do caso com mais
vítimas ter ocorrido em São Paulo, nota-se que o número de vítimas por caso nos
estados de São Paulo, Rio e Bahia é inferior ao dos demais. Excluindo-se esses
estados, os casos que apresentam apenas uma vítima não ultrapassam 67% do
total. Ao todo foram 515 pessoas linchadas ou ameaçadas de linchamento no
período. Destas, 231 (45%) não sobreviveram.
Quanto ao local de ocorrência, notamos que os jornais registram, para o
país, que 27% dos casos ocorreram nos locais de circulação. A grande diferença
com relação aos casos noticiados nos anos 80 é o aumento considerável das
ocorrências em instituições de controle social, que chegam a atingir 23%.
Também surge uma categoria nova, que apresentou pouca freqüência: as
instituições fechadas (instituições de abrigo de crianças e adolescentes,
hospitais) que representam um 1% das ocorrências.
D istribuição d os locais de oco rrência dos
lincham ento s, B rasil 90-96

27,9
2,1
5,3
2,4
7,9
3,4
26,6
1,1
23,4

0,0 5,0 10,0 15,0 20,0 25,0 30,0


Instituiç. de controle Instituições fechadas Locais de circulação
Locais de lazer Locais de m oradia Locais de trabalho
Lugares erm os M eios de transporte N ão inform a
F onte: B anco de D ados da Im prensa do N E V -U S P
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 204

De um modo geral, continuam predominando os linchamentos motivados


por crimes contra a pessoa, com 70% das ocorrências. E entre estes, dominam
os linchamentos iniciados em decorrência de homicídios, que totalizam 38% dos
casos dos anos 90. Os casos motivados por atentados ao patrimônio
representam 21% e a maior parte destes casos concentra-se nas regiões
metropolitanas de São Paulo, Rio e Bahia, confirmando a tendência dos mob
lynchings (resultantes dos apelos do tipo “pega ladrão”) serem mais freqüentes
nas grandes cidades.

Chama a atenção, nos anos 90, o aparecimento de uma nova categoria


entre os motivos que levam ao linchamento: as transgressões, que incluem os
casos de corrupção (população que se revolta contra políticos), tráfico e consumo
de drogas. É possível que já ocorressem casos desse tipo antes, mas é
significativo que eles apareçam (embora com freqüência baixa, de apenas 1,8%)
justamente quando a imprensa começa a dar grande destaque a escândalos de
corrupção e também ao suposto crescimento do tráfico de drogas - ambos
alçados ao posto de “grandes inimigos públicos”, após o impeachement do
Presidente Fernando Collor de Mello e a declaração de guerra do governo dos
Estados Unidos ao tráfico internacional de drogas. Com praticamente a mesma
incidência, são noticiados linchamentos decorrentes de estigmas e vários crimes.

Vítimas
Do total de 594 vítimas nos anos 90, 75% foram identificadas. No entanto,
assim como para os anos 80, a construção do perfil das vítimas de linchamentos
dos anos 90 é, em alguns aspectos, prejudicada pelo alto índice de ausência de
informação.

Em relação à ocupação da vítima, esse índice chega a 66% dos casos.


Entre os casos que trazem a informação, o predomínio é de trabalhadores com
pouca qualificação ou mesmo excluídos do mercado.

Ainda entre as chamadas classes médias, temos duas novas categorias:


os funcionários de nível médio, que incluem tesoureiros, funcionários públicos,
balconistas, gerentes, vendedores e farmacêuticos (4%) e os operários do setor
industrial (3,4%). Surge também uma nova categoria entre a elite brasileira: os
políticos - que incluem deputados, vereadores e prefeitos (15%). E com
incidência bastante superior à apresentada nos anos 80, estão os profissionais
liberais e/ou de nível superior (9%), e os proprietários (6%). Casos desse tipo são
mais freqüentes nos estados fora do eixo Rio-São Paulo, devido ao caráter de
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 205

excepcionalidade que caracteriza a cobertura pela imprensa nacional dos


linchamentos nesses outros estados. O que de fato surpreende é que esses
números, se confrontados com a distribuição por renda das famílias brasileiras,
indicam uma maior incidência de linchamentos contra as pessoas mais pobres e,
também contra as mais ricas151. Esta é uma distinção importante em relação aos
anos 80, quando linchamentos de membros das elites eram praticamente
inexistentes nas notícias de jornais.

Agressores
A categoria moradores do local, que se aproxima mais do vigilantism
americano, representa 57% dos agressores nos anos 90. Também semelhante a
esse tipo de linchamento, são aqueles provocados por trabalhadores diversos
que somam 9% das ocorrências. Finalmente, o último tipo de linchadores que
apresentam a característica de conhecerem-se previamente ao ato é formado
pelos presos e detentos.

A principal mudança em relação aos anos 80 é queda na participação da


categoria populares, característica dos casos de mob lynching, que passa a 14%
do total. O outro tipo de agressor característico dos mob lynchings é formado
pelos freqüentadores de locais públicos (5%). Não muito distintos são os
linchamentos provocados por passageiros de transportes públicos (2,6%), que,
assim como os freqüentadores, reagem a tentativas de assalto. Como era
esperado, esses casos são mais freqüentes nas grandes cidades.

Muito indicativo do grau de mobilização que atingiu o linchamento é o


número de agressores. Entre os casos que trazem essa informação, a maior
parte (36%) é constituída de linchamentos cometidos por grupos reduzidos de
pessoas (até trinta). Do mesmo modo que ocorre com o número de vítimas, há
menor porcentagem de casos quando é maior o número de agressores. Assim,
temos 27% dos casos cometidos por grupos entre quarenta e noventa pessoas;
18% de cem a duzentos linchadores; 6% de trezentos a quatrocentos; os casos
com mais de quinhentos agressores - e em algumas vezes chegam a cinco mil -
somam 12% dos casos. Essa distribuição não surpreende se consideramos que
possibilidades de grandes mobilizações são mais eventuais e caracterizam, em
geral, casos em que a população se dirige para cadeias, delegacias ou presídios
onde se encontra detido o suspeito de um crime que causou a indignação da
população, e tenta dali retirá-lo para garantir sua execução. Muito diferentes são

151
Ver nota 11.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 206

os grupos pequenos de linchadores, que costumam ser constituídos por pessoas


que se conhecem e que, por vezes, até se organizam para perseguir e linchar.

Apesar das notícias trazerem, muitas vezes, o número aproximado de


agressores - em geral baseadas em cálculos policiais - não é possível saber o
número exato de participantes, sobretudo nesses casos que mobilizam centenas
e até milhares de pessoas. Entretanto, algumas vezes, as notícias trazem a
identificação de um certo número delas. Nos anos 90, no Brasil todo, 91 pessoas
foram identificadas como agressoras em cerca de 8% dos linchamentos
noticiados. O número máximo de agressores que a polícia conseguiu identificar
em um único linchamento foi vinte pessoas, no mencionado caso de Matupá. Mas
na maior parte das vezes, não passa de um agressor identificado.

Atuação do Estado
Não há mudanças importantes em relação aos anos 80 no que se refere à
atuação da polícia durante o linchamento. Também predominam os casos em
que a polícia aparece como presente e reagindo: 39%. No entanto, em 41% dos
casos noticiados a polícia estava ausente do local no momento do linchamento.

Atuação da polícia no momento do linchamento,


Brasil 90-96

45,0

30,0
41,1 39,2
15,0
11,3 0,8 7,6 %
0,0
Ausente Não Conivente Impotente Reagindo
Informa

Fonte: Banco de Dados da Imprensa do NEV-USP

Já em relação ao andamento do caso na justiça, a ausência de informação


é o predominante: 70% dos casos dos anos 90 não apresentaram qualquer dado
a respeito. 13% dos casos referiam-se a registro de boletim de ocorrência; 22% a
inquéritos policiais e investigações; 2,9% a prisão preventiva. Observe-se que em
relação aos anos 80 as informações sobre alguma providência para
responsabilização dos agressores diminuiram em 75%.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 207

5. Perfil dos Linchamentos em São Paulo, anos 90

No estado de São Paulo, nos anos 90, predominam os casos ocorridos na


capital, onde foram noticiados mais da metade dos 133 linchamentos de todo o
período. Em seguida, aparece a Região Metropolitana da Grande São Paulo,
onde foram noticiados pouco mais de um quarto dos casos. Em comparação aos
anos 80, observamos uma tendência crescente dos casos noticiados no
município de São Paulo e em cidades do interior e uma tendência decrescente
dos casos nos demais municípios da Grande São Paulo.

Bem diferente do ocorre com a média do país, ao longo dos anos 90, em
São Paulo, observamos que as tentativas de linchamento constituem a maior
parte dos casos (44%), sendo seguidas pelos linchamentos consumados (38%) e
as ameaças (19%).

Ao todo, 175 pessoas foram linchadas ou ameaçadas de linchamento no


período. Destas, 53 não sobreviveram. Observa-se uma tendência decrescente
na incidência de linchamentos à medida que cresce o número de vítimas, sendo
que cerca de 84% dos casos de linchamento noticiados pela imprensa no período
vitimaram uma pessoa e o caso com maior número de vítimas foi uma ameaça de
linchamento contra 12 pessoas152. Desse modo, a média de vítimas por caso não
difere daquela dos anos 80.

152
Aconteceu no interior de São Paulo, Itatinga, quando vereadores da cidade sofreram ameaça
de linchamento por aprovarem a formação de uma CPI para iniciar um processo de cassação ao
mandato do prefeito, acusado de comprar máquinas sem licitação. Uma multidão calculada em
duas mil pessoas cercou o prédio da Câmara Municipal e obrigou os vereadores a saírem de lá
sob escolta policial.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 208

No que se refere ao local de ocorrência, o estado segue as tendências


gerais do país, registrando 28% de seus casos nos locais de circulação. E em
seguida, aparecem as instituições de controle, com 23%.

Dentre as 175 vítimas de linchamentos em São Paulo nos anos 90, 78%
foram identificadas, mas a falta de informação sobre aspectos que permitam
caracterizar essas vítimas é bastante alta. Apesar disso, percebe-se que o perfil
da vítima em São Paulo não é substancialmente diferente do restante do país.
Entre os casos que informam a sua ocupação, por exemplo, permanece o
predomínio de trabalhadores pouco qualificados (29%).

Entre as notícias que trazem a informação sobre a idade das vítimas,


predominam os jovens. Comparando esses números com a divisão etária da
população paulista, observamos que eles se desviam do padrão: entre os 20 e os
29 anos, a concentração de vítimas supera em quase 70% a população paulista
nesta faixa. Desse modo, percebemos que a tendência dos linchamentos em
relação à faixa etária de suas vítimas segue a mesma apresentada pelos
homicídios em geral: de maior concentração entre os jovens153.
Os homens compõem a maioria absoluta dos casos: foram 154 vítimas de
um total de 175, ou seja, 88%. Entre as demais, 4,6% eram mulheres e 7% dos
casos não apresentam dados a esse respeito.
Nos anos 90, em São Paulo, existe um predomínio da não informação
sobre os antecedentes criminais das vítimas: 79%. Para o restante, temos que
19% apresentavam antecedentes. Igualmente, predomina a não informação
sobre a origem étnica das vítimas: 97%.

Entre os casos que trazem dados sobre o número de agressores, a


metade é constituída por grupos reduzidos de pessoas (até trinta) e um quarto
dos casos foi cometido por grupos entre quarenta e sessenta pessoas.
Percebemos uma tendência maior para este estado do que para o Brasil como
um todo em noticiar casos de grande mobilização popular: 24% ao todo. Apesar
dessa proporção de casos com grande número de linchadores, nos anos 90, em
São Paulo, apenas 27 pessoas foram identificadas como agressoras em cerca de
12% dos linchamentos noticiados. O número máximo de agressores que a polícia
conseguiu identificar em um único linchamento foi quatro pessoas.

Conforme foi visto, a literatura sobre os linchamentos privilegia uma


tipologia dual na qual se diferenciariam linchamentos reacionários, bourbonianos

153
Na cidade de São Paulo, a taxa de homicídios está em 49,8/100.000 habitantes; mas entre os
jovens de 15 a 24 anos, ela sobe para 209,3/100.000 habitantes. (CEDEC, Mapa de Risco da
Violência, São Paulo, 1996)
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 209

e ou provocados por justiçadores de um lado e, por outro lado, linchamentos


provocados por proletários, por população pobre ou por moralistas ou
conservadores. Nos estudos brasileiros, essa tipologia foi basicamente definida
tendo como referência a região de ocorrência, distinguindo-se os linchamentos
que ocorrem nas pequenas e nas grandes cidades, e nestas diferenciando-se
ainda os do centro e os da periferia. Observando os dados para o estado de São
Paulo nos anos 90, podemos tentar algumas análises em direção a essa
tipologia154, enfocando dois aspectos que poderiam definir as qualificações feitas
pela literatura a respeito dos linchamentos: o perfil do agressor e o motivo
desencadeador.

Em relação aos agressores, temos que em todas as regiões do estado


predominam os aqueles qualificados pela imprensa como moradores dos bairros,
que incluem os familiares, amigos e vizinhos da vítima do crime que motivou o
linchamento. Esse seria o tipo de agressor mais característico dos casos de
revolta de pessoas vitimadas diretamente ou seus familiares e amigos, que
possivelmente se conhecem, e até podem ter, de algum modo, se organizado
contra um “suspeito” também conhecido – tipo chamado pela literatura de
vigilantism. Esse casos seriam mais típicos das cidades do interior ou dos bairros
periféricos, mas os dados não levam necessariamente a essa conclusão, pois as
distinções por região são muito tênues: essa categoria de linchadores representa
43% dos casos no município de São Paulo, 46% na Região Metropolitana da
Grande São Paulo (excluída a capital) e 50% nas cidades do interior do estado.

154
Ao analisarmos o município de São Paulo como centro de uma região metropolitana e os
municípios que compõem a Grande São Paulo como sua periferia, estamos fazendo
generalizações redutoras. De fato, no município de São Paulo, também há linchamentos que
ocorrem nas suas regiões periféricas, assim como nos demais municípios, linchamentos ocorrem
em seus centros. Em relação ao primeiro aspecto, temos alguns dados, embora em mais de 8%
dos casos dos anos 90, não haja informação sobre o bairro em que ocorreu o linchamento. Na
região central ampliada (que abrange a região mais rica e bem estruturada da cidade) ocorreram
cerca de 18% dos linchamentos; nas região Sul, 22%; na região Leste, 26%, na região Norte,
24%; na região Oeste, 1,4%. Entretanto, a massa de dados para cada uma dessas regiões é
muito pequena para se fazer uma análise que considere tais distinções.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 210

L in ch am e n to s seg u n d o q u a lificaç ão d o a g res so r,


S ão P au lo 90 -96

3,0
6,0

9.8

10 ,0

10 ,0
15 ,2

45 ,0

0,0 25 ,0 50 ,0
m orad ores /vizin h os p op u lares
p res id iá rios c ateg orias p rofis sion ais
freq ü en tad ores d o loc al n ã o in form a
p as s ag eiros
F o nte : B a nc o de D a do s da Impre ns a do NE V-US P

Outra característica do perfil de agressores presente nos casos de tipo


vigilantism seria a dos linchamentos cometidos por categorias profissionais.
Esses casos são resultado da ação de um grupo de trabalhadores que flagram
algum delito ou de uma categoria que procura fazer o justiçamento do assassino
de um colega. Compõem cerca de 11% dos casos no município de São Paulo e
em sua Região Metropolitana, e não ultrapassam 8% no interior.
Os linchamentos cometidos por presidiários assemelham-se, em alguma
medida, com esses. Há dois tipos de linchamentos com agressores desse perfil:
o primeiro decorre de brigas entre os detentos e o segundo dá-se quando é preso
um indivíduo identificado com algum crime “hediondo”. Presos e detentos
cometeram 7% dos linchamentos ocorridos no município de São Paulo, 8% dos
casos do interior e 20% da Grande São Paulo, indicando que nesta região a
situação carcerária é mais grave. Ressalte-se que é responsabilidade das
autoridades policiais garantir a integridade física de seus detentos, o que significa
que os linchamentos ali ocorridos são resultado da displicência, omissão ou, até
mesmo, da conivência dos policiais e carcereiros.
Ao linchamento de tipo vigilantism, contrapõe-se um mais desorganizado,
realizado por pessoas que não se conhecem, que não foram diretamente
atingidas pelo crime desencadeador e também não conhecem o linchado - o mob
lynching. Nesse segundo tipo, quando o ato acontece nas ruas em conseqüência
da ação de transeuntes anônimos, os linchadores são qualificados como
populares. Agressores com esse perfil predominam no município de São Paulo
(18%), sendo menos freqüentes na Grande São Paulo e no interior, onde não
chegam a 12% dos casos.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 211

Também característicos desse tipo de linchamento, são os casos


provocados por passageiros de transporte público que, como já foi visto, reagem
a alguma tentativa de assalto. A maior parte desses casos concentra-se no
município de São Paulo, não tendo sido noticiado qualquer caso no interior e
aparecendo com menor incidência na Grande São Paulo. Também os
linchamentos cometidos por freqüentadores de lugares públicos são, geralmente,
reações a tentativas de assalto. E do mesmo modo, eles se concentram no
município de São Paulo (12% do total desta região), apresentando quatro vezes
mais casos do que na Grande São Paulo e no interior. A maior incidência de
linchamentos cometidos por transeuntes, freqüentadores de locais de lazer e
passageiros de transportes públicos no município de São Paulo corrobora as
tendências apontadas pelos demais estudos brasileiros.

O outro aspecto que permite verificar distinções entre os linchamentos


ocorridos no centro, na periferia ou no interior refere-se ao seu motivo
desencadeador. Em todo o estado de São Paulo, predominam os linchamentos
motivados por homicídios, mas com diferenças consideráveis entre as regiões:
29% na cidade de São Paulo, 38% no interior do estado e 40% na Grande São
Paulo.
Em relação aos casos de estupro ou atentado violento ao pudor, as
diferenças são ainda mais importantes. Esses casos representam 25% das
ocorrências na capital, 29% na Grande São Paulo e 15% no interior.
No interior, há maior incidência de linchamentos decorrentes de atentados
ao patrimônio e de lesões corporais, cada um representando cerca de 19% dos
casos. Crimes de lesões corporais provocaram 23% dos linchamentos na capital
e apenas 9% na Grande São Paulo. Os atentados ao patrimônio representam
15% dos casos de São Paulo e somente 6% na sua Região Metropolitana. Essa
maior representatividade dos atentados ao patrimônio no município de São Paulo
do que na Grande São Paulo corrobora a análise já mencionada, segundo a qual
seriam mais freqüentes nas regiões centrais das cidades os linchamentos
decorrentes da reação de transeuntes, freqüentadores de lugares públicos ou
passageiros de transporte público a tentativas de assaltos, furtos ou roubos.

Mas para podermos qualificar um linchamento de “conservador”,


“reacionário” ou “moralista”, como fizeram alguns dos estudos brasileiros
anteriores, temos que atentar para os casos que tiveram como motivos
desencadeadores categorias pouco relevantes em termos quantitativos: os
estigmas sociais e as transgressões. Entre os primeiros, não há nenhum caso no
interior do estado e eles representam apenas 1,4% da capital e 2,9% da Grande
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 212

São Paulo. Já as transgressões não aparecem entre os estopins de linchamentos


na Região Metropolitana, mas o foram em 1,4% dos casos da capital e 3,8% do
interior. Essas baixas incidências não permitem portanto verificar as tendências
apontadas pela literatura. Também a ausência de informação no noticiário da
imprensa a respeito da origem social dos agressores (se de classe média ou
proletários) não permite inferências daquele tipo.

No que se refere à atuação da polícia durante os linchamentos paulistas


nos anos 90, predominam os casos em que a polícia aparece como presente e
reagindo: 43% do total noticiado. Mas, em 38% dos casos noticiados a polícia
estava ausente do local no momento do linchamento. Em São Paulo, de acordo
com as notícias, a polícia está mais freqüentemente presente no momento dos
fatos e reagindo a favor da vítima do que em outros estados

D is trib u içã o d a atu a ç ão d a p olíc ia n o m om en to d o


linc h a m en to , S ã o P a u lo 9 0 -9 6
5 0,0
4 0,0
3 0,0
3 8,3 4 2,8
2 0,0
1 0,0 1 4,3 3 ,8
0 ,8 %
-
A use n te Não C o n ive nte Im p o te n te R e a gind o
Info rm a

F o nte: B an co de D a do s d a Im pren sa do N E V -U S P

Entretanto, no que se refere ao andamento do caso na justiça, a média


para o país de instauração de inquéritos visando apurar as ocorrências é maior
do que m São Paulo, onde 23% do total válido informaram sobre registro de
boletim de ocorrência, 68% sobre inquéritos policiais e investigações e 10%
sobre prisões preventivas.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 213

Distribuição da atuação da polícia após o linchamentos,


São Paulo 90-96

80,0
60,0 76,7
40,0 15,7
5,3 2,3 %
20,0
-
Boletim de Inquérito Policial Prisão Não informa
Ocorrência

Fonte: Banco de Dados da Imprensa do NEV-USP

6. Perfil dos Linchamentos no Rio de Janeiro, anos 90


A maioria dos casos de linchamento noticiados pela imprensa (75%)
ocorreram na Capital do estado. Em relação à média do país, no Rio de Janeiro
há menos linchamentos que resultam em morte da vítima (37%) do que tentativas
de linchamento (39%), que, somados às ameaças, fazem com que o perfil seja
semelhante ao de São Paulo. Deve-se levar em conta também aqui que os
jornais consultados podem estar provocando um viés.

Ocorreram mais linchamentos nos locais de circulação (39%), seguidos


das instituições de controle social (21%), o que não torna o estado do Rio
específico com relação ao conjunto do país. Por um lado, os homicídios
predominam entre os motivos que desencadeiam um linchamento (27%), porém
essa proporção é um pouco menor do que a média de todos os estados. Por
outro lado, casos que acontecem como represália a atentados ao patrimônio,
lesões corporais e estupros apresentaram maior participação no Rio de Janeiro
do que em outros estados. Isso porque a maioria dos casos coletados ocorreu na
área metropolitana, onde costumam ocorrer mais casos de linchamentos de
supostos assaltantes. Os homicídios foram a principal causa de linchamentos nos
municípios que compõem o Grande Rio e nas cidades do interior do estado, ao
passo que no município do Rio de Janeiro sobressaem os linchamentos
motivados por roubos.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 214

L in c h a m e n to s s e g u n d o m o tiv o d e s e n c a d e a d o r ,
R io d e J a n e ir o 9 0 -9 6

27
3 0 ,0 25
20
16
2 0 ,0
%
7
1 0 ,0
2 2 2

-
A t e n t a d o s a p a t r im ô n i o E s tig m a
E s t u p r o / A t e n t a d o v io l p u d o r H o m i c í d i o / L a t r o c í n io
L e s õ e s C o r p o r a is O u tro s
V á r io s c r im e s N ã o in f o r m a

F o n te : B a n c o d e D a d o s d a Im p re n s a d o N E V -U S P

Com relação às vítimas, há pouca informação, mas de acordo com as


notícias, o perfil da vítima fluminense varia consideravelmente se comparado ao
restante do país. Os trabalhadores do setor de segurança compõem a maior
parte das vítimas (26%). A seguir aparecem aqueles do setor de serviços (22%).
Os trabalhadores pouco qualificados, que predominam no restante do país, não
aparecem no Rio de Janeiro. Porém, excluídos do mercado, trabalhadores do
mercado informal e também profissionais liberais aparecem com maior freqüência
no Rio do que no restante do país. As vítimas, conforme a média, são
preferencialmente homens e jovens.

Com relação ao perfil do agressor, no Rio de Janeiro predominam os


moradores do local, o que não é diferente do conjunto do país. No entanto,
percebe-se no Rio uma participação maior de linchamentos cometidos por
populares. Há apenas uma notícia sobre linchamento cometido por presidiários e
uma notícia sobre linchamento cometido por pessoas da mesma profissão, ao
passo que em alguns estados essas categorias são mais representadas.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 215

Distribuição das vítimas dos linchamentos por ocupação,


Rio de Janeiro 90-96

68,5
80,0
60,0
40,0
4,1 4,1 4,1 8,2 6,8
20,0 1,4 1,4 1,4 %
0,0
Excluído do mercado Mercado informal/serv gerais
Prof liberais /nível superior Proprietários
Funcionários de nível médio Setor industrial
Setor de segurança Setor de serviços
Não Informa

Fonte: Banco de Dados da Imprensa do NEV-USP

A polícia esteve presente e reagindo em 52% dos casos de linchamento


noticiados pela imprensa. No entanto, a atuação da polícia após o linchamento,
sob a forma de boletim de ocorrência, inquérito e investigações, é
proporcionalmente menor no Rio de Janeiro do que em outros lugares. Não há
notícia de prisão de linchadores no Rio, porém isso pode ser um viés da fonte,
que, ao noticiar uma quantidade maior de casos, não os detalha.

7.Perfil dos Linchamentos na Bahia, nos anos 90

Mais da metade dos casos de linchamento na Bahia noticiados pela


imprensa ocorreu em Salvador. Cerca de 80% do total de casos noticiados
resultaram na morte da vítima, o que faz grande diferença em relação aos casos
noticiados em São Paulo e no Rio. Aproximadamente 80% dos casos vitimaram
uma pessoa, perfazendo uma média de 1,2 vítima/caso.

Diferentemente do que ocorre para o país, os atentados contra o


patrimônio motivaram 40% dos linchamentos e os crimes contra a vida motivaram
38%. Essa tendência foi determinada pelos casos da capital: metade dos
linchamentos em Salvador teve como motivo desencadeador atentados contra o
patrimônio. Inversamente, mais da metade dos casos de linchamento noticiados
pela imprensa no interior da Bahia tiveram como delitos desencadeadores
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 216

homicídios (60% dos casos) e em seguida, atentados contra o patrimônio (20%


dos casos). A tendência que se confirma é a da preponderância dos
linchamentos motivados por roubos nas grandes cidades.

D is t r ib u iç ã o d o s lin c h a m e n t o s p o r m o t iv o
d e s e n c a d e a d o r e r e g iã o , B a h ia 9 0 - 9 6
A
maior
6 0 ,0 parte do
casos
6 0 ,0
de
lincham
2 0 ,0 1 6 ,7 ento na
% 3 0 ,0 5 0 ,0
0 ,0 0 ,0 3 ,3 Bahia,
0 ,0
1 5 ,0
tanto em
1 3 ,3 8 ,3
1 ,7 5 ,0 6 ,7
0 ,0
Salvado
A te n ta d o s a H o m ic íd io N ã o in fo r m a r (68%)
p a tr im ô n io
quanto
S a lv a d o r In te r io r no
F o n t e : B a n c o d e D a d o s d a Im p re n s a d o N E V - U S P interior
do
Estado (50%), foi praticada por moradores do local. Ressalta o fato de que a
maior parte dos casos de Salvador, realizada por moradores do local, foi causada
por atentados contra o patrimônio. Assim, tem-se que os casos de linchamento
que contam com organização prévia, em que os linchadores se conhecem,
também vitimaram, em grande medida, pessoas suspeitas de terem cometido
assaltos, roubos e furtos.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 217

L in c h a m e n to s s e g u n d o a g r e s s o r p o r re g iã o ,
B a h ia 9 0 -9 6

8 0 ,0
50

24
69 15
% 4 0 ,0
6 6
0
7 6 2
2 15
0 ,0
Moradores/Vizinhos

Freqüentadores do
Populares

transporte público

Não informa
profissional
Categoria

Passageiros do

local
S a lv a d o r I n t e r io r

F o n te : B a n c o d e D a d o s d a Im p re n s a d o N E V -U S P

Há pouquíssima informação sobre a ocupação das vítimas e, nos casos


informados pela imprensa, predominam trabalhadores rurais ou pouco
qualificados. Invariavelmente, as vítimas de linchamento são homens e jovens.
De acordo com as notícias dos jornais, a polícia esteve ausente da cena
do linchamento em 60% dos casos, ao passo que casos em que a polícia estava
presente e agiu no sentido de salvar a vítima não chegam a 20%. Esta é uma
diferença significativa com relação aos linchamentos noticiados no Rio de Janeiro
e em São Paulo. Chama a atenção que, em 13% dos casos, a polícia esteve
presente e não conseguiu defender a vítima. Entretanto, de acordo com as
informações das notícias, a polícia baiana é mais eficiente na instauração de
inquéritos para apurar a responsabilidade criminal dos linchadores, tendo-se
inclusive a informação de que em 5% dos casos houve prisão de algum agressor.

Atu a ç ã o d a p o líc ia n o m o m e n to d o lin c h a m e n to ,


B a h ia 9 0 -9 6

6 0,0

4 0,0
5 8,2

2 0,0
1 8,7
8 ,8 1 ,1 1 3,2
%

-
A u s en te N ão In form a C on iv e nte Im p oten te R ea gin d o

F o n te : B a n c o d e D a d o s d a Im p re n s a d o N E V -U S P
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 218

Os casos de linchamento na Bahia nos anos 90 incluídos no Banco de


Dados do NEV sugerem que a maior parte dos linchamentos foram consumados
e que a polícia esteve ausente do local de ocorrência. Porém, é importante
ressaltar que os dados referentes aos casos de linchamento foram obtidos pela
imprensa e que, portanto, pode ter havido uma ênfase em noticiar casos de
linchamento consumados. A correlação entre linchamento consumado e polícia
ausente é grande: nos casos em que o linchamento foi consumado, a polícia
esteve ausente em aproximadamente 72% e presente em 19% deles.

A tu a ç ã o d a p o líc ia a p ó s o lin c h a m e n to , B a h ia 9 0 -9 6

6 0 ,0

4 0 ,0

4 2 ,9 4 8 ,4
2 0 ,0

3 ,3 5 ,5
0 ,0
B o le tim d e I n q u é r it o P r is ã o N ã o in fo r m a
O c o r r ê n c ia P o l ic ia l

F o n te : B a n c o d e D a d o s d a Im p re n s a d o N E V -U S P

8.Perfil dos linchamentos nos outros estados*, anos 90


Os casos de linchamento de outros estados coletados nas notícias de
jornais dos anos 90 revelam algumas diferenças em relação ao conjunto do
Banco de Dados. Nesses outros estados, a tendência é haver um número maior
de vítimas em cada linchamento (média de 1,6 vítima/caso), assim como um
número maior de agressores. São casos que acontecem com maior freqüência
em instituições de controle social (46%) e instituições fechadas (19%). A polícia
tende a estar mais presente e reagindo nesses casos (45%) do que na média
para o Brasil todo. Tudo isso leva a crer que os casos de outros estados
noticiados são na maioria apenas aqueles casos que tiveram grande impacto
local, sendo que os casos de pequeno impacto local acabam não sendo
publicados nos jornais de circulação nacional. O fato de haver uma considerável
proporção de vítimas ligadas à política nos outros estados corrobora a hipótese
da imprensa privilegiar casos de grande impacto.

*
À exceção de Rio de Janeiro, São Paulo e Bahia, os demais estados do país não permitem
análises desagregadas, devido ao pouco número de casos coletados. Por isso, utilizamos o termo
outros estados para podermos denominá-los.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 219

São casos que ocorrem predominantemente em pequenas cidades, daí o


fato de boa parcela das vítimas serem trabalhadores rurais (10%), ou mesmo
políticos locais (7%). Isso, de alguma forma, altera o perfil das vítimas com
relação aos casos de grandes cidades.

L in c h a m e n to s s e g u n d o o p e rfil d o a g re s s o r, O u tro s E s ta d o s 9 0 -9 6

N ã o in fo rm a 10

P a s s a g e iro s d o tra n s p o rte p ú b lic o 1

F re q ü e n ta d o re s d o lo c a l 2

P re s id iá rio s 6

P o p u la re s 9

C a te g o ria p ro fis s io n a l 15
57
M o ra d o re s /v iz in h o s

0 ,0 2 0 ,0 4 0 ,0 6 0 ,0
%

F o n te : B a n c o d e D a d o s d a Im p re n s a d o N E V -U S P

Com relação aos agressores, o predomínio de moradores do local é ainda


maior do que a média do país, representando 57%. Os linchamentos cometidos
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 220

por grupos de pessoas de uma mesma profissão também são mais


representados (15%).

Atuação da polícia no m om ento do lincham ento,


O utros Estados 90-96

45,0

30,0
45,0
30,0
15,0
11,0 13,0
1,0
0,0 %
Reagindo Ausente Im potente Conivente Não
inform a

Fonte: Banco de Dados da Im prensa do NEV-USP

Verifica-se que, em relação à média do país, a polícia tende a estar mais


presente à cena do linchamento. No entanto, também é maior a ocorrência de
casos em que a polícia não consegue salvar a vítima (11%). Os ataques a
delegacias e fóruns e os linchamentos em cadeias aparecem maior freqüência
em cidades pequenas, onde o efetivo policial é menor e a proteção aos edifícios
públicos é menos intensa. Nessas localidades, também o poder

público se depara com maiores dificuldades em garantir a segurança de


um preso ameaçado pela população. A atuação da polícia visando a
responsabilização criminal dos linchadores não é muito diferente da média dos
casos ocorridos no restante do país.

A t u a ç ã o d a p o líc ia a p ó s o lin c h a m e n t o , O u tr o s E s t a d o s 9 0 -9 6

9 0 ,0

6 0 ,0

1 3 ,0
3 0 ,0 5 ,0 4 ,0 3 ,0 1 ,0 7 4 ,0

0 ,0

In q u é rito P o lic ia l In v e s tig a ç õ e s P ris ã o d e a g re s s o r


B o le tim d e o c o r rê n c ia D e n ú n c ia N ã o in fo rm a

F o n te : B a n c o d e D a d o s d a Im p re n s a d o N E V -U S P
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 221

9. Conclusões

Entre 1980 e 1996, foram noticiados 795 linchamentos contra 1109


pessoas no Brasil. O estado de São Paulo manteve a liderança em termos do
número de linchamentos noticiados. A principal mudança no que se refere à
distribuição espaço-temporal foi a superação, pela Bahia, do estado do Rio de
Janeiro, nos anos 90. Até 1982, o Rio superava até mesmo São Paulo em
número de casos. Os demais estados da federação, representaram, somados,
menos de um quarto dos linchamentos noticiados, tendo aumentado sua
participação na amostra em 10% de uma década para a outra. Destacam-se
entre esses estados, os de Minas Gerais, Paraná e Pará.

Em relação ao país, a pesquisa mostrou uma tendência para o


crescimento do número de casos noticiados pela imprensa e uma piora na
qualidade das notícias, aumentando a ausência de informação na maior parte
das variáveis estudadas. Tal tendência indica uma mudança no perfil do dado
trazido pela imprensa, que parece estar agora mais voltada para a divulgação
das ocorrências de mais impacto, em maior quantidade e com menor
detalhamento.

Observamos que se manteve sempre um certo equilíbrio entre os


linchamentos consumados, por um lado, e as ameaças e tentativas, por outro e
que predominaram largamente casos com apenas uma vítima.

A maior parte dos linchamentos aconteceram em locais de circulação que,


apesar de manterem-se predominantes, caíram em cerca de 12% dos anos 80
para os 90. Verifica-se também uma queda das ocorrências nos locais de
trabalho, lazer, alimentação, estadia e práticas religiosas. Estas quedas são
contrabalançadas pelo aumento acentuado dos casos em instituições de controle
social, que passam de menos de 3% nos anos 80 para quase um quarto das
ocorrências na década seguinte. Essa mudança indica que a imprensa passou a
privilegiar um tipo de linchamento mais espetacular pelo grande número de
pessoas que em geral envolve, pelo aparato policial repressivo que mobiliza e
pelo grau de determinação dos linchadores, que não se satisfazem com o
encaminhamento do suspeito para as instituições competentes. Convém ressaltar
que a taxa de ausência de informação em relação ao local de ocorrência cresce
bastante dos anos 80 para os 90.

Ao longo dos 17 anos pesquisados, os linchamentos são sobretudo


motivados por crimes cometidos contra a pessoa., com destaque para os
homicídios, estupros, atentados violentos ao pudor ou abuso sexual de adultos,
adolescentes e crianças. Mudança relevante em relação a esse aspecto foi o
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 222

aparecimento nos anos 90 de um novo estopim para os linchamentos: as


transgressões. É possível que já ocorressem casos desse tipo antes, mas eles s

só aparecem na imprensa quando essa começa a dar grande destaque a


escândalos de corrupção e também ao suposto crescimento do tráfico de drogas.

Os homens compõem a quase totalidade das vítimas de linchamento em


todo o períodos. Nos anos 90, as vítimas continuam sendo maioritariamente do
sexo masculino, porém, a quantidade de mulheres vitimadas praticamente dobrou
e também a falta de informação sobre o sexo das vítimas cresceu
consideravelmente.

A grande maioria das vítimas pertencem aos estratos mais baixos da


sociedade: mercado informal e serviços gerais, trabalhadores com pouca
qualificação e excluídos do mercado. No entanto, de uma década para a outra,
diminui a proporção representada por essas categorias e crescem os casos de
linchamentos contra proprietários e os profissionais liberais. Aparecem ainda
novas categorias, em geral com incidência mais acentuada nos estados fora do
eixo Rio-São Paulo: políticos (categoria associada ao surgimento da categoria
transgressões entre as causas dos linchamentos), funcionários de nível médio,
operários do setor industrial e trabalhadores rurais. Atesta-se assim a
mencionada mudança no perfil da cobertura jornalística, que passa a privilegiar
casos mais excepcionais.

A maioria das vítimas é composta por jovens, cuja faixa etária concentra-
se até os 29 anos, sendo de 10 anos a idade mais baixa que aparece entre as
vítimas. Não houve mudanças importantes em relação a esse aspecto.

Em geral, os poucos casos que traziam a origem étnica do linchado não


apresentavam a sua identificação, ou seja, tratavam-se de casos em que a
polícia, não conseguindo fornecer o nome da vítima para a imprensa, apenas lhe
entregava a descrição física da mesma. Quando comparamos a ausência deste
dado com a relativa incidência de informação sobre antecedentes criminais
positivos das vítimas, percebemos que um claro viés das agências de notícias a
este respeito.

Quanto à participação da polícia durante os acontecimentos, em todo o


período, em cerca de 40% dos casos noticiados a polícia estava presente e
reagindo no sentido de salvar a vítima. Com a mesma proporção aparecem os
casos em que a polícia estava ausente do local. O fato de que, em grande parte
dos casos, a polícia estava presente e conseguiu salvar a vítima, impedindo a
consumação do linchamento indica que as áreas melhor policiadas tendem a
apresentar menor risco de ocorrências deste tipo. Entretanto, quanto às
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 223

providências da polícia e da justiça após o linchamento, a ausência de


informação é muito alta. Quando ela existe, o predomínio é de casos que
apresentaram abertura de inquérito policial. Em geral, as tendências a esse
respeito também não mudam muito

“Criaturas do regime de exceção?” esta hipótese explicativa para os


linchamentos do início dos anos 80 foi perdendo força com a permanência do
fenômeno anos depois da consolidação do regime democrático. O fato é que
linchamentos fazem parte da história do Brasil, antes, durante e depois da
ditadura militar.

“Prazer?” “Autopunição?” “Esporte?” Tais explicações remetem a


sentimentos humanos, sugerindo que a causa dos linchamentos estaria nos
desvios de condutas de determinados indivíduos. Mas por essa via não se
explica porque os linchamentos são mais freqüentes em determinadas regiões do
país, e mais especificamente, determinadas zonas das regiões metropolitanas. O
fato é que, se não há regularidades temporais, as distinções espaciais são
marcantes: os linchamentos ocorrem predominantemente nas periferias mais
carentes das grandes cidades do Brasil e as vítimas preferenciais são as
mesmas de toda a criminalidade: jovens, das mais baixas classes sociais, com
vínculos precários com o mercado de trabalho.

“Ausência de Estado?” “Fracasso na garantia do império da lei?” Esses


fatores podem ser levados em consideração se entendermos a ausência do
Estado em um sentido muito maior do que da sua dimensão meramente
repressiva. É a ausência de um Estado que garanta as condições mínimas de
dignidade da população. As regiões em que mais ocorrem linchamentos não são
somente as menos policiadas mas, sobretudo, as mais carentes de infra-estrutura
urbana: saneamento básico, pavimentação, habitações seguras, hospitais e
postos de saúde, coleta de lixo, escolas... As populações que se envolvem nos
linchamentos são as que mais sofrem os efeitos das crises econômicas, as mais
vulneráveis ao desemprego, as de mais baixa renda familiar.

É por essa via que se deve entender a incorporação dos linchamentos no


cotidiano brasileiro. Projetos que busquem acabar com essa prática, que nos
últimos 17 anos vitimou mais de mil pessoas certamente devem considerar
mudar uma história de séculos de desigualdade e injustiça social agudas.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 224

CAPÍTULO 6
EXECUÇÕES SUMÁRIAS: ACERTO DE CONTAS E JUSTIÇAMENTO PRIVADO NOS GRANDES
CENTROS URBANOS BRASILEIROS

Adriana Tintori
Iolanda Évora
Maria Inês Caetano Ferreira
Mônica Aparecida Varasquim Pedro

Introdução
É cada vez mais freqüente o noticiário sobre corpos encontrados em vias
públicas dos grandes centros urbanos brasileiros, indicando a efetivação de uma
prática violenta que opõe grupos ou indivíduos isolados e visa a resolução de
conflitos sem a intervenção das instâncias legais. A opinião pública tem se
familiarizado com essas ações de extermínio praticadas por esquadrões da
morte, justiceiros, pistoleiros, grupos de extermínio, grupos ligados ao crime
organizado ou quadrilhas de roubo. Essas diferentes denominações indicam não
apenas a diversidade de protagonistas que podem estar envolvidos nas
execuções sumárias, como também a existência de diferentes motivações e
cenários para a sua prática. Referem-se ainda a origens e causas que devem ser
procuradas tanto nos contextos atuais de violência dos grandes centros urbanos,
como na própria história das práticas de vingança e justiçamento privado no país.

Para a definição do fenômeno que constituiria o Banco de Dados sobre


Execuções Sumárias, foram consideradas as situações que a imprensa
descreveu como protagonizadas pelos atores citados acima. Recorreu-se a uma
revisão da produção internacional sobre o tema, definindo os casos tratados no
Banco de Dados como ações de extermínio praticadas por grupos ou indivíduos
isolados, ocorridas por vingança privada ou acerto de contas. São crimes de
mando realizados mediante contrato entre pessoas interessadas em eliminar
alguém e aqueles que realizam a ação. Incluem-se, ainda, ações de extermínio
que não necessariamente supõem a existência prévia de um contrato, mas que
descrevem formas de eliminação de indivíduos suspeitos de cometerem atos
considerados como uma afronta pessoal, prejudiciais à determinada comunidade
ou que atentem contra a atividade econômica (legal ou ilegal) de determinado
grupo.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 225

Ao longo dos 17 anos pesquisados, 1888 casos com as características de


execuções sumárias foram noticiados pela imprensa, com incidência
praticamente concentrada nos dois maiores centros urbanos do país (São Paulo
e Rio de Janeiro). Os casos ocorreram sobretudo nas regiões de maior
concentração de população dos estratos sociais mais pobres, foram praticados
principalmente em locais de circulação e tiveram como protagonistas um número
significativo de policiais militares e civis, agindo em grupos organizados ou em
ações isoladas.

1.EXECUÇÕES SUMÁRIAS, VIGILANTISMO E JUSTIÇAMENTO PRIVADO NO BRASIL

Os diferentes tipos de violência aqui tratados sob uma mesma


denominação - execuções sumárias - têm como características comuns o caráter
de práticas permanentes e o fato de dispensarem a intervenção das instâncias
legais na resolução dos conflitos que os originaram.

Deste modo, aproximam-se do vigilantismo, tema que na literatura


internacional (Huggins, 1991) descreve a atuação de movimentos extralegais
organizados, cujos membros tomam a justiça em suas próprias mãos. O
vigilantismo pode ser definido como um tipo de violência permanente destinada a
criar, manter ou recriar uma ordem sócio-política estabelecida, e tem como
motivação o desejo de controle sobre o crime, sobre outro grupo social ou regime
político, objetivos estes que podem apresentar sobreposições entre si. Os
protagonistas tanto podem ser civis como agentes do Estado ou ambos, agindo
de forma mais ou menos velada. As ações de vigilantismo podem ser
espontâneas ou preparadas e organizadas a priori, com graus variáveis de
ligação entre os membros de um grupo ou entre grupos diferentes.

Porém, essa definição aplica-se ao tipo de vigilantismo característico da


história norte-americana e, quando aplicada aos países da América Latina,
verifica-se que não descreve inteiramente a realidade encontrada. De fato, neste
caso, o vigilantismo está historicamente associado aos regimes militares aqui
vigentes por um longo período e, inicialmente, caracterizava a atuação extralegal
de grupos paramilitares ou de forças policiais - os esquadrões da morte - que
agiam com a conivência - quando não com o envolvimento - do Estado, com o
objetivo de eliminar indivíduos apontados como criminosos ou subversivos,
oposicionistas ao regime militar.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 226

No entanto, observa-se a permanência do vigilantismo nos regimes


democráticos atuais, indicando que o sistema de justiça na América Latina ainda
mantém muito do suporte estrutural do autoritarismo. Vários autores defendem
que tal prática questiona, na realidade, a transição democrática experimentada
por esses países nas últimas décadas, revelando o que as eleições democráticas
pretendem disfarçar: a grande desagregação social e política e a “cadente”
separação entre o Estado e a sociedade.

Sobretudo durante os anos 80, a maioria dos países da América Latina


viveu um período de grande inflação e desemprego, fatores que podem ser
apontados como duas das causas do aumento da violência nas periferias das
grandes cidades, expondo os cidadãos a práticas violentas de outros grupos
ligados aos crime. Entretanto, as forças oficiais de contenção do crime,
prevenção da violência e resolução de conflitos interpessoais permanecem
aquém das necessidades de segurança que a população exige. Desprotegida,
esta passa a usar a violência como uma forma de assegurar a segurança
pessoal, que não percebe como sendo realizada pelo governo, submetendo-se à
atuação de indivíduos isolados ou grupos que surgem para assassinar supostos
criminosos e “bandidos” que incomodam as comunidades.

Para uma melhor compreensão do fenômeno das execuções sumárias no


Brasil, é necessário buscar suas origens históricas. Desde o período colonial
podem ser observadas práticas de justiçamento privado, ou seja, a resolução de
conflitos por mecanismos alternativos que questionam o recurso às instâncias
formais, e firmam as respostas violentas como um modelo socialmente válido de
conduta, aceito e reconhecido publicamente, visto como legítimo e imperativo
(Franco, 1976 apud Adorno, 1996). É nesse contexto, em que a atuação do
Estado ainda era muito precária, que a vingança privada se instala como forma
essencial de controle e defesa sociais, como a maneira através da qual se sentia
que realmente era feita justiça.

Tantos anos depois, observa-se que, nos dias atuais, em vez de estar
legitimado o papel do Estado como a instância responsável pela resolução de
conflitos interpessoais, persiste o autoritarismo como forma de controle e defesa
sociais, podendo-se dizer que se fortaleceu e se tornou mais complexo com sua
disseminação nos centros urbanos. As análises sobre o fenômeno das
execuções sumárias no Brasil das últimas décadas atribuem particular ênfase às
causas sócio-econômicas, destacando que tais ações são a ponta visível de
processos sociais e da estrutura da sociedade que mantém marginalizada grande
parte da sua população, sobretudo nos centros urbanos. Porém, como aponta
Martins (1996), é certo que tais práticas não representam, apenas, a mera
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 227

extensão de ações extra-legais, muito disseminadas no período da ditadura


militar. Também não se limitam a um tipo de conspiração coletiva (inconsciente)
para impedir a definitiva e plena consolidação do Estado democrático. Para o
autor, essas diferentes formas de violência são conseqüências do processo de
desenvolvimento forçado, que é, em si, uma violência que engendra a
modernização “inconclusa e enferma” e instaura uma cultura da violência e do
medo.

EXECUÇÕES SUMÁRIAS NAS GRANDES CIDADES BRASILEIRAS


Até a década de 80, os grupos de extermínio eram os atores principais no
cenário das execuções sumárias. A partir de então, começaram a se consolidar
outras práticas, decorrentes da ação desses grupos, adaptadas às circunstâncias
sócio-políticas vigentes.

Nas cidades, a existência e a proliferação dos grupos de extermínio


devem-se às tradicionais e violentas estratégias de setores das elites políticas
para manter seu domínio sobre as classes trabalhadoras que lhes são
subalternas, tal como sucedia no período anterior à ditadura formalmente
implantada (Bicudo, 1989). Em parte, esta característica justifica a origem dos
esquadrões da morte em cidades brasileiras como Rio de Janeiro e São Paulo,
historicamente associada à atuação extra-oficial de forças policiais, eliminando
bandidos.

Com a transição democrática, vários governos estaduais adotaram como


discurso o empenho no desmantelamento dos esquadrões da morte e no
compromisso de redirecionar a filosofia de atuação das forças policiais,
orientando-as para as práticas de Polícias ostensivas e preventivas. Porém, os
esquadrões continuam atuando ao longo da década de 80, e seu
desmantelamento encontra muitos obstáculos: a personificação da lei por parte
do policial; morosidade do sistema penal em vigor; corrupção da Polícia;
envolvimento de policiais nos grupos que são encarregados de combater.
Prevalece na atuação das forças policiais a filosofia do combate ao inimigo, cujo
pressuposto básico é o de que o delinqüente é mau por natureza, sendo portanto
irrecuperável e justificada a sua execução sem julgamento (Bicudo, 1989).

As execuções sumárias envolvem preferencialmente sujeitos que


pertencem às classes mais pobres, seja como agressores ou como vítimas.
Quanto aos agressores, além daqueles do período da ditadura, somam-se civis
envolvidos em disputas de território ou de práticas econômicas contraventoras
(crime organizado) ou, ainda, que pretendem solucionar, pelas próprias mãos,
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 228

problemas de criminalidade que ocorrem na sua própria localidade de residência,


como é o caso dos justiceiros. É muito comum que os justiceiros, em
determinado momento da sua “carreira”, comecem a cobrar para executar
“serviços”, transformando-se em matadores profissionais, conhecidos como
pistoleiros.

Entre esses novos atores, o que mais tem se destacado no noticiário é o


crime organizado, principalmente o tráfico de drogas e de armas e, em menor
proporção, o de veículos. Neste tipo de crime, muito comum no período 1990-96,
costumam estar envolvidos grupos de traficantes de drogas que recorrem a
formas extremadas de justiçamento para resolver conflitos que podem ser
internos ao mesmo grupo ou entre grupos diferentes. Trata-se de uma rede bem
montada da qual também participam, muitas vezes, a própria Polícia e outros
agentes do Estado, como funcionários do governo e até representantes eleitos
pela população. O crime organizado funciona como uma empresa, com chefes e
subordinados, com divisão de tarefas e de áreas de atuação, sendo muito forte a
ligação entre o tráfico e a criminalidade violenta, envolvendo sobretudo os jovens.

A face mais evidente da ligação entre crime organizado e violência é o


tráfico de armas, utilizado em todas as outras modalidades de negócios ilegais e
também por setores não diretamente envolvidos com eles. Essas armas são
fundamentais para a garantia da segurança e do controle de regiões por parte
dos traficantes de outros setores, como os de drogas e veículos. As ligações do
crime organizado com a violência se tornam mais explícitas quando a disputa por
pontos de drogas mais lucrativos ou o apoio da população aos seus negócios (a
quem dizem proteger e apoiar) opõem os grupos ou facções rivais gerando
verdadeiras guerras que mantêm a população inocente sob fogo cruzado. A
violência também recrudesce quando grupos de traficantes entram em conflito
armado com a Polícia, mostrando seu poder em defender os seus negócios e o
território pelo uso de armas sofisticadas adquiridas no mercado internacional. No
período abordado pela pesquisa, as organizações criminosas brasileiras que
mais se destacaram na imprensa foram o Comando Vermelho e o Terceiro
Comando, ambas atuantes no Rio de Janeiro.

2. ORGANIZAÇÃO DO BANCO DE DADOS: 1980-89 E 1990-96


Antes de abordar a maneira como foi organizado o Banco de Dados, é
necessário enfatizar a pouca precisão do noticiário, que apresenta dificuldade na
reconstituição da ação e identificação dos agressores e vítimas. Além disso,
freqüentemente a imprensa noticia apenas a versão da Polícia, e as informações
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 229

que fornece são aquelas que constam nos boletins de ocorrência , como o nome
e o sexo da vítima, seu antecedente criminal, a indicação genérica sobre o
agressor e, por fim, os motivos do crime, que se resumem a um provável conflito
entre as partes, ambas envolvidas com algum tipo de delinqüência ou infração.
Nos casos raros em que se pode contar com outras versões, como depoimentos
de amigos e familiares, sobretudo nos casos do Rio de Janeiro, estas não
coincidem com as da Polícia, ao contrário, apontando-a como participante das
ações.

Para organizar o Banco de Dados sobre Grupos de Extermínio nos anos


80, optou-se pelo seguinte critério: seriam incluídos apenas os casos cuja autoria
a imprensa atribuísse, textualmente, a Pistoleiros, Grupos de
Extermínio/Esquadrão da Morte, Justiceiros e “matadores”. Quanto à organização
deste material, os casos de autoria desses agentes foram divididos entre aqueles
que vitimaram crianças e adolescentes e aqueles cujas vítimas foram adultos,
para então serem tratados separadamente em dois Bancos de Dados distintos. O
critério de seleção dos casos era, como foi dito, a citação textual de participação
dos atores acima nas violações, sendo que os dados extraídos das notícias foram
exatamente aqueles informados.

Na passagem da década de 80 para 90, a mesma imprensa, que citava


textualmente a participação destes agressores, deixou de citá-los, passando a
cobrir casos de execuções com várias vítimas sob o termo chacina, que segundo
o Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), consiste na
execução de três ou mais pessoas de uma só vez. Paralelamente, as categorias
que compunham o Banco de Dados passaram a ser menos freqüentes no
noticiário.

Entrou em cena também um elemento não muito novo, mas que passou a
chamar a atenção devido ao seu crescimento no período 1990-96, que foram as
execuções, também citadas como chacinas, ocorridas em situações de disputa
entre grupos de traficantes de drogas ou de bicheiros. Estes casos de crime
organizado tiveram em alguns momentos a participação de grupos de extermínio
e/ou pistoleiros contratados por traficantes para executar outros traficantes, além
de alguns poucos casos em que os traficantes atuavam de forma muito
semelhante a dos justiceiros, como mediadores em conflitos entre a população
onde o crime organizado é reconhecido como poder local.

A partir do início da década de 90 verificou-se, também, a grande


freqüência no noticiário de casos de homicídios ocorridos nos moldes de
execuções que não podiam ser classificados, pois as notícias mal informaram os
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 230

dados sobre as vítimas, agressores e contexto da ação, o que impossibilitava sua


classificação em qualquer categoria.

Para o período 1990-96, levando em conta todas as dificuldades citadas,


foi proposta a mudança de “Banco de Dados sobre Grupos de Extermínio” para
“Banco de Dados sobre Execuções Sumárias”, uma vez que este último seria um
Banco mais abrangente e detalhado, com vistas a atender a demanda que a
imprensa impunha. Neste sentido, além das categorias que compunham o Banco
de Dados sobre Grupos de Extermínio nos anos 80, foram incluídas novas
categorias para dar conta da realidade expressa pela imprensa a partir de 1990,
quais sejam: Crime Organizado e Autoria Desconhecida.

As notícias foram agrupadas em casos, que normalmente descrevem um


acontecimento ou, por vezes, a “carreira” de um grupo ou indivíduo. As
informações foram organizadas de modo a permitir a elaboração de um perfil do
acontecimento, descrevendo o perfil da ação (local de ocorrência, motivo
desencadeador, tipo de delito cometido e número de pessoas atingidas), o perfil
das vítimas e o dos agressores (destacando as suas características sociais). A
sistematização das informações também procurou delimitar um perfil da atuação
do Poder Público (através das suas instituições encarregadas do controle da
violência) e, ainda, reconhecer a intervenção da sociedade civil face às
ocorrências.

Conforme o tratamento dispensado à violação em cada período, verificou-


se a impossibilidade de uniformizar, no momento, todos os critérios de tratamento
dos casos para os anos 1980-89 e 1990-96 e de efetivar uma padronização dos
dois períodos.

DISTRIBUIÇÃO ESPACIAL E TEMPORAL DAS EXECUÇÕES SUMÁRIAS NO BRASIL,


1980-96
O gráfico 1 mostra os 1888 casos de execuções sumárias ocorridos no
país entre 1980 e 1996. A distribuição dos casos mostra que a variação da
incidência não segue uma ordem cronológica crescente, ocorrendo picos em
diferentes momentos ao longo do período. No total, o número maior de
ocorrências (1308 casos) foi registrado nos anos 1990-96155.

155
Pelos critérios adotados inicialmente, os casos ocorridos no período 1980-89 apenas eram
incluídos no Banco de Dados do NEV quando a notícia fazia menção explícita a uma violência
que podia ser atribuída a um grupo de extermínio.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 231

Gráfico 27 - Distribuição dos casos de Execuções


Sumárias segundo o tipo de Manifestações, Brasil, 1990-
19966%

36%

58%

Apoio Denúncia Protesto

Fonte: Banco de Dados da Imprensa Sobre as Graves Violações dos Direitos Humanos - NEV/USP – Secretaria
Nacional de Direitos Humanos/ Ministério da Justiça

No estado de São Paulo ocorreram 856 casos de execuções sumárias ou


45,3% do total, seguido do estado do Rio de Janeiro, com 784 casos (41,5%). Os
demais estados participaram com 13,2% das ocorrências (gráfico 2). A freqüência
dos casos do Rio de Janeiro é bastante significativa, sobretudo se for
considerado que a maior parte das nossas fontes é constituída por jornais de São
Paulo que, certamente, reservam um espaço menor às ocorrências fora do
estado. Por este motivo também, a baixa freqüência de casos dos outros estados
pode indicar apenas uma menor atenção dada a outras regiões do país e não a
baixa incidência de casos.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 232

Gráfico 2 - Distribuição dos casos de Execuções


Sumárias por estados, 1980-96

1500

750

0
Brasil São Paulo R. de Janeiro Outros estados
Anos 80 580 252 262 66
Anos 90 1308 604 522 182

Fonte: Banco de Dados da Imprensa Sobre as Graves Violações dos Direitos Humanos - NEV/USP – Secretaria Nacional
de Direitos Humanos/ Ministério da Justiça

No período 1980-89, foram noticiados 580 casos atribuídos a grupos de


extermínio, com maior incidência em 1980, 1983 e 1987, períodos em que tanto a
situação do Rio de Janeiro como a de São Paulo mereceram maior atenção por
parte da imprensa. No estado do Rio de Janeiro registrou-se 45,2% do total do
período, e em São Paulo essa taxa atingiu 43,4%. Nos demais estados da
federação, aconteceram 11,4% dos casos, com destaque para Minas Gerais
(2,9%) e Pernambuco (2,2%).

Entre 1990 e 1996, ocorreram 69% dos casos noticiados durante os 17


anos pesquisados. A maior freqüência foi registrada nos anos de 1991 e 1996 e,
segundo as fontes, São Paulo teve 604 casos (46,2%), a maior incidência,
portanto, enquanto o estado do Rio de Janeiro aparece no noticiário com 522
casos, que correspondem a 39,9% do total. A incidência dos outros estados da
federação é de 13,9%, sendo que Bahia e Pernambuco detêm 2,8% e 2,7% do
total, respectivamente.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 233

Distribuição dos casos de Execuções Sumárias por estados, 1980-1996

250

200

150

100

50

0
1980 1981 1982 1983 1984 1985 1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996

SP RJ OE

Fonte: Banco de Dados da Imprensa Sobre as Graves Violações dos Direitos Humanos - NEV/USP – Secretaria Nacional
de Direitos Humanos/ Ministério da Justiça

Confirmando que as execuções sumárias são violações mais


características dos centros de grande concentração populacional, os casos
noticiados pelas fontes, ao longo dos 17 anos observados, ocorreram sobretudo
nas regiões metropolitanas das cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro. Em
Outros Estados, a região metropolitana do estado de Pernambuco foi a mais
recorrente (gráfico 3).

3. Banco de Dados sobre Grupos de Extermínio, 1980-89


3.1 Grupos de extermínio, Brasil: 1980-1989

Foram identificados 580 casos de violência praticada por grupos de


extermínio nos anos 80. Para todo o Brasil foram contabilizados mais casos de
ações de grupos de extermínio em 1980 (17%) e 1987 (14%).

No final da década (1987 a 1989), a soma dos casos corresponde a 40%


do total encontrado para o período. O noticiário indica que há maior número de
ocorrências principalmente no Rio de Janeiro (262 casos) e em São Paulo (252
casos), o que corresponde a 45,2% e 43% respectivamente. O estado do Rio de
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 234

Janeiro superou o de São Paulo entre 1980-83 e no ano de 1987. Nos demais
anos da década, predominam os casos ocorridos em São Paulo156. No Rio de
Janeiro, no início da década, a imprensa noticiou amplamente a movimentação
civil em torno do “caso Marly”157 e também a atuação da Comissão Especial para
investigar crimes dos esquadrões da morte, criada no início do governo Brizola.
Em 1987, a constituição de uma Comissão Especial durante o governo Moreira
Franco também contribuiu para que a imprensa noticiasse mais casos de grupos
de extermínio. Em São Paulo, crimes cometidos por esquadrões da morte foram
investigados por uma Comissão Especial durante o governo Montoro, no período
1983-85 e durante o governo Quércia, entre 1987 e 1989.

Além de privilegiar no noticiário as ocorrências do eixo Rio - São Paulo, as


fontes consultadas priorizam o relato de homicídios com características mais
espetaculares. Por este motivo, as oscilações na freqüência podem não refletir
alterações reais no número de casos. Da mesma maneira, a ausência de casos
no Rio de Janeiro em 1986 não significa que não tenha havido nenhuma
ocorrência nesse ano, mas que, por exemplo, houve um menor interesse da
imprensa em cobrir o tema ou que as notícias existentes se referem a casos
ocorridos em anos anteriores. É provável também que, em determinados
períodos - como no ano de 1981 em São Paulo - os grupos de extermínio tenham
optado por uma maior discrição na sua atuação para não despertar o interesse
da Polícia em relação às suas atividades.

Em todos os períodos que compõem a pesquisa, a principal característica


do noticiário é a quase ausência de informações que permitam delimitar um
contexto da ocorrência. À exceção do local de encontro dos corpos e das marcas
encontradas nas vítimas, poucos são os indícios sobre os prováveis agressores e
motivos para a realização de uma ação que, conforme indica o estado do corpo
encontrado, costuma ser bastante violenta, não deixando dúvidas sobre os
objetivos do agressor.
Vítimas
A propósito dos 580 casos registrados para o período, há informações
apenas sobre 274 vítimas, embora se saiba que a violência praticada por grupos
de extermínio por vezes atinja mais de uma pessoa numa só ocasião. A
descrição do perfil da vítima (gráfico 4), nos anos 80 pela imprensa privilegiava

156
O total relativo a outros estados (66 casos) não permitiu a elaboração de perfis e nem a sua
comparação com os dados relativos a São Paulo e Rio de Janeiro.
157
No final dos anos 80, um jovem do subúrbio carioca foi morto por policiais. Em busca de
justiça, Marly, irmã desse jovem morto, denuncia os policiais envolvidos, exigindo a punição dos
mesmos. A própria Marly foi ameaçada de morte por causa de suas denúncias.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 235

dois aspectos: a) um provável envolvimento delituoso da vítima ou b) sua


condição de trabalho. Apesar de não apresentar nenhuma informação para quase
metade das vítimas (48,3), entre aquelas sobre as quais há alguma informação, a
maioria foi caracterizada como tendo alguma ligação com o mundo do crime: a
denominação bandido/marginal foi utilizada para descrever 49,6% das vítimas e
5,5% foram consideradas como matadores ou justiceiros. A imprensa noticiou,
ainda, que 44,9% eram trabalhadores.

Fonte: Banco de Dados da Imprensa Sobre as Graves Violações dos Direitos Humanos - NEV/USP - Secretaria Nacional
de Direitos Humanos/ Ministério da Justiça

Agressores
No período analisado, a imprensa não forneceu qualquer informação que
permita traçar o perfil de 35,3% de todos os agressores mencionados nas
notícias, limitando-se a denominá-los, genericamente, de esquadrões da morte.
Entre aqueles agressores sobre os quais há mais informações 46% podem ser
definidos (gráfico 5) como justiceiros, grupos de civis ou matadores isolados.
Aqueles que foram descritos como membros de grupos formados por policiais
militares, civis ou de outras corporações somaram 34%. A incidência de
agressores considerados de perfil duvidoso foi de 10%, incluindo, neste grupo,
indivíduos que poderiam ser justiceiros, pistoleiros ou marginais, conforme a
descrição feita pelas fontes. A suspeita de serem de grupos formados por ex-
policiais militares, assaltantes ou traficantes somam 4% dos casos com
informação, e aqueles em que se suspeita o envolvimento de policiais somam os
6% restantes. Nota-se que há uma forte participação de policiais, o que sugere
uma institucionalização dessa violência.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 236

Gráfico 5 - Distribuição do perfil dos agressores dos casos de


Grupos de Extermínio, Brasil-1980-1989
4%
10%

34%

46% 6%

Grupos formados por policiais militares, civis ou de outras corporações


Suspeita de policiais não identificados
Justiceiros, grupos de civis ou matadores isolados
Perfil duvidoso: Justiceiros, Pistoleiros e "marginais"
Grupos formados por ex-PMs, assaltantes e traficantes

Fonte: Banco de Dados da Imprensa Sobre as Graves Violações dos Direitos Humanos - NEV/USP - Secretaria Nacional
de Direitos Humanos/ Ministério da Justiça

Em relação aos justiceiros, nos anos 80, a imprensa descrevia uma forma
de atuação em geral “anunciada”, que resultava num crime praticado no lugar de
moradia e de atuação da vítima (normalmente um “suposto bandido”) ou do
agressor. A carreira do justiceiro costumava se iniciar com um primeiro crime,
ligado a uma situação original de vingança pessoal por afrontas recebidas por
parte da vítima. A partir da eliminação da vítima, o justiceiro começava a “firmar”
a sua atuação no bairro, passando a ser reconhecido por todos. Não havia o
anonimato do agressor nem da vítima no bairro, embora a comunidade pudesse,
posteriormente, negar qualquer conhecimento sobre as atividades do justiceiro. A
imprensa também relatou casos de grupos de moradores não profissionalizados
que se juntavam para eliminar alguns “bandidos” no bairro. Os casos envolvendo
justiceiros ganhavam atenção quando o justiceiro se “enganava” e matava uma
vítima “errada”, sendo obrigado a interromper a sua carreira ao ser preso ou
morto por outro matador profissional ou policial. Esta situação podia ser ou não
acompanhada por manifestações da comunidade contra ou a favor da morte do
justiceiro.

As ações violentas praticadas por esquadrões da morte e descritas nos


anos 80 geralmente caracterizavam-se pelo anonimato da vítima e dos
agressores: a imprensa descrevia o cotidiano desta violação sobretudo pelas
características da execução evidenciadas no corpo da vítima que, com
freqüência, era propositadamente desfigurada e, pelo processo conhecido como
“desova”, abandonada em lugares afastados. Também eram tratados como
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 237

casos praticados por esquadrões da morte aqueles em que os agressores


atuavam de uma forma que rompia com o anonimato característico da prática
desta violação, buscando-se associá-las a grupos específicos. Nos anos 80
ficaram popularmente conhecidos grupos que se identificavam pelos símbolos
deixados nos corpos das vítimas, como, por exemplo, o caso do “1001
utilidades”, grupo de Minas Gerais que deixava um Bombril na mão do cadáver,
ou grupos do Rio de Janeiro que, no final da década, enviavam bilhetinhos
dirigidos ao governador Moreira Franco após a instalação de uma comissão
especial para investigar crimes atribuídos a esquadrões da morte. Esses grupos
também procuravam dar publicidade aos seus atos avisando o lugar onde os
corpos das suas vítimas podiam ser encontrados (caso do “Mão Branca” no Rio
de Janeiro que agia como relações públicas de um esquadrão da morte) ou
divulgando uma lista de futuras vítimas.
A classificação grupos de extermínio foi usada, na época, principalmente
para descrever a atuação desses grupos na periferia de São Paulo e em alguns
municípios limítrofes. Para o Rio de Janeiro, os casos noticiados referem-se à
atuação de grupos com um perfil diferente, compostos, principalmente, por
policiais atuando em conjunto com traficantes e banqueiros do jogo do bicho.

Para os anos 80 foram ainda listados casos protagonizados por agentes


aos quais a imprensa atribui a denominação genérica de matadores, assim
referindo-se a indivíduos agindo isoladamente ou em grupos, mas que não foram
identificados como justiceiros, grupos de extermínio ou esquadrões da morte.

Atuação do Poder Público


A atuação do Poder Público, no sentido de punir os agressores dos casos
de grupos de extermínio, foi noticiada em 71% dos casos, mas caracterizou-se
principalmente, conforme mostra o gráfico abaixo, pelo encaminhamento do caso
durante a fase policial; em 39,3% das ações em que há notícias sobre
providências, estas resumiram-se à lavratura de boletins de ocorrência ou a
investigações, e ao indiciamento em 6,6% das ocorrências. As prisões/
julgamentos/condenações/absolvições foram as providências tomadas em 25,5%
dos casos.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 238

Fonte: Banco de Dados da Imprensa Sobre as Graves Violações dos Direitos Humanos - NEV/USP - Secretaria Nacional
de Direitos Humanos/ Ministério da Justiça

Manifestação Pública
Em geral, as ocorrências envolvendo grupos de extermínio ou justiceiros
durante os anos 1980-89 não mobilizaram as entidades. Aquelas que
mobilizaram a sociedade o fizeram sob a forma de protestos, denúncias ou
manifestações de apoio à violação. A imprensa não noticiou nenhuma dessas
ações com relação a 71,8% dos casos noticiados. Dos casos de maior
repercussão junto à sociedade civil, 18,3% provocaram a manifestação de
entidades e, em apenas 7% dos que foram informados houve protesto ou
denúncia pelo ocorrido (gráfico 7). O apoio à violação foi a manifestação
noticiada em 3% dos casos em que outros atores se mobilizaram.

G ráfico 7 - D istribuição dos casos de Execuções Sum árias segundo o tipo


de m anifestação, Brasil1980-1989

80,0

40,0

0,0
Protesto/Denúncia Apoio à violação Não informa
% 25,3 3,0 71,8

Fonte: Banco de Dados da Imprensa Sobre as Graves Violações dos Direitos Humanos - NEV/USP - Secretaria Nacional
de Direitos Humanos/ Ministério da Justiça
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 239

Considerações Finais
Os 580 casos de ações praticadas por grupos de extermínio no Brasil,
veiculados pela imprensa entre 1980-89, concentram-se no final da década, no
período de 1987 a 1989, e ocorreram sobretudo nos estados de São Paulo e Rio
de Janeiro. A vítima foi predominantemente descrita como bandido/marginal, e a
categoria de agressores mais freqüente foi justiceiros, grupos de civis ou
matadores isolados, seguida dos grupos formados por policiais militares, civis ou
de outras corporações. O noticiário não informou sobre as providências tomadas
pelo Poder Público em relação à maioria dos casos. Nas poucas ocasiões em
que veiculou essa informação, referiu-se a medidas da fase policial. Quanto às
manifestações públicas motivadas pelos casos, poucas foram registradas pela
imprensa.

3.2 Grupos de extermínio, São Paulo: 1980-1989

Entre os anos 80-89, 252 casos atribuídos a grupos de extermínio


ocorreram em São Paulo, principalmente na capital (51%), mais exatamente na
zona sul da cidade onde aconteceram 88 dos 128 casos registrados nesta região.
A seguir, a região da Grande São Paulo foi palco de 43% das ações (109 casos),
com destaque para a região de Guarulhos, com 32 casos noticiados.

Gráfico 8 - Distribuição dos casos de


Execuções Sumárias segundo as regiões do
município de São Paulo, 1980-89

80

40

0
Norte Sul Leste Oeste
Casos 3 73 16 9

Fonte: Banco de Dados da Imprensa Sobre as Graves Violações dos Direitos Humanos - NEV/USP - Secretaria Nacional
de Direitos Humanos/Ministério da Justiça
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 240

Gráfico 9 - Distribuição dos casos de Execuções Sumárias


segundo regiões estaduais, São Paulo 1980-89

120

60

0
Grande São Interior do Não
Capital Litoral
Paulo estado informa
Casos 101 97 4 4 5

Fonte: Banco de Dados da Imprensa Sobre as Graves Violações dos Direitos Humanos - NEV/USP - Secretaria Nacional
de Direitos Humanos/Ministério da Justiça

O maior número de ocorrências foi noticiado no ano de 1988, época de


funcionamento do “Grupo Anti-justiceiros” criado durante o Governo Quércia, em
que há registro de muitas investigações e prisões de justiceiros e esquadrões da
morte. Os corpos das vítimas foram encontrados sobretudo em lugares públicos
de pouca circulação (lugares ermos) ou na rua.

Em 44% dos casos, não há nenhuma informação sobre o perfil da vítima,


que é descrita apenas como bandido/marginal (31%), ou como
matadores/justiceiros (4%), como poder ser observado no gráfico 10. A seguir,
em 20% dos casos, a categoria mais atingida pela ação dos justiceiros ou grupos
de extermínio é a dos trabalhadores.

Fonte: Banco de Dados da Imprensa Sobre as Graves Violações dos Direitos Humanos - NEV/USP - Secretaria Nacional
de Direitos Humanos/ Ministério da Justiça
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 241

As ações violentas ocorridas em São Paulo foram praticadas, conforme


representado no gráfico 11, principalmente por justiceiros, grupos de civis ou
matadores isolados (49%) e a imprensa apenas pôde atribuir uma definição
genérica de justiceiros, pistoleiros ou marginais a um grupo que ficou
caracterizado como sendo de perfil duvidoso em 13% das ocasiões. Grupos
formados por policiais militares, policiais civis ou sobre os quais havia a suspeita
de serem policiais não identificados somam 15% dos casos e grupos formados
por ex- policiais militares, traficantes ou assaltantes representam 6% do total.

Gráfico 11 - Distribuição do perfil dos agressores dos casos de


Grupos de Extermínio, São Paulo,1980-1989
17% 13%
2%

6%

13%

49%
Grupos formados por policiais militares, civis ou de outras corporações
Suspeita de policiais não identificados
Justiceiros, grupos de civis ou matadores isolados
Perfil duvidoso: justiceiros, pistoleiros, marginais
Grupos formados por ex-PMs, assaltantes, traficantes
Não informa

Fonte: Banco de Dados da Imprensa Sobre as Graves Violações dos Direitos Humanos - NEV/USP - Secretaria Nacional
de Direitos Humanos/ Ministério da Justiça

Atuação do Poder Público


Em São Paulo, a atuação do Poder Público para metade dos casos refere-
se à fase policial, com o registro em boletins de ocorrência ou investigações
(44,8%) e, ainda, o indiciamento (5,2%).
Prisões/julgamentos/condenações/absolvições, referentes à fase judicial,
aconteceram sobretudo nos últimos três anos do período e somam 30,6%,
conforme as fontes.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 242

Fonte: Banco de Dados da Imprensa Sobre as Graves Violações dos Direitos Humanos - NEV/USP - Secretaria Nacional
de Direitos Humanos/ Ministério da Justiça

Manifestação Pública
Seguindo a tendência geral para o país, em 82% dos casos não há
informações sobre alguma participação da sociedade civil. Entidades protestaram
por causa da violação em 6% dos casos, mesma porcentagem verificada para
manifestações de apoio, sobretudo por parte da comunidade.
Considerações Finais
No estado de São Paulo, a maior parte das ações de grupos de extermínio
registradas pela imprensa entre 1980-89 ocorreu na capital (especialmente na
Zona Sul) e na Grande São Paulo. O ano de 1988 foi o que registrou o maior
número de casos. Neste ano, em São Paulo, atuou o “Grupo Anti-justiceiros”,
organizado pelo governo Quércia para investigar os crimes dos esquadrões da
morte e punir seus integrantes, o que explica o maior interesse da imprensa em
divulgar as ações desses grupos. O noticiário não fornece dados sobre o perfil de
quase metade das vítimas e, quando o fez, a descrição mais incidente foi
bandido/marginal. Os agressores foram predominantemente descritos como
justiceiros, grupos de civis ou matadores isolados. A atuação do Poder Público foi
noticiada com maior freqüência do que em relação ao Brasil, mas também se
refere majoritariamente à fase policial. As poucas manifestações públicas
registradas pela imprensa vieram de entidades.

3.3 GRUPOS DE EXTERMÍNIO, RIO DE JANEIRO: 1980-1989

No Rio de Janeiro, os 262 casos coletados (45,2% do total do país)


ocorreram com maior freqüência nos anos iniciais do período (1980 a 1983) e no
final da década (1987 a 1989). Em 1985 as fontes ocuparam-se de apenas 2
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 243

casos, um deles envolvendo criança como vítima. Como foi referido, os anos de
maior incidência coincidem com os de uma atuação oficial em relação aos crimes
cometidos.
Vítimas
As notícias não informam o perfil de 52% das vítimas no Rio de Janeiro.
Quando esta informação é veiculada, ao contrário de São Paulo, onde se destaca
a marginalidade, no Rio de Janeiro, 26% das vítimas foram descritas como
trabalhadores, ou na notícia havia a informação de que estas vítimas não tinham
antecedente criminal. Bandidos/marginais e matadores ou justiceiros foram os
termos usados para descrever 22% das vítimas, conforme gráfico 13.

Fonte: Banco de Dados da Imprensa Sobre as Graves Violações dos Direitos Humanos - NEV/USP - Secretaria Nacional
de Direitos Humanos/ Ministério da Justiça

Agressores
Para a maioria dos casos ocorridos no Rio de Janeiro, não há informações
que permitam qualificar os agressores e esta ausência é total nos anos de 1984 e
1986 (gráfico 14). Nos casos em que a descrição existe, o perfil mais típico é o de
grupos formados por policiais militares, civis e de outras corporações, ou, ainda,
grupos em que há a suspeita de participação de policiais (30% e 6% dos casos,
respectivamente). Estes grupos têm presença marcante no noticiário dos anos do
início e do fim da década. Do total de casos, 11% dos agressores foram
qualificados como justiceiros, grupos formados por civis ou matadores isolados.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 244

Gráfico 14 - Perfil dos agressores dos casos de Grupos


de Extermínio, Rio de Janeiro, 1980-1989

30%

53%

6%

11%

Grupos formados por policiais militares, civis ou de outras corporações


Suspeita de policiais não identificados
Justiceiros, grupos formados por civis ou matadores isolados
Não informa

Fonte: Banco de Dados da Imprensa Sobre as Graves Violações dos Direitos Humanos - NEV/USP - Secretaria Nacional
de Direitos Humanos/ Ministério da Justiça

ATUAÇÃO DO PODER PÚBLICO


Entre os casos ocorridos no Rio de Janeiro, faltam informações sobre a
atuação do Poder Público (gráfico 15), em 37% dos casos. Essa falta de
informação aumenta nos anos de 1984 e 1986. As informações, quando existem,
referem-se a boletins de ocorrência e à investigações (42%), ou seja, os
procedimentos referentes à fase policial. As notícias sobre prisões, julgamentos,
condenações ou absolvições somaram 21%.

Fonte: Banco de Dados da Imprensa Sobre as Graves Violações dos Direitos Humanos - NEV/USP - Secretaria Nacional
de Direitos Humanos/ Ministério da Justiça
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 245

MANIFESTAÇÃO PÚBLICA
A intervenção de outros atores não foi noticiada em 63% dos casos e,
quando ocorreu, ao contrário de São Paulo, sempre foram de repúdio à violação.
O registro de manifestações foi maior nos casos ocorridos no início e no final do
período, com maior incidência nos anos de 1980 a 1983. Dos casos que
provocaram alguma manifestação, as entidades foram responsáveis por 78% das
denúncias e os 22% restantes referem-se às denúncias ou protestos promovidos
pela comunidade, por amigos ou por parentes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os 262 casos de autoria de grupos de extermínio no estado do Rio de
Janeiro entre 1980-89 concentram-se no início e no final da década,
respectivamente os períodos de repercussão do “caso Marly” e da vigência das
investigações empreendidas por uma comissão especial, coordenada pelo
governo, para investigar crimes de esquadrões da morte. As vítimas foram
preferencialmente descritas como trabalhadores, ao contrário de São Paulo, onde
o perfil mais comum foi bandido/marginal. O perfil predominante dos agressores
no Rio de Janeiro é o de esquadrões da morte, grupos formados por policiais e
militares e civis, que podem agir com outras forças policiais ou até mesmo com o
exército. O perfil da sua ação e a constituição dos grupos de extermínio parece
não sofrer mudanças significativas ao longo do período. A suspeita da atuação de
policiais não identificados costuma ser levantada por testemunhas ou pela própria
Polícia durante as investigações. Outra característica importante é que a
imprensa levanta a suspeita desses grupos atuarem em conivência com o crime
organizado. Paralelamente a este perfil predominante, encontramos outro que
descreve a atuação de justiceiros ou grupos formados por civis ou matadores
isolados. Assim como em São Paulo, a imprensa pouco informou sobre as
providências tomadas pelo Poder Público em relação aos casos, e quando
veiculou esse dado, se ateve com mais freqüência à fase policial. As
manifestações públicas, embora não informadas para a grande maioria dos
casos, foram mais freqüentes do que em São Paulo e, de acordo com o
noticiário, e quem mais se manifestou frente à violação foram as entidades.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 246

4. BANCO DE DADOS SOBRE EXECUÇÕES SUMÁRIAS – 1990-1996

Para este período, os dados se encontram informatizados, ao contrário do


Banco de Dados sobre Grupos de Extermínio dos anos 80. O Banco de Dados
sobre Execuções Sumárias permite a realização de alguns cruzamentos de
variáveis para a análise das ocorrências por região, estado ou país, segundo o
padrão de violação ou característica da ocorrência como o tipo de delito,
agressor, vítima, local, região, atuação do poder público ou as manifestações
provocadas pela violação.

4.1 Execuções Sumárias, Brasil: 1990-1996.

Durante os anos de 1990 a 1996 foram noticiados 1308 casos de


execuções sumárias ocorridas no Brasil, principalmente no estado de São Paulo
(604) e Rio de Janeiro (522). A Bahia e Pernambuco, tiveram 37 e 35 casos
noticiados, respectivamente. O ano de maior número de ocorrência foi o de 1991,
o que coincide com a instalação, pela Câmara dos Deputados, da “CPI Destinada
a Investigar o Extermínio de Crianças e Adolescentes no Brasil”.

Gráfico 16 - Distribuição dos Casos de Execuções


Sumárias - Brasil, 1990-1996
250

200

150

100

50

0
1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996

São Paulo Rio de Janeiro Outros Estados

Fonte: Banco de Dados da Imprensa Sobre as Graves Violações dos Direitos Humanos - NEV/USP - Secretaria Nacional
de Direitos Humanos/ Ministério da Justiça

O palco principal das ações, como mostra o gráfico a seguir (gráfico 17),
foram os locais de circulação (43,1%), principalmente a rua, indicando um tipo de
“socialização” da violência que obriga as comunidades a conviverem com essas
ações, atingindo direta e indiretamente um número elevado de pessoas,
moradoras das periferias das grandes cidades. No período 1990-96, as
ocorrências em locais de moradia (28,6%) ultrapassam as que foram realizadas
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 247

em lugares ermos (15,5%) como matagais ou terrenos baldios. O crescimento


dos locais de moradia corresponde ao aumento significativo de casos de chacina
em que a vítima é eliminada na sua própria residência e, a seguir, também são
mortos outros membros da família ou pessoas que estejam no local no momento
da agressão.

G r á fic o 1 7 - D is tr ib u iç ã o d o s c a s o s d e E x e c u ç õ e s S u m á r ia s
s e g u n d o o lo c a l d e o c o r r ê n c ia , B r a s il 1 9 9 0 -1 9 9 6

50

25

0
In s t. d e In s t. Loc. de L o c a is d e Loc. de Loc. de L u g a re s M e io s d e
M e io r u r a l
c o n t r o le fe c h a d a s c ir c u l. la z e r m o r a d ia tr a b a lh o e rm o s tr a n s p .
% 1 ,3 1 ,2 4 3 ,1 7 ,4 2 8 ,6 0 ,9 1 5 ,5 1 ,2 0 ,8

Fonte: Banco de Dados da Imprensa Sobre as Graves Violações dos Direitos Humanos - NEV/USP - Secretaria Nacional
de Direitos Humanos/ Ministério da Justiça

Em 95% dos casos o homicídio foi o desfecho final. Pode-se observar, em


alguns casos, indícios da ocorrência de uma agressão anterior ao homicídio
(estupro, lesões corporais, seqüestro ou tortura) o que revela não apenas a
intenção de matar a vítima, como também de fazê-la sofrer antes que sua morte
seja consumada (gráfico 18).

Gráfico 18 - Distribuição dos casos de Execuções


Sumárias segundo o tipo de delito, Brasil, 1990-1996
Homicídio
1%
3%
1% Lesões Corporais

Tentativa de Homicídio

Outros crimes seguidos de


95% morte

Fonte: Banco de Dados da Imprensa Sobre as Graves Violações dos Direitos Humanos - NEV/USP - Secretaria Nacional
de Direitos Humanos/ Ministério da Justiça
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 248

Quando é noticiado o motivo da execução sumária, o acerto de contas,


que engloba brigas, vingança e rixas, corresponde a quase metade dos casos
(49%). O envolvimento com o consumo ou tráfico de drogas (26%) também está
presente, podendo indicar disputa entre grupos no controle do tráfico na origem
dos eventos (gráfico 19). Esta distribuição refere-se aos casos em que havia tal
informação, pois em 50% dos casos a imprensa não informou o motivo que
desencadeou as ações de extermínio.

Gráfico 19 - Distribuição dos casos de Execuções Sumárias


segundo o motivo desencadeador, Brasil 1990-96

8% 0,5%
4%
0,5%
6%

4%
2% 49%

26%

Acerto de contas Drogas (consumo ou tráfico)


Outros Por engano
Queima de arquivo Roubo
Tiroteio Várias versões
Vários Crimes

Fonte: Banco de Dados da Imprensa Sobre as Graves Violações dos Direitos Humanos - NEV/USP - Secretaria Nacional
de Direitos Humanos/ Ministério da Justiça

VÍTIMAS
A presença de um corpo (ou corpos) é o principal indicador (às vezes o
único) de que ocorreu uma execução sumária, ação que, geralmente, se mantém
envolta em silêncio. As vítimas atingidas pelas execuções sumárias somam 5048
pessoas, quase todas (88,3%) vítimas fatais, como mostra o gráfico abaixo. A
maioria das ações (59%) atingiu mais de uma vítima, tendo registrado, em média,
3,8 vítimas (gráfico 20). Parece haver uma relação entre a identificação da vítima
e o local de ocorrência da ação, pois boa parte das vítimas identificadas (20%) foi
morta ou em sua casa ou na favela. Assim, a vítima é conhecida na comunidade,
e seu nome é revelado pelos próprios moradores à imprensa.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 249

Gráfico 20 - Distribuição dos casos de Execuções Sumárias segundo as


vítimas, Brasil 1990-96
1200

600

0
1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996
Nº de vítimas 530 1160 484 994 697 543 640
Nº de vít. Identific. 198 520 260 263 284 287 377
Nº de vítimas fatais 472 1069 414 910 589 473 534

Fonte: Banco de Dados da Imprensa Sobre as Graves Violações dos Direitos Humanos - NEV/USP - Secretaria Nacional
de Direitos Humanos/ Ministério da Justiça

Entre as vítimas das execuções sumárias que tiveram seu sexo informado,
88% eram do sexo masculino. Aquelas que tiveram sua idade noticiada eram,
preferencialmente, jovens entre 18 e 24 anos (28,4%), como mostra o gráfico
abaixo.

Gráfico 21 - Distribuição dos casos de Execuções Sumárias


segundo a idade das vítimas, Brasil, 1990-1996

mais de 45 7%

de 40 a 44 4%

de 35 a 39 7%

de 30 a 34 10%

de 25 a 29 13%
28%
de 18 a 24
de 15 a 17 22%

de 8 a 14 7%

de 0 a 7 3%

0 15 30

Fonte: Banco de Dados da Imprensa Sobre as Graves Violações dos Direitos Humanos - NEV/USP - Secretaria Nacional
de Direitos Humanos/ Ministério da Justiça
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 250

Embora a imprensa não qualifique 65% das vítimas, os números válidos


descrevem-na igualmente pela profissão ou como infratora/presidiária (38%),
como mostra o gráfico 22 sobre qualificação da vítima. Muitas vítimas foram
descritas como estando envolvidas com grupos de execuções sumárias ou
associadas a essas atividades. Assim, 22% das vítimas foram classificadas pela
imprensa como “membros de grupos de extermínio”, “bicheiros/traficantes”,
“pistoleiros” ou “justiceiros”.

A ocupação profissional da vítima é algo que não desperta o interesse da


imprensa, pois, do total de vítimas, apenas 16% delas apresentavam alguma
informação sobre a ocupação.

G ráfico 22 - D istribuição dos casos de E xecuções S um árias segundo a


qualificação das vítim as,
B rasil 1990-96

22 %

38 %
3%

37 %

P essoa s e nvolvida s co m grupo s de ex. sum .


C rianças/ad ultos e m situaçã o de rua
Infratore s/presidiários
P essoa s qualificadas pe la pro fissão

Fonte: Banco de Dados da Imprensa Sobre as Graves Violações dos Direitos Humanos - NEV/USP - Secretaria Nacional
de Direitos Humanos/ Ministério da Justiça

Apesar de 22% das vítimas estarem descritas como associadas a


atividades ilegais, poucos são os casos (7%) em que há informação sobre os
antecedentes criminais das vítimas e só é possível tomar este dado como
indicativo da tendência: a maioria (55%) não tinha antecedentes criminais.

Agressores
O número de agressores envolvidos nos 1308 casos do período é de 3586,
o que corresponde, em média, a 2,7 agressores por caso. Do total de agressores,
apenas 20% foram identificados nas notícias (gráfico 23).
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 251

Gráfico 23 - Distribuição dos casos de Execuções Sumárias segundo os


agressores, Brasil 1990-1996
700

350

0
1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996
Nº de agressores 239 642 564 624 378 637 502
Nº de agr. identificados 55 154 93 148 87 144 61

Fonte: Banco de Dados da Imprensa Sobre as Graves Violações dos Direitos Humanos - NEV/USP - Secretaria
Nacional de Direitos Humanos/ Ministério da Justiça

Tal como as vítimas, os agressores são quase exclusivamente do sexo


masculino (99%) mas, em números totais, normalmente são mais velhos. Embora
as fontes não informem a idade de 91% dos agressores, as faixas de 18 a 24
(28,7%) e de 25 a 29 anos (25,1%) foram as mais citadas quando a informação
foi veiculada. Ao contrário das vítimas, que tendem a ser mais novas, agressores
na faixa de 30 a 34 anos de idade correspondem a 13,8% do total válido (gráfico
24).

Fonte: Banco de Dados da Imprensa Sobre as Graves Violações dos Direitos Humanos - NEV/USP - Secretaria Nacional
de Direitos Humanos/ Ministério da Justiça

Quanto ao perfil, as fontes descrevem os agressores principalmente como


bicheiros/traficantes (36%) , grupos de extermínio (21%) ou usam a denominação
grupos formados por policiais (17%), como mostra o gráfico abaixo. A descrição
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 252

de grupos de composição mista - policiais agindo em conjunto com outros


agressores - é usada em 5% dos casos. Ao contrário da freqüência com que era
utilizada anos 1980-89, no período 1990-96, a denominação justiceiro descreveu
7% dos agressores, aproximando-se da de pistoleiros (6%).

Gráfico 25 - Distribuição dos casos de Execuções


Sumárias segundo a qualificação dos agressores, Brasil,
1990-1996
1% 1%
6%
4%
7%
36%
2%

21%

5% 17%
Bicheiro/traficante Grupo formado por policiais
Grupos de composição mista Grupos de extermínio
Infrator Justiceiros
Mandante da ação Pistoleiro
Profissão Suspeito

Fonte: Banco de Dados da Imprensa Sobre as Graves Violações dos Direitos Humanos - NEV/USP - Secretaria Nacional
de Direitos Humanos/ Ministério da Justiça

Além de praticamente não se informar sobre antecedentes criminais dos


agressores (98%), predomina a ausência de informações sobre a profissão do
agressor (77%), mas, quando esta definição é adiantada nas notícias, informa
que 81% são profissionais da Polícia ou Forças Armadas158, com destaque para
os policiais militares como agressores. A presença de comerciantes, fazendeiros
e empresários como agressores levanta a hipótese de que essas execuções
sumárias são crimes por vezes encomendados por pessoas que se sentem
ameaçadas e pretendem proteger familiares, a comunidade ou seus bens
materiais.
Apesar do pequeno envolvimento de políticos como agressores (prefeito,
vereador, secretário de Estado e vice-prefeito) há uma maior incidência desses
casos ocorridos nas regiões Norte e Nordeste.

158
Esta categoria inclui policiais e ex-policiais civis e militares, delegados e sargentos do Exército.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 253

Atuação do Poder Público


Geralmente as execuções sumárias são noticiadas pela imprensa com
base em informações fornecidas pela Polícia. Foram noticiados 849
andamentos159, entre os quais predominam as ações realizadas na fase policial
(72,6%), em especial: abertura de inquérito policial (30,6%) e emissão de boletim
de ocorrência (22,8%). Os casos em que houve atuação do Judiciário
representam 26,2% (gráfico 26). A diferença entre as duas fases pode ser
explicada pelo fato de que a imprensa faz apenas a cobertura da ocorrência do
crime, não acompanhando o seu desfecho processual, à exceção dos casos de
grande impacto social.

Fonte: Banco de Dados da Imprensa Sobre as Graves Violações dos Direitos Humanos - NEV/USP - Secretaria Nacional
de Direitos Humanos/ Ministério da Justiça

Manifestação pública
Apesar do caráter público que parece caracterizar as execuções sumárias,
foram registradas apenas 107 manifestações160, quase exclusivamente de
denúncia ou protesto pelo ocorrido (94%), conforme gráfico 27.

159
O número de andamentos informados não coincide com o número de casos, pois um caso
pode ter tido vários andamentos noticiados.
160
Alguns casos provocaram mais de uma manifestação.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 254

Fonte: Banco de Dados da Imprensa Sobre as Graves Violações dos Direitos Humanos - NEV/USP - Secretaria Nacional
de Direitos Humanos/ Ministério da Justiça

As manifestações vieram sobretudo de membros da comunidade,


moradores do local ou do Movimento de Meninos e Meninas de Rua. Entre as
organizações de defesa dos direitos humanos, os protestos vieram sobretudo da
organização Anistia Internacional.

O maior número de protestos e denúncias foi veiculado no ano de 1993,


provavelmente devido à repercussão dos casos da Candelária e Vigário Geral,
acontecidos no Rio de Janeiro e que vitimaram crianças.

Considerações Finais
Foram noticiados 1308 casos de execuções sumárias no Brasil entre
1990-96. O período de maior ocorrência coincide com o da vigência da “CPI
Destinada a Investigar o Extermínio de Crianças e Adolescentes no Brasil”,
coordenada pela Câmara dos Deputados, entre 1991 e 1992. As violações se
deram na maior parte em locais de circulação e foram motivadas pelo
consumo/tráfico de drogas ou vingança, de acordo com os dados da imprensa.
Das 5048 vítimas, a maioria foi fatal e quase metade foi identificada. O perfil de
vítima mais comum foi do sexo masculino, entre 18 e 24 anos, trabalhador com
pouca qualificação e descrito no noticiário pela profissão ou como infrator. Do
total de 3586 infratores, apenas 20% foram identificados, e eram
majoritariamente do sexo masculino, com idade variando entre 18 e 29 anos e
descritos pela imprensa como bicheiro/traficante na maior parte dos casos,
embora não deva ser negligenciada a incidência significativa de grupos de
extermínio e grupos formados por policiais. Embora seja pequena a porcentagem
de agressores cuja informação a respeito da ocupação tenha sido veiculada, é
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 255

relevante enfatizar a participação de membros da Polícia/Forças Armadas nas


execuções sumárias. As providências tomadas pelo Poder Público informadas
com mais freqüência foram referentes à fase policial, e a maioria das
manifestações públicas noticiadas foi de protesto ou denúncia, apresentadas
principalmente pelo MNMMR, pela comunidade e pela Anistia Internacional.

4.2 EXECUÇÕES SUMÁRIAS, SÃO PAULO: 1990-1996.

Do total de casos de execuções sumárias registrados no Banco de Dados


no período 1990-96, 604 ocorreram no estado de São Paulo, principalmente na
capital. Os anos com maior freqüência de casos noticiados foram os de 1991,
1992 e 1996 e, em relação aos anos do período inicial (1991 e 1992), o elevado
número de ocorrências noticiadas pode ser associado aos trabalhos da “CPI
Destinada a Investigar o Extermínio de Crianças e Adolescentes no Brasil”. No
período citado como o de maior número de ocorrências, a imprensa noticiou
muitos casos de violência contra crianças e adolescentes de 16 e 17 anos. Do
mesmo modo, no final da década de 80, o governo Quércia anunciou uma
atuação rigorosa de combate à figura do justiceiro, que teve prosseguimento no
governo Fleury, no início da década de 90. Ao longo destes anos, a imprensa
noticiou amplamente prisões e condenações de vários justiceiros.

O jornal Notícias Populares, pesquisado sistematicamente somente até


1992, foi, sem dúvida, um dos grandes responsáveis pela elevada freqüência de
casos e teve influência sobre o perfil da violência registrada no período
pesquisado. Em 1996, a elevada freqüência de notícias sobre execuções
sumárias parece estar associada ao crescente registro de ocorrências de
chacinas em São Paulo, objetos de diversas reportagens investigativas. As
análises contidas nessas reportagens apontam para algumas diferenças entre os
crimes envolvendo mais de 3 vítimas na primeira metade da década e aqueles
ocorridos a partir de 1995, permitindo, assim, apontar para as transformações no
fenômeno das execuções sumárias que serão discutidas ao longo deste texto.

Do total de vítimas, 86,8% foram fatais. De modo geral, em São Paulo, as


notícias revelam que a morte já havia sido anunciada, por exemplo, por meio da
circulação de “rumores” na localidade de que alguém iria ser morto porque não
cumprira alguma regra do grupo. As fontes descrevem que a agressão
normalmente resulta de um “ataque” de surpresa em que vários tiros são dirigidos
contra a vítima, com freqüência atingindo a cabeça e o peito, sem que esta tenha
qualquer possibilidade de defesa. Conforme as nossas fontes, nestas ações em
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 256

São Paulo, por vezes foi utilizado armamento pesado como, por exemplo, armas
de calibre 12 ou 76,5.

Às vezes, os matadores usavam capuzes, para não serem reconhecidos,


fato que, segundo algumas fontes, desperta a suspeita do envolvimento de
policiais ou de pessoas conhecidas na área onde o crime ocorreu. A preocupação
em ocultar a identidade costuma ser característica de grupos protejam seu
anonimato de modo a continuarem suas ações.

Os casos relatados no Banco de Dados indicam que alguns tipos de


execução sumária apresentam um padrão de ação. Esse é o caso dos pistoleiros.
As notícias mostram que os pistoleiros praticam a violência na rua, em casa ou
no bar, atingindo apenas o alvo que pretendiam. Quando acertam outras
pessoas, geralmente é porque alguém tentou impedir sua ação ou socorrer a
vítima. Nestes casos, as notícias informam alguns aspectos que se repetem:

“Três homens encapuzados entraram, às 22h30, no bar, em


Itapecerica/não disseram nada, apontaram revólveres para três dos doze
freqüentadores/ três morreram na hora, outros três ficaram feridos/ deixaram o bar a
pé./ delegado não sabe se eles tinham antecedentes/ dono do bar não dormiu, ficou
limpando o sangue da mesa de bilhar/ tiros na cabeça/ não quebraram nada, nem
uma garrafa, vieram atrás do Bahia e do Pedrinho/” (Folha de S. Paulo e O Estado
de S. Paulo, 1/11/93)

“Rui executado em frente da família, à noite/ na rua/ Pq. Sto Antônio/ dirigia
seu Gol/ no carro, mulher, filho e sogros/ perseguido por dois pistoleiros numa
Kombi/ fechou/ falaram alguma coisa/ teco pegou na cuca/ matadores fugiram numa
boa/ morto não era nenhum santo/ segundo a Polícia, tinha sido condenado pela
justiça/ um dia antes de morrer, fora preso e liberado/ para policiais, assassino de
aluguel.” (Notícias Populares, 30/08/91).

Nos últimos anos da pesquisa, o cenário e o modo de ação parecem ter


sofrido algumas transformações. Com base nos casos coletados, verificamos
uma tendência ao aumento da crueldade contra as vítimas antes de serem
executadas. O que mais se destaca das execuções sumárias nos últimos anos do
período pesquisado é que, agora, jovens, idosos, mulheres grávidas e até bebês
com apenas alguns meses de vida vêm se juntar às vítimas jovens do sexo
masculino, o grupo mais atingido pela violência. O “critério” para que um
indivíduo seja atingido parece se resumir à sua simples e, na maioria dos casos,
casual presença na cena do crime; se antes as ocorrências atingiam
preferencialmente indivíduos com os quais o agressor teria algum conflito a
resolver, agora, a violência atinge indiscriminadamente quem estiver por perto e
tenha presenciado a execução.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 257

Quando há informação sobre o motivo desencadeador da ação (41,1%),


60% das ocorrências foram atribuídas ao acerto de contas e 17% ao consumo ou
tráfico de drogas (gráfico 28). Nos primeiros anos da década há informações
sobre várias pessoas que teriam sido mortas por estarem envolvidas com “crime”.
As mortes podiam ocorrer numa tentativa de “limpar” a área contra bandidos ou
por problemas entre membros de quadrilhas por disputas quando da divisão de
produtos de roubo.

Pelas fontes consultadas, verifica-se que, freqüentemente, o motivo


desencadeador mais apresentado como causa da mudança no perfil da ação das
execuções sumárias estaria diretamente relacionado ao crescimento do tráfico de
drogas, principalmente das drogas mais baratas como o crack: policiais e
testemunhas dos crimes têm apontado, com freqüência, o fato de a vítima não ter
saldado uma dívida de droga, como a causa da sua morte por pessoas que
seriam traficantes. Como acima referido, nestes casos, a tentativa de resolução
de conflito pode resultar na morte de todos aqueles que, inadvertidamente, se
encontrem no cenário do crime. Assim, muitas vezes, são eliminadas pessoas
alheias ao conflito, ainda que o suposto alvo (por exemplo, o devedor) não esteja
no local.
Gráfico 28 - Distribuição dos casos de Execuções Sumárias
segundo o motivo desencadeador, São Paulo, 1990-1996
1,2
9,3
0,5
4,8

6,5
0,4

60,0
17,3

Acerto de contas Drogas(consumo/tráfico)


Outros Por engano
Queima de Arquivo Roubo
Tiroteio Várias versões sobre o crime

Fonte: Banco de Dados da Imprensa Sobre as Graves Violações dos Direitos


Humanos - NEV/USP - Secretaria Nacional de Direitos Humanos/ Ministério da Justiça

As notícias sugerem a existência de estreita relação entre o tráfico de


drogas e outras atividades delituosas, como o roubo e receptação de peças e
veículos, o roubo a bancos e o roubo de cargas. Estas atividades envolvem altos
valores e permitem que os grupos adquiram armamento pesado, aumentando o
seu poder. A participação de contraventores considerados poderosos - em
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 258

especial banqueiros do jogo o bicho - explicaria porque tais crimes assustam


tanto a população que dificilmente se dispõe a colaborar com os policiais.
As regiões onde mais ocorreram crimes foram as zonas Sul e Leste da
capital e nos municípios limítrofes. Para se compreender o elevado índice de
casos nas zonas Sul e Leste deve-se considerar a ampla extensão territorial
destas zonas e, principalmente, a alta densidade populacional, bem superior à da
zona central. Nos municípios limítrofes, este elevado índice relaciona-se com o
fato destas áreas serem periféricas, longe da região central e intensamente
procuradas pela população de menor poder aquisitivo.

Apesar de distantes, esses locais apresentam maior oferta de moradias de


menor valor, justamente pelas deficiências na oferta de serviços de infra-estrutura
(água e esgoto, transporte, saúde, educação, iluminação etc.). Portanto, a
distribuição desigual dos casos, concentrando-se principalmente nas áreas mais
afastadas e carentes da cidade possibilita estabelecer algum tipo de relação
entre o alto índice das mortes por autoria desconhecida com os problemas sócio-
econômicos que caracterizam estes locais. Os municípios limítrofes são, na
realidade, o prolongamento das áreas extremas da Capital.

As execuções sumárias ocorreram em 49,9% dos casos nos locais de


circulação, vindo em seguida os locais de moradia (23,1%), lugares ermos
(13,4%) e locais de lazer (11,1%). Analisando-se as notícias, observou-se que a
rua normalmente foi escolhida como cenário da violência em momentos de “fraca
circulação”, como à noite ou de madrugada. As pessoas, apesar de não
testemunharem o crime, freqüentemente escutam os tiros, o que acaba
funcionando como fator de intimidação da vizinhança.

Outra observação sobre os locais de realização dos crimes se refere à


forma como bares e residências são utilizados como cenários. Os dados da
pesquisa sugerem que ambos são locais onde os agressores encontram as
vítimas. Os agressores entram no bar e retiram à força as vítimas, executando-as
na rua. O caráter privado das residências não impede que se transformem em
cenário da violação e que as execuções sejam realizadas diante de testemunhas
que poderiam identificar os autores.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 259

VÍTIMAS
Os 604 casos no Banco de Dados de Execuções Sumárias registrados em
São Paulo vitimaram 1.829 pessoas, das quais 86,8% foram vítimas fatais. As
vítimas identificadas somam 58,2% do total de vítimas (gráfico 29).

Fonte: Banco de Dados da Imprensa Sobre as Graves Violações dos Direitos Humanos - NEV/USP
- Secretaria Nacional de Direitos Humanos/ Ministério da Justiça

Em 90,5% dos casos obteve-se a informação sobre o sexo das vítimas e a


maioria era do sexo masculino (90%). Quando há informação sobre a idade das
vítimas (49,6%), a distribuição das faixas etárias revela que a maior parte das
vítimas tem menos de 24 anos de idade(63,0%). Os dados sobre idade são
semelhantes aos relatados pelo Departamento de Homicídios e Proteção à
Pessoa (DHPP) a propósito dos casos de chacina, para os anos de 1995-96,
cujas vítimas se concentram na faixa etária de 18 a 24 anos.

Gráfico 30 - Distribuição dos casos de Execuções


Sumárias segundo a idade das vítimas, São Paulo, 1990-
1996
mais de 45 5,4%

de 40 a 44 2,1%

de 35 a 39 6,1%

de 30 a 34 11,2%

de 25 a 29 12,2
32,7%
de 18 a 24

de 15 a 17 17,8%

de 8 a 14 10,4%

de 0 a 7 2,1%

0 10 20 30 40

Fonte: Banco de Dados da Imprensa Sobre as Graves Violações dos Direitos Humanos - NEV/USP
- Secretaria Nacional de Direitos Humanos/ Ministério da Justiça
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 260

Cerca de 1/3 das notícias (32,9%) trazem alguma informação sobre a


vítima. Destas, 51,9% retratam as vítimas como infratoras/presidárias 51,9% e
36,3% como tendo uma profissão.

G ráfico 31 - Distribuiçãos dos casos de Execuções Sum árias


segundo a qualificação das vítim as, São Paulo 1990-96

0,4%
9,4%
2%
36,3% Pessoas envolvidas com grupos de execuções
sumárias
Criança/adulto em situação de rua

Infrator/presidiário

Pessoas qualificadas pela profissão

50,9% Suspeitos/usuários de drogas

Fonte: Banco de Dados da Imprensa sobre as Graves Violações dos Direitos Humanos - NEV/USP - Secretaria Nacional
de Direitos Humanos/ Ministério da Justiça.

Das notícias veiculadas pela imprensa, verificou-se que as vítimas das


execuções sumárias em São Paulo são, em geral, pessoas das classes
populares, com baixo rendimento. Ao contrário da tese de alguns setores,
segundo a qual as vítimas das execuções sumárias seriam indivíduos
desocupados. Essa afirmação dos jornais é corroborada por dados do DHPP,
segundo o qual 44% das vítimas de chacinas tinham alguma ocupação.

As notícias não veicularam informações sobre os antecedentes criminais


de 86,1% das vítimas. Apesar da ausência de informação sobre os antecedentes
criminais, em vários casos os parentes afirmam que a vítima estava envolvida
com furtos, roubos, etc.. De acordo com o DHPP, o número de vítimas de
chacinas que não apresentam antecedentes corresponde a 46,9%.

Agressores
O número de agressores relatados pelos jornais chega a 901. Deste
contingente, foram identificados 22,6% dos agentes (gráfico 32). Os
antecedentes de 93,6% destes agressores não são conhecidos, conforme as
notícias recolhidas.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 261
Gráfico 32 - Distribuição dos casos de Execuções Sumárias
segundo os agressores, São Paulo 1990-96
300

150

0
1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996
Nº de agressores 63 254 83 78 94 148 181
Nº de agr. identificados 15 31 9 24 41 52 32

Fonte: Banco de Dados da Imprensa Sobre as Graves Violações dos Direitos Humanos - NEV/USP - Secretaria
Nacional de Direitos Humanos/ Ministério da Justiça

A maioria dos agressores era do sexo masculino (99,3%). Quando há


informação ( gráfico 33), a faixa etária de 18-24 anos foi a mais freqüente
(33,7%), seguida de 25-29 (23,3%). Comparando com a idade das vítimas, pode-
se observar que os agressores são, em geral, mais velhos. Sobre a idade, as
faixas etárias mais atingidas nos casos de execuções sumárias coincidem com
os dados coletados pelo DHPP para os casos de chacina, segundo os quais este
tipo de violência é praticada sobretudo por indivíduos com idade compreendida
entre 20 e 25 anos.

Gráfico 33 - Distribuição dos casos de Execuções


Sumárias segundo a idade dos agressores, São Paulo
1990-96

mais de 45 6,1%

de 40 a 44 4,9%

de 35 a 39 8%

de 30 a 34 13,5%

de 25 a 29 23,3%

de 18 a 24
33,7%
de 15 a 17 9,8%

de 8 a 14 0,6%

0 20 40

Fonte: Banco de Dados da Imprensa Sobre as Graves Violações dos Direitos Humanos - NEV/USP - Secretaria Nacional
de Direitos Humanos/ Ministério da Justiça
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 262

Com relação à denominação utilizada para classificar os agressores no


gráfico a seguir, a principal foi a de justiceiros (38%), seguida de grupo de
extermínio (28%), bicheiros/traficantes, além de pistoleiros (13%).

Gráfico 34 - Distribuição dos casos de Execuções Sumárias


segundo a qualificação dos agressores, São Paulo, 1990-1996
16%
3%
1%
13%

1%
28%

38%

Bicheiro/traficante Grupos Formados por Policiais


Grupos de Composição Mista Grupos de Extermínio
Justiceiros Mandantes da Ação
Pistoleiro

Fonte: Banco de Dados da Imprensa Sobre as Graves Violações dos Direitos Humanos - NEV/USP - Secretaria
Nacional de Direitos Humanos/ Ministério da Justiça

A elevada freqüência desta denominação justiceiro coincide com o


interesse que a imprensa demonstrou em acompanhar os resultados da
repressão às atividades criminosas empreendidas pelo “Grupo anti-justiceiros”
formado durante o governo Quércia. A continuidade da atuação deste grupo,
durante o governo Fleury, foi acompanhada com interesse pela opinião pública
no início da década de 90, período em que, por conta da ação governamental,
foram detidos diversos justiceiros. A denominação justiceiro passou a ser
utilizada na denominação de quase todos aqueles identificados como matadores,
principalmente nos casos em que havia suspeita de que a vítima fosse infrator e
sua morte tivesse ocorrido por vingança a algum delito por ela cometido. Assim,
no período 1990-96, a denominação justiceiro cedeu lugar à denominação
matadores, sem perder o aspecto contratual dos homicídios.

Nos anos 1990-96, o noticiário descreveu a prisão de grandes justiceiros


(matadores) geralmente contratados por comerciantes para liquidar ladrões ou
realizar “limpeza” nas localidades, mediante pagamento. Essa figura é ambígua,
por causa da sua dupla face de mocinho e bandido:
“Fugiu da cadeia de Carapicuíba/ Adílson/ vida dupla: era bandido e mocinho ao
mesmo tempo. Sua fama na zona norte era de detonar com todos os bandidinhos e
estupradores que atormentavam seus vizinhos. Longe, Adílson se transformava -
virava ladrão e fugia da Polícia./ corpo encontrado cheio da balas, facadas e
pauladas. Todo transformado./ O assassinato teria acontecido quando Adílson
tentava emplacar mais uma história em sua ficha de justiceiro/ policiais acreditam
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 263

que foi assassinado pela quadrilha do Douglas - um dos bandidões que deitam e
rolam na zona norte. O tal de Douglas e mais três companheiros/ teria sido morto
porque tentou reaver uma televisão de uma de suas vizinhas/ histórias que policial
militar ouviu de quem o adorava/” (Notícias Populares, 26/10/90).

Os casos de matadores relatados sugerem que essas pessoas, apontadas


como responsáveis pela “limpeza” de bandidos numa região, estavam tão
envolvidas no mundo do crime quanto as suas vítimas. A contratação de
matadores por comerciantes pareceu ter contribuído para fomentar as suas
atividades criminosas.

As notícias sobre as prisões dos matadores, que à época eram os mais


procurados pela Polícia, revelavam que estes se preocupavam em construir a
imagem de homens que foram injustiçados em algum momento de suas vidas,
marcados por um tipo de violência (condenada pelo grande público) cometida
contra algum familiar, a qual apresentavam como a causa da sua atividade
criminosa. Com o passar do tempo, segundo as notícias, esses matadores
tendiam a se reunir em grupos e, através da violência e do medo que inspiravam,
passavam a dominar as localidades, matando para manterem o poder
conquistado.

As notícias permitem concluir que os matadores, em geral, buscavam


divulgar o número de assassinatos cometidos, talvez porque tal publicidade
enaltecesse a sua destreza e competência, aumentava o seu “prestígio” e,
conseqüentemente, o valor que cobravam pelos “serviços”. Se em um primeiro
momento os matadores teriam cometido o crime por algum motivo que eles, e
determinados setores da população, consideraram “justificável”, na medida em
que se sentiram injustiçados, em seguida passavam a matar por dinheiro:

“Eles afirmaram que começaram seus crimes em 1989, depois de um


assalto seguido de violência sexual que suas mulheres teriam sofrido. Depois disso,
segundo o depoimento dos criminosos, passaram a ser procurados para matar
ladrões, estupradores, traficantes e cobravam pelo ‘serviço’ preços que variavam de
Cr$ 100 mil a Cr$ 300 mil, dependendo do risco./” (Folha de S. Paulo, 06/11/92).

Em São Paulo, algumas ocorrências relatadas sugerem ainda que, entre


as execuções sumárias, existe um tipo de crime cuja autoria é desconhecida,
mas que tem certas características: ocorre em série e resulta na morte de muitas
vítimas (por vezes numa mesma ocasião). Esses crimes levantam a suspeita de
um provável envolvimento da polícia, isto porque, entre os agressores as
profissões mais informadas (gráfico 34) é a do grupo de policiais, com destaque
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 264

para a atuação de policias militares, civis e da guarda metropolitana - 63% dos


agressores. Transformações verificadas no fenômeno da criminalidade em geral,
ao longo do período, parecem estar na origem da ampliação das causas do
envolvimento de policiais com crimes de execuções sumárias. Entretanto, neste
período, tal como na década de 80, o noticiário ainda se refere às suas atividades
criminosas como matadores contratados por comerciantes interessados no
extermínio de ladrões e na realização de “limpezas” nas localidades ameaçadas
pela violência.
Nos anos 90, as notícias relatam, ainda, o envolvimento dos policiais com
o tráfico de drogas, a extorsão e o crime organizado. Além da participação direta
no tráfico, a imprensa também tem noticiado a atuação de policiais contratados
por traficantes para defender os seus interesses na disputa pela posse de pontos
de venda de drogas. A extorsão, por sua vez, conforme os jornais pesquisados,
tem sido praticada sobretudo contra crianças de quem os policiais exigem parte
dos produtos de pequenos furtos e roubos. Também há notícias de extorsão a
pequenos comerciantes ou outros trabalhadores (como os camelôs, por exemplo)
que apenas conseguem exercer a sua ocupação (ilegal) com a conivência de
policiais ou outras autoridades. No caso do crime organizado, os policiais têm
participado como membros de quadrilhas especializadas no roubo de carga nas
estradas ou no roubo de veículos.

ATUAÇÃO DO PODER PÚBLICO


Com relação à atuação do Poder Público a propósito das ocorrências de
execuções sumárias em São Paulo no período 1990-96, a imprensa relatou 438
andamentos. Essas informações referem-se principalmente à intervenção da
Polícia (82%), em especial abertura de inquéritos policiais (34,8%) e boletins de
ocorrência (33,4%), como mostra o gráfico abaixo. A imprensa geralmente noticia
os casos logo após o evento, mas não acompanha o seu encaminhamento, salvo
quando são casos de grande repercussão. Com o passar do tempo, o público
costuma perder o interesse pelo fato e logo surgem novos casos para ser feita a
cobertura. Assim, das providências adotadas pelo poder pelo Poder Público, em
apenas 18% dos casos havia informação sobre o desfecho do caso na fase
judicial.

Algumas crônicas publicadas na imprensa por vezes apontam a própria


Polícia como responsável pelas dificuldades no esclarecimento dos casos de
execuções sumárias, tornando mais difícil a persecução criminal do caso :
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 265

“Em alguns casos, o obstáculo para esclarecer os crimes parece estar na


própria Polícia. O delegado/ da Divisão de Homicídios, e mais dois delegados que
investigam chacinas ocorridas na Zona Norte receberam ameaças de morte e outras
intimidações. Há forte indícios de que as chacinas - e as ameaças aos delegados -
tenham sido cometidas por policiais militares./” (O Estado de S.Paulo, 27/08/1995)

Fonte: Banco de Dados da Imprensa Sobre as Graves Violações dos Direitos


Humanos - NEV/USP - Secretaria Nacional de Direitos Humanos/ Ministério da
Justiça

MANIFESTAÇÃO PÚBLICA
A pressão da sociedade civil tem se revelado importante elemento na
atuação vigorosa do Poder Público para o esclarecimento destes crimes, mas os
dados revelam que são poucas as manifestações da sociedade civil a propósito
das execuções sumárias; dos 604 casos coletados, houve apenas 18
manifestações a respeito da violação. As denúncias foram o principal tipo de
manifestação, houve ainda protestos contra a ocorrência e apoio à violação.

Fonte: Banco de Dados da Imprensa Sobre as Graves Violações dos Direitos


Humanos - NEV/USP - Secretaria Nacional de Direitos Humanos/ Ministério da Justiça
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 266

Os grupos responsáveis pelas manifestações, segundo o gráfico abaixo,


foram a comunidade e os moradores do local, seguidos pela Ordem dos
Advogados do Brasil e a Pastoral do Menor. As denúncias partem da OAB, da
Pastoral ou da Human Rigths Watch. Estes casos, em geral, estão ligados à
morte de menores. O apoio à violação, quando ocorre, parte de moradores do
local, principalmente em casos envolvendo justiceiros. Em um deles, por
exemplo, a esposa de um matador, que fora ferido ao ser preso, patrocinou, junto
com um grupo do bairro, a sua fuga do hospital.
Gráfico 37 - Distribuição dos casos de Execuções Sumárias
segundo os manifestantes, São Paulo, 1990-1996
5,6% 5,6%

16,7% Human Rights Watch


22,2%
Comunidade
O. A. B.
Moradores do local
Não informa
11,2%
Pastoral do menor
Testemunha
16,7%

22,2%

Fonte: Banco de Dados da Imprensa Sobre as Graves Violações dos Direitos Humanos - NEV/USP
- Secretaria Nacional de Direitos Humanos/ Ministério da Justiça

As chacinas despertaram muita atenção da imprensa, que se preocupou


em conhecer os locais onde mais ocorriam, o perfil da vítima, os motivos
desencadeadores. Entretanto, por parte da sociedade civil, não foi registrada
nenhuma crítica exigindo políticas ou ações da sociedade de modo geral na
tentativa de procurar soluções para o fenômeno.

Considerações Finais
Os 604 casos de execuções sumárias no estado de São Paulo entre 1990-
96 que compõem o Banco de Dados se concentram nos anos de 1991, 1992 e
1996. Nesses dois primeiros anos, a alta incidência pode ser explicada pela “CPI
Destinada a Investigar o Extermínio de Crianças e Adolescentes no Brasil” e pela
inclusão dos casos noticiados pelo Notícias Populares. Já em 1996, a maior
freqüência pode ser explicada pela introdução do Diário Popular como fonte de
dados. A maioria das ocorrências noticiadas se deu na capital e em municípios
limítrofes, motivadas principalmente por rixas entre pessoas da região e vingança
e executadas em locais de circulação na maior parte dos casos. Entre as 1829
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 267

vítimas, o índice de fatalidade foi quase o mesmo verificado no Brasil e pouco


mais da metade foi identificada, taxa superior à média do país. O perfil etário
mais freqüente compreende a faixa entre 18 e 24 anos, a descrição de vítimas
mais comum foi infrator. O agressor que aparece com maior freqüência são
justiceiros, embora também se deva enfatizar a presença dos grupos de
extermínio no noticiário, cujas principais vítimas foram crianças e adolescentes.
Dos 901 agressores, apenas uma pequena porcentagem foi identificada.
Praticamente todos os agressores eram do sexo masculino e, entre os poucos
que tiveram sua idade informada, a maioria tinha entre 18 e 29 anos. A maioria
das providências informadas tomadas pelo Poder Público se refere à fase policial,
e o número de manifestações públicas foi irrelevante.

4.2 Execuções Sumárias, Rio de Janeiro: 1990-1996

Embora as ações praticadas por justiceiros, pistoleiros e grupos de


extermínio também apareceram no noticiário relativo ao Rio de Janeiro, as ações
que caracterizam o Banco de Dados de Execuções Sumárias nesse estado são
aquelas relacionadas ao crime organizado, notadamente o tráfico de drogas. Por
isso faz-se necessária uma breve abordagem dessas organizações criminosas
antes da análise dos perfis da ação, das vítimas e dos agressores.

A situação do narcotráfico é peculiar no estado do Rio de Janeiro porque


ali a distribuição de drogas está estabelecida desde a década de 50, por meio
das "bocas de fumo", que seguem funcionando nos mesmos lugares em favelas.
Além disso, há um modelo organizacional do negócio em larga escala, com
grandes "empresas" como o Comando Vermelho (anteriormente conhecido como
Falange Vermelha) e o Terceiro Comando.

O Comando Vermelho foi criado por assaltantes de bancos que


conviveram na prisão com os prisioneiros políticos da virada da década de 70,
presos também por roubo a banco. Como resultado, os presos comuns
aprenderam as vantagens da organização e o discurso que coloca os assaltantes
como amigos e protetores dos pobres. O CV é distribuidor varejista, o que inibe a
sua expansão para outras cidades - ao contrário do que alardeia a mídia -, posto
que esta atividade é sempre controlada pelos traficantes locais. O Comando
Vermelho foi descoberto pela imprensa em 1986, durante a chamada "guerra do
Morro Santa Marta", que chamou a atenção da opinião pública porque muitos de
seus tiroteios deram-se em áreas próximas à região nobre da cidade.

O negócio tornou-se violento porque o lucro da distribuição provém do


número de pontos importantes que a organização controla, sendo os mais
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 268

cobiçados aqueles próximos das áreas de classe média, principal consumidora


das drogas. Os pontos mais disputados são guardados por verdadeiros exércitos
de funcionários do tráfico, fortemente armados. A disputa pelo controle destes
pontos e pelo apoio da população local (a quem dizem proteger e apoiar) leva às
"guerras". Pesquisa do Instituto Superior de Estudos da Religião (ISER),
realizada em 1996, constatou que 60% dos homicídios ocorridos no Rio de
Janeiro relacionavam-se de algum modo ao narcotráfico.

O tráfico de armas tem um papel fundamental no crime organizado, pois as


armas são essenciais para garantir a segurança e o controle de áreas pelos
traficantes de drogas e veículos. Além da exibição de poder dos traficantes (que
contrasta com o desguarnecimento das Polícias), as armas contrabandeadas
estão efetivamente sendo utilizadas para perpetrar a violência na cidade. Entre
1994 e 1997, o Hospital Miguel Couto atendeu 1260 pessoas baleadas, cerca de
10% feridas por fuzis.

Alba Zaluar (1994) analisou os efeitos da violência no cotidiano da


população pobre carioca ao realizar estudo de campo em um conjunto
habitacional da zona Sul do Rio de Janeiro, uma das áreas consideradas mais
perigosas na cidade. A “fama” de perigo da região reforça a segregação moral
que atinge os cidadãos em situação de pobreza. A segregação é perpetrada por
toda a sociedade e, de modo mais direto, pelos próprios agentes do Estado, a
Polícia, que realiza uma opressão violenta sobre essa população.

No contexto de pobreza urbana, as oportunidades de ingresso no mercado


de trabalho são cada vez menores, o que deixa os adolescentes em
disponibilidade nas ruas, cooptáveis para o crime organizado, que lhes oferece
possibilidades de ganhos e também de inserção em uma organização com
hierarquia bem definida (algo que poderia ser associado a uma “carreira”) e com
uma ética própria. Esta ética é reconhecida pelos moradores do bairro, que não
raro associam o “bandido” como “vingador do povo”, em consonância com o
discurso desenvolvido pelas organizações do narcotráfico desde os anos 70. Os
moradores do bairro, pautando-se pela ética do trabalho, toleram os “bandidos”
que os respeitam, seguem as regras do local e não ultrapassam certos limites,
mas acabam castigando ou eliminando (por meio de linchamentos) os “pivetes”
ou “porcos” que os roubam, humilham, provocam ou matam.

A ética do trabalho, se por um lado não é incompatível com o crime


organizado, por outro choca-se com a nova situação em que jovens
armados (e revoltados) substituem a autoridade dos homens adultos
trabalhadores pela do chefe do narcotráfico, que tem poderes de coerção
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 269

sobre eles, garantidos pela força física. Ou seja, entre a população e os


integrantes do crime organizado, as relações são a um só tempo de medo
(quando a violência sai do controle), de identificação (pela situação de
população estigmatizada) e de condenação moral. Nessa multiplicidade de
sentimentos, criam-se as condições para que as organizações criminosas
tornem-se formas incipientes de governo: com supremacia dos meios de
coerção e com responsabilidades sociais.
No período de 1990 a 1996, a imprensa noticiou 522 casos de execuções
sumárias no Estado do Rio de Janeiro, sendo que os períodos de maior
concentração de ocorrências noticiadas para esse estado foram os anos de 1992
(18,8%) e 1993 (17,4%). A menor incidência foi registrada nos anos de 1990
(10%) e 1996 (9,8%). O fato de o ano de 1992 ter sido o mais freqüente talvez se
deva à mobilização gerada pela “CPI Destinada a Investigar o Extermínio de
Crianças no Brasil”, instaurada em maio de 1991 e concluída em fevereiro de
1992 pela Câmara dos Deputados, no sentido de denunciar a ação de grupos de
extermínio. Provavelmente a alta incidência de casos registrados pela imprensa
em 1993 tenha sido motivada pelas chacinas de Candelária e Vigário Geral, além
das violentas disputas pelo controle de pontos de venda de drogas entre as
organizações criminosas Comando Vermelho e Terceiro Comando, nesse mesmo
ano.

No que se refere à região de ocorrência das execuções sumárias no Rio


de Janeiro, observa-se que foi na capital (75%) e na Grande Rio (18,2%) que
ocorreu o maior número de casos registrados pela imprensa. Durante o período
analisado, foram mais recorrentes casos com uma vítima (31,8%) no estado do
Rio de Janeiro, embora as chamadas chacinas tenham apresentado uma
incidência significativa no período analisado, em especial os casos com quatro
(13%) e três (12,6%) vítimas. As chacinas de maior repercussão, nacional e
internacional, foram as de Acari (julho de 1990), Candelária (agosto de 1993) e
Vigário Geral (agosto de 1993), todas com envolvimento de policiais do 9º BPM
(Rocha Miranda), que formavam o grupo de extermínio Cavalos Corredores.

Ainda sobre o perfil da ação dos casos de execuções sumárias, as notícias


informam que o delito mais freqüente foi o homicídio (78%). As vítimas de
execuções sumárias geralmente são mortas com armas de fogo de grosso
calibre, como metralhadoras, fuzis e escopetas, com tiros na cabeça e pescoço,
muitas vezes deitadas no chão com as mãos amarradas para trás. Os locais das
mortes (gráfico 38) geralmente foram residências, rua ou lugares ermos, e as
execuções foram realizadas com mais freqüência à noite ou de madrugada.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 270

Fonte: Banco de Dados da Imprensa Sobre as Graves Violações dos Direitos Humanos - NEV/USP
- Secretaria Nacional de Direitos Humanos/ Ministério da Justiça

Em grande parte dos casos, o motivo desencadeador da ação não foi


noticiado. Quando esse dado foi fornecido pela imprensa, verificou-se que o
principal motivo (gráfico 39) foi o consumo/ tráfico de drogas (38%), seguido pela
vingança (22%).

G rá fic o 3 9 - D is trib u iç ã o d o s c a s o s d e e x e c u ç õ e s S u m á r ia s
s e g u n d o o m o to v o d e s e n c a d e a d o r , R io d e J a n e iro 1 9 9 0 -9 6

6 ,7 %
8 ,1 %

5 ,4 % 3 6%
2%
3%

3 8,7 %

A c e rto d e c o n ta s D ro g a s (c o n s u m o o u trá fic o )


O u tro s P or eng ano
Q u e im a d e a rq u iv o T iro te io
V á ria s v e rs õ e s

Fonte: Banco de Dados da Imprensa Sobre as Graves Violações dos Direitos Humanos - NEV/USP - Secretaria
Nacional de Direitos Humanos/ Ministério da Justiça
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 271

Vítimas
Na década de 90, a imprensa noticiou 2043 vítimas de execuções
sumárias, aproximadamente 4 vítimas por caso, no Estado do Rio de Janeiro,
sendo que 85,6 % foram fatais. Apenas 42% do total de vítimas para esse Estado
foram identificadas (gráfico 40).

Gráfico 40 - Distribuição dos casos de Execuções Sumárias


segundo as vítimas, Rio de Janeiro 1990-1996

500

250

0
1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996
Nº de vítimas 256 295 283 469 341 194 205
Nº de vítimas ident. 99 132 146 158 122 105 96
Nº de vítimas fatais 234 266 238 415 274 161 161

Fonte: Banco de Dados da Imprensa Sobre as Graves Violações dos Direitos Humanos - NEV/USP - Secretaria
Nacional de Direitos Humanos/ Ministério da Justiça

Do total válido de vítimas , 86% são do sexo masculino. Praticamente


nenhuma vítima teve seu antecedente criminal informado. De acordo com as
notícias que informaram a idade, as pessoas vitimadas são jovens na sua
maioria. Assim como em São Paulo, a maior incidência verificada (27,9%) foi
entre jovens de 18 a 24 anos (gráfico 41). Também foi observada uma incidência
significativa de vítimas na faixa 25-29 anos (17,4%).

Gráfico 41 - Distribuição dos casos de Execuçòes Sumárias


segundo a idade das vítimas, Rio de Janeiro, 1990-1996

mais de 45 8,4%

de 40 a 44 5,8%

de 35 a 39 8%

de 30 a 34 9,4%

de 25 a 29 17,4%
27,9%
de 18 a 24

de 15 a 17 16,6%

de 8 a 14 6,5%

0 15 30

Fonte: Banco de Dados da Imprensa Sobre as Graves Violações dos Direitos Humanos - NEV/USP - Secretaria
Nacional de Direitos Humanos/ Ministério da Justiça
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 272

Gráfico 42 - Distribuição dos casos de Execuções


Sumárias segundo a qualificação das vítimas, Rio de
Janeiro, 1990-1996
0,2

39,3
40,8

3,2
16,5

Pessoas envolvidas com grupos de execuções suamárias


Criança/adulto em situação de rua
Infratores/presidiários
Pessoas qualificadas pela profissão
Suspeitos

Fonte: Banco de Dados da Imprensa Sobre as Graves Violações dos Direitos Humanos - NEV/USP
- Secretaria Nacional de Direitos Humanos/ Ministério da Justiça

No estado do Rio de Janeiro, 40,8% das vítimas teve a sua profissão


descrita na notícia. A presença de vítima qualificada como criança em situação
de rua atingiu um índice de 2,7% do total válido. No que se refere à execução de
crianças e adolescentes, podem ser apontadas duas situações básicas, que não
se excluem: castigo por estarem incomodando a ordem estabelecida de alguma
maneira, geralmente através de pequenos furtos, e/ou por estarem envolvidos
com o crime organizado. No primeiro caso, as execuções têm um caráter punitivo
ou simplesmente de “cortar o mal pela raiz”, já que esses jovens infratores
poderão se transformar nos bandidos do futuro. No segundo caso, a
circunstância da execução não costuma diferir das violações praticadas contra
maiores de idade.

Das vítimas, cabe ressaltar ainda que, entre aquelas qualificadas pela
profissão, há uma incidência de membros das Polícias e/ou Forças Armadas, isto
porque quando ocorre uma ação policial numa favela ou morro para inibir ação de
traficantes e há troca de tiros, é comum que algum membro da Polícia saia ferido
ou morto. Numa espécie de guerra que parece não ter fim, é comum por parte da
Polícia a prática de extorsão, cobrança de pedágio, roubo de armas e drogas, o
que gera vingança de traficantes, que executam os policiais infratores. Então,
também é freqüente a vingança dos policiais que pertenciam ao grupo dos que
foram mortos pelos traficantes. Um exemplo é o caso de Vigário Geral. Policiais
também costumam ser mortos por companheiros do mesmo batalhão ou distrito
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 273

policial, como queima de arquivo quando investigam, testemunham e/ou não


participam de extorsões e outras práticas ilícitas dos policiais.

A traição e o desrespeito à “lei do silêncio” e aos “toques de recolher”


freqüentemente são motivos de morte nos “julgamentos” dos “tribunais do
tráfico”161. Muitas vezes os moradores sofrem as conseqüências de lutas entre
traficantes sem nada ter a ver com o tráfico, sendo vítimas por engano, “queima
de arquivo” ou vingança.

Agressores
Durante o período analisado, o noticiário registrou, pelo menos, 1874
agressores envolvidos em execuções sumárias no Estado do Rio de Janeiro, isto
porque em 191 casos (36,6%) não foi possível precisar o número de agressores,
pois as notícias informaram apenas que eram “vários” os agressores. Do total de
agressores de execuções sumárias no Rio de Janeiro, apenas 21,5% foram
identificados (gráfico 43).

Gráfico 43 - Distribuição dos casos de Execuções Sumárias segundo


os agressores, Rio de Janeiro 1990-96
400

200

0
1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996
Nº de Agressores 133 268 357 346 220 295 256
Nº de Agressores identif. 25 68 70 104 21 41 10

Fonte: Banco de Dados da Imprensa Sobre as Graves Violações dos Direitos Humanos - NEV/USP
- Secretaria Nacional de Direitos Humanos/ Ministério da Justiça

161
No dia 12 de janeiro de 1992, a doméstica Diva Dias de Souza, 50 anos, foi torturada e
executada a tiros por 15 homens ligados ao traficante Nael, na favela Jacarezinho. O motivo seria
a delação e recusa de abrigo ao traficante. Seu corpo foi colocado num carrinho de mão e
transportado pelas ruas da favela, como demonstração de punição a quem transgride a lei do
tráfico (GARCIA, Antonio e MENDES, Antônio José - Os tribunais implacáveis do tráfico”. Jornal
do Brasil, 18/02/92, Cidade - pág. 1). É comum traficantes instituírem “toque de recolher” nos
morros e favelas em situações de confrontos acirrados com grupos de traficantes rivais ou com a
Polícia, que deve ser obedecido pelos moradores sob pena de serem confundidos com policiais
ou alemães (inimigos), e portanto, de serem executados (CARVALHO, Happy - “Toque de
recolher aterroriza morro” - O Estado de São Paulo, 19/11/1993, p.C-3).
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 274

Foi informado o sexo de 85,3% dos agressores, sendo que, entre os que
tiveram esse dado fornecido, 99,2% eram do sexo masculino. O antecedente
criminal de quase todos os agressores não foi informado.

A idade de 93,2% dos agressores não foi informada pela imprensa.


Quando esse dado existe, verificou-se que 36,2 % se situam na faixa dos 18 aos
24 anos. Os agressores que possuem entre 25 e 29 anos somaram 23,6% entre
os que tiveram sua idade informada. Com base nesses dados, pode-se dizer que
o perfil etário de vítimas e agressores envolvidos em execuções sumárias no Rio
de Janeiro é praticamente o mesmo, fazendo-se uma ressalva para o maior
número de vítimas entre 15 e 17 anos do que de agressores nessa mesma faixa
etária.

Gráfico 44 - Distribuição dos casos de Execuções Sumárias


segundo a idade dos agressores, Rio de Janeiro, 1990-1996

mais de 45 8,7%

de 40 a 44 4,7%

de 35 a 39 8,7%

de 30 a 34 11,8%

de 25 a 29 23,6%
36,2%
de 18 a 24

de 15 a 17 4,7%

de 8 a 14 1,6%

0 20 40

Fonte: Banco de Dados da Imprensa Sobre as Graves Violações dos Direitos Humanos - NEV/USP
- Secretaria Nacional de Direitos Humanos/ Ministério da Justiça

A denominação de agressores mais freqüente (gráfico 45) foi grupos de


extermínio (33%), seguida por bicheiro/traficante (30%). Foram muito freqüentes
os casos de autoria de grupos de extermínio, com grande participação de
policiais ou grupos ligados ao crime organizado, atuando contra crianças e
adolescentes, infratores e minorias estigmatizadas. A grande incidência de
bicheiro/traficante reflete o perfil das execuções sumárias no Rio de Janeiro
noticiado pela imprensa, as quais estão em grande parte das vezes ligadas ao
crime organizado.

Entre os grupos de extermínio, a sua maior presença na imprensa pode


ser explicada pela instauração da “CPI Destinada a Investigar o Extermínio de
Crianças e Adolescentes no Brasil” e as chacinas da Candelária e Vigário Geral.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 275

Cabe ressaltar ainda, a participação de grupos formados por policiais, em


especial do 9º BPM (Rocha Miranda), que aparecem várias vezes como
agressores em casos informados pela imprensa no Rio de Janeiro ao longo do
período investigado. O grupo de extermínio Cavalos Corredores, formado por
policiais do 9º BPM, foi o responsável pelas já citadas chacinas de Acari, Vigário
Geral e Candelária

Gráfico 45 - Distribuição dos casos de Execuções


Sumárias segundo a qualificação dos agressores, Rio de
Janeiro, 1990-1996
2% 2%
1%
11% Bicheiro/traficante
30% Grupo formado por policiais
3% Grupos de composição mista
Grupos de extermínio
Infrator
Justiceiros
Mandante da ação
Pistoleiro
33% 13% Profissão
Suspeito
5%

Fonte: Banco de Dados da Imprensa Sobre as Graves Violações dos Direitos Humanos - NEV/USP
- Secretaria Nacional de Direitos Humanos/ Ministério da Justiça

As providências informadas pela imprensa em relação à atuação do Poder


Público (Polícia e Poder Judiciário) na resolução dos casos de execuções
sumárias no Rio de Janeiro pertenceram, na maioria, à fase policial: o inquérito
policial, a prisão, as investigações, o boletim de ocorrência. Os andamentos da
fase judicial correspondem a apenas 6,1% do total informado pela imprensa. Isso
demonstra que o noticiário acompanha , na maior parte das vezes, apenas o
início do caso, a não ser nos de grande repercussão, como Candelária e Vigário
Geral, ambos ocorridos em 1993.

Em um estado como o do Rio de Janeiro, onde se observa uma forte


presença de policiais envolvidos em execuções sumárias, há poucas informações
sobre andamentos de casos apurados pela Justiça Militar (3%), e estes se
concentram em 1993, ano das já referidas chacinas de Vigário Geral e
Candelária, ambas de autoria de grupos de extermínio formados por policiais.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 276

Fonte Banco de Dados da Imprensa Sobre as Graves Violações dos Direitos Humanos - NEV/USP -
Secretaria Nacional de Direitos Humanos/ Ministério da Justiça

Manifestação Pública
Embora o número de casos de execuções sumárias no Rio de Janeiro
noticiados pela imprensa seja muito alto (522), foram relativamente poucas (59)
as manifestações públicas em relação aos casos.
Os amigos/moradores do local/familiares e a comunidade somaram 37%
das manifestações, o que é de certa forma surpreendente, pois são pessoas
pertencentes ao mesmo círculo social das vítimas, e que portanto correm o risco
de sofrer represálias quando desrespeitam a “lei do silêncio”. Entretanto, essa
atitude pode ser interpretada como uma demonstração de indignação em relação
à realidade violenta em que vivem. Outro fato importante é que os casos de
execuções sumárias no Rio de Janeiro ocorrem, muitas vezes, nos morros
cariocas, onde há uma organização maior da sociedade civil.

As entidades de defesa dos direitos humanos162 foram responsáveis por


25% das manifestações, concentradas quase todas no ano de 1993, quando
ocorreram as chacinas da Candelária e Vigário Geral. Destacou-se a Anistia
Internacional, responsável por 26,7% das manifestações dessas entidades. As

162
As categorias que constam na tabela de manifestantes foram agrupadas em categorias mais
genéricas para efeito de análise:
Entidades de Defesa dos Direitos Humanos: Americas Watch, Anistia Internacional, CDDPH -
Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, Forum contra a Violência, Movimento de
Meninos e Meninas de Rua, Núcleo de Estudos da Violência e Ordem dos Advogados do Brasil.
Sociedade Civil Organizada: Associação das Favelas do Rio de Janeiro, Astral - Associação dos
Travestis e Liberados do Rio, Movimento Negro, Movimento Viva Rio, PT, Sindicato.
Igreja: Centro de Defesa do Adolescente da Igreja católica, Confederação Nacional dos Bispos do
Brasil (CNBB), Pastoral Carcerária, Pastoral do Menor.
Órgãos públicos: Legislativo, Judiciário, Executivo, Comissão de Direitos Humanos da Assembléia
Legislativa.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 277

manifestações dos órgãos públicos (Executivo, Legislativo, Judiciário)


correspondem a 20% do total, sendo que o Legislativo foi o que mais se
manifestou entre eles (33,3%). A sociedade civil organizada foi responsável por
11% das manifestações, e a Igreja, por 7%.

Gráfico 47 - Distribuição dos casos de Execuções Sumárias


segundo os manifestantes, Rio de Janeiro,1990-1996

5%
17% 25%

3%
3% 7%

20% 20%

Entidades de Dir.Humanos Igreja


Comunidade Judiciário/Executivo/Legislativo
Partidos e Sindicatos Ordem dos Advogados do Brasil
Amigos/moradores do local/familiares Outras associações

Fonte: Banco de Dados da Imprensa Sobre as Graves Violações dos Direitos Humanos - NEV/USP
- Secretaria Nacional de Direitos Humanos/ Ministério da Justiça

CONSIDERAÇÕES FINAIS
No período de 1990-96, foram noticiados 522 casos de execuções
sumárias no estado do Rio de Janeiro, a maior parte em 1992 (“CPI Destinada a
Investigar o Extermínio de Crianças e Adolescentes no Brasil”) e 1993 (chacinas
de Candelária e Vigário Geral; disputas acirradas entre Comando Vermelho e
Terceiro Comando por pontos de venda de drogas). A maior parte das
ocorrências se deu na capital e no Grande Rio, e o motivo mais freqüente foi o
consumo/tráfico de drogas, diferente de São Paulo, onde as rixas entre pessoas
da região foram apontadas como a principal causa do crime. No Rio de Janeiro,
as execuções se caracterizam pela atuação do crime organizado e pela ação de
grupos de extermínio de crianças e adolescentes, principalmente no início da
década, com intensa participação de policiais. Embora o número de casos com
uma vítima seja maior, as chacinas também tiveram incidência significativa,
principalmente aquelas com três ou quatro vítimas. Ao contrário de São Paulo,
onde as execuções ocorreram na maior parte em locais de circulação, no Rio de
Janeiro foram mais comuns os locais de moradia. As 2043 vítimas apresentaram
índices de fatalidade e identificação semelhantes aos do Brasil. Assim como em
São Paulo, são na maioria do sexo masculino e possuem entre 18 e 24 anos,
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 278

embora as crianças e adolescentes tenham incidência significativa, assim como


os que pertencem à faixa dos 25 aos 29 anos. O perfil de vítimas mais comum é
bicheiro/traficante, o mesmo apresentado em relação aos agressores.. As
providências do Poder Público mais informadas foram referentes à fase policial, a
não ser nos casos de grande repercussão, como as chacinas de Candelária e
Vigário Geral, que foram acompanhados integralmente. As manifestações
públicas foram poucas, sendo que a maior parte foi motivada pelas chacinas
supracitadas. Os manifestantes mais freqüentes foram a comunidade, os amigos
e a família, e entre as entidades, a que mais se destacou foi a Anistia
Internacional.

4.3 EXECUÇÕES SUMÁRIAS, OUTROS ESTADOS: 1990-1996.

O Banco de Dados sobre Execuções Sumárias de Outros Estados é


composto por 182 casos noticiados pela imprensa. Estes casos distribuem-se,
sobretudo, entre os estados da região Nordeste, com destaque para Bahia
(20,3%) e Pernambuco (19,2%).

Este recorte regional apresenta características específicas em relação aos


estados do Rio de Janeiro e de São Paulo. Em primeiro lugar, destacam-se as
ações caracterizadas pela imprensa como crimes de autoria de pistoleiros e de
grupos de extermínio de crianças e adolescentes. Em segundo lugar, há um alto
índice de atuação das Polícias Civil e Militar tanto na pistolagem como no seio
dos grupos de extermínio.

Para os casos de pistolagem, o tipo de ação observada é normalmente


motivada por questões políticas: denúncias de corrupção, vinganças entre
famílias em disputas políticas, acertos de contas entre figuras políticas e
“queimas de arquivo”. Já as mortes provocadas pelos grupos de extermínio,
segundo a imprensa, têm como principal motivo a chamada “limpeza social”, pela
qual são eliminados menores infratores e suspeitos de delinqüência que estão
perturbando uma determinada ordem estabelecida. Há também os casos em que
os grupos de extermínio atuam objetivando a vingança contra aqueles que
denunciam e investigam a sua atuação. Nestes casos são normalmente
vitimados juízes, promotores e integrantes de entidades de defesa de direitos
humanos.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 279

Fonte: Banco de Dados da Imprensa Sobre as Graves Violações dos Direitos Humanos - NEV/USP
- Secretaria Nacional de Direitos Humanos/ Ministério da Justiça

Não há informação sobre os motivos que desencadearam a ação em


37,9% dos casos. No entanto, como mostra o gráfico 48, quando há essa
informação, temos que os casos de execução sumária são motivados
principalmente por acerto de contas, ou seja, brigas/vingança/rixas entre pessoas
da região (62%). São, respectivamente, os motivos apresentados para justificar a
grande maioria dos casos de pistoleiros e as ações de grupos de extermínio com
o intuito de fazer a “limpeza social”.

“Juiz do Trabalho foi assassinado em Rondônia, onde passava férias/ ex-


presidente do TRT/ morto com quatro tiros disparados por dois homens. Ele
denunciou desapropriamento milionário de um hotel que deveria ser a sede do TRT/
era auxiliado, na desapropriação, pelo senador que também foi assassinado em
1990”. ( OESP 05.01.93)

Em segundo lugar, como motivo desencadeador, aparece o


consumo/tráfico de drogas (12%). Geralmente os casos relacionados a drogas
envolvem a participação de policiais e pistoleiros, personagens bem mais antigas
no cenário da violência da região do que o fenômeno do tráfico de entorpecentes.
A presença dos grupos de extermínio e dos pistoleiros revela a adaptação destes
grupos de agressores às necessidades dos jogos de poder no interior do crime
organizado, pois são contratados para acertar contas entre grupos de traficantes
ou entre produtores da droga.
“Polícia em Manaus procura assassinos do comerciante e garimpeiro morto
com um tiro no peito/ segundo a Polícia, o crime ocorreu porque ele não quis
transformar seu bar em ponto de venda de drogas”. ( FSP 06.06.91)
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 280

A ação das execuções sumárias em Outros Estados, como para Rio de


Janeiro e São Paulo, caracteriza-se pelo homicídio como principal delito (93,4%
do total de casos), seguido da tentativa de homicídio (2,2%).

O objetivo das agressões parece ser de fato a execução da vítima6% sem


que esta tenha a possibilidade de defesa, sendo exposta a um alto grau de
crueldade tanto antes como depois de ser morta. As mortes são normalmente
provocadas por tiros na cabeça e/ou no peito das vítimas. Em alguns casos, as
fontes informam que foram cometidas atrocidades com os corpos das vítimas
antes e depois da execução.

“Pelo menos 22 pessoas foram assassinadas por grupos de extermínio em


Manaus nos últimos dois meses. As vítimas são encontradas com as mãos e pés
amarrados e um tiro na cabeça disparado à queima roupa....” (FSP/JB/OESP
01.04.96)
“Promotor de Justiça, morto por grupo de extermínio/ violentamente
espancado antes de ser atingido por 4 tiros...”(OESP 29.06.96)
“Crianças são deixadas sobre pneus em chamas pra dificultar o
reconhecimento das vítimas...” (OESP 07.12.90)

Em geral, o que se observa é que as execuções seguem padrões:


ocorrem, na sua maioria, em locais de circulação ( 30,7%do total de casos) e,
aparentemente, as vítimas não têm oportunidade de defesa. Estes agressores
parecem desprezar a possibilidade de uma punição, talvez porque as
testemunhas, por medo, não os denunciem. A isso segue que, por vezes, esses
grupos funcionam como um poder paralelo que se estabelece nessas
localidades, impondo o terror entre a população. A este dado segue-se que, em
22,8% dos casos a agressão ocorreu em lugares ermos, seguido por 16,7% em
locais de moradia.

Alguns grupos de extermínio e pistoleiros chegam a invadir hospitais,


presídios e delegacias com o intuito de matar alguém que esteja sob a proteção
do Estado, dentro destas instituições.

“Grupo de extermínio formado por mais de 20 homens, encapuzados e


armados de revólveres e pistolas, invadiu o presídio de Uruguaiana (RS), retirou o
detento e o executou a tiros na frente da penitenciária. Onze PMs na ação e o grupo
aterrorizava os moradores de vilas populares na caçada a este detento que havia
matado um soldado. O grupo já invadiu e queimou casas, agrediu pessoas e matou
um operário com 20 tiros porque ele era parecido com o detento”. (OESP/JB
17.03.95)
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 281

Estes casos espetaculares de invasões de instituições parecem ter relação


direta com o poder de força dos grupos de extermínio compostos por policiais e
principalmente com o espírito de corporação existente no interior do grupo. Como
visto acima, a morte de um policial por “bandidos” é motivo para represálias
violentas, a fim de vingar o colega morto.

Se comparadas às ações de grupos de extermínio, as ações de pistoleiros


parecem ser menos espetaculares, embora também ocorram com freqüência em
locais de livre circulação. As vítimas são abordadas no portão de casa, dentro de
seus carros ou na rua. Essas ações, geralmente, não se tratam de chacinas, mas
da morte de uma vítima por vez.

Vítimas
O total de vítimas nos 182 casos de execuções sumárias dos Outros
Estados é de 1176 pessoas ao longo do período estudado. Do total, 1124 foram
fatais, o que representa 95,6% do total de vítimas (gráfico 49). O alto número de
vítimas fatais para Outros Estados em comparação com São Paulo e Rio de
Janeiro parece ser uma característica do fenômeno das execuções sumárias
nestes locais. Isto porque, como já foi dito, trata-se quase que exclusivamente de
casos cujas ações são de pistoleiros profissionais e/ou de grupos de extermínio
que buscam a execução de suas vítimas, agindo de maneira mais eficaz do que
em São Paulo e Rio de Janeiro. A pistolagem nos estados do nordeste brasileiro,
por exemplo, é tratada, segundo César Barreira163 como uma forma de crime
organizado, cujos atores envolvidos têm seus papéis sociais distintamente
delineados dentro de um quadro social e político muito mais amplo, destacando
as relações políticas e familiares que estão no centro destas ações
(Barreira,1992). Esta capacidade de organização que está por trás das ações de
execuções em Outros Estados parece explicar sua eficácia.

163
Barreira, C. 1992. “Pistolagem e Política: a morte por encomenda”, Revista da Associação
Brasileira de Reforma Agrária - ABRA, vol 22, Jan/Abr de 1992.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 282

Fonte: Banco de Dados da Imprensa Sobre as Graves Violações dos Direitos Humanos - NEV/USP
- Secretaria Nacional de Direitos Humanos/ Ministério da Justiça

As ocorrências com apenas uma vítima representam 38,5% do total de


casos, o que indica a prevalência dos casos de pistoleiros, geralmente
contratados para matar apenas uma determinada pessoa. Houve identificação de
apenas 22,6% do total de vítimas. Esta é a menor taxa de identificação de vítimas
do Banco de Dados, podendo ser explicada pelo fato de que grande parte das
vítimas dos grupos de extermínio são crianças e adolescentes que têm sua
identificação dificultada pelo tipo de agressão que sofreram antes e depois de
suas mortes (tiros no rosto, corpos queimados, etc).

Para 65% das vítimas não há informação sobre sexo. Quando há esta
informação, observa-se que a maioria das vítimas é do sexo masculino (86,4%).
A faixa etária mais freqüente, de acordo com o gráfico 50, é dos 15 aos 24 anos
(50,5%) sobressaindo-se as vítimas menores de idade (15 a 17 anos), que
representam 23,6 %. Essa foi a taxa mais alta - entre vítimas menores de idade -
encontradas nos três recortes. Em outros estados, pode-se afirmar que os grupos
de extermínio privilegiam a execução de crianças e adolescentes, fato que
explica também o aparecimento de vítimas entre 0 e 7 anos de idade (3,8%). Há
também um índice relativamente alto de vítimas com mais de 25 anos, que
somam 35,8 % e são, em geral, as vítimas de pistoleiros.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 283

Fonte: Banco de Dados da Imprensa Sobre as Graves Violações dos Direitos Humanos - NEV/USP
- Secretaria Nacional de Direitos Humanos/ Ministério da Justiça

Quanto as demais ocupações das vítimas, destaca-se os policiais e


membros das forças armadas que representam 14% das vítimas. Geralmente
estes atores são vítimas porque denunciam os agressores ou mesmo devido a
acertos de contas entre os membros de um grupo de extermínio. Apenas 13,2%
das vítimas tiveram sua ocupação informada.

Fonte: Banco de Dados da Imprensa Sobre as Graves Violações dos Direitos Humanos - NEV/USP
- Secretaria Nacional de Direitos Humanos/ Ministério da Justiça

As notícias a seguir ilustram, respectivamente, como são apresentados os


casos envolvendo vítimas crianças e adolescentes e o perfil das vítimas dos
pistoleiros
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 284

“4 policiais civis são os principais suspeitos de assassinar 4 meninos entre


10 e 13 anos, em Aracaju. Juiz de infância e adolescência tem denunciado a
existência de justiceiros que vem matando jovens delinqüentes . Os meninos
fuzilados eram internos da Febem e praticavam arrombamentos no comércio de
Aracaju. Os policiais trabalhavam na delegacia responsável pela segurança dos
comércios daquela região”. “Mais um garoto, 15 anos, morto com tiro na testa. Ele
não tinha passagem pela Polícia, mas, segundo a família, se envolvia com drogas”.
(FSP/JB/ OESP/ O GLOBO 16.11.90).

“Advogado e conselheiro da OAB, foi morto por matador. O carro suspeito


de ter sido utilizado pelo matador pertence ao Tribunal de Justiça de Roraima. 7
desembargadores estão com a legalidade de suas nomeações contestadas por ação
popular, em que o advogado era um dos signatários. Ele foi assassinado no portão
de sua casa após ser empossado representante seccional local no Conselho Federal
da OAB, com duro discurso pela dissolução do Tribunal de Justiça. Era combativo
pelos direitos humanos e estava na lista de 9 para morrer”. ( JB/FSP/OESP 20.02.93)

AGRESSORES
Os agressores dos casos de Execuções Sumárias totalizam 810 pessoas,
sendo que apenas 34,5% foram identificados, como mostra o gráfico a seguir. Em
25% do total dos casos não há informação precisa quanto ao número de
agressores, apenas que são vários agentes. Duas explicações para a falta de
informação sobre os agressores seriam o fato de estes grupos ou indivíduos
normalmente estarem encapuzados e não serem identificados pelas
testemunhas, ou pelo medo de vingança ou porque não há testemunhas do
crime.

Fonte: Banco de Dados da Imprensa Sobre as Graves Violações dos Direitos Humanos - NEV/USP - Secretaria
Nacional de Direitos Humanos/ Ministério da Justiça

A maioria dos agressores é do sexo masculino (99,9%) e em relação à


idade, não há informação em 94,6% dos agressores. Para os agentes com
informação sobre a idade (6,4%), a principal faixa etária é a de 25 e 29 anos
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 285

(31,8%), seguida pela faixa entre 30 e 34 anos (18,2%), como mostra o gráfico
53.

Fonte: Banco de Dados da Imprensa Sobre as Graves Violações dos Direitos Humanos - NEV/USP - Secretaria
Nacional de Direitos Humanos/ Ministério da Justiça

As informações sobre a qualificação (gráfico 54) revelam que apesar de


esse dado não ter sido noticiado para 50% dos agressores, 86% do total válido
atuam nas em grupo de composição mista (33%), ou seja, atuam em grupos
compostos por policiais e não-policiais. São descritos, em segundo lugar, como
pertencentes a grupos formados apenas por policiais (20%), seguidos pela
denominação pistoleiros (14%) e grupos de extermínio (12%).

Nestes locais, com freqüência, membros das forças policiais parecem


atuar a mando de facções, como segurança privada. No caso de pistolagem, eles
se comportam como jagunços a mando de grupos políticos e, portanto, de
interesses políticos locais e particulares. Esses grupos são usados por
mandantes que não querem se envolver diretamente na resolução de conflitos
privados. Nos casos de grupos de extermínio, a situação não é muito diferente,
pois tratam-se de pequenas milícias organizadas em nome de grupos locais
(como os comerciantes de um determinado bairro) para eliminar pessoas
suspeitas de um crime.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 286

Gráfico 56 - Distribuição dos casos de Execuções Sumárias


segundo a qualificação dos agressores,
Outros Estados 1990-96
4% 3%
5% Bicheiro/traficante
20% Grupo formado por policiais
14% Grupos de composição mista
Grupos de extermínio
Infrator
Justiceiros
5%
Mandantes da ação
4% Pistoleiro
0,4% Profissão
33% Suspeito
12%

Fonte: Banco de Dados da Imprensa Sobre as Graves Violações dos Direitos Humanos - NEV/USP
- Secretaria Nacional de Direitos Humanos/ Ministério da Justiça

Atuação do Poder Público


Os casos de execuções sumárias registrados em Outros Estados relatam
128 providências na esfera policial e judicial ( gráfico 55). Em 53% dos casos
foram descritas as providências adotadas durante a fase policial, referentes
principalmente à instauração de inquéritos policiais. Entre aqueles casos em que
há informação sobre os procedimentos adotados na esfera judicial, ressalta-se a
prisão dos agressores. É preciso explicar que o fato de a prisões dos agressores
aparecerem em primeiro lugar porque os casos ocorridos em Outros Estados da
federação tornam-se notícia nos jornais do eixo Rio-São Paulo principalmente
quando esta medida é tomada, o que não significa que as providências judiciais
sejam mais freqüentes em Outros Estados do que nos estados de São Paulo e
Rio de Janeiro.

Fonte: Banco de Dados da Imprensa Sobre as Graves Violações dos Direitos Humanos - NEV/USP
- Secretaria Nacional de Direitos Humanos/ Ministério da Justiça
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 287

Dos 182 casos com o intenso envolvimento de forças policiais, como já foi
dito, há a informação de apenas uma condenação do agressor e em apenas
3,9% das atuações do Poder Público há notícias da expulsão do policial da
corporação. Apenas uma atuação relata a exoneração/afastamento/ transferência
do policial. As fontes notificaram a instauração de inquérito policial militar em
apenas 2,3% das intervenções.

Manifestação pública
Dos 182 casos, há registro de apenas 27 manifestações públicas sobre
estas violações. Entre as manifestações, 51,9% são de protesto contra a atuação
dos agressores e 48,1% dizem respeito a denúncias contra a ação de grupos de
extermínio.

Quanto aos manifestantes (gráfico 56), foram mais freqüentes denúncias e


protestos de entidades ligadas a defesa dos direitos humanos (62% das
manifestações), seguidas pelas famílias/comunidade e representantes do Estado
(membros do Judiciário, procurador, curador de menores) que representam 15%
das manifestações, respectivamente.

Gráfico 56 - Distribuição dos casos de Execuções Sumárias


segundo os manifestantes, Outros Estados 1990-96
4%
4%

15% Entidades de Dr. Humanos

família/ comunidade

Representantes do Estado
CNBB
15% Sindicatos
62%

Fonte: Banco de Dados da Imprensa Sobre as Graves Violações dos Direitos Humanos - NEV/USP - Secretaria
Nacional de Direitos Humanos/ Ministério da Justiça

Entre as entidades ligadas a defesa dos direitos humanos, destaca-se o


Movimento Nacional de Meninas e Meninos de Rua (18,5% das manifestações).
É preciso lembrar que grande parte das agressões se caracteriza pelo extermínio
de menores, justificando-se, por isso, a freqüência com que o MNMMR é citado
como interventor em defesa das crianças. Também por este motivo, um dos
líderes da organização foi executado por grupo de extermínio, como vingança por
denúncias realizadas.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 288

Considerações Finais
A figura do pistoleiro é parte da história do país e já foi discutida por uma
extensa literatura. Grupos, em uma determinada localidade, contratam homens
para matar opositores como forma de encerrar um conflito. Em grande parte dos
casos constatados pelo Banco de Dados, os pistoleiros mataram personalidades
públicas, como advogados, jornalistas, políticos, promotores etc. responsáveis
por denúncias de corrupção ou outros crimes, patrocinados por elites políticas,
econômicas ou do sistema de justiça. Certamente, o número de pessoas sem
projeção pública que morrem vítimas de pistoleiros é elevado, entretanto, a
imprensa destaca personalidades que despertam a atenção da população.

Além dos crimes de pistolagem, os policiais aparecem envolvidos em


execuções, havendo em quase todos os estados do Norte/Nordeste e alguns
casos no Sul denúncias de envolvimento de policiais em grupos de extermínio.
Interessante é observar que, em muitos casos, estes policiais agem sem a
preocupação de esconder a identidade de policial. Esta despreocupação aponta
para o fato de que estes policiais usufruem, de certo modo, de um tipo de poder
que garante cobertura para suas ações ilegais. Este poder chega ao ponto de
intimidação daqueles policiais não envolvidos. Assim, muitos que denunciam a
ação dos colegas são mortos.

Numa primeira leitura, pode-se pensar que não há ligações estreitas entre
o pistoleiro e as execuções realizadas pelos policiais. Afinal, o primeiro é
contratado geralmente por membros da elite para eliminar algum inimigo. Os
policiais, por outro lado, geralmente estão envolvidos na “limpeza social” de
bandidos da região. No entanto, em muitas notícias informou-se que os policiais
estavam ligados a vários tipos de delitos, como tráfico de drogas, extorsão, entre
outros. Neste caso, por motivos ligados a interesses criminosos, como queima de
arquivos e outros, eles podem passar a matar os cidadãos legítimos também por
contrato.

Uma leitura mais atenta do material registrado permitiu observar que os


fenômenos apontados acima apresentam semelhanças entre si. A permanência
do fenômeno “pistoleiros” sugere que o modo de exercício de poder nestes
estados parece ter sofrido poucas transformações ao longo das décadas.
Algumas famílias que detêm o poder econômico e político sobre o resto da
população se alternam no poder durante gerações. Estes grupos familiares com
interesses políticos parecem estar sempre em briga entre si, numa batalha
permanente, em que o único objetivo é manter o resto da população distante do
jogo do poder.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 289

Estes grupos de elite apropriam-se do exercício político em nome de


interesses particulares. Os conflitos decorrentes das disputas políticas, portanto,
assumem caráter pessoal, na medida em que uma facção contesta o poder de
um grupo específico que ocupa a posição de destaque no cenário político do
momento. A contratação de pistoleiros para liqüidar inimigos é uma das
características deste tipo de estrutura social, pois num contexto em que o jogo
político envolve interesses privados de poucos grupos, os conflitos decorrentes
desta luta de interesses também são solucionados dentro de regras do mundo
privado, através, por exemplo, da contratação de pistoleiros para a eliminação
dos opositores.

É importante notar que este o modo de exercer o poder político e


econômico resiste às várias transformações que vêm ocorrendo no país nas
últimas décadas. Pelo menos as capitais dos estados, palco das execuções
registradas pelo Banco, são cidades modernas, totalmente integradas aos
mercados nacionais e internacionais. Dispõem dos mesmos objetos de consumo
disponíveis nos centros urbanos do Sudeste. Entretanto, toda modernidade do
mercado parece não contribuir em nada para a distribuição do poder e para
entrada de novos grupos na disputa pelos interesses político-econômicos.
Quando um político, um proprietário de terras ou outro membro da elite contrata
um pistoleiro para eliminar seu opositor, ainda nos dias de hoje, pode-se
perceber que os conflitos permanecem um assunto privado, que diz respeito
apenas às partes envolvidas. As notícias mostraram que muitos daqueles que
tentaram mudar as regras deste jogo, através de protestos e denúncias destas
ações violentas, terminaram vítima de execução sumária. Martins (1994:20),
tratando da permanência do clientelismo como modo de exercer o poder e a
aparência de contratualidade na sociedade brasileira, escreve:

“(...)a tradição do mando pessoal e da política do favor desde há muito depende do


seu acobertamento pelas exterioridades e aparências do moderno, do contratual. A
dominação patrimonial não se constitui, na tradição brasileira, em forma antagônica de
poder político em relação à dominação racional-legal. Ao contrário, nutre-se dela e a
contamina. As oligarquias políticas no Brasil colocaram a seu serviço as instituições da
moderna dominação política, submetendo a seu controle todo o aparelho de Estado. Em
conseqüência, nenhum grupo ou partido político tem hoje condições de governar o Brasil
senão através de alianças com esses grupos tradicionais.(...)”

As execuções sumárias praticadas por policiais remetem ao mesmo jogo


de disputa privada dos interesses dos grupos de elite. Muitas notícias
apresentam policiais agindo como pistoleiros, policiais atuando junto com
pistoleiros e até mesmo um grupo de policiais agenciando pistoleiros. Estes
policiais, funcionários públicos, lembram muito a figura de jagunços dos grandes
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 290

proprietários e os pistoleiros contratados para “solucionar” um conflito. A


formação do aparato policial nestas regiões foi orientada por princípios
contratuais, do estado de direito, em que a violência é monopólio do Estado.
Entretanto, os casos arrolados sugerem que continua a existir a apropriação
privada de uma força pública, responsável pela distribuição da ordem.

A violência patrocinada por funcionários do Estado parece a atualização de


uma prática comum da sociedade brasileira. A atuação de policiais em execuções
se aproxima do mesmo interesse privado que predomina nos casos dos
pistoleiros. Policiais e pistoleiros são agentes a serviço da mesma ordem privada
que orienta os interesses e os conflitos numa sociedade que ainda mantém
aspectos da oligarquia.

A imprensa noticiou 182 casos de execuções sumárias nos Outros


Estados, com maior destaque para a Bahia e Pernambuco. A peculiaridade dos
Outros Estados é ação de pistoleiros que atuam na resolução de problemas
políticos, sendo também recorrente a atuação de grupos de extermínio de
crianças e adolescentes com a intenção de “limpeza social”. Os motivos
desencadeadores mais freqüentes foram as rixas entre as pessoas da região e a
vingança, que tiveram como palco mais comum os locais de circulação. O
noticiário registrou 1176 vítimas, quase todas fatais, a maioria pertencente à faixa
dos 15 aos 24 anos. As vítimas eram na maioria trabalhadores com pouca
qualificação, embora as categorias Polícias/Forças Armadas e proprietários
também tenham apresentado incidência significativa. Quanto aos agressores, nos
Outros Estados a taxa de identificação foi superior à de São Paulo e Rio de
Janeiro, assim como a de informação sobre a ocupação, que foi noticiada para a
metade dos agressores, entre os quais a maioria pertencia às Polícias/ Forças
Armadas. O perfil dominante dos agressores foi grupos de composição mista, ou
seja, formados por civis e policiais. Ao contrário do Rio de Janeiro e São Paulo,
as providências tomadas pelo Poder Público noticiadas apresentaram
porcentagens relevantes tanto na fase policial quanto na judicial. Como no resto
do país, as manifestações públicas foram raras, a maioria de protesto
proveniente de entidades, principalmente o Movimento Nacional de Meninos e
Meninas de Rua (MNMMR).
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 291

5. CONCLUSÕES
Uma verdadeira guerra parece estar contida no fenômeno das execuções
sumárias no Brasil desde os anos 80. Esse conflito parece recrudescer com o
tempo e tem, à primeira vista, um certo ar de “gratuidade”, pela ausência de um
motivo que possa ser indicado como estopim para a agressão. Entretanto, os
motivos que orbitam em torno do fenômeno devem ser procurados numa análise
dos fatos sociais, das condições de vida oferecidas às populações daqueles
centros urbanos onde as execuções sumárias são mais freqüentes e nas esferas
que integram os indivíduos ao universo social e cultural do grupo a que
pertencem.

A resolução de conflitos por meio da eliminação sumária revela a ausência


de um espaço de diálogo e de intervenção dos poderes institucionalizados que
deveriam arbitrar os conflitos entre indivíduos de uma mesma sociedade. A
violência das execuções sumárias mostra que, cada vez mais, os grupos
organizados da contravenção e do tráfico de drogas se firmam no cenário social e
estendem a sua influência a vários setores da sociedade, incluindo os que
deveriam garantir a legalidade das atividades econômicas e arbitrar os conflitos
sociais. O envolvimento da Polícia com esses grupos expõe cada vez mais a
vulnerabilidade da população mais desfavorecida, que não pode contar com as
instituições. A violência praticada de uma forma organizada e cada vez mais
profissionalizada e cruel faz parecerem banais e menos graves, aos olhos e
ouvidos da opinião pública, os crimes cometidos com o objetivo de resolver
conflitos cotidianos ou garantir micro poderes de organizações criminosas.

Em relação às execuções sumárias, o Estado realiza apenas intervenções


ocasionais de grande alarde e visibilidade que, contudo, pouco esclarecem sobre
os fatos ocorridos, não punem os autores e, muito menos, ajudam a prevenir
contra ações futuras do gênero. A grande participação de policiais envolvidos em
execuções sumárias indica uma ambigüidade desses agentes do Estado face à
sua função oficial de garantir que a resolução dos conflitos ocorra dentro da
ordem legal, pois, imbuídos dessa autoridade que lhes aufere o cargo,
consideram legítimo o uso da violência extra-oficial.

Os casos noticiados provocam inquietude pelo crescente nível de


crueldade com que as agressões são praticadas desde os anos 80. Os casos
revelam que a tortura precedendo a execução se consolida como parte de um
ritual de punição à vítima. O uso de armamento pesado também reforça essa
observação, já que as vítimas, no momento da execução, geralmente se
encontram desarmadas ou são surpreendidas pelos agressores, sem
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 292

possibilidade, portanto, de esboçar reação. Certamente contribui para isso a


maior facilidade de ingresso das armas contrabandeadas após o fim da Guerra
Fria, o que serviu para fortalecer uma competição por armamento sofisticado,
símbolo do poder e garantia de uma ação cada vez mais “eficiente” e
intimidadora. A crueldade crescente que vem caracterizando as execuções
sumárias ao longo do período pode ser observada pelos casos nos quais
mulheres grávidas, crianças pequenas ou idosos são brutalmente assassinados,
apenas porque se encontravam no local no momento da execução.

Desde os anos 80, uma geração cada vez mais jovem tem sido atingida
pelas execuções sumárias, numa fase de desenvolvimento em que deveria estar
protegida. Jovens pobres que convivem com a violência desde cedo acabam por
tornar-se seus protagonistas ou testemunhas. Durante o período analisado, tem
aumentado a participação de crianças e adolescentes nas execuções sumárias,
também como agressores, o que é um indicador importante da interiorização e
banalização da violência. Esses jovens que possuem poucas oportunidades de
inserção no sistema escolar e, mais tarde, no mercado formal de trabalho,
parecem estar sendo atraídos mais e mais para atividades ilícitas como, por
exemplo, o crime organizado, no qual podem desenvolver “carreiras” que
garantem a sobrevivência e lhes permitem adquirir um certo status perante a
sociedade pelas compensações financeiras e prestígio que oferecem.

O fenômeno das execuções sumárias está relacionado à cultura da


violência característica de algumas sociedades contemporâneas e, no caso
brasileiro, vem se firmando como uma das formas mais utilizadas na resolução
de conflitos, questionando, assim, o monopólio legal da violência, prerrogativa do
Estado. No entanto, não se trata absolutamente da ausência do monopólio legal:
ele existe, mas por vezes se apresenta como agressor de boa parte das ações,
posto que a participação dos seus agentes entre os autores de execuções
sumárias é tão significativa que explicações baseadas apenas no desvio de
trajetórias de alguns indivíduos não parecem ser suficientes. A freqüência dessas
ocorrências parece sugerir que segmentos das instituições encarregadas da
manutenção da ordem estão em conluio com as organizações criminosas e com
os métodos arbitrários e autoritários de investigação, julgamento e condenação
que acabam sendo condensados no ato da execução sumária. E ressalte-se que,
neste processo, as ações das instituições judiciárias têm pouca visibilidade, o que
reforça a idéia de impunidade, contribuindo para a reprodução das execuções.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 293

CAPÍTULO 7
VIOLÊNCIA POLICIAL: A AÇÃO JUSTIFICADA PELO ESTRITO CUMPRIMENTO DO DEVER

Adriana Alves Loche


Viviane de Oliveira Cubas
Wânia Pasinato Izumino

Introdução
O BANCO DE DADOS DA IMPRENSA SOBRE A VIOLÊNCIA POLICIAL abrange 17
anos de história da sociedade brasileira e reúne o maior número de casos
identificados na pesquisa: 4181 casos.

Devido à dificuldade em se distinguir com precisão – a partir de


informações coletadas na imprensa - aqueles casos em que os policiais usam as
suas armas em defesa própria ou de terceiros, daqueles em que o uso se faz por
“motivos outros como despreparo, impunidade, vigilantismo ou até mesmo
vingança” (Pinheiro, et al. 1991), foram incluídos neste banco de dados todos os
casos envolvendo policiais e que foram noticiados pela imprensa de circulação
nacional.

Nestes anos muita coisa mudou no país e a principal mudança a ser


mencionada foi o fim do regime militar e a transição para a democracia, que hoje
se encontra em processo de consolidação. A despeito destas mudanças, quando
se observa a atuação da polícia neste período o que mais chama a atenção é
que pouca coisa se modificou nas práticas desta instituição.

Nos últimos anos acompanhamos no Brasil diversos eventos envolvendo a


ação violenta da polícia. As práticas violentas da polícia parecem estar
incorporadas ao cotidiano brasileiro e num rápido repasse poderíamos elencar
vários episódios sobre o envolvimento de policiais de diferentes corporações, em
situações que vão desde abuso de autoridade para obtenção de benefício
próprio, passando por prisões arbitrárias, envolvimento em atos ilícitos como
roubo, tráfico de drogas e corrupção, torturas e uso da força letal como regra de
sua atuação. Entre os casos mais recentes que tiveram impacto nacional
podemos destacar como exemplos: o massacre do Carandiru, Bar Bodega,
Diadema, Fazenda da Juta – em São Paulo; Vigário Geral, Cidade de Deus – no
Rio de Janeiro; Corumbiara – em Rondônia; e Eldorado de Carajás – no Pará.
São casos que obtiveram repercussão na imprensa, provocaram a indignação de
setores da sociedade e colocaram em discussão o papel da polícia numa
sociedade democrática.

Nestes casos, a divulgação na mídia de cenas da atuação da polícia


revelou práticas policiais de abuso e arbitrariedades que não poderiam ser
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 294

pensadas em democracias consolidadas, nas quais o respeito pelos direitos


humanos está incorporado ao dia-a-dia dos cidadãos. Nestes, e em outros tantos
casos que são noticiados diariamente pela imprensa, a pergunta que se coloca é
sempre a respeito dos meios utilizados pela polícia: teriam sido utilizados os
meios mais adequados? Qual o nível de preparo das polícias para enfrentar
determinadas situações de confronto? A força letal deve ser usada em qualquer
contexto, sempre justificada pela garantia da ordem e da segurança?

As reflexões a respeito da exacerbação da violência nas práticas policiais


remetem à discussão clássica sobre o papel das instituições policiais nas
sociedades democráticas. No Estado Moderno o uso legítimo da violência passou
a ser monopólio do Estado, como um de seus instrumentos específicos de
dominação (Weber, 1968). Para o exercício desta dominação, o Estado conta
com a instituição policial como sendo um dos órgãos encarregados da
prevenção, repressão e contenção da criminalidade e da violência.

No desempenho deste papel, a instituição policial tem como atribuição o


uso legítimo da violência, o que implica afirmar que o uso da força física deve se
dar dentro de parâmetros delimitados pela legislação, sujeito a imperativos legais,
que se fundam no respeito aos direitos das pessoas. Desta forma, ao
desrespeitar as normas estabelecidas, a polícia passa a agir ilegalmente.

Apesar da clareza que parece definir os parâmetros da atuação policial,


descrever a violência policial é uma tarefa extremamente complexa, pois não
existe uma violência policial, mas diversas formas de violência que devem ser
entendidas em seus contextos e situações particulares. Sobre este aspecto, hoje
parece estar se criando um consenso de que a exacerbação da violência não se
dá apenas quando há o uso indiscriminado da força letal, mas pode compreender
desde um empurrão até o confronto armado, dependendo do contexto em que
ocorreu.164

Uprimny (s.d.), em um estudo sobre a organização policial colombiana,


afirma que a polícia deve utilizar sua força de forma proporcional e moderada à
ameaça representada, com a finalidade de coibir toda violência exercida contra
as pessoas. Para a autora, a atuação da polícia deve estar limitada por alguns
parâmetros que constam dos instrumentos internacionais de direitos humanos: a)
o respeito aos direitos das pessoas; b) a observação dos procedimentos legais; e
c) o estrito cumprimento dos deveres. Uprimny afirma que “o uso da força sempre
implica riscos, sobretudo quando se trata do emprego de armas de fogo. O dever

164
Estudos sobre o uso da força física pela polícia, desenvolvidos nos Estados Unidos, corroboram esta
definição. (Cf. McEwen, T. 1996; Greenfeld, L.A. et al. 1997)
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 295

da polícia neste caso é minimizar o risco à vida e à integridade pessoal. Isto


supõe não somente evitar que terceiras pessoas sejam afetadas enquanto se
persegue um delinqüente, mas também que a polícia deve buscar eliminar a
resistência e não a pessoa que resiste, pois ainda que esta tenha cometido um
fato punível, tem direito à vida e à integridade pessoal”.

A despeito destes princípios que deveriam nortear a ação policial, alguns


países latino-americanos nos quais “as polícias desempenharam um papel
importante na sustentação dos regimes autoritários” (Mesquita Neto, 1997), o
controle do uso da violência passou a ser um problema central nas políticas
públicas voltadas para a consolidação da democracia. Como exemplo de países
que registram níveis altos de violência policial, e tem se dedicado ao estudo
deste fenômeno, destacamos a Colômbia, a Argentina e o Brasil.

Em um artigo sobre a violência urbana na Colômbia, Zambrano (1995)


afirma que "a violência produzida por agentes do Estado contra a população tem
uma grande incidência no problema da violência colombiana, não apenas pela
sua freqüência - o que em si já revela a deficiência no controle das instituições
armadas sobre seus agentes -, mas também pela negligência das autoridades
responsáveis em investigar e punir os agentes envolvidos". O que leva, segundo
a autora, a esta situação de desrespeito aos direitos humanos por agentes
policiais é a "inadequada orientação da polícia e o desvio de sua função como
guardiã da ordem pública". Durante três anos, foram registradas 4.344 queixas
contra a polícia colombiana, o que significa que, em média, quase quatro
pessoas por dia foram vítimas de abusos cometidos pela polícia.

Na Argentina, a realidade não é muito diferente, pois há também neste


país um "desvio de funções". Em um estudo realizado pelo Centro de Estudios
Legales y Sociales (CELS), a violência policial argentina foi definida como “toda
intervenção armada da polícia, seja esta legal ou não” (CELS, 1991). A pesquisa
indicava que, no Estado democrático, a violência policial era apresentada à
sociedade como um resultado legítimo do trabalho policial. Contudo, este estudo
ao analisar as intervenções armadas da polícia concluiu que estas apresentavam
um grau de violência excessivo e desnecessário, ainda que em obediência a
decisões superiores.

No Brasil existem poucos estudos publicados sobre o tema. Além de


Pinheiro et al.(1991) que estudou as mortes envolvendo a Polícia Militar do
Estado de São Paulo nos anos de 1983 a 1987, outros estudos que podem ser
citados são o livro de Caco Barcelos – Rota 66 – e os relatórios produzidos pela
Human Rights Watch. Estes últimos têm o mérito de apresentar informações
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 296

sobre a ocorrência de violações dos direitos humanos produzidas por policiais em


diferentes estados brasileiros.

Com o objetivo de contribuir para uma melhor compreensão das


dimensões desta problemática, para que se possa propor políticas públicas que
visem uma melhoria na atuação das polícias, este artigo tem por objeto casos de
violência policial ocorridos em todo o Brasil e que foram noticiados pela imprensa
de circulação nacional, durante 17 anos (1980-1996). O uso da imprensa como
fonte de dados se justifica, de um lado, pelas dificuldades de acesso a dados
oficiais e, de outro, pela abrangência do período analisado.

As informações apresentadas – diante das limitações inerentes à fonte –


não podem ser consideradas como dados oficiais, nem mesmo como uma
amostra estatisticamente relevante, mas permitem apontar perfis da violência
policial em diferentes regiões do país, além de identificar nestes perfis aspectos
que se modificaram ou que se consolidaram nestes 17 anos.

1. O BANCO DE DADOS DA IMPRENSA SOBRE VIOLÊNCIA POLICIAL


Para uma melhor compreensão da violência policial na sociedade
brasileira, é necessário antes definir quais são os órgãos policiais existentes no
Brasil e quais são as suas atribuições. Há, em todo o território nacional, três tipos
de polícia: federal, civil e militar. Suas funções e atribuições encontram-se
definidas na Constituição Federal de 1988, no capítulo sobre a Segurança
Pública (artigo 144):

A Polícia Federal tem por função: a proteção das fronteiras brasileiras; a


prevenção do tráfico de drogas entre os estados, do tráfico e do contrabando
internacionais; e o exercício de atividades de polícia federal judiciária.

As polícias estaduais são divididas em: Civil e Militar, ambas subordinadas


aos governos estaduais, sendo que esta última é também uma força auxiliar do
Exército. A Polícia Civil é dirigida por delegados de polícia, e tem funções de
polícia judiciária, devendo apurar todas infrações penais, exceto as militares165.

A Polícia Militar é uma força fardada que tem por atribuição o policiamento
ostensivo e a preservação da ordem pública; pode prender suspeitos apenas em
flagrante delito, devendo levá-los imediatamente à delegacia para que seja
registrada a ocorrência.

Além destes órgãos responsáveis pela preservação da ordem pública e da


incolumidade das pessoas e do patrimônio, a Constituição Federal prevê ainda a
165
As infrações militares são apuradas através do Inquérito Policial Militar (IPM).
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 297

possibilidade de os municípios constituírem as suas próprias guardas. O texto


constitucional não dispõe sobre o uso de armas, mas define que as guardas
municipais são “destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações”.
Portanto, este corpo policial, subordinado ao executivo municipal, teria por função
exclusiva a proteção do patrimônio público.

A partir deste esclarecimento sobre os corpos policiais brasileiros e suas


atribuições, será descrito o perfil da violência policial no Brasil, segundo o Banco
de Dados da Imprensa sobre a Violência Policial, que se encontra dividido em
dois períodos: a) anos 80 - que compreende os anos de 1980 a 1989; e b) anos
90 - de 1990 a 1996.

Para cada período, foram feitas análises separadas para os estados de São
Paulo, Rio de Janeiro e Bahia. Os demais estados da federação encontram-se
agrupados sob a rubrica de Outros Estados.

Os casos de violência policial noticiados foram classificados em cinco tipos


de ação que definem o perfil da ação policial retratada pela imprensa no Brasil,
no período analisado:

• AÇÃO COTIDIANA - inclui todas as intervenções armadas de policiais


no exercício legal de suas funções. Compreende casos envolvendo policiais
militares e as guardas metropolitanas, durante o patrulhamento ostensivo; e
policiais civis e federais durante a investigação de fatos criminais. A violência
policial cotidiana compreende, ainda, casos de tortura ocorridos em delegacias e
cadeias, com a finalidade de obter informações sobre crimes, em geral atribuídos
à vítima da tortura;

• AÇÃO CONTRA INOCENTES - refere-se aos casos em que a vítima é


confundida com infratores. Nestes casos, em geral, a imprensa qualifica as
vítimas pela sua ocupação profissional;

• FORA DE SERVIÇO - engloba todos os casos em que policiais agem


durante seu período de descanso, quer seja reprimindo atos delituosos quer seja
exercendo outra atividade remunerada (o bico);

• REPRESSÃO A REBELIÕES - engloba casos de intervenção armada de


policiais, em geral da polícia militar, a rebeliões em presídios, delegacias e
cadeias públicas; e

• REPRESSÃO A MANIFESTAÇÕES PÚBLICAS - representada por aqueles


casos em que as forças policiais são chamadas para reprimir greves, passeatas
de protesto etc. Sua principal característica é o uso exacerbado da força que
acaba por provocar ferimentos e até mesmo morte entre os manifestantes.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 298

2. A VIOLÊNCIA POLICIAL NO BRASIL


O GRÁFICO 1 ilustra a distribuição dos casos nos dois períodos analisados.
Podemos observar que, para os anos 90, houve uma redução de
aproximadamente 40% no número total de casos noticiados de violência policial

Gráfico 1: Distribuição do número de casos de Violência Policial por período


Brasil, 1980-1996

2800
2400 2614

2000
1600
1567 1980-89
1200
1990-96
800
400
0
Nº de Casos

Fonte: Banco de Dados da Imprensa Sobre as Graves Violações dos Direitos Humanos. NEV/USP - Secretaria
Nacional de Direitos Humanos/ MJ

Quanto à distribuição geográfica, os casos de violência policial noticiados


pela imprensa, ao longo de dezessete anos, estão distribuídos por quase todos
os estados brasileiros, com exceção do Amapá e de Roraima.

Para o estado de São Paulo foram localizados 2853 casos o que


representa 68,3% do total de casos do Banco de Dados de Violência Policial. O
segundo estado com maior número de casos foi o Rio de Janeiro com 674 casos
(16,1%), seguido pela Bahia com 168 casos (4%). Os casos de violência policial
ocorridos em outros estados e noticiados pela imprensa representam 11,6% do
total (486 casos).
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 299

Mapa 1: Distribuição dos casos de violência policial por estado


Brasil, 1980-1996

9 3000
43
5 27
19 7 2500
6 11 2 1
16 4 2

4 7 21
21 2000
0
4 3
7
5
7 2 5
6
4 113 1500
55
5 7 14 1000
30 11
9
5 8 500
32 4
7 2.036
196 0
27 817 478 BR SP RJ BA OE
22
1980 1990
7
27 6

17

Fonte: Banco de Dados da Imprensa Sobre as Graves Violações dos Direitos Humanos - NEV/USP
-Secretaria Nacional de Direitos Humanos/ MJ

Comparando-se os dois períodos analisados, conforme pode ser


observado no Mapa, os estados que apresentaram a maior queda do número de
casos foram: São Paulo, Bahia e Pará.

No estado de São Paulo, a redução chegou a cerca de 60% em relação


aos anos 80, e pode ser explicada pela implementação, na Polícia Militar, de
programas de reciclagem profissional. Tais programas, adotados a partir de 1992,
logo após o episódio do Carandiru em que 111 presos foram mortos por policiais
da Tropa de Choque da Polícia Militar, agiram como importantes redutores da
violência policial no estado de São Paulo. Soma-se aos programas de
reciclagem, a criação da Ouvidoria da Polícia do Estado de São Paulo, cujo
trabalho é receber as denúncias de abusos policiais, tanto civis como militares, e
levá-las ao conhecimento do Judiciário. Devido à grande representação deste
estado no Banco de Dados da Imprensa Sobre a Violência Policial, todo o perfil
da ação da policial para o Brasil parece ser determinado pelo perfil identificado
neste estado.

Para a Bahia, a redução gira em torno de 50%, e pode ser explicada pela
maior incidência, durante os anos 80, de casos envolvendo policiais “fora de
serviço”. Também é relevante destacar a criação, em abril de 1979, de um
Grupamento Especial de Prevenção que tinha como objetivo a prevenção do
crime, mas de maneira violenta, nos mesmos moldes da Rota paulistana. Isto
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 300

pode ter aumentado o número de casos de violência policial no período de 80.


Para os anos 90, há menos casos de violência policial cujos envolvidos se
encontravam fora de seu horário de trabalho.

No Pará, a mudança explica-se pela redefinição dos critérios de escolha


dos casos que compõem o banco de dados de violência policial. Durante os anos
80, neste estado, eram comuns casos em que policiais agiam motivados por
questões pessoais, como, por exemplo, uma briga entre vizinhos. Para os anos
90, optamos por não mais incluir casos com essas características no banco de
dados, porque entendemos que, nestas situações, os agressores não estão
agindo no exercício de suas funções policiais.

Apesar dos anos 90 terem registrado um menor número de casos em


relação ao período anterior, em dois estados brasileiros houve um aumento muito
grande nos casos de violência policial retratados pela imprensa.

Um destes estados é o Rio de Janeiro, que registrou um aumento de mais


de 140% nos anos 90. Este aumento explica-se, de um lado, pelo acordo firmado
entre as Forças Armadas e a polícia estadual, em 1994, para coibir o tráfico de
entorpecentes nos morros cariocas. Essa ação conjunta - conhecida como
Operação Rio - “foi marcada por torturas, detenções arbitrárias, buscas sem
mandado judicial e, pelo menos em um caso, por uso desnecessário de força
letal” (Human Rights Watch, 1997). Houve também neste estado a implantação
de uma política de “promoções e gratificações por atos de bravura”, adotada pelo
governo de estado.

O outro estado a apresentar um aumento significativo no mesmo período


foi o Amazonas, pois o número de casos dobrou neste estado passando de 9
para 19 casos. Este crescimento deve-se à maior ocorrência, nos anos 90, de
repressões a manifestações públicas. Estes casos ganharam destaque nos
meios de comunicação porque foram motivados por questões que atingem toda a
sociedade, tais como: desemprego, moradia, saúde, educação.

3. A VIOLÊNCIA POLICIAL EM SÃO PAULO


O estado de São Paulo concentrou o maior número de casos do Banco de
Dados de Violência Policial para todo o período analisado. São 2853 casos,
sendo que 2036 casos ocorreram nos anos 80 e 817 nos anos 90. Este
predomínio deve-se em parte ao fato de que três dos jornais utilizados como
fonte para o Banco de Dados de Violência Policial têm sua sede localizada na
cidade de São Paulo. Além disso, a observação sistemática do jornal Notícias
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 301

Populares a par da maior cobertura dada pela imprensa nacional aos casos
ocorridos neste estado contribuíram para aumentar a freqüência daqueles casos
de violência policial cotidiana, ou seja, durante o policiamento ostensivo. Em
virtude destas circunstâncias, tudo leva a crer que se logrou obter um perfil da
ação policial bastante próximo da realidade, uma vez que os dados não se
referem apenas aos casos de maior repercussão.

A violência policial em São Paulo caracteriza-se sobretudo por ser um


fenômeno urbano, concentrado nas grandes cidades. Do total de casos deste
estado, 1989 (69,7%) ocorreram no município de São Paulo. No Gráfico abaixo
observa-se que os casos ocorridos no município sofreram um pequeno aumento,
aproximadamente 2% em relação aos anos 80.

Gráfico 2: Distribuição dos casos de Violência Gráfico 3: Distribuição dos casos de Violência
Policial por região do município de São Paulo Policial por região do estado de São Paulo
Município de São Paulo, 1980-1996 São Paulo, 1980-1996

35 80
30
25 60
20
15 40
10
5 20
0
Não
Centro Leste Norte Oeste Sul 0
Informa Município Grande SP Interior Litoral Não Informa
1980 10,8 34,3 15,7 9,8 29,4 1980 68,9 22,2 5,5 2 1,5
1990 13,8 19,6 12,6 15 30,5 8,5 1990 71,8 17,9 6,4 1,5 2,4

Fonte: Banco de Dados da Imprensa


Sobre as Graves Violações dos Direitos Humanos - NEV/USP -Secretaria Nacional de Direitos Humanos/ MJ

Nos dois períodos considerados, as zonas Leste e Sul do município


registraram os maiores números de casos de violência policial. A predominância
destas duas regiões pode ser explicada pelo crescimento urbano que nos últimos
20 anos levou ao adensamento da ocupação destas regiões. Ali, numerosos
bairros, vilas e favelas cresceram de modo rápido, à beira de córregos e lixões.
São bairros que agregam as camadas mais pobres da população, que vivem sem
qualquer infra-estrutura (água, luz, saneamento básico, transporte, equipamentos
de saúde, educação ou lazer).
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 302

Entre as carências que definem o cotidiano desta população, a principal


delas é a de direitos e cidadania que faz com que essas pessoas sejam mais
facilmente expostas às arbitrariedades da ação policial. Complementando o
quadro de desamparo em que vive esta população, concluíram Pinheiro et al.
(1991) que “nestes bairros a presença da polícia, com atuação preventiva, é
rarefeita, se não inexistente. Sua intervenção se dá em operações em geral de
caráter repressivo. Desta forma esta população carente de direitos torna-se
também alvo mais fácil da ação arbitrária da polícia. Para justificar sua ação a
polícia alega que sua maior motivação para agir desta forma, nestes bairros, está
em proteger a população pobre que mais sofre com a ação dos bandidos".

Para as outras regiões do município de São Paulo, cabe ressaltar apenas


que ocorreu, para os anos 90, um aumento de 4% entre os casos ocorridos nas
zona Oeste da cidade. Também para os anos 90, em 6,1% dos casos não foi
possível identificar a região da cidade em que ocorreu o delito.

A Região Metropolitana da Grande São Paulo - formada por 38 municípios


- foi responsável por 23,1% do total de casos noticiados para o estado de São
Paulo para os dois períodos. Nos anos 80, ocorreram nesta região 22,2% dos
casos de violência policial, distribuídos em 29 municípios. Para os anos 90 houve
um decréscimo no número de casos que passou a representar 17,8% do total,
distribuídos em 22 municípios. Em geral, os municípios onde ocorreram os casos
de violência policial fazem limite com bairros pobres do município de São Paulo,
principalmente nas zonas Sul e Leste, cujas populações apresentam
características sócio-econômicas bastante semelhantes.

Para os casos ocorridos no Interior e no Litoral, houve uma pequena


variação nos anos 90, aumentando o número de casos no Interior e diminuindo
no Litoral. Houve também um pequeno aumento dos casos sem informação da
região do estado. A ausência de informações mais precisas a respeito do
contexto da ocorrência será uma característica da imprensa para os anos 90.

3.1 Perfil da violência policial em São Paulo


Para a apresentação do perfil da violência policial foram utilizadas as
variáveis: tipo de ação policial, local de ocorrência e tipo de delito. Para os anos
90, devido à informatização dos dados, foi possível analisar também outras
variáveis como: motivo desencadeador da violência policial; número de
agressores envolvidos, número de vítimas e vítimas fatais por caso.

O TIPO DE AÇÃO POLICIAL foi definido a partir do contexto descrito pelas


notícias. Este contexto foi classificado em categorias, nas quais se procurou,
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 303

inicialmente, identificar se o policial agiu EM SERVIÇO ou FORA DE SERVIÇO. Para os


casos em que agiu em serviço, sua ação foi definida como AÇÃO COTIDIANA ou de
REPRESSÃO A REBELIÕES E MANIFESTAÇÕES PÚBLICAS. Há também uma quarta
categoria que se define mais pela descrição da vítima do que pela situação do
agente policial. Trata-se das AÇÕES CONTRA INOCENTES, que podem ter envolvido
policiais em serviço ou fora de serviço.

Gráfico 4: Distribuição dos casos de Violência Policial por tipo de ação policial
São Paulo, 1980-1996

80

70
60

50

40

30

20

10
Fonte: Banco de Dados
0 da Imprensa Sobre as
Ação contra
Ação Cotidiana Fora de Serviço Repressões Não Informa Graves Violações dos
Inocentes Direitos Humanos -
1980 13,3 73,7 7,1 2,1 3,8 NEV/USP -Secretaria
Nacional de Direitos
1990 15,2 62,8 6,2 6,9 8,9
Humanos/MJ

A ação policial mais freqüente no Banco de Dados de Violência Policial,


para os dois períodos analisados, é a AÇÃO COTIDIANA que compreende os
confrontos armados entre policiais e não-policiais, além dos casos de tortura. Em
São Paulo, nos anos 80, 73,7% dos casos noticiados foram classificados nesta
categoria. Para os anos 90, apesar de ter ocorrido uma queda no número de
casos, as ações cotidianas continuaram a ser majoritárias, representando 62,8%
do total de casos deste período.

A AÇÃO COTIDIANA mais freqüente e mais aparente é aquela que resulta na


morte de pessoas em situação de confronto com policiais, em especial, com a
Polícia Militar que é a responsável pela prevenção e repressão da criminalidade.
Esta forma de violência é percebida muitas vezes como uma “ação necessária,
plenamente justificada, quase obrigatória. Sendo assim pouco haveria para
averiguar, corrigir e prevenir” (Pinheiro et al., 1991). Nestes casos, a violência
policial aparece como legítima porque os policiais agem no cumprimento de seu
dever, coibindo a criminalidade. Barcellos (1992), no entanto, constata que não
há nenhuma relação entre a violência praticada pela Polícia Militar e o
decréscimo dos índices de criminalidade, contestando assim a aparente
“necessidade” de tais ações. Outros estudos apontam que grande parte destas
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 304

mortes decorrem de ações arbitrárias de uma polícia que decide “fazer a justiça
com as próprias mãos” (HRW/Americas, 1994 apud Neme 1997). Nestas
situações, segundo Pinheiro et al. (1991) nota-se que a polícia age com
disposição para matar, matando sempre mais do que fere. Chevigny (1991 e
1994) - em estudos que comparam a violência praticada por policiais de grandes
cidades: São Paulo, Rio de Janeiro, Nova York, Los Angeles, Buenos Aires e
México - mostra como, no Brasil, a Polícia Militar se destaca por utilizar a
violência fatal, exacerbando dos padrões de violência aceitáveis em outras
democracias.

As AÇÕES CONTRA INOCENTES, que caracterizam os casos em que a vítima


da ação policial foi confundida com um infrator, sofreram um pequeno aumento
nos anos 90, passando de 13,3% para 15,2% do total de casos nos anos 80 e 90,
respectivamente. Nesta categoria, durante os anos 80, eram incluídos todos os
casos em que a vítima da violência policial era qualificada, pela imprensa, por
sua profissão. Incluíam-se ainda os casos de pessoas que foram atingidas, por
engano, durante o confronto armado entre policiais e infratores. Por exemplo,
quando durante um assalto a banco ocorre um tiroteio e a polícia acaba ferindo
um cliente, ou quando o morador de um morro carioca é atingido durante tiroteio
entre policiais e supostos traficantes166.
Outra categoria bastante freqüente nos anos 80 agregou os casos de
policiais que agiram FORA DE SERVIÇO, principalmente quando estes agiram no
exercício de outra função remunerada – o chamado bico. Esta categoria passou
de 7,1% do total de casos dos anos 80, para 6,2% nos anos 90. Atualmente, o
bico, embora seja proibido por lei, está sendo aceito pelos altos comandos
policiais, porque representa uma forma de aumentar o rendimento dos policiais.
Assim, casos envolvendo policiais FORA DE SERVIÇO, em uma situação irregular,
não causariam mais tanto impacto na opinião pública, o que reduz o interesse da
imprensa em divulgá-los.

Pouco freqüentes nos anos 80 foram os casos de ação violenta na


REPRESSÃO DE MANIFESTAÇÕES PÚBLICAS ou na REPRESSÃO A REBELIÕES em cadeias

166
A partir dos anos 90, com a redefinição de alguns critérios do banco de dados e a introdução
de outras variáveis, casos como estes passaram a ser classificados como ações cotidianas, e a
informação de que a vítima foi atingida por engano passou a ser recuperada pelo motivo
desencadeador – que no caso seria a categoria por engano. Outro indicador para esta
classificação, foi a presença de informações, nas notícias, que contradiziam a versão policial.
Enquanto a polícia, na tentativa de justificar o erro cometido, esforçava-se em difamar a vítima
que era descrita como “marginal”; familiares e amigos esforçavam-se em denunciar as
arbitrariedades da ação policial, resgatando a boa imagem da vítima. Esta estratégia da polícia
torna explícita a idéia de que a violência, quando é utilizada contra “marginais”, não só é
justificável, como é amplamente aceita pela sociedade.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 305

públicas e presídios, quando 2% dos casos noticiados foram assim classificados.


Para os anos 90 constata-se um aumento desta categoria que passou a
representar 6,8% do total de casos.

Do total de casos, em aproximadamente 3,8% e 8,9%, respectivamente


para os anos 80 e 90, não foi possível definir qual o tipo de ação policial, seja
porque as notícias não informavam se os policiais se encontravam ou não em
serviço, seja porque as informações não permitiam identificar a vítima da ação.

A descrição dessas ações, principalmente entre aquelas que foram


classificadas como AÇÕES COTIDIANAS, nem sempre permite afirmar se houve ou
não exacerbação da violência e muitas vezes esta acabou sendo inferida a partir
do número de mortes que estes confrontos produziram. O texto das notícias,
nestes casos, refere-se a confrontos entre policiais e não-policiais, estes últimos -
segundo a versão da imprensa - surpreendidos por policiais durante tentativas de
roubos ou quando se encontravam em fuga. Para os anos 80 não foi possível
analisar os motivos que desencadearam a ação policial, mas a leitura dos jornais
sugere que, na maior parte dos casos, essas ações foram motivadas por crimes
contra o patrimônio, destacando-se os roubos de carros e de residências.

Para os anos 90, na análise dos motivos que desencadearam as ações


policias observa-se no gráfico abaixo que os crimes contra o patrimônio são os
que mais motivaram a repressão policial, aparecendo em 41,4%. A
reação/resistência à ordem policial aparece em 20,8%. É interessante perceber
que os crimes contra a vida - como homicídios - e contra os costumes - como o
estupro - desencadearam de 1% a 0,5% ações policiais, respectivamente.
Gráfico 5: Distribuição dos casos segundo o motivo desencadeador.
São Paulo, 1990-96

1,7 4,5 1,2


1
20,8

3,7
41,4
9,4

10,8 0,5
3,2 1,8

atitude suspeita c.c.liberdade individual crimes contra a vida c.c.patrimônio


c.c.costumes drogas(cons/traf.) manifestações públicas não informa
outros por engano reação/resistência rebeliões

Fonte: Banco de Dados da Imprensa Sobre as Graves Violações dos Direitos Humanos- NEV/USP-Secretaria
Nacional de Direitos Humanos/ MJ
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 306

As drogas (seja pelo consumo ou pelo tráfico) não desencadearam muitos


confrontos entre policiais e não-policiais, tendo sido apontado como motivo
desencadeador em apenas 1,8%.

Em São Paulo 4,5% das ocorrências foram desencadeadas pela atitude


suspeita. Esta categoria apareceu com maior freqüência nos anos 80 e início dos
anos 90 quando se utilizava o jornal Notícias Populares, o que demonstra um
viés da imprensa ao caracterizar a atitude suspeita como um delito em si, que
legitima a ação policial.

Além de ser um fenômeno urbano, as ações policiais são também ações


públicas. Apesar de haver uma queda nas proporções, as distribuições
apresentam-se semelhantes segundo o local de ocorrência para os dois
períodos. Nos anos 80, cerca de 80% dos casos ocorreram em locais públicos,
enquanto que para os anos 90 pouco mais da metade dos casos foram
classificados nesta categoria. A predominância dos casos ocorridos em locais
públicos complementa a informação sobre o perfil da ação policial que ocorreu
principalmente nas ruas em bairros periféricos das zonas Sul e Leste do
município de São Paulo. Esta ação caracteriza-se pelo confronto entre policiais
militares e não-policiais durante o policiamento ostensivo para a prevenção e
repressão da criminalidade.

Os casos ocorridos em delegacias/presídios apresentaram as mesmas


proporções nos dois períodos, cerca de 7% do total de casos. Estes casos
envolvem, em geral, policiais civis em torturas realizadas durante as
investigações criminais, e são pouco noticiados em São Paulo.

Outra informação que complementa o perfil da ação policial é o tipo de


ação delituosa em que os agentes policiais incorrem no "cumprimento do dever".

90
Gráfico 6: 80
Distribuição
70
dos casos de
60
Violência
Policial por 50
tipo de delito 40
São Paulo, 30
1980-1996 20
10
0
Homicídio/ Lesões Tortura s.
Outros Tortura
Tentativa Corporais morte
1980 81,8 13,1 1,8 2,8 0,5
1990 79 14,8 1,8 3,7 0,7

Fonte:
Banco de Dados da Imprensa Sobre as Graves Violações dos Direitos Humanos - NEV/USP -Secretaria
Nacional de Direitos Humanos/ MJ
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 307

Para os dois períodos analisados, os casos de violência policial em São


Paulo resultaram, majoritariamente, em homicídios - tentados e consumados -
atingindo cerca de 80% das ocorrências. Além dos homicídios, foram noticiados,
neste estado, casos de lesões corporais e torturas que registraram um aumento
de aproximadamente 2% em relação aos anos 80.

Comparando-se os números de homicídios com os números de lesões


corporais observa-se que a polícia age com disposição de matar e a imprensa
retrata essa disposição privilegiando em seu noticiário policial aqueles casos que
resultaram em mortes.

Sobre os casos de tortura, nos anos 90, os jornais noticiaram


proporcionalmente mais casos que no período anterior167. Dentre os casos de
tortura noticiados para os anos 90, um tornou-se especialmente conhecido, o
caso do "Bar Bodega". Este caso aconteceu em agosto de 1996, em um bar de
um bairro paulistano de classe média alta. Cerca de nove pessoas assaltaram o
bar, matando dois clientes. Dois dias depois, policiais civis prenderam nove
suspeitos que confessaram o crime. A promotoria pediu que os acusados fossem
soltos por falta de provas, e estes denunciaram terem sido torturados para
confessar o crime. O caso passou para o Departamento de Homicídio e Proteção
à Pessoa (DHPP), uma delegacia especializada, e alguns dias depois, os
verdadeiros responsáveis foram presos.

É possível que este caso tenha estimulado outras denúncias, ou chamado


a atenção dos meios de comunicação para este tipo de delito. Além destes casos
de tortura, foram noticiados também casos de tortura seguida de morte que
representaram, respectivamente, 0,5% e 0,7% do total de casos por período.
Pode-se dizer que, a despeito da lei de tortura, a polícia continua utilizando-a
como um instrumento de trabalho, na investigação de alguns crimes168.

167 A tortura foi definida pela Constituição Federal de 1988 como crime inafiançável e insuscetível de graça e anistia. O projeto de lei foi aprovado na Câmara dos
Deputados em 1996, e lei de tortura foi regulamentada em 1997 (Lei nº 9.455, de 07/04/1997), apesar de o compromisso ter sido assumido internacionalmente em
1989, na Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, ratificada pelo Brasil (Human Rights Watch,
1997).Segundo a legislação, constitui crime de tortura: " I - constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou
mental: a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa; b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa; c) em
razão de discriminação racial ou religiosa; II - submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso
sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo".

168 Lemgruber (1987), referindo-se aos casos de tortura praticada por policiais civis durante o trabalho de investigação de fatos criminais, afirma que “ao contrário
do promotor de justiça, dos juízes e de outros funcionários, o policial toma decisões legais em contexto de pouca visibilidade, o que, de resto, favorece a
arbitrariedade”. Mingardi (1996) observa que a prática da tortura está muitas vezes relacionada à corrupção dentro da instituição policial, “pois é impossível
extorquir um delinqüente sem saber o que ele fez”. Sharpe (1995) corrobora esta opinião, afirmando que a violência policial é estrutural, porque a organização
policial admite certas atitudes ilegais, como por exemplo: a fabricação de provas, a extração de confissões mediante ameaça, a produção de evidências sobre um
suspeito, entre outras. Tais atitudes são aceitas, segundo Sharpe, porque beneficiam a instituição policial, isto é, porque auxiliam a apuração criminal. Este autor
afirma ainda que é a própria estrutura hierárquica da corporação policial que coage seus membros a cometerem atos ilegais. Para Pinheiro et al. (1991), a tortura
aparenta ser uma prática clandestina que, quando se torna pública, assume caráter de denúncia, e desencadeia “medidas de averiguação, correção e prevenção”.
A tortura é cometida principalmente pelas polícias civil e federal no cumprimento de suas atribuições de polícia judiciária.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 308

3.2 Perfil dos Agentes da Violência Policial

Para qualificar o perfil dos agentes da violência policial partiu-se das


descrições apresentadas nas notícias. Para o Banco de Dados de Violência
Policial, a qualificação dos agressores ficou restrita à descrição sobre à qual
corporação eles pertencem. Em São Paulo, nos casos envolvendo policiais
militares, muitas vezes foi possível identificar o batalhão ou tropa ao qual
pertenciam. Já nos casos envolvendo agentes da polícia civil ou federal nem
sempre há informações que permitam esta identificação.

Gráfico 7: Distribuição dos agentes policiais Gráfico 8: Distribuição dos Policiais


segundo a corporação a que pertencem Militares segundo o batalhão
São Paulo, 1980-1996 São Paulo 1980-1996

100
80
80

60 60

40 40

20 20

0 0
Guarda Polícia Polícia Tático Rádio Não
Não Informa Polícia Civil Rota Outros
Metropolitan Federal Militar Móvel Patrulha Informa
Anos 80 0,9 3,3 9,5 0,1 86,1 Anos 80 21,8 16,2 14,2 5,5 42,3
Anos 90 2,7 4,9 11,4 0,1 80,9 Anos 90 15,1 3,3 4,2 9,1 68,3

Fonte: Banco de Dados da Imprensa Sobre as Graves Violações dos Direitos Humanos - NEV/USP
-Secretaria Nacional de Direitos Humanos/ MJ

Nos dois períodos analisados as ações policiais envolveram


principalmente agentes da Polícia Militar, sendo que estes correspondem a
86,1% dos casos noticiados nos anos 80 e 80,9% nos anos 90.

Dentre os casos envolvendo Policiais Militares, observa-se que a maior


parte refere-se apenas à corporação, sem informar qual o batalhão ou tropa
envolvida na ação policial. Para os casos em que há informação, os batalhões
especializados no chamado patrulhamento ostensivo, para prevenção e
repressão da criminalidade - Rota, Tático Móvel e Rádio Patrulha -, registraram
uma queda nos anos 90, o que não significa que tenham participado menos das
ações violentas da polícia, mas que a imprensa deixou de apresentar essa
informação. Dos três batalhões, a Rota é o que apresenta histórico mais violento,
sendo responsável por aproximadamente 60% das mortes em confronto (FSP,
10/08/93).
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 309

Criado em 1969, em plena vigência do regime militar para atuar na


repressão política e nos assaltos a banco, este batalhão passou a integrar o
policiamento de rua na cidade de São Paulo, identificando a criminalidade como
inimigo interno. Seus policiais, conhecidos como os boinas negras orgulham-se
de pertencer a este batalhão no qual a coragem e o heroísmo são sinônimos de
reagir para matar169.

Ainda, entre os casos que envolveram policiais militares, nos anos 80,
3,2% envolveram policiais pertencentes a outros batalhões, tais como a Tropa de
Choque, chamada a intervir na repressão a manifestações públicas ou quando
ocorrem rebeliões em cadeias e presídios. Além disso, compreendem também
alguns casos envolvendo soldados do corpo de bombeiros, da polícia rodoviária e
polícia florestal. Nos anos 90, estes casos corresponderam a 7,4% do total. Este
aumento está relacionado ao maior número de casos de repressão a
manifestações públicas e repressão a rebeliões que, neste período, representou
um crescimento de 4,7% em relação ao período anterior.

Menos freqüentes foram os casos envolvendo a Polícia Civil: foram 9,5% e


10,5% casos, para os anos 80 e 90, respectivamente. Não foi possível identificar
os departamentos a que pertenciam, dada a falta de informações. Na maior parte
destes casos, os policiais envolvidos - principalmente investigadores e delegados
de polícia - trabalhavam nos distritos policiais regionais, sendo menos freqüentes
os casos envolvendo policiais vinculados a delegacias especializadas.

A Guarda Civil Metropolitana e a Polícia Federal estiveram envolvidas em


menos de 1% dos casos dos anos 80. Para os anos 1990-96, a Polícia Federal
mantém a sua freqüência, mas a Guarda Civil Metropolitana, em especial a do
município de São Paulo, registrou uma maior participação - praticamente
triplicando o número de casos em que esteve envolvida em relação ao observado
na década anterior. Constitucionalmente, as guardas municipais têm apenas a
função de zelar pelo patrimônio público municipal, mas, no caso de São Paulo, a
lei municipal que criou a Guarda autoriza o policiamento ostensivo170. Durante a
gestão de Paulo Maluf (1992-96) foi criada a ROMU (Ronda Municipal) que
passou a realizar o patrulhamento ostensivo, aumentando o número de
ocorrências de confrontos entre os policiais desta corporação e a população.

169
No ano de 1996, das 183 mortes registradas para o estado de São Paulo, a Rota foi responsável por 46
mortes apenas na cidade de São Paulo. Nos primeiros 29 dias do ano de 1997, a unidade matou 11 pessoas
no município paulista (FSP 30/01/97).
170
Lei Municipal nº 10.272, de 06/04/1987; art.2º.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 310

Em 1995, no bairro do Itaim Paulista, zona Leste da capital, um guarda


civil metropolitano matou dois policiais militares, pois os teria confundido com
bandidos. À época, o então comandante da Polícia Militar - cel. Claudionor Lisboa
- declarou que após a criação da ROMU houve um aumento na atuação irregular
da Guarda Civil, o que levou a uma série de desentendimentos entre policiais
militares e guardas civis. Para Lisboa, "A maioria ocorreu em razão de
constrangimento ilegal a que foram submetidos policiais militares, nas horas de
folga e em trajes civis, ao serem abordados por guarnições da Guarda Civil de
forma ilícita" (O Estado de S. Paulo, 01/06/1995; C6).

Assim como para todos os outros perfis, observou-se que os casos sem
informações sobre a corporação dos policiais que participaram dos casos de
violência policial sofreram um pequeno aumento nos anos 90.

Para o último período analisado, além da identificação a respeito das


corporações policiais envolvidas nos casos noticiados pela imprensa, foi possível
também identificar o número de policiais envolvidos por caso e quantos deles
foram identificados nas notícias. O total de agressores para o estado de São
Paulo foi de 3290. Destes, 4% agiram sozinhos. Em 13,5% dos casos, havia de
dois a quatro policiais. Em relação ao número de agressores, 63,5% dos casos
não trazem a informação do número exato de policiais que participaram da ação.
Do total de agressores, apenas 11,8% foram identificados pelas notícias. Para a
violência policial cotidiana - que envolve o maior número de agressores por vítima
- a identificação dos agressores não parece ser uma preocupação da imprensa,
isto porque a ação policial parece fazer eco ou ressonância ao comportamento
regular do cidadão comum que, não raro, aceita e tolera a violência policial como
forma legítima e imperativa de conter a violência do crime. A identificação dos
agressores está mais presente naqueles casos que envolvem pessoas
consideradas "inocentes", pois há uma cobrança maior da própria sociedade em
esclarecer os fatos e punir os culpados.

As vítimas também foram qualificadas segundo as informações localizadas


nas notícias.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 311

Gráfico 9: Distribuição dos casos de Violência Policial segundo a qualificação da vítima


São Paulo, 1980-1996

60

50

40

30

20

10

0
Infrator/ Qualificado Moradores de
Suspeitos Não Informa
presidiário Profissão rua
1980 59,2 8,8 17 15
1990 40 5,4 19,4 33,4 1,8

Fonte: Banco de Dados da Imprensa Sobre as Graves Violações dos Direitos Humanos - NEV/USP -Secretaria
Nacional de Direitos Humanos/ MJ

Conforme descrito a partir do perfil da ação policial - tipo de ação, local de


ocorrência e tipo de delito - a maior parte dos casos de São Paulo refere-se a
casos de "ação cotidiana", em que policiais militares durante o policiamento
ostensivo, nas ruas, entraram em confronto com cidadãos comuns. Dentro deste
contexto, tem-se que, para os anos 80, 59,2% das vítimas foram descritas como
sendo infratoras/presidiárias, além de 8,8% em que as vítimas foram
apresentadas como suspeitas de estarem praticando algum ato delituoso. Nos
anos 90, 40% das vítimas foram descritas como infratores/presidiários/menores
internos, e em 5,4% dos casos foram apresentadas como suspeitas. Esta
qualificação muitas vezes é fornecida pelo próprio policial que participou da ação.
Sendo a vítima um "infrator" ou apresentando-se em "atitude suspeita", a ação
policial estaria assim justificada como necessária. Nota-se que, durante os anos
90, estas qualificações estiveram menos presentes na imprensa. Esta mudança
se deve, em parte, a um aumento de notícias sem informação sobre a
qualificação da vítima que, nos anos 90, registrou 33,4%, enquanto que nos anos
80, apenas em 12,7% dos casos as notícias não qualificavam as vítimas.

A polícia de São Paulo foi responsável também pelas agressões de vítimas


consideradas inocentes em 16,9% dos casos ocorridos entre 1980-89 e 19,4%
dos casos ocorridos nos 7 anos seguintes. Nestes casos, em geral, foram
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 312

classificadas aquelas vítimas que “ao contrário dos casos que se referem a
assaltos, rebeliões, atitudes suspeitas etc., são qualificadas segundo sua
ocupação profissional: operários, estudantes, trabalhadores e profissionais
liberais” (Izumino & Loche, 1995). Barcellos (1992) se surpreendeu com o
número de inocentes mortos pela Polícia Militar, segundo esse autor “a maior
parte dos civis mortos pela PM em São Paulo é constituída pelo cidadão comum
que nunca praticou um crime: o inocente”. Além disso, em geral são estas as
notícias permitem fazer a crítica à violência dos policiais, apontando contradições
nas versões que, freqüentemente, apresentam para justificar suas ações
violentas. São também os casos envolvendo vítimas consideradas inocentes
aqueles que atingem maior repercussão na imprensa.
Uma categoria que surge nos anos 90 é a dos moradores de rua (crianças
e adultos). Esta categoria representa, no geral, 1,3% das ocorrências. Apesar de
compreender um número pequeno de casos, tem sido constante ao longo dos
sete anos analisados, o que sugere que este fenômeno surge com o
agravamento da exclusão social.

Em São Paulo, os casos registrados dizem respeito, sobretudo, a um


projeto de “limpeza” da Praça da Sé, na área central da cidade, onde vivem
muitas crianças em situação de rua. Neste projeto, a Polícia Militar foi
encarregada de retirar as crianças da praça e levá-las a órgãos de proteção,
como o SOS Criança. Não raro, a polícia agia com violência, agredindo as
crianças que se recusavam a acompanhá-las. As arbitrariedades policiais eram
denunciadas às autoridades por entidades de defesa dos direitos da criança e
adolescente e, por isso, chegaram aos meios de comunicação.

Nos anos 90, as ações policiais em São Paulo vitimaram 2587 pessoas,
sendo que em 59,7% dos casos apenas uma pessoa esteve envolvida. As ações
envolvendo de duas a cinco vítimas somaram 35% dos casos. As notícias
apresentaram a identificação de 34,9% do número total de vítimas. Observa-se,
com relação a esta variável, o oposto do que foi apresentado para os agressores.
Enquanto, entre as vítimas, apenas 31,8% dos casos não trazia nenhuma
identificação, para agressores essa porcentagem foi de 73,2%.

Com relação ao número de vítimas fatais, nos 817 casos analisados em 7


anos foram registradas 970 vítimas fatais, que corresponde a 37,5% do total de
vítimas. Vale ressaltar que 111 destas vítimas fatais, ou seja, 11,4%, morreram
em uma única ação policial durante a rebelião do Carandiru, em 1992.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 313

Além da identidade das vítimas e agressores, procurou-se verificar, nos


casos de violência policial, se estes provocaram reações da sociedade, seja
protestando, denunciando ou apoiando a ação policial.

Gráficos 10 e 11: Distribuição dos casos de Violência Policial segundo o tipo de


manifestação da sociedade
São Paulo, 1980-1996

100
100
80
80
60
60
40
40
20
20
0
0 apoio à violação contra a violação
Sim Não 1980 1,5 98,5
1980 9,8 90,2 1990 2,4 97,6
1990 15,6 84,4

Fonte: Banco de Dados da Imprensa Sobre as Graves Violações dos Direitos Humanos - NEV/USP -Secretaria
Nacional de Direitos Humanos/ MJ

No Gráfico acima pode-se notar que, durante os 17 anos observados, as


ações policiais em São Paulo provocaram poucas reações de familiares e amigos
ou da sociedade civil organizada, mas apresentaram uma tendência crescente a
partir de 1990. Em 90,2% dos casos registrados nos anos 80 não houve registro
de qualquer manifestação, enquanto que nos anos 90 este percentual ficou em
torno de 84,8% do total de casos registrados em São Paulo.

Dentre os casos em que houve manifestação contra a violência policial, a


denúncia dirigida aos órgãos públicos - realizada por parentes e amigos e, em
alguns casos, pela própria comunidade onde residia a vítima - é a mais freqüente
forma de atuação da sociedade frente à violência policial. Observou-se também o
acompanhamento - por entidades de defesa de direitos humanos - dos trabalhos
de investigação policial. Nos dois períodos, o apoio à violação foi pouco noticiado
nos casos de violência policial, o que sugere que a sociedade, de forma geral,
reage contra as ações violentas da polícia.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 314

Gráfico 12 : Distribuição dos casos de Violência Policial por identidade do manifestante


São Paulo,
1990-1996
4,5
5

27,4 9,5

19,6
6,7

15,6 6,1
1,1 4,5

Amigos Comunidade Ent.defesa direitos humanos


Familiares Igreja Órgãos Públicos
Outros Sociedade Civil Organizada Testemunhas
Vítimas

Fonte: Banco de Dados da Imprensa Sobre as Graves Violações dos Direitos Humanos - NEV/USP -Secretaria
Nacional de Direitos Humanos/ MJ

Nos anos 90, no perfil dos agentes que se manifestaram nos casos de
violência policial, considerou-se também sua qualificação. Além das vítimas que
registraram seus protestos em 27,4% dos casos, destaca-se a participação dos
familiares (19,6%). A sociedade civil organizada registrou a sua participação em
15,6% casos. Nesta última categoria, agrupam-se sindicatos, associações
comerciais, associações de classe, tais como a OAB, entre outras. As entidades
de defesa de direitos humanos171 foram responsáveis por 9,5% das
manifestações

Gráfico 13: Distribuição dos casos de Violência Policial por manifestação segundo o tipo
de ação policial
6,3
São Paulo 5,5
1990-1996 29,9
8,7

6,3

43,3

Ação cotidiana Ação contra inocentes Fora de serviço


Não Informa Repressão a manifestações Repressão a rebeliões

Fonte: Banco de Dados da Imprensa Sobre as Graves Violações dos Direitos Humanos - NEV/USP
-Secretaria Nacional de Direitos Humanos/ MJ

171
Para a análise, as entidades de defesa de direitos humanos não foram consideradas como sociedade civil
organizada porque defendem exclusivamente causas relacionadas às violações de direitos humanos,
enquanto que a segunda compreende associações que defendem também com outras causas.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 315

O gráfico acima apresenta o tipo de ação que desencadeou a participação


de outros agentes. Podemos observar que, no estado de São Paulo, as AÇÕES
CONTRA INOCENTES foram as que mais motivaram a participação de outros atores,
registrando 43% dos casos. Para as AÇÕES COTIDIANAS houve a participação de
outros agentes em 29,7% dos casos, em geral denunciando a ação policial.
Nesta categoria, foram registrados 2 casos, de um total de 3, em apoio à
violação. O terceiro caso de apoio à violação foi o "Massacre do Carandiru", que
registrou todo tipo de manifestação e também a participação dos mais variados
setores da sociedade.

3.3.Perfil da Atuação do Poder Público


Quanto à atuação do Poder Público, na apuração das responsabilidades
criminais nos casos de violência policial no estado de São Paulo, tem-se que a
maior parte das providências noticiadas pela imprensa referiram-se aos
procedimentos adotados na esfera policial que correspondem a 66% dos casos
nos anos 80 e 32,2% nos anos 90.

Gráfico 14: Distribuição dos casos de Violência Policial segundo a atuação do Poder
Público - São Paulo, 1980-1996
F
onte: 70
Banco de
Dados da 60
Imprensa
Sobre as 50
Graves
40
Violações
dos 30
Direitos
Humanos - 20
NEV/USP
-Secretaria 10
Nacional
0
de Direitos Esfera Policial Esfera Judicial Outras Medidas Não Informa
Humanos/
MJ 1980 66 2 3,1 28,9
1990 32,2 1,5 4,1 62,2

S
obre as medidas tomadas na esfera policial, há mais informações sobre: registros
de boletins de ocorrência (25,8% nos anos 80, e 13,7% nos anos 90); e
instauração de inquérito policial (27,2% nos anos 80, e 7,8% nos anos 90).

Para os casos noticiados nos anos 80, destacam-se ainda os inquéritos


policiais instaurados para apurar a responsabilidade das vítimas da ação policial
(10,8% dos casos), que são apresentadas às delegacias como infratores. Nestes
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 316

casos, ao comunicar a ocorrência à delegacia de polícia, os policiais militares


apresentavam-se como vítimas de resistência. Segundo essa versão dos fatos,
utilizada para a instrução do inquérito policial, após surpreenderem os infratores
durante a prática de um assalto, estes colocaram-se em fuga, atirando contra os
policiais. No revide, os policiais acabavam matando os assaltantes, além de
sofrerem ferimentos leves ou escoriações. Ao registrar a ocorrência, os
delegados de polícia aceitavam a versão dos policias militares, indiciando os
supostos assaltantes e apresentando os policiais militares como vítimas na
ocorrência. Para a perícia eram apreendidas apenas as armas apresentadas
pelos policiais como sendo pertencentes aos acusados de serem assaltantes.
Apesar de se realizar um inquérito policial para apurar os fatos, o caso acabava
sendo arquivado uma vez que normalmente estes casos não apresentam
testemunhas além dos outros policiais da patrulha, além do que o principal
indiciado já se encontrava morto.

Outra característica deste tipo de ação policial, além da inversão de papéis


relativamente às vítimas, diz respeito à destruição da cena do crime. Com
freqüência, os policiais retiravam o corpo da vítima do local onde ocorrera o
confronto, transportando-a, ainda que morta, para o hospital. Desta forma, ficava
impossível periciar o local do crime, e a versão que prevalecia era aquela
fornecida pelos policiais envolvidos. Todas essas características da ação da
Polícia Militar do Estado de São Paulo foram denunciadas no já mencionado livro
de Caco Barcellos (1993). Antes disso, porém, em alguns casos envolvendo
inocentes, as entidades de defesa dos direitos humanos já começavam a
denunciar essas irregularidades na ação policial.

Por fim, a presença de mais informações sobre as providências adotadas


na esfera policial pode ser explicada por dois fatores: de um lado, pode-se dizer
que estas providências - registro de boletim de ocorrência, instauração de
inquéritos policiais - são obrigatórias, e cabe à polícia civil registrar todo
homicídio que lhe é comunicado, seja de autoria conhecida ou não.

De outro lado, estas informações foram obtidas principalmente através do


jornal Notícias Populares, que tem como principal fonte de informações, para seu
noticiário policial, a própria polícia que fornece detalhes do caso aos jornalistas.
Este jornal publica os nomes de delegados, investigadores e escrivão
responsáveis pelo registro das ocorrências, e também os nomes e patentes dos
policiais militares envolvidos nos confrontos, bem como o número das viaturas, o
que parece sugerir uma retribuição pelas informações fornecidas.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 317

Quanto ao andamento dos casos na esfera judicial, as informações estão


disponíveis em apenas 2% dos casos nos anos 80, reduzindo-se para 1,5% nos
anos 90. Nos dois períodos, na maior parte das vezes, a informação versava
sobre o oferecimento da denúncia pelo Ministério Público.

Esta diferença entre as informações disponíveis sobre as fases policial e


judicial pode ser explicada pelo fato de que a imprensa, em geral, noticia um
crime logo após a sua ocorrência, ainda no calor dos acontecimentos,
provocando uma certa pressão para obter informações da polícia. Quanto ao
andamento na fase judicial, dada a morosidade que caracteriza a justiça
brasileira, na qual providências como julgamentos ocorrem, em média, dois anos
após a ocorrência do crime, a imprensa só tem interesse em continuar
acompanhando e divulgando aqueles casos em que o crime alcançou grande
impacto sobre os leitores, pois este fato que acaba se refletindo também sobre a
venda dos jornais.

Além das providências nos âmbitos policial e judicial, em 3% dos casos


nos anos 80 havia informações sobre as medidas administrativas, enquanto que
nos anos 90 estas informações estiveram presentes em 4,1% dos casos. Nos
dois períodos, a maior parte falava sobre a instauração de sindicâncias para
apurar se os policiais deveriam ser punidos com sanções administrativas como
afastamentos e exonerações, o que ocorreu efetivamente em 0,5% dos casos
nos anos 80 e 1,8% no período seguinte. Houve também em 0,6% e 0,2% dos
casos, respectivamente, a informação sobre a expulsão de policiais militares
Com a exclusão do jornal Notícias Populares do Banco de Dados sobre
Violência Policial, nos anos 90, nota-se um aumento do número de casos sem
informações sobre os procedimentos adotados pelo Poder Público, em especial,
na esfera policial (note-se que as taxas praticamente se invertem nestes dois
períodos). A pouca informação sobre o acompanhamento judicial do caso não
significa que o poder público esteja omisso, mas apenas que os jornais não
privilegiam este tipo de informação.

3.4. Considerações Gerais Sobre o Perfil da Violência Policial em São Paulo


Comparando-se os dois períodos analisados, o mais importante a se
destacar em relação à violência policial no estado de São Paulo é a crescente
falta de informações na imprensa a respeito do contexto em que se desenrolou
esta ação, quem são os agentes que dela participaram e, sobretudo, qual a
natureza das medidas adotadas para a apuração das responsabilidades penais.
Ao longo dos 17 anos analisados, a ação policial em São Paulo concentrou-se
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 318

em bairros pobres das zonas Leste e Sul do município de São Paulo. Na Grande
São Paulo, as maiores freqüências foram registradas nos municípios de Osasco,
Guarulhos, Carapicuíba e nos municípios de São Bernando do Campo, Santo
André e Diadema, localizados na região do ABCD.

Foram, na maior parte dos casos, confrontos entre policiais militares e


infratores, que ocorreram em locais públicos e que resultaram na morte das
vítimas. Entre os policiais militares, destacaram-se as ações envolvendo policiais
da Rota, responsáveis por 17,3% das ocorrências. A Polícia Civil esteve
envolvida em 10,2% do total de casos, principalmente em casos de tortura
ocorridos dentro de delegacias. Destaca-se em relação a estes casos, nos anos
90, menor participação dos agentes da Polícia Civil, enquanto que se verificou
um aumento nos casos de tortura, o que pode ser explicado por um aumento no
número de policiais militares envolvidos nestas ocorrências.

Em 53,9% do total de casos não houve qualquer tipo de manifestação, de


apoio ou repúdio à violação. Nos casos em que houve manifestação, a maior
parte consistiu na denúncia do crime por familiares e amigos da vítima que
pressionaram os órgãos públicos para a identificação dos agressores e a
apuração de responsabilidades penais.

Quanto à atuação do Sistema Judicial, observou-se, nos anos 90, maior porcentagem de casos
sem informações a respeito das medidas que foram adotadas nas esferas policial e judicial no
sentido de punir os agressores. Nestes casos, a falta de informações reforça, de um lado, a
percepção de que vigora a impunidade para os agentes que cometem a violação dos direitos
humanos; e, de outro, reforça-se a percepção segundo a qual prevalece, nestas circunstâncias, a
negligência das autoridades responsáveis por investigar e sancionar os agentes institucionais
envolvidos nestas práticas violentas (Zambrano, 1995). Deste modo, estas percepções
contribuem para aumentar também o descrédito na justiça e o sentimento de insegurança e medo
entre todas as camadas da população.

Apesar da falta de informações sobre a atuação do poder público em casos de violência policial,
no estado de São Paulo algumas medidas têm sido tomadas pelas autoridades públicas para
coibir essa violência.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 319

Gráfico 15 : Distribuição dos números oficiais e os números da imprensa sobre a violência


policial
São Paulo, 1980-1996

1800

1600

1400

1200

1000

800

600

400

200

0
1980 1981 1982 1983 1984 1985 1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996
nº oficiais de confrontos - - 360 437 671 876 596 452 363 667 836 1140 1787 - 783 551 412
nº casos da imprensa 126 291 124 99 373 296 172 169 198 188 117 366 98 63 49 48 76

Fontes: Polícia Militar do Estado de São Paulo; Secretaria de Segurança Pública do Estado de São
Paulo; Jornal O Globo (06/04/1997). Banco de Dados da Imprensa Sobre as Graves
Violações dos Direitos Humanos - NEV/USP -Secretaria Nacional de Direitos Humanos/ MJ.
(Obs: Não há dados oficiais disponíveis para os anos anteriores a 1982 e para o ano de
1993).

Durante os anos 80, o governo do estado de São Paulo revelou


basicamente duas posturas frente à violência policial: uma de apoio às ações
"enérgicas" da polícia, o que acabava estimulando a violência; e a outra voltada
para a defesa dos direitos humanos, não tolerando as arbitrariedades policiais.

No período de 1983-1986, o governador Franco Montoro fez algumas


reformas nas Polícias do estado de São Paulo. Em relação à Polícia Militar, maior
responsável pelas ocorrências com mortes, o principal alvo das reformas foi a
Rota, que deveria ser extinta pelos planos de governo. A mudança não se
concretizou, mas foram estabelecidos "mecanismos de verificação de tiroteios"
(Pinheiro et al., 1991), além do afastamento dos policiais envolvidos em
homicídios.

O conjunto dessas medidas não logrou reduzir o número de mortes em


confrontos, conforme pode ser observado no gráfico acima, pois encontrou
resistência dentro da própria corporação policial. Segundo Pinheiro et al. (1991),
"apesar da pressão tanto do governo quanto de entidades de direitos humanos, e
mesmo do empenho dos comandos da polícia em conter os abusos, os números
são eloqüentes quanto à extensão e profundidade do comportamento violento da
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 320

polícia. Parece persistir na corporação a certeza de que a morte de supostos


criminosos é legítima e traz algum benefício em termos de contenção do crime".

Ao longo dos 17 anos analisados, notou-se que a violência policial atinge


seu ápice no anos de 1991 e 1992, segundo os dados oficiais, registrando mais
de mil mortes de cidadãos por policiais militares. Em 1992, em apenas uma ação
policial, 111 presos foram obrigados a se despir e depois foram mortos
violentamente por policiais da Rota e da Tropa de Choque da Polícia Militar, após
suposta rebelião na Casa de Detenção de São Paulo. Esse caso provocou forte
impacto nos meios de comunicação, dentro e fora do país. A pressão da
sociedade brasileira e também de organismos nacionais e internacionais de
defesa de direitos humanos fizeram com que as autoridades tomassem alguma
medida para coibir as arbitrariedades policiais.

Após o Massacre do Carandiru, o então governador de São Paulo, Luiz


Antônio Fleury Filho - um procurador de justiça, ex-oficial da Polícia Militar, que
sempre apoiou as "ações enérgicas" da polícia -, implementa na Polícia Militar
um curso de reabilitação para policiais envolvidos em tiroteios com morte, no qual
participaram alguns policiais envolvidos no caso do Carandiru. No ano seguinte, o
curso foi ampliado para os policiais da Rota, que recebiam aulas de religião e
psicologia. Segundo o comando da Polícia Militar, o objetivo do curso é reabilitar
os policiais e colocá-los de volta às ruas melhor preparados.

Dados oficiais publicados na imprensa revelam uma diminuição de 80% no


número de mortes provocadas pela Rota, e as autoridades atribuem tal mudança
ao curso de reabilitação, que ficou conhecido como "Rota Light". Ainda, segundo
os dados publicados na imprensa, a criminalidade neste ano de 1993 não acusou
nenhum aumento ou queda significativos, revelando - na opinião de entidades de
defesa dos direitos humanos - o quanto a polícia mata desnecessariamente.

Em 1995, dando continuidade aos programas de reabilitação profissional


adotados pelo governo anterior, o secretário de Segurança Pública implementou
o Programa de Assistência a Policiais Militares envolvidos em Ocorrências de
Alto Risco (PROAR), que afastaria por seis meses do policiamento ostensivo
todos os policiais envolvidos em ocorrências com mortes, exceto policiais da Rota
e do Policiamento de Choque. Segundo o comando da Polícia Militar, o objetivo
do programa é "fazer o policial militar atuar mais com razão e menos com
emoção, pois a meta da polícia não é matar, mas prender"(FSP 05/03/97).

Estas são as medidas que vêm sendo tomadas ao longo destes 17 anos
para coibir as arbitrariedades praticadas por policiais. Ainda que não tenham
logrado resultados eficazes, revelam o esforço das autoridades introduzir
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 321

mudanças nas práticas policiais com vistas às exigências do Estado democrático


de Direito.

4. A VIOLÊNCIA POLICIAL NO RIO DE JANEIRO


Nos anos 80, para o estado do Rio de Janeiro foram noticiados 196 casos
de violência policial, o que representa 7,5% do total de casos para o Brasil neste
período. Nos anos 90, foram 478 casos, passando a representar 30,5% do total
de casos para o Brasil. Este aumento explica-se, em parte, pelo
acompanhamento diário do Jornal do Brasil para os anos 90. Outro fator seria o
aumento da violência policial no estado, seja pela ocupação dos morros cariocas
por forças militares (exército e polícia) ou pela criação, em novembro de 1995, da
"gratificação faroeste", um prêmio oferecido pela Polícia Militar aos policiais que
cometem "atos de bravura", tais como: localização e invasão de cativeiros;
resgate da vítima e prisão do seqüestrador; prisão de traficantes durante ações
policiais em favelas; e reações a assaltos. Segundo dados oficiais apresentados
nas notícias, o número de mortes subiu bastante "desde que a Secretaria de
Segurança adotou a política do confronto, pela qual violência se combate com
violência" (JB, 3/10/96).

O aumento do número de mortes provocadas pela polícia, após a


instauração do programa de gratificações, foi retratado na imprensa, como pode
ser observado no gráfico abaixo.

Gráfico 16: Distribuição dos casos de Violência Policial no Rio de Janeiro


Rio de Janeiro, 1980-1996

100

80

60

40

20

0
1980 1981 1982 1983 1984 1985 1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996
Casos da Imprensa 13 32 52 19 9 10 6 25 9 21 32 58 64 73 62 91 98

Fonte: Banco de Dados da Imprensa Sobre as Graves Violações dos Direitos Humanos - NEV/USP
-Secretaria Nacional de Direitos Humanos/ MJ.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 322

Os anos com maior número de casos foram 1982 (26,5%) 1995 (19%) e
1996 (20,5%). Assim como no estado de São Paulo, o governo do Rio de Janeiro
sempre atuou de duas formas frente às ações violentas da polícia: apoiando ou
coibindo as suas ações.

Nos anos 80, estas duas políticas se alternaram, mas o pico da violência
policial ocorre em 1982, quando o estado era governado por Chagas Freitas,
governador biônico, que assim como seu contemporâneo em São Paulo - Paulo
Maluf - apoiava o uso da força ainda que excessiva pelas polícias.

Com as eleições diretas para os governos estaduais, foi eleito, no Rio de


Janeiro, Leonel Brizola (1982-1985). Bastante preocupado com as
arbitrariedades policiais e comprometido com a defesa dos direitos humanos, o
governador introduziu algumas reformas na polícia de seu estado. Além de proibir
que policiais invadissem barracos nas favelas cariocas, criou um conselho de
Justiça, Direitos Humanos e Segurança, com expressiva representação
comunitária. Ao final de seu mandato, o conselho foi abolido, porque a polícia
considerava que seus trabalhos estavam sendo obstruídos. Nota-se, pelo Gráfico
acima, que o número de casos de violência policial noticiados pela imprensa
entre 1982-85 diminui cerca de 50% em relação ao governo anterior.

O segundo mandato do governador Brizola (1991-1994) foi marcado por


um progressivo aumento da violência policial, apesar de todos os programas
adotados para conter a violência dos agentes da polícia, tal como a criação de
um órgão especial na Polícia Civil para investigar denúncias de tortura e abuso
de autoridade. No final de seu mandato, os governos estadual e federal
"concordaram em trazer as tropas das Forças Armadas para ajudar a polícia
estadual" (Human Rights Watch, 1997). O acordo visava acabar com o
narcotráfico no Rio de Janeiro, mas foi marcado por "torturas, detenções
arbitrárias, buscas sem mandado e, pelo menos num caso, por usos
desnecessário de força letal" (idem).

Bastante diferente do que ocorre atualmente em São Paulo, o governo


Marcelo Allencar tem incentivado, através das políticas adotadas para valorizar o
trabalho policial, as arbitrariedades dos agentes policiais, isto porque foram
instituídas, neste estado, as gratificações e promoções por "atos de bravura".
Segundo a Human Rights Watch, a bravura passou a ser confundida com a
execução de suspeitos, aumentando o número de mortes provocadas pela
polícia.

Gráfico 17: Distribuição dos casos de Violência Policial no Rio de Janeiro segundo
a região - Rio de Janeiro, 1990-1996
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 323

83,9
90
80
70
60
50
40
30
20 7,9
3,6 0,8 3,6
10
0
1990
Município Grande Rio de Janeiro Interior Litoral Não Informa

Fonte: Banco de Dados sobre as Graves Violações de Direitos Humanos - NEV/USP - Secretaria
Nacional de Direitos Humanos/MJ

A maioria dos casos de violência policial noticiados nos anos 90 ocorreu


no município do Rio de Janeiro (83,9%). Os casos ocorridos na Região
Metropolitana do Grande Rio de Janeiro correspondem a 7,9% do total, sendo
que dentre os municípios, em Duque de Caxias ocorreram 3,3% dos casos.

Além desses casos, 3,6% ocorreram em municípios do interior do estado e para 3,8% não foi
possível obter informações sobre a região.

4.1 Perfil da violência policial no Rio de Janeiro

A ação policial neste estado apresenta características próprias, que


distingue este recorte dos outros realizados. A primeira característica que se
pode destacar é a dificuldade em diferenciar, entre os casos, aqueles que
envolvem policiais no exercício de suas funções legais daqueles em que os
policiais atuam como membros de grupos de extermínio ou ligados a grupos de
traficantes e jogo do bicho.

Para o Rio de Janeiro encontrou-se uma caracterização diferente dos


casos. Ainda que as categorias utilizadas para sua classificação tenham sido as
mesmas utilizadas para o resto dos casos do Banco de Dados de Violência
Policial, qualitativamente as ocorrências são diferentes. Por exemplo, enquanto
em São Paulo a ação cotidiana refere-se majoritariamente à ação de policiais
militares durante o patrulhamento ostensivo, nas ruas, para reprimir a
criminalidade (principalmente os crimes contra o patrimônio), no Rio de Janeiro
os casos ocorrem sobretudo nos morros cariocas naquelas ocasiões em que a
polícia sobe para supostamente combater o tráfico de drogas. Nos morros, a
polícia acaba por cometer uma série de arbitrariedades como: a invasão de
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 324

residências sem mandado de prisão ou de busca, ou, ainda, a prisão arbitrária de


pessoas que consideram suspeitas de envolvimento com o tráfico. São raros os
casos de violência policial no combate à criminalidade, nos moldes de São Paulo,
mas são freqüentes os casos de combate ao tráfico de drogas. Estes são os que
mais chamam a atenção da imprensa, tanto da imprensa local como aquela de
circulação nacional, dando à violência policial características que a tornam
diferente das ações violentas envolvendo policiais que ocorrem em outros
estados brasileiros.

Outra característica deste estado pode ser atribuída a um viés da


imprensa. Na cidade do Rio de Janeiro localiza-se a sede do Jornal do Brasil, que
foi utilizado nos 17 anos da pesquisa, e do jornal O Globo, que foi utilizado para
os anos 80. Principalmente pelo uso destes jornais, era de se esperar que a
cobertura jornalística para aquele estado estivesse mais próxima daquela
encontrada para São Paulo, onde são noticiados desde casos em que houve a
intervenção policial durante um assalto, até casos em que a ação da polícia foi
excepcional - seja pelo excesso de violência empregada, ou pelo número de
pessoas e armamentos empregados; mas ao contrário, o que se observou é que
mesmo a imprensa local noticia apenas os casos mais extraordinários.

Outra característica importante para este estado é a mudança que ocorreu


no perfil da violência policial - quando se comparam os períodos da pesquisa -
principalmente com relação ao tipo de ação policial

Gráfico 18: Distribuição da Violência Policial no Rio de Janeiro por Tipo de Ação Policial
Rio de Janeiro, 1980-1996

70

60

50

40

30

20

10

0
Ação contra
Ação Cotidiana Fora de Serviço Repressão... Não Informa
Inocentes
1990 42,3 33,7 7,1 3,6 13,3
1980 66,3 17,8 3,3 5,7 6,9

Fonte: Banco de Dados sobre as Graves Violações de Direitos Humanos - NEV/USP - Secretaria
Nacional de Direitos Humanos/MJ
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 325

Entre os anos de 1980 e 1989, 42,3% dos casos de violência policial


noticiados pela imprensa foram classificados como ação cotidiana, e 33,7% como
sendo de ação contra inocentes. Houve também, neste período, 7,1% dos casos
envolvendo policiais fora de serviço.

Nos anos 90 as ações cotidianas passaram a registrar o maior número de


ocorrências 66,3% deste estado. Este aumento explica-se pelas incursões
policiais nos morros cariocas, que resultaram em confrontos com traficantes. As
ações contra inocentes, que nos anos 80 representavam 1/3 do total de casos,
caíram para 17,7%

Os casos de policiais fora de serviço, que nos anos 80 registraram 7,1%


dos casos, passaram a ter uma freqüência inferior a 4%. Esta diferença nos
números para os dois períodos pode ser explicada, em parte, pela reformulação
dos critérios do Banco de Dados de Violência Policial para os anos 90, quando
todos os casos em que não há condições de definir se o policial agiu - ainda que
fora de serviço - no cumprimento de suas funções, ou se ele agiu como membro
de um grupo de extermínio, foram agrupados no Banco de Dados de Execuções
Sumárias.

Outra característica importante nos anos 90, e que também diferencia as


ações policiais nos anos 90 com relação ao período anterior, são os motivos
desencadeadores.

Gráfico 19: Distribuição da Violência Policial no Rio de Janeiro segundo o Motivo


Desencadeador - Rio de Janeiro, 1990-1996

1,5 6,9
14,2 1

13
11,7

13,2 20,1

14 4,2

atitude suspeita c. c. a liberdade individual crimes contra a vida


c. c. o patrimônio drogas manifestações públicas
não informa outros por engano
reação/resistência

Fonte: Banco de Dados sobre as Graves Violações de Direitos Humanos - NEV/USP - Secretaria
Nacional de Direitos Humanos/MJ
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 326

Os crimes cometidos pela polícia carioca foram motivados, sobretudo, pelo


consumo e/ou tráfico de drogas com 20,1% total de casos classificados nesta
categoria.

Os crimes contra patrimônio, no Rio de Janeiro motivaram apenas 13% do


total de casos. O motivo por engano, responsável por 11,7% dos casos apresenta
uma freqüência alta quando comparado aos crimes contra a vida (1%).
Enquadram-se neste motivo aqueles casos de balas perdidas durante tiroteios
entre traficantes e policiais. Foram registrados também 14,2% de
reação/resistência.

O segundo indicador que compõe a descrição do perfil das ações policiais


é o local onde elas ocorreram. Nos anos 80, 45,9% dos casos ocorreram em
locais públicos, enquanto que 26,5% ocorreram em delegacias e presídios. A
categoria outros também apresentou um elevado número de casos: 34 casos
(17,3%). Este número explica-se pela inclusão nesta categoria de casos
ocorridos em quartéis (12 casos).

Diferente do que ocorreu em São Paulo, durante os anos 80 no Rio de


Janeiro era comum ocorrerem casos em favelas (10,2%), já caracterizando a
violência policial neste estado. Nos anos 90, esses números cresceram mais
ainda, atingindo 40% dos casos noticiados para o Rio de Janeiro. Esta freqüência
de ocorrências em favelas se deve, basicamente, ao grande número de incursões
feitas pela polícia nos morros cariocas, visando o combate ao tráfico de drogas.
Em geral, nestas ações, há confrontos entre polícia e traficantes que sempre
resultam em mortes, inclusive de pessoas inocentes.

Os casos ocorridos em locais públicos apresentaram uma queda nos anos


90, representando 34,7% do total de casos. Em relação aos casos de violência
policial em delegacias, no Rio de Janeiro há poucos registros, e sua distribuição é
bem equilibrada ao longo dos anos 90. Este número foi bastante superior durante
os anos 80, e pode ser explicado por dois fatores: 1) no início dos anos 80, os
organismos de repressão política ainda funcionavam, inclusive investigando
crimes comuns; e 2) com o fenômeno do narcotráfico aumentam os confrontos
entre policiais e traficantes nos morros - o que explica a migração dos casos
ocorridos em instituições fechadas para as ruas.

Para cerca de 10% dos casos não foi possível obter informações que
permitissem definir o local de ocorrência, e 9,8% dos casos noticiados ocorreram
em outros locais, tais como bares e residências.

O terceiro indicador do perfil da ação policial refere-se ao tipo de ação


delituosa cometida pelos policiais.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 327

Gráfico 20: Distribuição dos casos de Violência Policial no Rio de Janeiro segundo
o Delito
Rio de Janeiro, 1980-1996

80
70
60
50
40
30
20
10
0
Homicídio/ Lesões Tortura seg.de
Outros Tortura
Tentativa Corporais morte
1980 59,7 23,5 5,6 8,2 3,1
1990 70,3 20,9 4,6 3,1 1

Fonte: Banco de Dados sobre as Graves Violações de Direitos Humanos - NEV/USP - Secretaria
Nacional de Direitos Humanos/MJ

Nos dois períodos, a maior parte dos casos noticiados resultou em


homicídios tentados e consumados. Comparando-se os dois períodos, houve um
crescimento de 6,9% entre os casos de homicídio: nos anos 80, representavam
59,7% e passaram a representar 66,3% dos casos nos anos 90. Além dos
homicídios, nos anos 80, 23,5% dos casos resultaram em lesões corporais
dolosas, 8,2% em torturas e 3,1% em torturas seguidas de morte.

Nos anos 90, lesões corporais ocorreram em 20,9% do total de casos


enquanto os casos de tortura e tortura seguida de morte representam, ao todo,
4% da violência policial no Rio de Janeiro

Diferente do que ocorreu no estado de São Paulo - onde houve um


aumento dos casos de lesões corporais -, no Rio de Janeiro houve um aumento
do número de homicídios (tentados e consumados), principalmente nos anos de
1995 e 1996, ou seja, logo após ser implementado o programa de promoções e
gratificações por atos de bravura172.

4.2 Perfil dos Agentes da Violência Policial


A qualificação dos agentes da violência policial para o Rio de Janeiro levou
em conta as informações disponíveis nas notícias. Estes agentes foram
qualificados como vítimas ou agressores nas ações policiais. Quanto aos
agressores, para este estado, a qualificação dos agentes da polícia ficou restrita
172
Para o estado do Rio de Janeiro, nos anos 90 foram noticiados pela imprensa 317 casos de homicídio
(tentados e consumados), dos quais 129 ocorreram nos anos de 1995 e 1996.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 328

à descrição da corporação a qual pertencem, sem que tenha sido possível, como
ocorreu em São Paulo com relação à Polícia Militar, identificar o batalhão ou
tropa em que atuam.

Gráfico 21: Distribuição dos casos de Violência Policial no Rio de Janeiro segundo
o Agressor
Rio de Janeiro, 1980-1996

70

60

50

40

30

20

10

0
Guarda
Polícia Civil Polícia Federal Polícia Militar Não Informa
Metropolitano
1980 0,5 21,8 2,9 68,9 5,8
1990 2,1 23,7 3,1 64,3 6,9

Fonte: Banco de Dados sobre as Graves Violações de Direitos Humanos - NEV/USP - Secretaria
Nacional de Direitos Humanos/MJ

Segundo os dados da imprensa, no Rio de Janeiro, a maior parte dos


casos envolveu policiais militares: 68,9% e 64,3% dos casos, respectivamente,
para os anos 80 e 90. Diferente do que ocorre em São Paulo - onde a
participação de policiais civis está em torno de 10% dos casos e seu
envolvimento é, em geral, com tortura -, no Rio de Janeiro estes agentes policiais
são responsáveis por mais de 20% dos casos de violência policial noticiados, e o
seu envolvimento não é predominantemente com casos de tortura, mas se
destaca também a sua participação nas "batidas" policiais nos morros cariocas
para o combate do narcotráfico.

É interessante notar que há, nos anos 90, uma maior participação de
agentes da Polícia Federal e da Guarda Civil Metropolitana nas ações violentas
da polícia, compensando a queda registrada na participação de policiais militares.
Quanto aos casos sem informação do tipo de polícia envolvida nas ações
violentas, verificou-se um aumento no número de casos.

Para os anos 90, em 60% dos casos não há informação do número exato
de policias que participaram da ação. Nos outros 40%, observou-se o
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 329

envolvimento de 5078 policiais. Em 12,6% dos casos os policiais agiram sozinhos


e em 11,3% havia de dois a quatro policiais.

Há em 2,3% dos casos no Rio de Janeiro a participação de mais de 100


agressores. Estes casos ocorreram, na maior parte das vezes, nos morros
cariocas, durante batidas policiais para apreensão de drogas e prisão de
traficantes. São grandes ações que por envolverem muitos policiais despertam a
atenção da imprensa, que apresenta bastantes detalhes sobre as operações.

Em apenas 20,9% dos casos, os agressores foram identificados, o que


representa 3,7% do total de agressores.
Gráfico 22: Distribuição dos Casos de Violência Policial no Rio de Janeiro por
Vítimas
Rio de Janeiro, 1980-1996

60

50

40

30

20

10

0
Infratores/ Qualificados pela
Suspeitos Não Informa Moradores de rua
presidiários Profissão
1980 31,6 8,7 39,3 20,4
1990 50,5 7 22,8 19,5 0,2

Fonte: Banco de Dados sobre as Graves Violações de Direitos Humanos - NEV/USP - Secretaria
Nacional de Direitos Humanos/MJ

Além do tipo de ação policial, é com relação ao perfil das vítimas que a
violência policial no Rio de Janeiro apresenta suas principais características.
Neste estado, nos anos 80, cerca de 40% dos casos envolveram vítimas -
inocentes enquanto que em 31,6% dos casos as vítimas foram qualificadas como
infratores/presidiários. O que se deve destacar é a inversão que ocorre entre
estas duas categorias, que se adequa à mudança ocorrida no contexto da ação
policial no Rio de Janeiro, que passa a ser o confronto no morro e que atrai mais
a atenção da imprensa nos anos 90.

Neste último período, em aproximadamente metade dos casos as vítimas


foram descritas como sendo infratoras/presidiárias, enquanto que entre aquelas
que foram qualificadas por sua profissão o percentual caiu para 22,8% dos casos.
Nos 17 anos, estas pessoas são tratadas, pela imprensa e até mesmo pela
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 330

sociedade, como inocentes que foram vítimas de arbitrariedades policiais. Este


percentual inclui os casos de vítimas de "balas perdidas", durante confronto entre
policiais e traficantes nas favelas do Rio de Janeiro. Nestes casos, amigos,
moradores e familiares denunciam a agressividade da polícia, que sempre se
defende alegando legítima defesa.

Para os casos envolvendo suspeitos e aqueles em que não há


informações que permitam qualificar a vítima, foi pequena a variação observada,
apresentando uma redução nos anos 90.

A violência policial no Rio de Janeiro, nos anos 90, envolveu 1169 vítimas,
das quais 50,6% foram fatais. Em 49,8% dos casos ocorridos neste estado
apenas uma pessoa foi vítima da violência policial. Ações da polícia envolvendo
de duas a cinco vítimas somaram 43,9% dos casos.

Do total de vítimas 48% foram identificadas pelas notícias, o que


corresponde a 73,8% dos casos. A maior identificação das vítimas neste estado
pode ser explicada pelo tipo de ação policial que lhe é característica, qual seja,
os confrontos entre policias e traficantes nas favelas. Em geral, os traficantes
(vítimas) vivem nestes locais e são conhecidos por toda a comunidade e também
pela própria polícia, o que permite à imprensa fornecer esta informação. Já no
estado de São Paulo, como os casos ocorrem sobretudo em vias públicas e as
vítimas nem sempre portam documentos, a sua identificação é feita
posteriormente, quando a imprensa não mais acompanha o caso.

Além das vítimas e agressores, procurou-se verificar nos casos de


violência policial se estes provocaram a reação da sociedade, seja protestando,
denunciando ou apoiando a ação policial.
Gráficos 23 e 24 Distribuição dos casos de Violência Policial segundo o tipo de
manifestação da sociedade Rio de Janeiro, 1980-1996

70 100
60
80
50
40 60
30
40
20
10 20
0
Sim Não 0
apoio à violação contra a violação
1980 49.5 50.5
1980 1 99
1990 33.3 66.7
1990 1.2 98.8

Fonte: Banco de Dados sobre as Graves Violações de Direitos Humanos - NEV/ USP - Secretaria
Nacional de Direitos Humanos/ MJ
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 331

No Gráfico acima observa-se que durante os anos 80 a presença ou


ausência de informações a respeito da intervenção de entidades e de setores da
sociedade foi bastante equilibrada, enquanto que para os anos 90 houve um
aumento entre os casos sem informação sobre a participação dessas entidades.
Em 49,5% dos casos registrados nos anos 80 não houve registro de qualquer
manifestação, enquanto que, nos anos 90, este percentual ficou em torno de
66,7% do total de casos registrados.

Dentre os casos em que houve algum tipo de manifestação, nos dois


períodos o apoio à violação foi bastante reduzido, não chegando a 1,5% dos
casos, sendo o menor número de apoio entre os recortes analisados. Entre as
manifestações contra a violação, nos anos 80 mais 80% das manifestações
correspondiam a denúncias feitas a órgãos públicos, especialmente por parentes
e amigos e, em alguns casos, pela própria comunidade onde residia a vítima. Viu-
se também ser noticiado em 8,5% dos casos o acompanhamento dos trabalhos
de investigação policial, por entidades de defesa dos direitos humanos.

Nos anos 90 as denúncias corresponderam a mais da metade do total de


casos e em 45% houve protestos contra ação policial, em geral promovidos por
familiares da vítima e a comunidade.

Gráfico 25: Distribuição dos casos de Violência Policial no Rio de Janeiro segundo
a identidade do manifestante
Rio de Janeiro, 1990-1996

6,8
16,3

7,9

35,8
7,9

4,2
1,1
14,2 5,3

amigos comunidade
entidades de direitos humanos familiares
igreja órgãos públicos
sociedade civil organizada testemunhas
vítimas

Fonte: Banco de Dados sobre as Graves Violações de Direitos Humanos - NEV/USP - Secretaria
Nacional de Direitos Humanos/MJ
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 332

O Gráfico acima representa quem são os grupos que se manifestam contra


a violência policial. Entre os manifestantes registrou-se uma participação maior
de comunidade, o que ocorreu em 35,8% dos casos, em geral protestando contra
as arbitrariedades da ação policial. Estes casos são também aqueles ocorridos
nos morros e favelas do Rio de Janeiro, que muitas vezes resultam em mortes de
moradores e transeuntes, além dos traficantes.

As vítimas da violência policial foram responsáveis por 16,3% das


manifestações, seguidas dos familiares de vítimas, que registraram 14,2% das
manifestações. A sociedade civil organizada e as entidades de direitos humanos
somaram 13,2% das participações. Se comparado a São Paulo, pode-se dizer
que as comunidades no Rio de Janeiro são mais mobilizadas e que esta maior
mobilização deve-se à maior ocorrência de casos em favelas, onde os moradores
se conhecem, enquanto em São Paulo os casos ocorrem sobretudo em ruas e
avenidas, muitas vezes distantes da residência da vítima.

Gráfico 26: Distribuição dos casos de Violência Policial por manifestação segundo
o tipo de ação policial
Rio de Janeiro, 1990-1996

3,6 0,6
10,2

3,6

45,2

36,7

Ação cotidiana Ação contra inocentes Fora de serviço

Não Informa Repressão a manifestações Repressão a rebeliões

Fonte: Banco de Dados da Imprensa Sobre as Graves Violações dos Direitos Humanos - NEV/USP
-Secretaria Nacional de Direitos Humanos/ MJ

No gráfico acima verifica-se que a ação policial que mais motivou a


participação de outros agentes foi a ação cotidiana, responsável por 45,2% das
manifestações, das quais duas eram de apoio à violação. Essas manifestações
dizem respeito, em sua maioria, aos casos ocorridos nas favelas cariocas,
quando os policiais invadem residências, espancam moradores, entre outras
arbitrariedades, provocando protestos da comunidade local. Em 36,7% dos
casos, as manifestações foram desencadeadas por ações contra inocentes e
para 10,2% dos casos não há informação a respeito do tipo de ação policial.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 333

4.3. Perfil da Atuação do Poder Público


Gráfico 27: Distribuição dos casos de Violência Policial segundo a atuação do
Poder Público
Rio de Janeiro, 1980-1996

70

60

50

40

30

20

10

0
Esfera Policial Esfera Judicial Outras Medidas Não Informa
1980 39,3 7,1 7,1 46,4
1990 23,1 2,2 6,5 68,2

Fonte: Banco de Dados da Imprensa Sobre as Graves Violações dos Direitos Humanos - NEV/USP
-Secretaria Nacional de Direitos Humanos/ MJ

Nos 17 anos observados, a maior parte das informações a respeito da


atuação do Poder Público concentra-se entre as medidas tomadas pela polícia
para as investigações criminais. Para os anos 80, da mesma forma como ocorreu
com as informações sobre as manifestações e mobilizações da sociedade, houve
um equilíbrio nas informações noticiadas sobre a atuação da polícia e o
andamento do caso na justiça: em 46,4% dos casos não havia informações sobre
a atuação do poder público para a apuração das responsabilidades penais, em
53,6% dos casos alguma informação a este respeito foi relatada pela imprensa.
Nos anos 90, cresceu o número de casos sem informações que passaram a
representar 68,2% do total de casos.

Nos anos 80, entre os casos com informações sobre a atuação do Poder
Público, a maior parte deles - 39,3% - referia-se às providências adotadas na
esfera policial: 25,5% com informações sobre a instauração de inquéritos
policiais, 1,5% em que foram instaurados inquéritos para os infratores, e em 6,1%
dos casos havia informações sobre a prisão dos agressores.

Nos anos 90, apesar da redução no número de casos com informação,


continuam a ser noticiadas sobretudo as informações referentes aos
procedimentos adotados na esfera policial, que concentra 23,1% do total de
casos, distribuídos em: 4,7% com registro de boletins de ocorrência, 7,3% com a
instauração de inquérito policial na Polícia Civil. Em 4% casos foram instaurados
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 334

inquéritos policiais militares e em 4,2% havia a informação da prisão dos


agressores ( 21 casos).

Sobre a instauração de inquérito para os infratores apesar desta


informação não ter sido veiculada pela imprensa, um estudo realizado por um juiz
do Rio de Janeiro, que analisou homicídios cometidos por policiais militares
durante 20 anos, "descreve que o caminho para a impunidade muitas vezes
começa com a decisão de preencher um auto de resistência, ao invés de abrir
imediatamente um inquérito sobre o homicídio". Segundo o juiz, "o procedimento
adotado pela autoridade policial, na hipótese analisada, é uniforme: em vez da
prisão em flagrante dos policiais autores do homicídio, lavra-se um 'auto de
resistência', e o assunto está encerrado. Determina-se a instauração de inquérito
policial que nada investiga e nada apura, pois geralmente são ouvidos os policiais
que assinam o auto de resistência. Não há indiciado. Quando se indicia alguém,
este é a própria vítima". (Verani, 1996 apud Human Rights Watch, 1997).

Quanto aos desdobramentos dos casos na justiça, foram encontradas


informações em 7,1% dos casos nos anos 80 e em apenas 2,2% dos casos no
período seguinte, sendo que a maior parte informava sobre o oferecimento de
denúncia pelo promotor público.

Em 7,1% dos casos havia informações sobre medidas administrativas:


5,1% dos casos informavam sobre a instauração de sindicâncias administrativas,
tanto na Polícia Militar quanto nas outras corporações. Nos anos 90, medidas
desta natureza foram mais noticiadas do que aquelas tomadas na esfera judicial,
concentrando 6,5% dos casos neste período. Talvez isto aconteça porque estas
medidas são tomadas logo após a ocorrência dos fatos. A instauração de
sindicância administrativa foi a medida mais informada (4,2%). Após o término
das sindicâncias é que se define, caso seja comprovada a participação dos
policiais, se o policial será afastado, transferido ou exonerado do cargo.

4.4. Considerações gerais sobre o perfil da violência policial no Rio de


Janeiro
A violência policial no Rio de Janeiro apresentou algumas características
que diferenciaram as ações deste estado daquelas observadas para o estado de
São Paulo, e para o total de casos do Brasil.

No Rio de Janeiro a maior parte dos casos de violência policial


caracterizou-se pelas ações cotidianas, ocorridas em favelas, havendo ainda um
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 335

predomínio dos homicídios entre os delitos cometidos pelos policiais que


pertenciam, na maior parte das vezes, à Polícia Militar.

O que chama a atenção para este estado são as AÇÕES CONTRA INOCENTES,
ou seja, aqueles casos em que as vítimas são qualificadas por suas atividades
profissionais, ou simplesmente como inocentes. Também se destacam os casos
de tortura, e a maior participação da polícia civil nas ocorrências, principalmente
naquelas operações de combate ao narcotráfico nos morros cariocas. A maior
freqüência com que estes casos foram noticiados no Rio de Janeiro diferenciam
este estado dos outros recortes analisados.

Outra característica a ser ressaltada está nas manifestações contra a ação


policial. No Rio de Janeiro elas ocorreram em aproximadamente metade dos
casos, sendo que a maior parte destas manifestações consistiu de denúncias
promovidas por familiares e amigos das vítimas, que apontavam os policiais
como autores das violações. A despeito da existência de maior engajamento das
famílias e das comunidades em denunciar as arbitrariedades dos policiais, a
atuação do poder público ficou restrita às informações a respeito da instauração
de inquéritos policiais, prisão dos agressores e oferecimento da denúncia pelo
Ministério Público.

5.Perfil da Violência Policial na Bahia


Para o estado da Bahia foram registrados, nos 17 anos, 168 casos de
violência policial, o que representa 4% do total de casos para o Brasil.
Comparando-se os dois períodos, houve uma redução no número de casos
noticiados, que passaram de 113 nos anos 80 para 55 nos anos 90.

Gráfico 28: Distribuição do número de casos de Violência Policial na Bahia por


período
Bahia, 1980-1996

120 1980

100 1990
113
80
60
40 55
20
0
nº de casos

Fonte: Banco de Dados das Graves Violações de Direitos Humanos. NEV/USP - Secretaria
Nacional de Direitos Humanos/MJ
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 336

A decisão de analisar os casos da Bahia separadamente deveu-se à


posição que este estado ocupa com relação ao total de casos do BANCO DE
DADOS DA IMPRENSA SOBRE AS GRAVES VIOLAÇÕES DOS DIREITOS HUMANOS. Do total
de casos do Banco de Dados, a Bahia é o estado que aparece em 3º lugar em
número de casos noticiados, depois de São Paulo e Rio de Janeiro.

A hipótese que se poderia colocar é de que a polícia no estado da Bahia é


realmente mais violenta que de outros estados do Nordeste e por isso se envolve
mais em violações dos direitos humanos, conseqüentemente atraindo mais a
atenção da imprensa, mas para testá-la seria necessário realizar um
levantamento de dados nos jornais daquele estado, da mesma forma como se
realizou para o estado de São Paulo, com o jornal Notícias Populares.

Na análise dos casos ocorridos na Bahia, o objetivo foi identificar qual o


perfil da violações e em que ele difere dos casos ocorridos em São Paulo, no Rio
de Janeiro e nos Outros Estados. Devido ao pequeno número de casos
noticiados nos anos 90, na descrição do perfil da violência policial neste estado,
não serão apresentadas porcentagens, indicando-se apenas algumas tendências
quanto à violação no estado da Bahia, da forma como é noticiada pela imprensa.

5.1 Perfil da Ação Policial

Gráfico 29: Distribuição dos casos de Violência Policial na Bahia por Tipo de Ação
Bahia, 1980-1996

120
100
80
60

40
20
0
Ação Ação Fora de Não Repressõe
Totais
Cotidiana C.Inocente Serviço Informa s
Anos 80 113 55 22 14 2
Anos 90 55 26 14 2 10 3

Fonte: Banco de Dados das Graves Violações de Direitos Humanos. NEV/USP- Secretaria
Nacional de Direitos Humanos/MJ

Nos 17 anos observados, a maior parte dos casos de violência policial


neste estado envolveu policiais que cometeram delitos durante ocorrências
classificadas como AÇÃO COTIDIANA, correspondendo a aproximadamente metade
dos casos em cada período. Assim como em São Paulo, essas ações são
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 337

caracterizadas pelo confronto entre “bandidos” e policiais. Destaca-se neste


estado a existência do Grupamento Especial de Prevenção173 - que atua nos
moldes da Rota paulistana -, definindo o perfil da ação policial.

Seguindo o mesmo padrão encontrado para os outros recortes analisados,


as AÇÕES CONTRA INOCENTES apareceram como a segunda categoria mais
noticiada. Os casos sem informações sobre o contexto também apresentaram
proporções elevadas nos dois períodos.

Uma das características da ação policial na Bahia, nos anos 80, pode ser
apontada no número de ações violentas que envolveram policiais FORA DE
SERVIÇO. Diferente do que se observou em São Paulo, neste estado os policiais
não se encontravam no desempenho de outras funções remuneradas, mas
agiram durante seus horários de folga. Estes casos sofreram uma grande
redução nos anos 90, o que pode ser atribuído a um viés da imprensa que teve
menos interesse em noticiá-los, do que a uma mudança no fenômeno.

Houve, nos anos 90 anos, um único caso de violência policial em


REPRESSÃO A REBELIÕES, além de dois casos de REPRESSÃO A MANIFESTAÇÕES
PÚBLICAS.

No Gráfico abaixo estão representados os motivos apresentados como


desencadeadores das ações da polícia na Bahia, nos anos 90.
Gráfico 30: Distribuição dos casos de Violência Policial na Bahia por Motivo
Desencadeador
Bahia, 1980-1996
2
11
12

5
3
1
2
11
6

C.C.Liberdade Individual C.C.Patrimônio C.C.Vida


Drogas (cons/tráfico) Manifestações Públicas Não Informa
Outros Por Engano Reação a voz de prisão

Fonte: Banco de Dados das Graves Violações de Direitos Humanos. NEV/USP - Secretaria
Nacional de Direitos Humanos/MJ

173
Criado em abril de 1979, o Grupamento Especial de Prevenção tinha por objetivo prevenir a
criminalidade, mas de forma violenta. A sua atuação acabava sendo mais repressiva do que preventiva.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 338

A ação policial violenta foi motivada sobretudo pelos crimes contra o


patrimônio, entre os quais se destaca o roubo. Em seguida estão os casos
agrupados na categoria outros (transgressão no trânsito, várias versões sobre o
crime etc.) e os casos de reação à voz de prisão. Seguem-se os casos em que
não há informação sobre o motivo do delito, e aqueles em que a ação ocorreu
motivada por um engano, isto é, a vítima foi confundida com infrator. Para os
outros motivos, cabe ressaltar que as ações motivadas pelos crimes contra vida
na Bahia - apesar do pequeno número de casos, proporcionalmente ao total de
casos deste estado e comparativamente aos outros recortes - apresenta a maior
proporção observada.

Quanto ao local das ocorrências, destaca-se em relação à Bahia a falta de


informações a respeito desta variável, sendo que nos anos 80 esta categoria era
ainda maior do que nos anos 90. Ainda para os anos 80, observa-se em segundo
lugar a categoria outros, que inclui locais como residências, matagais, etc.
Seguem-se os casos ocorridos em delegacias/presídios e aqueles ocorridos em
locais públicos. Esta inversão nos locais de ocorrência pode ser apontada como a
segunda característica das ações policiais na Bahia.

Para os anos 90, houve um aumento entre os casos que ocorreram em


locais públicos, aproximando-se daqueles casos em que não havia informações a
respeito do local. Todas as outras categorias apresentaram uma redução em
relação ao período anterior. Destacam-se ainda, para os anos 90, 2 casos
ocorridos em favelas. Isto não significa que não existam confrontos entre a polícia
e a população em favelas na Bahia, mas que aparentemente a imprensa está
mais atenta para aqueles casos ocorridos nos morros cariocas.

O terceiro indicador da violência policial, que reúne os delitos cometidos


pelos agentes da polícia, encontra-se representado no gráfico abaixo.
Gráfico 31: Distribuição dos casos de Violência Policial na Bahia por Delito
Bahia,
1980-1996 120

100

80

60

40

20

0
Homicídio - Lesões Tortura s.
Totais Outros Tortura
tentativa Corporais morte
Anos 80 113 78 12 9 9 5
Anos 90 55 43 3 2 5 2

Fonte: Banco de Dados da Imprensa sobre as Graves Violações dos Direitos Humanos. NEV/USP-
Secretaria Nacional de Direitos Humanos/MJ
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 339

Para os dois períodos, as ações policiais resultaram majoritariamente em


homicídios, consumados ou tentados. As lesões corporais aparecem em segundo
lugar nos anos 80, mas para os anos 90 os casos de tortura tiveram
representação maior.

5.2. Perfil dos Agentes


Assim como para o restante do Brasil, a maior parte dos casos na Bahia
envolveu policiais militares que, apesar de terem registrado uma menor
participação nos anos 90, foram responsáveis por mais da metade dos
confrontos, nos dois períodos. A Polícia Civil também se envolveu em muitas
ações que resultaram, principalmente, em torturas e maus tratos em delegacies.

Gráfico 32: Distribuição do número de casos de Violência Policial na Bahia por


Agressor
Bahia, 1980-1996

120
100
80
60
40
20
0
Polícia Polícia Polícia Não
Totais
Militar Civil Federal Informa
1980 115 76 31 1 7
1990 61 26 19 16

Fonte: Banco de Dados da Imprensa sobre as Graves Violações de Direitos Humanos. NEV/USP -
Secretaria Nacional de Direitos Humanos/MJ

Proporcionalmente, este foi o recorte em que mais se registrou o


envolvimento de agentes da polícia civil em ações violentas. Verifica-se um
crescimento no número de casos sem informações a respeito da corporação à
qual pertenciam os policiais.

Para os anos 90, com relação ao número de agressores envolvidos na


ação, o total de agressores foi de, pelo menos, 309 policiais, havendo um caso
com a participação de 150 agressores e os demais casos compreendendo entre
1 a 30 agressores. Destes, apenas 26 foram identificados nas notícias, o que
representa 0,8% do total de agressores.

Quanto às vítimas, o que chama a atenção na Bahia, é o elevado número


de casos em que estas foram qualificadas por sua profissão.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 340

Gráfico 33: Distribuição dos casos de Violência Policial na Bahia por Vítima
Bahia, 1980-1996

120

100

80

60

40

20

0
Infrator/ Qualificadas pela
Totais Não Informa
Presidiário Profissão
Anos 80 113 17 43 51
Anos 90 55 21 19 17

Fonte: Banco de Dados da Imprensa sobre as Graves Violações de Direitos Humanos. NEV/USP –
Secretaria Nacional de Direitos Humanos/ MJ.

Em seguida, observa-se no gráfico que, quando se comparam os dois


períodos, houve uma pequena inversão entre as categorias não informa e
infratores/presidiários, sendo que esta última foi mais freqüente entre os casos do
anos 90, enquanto que a primeira foi mais utilizada nos anos 80.

Os casos de violência policial na Bahia, entre 1990-96, totalizaram 174


vítimas, sendo que em 25 casos - um pouco menos da metade - houve apenas 1
vítima. Do total de vítimas foram identificadas 81, o que representa pouco menos
da metade do total. Quanto às vítimas fatais, estas somaram 124 pessoas,
representando 71,3% do total de vítimas. Para o total de casos, 81,8%
envolveram vítimas fatais. É necessário ressaltar que, de todos os recortes, a
Bahia apresentou a maior freqüência de vítimas identificadas e também de
vítimas fatais. Isto pode ser explicado ou por uma tendência da imprensa em
noticiar casos que resultem em morte, ou pelo reconhecimento de uma polícia
mais violenta neste estado.

Sobre o impacto que as ações policiais causaram na sociedade, foram


veiculadas poucas informações a respeito de manifestações de apoio ou de
protesto, sendo que o número de casos sem informações foi maior nos anos 90.
A característica mais importante entre os casos em que houve manifestação é de
que todas foram de repúdio à ação policial, na forma de denúncias a órgãos
públicos.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 341

Gráfico 34: Distribuição dos casos de Violência Policial segundo o tipo de


manifestação da sociedade
Bahia, 1980-1996

150

100

50

0
Totais Sim Não
Anos 80 113 27 88
Anos 90 55 10 45

Fonte: Banco de Dados da Imprensa sobre as Graves Violações de Direitos Humanos. NEV/USP –
Secretaria Nacional de Direitos Humanos/MJ

Quanto aos atores que se manifestaram contra a violência policial, para os


anos 90, o mais importante a ressaltar é a ausência da intervenção de entidades
de direitos humanos, da sociedade civil organizada ou do governo. Dos 10 casos
em que havia informações sobre denúncias, 4 foram feitas por familiares, 3 pela
própria vítima.

Com relação ao tipo de ação que desencadeou a participação dos outros


atores, 6 casos foram motivados pelas ações contra inocentes. Houve duas
manifestações motivadas pela ação cotidiana, e outras duas cujo tipo de ação
policial não pode ser identificado pelas notícias.

5.3.Perfil da Atuação do Poder Público

Da mesma forma, como observado para as outras variáveis, com relação à


atuação do Poder Público, a principal característica dos casos ocorridos na Bahia
e que foram noticiados pela imprensa de circulação nacional, é a falta de
informações.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 342

Gráfico 35: Distribuição dos casos de Violência Policial segundo a Atuação do


Poder Público
Bahia, 1980-1996

120

100

80

60

40

20

0
medidas
Total esfera policial esfera judicial não informa
administrativas
Anos 80 115 33 1 9 72
Anos 90 55 10 2 6 38

Fonte: Banco de Dados da Imprensa sobre as Graves Violações de Direitos Humanos. NEV/USP -
Secretaria Nacional de Direitos Humanos/MJ

Em mais da metade dos casos, para os dois períodos, não havia nas
notícias nenhuma informação sobre a atuação da polícia ou da justiça para a
investigação dos crimes e a punição dos acusados.

Em segundo lugar, da mesma forma como se observou para São Paulo e


Rio de Janeiro, a maior parte das informações refere-se às providências
adotadas na esfera policial, entre as quais se destacam os inquéritos policiais
para investigar a atuação policial. Nos anos 80 também se destacaram as
informações a respeito da prisão dos agressores.

Apesar de haver informações sobre inquéritos policiais e prisão dos


agressores, as informações sobre providências na esfera judicial receberam
pouco destaque na imprensa, sendo que foram relatadas em apenas 2 casos dos
anos 80 e 1 caso dos anos 90. Esta falta de informações pode ser atribuída a um
viés da imprensa que não se preocupa muito com o desfecho processual dos
casos de violação de direitos humanos, a não ser em casos que causaram
grande impacto social.

As medidas que redundaram em punições administrativas mereceram


mais atenção da imprensa do que aquelas de caráter criminal. Nos anos 80, 5
casos informavam sobre sindicância administrativa e 4 casos sobre a
exoneração ou afastamento dos policiais envolvidos nos delitos, mesmo número
encontrado para os anos 90.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 343

5.4. Considerações gerais sobre a violência policial na Bahia


A maioria dos casos de violência policial na Bahia foi caracterizada como
ação cotidiana, nos dois períodos. Na maior parte dos casos dos anos 80 não se
tem informações sobre o local de ocorrência do delito, mas nos anos 90 estes
ocorreram, sobretudo, em locais públicos. Em todos os anos o delito mais
freqüente foi o homicídio. As agressões envolveram predominantemente policiais
militares, embora neste estado, em comparação com São Paulo e Rio de Janeiro,
a Polícia Civil tenha apresentado expressiva participação.

Observou-se para os anos 90 que os policiais militares foram responsáveis


pela maioria dos homicídios e das torturas, e o única corporação responsável
pelos casos de lesões corporais. Quanto aos casos de tentativa de homicídio e
de tortura seguida de morte, a Polícia Militar dividiu a autoria do delito com a
Polícia Civil, que registrou, neste estado, a sua maior participação em casos de
tentativa de homicídio.

É importante notar que a maioria das vítimas da violência policial foi


qualificada como inocente. A comparação entre a qualificação das vítimas com o
tipo de ação policial permite apontar para uma das características que parece
nortear o interesse da imprensa nacional pelos casos de violência policial
ocorridos na Bahia: a arbitrariedade da ação policial. A Bahia apresenta, ainda, o
maior número de vítimas fatais de todos os recortes analisados, superando o
estado de São Paulo que tem um alto índice de violência policial. Na maioria
absoluta dos casos noticiados para os anos 90, as vítimas foram identificadas,
sendo também o estado que apresenta mais informações sobre a identidade das
vítimas. Esta situação é explicada pelo tipo de ação policial mais freqüente na
Bahia, a ação cotidiana, em que policiais e "assaltantes" entram em confrontos
que, na maior parte das vezes, resultam em morte.

No Banco de Dados, os casos da Bahia nos anos 80, referem-se


sobretudo a casos de abuso da autoridade policial em situações em que as
vítimas são abordadas violentamente por policiais em serviço. Há vários casos
em que as vítimas foram confundidas com bandidos. São casos em que policiais,
no exercício de sua função, prevalecem da autoridade para praticar os delitos.
Outros casos descrevem situações em que os policiais fora de serviço também
usam sua autoridade para resolverem conflitos como brigas em bares, na rua ou
por qualquer motivo fútil que acaba gerando o delito. Entretanto a maioria dos
casos, no período de 1980 até 1989, é de conflitos entre policiais e (usando a
qualificação dos jornais) "bandidos" ou "marginais". São casos de crimes contra o
patrimônio em que a polícia atua eliminando os supostos infratores. A maioria
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 344

destas notícias é encontrada no jornal Notícias Populares, que dá grande


destaque a este tipo de ação policial. Quanto aos outros casos, a atenção é
voltada para o grande número de mortos e feridos por policiais em situações
pouco esclarecidas ou motivadas arbitrariamente.

Na maior parte dos casos não há participação de outros atores e quando


isto ocorre é um caso de denúncia (muitas vezes da própria vítima) ou de
protesto. Sobre a atuação do poder público há poucas informações nos dois
períodos. Entre aqueles casos em que as notícias traziam informações sobre a
atuação do poder público, destacam-se, como nos demais recortes, a atuação da
polícia (17,9%), seguida por medidas de caráter administrativo (outras medidas).

A violência policial na Bahia, noticiada pela imprensa, revela tendências


semelhantes àquelas observadas em São Paulo. A ação policial caracteriza-se
como cotidiana, motivada por crimes contra o patrimônio, as vítimas são
qualificadas como infratores e a sociedade pouco se manifesta. Contudo, apesar
deste perfil, há que se ressaltar a falta de informações sobre os casos,
observadas em todas as variáveis. É importante alertar para este fato, pois se as
notícias contivessem mais informações sobre o caso poderiam sugerir que: ou o
perfil aqui levantado da violência policial baiana seria confirmado; ou apareceriam
novos elementos que modificassem estas tendências ora apresentadas. Assim,
muito pouco se pode afirmar, a partir da imprensa, sobre o tipo de violência
policial mais característico deste estado.

6. Perfil da Violência Policial nos Outros Estados


O Banco de Dados de Violência Policial nos dois períodos, reúne 486
casos ocorridos em 22 estados e que foram noticiados pela imprensa nacional.
Estes casos representam 17,6% do total de casos para o Brasil. Contudo, deve-
se ressaltar que o pequeno número de casos encontrados para estes estados
não significa que ali não ocorram violações envolvendo policiais, mas refletem
apenas o pequeno interesse que a imprensa dita nacional tem pelos casos que
ocorrem fora do eixo Rio-São Paulo. Tendo em vista esta característica da fonte
de dados utilizada, os números apresentados a seguir permitem apenas indicar
algumas tendências sobre a atuação da polícia nos 17 anos abrangidos pela
pesquisa, em alguns estados brasileiros.

Comparando-se os dois períodos, o maior número de ocorrências foi


verificado nos anos 90, responsável por 13,9% do total de casos neste período.
Nos anos 80, este percentual ficou em torno de 10,3% do total de casos.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 345

Gráfico 36: Distribuição dos casos por período. Outros Estados, 1980-89, 1990-96
Outros Estados, 1980-1996

300
250
200 269
150 217 anos 80
100 anos 90
50
0
nº de casos

Fonte: Banco de Dados da Imprensa sobre as Graves Violações de Direitos Humanos. NEV/USP -
Secretaria Nacional de Direitos Humanos/MJ

Quanto à distribuição por estado, nos anos 80, aqueles que apresentaram
maior número de casos foram o Pará (16%); Minas Gerais (11,2%); Rio Grande
do Sul, Ceará e Paraná (10%). (Mapa 1)

Para os anos 90, a distribuição dos casos por unidade federativa revela
que os estados que registraram mais casos de violência policial foram: Minas
Gerais (14,8%); Paraná (10,1%); Pernambuco (9,7%) e Amazonas (8,8%).

6.1.Perfil da Ação Policial

Gráfico 37: Distribuição dos casos segundo tipo de ação


Outros Estados, 1980-1996

60

50

40

30

20

10

0
Ação Contra Fora de
Ação Cotidiana Não Informa Repressões
Inocentes Serviço
nos 80 51.3 13.4 8.6 21.9 4.8
nos 90 23 30 3.2 18 25.9

Fonte: Banco de Dados da Imprensa sobre as Graves Violações de Direitos Humanos. NEV/USP -
Secretaria Nacional de Direitos Humanos/MJ

Os casos ocorridos em Outros Estados apresentaram-se, na maior parte


das vezes, como AÇÕES COTIDIANAS. No entanto, estas ações diferem daquelas
verificadas nos outros recortes, uma vez que compreenderam principalmente
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 346

casos de torturas contra suspeitos, além de ações de perseguições a pistoleiros e


fugitivos de presídios. Esta categoria reuniu 51,3% do total noticiado para os
Outros Estados nos anos 80 e 30% de todos os casos noticiados para o período
seguinte.

A categoria AÇÕES CONTRA INOCENTES reuniu 13,4% dos casos para os


anos 80, sendo verificado um aumento no número de ocorrências assim
classificadas no período seguinte, chegando a 23% do total de casos. Nestes
casos, além das vítimas terem sido descritas como inocentes, o próprio contexto
da ação serviu para incriminar os agressores que agiram de forma arbitrária
prendendo e executando pessoas contra as quais não havia nenhuma acusação.

Menos freqüentes foram os casos envolvendo policiais FORA DE SERVIÇO


que representaram 8,6% dos casos para os anos 80 e 3,2% dos casos para os
anos 90. Nestes casos foi possível observar que os policiais não se encontravam
exercendo outra atividade remunerada quando se envolveram nos crimes,
sugerindo a hipótese de que o bico é mais noticiado nos grandes centros
urbanos, como São Paulo e Rio de Janeiro, não chamando tanto a atenção da
imprensa em outros estados.
As ações envolvendo policiais fora de serviço referem-se, para Outros
Estados, a casos em que eles reagiram armados a assaltos e brigas durante seu
horário de folga. Um caso que parece ilustrar bem esta categoria ocorreu em
Pernambuco em 1987. Segundo a notícia do Jornal do Brasil (4/7/87), um policial
militar “consertava sua moto numa calçada, à paisana, quando alguém passou e
disse que um negro estava seqüestrando uma moça num carro que estava
passando. No carro estavam um estudante nigeriano e sua noiva, uma moça
loira. A moça estava dirigindo e o rapaz estava com os braço em seu ombro. O
policial pegou carona em um carro da companhia telefônica e perseguiu o carro
em que estava o casal. Após uma ultrapassagem o estudante nigeriano, muito
assustado, saiu do carro correndo. O policial fez vários disparos e acabou
atingindo o estudante na perna. Segundo testemunhas, foram tantos os disparos
que assim como feriu o estudante, poderia tê-lo matado”. Foi instaurado inquérito
policial militar para apurar a responsabilidade policial. Se comprovada a sua
culpa, ele seria julgado pela Justiça Comum. Nenhuma outra notícia foi publicada
sobre o caso.

Nos anos 80, em 21,9% dos casos não havia nas notícias informações que
permitissem qualificar o tipo da ação policial. Nos anos 90, este percentual ficou
em torno de 18%.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 347

Foi com relação à categoria REPRESSÃO A MANIFESTAÇÕES PÚBLICAS e


REPRESSÃO A REBELIÕES que se verificou a maior variação, passando de 4,8%
nos anos 80 para 25,9% dos casos nos anos 90.

A freqüência destas ações nos outros recortes foi bastante inferior. Deve-
se ressaltar que a maior ocorrência de ações de repressão a manifestações não
significa que nestes estados as manifestações públicas sejam mais freqüentes do
que no Rio de Janeiro ou em São Paulo, mas por tratarem de questões que
atingem à sociedade como um todo há um maior interesse da própria imprensa
em divulgá-las nacionalmente. Dificilmente um leitor teria interesse em saber que
um assaltante foi morto por policiais do Pará após tentar roubar uma residência.

Gráfico 38: Distribuição dos casos segundo o motivo desencadeador das ações.
Outros Estados, 1990-96

4,1 2,3 2,3


15,7 17,1

3,2 0,5
2,3
13,8
16,1

21,7

Crime C.Liberdade Individual Crime C.Vida Crime C.Patrimônio


Crime C.Costumes Drogas (cons/tráfico) Manifestações Públicas
Não Informa Outros Por Engano
Reações/Resistência Rebeliões

Fonte: Banco de Dados da Imprensa sobre as Graves Violações de Direitos Humanos. NEV/USP -
Secretaria Nacional de Direitos Humanos/MJ

Nos anos 90, uma análise dos motivos desencadeadores dessas ações
revelou que em 17,1% dos casos as ações foram motivadas por crimes contra o
patrimônio, enquanto que em 16,1% foram desencadeadas pelas manifestações
públicas. A reação/resistência à ordem policial foi descrita como motivo
desencadeador em 15,7% dos casos. Além das manifestações públicas, cabe
ressaltar como característica das ações policiais nos Outros Estados a falta de
informações sobre os motivos que levaram a polícia a agir presente em 21,7%
dos casos.

Ainda para qualificar o perfil da violência observou-se o local onde


ocorreram as violações. Novamente é a falta de informações que caracteriza
estes casos, pois em 17,5% dos casos não foi possível identificar o local da
ocorrência, sendo que para anos 90 esta freqüência chegou a 28,6% dos casos.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 348

A despeito da falta de informações, para os dois períodos houve um


predomínio dos locais públicos, seguidos pelas ocorrências em
delegacias/presídios. Nos anos 80, esta distribuição entre os locais foi mais
equilibrada. A principal característica a ser apontada é o elevado número de
casos ocorridos em delegacias. Nesta categoria as freqüências identificadas para
os Outros Estados nos dois períodos foi bastante superior àquelas encontradas
para São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia.

Sabe-se que a maior parte dos casos ocorridos em delegacias envolveram


sessões de torturas praticadas por policiais civis durante as investigações
policiais. Dentro deste contexto a hipótese que se coloca é que nestes estados as
polícias são mais violentas e agem com maior arbitrariedade até porque a
sociedade possui menos mecanismos de pressão e controle, diferente do que
ocorre nos grande centros urbanos. Esta hipótese encontra reforço quando se
observa que a maior parte dos casos relatados pela imprensa ocorreu em
estados do Nordeste do país, região acostumada com o poder político
centralizado na figura dos coronéis e que ainda hoje determinam e influenciam as
relações de poder nestes locais. Assim formulada esta hipótese, pode-se afirmar
que a imprensa nacional, ao noticiar estes casos, está retratando com maior
fidedignidade a situação existente nestas localidades.

Gráfico 39: Distribuição dos casos segundo o tipo de delito.


Outros Estados, 1980-1996

60

40

20

0
Homicídio Lesão Tortura
Outros Tortura
s Corporal Seg.de
Anos 80 53.2 20.4 4.5 13.8 8.2
Anos 90 49.8 29 2.3 15.7 3.2

Fonte: Banco de Dados da Imprensa sobre as Graves Violações de Direitos Humanos. NEV/USP -
Secretaria Nacional de Direitos Humanos/MJ

Sobre as torturas, quando se verifica os delitos cometidos pelos policiais,


observa-se que estas ocorreram em 13,8% dos casos ocorridos nos anos 80 e
15,7% dos casos para os anos 90. Além destes casos, outros 8,2% e 3,2% dos
casos ocorridos nos anos 80 e anos 90, respectivamente, envolveram tortura
seguida de morte.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 349

Nos anos de 1980 os casos ocorreram principalmente no início da década,


concentrando-se nos estados do Amazonas e Pernambuco. Trata-se de casos
envolvendo policiais civis das Delegacias de Roubos e Furtos e do extinto
DEOPS - Departamento de Ordem Política e Social. Segundo as notícias, a ação
destes policiais voltou-se principalmente contra pessoas que foram qualificadas
como suspeitas de envolvimento em crimes de roubos e furtos. Ainda segundo
estas notícias, as vítimas são qualificadas por sua profissão, atestando que
contra elas não pesava nenhuma suspeita além daquela que motivou a
arbitrariedade da ação policial.

Apesar do elevado número de casos que envolveram torturas, que


resultaram ou não na morte das vítimas, as ações policiais predominantes foram
os homicídios tentados e consumados, que ocorreram em aproximadamente
metade dos casos noticiados nos dois períodos.

Além dos homicídios, os casos que mais atraíram a atenção da imprensa


foram aqueles que resultaram em lesões corporais, que ocorreram em 20,4% e
29% dos casos, respectivamente, para os dois períodos analisados. O aumento
verificados entre os casos de lesões corporais pode ser explicado pelo
crescimento das ações de repressão a manifestações públicas durante as quais a
polícia acaba entrando em choque com os manifestantes.

6.2.Perfil dos agentes da Violência Policial

Quanto aos agentes da violência policial nos casos de Outros Estados


noticiados pela imprensa nacional, o perfil não difere muito daquele apresentado
para os outros recortes.
Gráfico 40: Distribuição dos casos segundo a qualificação dos agressores
Outros Estados, 1980-1996
60

50

40

30

20

10

0
Guarda
Não Informa Polícia Civil Polícia Federal Polícia Militar
Metropolitana
Anos 80 9,3 38,3 4,1 48,3
Anos 90 1,3 14,4 20,3 4,2 59,7

Fonte: Banco de Dados da Imprensa sobre as Graves Violações de Direitos Humanos. NEV/USP -
Secretaria Nacional de Direitos Humanos/MJ
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 350

A maior parte das ações envolveram, nos dois períodos, os policiais


militares. Foram protagonizadas por estes agentes 48,3% dos casos nos anos 80
e 59,7% dos casos para os anos 90.

Nos anos 80, em 38,2% dos casos foi noticiado o envolvimento de policiais
civis em casos de violência o que tornou a presença desta polícia mais freqüente
neste recorte do que nos outros observados. Para os anos 90, houve uma
redução e a Polícia Civil apareceu como responsável por ações violentas em
aproximadamente 20% dos casos, freqüência de casos inferior àquelas
observadas para os estados do Rio de Janeiro e Bahia, neste período. Ainda em
relação aos outros recortes realizados, para os Outros Estados encontrou-se a
maior a freqüência dos casos envolvendo policiais federais que aparecem em
4% dos casos noticiados para cada período.

Houve também um aumento da freqüência de casos sem informação sobre


esta variável, que passou de 9,3% nos anos 80 para 14,4% no período seguinte.

Da mesma forma como se procedeu com os outros recortes, para os anos


90 procurou-se identificar o número de agressores envolvidos nas ações policiais
noticiadas pela imprensa. Em 55,8% dos casos não foi possível definir o número
exato de agressores envolvidos nas agressões, isto porque as notícias não
traziam esta informação. Entre os casos que traziam esta informação, foram
registrados, 1385 agressores ao longo destes sete anos. Em cerca de 19% dos
casos os agressores estavam em grupos de dois a quatro policiais, e em 13,4%
agiram sozinhos. Do total de agressores, apenas 9,3% foram identificados o que
corresponde, em relação ao total de casos, a 34,6% dos casos com agressores
identificados. Esse recorte representa a segunda maior freqüência de casos com
agressores identificados, sendo superado apenas pela Bahia
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 351

Gráfico 41: Distribuição dos casos segundo a qualificação das vítimas


Outros Estados, 1980-1996

50
45
40
35
30
25
20
15
10
5
0
Moradores de Infrator/ Qualificados
Não Informa Suspeitos
rua Presidiário Profissão

Anos 80 24.5 22.7 49.1 3.7


Anos 90 2.1 24.5 26.2 42.6 4.6

Fonte: Banco de Dados da Imprensa sobre as Graves Violações de Direitos Humanos. NEV/USP -
Secretaria Nacional de Direitos Humanos/MJ

A qualificação da vítima é a principal característica dos casos violência


policial noticiados para Outros Estados. Segundo os dados obtidos na imprensa,
nos 17 anos observados, a maior parte dos casos envolveu vítimas inocentes que
foram qualificadas pelas notícias por sua profissão/ocupação. No total esta
categoria apareceu em 49,1% dos casos noticiados nos anos 80 e em 42,6% dos
anos 90.

Da leitura dos casos publicados pela imprensa foi possível verificar que,
apesar de inseridas na mesma categoria, há uma diferença entre os casos
noticiados para os anos 80 em relação aos anos 90. No primeiro período, parte
dos casos envolvendo vítimas inocentes são casos que, devido ao contexto e
circunstâncias em que ocorreram – torturas em delegacias por exemplo - foram
classificados como AÇÕES COTIDIANAS. Nestes casos, mesmo quando a polícia
alega que a vítima era suspeita de envolvimento com algum delito, a imprensa
tende a descrevê-la por sua profissão uma vez que as acusações que pesam
contra elas são bastante inconsistentes. Já nos anos 90, este número pode ser
explicado pelo maior número de casos de repressão a manifestações públicas
registrado em Outros Estados. Estes casos são, em geral, greves trabalhistas, e
as vítimas foram qualificadas como trabalhadores.

Diferente do que se observou para os outros recortes, nos anos 80 as


vítimas qualificadas como infratoras/presidiários apareceram em 24,5%. Número
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 352

semelhante foi encontrado para aqueles casos em que não havia informações
que permitissem qualificar as vítimas: 22,6% dos casos.

Nos anos 90, estas categorias mantiveram as mesmas proporções com


29,1% dos casos envolvendo vítimas qualificadas como infratores/presidiários e
26,2% dos casos sem informações que permitissem essa qualificação.
Os casos de violência policial ocorridos nos anos 90 em Outros Estados
somaram 982 vítimas. Entre estas vítimas, 257 foram identificadas, o que
corresponde a 26,2% do total de vítimas. Do total de vítimas, 239 (24,3%) foram
mortas pela polícia, sendo o menor índice de vítimas fatais observado para todo o
banco de dados de violência policial. Em relação ao total de casos, a distribuição
de vítimas fatais corresponde a 50,7% dos casos. A menor freqüência de vítimas
fatais nos casos de violência policial em Outros Estados pode ser explicada pelo
fato de que, nestes estados, há uma maior ocorrência de casos de tortura e de
casos de lesões corporais - estes ocorridos, em geral, durante a repressão às
manifestações públicas.

Gráfico 42: Distribuição dos casos de Violência Policial segundo o tipo de


manifestação da sociedade
Outros Estados, 1980-1996
80

60

40

20

0
Sim Não
Anos 80 33,1 66,9 Fonte: Banco de Dados da Imprensa sobre as
Graves Violações de Direitos Humanos. NEV/USP -
Anos 90 36,6 63,4 Secretaria Nacional de Direitos Humanos/MJ

Houve, comparando-se os dois períodos, um crescimento entre os número


de casos com informações a respeito de manifestações da sociedade contra ou a
favor da violência policial. Enquanto nos anos 80, 67% das notícias não traziam
nenhuma informação sobre a atuação de outros agentes, nos anos 90 foram
63,4% dos casos.

Nos anos 80, do total de casos com manifestações, em apenas 1 caso


registrou-se o apoio da população à ação policial. Trata-se de um caso de Minas
Gerais, em que a população da cidade apoiou o assassinato de um assaltante
indo até o necrotério para certificar-se de sua morte.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 353

Curioso observar que, nos anos 90, foram registrados o mesmo número
absolutos de casos (89) de manifestações, das quais 69 foram de denúncia e 17
foram de protesto contra a ação policial. O apoio à violação foi registrado em três
casos.

Gráfico 43: Distribuição dos casos segundo os manifestantes


Outros Estados, 1990-1996

14,4 7,8
2,2
1,1
20
18,9
1,1
5,6 22,2
Comunidade Entidades de Def.Direitos Humanos Fonte: Banco de Dados da
Familiares Igreja
Órgãos Públicos Outros
Imprensa sobre as Graves Violações
Sociedade Civil Organizada Testemunhas de Direitos Humanos. NEV/USP –
Vítima Secretaria Nacional de Direitos
Humanos/MJ

Dentre os casos em que houve alguma reação da sociedade, os familiares


das vítimas foram responsáveis pela maioria das manifestações, seguidos pela
sociedade civil organizada. As entidades de direitos humanos registraram a sua
participação em apenas dois casos. É curioso notar que há uma grande
participação de órgãos públicos, e entre eles se destaca o Poder Legislativo, pela
atuação das comissões de direitos humanos das assembléias estaduais.

Gráfico 44: Distribuição dos casos segundo manifestação por tipo de ação policial
Outros Estados, 1990-1996

11,6

21,7

26,1 1,4 Fonte: Banco de Dados


sobre as Graves Violações de
A.Cotidiana Fora de Serviço Não Informa Repressão Man.Pública Direitos Humanos. NEV/USP –
Secretaria Nacional de Direitos
Humanos/MJ

A ação que mais motivou a participação de outros atores foram as ações


contra inocentes, que ocorreu em 39,1% dos casos, registrando uma única
manifestação de apoio à violência. Em 26,1% não se pode definir o tipo de ação
policial que desencadeou a manifestação. Apesar de ter ocorrido um número
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 354

elevado de ações de repressão a manifestações públicas, este tipo de ação foi


responsável por apenas 11,6% dos casos que registraram a participação de
outros atores.

6.3.Perfil da Atuação do Poder Público

Gráfico 45: Distribuição dos casos segundo a atuação do poder público


Outros Estados, 1980-1996

60

50

40

30

20

10

0
Medidas
Esfera Policial Esfera Judicial Não Informa
Administrativas
Anos 80 32,8 5,7 12,7 48,8
Anos 90 28,8 2,5 14,8 53,5

Fonte: Banco de Dados sobre as Graves Violações de Direitos Humanos. NEV/USP – Secretaria
Nacional de Direitos Humanos/MJ

Nos dois períodos observa-se que a maior parte dos casos não apresentou
informações sobre as medidas adotadas pelo Poder Público para punir os
agentes responsáveis pelas violações. Isso ocorreu em quase metade dos casos
noticiados para os dois períodos, verificando-se um aumento em relação à falta
de informações veiculadas pelas notícias nos anos 90.

As informações sobre a atuação dos aparelhos de repressão e contenção


da violência ficaram restritas às providências adotadas durante a fase policial,
correspondendo a 42% e 28,8%, respectivamente para os dois períodos. Entre
estes casos, as informações mais freqüentes referiam-se à instauração de
inquéritos policiais (19,4% dos casos nos anos 80 e 13,6% dos casos nos anos
90), além de informações sobre a prisão dos agressores, presente em 7,4% dos
casos nos anos 80 e 5,5% dos casos dos anos 90.

Sobre as providências na esfera judicial, havia informação em 5,7% dos


casos, e a maior parte referia-se ao oferecimento das denúncias pelo Ministério
Público. Nos anos 90, estas informações foram localizadas em apenas 2,5% dos
casos, seguindo a tendência já apontada para os outros recortes, para os quais
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 355

também se observou a predominância de informações a respeito das ações da


polícia para investigar os casos.

A respeito da adoção de medidas administrativas, foram noticiadas em


12,7% dos casos dos anos 80 e 14,8% dos anos 90. Entre as medidas destacam-
se a exoneração/afastamento/transferência dos policiais, registradas em 9,4%
dos casos nos anos 80 e 5,9% nos anos 90.

6.4.Considerações gerais sobre a violência policial nos Outros Estados


A violência policial ocorrida em outros estados, e que foi noticiada pela
imprensa nacional, concentrou-se principalmente nos estados do Pará, Minas
Gerais, Ceará, Rio Grande do Sul e Paraná. Na maior parte dos casos foram
AÇÕES COTIDIANAS, em locais públicos e resultaram em homicídios. Apesar desse
perfil, deve-se destacar que as AÇÕES CONTRA INOCENTES e os crimes ocorridos
em delegacias apresentaram porcentagens superiores àquelas observadas para
os estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia. Entre os delitos, os casos de
lesões corporais também foram mais noticiados para os Outros Estados do que
para aqueles três estados analisados.

As polícias Militar e Civil tiveram participação equilibrada nos casos aqui


analisados. Cabe ressaltar que este recorte apresentou uma maior participação
de policiais civis e federais do que se observou para os outros recortes. A
diferença dos casos envolvendo policiais federais deve-se ao tipo de ação por
eles praticada. Enquanto nos anos 80 estes agentes estavam envolvidos em
casos de tortura e abuso de autoridade, nos anos 90 envolveram-se
principalmente em homicídios.

A principal característica dos casos ocorridos em Outros Estados, e que


foram noticiados pela imprensa nacional, é apresentada pela qualificação das
vítimas que foram descritas como inocentes. Nos anos 90, este recorte registrou
o menor número de casos com vítimas fatais. Registrou-se também as vítimas
qualificadas como moradores de rua ou crianças em situação de rua, que
superou, em números proporcionais, os casos do estado de São Paulo.

Reunindo as informações quanto ao tipo de delito, perfil dos agressores e


das vítimas, e local de ocorrência, verifica-se que, para Outros Estados, houve
uma mudança no tipo de ação policial mais noticiada pela imprensa. Enquanto
nos anos 80 a maior parte dos casos noticiados foi de lesões corporais, ocorridas
dentro de delegacias, envolvendo policiais civis. Nos anos 90 há um aumento das
ações de repressão a manifestações públicas e repressão a rebeliões,
envolvendo policiais militares.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 356

Para a maior parte dos casos não houve qualquer tipo de manifestação,
nem da comunidade, familiares ou da sociedade civil organizada. Entre os casos
em que houve manifestação, estas foram de denúncias que partiram de
familiares e da própria vítima. Nos anos 90, além de um aumento nas denúncias
contra as arbitrariedades policiais, verificou-se também a participação de órgãos
públicos, em especial do Poder Legislativo através de suas comissões de Direitos
Humanos. Estes foram os que mais se manifestaram nos casos de violência
policial ocorridos em Outros Estados.

Pouco freqüentes também foram as informações a respeito da atuação do


Poder Público. Para os casos em que havia informações, estas referiam-se à
instauração de inquéritos policiais, ao afastamento dos policiais envolvidos nos
crimes e ao oferecimento de denúncia iniciando a ação penal.

Os delitos de lesões corporais e tortura foram mais freqüentes nestes


Outros Estados do que nos demais recortes analisados. Como já foi dito, estas
diferenças podem ser explicadas por: a) um viés da imprensa em retratar estes
casos, deixando um pouco de lado aquela violência mais cotidiana comum aos
grandes centros urbanos; b) uma diferença na atuação das corporações policiais
destes Outros Estados, e c) pela combinação dos dois fatores anteriormente
expostos.

7. Considerações Gerais
De tudo o que foi apresentado, apesar das diferenças entre os perfis,
pode-se afirmar que de 1980 a 1996 o desrespeito aos direitos humanos - em
especial o direito à integridade física – marcou a atuação de muitos destes
policiais que protagonizaram os 4181 casos de ações violentas da polícia que
foram noticiados pela imprensa.

No início deste relatório afirmou-se que para a formação do Banco de


Dados sobre a Violência Policial foram recolhidas todas as notícias publicadas
pelas fontes consultadas, desde que informassem sobre o envolvimento de
policiais - em serviço ou fora de serviço – em situações violentas: confrontos
armados, torturas e espancamentos, maus tratos e abuso de autoridade. Este
critério foi adotado porque, a partir da primeira leitura das notícias, nem sempre
era possível distinguir, entre os casos relatados, aqueles em que houve
exacerbação da violência e violação dos direitos humanos.

Aos poucos, na medida em que os dados foram sistematizados, foi


possível identificar algumas regularidades que podem ser úteis para a
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 357

compreensão de como tem sido a atuação da polícia brasileira no regime


democrático.

Quando se observam os casos coletados na imprensa entre 1980-89 e


1990-96 não há grandes mudanças no perfil da violência policial. Considerando-
se o total de casos, concluiu-se que a imprensa noticiou principalmente aqueles
casos denominados ações cotidianas que, de uma maneira genérica, podem ser
definidos como ações envolvendo policiais que agiram em serviço, durante a
repressão à criminalidade ou nas investigações criminais para a apuração do
envolvimento de suspeitos em delitos diversos. A maior parte destas ações foram
desencadeadas por crimes contra o patrimônio e provocaram pouca reação de
protesto ou apoio da sociedade civil organizada, familiares e da comunidade.
Além disso, as informações sobre a atuação do poder público só permitem saber
que foram realizadas investigações policiais (inquérito policial), sem que sejam
noticiados os desfechos, quer dos inquéritos quer dos processos.

Apesar do padrão detectado na violência policial noticiada pela imprensa,


e que parece se manter ao longo dos dois períodos analisados, há significativas
variações por recorte analisado que devem ser estudadas em maior
profundidade. Assim, a violência policial em São Paulo ocorre em contexto
totalmente diferente daquele noticiado para o Rio de Janeiro. Com relação aos
Outros Estados e à Bahia, embora haja similaridade entre os casos identificados
em relação aos casos ocorridos em São Paulo, o pequeno número de casos
noticiados pela imprensa nacional levou a que se questionasse a precisão dos
perfis definidos para estes recortes. Além disso, a predominância dos casos
ocorridos no estado de São Paulo acabou por determinar o perfil da violência
policial no Brasil.

De todos os casos , aqueles que envolveram confrontos armados foram os


mais freqüentes no Banco de Dados, nos dois períodos analisados. Com relação
aos anos 90 a informatização dos bancos de dados permitiu uma maior
flexibilidade com as variáveis. Desta forma a exacerbação da violência tornou-se
cristalina quando se observou os números de agentes envolvidos nos casos -
vítimas e agressores - e o número de vítimas fatais.

Ao todo, os 1567 casos de violência policial ocorridos entre 1990-1996


envolveram 10.022 agentes das polícias Militar, Civil e Federal, e Guarda Civil
Metropolitana, e 4.895 vítimas. O Gráfico ilustra a distribuição das médias de
agressores e vítimas por casos, segundo o tipo de ação policial.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 358

Gráfico 46: Média de Vítimas e Agressores por caso segundo o tipo de ação policial
Brasil, 1990-96

800

80
700
70
600
60
50 500

40
400

30
300
20
10 200

0
Ação100
c. Fora de Rep.Manif.Pub Rep.a
Ação Cotidiana Não Informa
Inocentes Serviço . Rebeliões
0
vítimas/caso 2.5 2
Homicídio 1.8
Lesão Corporal 6 Outros 10.7 11.6
T ent. Homic. T ortura T ort.Seg.Morte
Ação c. Inocentes 108 89 15 16 40 5
agres/caso 4.3
Ação Cotidiana 23.9
766 3.1 74 3.8 12 73.6 31 77.4 29 9
F ora de Serv iço 57 8 2 7 2
Não Informa 98 22 6 11 12 6
Rep. Manif. Públicas 4 75 7 1
Repressão Rebeliões 31 19 4 1

Fonte: Banco de Dados sobre as Graves Violações de Direitos Humanos. NEV/USP – Secretaria
Nacional de Direitos Humanos/MJ

Nos casos de repressão a manifestações públicas e repressão a rebeliões


é que se observa o envolvimento do maior número de policiais e vítimas: em
média, por caso, foram 73,3 e 77,4 policiais para, respectivamente, 10,7 e 11,6
vítimas. Estes casos, apesar do grande número de agentes envolvidos, não
representam o contexto de maior exacerbação da violência. Conforme ilustrado
no Gráfico o delito mais freqüente nos casos de repressão a manifestações
públicas foi o de "lesão corporal".

Gráfico 47: Distribuição dos casos segundo o tipo de delito e tipo de ação policial
Brasil, 1990-96
Fonte: Banco de Dados sobre as Graves Violações de Direitos Humanos. NEV/USP – Secretaria
Nacional de Direitos Humanos/MJ

Entre os casos noticiados de repressão a rebeliões, a maior parte foi de


homicídio, sendo um deles o caso do "Massacre do Carandiru" que envolveu um
grande número de agressores e vítimas.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 359

O uso exacerbado da violência aparece com maior clareza nos casos de


AÇÕES COTIDIANAS. Nestes casos, que representam 58,8% do total, observa-se no
Gráfico que estiveram envolvidas, em média, duas vítimas e 24 policiais. Nota-se
que a média de policiais por vítima em casos de AÇÃO COTIDIANA é superior
àquela registrada para os casos de repressão a manifestações públicas e
repressão a rebeliões, em que há 6,9 policiais por vítima.

Quando se observa o tipo de ação policial por tipo de delito, evidencia-se o


uso da força letal por parte dos agentes policiais, pois 72% dos homicídios
noticiados ocorreram em AÇÕES COTIDIANAS, a maior parte decorrente do
confronto entre policiais militares e "infratores".

Partindo-se do princípio colocado por Uprimny (s.d.), de que a polícia deve


utilizar sua força de forma proporcional e moderada à ameaça representada, com
a finalidade de coibir toda a violência exercida contra as pessoas, sem colocar
em risco a sua vida e integridade física, estes números permitem afirmar que o
uso da força durante as ações policiais cotidianas no Brasil é desproporcional ao
perigo representado, ainda mais quando se considera que os confrontos entre a
polícia e os supostos criminosos nem sempre ocorrem no momento da prática do
crime, mas após este ter sido cometido. Assim, pode-se dizer que o perigo
representado pelo "infrator" é bem menor do que a força utilizada pela polícia
para detê-lo.

Com relação à violência policial no Brasil, conforme pode ser verificado


nos perfis apresentados, o princípio da proporcionalidade é freqüentemente
desrespeitado, e com ele todos os outros. Um agravante no caso do Brasil, e que
deve ser ressaltado, diz respeito à desproporção existente entre os crimes
ocorridos e o número de casos na imprensa com informação sobre as
providências adotadas pelo Poder Público, especialmente os aparelhos de justiça
e segurança pública, para punir e coibir a ação violenta de seus agentes. Do total
de casos que compõem o Banco de Dados sobre a Violência Policial, 63% não
apresentam qualquer informação sobre a apuração das responsabilidades
criminais e a identificação dos policiais envolvidos.

A falta de informações reforça, de um lado, a percepção de que há


impunidade dos agentes que cometem a violação dos direitos humanos e, de
outro lado, reforça o descrédito na justiça e o sentimento de insegurança e medo
entre todas as camadas da população.

Outro agravante no caso brasileiro é que os homicídios cometidos por


policiais militares, apresentados como resultados de confrontos, eram julgados,
até o final de 1996, por um foro especial: a Justiça Militar. A existência deste foro
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 360

contribuiu para a manutenção da impunidade, pois a Justiça Militar foi


administrada - desde sua criação, em 1969 - para "tornar quase impossível a
condenação de policiais por crimes violentos contra civis" (Human Rights Watch,
1997).

Visando coibir a ação violenta da polícia, surgiram diferentes experiências


para modificar a atuação das polícias estaduais. Entre as medidas adotadas,
destacam-se os programas implementados pelo governo estadual de São Paulo,
com o objetivo de reduzir mortes em confrontos. Destaca-se também a mudança
de competência da Justiça Militar, que deixou de julgar os casos de mortes em
confronto com a Polícia Militar, que passaram a ser julgados pela Justiça
Estadual Comum.

Deve-se ressaltar ainda as medidas propostas nos Plano Nacional de


Direitos Humanos e Plano Estadual de Direitos Humanos – formulado pelo
governo do Estado de São Paulo. Entre as medidas na área de segurança
destacamos abaixo aquelas que se voltam ao problema da violência policial, que
já integram os dois Planos de Direitos Humanos – Nacional e Estadual - e que
devido à sua importância e relevância para o controle da ação policial deveriam
ser também adotadas por outros estados.

Plano Nacional
Medidas de curto prazo
• Propor projeto de lei regulando o uso de armas e munições por policiais nos
horários de folga e aumentando o controle nos horários de serviço.
• Estimular o aperfeiçoamento dos critérios para seleção, admissão,
capacitação,treinamento e reciclagem de policiais
• Incluir nos cursos das academias de polícia matéria específica sobre direitos
humanos.
• Estimular a criação e o fortalecimento das corregedorias de polícia, com vistas a
limitar abusos e erros em operações policiais e emitir diretrizes claras a todos os
integrantes das forças policiais com relação à proteção dos direitos humanos.
• Propor o afastamento nas atividades de policiamento de policiais acusados de
violência contra os cidadãos, com imediata instauração de sindicância, sem prejuízo do
devido processo criminal.
Medidas de Médio Prazo
• Incentivar programas de capacitação material das polícias, com a necessária
e urgente renovação e modernização dos equipamentos de prestação da segurança
pública.
• Apoiar as experiências de polícias comunitárias ou interativas, entrosadas
com conselhos comunitários, que encarem o policial como agente de proteção de
direitos humanos
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 361

Plano Estadual
• Incentivar experiências de polícia comunitária, definindo não apenas a
manutenção da ordem pública e a incolumidade das pessoas e do patrimônio mas
também e principalmente a defesa dos direitos da cidadania e da dignidade da pessoa
humana como missões prioritárias das polícias civil e militar.
• Ampliar a atuação das polícias, orientando-as principalmente para as áreas de
maior risco de violência,por meio do aumento e redistribuição do efetivo policial
• Aperfeiçoar critérios para seleção e promoção de policiais, de forma a valorizar e
incentivar o respeito à lei, ao uso limitado da força, a defesa dos direitos dos cidadãos e
da dignidade humana no exercício da atividade policial.
• Apoiar o projeto de lei federal, agravando as penas para crimes dolosos,
praticados por policiais ou contra policiais, no exercício de suas funções.
• Dar continuidade ao Programa de Acompanhamento dos Policiais Envolvidos em
Ocorrências de Alto Risco, da Secretaria de Segurança Pública, que afasta do
policiamento de rua os policiais envolvidos em ocorrências que tenham como resultado a
morte de civis, obrigando-os a realizar cursos de reciclagem.
• Regulamentar e aumentar o controle sobre o uso de armas e munições por
policiais em serviço e nos horários de folga, exigindo a elaboração de relatório sobre
cada ocorrência de disparo de arma de fogo.
• Rever os regulamentos disciplinares das polícias, notadamente o da Polícia
Militar, compatibilizando-os à ordem constitucional vigente.

Algumas destas medidas já estão sendo efetivadas, outras ainda não


saíram do papel. Além destas medidas outras relativas ao acesso à justiça e à
garantia de direitos sociais e políticos, também listadas nos Planos, devem ser
adotadas no menor prazo possível.

Para acompanhar a eficácia dessas medidas, o objetivo do BANCO DE


DADOS DA IMPRENSA SOBRE AS GRAVES VIOLAÇÕES DOS DIREITOS HUMANOS, e
especificamente nos casos de Violência Policial é continuar monitorando os
casos ocorridos em todo o Brasil e noticiados pela imprensa de circulação
nacional, identificando possíveis mudanças nos perfis apresentados. Além disso,
realizar-se-á também um acompanhamento do debate que estes casos suscitam
em diferentes esferas da sociedade a respeito da atuação da polícia e sua
adequação ao regime democrático.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 362

CAPÍTULO 8
VIOLÊNCIA RURAL: UMA DÉCADA DE CONFLITOS EM TORNO DA TERRA

Helder Rogério Sant’Ana Ferreira,


Marcelo Gomes Justo,
Petronella Maria Boonen

"Posto diante de todos estes homens reunidos, de todas estas


mulheres, de todas estas crianças (sede fecundos, multiplicai-vos
e enchei a terra, assim lhes fora mandado), cujo suor não nascia
do trabalho que não tinham, mas da agonia insuportável de não o
ter, Deus arrependeu-se dos males que havia feito e permitido, a
um ponto tal que, num arrebato de contrição, quis mudar o seu
nome para um outro mais humano. Falando à multidão, anunciou:
'A partir de hoje chamar-me-eis Justiça’. E a multidão, respondeu-
lhe: 'Justiça, já nós a temos, e não nos atende’. Disse Deus:
‘Sendo assim, tomarei o nome de Direito'. E a multidão tornou a
responder-lhe: 'Direito, já nós o temos, e não nos conhece'. E
Deus: 'Nesse caso, ficarei com o nome de Caridade, que é um
nome bonito'. Disse a multidão: 'Não necessitamos caridade, o
que queremos é uma Justiça que se cumpra e um Direito que nos
respeite'. Então, Deus compreendeu que nunca tivera,
verdadeiramente, no mundo que julgara ser seu, o lugar de
majestade que havia imaginado, que tudo fora, afinal, uma ilusão,
que também ele tinha sido vítima de enganos, como aqueles de
que se estavam queixando as mulheres, os homens, as crianças,
e, humilhado, retirou-se para a eternidade. A penúltima imagem
que ainda viu foi a dos disparos, mas na última imagem já havia
corpos caídos sangrando, e o último som estava cheio de gritos e
lágrimas" (José SARAMAGO, in: Terra, de Sebastião Salgado, p.
11.)

Introdução
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 363

O presente trabalho é, em grande parte, uma versão reduzida e


reelaborada do relatório sobre violência rural para a pesquisa “Banco de Dados
da Imprensa sobre Graves Violações de Direitos Humanos”, realizada pelo
Núcleo de Estudos da Violência/ Secretaria de Direitos do Ministério da Justiça174.

Primeiramente, será apresentada, a definição da violência rural que serviu


de base para coleta de dados para essa pesquisa e, também, uma discussão
acerca de aspectos históricos, culturais, políticos e sociológicos.

Na seqüência, será descrito o levantamento dos dados realizado junto à


175
CPT e a imprensa, relatado o tratamento que foi dado a este material, e
apresentada a proporção de números de casos por tipo de conflito (Terra,
Trabalho, Garimpo e Questão Indígena) de 1987 a 1996, e a distribuição destes
números por ano.

A apresentação dos resultados da pesquisa está dividida em 6 itens. 1)


Histórico da questão agrária - que contém importantes acontecimentos para se
entender os aspectos políticos da questão agrária e da violência rural no Brasil
dos últimos vinte anos, além de um sub-item que trata de um acompanhamento
dos índices de violência rural nos anos 80 e 90. 2) A geografia dos conflitos (na
qual são mostrados os Estados e outras áreas com maior número de conflitos,
destacando-se o Bico do Papagaio e o Pontal do Paranapanema). 3) Atores
(neste item são apresentados os números de vítimas e agressores e as
ocupações das principais vítimas e dos principais agressores, e, também, os
principais grupos em conflito). 4) Atuação do Estado, no qual são mostrados os
dados sobre a atuação dos órgãos do Estado (Polícia Civil e Federal, Ministério
Público e Justiça Pública, juízes e tribunais estaduais e federais) através das
informações sobre inquéritos policiais, prisão preventiva, denúncia, absolvição e
condenação. 5) Atuação de Entidades (no qual é exibida uma classificação das
entidades - segundo seus principais objetivos, a atuação de entidades segundo
os tipos de delito e, por fim, um cruzamento entre as atuações do Estado e das
entidades).

Finalmente, na conclusão serão destacados os aspectos fundamentais da


violência rural e os limites e as vias para a institucionalização dos conflitos.

1. Definição do fenômeno e orientações teóricas

174
Esta pesquisa apresentou dados e análises sobre Violência Policial, Linchamentos, Execuções
Sumárias e Violência Rural para os anos 80 e 90.
175
CPT: entidade religiosa, com sede nacional em Goiânia, que ajuda na organização dos
camponeses e na defesa dos seus direitos, além de registrar e intervir em casos de violência
rural. A CPT publica anualmente um relatório sobre a Violência no Campo.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 364

A definição de violência rural, que aqui será apresentada, pode ser


entendida como as formas de agressão utilizadas pelos agentes para impor ou
defender os seus interesses e/ou direitos, nos conflitos em torno das disputas de
terra, de garimpo, de trabalho e que envolvam indígenas, independentemente de
terem ocorrido em áreas rurais ou urbanas. Cabe agora esclarecer alguns pontos
desta definição, ou seja, definir como ela foi ultilizada na realização da pesquisa.
Por agressão, aqui, engloba-se não apenas lesões e os atentados à vida, mas
também ameaças de morte e restrições ao direito de ir e vir; isto será retomado
no item sobre o método. Outro ponto é que, notícias sobre roubos, furtos,
estupros e assassinatos que ocorrem no campo e que apontam para outros
motivos, que não as disputas apontadas, foram excluídos do Banco de Dados da
Imprensa sobre Graves Violações de Direitos Humanos. Em terceiro lugar, o
termo conflito deve ser entendido como disputa que envolveu agressão. Por fim,
os agentes pertencem a categorias sociais diversas e estão presentes em
diferentes situações: o camponês, homem "livre e pobre" que tem a terra como
meio de vida e de trabalho; o fazendeiro que possui a terra para produção ou
como aplicação financeira, garantindo para si forte poder econômico e político; o
posseiro, pessoa que detém a posse de uma área sem ter título de propriedade;
o capataz, chefe de um grupo de trabalhadores braçais; o pistoleiro, assassino
profissional geralmente recrutado por fazendeiros; o garimpeiro que em muitos
casos ocupa áreas indígenas; os indígenas que querem manter a posse de suas
terras; a polícia militar176 que legalmente deve cumprir as sentenças judiciais de
reintegração de posse, mas que, em vários casos, utiliza de violência desmedida
e, até mesmo, faz desocupações de camponeses sem que tenha sido expedido
mandado judicial.

Para se compreender o que foi acima definido como violência rural é


necessário, primeiro, retratar a mudança da forma de acesso à terra no século
XIX e, o conseqüente início da expansão capitalista no campo. É importante,
ainda, tratar da expansão do capital nos anos 70, da resistência dos camponeses
notada, principalmente a partir dos anos 80, e por último, do debate téorico
acerca da violência costumeira e da institucionalização dos conflitos.

Historicamente, segundo Martins (1981) há um marco para os conflitos


fundiários no Brasil. A Lei de Terras, de 1850, consagrou a propriedade privada
da terra, ao proibir a livre ocupação de terras e estabelecer a compra como a
forma legal e regular de se adquirir o domínio da terra. Surgiu como fruto desta

176
Instituição que já na sua origem no Brasil teve atuações repressivas contra os movimentos
messiânicos camponeses
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 365

mudança, o posseiro, aquele que detém a posse de uma terra desocupada, já


que como homem livre e pobre não tem condições de comprar a terra.

Além disso, segundo Martins, a restrição ao acesso à terra abriu a porta


para a expansão do capitalismo no campo, porque o proprietário passou a
receber a renda da terra177. Por sua vez, os posseiros, que não aceitavam pagar
renda pela terra ou que não se adequava às exigências do proprietário, foram
sendo progressivamente expulsos de onde se encontravam e migrando para o
interior do Brasil, apesar de suas resistências, com o uso de força privada ou
pública. Este movimento migratório, que se estende até hoje, recebeu pelo
menos duas interpretações teóricas distintas que são analisadas pelo autor. Para
os antropólogos elas foram inicialmente definidas como frentes de expansão;
passando num segundo momento a serem denominadas por antropólogos e
geógrafos de frentes pioneiras. Martins utiliza ambas definições. Na definição de
frente de expansão, segundo ele, o principal agente é o posseiro. Em sua lógica
predomina o trabalho familiar e o excedente produzido pode, eventualmente,
tornar-se mercadoria. Diferente da primeira, a frente pioneira implica a existência
de uma lógica do capital, cujo principal agente é o proprietário de terras, que
produz mercadorias para serem comercializadas. Geralmente a frente pioneira
penetra áreas já exploradas pelos posseiros, os quais não têm direito legal sobre
a terra. De acordo com Martins, a defesa dos camponeses frente às tentativas de
expropriação178 realizadas junto à expansão do capital se dá através da defesa de
seu direito à propriedade. Nas palavras do autor: “O direito de propriedade que,
afinal de contas, o camponês invoca judicialmente para resistir às tentativas de
expropriação é o mesmo direito que o capitalista invoca para expropriar o
camponês (e não um direito institucionalmente diferente, como o da propriedade
comunal). É das contradições desse direito, que serve a duas formas de
propriedade privada - a familiar e a capitalista - que nascem as interpretações
distintas sobre a terra camponesa e a terra capitalista, terra de trabalho e terra de
negócio” (MARTINS, 1981).

Segundo Martins, a lógica que explica os conflitos agrários mais recentes


no Brasil é a da expansão do capital para a Amazônia a partir dos incentivos

177
Muito sucintamente, renda capitalista da terra é um componente particular da mais-valia que
vai para o proprietário da terra (Cf. OLIVEIRA, 1995: 73), através do pagamento seja em trabalho,
em dinheiro ou em produtos agropecuários por aqueles que trabalham na sua propriedade.
178
Há três importantes técnicas de expropriação. A grilagem, técnica utilizada para falsificar
títulos de propriedade. O cercamento, recurso conhecidamente utilizado por fazendeiros para
dominar áreas que não lhes pertencem. A terceira é a transformação de agregados em
assalariados e sua a posterior despensa sem o pagamento dos “direitos costumeiros” do
agregado.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 366

fiscais do governo militar na década de 1970. Entre estes incentivos pode-se citar
a concessão de grandes áreas para empresas multinacionais e nacionais.
Acrescenta-se a esses incentivos as obras governamentais, visando fornecer
infra-estrutura a esta região. Também José Vicente Tavares dos Santos179,
(1992), mostra, pelos dados da própria CPT, que a grande maioria dos conflitos
de terra hoje em dia começaram na década de 70.

Ainda dentro dessa lógica de expansão do capital, Martins (1986) analisa o


trabalho escravo presente hoje em dia como uma peculiaridade da acumulação
capitalista brasileira. Isto é, pelas contradições da expansão do capital, este
utiliza-se tanto do trabalho assalariado quando de formas não assalariadas:
quando não se tem a possibilidade de contar com trabalhadores rurais
assalariados, estes são subjugados sob o “regime do barracão”180.

A expansão do capital tem, ainda, implicações sobre os conflitos que


atingem garimpeiros e índios. Os garimpeiros, as “frentes de expansão” e as
“frentes pioneiras” ocupam áreas pertencentes a grupos indígenas. Esta
discussão a cerca da expansão do capital será retomada no item sobre a
geografia dos conflitos.

Apesar da expansão do capital, cabe destacar a resistência dos


camponeses (ou trabalhadores rurais). Resistência que pode ser verificada
através de "diferentes segmentos camponeses que vêm conseguindo transformar
os mecanismos coercitivos de dominação em conflito e até mesmo em violação
de seus direitos assegurados por lei". O reconhecimento da condição de "vítima"
deve ser entendido como "uma forma de luta e de mobilização, objetivando o
acesso à cena política legítima e à plenitude dos direitos de cidadania"
(ALMEIDA, 1992: 61). A perícia antropológica, proposta pela autor, leva em conta
a existência de conceitos intrínsecos de justiça na população estudada, por isso,
eventuais atos de "justiça camponesa ou indígena" podem ser observados em
forma de linchamentos ou execuções sumárias contra pistoleiros. Na inexistência
da autoridade judiciária para intermediar conflitos no meio rural, tais atos de

179
Este autor que também estuda casos de violência rural, trabalha de outra forma. Nos seus
trabalhos, a violência rural assume 5 dimensões: violência contra a natureza, violência
costumeira, violência política, violência programada e violência simbólica.
180
Segundo os critérios adotados pela CPT, a ocorrência de trabalho escravo se dá pelo regime
de “barracão” no qual, obrigatoriamente, o “peão” tem que comprar alimentos e objetos no
armazém da empresa, sendo que recebe seu pagamento em vales para serem trocados no
armazém. Os altos preços dos produtos do armazém, em comparação com a remuneração do
“peão” não lhe permitem pagar suas contas. Com isso, os “peões” se endividam e são impedidos
de deixar a propriedade. Essa sujeição do trabalhador é um critério para a caracterização de
trabalho escravo.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 367

"justiça" funcionariam no sentido de revidar o fato de, exclusivamente, ser vítima,


para além da "igualdade" preconizada nos textos legais (ALMEIDA, 1992: 62181).

No entanto, esta resistência dos trabalhadores rurais não ocorre sem uma
contrapartida por parte dos proprietários. Assim, segundo os trabalhos de
Almeida (1988), Sigaud (1987) e Santos (1992), a violência no campo, a partir da
segunda metade da década de 1980, pode ser entendida como sendo uma
reação armada dos proprietários, através de milícias privadas, à organização dos
trabalhadores rurais em sindicatos, federais e confederações e às suas
reivindicações por uma reforma agrária que respondesse às inúmeras famílias de
trabalhadores sem-terra e, se tornasse uma via regular de acesso à terra.

Enfim, para se tratar da violência rural é preciso levar em conta que é


violência está presente nos costumes. A violência costumeira refere-se à esfera
privada de resolução dos conflitos, como forma já presente desde a ordem
escravagista. Segundo Maria Sylvia de Carvalho Franco (1969), que estudou os
homens livres e pobres da sociedade escravagista do Vale do Paraíba no século
XIX, esta violência costumeira pode ser entendida como uma componente moral
para a resolução dos conflitos desta população que se opunha à intermediação
de agentes do Estado para arbitrar as suas contendas.

Por sua vez, Medeiros (1996), fazendo uma análise da “cultura política”
brasileira, apresenta a violência costumeira como algo a ser combatido pelo
Estado democrático. Segundo ela, a permanência desta violência, mesmo no
Estado democrático, está na não-consolidação, no Brasil, de uma esfera pública.
Por isso, os conflitos seriam resolvidos de forma privada, com o uso da violência
física. Ainda segundo a autora, o Poder Judiciário estaria comprometido com a
defesa dos interesses dos proprietários de terra. Este comprometimento pode
inviabilizar uma saída institucional para a violência.

Os limites dessa institucionalização dos conflitos agrários, salientada por


Medeiros, serão apontados no item sobre o histórico da questão agrária nos anos
80 e 90 e nos itens que se referem, aos atores, à atuação do Estado e à atuação
das entidades, e retomados na conclusão.

2. O levantamento dos dados

O Banco de Dados sobre Graves Violações de Direitos Humanos do


NEV/USP, no que tange à violência rural, tem como um de seus objetivos

181
O autor baseia sua análise em Barrington Moore Jr., Injustiça - as bases sociais da obediência
e da revolta.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 368

acompanhar as agressões cometidas nos conflitos de terra, trabalho, garimpo e


questão indígena.

As agressões foram classificadas segundo os seguintes delitos: homicídio,


tentativa de homicídio, ameaça de morte, lesões corporais, trabalho escravo,
cárcere privado e outros (abusos de autoridade, tentativa de linchamento,
seqüestros, maus tratos e tortura182).

Os conflitos tratados nesta pesquisa foram183:

CONFLITOS DE TERRA(TE) - caracterizam-se pela disputa da posse, da


propriedade e do uso da terra. As disputas em torno do uso envolvem renda, foro,
parceria, meação e atividades extrativistas, como em seringais e castanhais.
Além disso, foram classificados como conflitos de terra as agressões ocorridas
em manifestações públicas por reforma agrária e as ameaças e atentados contra
lideranças de trabalhadores rurais.

CONFLITOS TRABALHISTAS (TR) - abrangem as disputas na relação de


trabalho patrão/empregado (como o desrespeito às normas da Consolidação das
Leis Trabalhistas), a ocorrência de trabalho escravo, o não pagamento de
salários e greves. Para os anos 90, devido a inexpressividade de notícias a
respeito de conflitos nas relações patrão/empregado, os conflitos trabalhistas só
apresentam ocorrências violentas que envolvam o trabalho escravo.

CONFLITOS DE GARIMPO (GA)- envolvem tanto disputas nas relações


trabalhistas quanto conflitos por áreas de garimpo: desde agressões cometidas
pela falta de pagamento dos trabalhadores até a disputa violenta pela posse do
garimpo.

(QI) - decorrem de problemas com os


CONFLITOS DE QUESTÃO INDÍGENA
territórios das diferentes nações indígenas, seja devido às invasões, à
manifestações em defesa de demarcações e de garantias contra novas
ocupações.

A distribuição dos 603 casos184 que serão analisados, entre os 4 diferentes


tipos de conflitos deu-se de forma seguinte.

182
Estes delitos foram agrupados numa única categoria devido à sua inexpressividade numérica.
183
A CPT classifica seus casos de violações em vários tipos de conflito, tais como: terra, trabalho,
trabalho escravo, política agrícola, garimpo, terra de questão indígena, questões sindicais e seca.
Mas as ocorrências expressivas estão presentes nas categoriais definidas a seguir.
184
Apesar de ser diferente a definição de caso entre os anos 80 e 90, como será descrito a
seguir, pode-se visualizar os níveis dos diferentes conflitos neste período de dez anos.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 369

Fonte: Banco de Dados sobre Graves Violações de Direitos Humanos, NEV-USP / Secretaria
Nacional de Direitos Humanos - Ministério da Justiça

A idéia inicial foi construir um banco de dados sobre violência rural, a partir
da imprensa, para acompanhar sistematicamente esta violência. Contudo, para
os anos 80, utilizou-se como fonte de dados as listagens produzidas pela
Comissão Pastoral da Terra (CPT), devido à coleta na imprensa nacional185 ter
apresentado um pequeno número de relatos de agressões. Estas listagens
produzidas pela CPT reúnem denúncias feitas pelos trabalhadores rurais e
missionários que trabalham nos locais onde estão ocorrendo conflitos, além de
uma pesquisa diária realizada tanto em jornais de circulação nacional, quanto
naqueles de circulação local. Decidiu-se trabalhar apenas com os homicídios
ocorridos durante os anos de 1987, 88 e 89, uma vez que eram os números
mais abrangentes.

As listagens produzidas pela CPT contêm as ocorrências de violência rural


agrupados em torno da fazenda, do garimpo, da área ou da reserva indígena
disputados, ou, ainda, em torno de um assassinato, tal agrupamento denomina-
se “caso”. Assim sendo, um “caso” pode representar um ou mais ocorrências de
homicídio, pois remete a um conflito que pode englobar mais de uma ocorrência
violenta.

Para o período dos anos de 1987 a 1989, foram selecionados os 177


casos de homicídios186, divididos em 127 casos de conflitos de terra, 30 de
conflitos de trabalho, 14 de conflitos relacionados à questão indígena e outros 6
envolvendo conflitos de garimpo. A variação dos totais de conflitos ao longo de
três anos apresenta um declínio.

185
Imprensa nacional foi a designação dada a um conjunto de jornais, de São Paulo e Rio de
Janeiro, que teriam uma maior capacidade para noticiar um abrangente número de casos de
violação de Direitos Humanos no Brasil: Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo, Jornal do
Brasil e o Globo.
186
Ao todo, as listagens da CPT para os anos de 1987 a 1989, apresentam 1937 casos de todos
os tipo de conflito acompanhados por esta entidade.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 370

Fonte: Banco de Dados sobre Graves Violações de Direitos Humanos, NEV-USP /


Secretaria Nacional de Direitos Humanos - Ministério da Justiça

Para os anos 90, com a coleta diária de jornais, foi possível estabelecer o
acompanhamento da violência rural pelo próprio NEV.

Para se testar a validade de se fazer um banco de dados a partir da


imprensa alguns dados foram comparados. Uma comparação entre o número de
vítimas de homicídio nos conflitos de violência rural nos anos 90 (1990 a 1996),
publicados pela CPT (1993), (1995) e (1997), com os dados extraídos dos jornais
apresentaram números bem próximos: CPT (387 mortos) e imprensa nacional
(422 mortos), esta diferença se deve certamente ao fato de a CPT ter deixado a
cargo do CIMI a coleta dos casos de conflitos por questão indígena a partir de
1991. Isto mostra que a imprensa é uma fonte importante para o
acompanhamento de mortes no campo. No entanto, já em relação às tentativas
de homicídio e às ameaças de morte, os números da CPT são muito maiores. O
número de vítimas de tentativa de homicídio segundo a CPT é de 568, enquanto
que para a imprensa nacional foi de apenas 75187. O número de ameaçados de
morte segundo a CPT é de 1279, enquanto a imprensa nacional relatou 346
vítimas. Os fatos que podem se aproximar de uma explicação para essas
diferenças são: uma maior capacidade de cobertura destes dados pela CPT,
devido a sua presença junto a comunidades de trabalhadores rurais, e um menor
espaço na imprensa para ocorrência de tentativa de homicídio e ameaça de
morte.

Os dados para os anos 90 se referem às notícias coletadas, como já foi


dito, no período 1990-1996, tendo sido feito um levantamento no seguintes

187
Se as vítimas feridas em ocorrências de homicídio forem consideradas como vítimas de
tentativa de homicídio os números passam a ser 199.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 371

jornais: Folha de São Paulo (FSP), O Estado de São Paulo (OESP), Jornal do
Brasil (JB) ao longo de todo este período188.

As notícias sobre agressões coletadas foram agrupadas de acordo com


cada ocorrência de violência às quais elas se referiam. Esses agrupamentos
foram denominados “casos”. Dessa forma, o conceito de “casos” foi alterado para
os anos 90, passando de uma ou mais ocorrências para apenas uma ocorrência.
Esta diferença de fonte e de tratamento, por um lado, aperfeiçoou os dados sobre
o acompanhamento da atuação do Estado e das Entidades em relação a cada
ocorrência. Por outro lado, dificultou o acompanhamento de outras formas de
ação do Estado para resolver as disputas, como a realização de desapropriação
de áreas para as pessoas envolvidas no conflito e, além disso, dificultou a
comparação entre os anos 80 e 90.

Fonte: Banco de Dados sobre Graves Violações de Direitos Humanos, NEV-USP /


Secretaria Nacional de Direitos Humanos - Ministério da Justiça

Para o período seguinte, de 1990 a 1996, há um total de 426 casos,


divididos em 231 de conflitos de terra, 54 de conflitos de trabalho, 114 de
conflitos de questão indígena e 27 de conflito de garimpo. Ocorreu uma oscilação
do total de casos ao longo do período, tendo o maior pico em 1991. Neste ano
houve um acúmulo de notícias que em grande parte deve-se à ocorrência da
Comissão Parlamentar de Inquérito sobre crimes de pistolagem189. Assim, a
explicação para tal pico pode ser o fato de a imprensa ter dado maior destaque

188
O jornal Notícias Populares (NP) foi utilizado como fonte para os anos 90, 91, 92 como
também algumas notícias da Folha da Tarde e do Gazeta Mercantil, mas sem coleta sistemática.
189
César Barreira define o crime de aluguel ou pistolagem com sendo aquele que tem a estrutura
básica do autor material, o pistoleiro, e o autor intelectual, o mandante. (Cf. BARREIRA, 1992).
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 372

para a violência rural em 1991. Este destaque caiu abruptamente em 1992,


provavelmente, em função do processo de impeachment do então presidente da
República.

Tomando-se os tipos de conflito isoladamente, observa-se que a


distribuição temporal dos casos de questões indígenas apresenta um desvio do
padrão acima. O maior pico nestes casos foi em 1993, com 32 ocorrências. Este
aumento pode ser explicado, por um lado, pelo fato de que naquele ano
encerrava-se o prazo estabelecido pela Constituição Federal, para a demarcação
das terras indígenas. A possibilidade dessa demarcação, que efetivamente não
ocorreu em sua totalidade, certamente levou a mais invasões de áreas indígenas
e a um acirramento das ações em defesa das demarcações. Por outro lado, o
interesse público e da imprensa sobre o caso Ianomâmi certamente contribuíram
para veiculação de outras notícias de violência envolvendo indígenas.

As violências relatadas na imprensa foram as tipificadas pela classificação


de delitos presente no início deste item, não se restringindo apenas às
ocorrências de homicídio como foi feito em relação aos dados dos anos 80.

As variáveis com que foram trabalhados os casos, tanto para os anos 80


como para os anos 90, e que serão apresentadas são: unidade da federação em
que ocorreu o conflito, tipos de conflito, ocupação de vítimas e agressores,
Atuação do Estado e Atuação de Entidades. As diversas categorias de cada
variável serão explicitadas quando da apresentação dos resultados, bem como
outras diferenças entre os dados dos anos 80 e 90. Além da coleta de notícias
sobre a violência, foi formado um Dossiê sobre notícias e artigos sobre reforma
agrária, áreas e reservas indígenas e sobre garimpos, utilizado na elaboração do
item a seguir.

3. Histórico da questão agrária nos anos 80 e 90


Uma discussão acerca da questão agrária é importante para se
compreender o cenário no qual a violência rural se desenrola. O conceito de
questão agrária trabalhado neste artigo engloba as disputas, sejam por meios
violentos ou não, em torno da terra (TE, QI e GA) e do trabalho no campo (TR e
GA). Este histórico visa apresentar um quadro da dinâmica da questão agrária
retratada nas listagens e nas publicações da CPT (para os anos 80), e na
imprensa (para os anos 90), mostrando as ações e reações, sejam ações
violentas ou não, de proprietários, garimpeiros, índios, trabalhadores rurais,
líderes religiosos, políticos e sindicais dos trabalhadores, agentes do Estado e
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 373

entidades civis em torno da questão agrária, dos casos de violência rural e de


suas repercussões nacional e internacional.

Nos anos 80, a luta no campo foi marcada por importantes


acontecimentos: o governo apresentou medidas visando a implantação da
reforma agrária, por sua vez, entre trabalhadores rurais, proprietários e índios
observou-se um intenso processo de organização e mobilização para defesa de
seus interesses. Entre as medidas adotadas pelo Governo Federal destacam-se
as propostas de desapropriação introduzidas pelo 1º. PLANO NACIONAL DE
REFORMA AGRÁRIA, apresentado em 1985. Este plano foi elaborado como uma
resposta oficial à mobilização em defesa da reforma agrária organizada por
membros das igrejas, sindicatos e outra entidades civis. De um modo geral, as
propostas contidas no Plano nunca chegaram a ser implementadas (ALMEIDA,
1988:136).

Além de pressionar o governo a encontrar respostas às suas


reivindicações, a mobilização dos trabalhadores se deu através de Congressos190,
de ocupações de terra, de denúncias de propriedades improdutivas e irregulares
(grilagem e cercamentos) e de desrespeito aos direitos dos trabalhadores rurais
(direitos trabalhistas e direitos de posse).

Esta mobilização provocou uma reação de proprietários de terra, que em


1985 criaram a União Democrática Ruralista (UDR) e que passaram a se
defender das desapropriações, seja através de mobilização de deputados
“ruralistas”, seja através de violência contra trabalhadores rurais e suas
lideranças. Como conseqüência dessa reação, em meados da década de 80,
acirrou-se a violência no campo. O crescimento da violência, com aumento do
número de assassinatos de trabalhadores rurais e daqueles que se destacavam
na liderança do movimento – missionários, políticos, sindicalistas entre outros,
levou as entidades civis envolvidas na luta pela reforma agrária, em conjunto com
advogados e juristas, a criarem em 1987, o 1º TRIBUNAL NACIONAL DOS CRIMES DO
LATIFÚNDIO. Este tribunal simulou julgamentos de alguns processos penais
instaurados para apurar os assassinatos de camponeses, que, mesmo depois de
anos, ainda não haviam sido julgados pela Justiça.

Destaca-se na organização de trabalhadores, a articulação de


trabalhadores rurais sem-terra, nos últimos anos da década de 70, no sul do
Brasil. Desta mobilização surgiu o movimento dos trabalhadores rurais sem-terra

190
Como o Congresso Nacional dos Trabalhadores Rurais, em maio de 1985, Brasília/ DF, as
ocupações de terra e as denúncias de propriedades improdutivas e de desrespeito aos direitos
dos trabalhadores rurais.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 374

que se consolidou nacionalmente nos anos 80, passando a ser conhecido como
Movimento dos Sem-terra (MST). Nos anos seguintes, este movimento foi
responsável pela organização de trabalhadores rurais sem-terra na luta por
desapropriações e assentamentos, utilizando como estratégia ocupações de
prédios públicos, sede de instituições governamentais, e ocupação de terras que
são consideradas improdutivas pelo MST. Para definir se a área é produtiva ou
não, o próprio MST faz, antes de cada ocupação, uma avaliação das áreas a
serem ocupadas. Em alguns casos, o MST, como estratégia de luta, resiste à
desocupação mesmo com ordem judicial já expedida.

Em 1988, com a proposta da nova Constituição Federal, além das disputas


entre grupos que defendiam a reforma agrária e os que representavam os
interesses dos latifundiários, houve a pressão de lideranças indígenas exigindo o
reconhecimento da posse de suas terras e de sua diversidade cultural. A pressão
resultou no reconhecimento pela Constituição Federal da organização social,
costumes, línguas, crenças e tradições indígenas, além de estabelecer que todas
as terras indígenas estariam demarcadas até 05 de outubro de 1993. Quanto aos
proprietários, estes conseguiram assegurar que “A lei garantirá tratamento
especial à propriedade produtiva e fixará normas para o cumprimento dos
requisitos relativos a sua função social” (Art.185, II Parágrafo único). Esta
pressão no Congresso impediu por lei que propostas como a realização de
desapropriações sem prévio pagamento com títulos públicos e a utilização do
valor da propriedade na declaração do Imposto Territorial Rural (ITR191) para
preço da terra a ser desapropriada fossem aprovadas.

O caso mais marcante de violência rural nos anos 80 ocorreu em 22 de


dezembro de 1988. Chico Mendes, ecologista, presidente do Sindicato dos
Trabalhadores Rurais e líder seringalista que lutava pela criação de uma Reserva
Extrativista no Acre e que estava envolvido com a obstrução de derrubadas de
seringais por fazendeiros, é morto após inúmeras ameaças de morte que,
segundo denúncias, estariam sendo feitas por jagunços e até policiais. A
imprensa e ONGs nacionais e internacionais acompanharam o caso. Ainda em
1988, é formado o Comite Chico Mendes, que congrega 36 entidades, tendo
entre seus objetivos pressionar às autoridades para a apuração do caso e para
defesa de outras lideranças ameaçadas. No decorrer da apuração pela justiça
inúmeras outras violências são cometidas, inclusive contra agentes do Estado.
No dia 12/03/90, é criada pelo Governo Federal, a Reserva Extrativista de Xapuri,
em uma área de um milhão de hectares. No dia 15/02/93, fogem da Penitenciária

191
Imposto, que por lei, deve ser pago anualmente pelos proprietários de terra. O valor a ser pago
é calculado com base no preço da propriedade e na sua produtividade.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 375

Estadual do Acre os condenados pela morte de Chico Mendes, Darly Alves da


Silva e Darci Alves Pereira. No dia 23/03/93 é confirmada a condenação dos
acusados pelo Tribunal de Júri, em dezembro de 1990. Os fugitivos continuam
soltos.

Nos primeiros anos da década de noventa várias pessoas são


assassinadas e ameaçadas de morte na região do sul do Pará, a mando de
fazendeiros, o que provocou comoções nacional e internacional. Entre elas está o
presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Rio Maria (PA), Expedito
Ribeiro de Souza que foi morto em 1991. Anteriormente, já haviam sido mortos
em Rio Maria, o sindicalista João Canuto de Oliveira em 1985, seus dois filhos,
em 1990, e ferido o presidente do sindicato Carlos Cabral. Uma comissão
especial da Polícia Federal designada pelo ministro da Justiça resolveu
rapidamente o caso da morte de Expedito, o que gerou críticas: o governo
brasileiro foi acusado na imprensa de se importar mais com a imagem do país no
exterior do que propriamente em resolver os crimes e controlar a violência no
país. Os assassinos foram julgados em dezembro de 1994, mas o mandante do
crime permaneceu foragido.

Em 1991, houve a “Operação Selva Livre” com a qual o Governo federal


procurou fazer cumprir a Constituição, no que diz respeito à demarcação das
terras indígenas. Esta operação, executada pela Polícia Federal, visava a retirada
dos garimpeiros da área Ianomâmi e a destruição das pistas de pouso
clandestinas.

Ainda em 1991 foi instituída, no Congresso Nacional a Comissão


Parlamentar de Inquérito ("CPI da pistolagem") que investigou a violência no
campo. Uma das conseqüências dos trabalhos da CPI da Pistolagem foi a
realização de uma operação de desarmamento na região do Bico de Papagaio.

No final de 1992, a Reserva Ianomâmi (área demarcada em novembro de


1991), em Roraima, voltou a ser ocupada por garimpeiros. Em meados de agosto
de 1993, o Brasil (e o mundo) foi surpreendido com a denúncia do Massacre de
16 Ianomâmi. No final de 96 foram condenados seis réus envolvidos.

Como a data prevista na Constituição não foi honrada, nos anos de 93 e


94 continuaram a ocorrer manifestações para acelerar a demarcação de terras
indígenas. Durante o ano de 1994, ano eleitoral, ocorreram manifestações
nacionais por ocasião do 1° GRITO DA TERRA, movimento convocado pela Igreja
Católica, em conjunto com movimentos populares (destacando-se o MST) e
organizações sindicais chamando a atenção da opinião pública para a situação
fundiária do país. Este ato repetiu-se nos anos consecutivos.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 376

Durante o ano de 1995 a opinião pública, mobilizada pela imprensa voltou


seu interesse para a área do Pontal do Paranapanema, terras localizadas a oeste
do Estado de São Paulo, pois, o MST intensificou as lutas de ocupação nesta
região. No final do ano, saiu um acordo entre o MST e o governo estadual: as
ocupações são suspensas e o governo se compromete a assentar 2100 famílias
até 30 de junho de 1997.

Ainda em 1995, houve um maior empenho na averiguação de denúncias


de trabalho escravo e das péssimas condições de trabalho impostas à
trabalhadores rurais, especialmente em casos envolvendo crianças e
adolescentes.

Em 9/8/95, na Fazenda Santa Elina em Corumbiara/ RO ocorreu um


confronto envolvendo trabalhadores rurais e policias militares terminando com a
morte de 10 trabalhadores sem-terra e 2 policiais militares, além de deixar
dezenas de feridos e desaparecidos. No dia 1º de outubro de 1996 foram
denunciados 20 PMs (entre eles um tenente-coronel), 4 sem-terra, 1 pecuarista e
1 administrador de fazenda. Contudo, o caso ainda continua no Judiciário
Brasileiro. Durante o caso surgiu uma grave suspeita de que a ação dos policiais
teria sido a mando de fazendeiros da região.

O ano de 1996 iniciou com o debate em torno do decreto presidencial n°


1.775, de janeiro de 1996, que permitiu a revisão da demarcação de terras
indígenas, abrindo a possibilidade de contestação destas na justiça por pessoas
ou estados que se sentissem prejudicados. Houve forte pressão internacional
contra o decreto. O governo de Roraima, governo que perdeu a posse de grande
faixa de terra com a demarcação das Reservas Ianômami e Raposa Serra do Sol,
encaminhou inúmeros recursos.

Em 17 de abril de 1996, ocorreu outro crime de comoção nacional: durante


mais um confronto entre policiais militares e trabalhadores sem-terra,
acampados na Rodovia PA-150 em Eldorado dos Carajás (PA), 19 trabalhadores
sem-terra morreram, sendo que as investigações, revelaram que 10 deles teriam
sido executados. O MOVIMENTO DOS SEM-TERRA pediu a intervenção federal no
Pará e a queda do Ministro da Justiça Nelson Jobim. Como resposta do Governo
Federal aos acontecimentos e os ataques sofridos, foi divulgado um pacote de
medidas para combater a violência no campo e acelerar a reforma agrária. Entre
as medidas adotadas estava a criação do Ministério para a Reforma Agrária192.

192
Além da criação do Ministério, destacam-se entre as principais medidas do pacote: tramitação
no Congresso, em regime de urgência dos projetos de lei do rito sumário (“Segundo a proposta do
Poder Executivo, a expedição de mandado de posse das terras desapropriadas deveria ser feita
em até 48 horas. Hoje, o INCRA costuma demorar até 90 dias para concluir o processo”);
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 377

Em novembro de 97, 153 Policiais Militares envolvidos no massacre foram


pronunciados pela Justiça

Na região do Pontal do Paranapanema/ SP, a partir de junho o MST,


afirmando que o governo não cumpriu o acordo realizado em 1995, retoma as
ocupações para pressionar o governo estadual a assentar definitivamente as
famílias.

Em setembro de 1996 é recriada a UDR (União Democrática Ruralista)


pelos fazendeiros do Pontal, os quais começam a organizar resistência armada
às ocupações. Em novembro a Polícia Militar inicia desarmamento no Pontal, ao
mesmo tempo que o MST propunha essa questão ao governo federal.

Um outro fator que chamou atenção, ao longo dos sete anos pesquisados
na imprensa da década de 90, foi o uso crescente de ocupação de prédios
públicos pelos trabalhadores rurais e por índios como estratégia de luta. Os alvos
mais freqüentes dessa estratégia foram os prédios do Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária (INCRA), da Superintendência de
Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE), da FUNAI, da Secretaria da Fazenda e
das Secretarias da Agricultura dos Estados. Essa prática fica no limite entre ato
político e violento, já que é uma manifestação pública e, ao mesmo tempo, uma
forma de agressão aos funcionários destas agências públicas.

Índices da violência rural: 80 e 90


A diferença do tratamento dos dados dos anos 80 e 90 dificulta a
comparação entre as décadas. No entanto, apesar de termos coletado os dados
nas listagens da CPT para 80 e na imprensa nacional em 90, é possível fazer
uma comparação entre os dados de violência destes anos utilizando-se os
números sobre vítimas fatais.

O número de mortos segue a seguinte alteração: 1987 (132), 1988 (113),


1989 (72), 1990 (82), 1991 (97), 1992 (33), 1993 (50), 1994 (39), 1995 (72), 1996
(69). Para confirmar esta queda de uma média de 106 mortos nos anos 80, para
64 mortos nos anos 90 decidiu-se comparar estes dados com aqueles publicados
pela CPT em “Conflitos no Campo”. Os números da CPT são: 1987 (161), 1988
(110), 1989 (67), 1990 (82), 1991 (54), 1992 (47), 1993 (52), 1994 (47), 1995
(41) e 1996 (54). No gráfico 4, os dados estão unidos.

urgência na aprovação do projeto de lei que prevê a transferência da Justiça Militar para a Justiça
Comum do julgamento de crimes praticados por policiais militares em serviço; emenda
constitucional transferindo das justiças estaduais para a Justiça Federal os julgamentos dos
crimes contra os direitos humanos; adoção de medidas de cautela nas decisões sobre
reintegração de posse em conflitos coletivos. (Gazeta Mercantil, 23/04/96)
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 378

Fonte: Banco de Dados sobre Graves Violações de Direitos Humanos, NEV-USP / Secretaria
Nacional de Direitos Humanos - Ministério da Justiça, e Cadernos Conflitos no Campo, CPT

Tanto os números da CPT quanto os da pesquisa do Banco de Dados


sobre Graves Violações de Direitos Humanos do NEV apontam para uma
redução dos índices de homicídio. No entanto, para se poder afirmar com maior
propriedade uma certa redução dos níveis nos dados sobre a violência rural,
caberia ainda verificar os demais delitos. Dos cadernos publicados pela CPT
foram retirados dados sobre números de ameaçados de morte e de vítimas de
tentativas de assassinato de 1985 a 1996 após uma certa tendência a aumentar
chegando a quase 500 vítimas em 1991, o número de vítimas se reduz abaixo de
200 em 1996.

Fonte: Cadernos Conflitos no Campo, CPT

Os dados sobre o número de ocorrências dos diferentes tipos de delito193


mostram também uma queda no período 90-96.

193
Correspondem respectivamente aos artigos do Código Penal: 121 combinado com 14, II; 147,
148, 149, 129 e “outros”, que não podem ser enquadrados num único artigo. Vale salientar que a
associação da violência noticiada e a sua tipificação em um delito é uma indução de inteira
responsabilidade da pesquisa. Quer dizer, não se classificou o enquadramento na lei penal
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 379

Fonte: Banco de Dados sobre Graves Violações de Direitos Humanos, NEV-USP / Secretaria
Nacional de Direitos Humanos - Ministério da Justiça, e Cadernos Conflitos no Campo, CPT

O conjunto destes dados, os quais são únicos passíveis de comparação


direta entre os anos 80 e 90, aponta para uma redução dos índices de violência.
Entretanto, devido às limitações das fontes em cobrir todo o universo da violência
rural, não é possível afirmar com certeza que a violência rural esteja diminuindo.
Segundo Almeida, os conflitos nos últimos anos não caíram, mas a capacidade
de registrá-los diminuiu194.Também não foi possível verificar, nesta pesquisa, se
há maior institucionalização das disputas, conforme a discussão empreendida por
Medeiros (op cit), ou mesmo uma redução destas disputas. O aumento dos casos
de homicídio, segundo o Banco de Dados de Graves Violações de Direitos
Humanos, em alguns estados, Roraima (1987-89: 6 casos, 1990-96: 17) e Rio
Grande do Sul (1987-89: 1 caso, 1990-96: 5 casos), depõem contra a
possibilidade de se afirmar uma redução da violência e das disputas rurais no
Brasil, sem uma pesquisa que envolva visitas às atuais áreas de disputa, às
novas áreas, levando-se em conta quantas destas disputas rurais envolvam
violência ou meios institucionais de resolução de disputas (como processos
judiciais de disputa de terra).

4. Geografia dos conflitos


A maioria absoluta das ocorrências de violência rural aqui tratadas
concentra-se nas regiões Norte e Nordeste do país. Apresentando os quatro tipos
de conflito, os destaques na região Norte do país vão para os conflitos de terra e
de questão indígena. Sendo a fronteira agrícola do país, a região sofre as
conseqüências das frentes de expansão e pioneira e assim há informação sobre
conflitos em todos os estados.

dessas violências noticiadas com base na ação do agente do Estado responsável para tal, o
delegado.
194 º
Palestra proferida por Alfredo W. B. de Almeida no 1 Simpósio de Geografia Agrária, FFLCH/
USP, em 28/05/98.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 380

Fonte: Banco de Dados sobre Graves Violações de Direitos Humanos, NEV-USP /


Secretaria Nacional de Direitos Humanos - Ministério da Justiça

Na região Norte está a segunda maior concentração de casos do período


de 1987 a 1989, 35% dos casos, e a maioria dos casos de 1990 a 1996, 43,2%.
O Pará é a unidade da federação com os maiores números de casos para os dois
períodos e contém os quatro tipos de conflito. Quer dizer, neste estado há uma
violência disseminada que envolve posseiros, proprietários, garimpeiros, índios e,
principalmente, grileiros.
Pelo número de casos de conflito, o Pará merece maior atenção. O
trabalho de Wilson Barp (1992) expõe a entrada na região, a partir do início da
década de 80, dos projetos patrocinados pelo Estado. Segundo o autor, o
governo federal criou em 1980 o Projeto Grande Carajás para o desenvolvimento
de uma área de mais de 900 mil km2, mais de 10% do território brasileiro,
compreendendo o sul do Pará, o norte de Tocantins (na época Goiás) e o
nordeste do Maranhão. Além de ferro e bauxita, a região de Carajás possui
reservas de cromo, cobre, níquel, cassiterita, tungstênio e ouro. Em 1981, a
Companhia Vale do Rio Doce (CVRD), então estatal, assumiu a responsabilidade
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 381

exclusiva sobre a produção de ferro no Projeto Grande Carajás e teve poderes


para estabelecer convênios com o capital estrangeiro.

A reserva de ferro na região, prossegue Barp, é considerada a maior do


mundo e as operações altamente mecanizadas possibilitam a obtenção do
produto a um custo baixo. A estratégia do governo de desenvolvimento
"integrado" incluiu a implantação de fundições de ferro-gusa ao longo da estrada
de ferro que liga a Serra do Carajás/ PA, onde há minas de ferro, ao porto de São
Luís/ MA, onde é escoada a produção para o exterior. A quase totalidade da
produção foi exportada, em 1986, para o Japão, Alemanha e Itália.

A região de Carajás também possui uma das maiores reservas de bauxita


do mundo, cerca de 2,2 bilhões de toneladas apenas nas áreas de Paragominas/
PA e Trombetas/ PA. Para a transformação da bauxita em alumínio é necessária
muita energia elétrica, então a Usina Hidroelétrica de Tucuruí foi construída para
fornecer eletricidade subsidiada para as duas fábricas da região, a Albras em
Barcarena/ PA e a Alumar em São Luís/ MA. A produção de alumínio é quase
toda exportada (BARP, 1992: 30-1). Em decorrência desse projeto do governo,
houve uma mudança no quadro populacional. Os índios foram empurrados para
áreas distantes desses projetos, os seringueiros e castanheiros perderam seus
trabalhos com as derrubadas de árvores, os posseiros confrontaram-se com
fazendeiros ou avançaram para a floresta como os índios. Enquanto os
garimpeiros começaram a entrar em conflito com a Companhia Vale do Rio Doce.
Voltando aos números, a concentração de casos no Pará não é um
fenômeno isolado pois remete à problemática da fronteira e à história de conflitos
na chamada área do Bico do Papagaio. Esta área, que compreende as divisas
entre as regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, desde a década de 70 tem as
maiores incidências de conflitos fundiários. Os dados confirmam que o Bico do
Papagaio ainda concentra a maior parte da violência rural do país, uma vez que o
estado do Maranhão aparece entre os primeiros colocados da região Nordeste.

A maior parte dos casos estudados do período de 1987 a 1989, 38,4%,


ocorreu no Nordeste e para o período seguinte, a região apresentou o segundo
maior número de casos, 24,6%. O estado do Maranhão ficou entre os três
primeiros lugares nos dois períodos, registrando conflitos de terra, trabalho e de
questão indígena. A região como um todo apresenta, tanto pelos números quanto
pelos elementos geográficos atuais, a inexistência de conflitos de garimpo. No
entanto, sabemos que na Bahia, por exemplo, algumas áreas de terra já foram
alvos de conflitos de garimpo.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 382

O Maranhão é um estado que sofreu a ação direta das frentes de


expansão. Parte da faixa oeste deste estado, próximo à divisa com o Pará,
estava a fronteira com a floresta equatorial, conforme estudou Sader (1986). Isto
foi um impasse para as frentes de expansão, porque os camponeses precisavam
de mais tempo e de maior instrumental para transformarem a mata fechada em
região agriculturável. A geógrafa Regina Sader (1986) mostra que o processo de
colonização do oeste do estado ocorreu sobre áreas de grupos indígenas.
Segundo esta autora, os camponeses foram parar no Maranhão devido ao
processo de expropriação do lavrador nordestino da Zona da Mata e do Agreste,
primeiro, depois, do Sertão. "Parte do campesinato expropriado do NE e também
do Sul, segue para as terras livres, ainda não apropriadas, do Maranhão, e dali,
sempre rumo oeste, para a ocupação da chamada “Fronteira Agrícola"(SADER,
1986: 29). Com o processo de expansão do capitalismo na região do Bico do
Papagaio, gerando violências, os camponeses foram expropriados de seus meios
de produção e obrigados ou a migrar ou a encontrar formas de resistência.
Assim, os posseiros do Maranhão tiveram que trabalhar, por exemplo, nas
madeireiras, passando a ser assalariados, eles que outrora tinham a posse dos
meios de produção. Ou então, eles resistiram na terra, com o apoio de setores
progressistas da igreja (SADER, 1986).
Além do Maranhão, a Bahia também se destacou em número de conflitos
violentos. Curiosamente, esse estado teve um número menor de casos nos anos
90 em relação aos anos 80, o que pode demonstrar uma certa fragilidade dos
dados da imprensa; pois, nos anos 90, o período e os delitos acompanhados são
mais amplos do que nos anos 80. De qualquer forma, somente pela imprensa
não se pode comprovar uma diminuição de fato dos casos de violências rural
nesse estado.
Nas unidades da Federação da região Centro-Oeste, há também os quatro
tipos de conflito. Nos últimos três anos da década de 80, 10,7% do total de casos
foram nesta região; durante os anos 90, 11,3%. Os estados mais afetados são
Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. A publicação CPT (1995) chamou a atenção
para o fluxo de trabalho escravo nestes dois estados. No Mato Grosso do Sul,
além dos conflitos ali existentes, a imprensa chamou a atenção para suicídios
entre os índios Kaiowá, que dizem respeito à problemática dos territórios
indígenas. No Mato Grosso, que esteve na quarta posição em número de casos
nos anos 80 e na terceira nos anos 90, há os quatro tipos de conflito. Este estado
foi visivelmente afetado pelas políticas de "desenvolvimento" da Amazônia legal.

O trabalho de Neide Esterci (1987) mostra um exemplo de como a entrada


do capital privado no nordeste de Mato Grosso deu-se de modo conflitivo, desde
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 383

final dos anos 60. Este trabalho analisa como posseiros confrontaram-se com
policiais e empregados de uma empresa privada, por causa do cercamento da
terra, antes utilizada pelos posseiros, pela empresa.

Efetivamente, pode-se notar como o conflito fundiário concentra-se sobre


uma grande área no coração do Brasil, que abrange as regiões Norte, Nordeste e
Centro-Oeste. Os conflitos são decorrentes do encontro da frente de expansão,
que compreende o universo camponês, com a frente pioneira, que leva a lógica
do capital, conforme a interpretação de Martins (1981).

As ações de ocupações de terras, nas regiões Sul e no Sudeste, vêm


crescendo a partir do início da década de 90. Estados como São Paulo, Paraná e
Rio Grande do Sul tiveram seus números de casos aumentados
consideravelmente.

A Sul, para os dois períodos, foi a região do país com menor registro de
casos, com 5% e 11,1% dos totais de casos, respectivamente. O estado com
maior número de casos, nos dois períodos, foi o Paraná onde há uma forte
organização do MST promovendo ocupações de terras.
Na região Sudeste houve 10,7% do total de casos dos anos 80 e 9,8% dos
anos 90. O estado que se destacou, por ter os quatro tipos de conflito e por ter
diminuído a informação sobre o número de casos, foi Minas Gerais. Neste estado
o fenômeno da expulsão de agregados e sitiantes das fazendas se dá com maior
intensidade desde a década de 70 (MOURA, 1986). Em São Paulo não teve
nenhum caso notificado para os anos 80. Isto talvez se deva a CPT possuir um
maior acompanhamento nas regiões Norte e Nordeste do país. No entanto, nos
anos 90 foram noticiados 19 casos, tendo grande repercussão as ocupações de
terra na região do Pontal do Paranapanema. Casos estes predominantemente de
lesões corporais.
Vale acompanhar a análise do geógrafo Ariovaldo U. de Oliveira (1997)
sobre os conflitos na região do Pontal do Paranapanema porque demonstra uma
vertente que a luta pela terra está assumindo em todo o país. Segundo ele, o
MST atua sistematicamente na região do Pontal do Paranapanema, oeste do
estado de São Paulo. A área total é de 900 mil hectares, sendo que
aproximadamente a metade constitui-se de terras devolutas, isto é, públicas.
Houve em 1886 uma grande grilagem que formou a fazenda Pirapozinho/ Santo
Anastácio, com mais de 560 mil hectares. Em 1958, o governo do estado de São
Paulo apurou a falsidade dos títulos de propriedade e ganhou a ação de
devolução das terras. "Passados 37 anos, vários decretos de desapropriações
foram assinados pelos governos estaduais atingindo uma área de 46169 ha, que
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 384

redundaram em treze assentamentos com 3350 famílias" (OLIVEIRA, 1997: 115).


Isto tornou a região a principal área de assentamentos de reforma agrária no
estado de São Paulo. Os fazendeiros que se dizem proprietários, mas são
grileiros, entraram com ações contra o Estado, porque pretendiam não perder
seus "grilos", quando perderam pediram indenizações pelas benfeitorias. A
justiça reconheceu que as terras não lhes pertencem e sim ao Estado. No
entanto, o Estado sofre ações e os "proprietários" não são retirados. Na opinião
de Oliveira, os fazendeiros-grileiros é que deveriam ressarcir o Estado por uso
indevido de seu patrimônio, ou no mínimo deveriam pagar renda pela uso da
terra que legalmente pertence ao Estado. Enfim, uma interpretação que Oliveira
dá para a questão é que no Pontal está havendo uma inversão total dos
princípios jurídicos: "os fazendeiros-grileiros são tratados pela justiça como se
fossem proprietários legais das terras [juizes emitiram liminares de reintegração
de posse] e os sem-terra que ocupam as terras que pertencem ao Estado são
tratados como “invasores" (OLIVEIRA, 1997: 118), incriminados e presos.
Dessa geografia da violência rural, constatou-se uma continuidade da
concentração da violência nas regiões Norte e Nordeste do país e algo de novo
que foi o destaque, por parte da imprensa, para os conflitos nas regiões Sul e
Sudeste, a partir dos anos 90. Quanto à região Nordeste, os conflitos notificados
oscilaram pouco em relação aos dois períodos. O fato da área do Bico do
Papagaio estar distante dos grandes centros urbanos propicia, em parte, que a
violência que tratamos aqui ocorra mais abertamente, pois a imprensa nacional
dificilmente acompanha cotidianamente esses conflitos; daí também a
importância do papel da CPT em reportá-la. Em contrapartida, nos anos 90,
houve o destaque, pela imprensa, das ocupações nas regiões Sul e Sudeste, que
geraram uma profusão de notícias sobre agressões físicas.

6. Atores
Os atores foram analisados como vítimas e agressores e como grupos em
conflitos. As vítimas e os agressores foram classificados por ocupação. As
categorias são: proprietário (categoria que inclui proprietários acusados de
grilagem), funcionário de fazenda, lideranças (são lideranças de trabalhadores
rurais; a maioria é formada por sindicalistas, mas há também políticos,
advogados e religiosos), trabalhadores rurais (esta categoria agrega os termos
sem-terra, trabalhador rural, camponês e posseiro utilizados na imprensa),
segurança privada (pistoleiros e jagunços), segurança pública (agindo sob ordens
superiores ou com abuso de autoridade; a maioria é formada por policiais
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 385

militares, mas há também policiais civis e federais), índios, garimpeiros,


madeireiros, outros e não informa.

Os vitimados
No período de 1987 a 1989, foram assassinadas 317 pessoas, inseridas
no total de 177 casos computados. No gráfico abaixo, os números exibidos são
as médias anuais dos anos 80 e dos anos 90 das vítimas de homicídio por
ocupação. Essas vítimas são trabalhadores rurais195 e lideranças (65,7 + 9,7),
índios (16,3) e, em terceiro lugar, os agentes de segurança privada (4,0). Além
destes, nota-se que os conflitos geraram mortes por todo o espectro de
personagens da violência rural, mas, sabidamente, as populações alvo foram,
predominantemente, os trabalhadores rurais e os índios. Apenas seis vítimas não
foram classificadas por ocupação, devido a falta de informação para fazê-lo.

Fonte: Banco de Dados sobre Graves Violações de Direitos Humanos, NEV-USP / Secretaria
Nacional de Direitos Humanos - Ministério da Justiça

No período seguinte, de 1990 a 1996, contabilizou-se um total de 426


casos, sendo 186 de homicídio, com um total de 1717 de vítimas, que colocam
em ordem decrescente de incidência: trabalhadores rurais e lideranças (19,3 +

195
Nos anos 80 a categoria trabalhadores rurais agrega madeireiros e garimpeiros, o que não
ocorre nos anos 90.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 386

5,0), índios (10,0), garimpeiros (7,4), agentes de segurança privada (3,7),


agentes de segurança pública (2,4), proprietários (2,3) e os demais.

Há uma redução nas médias de mortes da maioria das ocupações dos


anos 80 para os 90. Destaca-se uma grande redução deste índice para os
trabalhadores rurais (apesar do desmembramento de garimpeiros e madeireiros
nos anos 90) e as lideranças. Isto indica que os principais responsáveis por
essas mortes, proprietários e segurança privada, reduziram o número de
assassinatos cometidos. As explicações para este fato podem ser: 1) A
aprovação de uma Constituição Federal que guarneceu a estrutura agrária
brasileira de qualquer alteração radical, seja através de desapropriações em
massa ou de limitações das extensões das propriedades, além de uma
composição política nacional desde de 1990, tanto no Legislativo quanto no
Executivo, majoritariamente resistente às pressões das entidades favoráveis a
reforma agrária aumentou a confiança de proprietários de que seus interesses
seriam defendidos pelo Poder Público; 2) A pressão da imprensa e de ONG's
nacionais e interrnacionais e de governos estrangeiros para apuração dos casos
de violência rural e comoção pública em relação a esses casos que pode acabar
levando a uma aceleração da reforma agrária pode ter feito muitos proprietários
em conflito a preferirem a intervenção da justiça. O aumento da média de mortes
de segurança pública pode apontar para uma maior intervenção do Estado nos
conflitos.
Os outros 240 casos incluem delitos como: tentativa de homicídio, ameaça
de morte, cárcere privado, trabalho escravo, lesões corporais e outros.
Ocorreram 41 casos de tentativa de homicídio (75 vítimas), 49 de ameaça de
homicídio (346), 53 de lesões corporais (496), 29 de cárcere privado (1291), 54
de trabalho escravo (15820) e 14 casos de outros (784).
Nos conflitos de terra há uma diversidade de delitos. Há uma média alta de
vítimas de cárcere privado devido às ações políticas dos trabalhadores rurais
ocupando prédios públicos para se manifestarem e mantendo funcionários como
reféns. Vale ressaltar que nestes casos não há necessariamente um
enquadramento, por parte da polícia, em atos infracionais, devido ao caráter
político destas ocupações.
Nos conflitos de trabalho, a média de trabalhadores submetidos à regime
análogo ao de escravo é de 281,77 por caso e ocorrendo também homicídios,
tentativas e ameaças. Isto deixa claro que os trabalhadores rurais são mantidos
nessas condições na base da ameaça de morte, que eventualmente se realiza
quando alguém tenta fugir.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 387

Nos conflitos de garimpo como nos de questão indígena aparecem


praticamente todos os tipos de delitos. Destacam-se neste segundo, as médias
de vítimas por caso, em cárcere privado (20) e em trabalho escravo (429,3). Isto
coloca os índios, em termos relativos, como as maiores vítimas de trabalho
escravo, o que demonstra mais uma problema enfrentado pela população
indígena brasileira.

Tabela 1 - Distribuição de tipos de conflito segundo tipo de delito


Brasil 1990 – 1996
Total de vítimas, total de casos

Tipo de conflito
Tipo de Delito Dados GA QI TE TR Total
Ameaça de morte Vítimas 10 155 70 111 346
Média de vítimas 3,33 11,92 2,26 55,50
Casos 3 13 31 2 49
Cárcere privado Vítimas 7 321 963 1291
Média de vítimas 7 20,06 80,25
Casos 1 16 12 29
Homicídio Vítimas 71 147 621 9 548
Média de vítimas 4,18 2,77 5,50 3
Vítimas fatais 66 112 236 8 422
Média de vítimas fatais 3,88 2,11 2,09 2,67
Casos 17 53 113 3 186
Lesões corporais Vítimas 19 47 424 6 496
Média de vítimas 4,75 3,92 11,78 6
Casos 4 12 36 1 53
Outros Vítimas 16 768 784
Média de vítimas 2,67 96
Casos 6 8 14
Tentativa de homicídio Vítimas 2 18 54 1 75
Média de vítimas 2,00 2,25 1,74 1
Casos 1 8 31 1 41
Trabalho escravo Vítimas 1 2576 13243 15820
Média de vítimas 1,00 429,33 281,77
Casos 1 6 47 54
Total de vítimas 110 3280 2900 13370
Média de vítimas 4,07 28,77 12,55 247,59
Total de casos 27 114 231 54
Fonte: Banco de Dados sobre Graves Violações de Direitos Humanos, NEV-USP
Ministério da Justiça

Quando são enfocados os demais delitos, excetuando os homicídios, para


os anos 90, o perfil de ocupações vitimadas praticamente não se altera. Os
trabalhadores rurais são os mais vitimados em todas as violações, principalmente
no trabalho escravo. Os índios mantém o segundo lugar como vítimas. Em
números absolutos, pode-se constatar a presença de funcionários públicos,
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 388

principalmente do Incra, da Sudene e da Funai, como vítimas de cárcere privado,


em segundo lugar.

Vale ainda dizer que os números totais de vítimas de homicídios são, a


medida do possível, mais precisos do que os de totais de vítimas nos demais
delitos porque é mais difícil esconder a materialidade de um homicídio. Para os
outros delitos, às vezes, num mesmo caso o número de feridos noticiado varia de
um jornal para outro. Os números mais vagos são os de trabalhadores
escravizados, porque a informação geralmente chega por intermédio daquele que
conseguiu fugir, dando um número aproximado dos que ficaram. Como em
poucos casos é possível uma averiguação no local, os números publicados pela
imprensa são provavelmente aproximados. Devido a esta pouca precisão dos
números, optou-se por separar os delitos em dois blocos: homicídio e demais
delitos. Isso também favorece a comparação com o período anteriormente
estudado quando só foram computados os homicídios. Para os dados dos anos
de 1987 a 1989, quando se utilizou como fonte a CPT, os números de totais de
vítimas são mais precisos porque esta ONG possui membros nas principais áreas
de conflito que acompanham os casos.

Os agressores
O número de pessoas que cometeram homicídios nos 177 casos do
período de 1987 a 1989 foi de 437 indivíduos, sendo que 175 destes não foram
passíveis de serem qualificados numa ocupação. O perfil da ocupação dos outros
agressores é o seguinte: agentes de segurança privada (35%), proprietários
(7%), agentes de segurança pública (5%), trabalhadores rurais (4%) e outros. Os
agentes de segurança privada foram os maiores agressores nos conflitos de TE,
TR e QI e a segurança pública foi a categoria de ocupação com maior incidência
como agressor nos conflitos de garimpo.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 389

Fonte: Banco de Dados sobre Graves Violações de Direitos Humanos, NEV-USP /

Secretaria Nacional de Direitos Humanos - Ministério da Justiça

No segundo período tratado, de 1990 a 1996, foram contabilizados 1717


agentes causadores de homicídios, dentro dos 426 casos estudados. Em
números absolutos, tem-se os quatro principais agentes, em ordem decrescente:
segurança pública (30%), índios (20%), trabalhadores rurais (16%), segurança
privada (15%).

As explicações para tais alterações, nas porcentagens dos agressores, só


pode ser dada se levarmos em conta dois fatores. Primeiro, a alta da
porcentagem de proprietário, funcionário da fazenda e segurança privada nos
anos 80 em relação aos anos 90 se deve, em grande parte, a uma diferença
entre as fontes: a coleta de informações pela CPT para os anos 80, devido ao
seu trabalho junto aos trabalhadores rurais, utilizou as informações concedidas
por estes sobre os supostos agressores, estas informações se pautam sobre o
que foi visto e sobre quem teria interesse na morte da vítima; já para os anos 90,
a coleta da imprensa nacional geralmente se dá junto a polícia, a qual, entre
outros possíveis fatores, evita informar os suspeitos e, em outros casos, não tem
ainda suspeitos quando a notícia é veiculada. Segundo, a alta porcentagem de
trabalhadores rurais e índios deve-se certamente ao fato de que nos anos 90 foi
mais recorrente a ação de grandes grupos de trabalhadores rurais e de índios
que resultaram na morte de algumas pessoas, e que além disso, foi o
procedimento adotado para quantificar os agressores foi contar todos os que
estivessem presentes. Terceiro, a alta porcentagem da segurança pública
evidenciam um ponto marcante da violência rural nos anos 90: os dois grandes
massacres, Corumbiara/ RO e Eldorado dos Carajás/ PA, onde houve a
participação de mais de cem de policiais.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 390

Deixando a comparação entre os anos 80 e 90 de lado e levando-se em


consideração todos os delitos e o número de ocorrências que envolve cada um
destes agentes, chega-se a seguinte distribuição de agressores para os anos 90.
A segurança privada parece em mais vezes (14%), depois a segurança pública
(12%), em terceiro estão os proprietários (10%) e, empatados em quarto, os
trabalhadores rurais e os índios (9%).

Fonte: Banco de Dados sobre Graves Violações de Direitos Humanos, NEV-USP / Secretaria
Nacional de Direitos Humanos - Ministério da Justiça

Os grupos em conflito
A dinâmica da violência rural, conforme foi retratada pela imprensa de
1990 a 1996, pode ser mais elucidada quando se apresentam os grupos
majoritariamente em conflitos.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 391

Quadro 1: Principais grupos em conflito


Brasil, 1990-1996
Casos, Vítimas fatais

grupos em conflito Dados Total Média


Garimpeiros X garimpeiros Vítimas Fatais 13 2,60
Casos 5
Garimpeiros X índios Vítimas Fatais 34 2,43
Casos 14
Garimpeiros X segurança privada Vítimas Fatais 23 5,75
Casos 4
Garimpeiros X segurança pública Vítimas Fatais 8 0,73
Casos 11
Índios X índios Vítimas Fatais 25 1,92
Casos 13
Índios X madeireiros Vítimas Fatais 11 0,92
Casos 12
Índios X outros Vítimas Fatais 8 0,89
Casos 9
Índios X proprietários Vítimas Fatais 13 0,76
Casos 17
Índios X trabalhadores rurais Vítimas Fatais 8 0,80
Casos 10
Lideranças Vítimas Fatais 10 0,40
Casos 25
Lideranças X proprietários Vítimas Fatais 21 0,54
Casos 39
Proprietários X trabalhadores rurais Vítimas Fatais 83 0,81
Casos 102
Segurança privada X segurança privada Vítimas Fatais 7 7,00
Casos 1
Segurança privada X segurança pública Vítimas Fatais 9 9,00
Casos 1
Segurança pública X trabalhadores rurais Vítimas Fatais 59 1,48
Casos 40
Trabalhadores rurais X trabalhadores rurais Vítimas Fatais 18 2,25
Casos 8
outros conflitos Vítimas Fatais 73 0,63
Casos 115
Vítimas fatais 423 0,99
Casos 426
Fonte: Banco de Dados sobre Graves Violações de Direitos Humanos, NEV-USP / Secretaria
Nacional de Direitos Humanos - Ministério da Justiça

Quando se olha para os principais grupos em conflito pela média de


mortes por caso, vê-se, principalmente: garimpeiros contra segurança privada,
garimpeiros entre si e garimpeiros contra índios. A luta pela disputa de garimpo é
altamente violenta chegando a ter um caso em que diferentes agentes de
segurança privada se confrontam provocando sete mortes. Os casos de conflitos
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 392

entre garimpeiros e índios, revelam os efeitos da não demarcação de terras


indígenas e até mesmo a falta de controle sobre as áreas já demarcadas196.
Essas situações ajudam a elucidar a complexidade dos conflitos resultantes do
encontro, na região Norte, das frentes de expansão e frente pioneira. Pois, com a
chegada de muitos lavradores sem terra na região, o garimpo vira uma alternativa
de emprego, levando a uma maior disputa pelas áreas de garimpo197.

Pelo número de incidência de casos, nota-se o conflito “clássico”


proprietários contra trabalhadores rurais. O terceiro maior número de casos
pertencente ao conflitos entre lideranças e proprietários, confirma a luta
predominante entre trabalhadores rurais e proprietários, uma vez que as
lideranças atuam em prol dos trabalhadores rurais. O segundo número de casos,
o conflito entre trabalhadores rurais e segurança pública, é outra marca dos
conflitos fundiários, principalmente nesta década. São geralmente ocupações de
sem-terra, seguida por conflitos entre sem-terra e policiais. Os sem-terra
querendo apressar a reforma agrária e os policiais querendo manter a integridade
das propriedades. No entanto, algumas ações de despejo pela polícia, por
exemplo, mostram que a manutenção da ordem, por vezes, prevalece sobre o
Estado de Direito – nestes casos, sem mandado judicial e de forma violenta, os
agentes policiais atuam com fazendeiros despejando trabalhadores rurais, o que
dificulta ainda mais a institucionalização dos conflitos.

7. Atuação do Estado
Como os dados levantados nesta pesquisa se agrupam em torno dos
casos de violência rural, a verificação da atuação do Estado se deu apenas em
relação à resposta dada aos delitos cometidos.

Quando são analisados os dados da CPT da década de 80198, quanto à


atuação do Poder Público, observa-se que na maior parte dos casos (29,4%)
foram registradas apenas providências na esfera policial. A distribuição das
atuações do Estado deu-se da seguinte forma:

196
Existem de denúncias de corrupção de funcionários da Funai. Nestes casos , os funcionários
vendem madeira ou permitem o acesso de madeireiros e garimpeiros às reservas indígenas.
197
Ver Soares (1993) sobre a migração e a transformação de lavradores em garimpeiros.
198
Há informações dos casos presentes nas listagens fornecidas pela CPT até 29/04/94. Isto leva
a acreditar que até este momento a CPT vinha acompanhando o andamento de todos os casos
na justiça.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 393

Gráfico 10 - Atuação do Estado: anos 80


Investigação
Denúncia
70,6% Condenação
29,4% 20,9% Absolvição
4,0% 1,7%
Não informa

Fonte: Banco de Dados sobre Graves Violações de Direitos Humanos, NEV-USP / Secretaria
Nacional de Direitos Humanos - Ministério da Justiça

Dentre os casos que foram julgados e tiveram os réus condenados


destacam-se os casos de Paulo Fontelles (o crime ocorreu em junho de 1987 no
Pará e o julgamento ocorreu em março de 1993) e Chico Mendes (o crime
ocorreu em dezembro de 1988 no Acre e julgamento em janeiro de 1990).

Analisando os 186 casos de homicídio que foram registrado ao longo dos 7


anos da década de 90, constatou-se o seguinte:

Fonte: Banco de Dados sobre Graves Violações de Direitos Humanos, NEV-USP /


Secretaria Nacional de Direitos Humanos - Ministério da Justiça

A grande diferença entre as porcentagens de casos com investigações


policiais, denúncias do Ministério Público e condenações (Judiciário) aponta para
três fatos. Primeiro, como os casos dos anos 80 podiam agregar mais de uma
ocorrência violenta e o Poder Público age conforme a ocorrência de um delito, é
normal que nos anos 80 as porcentagens de atuação sejam menores. Segundo,
tendo realizado, a título de comparação dos dados dos anos 80 e 90, uma
contagem dos casos dos anos 80 com a técnica utilizada nos anos 90, persiste
uma maior atuação nas investigações nos anos 90. Terceiro, esta maior
porcentagem de atuação do Estado nos anos 90 pode significar 3 coisas que não
são necessariamente excludentes: 1) As listagens da CPT, apesar de conterem
um acompanhamento junto a imprensa, não conseguem informar tão bem quanto
a imprensa a respeito da atuação da polícia em relação aos casos de homicídio;
2) Nos anos 90 a atuação do Estado passou a ser mais retratada na imprensa; 3)
Nos anos 90, a atuação do Estado foi mais enérgica que nos anos 80.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 394

Quando analisados os restantes 240 casos de violência rural em que


houve crime contra a pessoa, excluindo os homicídios, percebe-se que as
informações sobre a atuação do Estado são muito poucas. Assim em 56,7% dos
casos não consta a informação sobre qualquer atuação da polícia, da promotoria
e nem da justiça. O quadro se apresenta da seguinte forma: dos 41 casos de
tentativa de homicídio houve investigação em 41,4% dos casos, houve prisão
preventiva em 2,1% dos casos. Um dos casos que ocorreu em Rio Maria/PA
houve prisão preventiva, denúncia e condenação do réu.

O mesmo já não acontece quando se refere aos 54 casos de trabalho


escravo. Há informação de que 57,4% dos casos foram investigados, mas em
nenhum caso foi feito denúncia. Constata-se assim que estes casos nem sequer
conseguem chegar à justiça para serem julgados. Este delito também chama
atenção porque em 25,9% dos casos há “ outras intervenções ” que na sua
maioria foram feitas pelo Ministério do Trabalho.

Estes números sobre a violência rural são muito semelhantes aos do


estudo anterior realizado pelo Núcleo de Estudos da Violência em 1991. Esta
pesquisa baseou-se nos dados contidos num inquérito instaurado pela
Procuradoria Geral da República (PGR) e o Conselho de Defesa dos Direitos da
Pessoa Humana (CDDPH) - órgão vinculado ao Ministério da Justiça -, para
apurar casos de violência rural e violação de direitos humanos no campo199.
Ao todo foram analisados 923 casos ocorridos entre 1979-1990, sendo que
o número de casos corresponde ao número de vítimas presentes neste inquérito
em diversos delitos como homicídio, maus tratos, ameaças e trabalho forçado.
Os casos ocorreram nos seguintes estados: Maranhão, São Paulo, Rio Grande
do Sul, Paraná, Acre, Mato Grosso do Sul e, predominantemente, pela região do
Bico do Papagaio que compreende os estados do Pará, Maranhão e Tocantins.

Entre as medidas judiciais adotadas houve abertura de inquérito em 147


casos (15,9% do total) e instauração de processo pelo Judiciário em 87 casos
(9,4% do total).

Os números mostraram que a atuação do Estado em casos de violência


rural é muito modesta e confirmaram a conclusão do relatório publicado em 1991
pela Americas Watch, entidade internacional de defesa dos Direitos Humanos,
tratando da violência no campo no Brasil. O relatório abordou o problema nos
seguintes estados brasileiros: Pará, Acre, Maranhão, Paraíba e Rio Grande do

199
Vale ressaltar que os dados usados pelo NEV (1992) são resultantes de um enquadramento
penal pelas autoridades responsáveis. Enquanto que, nesta pesquisa, os dados originários da
imprensa passaram pela nossa interpretação e “enquadramento” como delito.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 395

Sul. Baseou-se na análise de 1565 casos de assassinatos de trabalhadores


rurais, índios, advogados, freiras, padres e outros profissionais ligados à luta pela
terra, que foram tabulados pela Comissão Pastoral da Terra no período de 1964
a 1989. As conclusões do relatório apontam para o predomínio da impunidade
nos casos de violência rural. Os números apresentados são alarmantes: de 1565
casos, apenas 17 casos (1%) chegaram a julgamento, sendo que em 0,5% dos
casos os réus foram condenados e em 0,5% dos casos acabaram sendo
absolvidos.

Nesta atual pesquisa, continuou-se a análise sobre a atuação do Estado


em casos de violência rural, permitindo uma comparação entre períodos.
Constatou-se que os dados dos anos 90 - 96, obtidos pela imprensa, dos quais
1,6% do total dos casos registrados chegou a um julgamento, não diferem dos
dados da Americas Watch sendo que esta pesquisa engloba todo período da
ditadura militar.

Outro fato mostra que as informações a respeito da atuação do Estado


continuam parcas. Levando-se em consideração que para todo homicídio deve
haver um inquérito policial (investigação), é interessante notar que apenas dois
casos de homicídio de um total de 60 que ocorreram no Pará nos anos 90
chegaram a julgamento. Mesmo que, defendendo-se o Estado se afirme que a
atuação da polícia, do Ministério Público e da Magistratura não foi retratada
totalmente pela imprensa e que até o fim de 1996 vários casos estariam em
andamento, isto aponta para um gravíssimo problema, se as pessoas envolvidas
em disputas não tomam conhecimento da atuação do Estado, seja prevenção de
conflitos ou da investigação dos delitos, e se o Estado é lento para julgar os
delitos como pode ser reconhecido como um mediador de disputas.

8. Atuação de Entidades

A atuação das entidades foi analisada em relação aos casos de violência


rural, há informações sobre a pressão pública das entidades por reforma agrária
e demarcações de terras indígenas no item acima sobre o Histórico da questão
agrária. Quanto às informações sobre a participação de entidades civis nos casos
de violência rural pode-se dizer que estas geralmente atuam através de
denúncias das violações junto às autoridades brasileiras ou de protestos, seja
nas ruas, nas tribunas do Congresso Nacional ou através de coletivas à
imprensa, informando a opinião pública e pressionando as autoridades
responsáveis. Em alguns casos, entidades como a Human Rights Watch –
entidade internacional de defesa dos direitos humanos - denunciam as
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 396

autoridades brasileiras aos organismos internacionais (como a ONU e a OEA) por


não estarem, apurando de maneira rigorosa as violações aos direitos humanos.

As entidades foram classificadas em: SINDICAIS: Sindicato dos


Trabalhadores Rurais (STR), Central Única dos Trabalhadores (CUT), Federação
dos Trabalhadores da Agricultura (Fetag). Incluiu-se aqui a CPT por prestar
assessoria jurídica aos sindicatos. INDÍGENAS: Fundação Nacional do Índio
(FUNAI) e Conselho Indigenista Missionário (CIMI). RELIGIOSAS: Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), paróquias, bispos, padres e agentes
ligados às pastorais. DIREITOS HUMANOS: Movimento Nacional de Defesa dos
Direitos Humanos, Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e outras organizações
deste tipo. PARTIDÁRIAS: partidos políticos ou pessoas ligadas a partidos.
OUTRAS: entidades ambientais, acadêmicas e internacionais, como a Human
Rights America.

Fonte: Banco de Dados sobre Graves Violações de Direitos Humanos, NEV-USP / Secretaria
Nacional de Direitos Humanos - Ministério da Justiça

A participação destas entidades para os casos dos anos 80 deu-se da


seguinte forma:

Quanto à atuação de entidades durante os 7 anos da década de 90 é


necessário dizer que o teor das notícias que formam o Banco de Dados de
Violência Rural sobre as quais se baseia esta pesquisa, nem sempre traz
informações a respeito da atuação de entidades, embora elas possam ter
participado. Do total de 426 casos as notícias dizem que em 32% houve a
participação de alguma entidade.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 397

Fonte: Banco de Dados sobre Graves Violações de Direitos Humanos, NEV-USP / Secretaria
Nacional de Direitos Humanos - Ministério da Justiça

Há uma diferença considerável entre os dois períodos, no que se refere à


participação de entidades. Isso, provavelmente deve-se à fontes. Na década de
80 é a CPT que relata os casos sendo que ela mesma pode ser uma entidade
atuante. Pelos jornais consta que a CPT é a que mais acompanhou casos de
violência rural ao longo dos sete anos da década de 90, sendo que ela participou
em 9,3% do total de casos noticiados. Como a CPT acompanha os casos de
perto, ela deve ser considerada uma fonte mais segura do que os jornais, para
todas as categorias analisadas.

Há casos dos anos 90 que se destacam por terem estimulado a atuação


de várias entidades. Nos anos 80, o assassinato de Chico Mendes. Nos anos 90
são alguns casos no Pará que chamaram a atenção de muitas entidades. Os três
casos que provocaram maior número de atuação de entidades são do Pará: 1) o
caso de Eldorado dos Carajás/ PA, em 1996, que contou com a participação de
82 entidades; 2) o caso do assassinato dos irmãos Canuto em 1990 em Rio
Maria/PA; 3) o caso do assassinato de Expedito Ribeiro de Souza, novamente
em Rio Maria/PA em 1991. Podemos dizer que a forte organização da CPT, com
algumas lideranças tais como sindicalistas e o Padre Ricardo Rezende
conseguiram chamar atenção em nível nacional e mobilizar diversas entidades na
denúncia desses casos.

Na atuação de entidades em relação ao tipo de delito para os anos 90, os


números indicam que elas estão presentes em 42,8% dos “outros” delitos que
incluem maus-tratos e linchamento, em 35% do total de trabalho escravo e em
26,5% dos casos de ameaça de morte. Do total de casos de lesões corporais,
elas atuam em 24,5%, e em 19,5% das tentativas de homicídios.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 398

Fonte: Banco de Dados sobre Graves Violações de Direitos Humanos, NEV-USP / Secretaria
Nacional de Direitos Humanos - Ministério da Justiça

Chama atenção que, pelas notícias dos jornais, as entidades só atuaram


em 22% dos homicídios da década de 90. O fato de as maiores porcentagens de
atuação de entidades ocorrerem em relação aos casos de ameaça de morte,
outros e trabalho escravo se deve ao fato de vários destes casos serem
conhecidos através de denúncias destas entidades.

Uma outra coisa que chama atenção é que só em 15 dos 114 casos de
questão indígena houve a participação de entidades indígenas. Os indígenas são
tutelados pelo Estado e suas terras são consideradas, constitucionalmente, bens
da Nação. Isto implica uma necessária intervenção do Estado, pela figura da
Fundação Nacional do Índio (FUNAI), como intermediária nos litígios. No entanto,
a imprensa informa que este órgão público muitas vezes age no sentido que
damos à “entidade” porque se manifesta contra ações violentas.

Pelos dados que dispomos para os anos 90, a atuação de entidades nos
casos que chegaram a ter alguma atuação do Estado, chama atenção que dos 7
casos que foram julgados, 5 tiveram a atuação de entidades, que no caso em
que houve absolvição nenhuma entidade atuou e que nos 13 casos que
chegaram à denúncia, 10 tiveram a participação de entidades. Fica assim
registrado que há uma maior apuração pelos poderes públicos nos casos em que
também há manifestação de entidades, o que parece significar que a pressão da
sociedade civil é fundamental para o Estado agir. Esta pressão é exercida em
particular pelos trabalhadores rurais organizados em sindicatos, que já vem
reivindicando a atuação do Estado contra a violência rural desde meados da
década de oitenta (SIGAUD, 1987).
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 399

Fonte: Banco de Dados sobre Graves Violações de Direitos Humanos, NEV-USP / Secretaria
Nacional de Direitos Humanos - Ministério da Justiça

Cabe acrescentar que o poder de intervenção destas entidades


é menos no sentido de sensibilizar as autoridades envolvidas na apuração
dos casos de violência. Seu poder parece estar ligado a sua capacidade de
chamar a atenção da mídia (nacional e internacional) para estes casos. A
publicização destes casos é um agente catalizador para a pressão das
autoridades superiores do Executivo e Judiciário sobre seus subordinados
para a apuração do caso e para tomada de medidas excepcionais, tanto
para a apuração do caso de violência, como para a tentativa de resolver as
causas deste conflito, como pode ser visto nos casos do “Massacre dos
Ianômami” e de Eldorado dos Carajás.

9. Conclusão

Para concluir este trabalho será feita uma discussão em cima de cincos
pontos: disputa, conflito, litígio, Estado e sociedade civil.

Estas disputas presentes nas áreas rurais se dão nas relações de trabalho,
patrões e empregados, e na competição por domínio. O que significa esta
competição por domínio? Significa que os agentes estão envolvidos em disputas
por controle sob uma área de terra. Estas disputas podem se dar entre herdeiros
de uma propriedade de terra, entre trabalhadores rurais por uma vaga num
cadastramento de assentamento pelo Incra ou entre garimpeiros e indígenas em
torno de uma área indígena que é ocupada pelo garimpo.

Estas disputas podem levar a conflitos, envolvendo violência entre os


contendores, ou simplesmente ser transformada em litígio. Dois fatores envolvem
a transformação da disputa em conflito ou em litígio. O primeiro, presente no
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 400

trabalho discutido por FRANCO (1969), é o fator cultural, ou seja, a resolução de


conflitos pelo uso da força e sem recorrer ao Estado é uma possibilidade
culturalmente aceita, embora se reconheça que hoje em dia esteja sendo
contestada pela mídia, pelas Universidades, por entidades civis, por autoridades
públicas e dentro das próprias localidades em que ocorrem vários estes conflitos.
O segundo é a preocupação dos contendores é alcançar êxito na disputa. Alguns
contendores podem preferir uma decisão em torno da luta física se não confiarem
na intermediação do Estado, se acreditarem que não serão punidos pelas
agressões e se acreditarem que conseguirão manter o domínio da terra seja pela
força ou burlando as regulamentações do Estado. Cada um destes três fatores
merece comentário.

A falta de confiança na intermediação do Estado pode ser percebida, por


exemplo, tanto nas ocupações dos sem-terra quanto na reação de proprietários a
essas desocupações. A ação dos sem-terra é baseada na convicção que
possuem do direito à posse da terra daqueles que querem nela trabalhar e no
fato de o ato não visa agredir fisicamente o proprietário, mas o patrimônio que é
considerado abusivo - o fato de o Brasil ter alta concentração de terra200 e de
inúmeras propriedades praticamente não produzirem levaram a Constituinte
Federal de 1988 a aprovar legislação estabelecendo a desapropriação de terras
improdutivas. Neste sentido, o argumento utilizado pelos sem-terra é que só
através de ocupações de terra e de sedes do Incra é que o Estado atende com
urgência aos seus anseios pelos assentamentos. De outro lado, a violência
impetrada por proprietários de terra - seja terra comprada, herdada, devoluta ou
grilada - também da desconfiança que o Estado não garantirá o seu patrimônio.
Este fator aponta para a necessidade do Estado de assumir a intermediação dos
conflitos sociais, como forma de evitar a violência.

O segundo fator consiste na percepção da impunidade dos agressores.


Isto funciona de duas formas é podem ser muito bem ser percebida, por exemplo,
nos conflitos de garimpo. Nestes conflitos, os garimpeiros e pistoleiros que
cometem assassinato nas disputas por áreas de garimpo confiam na
incapacidade da polícia de identificar os culpados e da justiça penal de puni-los e,
até mesmo, de descobrir os delitos. Esta percepção da impunidade dos
agressores alimenta também os casos de vingança. Com isso, fica evidente a
necessidade de publicização das ações punitivas do Estado.

200
Conforme dados da década de oitenta, 54% da área agrícola era ocupadas por menos de 2%
do total de fazendas. Por sua vez, pelo menos 15 milhões de pequenos agricultores trabalhavam
em estabelecimentos agrícolas com menos de 10 hectares cada (AMERICAS WATCH, 1991: 8).
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 401

O terceiro fator, ou seja, o da manutenção do domínio pela força sem levar


em conta a legislação do Estado, pode ser percebido pelas ações de madeireiros
nas reservas indígenas, pelas grilagens de terra e pelos casos de trabalho
escravo. Disso se tira que o Estado deve ter eficácia na vigilância de seus
regulamentos.

O último ponto que falta ser abordado é a sociedade civil. O conceito de


sociedade civil aqui utilizado se contrapõe ao Estado, ou seja, é a sociedade que
cobra do Estado a manutenção do contrato social. Neste sentido, a pressão de
entidades, como a CPT, a OAB e a CNBB e da imprensa - pressão que pode
contar com o apoio de entidades internacionais e governos - têm mostrado,
quando ocorre, que é capaz de sensibilizar as autoridades brasileiras para uma
atuação mais eficaz no combate aos casos de violência rural.
PARTE III
GRAVES VIOLAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS
EM SÃO PAULO E BRASIL RURAL (1980-89):
UMA HISTÓRIA OFICIAL

CAPÍTULO 9
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 403

LINCHAMENTOS EM SÃO PAULO

SÉRGIO ADORNO

NESTE ESTÁGIO DA INVESTIGAÇÃO, A PESQUISA PROCUROU RESPONDER ÀS


INDAGAÇÕES CONTIDAS NO QUADRO ABAIXO:

Quadro
Objetivos da investigação

QUESTÃO MEIO INDICADOR


201
1. Quem tem os direitos violados? Morfologia de linchamentos Perfil social da vítima202
2. Quem viola os direitos? Morfologia dos linchamentos Perfil social dos linchadores
3. Quais as relações hierárquicas Morfologia dos linchamentos Sociografia das relações
linchadores/linchados? sociais entre protagonistas dos
acontecimentos
4. Quais cenários sociais Morfologia dos linchamentos Sociografia + “etnografia”203
desencadeiam linchamentos?
5. O que faz/fez o Estado? Morfologia da intervenção Requisitos legais204
Como as agências de Justiça judicial/judiciária
criminal promovem a apuração da
responsabilidade penal?
6. Qual o resultado das ações Morfologia da intervenção Natureza da sentença judicial
penais? Punem ou não os judicial/judiciária decisória
linchadores? Se condenatória, extensão da
Se não, por que não o fazem? De pena imposta
quem/qual agência é a Perfil social dos condenados
responsabilidade pela omissão? Motivos da condenação
Se punem, há réus Se absolutória, motivos da
preferencialmente visados pela absolvição
sanção? Qual o seu perfil social?

1. Casos Selecionados

OS CASOS SELECIONADOS SÃO AQUELES INDICADOS A SEGUIR. PROCUROU-SE


REALIZAR UMA DESCRIÇÃO O MAIS FIEL POSSÍVEL AOS DOCUMENTOS E FALAS CONTIDAS

201
O termo morfologia está sendo aqui empregado no sentido durkheimiano, isto é, de descrição
“objetiva” dos fatos segundo a fonte documental pesquisada. Cf. Durkheim (1895; ed. Bras. 1975).
202
O perfil social compõe-se de informações quanto a: idade, sexo, cor, escolaridade,
naturalidade, ocupação, local de moradia e antecedentes criminais.
203
Entende-se aqui por etnografia dos acontecimentos a descrição dos locais de habitação e dos
fatos, a descrição das zonas de aglomeração e lazer dos protagonistas, a descrição dos móveis
dos linchamentos, bem como sua dinâmica.
204
Compreendem: diligências (para localização de agressores e de testemunhas); junção de
documentos (laudos periciais, antecedentes criminais, certidões diversas); exames da vítima
(corpo de delito no caso de lesões corporais e laudo necroscópico no caso de vítima fatal); perícia
técnica do local; apreensão de objetos (que possam servir como prova de autoria); qualificação do
indiciado (pode ser feita por vias diretas, quando o indiciado está presente ou foi localizado) ou
por vias indiretas, quando não o foi.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 404

NOS PROCESSOS PENAIS. AO MESMO TEMPO, SEMPRE QUE NECESSÁRIO, QUALIFICOU-SE


O CENÁRIO DOS ACONTECIMENTOS MEDIANTE RECURSO A DADOS SECUNDÁRIOS
DISPONÍVEIS (DESCRITOS ANTERIORMENTE) EM DISTINTAS FONTES DOCUMENTAIS.
TRATOU-SE DE UM PROCEDIMENTO COMPLEMENTAR, PORÉM INDISPENSÁVEL À ANÁLISE.

PARA A CARACTERIZAÇÃO SOCIAL DOS CENÁRIOS E, EM PARTICULAR DAS


COMUNIDADES ONDE OS CASOS SELECIONADOS OCORRERAM, TOMOU-SE COMO
PARÂMETRO ALGUNS ÍNDICES DE ELEVADO DESENVOLVIMENTO HUMANO, CONTIDOS NO
INFORME PNUD - DESENVOLVIMENTO HUMANO 1991, ABAIXO DESCRITOS:
Educação
razão de matrícula: - primário 98%
- secundário 64%
- primário e secundário 87%
- terciário 23,4%
•duração da educação obrigatória: 8 anos
•taxa de alfabetismo adulto: 88%
Saúde
•população com acesso a serviços de saúde: 87%
•número de habitantes por médico: 1080
•número de habitantes por enfermeiro: 770
Condições de vida
•densidade demográfica: 327 hab/1000 hectares
•população com acesso à salubridade: 78%
•esperança de vida: 70,5 anos
Moradia
•casas sem eletricidade: 41%
•população com acesso à água potável: 73%

OS DADOS RELATIVOS À VIOLÊNCIA FORAM CONSULTADOS NOS ANUÁRIOS E


ACERVOS DISPONÍVEIS NA FUNDAÇÃO SISTEMA ESTADUAL DE ANÁLISE DE DADOS -
SEADE.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 405

1.1 Linchamento na Lapa


Data: 07/10/81
Resumo do caso

O linchamento ocorreu em 08 de março de 1981. Sobre os


acontecimentos, há diferentes versões no curso do Inquérito Policial e do
Processo Penal. De acordo com algumas testemunhas e réus, a vítima teria
invadido a pensão para roubar, teria quebrado objetos em um banheiro e depois
teria batido à porta de um quarto para pedir café. A moradora do quarto,
assustada e advertida por seu companheiro para não atender à porta, procurou
da janela de seu quarto alertar outros moradores a respeito da presença de
estranho nas dependências da pensão. Segundo uma das versões apresentadas,
em dezembro do ano anterior, teria ocorrido furto de um televisor em um dos
quartos. No entanto, o ladrão foi surpreendido e imobilizado por dois
pensionistas. O televisor foi recuperado, o ladrão liberado. Não houve
formalização de queixa às autoridades policiais. Esse fato fêz com que os
moradores suspeitassem ser o estranho o autor daquele furto, o qual, de acordo
com relato de um dos réus, estava armado de uma faca ou um porrete no dia do
linchamento. A vítima foi perseguida por moradores da pensão e por outras
pessoas, algumas das quais se encontravam em padaria próxima à pensão, que
se agregaram à massa aos gritos de “pega ladrão”. Compreendiam algo em torno
de 50 indivíduos, segundo alguns relatos. A vítima foi linchada na rua. Depois de
agredida a socos e pedaços de pau foi socorrida pela polícia militar. Não
suportando os ferimentos, sobreveio-lhe a morte. Policiais militares teriam, em
seguida, retornado à pensão para comunicar o falecimento da vítima. O linchado
jamais chegou a ser identificado em nenhuma das fases do processo, pois não
portava documentos pessoais, não possuía identificação civil, conforme ficou
atestado pelo exame das digitais, como igualmente não dispunha de ficha
criminal. O processo penal teve duração de 8 anos e três meses.

Local
Casa de cômodos na Água Branca (Barra Funda - Lapa) onde residem
cerca de 30 pessoas, sendo que somente quatro são mulheres. A região da Lapa
é formada fundamentalmente por bairros tradicionais de trabalhadores e de
classe média. A Prefeitura de São Paulo define a Administração Regional da
Lapa a partir dos seguintes distritos: Barra Funda, Perdizes, Lapa, Vila
Leopoldina, Jaguara e Jaguaré. Esta região corresponde a uma área de 40,1Km2,
que acompanha as várzeas dos rios Pinheiros e Tietê. Sua população é de
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 406

480.000 habitantes (4,2% da população do município da capital do Estado)205. O


caso em questão aconteceu no distrito da Barra Funda, que é formado pelos
seguintes bairros, além da Água Branca: Barra Funda, Parque Industrial Tomas
Edson, Vila Barra Funda, Vila Chalot e Vila dos Ferroviários.

As origens da Lapa remontam o século XVI. Em 1581, os jesuítas


receberam uma sesmaria junto ao rio Emboaçaba (atual rio Pinheiros) onde
nascia a Paragem do Emboaçaba. Em meados do século XVIII, a "fazendinha da
Lapa" ganha destaque entre os demais sítios e os jesuítas deixam a região.

A história da Lapa começa a mudar no século XIX, quando o barro do rio


Tietê começa a ser aproveitado para a formação de olarias, que reforçam o
crescimento e a urbanização da região. Na década de 1870, a São Paulo Railway
estabelece ali uma parada do trem que ligava Santos a Jundiaí, incentivando a
vocação da Lapa de fazer a ligação dos bairros e municípios da Zona Oeste com
o centro de São Paulo - vocação esta que será plenamente realizada com a
chegada do bonde vindo do centro para a "Lapa de Cima". Na década seguinte,
várias vilas são loteadas e passam a atrair os trabalhadores imigrantes,
sobretudo os italianos, e os funcionários da Railway, o que vai configurando a
região como eminentemente operária e de classe média. A ferrovia incentiva,
durante a virada do século, a urbanização da área. Este processo de urbanização
e criação de infra-estrutura é consolidado depois da Primeira Guerra, quando
novos loteamentos atraem para a região imigrantes do Leste europeu.

Nas décadas de 40 e 50 deste século, a construção das marginais dos rios


Tietê e Pinheiros fomentam a industrialização e o crescimento da Lapa. Em 1954,
é fundado o Mercado Municipal, o primeiro de uma série de importantes pontos
da cidade localizados naquela região: em 1966, o Ceasa (atual Ceagesp); em
1968, o segundo shopping center de São Paulo; nas décadas de 70 e 80, o
Terminal Intermodal da Barra Funda e o Memorial da América Latina.

A Lapa, e mais especificamente a Barra Funda, é portanto uma região


bastante bem dotada de infra-estrutura urbana, pelo menos desde o início do
século XX, embora atualmente passe por algumas situações de carência, como
de resto grande parte da cidade. No ano de 1995, a população do distrito era de
15.977 habitantes206. Em relação à longevidade, há 1063 pessoas com mais de

205
Os dados relativos à Administração Regional da Lapa foram coletados junto à Secretaria
Municipal de Planejamento (SEMPLA): Base de Dados para Planejamento - Cadernos Regionais -
Administração Regional da Lapa, agosto de 1993.
206
Os dados relativos ao distrito da Barra Funda fazem parte do Mapa da Exclusão da Social da
cidade de São Paulo, Núcleo de Seguridade e Assistência Social da PUC-SP, 1995. A SEMPLA
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 407

70 anos, o que corresponde 6,65% do total da população do distrito. A


caracterização dos chefes de família diz muito sobre o padrão de vida do distrito:
634 (13,45%) recebem mais de um salário mínimo; 250 (5,3%) são analfabetos;
1467 (31,12%) têm 15 anos ou mais de estudos; 1634 (32,4%) mulheres são
chefes de família.

Em relação à infra-estrutura propriamente dita, os dados mostram uma


certa situação de decadência: o déficit de vagas nas escolas para crianças de 7 a
14 anos de idade é de 676; não há carência em relação ao acesso à saúde
básica; 1698 pessoas (11,71%) vivem em domicílios precários; 514 domicílios
(10,9%) têm acesso precário à rede de esgotos.

Especificamente no que tange a violência, convém destacar que, entre


1981 e 1993, foi da ordem de 56% o crescimento de homicídios dolosos. A taxa
dessas ocorrências para o ano de 1995 foi de 39,65/cem mil hab.207 Em 1989,
70% delas compreendiam casos de autoria desconhecida. Em 1982, apenas
16,19% de todas as ocorrências policiais ensejaram abertura de Inquérito Policial.
No final do período, em 1989, essa taxa havia declinado para 9,87%208 (Cf.
Fundação SEADE).

Vítima
Desconhecido, com cerca de 38 anos, negro. Foi reconhecido pelos
linchadores como assaltante da pensão.

Indiciados
Sete moradores da pensão que teria sido invadida pelo suposto assaltante.
O primeiro réu tem 21 anos, é branco, solteiro, ajudante geral, com primeiro grau
incompleto, natural de Picos (estado do Piauí, NE). O segundo réu tem 29 anos,
é pardo, solteiro, ajudante geral, com primeiro grau incompleto, natural de Nossa
Senhora do Socorro (Sergipe, NE). O terceiro réu tem 22 anos, é pardo, com
primeiro grau incompleto, natural de São Raimundo Nonato (estado do Piauí,
NE). O quinto réu tem 48 anos, é branco, solteiro, aposentado por invalidez com
primeiro grau incompleto, natural de Lagarto (Sergipe, NE). O quinto réu tem 22
anos, é branco, casado, ajudante geral, com primeiro grau incompleto, natural de

define como Barra Funda uma região muito maior, não inteiramente compreendida no limite da
Administração Regional da Lapa.
207
Cf. Polícia Militar do Estado de São Paulo, 1º e 4º Batalhões. Folha de S. Paulo. São Paulo,
03/03/96, p. A-5.
208
Convém destacar que a conversão de uma ocorrência policial em inquérito não significa
necessariamente que a apuração da responsabilidade penal seja levada até suas últimas
conseqüências. Embora não se disponha de dados estatísticos precisos, alguns estudos sugerem
ser alta a taxa de inquéritos arquivados. Cf. Adorno (1994).
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 408

São Raimundo Nonato (Piauí, NE). O sexto réu tem 26 anos, é branco, solteiro,
ajudante geral, com primeiro grau incompleto, natural de Arcoverde
(Pernambuco, NE). O sétimo réu é do sexo masculino (não há outros atributos no
processo). “Transeuntes” ou “populares” que participaram do evento, segundo
relato dos réus e testemunhas, não foram indiciados.

Testemunhas
Foram arroladas 12 testemunhas. Dessas, cinco testemunhas foram
ouvidas apenas no Inquérito Policial. As demais foram também ouvidas na
Instrução Criminal. Entre estas, seis são testemunhas de acusação e apenas
uma testemunha de defesa. Todas as testemunhas são moradoras da pensão.
Onze testemunhas são do sexo masculino, apenas uma do sexo feminino. As
testemunhas do sexo masculino possuem idade entre 20 e 44 anos. Quanto à
cor, 10 são brancos e um é pardo. No que concerne ao estado civil, a maior parte
é solteiro, havendo um amasiado e um casado. Relativamente à procedência, a
maioria é de estados do NE: 3 de Pernambuco, 2 da Bahia e 4 do Piauí. Um
provém de Minas Gerais e outro de São Paulo. No tocante à ocupação, 2
declaram-se desempregados; 1 no comércio (balconista), 2 no setor de prestação
de serviços (barbeiro, garçom), 4 serviços gerais (ajudante geral), 1 aposentado
por invalidez e 1 policial militar. A única mulher tem 34 anos, é negra, amasiada,
do lar, natural de Andirá (Paraná, Sul). Não há menção quanto à escolaridade
das testemunhas.

Relações hierárquicas entre protagonistas


Não há. Todos são igualmente moradores da Casa de Cômodos. Entre
duas testemunhas, há laços conjugais. A mulher foi quem se recusou a abrir a
porta para atender ao desconhecido que pedia café e foi quem alertou os
moradores quanto à existência de um estranho no local.

Contextos/Cenários
Os fatos desenrolam-se no espaço compreendido entre a Casa de
Cômodos, a padaria e a rua. Os moradores alertados saíram do interior de seus
quartos e puseram-se, na rua, a perseguir o suspeito. Populares que se
encontravam na padaria, no momento da perseguição, se associaram aos
moradores. Alguns transeuntes fizeram o mesmo.

Nenhuma notícia veiculada em jornal ou qualquer menção à repercussão


que o caso obteve junto à mídia é incorporada ao processo. Em vários
depoimentos, em que se faz referência à tentativa de furto, verificada na pensão
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 409

em dezembro do ano anterior, declara-se que a polícia não foi informada desse
acontecimento.

“Física” dos acontecimentos


O contexto/cenário para o linchamento começou a ser armado a partir da
tentativa anterior de furto. Havia expectativa entre os moradores de que os fatos
pudessem se repetir e que o ladrão, anteriormente detido e liberado, pudesse
retornar à Casa de Cômodos. Dois réus confirmam, tanto no interrogatório policial
quanto em suas declarações em juízo, que o linchado era o mesmo que tentara
furtar um dos quartos anteriormente. Outros confirmam tal suspeita por ouvir falar
(=rumor). Entre o alerta da moradora e o linchamento, detonado através do
chamado “pega ladrão”, foi questão de minutos.

Observações finais
A vítima é frequentemente referida como um indivíduo ou elemento de cor
preta. O defensor de um dos réus, em suas alegações finais, declarou tratar-se o
caso de “linchamento de marginal”. Outro defensor afirma, na mesma direção: “A
vítima, um marginal, foi linchada...”. Observe-se que não há informações no
processo quanto à existência de antecedentes criminais, pois a vítima sequer
chegou a ser identificada. Os defensores assumem, assim, a lógica dos
depoimentos das testemunhas e dos réus.

Observe-se também que alguns réus reconhecem haver participado do


linchamento, tendo perseguido a vítima e desferido-lhe socos.

Observe-se finalmente a participação dos policiais militares que


intervieram tentando socorrer a vítima.

1.2. Linchamento em Ribeirão Pires


Data: 10/01/1982
Resumo do caso
O linchamento ocorreu em 10 de janeiro de 1982. Foi praticado por um
grupo de moradores do Parque Aliança. Suspeita-se que esse grupo fazia
“patrulhamento” no bairro. Nesse dia, à noite, um grupo de moradores, portando
paus, porretes, arma de fogo e facas domésticas, saíram à caça de bandidos.
Nessa operação, o grupo deparou com os dois jovens, suspeitou tratar-se de
delinqüentes e passou a persegui-los. Ao alcançá-los, rendeu a ambos. O
primeiro a ser sacrificado foi o jovem negro. Recebeu um tiro na região frontal da
cabeça além de socos e pontapés. Enquanto vitimizavam o negro, mantiveram o
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 410

jovem adolescente branco imobilizado. Concluída a primeira morte, discutiram


rapidamente entre si se deveriam sacrificar o jovem adolescente. Decidiram fazê-
lo, a golpes de paus, porretes, socos e pontapés. Os corpos foram abandonados
em terreno baldio. No dia seguinte, ao amanhecer, alguém divulgou a descoberta
dos cadáveres. Uma moradora do local, gari, foi ao local onde os corpos foram
encontrados, cuspiu nos cadáveres. Em seu depoimento, na polícia, ela afirmou
que foi, na noite anterior ao linchamento, abordada por dois indivíduos, um negro,
alto, forte, jovem e outro branco, mais jovem que o negro, estatura e corpo
médios. Ela sofreu tentativa de violência sexual, teve pequena quantidade de
dinheiro roubada, foi espancada e teve suas vestes rasgadas. Ela reconheceu os
mortos como sendo os jovens que a agrediram. No curso das investigações e do
processo penal, ora confirma-se ora nega-se a existência do grupo de
patrulhamento. Descobre-se que os jovens linchados haviam sido confundidos
com delinqüentes, assaltantes que incomodavam moradores do bairro. O
processo durou ao todo 11 anos, 5 meses e 4 dias, desde a ocorrência até ao
arquivamento. Todos os réus foram impronunciados.

Local
O linchamento ocorreu no bairro Parque Aliança, do município de Ribeirão
Pires, este integrante da Região Metropolitana da Grande São Paulo. O
município desenvolve alguma atividade industrial, embora efetivamente
desempenhe as funções de município-dormitório em geral de trabalhadores sem
especialização ou com baixa qualificação, empregados em São Paulo ou nos
municípios do ABCD. Há moradores antigos que são proprietários do terreno
onde construíram suas habitações.

Em 1982, ano do linchamento, a população de Ribeirão Pires era de 62489


habitantes209. Em 1980, 27,82% não eram ali nascidos, sendo a maior parte
proveniente de outros municípios da Região Sudeste; moravam na cidade há
menos de 10 anos. Atualmente a população da cidade está em 85085 (0,55% da
Grande São Paulo), havendo predominância das pessoas jovens. Em 1980, a
população se dividia por faixa etária da seguinte forma: 36,59% de 0 a 14 anos;
29,42% de 15 a 29 anos; 23,11% de 30 a 49 anos; 9% de 50 a 69 anos; 0,18%
de 70 anos ou mais.

209
Os dados sobre Ribeirão Pires foram conseguidos junto à EMPLASA e os mais recentes
referem-se ao ano de 1991.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 411

Trata-se de um município carente de serviços de infra-estrutura urbana. As


habitações foram sendo construídas pouco a pouco, em regime de mutirão e
periodicamente sofrem novas edificações para atender necessidades prementes
como o nascimento de mais um filho ou a instalação de um pequeno comércio
(mercearia, quitanda ou, mais freqüente, bar). Não há calçamento, arruamento,
iluminação pública. São precários os serviços de transportes, sobretudo no que
concerne às ligações entre o município e os centros comerciais e administrativos
de maior importância nas cidades vizinhas. Há ainda muitos terrenos baldios. O
policiamento é praticamente inexistente. Há atualmente três hospitais em
Ribeirão Pires, mas em 1982 havia somente um, com uma média de 481
habitantes por leito. No que se refere à educação, em 1982, apenas 10,44% dos
alunos do primeiro grau da rede pública de ensino ingressavam no segundo grau
e a população alfabetizada era de 69,8%.

Em relação à violência, verificou-se crescimento de 85% nos homicídios


dolosos, entre 1981 e 1993. Em 1982, apenas 21,27% de todas as ocorrências
policiais chegou a constituir-se em inquérito policial. Em 1989, a despeito do
agravamento acentuado da criminalidade violenta, essa proporção baixou para
9,15% (cf. Fundação SEADE).

Vítimas

Duas vítimas. O primeiro, jovem de 25 anos, negro, natural de Capinópolis


(Minas Gerais, Sudeste). Viveu toda sua vida na casa do cunhado, no mesmo
Parque Aliança. Apesar de solteiro, era pai de um filho. Trabalhava como
operário na “Fichet”. Nos autos, há informação de que tinha antecedentes
criminais, algo contudo nunca apurado. O segundo, um adolescente de 16 anos,
branco, solteiro, natural de São Paulo, residente no Parque Aliança com os pais.
Não trabalhava.

Indiciados

Foram incriminados 25 réus, todos moradores do bairro. 24 são do sexo


masculino e um do sexo feminino, embora esta ré não tenha tido participação
direta no linchamento. Foi indiciada por outro motivo (vilipêndio de cadáver). As
idades variam entre 19 e 44 anos. Há 10 brancos, 3 pardos, 2 negros. Inexiste
informação quanto à cor para 9 réus. Em sua maior parte, provêm do interior e
Região Metropolitana da Grande São Paulo, seguido do interior de Minas Gerais
(Sudeste) e de vários estados do Nordeste (Bahia, Ceará, Alagoas, Rio Grande
do Norte). A maior parte possui escolaridade básica completa: primário completo,
seguido de primeiro grau completo (e incompleto), segundo grau incompleto. Há,
entre eles, trabalhadores sem especialização (pedreiro, pintor, ajudante de
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 412

cozinha, ajudante geral, ajudante de caminhão, lavador de autos) e vários


trabalhadores semi-especializados (mecânico, pintor de autos, serralheiro,
inspetor de qualidade, soldador, operador de máquinas, tapeceiro, funileiro). Há
poucos trabalhadores especializados (técnico em eletrônica, técnico em telefonia)
e alguns comerciantes (mercearia, lanchonete e bar). De modo geral, a maior
parte dos réus ocupa-se de atividades industriais ou que gravitam em torno da
indústria. A única ré tinha 53 anos à época dos acontecimentos, é branca, gari,
mãe de sete filhos. Entre os réus, apenas um possuía antecedentes criminais.

Testemunhas

Foram arroladas 17 testemunhas na fase policial, mas duas foram depois


indiciadas. Durante a instrução criminal foram ouvidas mais 14 testemunhas,
sendo 4 de acusação e 10 de defesa. Vinte das testemunhas eram moradores do
bairro onde ocorreu o linchamento, 4 eram parentes da vítima; 2 eram parentes
dos réus, e ainda foram ouvidos o PM que atendeu a ocorrência, o vereador
chamado para ajudar os moradores do local e um policial civil que fazia rondas
no bairro. Das 29 testemunhas, somente 3 eram mulheres. Suas idades variavam
dos 17 aos 49 anos, com maior incidência nas faixas dos vinte (6 pessoas) e dos
quarenta (7 pessoas). Quanto à cor, 14 das testemunhas eram brancas, 3 eram
pardas e 1 era negra, não havendo informação para as demais. Em relação ao
estado civil, 20 eram casadas, 8 solteiras e 1 viúva. Sobre a naturalidade das
testemunhas, há dados para 15: 9 paulistas e os demais dos estados de Minas
Gerais, Alagoas, Sergipe, Paraná, Bahia e Pernambuco. No que se refere à
ocupação, temos 9 trabalhadores da construção civil, 2 vigilantes, 6 operários, 3
do setor de serviços, 3 comerciantes, 2 policiais, 1 vereador e as 3 mulheres são
donas de casa. Não há dados sobre a escolaridade.

Relações hierárquicas entre protagonistas

Todos os réus, as vítimas e a maior parte das testemunhas são moradores


do bairro, havendo também relações de parentesco entre vários deles. Quase
todos os envolvidos eram trabalhadores braçais e operários semi-qualificados ou
qualificados. Um dos réus e duas das testemunhas eram sócios em um bar do
bairro. Uma das testemunhas é um vereador procurado pelos moradores para
encaminhar solicitação de reforço da segurança no bairro.

Contextos/Cenários

Os acontecimentos desenrolam-se na rua, durante a madrugada. Pelos


depoimentos, é possível apreender que de dentro das casas era possível ouvir a
gritaria causada pelo linchamento e vários dos envolvidos acabaram saindo de
suas casas justamente para acompanhar a agressão ou inclusive tomar parte
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 413

dela. Na versão de que haveria mais dois ou três indivíduos sendo perseguidos
pelo grupo, menciona-se o fato de eles terem se escondido na casa de uma das
testemunhas. Ressalte-se que alguns depoimentos informam que a área não era
policiada.

No processo, são anexados alguns artigos de jornais sobre o caso e


alguns dos envolvidos relatam que foram procurados pela imprensa. O delegado,
em seu relatório, afirma que a versão da imprensa de que havia um grupo de
extermínio no bairro prejudicou o andamento do inquérito.

“Física” dos acontecimentos

Algumas testemunhas mencionam assaltos sofridos no bairro


anteriormente ao linchamento que não foram comunicados à polícia por medo de
represálias. O alto grau de violência do bairro levou vários dos envolvidos, no dia
05/01/82, a irem à delegacia, acompanhados de um, vereador da cidade, pedir
reforço policial. Naquela mesma noite, desacreditando da promessa do delegado
de encaminhar solução, armaram-se de pedaços de paus, porretes, foices e
revólveres para fazer o patrulhamento por conta própria. O grupo foi então
encontrado por policiais civis que o advertiram e ele então se dispersou.

O irmão de uma das vítimas afirma que foi ameaçado uma semana antes
dos fatos por um indivíduo que desejava namorar sua irmã. Circularam rumores
de que, na verdade, este rapaz seria o verdadeiro alvo e seu irmão teria sido
morto em seu lugar, mas o ameaçado continuaria sob esta condição.

Observações finais

O delegado adota a versão de linchamento praticado por populares contra


dois indivíduos confundidos com "marginais" e, a partir daí, descarta todas as
outras versões, sobretudo a de ação de grupo de extermínio.

Este viés não pode ser compreendido sem se considerar o fato de que os
moradores tinham contato prévio com a delegacia, tendo lá comparecido uma
semana antes dos fatos, acompanhados por um vereador, para pedir reforço
policial. Naquela mesma noite, esses moradores foram encontrados por policiais
civis, armados, fazendo a ronda no bairro. Segundo seus próprios depoimentos,
esses policiais os aconselharam a voltar para suas casas, conselho que teriam
atendido. Apesar desta atitude desafiadora das instituições de controle, o próprio
delegado e um dos policiais que os encontrou são categóricos em afirmar que
aqueles moradores não se envolveram no "linchamento". Dentre os cinco que
foram à delegacia pedir reforço, apenas um foi indiciado, o único que confessou a
participação. Os demais foram arrolados como testemunhas.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 414

A distinção entre testemunhas e agressores parece ser bastante arbitrária,


uma vez que na mecânica de delação nem todos os nomes citados são
indiciados, havendo inclusive pessoas citadas por terem sido vistas agredindo as
vítimas, que não são sequer ouvidas. Também não é ouvido o segundo
investigador da Polícia Civil que encontrou o grupo armado que fazia
patrulhamento. Na fase judicial, uma das testemunhas, irmão de uma das
vítimas, apresenta uma versão completamente nova dos fatos, cita um outro
envolvido e nada é averiguado, nem essa pessoa citada é procurada.

Todos os acusados acabaram alegando em juízo que foram


"pressionados" na delegacia para confessar o crime. Entretanto, vários deles
apareceram espontaneamente no noticiário escrito e falado como membros do
grupo "Justiceiros do Parque Aliança". A promotoria aceita a versão de que a
autoria não foi comprovada, pede a impronúncia dos réus, mas não realiza
averigüações quanto às acusações de "pressão" por parte do delegado. Esse é
ponto de inflexão definitivo para a absolvição, quando a promotoria admite que os
réus constituíram um grupo de patrulhamento e justifica esse procedimento pelo
fato de que eles "eram sabedores de que as vítimas eram marginais".

Sobre a atuação da defesa, cabe atentar para a existência de flagrantes


descuidos. Assim, por exemplo, a única ré do processo é indiciada não por haver
participado do linchamento, porém em virtude de vilipêndio de cadáver. Ocorre
que, em sua defesa, seu defensor menciona, em suas alegações finais, outro
enquadramento legal que não aquele correspondente à infração penal que lhe é
imputada.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 415

1.3. Linchamento no Jardim Miriam


Data: 19/05/82
Resumo do Caso

O caso refere-se ao linchamento de um homem que matou e esquartejou


sua sobrinha, uma criança de 9 anos, branca, natural de São Paulo, residente no
Jardim Miriam com seus pais, na mesma habitação de seu tio. A jovem havia
desde o começo da tarde desaparecido de sua residência. A última vez em que
havia sido vista em público se encontrava em companhia de seu tio. A polícia foi
chamada para localizar a criança. Pressionado, o tio confessou o crime e levou
os policiais até o local onde havia deixado o corpo. Quando lá chegaram, já havia
várias pessoas no local que lincharam o homem. A polícia levou-o ao Hospital de
Diadema, no entanto ele lá já chegou sem vida. A vítima é descrita como um
homem que, quando alcoolizado, adquiria temperamento violento. Já havia
ameaçado seus parentes, inclusive sua irmã, mãe da jovem assassinada,
aplicando-lhe um golpe na cabeça com um instrumento. Tentou praticar abuso
sexual contra outra irmã, jovem de 17 anos. Alguns depoimentos sugerem que a
vítima apresentava distúrbios psíquicos, embora a família nunca tivesse se
ocupado de averiguar o fato. No curso das investigações, levantaram-se
suspeitas de que alguns dos membros da família da vítima tivessem participado
do linchamento. Nada foi apurado a respeito. A primeira fase do Inquérito Policial
durou 4 meses e uma semana. A fase judicial durou 1 ano, 1 mês e dez dias. Ao
todo, o IP tramitou por um ano e seis meses. Não houve instauração de processo
penal. A pedido da Promotoria, o IP foi arquivado “por não ter identificado
nenhum autor do crime”.

Local
O Jardim Míriam, o bairro onde aconteceu este linchamento está na divisa
de São Paulo com o município de Diadema e integra o distrito de Cidade Ademar,
sendo parte da Administração Regional de Santo Amaro, também formada pelos
distritos de Itaim Bibi-b, Campo Belo, Santo Amaro, Campo Grande e Pedreira.

Santo Amaro vem se constituindo como região de grande importância no


crescimento da metrópole desde o final do século XVI, quando era denominada
aldeamento Virapuera. Até o final do século passado, houve um crescimento
progressivo da área devido ao fato de Santo Amaro ser o "celeiro de São Paulo",
centro regional através do comércio de produtos de fazendas e chácaras. Data
deste período a construção da estrada de ferro que ligava Santo Amaro a São
Paulo e em 1832, a Freguesia de Santo Amaro foi elevada à condição de Vila. A
partir do início deste século, a região passou a receber melhoramentos em infra-
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 416

estrutura urbana e em 1935, Santo Amaro foi anexada a São Paulo. Com a
implantação de indústrias ao longo do canal de Jurubatuba no pós-guerra, Santo
Amaro consolidou-se como um dos grandes pólos de emprego industrial na
metrópole.

Atualmente, há grande concentração de atividades terciárias em pólos já


consolidados. O Largo Treze de Maio com seu entorno é o mais importante sub-
centro de São Paulo, apresentando grande circulação de pessoas, a maior parte
pertencente às camadas de renda baixa, que usam o sub-centro como terminal
de transporte coletivo, compras, procura de serviços etc. A população dessa
região administrativa é de 788605 habitantes. Esta população está adensada
sobretudo nos distritos como Itaim Bibi-b e Cidade Ademar.

Cidade Ademar abriga uma população de 230.794 habitantes (1993) ,


sendo um dos mais carentes de São Paulo. A caracterização dos chefes de
família de Cidade Ademar expressa bem o baixo padrão de vida da região: 7824
(13,68%) são analfabetos; apenas 2325 (4,07%) têm renda superior a 20 salários
mínimos e 3608 (6,31%) têm mais de 15 anos de estudos; 10190 (17,79%)
mulheres são chefes de família. O acesso à infra-estrutura urbana é muito
restrito: 33569 (14,59%) vivem em condições precárias de moradia e 13816
(24,16%) dos domicílios têm acesso precário à rede de esgotos; 90794 (60,66%)
não têm acesso aos serviços básicos na área de saúde. Somente em relação à
educação, os índices são favoráveis, havendo um superávit de 618 vagas nas
escolas públicas de primeiro grau. A população com mais de 70 anos de idade é
composta por 3478 pessoas, o que corresponde a 1,51% do distrito, atestando
que a longevidade é uma exceção em Cidade Ademar.

Em relação à violência, as taxas não são menos preocupantes: a taxa de


homicídios/cem mil habitantes foi de 61,65 (1995) e entre os jovens de 14 a 24
anos foi de 137,75, números bastante superiores às médias (também altas) para
o município de São Paulo que foram respectivamente de 49,8 e 102,58 naquele
mesmo ano. O local onde o linchamento ocorreu é descrito como correspondente
"ao Córrego do Cordeiro, no trecho que fica na parte detrás da Creche Jardim
Miriam, a qual tem como vizinho de um de seus lados um parque de diversões
(...) Entre a creche e o parque citados, fronteiriço à farmácia (...) há uma
passagem que dava num terreno baldio."
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 417

Vítima

Sexo masculino, branco, solteiro, desempregado, residente no Jardim


Miriam com pais e irmãos.
Indiciados

Não há linchadores indiciados.

Testemunhas

O Inquérito Policial arrolou 19 testemunhas, entre as quais 6 moradores do


local, 6 parentes da vítima e 7 policiais militares que atenderam a ocorrência.
Entre essas testemunhas, 4 eram mulheres. As idades variavam entre 17 e 66
anos, com maior concentração na faixa dos vinte anos (11 pessoas). Sobre a cor
das testemunhas, há informação para treze delas, sendo 11 brancos e dois
pardos. Em relação ao estado civil, 12 são casados, 6 são solteiros e não há
informação para o último. No que se refere à procedência, a grande maioria é
natural do próprio Estado de São Paulo (12), havendo também 2 de Minas Gerais
e 3 do Paraná (não há dados para os 2 restantes). Sete das testemunhas são
policiais militares, 3 são operários, 2 prestadores de serviços, 1 comerciário e 1
aposentado. Não há dados sobre a escolaridade.

Relações hierárquicas entre protagonistas


Não havendo indiciados, quase todas as testemunhas são os familiares do
linchado e da criança por ele supostamente esquartejada, sua sobrinha. As
outras testemunhas são moradores do local ou transeuntes que desconheciam o
linchado e policiais que atenderam à ocorrência.

Contextos/Cenários
O linchamento aconteceu diante da cena do crime supostamente cometido
pelo linchado: no córrego onde boiava o corpo esquartejado da menina. Foi para
lá que os policiais conduziram o suspeito, depois de o terem detido em sua casa.
Suspeito, policiais e familiares rumaram em direção do córrego, onde já se
aglomerava uma multidão de curiosos diante do corpo.

“Física” dos acontecimentos


Os familiares do linchado comparecem nos autos relatando episódios de
violência, que remontavam mais de quatro anos, cometidos por ele, geralmente
quando se encontrava embriagado: atentado contra a mãe, agressão física à irmã
mais velha, abuso sexual contra a irmã mais nova. O caso de agressão à irmã
mais velha, mãe da menina assassinada, foi registrado no distrito policial, mas
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 418

posteriormente foi desmentido por ela própria, em função do fato de ser o


agressor seu irmão.

Observações finais
A promotoria assume a perspectiva dos linchadores ao requerer o
arquivamento do IP, mencionando o "hediondo" crime praticado pelo linchado e
desistindo da localização dos agressores. A polícia parece pactuar com o silêncio
das testemunhas. Vários disseram ter presenciado o crime, mas serem incapazes
de identificar os autores, algo pouco provável uma vez que se trata de moradores
da mesma vizinhança, conhecidos de longa data. Quanto à eventual participação
dos familiares da vítima em seu linchamento, contradições não foram
consideradas pela polícia: enquanto algumas testemunhas disseram que os
familiares estavam no local, mas de lado, observando a cena, alguns dos
próprios familiares disseram que haviam retornado para casa, nada vendo -
também pouco provável uma vez que a cena toda parece ter transcorrido em
poucos minutos, segundo o depoimento dos policiais.

A atuação dos policiais - que só vão prestar depoimento por requisição do


promotor, após a entrega do relatório do delegado - também é pouco investigada.
Eles próprios afirmam que a viatura que levava a vítima enguiçou exatamente no
momento em que a população o ameaçava, facilitando o linchamento, sendo que
o capitão tentou impedir mas acabou apanhando. Esta versão não é dada por
nenhuma das testemunhas. O próprio fato de os policiais resolverem levar a
vítima para o local do crime no momento em que a população encontrava o corpo
esquartejado da menina parece ter criado o cenário ideal para a eclosão do
linchamento.

Durante todo o inquérito, fica patente a linha condutora do caso - trata-se


de investigar a sanidade mental do linchado, seus precedentes e os motivos que
o levaram a cometer o assassinato, sendo o seu linchamento uma decorrência
esperada dos fatos.

1.4. Linchamento em Carapicuíba


Data: 24/02/84
Resumo do caso

O linchamento ocorreu em 24 de fevereiro de 1984. Ao que tudo indica,


teve como motivo desencadeante um homicídio que teria sido praticado
anteriormente pela vítima do linchamento. Três homens mataram uma pessoa
(provavelmente um acerto de contas entre quadrilhas de assaltantes) e ficaram
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 419

em local próximo ao velório, provocando as pessoas ali presentes. Afirmavam


que a polícia nada faria contra eles. Os participantes do velório, entre os quais
um irmão do morto, saíram atrás dos rapazes, sendo que um deles foi espancado
até à morte. Apenas o irmão do morto foi preso pela polícia e indiciado. Quando
interrogado, declarou que apenas deu um pontapé, não sendo capaz de
identificar outros participantes do linchamento. O caso limitou-se à esfera policial.
Teve duração de 7 anos, 4 meses e 16 dias. Em virtude da morte do único
indiciado, foi declarada extinta a punibilidade. Em decorrência, O IP foi arquivado.

Local
Terreno baldio, na rua dos Romeiros, sem número, Jardim Alice,
Carapicuíba, na Região Metropolitana da Grande São Paulo. Carapicuíba é uma
espécie de continuação do município de Osasco, embora seja bem mais pobre e
menos industrializado. Está localizado às margens de grandes rodovias que se
dirigem para outros estados da federação. Possui áreas de elevada densidade
demográfica. Em 1984, ano do linchamento, a população de Carapicuíba era de
291050 habitantes. Em 1980, 36,25% não eram ali nascidos, sendo a maior parte
proveniente da região central do país, e moravam na cidade há menos de 10
anos. Atualmente a população da cidade está em 283661 habitantes (1,84% da
Grande São Paulo), havendo predominância das crianças e adolescentes. Em
1980, a população se dividia por faixa etária da seguinte forma: 40,39% de 0 a 14
anos; 30,47% de 15 a 29 anos; 22,04% de 30 a 49 anos; 6,17% de 50 a 69 anos;
0,89% de 70 anos ou mais.

As habitações são precárias, carentes de infra-estrutura urbana.


Carapicuiba não é, nessa medida, muito diferente dos municípios e bairros que
concentram classes populares, sobretudo cidadãos com precários vínculos com o
mercado formal de trabalho. Há atualmente três hospitais no município, mas em
1984 havia somente um, com a elevadíssima média de 2292 habitantes por leito.
No que se refere à educação, os números também não são favoráveis: em 1984,
apenas 6,83% dos alunos do primeiro grau da rede pública de ensino
ingressavam no segundo grau e a população alfabetizada era de 66,04%.

No tocante à violência, convém observar que, em 1984, ano de ocorrência


deste linchamento, o município acusou 25,76 homicídios/cem mil habitantes (Cf.
Fundação SEADE). Entre 1981 e 1993, esse tipo de violência - homicídios
dolosos - manifestou crescimento de 234%, sendo que essa taxa é
sensivelmente mais elevada para os homicídios de autoria desconhecida. Em
1984, apenas 9,95% de todas as ocorrências policiais registradas converteram-se
em inquérito policial. Em 1989, essa taxa elevou-se para 14,21%, mesmo assim
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 420

insuficiente face à taxa de crescimento dos crimes violentos, em especial a dos


homicídios.

Vítima

Sexo masculino, 36 anos, viúvo, pardo, vigilante, natural de Sabinópolis


(Minas Gerais, Sudeste), residente em Carapicuíba.

Indiciados

Sexo masculino, cor parda, 26 anos, motorista autônomo, natural de São


Paulo, primeiro grau incompleto, pai de três filhos, proprietário da casa onde
reside. Possuía antecedentes criminais (furto, assalto). Morto em 1988, em
virtude de “trauma craneo-encefálico motivado por ferimentos causados por arma
de fogo”.

Testemunhas
Nenhuma testemunha é arrolada.

Relações hierárquicas entre os protagonistas

Não há relações hierárquicas. O indiciado é irmão do indivíduo


supostamente assassinado pelo linchado. Os outros linchadores provavelmente
são também amigos e parentes daquela primeira vítima. Não há testemunhas.

Contextos/Cenários

O linchamento se deu em um terreno baldio, mas o seu estopim foi o


velório do indivíduo supostamente assassinado pelo linchado, irmão do indiciado.

“Física” dos acontecimentos

O irmão do indiciado foi supostamente morto pelo linchado e mais dois


indivíduos. Durante toda a tarde do dia seguinte, os três suspeitos ficavam
cantando perto da casa dessa primeira vítima, onde acontecia seu velório, frases
do tipo "matamos e não tem polícia que nos prenda". Foi essa atitude que incitou
as pessoas que estavam no velório a cometer o linchamento.

Observações finais
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 421

O pedido de arquivamento é para o Inquérito Policial 198/84, cuja vítima


tem outro nome (o número do IP relativo a este caso é 126/84). O motivo alegado
é a não apuração da autoria do delito, mas durante os sete anos transcorridos
entre o linchamento e o arquivamento dos autos, muito pouco é feito para se
lograr esta apuração: a folha de antecedentes do indiciado só é feita quando o
mesmo é morto, os outros dois suspeitos do assassinato do irmão do indiciado
não são identificados, nenhuma testemunha é ouvida, sendo que provavelmente
teria sido fácil determinar quem estava no velório onde os acontecimentos se
iniciaram.

1.5. Linchamento na Praça da Sé


Data: 11/03/84
Resumo do caso

O linchamento ocorreu em 11 de março de 1984. A vítima participava de


jogo de dados na Praça da Sé. Repentinamente, surgiu discussão entre dois
jogadores, pois ambos reivindicavam terem ganho o jogo. O banqueiro do jogo se
recusava a pagar. Da discussão, passaram para as vias de fato, sendo
distribuídos socos entre o jogador/vítima do linchamento e os dois indivíduos que
bancavam o jogo. Este último jogador, sentindo-se inferiorizado na briga, acabou
por sacar revólver que trazia consigo e a efetuar disparos na direção de seus
contentores, tendo atingido o outro dos jogadores. Em seguida, o agressor pôs-
se em fuga, sendo perseguido por um policial militar, pelos dois banqueiros do
jogo e por populares. Foi, na Praça Clóvis Bevilacqua (ao lado da Praça da Sé)
alcançado pelo policial que se dispôs a colocá-lo no interior de um veículo (não
se sabe bem se um táxi ou a viatura policial). No entanto, seus perseguidores (os
banqueiros do jogo e populares) lograram alcançá-los, retiraram a vítima do
veículo e passaram a desferir-lhe socos e pontapés. Ao ouvirem uma sirene e
percebendo a aproximação de um tático-móvel (viatura policial), os populares se
dispersaram, deixando caída no centro da confusão uma pessoa ferida. Quando
os policiais conseguiram chegar ao local, a vítima se encontrava no colo de uma
pessoa, indigente, de cor negra, que inclusive auxiliou os policiais a colocarem a
vítima na viatura policial, vítima que foi transportada com vida para um pronto-
socorro, onde veio a falecer. O processo penal durou cinco anos. Foi arquivado
com a impronúncia dos réus.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 422

Local

A Praça da Sé está localizada no "coração" do município de São Paulo. No


século XVI, o seu entorno foi o marco da fundação da cidade. Hoje ela faz parte
da administração regional da Sé, que abrange uma área de 32,6 Km2 que se
estende desde a margem esquerda do rio Tietê, ao Norte, até o divisor de águas
com a bacia do rio Pinheiros, ao Sul. A topografia é caracterizada pelas colinas
da vertente Norte deste espigão central, que baixam em direção às várzeas do
Tietê e seu afluente Tamanduateí. A administração regional é composta pelos
distritos: Sé, República, Bela Vista, Consolação, Santa Cecília, Bom Retiro, Pari,
Brás, Cambuci e Liberdade. O distrito da Sé é formado pelos bairros da Sé (onde
ocorreu o caso), Mercado e Parque Pedro 2º.

O processo de ocupação dessa área central e as profundas


transformações ali verificadas nos séculos XIX e XX refletem as diversas fases
da própria evolução urbana de São Paulo. O rápido crescimento teve como
conseqüência a transposição da várzea do Tamanduateí, a Leste, e a
transposição do vale do Anhangabaú a Oeste constituindo então a chamada
"cidade nova" ou "centro novo" (atual distrito da República). Desse modo,
estabeleceu-se um padrão de crescimento de tipo radiocêntrico, de tal forma que
entre 1880 e 1890, os novos arruamentos cobriram a quase totalidade da Sé. A
estruturação desta região deu-se, no entanto, de modo "espontâneo",
praticamente sem qualquer intervenção de planejamento urbano, configurando
uma malha viária de traçado irregular.

A administração regional da Sé abrange uma população estimada de


700.000 habitantes, equivalente a 6,1% do total de São Paulo. Nela, o distrito da
Sé abriga 52806 pessoas e no bairro da Sé, 5795 habitantes . Na época dos
acontecimentos, o número de residentes no bairro era consideravelmente maior:
7934. Verificou-se, entre 1984 e 1989, um decréscimo da ordem de 27% no
tamanho de sua população.

Ressalta a diversidade de funções urbanas e de padrão de ocupação entre


os dez distritos que compõem a região administrativa da Sé: há bairros de nítido
caráter residencial, ocupados por segmentos de rendas média e alta; outros, em
que as atividades comerciais mesclam-se com as de serviços e com áreas
residenciais de padrão médio; bairros sobretudo residenciais de padrão médio e
baixo; outros ainda, nos quais a função residencial, voltada para segmentos de
baixa renda, infiltra-se em usos predominantemente comerciais e industriais;
finalmente a tradicional área do Centro, na qual ocorreu o linchamento,
predominam as atividades de comércio e de serviço, principalmente os de caráter
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 423

financeiro, com a função residencial apresentando-se em plano secundário e, por


isso, sujeitando a área a uma alta densidade de ocupação durante o dia e a um
esvaziamento à noite, período em que se deu o caso analisado. Observe-se a
este respeito que a maior parte das pessoas envolvidas no caso não moravam na
Sé, mas ali trabalhavam.

A região é ainda um importante pólo gerador de empregos, especialmente


aqueles vinculados ao comércio e ao setor de serviços. As taxas de emprego
(relação entre postos de trabalho e população) situam-se em níveis superiores ao
do município, sobretudo no distrito da Sé: 0,45 (SP); 1,60 (AR Sé); 3,93 (Sé) .

A administração regional da Sé reúne populações de origens diversas,


sendo alguns bairros habitados predominantemente por pessoas de uma
determinada nacionalidade, como italianos, japoneses, sírios, libaneses,
armênios, judeus, coreanos e também uma alta concentração de nordestinos,
dedicados sobretudo ao comércio na região central, tal como boa parte dos
envolvidos no linchamento.

Em relação aos sistemas de transportes urbanos, a área é bem servida de


linhas de ônibus, trens de subúrbio e metrô. Quanto às redes de água e esgoto,
de iluminação pública e a pavimentação de vias, a totalidade da área está
coberta. A taxa de mortalidade infantil, por sua vez, é relativamente baixa: no
distrito da Sé é de 3,4 enquanto para o município como um todo é de 8,0.

Em relação à renda familiar, na administração regional, 39,9% recebem


mais de 15 salários mínimos, 24,6% recebem de 8 a 15 salários e 35,5%, menos
de 8 salários mínimos. Mas é preciso observar que há uma heterogeneidade
marcante entre os distritos que compõem a área, sendo que o valor médio para o
distrito da Sé é de 9 salários mínimos, inferior à média de São Paulo, que é de
12,8 salários mínimos mensais. 39,8% dos moradores do distrito da Sé recebem
de 8 a 15 salários mínimos.

As atividades comerciais e bancárias concentradas nesta parte da cidade


expandiram-se na década de 1940, mas nos anos 70 foram transferidas para a
Avenida Paulista. A região central sofreu então um processo de esvaziamento de
sua importância e conseqüentemente de decadência. Nos bairros ao redor dessa
área é evidente o processo de deterioração, com antigas edificações sendo
paulatinamente ocupadas por cortiços e com o abandono de velhas instalações
comerciais e industriais. Estima-se um total de 60.000 domicílios caracterizados
como habitações precárias de aluguel (sobretudo cortiços), sendo que o
fenômeno de favelização é quase inexistente (86 domicílios), devido à ausência
de áreas desocupadas na região . Tende a crescer também a presença dos
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 424

"moradores de rua", sobretudo nas regiões comerciais de grande movimento,


como a Praça da Sé. Nos autos, o local é definido como "não recomendado para
pessoas honestas".

Em relação à violência, observa-se, entre 1981 e 1993, um crescimento de


117% nas taxas de homicídios dolosos. Sabe-se, contudo, que na região as taxas
de furto e roubo são consideravelmente mais elevadas e acusaram maior
crescimento no mesmo período. Em 1984, apenas 13,52% de todas as
ocorrências policiais converteram-se em inquérito policial. Em 1989, essa
proporção acusou ligeira elevação (16,44%), mesmo assim insuficiente para dar
conta do crescimento geral dos crimes tanto assim que o crescimento dos
inquéritos foi negativo (-8%) (Cf. Fundação SEADE).

Vítima

Sexo masculino, tem 28 anos, amasiado, natural de Ribeirão Preto (SP,


região Sudeste), residente no bairro da Barra Funda, com amásia, dois filhos e
cunhados. Era motorista profissional, proprietário de um caminhão. Na noite do
linchamento, jogava dados na Praça da Sé. Não tinha antecedentes criminais.

Indiciados

São indiciados dois réus, todos do sexo masculino. O primeiro tem 29


anos, solteiro, natural de Igaraçu (Pernambuco, NE), residente em pensão no
bairro da Moóca. É branco, tem primário completo. É armador de profissão,
porém trabalhava com carregamento de caminhão. De dezembro de 1983 a
março de 1984, encontrava-se desempregado motivo por que se tornou
“banqueiro” do jogo de dados na Praça da Sé. Não há nos autos informação
sobre antecedentes criminais. O segundo réu tem 26 anos, é natural de Timon
(Bahia, NE) e residente no Alto da Moóca. Tem primeiro grau. Dias antes do
linchamento, começou a trabalhar como motorista particular. Trabalhava
igualmente como banqueiro de jogo de dados no mesmo local, há dois meses.
Tem antecedentes criminais.

Testemunhas

Foram ouvidas 12 testemunhas, todas elas durante o Inquérito Policial; 5


delas foram ouvidas pela acusação durante a Instrução Criminal. Sete das
testemunhas eram policiais militares que atenderam ao caso; 3 presenciaram os
acontecimentos; 2 eram relacionadas aos protagonistas (uma à vítima e outra ao
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 425

réu). Entre as testemunhas, havia uma única mulher, esposa da vítima do


linchamento. Quanto à faixa etária, sete estavam na casa dos vinte anos; duas
tinham entre 30 e 39; quatro entre 40 e 49 anos de idade. Todos os ouvidos eram
brancos. No que se refere ao estado civil, 7 eram casados; 2 amasiados; 2
divorciados; 1 solteiro. Em relação à naturalidade, 8 eram nascidos no Estado de
São Paulo e os demais procediam dos seguintes estados: Sergipe, Bahia, Rio de
Janeiro e Ceará. Finalmente, no que se refere à ocupação, 8 eram policiais
militares e os demais eram: pedreiro, técnico mecânico, atendente de
enfermagem, vendedor ambulante e caminhoneiro. Não há informação sobre a
escolaridade das testemunhas.

Relações hierárquicas entre os protagonistas

Não há relações hierárquicas. Os indiciados são banqueiros do jogo de


dados na Praça da Sé e afirmam que sua relação não ultrapassa aquele espaço.
A vítima do linchamento e a pessoa supostamente por ela baleada eram
fregueses da banca. As demais testemunhas são os policiais que atenderam a
ocorrência. Atente-se para o fato de uma das testemunhas, policial militar, ter
sido acusada de omissão no linchamento e seu indiciamento chegou a ser
solicitado, mas não aconteceu. Este PM era conhecido dos indiciados por ser
responsável pela ronda na Praça da Sé. Em seu depoimento em juízo alega que
os investigadores do Distrito Policial forçaram os indiciados a incriminá-lo.

Contextos/Cenários

Os acontecimentos desenrolam-se no coração do centro velho da cidade.


Têm início na Praça da Sé, na aglomeração que se forma diante das bancas de
jogos de azar, quando então houve uma discussão e um dos fregueses do jogo
foi baleado. O principal suspeito pôs-se então em fuga, sendo perseguido pelos
demais participantes do jogo, que o alcançaram no calçadão da Praça Clóvis
Bevilacqua.

Alguns dos envolvidos alegaram que tomaram conhecimento do caso


pelos jornais, não tendo de fato participado dos acontecimentos.

“Física” dos acontecimentos

A vítima do linchamento foi acusada de ter baleado um dos participantes


do jogo de dados. De fato, ela possuía uma arma que mantinha guardada em seu
caminhão para se defender em caso de assalto. Cerca de 15 dias antes dos
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 426

acontecimentos, o linchado fôra assaltado nas imediações da mesma praça da


Sé.

Observações finais

Apesar de todas as versões apresentadas indicarem que a vítima havia


baleado o outro participante do jogo, o exame residuográfico em seu corpo teve
resultado negativo.

O argumento da defesa de que a autoria não é comprovada leva-a à


contradizer-se ao alegar, logo em seguida, que o motivo não era torpe. Fica
assim justificado o linchamento pelo crime supostamente cometido pela vítima -
baleamento de outro indivíduo. Surpreende o desfecho do caso quando se
observa que a vítima era trabalhador com emprego fixo, pai de família, sem
antecedentes criminais e os denunciados eram indivíduos sem estabilidade
profissional e familiar, com antecedentes criminais.

A polícia e a justiça deixam de investigar indícios importantes: a versão de


que a vítima havia baleado o outro jogador é assumida pela polícia e pela justiça
apesar de o exame residuográfico ter dado resultado negativo; alguns
depoimentos falam que um indigente auxiliou os policiais a levarem o corpo, mas
essa pessoa não é procurada para dar depoimento; em juízo, os réus negam sua
confissão na fase policial, alegando terem sido torturados e chegam a nomear os
policiais que os teriam agredido. A alegação de tortura é aceita para a
impronúncia dos réus, mas nenhuma providência é tomada para apurá-la, não
sendo sequer ouvidos os três policiais que foram nomeados pelos réus em seus
depoimentos; só são indiciados os dois indivíduos que confessaram a
participação no linchamento. Os demais que estavam presentes no momento do
linchamento foram arrolados como testemunhas, apesar de ser certa a
participação de mais pessoas e da dificuldade em distinguir testemunhas e
agressores nos casos de linchamento; nos certificados de impronúncia consta
como nome da vítima o da testemunha 2 (que é de fato a vítima do baleamento).

1.6. Linchamento no Jardim Noronha


Data: 11/08/84
Resumo do caso

Um dos réus, vendedor ambulante de doces, foi assaltado quando saía de


um bar, de propriedade do outro réu. Os assaltantes, portando armas de fogo,
despojaram-no de pequeno importância de dinheiro que trazia consigo. Depois de
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 427

consumado o roubo, obrigaram-no a retornar ao estabelecimento de onde viera


com o objetivo de assaltar o bar. Foi então o comerciante surpreendido com a
entrada do assaltante que apontava arma na direção daquele que se encontrava
como refém. Na parte de fora do estabelecimento, permanecia o outro assaltante,
ao que parece igualmente armado. O assaltante teria exigido grande soma de
dinheiro do comerciante, caso contrário mataria a ambos. O comerciante alegou
não possui-la no momento, necessitando de tempo para consegui-la. O
assaltante teria tentado atirar contra o comerciante, mas a arma teria falhado e
não detonado os tiros. O comerciante, de posse de sua arma, atirou contra o
assaltante, atingindo-o. O assaltante caiu ou atirou-se ao solo e fugiu em
seguida. Nesse mesmo momento, populares que se aglomeravam próximo à
entrada do bar, possivelmente moradores do local, começaram a perseguir o
assaltante que se encontrava à saída do estabelecimento comercial, o qual foi
espancado até à morte. Após o linchamento, o grupo de dispersou. As duas
vítimas do roubo evadiram-se e não prestaram queixa no distrito policial. O
processo teve duração de um ano e dez meses. A maior parte do tempo, um ano
e um mês, correu na fase policial. Em junho de 1986, a promotoria pediu o
arquivamento do IP, alegando inexistência de provas quanto à autoria que
permitissem a pronúncia. O pedido foi deferido pelo juiz e arquivado no dia
seguinte à sentença judicial.

Local

O Jardim Noronha, o bairro onde aconteceu este linchamento, faz parte do


distrito de Parelheiros, que integra a Administração Regional de Capela do
Socorro, juntamente com Socorro, Cidade Dutra, Grajaú e Marsilac (esse último
emancipou-se de Parelheiros em 1992). Capela do Socorro ocupa uma área de
487,8 Km2, incluindo parte das represas de Guarapiranga e Billings, além de
67% da área rural de São Paulo. Seus mananciais contribuem com 30% da água
potável que abastece a Grande São Paulo e por isso, a região é quase
totalmente abrangida pela Lei de Proteção dos Mananciais, desde 1975.

Em 1827-28 chegaram a Santos os primeiros grupos de colonos alemães,


dentre os quais pouco mais de 120 fixaram-se em terras devolutas em área até
hoje conhecida como Colônia, em Parelheiros. Antes disso, Capela do Socorro
era habitada pelos índios tupi e posteriormente, já no século XX, os guarani, sub-
grupo tupi, fixaram-se em Parelheiros, havendo ainda duas aldeias
remanescentes desse núcleo - Curucutu e Morro da Saudade - que reúnem cerca
de 300 pessoas.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 428

O interesse pela região de Capela do Socorro desponta entre 1907 e 1924,


com a construção das barragens e represas pela Light. As represas criaram um
potencial de lazer, ensejando intensa especulação imobiliária. Mas até a década
de 40, a região era ainda pouco ocupada. Nessa época, inicia-se o processo de
abertura de loteamentos industriais em Santo Amaro que, pela proximidade,
começam a afetar a dinâmica urbana da região de Capela, inclusive porque os
trabalhadores dessas indústrias encontram ali locais mais acessíveis para fixar
residência. Vão então se desenvolvendo vários povoamentos ao longo das
estradas locais ou nos seus entroncamentos, à medida em que elas passam a
ser percorridas por linhas de ônibus. Nas paradas e nos terminais, instalam-se
estabelecimentos comerciais e de serviços modestos, voltados para o
atendimento local. Muitos bairros são formados através do loteamento de glebas,
sem preocupações urbanísticas ou qualquer outro critério além da obtenção de
lucros pelas imobiliárias.

O desenvolvimento industrial de outras regiões do Sul da cidade tiveram,


sobre Capela do Socorro, o mesmo efeito que o de Santo Amaro. Nos novos
bairros que foram surgindo nos anos 70 (49% dos núcleos hoje existentes
instalaram-se nesses anos), os arruamentos penetraram em áreas onde o solo é
mais vulnerável à erosão e com altas declividades, inadequadas à urbanização.
O núcleo de Parelheiros, bem como toda a faixa Leste de Capela, apresentam
estas características.

O crescimento populacional é um importante indicador das transformações


que têm ocorrido na região: de 36.510 habitantes em 1960, Capela do Socorro
passou a 479.170 em 1980 (dado mais próximo do ano em que ocorreu o
linchamento).

A Lei dos Mananciais estabeleceu baixos limites de densidade para a


ocupação do solo fazendo cair os preços dos terrenos a níveis impraticáveis no
mercado imobiliário. Este fato aliado a outros como a proximidade de grandes
concentrações de empregos e as dificuldades de fiscalização tiveram como efeito
a expansão desenfreada dos loteamentos clandestinos e das favelas. Entre 1985
e 1990, surgiram 182 loteamentos clandestinos com cerca de 196.000 lotes . No
período em que ocorreu o linchamento, mais especificamente entre 1974 e 1987,
a área urbanizada cresceu de 3.020 ha para 6.230 ha e a densidade média de 87
hab/ha para 138 hab/ha .

Capela do Socorro tem apenas 42,8% de seu território urbanizado, mas


sua densidade demográfica está na média do município (135 habitantes por
hectare), devido a algumas áreas de concentração populacional. A sua
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 429

população é de 576.344 habitantes, o que eqüivale a 4,9% do total de São Paulo.


Há grande desproporção entre os distritos, sendo que Parelheiros e Marsilac, que
juntos recobrem 72% da superfície, abrigam apenas 16,6% da população, por se
caracterizarem como áreas marcadamente rurais. A população de Parelheiros é
de 85903 habitantes e sua densidade demográfica de 124 hab/ha, em desacordo
com os parâmetros da Lei de Proteção dos Mananciais.

Parelheiros abrange parte da zona rural sul de São Paulo e constitui uma
das mais importantes áreas verdes de que o município dispõe, ocupada por
chácaras de recreio, clubes de campo, olarias, jazidas de extração de areia e
áreas de produção agrícola. Possui 52 núcleos urbanos dispersos, sendo alguns
antigos como Colônia e outros mais recentes resultantes de loteamentos
clandestinos. O distrito é cortado de norte a sul pela avenida Teotônio Vilela, ao
longo da qual há vários pontos comerciais.

Em relação ao padrão de vida da população de Capela do Socorro,


observa-se que predominam os extratos de renda baixa em todos os distritos
(59% dos moradores têm renda familiar de até 8 salários mínimos), embora haja
famílias de classe média em proporção significativa em Cidade Dutra, Grajaú e
Parelheiros. Quase 21% do total da população de Capela do Socorro são
favelados, havendo 220 favelas, com 22.003 domicílios (12,2% do total de São
Paulo). Entre 1987 e 1990, houve um crescimento de 31% dos domicílios
favelados. Em Parelheiros, estão 13% desses domicílios.

Se a taxa de favelização de Parelheiros é baixa, o mesmo não se pode


dizer de seus índices relativos à violência. Parelheiros é o terceiro distrito mais
violento de São Paulo, sendo sua taxa de homicídios de 83,2/cem mil hab., muito
maior que a taxa do município (49,8) . Entre 1981 e 1993, os homicídios dolosos
acusaram crescimento de 100%, sendo esta proporção mais elevada para os
casos de autoria desconhecida. Em 1984, apenas 9% de todas as ocorrências
registradas convertiam-se em inquérito policial; no final do período, verifica-se
ligeira elevação dessa taxa (10,25%), mas ainda bastante insuficiente para conter
o crescimento de todos os crimes que foi da ordem de 23%.

Vítima
Sexo masculino, 21 anos, branco, natural de São Paulo (SP, Sudeste), lustrador.
Sem antecedentes criminais. Residente no Jardim Itajaí.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 430

Indiciados

Há dois indiciados, do sexo masculino. O primeiro tem 49 anos, é branco,


natural de Itaberaba (Bahia, NE), casado. Sabe ler e escrever. É vendedor.
Residente no Jardim Noronha. Foi assaltado pela vítima e por seu cúmplice, um
desconhecido que chegou a ser alvejado com um tiro. Encontrava-se presente no
local do linchamento. Não há nos autos informação sobre antecedentes criminais.
O segundo é branco, 40 anos, natural de Pavão (Minas Gerais, Sudeste).
Casado, tem dois filhos legítimos. É comerciante, estabelecido no Jardim
Noronha com bar e mercearia há aproximadamente nove anos. É o dono do bar
assaltado. Embora alegue nunca ter sido indiciado anteriormente em IP ou
processado, dispõe de antecedentes criminais: um Inquérito Policial por
homicídio. Presenciou o linchamento.

Testemunhas

Durante o Inquérito Policial, foram ouvidas 9 testemunhas, sendo 3


fregueses do bar onde aconteceu o linchamento, 2 familiares dos indiciados e 4
moradores do bairro. Entre as testemunhas, 7 eram homens. Três estavam na
faixa entre os 20 e os 29 anos, cinco na faixa dos 30 e um tinha 51 anos de
idade. Sete das testemunhas eram brancas e duas pardas. Quanto ao estado
civil, 5 eram casadas, 2 amasiadas, 1 solteira e 1 desquitada. Quatro procediam
de Minas Gerais, 2 de São Paulo e as demais do Ceará, de Pernambuco e do
Paraná. Quanto à ocupação, há 4 trabalhadores da construção civil, 2 do setor de
serviços, um operador de máquinas e uma dona de casa. Finalmente, em relação
à escolaridade, duas das testemunhas eram analfabetas e as demais sabiam ler
e escrever.

Relações hierárquicas entre protagonistas

Um dos indiciados é vendedor de doces e tinha como seu freguês o outro


indiciado, proprietário do bar onde ocorreu o linchamento do suposto assaltante.
As testemunhas são ou freguesas do bar ou parentes e vizinhos do dono do bar.

Contextos/Cenários

O início dos acontecimentos se dá na rua, quando um dos indiciados é


assaltado por dois indivíduos, que então o fazem retornar ao "barzinho" de onde
vinha para tentar assaltá-lo. Ali o proprietário do estabelecimento reage ao
assalto e os fregueses do local saem então no encalço dos assaltantes,
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 431

perseguindo-os por centenas de metros, nas ruas do bairro, até conseguirem


consumar o linchamento, na via pública. De suas casas, alguns moradores
puderam presenciar a agressão.

“Física” dos acontecimentos

Um dos indiciados, o proprietário do bar, já tinha tido seu estabelecimento


roubado e assaltado por diversas vezes. Afirma que todas essas vezes prestou
queixa dos fatos à polícia. Mas, além disso, adotou outras atitudes para garantir a
sua segurança: por um lado, auxiliava os policiais nas diligências feitas no bairro,
mesmo que não estivesse envolvido; por outro lado, adquiriu uma arma, que
mantinha em seu bar e da qual, provavelmente, fez uso para reagir àquela
tentativa de assalto que resultou no linchamento. Nesta ocasião, diferentemente
do que afirma ter feito no passado, não foi procurar a polícia, alegando temer
represália de "outros marginais".

Observações finais

Há procedimentos que poderiam ter sido realizados, mas que não foram
levados a cabo: 1) algumas testemunhas dizem que os linchadores eram
moradores do bairro, uma diz inclusive que conhece alguns agressores de vista.
Todos, no entanto, afirmam não saber declinar nomes. Não houve diligências
para identificá-los; 2) o promotor não tomou providência no sentido de localizar
testemunhas e identificar suspeitos; 3) não é localizado o outro assaltante que
acompanhava a vítima no momento do linchamento. Ressalte-se que a
promotoria classificou o crime como lesão corporal seguida de morte e não
homicídio. Esta tendência da promotoria foi levada às últimas conseqüências com
o pedido do arquivamento realizado quase dois anos depois do ocorrido.

1.7. Linchamento em Itapecerica da Serra

Data: 14/08/84

Resumo do caso
O linchamento ocorreu em 14 de agosto de 1984. Foi motivado pelo
assassinato de um comerciante, ancião, pessoa bastante conhecida e estimada
no bairro, durante a tentativa de assalto. Segundo a versão dos réus e das
testemunhas o assassino foi preso e colocado em liberdade por falta de provas.
De volta ao bairro, passou a provocar os moradores - parentes e amigos do
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 432

comerciante assassinado - dizendo que continuaria a assaltar e que nada lhe


aconteceria. Revoltados com seu comportamento, resolveram aplicar-lhe um
“corretivo”, dando-lhe uma surra. À noite, o assaltante foi retirado da casa de uma
irmã, onde se encontrava refugiado, e levado para um local próximo a um
matagal onde foi espancado e apedrejado. Os réus declaram que não tinham
intenção de matá-lo e que o deixaram no local ainda com vida. Somente depois
vieram a saber que o assaltante estava morto. Afirma-se ainda que à “surra”
associou-se uma aglomeração de pessoas que gritavam “pega ladrão”. Este é o
único caso, entre os selecionados, que chegou à fase de julgamento. Todo o
processo, desde o registro da ocorrência policial até à decretação da sentença
judicial, durou 7 anos e dois meses. Onze réus foram condenados a 4 anos de
reclusão, pena a ser cumprida em regime aberto.

Local

O município de Itapecerica da Serra localiza-se a Oeste da Região


Metropolitana da Grande São Paulo. O bairro da Aldeinha, onde os
acontecimentos se desenrolaram, é um antigo núcleo colonial e indígena, hoje
predominantemente habitado por trabalhadores das classes populares. Muitos
habitantes são proprietários dos terrenos onde construíram suas modestas
habitações. Como tal, não é zona de intensa mobilidade residencial. Por ser zona
de ocupação antiga, não há muitos terrenos disponíveis e nem habitações para
aluguel. Em 1984, ano do linchamento, a população de Itapecerica da Serra era
de 82389 habitantes . Em 1980, 34,7% não eram ali nascidos, sendo a maior
parte proveniente da região central do país; moravam na cidade há menos de 10
anos. Atualmente a população da cidade está em 85550 habitantes (0,55% da
Grande São Paulo), havendo predominância das crianças e adolescentes. Em
1980, a população se dividia por faixa etária da seguinte forma: 41,49% de 0 a 14
anos; 28,92% de 15 a 29 anos; 21,1% de 30 a 49 anos; 7,17% de 50 a 69 anos;
1,26% de 70 anos ou mais.

Como na maior parte dos demais municípios da Grande São Paulo, o


acesso à infra-estrutura urbana é precário. Na área de saúde, há apenas um
hospital com 262 leitos. Em 1984 o número de leitos desse hospital era 154,
sendo portanto a média de habitantes por leito igual a 549. No que se refere à
educação, em 1984, apenas 7,46% dos alunos do primeiro grau da rede pública
de ensino ingressavam no segundo grau e a população alfabetizada era de
68,88%.

Quanto à violência local, dados disponíveis apontam crescimento da


ordem de 353% nos homicídios dolosos, entre 1981 e 1993. Em 1984, 18,42% de
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 433

todas as ocorrências registradas convertiam-se em inquérito policial; no final do


período (1989), essa taxa declinou para 14,8%. Trata-se de uma proporção
baixa, sobretudo se considerarmos que a massa de ocorrências criminais
cresceu em torno de 33%. Portanto, enquanto se verificou tendência para o
aumento da violência, verificou-se, em movimento contrário, o declínio das taxas
indicativas da capacidade de intervenção da polícia civil na contenção da ordem
pública nos marcos da legalidade.

Vítima

Sexo masculino, 18 anos, pardo claro, natural de Macarani (Bahia, NE),


solteiro, servente de pedreiro. Residente no bairro da Aldeinha. Autor do
homicídio que vitimou Manoel, homem branco, 68 anos, pessoa muito querida e
respeitada no bairro da Aldeinha, município de Itapecerica da Serra.

Indiciados

Foram indiciados 12 réus, todos do sexo masculino, com idades variando


entre 20 anos e 35 anos. Há sete brancos, quatro pardos e um para o qual não
há referência quanto à cor. Cinco declaram ter “primário completo e serem
católicos”. Os demais declaram-se católicos e com primário incompleto. Dez são
originários de municípios do interior de São Paulo, entre os quais Itapecerica da
Serra e Embu. Os dois restantes são provenientes do interior de Minas Gerais.
Alguns são moradores do local, outros em bairros próximos. Compreendem na
sua maior parte parentes, vizinhos e conhecidos do ancião assassinado.
Ocupam-se nas seguintes atividades: transporte coletivo, serviços de escritório,
construção civil, agricultura, serviços de mecânica, serviços auxiliares de
consertos de veículos. Metade possui antecedentes criminais.

Testemunhas

Foram ouvidas 12 testemunhas, sendo 7 durante o IP e 11 na Instrução


Criminal, dentre as quais 6 de acusação e 5 de defesa. Apenas uma das
testemunhas era parente da vítima e todas as demais eram relacionadas aos
réus. Todos os ouvidos eram homens. Suas idades variavam dos 22 aos 51 anos
(só há informação para sete testemunhas). Em relação à cor, há informação para
sete, sendo 5 brancos e dois pardos. Entre os nove que informam seu estado
civil, 7 são casados, 1 é amasiado e o último é solteiro. Cinco são naturais do
estado de São Paulo, um de Minas Gerais, um da Bahia e não há informação
para os demais. No que se refere à ocupação, há 4 operários, 2 lavradores, 2
prestadores de serviço e 2 comerciantes. Finalmente, em relação à escolaridade
os dados disponíveis dão conta de 3 analfabetos.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 434

Relações hierárquicas entre protagonistas

Os indiciados são filhos, sobrinhos, genro e amigos do ancião


supostamente assassinado pelo linchado. Há também um empregado de um
desses filhos, numa borracharia. As testemunhas são também familiares ou
amigos daquele senhor. Todos os protagonistas são vizinhos, moradores do
bairro de Aldeinha.

Contextos/Cenários

Os moradores do bairro vão buscar a vítima na casa de sua irmã, onde ela
estava escondida. Os donos da casa saem, não se sabe se por medo ou por
conivência com a agressão. A população tira o indivíduo de dentro da casa e
começa a surra do lado de fora, local mal iluminado. Logo em seguida o levam
para um local um pouco mais afastado, onde continuam a agressão. O corpo é
encontrado em um amplo terreno a cerca de 100 metros da margem direita da
Rodovia BR 116, pista Curitiba-São Paulo, parcialmente coberto por vegetação
rasteira. O caso foi muito noticiado e várias dessas notícias foram anexadas ao
processo.

“Física” dos acontecimentos

O linchamento ocorreu como represália ao assassinato de um antigo


morador do bairro, ocorrido dois dias antes. A vítima do linchamento era suspeita
de ter cometido aquele assassinato. Foi ouvida na delegacia, em inquérito policial
aberto, mas depois foi liberada. Ao chegar ao bairro, passou a espalhar que o
inquérito havia sido rasgado, o que revoltou amigos e familiares do ancião.

Observações finais

Algo interessante de notar neste processo foi o fato de terem sido


“validados” os depoimentos na polícia, nos quais os indiciados confessam,
apesar de alguns deles negarem perante o juiz parte de suas declarações.

Este caso é uma exceção entre os casos de linchamento, posto que seu
desfecho é uma condenação, apesar de esta condenação ser bastante leve se
considerada a gravidade do crime de homicídio: em 11/10/91, os réus são
condenados a 4 anos de reclusão em regime aberto. Este desfecho deve-se à
desclassificação do crime de homicídio para o de lesões corporais, ocorrida cinco
anos após o linchamento, que é solicitada pela defesa e apoiada pela promotoria.

O crime supostamente praticado pelo linchado - também um assassinato -


justifica a sua morte, e seus antecedentes de pessoa "não afeita ao trabalho",
"alcoólatra" e "violenta" são freqüentemente mencionados pelas testemunhas de
defesa e de acusação, em contraste com as qualificações de "trabalhadores" e
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 435

"honestos" atribuídas aos réus, apesar de que vários deles tinham antecedentes
criminais.

O mais significativo é que o caso coloca em destaque a própria relação da


população com as instituições de controle, uma vez que a maior parte dos réus e
testemunhas justifica o linchamento pelo fato de a vítima ter sido solta pela
polícia depois de ter sido interrogada sobre a morte de pessoa querida na região.
Ainda mais grave, ter voltado para o bairro dizendo que o inquérito a respeito
daquele crime havia sido rasgado e que ela poderia continuar praticando crimes
pois sua impunidade estava garantida.

8. Linchamento em Campinas
Data 10/07/85
Resumo do caso
O fato teve lugar no Jardim Profilurb, periferia de Campinas, na noite de 10
de julho de 1985. As vítimas fatais foram três rapazes, sendo dois irmãos, e um
quarto jovem que escapou com vida. A imprensa noticiou o caso, informando que
os familiares dos linchados haviam incendiado a casa de um dos agressores. O
crime é classificado como tríplice homicídio mais tentativa. Consta também como
vítima um rapaz de 13 anos que recebeu um tiro durante os acontecimentos. O
registro policial dá conta de que o linchamento, de autoria de “três elementos ali
moradores” ocorreu em represália a um roubo. Informa ainda que a mãe de uma
das vítimas e uma das testemunhas declararam ter visto, momentos antes do
linchamento, um comerciante local seqüestrar os três jovens vitimados. No início
das investigações, tudo convergia para confirmar a hipótese de que as vítimas
teriam assaltado um bar, cujo proprietário procurou se vingar do roubo.
Posteriormente, esta versão é substituída por outra, segundo a qual o motivo da
vingança não era um assalto, mas a tentativa de abuso sexual contra uma
adolescente, sobrinha desse comerciante. Suspeita-se que os três jovens teriam
promovido vingança contra a jovem que, dias antes, impediu que eles entrassem
em sua residência para fugirem de perseguição policial. Ameaçaram retornar e
dela abusar sexualmente. De fato, teriam retornado, obrigaram-na a despir-se e
cheirar cola, embora não a tivessem violentado. Como represália, o comerciante,
tio da jovem, mancomunado com outros parentes e moradores, teria iniciado o
linchamento. O processo encontra-se em andamento. De agosto de 1985 a maio
de 1995, o processo ainda não havia sido concluído. Houve sentença de
pronúncia para os acusados. Foram expedidas as citações do réu e mandados
de prisão contra réus revéis. A partir de junho de 1995, não há mais informações
quanto ao prosseguimento da ação penal.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 436

Local

Residência construída em alvenaria no Jardim Profilurb, periferia de


Campinas, município da região Sudeste do estado de São Paulo. Na residência
estava instalado um pequeno bar e, no recuo coberto por telhas de amianto, algo
como um "salão de jogos", onde havia uma pequena mesa de bilhar.

No século passado, Campinas foi uma cidade próspera construída às


voltas da cafeicultura. Neste século, conheceu o processo de industrialização e
atualmente é uma área de fluxos migratórios provenientes dos municípios do
interior de São Paulo e do Paraná, tal como a maior parte dos envolvidos no
linchamento.

Possui atualmente 846434 habitantes e em 1985, ano em que aconteceu o


linchamento, tinha 741587 . Parte substantiva dessa população é constituída de
trabalhadores de baixa renda, muitos dos quais habitantes dos bairros periféricos,
distantes do centro da cidade e carentes de serviços públicos, como o Jardim
Profilurb. Em 1985, a proporção de óbitos de fetos entre os nascidos vivos na
cidade era de 2%; o número de habitantes por leito nos hospitais da cidade era
267; a proporção de alunos do primeiro grau que ingressava no segundo grau era
de 19%. Atualmente estes números não se alteraram substancialmente. Em
vários depoimentos, o Jardim Profilurb aparece como local “perigoso”, “sem
segurança”.

Vítimas

Quatro vítimas, sexo masculino. A primeira, natural de Nova Cantu


(Paraná - Sul), 18 anos, residente em bairro da periferia de Campinas. Segundo
testemunhos, tinha várias passagens pela polícia. Era irmão da segunda vítima,
esta natural de Santo Anastácio (Paraná - Sul), com 20 anos, residente naquele
mesmo local. Tinha várias passagens pela polícia. A terceira vítima, natural de
Tupã (São Paulo, Sudeste), tinha 17 anos. Não trabalhava fazia quatro anos
porque, segundo sua mãe, “sofria dos nervos”. A quarta vítima é branca, 18 anos,
solteiro, natural de Panorama (São Paulo, Sudeste). Era auxiliar de fotógrafo.
Tinha várias passagens pela polícia. Morreu em 1986, em conseqüência de
ferimentos provocados por instrumentos pérfuro-cortantes (estiletes), em briga na
cadeia. Ao que indicam informações dos autos, esta última vítima não tinha
raízes no bairro, pois não conhecia ninguém, sequer as vítimas anteriormente
descritas. Trata-se de jovens, procedentes de municípios médios dos estados de
São Paulo e do Paraná, predominantemente agrícolas.
Indiciados
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 437

São indiciados 9 réus, sendo oito do sexo masculino e uma do sexo


feminino. A maior parte tem idades entre 20 anos e 38 anos. Provém de
Campinas, de municípios do interior de São Paulo, do Paraná e do Espírito
Santo. Há quatro brancos, um negro e três para os quais não há informações
quanto à cor. Ocupam-se em atividades da construção civil (pedreiro, vidraceiro,
eletricista), transporte (motorista), comércio (bar, representação comercial),
saúde (enfermagem), escritório (contabilidade), serviços gerais. Há um
desempregado. Dois declaram-se proprietários de sua residência. Um deles
declara-se proprietário de bar. Entre os oito réus, cinco tem antecedentes
criminais. As relações entre réus compreendem relações de parentesco,
vizinhança, amizade.
Testemunhas

Foram ouvidas, a princípio, 34 testemunhas, sendo 24 durante o Inquérito


Policial; posteriormente, uma destas testemunhas tornou-se réu; a defesa
convocou 10 testemunhas. Seis testemunhas eram parentes ou conhecidos das
vítimas; 15 eram parentes ou conhecidos dos réus; 12 eram moradores do bairro.
Vinte e três das testemunhas eram do sexo masculino e 10 do sexo feminino.
Quanto às idades, há informação para 22 pessoas: dez estavam na faixa etária
dos 13 aos 19 anos; três tinham entre 20 e 29 anos; quatro entre 30 e 39; três
entre 40 e 49; duas pessoas entre 50 e 56 anos de idade. No que se refere à cor,
há informação para 20 testemunhas: três negros; treze brancos; quatro pardos.
Para 27 pessoas há informação sobre o estado civil: 16 casados; 8 solteiros; uma
viúva; dois amasiados. Em relação à naturalidade, há informação para 19
testemunhas: 10 paulistas; 4 mineiros; 1 paraense; 2 baianos; 2 paranaenses. No
que se refere à ocupação, temos dados para 26 pessoas: 6 trabalhadores
braçais; 4 donas de casa; 3 vigilantes; 4 prestadores de serviços; 1 funcionário
público; 1 construtor; 2 pessoas da área comercial; 1 auxiliar de escritório; 1
aposentado; 1 estudante; 1 desempregado. Não há informação sobre o grau de
instrução das testemunhas.
Relações hierárquicas entre protagonistas

Réus, vítimas e testemunhas são vizinhos e familiares, todos moradores


da mesma região. Os mais importantes incitadores do linchamento - os donos do
bar - eram tidos como pessoas "respeitadas pelos bandidos". Ressalte-se que
dois irmãos arrolados como testemunhas, amigos das vítimas, são acusados em
alguns depoimentos de também fazerem ameaças aos moradores do bairro.
Contextos/Cenários
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 438

O cenário para o linchamento vai sendo construído ao longo de todo o dia.


Os homens esperam armados, nas ruas, o retorno das mulheres que haviam ido
procurar um radialista policial para encaminhar pedido, a ser dirigido à polícia, de
mais segurança para o bairro. Quando as vítimas aparecem neste cenário são
levadas ao bar onde estava o pai da moça supostamente ameaçada por elas,
além de um aglomerado de pessoas. Começa o tumulto e ali mesmo se dá o
linchamento.

Em seus depoimentos, os réus e a vítima sobrevivente afirmaram que só


tomaram conhecimento das mortes das outras vítimas no dia seguinte, através de
jornais, do rádio e da televisão.

“Física” dos acontecimentos

Vários são os depoimentos que relatam um cotidiano muito violento vivido


no bairro. Havia muitos "bandidos" que ameaçavam os moradores, assaltavam os
que estudavam à noite, invadiam e furtavam as casas e roubavam os
documentos dos passageiros no ponto final do ônibus para depois cobrar pela
sua devolução. A polícia às vezes passava pelo bairro e levava os infratores, mas
os soltava algumas horas depois. Há menções a pedidos de suborno por parte
dos policiais. O estopim para a reação dos moradores pode ter sido o assalto ao
bar de um dos indiciados e a agressão à sua filha, sobretudo porque o tio da
moça e sócio deste bar era tido como uma pessoa "respeitada pelos bandidos" -
o pacto entre os "bandidos" e os comerciantes parece ter sido quebrado neste
episódio ou até mesmo antes quando a própria moça supostamente agredida
teria recusado abrigar os infratores depois de um assalto. Àquela altura, um
grupo de mulheres foi então procurar um radialista policial para encaminhar
pedido de maior policiamento na região. O radialista as acompanhou ao Distrito
Policial, onde ouviram de um coronel que não seria possível aumentar o
policiamento devido a uma outra operação a ser implantada na região, mas uma
viatura faria a ronda. Os homens as aguardavam armados, patrulhando as ruas.
Os primeiros identificados como "marginais" que surgiram no bairro foram
levados ao bar anteriormente assaltado onde se deu o linchamento. Dias depois
do linchamento, parte da população incendiou o carro e destruiu a casa de alguns
dos linchadores.

Observações finais

Vale notar que quatro pessoas são mencionadas nos depoimentos como
tendo participado dos acontecimentos, mas não são arroladas nem como
indiciados nem como testemunhas. Mas o mais importante a respeito da atuação
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 439

da justiça refere-se à ambigüidade dos critérios para a definição de indiciados e


testemunhas. Essa confusão, intrínseca aos casos de linchamento, é aqui ainda
mais acentuada, já que ocorre inclusive uma indistinção entre vítimas e
agressores, uma vez que em vários depoimentos algumas das próprias vítimas
são mencionadas como tendo participado como linchadoras. Temos que atentar
também para o fato de que, se as vítimas eram tidas como "marginais" pela
população, vários entre os agressores também tinham ou viriam a ter nos anos
seguintes, antecedentes criminais. Chama atenção o tom hesitante da pronúncia,
alertando o juíz para a ausência de absoluta clareza em relação à participação
dos denunciados. Também são hesitantes as próprias defesas, que alegam a
"incerteza" sobre a participação dos acusados.

1.9. Linchamento em Osasco


Data 21/03/88
Resumo do Caso

O linchamento ocorreu no interior da favela, no bairro Cidade Munhoz,


município de Osasco, na noite de 21 de março de 1988. Cerca de 30 pessoas,
moradores da favela, invadem o barraco de um pedreiro, onde a vítima se
encontrava, retiram-na de lá e promovem o linchamento. O processo durou 11
meses e dois dias, dos quais 10 meses e 5 dias foram consumidos na fase
policial. O inquérito policial foi arquivado. Não houve indiciados ou réus.
Local
Favela em Cidade Munhoz, Osasco. O município de Osasco é o mais
industrializado do oeste da Região Metropolitana da Grande São Paulo, sendo
sua população correspondente a 3,7% dessa região. Local de habitação de
amplas massas de trabalhadores industriais e de população que vive às
expensas dos serviços auxiliares à indústria.

Em 1988, ano do linchamento, a população de Osasco era de 565582


habitantes . A população imigrante no município é consideravelmente menor que
no restante da Grande São Paulo. Atualmente entre os seus 568225 habitantes,
apenas 51117 (9%) não são naturais de Osasco, sendo a maior parte
proveniente da região central do país, e morando na cidade há menos de 10
anos. Com relação à faixa etária dos moradores de Osasco, a predominância é
de jovens: 32,01% de 0 a 14 anos; 29,82% de 15 a 29 anos; 26,74% de 30 a 49
anos; 9,65% de 50 a 69 anos; 1,79% de 70 anos ou mais.

Há muitas favelas e é grande o número de pessoas nelas habitando.


Existem atualmente oito hospitais no município, mas em 1988 havia sete. Esta
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 440

diminuição do número de hospitais fez com que a média de 352 habitantes por
leito, registrada para anos anteriores, se elevasse para 593, em 1988. No que se
refere à educação, a população alfabetizada atualmente é de 77,78% e, em
1988, 16,84% dos alunos do primeiro grau da rede pública de ensino
ingressavam no segundo grau.

Entre 1981 e 1993, observou-se crescimento de 51% nas ocorrências de


homicídios dolosos, uma proporção baixa quando comparada com a de outros
municípios da Grande São Paulo, como Cotia (600%), Embu (713%), São
Bernardo do Campo (1010%). Ainda assim, é baixa a proporção de ocorrências
convertidas em inquéritos policiais. Em 1984, essa proporção era de 12,49%; em
1989, apontou ligeiro crescimento (15,16%).

Vítima

Sexo masculino, 33 anos. Natural de Cidade Munhoz, bairro do município


de Osasco. Residente com a mãe em favela no mesmo bairro. Filho de pai
desconhecido. Fora amasiado duas vezes. Possuia antecedentes criminais.
Desde os dez anos, “puxava Cadeia”, inicialmente no Juizado de Menores (sic) e
depois pelos crimes praticados, furtos e assaltos. Por ocasião do linchamento,
falava-se que ele vinha estuprando mulheres no bairro onde morava. Em seu
depoimento, sua mãe declara que ultimamente ele se sentava à sua frente,
exibindo-lhe o órgão sexual e lhe dizendo que qualquer hora ela seria estuprada
pois ela não “era mesmo a mãe dele”. Declarou também sentir-se “aliviada” com
a morte do filho, pois assim ele “não mais seria colocado em liberdade”.

Indiciados

Não houve qualquer indiciamento, apesar da participação de quase trinta


pessoas.

Testemunhas

Duas pessoas foram arroladas como testemunhas. A mãe da vítima, com


idade declarada de 44 anos, é negra, solteira, natural de Amparo (São Paulo,
Sudeste), dedicada às atividades domésticas. A segunda testemunha, sexo
masculino, é conhecido da vítima. Natural de Varginha (Minas Gerais, Sudeste),
casado, pedreiro. Proprietário do barraco onde aconteceu o linchamento.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 441

Relações hierárquicas entre protagonistas

Não há relações hierárquicas. A vítima foi linchada por seus vizinhos.

Contextos/Cenários

O linchamento aconteceu no quintal de um barraco depois de uma


perseguição pela favela onde moravam a vítima e os linchadores.

“Física” dos acontecimentos

O linchado era conhecido na favela onde morava como autor de roubos e


furtos, tendo sido levado pelo Juizado de Menores desde os 10 anos de idade e
depois tendo também sido preso várias vezes. No período que antecedeu o
linchamento passou a ser identificado também como estuprador em vários casos
que vinham ocorrendo.

Observações finais

São exíguas as investigações para esclarecer o caso: apenas duas


testemunhas são ouvidas e ambas tratam dos antecedentes da própria vítima -
sua mãe e o vizinho, em cuja casa aconteceu o linchamento, que se diz incapaz
de reconhecer qualquer dos participantes. O ponto de inflexão parece ser o
depoimento da mãe agradecendo a Deus a morte de seu filho, trecho transcrito
no relatório do delegado.

1.10. Linchamento em Mauá

Data: 15/10/89

Resumo do caso

O linchamento ocorreu em 15 de outubro de 1989, motivado pelo estupro e


assassinato de uma jovem, ocorrido dois dias antes. Os dois rapazes linchados
foram apontados como autores do estupro. O único indiciado no inquérito policial
é apontado como amigo da jovem assassinada. Segundo versão das
testemunhas, um grupo de aproximadamente 20 pessoas cercou a casa da
primeira vítima e, depois de retirá-la de sua residência, passou a agredi-la com
pedradas e pauladas, usando enxadas e picaretas. Antes de ser agredida, a
vítima recebeu um tiro. Após haver consumado o linchamento, o grupo se dirigiu
para a casa da segunda vítima, onde a mesma ação se repetiu. Após o fato, o
grupo se dispersou. Em março de 1996, o processo completou 6 anos e 5 meses
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 442

em andamento e ainda não havia sido concluído. O único indiciado havia sido
pronunciado.

Local

Rua C, Vila Rubi, em casa rudimentar de madeira, municipio de Mauá.


Trata-se de município situado na zona leste da Região Metropolitana da Grande
São Paulo. Área de elevada densidade demográfica com predominância de
classes populares de origem migrante. Em 1989, ano do linchamento, a
população do município era de 293541 residentes. Atualmente a população de
Mauá é de 294998 habitantes (1,91% da Grande São Paulo), sendo que 41256
(13,99%) não são naturais do município e ali residem há menos de 10 anos,
sendo a maior parte procedente de outros Estados da própria região Sudeste.
Com relação à faixa etária dos residentes em Mauá, a predominância é da
população jovem: 37,46% de 0 a 14 anos; 32,16% de 15 a 29 anos; 22,23% de
30 a 49 anos; 7,08% de 50 a 69 anos; 1,03% de 70 anos ou mais.

Em relação ao acesso da população à infra-estrutura urbana, a situação é


de precariedade. Existem, desde 1987, quatro hospitais no município, sendo que
a média atual de habitantes por leito é igual a 288. No que se refere à educação,
a população alfabetizada, é de 75,7%, e a proporção de alunos do primeiro grau
da rede pública de ensino ingressam no segundo grau é de 14,28%.

Com relação à violência, o município de Mauá conheceu, entre 1981 e


1993, substantiva elevação de suas taxas de homicídio, algo em torno de 396%.
Apesar desse abrupto crescimento, as taxas indicativas da intervenção policial
revelaram-se baixas: em 1984, apenas 10,67% das ocorrências convertiam-se
em inquéritos policiais; em 1989, observa-se ligeiro crescimento dessa proporção
para 14,29%, mesmo assim bastante insuficiente para conter essa modalidade de
violência nos marcos do Estado de direito.

Vítimas

Duas vítimas do sexo masculino. A primeira parda, amasiada, natural de


Salvador (Bahia, NE), residente no Jardim Real (periferia de Mauá). Suposto
autor do estupro e assassinato de uma jovem, entre 16 e 18 anos, manequim,
residente no local. A segunda vítima é preta, amasiada, 23 anos, natural de São
Caetano do Sul (São Paulo, Sudeste), residente no Jardim Avelino (periferia de
Mauá). Igualmente responsabilizado pela morte da jovem manequim.

Indiciado
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 443

Agressor do sexo masculino, 26 anos, natural de Itanhaçu (Bahia, NE),


estampador de profissão, com escolaridade primária completa, dois filhos
legítimos. Não possuía imóveis. Amigo da jovem manequim assassinada. Possui
antecedentes criminais.

Testemunhas

Foram ouvidas 10 testemunhas, sendo 7 durante o Inquérito Policial -


dentre as quais 5 foram arroladas pela acusação na Instrução Criminal - e 3
arroladas pela Defesa na Instrução Criminal. Sete destas testemunhas eram
familiares das vítimas e três eram moradores do bairro. Seis eram do sexo
masculino. Em relação às idades, 4 estavam na faixa dos trinta e as demais
tinham entre 47 e 57 anos de idade. Quanto ao Estado de origem, temos 6
paulistas e 3 mineiros. No que se refere ao estado civil, 3 eram casados, 2
amasiados e 2 solteiros. Finalmente, em relação à ocupação, havia 2 do setor de
serviços gerais, dois da área de vendas, 2 do setor de serviços, 1 operário e 3
donas de casa. Não há informação sobre a escolaridade das testemunhas.

Relações hierárquicas entre protagonistas

Não há relações hierárquicas. Os linchadores eram moradores da vila e as


vítimas identificadas como estupradores e assassinos de uma manequim, muito
querida no bairro.

Contextos/Cenários
Os linchadores primeiro dirigiram-se ao barraco de uma das vítimas,
retiraram-na de lá e a mataram do lado de fora. Depois dirigiram-se à casa da
outra vítima, cerca de 500 metros adiante, adotando o mesmo procedimento.
Observe-se que as vítimas moravam a cerca de um quilômetro de onde ocorreu o
estupro seguido da morte da manequim.

“Física” dos acontecimentos

O motivo desencadeador do linchamento foi o estupro e o assassinato da


manequim, moradora querida no bairro, ocorrido dois dias antes. Atribuída a
responsabilidade por aquele ato a dois moradores da vila, os vizinhos dirigiram-
se às suas casas, retiraram-nos de lá e consumaram o linchamento.

Observações finais

A Ficha de Antecedentes Criminais do Réu só apareceu no dia 25.02.92


com cinco enquadramentos no artigo 121 do Código Penal. Ele é a única pessoa,
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 444

entre os envolvidos, com antecedentes criminais e este fato pode ter contribuído
para ele ter sido o único indiciado.

O Promotor de Justiça pediu a suspensão do processo para apurar a


existência de três outros autores do crime, citados nos depoimentos. Por isso,
passados sete anos do linchamento, ainda não houve a sentença de pronúncia.

2. Morfologia dos litígios


Uma vez descritos os casos, trata-se agora de passar à caracterização dos
conflitos e litígios que resultam freqüentemente em linchamentos com desfechos
fatais. Isto posto, vai-se a seguir descrever as características dos litígios que
resultam em linchamento com vítimas fatais. Entende-se, por essa via, que o
linchamento é uma forma de justiçamento privado porque não se vale das
instâncias públicas e oficiais de justiça, muito embora em torno delas gravite
parte substantiva das queixas que movimentam aquela modalidade de
comportamento e protesto coletivos. A morfologia dos litígios concentrar-se-á em
três ordens de observação: primeiro, a caracterização dos protagonistas
envolvidos nos acontecimentos enfocados, compreendendo agressores, vítimas,
testemunhas e autoridades que intervêm nos fatos; segundo, a caracterização de
contextos e cenários, por isto compreendendo circunstâncias e situações que
tendem a estimular e a favorecer a ocorrência de linchamentos bem como a
descrição do local onde eles acontecem com maior freqüência; terceiro, a
descrição da “mecânica” dos acontecimentos, o que compreende a
caracterização da seqüência de ações que convergiram para o desfecho fatal.

A figura que se segue ilustra esta análise:


Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 445

3. Protagonistas
Quem são os protagonistas principais dos casos de linchamentos
observados? Por protagonistas está-se compreendendo todos os atores sociais
cuja ação, de um modo ou outro, influencia o curso dos acontecimentos que
redundam nessa modalidade de violação de direitos humanos. Compreendem
atores posicionados de modo diferenciado na divisão social do trabalho, situados
em distintos pontos da rede de relações sociais, desempenhando variados papéis
e funções nas articulações sociais. Identificam-se como vítimas, agressores,
testemunhas ou autoridades públicas.

Tanto vítimas quanto seus agressores compõem o que grosso modo se


poderia nomear como classes populares urbanas, constituída em sua grande
maioria de trabalhadores urbanos pauperizados, portadores de baixa
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 446

escolaridade formal, ocupados em atividades que demandam pouca habilitação


ou quase nenhuma especialização técnica. Aos baixos salários vêm se associar
as precárias condições de moradia urbana nos bairros periféricos da região
metropolitana e do município de São Paulo onde é flagrante a carência de infra-
estrutura, entre as quais saneamento básico, arruamento, calçamento,
iluminação, disponibilidade de vagas escolares em número suficiente para
atender a demanda e de estabelecimentos para ensino escolar formal com
qualidade, dispobilidade de postos de saúde e - além do mais - adequados
serviços de segurança pública, representados sobretudo por policiamento eficaz
e polícia judiciária eficiente.

Esse cenário genérico que caracteriza a vida de todo e qualquer cidadão


comum, pertencente às “classes populares” urbanas esconde em verdade uma
multiplicidade de distintas situações. Nesses agrupamentos, é possível identificar
trabalhadores assalariados, especializados ou semi-especializados, com contrato
de trabalho e as conseqüentes garantias proporcionadas em lei, ocupados quer
na indústria quer no setor de serviços. Ao mesmo tempo, trabalhadores semi-
especializados que não dispõem das mesmas garantias, exercendo atividades na
construção civil ou em ocupações subsidiárias, além de uma grande variedade de
trabalhadores alocados em serviços sobretudo domésticos, de higiene pessoal,
de abastecimento de gêneros alimentícios e de abastecimento de veículos
automotivos, em pequenas e médias oficinas de consertos e reparos etc., bem
como grande variedade de trabalhadores no comércio dos mais diversos
produtos, entre os quais pequenos proprietários de bares, quitandas, empórios,
mercearias, bazares e toda sorte de vendedores ambulantes situados no
mercado informal. Ao lado dessa miríade de trabalhadores, toda uma outra gama
de desempregados ou cidadãos sem qualquer ocupação, que vagam aqui e acolá
à busca de pequenos expedientes ou de um ou outro amparo momentâneo ou
fortuito que lhes assegure a existência cotidiana. Trata-se de um cenário típico da
pobreza que assolou a Europa ocidental na primeira metade do século XIX,
retratado com a habilidade de um mestre pintor pelo jovem Engels ao escrever,
aos vinte e quatro anos, seu hoje clássico A situação da classe trabalhadora na
Inglaterra (1844).

Alguns são velhos moradores do bairro, bastante conhecidos, respeitados


e reconhecidos em virtude de alguma qualidade pessoal, valorizada como uma
espécie de virtude própria, como seja a idade, a sabedoria, a generosidade e
solidariedade para com vizinhos, a valentia ou a capacidade de iniciativa e de
liderança diante de problemas enfrentados pelos moradores de um bairro
determinado. Nem todos porém, encontram-se completamente enraizados em
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 447

determinada comunidade ou vizinhança. Há aqueles que, por força das


circunstâncias sociais, são constrangidos a mudar de bairro com relativa
freqüência. Entre essas circunstâncias, contam-se não apenas as dificuldades
econômicas que obrigam famílias à busca de aluguéis mais baratos e
compatíveis com seus rendimentos, mas também o acirramento de conflitos
locais nas relações intersubjetivas e a existência de algum desafeto que coloca
em perigo a vida de algum membro da família ou a família em seu conjunto.

Entre os moradores, há aqueles que são proprietários de sua habitação.


Em geral, adquiriram em passado recente um pequeno terreno, não raro em
loteamentos clandestinos e para os quais não dispõem de documentação
comprobatória da posse e/ou propriedade ou dispõem de documentação
publicamente contestável. Nesse pequeno terreno, não raro também situados em
áreas de risco, pouco favoráveis à construção, edificam pouco a pouco suas
habitações, sem autorização oficial, ampliando-as em função de necessidades
sempre crescentes (como nascimento de um novo filho, a agregação de parentes
à família original ou o casamento de filhos ou netos) e à medida em que as
economias e o endividamento pessoal o permitem. Face à situação de
instabilidade e insegurança pessoais a que se submetem esses trabalhadores e
moradores dos bairros periféricos, não é de estranhar o apego à propriedade
particular. Muitas dessas habitações funcionam igualmente como espaço para
realização de trabalho. É muito comum que a edificação comporte, ao lado dos
cômodos domésticos, um galpão - na verdade uma espécie de avancée coberta
com telhas de amianto - onde se encontram instalados bares, oficinas mecânicas,
borracharias, pequenas oficinas de costura ou mesmo depósito de materiais de
construção, móveis e utensílios os mais variados. Há ainda extensão de
moradias, edificados sob a forma de cômodos, destinados ao aluguel e voltados
para a suplementação de rendimentos dos proprietários. Esses aluguéis
dificilmente são regulados por meio de contratos formais, resultando quase
sempre de acordos verbais, fonte futura de conflitos e tensões nas relações entre
proprietários e seus inquilinos.

Esse cenário social parece caracterizar as condições de vida e o perfil


social seja das vítimas dos casos de linchamento observados quanto de seus
agressores. No entanto, este fundo comum de existência social tem aqui seus
limites, a partir dos quais é possível diferenciar uns e outros. Se as fronteiras
entre vítimas e agressores são tênues e nem sempre discerníveis com clareza,
não se pode dizer que a “seleção” das vítimas seja completamente cega e
movida por uma arbitrariedade absoluta. De fato, por um lado, os agressores - ou
aqueles que assim parecem se identificar ou assim serem identificados pelos
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 448

outros - são, em geral, moradores do local onde ocorreram os fatos narrados,


trabalhadores qualificados ou semi-qualificados, proprietários de sua habitação,
pequenos comerciantes. Muitos provêm de outros Estados da federação. Em
algumas localidades observadas, a presença de migrantes nordestinos é
bastante acentuada; em outras, é maior a de migrantes da própria região
Sudeste, em particular do Estado de Minas Gerais. Destaca-se, também, no caso
do linchamento em Campinas, forte presença de migrantes do Noroeste do
Paraná. Embora migrantes, muitos se encontram estabelecidos há muitos anos
na região onde os casos observados ocorreram, tendo lá constituído laços de
solidariedade e de conflito e, não raro, fomentado uma densa rede de apoio
social e cumplicidade face aos problemas locais enfrentados. Encontram-se por
conseguinte enraizados no bairro, território que lhes oferece bases e
fundamentos para a construção/reconstrução dinâmica de suas identidades
sociais.

A vítima revela características um tanto quanto distintas. Em primeiro


lugar, convém sublinhar a inexistência, entre os casos observados, de uma vítima
em potencial. Conforme aponta José de Souza Martins (1995 e 1996), nos
linchamentos verificados nos Estados Unidos, em especial na região Sul do país,
é possível identificar forte motivação racial. As ações visavam preferencialmente
vítimas negras. Traduziam o protesto coletivo de parcelas substantivas de
proprietários rurais, na maior parte brancos, contra os avanços dos direitos civis,
particularmente intensificados a partir do fim da Guerra Civil na segunda metade
do século XIX, para o conjunto da população negra que conquistara a liberdade.
No Brasil, embora seja possível suspeitar a existência de componentes raciais, a
motivação racial nos linchamentos é pouco explícita, se não inexistente. Do
mesmo modo, com outros tipos de motivação como gênero, geração, etnia,
classe ou qualquer outro traço cultural. Quando detectada, ela é quase sempre
muito sutil. Por exemplo, no caso do linchamento ocorrido em Ribeirão Pires,
havia duas vítimas: um jovem de 25 anos, negro e um adolescente de 16 anos,
branco. Segundo as descrições do linchamento, contidas no processo, os
agressores cercaram, à noite, ambas as vítimas. O negro parece ter sido objeto
de maior suplício físico. Além do espancamento de que foi alvo, recebeu um tiro
com arma de fogo na região frontal da cabeça, o que revela a intenção de
provocar-lhe a morte. O jovem branco foi imobilizado. O grupo, antes de sacrificá-
lo, discutiu ainda se deveria fazê-lo. Foi morto em virtude dos socos e pontapés
que lhe foram desferidos. É possível focar aqui uma motivação racial, dada a
maior intensidade de sofrimento imposto ao negro. Mas, é possível também que
a hesitação em vitimizar o branco tenha sido motivada justamente por sua
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 449

condição de jovem e adolescente. Nesta circunstância, pesou com maior


intensidade o recorte geracional e não tanto o racial. Nada impede de pensar que
ambos recortes tenham concorrido para o desfecho fatal. Certo ou não, nos
demais casos de linchamento observados, motivações desta ordem não se
revelam salientes, razão pela qual não se identificou um perfil padrão de vítima
potencial.

Se esse padrão é inexistente, há no entanto situações explosivas de


conflito e litigiosidade sociais que, por assim dizer, demandam a existência de
vítimas. Como se verá mais adiante, trata-se de situações que “acontecem no
nível da cultura, da estrutura social e da personalidade individual, à medida que
grupos de pessoas cessam de considerar o seu ambiente social como garantido
e passam a rejeitá-lo ou a opor-se ativamente a ele. O processo fundamental de
transformação cultural consiste num solapamento do sistema de crenças vigente,
que confere legitimidade, ou pelo menos naturalidade a algum grau de
correspondência com as expectativas comuns, à ordem social existente. Na área
da estrutura social, corresponde à criação de uma presença política efetiva, de
alguma forma de organização para se contrapor à autoridade organizada... (...)
Psicologicamente, ocorre a infusão de energia na alma humana que lhe dá o
poder de julgar e agir” (Barrington Moore Jr., 1987: 124). As situações explosivas
ocorrem justamente quando são ultrapassadas e/ou superadas as barreiras
sociais, culturais e morais que impediam o apelo a instâncias de mediação e
julgamento que não as oficiais ou assim socialmente reconhecidas.

Trata-se de situações de conflito que vão sendo alimentadas e


intensificadas cotidianamente e que, tendo ultrapassado o limite do “moralmente
suportável” em uma comunidade determinada, explodem em situações
incontroláveis e irracionais de revolta e protesto coletivos, ensejando justiça
rápida, líqüida e certa. Esses cenários completam-se, via de regra, com a
“chegada do estranho” (Martins, 1993). Como sugere este pesquisador, uma das
tradições nas ciências sociais, em particular na antropologia e na sociologia, é a
de refletir sobre o impacto das mudanças tecnológicas e dos processos de
modernização, não raro capitaneados por grandes empreendimentos
econômicos, sobre a vida de comunidades tradicionais, em geral constituídas de
indígenas, camponeses e pequenos agricultores. Via de regra, essa tradição
científica buscou investigar a incidência desses projetos deliberados de mudança
social sobre as relações sociais - notadamente no que concerne às relações de
autoridade e às relações entre gerações, nisto incluídas as mudanças
experimentadas nas formas de sociabilidade e de socialização, nos hábitos e nos
costumes, nas relações com a natureza etc. Na verdade, a esta tradição
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 450

escapou-lhe o essencial: aqueles processos e projetos não tratavam “de


introduzir nada na vida dessas populações mas de tirar-lhes o que têm de vital
para a sua sobrevivência, não só econômica: terras e territórios, meios e
condições de existência material, social, cultural e política” (Martins, 1993: 63).
Com isso, impôs-se ao pesquisador inverter a perspectiva crítica e analítica: ao
invés de perfilar aquela tradição, optou-se por examinar o impacto da presença
daquelas populações sobre a expansão capitalista com vistas a resgatar a
resposta da vítima. Daí que, frente a uma tradição que privilegia o impacto
tecnológico sobre a vida de grupos sociais determinados sob a suposição
(ideológica certamente) de que a tecnologia mais avançada é superior e mais
desenvolvida, a vítima somente possa aparecer como estranho. Guardadas as
diferenças e distâncias entre um objeto e outro, aqui também a vítima assume a
condição de estranho.

Portanto, tudo indica que situações explosivas tendam a ocorrer


justamente quando o estranho ou estrangeiro se avizinha. Quem é essa possível
vítima? No linchamento ocorrido na Lapa, a vítima é desconhecida, negra, com
cerca de 38 anos. Sequer chegou a ser oficialmente identificada. No mencionado
linchamento em Ribeirão Pires, os dois jovens, o negro e o branco, foram
confundidos com bandidos. Nunca se chegou a apurar ou mesmo a confirmar
qualquer envolvimento de ambos com o mundo do crime. No linchamento
ocorrido no Jardim Miriam, a vítima, do sexo masculino, habitante do mesmo
local, encontrava-se desempregada. No linchamento da Praça da Sé, a vítima,
embora dispusesse de ocupação e habitasse com sua família em residência com
endereço fixo, jogava dados em meio à multidão. Em Itapecerida da Serra, o
linchado foi identificado como autor de homicídio cuja vítima era pessoa muito
estimada no local. No linchamento ocorrido em Campinas, as quatro vítimas eram
migrantes do Noroeste do Paraná ou da região Sudeste do Estado de São Paulo.
No linchamento de Osasco, a própria mãe da vítima declarou sentir-se aliviada
com a morte de seu filho.

A vítima é então aquela que simbolicamente reúne todas ou algumas


propriedades do estrangeiro, aquele que suscita no imaginário coletivo
sentimentos de estranhamento, do perigo de contato “impuro” ou de contágio
imoral (Goffman, 1974), de embaralhamento das fronteiras entre o conhecido e o
desconhecido, entre o próximo e o distante, aquele enfim que perturba as
hierarquias reconhecidas como legítimas e imperativas, a distribuição “natural” de
funções e papéis sociais, a ordem estabelecida e familiar. Assim, a vítima pode
ser o desconhecido que transita e vaga pela comunidade local, sem qualquer
motivo explícito que justifique sua presença. É o personagem sem rosto a que
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 451

ninguém - agressores e testemunhas - sabe, queira ou possa reconhecer. Mas


pode ser o desocupado que constitui uma espécie de non-sense em um bairro da
periferia identificado por seus moradores como locus de pobreza, porém uma
comunidade de gente trabalhadora e honesta. Pode ser o desconhecido,
migrante, recém-chegado, sobre o qual pouco se sabe, exceto a suspeita,
alimentada pelo rumor coletivo, de que estivesse envolvido com o mundo do
crime. Pode ser ainda o desconhecido cuja vida é, para além de inaceitável,
inexplicável: como justificar que um jovem, filho de mãe pobre, porém honesta e
sofrida trabalhadora, possa ter construído uma inovidável carreira de crimes e
persista nesta vida ameaçando agora justamente sua comunidade de origem,
certamente alguns dos quais que o viram nascer?

Em contrapartida, os linchadores são, em geral, pessoas conhecidas,


moradoras no local, embora nem por isso sejam passíveis de identificação
criminal. Não está mesmo excluída a participação de transeuntes que não
tenham qualquer ligação com a comunidade de origem. Nos casos analisados, a
presença de transeuntes foi menos freqüente, não obstante tenha sido anotada
em dois casos. No linchamento ocorrido na Lapa, a vítima foi perseguida pelos
moradores da pensão e por outras pessoas que se encontravam em padaria
próxima àquela habitação coletiva, as quais se agregaram à massa,
“convocados” que foram aos gritos de “pega ladrão”. No linchamento ocorrido na
Praça da Sé, os agressores compunham praticamente uma massa de
transeuntes, dadas as características do local, um espaço praticamente
destinado ao comércio, à circulação de pessoas e ao transporte coletivo e
particular. Nos demais casos, parecem predominar os moradores. Em alguns
deles, sua presença é certamente marcante, como nos linchamentos ocorridos
em Ribeirão Pires, no Jardim Miriam, em Carapicuíba, em Itapecerica da Serra e
Osasco.

Embora qualquer um possa assumir em potencial a função de linchador,


essa parece ser uma função preenchida e representada prioritariamente por
figuras determinadas da comunidade. Em particular moradores mais antigos;
parentes de uma vítima de homicídio ou vítima de qualquer outro tipo de violência
ou ameaça que tenha motivado o desejo de uma punição exemplar, ou ainda
pessoas diretamente envolvidas no estopim do linchamento; cidadãos
respeitados por sua idade e idoneidade moral; comerciantes que gozam de
prestígio local não apenas por constituírem uma espécie de ponto de referência e
de articulação social local como também por facilitar a vida dos moradores
concedendo-lhes fiado ou facultando-lhes pagamento a prazo de suas compras,
a par de outras figuras dotadas de autoridade social como o pároco, como o
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 452

vereador e/ou deputado do bairro, como a mulher que desempenha o papel de


conselheira de todos e até mesmo como o jovem que possui físico avantajado e
que, por isso mesmo, grangeou a fama de valente e brigão. Entre estes, há
inclusive moradores respeitados no bairro mas que possuem antecedentes
criminais por estarem envolvidos em algum homicídio, agressão ou mesmo
roubo, geralmente praticados em outros bairros e/ou em outras regiões, como é o
caso dos indiciados no linchamento em Campinas. Todos eles parecem estar na
dianteira dos acontecimentos, secundados por protagonistas menos prestigiados
na comunidade local. Constituem portanto o oposto do estranho e/ou estrangeiro.
Constituem uma massa de pessoas reconhecidas e familiares.

Neste cenário ainda intervêem testemunhas e agentes do poder público.


As testemunhas possuem um perfil social muito semelhante ao dos linchadores.
Compõem-se na maior parte de cidadãos do sexo masculino, embora as
mulheres estejam proporcionalmente mais presentes nesta condição
comparativamente à sua condição de vítima ou de agressor. Distribuem-se entre
distintos grupos etários, conquanto seja notória a maior concentração nos
estratos entre 20 e 40 anos. Muitos provêm do próprio Estado de São Paulo, mas
é igualmente significativa a presença de migrantes procedentes de estados das
regiões Sudeste e Nordeste, em especial de Minas Gerais, Bahia e Pernambuco.
Este traço do perfil social necessita, contudo, ser relativizado porque, na fonte
documental consultada (inquéritos policiais e processos penais) não há
informações que possibilitem avaliar há quanto tempo migraram e há quanto
tempo se encontram estabelecidos no local dos acontecimentos. Trata-se, como
se sugeriu anteriormente, de uma condição social importante na medida em que
o enraizamento na comunidade, o apego aos espaços, às pessoas e aos hábitos
locais conformam cenários favoráveis a ocorrências de linchamento.

Destacam-se as testemunhas de cor branca, ainda que pardos e negros


compareçam com freqüência entre os arrolados. Não há muito o que dizer a
respeito. Não apenas se pode suspeitar da qualidade da informação oferecida
pela fonte documental (cf. Adorno, 1995) cujo viés é muito difícil aquilatar, como
também não se dispõem de informações que permitam avaliar a distribuição
racial da população nas comunidades e bairros onde os linchamentos
observados ocorreram. Se caso fosse possível confiar nesta informação
documental e igualmente fosse possível estimar a distribuição racial talvez se
pudesse avançar algo na direção de hipótese aventada por Adorno (1995),
segundo a qual testemunhas negras tendem a ser menos confiáveis diante dos
olhares inquisitores dos julgadores oficiais. Como as testemunhas são arroladas
e intimadas pelos operadores do direito - delegados, promotores públicos,
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 453

magistrados e defensores -, não é de todo improvável que preconceitos raciais


intervenham na seleção daquelas categorias sociais. Uma hipótese desta
natureza, se comprovada, levaria necessariamente à indagação do quanto o
racismo intervém não somente no desfecho processual, privilegiando com a
sanção penal agressores negros ou absolvendo agressores brancos quando a
vítima é negra, assim como intervém no andamento dos processos, postergando
decisões judiciais e contribuindo para a impunidade.

Conquanto sejam precárias ou inexistentes as informações indicativas de


escolarização formal, observa-se que grande parte não ultrapassou a
escolaridade básica. Muitos apenas sabem ler e escrever seu nome. É menor a
proporção de testemunhas com escolaridade média. Não deixa de ser
significativa a presença de analfabetos. Trata-se de um perfil social não muito
diferente do perfil de escolaridade da população de baixa renda que habita a
periferia de São Paulo e os municípios que compõem sua região metropolitana.
Quanto à ocupação, há operários alocados nos mais diferentes ramos da
produção industrial, em especial no setor da construção civil; trabalhadores do
comércio como balconistas ou proprietários de pequenos estabelecimentos
comerciais; trabalhadores do setor terciário, particularmente barbeiro, garçom,
vigilante, mecânico, motorista particular, caminhoneiro, atendente de
enfermagem, auxiliar de escritório e um número considerável de trabalhadores
que indicam como ocupação “ajudante geral” ou “serviços braçais”. É digno de
registro a presença constante de donas de casa. Em menor proporção, há
trabalhadores agrícolas (lavradores), de pessoas que se declaram
desempregadas e mesmo de algumas autoridades, como um político local. Entre
as testemunhas, é sempre relevante o número de policiais militares, agentes
estes que justamente presenciaram os fatos, ou foram convocados a intervir
durante ou ao final dos acontecimentos.

Há, sob este particular, duas considerações a serem feitas. Em primeiro


lugar, a seleção das testemunhas. Sob um ponto de vista estritamente jurídico,
todas são “testemunhas de juízo”. A cultura judicial convencionou, em virtude do
princípio do contraditório penal, nomeá-las testemunhas de defesa ou de
acusação. Algumas são arroladas pela defensoria; outras pelo Ministério Público.
Em geral, são convocadas por haverem presenciado os fatos, por serem
parentes, amigos, pessoas próximas ou conhecidas de vítimas de homicídios e
de outros crimes que teriam motivado o linchamento, ou ainda pessoas que
tivessem algum vínculo de parentesco, amizade ou conhecimento com o
linchado. Algumas são arroladas na fase policial, durante o preparo do inquérito
policial. Outras, apenas na fase judicial. São convocadas seja porque
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 454

publicamente reconhecidas como tendo presenciado os acontecimentos, seja


porque assim foram identificadas por policiais militares ou ainda porque foram
apontadas por outras testemunhas e outros protagonistas dos linchamentos.
Trata-se, por conseguinte, de um processo de seleção relativamente arbitrário
que pode acolher pessoas que de fato têm algo de relevante a dizer - quer
testemunhas presenciais ou não - como acolher pessoas cujo depoimento
apenas relata o que “ouviu dizer” a respeito dos fatos investigados.

Em segundo lugar, em parte decorrência dessas mesmas características,


é freqüente que as fronteiras entre linchadores e testemunhas sejam
embaralhadas. A leitura dos depoimentos contidos nos processos deixa sempre
entrever diferentes estratégias através das quais esse mecanismo é acionado no
curso das investigações policiais e mesmo durante o processo penal. Ora as
testemunhas se auto-protegem evitando fornecer informações que possam
comprometer e vir a responsabilizar penalmente qualquer um dos que tenham
efetivamente participado dos fatos ou simplesmente os presenciaram e nada
fizeram para contê-los. Ora parecem fornecer deliberadamente informações que
impedem a identificação dos penalmente responsáveis e dificultam o desfecho
das investigações policiais. No caso do Jardim Miriam, várias testemunhas
alegam ter presenciado o linchamento, mas não foram capazes de identificar os
agressores, o que parece pouco provável pois os protagonistas eram todos
moradores do local há longa data, inclusive os familiares da vítima que também
teriam participado do linchamento. O embaralhamento entre vítimas,
testemunhas e agressores é ainda mais acentuado no linchamento ocorrido em
Campinas. Quatro pessoas que haviam sido mencionadas em depoimentos como
tendo participado do acontecimento não chegaram a ser indiciadas, sequer
mesmo arroladas como testemunhas.

Não é incomum que as testemunhas, até porque instruídas por advogados


e defensores, tendam a alterar, em juízo, o teor de seus depoimentos
anteriormente oferecidos no inquérito policial. No linchamento em Itapecerica da
Serra, os indiciados confessam ter linchado a vítima; em juízo, negam a
participação. Muitas vezes, no calor dos acontecimentos, sem qualquer
orientação prévia, chegam a oferecer declarações comprometedoras. No
linchamento do Parque Aliança (Ribeirão Pires), algumas testemunhas
confirmaram com certo garbo a existência de um grupo que fazia patrulhamento
no bairro, algo inclusive documentado com cópias de matérias publicadas na
imprensa periódica. Em juízo, negam a existência do grupo. Convém observar
também que, nesse processo de embaralhamento que turva e perturba as
investigações e a apuração do fato criminal, não é incomum que uma ou outra
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 455

testemunha acabe sendo indiciada e chegue a ser denunciada, convertendo-se


em ré no processo penal. É o que particularmente ocorreu no linchamento
verificado em Ribeirão Pires em que, dentre as dezessete testemunhas arroladas
na fase policial, duas foram posteriormente indiciadas.

4. Relações Hierárquicas, Contextos e Cenários


Como bem pontuou Martins, as relações que se estabelecem entre
agressores e vítimas, entre familiares e estranhos não são unilaterais, contudo
dotadas de reciprocidade. Nos casos de linchamento, parece ser mais rara a
presença de vítima errada. No linchamento ocorrido em Ribeirão Pires, tudo leva
a crer que houve equívoco na adequação social entre vítima potencial e os
jovens vitimados. Primeiro, porque jamais se conseguiu comprovar que as
vítimas tivessem efetivamente antecedentes criminais ou a suspeita de que
estivessem de fato comprometidas com a delinqüência local, embora as primeiras
informações existentes no Inquérito Policial, colhidas no calor dos
acontecimentos, o indicassem. Segundo, porque um dos indiciados, do sexo
feminino, que não tivera participação direta no linchamento todavia havia sido
incriminado por vilipêndio de cadáver, tendeu, em seus últimos depoimentos, a
negar que reconhecesse o jovem negro como o provável responsável pelo abuso
sexual de que fora vítima um pouco antes do linchamento. Inclusive, a sensação
de que os agressores haviam alcançado vítima errada parece ter tido alguma
influência no desfecho processual que acabou por impronunciar todos os réus.
No mais, as vítimas são personagens conhecidas ou presentes na
comunidade, embora portadoras das qualidades ou atributos que as tornam
estrangeira. No linchamento no Jardim Miriam, o linchado, portador de distúrbio
mental, era tio da jovem que havia sido esquartejada. Vivia inclusive na mesma
moradia de seus possíveis linchadores. O estranhamento aqui diz respeito não
apenas ao crime cometido no interior de relações familiares e às ameaças de
abuso sexual que pairavam sobre outros familiares do sexo feminino. Refere-se
igualmente às dificuldades do grupo familiar em lidar com a enfermidade mental,
seja em virtude dos parcos recursos materiais de que dispunham seja em virtude
da ausência de conhecimento popular previamente acumulado que orientasse as
ações do grupo e mesmo objetivasse esse tipo de experiência familiar. No
linchamento em Carapicuíba, a vítima era pessoa conhecida no local, suspeita de
haver matado outra pessoa ao que parece em acerto de contas entre quadrilhas.
O estopim do linchamento foi a zombaria desencadeada pelos prováveis
homicidas justamente por ocasião do velório daquela pessoa morta. No
linchamento em Campinas, as vítimas eram conhecidas tanto assim que o
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 456

linchamento ocorreu como uma espécie de vingança pelas ameaças que os


linchados haviam dirigido a uma jovem, moradora do local, que se recusara a
oferecer proteção e acolhê-los em sua casa quando, em momento anterior,
estavam sendo perseguidos pela polícia. No linchamento em Osasco, a vítima,
moradora da favela, era tolerada enquanto cometia crimes em outros locais que
não o de sua moradia. Quando passou a ameaçar de estupro sua mãe e outras
mulheres, habitantes da mesma favela, fomentou-se assim uma situação
explosiva, uma espécie de um basta coletivo que impulsionou o linchamento.

Tais observações dizem respeito às relações hierárquicas entre os


protagonistas envolvidos nestes acontecimentos. Quando se fala neste tipo de
relações, está se referindo a um tipo de reciprocidade que supõe autoridade e
obediência, mando e aceitação, dominação e subordinação. Em algumas formas
de organização social, de tipo comunitário ou societário, esse tipo de relação
pode ser mais rígido, prever claras fronteiras entre os que estão “acima” e os que
se encontram “abaixo”, não tolerar transgressões à ordem hierárquica
estabelecida, regulamentar com rigor a quebra de disciplina etc. Em outras, as
relações hierárquicas podem ser mais flexíveis, embora prevejam sanções para
as rupturas nas linhas demarcatórias entre posições de comando e as de
subordinação, muitas vezes formalizadas através de sutis, porém poderosos,
preconceitos sociais e culturais, fundados no racismo, no sexismo e em outros
mecanismos de sujeição sociais. Pode-se igualmente pensar em relações
hierárquicas no interior de relações intersubjetivas, entre classes sociais e nas
relações entre grupos civis e autoridades políticas.

Sob esta perspectiva, poder-se-ia formular a seguinte hipótese: os


linchamentos tendem a ocorrer justamente em situações de insuportável ruptura,
no interior de um agrupamento social qualquer, de relações hierárquicas.
Constituiriam modalidades radicais de protesto coletivo que prevêem sofrimento
físico e moral, na maior parte das vezes ritualizado, sem mediação das
instituições oficiais de contenção da violência e cuja sanção converge para a
supressão de indivíduos simbolicamente reconhecidos como responsáveis pelos
sentimentos coletivos de inquietação, experimentados como situações concretas
de desordem social. Os linchamentos verificados nos Estados Unidos, relatados
por Martins (1995 e 1996) parecem, à primeira vista, enquadrar-se neste contexto
de ruptura de relações hierárquicas entre brancos e negros, disto inclusive
resultando a forte motivação racial que se fizeram presentes nos casos
observados sobretudo na região Sul do país. Nesta pesquisa os casos de
linchamentos observados em São Paulo, no período considerado (1980-89), não
se ajustam tout court ao cenário descrito acima. É necessário relativizá-lo.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 457

Concentremos inicialmente nossa atenção no domínio das relações


hierárquicas entre classes e entre cidadãos comuns. Em primeiro lugar, convém
ressaltar que em nenhum dos casos observados detectou-se a participação de
cidadãos pertencentes a outras classes sociais que não às chamadas “classes
trabalhadoras” urbanas pauperizadas. É pouco provável que cidadãos
pertencentes às classes médias (compostas de trabalhadores urbanos
profissionalizados, quer alocados no setor primário quer alocados no setor
terciário) e cidadãos pertencentes às classes elevadas da sociedade (compostas
dos segmentos empresariais e que ocupam posição de direção e mando) se
envolvam com estas modalidades de protesto coletivo que adquirem a forma de
justiçamento popular. Ainda que, no interior destas classes, seja possível
identificar estratos conservadores que até mesmo sejam capazes de verbalizar o
desejo de punições exemplares em muito semelhantes aos linchamentos, não
parecem inclinados a passar do desejo à prática. Certamente, uma gama variada
de barreiras morais o impedem, entre as quais talvez o incômodo de se verem
direta e publicamente denunciadas e comprometidas com uma forma de
distribuição da justiça moralmente condenada porque considerada própria de
agrupamentos sociais não completamente incorporadas ao processo civilizatório.

Segundo Martins, “se nos Estados Unidos as elites locais, especialmente


no Oeste, tomaram nas mãos a obediência à lei, através dos vigilantes, no nosso
caso, as elites não têm demonstrado identificação com a justiça de rua. Ao
contrário, quando participam de linchamentos, como têm ocorrido nas grandes
cidades do interior, fazem-no procurando ocultar sua participação, limitando-se
ao caráter punitivo de seu ato. Essa ambigüidade parece indicar que a tradição
política do poder pessoal, no Brasil, está em crise. Ela tem sido forte ao longo do
tempo, dispensando, portanto, a prática da participação coletiva na justiça de rua,
pois, para isso, as elites dispunham e dispõem de jagunços e pistoleiros”
(Martins, 1995: 299). Não sem motivos, os casos observados ocorreram, todos
eles, sem exceção, em bairros ou zonas de circulação de classes populares
urbanas pauperizadas, onde a presença de classes médias e altas é restrita ou
inexistente. Essas observações sugerem, portanto, que os linchamentos não
constituem protestos coletivos contra situações sociais experimentadas como
resultantes de ruptura de relações hierárquicas entre classes sociais.

Se é assim, cabe, em segundo lugar, examinar a hipótese segundo a qual


linchamentos correspondem a reações sociais contra a ruptura de hierarquias
nas relações intersubjetivas. Aqui também a hipótese tem que ser examinada
com cautela. Nos diferentes casos observados, prevalece a ausência de relações
hierárquicas entre os diferentes protagonistas, sejam eles linchadores, linchados
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 458

ou testemunhas. No linchamento na Lapa, todos os envolvidos - indiciados e


testemunhas - são moradores da casa de cômodos onde se precipitaram os
acontecimentos. Apenas entre duas testemunhas há relações conjugais, as quais
não parecem ter tido qualquer tipo de influência sobre o desenrolar dos fatos. No
linchamento em Ribeirão Pires, réus, vítimas e testemunhas são moradores do
local. Entre muitos, há relações de parentesco. Um dos réus e uma testemunha
eram sócios em um bar. Nada sugere que tensões nas relações hierárquicas
estivessem entre os móveis prováveis dos fatos. Relações de parentesco estão
presentes em outros casos, como nos linchamentos de Itapecerica da Serra e em
Campinas. Do mesmo modo, nada parece indicar que conflitos nas relações de
parentesco tenham evoluído no sentido do justiçamento popular.

Mesmo quando há indícios nessa direção, é preciso ponderar. No


linchamento na Praça da Sé, poder-se-ia identificar tensões nas relações
hierárquicas entre banqueiros do jogo e jogadores. No entanto, o caráter fortuito
das interações decorrentes torna as relações hierárquicas circunstanciais. É
pouco plausível que elas tenham influído decisivamente no desfecho fatal. É,
porém, no linchamento no Jardim Miriam, que tensões desta ordem podem ter
adquirido alguma importância. De fato, como descrito anteriormente, o
linchamento foi motivado pelo estupro seguido de assassinato de uma jovem,
justamente sobrinha do linchado. De acordo com depoimentos contidos no
processo penal, a vítima do linchamento era portadora de insanidade mental. Seu
comportamento constituía ameaça à ordem das relações de parentesco
constituídas, sobretudo em virtude do assédio sexual contra suas irmãs. O
assassinato da sobrinha - ponto de inflexão máximo nas tensões que vinham se
acumulando cotidianamente nas relações de parentesco - constituiu oportunidade
para repor a ordem rompida, sanear o ambiente degradado com o violento
assassinato e purificar os laços e vínculos que há muito se encontravam
perturbados. Daí porque não parece inverossímil a suspeita de que os próprios
parentes tenham participado ativamente do linchamento. Mas, mesmo neste
caso, é preciso reconhecer-lhe as particularidades determinadas por um
acontecimento ímpar: a doença mental, perturbadora, desconhecida, incapaz de
ser racionalmente justificada.

À primeira vista, por conseguinte, tensões nas relações hierárquicas entre


cidadãos comuns, ainda que existentes, não parecem evoluir na direção das
formas extremas e radicais de justiçamento popular. De fato, qualquer sociografia
que possa ser tentada com base nas relações de parentesco e nas relações de
vizinhança, tais como relatadas no processo penal - e deste modo, tal como
capturadas e formalizadas pelo discurso oficial -, não parece sugerir que
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 459

linchadores tomem as leis em suas próprias mãos com o objetivo, latente ou


manifesto, de repor relações hierárquicas perturbadas pela emergência de fatos
como o assassinato de um parente ou de um ente querido e estimado na
comunidade. É possível contudo apreender este tipo de conflitos a partir de um
outro tipo de análise, que não se apóie exclusivamente nos recursos oferecidos
pela sociografia. Trata-se de flagrar situações de discriminação racial, de gênero,
geracional, étnica ou cultural que possam estar relacionadas aos linchamentos
observados. Quanto à motivação racial, já se questionou anteriormente seu peso
e influência. É bem provável que haja maior prevalência de negros do que
brancos entre vítimas de linchamentos, o que poderia sugerir que tais
modalidades de protesto coletivo supõem alvos sociais bem definidos, entre os
quais a eliminação física de negros responsabilizados pelas inquietações
comunitárias. No entanto, as informações contidas nos processos penais não
parecem suficientes para assegurar qualquer conclusão nessa direção.

Do mesmo modo, sob a ótica oficial parece pouco plausível que conflitos
nas relações hierárquicas fundadas no gênero e na geração desempenhem
alguma influência significativa. Embora se possa acreditar que este tipo de
conflitos seja freqüente e presente na vida cotidiana de qualquer um - não há por
que suspeitar que nas comunidades observadas fosse diferente -, eles não
parecem estar no cerne dos linchamentos. Entre os casos analisados nesta
pesquisa, nenhuma mulher foi identificada entre os linchados. Tal observação
encontra respaldo nos resultados em pesquisa conduzida por Martins (1995 e
1996), a qual detectou uma proporção muito reduzida de vítimas do sexo
feminino. Em geral, quando elas aparecem, ou porque estão envolvidas com a
prostituição local que se quer ver erradicada da comunidade ou porque foram
arrastadas no turbilhão irracional dos fatos que redundaram em linchamento. Ao
que tudo indica, a sociedade brasileira desenvolveu, ao longo do tempo,
mecanismos exclusivamente privados de punição das mulheres que se rebelam
ou não se ajustam aos padrões considerados dominantes de relações
hierárquicas entre os gêneros, conforme aponta a literatura especializada
(Azevedo, 1985; Gregori, 1993; Saffiotti e Almeida, 1995; Izumino, 1996).

Igualmente, parece ser diminuto o peso do recorte geracional como motivo


dos linchamentos. Como se observou, entre os casos analisados, apenas um
jovem, menor de dezoito anos, foi vítima do linchamento ocorrido em Ribeirão
Pires. Tratou-se, como sugerido anteriomente, de uma vítima errada. Em todos
os demais casos, as vítimas são adultos. Em outras palavras, o justiçamento
popular não parece tematizar conflitos nas relações entre gerações, entre adultos
e jovens cujo comportamento poderia ser considerado inadequado ou indesejável
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 460

para a comunidade, principalmente se pairam suspeitas de seu envolvimento


com o mundo do crime. Conforme se buscou demonstrar em relatórios anteriores,
as informações extraídas da imprensa dão conta da existência de crianças e
jovens como vítimas de linchamento. No entanto, o sentido e significado desta
presença estaria a merecer análise mais detalhada, pois que a simples presença
de crianças e adolescentes entre as vítimas não é seguro indicador de motivação
geracional. Tal como argumentado acima, jovens podem ter sido arrastados em
meio a multidão irracional que costuma participar dos acontecimentos. É mais
provável que este tipo de motivação desempenhe maior influência nos casos de
desfechos fatais provocados por grupos de extermínio em execuções sumárias,
como se buscará demonstrar oportunamente e como igualmente vem apontando
outras análises (Castro, 1996; Soares e outros, 1996; Americas Watch, 1994).

Idênticos exercícios de reflexão poderiam ser feitos no que concerne à


susposta influência de preconceitos sociais e culturais contra migrantes,
sobretudo os procedentes da região Nordeste do país. Conquanto uma conclusão
deste ordem pudesse ser sustentada pela presença significativa de migrantes
entre as vítimas de linchamentos, convém igualmente observar grande presença
de migrantes entre linchadores e testemunhas. Ao que tudo indica, não é a
procedência um dos móveis que fermentam situações conflitivas e que podem
convergir para aquela modalidade de justiçamento popular, porém a situação de
migrante desprovido de raízes locais e de vínculos sociais consolidados no
tempo. Assim, não se sustém a hipótese segundo a qual litígios nas relações
hierárquicas entre cidadãos comuns constituam móveis para a ocorrência de
linchamentos. Restaria então avaliar uma hipótese subsidiária, qual seja: aquelas
modalidades de protesto coletivo que tomam a forma de justiçamento popular
têm por fundamento conflitos nas relações hierárquicas entre cidadãos comuns e
autoridades públicas. Parece ser nesse domínio que se deva buscar algumas das
razões para explicar a modalidade de conflitualidade social enfocada nesta
pesquisa. Para explorá-la impõe-se, antes de tudo, analisar os contextos e
cenários que propiciam ou estimulam a ocorrência de linchamentos.

Primeiramente, conviria tecer algumas considerações a respeito das


regiões onde ocorreram os linchamentos observados. Em todas elas,
predominam trabalhadores de baixa renda. Na Lapa, apenas 13,45% de seus
habitantes recebiam, em 1995, mais de um salário mínimo; 32,4% de suas
famílias são chefiadas por mulheres. No Jardim Miriam, apenas 4,07 de seus
habitantes têm renda superior a vinte salários mínimos. Em Capela do Socorro, a
cuja Administração Regional está afeto o Jardim Noronha, 59% dos moradores
têm renda familiar até 8 salários mínimos. Em quase todos os bairros que foram
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 461

palco desses acontecimentos, é aguda e flagrante a carência de infra-estrutura


urbana, de serviços públicos de promoção social e de serviços públicos de
proteção e segurança públicas.

Na Lapa, 11,71% dos moradores habitam domicílios considerados


precários (1995). Em Ribeirão Pires, município cuja população está
majoritariamente na faixa etária entre 0-29 anos (66,01%), praticamente não há
calçamento, arruamento, iluminação. São precários os serviços de transportes
urbanos, particularmente suas ligações com os munícipios vizinhos, dotados de
centros comerciais e administrativos de maior importância (1991). Em Capela do
Socorro, 21% da população são compostos de favelados. Há 220 favelas, com
22003 domícilios o que corresponde ao percentual de 12% do total de São Paulo
(1993). Somente entre 1987 e 1990, o crescimento deste tipo de habitação foi da
ordem de 31%. O cenário não é distinto em Osasco. Em Cidade Ademar, distrito
ao qual pertence o Jardim Miriam, 14,59% da população habita moradias
precárias, 24,16% dos domicílios têm acesso precário à rede de esgotos e
60,66% dos moradores não dispõem de acesso aos serviços de saúde (1995).
Cenário não muito distinto se verifica em Carapicuíba, município da Região
Metropolitana da Grande São Paulo onde, em 1984, havia apenas 1 leito para
cada 2292 habitantes, média muito acima do que se considera minimamente
satisfatório como atendimento hospitalar adequado. No mesmo período, tão
somente 6,83% dos alunos de primeiro grau, que haviam freqüentado a rede
pública de ensino, ingressavam no segundo grau. A proporção de pessoas
alfabetizadas alcançou, naquele mesmo ano, 66,04%, taxa abaixo do
minimamente aceitável pelo PNUD (88% da população alfabetizada). Nesse
mesmo ano, o município de Itapecerica da Serra apresentou idêntico
desempenho no campo da educação (7,46% e 68,88%, respectivamente de
ingressantes no segundo grau e de pessoas alfabetizadas). No município de
Osasco, o cenário é um pouco mais favorável, mas nem por isso adequado ou
satisfatório (16,84% e 77,78%, respectivamente). Na mesma direção, o município
de Mauá (14,28% e 75,7%, respectivamente).

Como se sabe, este cenário de extrema precariedade, de deterioração das


condições sociais de existência coletiva, de carência de serviços de promoção e
de proteção social, de ausência de políticas sociais compensatórias é cenário
privilegiado para a explosão de conflitos e litígios de diversas ordens que
atravessam o tecido social de alto a baixo, penetrando-lhe nos mais recônditos
pontos das articulações sociais. Por isso, não é estranho que as mais
comezinhas questiúnculas da vida cotidiana - como o lixo depositado na porta de
uma habitação, a bola que freqüentemente cai no terreno alheio, o levantamento
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 462

de um muro sem autorização prévia de um morador, jogos de dados no bar,


opiniões sobre mulher e futebol etc. - assim como os mais banais
aborrecimentos nas relações intersubjetivas entre parentes, entre vizinhos, entre
conhecidos (como disputas matrimoniais e conjugais, situações experimentadas
como quebra de lealdade e reciprocidade, etc.) quase sempre derivem para um
confronto entre iguais. Trata-se de oportunidade ímpar em que se medem forças,
em que uns e outros tendem a fazer prevalecer suas opiniões e sua vontade
sobre outrém, tendências não raro facilitadas pela influência e peso de uma visão
masculinizada da luta que supõe vitória a qualquer custo, mesmo que para isso
seja necessário enpregar força e violência desmedidas.

No entanto, na maior parte das vezes, estas situações contêm-se nos


limites do confronto verbal, das ameaças ou quando muito da luta corporal que
produz feridos e ofendidos. Quando o confronto é radicalizado, não é incomum
que resulte em desfechos fatais . Via de regra, constituem reações individuais
contra o processo de despojamento social a que muitos desses cidadãos se
vêem submersos neste mundo pleno de carências, despojamento vivido e
experimentado subjetivamente como perda de identidade e de dignidades
pessoais. Dificilmente, situações como esta chegam a mobilizar a atenção e ação
de uma comunidade inteira, convocando o “inconsciente coletivo” no sentido de
uma punição exemplar e definitiva. Dificilmente conflitos desta ordem convertem-
se em litígio, no sentido conceitual anteriormente anunciado. Para tanto, é
necessário que fatos novos perturbem de tal ordem a vida comunitária, em
particular seu cotidiano. Esses fatos novos vem a reboque à chegada do
estranho: trata-se do advento da criminalidade urbana violenta.

Estudos sobre a violência urbana em São Paulo (Adorno, 1993; Caldeira,


1989 e 1992; Camargo e outros, 1995: Feiguin e Lima, 1995) têm demonstrado a
escalada da criminalidade urbana violenta desde princípios da década de 1980,
aliás como largamente apontado no capítulo 2 deste relatório. Não é de
estranhar, por conseguinte, que os bairros e os municípios em que ocorreram os
linchamentos observados nesta pesquisa revelem taxas elevadas de crime
violento, em especial de homicídios de autoria desconhecida. O mapa que se
segue ilustra o crescimento dessa violência no período de 1981 a 1993. Em
alguns bairros e municípios da Grande São Paulo, em curto espaço de tempo, o
crescimento daquela modalidade de crime foi bastante acentuado. Em São
Bernardo do Campo cresceram em 1010% os homicídios dolosos; no Embu,
713%; em Cotia, 600%; em Mauá, 396%; em Itapecerica da Serra, 353%; em
Taboão da Serra, 346%; no bairro do Jaguaré, 250%; em Campo Limpo, 248%;
em Carapicuíba, 234%, e assim sucessivamente. No Jardim Miriam, a taxa de
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 463

homicídios/cem mil habitantes foi de 61,65 (1995) e entre os jovens de 14 a 24


anos foi de 137,75, números bastante superiores às médias (também altas) para
o município de São Paulo que foram respectivamente de 49,8 e 102,58 naquele
mesmo ano. Em Carapicuíba, a taxa de homicídio (59,64/cem mil hab.), neste
mesmo ano, é sensivelmente superior à média do município da Capital.
Parelheiros, distrito ao qual pertence o bairro Jardim Noronha, é o terceiro distrito
mais violento de São Paulo. Sua taxa de homicídios é da ordem de 83,2/cem mil
hab. Se é verdade que, em outros bairros e municípios da Grande São Paulo, as
taxas de crescimento do homicídio foram negativas ou revelaram declínio, é
igualmente verdade que os homicídios de autoria desconhecida decresceram em
menor proporção do que os de autoria conhecida, cenário observável na Região
da Sé e no município de Osasco.

Tudo parece indicar que o crescimento acentuado e rápido da


criminalidade urbana violenta - justamente aquele tipo de criminalidade que põe
em risco ou ameaça permanentemente a integridade física das pessoas - tenha
causado tamanha perturbação na vida de comunidades que repentinamente
tiveram de enfrentar problemas novos, inesperados e para os quais certamente
não dispunham de saber anteriormente acumulado que as habilitasse contê-los
dentro de limites socialmente suportáveis. O crime violento veio instalar-se no
seio da comunidade, em parte desorganizando tradicionais formas de
sociabilidade, promovendo rupturas bruscas na rede de relações sociais,
desarmando os arranjos consolidados há longo período de tempo e sobretudo
bloqueando os mecanismos convencionais de resolução de litígios nas relações
intersubjetivas. É possível mesmo que, em um cenário como este, tenha se
passado algo semelhante ao relatado em estudos americanos.

Como se sabe, algumas grandes cidades americanas conheceram, há


duas décadas, acentuado processo de deterioração de suas condições de vida,
senão de toda uma cidade ao menos de alguns de seus bairros onde se
concentravam sobretudo negros e latino-americanos. Esse processo de
deterioração veio acompanhado do crescimento das taxas de criminalidade
urbana violenta, particularmente dos homicídios voluntários. No curso desse
processo, famílias inteiras, que dispunham de recursos e de capital social e
cultural começam a migrar para outros bairros e outras cidades, de modo que,
em curto espaço de tempo, se romperam os modelos social e culturalmente
reconhecidos de socialização política e bloqueou-se a transferência de valores
cívicos, considerados relevantes e adequados para a sobrevivência da vida
comunitária. O resultado mais imediato - e que parece estar na origem dos
explosivos conflitos sociais, inclusive raciais que se seguiram - foi um sentimento
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 464

coletivo, disseminado entre os que lá permaneceram de que à deterioração das


condições de vida se seguia a deterioração da identidade social, subjetivamente
vivida como perda de dignidade pessoal. Em um cenário desta ordem, as feridas
abertas somente podiam redundar, por um lado, na difusão de um sentimento
exacerbado de medo e de insegurança com conseqüências imprevisíveis; por
outro lado, em confrontos permanentes sobretudo entre gangs e quadrilhas
(Crane, 1991; Mithe, 1995; Putnam, 1994).

Conquanto não tenha sido possível averiguar a pertinência dessa hipótese


explicativa, nada impede de suspeitar que processos similares tenham capturado
a vida social de bairros populares em São Paulo, no curso dos anos oitenta. Essa
suspeita é tanto mais verosimilhante quando se examinam as respostas
oferecidas pelas instituições encarregadas de pacificação social e de controle da
ordem pública. O aumento da criminalidade urbana violenta, ao longo das
décadas de 1980 e 1990, seguramente provocou impacto nas agências de
contenção e controle da ordem pública. Esse impacto pressionou a expansão dos
serviços de polícia judiciária e de vigilância, alterando rotinas consolidadas,
inclinando os agentes à busca de expedientes alternativos e de arranjos
transitórios, provocando imediata necessidade de realocação de recursos
materiais e humanos cujo resultado deve ter afetado e influenciado, ao menos
nos anos iniciais da década, a operacionalização das políticas de segurança e
justiça. Não sem motivos, foram constantes as demandas de racionalização e de
reaparelhamento das agências policiais, sobretudo a partir de 1984 quando elas
se intensificaram e o executivo estadual se inclinou a atender parte delas, entre
as quais o crescimento do quadro de recursos humanos especializados,
conforme se pode observar pela leitura da tabela 1, a seguir transcrita. Mesmo
assim, ao longo da década passada tendeu a declinar a despesa per capita com
segurança e justiça (Caldeira, 1989).
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 465

Tabela 1
Recursos humanos existentes na Polícia Civil: cargos policiais e cargos
administrativos
Taxas de crescimento - Estado de São Paulo, 1987-1996

Cargos Policiais Taxa de Crescimento


Delegado 65,65
Médico legista 29,63
Perito criminal 245,82
Escrivão 136,07
Investigador 64,74
Fotógrafo técnico 179,34
Agente de telecomunicações 133,96
Auxiliar de necrópsia 156,76
Desenhista técnico perito 110,26
Papiloscopista 84,60
Carcereiro 77,52
Agente 79,03
Atendente Necrotério 63,29
Auxiliar papiloscopista 416,27

Cargos Administrativos
Secretaria de Segurança Pública -11,90
De outros órgãos 22,44
Fonte: Secretaria de Segurança Pública - Polícia Civil

Essa pressão sobre as agências policiais acabou sendo transmitida em


cadeia para as agências judiciárias e penitenciárias, sob a forma do aumento de
prisões e de processos instaurados, agências que se vêem também
constrangidas a rever suas regras de funcionamento. Quando não puderam revê-
las, por exemplo em virtude de razões estruturais, entram em crise institucional,
contaminando o sistema de justiça criminal em seu conjunto. Como as diferentes
agências dispõem de lógicas próprias e como cada uma delas procura assegurar
sua autonomia, a fragmentação do sistema se agrava como resultado dos
conflitos que se instauram entre si. Os resultados desses impacto podem ser
avaliados. Um de seus resultados mais evidentes é o aumento do arbítrio policial.
Esta agência, pressionada pela escassez de recursos, acaba se tornando cada
vez mais seletiva na produção de inquéritos, reservando-os aos delitos
considerados mais "graves" ou mais "importantes". Assim procedendo, expande
os mecanismos informais de atuação policial. Relegando os formalismos legais a
segundo plano, transforma certas ocorrências criminais em espaço privilegiado
de atenção e, por conseguinte, de disputa de interesse, acirrando os conflitos de
poder tanto entre diferentes agentes de controle da ordem pública, quanto entre
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 466

esses e a população de protagonistas, mais particularmente agressores e vítimas


(Fischer, 1985, cap. II, pp. 17-60).

As demonstrações gritantes desta baixa capacidade de elucidação dos


crimes espelham-se em dados, conforme vem descrito na tabela 2, abaixo:

Tabela 2
Taxa de Conversão de ocorrências criminais em Inquéritos Policiais para os
anos estudados - Município e Grande São Paulo, 1984-1989
(em porcentagem)
LOCAL 1984 1989
Lapa 16,19* 9,87
Ribeirão Pires 21,27* 9,15
Jardim Miriam ** **
Carapicuíba 9,94 14,21
Praça da Sé 13,52 16,44
Jardim Noronha 9 10,25
Itapecerica da Serra 18,42 14,8
Campinas ** **
Osasco 12,49 15,16
Mauá 10,67 14,29
Média 13,94 13,02
* Dado relativo ao ano de 1992.
** Dados não disponíveis.
Fonte: Estatísticas de Ocorrências e Inquéritos Policiais. Fundação Sistema Estadual de Análise
de Dados - SEADE.

Conforme se pode verificar pela leitura e análise destes anos, a


capacidade de elucidação de casos - que pode ser medida, entre outros
indicadores, pela taxa de conversão de ocorrências criminais em inquéritos
policiais - manteve-se praticamente a mesma ao longo da década de 1980, a
despeito do rápido e acentuado crescimento da criminalidade urbana, sobretudo
a de tipo violento. Em geral, pouco mais de 10% de todas as ocorrências
registradas - isto é, da criminalidade oficialmente detectada - transformam-se em
investigação policial. É possível que essas taxas sejam mais elevadas para os
casos de homicídio ou para outros crimes violentos, particularmente aqueles que
obtiveram repercussão na opinião pública ou na mídia. Nada indica, contudo, que
assim o seja ou mesmo que toda e qualquer ocorrência de homicídio enseje
obrigatoriamente um inquérito policial e, em decorrência, suponha a realização de
investigação policial e a produção de provas materiais que incriminem possíveis
culpados. E, ainda que se considere a pequena massa de ocorrências que se
converte em inquérito policial, esta situação privilegiada não se traduz
necessariamente em elucidação definitiva do caso. Parte substantiva desses
inquéritos é arquivada, bloqueando a possibilidade efetivada de uma ação penal
que identifique agressores penalmente responsáveis. O resultado mais evidente
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 467

deste processo é a impunidade, cuja magnitude entre nós é desconhecida


embora haja indícios mais do que suficientes para suspeitar, com alguma
margem de segurança, que as taxas correspondentes sejam elevadas,
certamente mais do que a média “tolerável” em outras sociedades, como na
França (Robert e colaboradores, 1994) . Como conseqüência dessa espécie de
desistência consentida na apuração da responsabilidade penal e na aplicação
das leis penais afloram conflitos manifestos entre cidadãos comuns e autoridades
policiais. A agência policial é vista com desconfiança porque incapaz de oferecer
respostas imediatas aos problemas de controle da violência experimentados
pelos cidadãos que habitam bairros populares onde a insegurança é flagrante.

Esse sentimento de desconfiança é ainda mais acentuado diante do poder


arbitrário, desprovido de controle civil, de que se acha investido o policiamento
repressivo, uma atribuição das polícias militares. Seu indicador são as mortes
praticadas por estes agentes de segurança que representaram 23,3% em 1982 e
14,9% em 1985 do total de homicídios registrados, segundo relatório elaborado
pelo Americas Watch Committee (1987). Como se sabe, não é de hoje que o
poder público, através das políticas de segurança implementadas pela PM, vem
concebendo o controle da criminalidade como uma espécie de guerra civil entre
autoridades e bandidos. O objetivo a que ela se propõe é baixar, a qualquer
custo, os níveis de criminalidade, mesmo que, para isto, venha comprometer vida
de civis. À medida em que a violência criminal aumenta e os padrões
convencionais de comportamento delinqüente cedem lugar à organização
criminosa em moldes empresariais, a conduta do policial militar tende a se tornar
mais agressiva, estimulada inclusive por diretrizes institucionais. Pesquisa
coordenada por Paulo Sérgio Pinheiro (Pinheiro e outros, 1991) no Núcleo de
Estudos da Violência, relativa ao período de 1983 a 1987, concluiu que "mais de
3.900 pessoas (foram) mortas, entre policiais e não policiais, e mais de 5.500
feridos, dados apenas da Polícia Militar. O número de mortos chega à média de
1,2 morte por dia no período, com a máxima de 1,6 em 1985. [...] Os totais de
mortes em confronto com a polícia no Estado de São Paulo são extremamente
altos, também tendo em vista outros países. Como comparação, na Austrália,
que possui uma população de cerca de 17 milhões de habitantes, pouco menos
que a da região da Grande São Paulo, de 1974 a 1988 foram mortas 49 pessoas
e 21 policiais, ou seja, 46 vezes menos" . Aliás, a escalada da violência policial
vem se acentuando desde fins da década de 1970, neste estado da federação.
No governo Maluf (1979-82), aqueles confrontos resultavam em um morto a cada
30h. Nos governos Montoro (1983-86) e Quércia (1987-90), um morto a cada
17h. No ano de 1992, a Polícia Militar atingiu seu ápice, abatendo 1.359 pessoas.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 468

Como se sabe, as vítimas potenciais deste poder arbitrário são cidadãos


comuns, habitantes dos bairros populares da periferia urbana, justamente
aqueles que parecem, aos olhos deste policiamento repressivo, dispor dos sinais
de pertencimento “natural” ao mundo da delinqüência. Por isso, ainda que esses
segmentos da sociedade não raro referendem atitudes autoritárias no controle da
delinqüência urbana, nem por isso conseguem ver agentes policiais que agem
arbitrariamente como investidos das atribuições de ofertar segurança à
população e de lhe restituir a paz perdida. Como vários estudos e mesmo
sondagens de opinião pública sugerem, não são em nada róseas as imagens que
as polícias militares desfrutam junto a esses cidadãos. Muito ao contrário, quase
sempre são vistos com muita desconfiança, como arbitrários, envolvidos em
distintas modalidades criminosas, enfim como inimigos que não estão a serviço
dos desprotegidos porém a serviço de interesses escusos e particulares. São
capazes de matar sem qualquer justificativa minimamente tolerável ou até
mesmo aceita como imperativa e legítima sob o ponto de vista das
representações da ordem que predominam entre segmentos populares .

Tudo indica, portanto, que o advento da criminalidade urbana violenta


constitui um acontecimento no sentido foucaultiano (Foucault, 1979: 15-37) . Ao
introduzir microscópicos desarranjos no tecido social, esse advento promoveu
fraturas irrecuperáveis nas tradicionais relações hierárquicas entre cidadãos
comuns e autoridades públicas. Instaura-se uma crise profunda no poder
pessoal, modo pelo qual até há pouco, digamos até mesmo às vésperas do
processo de transição democrática, se organizavam as relações de dominação
entre governantes e governados. De fato, em comunidades pouco afetadas pela
aceleração do processo de urbanização e industrialização verificados ao longo
das décadas de 1970 e 1980 ou mesmo em comunidades recém criadas como
conseqüência daqueles processos (como aliás são alguns dos bairros e
municípios em que ocorreram os linchamentos observados nesta pesquisa), não
raro autoridades públicas como o prefeito, o vereador, o delegado de polícia, o
promotor público e o magistrado constituíam pontos de referência para os
cidadãos comuns. Problemas das mais variadas ordens eram encaminhados de
modo pessoal e subjetivo a estas figuras de autoridade reconhecida, que lhes
arbitravam soluções com base nos recursos públicos disponíveis, quase sempre
apropriados como se fossem recursos privados. Disso resultavam o clientelismo
político, a dependência e subordinação pessoais, a devoção e lealdade que se
prestavam a tais autoridades, freqüentemente reatualizadas e reafirmadas em
rituais públicos e políticos, como comícios, caravanas, desfiles, festas religiosas
ou comunitárias. Nesta ordem, as relações de força e poder encontravam-se
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 469

consolidadas. Os conflitos nas relações hierárquicas entre cidadãos comuns e


autoridades públicas dificilmente convergiam para modalidades violentas de
resolução de litígios.

Nas duas últimas décadas, todo esse equilíbrio parece ter sido posto à
prova. Um conjunto complexo de transformações sociais concorreram para
alterar esse cenário, entre as quais conviria destacar: profundas mudanças no
tamanho e na composição das populações urbanas; intensa mobilidade social
entre grupos, segmentos e classes sociais acompanhada simultaneamente do
bloqueio dos mecanismos convencionais de ascensão social; crise fiscal afetando
a capacidade do Estado em formular e implementar políticas sociais capazes de
atender às demandas sociais emergentes; retorno ao Estado democrático de
Direito, cuja vigência impôs novas instituições como mediadoras das relações
entre sociedade civil e política; emergência de problemas sociais, alguns dos
quais endêmicos outros novos, uns herdados do regime autoritário outros
nascidos no curso do processo de globalização, cuja magnitude apanhou de
supresa não somente as autoridades constituídas pelo voto popular como
também as próprias instituições existentes ou criadas para debelá-los. Este é
particularmente o caso da criminalidade urbana violenta.

Neste contexto, o sistema de justiça criminal revelou-se envelhecido,


incapaz de responder de modo pronto e eficaz aos problemas emergentes dentro
do contexto do Estado democrático de Direito. Por um lado, o poder pessoal
esfacelava-se pouco a pouco, tornando transparentes os tradicionais métodos de
policiamento repressivo e a arbitrariedade impressa às investigações policiais e
aos processos penais; por outro lado, não se verificou a substituição imediata e
progressiva de novos métodos e procedimentos de distribuição de justiça penal,
apropriados e adequados aos novos tempos. O cenário que se observou,
sobretudo ao longo dos anos 1980, foi de uma desorientação geral, uma estranha
mélange de retórica democrática com a persistência de práticas autoritárias de
controle social. Instaurou-se uma sorte de vazio institucional no interior do
controle da ordem pública, de sorte a propiciar não somente uma escalada
vertiginosa da criminalidade urbana violenta, notadamente constituída às voltas
do crime organizado, como igualmente uma explosão de conflitos em bairros
populares que não raro convergiram para modalidades privadas de resolução. Ao
que tudo indica foram estes os fatos que conformaram contextos e cenários
favoráveis à ocorrência freqüente de linchamentos.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 470

5. “Física” dos Acontecimentos


Conforme se procurou indicar anteriormente, os processos penais
oferecem uma versão oficial dos linchamentos. Trata-se de um relato dos
acontecimentos segundo o ponto de vista das autoridades encarregadas de
conduzir os feitos judiciais, relato fragmentado em uma multiplicidade dispare de
documentos. Sob esta perspectiva, a narrativa dos fatos é necessariamente
filtrada, seja porque os protagonistas - vítimas, agressores incriminados e
testemunhas - são instruídos pela defensoria sobre o que e como falar, seja
porque a cultura organizacional fornece às autoridades um estoque de critérios e
procedimentos que, aplicados aos mais distintos casos, tende a enquadrar a
realidade em fórmulas e esquemas normativos previamente dados. A despeito de
toda a “redução” que o filtro institucional sujeita os fatos, mesmo assim os
processos penais deixam entrever pistas que apontam algo na direção de uma
“física” dos acontecimentos. O termo “física”, aqui empregado, compreende tanto
os cenários sociais potencialmente favoráveis a ocorrência de linchamentos
quanto a mecânica dos fatos, por isto entendendo-se o fluxo e a seqüência de
ações coletivas que convergem para estas formas rústicas e plebéias de
distribuição de justiça penal.

Quanto ao primeiro aspecto, há que se distinguir cenários mais amplos dos


cenários localizados. Cenários mais amplos dizem respeito a um agregado de
situações que podem estar igualmente na origem de outros conflitos e mesmo de
outras formas de resolução de litígios sociais. No caso dos linchamentos
observados, este cenário mais amplo atém-se à pobreza em que se acha imersa
a vida de seus diferentes protagonistas. Compreende um leque diversificado de
carências econômicas, sociais, políticas e culturais. Por um lado, há as
tradicionais carências relacionadas às condições sociais de existência: baixos
salários; instabilidade face ao mercado formal de trabalho; ausência de
programas de profissionalização e de mecanismos institucionalmente
reconhecidos de mobilidade e ascensão social; precárias condições de habitação
agravadas pela falta de infraestrutura urbana como saneamento, habitação,
iluminação, calçamento; insuficiente oferta de serviços de saúde e de
escolarização, inclusive básica; inexistência de espaços e de oportunidades para
lazer.

Por outro lado, carências relacionadas à ausência de instituições de apoio


e proteção diante de situações determinadas como o transporte de uma
parturiente ou de um doente para o hospital, como acidentes (domésticos, no
trabalho ou no tráfego e na circulação de pessoas), ou ainda decorrentes da
inexistência de agências para orientação e encaminhamento de problemas
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 471

diversos, como sejam a obtenção de documentos oficiais, a regularização de uma


propriedade nas repartições públicas municipais e estaduais, a ligação de energia
elétrica ou serviço similar etc. Mais do que pobreza em seu sentido tradicional,
está-se diante de uma pobreza de direitos (Martins, 1991) fundada em déficit de
cidadania. Este déficit supõe a existência de cidadãos cuja vida possui menor
valor e menos importância face à vida de outros cidadãos que se encontram
imersos em situações sociais distintas, muito menos desfavoráveis. Esse cenário
agrava-se ainda mais em virtude do restrito raio de ação das instituições e
movimentos locais de defesa de direitos humanos que encontram sérios
obstáculos em suas tarefas de mobilização da atenção e dos interesses dos
desprotegidos.

Esse conjunto de carências tende a fomentar situações explosivas de


diversas ordens que atravessam o tecido social de alto a baixo. Algumas
permanecem confinadas à esfera das relações privadas. Outras, porém, mesmo
nascidas nesta esfera, conseguem através do rumor coletivo irromper a esfera
pública e encadear iniciativas que podem percorrer múltiplos caminhos desde a
indignação moral até a tomada de decisão coletiva como constituição de
comissão para pressionar autoridades e agências governamentais ou
organização de protestos e formas de desobediência civil. Não é incomum que
algumas situações, principalmente quando os ânimos se encontram bastante
exaltados, derivem para a violência como os linchamentos, as execuções
sumárias, os grupos de extermínios, os justiçamentos privados. Mas, esse
cenário mais amplo de carência de direitos e de déficit de cidadania não é
suficiente para explicar a deriva para a violência e, menos ainda, para que a
violência adquira a forma de linchamento e não outra qualquer. Para tanto, é
necessário investigar os cenários mais localizados.

Esse cenário social localizado é fomentado pela difusão de um sentimento


de insegurança coletiva diante da possibilidade de qualquer cidadão comum ser
vítima de grave ofensa criminal, sentimento por sua vez agravado pelo ausência
de instituições de proteção. Em todos os casos de linchamentos observados, a
reclamação é quase sempre a mesma: muitos crimes, muitos bandidos, falta de
policiamento. No Parque Aliança, bairro popular do município de Ribeirão Pires,
os moradores organizaram um serviço privado, não profissionalizado, de
patrulhamento do local sob a alegação de que a polícia não se ocupava e sequer
se interessava em conter a delinqüência local. Nos autos do linchamento
verificado na Praça da Sé, o local é definido como “não recomendado para
pessoas honestas”. Parelheiros, distrito a qual pertence o Jardim Noronha onde
ocorreu um dos linchamentos observados nesta pesquisa, é reconhecido como
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 472

uma das regiões mais violentas do município de São Paulo. Em vários


depoimentos no processo instaurado para apuração de responsabilidade penal
de linchamento ocorrido em Campinas, o Jardim Profilub é definido como “local
muito perigoso”, “sem segurança”. Em não poucos depoimentos, fala-se não
apenas da falta de policiamento repressivo como também do desinteresse das
agências policiais em acolher ocorrências de assalto, em investigá-las, em
identificar e localizar seus possíveis autores. Na verdade, o que parece estar na
base do clamor coletivo é a impunidade. Honestos trabalhadores sentem-se
humilhados diante desta espécie de justiça desprovida de eqüidade: uns pagam
pesado ônus social suportando subjetivamente as extremas limitações ditadas
pelas precárias condições de existência a que se encontram submetidos; outros
nem tanto, cometem crimes, não chegam a ser punidos, sequer encarcerados.
Há, neste cenário localizado, a percepção de uma justiça desigual.

De fato, este cenário parece ser propício à explosão de litigiosidade


justamente quando se está diante de uma situação de inflexão. Essa situação é,
ao que indicam os linchamentos observados, propulsora de uma resoluta quebra
de expectativa nas relações sociais entre pares e iguais, socialmente vivida e
subjetivamente experimentada como intolerável. De fato, o sentimento de medo,
insegurança e indignação vai sendo fomentado ao longo de um tempo
determinado, nutrido sobretudo pelo relato cotidiano de roubos e agressões, que
corre solto nos bares, nos lares, nas esquinas, nas conversas entre vizinhos,
parentes e conhecidos. Durante este tempo, cuja duração é variável e
desconhecida, está-se à procura do estranho, aquele que possa ser
responsabilizado por esse mundo de infortúnios, de desprezo e de humilhação de
honestos cidadãos. Essa procura encontra seu ponto máximo de inflexão quando
um acontecimento ímpar mobiliza a indignação moral de muitos e não apenas de
alguns. Esse acontecimento pode compreender um roubo espetacular, o
arrombamento de uma casa de pessoa muito querida no bairro ou de um
estabelecimento comercial que é referência para todos, um crime hediondo como
o homicídio de uma criança ou de uma adolescente, o estupro de quem quer que
seja ou ainda confrontos e provocações que ensejam resposta imediata.

No linchamento na Lapa, foi a expectativa de um novo roubo na pensão


que detonou uma situação limite de indignação moral. Em Ribeirão Pires, a
ocorrência sistemática de crimes e o descaso da polícia estimulou a criação de
um patrulhamento particular, móvel indireto do linchamento. No Jardim Miriam, o
móvel foi o estupro seguido de esquartejamento de uma criança. Em
Carapicuíba, o linchamento resultou de provocações e incitação ao confronto por
parte de indivíduos reconhecidos no local como delinqüentes. No Jardim
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 473

Noronha, o linchamento seguiu-se à tentativa frustrada de assalto a um bar.


Expectadores que, do lado de fora, presenciavam o desfecho do assalto,
intervieram justamente quando as reações do proprietário do bar provocaram a
fuga dos delinqüentes. Em Itapecerica, o assassinato de pessoa muito querida no
local foi o suficiente para mobilizar as energias da comunidade local no sentido
de um justiçamento exemplar do possível autor daquele crime. Em Campinas, a
suspeita de que delinqüentes tivessem cometido abuso sexual contra uma jovem
no bairro Profilurb encadeou rapidamente a seqüência de ações que redundou no
linchamento. Em Osasco, ocorreu algo semelhante pois que a vítima, um
delinqüente com longa carreira criminal, era tolerada até o momento em que
ameaçou estuprar sua mãe e outras mulheres que habitavam a mesma favela.
Por fim, em Mauá, o linchamento teve por móvel o estupro e assassinato de uma
jovem. Em pelo menos dois casos, é notório que a decisão de linchar foi seguida,
imediata mesmo, às provocações das vítimas que reafirmaram seus propósitos
de continuarem cometendo crimes e jamais seriam presos pela polícia. Tais
provocações somente vieram acentuar o sentimento de desproteção e
desamparo diante das instituições de controle repressivo da ordem pública.

Neste cenário localizado, as manifestações de indignação moral afloram à


supercíficie da vida social justamente quando, diante destes momentos críticos
de inflexão, o mundo aparece dicotomicamente cindido entre forças do bem e
forças do mal, ensejando um desejo de víngança, de aplicação implacável da
justiça, de punição exemplar. Há, nos processos penais, indicações sugestivas
de que manifestações de indignação moral não explodem repentinamente. Não
se trata, como à primeira vista possa parecer, de uma explosão irracional, movida
por paixões incontidas, cujo sentido e direção convergem necessariamente para
o linchamento. Em alguns casos, observou-se o apelo a instituições de mediação
oficiais e não-oficiais. Assim, por exemplo, no linchamento em Ribeirão Pires,
populares organizaram-se em comissão. Inicialmente, buscaram apoio de um
vereador local. Junto com esta autoridade, mantiveram audiência com o prefeito.
Este afirmou que nada poderia fazer pois a responsabilidade pela segurança
pública era competência do governo estadual. Esgotaram portanto as instâncias
de mediação oficial que lhes pareciam estar em princípio franqueadas. Decidiram
então organizar patrulhas para proteção de seu bairro. No mesmo sentido, não é
raro que populares busquem apoio de instâncias não-oficiais de mediação, como
o pároco, um comerciante respeitado, um político que aglutina votos populares
em torno de si, enfim toda e qualquer pessoa que exerça algum tipo de liderança.
É o que parece ter ocorrido no linchamento ocorrido em Itapecerica da Serra. Tal
comportamento sugere que esta modalidade de comportamento coletivo não
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 474

expressa pura e simplesmente sentimentos “primários” de uma população pouco


afeta ao diálogo e à negociação. Ao contrário, é bem provável que a decisão de
linchar resulte justamente de uma situação extrema quando todos os demais
recursos disponíveis, legitimamente reconhecidos, tenham sido explorados e
esgotados. Agora, é igualmente verdade que a decisão de linchar possa ocorrer
sem o apelo a instâncias de mediação, em virtude de sua inexistência ou devido
ao reconhecimento de sua ineficácia nos bairros onde os casos tiveram lugar .

Há portanto uma espécie de intermezzo entre o ponto máximo de


indignação moral, a decisão coletiva de distribuição de justiça pelas próprias
mãos mediante punição exemplar e o linchamento propriamente dito. Conforme
sugere Martins (1995), trata-se de uma seqüência de ações que pode durar
meses de preparação ou ser encadeada em curto espaço de tempo, digamos em
poucos minutos. Seja o que for, ela não parece resultar de explosão cega, sem
direção e sem sentido. Muito ao contrário, parece resultar de uma vontade
justificada como imperativa diante de situações adversas, julgadas moralmente
insuportáveis. Em alguns dos casos observados, os agressores incriminados
chegam a confessar a participação no linchamento, embora não tivessem
necessariamente por expectativa um desfecho fatal . No linchamento em
Itapecerica da Serra, os réus alegam que não tinham intenção de matar o
assaltante que assassinara o comerciante muito estimado no local, apenas
pretendiam “aplicar-lhe um corretivo”. Após o linchamento, abandonaram o corpo
em um matagal. Somente no dia seguinte souberam que o linchado se
encontrava morto.

O preparo para a ação pode envolver dois tipos de organização, conforme


aponta Martins (1995): vigilitantism e mob lynching. No primeiro caso, o
linchamento ocorre como parte ou mesmo desfecho das ações de um grupo de
patrulhamento local. Embora não se tenha identificado nada parecido com a Klu
klux klan tal como essa modalidade de organização popular se desenvolveu nos
Estados Unidos , formas declaradas ou mais atenuadas de vigilantism puderam
ser anotadas. No linchamento em Ribeirão Pires, é notória sua presença. Após
terem recorrido a instâncias oficiais de mediação e não terem logrado êxito nesta
iniciativa, grupo constituído por moradores, todos do sexo masculino, armados
com paus, pedras e utensílios domésticos decidiram realizar rondas noturnas
pelo bairro à cata de bandidos. Certa vez, o grupo foi interpelado por um
investigador da polícia civil que procurou desmobilizá-lo alegando que as
atribuições de vigilância cabiam àquela agência. Mesmo assim, o grupo
permaneceu mobilizado. No início da investigação, agressores indiciados e
testemunhas reconhecem a existência de um grupo de patrulhamento no local.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 475

Alguns chegam mesmo a confirmar participação Há inclusive junção de recortes


de jornais alusivas ao grupo, inclusive com a publicação de fotos. Posteriormente,
no curso do processo penal, certamente instruídos pelos advogados de defesa,
tenderam a negar a participação e a existência do grupo. No linchamento do
Jardim Noronha, o proprietário do bar que já tivera seu estabelecimento
assaltado por diversas vezes alega que auxiliava policiais nas diligências feitas
no bairro. Nos demais casos, parece prevalecer o mob lynching, modalidade de
preparo para ação que não é precedido por grupos de patrulhamento ou
associações do gênero.

Durante o linchamento, participam - como já salientado anteriormente -


não apenas moradores do local mas também transeuntes que aparentemente
nada parecem ter com os fatos que o motivaram. São freqüentemente
convocados pelo vocativo “pega ladrão”, uma espécie de convite para participar
dos fatos e licença para linchar. Ele aparece relatado na maior parte dos casos
observados, se bem que, como se procurará demonstrar mais a frente, este
vocativo desempenha também uma função estratégica no tumulto processual
pois que contribui para diluir a responsabilidade penal dos agressores. Nos casos
analisados, não é possível, com base nesse critério, distinguir linchamentos
“comunitários” (Martins, 1995, 1996) de linchamentos “anômicos” (Benevides e
Fischer, 1983). O vocativo apareceu tanto em linchamentos promovidos por uma
massa disforme e anômima, como ocorrido no caso da Praça da Sé e em parte
também no caso da Lapa quanto nos demais casos onde é nítido o preparo para
ação e a decisão coletiva de linchar.

No curso dos acontecimentos, a intensidade de violência empregada


contra a vítima é variável. Há casos de emprego de arma de fogo, como no
linchamento de Ribeirão Pires. Todavia, não é comum que o seja. De modo geral,
quando populares se armam, o fazem com paus, pedras, utensílios domésticos e
instrumentos de trabalho. O mais comum é desferir socos e pontapés contra a
vítima, o que pode lhe advir a morte. Nos casos observados, não se flagraram
sinais evidentes de “purificação ritual”, manifestos pela extirpação de partes do
corpo humano, como ouvidos, braços, pernas, olhos e órgãos genitais, aspecto
relatado por Martins (1996) e que alude ao desejo coletivo de inflingir sofrimento
post-mortem.

De modo geral, o linchamento ocorre em vias públicas, especialmente em


terrenos baldios, praças públicas ou locais de aglomeração de transeuntes, como
portas de estabelecimentos comerciais ou mesmo de habitações populares,
zonas de circulação necessária de pedestres ou ainda a entrada de prédios onde
se encontram instaladas repartições e órgãos públicos, como delegacias, postos
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 476

de saúde e escolas. O linchamento jamais ocorre dentro das habitações. O mais


comum, quando a vítima não se encontrava circulando pelas ruas no momento
dos fatos, é retirá-la à força de dentro de casas ou de qualquer outra edificação
para linchá-la em praça pública. No linchamento ocorrido em Itapecerica da
Serra, os agressores foram até à casa da irmã do assaltante sobre o qual pairava
a suspeitava de ser o autor de homicídio que revoltara a comunidade, retiraram-
no de seu interior à força, levaram-no a um matagal onde foi espancado e
apedrejado. Em Osasco, cerca de trinta moradores invadem repentinamente o
barraco de um pedreiro, onde a vítima se encontrava, retiram-no de lá e
promovem o linchamento. Em Mauá, um dos suspeitos de haver cometido
estupro seguido de homicídio contra uma jovem foi retirado de sua residência por
aproximadamente vinte pessoas. Recebeu um tiro, além de ter sido agredido a
pedradas, pauladas e outras agressões com auxílio de enxadas e picaretas. Em
seguida, o grupo dirigiu-se para a residência do segundo suspeito, onde a ação
se repetiu.

Tudo sugere por conseguinte tratar-se de uma justiça privada aplicada em


espaço público. O recurso ao espaço público parece conter ao menos três
significados. Primeiro, tal como no espetáculo capital relatado por Foucault na
abertura de Vigiar e Punir (1977), busca-se não apenas oferecer o máximo de
luminosidade e visibilidade à imposição da sanção ao justiçado como também
publicizar o exemplo para que ele não se apague tão rapidamente da memória
coletiva local. Em segundo lugar, o espaço publico contribui para diluir a
responsabilidade penal. Local de circulação de distintas pessoas - moradores,
transeuntes, pedestres, trabalhadores -, a via pública não possibilita identificar
com clareza quem participou dos fatos, quem apenas se colocou na posição de
espectador, quem não participou diretamente porém se omitiu e permitiu que a
seqüência de ações de desenrolasse até o desfecho fatal. Enfim, não possibilita
distinguir agressores de testemunhas. Sob esta perspectiva, o espaço público
contém propriedades que justamente realizam a ambigüidade de que se reveste
tais acontecimentos: ao mesmo tempo que se trata de uma modalidade de justiça
privada e imperativa porque contra sua decisão não há recurso ou apelação,
busca esconder-se debaixo da cumplicidade de agressores e testemunhas, como
se a aplicação da sanção encerrasse em si mesma o conforto de uma reparação
moral finalmente concretizada. Por isso mesmo, em terceiro lugar, a incidência de
linchamentos diante de próprios públicos está igualmente a sinalizar algo a
respeito da ruptura de relações hierárquicas entre cidadãos comuns e
autoridades. Diz respeito a um confronto de forças em que cidadãos comuns não
apenas desafiam a ordem constituída mediante deliberada desobediência civil,
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 477

como também procuram questionar de modo radical a inoperância das agências


oficiais de controle da ordem pública e a inércia de seus agentes institucionais.

Caberia por fim breves comentários a respeito da presença e/ou


participação de policiais militares em linchamentos. Na maioria dos casos,
policiais militares são convocados a intervir após os acontecimentos. Quando
isso acontece, agem como se estivessem diante de um fato criminal qualquer
dotado de gravidade, como o são os homicídios. Prendem suspeitos, recolhem
testemunhas, isolam locais, apreendem possíveis objetos que teriam contribuído
para o linchamento, embora nem sempre o façam com o esmero que se poderia
esperar em circunstâncias como essas, aliás como se procurará demonstrar mais
à frente. Há, contudo, situações em que presenciam os fatos, seja porque
estavam realizando rondas próximas ao local onde o linchamento ocorreu, seja
porque foram acionados durante os acontecimentos e chegaram antes do
desfecho final e fatal. Nessas situações, o comportamento de policiais militares é
marcado por ambigüidade. Ora hesitam intervir. Julgam-se impotentes para fazê-
lo diante da fúria e da força dos linchadores. Em outros casos, omitem-se
deliberadamente como se aceitassem e conferissem uma sorte de caução oficial
ao justiçamento popular. No linchamento da Praça da Sé, os indiciados alegam
que a vítima estava armada. Policial militar, presente no local, o teria desarmado,
retirando-se em seguida sem impedir que o linchamento se consumasse. Ora,
contudo, intervêem. Conseguem resgatar a vítima das mãos dos linchadores e
levá-la ao hospital. É o que se verificou no linchamento da Lapa, conquanto nem
por isso tenham logrado evitar a morte do linchado .

Há, contudo, situações em que parecem estimular a ocorrência de


linchamentos. No caso do Jardim Miriam, policiais militares alegam que a viatura
que conduzia o suspeito de haver assassinado sua própria sobrinha enguiçou,
momento em que populares avançaram e iniciaram o linchamento. Nada
puderam fazer. Alegam inclusive que um dos policiais, capitão da PM, chegou a
ser agredido. Esta versão não é confirmada por nenhuma das testemunhas
arroladas no processo penal. O certo é que esses policiais tendo notícia do crime
e de um suspeito foram prendê-lo em sua residência. Lá chegando, o suspeito
teria confessado o crime. Os policiais então decidiram conduzi-lo até o local do
crime, justamente no momento em que a população havia localizado o corpo
esquartejado da criança. Intencionalmente ou não, forjaram assim o cenário
favorável para a eclosão do linchamento. Tudo parece sugerir que o
comportamento dos policiais militares permanece confusamente situado nas
tênues fronteiras entre o mundo oficial das leis e das instituições públicas e o
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 478

mundo privado nuclearizado em torno de concepções morais a respeito do justo e


do injusto, do bem e do mal, do certo e do errado.

A análise desenvolvida neste item procurou enfatizar a natureza dos


litígios que via de regra tendem a convergir para linchamentos com desfechos
fatais. Concentrou-se em torno da caracterização dos protagonistas, da
caracterização dos contextos e cenários que estimulam tais acontecimentos e do
encadeamento e nexo de ações que redundam nesta modalidade de resolução
de litígios. Buscou explorar a hipótese segundo a qual conflitos desta natureza
tendem a explodir no contexto de agudas rupturas nas relações hierárquicas
entre cidadãos comuns e autoridades públicas, o que remete à crise do poder
pessoal na sociedade brasileira. Esta hipótese foi sustentada sobretudo pelo
exame do contexto e dos cenários que armam tais acontecimentos, constituídos
às voltas da criminalidade urbana violenta cuja emergência e extensão nos
bairros populares do município e da região metropolitana de São Paulo
promoveram ao longo da década de 1980 acentuados desarranjos no tecido
social urbano colocando em confronto tête-à-tête modalidades rústicas e plebéias
de distribuição de justiça e modalidades oficiais de aplicação das leis penais. Na
seqüência, procurou-se aprofundar a exploração desta hipótese. Os principais
protagonistas em confronto foram examinados agora à luz da dinâmica mesma
dos linchamentos, oportunidade ímpar para observar os atores intervindo no
social, reconstruindo laços de solidariedade e desfazendo “ligaduras”
institucionais com o mundo da ordem e da legalidade.

No curso desta análise foi possível responder às quatro indagações


iniciais: quem tem direitos violados, quem viola direitos, quais as relações
hierárquicas entre linchadores e linchados e quais cenários sociais
desencadeiam linchamentos. As respostas a estas indagações apontaram para a
importância de uma detida análise do papel do Estado, através de suas agências
de contenção da violência e de pacificação social, na reprodução daqueles
acontecimentos. Tudo indica que a crise do poder pessoal está relacionada ou
toma a forma de crise do sistema de justiça criminal diante da escalada da
violência urbana. A seqüência desta análise busca responder às seguintes
questões: o que faz o Estado diante dos linchamentos? Tal interrogação conduz
a indagar: como as agências de justiça criminal promovem a apuração da
responsabilidade penal nestes casos? Com quais resultados intervêem? Punem
ou não os linchadores?
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 479

Conforme análise até aqui desenvolvida, é possível classificar os


linchamentos como uma modalidade de ação coletiva que se apóia em
mecanismos privados de resolução de litígios, sem apelo portanto às instâncias
oficiais e públicas de distribuição da justiça penal. Como igualmente
demonstrado, esses mecanismos atravessam diferentes estágios que culminam
com o justiçamento fatal. Na ilustração que se segue (figura 2), encontram-se na
base da pirâmide os cenários com potencialidade de linchamento, forjados no
contexto de carência de direitos e de cidadania que caracteriza a vida de
cidadãos comuns, trabalhadores urbanos pauperizados, habitantes dos bairros
populares da periferia do município e da região metropolitana de São Paulo.

Esses cenários estiveram presentes em todos os casos de linchamentos


observados, embora não possam ser considerados imperativos e particulares
desta modalidade de justiçamento, pois que podem igualmente engendrar outras
modalidades de resolução de litígios. Neles contudo se armaram situações
favoráveis aos linchamentos sempre que algum acontecimento particular
alimentou um sentimento coletivo de indignação moral diante do crescimento da
violência e reacendeu o desejo de punição exemplar, rápida, decisiva e
desprovida de clemência a qualquer instância de mediação. No entanto, nem
toda indignação moral conduz necessariamente à preparação do linchamento
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 480

assim como nem toda preparação converge obrigatoriamente para o desfecho


desta modalidade de justiçamento popular. Para que esses sucessivos estágios
sejam atravessados é preciso que determinadas situações estejam presentes e
combinadas entre si, como sejam a ocorrência de um crime hediondo, o
sentimento desmesurado de medo e insegurança na comunidade, o descaso da
polícia e das autoridades locais. O ápice desses estágios é atingido com a morte
do justiçado. Crê-se assim que a vingança reinstalou o reino da ordem e pôs fim
a uma época de sofrimento e angústia diante de tantas injustiças.

É justamente neste momento que a justiça pública, formal, burocrática,


baseada em leis pactadas, orientada por códigos complexos manifestos através
de uma linguagem particular - a do direito -, nem sempre acessível e
compreensível ao cidadão comum, entra em cena. Esse é o momento em que os
mecanismos extra-oficiais de resolução de litígios cedem lugar a mecanismos
oficiais, fundados em fórmulas abstratas que buscam a verdade dos
acontecimentos segundo uma lógica imperativa e que nada tem a ver com a
lógica prescritiva do discurso moral, moralizante e moralizador que se deixa
entrever nos depoimentos de agressores e testemunhas. Ao contrário de outras
modalidades de resolução de conflitos civis (Sousa Santos e outros, 1996), os
litígios que envolvem matéria penal encontram, no percurso que vai da base ao
cume da pirâmide, um movimento em direção contrária, de cima para baixo,
acionado após o justiçamento popular e representado pela possibilidade de
alguma intervenção por parte do sistema de justiça criminal. Em matéria penal, o
estreitamento da pirâmide prossegue com a ação de autoridades públicas
tentando confiscar o controle da situação das mãos de particulares e, por
conseguinte, buscando resgatar para si o monopólio da violência física legítima
(Weber, 1970; Elias, 1990; Bendix, 1977).
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 481

CAPÍTULO 10
EXECUÇÕES SUMÁRIAS EM SÃO PAULO

Helena Singer

1. Casos selecionados

1.1. Justiceiro de Guarulhos

Data 04/05/82

Resumo do caso

Com base nos depoimentos prestados pelas testemunhas, o caso pode


ser resumido da seguinte forma: em uma padaria, um justiceiro pisou no pé de
um vendedor de bilhetes de loteria e pediu-lhe desculpas. O vendedor, estando
aparentemente embriagado, não aceitou as desculpas e fez um gesto de quem
estaria disposto a brigar. O justiceiro deu primeiro um tiro no chão, depois outro
contra a parede e, finalmente, um no peito do vendedor, que morreu
imediatamente. O justiceiro guardou o revólver, saiu da padaria, pegou seu
automóvel e foi embora. A polícia foi prendê-lo em sua casa, mas ele conseguiu
fugir da delegacia, apresentando-se novamente, no dia seguinte,
espontaneamente. Um mês depois do assassinato, o justiceiro recebeu um
mandado de prisão preventiva decorrente de outro processo que foi anexado ao
caso em questão. Mas em 1989, a defesa entrou com recurso e ele acabou
sendo absolvido sumariamente. Do dia do crime até o acórdão sobre recurso da
defesa, transcorreram oito anos e cinco meses.

Local

O crime aconteceu em uma panificadora no Parque Alvorada, em


Guarulhos. O município de Guarulhos integra a Região Metropolitana da
Grande São Paulo. A economia de Guarulhos é formada por um parque
industrial com 2.832 indústrias de transformação e construção, entre as quais
destacam-se a metalúrgica, a mecânica, de materiais plásticos, elétricos,
vestuário, calçados, minerais não metálicos, químicos, comunicações, editoras e
gráficas.210 O comércio é realizado em toda a cidade, porém sua maior
concentração ocorre na área do centro. Os principais produtos agrícolas
cultivados na região são arroz, feijão, mandioca, milho, caqui, laranja, limão e
uva. Destaca-se também a avicultura local, com boa produção de galináceos.

No ano de 1980, cerca de 53,38% da população economicamente ativa


encontrava-se em atividades industriais. O índice de desemprego era de
210
Os dados referentes ao município de Guarulhos foram obtidos junto à Prefeitura local.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 482

19,2%.211 Aproximadamente 45% das famílias possuíam renda entre 2 e 5


salários mínimos. A porcentagem de analfabetos era de 19,81%212.

A violência já era um problema grave na região e seguiu sendo. No ano da


execução, aconteceram 96 homicídios dolosos em Guarulhos. De 1981 a 1988, o
crescimento no número de homicídios dolosos no município foi de 82%.

Vítima

Vendedor de bilhetes de loteria, 45 anos, branco, natural de Palmeiras dos


Índios (AL), residente no Parque Alvorada (Guarulhos), com amásia, enteado e
três filhos menores.

Indiciado

Motorista autônomo e inspetor de quarteirão, 37 anos, branco, casado,


primeiro grau completo, natural de Serra dos Aimorés (MG). À época do crime
era residente em Cumbica (Guarulhos), depois mudou-se para Iqueda (Suzano).
Tinha vários antecedentes criminais, até mesmo por homicídio. Era tido como
justiceiro e informante da polícia. Faleceu no dia 28 de junho de 1992.

Testemunhas

Foram ouvidas nove testemunhas, sendo sete homens. Três das


testemunhas tinham entre 16 e 19 anos, duas estavam na casa dos vinte anos,
uma tinha 32, outra 40 e a última para qual há esta informação tinha 67 anos de
idade. Seis das testemunhas eram brancas, uma parda e para as demais não há
a informação. Quanto ao estado civil, há informação para oito testemunhas: uma
viúva, quatro casadas ou amasiadas, três solteiras. As duas mulheres eram
donas de casa, três das testemunhas eram donos de padaria, uma era
balconista, o pai da vítima era aposentado, o enteado estudante e a última
testemunha era policial militar. Quanto ao grau de instrução, só há a informação
para o pai da vítima, que era analfabeto. Cinco das testemunhas eram naturais
do Nordeste (Alagoas, Bahia e Sergipe), uma de São Paulo, e os donos da
padaria eram portugueses. Sete testemunhas moravam no município de
Guarulhos e as demais no bairro de Guaianazes, em São Paulo.

Relações hierárquicas entre protagonistas

Três das testemunhas eram sócios da padaria onde ocorreu o assassinato


e uma delas era funcionário desta padaria. Cinco eram familiares e vizinhos da
vítima. A última foi o PM que atendeu a ocorrência. Tanto a vítima quanto o
agressor eram freqüentadores da padaria, mas não se conheciam.
211
Fundação SEADE, 1980.
212
IBGE, Censo Demográfico, 1980.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 483

Contextos/Cenários

O assassinato aconteceu na padaria do bairro onde morava a vítima. O réu


morava em outro bairro, Cumbica, mas era conhecido dos funcionários e donos
desta padaria, como justiceiro e informante da polícia. O cenário para o crime foi
se armando à medida que a vítima escutava comentários a respeito do réu entre
os fregueses da padaria. Depois do crime, o agressor saiu da padaria e foi para
sua casa, onde, mais tarde, foi procurado pelo policial encarregado de sua prisão.

“Física" dos acontecimentos

Ao entrar na padaria, o vendedor de bilhetes de loteria escutou


comentários de que o homem encostado no balcão do pão e leite era justiceiro.
Ao passar perto do suposto justiceiro, este pisou no pé do vendedor de bilhetes
de loteria e pediu-lhe desculpas. O vendedor, estando aparentemente
embriagado, não aceitou as desculpas e fez um gesto de quem estaria disposto a
brigar. O justiceiro deu primeiro um tiro no chão, depois outro contra a parede e,
finalmente, um no peito do vendedor, que morreu imediatamente. Em seu
interrogatório em juízo, o réu alegou que andava armado naqueles dias porque
estava com medo dos amigos de um indivíduo por ele assassinado, em
decorrência de "um atrito", alguns meses antes.

Observações finais

Chama atenção o fato de que a polícia só intima a depor pessoas


relacionadas à vítima, a fim de construir os seus antecedentes, não fazendo o
mesmo em relação ao agressor, apesar da sua farta folha de antecedentes
criminais. A dubiedade é a marca deste caso. Desde o começo, quando o
delegado aponta a periculosidade do indiciado e, ao mesmo tempo, louva sua
iniciativa em apresentar-se espontaneamente à justiça, no dia seguinte de sua
fuga da delegacia. As notícias de jornais anexadas dão conta da cumplicidade
do agressor com a polícia, uma vez que sob o título de “inspetor de bairro”, o
indiciado é de fato um informante da polícia e justiceiro. A atitude do policial
encarregado de sua prisão - deixando que ele fosse sozinho à delegacia - e a sua
fuga da delegacia, impedindo que fosse feito o flagrante, deixam patente essa
cumplicidade. Foram recolhidos com a vítima alguns relógios de pulso, chaveiro,
e algum dinheiro. Os relógios e o chaveiro foram entregues para a viúva, mas o
dinheiro foi depositado em juízo. Mais adiante, ainda na fase policial, a viúva
pediu que lhe entregassem o dinheiro porque estava passando necessidades
junto com seus filhos, mas o delegado não o fez. (aparentemente havia alguma
disputa pelo dinheiro envolvendo a viúva e outros parentes da vítima). Este
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 484

dinheiro ficou depositado em juízo e fez parte do inventário. Parte desta


movimentação pode ser acompanhada neste processo.

Apesar de o caso não ser típico dos crimes de justiceiros - a vítima era
trabalhador e o assassinato decorre de um desentendimento - o desenrolar dos
fatos acaba sendo influenciado por este dado, sendo o mandado de prisão
decorrente de outro crime. O réu teve um pedido de prisão decretado em outro
processo e o promotor aproveitou esta informação para reforçar o pedido feito
neste processo. Foi o mesmo promotor que atuou nos dois casos e os pedidos
foram formulados com poucos dias de diferença.

O desempenho da defesa também é questionável. Na primeira fase,


quando estava a cargo de um advogado dativo, alegava-se simultaneamente a
não comprovação da materialidade do delito e a legítima defesa. Em 1989,
quando a defesa passa para as mãos de um advogado constituído, faz-se
menção à jurisprudência relativa à legítima defesa que qualifica o tiro na perna
dado para afugentar um agressor, algo muito distinto do tiro no peito desferido
neste caso. Até mesmo a tese da legítima defesa é bastante duvidosa - somente
em juízo (mais de um ano após a ocorrência dos fatos) uma testemunha lembra-
se que a vítima abriu o paletó, em atitude ameaçadora, quando recebeu o tiro; os
vários relatos sobre a cena mencionam que o vendedor portava pão e leite nas
mãos, o que certamente o impediria de sacar de uma arma repentinamente.

Apesar de não justificar o arquivamento do inquérito, a defesa ressalta


uma discrepância entre os documentos no que se refere à descrição física da
vítima, que deveria merecer maior consideração da parte do juiz do que a que ele
demonstrou, atribuindo-a a um mero erro de datilografia.

A decisão do acórdão de absolver sumariamente o réu, sete anos após o


ocorrido, é bastante surpreendente - em vista do fato de a vítima ser um
trabalhador, pai de família sem antecedentes ao passo que o agressor tem uma
vasta folha de antecedentes criminais e é reconhecido como justiceiro na
sentença do acórdão. Os vários anos transcorridos desde o crime foram
decisivos para o desfecho do processo, uma vez que a repercussão na imprensa
à época dos fatos é muito forte e reiteradas vezes mencionada nos autos.

1.2. Justiceiro do Jaguaré


Data 28/07/82
Resumo do caso

Por volta das 17h50, um encanador assassinou um ajudante geral, na


favela Nova Jaguaré, onde ambos moravam, na presença da irmã da vítima,
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 485

fugindo a seguir. Em seu interrogatório, o indiciado alegou que agira em legítima


defesa, mas a irmã do ajudante geral afirmou que o agressor deu o tiro de
misericórdia a queima-roupa, o que foi confirmado pelo laudo necroscópico. Ao
que parece, o assassinato foi o desfecho de um desentendimento ocorrido entre
dois amigos, em um bar, onde ambos se embriagavam.
A União dos Moradores do Jaguaré se manifestou em favor do
indiciado, quando este estava preso por outro crime, em 1984. Já o
processo em relação a este caso transcorreu durante quatro anos, até que o
indiciado morreu.

Local

O Jaguaré integra, desde 1993, a Administração Regional da Lapa,


juntamente com os seguintes distritos: Barra Funda, Perdizes, Lapa, Vila
2
Leopoldina e Jaguara. Esta região corresponde a uma área de 40,1Km , que
acompanha as várzeas dos rios Pinheiros e Tietê. Sua população é de 480.000
habitantes (4,2% da cidade).213

As origens da Lapa remontam o século XVI. Em 1581, os jesuítas


receberam uma sesmaria junto ao rio Emboaçaba (atual rio Pinheiros) onde
nascia a Paragem do Emboaçaba. Em meados do século XVIII, a "fazendinha da
Lapa" ganha destaque entre os demais sítios e os jesuítas deixam a região.

O distrito do Jaguaré ocupa 6,9 Km2 (10,4% da região), em parte nas


terras de várzea do rio Pinheiros e nas terras mais altas das colinas vizinhas.
Tem 67 Km de vias pavimentadas e 7,5 Km de não pavimentadas. Há no distrito
três pontos críticos de enchentes e 2,1 Km de córregos não canalizados. Quanto
ao uso do solo, essa região coincide com zonas de uso predominantemente
industriais, especialmente entre as grandes avenidas. Mas observa-se um
relativo equilíbrio entre as funções residenciais e comerciais. O principal sistema
viário é composto por estas avenidas e a travessia do Rio Pinheiros é feita
majoritariamente pela ponte do Jaguaré, que se tornou assim um ponto muito
crítico para o trânsito. O distrito é dotado de vários ramais de vias férreas que
atendem as indústrias ali instaladas. Toda a região é atendida com rede de água
tratada.

A população do Jaguaré é de 53670 habitantes (11% da Administração


Regional), sendo a densidade demográfica de 81 habitantes por hectare. Em
relação às características sócio-econômicas da população, destaca-se a

213
Os dados relativos à Administração Regional da Lapa foram coletados junto à Secretaria
Municipal de Planejamento (SEMPLA): Base de Dados para Planejamento - Cadernos Regionais -
Administração Regional da Lapa, agosto de 1993.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 486

participação dos segmentos de baixa renda na composição geral: 28,9%


recebem até 4 SMs; 11,3% de 4 a 8 SMs; 28% de 8 a 15 SMs; 9,7% de 15 a 30
SMs; 22,1% com mais de 30 SMs. A renda média do distrito é de 17,5 SMs e a
taxa de emprego, 0,68%.

Quanto à educação, o Jaguaré possui os maiores déficits da região: conta


com 3 creches municipais, que atendem somente 18% da demanda; 4 centros
da juventude municipais, que atendem 17,4% da demanda; 376 vagas para
crianças em idade pré-escolar, incluindo-se as redes municipal, estadual e as
particulares; 7 escolas de primeiro grau, sendo a maior parte estadual (96,3%),
que atendem 68,6% da demanda.

No que se refere ao atendimento municipal em saúde, há no Jaguaré um


posto de assistência primária, que responde por 75% da demanda; 7
consultórios médicos e 3 consultórios odontológicos; não há qualquer hospital
público na região, somente um pronto-socorro, o que configura uma situação de
déficit de 215 leitos.214
Em relação ao abastecimento, o distrito conta apenas com um sacolão
municipal. Já no que se refere aos centros de lazer, Jaguaré possui um mini-
balneário, localizado próximo à população de baixa-renda.

Quanto às taxas de violência, em 1993, o distrito registrou 4059


ocorrências e 494 inquéritos policiais (12,17% dos BOs). Destas ocorrências, 35
referiam-se a homicídios, sendo 25 dolosos de autoria desconhecida.

No distrito de Jaguaré está instalada a maior parte da população favelada


da região. Existem ali 6300 domicílios em favelas (87% do total da Lapa). A maior
favela é onde aconteceu o caso em questão, a Nova Jaguaré, com 5000
domicílios, dos quais 800 em alvenaria. Esta favela foi iniciada em 1941, quando
a área pertencia a duas freiras e foi ocupada por migrantes.215 Em 1965, a área
foi doada para a prefeitura para ser utilizada como área verde. Quase todos os
seus domicílios têm energia elétrica e fornecimento de água pela SABESP, mas
tem ocorrido muitos casos de desbarrancamento de encostas. A Favela conta
com uma união de moradores. O assassinato aconteceu na Rua Assum Preto,
imediações da Praça Onze.

214
O índice de leitos por habitantes recomendado pela Organização Mundial da Saúde é de 4
para 1000 habitantes.
215
Os dados relativos à Favela Nova Jaguaré foram compilados pela pesquisa “Crianças e
Adolescentes em Situação de Rua: o caso USP”, coordenada por Rosa Castro, no Núcleo de
Estudos da Violência (USP), com apoio da Fundação Ayrton Senna, de 1996 a 1998.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 487

Vítima

Ajudante geral, 18 anos de idade, pardo, solteiro, natural de Santo Antônio


(RN), residente na Favela do Jaguaré. Uma testemunha afirma que a vítima era
“elemento de má reputação na favela e que os moradores pacatos tinham medo
do mesmo, pois era arruaceiro e, segundo consta, viciado em tóxicos”, outra
afirma que a vítima era “totalmente de má índole”. Sua irmã, no entanto, afirma
que ele era muito querido na favela.

Indiciado

Era encanador à época do crime e, poucos meses depois, passou a


declarar-se armador. Natural da região Nordeste (em alguns documentos,
aparece São José do Egito - PE e, em outros, Imaculada - PB). Nasceu no dia
14/03/57 e morreu em novembro de 1986, deixando dois filhos menores. Adquiriu
antecedentes criminais, por homicídio, quatro meses depois deste caso.

Testemunhas

Foram ouvidas cinco testemunhas durante o inquérito policial, sendo três


mulheres. Quanto à cor, três eram brancas, uma parda e para a última não há
informação. Três das testemunhas tinham entre 24 e 26 anos e as outras duas
tinham 31 e 32 anos de idade. Todas eram casadas e residiam na favela onde
aconteceu o assassinato, mas uma mudou-se logo após os acontecimentos.
Duas das testemunhas eram trabalhadores não especializados (mecânico e
servente) e três eram proprietários de pequenos comércios. Três eram nascidas
no interior do estado de São Paulo e duas provinham da região Nordeste (Rio
Grande do Norte e Pernambuco).

Relações hierárquicas entre protagonistas

O indiciado e a vítima conheciam-se entre si há bastante tempo, sendo


que o indiciado freqüentava a casa dos pais da vítima. Duas das testemunhas
eram familiares da vítima, duas eram o casal proprietário do bar onde começou o
desentendimento que resultou no assassinato e a última era moradora da favela,
conhecida dos envolvidos.

Contextos/Cenários

O cenário para o assassinato começou a ser montado em um bar da


favela, onde vários amigos bebiam. Com os ânimos exaltados dois deles
começaram uma discussão, que levou-os à rua, próximo a uma praça, onde
então deu-se o assassinato.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 488

“Física" dos acontecimentos

Possivelmente, a vítima e o agressor integravam um grupo de pessoas


envolvidas com atividades criminosas - talvez grupo de extermínio - tendo a
simpatia de alguns dos moradores da favela e o temor de outros. Certo dia,
quando o grupo encontrava-se bebendo em um bar, deu-se o desentendimento
entre os dois amigos. Dali foram para a rua, onde consumou-se o assassinato.

As notícias de jornal à época, que não foram anexadas nos autos, tratam
do caso como sendo um assassinato cometido por um justiceiro e esta
possibilidade é reforçada pelo fato de ele ser indiciado em outro homicídio
ocorrido quatro meses depois deste crime.

Observações finais
Chama a atenção o fato de a polícia e a promotoria estarem convencidas
da autoria do crime por parte do réu (de acordo com o relatório do delegado e a
denúncia) e mesmo assim o processo estender-se por mais de quatro anos até
ser arquivado devido à morte do justiceiro.

Talvez a morosidade do andamento esteja relacionada com o fato de as


testemunhas preferirem falar da "má reputação" da vítima e dos bons
antecedentes do acusado, apesar de apenas este último ser indiciado em outro
caso de homicídio. Inclusive, a União dos Moradores do bairro manifestou-se em
favor ao indiciado, quando este estava preso por outro crime, em 1984.

Note-se que nos autos não aparecem referências à possibilidade de o


indiciado ser justiceiro, embora isto tenha sido ressaltado nos jornais da época.

1.3.Justiceiro de Osasco

Data14/10/85

Resumo do caso

No dia 14/10/85, por volta das 22:00 horas, na estrada Velha de Osasco, o
indiciado desferiu vários golpes de faca contra a vítima, provocando-lhe a morte.
Consta que o indiciado, em outra oportunidade, havia assassinado um amigo da
vítima e naquele dia ambos vieram a brigar por causa daquele assassinato,
terminando com o esfaqueamento. O acusado, que já estava indiciado por causa
do outro assassinato, foi preso e morreu, também assassinado, na cadeia, quase
três anos depois, quando ainda estava em andamento o processo.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 489

Local

Estrada Velha de Osasco, no Jardim Boa Vista. O município de Osasco é


o mais industrializado do oeste da Região Metropolitana da Grande São Paulo,
sendo sua população correspondente a 3,7% dessa região. Local de habitação
de amplas massas de trabalhadores industriais e de população que vive às
expensas dos serviços auxiliares à indústria.

Em 1985, ano do homicídio, a população de Osasco era de 555400


habitantes.216 A população imigrante no município é consideravelmente menor
que no restante da Grande São Paulo. Atualmente entre os seus 568225
habitantes, apenas 51117 (9%) não são naturais de Osasco, e morando na
cidade há menos de 10 anos. Com relação à faixa etária dos moradores de
Osasco, o predomínio é de jovens: 32,01% de 0 a 14 anos; 29,82% de 15 a 29
anos; 26,74% de 30 a 49 anos; 9,65% de 50 a 69 anos; 1,79% de 70 anos ou
mais.

Há muitas favelas e é grande o número de pessoas nelas habitando.


Existem atualmente oito hospitais públicos no município, mas em 1985 havia
onze. Esta diminuição do número de hospitais fez com que o número de leitos
caísse de 1.612 para 959. No que se refere à educação, a população
alfabetizada atualmente é de 77,78%; em 1985, apenas 16,63% dos alunos do
primeiro grau da rede pública de ensino ingressavam no segundo grau.

São elevadas as taxas de criminalidade violenta, inclusive no que respeita


às mortes voluntárias. Em 1985, ocorreram 96 homicídios dolosos de autoria
desconhecida; foram abertos 8291 BOs e 631 Inquéritos Policiais (7,61% dos
BOs).

Vítima

Rapaz de 27 anos, solteiro, branco, pintor de paredes, nascido em São


Paulo (SP).

Indiciado

Indivíduo de 35 anos, natural de Souza (PB), casado, residente em Osasco. Como


ocupação, consta motorista e lavador de autos, mas à época do crime estava desempregado.
Tinha antecedentes criminais em dois processos por homicídio. Foi assassinado no dia 19/05/88,
na cadeia.

216
Os dados sobre Osasco foram conseguidos junto à EMPLASA e os mais recentes referem-se
ao ano de 1991.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 490

Testemunhas

Seis homens foram ouvidos como testemunhas. Cinco exerciam


ocupações braçais com vínculos precários com o mercado de trabalho
(motorista, cozinheiro, ajudante geral, pintor de paredes) e o sexto era
proprietário de um estabelecimento freqüentado pelo indiciado. Além desta,
outras duas testemunhas relacionavam-se com o réu; uma era o irmão da vítima;
outra, amigo da vítima, presenciou os acontecimentos; a última – desde o início
apontada como testemunha presencial - alegou que não conhecia qualquer dos
envolvidos, nada vira e não sabia porque havia sido convocada. Quanto ao
estado civil, três eram solteiros, dois casados e para o último não há a
informação. Quatro eram nascidos na região Nordeste do país, um no município
de Osasco, e o último não informou a naturalidade. Três das testemunhas tinham
entre 35 e 39 anos, uma tinha 26 e para os demais, não há informação.

Relações hierárquicas entre protagonistas

Não há relações hierárquicas entre os protagonistas. O indiciado e a vítima


conheciam-se e não tinham boas relações. As testemunhas ouvidas eram, na
maior parte, pessoas conhecidas de ambos.

Contextos/Cenários

Segundo alguns depoimentos, o desentendimento que culminou no


assassinato iniciou-se em um bar, onde encontravam-se o indiciado, a vítima e
um amigo. Algum tempo depois, a vítima e o amigo saíram do bar e dirigiram-se
a um ponto de ônibus. Ali, em plena via pública, deu-se o crime.

“Física" dos acontecimentos

Aparentemente, a vítima e o indiciado tinham rusgas há algum tempo. O


indiciado afirmou que a causa disso tinha sido o fato de ele ter denunciado a
vítima à polícia por supostas atividades delituosas. O fato é que o indiciado havia
matado um amigo da vítima algum tempo antes. No dia do crime, ambos
encontraram-se em um bar, onde começou o desentendimento. Ao saírem,
encontraram-se em um ponto de ônibus, local em que se deu o assassinato. Não
fica claro se foi o indiciado que perseguiu a vítima que se dirigia ao ponto, com
um colega, ou se foi a vítima que agrediu o indiciado, para vingar seu amigo
morto.

Observações finais

Desde a ocorrência até o desfecho processual, a duração perfaz mais ou


menos 3 anos e 4 meses. Do fato até o relatório do delegado foram
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 491

aproximadamente seis meses, muito tempo para pouca investigação. Houve


poucas testemunhas e a única ouvida durante o IP, nem sequer sabia do que se
tratava, segundo disse.

De acordo com a Folha de Antecedentes do acusado ele cometeu outro


homicídio, no mesmo dia. Os inquéritos foram registrados na mesma delegacia e
receberam números seqüenciais. Não há em todo o processo qualquer menção a
este outro crime. Mas pudemos observar nas notícias de jornal que foram
utilizadas para a seleção deste caso que o outro crime foi praticado no mesmo
dia e em local próximo a este. Ainda segundo a imprensa, havia outro homem
envolvido no crime.

1.4 Grupo de extermínio de Guarulhos

Data 28/03/84

Resumo do caso

Há três versões para o caso. A primeira delas é a de que um grupo de


extermínio, no dia 28/03/84, assassinou um criminoso: na noite dos fatos,
chegaram a um bar os três “Irmãos Chagas” acompanhados de mais um
indivíduo, armados, informando que iriam liquidar a vítima; de lá rumaram em
direção à residência da vítima, que ainda tentou fugir mas foi apanhada e morta.
Nesta versão, há dúvidas sobre a participação do proprietário de um dos veículos
utilizados - se fazia parte do grupo de extermínio ou se fora obrigado a ceder seu
automóvel. Além dos três irmãos, estariam também envolvidos no grupo de
extermínio o dono do bar onde trabalhava um deles e um serrador.

A segunda versão, que foi a preponderante no noticiário da época, informa


que se tratava de um caso de linchamento de um criminoso conhecido na região.

Finalmente a última versão é a que o crime foi uma vingança pessoal: sete
dias após a vítima ter se mudado para aquela residência, um outro inquilino deu
uma surra em sua mulher e nos filhos; a mulher fugiu e pediu ajuda da vítima,
que foi até a casa deles e, após discutir com o marido dela, acertou-lhe um tiro; o
crime teria sido praticado então pelos familiares deste vizinho. Outra história de
vingança pessoal narrada nos depoimentos informa de um roubo praticado pela
vítima tempos antes de seu assassinato, que teria então sido cometido pelas
pessoas por ela roubadas.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 492

No dia 07/12/84, prevalecendo a versão de ação dos “Irmãos Chagas”, foi


decretada a prisão preventiva dos três irmãos (o balconista, o operador industrial
desempregado e o ajudante de caminhão) e do proprietário do bar onde
trabalhava o balconista. No dia 12/12/84, o delegado pediu a prisão preventiva de
um quinto envolvido, um zincador. Em 26/02/85, um dos irmãos foi pronunciado
por homicídio, violação de domicílio, vilipêndio de cadáver e constrangimento
ilegal do proprietário do automóvel, que também era dono de bar. Um dos irmão
estava preso por outro processo e foi o único que foi levado a julgamento pelo
Tribunal do Júri, em 27/8/85, quando foi condenado a 17 anos de reclusão e um
ano de detenção. Em 11/6/86, os dois irmãos e o dono do bar receberam igual
sentença de pronúncia, mas nunca foram levados a júri porque estavam
foragidos. Em 3/6/86 o quinto réu também foi pronunciado pelos crimes, exceto o
crime de constrangimento ilegal. Este réu também estava foragido e nunca
chegou a ser julgado pelo Tribunal do Júri. A vítima do crime de constrangimento
ilegal, proprietário do automóvel era albergado à época do crime, e em 25/05/85
foi baleado, vindo a falecer no mês seguinte.

Local

O município de Guarulhos integra a Região Metropolitana da Grande


São Paulo. A economia de Guarulhos é formada por um parque industrial com
2.832 indústrias de transformação e construção, entre as quais destacam-se a
metalúrgica, a mecânica, de materiais plásticos, elétricos, vestuário, calçados,
minerais não metálicos, químicos, comunicações, editoras e gráficas.217 O
comércio é realizado em toda a cidade, porém sua maior concentração ocorre na
área do centro. Os principais produtos agrícolas cultivados na região são arroz,
feijão, mandioca, milho, caqui, laranja, limão e uva. Destaca-se também a
avicultura local, com boa produção de galináceos.

No ano de 1980, cerca de 53,38% da população economicamente ativa


encontrava-se em atividades industriais. O índice de desemprego era de
19,2%.218 Aproximadamente 45% das famílias possuíam renda entre 2 e 5
salários mínimos. A porcentagem de analfabetos era de 19,81%219.

À época do crime, a região contava com oito delegados municipais e


quatro distritos policiais. A violência era um problema grave: lugar de abandono
de cadáveres em grande parte dos crimes do `esquadrão da morte’, desde o final
dos anos 60. A Secretaria Estadual de Segurança recebia pedidos quase diários

217
Os dados referentes ao município de Guarulhos foram conseguidos junto à Prefeitura local.
218
Fundação SEADE, 1980.
219
IBGE, Censo Demográfico, 1980.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 493

de policiamento em vários pontos da cidade.220 Naquele ano, foram registradas


11661 ocorrências e foram abertos 833 inquéritos policiais (7,14%). Dessas
ocorrências, 179 referiam-se a homicídios dolosos, sendo 163 de autoria
desconhecida.

A maior parte desses casos concentrava-se na periferia, região de


Cumbica e adjacências, que inclui o Jardim Nova Cumbica, onde ocorreu o caso
em questão. Esta região, especificamente, era um lugar pobre, com muitos de
seus habitantes desempregados, morando em favelas. Em 1989, ocorreram, em
Nova Cumbica, 151 homicídios dolosos, sendo 114 de autoria desconhecida.
Naquele ano foram abertos 3946 BOs e 438 IPs no bairro.

O crime aconteceu na residência de um dos vizinhos da vitima, formada


por um dormitório, uma sala, cozinha e banheiro, em um prédio dotado de várias
habitações localizado em área pouco iluminada.

Vítima

A vítima era do sexo masculino, pardo, com 28 anos de idade e trabalhava


como encanador. Possuía vários antecedentes criminais. Residia no Parque
Jurema em Guarulhos, em imóvel alugado, com sua amásia e seu filho.

Indiciados

Os seis acusados eram do sexo masculino, entre 20 e 35 anos de idade.


Três foram classificados como pardos, dois brancos e sobre o último não há a
informação da cor. Cinco eram naturais do Nordeste e um era mineiro. Três eram
solteiros, dois casados e um amasiado. Em relação ao grau de instrução,
nenhum deles possuía mais que o primário completo. Um era comerciante e os
demais declararam ocupações não qualificadas - balconista, ajudante de
caminhão, serrador, zincador e operador industrial, sendo que este último estava
desempregado. Todos eles residiam na periferia de Guarulhos. Três tinham
antecedentes criminais, tendo sido indiciados em vários outros inquéritos policiais
por homicídios e contra dois destes havia até mesmo mandados de prisão
preventiva.

Testemunhas

Dezesseis pessoas foram arroladas como testemunhas, sendo nove


convocadas pela acusação, cinco pela defesa e uma ouvida apenas durante o
Inquérito Policial. Três das testemunhas não conheciam os envolvidos, mas
presenciaram o crime; quatro relacionavam-se de algum modo com a vítima; seis

220
Jornal da Tarde, 29/11/84.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 494

com os réus; duas eram policiais (delegado e investigador) que participaram da


apuração do crime. Uma das testemunhas era o proprietário do bar de onde os
agressores teriam partido em direção à casa da vítima. Pairaram dúvidas em
relação à sua participação no crime e ele, que à época era albergado, acabou
sendo também indiciado em autos apartados, mas foi baleado no dia 25/05/85
vindo a morrer uma semana depois.

Entre as 16 testemunhas, sete eram mulheres. As idades concentravam-se


nas faixas dos 20 aos 28 (cinco pessoas) e dos 41 aos 44 anos (4 pessoas), uma
tinha 36 anos e sobre as seis restantes não há essa informação. Quanto à cor,
quatro foram classificadas como pardas, duas brancas, três negras e não foi
registrada a informação para as restantes. Duas das testemunhas eram
nordestinas, duas paulistas, seis provinham de outros estados da região Sudeste
e também essa informação faltou para os demais. As ocupações mencionadas
foram: comerciante (2), trabalhador braçal não qualificado (2), operário não
qualificado (3), prendas domésticas (3), balconista (1), policial (2), e três não
informaram. Quanto ao estado civil, seis eram casadas, quatro solteiras, duas
separadas, duas amasiadas e para duas não há a informação. Todas as
testemunhas moravam nos bairros periféricos de Guarulhos.

Relações hierárquicas entre os protagonistas

Um dos indiciados era proprietário de mercadinho onde trabalhavam outro


dos indiciados e uma das testemunhas. O empregado que foi indiciado era irmão
de outros dois dos indiciados. O último era apenas conhecido dos demais. A
vítima, ao que parece, não tinha qualquer relação com seus prováveis
assassinos, sendo conhecida apenas da testemunha que depois foi indiciada em
autos apartados, o dono do bar.

Contextos/Cenários

O crime desenrolou-se entre o bar - onde os agressores pararam para se


apossar do veículo do proprietário - a residência da vítima, e as residências
vizinhas nas quais a vítima tentou se esconder, mas acabou sendo alcançada.
Todos estes imóveis localizavam-se no bairro Jardim Nova Cumbica, próximos a
uma favela, onde a violência era a regra. Grande parte dela era provocada por
grupos de extermínio financiados pelos comerciantes da região para liquidar
supostos marginais, mas também eram freqüentes os crimes praticados
individualmente como assaltos, violência doméstica e assassinatos provocados
por desavenças pessoais. Os moradores viviam sob a égide do medo, calando-se
diante de assassinatos anunciados e cometidos publicamente, fornecendo aos
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 495

assassinos o que eles exigiam - comida, automóveis ou qualquer outro bem -


tendo sido várias testemunhas mortas ou ameaçadas até serem obrigadas a
mudar de bairro.

"Física" dos acontecimentos

A primeira versão do caso é a de que um grupo de extermínio chamado


"Irmãos Chagas" assassinou um criminoso. Este grupo era formado por um
comerciante do bairro - um mercadinho, constantemente ameaçado por
"marginais" da favela vizinha – três irmãos – um deles empregado deste
estabelecimento comercial - e outros conhecidos. Patrocinados pelos
comerciantes do bairro, o grupo começou a assassinar supostos criminosos,
desafetos dos comerciantes e, depois, as testemunhas de seus crimes. A relação
dos Irmãos Chagas com a população local era ambígua, havendo quem os
apoiasse mas a maior parte os temia; em certa ocasião, houve uma ameaça de
linchamento quando o grupo praticou mais um de seus assassinatos
publicamente. Na noite dos fatos, chegaram a um bar os três Irmãos Chagas
acompanhados de outro indivíduo, armados, informando que iriam liquidar a
vítima - pessoa muito reservada, tida por alguns como "perigoso assaltante e
assassino". Nessa ocasião, apossaram-se do veículo do dono do bar - não se
sabe se com o consentimento deste. De lá rumaram em direção à residência da
vítima, perguntando durante o trajeto, pela localização da mesma. Ali chegando
os assassinos, a vítima ainda tentou fugir mas foi apanhada em uma das casas
vizinhas. Morta, teve suas orelhas e um dos dedos decepados. Esses órgãos
foram conservados em formol e exibidos no mercado de propriedade de um dos
executores. As investigações chegaram ao indiciamento dos integrantes do grupo
principalmente devido ao depoimento da cunhada de um deles, motivada pelo
fato de ele ter "desgraçado" a vida de sua irmã, testemunha essa que acabou
mudando de bairro devido às várias ameaças.

A segunda versão, que foi a preponderante no noticiário da época, informa


que se tratava de um caso de linchamento de um criminoso conhecido na região,
mas esta versão foi descartada ao longo das investigações. Provavelmente as
notícias foram motivadas pelo aglomerado formado durante o crime, devido ao
alto número de agressores e à presença de muitas testemunhas.

Finalmente a última versão é a que o crime foi uma vingança pessoal: sete
dias após a vítima ter se mudado para aquela residência, um outro inquilino deu
uma surra em sua mulher e nos filhos; a mulher fugiu e pediu ajuda da vítima,
que foi até a casa deles e, após discutir com o marido dela, acertou-lhe um tiro; o
crime teria sido praticado então pelos familiares deste vizinho. Outra história de
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 496

vingança pessoal narrada nos depoimentos informa de um roubo praticado pela


vítima tempos antes de seu assassinato, que teria então sido cometido pelas
pessoas por ela roubadas. Estas duas histórias foram espalhadas pelos policiais,
no início das investigações, talvez para desviar a atenção sobre o grupo de
extermínio, que certamente contava com a conivência de policiais.

Observações finais

Ocorreram falhas importantes por parte dos operadores do direito a serem


assinaladas: 1) não terem sido encontradas e ouvidas onze pessoas citadas nos
depoimentos como suspeitas ou como testemunhas;3) não terem sido julgados
até o começo de 1992, por se encontrarem foragidos, três réus (ao que parece,
os processos foram arquivados); 4) não terem sido dadas garantias para as
testemunhas, que temiam ir depor, tendo ocorrido até mesmo o assassinato de
uma delas, justamente aquela para a qual foi desentranhado um IP específico a
fim de averiguar sua participação no crime; 5) a promotoria não ter pedido a fita
gravada por uma emissora de rádio, a qual continha a confissão de um dos réus.

Atente-se para o fato que a defesa valeu-se do noticiário que tratava o


caso como sendo de linchamento para sustentar sua tese de inocência dos réus,
sempre reafirmando a periculosidade da vítima.

1.5.Grupo de extermínio de Itapecerica da Serra

Data 23/10/84

Resumo do caso

Dois jovens residentes no Jardim Jacira eram tidos como marginais pela
população bairro. No dia 23/10/84, às 22h00, foram executados a tiros.
Inicialmente o caso foi considerado como de autoria desconhecida, mas com as
investigações concluiu-se que o proprietário de um empório no bairro, o seu
empregado, um sobrinho de 17 anos, outro adolescente e um indivíduo não
identificado foram os autores do delito. Em seus depoimentos, várias das
testemunhas afirmaram que foram os moradores do bairro, diante de tanta
violência, que resolveram se unir para criar um grupo de combate à
criminalidade, com métodos próprios. O idealizador de tal grupo teria sido
justamente o padrasto de uma das vítimas. O estopim para a formação do grupo
de combate à criminalidade teria sido um assalto, acontecido cinco dias antes, à
casa de um morador do bairro, que foi também agredido pelos assaltantes.

O dono do empório foi preso em 09/02/87, recebeu a liberdade provisória


em 28/03/87 - por estar sendo ameaçado de morte na prisão -, mas foi preso
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 497

novamente em 10/05/87, em flagrante delito, por tentativa de homicídio contra


uma investigadora de polícia. Nesta última prisão, teve apreendida uma arma
calibre 12, o que levantou suspeitas de que ele estivesse envolvido em furto e
receptação de armas de grosso calibre. No dia 26/10/87, ele foi pronunciado, mas
no dia 05/02/88, foi absolvido pelo Tribunal do Júri. Até a sua absolvição, houve
várias manifestações de moradores do bairro a seu favor e também, segundo o
delegado, uma tentativa de “tirá-lo à força” da prisão. Na versão do promotor ao
indeferir o pedido de liberdade provisória, também haveria muitas manifestações
de moradores pedindo que o acusado fosse mantido sob custódia.

O empregado do empório foi assassinado em 15/03/85, aparentemente por


vingança, no próprio estabelecimento. Os dois adolescentes sindicados no caso
desapareceram.

Local

O crime aconteceu no Jardim Jacira, em Itapecerica da Serra. O


município localiza-se a Oeste da Região Metropolitana da Grande São Paulo.
Em 1984, ano da execução, a população de Itapecerica da Serra era de 82.389
habitantes.221 Em 1980, 34,7% não eram ali nascidos, e moravam na cidade há
menos de 10 anos. Atualmente a população da cidade está em 85.550 habitantes
(0,55% da Grande São Paulo), havendo predomínio de crianças e adolescentes.
Em 1980, a população se dividia por faixa etária da seguinte forma: 41,49% de 0
a 14 anos; 28,92% de 15 a 29 anos; 21,1% de 30 a 49 anos; 7,17% de 50 a 69
anos; 1,26% de 70 anos ou mais.

Como na maior parte dos demais municípios da Grande São Paulo, o


acesso à infra-estrutura urbana é precário. Na área de saúde, há apenas um
hospital com 262 leitos. Em 1984 o número de leitos desse hospital era 154,
sendo portanto a média de habitantes por leito igual a 549. No que se refere à
educação, em 1984, apenas 7,46% dos alunos do primeiro grau da rede pública
de ensino ingressavam no segundo grau e a população alfabetizada era de
68,88%.

Em relação às taxas de criminalidade, observamos um crescimento


acentuado durante a década de 80. Em 1984, ano do crime, aconteceram 22
homicídios dolosos de autoria desconhecida no município; em 1989 este número
subiu para 36, ou seja um aumento de 64%. As ocorrências criminais em geral
também cresceram neste período: de 2014 para 2675 (33%). Houve, no entanto,
uma ligeira queda na proporção de Inquéritos Policiais em relação aos Boletins

221
Os dados sobre Itapecerica da Serra foram conseguidos junto à EMPLASA e os mais recentes
referem-se ao ano de 1991.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 498

de Ocorrência: de 18,42% em 1984 para 14,8% em 1989, atestando uma piora


no desempenho policial em Itapecerica da Serra.

Nos autos, o Jardim Jacira aparece como um bairro pobre, onde


aconteciam muitos assaltos, desprovido de delegacia.

Vítimas

Duas foram as vítimas da execução. Dois rapazes de 19 anos, brancos,


solteiros, ajudantes, nascidos no estado do Paraná, residentes no bairro Jardim
Jacira. Um deles fora expulso da casa da mãe, pelo padrasto, dois anos antes de
ser morto.

Indiciados

Dois homens foram indiciados e dois adolescentes foram sindicados pelo


crime. Um dos adultos tinha antecedentes criminais por homicídio, tentativa de
homicídio, jogo do bicho e lesões corporais. Três eram brancos e o quarto, pardo.
Há informação sobre o grau de instrução de dois deles, ambos com primeiro grau
incompleto. Os dois adolescentes tinham 17 anos de idade e os adultos, 23 e 52.
Dois eram naturais da Paraíba, um de Minas Gerais e o último do estado de São
Paulo. Dois eram solteiros, um casado e para o quarto, não há a informação. Um
era comerciante, um ajudante, o terceiro era instalador de som e falta a
informação para o último. Todos moravam em Itapecerica à época do crime, mas
os dois adolescentes não foram mais encontrados. Um deles mudou-se logo
após o crime, e disse à polícia que havia se mudado com a família porque
estavam recebendo ameaças de morte dos bandidos da região.

Testemunhas

Doze pessoas foram ouvidas como testemunhas, dez homens e duas


mulheres. Cinco brancos, dois pardos, um negro e sem informação para os
demais. Dois naturais do estado do Paraná, três de São Paulo, três de Minas
Gerais e não há dados sobre os quatro restantes. Quanto às idades, há
informação para oito das testemunhas: quatro tinham entre 19 e 24 anos, três
entre 31 e 40 e uma tinha 70 anos de idade. Oito eram casados, três solteiros e o
último não informou o estado civil. Um era industriário, um era lavrador, dois
exerciam ocupações braçais, dois trabalhavam no comércio, três eram
trabalhadores braçais autônomos, um era delegado e as duas mulheres eram
donas de casa. Todos moravam em Itapecerica à época do crime, mas um deles
mudou-se mais tarde. Quatro relacionavam-se com as vítimas, três com a vítima
do assalto que motivou a execução, quatro com os réus e o último era o delegado
que presidiu o inquérito.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 499

Relações hierárquicas entre protagonistas

Um dos indiciados era empregado do outro, proprietário de um empório no


bairro, e um dos sindicados era sobrinho desse comerciante e residia com ele até
aquele ano. Uma das testemunhas, que foi idealizador do grupo de combate à
criminalidade, era padrasto de uma das vítimas. As relações predominantes entre
os protagonistas eram de vizinhança.

Contextos/Cenários

A execução aconteceu em uma rua curta, sem denominação, ladeada por


duas escadas de cimento, com leito carroçável desprovido de iluminação pública,
formado de terra batida. Pelos depoimentos, apreende-se que nestas escadarias
que ladeavam a rua aconteciam grande parte dos assaltos. Naquela noite,
membros do grupo formado cinco dias antes para combater a criminalidade no
bairro encontraram, naquele lugar, dois jovens tidos como “marginais” pelos
moradores do bairro. Estava formado o cenário perfeito.

“Física" dos acontecimentos

Os moradores de Jardim Jacira já estavam há algum tempo incomodados


com o alto grau de violência do bairro, com grande incidência de assaltos, furtos,
cobrança de pedágios e agressões. Fizeram vários telefonemas à delegacia,
pedindo reforço policial, mas jamais foram atendidos em suas solicitações.
Segundo alguns depoimentos, um delegado teria até mesmo os incitado a tomar
providências por conta própria perguntando se no bairro “não havia homens” que
pudessem fazê-lo. O estopim para a execução dos dois rapazes foi dado cinco
dias antes, quando um eletricista, morador do bairro, teve sua casa assaltada e
foi agredido por quatro indivíduos. A partir deste momento, cerca de 22
moradores do bairro resolveram organizar um grupo de combate à criminalidade,
liderados por um motorista, justamente o padrasto de uma das vítimas, que ele
havia expulsado de casa. Alguns moradores que participaram das primeiras
reuniões, deixaram o grupo, que passou então a ser liderado pelo proprietário de
um empório, indiciado por homicídio de um assaltante de seu comércio e
envolvido com o jogo do bicho.

Este comerciante, juntamente com outros membros do grupo, fazia uma


ronda pelo bairro na noite do dia 23 de outubro, provavelmente com grande
disposição para “justiçar” alguém, quando se deparou com dois jovens
conhecidos como “marginais” do bairro, nas escadarias onde era mais freqüente
a ocorrência de assaltos. Talvez o grupo estivesse de fato em busca dessas duas
vítimas, uma vez que o comerciante afirmou que estava sendo ameaçado por
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 500

elas e outra testemunha declarou que uma das vítimas havia sido reconhecida
como autora na casa do eletricista.

Observações finais

Todos os exames periciais foram levantados e houve tentativa de


encontrar as testemunhas e pessoas mencionadas ao longo do processo,
entretanto oito pessoas citadas nos depoimentos permaneceram sem serem
ouvidas na fase judicial, inclusive um provável quinto autor do assassinato.

A definição de réus e testemunhas pareceu, a propósito, insuficientes e os


seus critérios obscuros, uma vez que os depoimentos a respeito do número de
participantes do crime variou de quatro a vinte, incluindo nomes daquelas
pessoas que não foram ouvidas e também de algumas testemunhas, como o
padrasto de uma das vítimas, cujo indiciamento foi pedido pela promotoria, mas
negado pelo juiz. Neste aspecto também contribuíram tanto o medo das
testemunhas em depor quanto o apoio dos moradores do bairro para a ação dos
matadores. Devido a essa precária definição, por vezes, o caso parece tratar-se
de um linchamento.

Apesar de toda a materialidade delitiva levantada, o Réu foi absolvido no


tribunal de júri. Atente-se para o fato de que não foi considerado o Laudo do
Instituto de Criminalística que afirma que as balas encontradas no corpo de uma
das vítimas pertenciam à arma que um dos réus portava.

1.6. Grupo de extermínio de São Bernardo do Campo

Datas 03/09/87 (execução sumária) e 04/09/87 (tentativa de linchamento)

Resumo do caso

O vigilante da Associação Comunitária de São Bernardo do Campo


discutiu com seis adolescentes que a freqüentavam e, em razão disso, combinou
com três colegas a execução dos mesmos. Dirigiram-se ao local, o vigilante
permaneceu em uma das salas, enquanto os outros iam para o banheiro, onde
estavam os adolescentes, e passavam a golpeá-los. Após, desenharam na
parede uma cruz, com o sangue de suas vítimas e evadiram-se, escondendo a
seguir as armas utilizadas. Depoimento de outro adolescente que presenciou o
crime permitiu a identificação dos acusados, que foram então levados para a
Cadeia Pública da cidade. Nela estava preso o irmão de um dos adolescentes
mortos, que então articulou a tentativa de linchamento dos quatro acusados, não
consumado devido à intervenção dos carcereiros.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 501

Em 1988 os acusados pela execução, dois vigilantes, um balconista


desempregado e um servente também desempregado, foram condenados a 36
anos de reclusão. Depois, os julgamentos foram anulados por problemas na sua
formulação e, em novos julgamentos, a condenação passou para 90 anos de
reclusão. Entretanto, como a segunda sentença não poderia ser maior que a
primeira, em terceiro julgamento, a condenação voltou ao patamar dos 36 anos.

Quanto à tentativa de linchamento, apenas o irmão do adolescente foi


indiciado, mas antes que o processo chegasse a um desfecho, faleceu em
decorrência de AIDS, ainda na prisão.

Local

O município de São Bernardo do Campo integra a região do Grande


ABC paulista, formada também por Santo André, São Bernardo do Campo, São
Caetano do Sul, Diadema, Ribeirão Pires, Mauá e Rio Grande da Serra. Os seis
municípios são interligados entre si e à capital do estado. A área total da região é
de 411 Km2 e a população está estimada em 629.170 habitantes.

Situada no caminho para o mar, São Bernardo, ao longo de seus 433


anos, serviu como passagem e pousada para as tropas que transportavam café
para o porto de Santos, acolheu os imigrantes italianos que ali cultivavam a uva,
e, no começo deste século, iniciou o processo de industrialização, que invadiu as
antigas chácaras.222 Em 1909, já sediava as maiores fábricas de tecidos e de
móveis da região. Nos anos 50, passaram a predominar as linhas de montagem
de automóveis, incentivadas pelo programa federal de expansão da indústria
automotiva, vigente entre 1956 e 1959.
A partir de então, começou o crescimento populacional do município, que
passou de uma população de 29.295 habitantes nos anos 50 para 201.662 nos
70, o que fez de São Bernardo o município com maior crescimento populacional
da Grande São Paulo. Nos anos 80, ocorreu um processo de desindustrialização
em toda a região do ABC - dado pela indisponibilidade de terrenos, pelo alto
preço das áreas industriais, pela obrigatoriedade de cumprimento da lei de
proteção dos mananciais e pela emergência de um novo sindicalismo que
conquistou aumentos salariais - que determinou um decréscimo da migração.
Entre 1981 e 1991, a nova geração nascida no município, a maior parte
composta por filhos de migrantes das décadas passadas, correspondia a 83,2%.

222
Sobre São Bernardo do Campo, ver Maria Aparecida Lealdini Tedrus, “Jovens: trabalho nas
ruas e experiências de sociabilidade”, dissertação de mestrado apresentada junto ao
Departamento de História e Filosofia da Faculdade de Educação da USP, São Paulo, 1996. A
autora colheu os dados junto à Prefeitura Municipal de São Bernardo do Campo
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 502

Quanto à distribuição da população por faixa etária, atualmente, há uma


concentração entre os mais jovens: 22% têm até 10 anos; 17% estão entre os 11
e os 19 anos; 9,38% entre 20 e 24; 39,11% entre 25 e 49; e 11,79% com mais de
50 anos.223

As condições de vida em São Bernardo do Campo indicam a situação de


decadência de uma cidade que já esteve entre as economias mais importantes
do estado. Em relação às condições de moradia, a cidade têm 101.330 pessoas
habitando em 92 núcleos de favelas. No que se refere ao setor de saúde, o
atendimento é razoavelmente satisfatório: há 29 unidades básicas, 5 prontos-
socorros, 4 ambulatórios, 5 postos de serviços especializados, e 1 posto do
sistema SUDS, 13 hospitais particulares e 1 Municipal. Nestes 14 hospitais, há
1595 leitos, o que significa a baixa taxa de 2,53 leitos para cada 1.000 habitantes.
A rede de água cobre 98% do município e a de esgoto, 76%. A coleta de lixo
cobre a totalidade da área urbana do município.

Os coeficientes de natimortalidade e mortalidade infantil têm melhorado


desde os anos 70: a o primeiro caiu de 10,11/1.000 nascidos vivos em 1980 para
9,77 em 1990; no mesmo período, o segundo caiu de 65,08/1.000 NV para 32,88.

Quanto à educação, São Bernardo vem registrando aumento no número


de pessoas alfabetizadas e com mais anos escolares. Assim, a proporção de
analfabetos caiu de 10,96% em 1980 para 7,1% em 90. Apesar de manter-se
baixo, subiu o índice de pessoas com mais de 12 anos de estudos: de 6% em
1980 para 10,01% em 1993. Entretanto, o município está longe de suprir a
demanda escolar da população: 71,72% das crianças de até 6 anos estão fora
das unidades de educação infantil e 19,45% da população em idade escolar
estão fora da rede de ensino de 1º e 2º graus.

Os jovens estão na pauta das preocupações de alguns setores da


sociedade que, em 1974, fundaram a FUBEM (Fundação do Bem-Estar do
Menor) e também várias entidades particulares como a Associação Comunitária
de São Bernardo do Campo, local onde ocorreu a execução dos adolescentes,
estabelecida em prédio térreo, isolado. Ao lado da Associação, ficava o sacolão,
lugar de reunião de adolescentes em situação de risco.

As taxas referentes à violência são relativamente altas em São Bernardo


do Campo, mas o que mais impressiona é o crescimento destas ao longo da
década de 80: entre 1981 e 1988, o número de homicídios dolosos subiu 1.326%.
Em 1987, ano da execução, aconteceram 201 homicídios dolosos no município,
sendo 170 de autoria desconhecida. O número de ocorrências registradas
223
IBGE, Censo Demográfico, 1991.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 503

naquele ano foi de 21.354 e o de inquéritos policiais, 2.147 (10,05% dos BOs).
Segundo o juiz que, após a tentativa de linchamento, pediu a remoção dos
presos, "a Comarca vem sendo palco de bárbaros homicídios praticados por
`bandos' de `justiceiros', a par da enorme e incontida violência que torna quase
impossível a vida nesta Comarca."

Em relação à situação carcerária na região, lembremos que, conforme foi


mencionado anteriormente224, presos e detentos cometeram 20% dos
linchamentos da Grande São Paulo entre 1990 e 1996, indicando que a tentativa
de linchamento deste caso não foi um ato isolado.

Vítimas

As seis vítimas da execução sumária eram adolescentes do sexo


masculino, com idades variando dos 12 aos 17 anos, residentes em São
Bernardo do Campo. Dois eram brancos e os demais pardos. Três eram naturais
da cidade e os restantes provinham do Nordeste do país. Um deles era estudante
e os outros trabalhavam como auxiliares em marcenaria.

Executores (vítimas da tentativa de linchamento)

Os quatro acusados da execução dos adolescentes eram do sexo


masculino, pardos, residentes em São Bernardo do Campo. Dois deles tinham 33
anos, um 22 e o outro 18 anos de idade. Três eram amasiados e com filhos, o
outro solteiro. Dois eram vigilantes, um balconista e o último era servente de
pedreiro mas estava desempregado. Dois eram naturais da cidade, o terceiro
nasceu no interior do Ceará e o quarto no interior de Minas Gerais. Apenas um
deles tinha antecedentes criminais, seis mandados de prisão dos quais cinco
foram cumpridos, por homicídio.

Linchadores

Os autores da tentativa de linchamento foram todos os 39 detentos de um


determinado pavilhão da Cadeia Pública de São Bernardo do Campo, para onde
foram levados os autores do sêxtuplo homicídio. Entretanto, o único denunciado
pela tentativa de linchamento foi o irmão de um dos adolescentes assassinados.
Esse era pardo, solteiro, natural de Cardoso (SP), com 21 anos de idade, meio
oficial serralheiro. Morreu em 05/05/93, ainda na cadeia, em conseqüência de
complicações advindas da AIDS.

224
Parte II “As Graves Violações de Direitos Humanos e a Imprensa (1980-1996)”, capítulo 5
“Linchamentos: justiçamento cotidiano no Brasil”, sub-item “Perfil dos linchamentos em São Paulo
nos anos 90”.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 504

Testemunhas

Vinte e uma pessoas foram arroladas como testemunhas da chacina dos


adolescentes. Três eram os policiais que participaram das investigações, e que
afirmaram já conhecer os meninos de suas passagens pela polícia. A mais
importante testemunha é um menino de 12 anos, residente com a mãe e os
irmãos, analfabeto, natural de Minas Gerais, que freqüentava a Associação e foi
ameaçado por um dos guardas no dia do crime. Outras oito testemunhas eram
familiares dos meninos assassinados: dois brancos e os demais pardos; quatro
naturais do Nordeste e os restantes do estado de São Paulo; sete residentes na
Grande São Paulo e um no interior. Três testemunhas eram educadores que
prestavam serviços para a Associação. As demais testemunhas eram
conhecidos, amigos e amásias dos réus.

Para a tentativa de linchamento, foram arroladas 43 testemunhas: dois


guardas da cadeia, os dois carcereiros que conseguiram impedir a consumação
do homicídio e os 39 presos daquele pavilhão: a grande maioria destes presos
(24) era natural do estado de São Paulo, 8 de Minas Gerais, um do Rio Grande
do Norte, um de Pernambuco, 3 da Bahia e 2 do Paraná; a maioria era também
composta de brancos (29), sete eram pardos e três negros; quanto ao estado
civil, 31 eram solteiros, seis casados e dois amasiados; as idades concentravam-
se na casa dos vinte anos (22 dos presos), 7 tinham entre 18 e 19 anos, 8
estavam na faixa dos 30 e dois passavam dos 40. Quanto à ocupação, a maioria
(18) estava ligada às indústrias dos setores metalúrgico, automobilístico e
mecânico; 12 tinham ocupações no setor de serviços ligados a essas indústrias,
2 eram trabalhadores autônomos semi-especializados e 7 declararam a indefinida
“ajudante”.

Relações hierárquicas entre protagonistas

Um dos autores da chacina era vigilante da Associação freqüentada pelos


meninos, vizinho de outros dois agressores e cunhado do quarto; dois deles
trabalharam juntos como auxiliares de pedreiro.

O único denunciado pela tentativa de linchamento era irmão de um dos


meninos mortos e preso da mesma cadeia para onde eles foram levados; os
demais linchadores também eram presos.

Contextos/Cenários

A chacina dos meninos ocorreu na Associação Comunitária voltada para o


auxílio de menores em situação de risco, com atendimento somente durante o
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 505

dia. Como os adolescentes insistissem em freqüentá-la à noite, estabeleceu-se


um conflito com os vigilantes, que foi se acirrando até o desfecho trágico.

No dia seguinte ao crime, os agressores foram levados para a Cadeia da


cidade onde então ocorreu a tentativa de linchamento.

“Física" dos acontecimentos

A chacina dos seis meninos foi o desfecho de uma somatória de conflitos


entre eles e o vigia da Associação Comunitária: o vigia os reprimia por quererem
freqüentar a instituição no período noturno e por utilizarem drogas, entregou-os
em outras ocasiões à polícia e se dizia ameaçado. Fez várias reclamações à
direção da instituição até que ouviu a frase "pode acertar as contas com eles que
a gente agüenta as pontas". Entendeu que podia eliminá-los, apossou-se de uma
arma da instituição, treinou tiros, chamou três colegas e foram então durante a
noite surpreender os menores no banheiro da instituição. Alguns depoimentos
indicam que o vigia que tramou tudo não tomou parte na agressão, ficando em
uma sala ao lado enquanto os demais realizavam a execução.

O crime foi testemunhado por outro adolescente e rapidamente chegou-se


aos quatro agressores. Presos no mesmo dia, foram encaminhados à Cadeia
Pública de São Bernardo do Campo, para o mesmo pavilhão onde se encontrava
preso o irmão de um dos adolescentes, que passou então a ameaçá-los. No dia
seguinte, todos os presos daquele pavilhão tentaram linchar os quatro acusados
da chacina, feriram-nos gravemente, mas foram impedidos de consumar a ação
devido à intervenção dos agentes carcerários

Observações finais

Apesar das dúvidas que restaram sobre a efetiva participação do vigilante


na execução dos seis meninos, ele foi condenado ao mesmo número de anos
que os demais réus. Já a direção da Associação foi inteiramente poupada de
investigações e conseqüentes indiciamentos, apesar de seus membros terem
admitido ter incentivado o vigia a "acertar as contas" com os menores. O
desfecho do caso - condenação dos réus a 36 anos de prisão, em 1993 (os réus
permaneceram presos durante esses seis anos) - certamente foi influenciado
pelo alto poder de mobilização do caso: rádios, jornais e televisões noticiaram o
desenrolar do processo; ONGs se pronunciaram durante os julgamentos.

Em relação à tentativa de linchamento dos réus, a situação foi muito


diferente. O delegado deixou clara sua falta de interesse pelo caso ao atribuir
exatamente o mesmo depoimento - no qual alegam nada conhecer sobre os fatos
- a todos os presos que teriam sido responsáveis pelas agressões, até mesmo o
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 506

denunciado. Esse descaso talvez possa ser explicado pelo fato de se tratar de
agressão entre presos, o que, por um lado, não suscita muita indignação da
opinião pública e, por outro, deveria levar à apuração das responsabilidades dos
encarregados da cadeia. Também é suscetível de questionamentos a decisão de
prender os acusados na mesma cadeia e no mesmo pavilhão do irmão de uma
das vítimas. Depois do episódio, os agredidos foram transferidos, mas a eclosão
do conflito certamente poderia ter sido prevista e evitada. Esta falta de empenho
da polícia no caso estendeu-se também à justiça, fazendo com que o processo
se desenrolasse muito vagarosamente por seis anos até que o denunciado
morreu.

1.7 Grupo de extermínio do Embu

Data 27/09/85

Resumo do caso

No dia 27/09/85, três homens renderam outros dois, em Taboão da Serra e


levaram-nos, de carro, até um matagal no Embu. Chegando ao local, sacaram de
suas armas e efetuaram vários disparos, causando a morte de uma das vítimas e
ferimentos graves na segunda. O motivo da execução teria sido o fato de um dos
agressores ter tido sua casa furtada por três vezes, algum tempo antes, e estar
seguro de que os autores daqueles furtos eram as vítimas. Os réus foram
levados ao tribunal do júri em 31/10/91, quando os jurados consideraram que na
prática do crime de homicídio os réus agiram “impelidos por motivo de relevante
valor social”. Em relação à outra depois de ter desclassificado o crime de
tentativa de homicídio para o crime de lesões corporais. A pena total foi de quatro
anos e oito meses para ser cumprido em regime aberto. Já na fase de trânsito em
julgado, a defesa recorreu e pediu que fosse declarada extinta a punibilidade no
caso de lesões corporais, por prescrição do crime, reduzindo a pena para 4 anos.

Local

O município de Embu integra a Região Metropolitana da Grande São


Paulo. Embu passou por um acentuado crescimento ao longo da década de 80,
tendo sua população aumentado em 227% (95.800 habitantes em 1980 e
313.027 em 1989). No mesmo período, o consumo de energia elétrica cresceu
106%; as ligações de água, 111% e as de esgoto, 320%. No ano da execução,
1985, a população do município era de 198.967 habitantes

Em 1980, 43,38% dos habitantes do Embu não eram naturais do


município. Quanto à faixa etária, predominava a população formada por crianças
de 0 a 9 anos de idade (31,33%). A taxa de nascidos vivos por óbitos fetais era
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 507

em 1980 de 19/1000 habitantes; em 1985 esta taxa caiu para 16/1000 habitantes;
mas em 1989 havia subido novamente para 25/1000 habitantes - entre 1980 e
1989 a taxa subiu, portanto, 31%. Em 1980, a taxa de nascidos vivos por óbitos
de crianças de menos de um ano era de 54/1000 habitantes; em 1985 esta taxa
diminuiu para 35/1000 habitantes - entre 1980 e 1989 a taxa caiu 41%.

Quanto ao acesso à educação, no começo da década, a proporção dos


alunos do primeiro grau que ingressavam no segundo era de 0,04% e a
proporção de alunos do segundo grau entre a população era de 4,24%. Em 1985,
ano do caso analisado, essas proporções mantinham-se praticamente
inalteradas.

Em relação às taxas de criminalidade, o município registrou em 1981, 1340


ocorrências e 203 inquéritos policiais (1.515%). Em 1985, esses números tinham
subido para 4446 ocorrências e 365 inquéritos policiais, atestando uma queda
para 8,21% da proporção entre BOs e IPs. Entre 1981 e 1989, houve um
crescimento de 196% nas ocorrências.

Vítimas

A vítima fatal era um rapaz de 20 anos, branco, com antecedentes


criminais, nascido no Taboão da Serra e residente no Embu, que trabalhava
como indicador de trânsito e carregador de caminhão. O sobrevivente era um
rapaz de 21 anos, negro, casado, nascido e residente no Taboão da Serra,
motorista de profissão mas à época trabalhando como servente de pedreiro com
seu padrasto, tinha antecedentes criminais por lesões corporais. Nos autos,
algumas testemunhas referem-se discriminatoriamente a esta vítima, por ter ela
um irmão preso na Casa de Detenção e uma cunhada envolvida com tráfico de
entorpecentes.

Indiciados

Três indivíduos foram indiciados por este crime. Um pardo; de 42 anos;


natural de Mata Grande (AL); casado à época do crime, mas viúvo em 1987;
residente no Campo Limpo, zona Sul de São Paulo; encarregado de obras à
época do crime e pedreiro em firma em 1987; sem antecedentes criminais. O
segundo era branco; tinha 20 anos; era natural de D. Expedito Lopes (PI);
solteiro; residente em Taboão da Serra, na Grande São Paulo. Finalmente, o
último era branco; com 30 anos de idade; natural de Picos (PI); casado; também
residente em Taboão da Serra; desempregado à época do crime, mas em 1987
trabalhava como operador de máquina.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 508

Testemunhas

Nove foram as testemunhas ouvidas durante as investigações, sendo que


apenas uma era mulher. Sete eram casadas e as demais, solteiras. Quatro
exerciam ocupações braçais (carregador de caminhão, doméstica, pedreiro e
almoxarife), três eram operários, um era comprador e para o último, não há a
informação. Quatro residiam no município de Taboão da Serra, três no próprio
Embu, um em Rio Grande da Serra e não há informação para o restante.

Relações hierárquicas entre protagonistas

Não há propriamente relações hierárquicas. Os três indiciados eram


cunhados, duas das testemunhas eram parentes das vítimas, as demais eram
conhecidas de todos os envolvidos.

Contextos/Cenários

Os três indiciados saíram em perseguição aos supostos assaltantes da


casa de um deles e os encontraram na Vila Iase, município de Taboão da Serra,
na Grande São Paulo, onde residiam. Ali, renderam-nos e os levaram, de
automóvel, para um matagal, no Jardim dos Moraes, em Embu, município
vizinho. O local ermo e distante de suas residências, conhecido como “curva da
macumba”, mostrou-se o mais adequado para a realização da execução.

“Física" dos acontecimentos

Os três indiciados decidiram-se pelo crime depois que um deles teve sua
casa arrombada e furtada por três vezes. Acreditando-se sabedor de quem eram
os autores dos furtos, reuniu seus dois cunhados, para executá-los. Na versão
dos indiciados, eles dariam “apenas” uma surra nos supostos assaltantes, mas
estes fizeram gestos que os levaram a crer que sacariam de suas armas, o que
os levou a atirar.

Observações finais

A defesa de dois dos réus, em seu recurso (29/07/88), afirma que os


laudos acostados aos autos são falhos, omissos e obscuros, deixando dúvidas
sobre o calibre do projetil que atingiu as vítimas, não comprovadamente o mesmo
das armas dos réus - calibres 22 e 38. Sobre o laudo do local, pergunta se existia
mesmo uma ribanceira, como alegara a vítima sobrevivente. No exame
necroscópico consta que a vítima fatal apresentava uma tatuagem em forma de
coração no braço esquerdo, sendo que a foto mostra que tem duas, uma em
forma de cruz, outra em forma de coração. E conclui "são detalhes que podem
não parecer importantes, mas que tiram a credibilidade de tais exames". Foi feita
a apreensão da arma, mas não foram inclusos os exames balísticos.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 509

A respeito do desfecho final do caso, o mais impactante é a sentença final


do Tribunal do Júri, que reduz a pena para crime de lesão corporal seguida de
morte, e salienta o "relevante valor social" do motivo do homicídio. Nesta
sentença, os jurados parecem ter levado muito mais em consideração os
antecedentes criminais das vítimas - levantados pela defesa dos réus - do que a
intenção dos réus, se era a de matar ou a de “apenas aplicar um corretivo”, como
alegaram, versão muito pouco convincente diante das provas levantadas.

1.8. Grupo de extermínio do Capão Redondo

Data 21/04/88

Resumo do caso

No dia 21/04/88, dois homens assassinaram uma moça no Capão


Redondo. O locador da casa onde a moça morava com a mãe informou que ela
estava sofrendo ameaças e por isso estava desaparecida há mais de um mês.
Um rapaz surdo e mudo, por meio de mímica, descreveu os fatos, pois os
presenciou da sacada de sua casa. Relatou que dois indivíduos, ocupando uma
motocicleta, perseguiam a vítima por uma das ruas do bairro. Esta, tentando
escapar, entrou em um terreno e, correndo para os fundos, foi perseguida por um
deles que, acertou-lhe os tiros. Dias depois, essa testemunha, após ser retirada
de uma panificadora, foi assassinada pelos mesmos indivíduos que mataram a
moça. Soube-se que os dois autores do crime pertenciam a uma quadrilha de
matadores da região. Esse grupo era composto por vários indivíduos, que agiam
organizadamente na área dos fatos, tendo já inúmeras execuções sumárias
praticadas na Zona Sul. Foi achado outro integrante do grupo, o qual, segundo
consta, não participou do crime dos autos mas foi ouvido como testemunha.
Apreendeu-se em poder deste um revólver usado. Tanto um dos réus como esta
testemunha confessaram a prática de vários homicídios ocorridos na área do
Capão Redondo, e, dentre os vários crimes, o réu arrolou o homicídio da moça.

No final do seu relatório, de 04/05/88, o delegado fez o pedido de prisão


preventiva. Os réus foram pronunciados no dia 28/10/88 e no dia 04/05/89, o réu
que confessou o assassinato, foi condenado a 19 anos e seis meses de reclusão,
pelo tribunal do júri. O outro réu, que estava foragido, e foi julgado a revelia, foi
assassinado em 12/07/89, antes de ser preso e levado a júri.

Local

O crime aconteceu no bairro São Bento Velho, que integra o distrito de


Capão Redondo, região de Campo Limpo, ao sul de São Paulo. A população de
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 510

Capão Redondo é de 195.654 habitantes, o que corresponde a 24,18% do total


da região (a população de Campo Limpo é de 809.138 habitantes) 225. A
densidade demográfica do distrito é de 152 habitantes por hectare. A maior parte
desta população (38,8%) recebe de 04 a 08 salários mínimos mensais e a média
de renda no distrito é de 7,3 salários mínimos. A população do distrito é bastante
jovem, sendo as faixas etárias com maior concentração de pessoas as de 0 a 9
anos (23,76%), 10 a 19 (21,61%) e 20 a 29 anos de idade (20,18%).226

Capão Redondo é uma região marcada por altos índices de criminalidade.


Em 1988, foram registradas 6662 ocorrências e foram abertos 814 inquéritos
policiais (12,22% dos BOs); aconteceram 48 tentativas de homicídio, sendo 26 de
autoria desconhecida; 162 dos 184 homicídios ali ocorridos foram dolosos de
autoria desconhecida; entre 1981 e 1989, as tentativas de homicídio cresceram
126,32% e os homicídios 387,76%.

Vítimas

Duas foram as vítimas deste grupo de extermínio. Uma moça branca,


viúva, nascida no dia 04/10/66, em São Paulo (SP), doméstica, residente em São
Bento Velho, no Capão Redondo, com a mãe, dois irmãos e dois filhos. Um
rapaz, com problemas na fala, residente no mesmo bairro.

Indiciados

Dois foram os indiciados pelo assassinato da moça. Um rapaz branco,


solteiro, nascido em 23/09/66, em Belo Horizonte (MG), feirante desempregado,
com antecedentes criminais por homicídio, residente no Jardim São Bento Velho,
no Capão Redondo. O outro, nascido em 04/08/63 em São Paulo (SP), era pardo,
auxiliar de produção também desempregado, com antecedentes criminais por
homicídio, solteiro à época do crime, mas casou-se no ano seguinte, foi
assassinado a tiros em 12/07/89.

Testemunhas

Doze pessoas foram ouvidas como testemunhas no processo referente ao


assassinato da moça, sendo que sete relacionavam-se com a vítima, três com os
réus, uma presenciou os fatos e a última era o delegado encarregado do caso.
Nove eram homens. Quanto à ocupação, seis exerciam trabalhos sem qualquer
especialização (doméstica, encarregado de limpeza, servente, cobrador,
balconista, auxiliar administrativo), dois eram operadores de máquinas, um

225
Os dados relativos à Administração Regional de Campo Limpo e ao distrito de Capão Redondo
foram coletados junto à Secretaria Municipal de Planejamento (SEMPLA): Base de Dados para
Planejamento - Cadernos Regionais - Administração Regional de Campo Limpo, maço de 1993.
226
Os dados sobre as faixas etárias mais próximos do ano das execuções referem-se a 1991.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 511

comerciante, um delegado e dois não exerciam qualquer trabalho (um


desempregado e outro preso). Em relação à naturalidade, três eram mineiros,
seis paulistas, um pernambucano, um catarinense e o último não informou. Uma
das testemunhas tinha 17 anos de idade, três entre 20 e 22, duas na casa dos
trinta, três tinham mais de 47 anos e outras três não informaram. Sobre o estado
civil, há informação para nove testemunhas: quatro eram solteiras, três casadas,
duas separadas.

Relações hierárquicas entre protagonistas

Não há relações hierárquicas entre os réus, as vítimas e as testemunhas.


Todos eram moradores da mesma região que, na maior parte, conheciam-se
entre si ou por razões de parentesco ou de vizinhança. No entanto, os réus eram
conhecidos como membros de um grupo de matadores da região e por isso eram
muito temidos.

Contextos/Cenários

Dois indivíduos, ocupando uma motocicleta, perseguiam a vítima pela rua


Cândido Lusitana. Esta, tentando escapar e tendo um filho nos braços, ingressou
no terreno e, correndo para os fundos, foi perseguida por um deles que, então lhe
atirou. O assassinato, segundo o relatório de investigação policial, aconteceu em
uma valeta em “rua sem pavimentação asfáltica, sem iluminação e outros
melhoramentos, junto a muro divisor do terreno, onde estavam construídas duas
humildes casas”.

O crime foi presenciado por um rapaz que descreveu-o à polícia. Dias


depois, essa testemunha foi retirada do interior de uma panificadora, e
assassinada pelos mesmos indivíduos que mataram a moça.

“Física" dos acontecimentos

Os indiciados, uma das testemunhas e outros homens possivelmente


integravam um grupo de matadores da zona Sul, que já haviam executado muitas
pessoas na área do Capão Redondo. Com medo deles, várias famílias mudaram-
se do bairro, inclusive a família da moça assassinada. Esta havia se mudado, um
mês antes dos acontecimentos, porque estava sendo ameaçada desde que se
recusara a manter relações sexuais com um dos membros do grupo, com quem
havia saído algumas vezes. Naquele dia, os indiciados a encontraram por acaso
na rua, com um de seus filhos no colo. Depois de perseguirem-na, arrancaram a
criança de seus braços e a assassinaram. O crime foi presenciado por um rapaz
que, apesar de mudo, conseguiu descrevê-lo para a polícia. Dias depois, este
rapaz também foi morto.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 512

Diante do júri, o único réu pronunciado alegou que havia sido torturado
para confessar o crime. Mas no programa de rádio “Gil Gomes”, para o qual
concedeu entrevista, ele assumiu o assassinato.

Observações finais

Apesar de o desfecho final do caso ter sido condenação para o réu


sobrevivente, vários procedimentos importantes deixaram de ser realizados.

Em primeiro lugar, não foram ouvidas dez pessoas citadas nos


depoimentos: tratam-se de outros supostos membros do grupo de matadores ao
qual pertenciam os réus, que podem ter participado dos crimes, e pessoas que
poderiam dar informações a respeito, como os donos dos bares freqüentados por
eles. Mesmo o “estopim” dos homicídios não foi ouvido, aquele com quem a
moça assassinada teria recusado a manter relações sexuais.

Fica então a suspeita de que houve um empenho maior para a punição


dos responsáveis por este crime porque ele sai do “padrão” dos grupos de
extermínio (trata-se de assassinato de mãe de família, que se recusou a manter
relações sexuais com um de seus membros, e não do assassinato de “bandidos”)
e por isso obteve maior repercussão na mídia.

Ressalte-se ainda que também a denúncia de tortura feita pelo réu não é
apurada, não chegando a ser interrogado sequer o policial cujo nome ele cita
como um dos torturadores.

2. Justiceiros e matadores

Há, entre os processos analisados, três casos referentes a ações de


“justiceiros” ou “matadores”: as execuções de Guarulhos e do Jaguaré ocorridas
em 1982 e a de Osasco, de 1985. Apesar de o perfil dos agressores ser
claramente o de homicidas contumazes senão profissionais, os casos não são
aqueles típicos de justiçamento de um suposto criminoso.

Em Guarulhos, o homicídio decorreu da necessidade de um justiceiro da


região demonstrar valentia. Ao chegar à padaria que costumava freqüentar,
iniciou-se um burburinho a seu respeito; junto ao balcão do pão, um vendedor de
bilhetes de loterias, também freqüentador da padaria, provavelmente
embriagado, começou a desafiá-lo. O justiceiro pisou-lhe no pé e, ao que parece,
pediu-lhe desculpas. O vendedor, não aceitou as desculpas e continuou a
provocação. O justiceiro primeiro atirou para o chão e contra a parede, a fim de
intimidá-lo; como não surtiu o efeito desejado, acertou-lhe então um tiro a queima
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 513

roupa, que colocou fim à cena que lhe era desagradável. Dirigiu-se, calmamente
para o seu carro e foi para casa.

Em Jaguaré, um grupo de amigos envolvidos com atividades ilícitas –


talvez até mesmo um grupo de extermínio – bebiam em um bar, quando deu-se
um desentendimento entre dois deles, colegas que freqüentavam as casas dos
respectivos familiares. Saíram então do estabelecimento e um acabou atirando
no outro.

Em Osasco, o homicídio também decorreu de um desentendimento em um


bar, entre antigos moradores do mesmo bairro, mas neste caso tratava-se de
inimigos. O motivo do desentendimento foi o fato de que o agressor já havia
matado um amigo da vítima algum tempo antes. Ao saírem do bar, dirigiram-se
ao ponto de ônibus, onde aconteceu o homicídio, a facadas.

Destes breves relatos, ressalta uma primeira coincidência: os três


homicídios decorreram de desentendimentos iniciados em locais onde os
protagonistas consumiam bebida alcoólica e neste aspecto não se constituíram
em casos de exceção. Um estudo realizado em convênio entre o NEV (USP) e a
SSP-SP, em 14 Distritos Policiais da zona Sul de São Paulo, dos quais
analisaram-se todos os Boletins de Ocorrência e cerca de 330 inquéritos policiais
de homicídio, do primeiro semestre de 1995, constatou que 48,3% dos casos
foram causados por brigas (MINGARDI, 1998: 139).

Mas há ainda muitos outros pontos em comum entre os três casos


analisados. Além do cenário localizado, também os cenários ampliados guardam
muitas semelhanças. Guarulhos, a leste da capital, no começo dos anos 80, era
uma região industrial com alto nível de desemprego, analfabetismo, pobreza e
violência. Também na Grande São Paulo, mas localizado a oeste da capital,
Osasco apresentava características semelhantes: muitas favelas, população
jovem, com baixa escolaridade e altas taxas de criminalidade violenta.
Finalmente, Jaguaré, na própria região Oeste de São Paulo, é uma área habitada
por população de baixa renda, com grande déficit de infra-estrutura urbana e com
altos índices de criminalidade violenta. Grande parte da população do Jaguaré é
favelada, sofrendo os perigos causados pelo desbarrancamento das encostas.

Neste contexto, não causa surpresa que os protagonistas tenham


características semelhantes. Os agressores eram homens jovens, imigrantes,
com família, com ocupações pouco especializadas que acompanhavam carreiras
criminosas, e todos morreram (provavelmente foram mortos) ainda jovens. Em
Guarulhos, o agressor era um “inspetor de bairro” e motorista, de 37 anos,
mineiro, casado, com primeiro grau completo e com vários antecedentes
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 514

criminais, inclusive por homicídio; morreu 10 anos depois deste caso. No


Jaguaré, tratava-se de um encanador, de 25 anos, nordestino, pai de dois filhos,
que quatro meses depois deste caso foi indiciado por outro homicídio; morreu 4
anos mais tarde. Finalmente em Osasco, o agressor era um motorista e lavador
de carros desempregado, nordestino, casado, que tinha antecedentes criminais
por homicídio, foi preso e assassinado, ainda na cadeia, 3 anos depois.

Heloísa Fernandes (1992) realizou pesquisa em São Paulo com três


justiceiros e suas famílias, cujas origens sociais são as mesmas dos processos
aqui analisados: jovens imigrantes, de famílias proletárias. A autora ressalta que
a procedência comum – de família imigrante e camponesa – cria uma situação
caracterizada sobretudo pela precariedade e instabilidade: o tempo familiar é
marcado pelo lugar do trabalho e pelo nascimento dos filhos, a sobrevivência se
dá nas fronteiras do pauperismo e da insegurança. Esta situação, no entanto, não
é atribuída às estruturas sociais desiguais, mas sim ao “destino” de cada um ou
às condutas individuais.

O fio condutor destas trajetórias é “uma concepção maniqueísta do


mundo” marcada pelo significado que é atribuído ao trabalho: do lado dos que se
sacrificam e trabalham, alinham-se não só os trabalhadores, mas os bons pais,
bons maridos, bons filhos, bons parentes, bons vizinhos e, principalmente, as
boas mulheres. Daí o confronto com aqueles que estariam do outro lado, com os
que, presumivelmente, não trabalham porque não querem” (FERNANDES, 1992:
48-9).

Como conseqüência, temos as pessoas que se tornam “vítimas” de outras


(os que não trabalham) e assim justificam a “boa causa” da ação dos que vão lhe
vingar – a vingança agora igualada à justiça. “Homens sozinhos, decididos, lutam
em nome das classes trabalhadoras e não com elas. Um último custo desse
imaginário heroicizado pela `boa causa’ é o da luta que (...) esgota-se na
violência terrorista em troca da ordem e segurança dos bons `chefes de família’”
(FERNANDES, 1992: 51). Muitas vezes esta concepção encontra respaldo na
comunidade em que ele atua. No caso do Jaguaré isso ficou claro nos
depoimentos das testemunhas, que ressaltavam a má reputação da vítima e a
boa conduta do justiceiro, e na manifestação da União dos Moradores que, em
1984, quando o mesmo indiciado estava preso por outro crime, foram pedir a sua
libertação.

Se os agressores dos três processos aqui analisados apresentam


características comuns entre si e também em relação aos casos estudados por
Heloísa Fernandes, o mesmo não se pode dizer das vítima. Em Guarulhos, a
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 515

vítima foi um vendedor de bilhetes de loterias, de 45 anos, nordestino, casado.


Sua família – seu pai, sua esposa, três filhos e um enteado - era conhecida e
estabelecida no bairro. Já em Jaguaré, a vítima foi um ajudante geral, de 18
anos, pardo, nortista, tido como “viciado, arruaceiro e perigoso” pela vizinhança.
Em Osasco, outro jovem, desta vez um rapaz de 27 anos, branco, solteiro, pintor
de paredes, nascido em São Paulo. Em todos os casos, as vítimas eram
moradoras do bairro e possuíam família na região em que foram assassinadas.

Nos três processos, o perfil das testemunhas é semelhante:


preponderância de homens, jovens, nordestinos, trabalhadores pouco
especializados. Este perfil descreve, em certa medida, o dos moradores do bairro
– em geral são arrolados os proprietários do estabelecimento em que se deu o
desentendimento que culminou no homicídio, pessoas que presenciaram os
acontecimentos e pessoas relacionadas com os protagonistas. Ressalta o fato de
que em Guarulhos só são chamadas pessoas relacionadas com a vítima, fazendo
supor que as investigações privilegiaram a hipótese (totalmente refutada) de que
esta fosse uma pessoa “suspeita”, ocultando-se a carreira de homicida do
agressor.

Este viés da investigação policial é explicado pelo conluio entre o agressor


e a polícia, que ficou patente já desde o momento da sua prisão. Como se viu,
após matar o vendedor, o justiceiro saiu tranqüilamente da padaria e dirigiu-se
para sua residência. Ali recebeu, momentos depois, uma ordem de prisão, mas
convenceu o policial encarregado de fazê-lo que ele iria sozinho para a
delegacia, mais tarde. E de fato o fez mas, de lá, “fugiu”, só retornando quando já
era impossível registrar o flagrante delito.

Este conluio entre os justiceiros e a polícia é ressaltado por vários autores.


Os três casos estudados por Heloísa Fernandes eram de ex-policiais militares.
Hélio Bicudo considera que os justiceiros vieram, nos anos 80, substituir os
“esquadrões da morte”, criados pela Polícia Civil e assimilados pela Polícia Militar
de São Paulo, durante a ditadura militar. “São agora os `justiceiros’, na sua
grande maioria policiais aposentados ou nos seus períodos de folga, ou pessoas
ligadas à polícia, que se juntam a comerciantes e líderes das pequenas
comunidades e, dentro delas, aplicam aquilo que consideram justiça” (BICUDO,
1989: 8). O justiceiro de Guarulhos era certamente ligado à polícia: com o título
de “inspetor de bairro”, trabalhava como informante e garantiu assim a
cumplicidade das autoridades policiais em relação a seus atos criminosos.

Guaracy Mingardi enfatiza o lado profissional do matador, que


possivelmente é o mais adequado em relação aos agressores em Jaguaré e
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 516

Osasco. Segundo ele, os justiceiros são “matadores de aluguel que atuam na


periferia paulista” matando “para o traficante como matariam para qualquer
pessoa. São profissionais, que na antiga gíria policial eram chamados de
`empreiteiros de Deus’, sempre mandando mais uma alma para ajudar na obra
do Senhor” (MINGARDI, 1998: 146).

De todo modo, ressalta o fato de, apesar de nos três casos aqui
analisados, os agressores não terem sido condenados pela justiça, acabaram
tendo suas carreiras encurtadas por mortes prematuras, eles próprios vítimas de
outros “empreiteiros do Senhor”, atestando a constituição de uma justiça
inteiramente paralela em relação ao Poder Judiciário, muitas vezes com respaldo
da própria população como a comunidade do Jaguaré deixou claro.

3. Grupos de extermínio, de vigilantismo e esquadrões da morte

Com características bastante específicas, há entre os processos quatro


casos de grupos de extermínio, alguns mais próximos do vigilantismo e outros de
esquadrões da morte. Ocorreram em Guarulhos e Itapecerica da Serra em 1984,
no Embu em 1985 e no Capão Redondo em 1988.

Em Guarulhos, um grupo formado por comerciantes, seus empregados e


outros amigos do bairro constituía-se como um grupo de extermínio, voltado para
executar os “marginais” que perturbavam o comércio da região e as testemunhas
de seus crimes. O núcleo central do grupo era formado por três irmãos de
sobrenome Chagas, sendo um deles proprietário de um mercado cujos
empregados também integravam o grupo, e por isso o grupo ficou conhecido
como “Irmãos Chagas”. Numa noite, reuniram-se em um bar, e com o automóvel
do dono do estabelecimento, saíram em busca da vítima daquela noite um
encanador, com vários antecedentes criminais que, alguns dias antes
provavelmente havia matado um vizinho e estava sendo procurado pela polícia
por um assalto, no qual fora ferido. Mataram-no e, num procedimento típico dos
esquadrões da morte, deceparam partes do corpo e as expuseram, conservadas
em formol, no mercado do Chagas. Provavelmente o grupo contava com a
anuência da polícia que iniciou as investigações como sendo de linchamento.
Depois, com a pressão da imprensa e da promotoria, seis homens foram
indiciados, mas três deles fugiram; dois foram pronunciados, mas recorreram; e o
dono do bar, que havia deposto como testemunha de acusação, foi assassinado
ainda no decorrer do processo.

Em Itapecerica da Serra, o caso é mais típico de vigilantismo. Os


moradores do bairro eram constantemente subjugados e humilhados por
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 517

criminosos da região. Solicitaram, várias vezes, a intervenção policial e foram


incentivados a resolver o problema “por conta própria”. Organizou-se então um
grupo liderado pelo dono de um empório da região, seus empregados, um
sobrinho e um amigo deste - ambos menores de idade, para fazer o
patrulhamento do bairro. Um dia, após um assalto violento à casa de um
eletricista, o grupo decidiu ir atrás de suspeitos. Em seu caminho, encontraram-
se com dois jovens de má reputação na região – um deles era enteado de um
dos líderes do grupo de patrulhamento, que o havia expulsado de casa dois anos
antes – e os assassinaram. O dono do empório, que já havia sido indiciado por
homicídio de um assaltante, foi preso, mas como ele estava sendo ameaçado na
prisão (como é comum acontecer com justiceiros), acabou recebendo a liberdade
provisória. Três anos depois foi preso novamente por tentar matar uma
investigadora de polícia e por suspeitar-se que ele estivesse envolvido com
tráfico de armas e jogo do bicho. A comunidade manifestou-se várias vezes por
sua libertação e ele foi absolvido. O empregado do empório foi assassinado no
ano seguinte, no próprio estabelecimento. E os dois menores envolvidos no crime
desapareceram. A participação do padrasto do rapaz assassinado nunca foi
comprovada e ele acabou não sendo indiciado.

No Embu, o homicídio foi motivado pelo fato de um morador do bairro ter


sua casa assaltada pela terceira vez. Chamou então dois cunhados e partiram
em busca de dois suspeitos, rapazes com antecedentes criminais, mal falados na
região. Atiraram contra as vítimas, mas uma delas sobreviveu. Os indiciados
foram julgados apenas pelas lesões corporais provocadas neste sobrevivente,
seis anos depois dos fatos, quando então o crime já havia prescrito.

No Capão Redondo, um grupo de extermínio dominava a região,


ameaçando, intimidando e assassinando. Numa determinada época, passaram a
ameaçar uma moça que se recusara a namorar com um deles. A moça chegou a
mudar de bairro, mas um dia voltou, foi encontrada, perseguida e morta, quando
ainda tinha um dos filhos nos braços. Também um rapaz do bairro, surdo-mudo,
viu a cena e descreveu tudo para a polícia. Alguns dias depois, também ele foi
morto. Os acusados foram presos, confessaram os crimes, mas depois alegaram
que haviam sido torturados. No entanto, eles haviam contado seus feitos no
programa “Gil Gomes” da televisão. Dois acusados foram condenados a 19 anos
de prisão, mas um deles fugiu e foi assassinado no ano seguinte.

Os quatro casos oferecem um panorama claro dos elementos ligados aos


grupos de extermínio em São Paulo: a morfologia do grupo sendo nucleada pelos
comerciantes da região, seus empregados e familiares; um cenário marcado por
altas taxas de criminalidade violenta; a regularidade das execuções praticadas; a
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 518

dubiedade das relações com a comunidade – apoio e intimidação, ambos


garantidos pela visibilidade das ações, praticadas em lugares públicos e à luz do
dia ou, quando praticadas à noite, seguidas pela exposição das partes
dilaceradas dos corpos e pelo relato dos casos nos programas sensacionalistas
da TV; o envolvimento do grupo com o crime organizado, como tráfico de armas
e jogo do bicho; o conluio e/ou o incentivo dado pelas autoridades policiais; o
assassinato de vários membros dos próprios grupos.

O cenário ampliado de carência e ausência de direitos é um denominador


comum, apesar da distância geográfica entre as quatro regiões. O Jardim Nova
Cumbica, em Guarulhos, a leste de São Paulo, concentrava, no início dos anos
80, os piores indicadores sociais do município, assim como toda região de
Cumbica e adjacências. Ali, predominavam a pobreza, o desemprego, as favelas
e altas taxas de criminalidade violenta. Do outro lado da Região Metropolitana, o
Jardim Jacira, em Itapecerica da Serra, a oeste da capital, era habitado por uma
população jovem, com grande número de imigrantes, precário acesso à infra-
estrutura urbana, sobretudo nas áreas de saúde e educação, e altas taxas de
criminalidade violenta, sendo o bairro desprovido de delegacia. Ainda na Grande
São Paulo, o Embu é um município que passou por um acentuado crescimento
populacional, sem que houvesse um desenvolvimento da infra-estrutura urbana
compatível: assim, grande parte dos moradores são imigrantes, muito jovens,
sem acesso à educação e convivendo com uma violência rotineira. Finalmente, o
Capão Redondo, na região de Campo Limpo (zona Sul de São Paulo) também
apresenta uma população pobre, jovem e é um dos bairro em que o problema da
violência é o mais grave da cidade.

A este cenário de pobreza, soma-se o da intimidação, do convívio


cotidiano com ameaças e agressões que geram duas atitudes a um só tempo
contraditórias e complementares: o medo e o apoio aos grupos de extermínio.
Nesta construção, a mídia exerce papel fundamental, ao divulgar casos
“escandalosos” e associá-los a campanhas por “penas mais rigorosas, tratamento
carcerário desumano, diminuição da idade de responsabilidade criminal e, por
último, com a legalização da pena de morte, esta, na prática já existente em
limites amplos” (BICUDO, 1989: 8). Segundo Bicudo, os grupos de extermínio e
os justiceiros vieram substituir o esquadrões da morte dos anos 70, que
realizavam este tipo de justiça, com o apoio das classes populares.

Também são muito semelhantes os perfis dos agressores nos quatro


casos estudados. Temos ao todo 15 homens, de 17 a 52 anos, sendo os mais
velhos os líderes dos grupos – os comerciantes nos casos de Guarulhos e
Itapecerica e o encarregado de obras do Embu. A maioria era de imigrantes (dez
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 519

nordestinos e três mineiros), solteiros (nove deles), brancos (oito). Informa-se que
seis tinham antecedentes criminais e que seis tinham primário completo e dois,
primeiro grau completo. Excetuando-se os dois comerciantes, todos os demais
exerciam trabalhos sem especialização, com destaque para os balconistas,
empregados dos negócios dos líderes. Além das relações de trabalho, os
agressores apresentavam ainda ligações familiares. Destaca-se o fato de que
três deles foram assassinados, ainda durante o transcorrer dos autos.

Com exceção do caso de Capão Redondo, as vítimas também


apresentavam perfis semelhantes: homens, jovens, trabalhadores braçais, com
antecedentes criminais. Já em Capão, a primeira vítima foi uma moça, de 22
anos, branca, viúva, mãe de dois filhos. Testemunha de seu assassinato, um
rapaz também acabou sendo morto, depois de dar seu depoimento à polícia.
Possivelmente é esta distinção das vítimas de Capão em relação às demais que
explica o fato de este ter sido o único caso em que houve condenação. A não
condenação nos outros casos sugere que o Poder Judiciário, muitas vezes,
reproduz a mesma concepção de justiça das comunidades subjugadas, dos
policiais envolvidos com os esquadrões da morte e dos próprios grupos de
extermínio.

4. Extermínio de crianças e adolescentes

O homicídio sêxtuplo ocorrido em São de Bernardo do Campo em 1987


não é um caso isolado de assassinato de adolescentes por indivíduos
desequilibrados. O episódio insere-se em uma série de eventos do mesmo tipo,
configurando uma verdadeira ação de extermínio de crianças e adolescentes em
situação de risco.

Myriam Mesquita contabilizou 622 crianças e adolescentes vítimas de


homicídio, apenas no ano de 1991 no município de São Paulo. Destas, ao menos
88 foram vítimas de ação de extermínio. A situação de extermínio é configurada,
segundo a pesquisadora, quando dados da documentação oficial indicam que a
vítima estava totalmente rendida por ocasião da morte. “Constatou-se que o
extermínio consiste em um ato que, além de configurar homicídio, possui
características de execução sumária. Na sua prática o autor outorga a si próprio o
exercício privado de `justiça’. Há ainda fortes indícios de que o extermínio não se
limita apenas ao ato mas, também, à possibilidade de não ser sucedido por
desdobramentos legais que levam à punição.” (MESQUITA, 1997: 27).

Exatamente esta foi a cena do crime em São Bernardo do Campo. Os


agressores, valendo-se de dois revólveres e um punhal, agrediram a tiros e a
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 520

facadas os seis adolescentes. A ação foi premeditada e cuidadosamente


planejada. Em primeiro lugar, o vigilante da Associação Comunitária contatou seu
cunhado (ex-vigilante da mesma Associação) e dois amigos que estavam
desempregados; depois, arranjaram as armas (um dos revólveres era da
Associação) e treinaram tiro a alvo. Na noite combinada, dirigiram-se ao local, o
vigilante permaneceu em uma das salas da Associação, enquanto os outros
dirigiam-se ao banheiro, onde estavam os garotos. De surpresa, quando era
impossível a defesa, o ex-vigilante e um dos colegas atiraram e, em seguida, o
último agressor, utilizando-se de um punhal, passou a golpeá-los até estar certo
de que os meninos haviam morrido. Após, desenharam na parede do banheiro
uma cruz, com o sangue das vítimas, configurando uma prática semelhante à
empregada pelos esquadrões da morte. Por fim, fugiram e esconderam as armas
utilizadas.

A execução foi o desfecho de um histórico marcado por conflitos entre os


adolescentes que freqüentavam a Associação Comunitária e seus vigilantes. Os
conflitos ora associavam-se a denúncias feitas pelos vigilantes contra os
adolescentes para a polícia – por consumirem drogas ou praticarem roubos e
furtos, ora decorriam do fato da desobediência destes meninos, que insistiam em
freqüentar a Associação durante a noite, algo proibido. Em conseqüência,
ameaças mútuas davam o tom do relacionamento entre os protagonistas. Um
destes vigilantes chegou a queixar-se à direção da Associação, que deu-lhe
autonomia para solucionar o problema. O vigilante entendeu então que deveria
matar os desafetos, planejou e executou a ação. Mesmo que esta não tenha sido
a intenção da direção da Associação, certamente o papel educativo que se
poderia esperar de uma instituição deste tipo não era o fundamento do
estabelecimento. Nos autos, os educadores e o relações públicas que depõem
como testemunhas deixam claro que consideravam aqueles meninos como de
“alta periculosidade” e que estavam cientes dos conflitos entre eles e os
vigilantes.

As vítimas foram seis meninos, de 12 a 17 anos de idade. Três deles


nascidos no próprio município, filhos de paulistas e os demais eram originários do
Nordeste do país. Todos tinham várias passagens pelo Juizado de Menores, por
“cheirarem cola de sapateiro” e praticarem pequenos furtos e roubos. Contra um
dos meninos, havia a acusação de um homicídio, mas nada foi comprovado. Com
exceção do irmão do rapaz preso que articulou a tentativa de linchamento (cujos
pai e irmã, residentes em outras cidades de São Paulo, foram depor e deram
informações inconsistentes sobre o local de moradia do menino) todos os outros
tinham residência e ao menos três deles moravam com familiares. Estes
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 521

familiares, em geral, exerciam profissões com algum grau de especialização:


lubrificador, carpinteiro, árbitro de futebol, comerciante, balconista. Os próprios
meninos assassinados estavam passando por algum tipo de aprendizado (um
estudante e cinco auxiliares de marcenaria).

Este perfil coincide com o das vítimas dos casos analisados por Mesquita:
adolescentes, do sexo masculino, com profissão ou ocupação definidas (a autora
considera que as vítimas tinham uma profissão quando as atividades exercidas
exigiam um aprendizado anterior, já as ocupações se referem às atividades
desenvolvidas em fase de aprendizado, como os auxiliares de marcenaria ou o
estudante do caso em questão).

Os agressores foram quatro homens, de 18 a 33 anos de idade. Três eram


casados e com filhos, o mais novo era solteiro. Os líderes da ação foram os dois
cunhados, vigilante e ex-vigilante da Associação, este último com uma larga folha
de antecedentes criminais. Os outros dois eram trabalhadores braçais,
desempregados à época dos fatos.

Mas se os agressores contavam com a possibilidade de não haver


punição, como nas ações descritas por Mesquita, enganaram-se fortemente. Este
engano porém não é fruto de uma imaginação otimista. Aqueles meninos não
pareciam ser capazes de suscitar o sentimento de solidariedade e sua morte não
deveria engendrar indignação: afinal, eram meninos pobres, supostamente
“viciados” e “delinqüentes”, que incomodavam a ponto de a própria direção da
Associação Comunitária manifestar o intento de deles “se livrar”.

No entanto, o alto grau de violência empregado na execução mobilizou a


sociedade civil. A mídia deu ampla cobertura ao caso, várias ONGs
manifestaram-se: a Pastoral do Menor, o Movimento Nacional de Meninos e
Meninas de Rua, o Movimento Nacional de Defesa de Direitos Humanos, a
Comissão de Justiça e Paz, o Centro Santo Dias de Defesa de Direitos Humanos.

Os acusados foram então presos e na prisão tiveram que passar por uma
segunda punição: a vingança do irmão de um dos adolescentes, que estava
preso e conseguiu mobilizar os demais encarcerados do mesmo pavilhão. A
tentativa de linchamento contra os acusados da execução evidencia que, para o
código moral dos presos, a violência contra crianças e adolescentes é
inadmissível, apesar de não ser sempre assim para as comunidades e para a
sociedade como um todo, tal como atesta a aquiescência da direção da
Associação para com o vigilante. Myriam Mesquita também se defrontou com
esta dubiedade, registrando o alto grau de tolerância das comunidades – até
mesmo as mais organizadas – com a violência contra crianças, em contraste com
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 522

os castigos altamente cruéis impostos pelos presos contra os acusados desta


mesma violência (MESQUITA, 1997: 18-19).

5. As vítimas sacrificiais

A banalidade das execuções sumárias – crianças mortas por se


desentenderem com adultos, moça assassinada por se recusar a namorar
alguém, homens mortos em decorrência de brigas quando estavam embriagados,
jovens executados por apresentarem as características dos “suspeitos” - e a
aquiescência de amplos setores da sociedade – a polícia, a justiça, a mídia e,
muitas vezes, a própria comunidade – sugerem que as vítimas destes casos são
vítimas sacrificiais, no sentido que lhe é dado por René Girard: “A sociedade
procura desviar para uma vítima relativamente indiferente, uma vítima
'sacrificiável’, uma violência que talvez golpeasse seus próprios membros, que
ela pretende proteger a qualquer custo” (GIRARD, 1990: 16).

Vítimas indiferentes, uma cisão entre os que integram e os que estão


excluídos da sociedade – nada parece mais adequado para entender a forma
como se dão as execuções sumárias e o modo como a sociedade brasileira a
elas reage, neste fim de milênio. As vítimas dos processos aqui analisados
enquadram-se perfeitamente no espectro provável das sacrifícios humanos. “Se
considerarmos, em um panorama geral do sacrifício humano, o leque formado
pelas vítimas, iremos nos deparar com uma lista extremamente heterogênea: os
prisioneiros de guerra, os escravos, as crianças e os adolescentes solteiros227, os
indivíduos defeituosos, ou ainda a escória da sociedade” (GIRARD, 1990: 25).

Os homens embriagados mortos em brigas de bar, os jovens suspeitos


assassinados pelos grupos de extermínio e os adolescentes executados em São
Bernardo concentravam as características ideais para se tornarem vítimas
sacrificiais: vínculos muito frágeis ou nulos com a sociedade, com direitos e
deveres praticamente inexistentes, incapazes de tecer com a comunidade os
mesmos laços que ligam seus membros entre si, dado seu estatuto de marginais.
Esta ausência de vínculos implica à ausência de represálias em caso de
violências sofridas por essas pessoas.

227
Sobre a transformação das crianças em situação de risco em vítimas sacrificiais no Brasil, ver
Coelho, 1996.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 523

Todos os seres sacrificiáveis (...) distinguem-se dos não sacrificiáveis por


uma qualidade essencial, e isso sem exceção, em qualquer sociedade sacrificial.
Entre a comunidade e as vítimas rituais um certo tipo de relação social encontra-se
ausente: aquela que faz com que seja impossível recorrer à violência contra um
indivíduo sem expor-se a represálias de outros indivíduos, seus próximos, que
considerariam seu dever vingá-lo (GIRARD, 1990: 26).

Nos processos estudados, esta era certamente a expectativa dos


agressores: que não houvesse nenhuma represália. Esta expectativa tinha por
base, por um lado, as próprias características das vítimas acima descritas e, por
outro, um histórico de ações do mesmo tipo não vingadas – afinal, os agressores
apresentavam carreiras de matadores e, em muitos casos, eram incentivados
diretamente pela polícia e pela comunidade e, indiretamente, pela mídia.

Em alguns casos esta expectativa foi cumprida, em outros não. As


instituições de controle social propriamente ditas só chegaram a condenar e fazer
cumprir a condenação (o que exclui os casos em que houve fugas) para 7 dos 25
agressores indiciados nestes casos – proporção que já é bastante baixa, mesmo
sem considerarmos que mais pessoas participaram destas execuções, mas não
chegaram sequer a ser indiciadas. Ressalte-se ainda que em nenhum dos casos
em que não houve a condenação, essa foi justificada pela ausência de provas
que comprovassem a autoria dos crimes. A autoria sempre foi reconhecida,
porém, em várias ocasiões, foi justificada pelas características das vítimas,
chegando-se mesmo a classificar, na sentença do Embu, o homicídio como “um
ato de relevância social”. A relevância social pode aqui ser entendida como a
capacidade de fazer cessar a violência contra os membros da comunidade – esta
é a função primeira do sacrifício. “Há um denominador comum da eficácia
sacrificial, tão mais visível e preponderante quanto mais viva for a instituição.
Este denominador é a violência intestina: as desavenças, as rivalidades, os
ciúmes, as disputas entre os próximos, que o sacrifício pretende inicialmente
eliminar” (GIRARD, 1990: 21).

Mas se as instituições de controle social endossaram, muitas vezes, as


execuções analisadas, isso não significa que nenhuma represália foi de fato
imposta aos agressores. Cinco deles foram assassinados nos anos
subseqüentes aos fatos, não em decorrência direta dos casos aqui estudados,
mas de outros semelhantes. Outros seis – os agressores de São Bernardo do
Campo – quase foram linchados por seus próprios colegas de prisão, com a clara
conivência das autoridades policiais. Esses fatos sugerem que, em determinada
altura, tendo progredido em suas carreiras de matadores, possivelmente
ampliando o seu leque de vítimas, que passou a englobar testemunhas de seus
crimes e desafetos seus ou de quem lhes pagasse (pessoas plenamente
integradas à sociedade, como as vítimas de Capão Redondo), tornaram-se eles
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 524

próprios vítimas sacrificiais, pessoas que precisavam ser mortas para fazer
cessar a violência e cujas mortes não incorreriam em represálias para seus
autores.

O sacrifício dos agentes da violência ou a sua condenação exercem o


papel de uma represália única equivalente a uma vingança – privada no primeiro
caso e pública no segundo - que limita efetivamente a ameaça de uma vingança
em cadeia, que poderia, no limite, destruir a própria sociedade. Assim tanto um
quanto a outra instauram uma certa concepção de justiça:

As decisões da autoridade judiciária afirmam-se sempre como a última


palavra da vingança. (...) Não há, no sistema penal, nenhum princípio de justiça
realmente diferente do princípio de vingança. O mesmo princípio funciona nos dois
casos: a reciprocidade violenta, a retribuição. Ou esse princípio é justo e a justiça já
está presente na vingança, ou então não existe justiça em lugar nenhum (GIRARD,
1990: 29).

O mecanismo da vingança fica claro nos casos de Osasco e Embu. No


primeiro, consta que o justiceiro, algum tempo antes, havia assassinado um
amigo de um pintor de paredes e, naquele dia, esse pintor teria tentado vingar
aquele crime, mas acabou sendo ele próprio assassinado; o justiceiro foi preso e
morreu, também assassinado, na cadeia, quase três anos depois, quando ainda
estava em andamento o processo. No segundo, o motivo da execução teria sido
o fato de um encarregado de obras ter tido sua casa furtada por três vezes e
estar seguro de que os autores daqueles furtos eram dois rapazes mal falados na
região, contra os quais atirou, contando com a ajuda de seus dois cunhados; não
houve condenação neste caso.

É porque a sentença judiciária e o sacrifício têm o mesmo papel de fazer


cessar a violência destruidora, que onde não há um deve haver o outro. A
intenção de coibir qualquer ação violenta no futuro fica explícita em Guarulhos e
São Bernardo do Campo, onde os agressores ritualizam suas execuções: os
dedos e orelhas conservados em formol e expostos no mercado do executor e a
cruz desenhada com o próprio sangue dos meninos nas paredes do banheiro da
Associação Comunitária deixam claro o significado daquelas mortes: indivíduos
indiferentes sacrificados para por um fim à violência cotidiana que domina os
bairros periféricos da metrópole.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 525

CAPÍTULO 11
VIOLÊNCIA POLICIAL EM SÃO PAULO

Helena Singer

1. Casos selecionados
1.1.Violência da polícia militar em Campo Limpo

Data: 16/03/82

Resumo
Na noite do dia 16/03/82, um metalúrgico foi morto durante tiroteio com
policiais, em sua residência no Parque Regina. O fato iniciou-se em razão dos
homicídio de Jesus e Sílvia, ocorridos no bairro, alguns dias antes. Solicitou-se à
Delegacia de Homicídios e após diligências efetuadas no local, a Equipe de
Homicídios dirigiu-se à residência do operário, em companhia de dois irmãos de
Jesus. Um investigador foi até a porta da casa do metalúrgico e chamou-o para
esclarecimentos, pois seria suspeito de haver praticado o crime. O operário não
atendeu ao chamamento e recusou-se a sair de casa. Foram solicitadas outras
unidades policiais, juntando mais de 100 policiais. Travou-se um violento tiroteio,
culminando com a morte do metalúrgico, de um PM e ferimentos de outros três
PMs. Não ficou comprovado se o tiro que matou o policial saiu da arma do
operário.

Dois PMs foram indiciados pela morte do metalúrgico. O inquérito policial


civil transcorreu até o dia 22 de dezembro do mesmo ano. Quase um ano depois,
16/12/83, foi oferecida a denúncia, que foi recusada pela Justiça Militar em
16/02/88. A Procuradoria Geral da Justiça intercedeu primeiro em 09/03/88
solicitando o acolhimento da denúncia e depois em 02/05/88, com o mesmo fim.
Em 03/08/88 houve um acórdão dando provimento ao agravo. Em 02/09/94, os
réus foram absolvidos.

Local

O caso aconteceu no Parque Regina, que integra o distrito de Campo


Limpo, na Região Administrativa de Campo Limpo, também formada pelos
distritos de Capão Redondo, Jardim Ângela, Jardim São Luiz e Vila Andrade, ao
Sul de São Paulo. O distrito de Campo Limpo tem uma população de 160.285
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 526

habitantes, com uma densidade demográfica de 125 habitantes por hectare228. A


distribuição da renda do distrito dá-se de forma piramidal: 28,5% recebem até 4
salários mínimos, 28% de 4 a 8 SMs, 23,9% de 8 a 15 SMs, 13,5% de 15 a 30
SMs, e 6,1% recebem mais de 30 salários mínimos.

Em relação à infra-estrutura urbana, há uma situação de carência: na área


de educação, a prefeitura calcula um déficit de 76 creches; os centros de
juventude atendem somente a 3,72% da população entre 7 e 14 anos de idade;
há uma carência de 8.278 vagas nas escolas infantis, o que demandaria 10
novas escolas; entretanto, não há carência de escolas de primeiro grau. No setor
de saúde, também não há carência de equipamentos que dão assistência
primária, mas há um déficit de 333 leitos em hospitais.

As taxas de criminalidade violenta têm se mantido altas no Campo Limpo.


Em 1982, ano da execução, aconteceram 10 tentativas de homicídio, 31
homicídios, 535 casos de lesão corporal e 38 casos de estelionato.229
Observando-se os dados ao longo da década de 80, percebemos um aumento
muito acentuado das ocorrências relativas à violência fatal e uma diminuição
significativa nas não fatais, tendência que se mantém no início dos anos 90.
Assim, entre 1981 e 1993, houve um aumento geral de 32% nas ocorrências e de
10% nos inquéritos, mas as taxas de criminalidade violenta tiveram crescimento
muito mais acentuado: os homicídios subiram 281%, as tentativas de homicídio
cresceram 110% e as ocorrências de estelionato subiram 77%, ao mesmo tempo
que decresciam os casos de lesão corporal (em 32%) e de estupro (em 37%).
Esses números indicam uma maior predisposição dos agressores para matar,
praticando atos que não visam simplesmente imobilizar a vítima, mas sim
eliminá-la de fato, fazendo provavelmente maior uso de armas de fogo e atirando
em órgãos vitais como a cabeça e o coração. O aumento dos casos de
estelionato e a diminuição dos estupros indicam, por sua vez, uma possível
mudança do perfil da criminalidade da região, de atos mais isolados para crimes
vinculados a algum tido de organização.

Vítimas

Cinco foram as vítimas do tiroteio, sendo duas fatais. Uma das vítimas
fatais era um metalúrgico empregado há quatro anos na mesma empresa,
branco, de 27 anos, casado, pai de quatro filhos de um a oito anos de idade,

228
Os dados a respeito de Campo Limpo provêm de publicação produzida pela Secretaria
Municipal de Planejamento (SEMPLA): Base de Dados para Planejamento - Cadernos Regionais:
Administração Regional de Campo Limpo (Serviços e Equipamentos Sociais), de março de 1993.
229
Os dados relativos às taxas de criminalidade violenta de Campo Limpo são da Secretaria de
Segurança Pública/ Delegacia Geral de Polícia/ Equipe Técnica de Estatística/ Fundação SEADE.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 527

natural de Alpercata (MG), morando em São Paulo há oito anos, sem


antecedentes criminais. A outra vítima fatal era segundo tenente da PM de 26
anos, solteiro, branco. As demais vítimas também eram PMs: um investigador do
DEIC, branco, 36 anos, desquitado, natural de Santo André; um capitão da
ROTA, branco, casado, natural de São Paulo, 27 anos; residente no bairro da
Luz; um soldado da ROTA, branco, 26 anos, natural de Campo Grande (MS),
residente em Jaçanã.

Indiciados

Dois PMs foram indiciados pelo assassinato do metalúrgico. Um capitão


com 17 anos de serviço militar, casado, branco, de 34 anos, natural de São Paulo
(SP), residente em Guarulhos; foi processado sete vezes entre 1975 e 1983 na
Justiça Militar e três vezes na Justiça Comum, por homicídio, mas nunca foi
condenado; tornou-se deputado estadual. O outro tinha 10 anos de serviço
militar, era solteiro, residente na Luz, natural de São Paulo (SP), com 23 anos,
nunca havia sido condenado.

Testemunhas

Quarenta e seis pessoas foram ouvidas como testemunhas, sendo apenas


três do sexo feminino. A maior parte (31) eram os PMs que participaram da
operação; 6 tinham ocupações braçais sem qualificação (jardineiro, ajudante,
servente, faxineiro, pedreiro); 3 tinham alguma qualificação (motorista, taxista,
montador); uma era dona de casa; um carcereiro; dois delegados; uma religiosa e
para a última, não há informação. A maioria eram casadas (26), 10 eram
solteiras, 3 amasiadas, 3 desquitadas e 4 não informaram o estado civil. Quanto
à cor, há informação para apenas 15 delas: 13 brancas e 2 pardas. Em relação à
naturalidade, a grande maioria era proveniente da própria região Sudeste: 6
mineiros, 2 paranaenses, 23 paulistas, um capixaba; quatro eram do Nordeste
(Sergipe, Bahia e Piauí); uma uruguaia e os demais não informaram. A maioria
(12) residia na região Central de São Paulo (lembrando que no bairro da Luz
localiza-se o quartel-general da Polícia Militar, que os PMs costumam registrar
como sua residência); 9 na própria zona Sul; 5 na zona Leste; 3 na zona Oeste e
os demais não informaram.

Relações hierárquicas entre protagonistas

As relações entre a maior parte dos protagonistas correspondem às


relações no interior da estrutura policial militar. Assim, os líderes da operação
eram os dois réus - um capitão e outro tenente - e duas das vítimas, também
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 528

tenentes. As demais vítimas e 31 testemunhas eram investigadores, soldados e


motoristas de viatura, além de dois delegados encarregados da apuração do
caso. As quinze testemunhas restantes eram familiares e conhecidos do
metalúrgico e de Jesus, todos vizinhos.

Contextos/Cenários

O assassinato do metalúrgico foi o desfecho de uma série de


acontecimentos violentos recorrentes no bairro. Segundo depoimentos,
“marginais” conhecidos de todos, inclusive da polícia, costumavam andar
armados, assaltarem os moradores, com atitudes arrogantes, como entrar em
bares, beber, comer à vontade e sair sem pagar, ameaçando o proprietário.
Provavelmente em vista disso, o metalúrgico adquiriu dois revólveres, logo que
se mudou para São Paulo. Um desses revólveres foi roubado alguns dias antes
do tiroteio, quando apenas a sua esposa e os quatro filhos encontravam-se em
casa. Desconfiado de um vizinho que havia feito proposta para a compra do
revólver, a vítima resolveu intimá-lo durante um baile, no qual muitos estavam
armados. Dias depois este vizinho foi assassinado e seus familiares acusaram o
metalúrgico. A polícia foi até a sua casa, localizada em uma rua de terra, muito
escura. Provavelmente por isto, a vítima não estava certa de que aqueles
homens fossem da polícia e resolveu não abrir a porta e defender-se a bala.

“Física” dos acontecimentos

No dia 8 de março de 1982, cerca de 13:00 horas, dois indivíduos não


identificados, um deles armado de revólver, invadiram a residência do
metalúrgico, onde se encontrava sua esposa e filhos, e roubaram um revólver
calibre 38, um relógio e cerca de dez mil cruzeiros. Os invasores saíram,
deixando uma ameaça, dizendo que não era para comunicar o ocorrido à policia,
senão voltariam. O operário passou a desconfiar que o revólver subtraído
estivesse com o seu conhecido Jesus, pois este, dias antes, insistira em querer
comprar uma arma do mesmo calibre.

No dia 13 daquele mês, sábado, o metalúrgico dirigiu-se a um baile, no


mesmo bairro, onde se encontrou com um indivíduo não identificado, que estava
armado com uma faca a quem apresentou um amigo, um pedreiro. Este pedreiro
estava armado com um tchaco, ou seja, dois pedaços de madeira presos por
uma corrente. Ao ser ouvido como testemunha deste processo, o pedreiro
informou que o metalúrgico também estava armado naquela ocasião. Em
determinado momento, já na madrugada do dia 14, domingo, o desconhecido
aproximou-se de Jesus, que também participava da festa, encostando-lhe a faca
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 529

no pescoço, dizendo qualquer coisa. Este fato foi presenciado pelo operário, que
também se aproximou de Jesus, referendando a ameaça. O pedreiro, segundo
seu próprio depoimento, também se juntou a eles e solicitou ao desconhecido
que tirasse a faca do pescoço de Jesus, o que foi feito. Com o tchaco, o pedreiro
golpeou o cotovelo de Jesus, mandando que se retirasse de perto deles.

Jesus dirigiu-se a sua residência e ainda foi perseguido pelos três. Lá


chegando, Jesus entrou esbaforido em casa, dizendo que estava ferido e que
estava sendo seguido. Já havia dito ao pai e ao irmão que o metalúrgico queria o
revólver roubado, momento em que aquele saía à porta para fechar o portão e foi
cercado pelos três perseguidores. O pai de Jesus alega que o desconhecido lhe
encostou a faca no peito dizendo-lhe que queria o filho. Sem conseguirem pegar
Jesus, foram embora, dizendo qualquer coisa semelhante a “nós vamos, mas
voltamos para pegá-lo”.

No dia seguinte, segunda-feira, ao Distrito Policial foram noticiados dois


crimes de homicídios ocorridos um próximo ao outro, quase no mesmo instante,
no Parque Regina. Um contra Jesus e o outro, contra a jovem Sílvia, ambos de
autoria desconhecida. Iniciaram-se as investigações preliminares, quando os
familiares de Jesus comunicaram àquela Equipe do DEIC, a perseguição havida
no sábado anterior e indicaram aos policiais a residência do operário, próxima
dali.

Já era madrugada de terça-feira, quando três PMs bateram à porta do


metalúrgico, que não os recebeu, alegando que não sairia da casa. Neste
contexto, iniciou-se um tiroteio envolvendo, de um lado, o dono da casa, onde
estava com sua mulher e seus quatro filhos menores, e de outro, os policiais. A
esposa abriu o chuveiro e a água quente produziu uma cortina de defesa contra
os gases atirados pelos policiais e ali permaneceu juntamente com os filhos. Um
tiro atingiu um investigador e acirrou o tiroteio, até que, três horas depois, um
Capitão PM conseguiu atingir a vítima com um tiro na cabeça.

Tempos depois, os autores dos homicídios de Jesus e Sílvia foram


identificados e presos e suas armas foram apreendidas. Uma delas, um punhal,
havia sido emprestado, alguns dias antes, por Jesus a um conhecido. Uma noite,
Jesus resolveu pedir de volta o punhal, alegando que estava sendo ameaçado e
dele precisava para se defender. O conhecido de Jesus, que naquela noite
estava acompanhado de um colega e ambos estavam embriagados, recusou-se
a devolver a arma. Dado o desentendimento, resolveram os dois colegas matar o
desafeto. Um deles segurou Jesus pelo pescoço, enquanto desferia facadas nas
costas. O outro, por seu turno, dava punhaladas. Mesmo com Jesus desfalecido,
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 530

prosseguia este último em sua ação, causando-lhe mais de cinqüenta


perfurações. Os mesmos indivíduos mataram Sílvia tão somente porque ela viu o
assassinato de Jesus.

Observações finais

Segundo o próprio coronel encarregado do IPM, houve algumas falhas


importantes:

1) Não foram apreendidas, no dia dos fatos, as armas dos três PMs
pedidas pelo Promotor de Justiça. A arma da vítima teria sido extraviada durante
a ocorrência policial, em conseqüência da invasão de sua casa por grande
número de policiais civis e militares e pessoas da imprensa, quando qualquer
uma delas poderia ter-se apropriado da mesma; 2) um dos réus afirma que quis
entregar o seu revólver juntamente com os dos de dois tenentes, mas a
autoridade do 37º DP não quis apreendê-los.

Mas ainda outras falhas podem ser apontadas: a não oitiva de nove
pessoas mencionadas nos depoimentos e não arroladas coma testemunhas,
inclusive os dois prováveis assassinos de Jesus e Sílvia; a imprecisão dos laudos
no que se refere à origem das balas que causaram os ferimentos e as mortes nas
vítimas.

É importante também salientar as "falhas" policiais antes e depois da


eclosão do tiroteio: a falta de empenho para apurar o assalto à casa da vítima; a
chegada à sua casa durante a noite, intimando-a a sair; a denúncia de tortura
contra o acusado de autoria daquele assalto, denúncia esta para a qual não há
indícios de apuração.

Nesta direção, não surpreende o desfecho do caso, no qual os réus são


absolvidos. Fica clara, nos discursos da polícia e das notícias de jornal anexadas
ao processo, a oposição entre trabalhador e bandido, como se uma possível
qualificação da vítima como bandido justificasse o homicídio.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 531

1.2 Violência da Polícia Militar no Jardim Marta (Itaim Paulista)

Data: 10/08/82

Resumo
Na madrugada do dia 10/08/82, um tenente, três PMs e demais
componentes de um Tático Móvel, realizaram um cerco envolta da residência de
n.º 78 da Rua Cachonilha, Jardim Marta, Itaim Paulista, e enquanto alguns
policiais arrombaram a porta dos fundos, outros, pela frente, passaram a atirar
para o interior daquela residência, acabando por cravejarem de balas um livreiro,
provocando-lhe a morte. O fato foi decorrente de outro acontecido dois dias
antes, quando um comerciante foi assaltado. Este comerciante avisou PMs,
amigos seus, sobre o acontecido, indicando os suspeitos. Os policiais passaram
então a procurá-los. Assim é que lhes fora indicada a residência de n.º 74, à Rua
Cachonilha, como aquela em que estaria um ajudante geral, suposto colega de
um adolescente, com quem realizava delitos na área. Entretanto, a casa
arrombada não era a de n.º 74, e sim de n.º 78, e não morava ali o tal ajudante
geral, e sim o livreiro. Tão logo executaram a vítima, jogaram-na dentro da
viatura, levando seu corpo para o Pronto Socorro, e voltando, mais tarde, por
volta das 5:00 horas, para recolher gaiolas de passarinhos e outros bens. Mais
tarde deram ao comerciante aqueles bens, alguns pertencentes a ele, outros à
família da vítima.

Até setembro de 1983, há uma controvérsia a respeito da competência


para julgar o caso, se a justiça comum ou a justiça militar, quando um acórdão
decide pela segunda. Finalmente em 09/01/84, é recebida a denúncia. Em
20/06/86, os réus são absolvidos em primeira instância, por legítima defesa e
depois, em 24/02/87, a sentença é mantida.

Local

O crime aconteceu no Jardim Marta, bairro do distrito do Itaim Paulista,


que integra a Administração Regional de São Miguel Paulista, na zona Leste da
cidade de São Paulo. Os outros distritos que compõem a regional são: Ermelino
Matarazzo, Jardim Helena, São Miguel, Vila Curuça e Vila Jacuí.

Com uma população de 141.550 habitantes, o Itaim Paulista constitui o


distrito mais populoso de São Miguel (21,4%).230 A densidade demográfica do

230
Os dados a respeito de São Miguel Paulista provêm de publicação produzida pela Secretaria
Municipal de Planejamento (SEMPLA): Base de Dados para Planejamento - Cadernos Regionais:
Administração Regional de São Miguel Paulista (Serviços e Equipamentos Sociais), de março de
1993.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 532

distrito, no entanto, é relativamente baixa: 125 habitantes por hectare, sendo a


densidade do município de 134 hab./ha. Itaim Paulista é o distrito que apresenta
renda média familiar mais baixa da região, de 6,7 salários mínimos, valor
bastante inferior à média do município (12,8 SM). Isto resulta de grande
concentração de pessoas na faixa de renda baixa: 68,2% dos moradores do
distrito pertencem a famílias que recebem até 8 salários mínimos por mês.
Associados à pobreza, o Itaim Paulista apresenta indicadores que caracterizam
uma situação de carência de infra-estrutura urbana básica.

No tocante à cobertura das redes de água e esgoto, o distrito encontra-se


muito aquém do desejável: a rede de água atende apenas a 72% dos domicílios
e a rede de esgotos, 11%. Em relação ao atendimentos de crianças e
adolescentes, a situação também é deficitária. O Itaim Paulista conta com 9
creches, com 1225 vagas, sendo o distrito com o mais baixo nível de cobertura
da demanda da região, 23%, o que representa um total de 4110 crianças
potencialmente demandatárias e não atendidas. O atendimento aos jovens
através da programação de Centros da Juventude também é muito baixo:
somente 2,1% da demanda são atendidos. Faltam também pré-escolas, sendo
que apenas 21,1% da demanda são atendidos nas sete escolas (somando
públicas e privadas) do distrito. Já para a educação de primeiro grau, a situação é
melhor: 28 escolas no total dão conta de toda a demanda do distrito e ocorre
ainda “sobra de vagas”. Em relação ao setor de cultura e esporte, o Itaim Paulista
conta apenas com uma casa de cultura e cinco campos de futebol. Na área da
saúde, não há carência em relação à assistência primária, sendo que os 6
equipamentos voltados para este fim respondem a toda a demanda. Entretanto,
há uma carência de 566 leitos nos únicos dois hospitais públicos da região.

Neste cenário, os altos índices de mortalidade infantil, embora chocantes,


não constituem surpresa: 43,5 óbitos de menores de um ano por mil nascidos
vivos, quando a média da Capital é da ordem de 31. Um outro indicador
significativo, que auxilia na caracterização do grau de carência do distrito, é a
taxa de emprego: a do Itaim Paulista é de 0,16 emprego/hab., valor muito inferior
à de São Paulo, que é de 0,45. Esta baixa taxa de emprego em um local de
população de baixa renda e pouca infra-estrutura qualifica o Itaim Paulista como
região “dormitório”, ou seja habitada por pessoas que, na sua grande maioria,
têm que se deslocar diariamente para outras regiões da cidade, por não
encontrarem trabalho em seu bairro.

Em relação às taxas de criminalidade, elas têm sido sempre elevadas no


Itaim Paulista. Em 1982, ano do caso em questão, foram registradas 4884
ocorrências, entre as quais contam-se: 10 tentativas de homicídio, 43 homicídios,
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 533

872 denúncias de lesão corporal, 55 estupros.231 Naquele ano foram abertos 958
Inquéritos Policiais, o que corresponde a 19,61% dos BOs. Observando esses
números ao longo da década de 80, percebemos uma tendência ao aumento da
violência fatal simultânea a um decréscimo da violência não fatal, o que sinaliza
uma maior determinação dos agressores para matar suas vítimas, conformando
um cenário mais propício a atos de execução sumária. No início da década de
90, as taxas voltam a cair, mas as tendências permanecem. Deste modo, entre
1981 e 1993: o total de BOs caiu 8%; o de IPs caiu 13%; já os homicídios
subiram 53%; as tentativas de homicídio subiram 58%; mas as lesões corporais
caíram 67%; os estupros caíram 38%.

Vítima

Rapaz branco, de 23 anos de idade, solteiro, nascido na própria cidade de


São Paulo, supervisor de vendas na Editora Estilo, havia oito meses. Tinha
antecedentes criminais, por porte de maconha, em 1980. Morava com os pais no
centro de São Paulo, mas passava algumas noites em outra casa da família, no
Itaim Paulista.

Indiciados

Cinco policiais militares foram indiciados no caso, sendo que um era


tenente. Três deles eram brancos e sobre os demais não há a informação da cor.
Suas idades variavam de 26 a 31 anos. Três eram solteiros e os outros, casados.
Quatro eram paulistas e o quinto, pernambucano. Três tinham primeiro grau
incompleto, um tinha primeiro grau completo e o último, segundo grau completo.
Um residia na Vila Ré e quatro na Vila Esperança, Penha, na própria Zona Leste.

Testemunhas

Doze foram as testemunhas deste caso. Dez eram do sexo masculino.


Quatro eram brancas, três pardas e sobre as demais não há informação da cor.
Suas idades distribuíam-se da seguinte forma: duas de 18 anos, três entre 23 e
26, quatro entre 30 e 33, e três entre 40 e 53 anos de idade. Três eram naturais
da região Nordeste do país (Bahia, Ceará e Pernambuco), oito eram paulistas e a
última não informou o local de nascimento. Sete eram casadas e as demais
solteiras. Quanto à ocupação, cinco realizavam trabalhos braçais sem
especialização (auxiliar de enfermagem, passadeira, bordador, ajudante geral,
carpinteiro), mas uma destas estava desempregada; outra era meio-oficial
ajustador, também desempregado; duas eram do setor de comércio (um
comerciante e um gerente de vendas) e os outros quatro não informaram. Oito

231
Os dados referentes às taxas de criminalidade de Itaim Paulista são do 50º Distrito Policial.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 534

das testemunhas residiam na região do crime, o Jardim Marta e a Vila Itaim; uma
morava na Vila Esperança, Penha, também na zona Leste; uma residia no Centro
da cidade, uma na Vila Diva e a última em Santo André.

Relações hierárquicas entre protagonistas

As relações hierárquicas entre os protagonistas se davam somente entre


os próprios réus e duas das testemunhas, já que um deles era tenente e os
demais soldados. Entre as testemunhas, uma era o comerciante assalto, cuja
denúncia motivou a perseguição, e as demais eram familiares e conhecidos da
vítima.

Contextos/Cenários

O crime aconteceu na casa da vítima, residência simples, de três cômodos


e sem forro. Estava localizada em uma rua mal iluminada de uma região do bairro
onde as ocorrências violentas eram comuns, a ponto de ser conhecida como
"boca quente" pelos moradores. O rapaz foi procurado em sua casa justamente
em decorrência de uma denúncia de um comerciante da região que teve seu bar
e sua casa arrombados, furtados e roubados por várias vezes.

“Física” dos acontecimentos

O caso começou a se desenrolar algum tempo antes do desfecho fatal. O


proprietário de um bar no bairro teve seu estabelecimento arrombado, roubado e
furtado por quatro vezes, incluindo um assalto a mão armada, praticado por três
jovens do bairro. Também sua casa foi arrombada por duas vezes, a última dois
dias antes do assassinato, quando lhe foram furtados nove passarinhos, um
gravador, alguns relógios, roupas e material escolar. Convencido de que seriam
os mesmos os autores dos roubos, o comerciante delatou-os a seus amigos
policiais militares, que então foram à casa de um deles e o executaram. Paira a
dúvida se a vítima era de fato a pessoa procurada pela polícia ou se eles
confundiram o número da casa, posto que a vítima tinha o mesmo apelido e
morava na casa vizinha de um infrator conhecido na região. A denúncia foi
encaminhada pela Comissão de Justiça e Paz. Com o auxílio do Bispo de São
Miguel, a mãe da vítima conseguiu o apoio do Centro Santo Dias de Direitos
Humanos da Arquidiocese de São Paulo, que forneceu-lhe advogado.

O Sindicato dos Empregados de Empresas Editoriais também protestou


contra os acontecimentos.

No processo são feitas referências a notícias de jornal e programas de


rádio e televisão a respeito do caso de até dois anos depois dos acontecimentos.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 535

Observações finais

Algumas considerações em relação à atuação da polícia ao Inquérito


Policial precisam ser feitas. O Boletim de Ocorrência sobre o assalto à casa do
comerciante só foi feito no dia da execução, com dois dias de atraso, portanto.
Os exames de arma de fogo e balística foram prejudicados porque dois policiais
não entregaram suas armas e havia poucas balas para serem examinadas. A
polícia e os peritos que examinaram o local não averiguaram se a vítima poderia
estar armada uma vez que foi morta na cama e uma telha da casa estava
quebrada, indicando que o policial entrou por ali, de surpresa; o laudo do local do
crime não trata da cama e do colchão onde estava o corpo da vítima, sendo que
o colchão só foi ser examinado oito meses depois, a pedido do promotor. O laudo
do exame necroscópico não explicita se os tiros que foram orientados para cima
poderiam caracterizar uma situação em que a vítima estivesse deitada.
Depoimentos de vizinhos levam a crer que os próprios policiais atiraram de
dentro da casa para simular um tiroteio.

Dezoito pessoas mencionadas nos depoimentos, não são encontradas ou


chamadas a depor, nem na fase policial nem na judicial, entre as quais inclui-se
um dos suspeitos pelo assalto que motivou o crime.

1.3. Violência da Polícia Militar no Taboão da Serra

Data: 03/07/83

Resumo
Em Taboão da Serra, no dia 03 de julho de 1983, por volta das 9h00, dois
soldados da PM dispararam contra três jovens, matando o mais novo deles, de
apenas 10 anos. Os PMs estavam respondendo a uma chamada de rádio para
apreender suspeitos que teriam depenado um veículo abandonado num lixão. Ao
chegarem lá, encontraram os rapazes observando o auto e logo mandaram que
colocassem as mãos na cabeça e, em seguida, começaram a atirar o que causou
a fuga das vítimas. O garoto de 10 anos foi atingido na nuca por uma bala
enquanto corria, caindo gravemente ferido. Os PMs passaram por ele mas
continuaram correndo atrás dos outros que só conseguiram escapar porque se
esconderam no matagal. Após, os jovens foram totalmente dominados. Aos
soldados juntaram-se outros três PMs, sendo um sargento, que os auxiliaram a
colocar os rapazes numa viatura com o desígnio de forçá-los a admitir serem os
responsáveis diretos pela morte do menino e ainda admitir a existência de um
revólver com o qual teriam resistido a tiros à ordem de prisão dos policiais. Esta
viatura foi conduzida a um local ermo no município de Embu, onde os rapazes
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 536

foram torturados. Mais tarde, um Capitão e o sargento que participou do


assassinato procuraram um dos sobreviventes para que este contasse uma
versão dos fatos segundo a qual ele teria presenciado a troca de tiros entre as
vítimas e os policias.

Em 13/09/83, o sargento e os outros quatro policiais que participaram do


crime receberam nota de culpa da corporação e punição de 15 a 20 dias de
detenção. Em 24/10/83, foram denunciados estes cinco policiais e também o
capitão que teria tentado pressionar o sobrevivente. No dia 10/05/84, um dos
soldados foi expulso da corporação. Foram expedidos vários mandados de
intimação para os indiciados mas as audiências foram constantemente
canceladas devido ao não comparecimento do soldado demitido da corporação
que se mudou para o interior de São Paulo, não sendo mais possível localizá-lo.
O outro soldado foi julgado em 1992 e condenado, a sentença foi publicada, a
defesa apelou em março de 1993. Desde 1994 o MP está com o processo para
apresentar as Contra Razões de apelação.

Local
O caso aconteceu em Taboão da Serra, que integra a Região
Metropolitana da Grande São Paulo, fazendo limite com as regiões Sul e
Sudoeste da capital e com os municípios de Embu, Cotia e Osasco.

Em 1983, ano da execução, a população residente em Taboão da Serra


era de 115.215 habitantes, com grande concentração de pessoas jovens.232 Em
1980, a distribuição por faixa etária dava-se da seguinte forma: 38,8% de até 14
anos; 30,8% entre 15 e 29; 23% de 30 a 49; 7,13% com mais de 50 anos de
idade. É também grande a população de não naturais do município: em 1983,
35,45% dos residentes em Taboão não eram ali nascidos. O poder aquisitivo da
população é em geral baixo, o que pode ser medido pela proporção de
automóveis por habitantes: em 1983, havia um veículo cadastrado para cada
15,1 habitantes, média sete vezes menor do que a atual para a cidade de São
Paulo, por exemplo.

Naquele ano ocorreram 54 óbitos fetais e 136 mortes de crianças com


menos de um ano, o que correspondia respectivamente a 1,32% e 3,31% dos
nascidos vivos. O número total de leitos, em 1983, era 40 no único hospital do
município, o que significa a alta média de um leito para 2.880,4 habitantes. Os
números relativos à educação não eram melhores: 21.586 crianças e
adolescentes estavam matriculados no primeiro grau, mas no segundo grau este

232
Os dados referentes a Taboão da Serra foram conseguidos junto às secretarias municipais.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 537

número caia para 1.552.233 A taxa de analfabetos correspondia a 15,33% da


população.

Também as taxas de criminalidade de Taboão da Serra mantiveram-se


altas ao longo da década de 80 e início da década de 90, com tendência sempre
crescente. Em 1983, foram registradas 3.360 ocorrências, entre as quais 25
referiam-se a tentativas de homicídio, 433 a casos de lesão corporal, 57 a
estupros e 29 a homicídios.234 Do total das ocorrências, 499 desenvolveram
inquéritos policiais, o que corresponde a 14,85%. Entre 1981 e 1989, as
ocorrências cresceram 64% e os IPs 105%, atestando uma melhora no empenho
policial. No mesmo período, os homicídios cresceram 35% e as tentativas de
homicídio, 35%.

Vítimas

Quatro foram as vítimas deste caso, sendo uma vítima fatal, de apenas 10
anos de idade. As demais tinham 13, 17 e 28 anos. Todos eram do sexo
masculino e residiam na própria Taboão da Serra. Os dois mais velhos eram
respectivamente ajudante de pintor e catador de papéis. Dois eram brancos, um
pardo e o último, negro. Dois eram paulistas, um paranaense e o outro, mineiro.

Indiciados

Seis policiais militares foram responsabilizados pelo caso: quatro soldados,


um capitão e um sargento, que trabalhava na área desde 1972. Cinco deles
tinham entre 21 e 27 anos e o mais velho, 37 anos de idade. Nenhum tinha
antecedentes criminais. Três eram pardos, dois brancos e para o último não há a
informação da cor. Todos eram paulistas. Dois residiam em Taboão, um em
Embu e os demais na zona sul de São Paulo (Parelheiros e Campo Limpo).

Testemunhas

Quarenta e uma pessoas foram ouvidas como testemunhas, sendo a


grande maioria (33) formada por homens. Há informação sobre a cor para 17
testemunhas: 12 brancas, 3 pardas e 2 negras. As idades variavam da seguinte
forma: seis eram adolescentes entre 14 e 19 anos, 11 estavam na casa dos vinte,
15 na casa dos trinta, sete entre 43 e 62 anos e a última não informou a idade.
Quanto à naturalidade, 16 eram paulistas, 10 nordestinos (provenientes de
Pernambuco, Bahia, Rio Grande do Norte, Ceará e Alagoas), 4 sulistas (do

233
Apesar de alta, esta diferença tem que ser matizada pelo fato de os números referentes ao
primeiro grau incluírem as escolas particulares e os do segundo grau restringirem-se à rede
oficial.
234
Os dados de criminalidade em Taboão da Serra são do 1º Distrito Policial.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 538

Paraná e Santa Catarina), um chinês e os demais não informaram. A maior parte


(24) eram casados, 15 solteiros, um desquitado e o último não declarou o estado
civil. Sobre as ocupações, os dados são os seguintes: 6 eram trabalhadores
braçais sem especialização (servente, ajudante geral, frentista, feirante); 9
exerciam trabalhos braçais com alguma especialização (mecânico, prensista,
industriário, lubrificador, oficial de manutenção, vigilante, motorista, costureira); 8
não estavam vinculados ao mercado de trabalho (estudante, dona de casa,
aposentado, religiosa, voluntária em creche); 10 eram policiais militares (soldado,
aspirante a oficial, motorista policial, sargento); 3 eram profissionais
especializados (advogado, contador, perito criminal); 4 estavam ligados ao setor
de vendas (vendedor, gerente, corretor de imóveis). A maioria das testemunhas
(20) residia na própria Taboão da Serra, 7 residiam na cidade vizinha de Embu, 1
na também vizinha Osasco e as 12 restantes em São Paulo.

Relações hierárquicas entre protagonistas

Como nos demais casos de violência policial, as relações entre a maior


parte dos protagonistas correspondem à hierarquia no interior da estrutura da
corporação. Assim, entre os agressores contam-se quatro soldados, um sargento
e um capitão, e entre as testemunhas, um aspirante a oficial, um 1º sargento, um
2º sargento e sete soldados. Além destas dez, outras sete testemunhas
relacionavam-se com os agressores; 16 eram familiares ou conhecidos das
vítimas; duas foram as vítimas do delito que desencadeou a execução; e 5
presenciaram os acontecimentos.

Contextos/Cenários
A execução do menino aconteceu em um trecho de uma avenida, próximo
a uma rua de terra. Dali as outras três vítimas foram levadas para o Jardim São
Marcos, no município vizinho de Embu. A região toda apresentava alto grau de
violência, com elevado índice de assaltos, furtos e também crimes cometidos
pela própria polícia. Uma carta aberta à população, da Comissão de Defesa dos
Direitos Humanos da Região de Itapecerica da Serra, intitulada “Grito de
Violência”, afirmava que vivia-se ali “uma onda de violência tanto de bandidos
como de policiais”. A vítima do roubo que motivou a execução disse que fato
semelhante já havia ocorrido com um Volkswagen, no mesmo local, próximo à
sua residência. Do mesmo modo, outras testemunhas relataram assaltos sofridos
no bairro.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 539

“Física” dos acontecimentos

No dia 03/07/83, um ajudante de pintor de 17 anos, estava em sua casa


quando foi chamado por dois amigos seus, um de 10 e outro de 13 anos de
idade, para ver um carro abandonado, que estava atrás de um barraco próximo à
avenida Tenente José Maria da Cunha. Ao chegarem ao local, encontraram um
conhecido, catador de latas, próximo ao carro. O carro, um Ford Corcel II, estava
depenado, isto é, sem os pneus, os bancos, amassado, e com os vidros, os faróis
e os espelhos quebrados. Os adolescentes estavam olhando um painel de
plástico que já se encontrava no chão quando, depois de dez minutos
aproximadamente no local, chegaram os policias gritando “Mão na cabeça”,
“Parados”, atirando duas vezes para o alto, o que provocou medo nos três
garotos e os levou a correr, sendo que as balas passaram de raspão por dois dos
meninos e pelo catador de papéis, mas atingiram o mais novo. Ao correr, o
ajudante de pintor ultrapassou seus amigos, escorregou num barranco onde
permaneceu escondido até que os policiais o obrigaram a subir com as mãos na
cabeça, algemaram-no e logo começaram a interrogá-lo sobre o paradeiro de
uma suposta arma com a qual diziam que ele havia atirado no amigo. O outro
garoto entregou-se sem resistência. Logo depois de se entregarem à polícia, os
dois adolescentes sobreviventes foram colocados no “chiqueirinho” da viatura por
três policiais militares. Antes de deterem o catador de papéis, levaram os dois
garotos até o jardim São Judas e um policial disse para eles “eu não vou por a
mão em ninguém se aparecer quem matou o garoto” e dirigiram-se então à casa
do catador, mas encontraram-no no caminho e o detiveram. Os policiais levaram
os três a uma rua estreita de terra no Jardim São Marcos, na cidade vizinha de
Embu, e lá passaram a agredi-los com chutes, socos, pauladas, colocaram terra
com formigas dentro de suas calças, e depois mandaram-nos tirar a roupa para
“limpar” as formigas do corpo. Além desta viatura, outra com mais quatro policiais
seguiu a primeira. Depois disso, as vítimas foram colocadas novamente no
“chiqueirinho” onde apanharam mais para dizer onde haviam colocado uma
suposta arma. Rodaram por mais algum tempo com a viatura e retornaram ao
local do carro, procurando por um outro adolescente, amigo das vítimas, que teria
vendido o estepe do carro abandonado ao tio de uma das vítimas, e por uma
senhora que teria testemunhado o furto do estepe. Depois, quando se dirigiam à
delegacia de Itapecerica da Serra, levando estas cinco pessoas, pararam num
posto onde se encontraram com mais duas viaturas pequenas, e um policial
disse: “Vamos chegar na delegacia de mão vazia”, ao que o companheiro bateu
no painel da viatura e respondeu: “Vai ter que aparecer de qualquer jeito”. Então
o policial se aproximou do ajudante de pintor e perguntou: “Quem foi que matou o
garoto?”, e ele respondeu que não sabia e que não estava armado. Foi quando
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 540

um policial falou para o outro: “Está doce como mel. A parada já está resolvida.
Você vai lá e coloca o negócio lá embaixo no morro”. Logo após, foram à
delegacia de Itapecerica. Ao chegarem, os policiais disseram que o menino
estava passando mal, mas tinha sido socorrido. Depois os policiais foram à sua
casa e perguntaram por ele para sua mãe como se não soubessem de nada.

A população local revoltou-se contra o assassinato e realizou vários


protestos. No dia do enterro, houve protesto das comunidades eclesiais de base
e dos professores e funcionários de sua escola. No dia da missa de sétimo dia,
uma passeata saiu da Igreja rumo à Câmara Municipal. Outra missa reuniu cerca
de 200 pessoas. O Centro Santo Dias de Defesa dos Direitos Humanos
acompanhou o caso e a Comissão de Justiça da Câmara Municipal realizou suas
próprias investigações.

Observações finais

Durante o inquérito, a polícia despendeu boa parte do tempo procurando


saber onde estava o pneu que foi furtado do carro abandonado. Já as
investigações sobre a execução ficaram relegadas, sendo que três pessoas
citadas nos depoimentos não foram chamadas a depor.

Uma das testemunhas disse ter visto toda cena, inclusive quando o
menino foi atingido pelas costas mas ainda assim, ele disse não ter certeza de
quem partiu os disparos, se da polícia ou de civis. Segundo declarou outra
testemunha, aquela primeira era “ladrão conhecido” no bairro de Vila Iazi, Taboão
da Serra, e é amigo dos policiais da DP de Taboão, que lhe dão cobertura, sendo
que sempre andava junto com os policiais e até dirigia viaturas. Certa vez foi
preso por furto de carro, ficou detido no DP por apenas oito ou doze dias, tendo
sido solto em virtude da ordem ou do pedido do então prefeito de Taboão da
Serra. Não é possível verificar se a história é verdadeira porque não há ficha de
antecedentes criminais daquela testemunha no processo.

Há uma controvérsia a respeito do número das viaturas, uma vez que os


policiais nunca dizem claramente qual viatura estava em determinado lugar.
Parece existir uma intenção de tumultuar as investigações, por parte dos PMs,
pois eles envolvem muitas viaturas e muitos itinerários quando prestam suas
declarações.

Ocorre um conflito de laudos necroscópicos, sendo que o primeiro


apontava que o menino teria morrido com dois projéteis atingidos na parte frontal
de sua cabeça, ao passo que o segundo afirmava que ele fora vítima de um
projétil na nuca, o que indiciaria que ele estava de costas. A promotoria solicitou
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 541

“peça inquisitória para posterior apreciação judicial sobre a responsabilidade dos


Médicos Legistas, por terem praticado crime de falsa perícia, previsto no artigo
342 do Código Penal”. O Instituto Médico Legal propôs-se a enviar o projétil, no
dia 25/06/83, pedindo desculpas pelo erro, pois o projétil que fora retirado do
crânio da vítima havia sido guardado pelo auxiliar de necropsia que não sabia
qual era o procedimento correto. O projétil foi enviado para a Polícia Científica.
Logo em seguida o IML manda um carta à promotoria da justiça militar, em
08/08/83, esclarecendo que era somente um projétil, inteiro, e que este
atravessou a cabeça da vítima pela nuca.

1.4.Violência da Polícia Militar em São Mateus

Data: 11/8/83

Resumo
No dia 11 de agosto de 1983, por volta das 23:00 horas, dois soldados da
PM efetuaram a detenção de quatro indivíduos na boate “Bar Típico Boa
Esperança”, à Rua Antônio Teles, nº20, Jardim Vera Cruz, São Mateus. Na
ocasião, revistaram os rapazes, não constando estarem os mesmos armados.
Depois, os conduziram numa perua Kombi azul até a estrada 3º Divisão, onde
efetuaram disparos de revólveres da Polícia Militar contra os quatro detidos,
mirando sempre na cabeça. Três das vítimas faleceram no próprio lugar, o quarto
indivíduo, ferido, permaneceu na U.T.I do PSM do Tatuapé, onde veio a falecer
uma semana depois.

Testemunhas presenciaram a detenção das quatro vítimas, na boate. Uma


das funcionárias da boate afirmou ter sido ameaçada pelas vítimas, por tê-las
denunciado à polícia por uso de drogas. Uma fotógrafa, que conhecera um dos
rapazes na época que entregava ovos na padaria em que ele trabalhava, disse
que ouvira uma versão segundo a qual os quatro indivíduos estariam envolvidos
no roubo a uma mulher. O pai de uma das vítimas e a irmã de outra disseram que
elas haviam se envolvido em assaltos.

No relatório da Polícia Militar, de 14/08/83, pede-se a demissão dos


indiciados das fileiras da Corporação, o que é realizado. No dia 18/08/83, efetua-
se a prisão preventiva dos indiciados. Eles são pronunciados no dia 15/08/84. Em
08/05/84, o Conselho Permanente de justiça da 1ª Auditoria, por unanimidade,
condena os réus à pena de 48 anos de reclusão. Mas no dia 15/11/86, a Primeira
Turma do Supremo Tribunal Federal defere Habeas Corpus solicitado para os
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 542

réus, anulando o julgamento, tendo em vista a “incompetência do MM. Juiz


Auditor”.

Local

As vítimas foram executadas na estrada da Terceira Divisão (estrada de


Sapopemba), localizada no distrito de São Mateus, zona Leste da cidade de São
Paulo.

A população estimada de São Mateus é de 156.885 habitantes235, sendo


predominantemente formada por jovens: 22,1% são crianças de até 9 anos de
idade; 20% crianças e adolescentes de 10 a 19 anos; 19,7% jovens na casa dos
vinte anos; 16,3% estão na faixa dos trinta; 16,7% têm entre 40 e 59 anos; 5,2%
têm idade superior a 60 anos. 236 As condições de vida de São Mateus são
bastante precárias configurando um quadro de carência aguda. O Mapa de Risco
da Violência conferiu a nota 2,44 - em uma escala que vai de 0 a 10 - para o nível
sócio-econômico da região, com base nos seguintes critérios: porcentagem dos
chefes de família sem rendimento; chefes de família com renda acima de 20
salários mínimos; chefes de família com mais de 15 anos de estudo; número de
pessoas por domicílio, número de pessoas por banheiro; acesso à rede de
esgoto; acesso à coleta de lixo; potencial de renda; potencial educacional.

Em relação às taxas de criminalidade, os índices têm se mantido altos em


São Mateus, desde a década passada. Em 1983, ano da execução, foram
registradas 5.817 ocorrências no distrito, que produziram 732 inquéritos policiais
(12,58%). Entre estas ocorrências, contavam-se 19 tentativas de homicídio e 52
homicídios. De 1981 a 1993, apesar de os boletins de ocorrência terem
decrescido em 18%, houve um aumento de 29% nas tentativas de homicídio e de
67% nos homicídios, indicando um acirramento da criminalidade violenta.237

Vítimas

Quatro indivíduos do sexo masculino foram vitimados neste caso. O


primeiro, com 18 anos, era pardo e estava desempregado havia oito meses,
quando parou de estudar e trabalhar, segundo um irmão de criação. O segundo
também era pardo, tinha 18 anos e uma passagem pela FEBEM, onde foi
internado por quatro meses, por seu pai. A terceira vítima, com 16 anos, também

235
Os dados atuais de São Mateus integram a publicação Mapa de Risco da Violência - Cidade
de São Paulo. São Paulo: CEDEC/Ministério da Justiça, 1996. Os dados são estimados para
1995.
236
Os dados a respeito da divisão etária em São Mateus foram conseguidos junto à prefeitura de
São Paulo e têm como base o ano de 1991.
237
Os dados de criminalidade em São Mateus são do distrito policial.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 543

havia sido internada na FEBEM, por prática de assalto, que supostamente teria
cometido junto com o outro rapaz. Finalmente, o último, que tinha 18 anos, era
branco e trabalhava em uma padaria.

Indiciados

Dois soldados da polícia militar foram indiciados no caso. O primeiro tinha


26 anos, era natural de Araçatuba, casado. O outro tinha 27 anos e era casado,
sendo que sua mulher estava grávida.

Testemunhas

Quinze pessoas testemunharam neste caso. A maior parte (11) era do


sexo masculino. Suas idades distribuíam-se da seguinte forma: sete tinham entre
18 e 28 anos; três entre 32 e 38; três entre 40 e 50; duas não informaram. Sobre
a cor, há informação para apenas sete delas: 3 pardas e 4 brancas. Em relação
ao estado civil, 8 eram casadas, 6 solteiras e uma desquitada. A maior parte (9)
era proveniente do próprio estado de São Paulo, uma era de Minas Gerais e as
demais não informaram a naturalidade. Finalmente, no que se refere à ocupação,
há 4 trabalhadores com pouca especialização (servente, funileiro, balconista); 4
semi-especializados (policial militar, instrumentista, fotógrafo, gráfico); 4
comerciantes; e três pessoas fora do mercado de trabalho - duas donas-de-casa
e um ajudante geral desempregado.

Relações hierárquicas entre os protagonistas

As relações entre os protagonistas não eram propriamente hierárquicas.


Os dois indiciados eram policiais militares e as vítimas eram colegas, supostos
criminosos. Pelo menos uma das vítimas conhecia um dos indiciados porque este
havia feito sua internação na FEBEM, quatro meses antes do assassinato. Dentre
as testemunhas, 11 eram familiares ou conhecidos das vítimas, uma era
conhecida dos indiciados e 3 trabalhavam no bar onde ocorreu a detenção dos
rapazes.

Contextos/Cenários

As vítimas foram detidas no “Bar Típico Esperança”, onde também


funciona a “Boate Recanto” no Jardim Vera Cruz, São Mateus.

Deste local, as vítimas foram levadas para a estrada da Terceira Divisão,


próxima à avenida Sapopemba, também em São Mateus. Esta via era dotada de
iluminação pública e servida de linha regular de ônibus. Ali as vítimas foram
executadas.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 544

“Física” dos acontecimentos

No dia 11 de agosto de 1983, durante a madrugada, na Av. Sapopemba,


proximidades do Km. 33, São Mateus, dois soldados, utilizando-se de armas da
corporação, efetuaram disparos contra quatro indivíduos, causando-lhes a morte.

Segundo foi apurado, os soldados estavam de serviço, escalados no


policiamento a pé, na Ronda Escolar, mas usavam o veículo marca Volkswagen,
tipo Kombi, quando adentraram o “Bar Típico Boa Esperança”, onde também se
localiza a “Boate Recanto dos Amigos”, situado no Jardim Vera Cruz, São
Mateus. Lá, os PMs interpelaram as vítimas e, após algemá-las, as colocaram no
interior da referida “Kombi”, rumando, então, para o local dos fatos. Quando ali
chegaram resolveram matar aqueles indivíduos. Para isto, os soldados sacaram
das armas que portavam, fizeram com que as vítimas descessem do veículo,
primeiramente dois, depois os outros dois e, impossibilitando o menor esboço de
defesa às mesmas, um dos soldados encostou o cano do revólver na cabeça da
primeira vítima e atirou, o mesmo fazendo o outro soldado com outra das vítimas.
Em seguida, repetiram o ato contra as duas vítimas restantes.

Os denunciados abandonaram os corpos no local, voltaram à Companhia,


nada relatando a seus superiores. A única vítima sobrevivente foi socorrida por
populares e encaminhada para um hospital, onde faleceu no dia 18 de agosto de
1983. Depois do crime, um dos soldados fugiu e só foi se entregar por intermédio
do jornalista Afanásio Jazadi, conhecido de um primo seu, que gravou um
depoimento com ele para seu programa de rádio.

Segundo depoimentos, um grupo de matadores estava agindo na região,


sendo que os corpos eram enterrados em um bairro próximo, o Iguatemi. Os
quatro indivíduos, rapazes com histórico de envolvimento com crimes, teriam sido
levados para denunciar quem eram os matadores, supostamente seus
conhecidos.

A irmã da vítima de 18 anos contou que, aos quinze anos, ele conheceu e
se apaixonou por uma prostituta e, "por ela não largar a prostituição, passou a
beber, fumar maconha e a furtar." Foi quando seu pai decidiu encaminhá-lo à
FEBEM, "para receber orientação de especialistas", ali permanecendo durante
quatro meses, até dia 08 de agosto de 1983. Na ocasião do internamento, o
jovem foi conduzido por um dos indiciados. Ainda segundo a irmã, na noite em
que ele foi morto, teria ido à boate para tentar encontrar a amada. Outra das
vítimas também havia sido internada na FEBEM, por prática de assalto, que
supostamente teria cometido junto com o outro rapaz.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 545

Observações finais

A conclusão do IPM afirma que “os soldados saíram da área de


patrulhamento, dirigindo-se à Boate Recanto dos Amigos para efetuarem a
detenção das vítimas”. Nota-se que nesta versão, já há propósito na ação, que
posteriormente será negada pela defesa, que pautará sua argumentação sobre a
versão de que as vítimas ameaçaram os policiais.

Testemunhas afirmam que os policiais, quando entraram no bar, estavam


sem quépi. Os advogados de defesa tentarão, por vários expedientes, desmentir
essa afirmação, pois assim eles poderiam ser penalizados pelo Código Militar. Da
mesma forma, testemunhas afirmam que eles tomaram bebidas alcóolicas, mas,
na fase judiciária, tenta-se desmentir esse fato. Ambas assertivas têm
desdobramentos no Código Militar.

Quanto às investigações policiais, elas parecem ter sido bastante falhas.


Há poucas informações sobre as vítimas, o que compromete o desdobramento
do processo, pois ficam no nível de conjecturas as hipóteses para a motivação
para o crime. Contribui para esta precariedade de informações, o fato de 22
pessoas terem sido mencionadas nos depoimentos, mas não serem ouvidas
como testemunhas. Finalmente, os indiciados alegaram terem sido torturados
para confessar o crime, mas suas denúncias não foram devidamente
investigadas.

1.5.Violência da Polícia Militar na Liberdade

Data: 22/04/85

Resumo
No dia 22 de abril de 1985, por volta de 22:30 h, à Rua Vergueiro, n.º 683,
bairro da Liberdade, um sargento da PM atirou contra um vendedor ambulante,
causando-lhe a sua morte. Segundo ficou apurado, o vendedor encontrava-se em
uma lanchonete, ocasião em que ali adentrou o sargento, ordenando-lhe que
levantasse as mãos. Porém, sem que o vendedor pudesse esboçar qualquer
reação, o sargento, com a arma que portava, efetuou um disparo.

O sargento foi preso, mas no dia 08/05/85 foi solto, por determinação do
juiz. No dia 28/02/90, o indiciado foi pronunciado. Em 04/06/92, o Conselho de
Sentença o condenou a quatro anos de reclusão em regime domiciliar, por não
haver prisão albergue no estado, pela prática de homicídio privilegiado.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 546

Local

O crime aconteceu à altura do número 683 da avenida Vergueiro, região


Centro-sul de São Paulo. A Vergueiro é uma das principais avenidas do bairro da
Liberdade, que faz parte da administração regional da Sé. A AR da Sé abrange
uma área de 32,6 Km2 que se estende desde a margem esquerda do rio Tietê,
ao norte, até o divisor de águas com a bacia do rio Pinheiros, ao sul. A topografia
é caracterizada pelas colinas da vertente norte deste espigão central, que baixam
em direção às várzeas do Tietê e seu afluente Tamanduateí. A administração
regional é composta pelos seguintes distritos: Sé, República, Bela Vista,
Consolação, Santa Cecília, Bom Retiro, Pari, Brás, Cambuci e Liberdade, onde
localiza-se o bairro de mesmo nome, em que ocorreu o caso.

O bairro da Liberdade foi formado a partir da expansão do centro em


direção ao sul seguindo o eixo das atuais avenidas Liberdade e Vergueiro, que
levam em direção a Santo Amaro. O bairro da Liberdade formou-se então em
volta do Caminho Trelho. A ocupação deu-se entre os anos 1880-1890, como
resultado do processo de loteamento de antigas chácaras, que ocupavam as
colinas formadas pelos córregos Anhangabaú, Saracura e Bexiga.

A administração regional da Sé abrange uma população estimada de


700.000 habitantes, equivalente a 6,1% do total de São Paulo. Nela, o distrito da
Liberdade é o maior, abrigando um total de 105.496 pessoas, o que corresponde
a 15,2% da AR e eqüivale a uma densidade demográfica de 285 habitantes por
hectare.

Ressalta a diversidade de funções urbanas e de padrão de ocupação entre


os dez distritos que compõem a região administrativa da Sé. Nela bairros como o
da Liberdade, são sobretudo residenciais, com padrão social médio e baixo.
Entre as famílias do distrito, 15,9% recebem até 4 SMs, 23% de 4 a 8 SMs,
23,9% de 8 a 15 SMs, 21,6% de 15 a 30, e 15,6% mais de 30 SMs. A renda
familiar média é de 14,4 SMs, um pouco acima da média do município que é de
12,8 SMs.

A região é ainda um importante pólo gerador de empregos, especialmente


aqueles vinculados ao comércio e ao setor de serviços. As taxas de emprego
(relação entre postos de trabalho e população) situam-se em níveis superiores ao
do município: 0,45 (SP); 1,60 (AR Sé); 0,65 (Liberdade).

A administração regional da Sé reúne populações de origens diversas,


sendo alguns bairros habitados predominantemente por pessoas de uma
determinada nacionalidade, como italianos, sírios, libaneses, armênios, judeus e
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 547

coreanos. O distrito da Liberdade é marcadamente habitado por japoneses e


seus descendentes, que ali mantêm vivas muitas das tradições nipônicas.

Em termos gerais, a Liberdade tem uma infra-estrutura urbana


consolidada. O distrito é bem servido de linhas de ônibus, trens de subúrbio e
metrô. Quanto às redes de água e esgoto, de iluminação pública e a
pavimentação de vias, a totalidade da área está coberta. A oferta de serviços
para a educação de primeiro grau também é suficiente (são 13 escolas de
primeiro grau), mas há carência na área de educação infantil: há 6 creches
públicas e um déficit de outras 6; há 10 escolas de educação infantil e seriam
necessária mais 4 para cobrir a demanda. E também há carência na área de
saúde, havendo um déficit de 5 equipamentos de atendimento primário, apesar
de o atendimento em prontos-socorros e hospitais ser satisfatório, com uma
média de 14,63 leitos por 1000 habitantes, superior à média do município, de
12,97 leitos por 1000 habitantes.

Quanto à mortalidade infantil, ocorrem 5,4 óbitos de menores de 1 ano


sobre o total de óbitos do distrito censitário, taxa bastante abaixo da do município
(8).

Em relação às taxas de criminalidade, tais são os números para a


Liberdade em 1985, ano do caso: 10.350 ocorrências e 989 inquéritos policiais
(9,5% dos BOs), sendo 25 referentes a tentativas de homicídio (14 dolosas de
autoria desconhecida), 32 homicídios (18 dolosos de autoria desconhecida), 585
lesões corporais, 9 estupros, 1066 furtos de veículos e 121 casos de estelionato.
Observando-se a evolução desses números ao longo da década, percebemos
que eles estavam em ritmo crescente, mas depois voltaram a cair. Desse modo,
entre 1980 e 1993, houve um crescimento de 25% nos BOs e de 51% nos IPs, as
tentativas de homicídio cresceram 0,8% e os homicídios, 46%; já as lesões
corporais decresceram 51%, os estupros caíram em 75% e os casos de
estelionato, 200%.

Vítima

Vendedor ambulante, de 32 anos idade, branco, amasiado, natural de São


José do Egito (PE), residente na Aclimação, com antecedentes criminais por
lesões corporais.

Indiciado

Terceiro sargento da Polícia Militar, 24 anos, branco, solteiro, natural de


Ibitinga (SP), residente no bairro da Liberdade, estudante de direito à época do
crime, depois bacharelou-se.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 548

Testemunhas

Das 10 testemunhas deste caso, nove eram homens. Há informação sobre


a idade de metade delas, todas entre 25 e 29 anos. Sobre a cor, a informação é
ainda mais precária: dois brancos e um classificado como “amarelo”. A metade
era de solteiros, 4 eram casados e o último, desquitado. Em relação à ocupação,
4 eram comerciantes, dois capitães da PM, um contador, um balconista, um
advogado e a mulher era funcionária pública estadual e colega de faculdade do
indiciado. Quanto à naturalidade, 3 eram paulistas, 3 nordestinos (de
Pernambuco e Bahia), um paranaense e 3 não informaram. Finalmente, no que
se refere ao local de residência, 4 moravam nos bairros da região Sul contíguos à
Liberdade, um morava na própria Liberdade, dois na zona Norte da cidade, dois
na zona Leste e o último mudou-se para endereço desconhecido.

Relações hierárquicas entre protagonistas

A vítima e o indiciado não se conheciam anteriormente. A primeira era


vendedor ambulante e o segundo um sargento da PM, que estava em
perseguição a um suspeito, quando atirou. Duas das testemunhas eram
conhecidas da vítima, cinco sete eram conhecidas do acusado, sendo que dois
eram capitães da PM, superiores ao acusado. As três testemunhas restantes
presenciaram os acontecimentos, sendo dois proprietários e um freqüentador do
bar onde ocorreu o assassinato.

Contextos/cenários

Os fatos desenrolaram-se ao longo da avenida Vergueiro, no período


noturno. Ali teria ocorrido o suposto assalto mencionado pelo indiciado como
sendo o motivo que o levou a entrar na estação de metrô e nos bares da avenida,
em busca dos dois suspeitos. Foi num desses bares, que ele encontrou o
vendedor ambulante, cujo ponto se localizava em frente ao Pronto Socorro
Vergueiro, mas que naquele momento ali se refugiava, uma vez que o sargento já
lhe apontara a arma em uma primeira abordagem. Os dois supostos assaltantes,
por sua vez, fugiram em direção à Avenida 23 de Maio.

“Física” dos acontecimentos

Por volta das 22:30 h do dia 22/04/85, um sargento da PM descia a


avenida Vergueiro, sentido bairro-centro, quando observou um casal correndo em
direção a ele. Tal casal relatou-lhe que, instantes antes, dois indivíduos haviam
tentado assaltá-los. O sargento, identificando-se como PM, disse-lhes que
ficassem aguardando no local, pois iria atrás dos suspeitos. Não anotara nomes e
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 549

endereço do casal. Adiante avistou dois indivíduos descendo a rua e um


vendedor ambulante. Imaginara que este último tivesse qualquer informação,
mas o mesmo em nada auxiliara, permanecendo apenas fitando-o “com um olhar
estranho”. Identificou-se então como sendo PM, e apontou o revólver, instante
em que o vendedor saiu correndo. Quanto aos dois indivíduos que o sargento
pretendia deter, fugiram. Enquanto isso, o vendedor desceu em direção ao 11º
BPM/M, rumo também tomado pelo sargento, que passando pela Estação
Vergueiro do Metrô. Adentrou a Estação, saindo logo em seguida. Passou por
alguns bares, sendo que num deles obteve resposta que ali estava um rapaz de
cavanhaque que havia chegado alguns instantes antes. Segundo o casal que
sofrera a tentativa de assalto, um dos assaltantes usava cavanhaque. O sargento
resolveu entrar naquele estabelecimento, quando viu o vendedor ambulante e
reparou em seu cavanhaque. Ordenou-lhe que levantasse as mãos, efetuando a
seguir um disparo. O vendedor não teve tempo hábil para esboçar qualquer
reação, sendo mortalmente atingindo pelo disparo. Somente após estes fatos, o
agressor identificou-se para os presentes como sendo sargento da PM.

O Centro Santo Dias de Defesa dos Direitos Humanos ofereceu apoio à


família da vítima.

Observações finais

A atuação da polícia foi rápida e o IP foi concluído dentro do prazo, sem


dilação.

No âmbito do judiciário, houve uma certa morosidade do andamento do


processo, em decorrência dos seguintes fatores: houve dois recursos, um
interposto pela defesa e outro pela promotoria; houve grandes intervalos entre as
audiências e demora nas intimações para a defesa, o que atrasava a
apresentação dos recursos e documentos obrigatórios.. A morosidade possibilitou
que uma das testemunhas oculares, ouvida no auto de prisão em flagrante, não
mais fosse encontrada. Além dessa, outras cinco pessoas mencionadas nos
autos não chegaram a ser ouvidas, incluindo o casal supostamente assaltado que
nunca chegou a ser identificado

Mas o ponto de inflexão determinante para o desfecho do caso foi a


atuação do Ministério Público. O mesmo promotor que apresentou um libelo-
acusatório pedindo a condenação do sargento por homicídio qualificado, mais
tarde, defendeu no Tribunal do júri que ele fosse condenado apenas por
homicídio simples, pois teria agido “sob forte emoção depois de injusta
provocação da vítima”, algo negado por todas as testemunhas ouvidas.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 550

1.6 Violência da Polícia Civil em Campos do Jordão

Data: 05/06/82

Resumo
Trata-se de um caso de denúncia de torturas que teriam sido praticadas na
delegacia de Campos do Jordão por dois investigadores e um carcereiro. A
vítima, um pintor de paredes, procurou pelo presidente da Comunidade Eclesial
de Base, logo após ser libertada. Havia sido detido ilegalmente por 10 dias,
quando foi submetido a uma sessão de torturas. Foi submetido a um exame de
corpo de delito na Santa Casa local, por um médico, mas o resultado final
apontou ausência de quaisquer lesões recentes. O caso foi noticiado à imprensa
e à OAB local. O pintor explicou que foi detido num sábado, 05/06/82, e liberado
no dia seguinte pelo delegado adjunto, porém, foi interpelado por um dos
investigadores, que alegou que ele não poderia sair por ordem do delegado
titular. No dia seguinte, quarta-feira, a vítima teria sido levada, de madrugada,
para a sala de visitas onde foi torturada pelos investigadores e pelo carcereiro. As
testemunhas indicadas, que eram as duas pessoas que se encontravam na
mesma cela da vítima no dia dos fatos, não foram localizadas. Para uma das
testemunhas, um estrangeiro, preso por se encontrar ilegalmente no país, foi
pedido pela OAB um Habeas Corpus preventivo para que este pudesse
testemunhar antes de ser obrigado a deixar o país, porém o pedido foi negado e
a testemunha não mais foi localizada.

Paralelamente ao IP, foi instaurada uma sindicância administrativa para


apurar a responsabilidade dos investigadores envolvidos que resultou no pedido
de arquivamento pelo Delegado Geral de Polícia, que considerou infundadas as
acusações sobre a irregularidade da conduta dos investigadores”. A promotoria
também pediu o arquivamento do caso em 10/09/85.

Local

O caso ocorreu na Delegacia de Polícia da cidade de Campos do Jordão,


no interior do estado de São Paulo. Atualmente a população de Campos do
Jordão é de 36.877 habitantes, mas em 1980 era de 25.964, o que significa um
crescimento de 42% na população local.238

238
Os dados populacionais sobre o município de Campos do Jordão integram o Anuário
Estatístico do estado de São Paulo, realizado pela Fundação SEADE. Os dados mais recentes
referem-se ao ano de 1991 e os mais próximos do caso são de 1980.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 551

Famosa por sua beleza, Campos de Jordão é um dos principais pólos


turísticos de inverno no estado de São Paulo, mas é também muito marcada
pelas desigualdades sociais. As condições de vida não são homogêneas para
toda a população, que conta como infra-estrutura urbana com: 12 postos de
saúde e 6 hospitais; 14 creches (10 da prefeitura e 4 particulares); 8 escolas
estaduais de primeiro grau que atendem 5965 crianças, uma escola estadual de
segundo grau, com 1.014 matriculados; três campos de futebol; uma quadra de
esportes.239

O crime em questão aconteceu na delegacia da cidade, localizada em um


bairro afastado, de classe baixa, desprovido desta infra-estrutura básica. A polícia
local considerava altos os índices de criminalidade na cidade.

Vítima

A vítima era um pintor de paredes, de 38 anos (nascido em 09/10/44),


branco, desquitado e amasiado, natural e residente em Campos do Jordão. Tinha
antecedentes criminais de 1976, 1978, por porte de drogas e depois, em
novembro de 82, por furto e, em junho de 83, por lesões corporais.

Indiciados

Dois investigadores da Polícia Civil e um carcereiro foram indiciados no


caso. Os três eram brancos, casados. Um deles tinha 26 anos, o segundo 30 e o
carcereiro tinha 52 anos de idade. Os policiais eram nascidos no interior de São
Paulo e o carcereiro no interior do Paraná. O policial mais novo tinha sofrido uma
ação criminal na Justiça Pública por abuso de autoridade, em 29/02/82.

Testemunhas

Quinze pessoas foram ouvidas como testemunhas, sendo somente uma


mulher, dona de casa. Os demais eram: dois profissionais liberais (advogado e
médico), um agente da Comunidade Eclesial de Base, dois delegados, quatro
carcereiros, quatro Policiais e o último não informou a profissão. As idades
distribuíam-se da seguinte forma: quatro tinham entre 20 e 27 anos, três entre 32
e 36 e os oito restantes entre 44 e 60 anos. Sobre uma das testemunhas não há
informação quanto à cor e todas as demais eram brancas. Treze eram nascidas
no interior do estado de São Paulo, uma era gaúcha e a última informou apenas
ser brasileira. Oito das testemunhas residiam em Campos do Jordão, duas no
município vizinho de Tremembé, uma em São Paulo e os quatro PMs forneceram
o endereço do seu batalhão em São Bento do Sapucaí. Doze das testemunhas

239
Os dados sobre a infra-estrutura urbana do Campos de Jordão foram conseguidos junto às
secretaria municipais.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 552

eram de algum modo envolvidas no caso - colegas da delegacia dos indiciados


ou encarregados da apuração - uma era relacionada com a vítima e as outras
duas relacionavam-se com os colegas de cela da vítima, que não foram
localizados para depor.

Relações hierárquicas entre protagonistas

As relações entre a maior parte dos protagonistas correspondem às


relações no interior da estrutura policial civil. Assim, os indiciados eram dois
investigadores, tal como quatro das testemunhas, e um carcereiro, mesma
ocupação exercida por outras quatro testemunhas. Duas outras testemunhas
eram os delegados titular e adjunto responsáveis pela delegacia onde ocorreu o
caso.

Contextos/Cenários

Os fatos começaram a se desenrolar nas imediações do Grande Hotel,


local conhecido pelos policiais como ponto de “viciados em drogas”. Ali, dois
policiais encontraram um pintor de paredes com antecedentes por porte de
entorpecentes e resolveram levá-lo para a delegacia, onde o torturaram para que
confessasse furtos de TVs. O caso de tortura na delegacia de polícia de Campos
de Jordão não foi inédito. Outros já haviam sido denunciados, pelos menos desde
1978, quando 16 rapazes foram vitimados. Houve também um caso de
assassinato de um lavrador, tocaiado pela polícia e um outro caso de
espancamento de um homem dentro de uma lanchonete.

“Física” dos acontecimentos

No dia dos fatos, por volta das 18h00, estavam dois investigadores da
polícia nas imediações do Grande Hotel, local conhecido como ponto de
“viciados”, quando encontraram o pintor de paredes, tido por eles como
“marginal, desocupado, traficante e viciado” (Um dos indiciados afirmou que a
vítima fazia parte de uma lista de 27 “viciados” construída pela polícia). Alegando
ter informações, que o pintor estava envolvido em furtos e tráfico de maconha,
abordaram-no. O pintor negou tudo mas, mesmo assim foi levado para a
delegacia.

Esclarecidos os fatos, o pintor foi liberado pelo delegado no dia seguinte.


Mas ao sair, foi abordado por um investigador e um carcereiro, sendo preso
novamente, numa cela onde haviam mais duas pessoas, de onde foi removido
para a sala de visitas na qual foi submetido a uma sessão de tortura (pau-de-
arara, choque elétrico, toalha molhada no rosto). Participou da tortura mais um
policial, não identificado pela vítima. Os presos que estavam na cela da vítima,
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 553

quando ela foi removida, viram quando esta voltou em estado físico lamentável
sendo preciso massageá-la para despertá-la.

Enquanto ele estava preso, sua amásia procurou o presidente da


Comunidade Eclesial de Base, que o conhecia desde o nascimento. Este foi
então à delegacia onde foi informado que a vítima seria liberada no dia seguinte.
Depois, ao saber das torturas sofridas pelo pintor, este membro da CEB procurou
o presidente da OAB local e o jornal Folha de S. Paulo. O presidente da OAB
levou então a vítima à Santa Casa local para fazer exame de corpo de delito. O
mesmo foi feito mas o médico informou que só poderia entregar o resultado à
polícia, que depois divulgou laudo negativo. Outros casos de abuso de autoridade
realizados por policiais daquela delegacia foram denunciados, o que levou 22
advogados da OAB de Campos de Jordão a encaminharem os casos para a
Corregedoria.

Observações Finais

Desde o começo do processo, já nas notícias de jornal anexadas, tem-se


os nomes de dois denunciados como autores da tortura contra vítima. Durante
todo o período de arrolamento de testemunhas, não se menciona os nomes
destes dois indiciados, sendo chamados para depor bem mais tarde.

Um dos companheiros de cela da vítima havia sido preso por estar


ilegalmente no Brasil. Recebeu intimação para comparecer à delegacia de
Campos do Jordão e para ser encaminhado ao DOPS-SP. Com tal intimação, foi
notificado que teria de deixar o território brasileiro, caso contrário, seria preso. A
OAB de Campos do Jordão pediu Habeas Corpus temporário para que ele
pudesse ir depor a favor da vítima sem represálias, mas o juiz negou tal pedido e
isso acelerou a sua saída do país. A outra pessoa que estava na cela com a
vítima, só acabou sendo procurada mais tarde, quando já não mais foi possível
localizá-la.

O promotor não ofereceu a denúncia logo no primeiro IP. Ele pediu que
novas diligências fossem feitas como a re-oitiva dos depoentes, inclusive, dos
parentes das testemunhas que estavam com a vítima na cela, para que os fatos
fossem melhores elucidados, contrariando a conclusão do delegado, que era de
pedido de arquivamento do caso “por falta de provas”. Entretanto, depois a
promotoria insiste nas diligências a fim de encontrar os dois companheiros de
cela da vítima. Não sendo estas encontradas, ela pede pelo arquivamento do
processo em 10/09/85, reconhecendo as demais provas como insuficientes.
Ressalte-se que o promotor leva em consideração a mesma argumentação
discriminatória dos policiais, deixando claro que a versão dos policiais vale mais
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 554

que a de um indivíduo com antecedentes criminais, mesmo que esses policiais


também tenham antecedentes.

1.7. Violência da Polícia Civil no Itaim Paulista

Data: 23/07/83

Resumo
O caso refere-se à morte de indivíduo de 31 anos de idade recolhido ao
50º DP no dia 23/07/83, ali conduzido por uma viatura da Polícia Militar. Na
mesma ocasião foram à delegacia dois rapazes que apontaram a vítima, como
autor de um roubo, ocorrido dois dias antes, em uma farmácia do bairro, para a
qual trabalhava um deles. Ambos, falaram com o delegado de plantão, da sua
convicção sobre o delito e sobre a autoria, e então a vítima foi recolhida. Ficou
detida de 23 a 28/07/83, quando foi conduzida, por policiais da própria distrital, ao
PS de São Miguel Paulista, onde permaneceu até o dia 03/08/83 e daí para o PS
do Jabaquara, vindo a falecer no dia seguinte, 04/08/83. Cinco presos dos
próprios xadrezes do 50º DP prestaram depoimentos e confirmaram a versão de
que a morte da vítima foi decorrente de espancamentos e torturas sofridos na
delegacia, sendo seus autores quatro investigadores, dois carcereiros, dois
delegados e um inspetor de quarteirão.

No dia 31/07/86, o juiz impronunciou o chefe dos investigadores, declara


extinta a punibilidade de um dos carcereiros e dos dois delegados, por prescrição
do prazo, e pronunciou os cinco restantes. No dia 22/09/89, o juiz expede
mandado de prisão para um dos investigadores; mas no dia 14/02/90, este
investigador é submetido ao Tribunal do Júri, que lhe atribuiu apenas o crime de
lesão corporal, para o qual já havia transcorrido o prazo de punição; no dia
19/02/92, esse mesmo investigador e um outro foram submetidos a novo
julgamento e condenados a quatro anos de reclusão em regime aberto. No dia
19/03/90, o outro carcereiro e um terceiro investigador foram absolvidos pelo
Tribunal do Júri. No dia 13/05/92, o inspetor de quarteirão foi condenado a 4 anos
de reclusão em regime aberto (prisão albergue domiciliar).

Local

O crime aconteceu no distrito do Itaim Paulista, que integra a


Administração Regional de São Miguel Paulista, na zona Leste da cidade de São
Paulo. Os outros distritos que compõem a regional são: Ermelino Matarazzo,
Jardim Helena, São Miguel, Vila Curuça e Vila Jacuí.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 555

O Itaim Paulista é o distrito mais populoso de São Miguel, apesar de, em


comparação com o município como um todo, apresentar uma baixa densidade
demográfica. A média da renda das famílias do Itaim Paulista é a mais baixa da
região, bem como é baixa a taxa de emprego. A carência de infra-estrutura
urbana é acentuada: precária cobertura de redes de água e esgoto, déficit de
creches, pré-escolas e Centros da Juventude, carência de leitos hospitalares.
Nesse contexto, são altos os índices de mortalidade infantil. Dessa forma, o Itaim
Paulista caracteriza-se como um distrito “dormitório”240.

Em relação às taxas de criminalidade, elas têm sido sempre elevadas no


Itaim Paulista. Em 1983, ano do caso em questão, foram registradas 5433
ocorrências, entre as quais contam-se: 16 tentativas de homicídio, 66 homicídios,
738 denúncias de lesão corporal, 50 estupros. Naquele ano foram abertos 838
Inquéritos Policiais, o que corresponde a 15,42% dos BOs. Observando esses
números ao longo da década de 80, percebemos uma tendência ao aumento da
violência fatal simultânea a um decréscimo da violência não fatal, o que sinaliza
uma maior determinação dos agressores para matar suas vítimas, conformando
um cenário mais propício a atos de execução sumária. No início da década de
90, as taxas voltam a cair, mas as tendências permanecem. Deste modo, entre
1981 e 1993: o total de BOs caiu 8%; o de IPs caiu 13%; já os homicídios
subiram 53%; as tentativas de homicídio subiram 58%; mas as lesões corporais
caíram 67%; os estupros caíram 38%.

Vítima

Homem de 31 anos, solteiro, natural de Riacho Doce (BA), branco.


Cumpriu pena de nove anos por roubo e depois foi morar com o tio, e trabalhar
com ele em seu ferro velho. Uma das testemunhas, moça de 21 anos de idade
afirma que a vítima havia atirado contra ela, algum tempo antes. Relata também
que a vítima era viciada em tóxicos, e que havia apanhado de um “comparsa”,
poucos dias antes de ser presa.

Indiciados

Doze indivíduos estiveram de alguma forma envolvidos no caso como


agressores: quatro investigadores, dois carcereiros, um inspetor de quarteirão
(comerciante, de ocupação) e cinco delegados. Apenas um deles era negro,
todos os demais, brancos. Suas idades distribuíam-se da seguinte forma: três
tinham entre 21 e 26 anos; cinco entre 37 e 45; e quatro entre 54 e 67. Sete eram
paulistas, três mineiros, um carioca e um goiano. Quanto ao estado civil, sete

240
Para mais informações sobre o Itaim Paulista, ver resumo do caso 2.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 556

eram casados, três solteiros, um desquitado e um amasiado. Dois tinham


primeiro grau completo, três haviam concluído o segundo grau e os demais
tinham nível superior. Finalmente em relação à residência, oito moravam na
própria cidade de São Paulo, dois na Grande São Paulo e os últimos dois, no
interior do estado.

Testemunhas

O total de testemunhas deste caso foi 41, sendo que a grande maioria (35)
era composta por homens. Suas idades variavam do seguinte modo: dez entre 19
e 29 anos; oito na casa dos 30; onze na dos 40; oito tinham entre 50 e 67 anos;
para as cinco restantes, não há informação. Quanto às ocupações, 7 exerciam
trabalhos braçais ou sem especialização (recepcionista, motorista, balconista,
técnico de TV, cobrador); 5 estavam ligadas ao setor de vendas (comerciante,
corretor de imóveis); 16 eram profissionais com nível superior (médico, jornalista,
juiz, promotor, delegado, advogado); 3 eram policiais militares; 3 donas de casa;
5 estavam presos; um deputado estadual e um arcebispo. Em relação à cor, há
informação somente para catorze testemunhas: 9 brancas, uma negra, 4 pardas.
Sobre o grau de instrução, também a ausência de informação é alta: entre as 17
que informaram, duas eram analfabetas e as demais tinham nível superior. No
que se refere à naturalidade, temos 9 nordestinos (Paraíba, Bahia, Pernambuco),
20 paulistas, um mineiro, um gaúcho e 2 estrangeiros (da Itália e do Líbano). A
grande maioria (34) residia em São Paulo, sendo 20 na zona Leste, 9 na Sul, 3
na zona Norte, uma na Oeste e uma no Centro; duas na Grande São Paulo; 3 no
interior do estado; uma em Londrina (Paraná); a última não informou.

Relações hierárquicas entre protagonistas

As relações entre boa parte dos protagonistas correspondem à hierarquia


no interior da estrutura da corporação. Além da hierarquia entre os agressores,
descrita acima, 12 das testemunhas tomaram parte de algum modo no desenrolar
do caso: quatro diretamente inseridos na estrutura (policiais civis e militares,
corregedor e delegados) e os demais médicos, advogados, promotores que se
envolveram nas investigações.

Contextos/Cenários

O 50º DP, onde ocorreu o caso, contava com apenas uma viatura. Um
comerciante local fornecia peças para as viaturas. Quanto ao número de presos,
a delegacia tinha em média de cinco a seis correcionais, mas o número
aumentava aos sábados e domingos. A Delegacia estava encarregada, na época
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 557

dos fatos, de cerca de 200 inquéritos. O quadro de funcionários também era


reduzido.

O promotor, na denúncia, afirma que o chefe dos investigadores tinha total


conhecimento das sevícias realizadas. Um dos presos afirmou, em seu
depoimento, que um dos carcereiros costumava obrigar os presos a dormir por
volta das nove horas para poder ter liberdade de trazer na carceragem mulheres
várias com as quais mantinha relações sexuais. Afirmou também que um dos
investigadores tinha o hábito de bater nas pessoas que ficavam recolhidas no
xadrez e também tomar o dinheiro que elas traziam consigo.

“Física” dos acontecimentos

A saga cumprida pela vítima teve seu início nove anos antes do desfecho
trágico. Naquela altura, um rapaz de 22 anos de idade foi preso e condenado a 9
anos de reclusão por crime de assalto. Depois de cumprida a pena, deixou a
cadeia, em abril de 1983, e foi morar com seu tio, em cujo ferro velho foi
trabalhar. No dia 19 de julho, o rapaz não apareceu na casa do tio e nem o
avisou onde estaria. No dia 23 daquele mês, ambos estavam em uma padaria
quando, inesperadamente, ali surgiram dois militares acompanhados de um
senhor e o mesmo logo apontou o rapaz como sendo o autor de um assalto à sua
farmácia, ocorrido justamente no dia 19. Em seguida, os militares efetuaram a
detenção do rapaz e se retiraram.

A vítima chegou à cadeia, não aparentando qualquer ferimento, entre


21.00 e 22.00 horas. Então, o investigador chefe de Equipe colocou-a no xadrez
correcional, conhecido pelos presos e policiais como "corro". No dia seguinte pela
manhã, o mesmo investigador foi buscar a vítima na cela. Cerca de quinze
minutos depois, podia-se escutar gritos de súplica: ‘pelo amor de Deus não bata
mais em mim’. No mesmo dia, no período da tarde, entre seis e sete horas, o
mesmo investigador veio buscar, novamente, a vítima, que então já não podia
caminhar bem. Quinze minutos após, os seus colegas de cela ouviram novos
gritos, pedindo socorros e clemência para não apanhar mais. Cerca de uma hora
depois, a vítima retornou trazida pelo investigador, dessa vez em companhia de
mais dois investigadores que a arrastavam pela parte traseira do colarinho, com
os quadris raspando no chão, sem poder andar. No dia seguinte, entre 21:00 e
21:30 horas, aqueles mesmos três investigadores foram buscar a vítima mais
uma vez. Da cela até a porta de saída do xadrez, a vítima foi andando com muita
dificuldade, quando, então, caiu, sendo que dois investigadores a seguraram
pelos braços e a arrastaram, dizendo que iriam levá-la para o Pronto Socorro.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 558

O Centro Santo Dias de Defesa dos Direitos Humanos atuou como


assistente de defesa no caso. A Associação dos Delegados da Polícia Civil
manifestou-se em apoio aos réus, decretando uma “greve branca”, segundo a
qual realizariam o trabalho policial no estrito cumprimento da lei escrita.

Observações finais

Os delegados versam pouco sobre os fatos, detendo-se apenas às rotinas


da Delegacia, principalmente no que diz respeito ao recolhimento de presos para
investigações. Todos os delegados, investigadores e carcereiros negam que o
preso tenha sofrido qualquer tipo de violência. Os carcereiros e investigadores
negam ter agredido a vítima. Um investigador até mesmo se recusou a ser
identificado datiloscopicamente, alegando ser inocente. Um dos delegados deu
uma versão diferente do motivo pelo qual a vítima foi presa: afirmou ter sido
apontada como suspeito de um assalto contra uma senhora na via pública, contra
quem chegou a disparar um tiro, tendo se apossado de sua bolsa. Conduzido à
delegacia juntamente com a tal senhora, ali teria sido fichado; e somente ao ser
apresentado à repartição policial é que teria ficado apurado que ele participara
dias antes do outro assalto à farmácia.

Não foram ouvidas cinco das testemunhas das arroladas na defesa-prévia:


o delegado da Seccional Leste, denunciado pelo promotor por abuso de
autoridade, cuja denúncia não foi recebida pelo juiz; dois médicos; o suposto
companheiro da vítima no assalto à farmácia, que, tempos depois, foi encontrado
morto, na linha do trem; um dos presos para quem a vítima teria solicitado
remédios.

O juiz ouviu uma testemunha em juízo, para que ela esclarecesse os


depoimentos prestados por duas testemunhas de acusação, que teriam
mencionado seu nome.

Nos contra-libelos, as defesas arrolaram testemunhas para serem ouvidas


pelo Júri, mas ao longo do processo, como os julgamentos foram adiados várias
vezes, houve desistência destas testemunhas. A defesa de um dos
investigadores arrolou um médico como testemunha, porém esta testemunha
escreveu ao juiz pedindo que fosse dispensada, pois não sabe nada sobre os
acontecimentos. A defesa pediu então a este médico que escreva um parecer
crítico sobre o laudo necroscópico do IML. Este parecer foi anexado ao processo
poucos dias antes do julgamento. A assistência de acusação requisitou que o
julgamento fosse adiado, pedindo para anexar também um outro parecer, no dia
22/11/89. O juiz atendeu, no mesmo dia, o pedido da assistência e designou nova
data para o julgamento.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 559

O julgamento de outro réu, também investigador, seria realizado em


dezembro, mas a assistência de acusação pediu o adiamento pois não foi
possível anexar outro parecer, porque os médicos contatados solicitaram um
prazo mínimo de 30 dias para analisarem o laudo. A assistência alegou, em seu
pedido, que a realização do Júri sem outra opinião médica cercearia a acusação.
O juiz, no dia 5/12/89, concordou com o pedido e designou o julgamento para
fevereiro do ano seguinte.

Foram realizados os julgamentos de quatro dos réus sem que o outro


parecer médico estivesse anexado ao processo. A despeito do parecer ter a data
do dia 7 de fevereiro de 1990, o mesmo foi anexado pela assistência de
acusação apenas em 27 de março, ou seja 50 dias depois, e após os
julgamentos.

A defesa de um dos réus requisitou, por duas vezes, a juntada de


inquéritos sobre mortes ocorridas no Hospital Tide Setúbal e do Jabaquara, locais
onde a vítima esteve internada. Provavelmente a defesa tentava ilustrar que a
vítima morreu em conseqüência do mal atendimento dado nestes hospitais.

1.8.Violência da Polícia Civil em Cotia

Data: 14 e 16/02/85

Resumo
No dia 14/02/85, uma chácara de Cotia foi assaltada. A principal
testemunha do assalto, caseiro da chácara, informou à polícia que havia visto
aqueles assaltantes em companhia de outros dois caseiros vizinhos, uma
semana antes. Os policiais levaram-no então para reconhecer os caseiros e ele
reconheceu apenas um deles. Dois dias depois, este foi levado para a delegacia
e torturado afim de fornecer a identificação dos assaltantes.
Esses fatos levaram a vítima a procurar o Centro de Defesa dos Direitos
Humanos de São Paulo e o de Osasco, de onde foi conduzido ao Fórum de
Cotia. Por força da intervenção de órgãos de defesa de direitos humanos, o fato
alcançou grande repercussão na imprensa e culminou com a interferência do
Ministério Público. Durante as investigações, houve o encontro e apreensão de
uma “maquininha elétrica” em um armário da Delegacia de Polícia.
Foi aberta sindicância administrativa, pela Delegacia Seccional de Osasco,
concluída no dia 26/04/85, com a recomendação de arquivamento do caso. O
inquérito policial, por sua vez, indiciou um escrivão, um investigador da polícia e o
proprietário da chácara roubada. No dia 13/11/86, foi determinado o
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 560

desmembramento do processo para o proprietário da chácara. No dia 18/03/88,


os outros dois réus tiveram extinta a sua punibilidade, por prescrição do delito.

Local

O caso aconteceu no município de Cotia, que integra a Região


Metropolitana da Grande São Paulo, à sudoeste da cidade de São Paulo e
fazendo também limite com os municípios de Osasco, Carapicuiba, Embu e
Taboão da Serra.

Em 1985, ano do caso, a população de Cotia era de 68.960 habitantes241,


com uma considerável taxa de imigrantes: 15,6% da população eram pessoas
não naturais de Cotia e ali residindo há menos de 10 anos.242 Quanto à
distribuição por faixa etária, predominavam os jovens, seguindo o padrão
populacional do país: 23,7% de crianças de até 9 anos; 21,5% de 10 a 19 anos;
18,5% na faixa dos vinte anos; 16,2% entre 30 e 39; 9,88% na faixa dos
quarenta; 10,2% com mais de 50 anos de idade.243

As condições de vida no município eram bastante precárias, situação que


tem se mantido. Em relação à educação, em 1985, apenas 9,19% dos alunos de
primeiro grau da rede oficial de ensino ingressavam no segundo grau; 13,3% da
população eram de analfabetos244. No que se refere à saúde, no ano do crime, a
taxa de óbitos fetais era 21/1.000 nascidos vivos e a de óbitos de menores de um
ano era de 33/1000 nascidos vivos. Havia somente dois hospitais no município,
com um total de 166 leitos, o que produzia a elevada média de 415 habitantes
por leito.

Finalmente, em relação às taxas de criminalidade, ressalta o fato de elas


terem crescido acentuadamente durante as últimas duas décadas. Em 1985,
foram registradas 1.642 ocorrências na cidade, que produziram 232 inquérito
policiais (14,1% dos BOs) dentre os quais destacam-se: 9 tentativas de
homicídio, sendo 3 de autoria desconhecida; 9 homicídios, sendo 6 dolosos de
autoria desconhecida; 147 casos de lesão corporal, 14 casos de estupro. Entre
1981 e 1993, o crescimento destas taxas foram: 49% para os BOs; 133% para as
tentativas de homicídio; 320% para os homicídios; 291% para as lesões
corporais; 220% para os estupros; a proporção de IPs para BOs cresceu de
21,6% para 29,9%.

241
Os dados referentes ao município de Cotia foram conseguidos junto à prefeitura.
242
Os dados quanto à naturalidade da população provêm dos anuários produzidos pela
EMPLASA e se referem ao ano de 1980.
243
Os dados quanto à distribuição etária referem-se ao ano de 1991.
244
Os dados quanto à alfabetização referem-se ao ano de 1991.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 561

Vítima

Rapaz branco, de 30 anos de idade, natural de Poções no estado da


Bahia, casado, caseiro em uma chácara em Cotia, sem antecedentes criminais.

Indiciados

Três homens foram responsabilizados pelo crime. Um escrivão da Polícia


Efetiva, branco, de 35 anos, nascido em Itapetininga, separado, residente em
Cotia, sem antecedentes criminais. O segundo era investigador de polícia,
branco, com 41 anos, casado, também natural de Itapetininga e ali residente,
sem antecedentes criminais. O último era um comerciante português (o
proprietário da chácara assaltada), de 57 anos, branco, desquitado e amasiado,
residente em Cotia. No entanto, o principal responsável pelas torturas, segundo a
própria vítima, foi um policial militar, para o qual não constam informações nos
autos de que o processo tenha sido desmembrado para a Justiça Militar.

Testemunhas

Dezoito é o número de testemunhas deste caso. Somente duas eram


mulheres. Suas idades variavam do seguinte modo: duas na faixa dos vinte;
cinco entre 30 e 37 anos; três de 45 a 59 anos de idade; as demais não
informaram. Quanto ao estado civil, a maior parte (11) era de pessoas casadas, 4
eram solteiras; uma separada; duas não informaram. Em relação à cor, há
informação para somente 4 testemunhas, todas brancas. A maioria eram
paulistas (8); uma mineira; duas portuguesas; para as restantes não há
informação. No que se refere à ocupação, há 8 profissionais de nível superior
(advogados, delegados, assistentes sociais, jornalistas); 5 policiais militares
(soldados, cabos, sargentos); 3 funcionários públicos; uma caseira. Grande parte
das testemunhas (11) residiam na própria Cotia; uma na cidade vizinha de
Osasco; 4 no interior do estado; e apenas uma em outro estado - Campo Grande
(MT).

Relações hierárquicas entre protagonistas

As relações são fundamentalmente hierárquicas entre um dos indiciados -


proprietário de uma chácara - e a vítima, caseiro de outra chácara, vizinha à
primeira, sendo que era comum a troca de favores entre ambos. Os demais
indiciados eram funcionários da delegacia de polícia - um investigador e um
escrivão. Entre as testemunhas, 11 eram familiares e/ou conhecidos dos réus
(dois deles eram caseiros do comerciante); 4 presenciaram outros episódios
relacionados ao caso; duas estavam envolvidas no caso (o delegado e um
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 562

soldado da PM); uma era advogado do Centro de Direitos Humanos, procurado


pela vítima.

Contextos/Cenários

Os cenários do caso abrangem tanto o contexto rural quanto urbano. As


violações tiveram seu início no dia do assalto a uma chácara de Cotia, o que
levou os policiais a irem à chácara vizinha e, sem mandato judicial, obrigarem o
caseiro a acompanhá-los à delegacia da cidade. Ali foi pressionado pelo
delegado para denunciar quem seriam os assaltantes, supostos conhecidos seus.
Dois dias depois, mais uma vez os policiais foram à residência do caseiro e o
coagiram a os acompanhar. Levaram-no à chácara assaltada, cenário das
agressões perpetradas pelo proprietário da mesma contra o caseiro, em
presença dos policiais e da esposa do proprietário. Finalmente, a delegacia volta
a ser cenário de violência, desta vez a mais grave de todas - torturas contra o
caseiro. Certamente, não se tratou de um caso isolado naquela delegacia, posto
que ela estava equipada com o instrumental necessário para a realização de
práticas daquele tipo.

"Física” dos acontecimentos

No 14 de fevereiro, o caseiro de uma chácara em Cotia, pertencente a um


comerciante português, foi chamado por um homem branco, de barba, alto, e
outro, negro, mais baixo, que lhe perguntaram a respeito de um conhecido seu.
Quando o caseiro abriu o portão da casa, ambos sacaram de seus revólveres e
anunciaram o assalto. Adentraram a casa e roubaram jóias, tapetes, um revólver
e um cachimbo. Os assaltantes ficaram na companhia do caseiro por 40 minutos
aproximadamente. Ao relatar o caso para a polícia, o caseiro recordou-se que
uma semana antes, quando estava em um ponto de ônibus na Vargem Grande
Paulista, havia visto os dois assaltantes, juntamente com mais três pessoas e
duas dessas pessoas eram caseiros de chácaras vizinhas. Todos conversavam
“em gíria” e mascavam chicletes o que fez o caseiro da chácara assaltada pensar
que os vizinhos estavam se dando com gente “de baixo nível”.

Diante do exposto, os policiais - dois soldados e um escrivão - partiram em


direção a uma das chácaras vizinhas, cujo caseiro aquela testemunha teria visto
em companhia dos assaltantes. Encontraram-no trabalhando em casa. Foi
conduzido à delegacia de Cotia, onde foi apresentado ao delegado o qual,
chamando-o de “truta”, perguntou-lhe sobre o assalto. Em seguida, deu-lhe duas
pancadas no estômago e dispensou-o. A vítima foi para casa e encontrou sua
mulher passando mal, razão pela qual foi até a residência do próprio comerciante
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 563

português, solicitar ajuda. Na ocasião, esse senhor ter-lhe-ia dito para que
entregasse os bandidos. O caseiro resolveu então procurar ajuda em outro local.

No sábado seguinte, dia 16, três pessoas foram novamente procurá-lo em


sua casa, uma delas que se intitulou escrivão, um investigador e o caseiro que o
acusara. Junto com os mesmos foi até a residência daquele outro caseiro vizinho
que também teria sido visto em companhia dos assaltantes. O caseiro da chácara
assaltada entretanto, não o reconheceu. Depois, foram até a chácara assaltada
e, após um diálogo com o proprietário, este, incentivado por sua mulher,
esbofeteou o caseiro acusado por duas vezes, na presença dos policiais. A vítima
foi então colocada num Fusca vermelho, dirigido pelo investigador, e levada até a
Delegacia, onde o escrivão elaborou um Boletim de Ocorrência. Em seguida, foi
levada a uma sala, chamou-se um policial militar que pegou no armário uma
“maquininha de dar choques”, a qual foi amarrada na mão esquerda, por um
investigador. Todavia, o referido policial disse que daquela forma não daria
choque, tornando a amarrar os dois fios, um em cada mão. Começaram a rodar a
manivela da mesma maquininha, e a vítima começou a sentir choques, o que o
levou, a ficar de joelhos no chão gritando. Durante este tempo, uma hora ou uma
hora e meia, entraram e saíram diversas pessoas, mas quem movimentava a
manivela era o policial militar o qual chegou a determinar que ficasse de joelhos e
rezasse, saindo da sala por alguns instantes e retornando, para continuar a
tortura. Após, a vítima foi conduzida ao banheiro, onde o policial militar que fez
uso da maquininha determinou que entregasse seu cinto e o relógio, objetos que
foram devolvidos, quando de sua saída, por um outro policial militar.

Amedrontada, a vítima procurou o Centro Santo Dias de Defesa dos


Direitos Humanos, na capital, que o encaminhou para o Centro de Defesa dos
Direitos Humanos em Osasco, cujo advogado conduziu-o até o Fórum, onde
formalizou a denúncia. Três dias depois, o caseiro retificou as denúncias de
tortura pelos policiais, transformando-as em “tortura moral”, e manteve apenas a
denúncia de agressão por parte do proprietário da chácara assaltada. Segundo o
Centro de Direitos Humanos de Osasco, a retificação da vítima só foi possível
graças à pressão que ela recebeu da polícia, que também criou dificuldades para
que a imprensa a ouvisse novamente, alguns dias depois quando dois repórteres
do jornal Folha de S. Paulo foram detidos e escoltados até a Delegacia de Cotia.
Ali estava presente também um conhecido radialista, especializado em
programas policiais, que depois prestou depoimento negando a denúncia dos
repórteres da Folha e defendendo o delegado titular do caso, cuja autoridade era
contestada por aquele jornal por ter participado do DOPS. Em decorrência, o
Sindicato dos Jornalistas de São Paulo protestou contra a prisão dos repórteres e
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 564

a Comissão Teotônio Vilela fez denúncias contra o delegado encarregado das


investigações.

Observações finais

Nesse caso, o tumulto se faz presente ao longo de todo o processo, a


começar pela demora com que as diligências vão sendo cumpridas, o que dá
margem à extinção de punibilidade por prescrição.

Mesmo que o resultado do exame de corpo de delito tenha sido negativo e


a própria Vítima tenha desmentido as torturas sofridas na delegacia, foi
encontrada a “maquininha de produzir choques” e o proprietário da chácara
assaltada contou que os policiais lhe mostraram a tal “maquininha” e afirmaram
que fariam uso dela caso o caseiro não entregasse o nome dos assaltantes. O
delegado que formulou o B.O. aceitou a alegação dos policiais de plantão
segundo a qual, o objeto estaria desativado há muito tempo e, deste modo, o tal
objeto não chegou sequer a ser apreendido.

Além disso, oito pessoas mencionadas nos depoimentos deixaram de ser


chamadas a depor, incluindo o caseiro que teria sido visto em companhia da
Vítima e dos assaltantes e dois soldados envolvidos no caso. O principal acusado
pelo caseiro, em seu primeiro depoimento, foi um policial militar, arrolado apenas
como testemunha.

1.9. Violência da Guarda Municipal no Jardim Nazaré (Itaim Paulista)

Data: 30/03/87

Resumo
A Guarda Civil Metropolitana, por determinação superior, foi incumbida de
desalojar das áreas próprias municipais, ocupantes que lá estavam, construindo
suas casas. Num local denominado Jardim Nazaré, houve confronto com a
Guarda, composta de uma força de cerca de cento e cinqüenta homens. Esses
homens estavam armados com revólveres calibre 38. No conflito, um pedreiro
caiu atingido por um disparo de arma de fogo, e em conseqüência, faleceu. O
projétil transfixou o crânio da vítima, perdendo-se e diligências no sentido de
localizar o projétil foram realizadas, sendo que a confrontação do projétil
encontrado com as armas apreendidas deu um resultado negativo. Quatro
testemunhas reconheceram como autor dos disparos um guarda metropolitano,
que foi indiciado. Um tenente, também indiciado, nega a utilização de arma
particular, apesar de ser claramente visto em gravação da TV Gazeta, portando e
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 565

atirando com arma não pertencente à Corporação. Além destes, foram indiciados
o Secretário Municipal da Defesa Civil (coronel que comandava a ação) e um
outro guarda municipal. Outras três pessoas foram vitimadas, uma dona de casa,
um conferente e um motorista, que sofreram ferimentos, cuja autoria não foi
apurada. Alguns guardas metropolitanos também foram feridos, mas não há
dados a respeito nos autos.

O guarda reconhecido como autor dos disparos contra o pedreiro foi


impronunciado, por ausência de provas, no dia 30/03/89 e, apesar dos vários
recursos da acusação, a impronúncia foi mantida, em acórdão, no dia 30/07/91.
O segundo guarda indiciado faleceu em 1991. O Secretário Municipal de Defesa
Civil foi condenado, no dia 15/05/94, a 6 meses de detenção e 10 dias-multa,
mas recorreu e no dia 02/05/95, teve extinta sua punibilidade. O tenente teve
extinta a sua punibilidade, em sentença proferida no dia 15/05/94.

Local

O crime aconteceu nas imediações do Parque Dom João Neri, bairro


Jardim Nazaré, que integra o distrito do Itaim Paulista, pertencente à
Administração Regional de São Miguel Paulista, na zona Leste da cidade de São
Paulo. Os outros distritos que compõem a regional são: Ermelino Matarazzo,
Jardim Helena, São Miguel, Vila Curuça e Vila Jacuí.

O Itaim Paulista é o distrito mais populoso de São Miguel, apesar de, em


comparação com o município como um todo, apresentar uma baixa densidade
demográfica. A média da renda das famílias do Itaim Paulista é a mais baixa da
região, bem como é baixa a taxa de emprego. A carência de infra-estrutura
urbana é acentuada: precária cobertura de redes de água e esgoto, déficit de
creches, pré-escolas e Centros da Juventude, carência de leitos hospitalares.
Nesse contexto, são altos os índices de mortalidade infantil. Dessa forma, o Itaim
Paulista caracteriza-se como um distrito “dormitório”245.

Em relação às taxas de criminalidade, elas têm sido sempre elevadas no


Itaim Paulista. Em 1987, ano do caso em questão, foram registradas 5.290
ocorrências, entre as quais contam-se: 28 tentativas de homicídio; 137
homicídios (sendo 105 dolosos de autoria desconhecida); 700 lesões corporais;
40 estupros; 113 tentativas e/ou furtos de veículos; 55 tentativas e/ou roubos de
veículos; 49 casos de estelionato. Naquele ano foram abertos 888 Inquéritos
Policiais, o que corresponde a 16,8% dos BOs. Observando esses números ao
longo da década de 80, percebemos uma tendência ao aumento da violência fatal

245
Para mais informações sobre o Itaim Paulista, ver resumo do caso 2.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 566

simultânea a um decréscimo da violência não fatal, o que sinaliza uma maior


determinação dos agressores para matar suas vítimas, conformando um cenário
mais propício a atos de execução sumária. No início da década de 90, as taxas
voltam a cair, mas as tendências permanecem. Deste modo, entre 1981 e 1993:
o total de BOs caiu 8%; o de IPs caiu 13%; já os homicídios subiram 53%; as
tentativas de homicídio subiram 58%; mas as lesões corporais caíram 67%; os
estupros caíram 38% e os estelionatos subiram 125%.

Vítimas

Quatro foram as vítimas deste caso, sendo uma fatal. Esta era um
pedreiro, de 39 anos de idade, pardo, nascido em Caculé, na Bahia, casado, pai
de quatro filhos. As outras três, feridas durante a ação da Guarda Metropolitana
eram: um conferente, pardo, também baiano (natural de Juazeiro), com a mesma
idade - 39 anos, residente em Guaianazes (zona Leste de São Paulo), presidente
da Sociedade Amigos de Bairro da Vila Primeiro de Outubro. Uma dona de casa,
vizinha do local do conflito (residente no bairro havia cerca de sete anos),
atingida do lado de fora de sua casa, branca, de 46 anos de idade, sem
antecedentes criminais. Finalmente, um motorista, ocupante do terreno, de 24
anos, nascido em Aracaju (SE), residente no Jardim Camargo Velho.

Indiciados

Os quatro indiciados eram membros da Guarda Civil Metropolitana. O


primeiro, comandante da ação, era militar da reserva (coronel) e ocupava o cargo
de Secretário Municipal de Defesa Civil, à época, mas depois foi afastado; tinha
54 anos; era desquitado; natural de Itambé no interior do estado; sem
antecedentes criminais. O segundo era casado; pardo; nascido na própria São
Paulo; residente na Vila Clementina; havia sido indiciado em um inquérito que
fora arquivado em 1984; faleceu em 1991, em decorrência de parada cardíaca. O
terceiro também era militar da reserva (tenente) e atuava como técnico de
assessoria da área de segurança; branco; casado; com 46 anos; paulista de
Praderneiras; residente na Vila Clementina; em 1986, havia sido condenado por
abuso da autoridade. Finalmente, o último indiciado era solteiro; branco; de 25
anos; também paulistano; residente na Lapa; sem antecedentes criminais.

Testemunhas

Além das três vítimas sobreviventes, outras 22 pessoas foram ouvidas


como testemunhas no caso. A maioria (16) era do sexo masculino. Quanto à cor,
só há informação para a metade delas: 6 brancos, 4 pardos e um negro. A
distribuição etária das testemunhas é a seguinte: 12 estavam na faixa dos vinte; 6
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 567

na dos trinta; e os quatro restantes tinham entre 43 e 57 anos. Em relação à


ocupação, 8 eram guardas metropolitanos; 4 exerciam outros trabalhos braçais
pouco especializados (costureira, mecânico, segurança); duas donas de casa; 3
eram profissionais liberais (jornalista, diretor de escola, operador de
telecomunicações da Secretaria Municipal da Defesa Civil, vereador); 3 estavam
desempregados (um economista, um ferramenteiro e um ajudante geral).
Ressalte-se que o economista anteriormente trabalhara na Assembléia Estadual
e era membro da Comissão de Apoio aos Ocupantes da Terra. No que se refere
à naturalidade, a maior parte (7) era da própria São Paulo; 3 eram de outros
municípios da Grande São Paulo; dois eram do interior do estado, 3 vieram do
Nordeste (Pernambuco, Bahia e Sergipe); um paranaense; e os demais não
informaram. Quanto ao estado civil, 10 eram casados, 6 solteiros, uma viúva (da
vítima fatal), uma desquitada e sobre as restantes, não há informação.
Finalmente, em relação à residência, 12 eram moradores da própria zona Leste
(Sapopemba, Itaim Paulista, Jardim Camargo Velho, Guaianazes, São Miguel,
Vila Curuça); 3 da zona Centro-sul (Ibirapuera e Vila Mariana); duas da Zona
Norte (Limão), uma do Centro (Consolação); uma de Guarulhos, na Grande São
Paulo e uma de Santa Bárbara, no interior do estado.

Relações hierárquicas entre protagonistas

As vítimas e os agressores não tinham qualquer relação anteriormente aos


fatos. Os agressores eram membros da Guarda Civil Metropolitana e, como tal,
tinham relações hierárquicas entre si: um dos indiciados era Secretário Municipal
de Defesa Social e comandava a ação, chefiando os demais. Este secretário era
coronel e um dos outros indiciados era tenente, sendo ambos militares da
reserva. Entre as vítimas, contam-se dois ocupantes do terreno, uma moradora
da vizinhança e o presidente de uma das associações que atuava na ocupação
do terreno. Já entre as testemunhas, tem-se outros 8 guardas metropolitanos,
que participaram da ação; 3 ocupantes do terreno; 7 familiares ou conhecidos
das vítimas; 3 pessoas que presenciaram os acontecimentos; e o responsável
pela demarcação das terras na região.

Contextos/Cenários

O conflito iniciou-se em uma área da Prefeitura destinada à construção de


uma creche, ao fundo de uma bacia hidrográfica. Tratava-se de uma faixa de
terra, situada nas imediações do Parque Dom João Neri, de topografia irregular,
coberta por vegetação rasteira. Ao generalizar-se o conflito, os guardas
acabaram invadiram terreno vizinho, de propriedade particular, onde feriram a
proprietária do mesmo.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 568

Moradores da região declararam à imprensa que o “matagal” ocupado


sempre fora “esconderijo de bandido”, fazendo menção à insegurança, e ao fato
de que, para atravessar aquele “pedaço”, às quatro da manhã - horário em que
as pessoas vão para o trabalho, para chegar ao ponto de ônibus, era necessário
caminhar “em mutirão”.

“Física” dos acontecimentos

No dia 30 de março, após haverem estado em três prévios locais


promovendo o desalojamento de populares entendidos como invasores e a
destruição de seus barracos e edificações, em terrenos considerados como
próprios da Prefeitura Municipal de São Paulo, cerca de 150 componentes da
Guarda Civil Metropolitana da Capital, sob o comando do Secretário Municipal de
Defesa Civil, dirigiram-se ao Parque D. João Neri, Itaim Paulista, com o objetivo
de desalojar ocupantes de uma área de terra supostamente destinada à
construção de uma creche pela Prefeitura de São Paulo. O grupo de guardas
metropolitanos, auxiliado por funcionários da Prefeitura e contando entre seus
componentes com elementos a paisana, ao chegar ao local, dirigiu-se à baixada
do terreno, região apontada como a destinada à creche, na qual deu início a
“operação de limpeza da área da Prefeitura”, quando garis e guardas
metropolitanos eliminaram marcos, fios de rumo e pertences dos invasores, a
sobra dos quais era recolhida em caminhões da municipalidade. À medida que a
operação se desenvolvia, aglomeravam-se populares a protestar contra a
destruição das casas de blocos de concreto, que denotavam algum tempo de
feitura, no pretendido terreno da administração pública municipal. Não obstante,
foi determinada a continuidade da destruição dos barracos e casas de alvenaria,
pelo Comandante da operação, passando-se, logo após, à mesma ação em
terreno particular, apesar de ter sido aquele advertido, por populares, de que se
tratava de propriedade particular. Neste local, guardas metropolitanos, usando de
pedaços de madeira e desferindo chutes, derrubaram blocos de cimento já
assentados em construções semi-acabadas, lançando combustível e ateando
fogo. O inconformismo popular aumentou, bem como o clima de pânico
decorrente da ação dos guardas, que fazia suas primeiras vítimas por força de
chutes, pontapés e golpes de cassetetes. Com o clima agravado, o Comandante
da ação, que é também Coordenador da referida Guarda Municipal, determinou a
formação de uma linha de guardas, os quais, munidos de armas com bala de
festim, fizeram mira e atiraram em direção à multidão, pretendendo com isso
afastá-la do local. O expediente, entretanto, só valeu para tornar a situação mais
grave, com a Guarda simulando disparos contra a população e ocupantes,
enquanto estes reagiam com pedradas e tijoladas. Durante tal procedimento, é
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 569

certo que alguns componentes da operação, passaram a utilizar-se de armas


com munição real, atirando em direção ao povo. O tenente indiciado, postando-se
à frente do grupo em retirada, fazendo uso de um revólver de sua propriedade
particular, efetuou disparos com projéteis lesivos, mirando os populares. Outro
dos indiciados, utilizando-se de uma arma tipo cartucheira, disparou contra a
multidão. Valendo-se da confusão generalizada que se formou, esgueirando-se
pelas residências situadas na rua Salvador da Silva, vestido à paisana, quando
os componentes da Guarda punham-se em retirada, outro indiciado, utilizando-se
de um revólver de sua propriedade particular disparou, atingindo o pedreiro
mortalmente.

Após o ocorrido, alguns “sem-teto”, desacreditando na punição da justiça


oficial, foram até o pronto-socorro onde foram atendidos os Guardas Civis
Metropolitanos que estavam feridos, querendo invadir o local para linchá-los por
causa da morte do pedreiro, mas foram contidos por segurança local.

O conflito pela ocupação da área envolveu as seguintes entidades da


sociedade civil: Sociedade Amigos União do Jardim Icaraí, Sociedade Amigos do
Bairro Primeiro de Outubro, Comitê de Apoio ao Ocupante da Terra da
Assembléia Legislativa e União das Favelas de São Paulo. O Centro Santo Dias
de Defesa dos Direitos Humanos atuou como assistente da acusação no caso.
Outras entidades protestaram contra a violência da Guarda Municipal: Movimento
Sem Terra, Comissão de Justiça e Paz, Comissão dos Ocupantes de
Itaim/Guaianazes, Comissão Bairro de São Miguel, Comunidade do Bairro de
Guainazes.

Observações finais

No Relatório do Delegado Seccional (12.05.87), foram ouvidas apenas


duas das três vítimas que sofreram ferimentos, no entanto, não se apurou a
autoria das lesões.

Na Junção de Plantas (02.07.87) e no Requerimento do Promotor


(13.10.87), as plantas apresentadas são de outra região e o promotor percebe
isso, mas não contesta.

Um dos guardas civis indiciados responde em seu interrogatório (19.11.87)


que portava uma arma particular que aparece nas imagens veiculadas pela TV
Gazeta, a qual não foi pedida para a perícia. Somente no interrogatório, o juiz
pediu-lhe que trouxesse a arma para apresentá-la na polícia mas, mesmo nesta
ocasião, a perícia não foi realizada. Também não foi feita perícia das armas do
tenente, tanto da arma particular que ele portava, como a da corporação.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 570

Uma das testemunhas de acusação, na Audiência de 03.12.87, afirma que,


para o reconhecimento por meio de videoteipe, ela foi levada junto com delegado,
para a casa de uma moça onde assistiram ao vídeo. E depois desta sessão
informal, o vídeo foi invalidado como prova material para o caso.

O reconhecimento dos envolvidos foi feito através de um buraquinho na


porta, técnica essa sem muito valor qualitativo visto que a identificação das
pessoas fica muito prejudicada pela falta de nitidez dos suspeitos e pela falta de
segurança a que as testemunhas ficam expostas.

Três autoridades mencionadas nos depoimentos não foram ouvidas: o


administrador regional de São Miguel Paulista, um vereador e um assessor do
gabinete da Guarda Civil Metropolitana, pessoas chamadas a intervir no caso e
que poderiam contribuir para a apuração das responsabilidades.

2. A violência da Polícia Militar: perseguição e execução de “suspeitos”


Os cinco processos em que são indiciados policiais militares aconteceram
na primeira metade da década de 80: Campo Limpo (1982), Jardim Marta (1982),
Taboão da Serra (1983), São Mateus (1983), Liberdade (1985). Naqueles anos o
então o regime militar ainda perdurava em nível federal, mas em nível estadual,
vivia-se o primeiro mandato de governadores eleitos diretamente. Em São Paulo
havia sido eleito Franco Montoro, político progressista, historicamente ligado às
lutas sociais do país. Montoro promoveu uma gestão mais comprometida com os
valores democráticos buscando uma política de “humanização das prisões”,
aliada a uma proposta de reforma da polícia. No entanto, tal como demonstram
os casos aqui analisados, foram muito poucas as mudanças efetivamente
conquistadas, dada não só a resistência das corporações e de setores da
população, como também a impossibilidade de se transformar por decreto
práticas sistemáticas, fortemente incorporadas nos procedimentos cotidianos.
Podemos observar isso analisando as mecânicas dos acontecimentos nos cinco
casos relatados.
Em Campo Limpo e no Jardim Marta, as situações foram bastante
semelhantes: grande número de policiais dirige-se, à noite (algo não permitido
por lei), para a residência de “suspeitos” - trabalhadores, com famílias
estabelecidas há anos nos bairros em que moravam – e os executam, sem
economizar tiros. No primeiro caso, o morador da casa, temendo tratar-se de um
assalto – o que seria mais adequado à situação - reage e quatro PMs são
atingidos (não se sabe se por tiros disparados por sua arma); no segundo, não é
esboçada qualquer reação.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 571

No Taboão da Serra e em São Mateus, os casos assemelham-se mais


com as execuções praticadas pelos “esquadrões da morte”, formados ainda
durante o regime militar, por grupos da Polícia Civil de São Paulo e depois
incorporados pela Polícia Militar, com a criação de um “pelotão da morte”. Dentre
as vítimas preferenciais destes grupos estavam as crianças e adolescentes em
situação de risco (BICUDO, 1989; MESQUITA, 1997). No Taboão, dois soldados
surpreenderam um grupo de adolescentes diante de um carro roubado, atiraram,
matando um menino de 10 anos e depois torturaram os demais para que eles
assumissem o homicídio. Em São Mateus, dois policiais entraram num bar,
levaram quatro adolescentes “suspeitos” para um local ermo e os mataram.
Finalmente, no caso da Liberdade, temos uma situação mais típica de
execução de “suspeito” durante perseguição policial. Naquele caso, o motivo da
suspeição havia sido uma tentativa de assalto e o cenário do homicídio foi uma
lanchonete.
O primeiro aspecto que ressalta nestes breves relatos é a inversão de
papéis entre a polícia e os criminosos. Homens que chegam durante a noite à
casa de trabalhadores, atiram indiscriminadamente, a par do fato de que dentro
das casas estivessem crianças; ou que sobem no telhado sorrateiramente e
atingem o morador ainda dormindo. Um grupo que encontra crianças e
adolescentes, atira, mata uma delas e tortura as demais para assumirem o crime.
Outro grupo que entra em uma boate, leva quatro adolescentes para uma estrada
e ali os executa. Ou ainda um homem que entra em uma lanchonete e, diante de
todos, atira e mata um vendedor. “No Brasil, a inversão da ordem chegou ao
ponto em que os criminosos parecem confiar mais na polícia do que os
empresários” (PINHEIRO, 1997: 43).
De fato, em todos esses casos, a polícia parece agir mais como uma
organização criminosa do que como uma agência de controle social. Mas estes
casos não são isolados, eles se repetem constantemente a despeito do regime
político vigente ou de programas de governo. Segundo José Vicente Tavares dos
Santos, nas sociedades periféricas, a violência está no cerne da organização dos
aparatos repressivos, garantes de um tipo de dominação muito autoritário e
excludente, que remete aos tempos da escravidão. “A transição da formação
social escravista para a formação social de relações capitalistas de trabalho
redefiniu sem eliminar a utilização da coerção física violenta nas relações entre
os aparatos repressivos e a população urbana e rural brasileira” (TAVARES DOS
SANTOS, 1997: 162).
A democratização institucional não elimina a violência do sistema
repressivo porque o exercício da força física é o mecanismo ordenador da lógica
de exclusão social, que se insere em uma rede de dominações cotidianamente
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 572

reforçadas. É por isso que a violência policial é respaldada pelos setores


dominantes da sociedade e produz eco entre a própria população. Com esse
respaldo, a organização policial articula os três dispositivos básicos: o uso
legítimo da força física, a construção de um consenso e a violência ilegítima.
As vítimas da violência policial são, não por coincidência, recrutadas entre
as classes baixas da população, também as mais visadas pelos demais
aparelhos de justiça. Em Campo Limpo, era um jovem metalúrgico, pai de quatro
filhos, mineiro, branco, sem antecedentes criminais. No Jardim Marta, foi um
jovem livreiro, também branco, solteiro, paulistano, que morava com os pais, com
antecedentes criminais por porte de maconha. No Taboão da Serra, as vítimas
foram quatro jovens, de 10 a 28 anos, trabalhadores braçais, residentes no
bairro, dois brancos, um pardo e um negro. Em São Mateus, outros quatro
adolescentes, desempregados, com passagens pela FEBEM, dois pardos e um
branco (sobre o último, não se informa a cor). Na Liberdade, um jovem vendedor
ambulante, branco, amasiado, pernambucano, com antecedentes criminais por
lesões corporais.
Este é o perfil não só da vítima de violência policial, como também de toda
a violência urbana: a taxa de homicídios entre os jovens de 15 e 24 anos em São
Paulo é de 209,03 por 100 mil habitantes, ao passo que para o município em
geral, essa taxa é de 49,8 por 100.000 habitantes246. “Os mais afetados por essa
violência arbitrária são os desempregados e os marginalizados do sistema
educacional quer seja por serem vítimas da violência policial ou de crimes
comuns contra a vida e a propriedade” (PINHEIRO, 1997: 45). Apesar disso, as
classes altas se vêem como as grandes vítimas da violência urbana, provocada
pelas “classes perigosas”, e é para proteger essa elite que se voltam os sistemas
policiais brasileiros.
Os processos ora analisados demonstram que a violência policial não é
resultado de ações individuais, de cunho desviante. O envolvimento de oficiais e
comandantes em todos os casos sugere o caráter organizacional e plenamente
integrado na hierarquia militar dessas práticas ilícitas. Nos cinco casos
analisados, 16 policiais militares foram indiciados, entre os quais se contam dois
sargentos, um tenente e dois capitães. Um destes capitães tinha 17 anos de
serviço militar e já havia sido processado 10 vezes por homicídio, sem jamais ser
sido condenado; depois tornou-se famoso ao conseguir se eleger deputado
estadual e garantir a imunidade parlamentar, apesar de continuar praticando

246
“Mapa de Risco da Violência” produzido pelo Centro de Estudos de Cultura Contemporânea,
São Paulo, 1996.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 573

homicídios. A eleição deste capitão atesta o respaldo que a violência policial


encontra entre amplos setores da população brasileira (BICUDO, 1989).
No caso de Campo Limpo, os policiais envolvidos pertenciam à ROTA
(Rondas Ostensivas Tobias Aguiar), criada em 1969 como força especializada na
repressão a roubos a bancos. No Jardim Marta, os policiais pertenciam ao Tático
Móvel. A ROTA e o Tático móvel são batalhões encarregados do patrulhamento
ostensivo, para prevenção e repressão à criminalidade. Os policiais da ROTA,
campeões em número de mortos, são conhecidos como os “boinas negras” e se
orgulham de pertencer a este batalhão no qual a coragem e o heroísmo são
medidos pela quantidade de mortes cometidas247. A violência perpetrada durante
o patrulhamento insere-se na própria lógica das atribuições da polícia. Cabe à
polícia exercer a vigilância da população, encarregando-se da manutenção da
“ordem pública”. Nestas atividades, quem exerce o poder de polícia do Estado
tem discricionaridade. “Isso quer dizer que, num continuum onde num pólo está a
arbitrariedade ou o abuso de poder e, no outro, a ação conformada à letra da lei,
a autoridade toma atitudes para garantir a segurança da população. Tais atitudes
são de caráter preventivo, isto é, exercidas antes de se consumar o fato delituoso
ou prejudicial” (KANT DE LIMA, 1989: 70). Em um contexto de exclusão social
como o brasileiro, a discricionaridade facilmente se converte em discriminação. O
caráter discriminatório da atuação da ROTA em São Paulo foi muito bem relatado
por Caco Barcellos (1992), que analisou processos penais relativos a atos de
execução sumária praticados por policiais militares lotados neste batalhão contra
"suspeitos", definidos basicamente por sua aparência: homens, não brancos,
jovens, mal vestidos.
O desfecho dos processos indica que a violência policial não só é um
fenômeno intrinsecamente ligado à organização do sistema policial, como
também que ela é, muitas vezes, corroborada pela Justiça Militar, que até muito
recentemente julgava todos os processos em que os indiciados fossem policiais
militares248. “Formadas por oficiais militares e baseadas em investigações
criminais de péssima qualidade, essas cortes [militares] em geral sancionam a
impunidade de atos como assassinatos cometidos pela polícia e outros crimes
violentos” (PINHEIRO, 1997: 49). Nos dois casos de trabalhadores mortos em
suas residências, os indiciados foram absolvidos. Nos casos contra adolescentes,
houve condenação leve de alguns dos envolvidos: em Taboão da Serra, os

247
Ver Parte II “As Graves Violações de Direitos Humanos e a Imprensa (1980-1996)”, capítulo 7.
“Violência Policial: a ação justificada pelo estrito cumprimento do dever”, subitem. “Perfil dos
Agentes das Violência Policial em São Paulo”.
248
Atualmente, os homicídios cometidos por policiais militares passaram a ser julgados pela
Justiça Comum.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 574

indiciados receberam nota de culpa e ficaram detidos por 15 dias, um dos


soldados foi expulso da corporação e outro foi condenado, sendo os demais
pronunciados; em São Mateus, os indiciados foram expulsos da corporação. No
caso da Liberdade, o indiciado foi condenado a 4 anos de reclusão em regime
domiciliar, o que lhe permitiu concluir o curso de direito que estava fazendo.
Mais importante do que a condenação de indivíduos acusados por crimes
deste tipo, seriam iniciativas - por parte da sociedade civil organizada, das
autoridades governamentais, do poder judiciário e dos próprios componentes das
corporações policiais - no sentido da real transformação de toda a estrutura e a
cultura policial que engendram práticas violentas, inseridas na teia de
dominações que reforçam as múltiplas exclusões sociais.

3. A violência da Polícia Civil: a tortura em busca da confissão

Dentre os processos analisados, há três casos em que os indiciados são


policiais civis: Campos do Jordão (1982), Itaim Paulista (1983) e Cotia (1985).
Todos os três referem-se a práticas de torturas ocorridas no interior de
delegacias de polícia. O contexto é o mesmo dos casos envolvendo a polícia
militar: a primeira gestão de um governo estadual civil eleito diretamente, sendo
que em nível federal, ainda se vivia sob o regime militar. O período de “abertura”
enfim, em que a arbitrariedade das agências de controle social estava
começando a adquirir foros de questão política e as tradicionais práticas de
tortura policial – muito anteriores ao regime militar - começavam a ser
questionadas, talvez devido ao fato de terem sido empregadas, nos anos 70,
contra prisioneiros políticos de classe média.

Em Campos do Jordão, um pintor de paredes foi preso em um local tido


pelos policiais como “ponto de viciados” e torturado para confessar a prática de
furtos. No Itaim Paulista, um ex-presidiário foi levado ao Distrito Policial e
torturado durante cinco dias para confessar um assalto, sofrendo lesões que
culminaram na sua morte, na semana seguinte. Em Cotia, um caseiro foi preso e
torturado para entregar os assaltantes de uma chácara vizinha. Nos três
processos, foram recolhidas provas de que os casos não eram isolados, mas sim
práticas correntes naqueles distritos policiais. Houve mobilização das entidades
civis em decorrência de denúncia das próprias vítimas ou de seus familiares.

A mobilização das entidades de defesa dos direitos humanos teve


contrapartidas – algumas no mesmo terreno da mobilização social e outras mais
coerentes com o regime de exceção que ainda perdurava em muitos aspectos.
Nesta segunda modalidade, enquadra-se o que aconteceu no caso de Cotia, em
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 575

que a vítima retrocedeu em suas denúncias, certamente devido a ameaças por


parte dos policiais. Além disso, dois jornalistas da Folha de S. Paulo foram
detidos quando tentavam fazer uma reportagem sobre o caso. Na delegacia,
estava um conhecido radialista, especializado em programas policiais (em 1986
também seria eleito deputado estadual, acompanhando o coronel do caso de
Campo Limpo), que negou a versão dos repórteres e defendeu o delegado titular
do caso, ex-membro do DOPS.

Já no caso do Itaim Paulista, o indiciamento de delegados provocou uma


“greve branca” da categoria, comentada por Paulo Sérgio Pinheiro.

O que é essa curiosa greve? É o estado de direito, enfim. Na assembléia,


unanimemente os delegados assumiram o compromisso de trabalho dentro da lei,
isto é, prender alguém somente com mandado judicial ou em flagrante. Como aliás
determina a Constituição. (...) Menos do que ficarem ofendidos pela investigação que
está sendo levada a cabo pela Promotoria, caberia aos srs. Delegados se
preocuparem com a existência ou não de tortura nos porões das delegacias. Caso os
srs. Delegados indiciados consigam provar sua inocência, nada há o que temer. Não
se compreende o que possa haver de ofensivo em alguém ser legalmente acusado,
ter defesa assegurada e ser submetido a julgamento (PINHEIRO, 1984: 102-3).

O emprego sistemático de métodos destoantes com o estado de direito,


embora seja generalizado na atividade policial, não o é indiscriminadamente. Ao
contrário, volta-se para as classes sociais mais baixas, reforçando as
desigualdades sociais e a dominação.

As vítimas dos casos ora analisados eram três homens, na faixa etária dos
30 anos, brancos, trabalhadores braçais. O pintor de paredes e o ajudante do
ferro velho tinham antecedentes criminais, o primeiro por porte de drogas, furtos
e lesões corporais e o segundo havia cumprido recentemente pena de nove anos
de prisão por roubo. Este último e o caseiro eram baianos e o pintor de paredes
era nascido na própria Campos do Jordão, onde se deu o caso. Todos moravam
com familiares: o pintor e o caseiro eram casados, o ajudante morava com seu
tio, dono do ferro velho em que trabalhava.

O perfil destas vítimas coincide com o das vítimas de violência policial


militar e não se desvia do geral das vítimas de violência das agências de controle
social no Brasil. Do mesmo modo que a polícia militar discrimina, durante o
patrulhamento, aqueles que ela classifica como “suspeitos”, a polícia civil vai
buscar entre essa mesma população aqueles que lhe podem fornecer
informações ou confessar crimes que tenham ou não cometido, possibilitando
assim concluir mais rapidamente inquéritos policiais. Em sua pesquisa sobre o
sistema judicial da cidade do Rio de Janeiro, Roberto Kant de Lima percebeu que
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 576

a atuação da polícia é direcionada por um esquema evolutivo ligado a


representações elitistas, hegemônicas na sociedade brasileira, que justificam
práticas discriminatórias, atribuindo incivilidade e atraso às pessoas de classe
social mais baixa. Segundo esse esquema evolutivo, haveriam correlações entre
o status social e econômico do indivíduo e seu estágio de evolução cultural.

Quando os litigantes são de status social baixo, a violência física é assumida


pela polícia como parte integrante do cotidiano dessas pessoas. Para adequar-se a
esses padrões, a polícia aplica um código que julga essas “agressões” de forma
distinta, legitimando, ao mesmo tempo, o uso que ela mesma faz, eventualmente, da
violência contra esses segmentos da população: “Essa é a única linguagem que esse
pessoal entende”. (...) Fica claro, assim, que as concepções jurídicas elitistas
ordenam diferenças culturais individuais e de segmentos ou grupos da sociedade
num continuum cujos pólos são, de um lado, o estágio cultural incivilizado, primitivo,
“natural” e inferior e, de outro, um “superior” estágio de cultura e civilização. Tais
concepções são não só extra-oficiais, como chegam mesmo a se institucionalizar
(KANT DE LIMA, 1989: 77
)

O conflito de classes que perpassa as práticas policiais pode ser


apreendido pelo tipo de ação que é mais criminalizado e pelo perfil dos
agressores. Nos três processos em foco, os motivos desencadeadores da
detenção das vítimas foram atentados ao patrimônio, como foi dito acima. Em
relação ao perfil dos acusados, temos: seis investigadores, cinco delegados, três
carcereiros, dois comerciantes (um deles inspetor de quarteirão e o outro
proprietário de uma chácara), um escrivão e um policial militar. O envolvimento
destas pessoas nestes casos sugere a aquiescência das autoridades e das
classes médias (as vítimas dos atentados ao patrimônio) com a violência
incorporada à rotina policial.

Esta cumplicidade fica ainda mais clara quando observamos os desfechos


dos processos. Em Campos do Jordão, o processo foi arquivado. No Itaim
Paulista, em que a vítima morreu, o chefe dos investigadores foi impronunciado;
foi declarada extinta a punibilidade para um dos carcereiros e dois delegados (por
prescrição do crime de lesão corporal); três delegados foram pronunciados; dois
investigadores e o inspetor de quarteirão foram condenados, pelo Tribunal do
Júri, a quatro anos de reclusão em regime aberto; um outro carcereiro e um
investigador foram absolvidos, também pelo Tribunal do Júri. No caso de Cotia,
foi declarada extinta a punibilidade (também por prescrição do crime) do escrivão
e do investigador e o processo foi desmembrado em relação ao proprietário da
chácara, único contra o qual a vítima manteve suas denúncias.

Estes desfechos mostram que o julgamento dos acusados pela Justiça


Comum não garante a condenação dos acusados, mesmo quando comprovada a
autoria do crime. A base para essa situação é dada pela própria forma em que
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 577

são construídos os autos no Brasil, como salienta Kant de Lima. Aqui, são
incorporados aos autos os depoimentos e confissões feitos sem a presença de
advogados. Assim, mesmo se for comprovado o uso da tortura, o conteúdo das
confissões é conhecido pelo juiz e pode ser considerado para a formação de
indícios que comprovem a culpa do indiciado. Paradoxalmente, a inclusão nos
autos de peças desse tipo é justificada pela neutralidade e pela racionalidade do
julgamento. “O juiz é visto como um ser superior, capaz de formular um
julgamento racional, imparcial e neutro, que descubra não só a `verdade real’ dos
fatos, mas as verdadeiras intenções dos agentes. É claro que (...) num sistema
como esse, somente a confissão pode assegurar ao juiz e ao público o absoluto
acerto de sua `sentença’” (KANT DE LIMA, 1997: 177). É por isso que cabe ao
juiz formular os quesitos, extremamente técnicos, segundo os quais os membros
do Tribunal do Júri irão afirmar ou negar a comprovação da materialidade do
delito e os indícios de autoria do crime.

Assim, a violência praticada pela polícia e corroborada pelas demais


agências de controle social explicitam que o papel destas não é o da resolução
dos conflitos sociais, mas sim o da construção de um ethos da suspeição e da
punição sistemática, que referende a dominação das classes “civilizadas” sobre
as “incivilizadas”.
4. A violência da Guarda Civil Metropolitana: a força em nome da defesa da
propriedade

O caso envolvendo a Guarda Civil Metropolitana aconteceu no Jardim


Nazaré (Itaim Paulista), já na segunda metade da década de 80, durante a
primeira gestão municipal eleita diretamente. Jânio Quadros foi eleito, pela
coligação PTB-PFL (partidos que congregavam setores que haviam apoiado o
regime militar) como uma força de oposição ao governo Franco Montoro (PMDB,
antigo MDB, grande oposicionista ao regime militar), e ao prefeito nomeado por
ele, Mário Covas, sobretudo em relação à sua política de segurança, questão que
tinha muito apelo eleitoral, como já foi visto. Assim, a eleição de Jânio Quadros
veio ratificar, em pleno contexto de normalização político-institucional, a
desconfiança da população em relação aos “políticos”, expressa nas oscilações
das preferências partidárias. O fato de então as eleições serem realizadas em um
único turno possibilitava que vencessem candidatos que não alcançavam maioria
absoluta. Analisando os vários colégios eleitorais da cidade, Antônio Flávio
Pierucci percebeu que de fato a cada eleição era uma parte diferente da
população que conferia o primeiro lugar a um candidato: em 1982, a vitória de
Montoro para o governo do estado foi determinada, na capital, pelos votos dos
bairros periféricos pobres; em 1985, Jânio Quadros foi eleito prefeito pelas
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 578

classes médias baixas dos bairros tradicionais das zonas Norte e Leste (Pierucci
In BRANT, 1989: 206-207).

Eleito por estes segmentos e empunhando a bandeira da “repressão


violenta à criminalidade”, Jânio Quadros realizou a única medida que é da alçada
do governo municipal a este respeito: a criação, em 1987, da Guarda Civil
Metropolitana, com a função de zelar pelo patrimônio público. Entretanto, como
se disse, Jânio Quadros não representava a maioria absoluta da população. Se
os grupos que o apoiavam privilegiavam a questão da segurança, outros
mobilizavam-se em torno da reorganização da sociedade civil em vários níveis.
Organizaram-se movimentos de reivindicação popular e de pressão política, entre
os quais se destaca o movimento pela eleição direta para a Presidência da
República em 1984 que, embora frustrado, foi um importante marco na
demonstração de força da sociedade civil. E fortaleceram-se também
movimentos, que já vinham se organizando desde a década anterior, que
reivindicavam junto aos governos locais investimentos públicos nos setores
sociais, como moradia, saúde e educação.

No caso específico do Jardim Nazaré, estiveram em confronto


representantes das duas grandes forças que cindiam o debate político e a
mobilização popular: de um lado, a Guarda Civil Metropolitana e, de outro, os
movimentos por moradia. Estes últimos começaram a se formar em São Paulo,
nos anos 70, para impedir as ações de despejo, em terrenos ocupados
geralmente de forma desorganizada. Foi exatamente este o contexto da ação no
Jardim Nazaré. Ali 150 guardas civis foram encarregados da desapropriação de
uma área supostamente destinada à construção de uma creche municipal,
destruindo casas de bloco de concreto e outras benfeitorias no terreno realizadas
pelos moradores. Durante a ação, os guardas acabaram invadindo também
propriedades particulares, vizinhas à área do litígio. Os moradores resistiram e
então o coordenador da ação determinou que os guardas atirassem com balas de
festim contra a população, ao que os moradores reagiram atirando pedras e
tijolos. Em represália alguns guardas se valeram de armas com munição real e
atiraram em direção à multidão: um pedreiro acabou sendo atingido mortalmente
e três outras pessoas ficaram feridas.

O conflito do Jardim Nazaré não foi exceção nem pela época nem pela
região em que aconteceu. Entre 1981 e 1984, ocorreram 61 ocupações de terra,
envolvendo dez mil famílias e atingindo cerca de dois milhões de metros
quadrados. Em 1987, ano do caso em questão, 18.619 famílias foram
cadastradas pela Companhia do Desenvolvimento Habitacional de São Paulo
(CDH) nas áreas ocupadas, que atingiram então cerca de cinco milhões de
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 579

metros quadrados e somaram 51.156 famílias envolvidas. A situação era mais


grave justamente na zona Leste: 92% das famílias cadastradas em terrenos
ocupados encontravam-se naquela região. Como resultado de toda essa
mobilização, em 1986, o governo estadual iniciou um programa de produção de
moradias na zona Leste, declarando como de interesse social grandes glebas de
terra (BRANT, 1989: 224-7).

As famílias organizavam-se em torno de quatro tipos de movimentos:


entidades ligadas à Igreja, como a Comunidade do Bairro Guaianazes que atuou
no Jardim Nazaré, tinham cadastradas 12,2% destas famílias; junto aos partidos
políticos estavam cadastradas 35% das famílias – o que explica que o Comitê de
Apoio ao Ocupante da Terra da Assembléia Legislativa estivesse envolvido no
conflito do Jardim Nazaré; o Movimento dos Sem Terra, que também atuou neste
caso, cadastrava 29,2% das famílias; os 26,6% das famílias restantes ligavam-se
a movimentos que articulavam setores da Igreja e de partidos políticos (BRANT,
1989: 228).

Uma das pessoas que ficou ferida durante o confronto com a Guarda
Municipal era presidente da Sociedade Amigos de Bairro da Vila Primeiro de
Outubro. Tratava-se de um conferente, pardo, de 39 anos. Além dele foram
feridos um motorista, de 24 anos e uma dona de casa, branca, de 46 anos, que
morava no terreno vizinho ao local do conflito havia sete anos. A vítima fatal do
caso foi um pedreiro, de 39 anos, pardo, casado, pai de quatro filhos. Os três
homens envolvidos no conflito, além de terem em comum ocupações pouco
especializadas, eram nordestinos.

Foram indiciados os comandantes da ação e os autores dos disparos: o


Secretário Municipal da Defesa Civil, coronel militar da reserva, 54 anos,
desquitado, sem antecedentes criminais; um tenente militar da reserva,
anteriormente condenado por abuso de autoridade, branco, casado, 46 anos; um
guarda que já havia sido indiciado em inquérito arquivado três anos antes,
casado, pardo; um outro guarda sem antecedentes criminais, branco, 25 anos,
solteiro. Todos eram paulistas.

O Secretário Municipal da Defesa Civil foi afastado de seu cargo mas, na


justiça, foi-lhe decretada extinção da punibilidade, oito anos depois dos
acontecimentos. O mesmo foi decretado em favor do tenente. Um dos guardas
faleceu por ataque cardíaco em 1991 e o outro foi absolvido, por falta de provas.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 580

5. A Violência do Estado e a manutenção de uma ordem excludente

Os nove processos analisados sintetizam os principais conflitos políticos


que constituíram a transição democrática no Brasil. Foram eleitos alguns
governos estaduais historicamente ligados à luta pelo fim da ditadura, com
programas para a área de segurança, que buscavam erradicar práticas violentas
e arbitrárias da ação policial e de violação sistemática aos direitos humanos das
populações encarceradas. Estes governos, no entanto, tinham sua atuação
limitada por uma série de fatores: em primeiro lugar, não haviam
necessariamente sido eleitos por maioria absoluta posto que os pleitos davam-se
em um único turno, e por isso não contavam com a adesão de grandes setores
da população a seus projetos. Em segundo lugar, em nível federal perdurava o
regime militar, o que lhes impedia de adotar programas que buscassem
transformar de fato as estruturas do poder político, econômico e social do país.
Finalmente, estes governos tiveram que enfrentar as estruturas extremamente
hierárquicas das corporações e uma cultura institucional baseada em práticas
cotidianas de autoritarismo, arbitrariedade e violência. Os nove processos em
foco sugerem que, neste embate, programas de governo não foram suficientes
para a transformação desta realidade.

Esta cultura autoritária das agências de controle social constituiu-se ao


longo de toda a sua história, sendo marcada por um longo passado escravista e
uma estrutura social profundamente desigual e discriminatória. Estes fatores
foram acentuados durante o regime militar instaurado em 1964, por meio de
alguns dispositivos específicos como a criação da ROTA, em 1969, para o
combate de roubo a bancos praticados por grupos guerrilheiros; e, nos anos 70,
pela criação dos “esquadrões da morte” por grupos da Polícia Civil de São Paulo
e depois incorporados pela Polícia Militar voltados para a perseguição política e
também de criminosos comuns.

Mas essa cultura violenta remete às próprias atribuições da polícia e


ultrapassa as corporações. Incumbida da prevenção ao crime, por meio do
patrulhamento, a ação da polícia militar acaba sendo direcionada para a definição
do tipo “suspeito”, ao qual é atribuída a eminência do comportamento criminoso
(incivilizado, violento) e para dissuadi-lo, não se hesita na aplicação de métodos
autoritários e violentos. Já à polícia civil, cabe prover o juiz dos indícios de
culpabilidade daquele mesmo “suspeito”, mesmo que para isso ela também tenha
que se valer da violência. O poder judiciário (civil e militar) referendam o emprego
desta violência pela polícia. E não há como negar, amplos setores da população
também o fazem, como ficou patente na escolha do primeiro prefeito eleito
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 581

diretamente para a capital paulista que reeditou a violência policial em nível


municipal por meio da criação e da Guarda Civil Metropolitana.

Em contrapartida à manutenção deste legado autoritário, setores da


sociedade civil – partidos políticos, sindicatos, Igreja, ONGs - organizaram-se,
durante o período de transição para a democracia, em torno da reivindicação dos
direitos humanos (dos presos, das crianças de rua, dos internos nas instituições
voltadas para menores infratores, dos internos em manicômios); dos direitos civis
(pelas eleições diretas em todos os níveis, por uma nova Constituição, pela
liberdade de formação e atuação partidária); dos direitos sociais (moradia,
educação, saúde, transporte, saneamento básico); dos direitos econômicos (pelo
“fim da carestia”, por melhores salários, pela garantia de emprego).

Assim, o confronto entre a polícia e a população revela um confronto entre


as forças voltadas para a manutenção de uma ordem social excludente e
autoritária e as forças voltadas para a transformação deste estado de coisas.
Esse confronto dá-se por vezes de forma manifesta, como nas ações de
repressão a movimentos grevistas ou de desapropriação de terrenos ocupados
pelos movimentos de moradia. Outras vezes, este confronto é ocultado pela
imagem de uma guerra entre os “civilizados”, representados pelos defensores da
lei, e os “incivilizados”, aqueles que atentam contra a lei, na grande maioria das
vezes, homens jovens, precariamente inseridos no mercado de trabalho ou no
sistema escolar, habitantes das regiões mais carentes das grandes metrópoles –
ou seja, aqueles despossuídos de todos os direitos listados acima.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 582

CAPÍTULO 12
VIOLÊNCIA NO CAMPO: O BRASIL RURAL

Helena Singer

1. Casos selecionados

1.1 Violência em conflito de terra no Maranhão

Data: 18/11/87

Resumo
No dia 18/11/87, um lavrador feriu um garrote pertencente a um fazendeiro
e discutiu com um dos responsáveis por esse animal. Voltou para sua casa,
enquanto o empregado da fazenda contava para seu irmão o que havia
acontecido. Este saiu então em direção à casa do lavrador e seu pai pediu que o
irmão fosse alcançá-lo. Segundo testemunhas, os dois chegaram juntos à casa
do lavrador e deram-lhe quatro tiros. A vítima ainda deu um tiro com a espingarda
que estava em seu colo, tiro este que feriu um dos irmãos, mas pouco depois o
lavrador morreu. Quando, em seguida, o pai dos agressores chegou ao local, a
comunidade tentou linchar os três que, no entanto, conseguiram fugir.

Relatório da Comissão Pastoral da Terra (CPT) de julho de 1991 informava


que várias audiências haviam sido marcadas com os réus que não
compareceram, o oficial de justiça alegando não encontrá-los, apesar de todos na
comunidade os verem regularmente. No mês seguinte, os réus pediram para
serem interrogados.

No dia 26/05/93, os dois irmãos foram pronunciados e presos. Mas no dia


24/02/94, o Tribunal do Júri os absolveu, aceitando a tese da legítima defesa.

Local

O caso aconteceu no povoado de Alto Alegre, no município de Coroatá


localizado na região nordeste do estado do Maranhão (NE do país), às margens
do rio Itapecuru, a leste do estado, próximo à capital São Luís.

O Maranhão é um estado de vastas terras, com um grande número de


camponeses sem terra, seca crônica e crise agrícola, responsáveis por grande
desarticulação social. Sua área é de 328.663 Km2 e a população, no final da
década de 80, era de 5.181.800 habitantes, sendo portanto de 15,76 habitantes
por Km2 a densidade demográfica do estado.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 583

A ocupação da região pré-amazônica maranhense, a oeste do estado,


intensificou-se nos anos 50, quando milhares de famílias de trabalhadores
sobretudo de outros estados do Nordeste, foram deslocadas de suas terras pelas
grandes fazendas. Quando se iniciou o programa do governo para o
assentamento de trabalhadores sem terra nessa área, cerca de 50.000 pessoas
já estavam no local. Como resultado, entre as décadas de 50 e 80, as terras
foram sendo subdivididas em pequenas unidades, cada vez menos viáveis
economicamente. Grande parte da região era constituída de terras devolutas
estaduais, área de floresta não desenvolvida, nas quais os colonos foram se
instalando. Se a princípio as ocupações eram feitas isoladamente, com a
organização do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, nos anos 80,
tornaram-se atos coletivos, o que acirrou os conflitos.

Já o sul do Maranhão, a partir de 1974 tornou-se pólo de imigração de


várias categorias de produtores agrícolas do Sul do país. Entre 1981 e 1982, a
região passou a apresentar bons índices de produtividade sobretudo de arroz,
devido à alta mecanização incentivada pelo governo para o grandes proprietários.
No entanto, este mesmo processo levou a uma reativação do mercado fundiário
com incentivos à privatização de terras por proprietários dos estados do Sul, que
entravam em conflito com os camponeses anteriormente estabelecidos na região.

Ao longo da década de 80, a violência rural apresentou um movimento


crescente em todo o estado, com um pico em 1985, quando o governo federal
anunciou o Plano Regional de Reforma Agrária (PNRA), aprovado no ano
seguinte, pelo Decreto 92.619. O plano de fato não alcançou seus objetivos - até
1993, foram desapropriados 649.671 hectares, o que correspondia a 25% do
previsto para os primeiros quatro anos e foram assentadas 18.120 famílias, 15%
do previsto. Embora o plano não tenha de fato sido implementado, a demarcação
das terras que deveriam ser desapropriadas levou a um aumento dos atos de
violência contra a propriedade e contra a pessoa.

A região em que ocorreu o caso é predominantemente de criação de gado


bovino, mas as margens do rio Itapecuru são aproveitadas para o cultivo do
arroz. A destruição de pequenas roças por animais de grandes criações é, neste
contexto, até mesmo esperada.

A violência que caracteriza os conflitos no estado vitimiza principalmente


os líderes dos trabalhadores rurais, ligados aos sindicatos ou à CPT. Os
assassinatos ocorrem sobretudo após alguma ocupação de terra. Os agressores
são, na maior parte das vezes, pistoleiros a mando de algum proprietário de terra.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 584

Também aqui, a justiça está ausente, a não ser em casos de grande


repercussão.249

Em relação às taxas de criminalidade violenta, entre 1980 e 1991 foram


130 os homicídios registrados na zona rural do Maranhão. No ano do caso em
questão, 1987, foram 12 homicídios, 10 atentados, 37 ameaças de assassinato e
5 denúncias de tortura. Embora na segunda metade da década, estes números
tenham sofrido uma retração, as situações de conflito permaneceram. Entre 1990
e 1991, foram determinadas 127 situações de conflito no estado, envolvendo
cerca de 200.000 famílias.250

Vítima

Lavrador, brasileiro, residente no povoado de Alto Alegre, ligado à CPT.

Indiciados

Dois irmãos foram indiciados, ambos empregados de fazenda no povoado


de Alto Alegre, onde residiam com o pai e suas respectivas famílias. O mais novo
tinha 22 anos. Seu irmão era vaqueiro, de 24 anos, pardo. Os dois eram casados,
analfabetos e brasileiros.

Testemunhas

Apenas cinco pessoas foram ouvidas como testemunhas neste caso.


Todas eram lavradores, do sexo masculino, brasileiros, residentes no povoado de
Alto Alegre. Diferenciavam na idade: três tinham entre 51 e 67 anos, um tinha 25
e o último, 36. Apenas um deles era solteiro. Em relação ao grau de instrução, há
informação somente para dois, ambos analfabetos.

Relações hierárquicas entre protagonistas

As relações entre vítima, agressores e testemunhas não eram


propriamente hierárquicas, sendo bem mais relações de conflito. Os agressores
eram irmãos empregados de uma fazenda e a vítima era um lavrador;
conheciam-se há cerca de três anos, quando começaram a ter desavenças
devido à invasão da terra da vítima por animais de responsabilidade dos
agressores. Entre as testemunhas, quatro eram familiares e conhecidos da vítima

249
A análise da violência rural no Maranhão provêm da pesquisa “Ambigüidades do Aparelho
Judiciário e Construção da Democracia”, realizada pelo Núcleo de Estudos da Violência, entre
1990 e 1994, sob coordenação do professor doutor Sérgio Adorno. Os principais resultados da
pesquisa encontram-se em SINGER & SCHINDLER, 1997. Como referências específicas para o
Maranhão, cita-se Americas Watch, 1991 e ANDRADE, 1992.
250
Os números relativos à violência no Maranhão provêm dos relatórios anuais divulgados pela
Comissão Pastoral da Terra (CPT-Goiânia) e também do relatório da Sociedade Maranhense de
Defesa dos Direitos Humanos, Conflitos de Terra, São Luís: SMDDH, 1993.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 585

e apenas uma relacionava-se aos réus; também elas estavam envolvidas em


conflitos de terras.

Contextos/Cenários

O caso desenrolou-se na propriedade da vítima e suas circunvizinhanças,


onde um dos indiciados encontrou morto um animal de sua responsabilidade. Foi
então pedir satisfações à vítima, em virtude de acontecimentos semelhantes
supostamente ocorridos antes envolvendo-a bem como outros lavradores da
região, embora nenhum destes casos tenha sido levado às autoridades policiais.
A roça da vítima e dos lavradores ligados a seu grupo era cercada pela CPT.

“Física” dos acontecimentos

O assassinato do lavrador é o desfecho de uma história de conflitos que


envolve, de um lado os lavradores ligados à CPT, que têm suas terras cercadas
por ela e, de outro, os lavradores não ligados à CPT, que colocam seus animais
ou os animais dos fazendeiros para quem trabalham pastando nas terras
ocupadas por aqueles.

A justiça parece ser acionada para resolver os conflitos cotidianos


advindos da disputa pela terra. Fica claro, nos vários depoimentos, que a invasão
de roça por gado alheio é recorrente. Entretanto, ao invés de a polícia ser
chamada para intervir no caso, comumente o proprietário da roça opta por matar
o animal invasor.

O relacionamento dos lavradores com a CPT parece ser o fator divisório


da comunidade, que se vê cindida entre o "grupo da CPT" e os outros e os
conflitos são sempre atravessados por esta distinção.

Naquele dia 18/11/87, o lavrador encontrava-se à porta de sua residência,


conversando com um amigo, quando inesperadamente, chegaram dois
empregados de uma fazenda vizinha, perguntado se ele havia baleado um
garrote de sua responsabilidade. Respondendo-lhes afirmativamente, os
agressores disseram-lhe que “a partir daquele momento ele não matava mais
animal de ninguém”, ao mesmo tempo, em que disparavam quatro tiros de
revólver. A vítima revidou, dando também um tiro, que atingiu um dos agressores,
e depois faleceu.

Observações finais

A impunidade dos indiciados começa a ser construída desde a instauração


do inquérito, apesar da prisão preventiva dos réus, uma vez que o delegado
deixa clara sua falta de empenho para apurar o caso. Mais que isso, ele parece
apostar que as autoridades judiciárias também não se dedicarão ao caso,
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 586

explicitamente deturpando, em seu relatório, os depoimentos das únicas duas


testemunhas que comparecem à delegacia, testemunhas oculares do crime. Sua
aposta é confirmada em vários momentos: passados quatro anos do crime, o
oficial de justiça não “consegue” intimar os réus a depor apesar de eles
circularem livremente pela cidade, segundo relatório da CPT; quando finalmente
os réus são levados a júri, são absolvidos; apenas cinco pessoas foram ouvidas
como testemunhas, sendo que outras seis pessoas foram citadas em vários
depoimentos e não foram ouvidas em qualquer das fases. Pairam dúvidas
inclusive sobre quem era o proprietário do gado que era cuidado pelos réus, se
eles mesmos, seu pai ou outras pessoas mencionadas nos depoimentos. Parece
importante neste contexto de tumulto das informações o medo das testemunhas
em depor, tal como fica claro nos depoimentos de duas delas.

Três anos após os fatos, juiz os condena à prisão, mas eles não chegam a
ficar um ano presos, já que são absolvidos pelo Tribunal do Júri.

1.2.Violência em conflito de terra na Paraíba

Data: 29 de dezembro de 1988

Resumo
O caso refere-se a crime de homicídio ocorrido no dia 29 de dezembro de
1988, por volta das vinte horas, na residência da vítima (um agricultor), na
fazenda de Gurugi II, município de Conde, tendo como indiciados o administrador
de fazenda que estava em litígio com os trabalhadores e um outro agricultor que
exercia a profissão de motorista.

O assassinato teve suas origens no conflito de terras que predomina na


região, terras já desapropriadas, desde maio daquele ano, pelo Governo Federal,
que até então ainda não havia fornecido o título de posse aos legítimos
posseiros. Em decorrência desta demora promovida pelo MIRAD, o clima na
região ficou tenso, aumentou o conflito na área, acirraram-se os ânimos dos
moradores da comunidade, o que culminou com o assassinato do agricultor.

Ouvidos os indiciados, qualificados e interrogados, perceberam-se


contradições em relação às evidências, especialmente quanto à chegada do
motorista em sua residência logo após o crime. O administrador, por sua vez, não
hesitou em confirmar que o seu carro Volkswagen, exatamente naquele horário,
havia saído conduzindo familiares para uma festa religiosa em uma igreja crente,
mas as investigações já reuniam condições para provar que seu carro havia
mesmo saído naquele horário, coincidindo também no percurso em direção à
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 587

praia de Jacumã. Este indiciado desconhecia que o percurso que fora coberto
pelo carro já havia sido investigado, levando à conclusão de que ele dera
inclusive uma parada nas proximidades da casa da vítima, encontrando-se com
outro veículo, desligando os faróis e seguindo depois em direção à praia de
Jacumã, enquanto o outro veículo retornava em sentido oposto ao que chegara.
Após o encontro dos dois veículos surgiram dois vultos de pessoas, e um minuto
após, ouviu-se o disparo fatal. Algumas testemunhas afirmam terem visto outros
dois agricultores nas imediações da casa da vítima.

Concluídas as investigações, no dia 06 de janeiro de 1989, o delegado


pediu a prisão preventiva dos dois indiciados, porém o administrador da fazenda
fugiu. Em 29 de julho de 1991, os indiciados foram pronunciados, mas em 17 de
março de 1992, acórdão seguiu parecer da Procuradoria da Justiça sobre recurso
da defesa e anulou a sentença de pronúncia. Em 4 de setembro de 1992, juiz
pronunciou pela segunda vez os indiciados, a fim de que fossem julgados pelo
Tribunal do Júri, manteve a prisão do motorista e expediu mandato de prisão
contra o administrador de fazenda, que permanecia foragido. No dia 9 de
dezembro de 1993, o juiz decretou prisão temporária, por cinco dias, dos outros
dois agricultores mencionados nos depoimentos de algumas testemunhas, mas
nada se provou contra eles. Em 27 de dezembro de 1993, o conselho de
sentença negou que o motorista tivesse praticado o homicídio e, por seis votos a
um, ele foi absolvido. A defesa recorreu, mas em 08 de junho de 1995, acórdão
posicionou-se pelo não provimento do recurso. Em 1997, o administrador da
fazenda retornou à comunidade e conseguiu Habeas Corpus para responder em
liberdade ao processo, que foi reaberto.

Relato da CPT informa que três meses depois da morte deste agricultor,
cerca de 70 trabalhadores rurais foram protestar em frente ao Fórum de
Alhandra, a comarca mais próxima, pedindo a prisão do administrador da fazenda
que estava foragido. O tio deste, então, jogou sua caminhonete por três vezes
sobre os manifestantes e em seguida atirou contra eles. Uma moradora do local
faleceu e outras 23 pessoas ficaram feridas. Mais de mil pessoas participaram do
enterro. O homicida foi denunciado, preso e, em 28 de fevereiro de 1992,
condenado a prisão pelo Tribunal do Júri

Local

O caso ocorreu no povoado de Gurugi, a cinco quilômetros da sede do


município de Conde, na mesoregião da Mata Paraibana, estado da Paraíba, a
catorze quilômetros da capital, integrando assim a Grande João Pessoa. O
litorâneo município é ainda limítrofe com Alhandra e Pitimbu. Além do Gurugi, o
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 588

município é formado pelo povoado de Jacumã, os aglomerados de Paripe, Mata


da Chica, Mituaçu, Caxitu, Utinga e Pituaçu, as localidades de Capim-Açu,
Prazeres, Tambaba, Jacoca, Amparo, Barra de Gramame e Salsa e 30 mil
loteamentos. Os primeiros loteamentos surgiram a partir de 1968, como forma de
impedir que o INCRA realizasse a desapropriação da área para fins de reforma
agrária. Há uma elevada quantidade de hectares não utilizados ou subutilizados,
cujos proprietários aguardam a valorização.

O Povoado de Gurugi é formado pelas localidades de Gurugi I, Gurugi II


(onde se deu o assassinato) e Ipiranga251.

O município de Conde abrange uma área de 144 Km2 (14.400 hectares),


com uma bacia hidrográfica bastante rica, constituída de córregos e rios, em que
se destaca o rio Gurugi, a beira do qual se constituiu a área em questão. Em sua
vegetação litorânea, destacam-se os cajueiros, mangabeiras, coqueiros e outras
árvores frutíferas que constituem uma das principais fontes de sobrevivência da
população rural da região.

Em 1991, a população de Conde era de 10.338 habitantes e apresentava


uma taxa de crescimento anual correspondente a 4,55, bastante superior tanto à
da Mata Paraibana quanto à do estado como um todo. Mais de 87% desta
população é rural, vivendo sobretudo da colheita de frutas e do cultivo de inhame.
Ultimamente vem ganhando importância o setor de turismo no povoado de
Jacumã.

Gurugi II, especificamente, abrange 80 famílias, que sobrevivem


predominantemente da agricultura, vivendo em uma área de 593 hectares.
Possui uma casa de farinha e seus moradores dispõem de uma escola de
primeiro grau uma creche, um posto de saúde e um posto telefônico localizados
no Gurugi I.

Em relação ao município como um todo, o sistema de saúde é precário e


ineficiente, em número de estabelecimentos. Utiliza-se apenas a medicina
curativa, não havendo qualquer ação preventiva, que seria fundamental posto
que a maioria da população consome água sem tratamento, de poços ou rios.
Grande parte da população local prefere deslocar-se para João Pessoa,
utilizando-se das duas ambulâncias da prefeitura, para submeter-se a
tratamentos de saúde na capital. As deficiências no setor de saúde, a má

251
Instituto de Desenvolvimento Municipal e Estadual da Paraíba (IDEME), Plano Diretor de
Desenvolvimento Municipal de Conde, dezembro de 1992. Todos os dados referentes ao
município de Conde bem como as informações mais recentes sobre o caso foram coletados por
Marcelo Gomes Justo, como parte de seu projeto "A Luta pela Terra e O Direito à Vida",
desenvolvido junto ao Departamento de Geografia da FFLCH/USP.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 589

qualidade de vida e a baixa renda da população contribuem para altas taxas de


mortalidade (em 1988, ano do homicídio, as taxas eram de 53,6% entre as
crianças até 14 anos e de 46,4% entre os adultos) e a ocorrência de muitos
óbitos sem assistência médica - 58,5% em 1988.

A rede escolar composta por 18 unidades públicas de ensino e duas


particulares, sem registro no Conselho Estadual de Educação, também é
insuficiente, tendo crescido muito a taxa de analfabetismo nos últimos anos.

São precários ainda todos os serviços relativos à infra-estrutura urbana


como pavimentação, transporte, energia elétrica, abastecimento de água, e é
total a ausência de esgoto sanitário. Na zona rural os problemas são agravados
pela distância em relação aos centros urbanos e também em relação às fontes de
água. Em Gurugi I e Gurugi II, a água é de poço artesiano, que corre para uma
caixa d’água, de onde é distribuída.

Em termos de organização política, Conde conta com dois sindicatos de


trabalhadores rurais e dez associações de moradores.

A segurança pública é exercida pela Delegacia de Polícia, composta por


um delegado, um escrivão e 31 policiais, 6 deles lotados no posto policial de
Gurugi, atualmente fechado. A única viatura da delegacia funciona
precariamente, sem condições de atender as ocorrências na zona rural. Há ainda
o problema de policiais militares realizarem atribuições da polícia civil, o que
prejudica o relacionamento entre estas duas corporações. Em 1988, foram
registradas 25 ocorrências, entre as quais 5 homicídios,11 casos de lesão
corporal seguida de morte e um caso de furto qualificado. Entre 1988 e 1990,
houve um aumento considerável do número de ocorrências do município, tendo
depois voltado ao patamar anterior, próximo a uma dezena.

Vítima

Agricultor e funcionário da prefeitura, 40 anos, amasiado, 6 filhos, pardo,


natural de Alhandra (PB), residente em Gurugi II - Conde. Membro da Associação
Comunitária e da Comunidade Eclesial de Base e militante do Partido dos
Trabalhadores.

Indiciados

Um motorista, com antecedentes criminais, nascido em 22/1/51 (37 anos),


casado, residente em Gurugi I, que sabe assinar o nome.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 590

Um administrador de fazenda, nascido em 30/6/48 (40 anos), casado, 6


filhos, natural de Pitimbu (PB), residente no sítio Ipiranga, com nível escolar
primário. Nunca foi preso, mas já foi processado. Respondeu a ação penal por
lesões corporais.

Testemunhas

Foram 39 as pessoas ouvidas como testemunhas neste caso, apenas 8 do


sexo feminino. A grande maioria (24) eram agricultores, moradores da região do
conflito, 26 habitavam no povoado do Gurugi. Além dos agricultores, 3 eram
donas-de-casa; e os demais: o religioso envolvido no conflito; um coveiro, que
suicidou-se pouco tempo depois; um mestre-de-obras; um vigilante; um
funcionário público municipal; um estudante; um pintor; um professor proprietário
de terras na área do conflito; e um pescador; sobre 4 testemunhas, não se
informa a ocupação. Os que não moravam na região do assassinato, residiam, na
sua maior parte, em outras áreas de conflito próximas dali: 4 no próprio município
de Conde (Jacumã, Barra de Gramame, Paratibi e loteamento Nossa Senhora da
Conceição); 4 em João Pessoa; dois em Alhandra; e um em Recife (PE). Quanto
ao estado civil, contam-se: a viúva da vítima, com quem era amasiada e tinha
vários filhos; um divorciado; 18 pessoas que se declararam solteiras, sendo que
ao menos 12 delas tinham filhos; 17 casadas; sobre a última, não há informação.
No que se refere às idades, para 20 testemunhas informa-se apenas que eram
"maiores" e para 8 delas, não há qualquer informação; as demais distribuíam-se
assim: uma com 19 anos, uma com 25, cinco na faixa dos 30 anos, uma com 44,
e três entre 62 e 65 anos de idade. Em relação ao locais de origem, os dados
também são vagos: informa-se que 22 eram brasileiras; 7 eram paraibanas
(municípios de Conde e Esperança); duas eram pernambucanas. Do mesmo
modo quanto ao grau de instrução: 5 sabiam ler e assinar o nome; 4 eram
analfabetas; uma tinha primário completo; sobre as demais não há qualquer
informação.
Relações hierárquicas entre protagonistas

As relações entre os protagonistas eram marcadas pelo conflito de terras.


Os indiciados haviam trabalhado para o fazendeiro que reivindicava a
propriedade da terra, a vítima era um dos líderes da luta dos moradores pela
posse da terra. Entre as testemunhas, 12 eram moradores do local que
forneceram o álibi para os indiciados; 10 eram outros moradores que estavam
diretamente envolvidos no conflito; 6 eram parentes, empregados ou clientes dos
réus; 5 eram parentes ou amigos da vítima; 4 eram outros líderes do local; dois
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 591

eram moradores do local que foram acusados pelas testemunhas que forneceram
o álibi dos réus.

Contextos/cenários

O homicídio aconteceu na casa da vítima, casa de taipa, sem iluminação


elétrica, cercada de roçado, localizada em Gurugi II, no município de Conde. A
casa fica a cerca de cem metros da estrada que liga o centro de Conde à praia
de Jacumã no mesmo município.

Segundo testemunhas, a violência era comum ali. O administrador da


fazenda acusado já havia praticado um crime na cidade contra um ex-
empregado, porque este havia reclamado na Justiça do Trabalho uma
indenização trabalhista; na ocasião, o administrador teria dito: “você ganhou mas
não leva” e dois dias depois teria ido até a casa dele e atirado, mas não o teria
matado naquele momento. Algum tempo depois, este trabalhador foi morto, mas
o administrador respondeu a processo somente pelo atentado. Nesse processo,
ele alegou legítima defesa, dizendo que o ex-empregado o teria agredido com
uma peixeira.

Em outras ocasiões, ele teria atirado em um trabalhador durante uma briga


e atentado contra outro. Este mesmo administrador já teria também ameaçado
derrubar a casa da vítima, preparado emboscada contra a vida do presidente da
associação da comunidade e queimado a casa de um lavrador. Em uma reunião
na Federação dos Agricultores, o administrador compareceu armado e ameaçou
uma moça.

Alguns dias antes do homicídio, um agricultor encontrava-se numa barraca


de um sobrinho seu, quando o administrador desceu do seu carro com revólver
em punho e afirmou o seguinte: “Eu tenho vontade de acabar com um”; o
agricultor perguntou-lhe o que se passava e este encostou o revólver na sua
cabeça e passou a ameaça-lo, depois cada um seguiu para o seu lado. Por ter
ameaçado de morte outros trabalhadores rurais, o administrador acabou sendo
indiciado em alguns inquéritos policiais e denunciado em ação penal. Ele tinha
porte de arma e possuía um revólver calibre 38 e uma espingarda calibre 12.

O grupo que apoiava o administrador da fazenda (formado por rendeiros


trazidos por ele nos anos 80 de municípios vizinhos), por sua vez, já havia
registrado várias queixas na delegacia contra o grupo da vítima por invasão de
propriedades, atentados, destruição de residências e ameaças.

O motorista indiciado, segundo sua amásia, gostava de caçar e por isso


possuía duas armas de cano longo.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 592

Testemunhas afirmaram que no sítio Gurugi II e adjacências todas as


pessoas possuíam armas ou andavam com facas ou portam algum outro
instrumento de trabalho, que poderia servir como arma. Eram diversos os
moradores que possuem espingarda calibre 12 e revólveres e era comum
ouvirem-se disparos de arma de fogo durante a noite.

"Física” dos acontecimentos

Até o século XVII, o município tinha como moradores os índios que lá


viviam da pesca e da roça de mandioca e milho. No início daquele século, os
missionários, sob a tutela do governo, fundaram a aldeia de Jacoca e aos índios
foram-lhes entregues algumas terras de pouco valor porque impróprias ao cultivo
da cana. Com a invasão holandesa, a aldeia foi abandonada e, em 1660, os
índios e caboclos construíram outra a que deram o nome de Maurícia. Em 1750,
a aldeia foi elevada à freguesia e, no final do século XIX, transformou-se em Vila
do Conde252. Àquela época, Guagirú era uma de suas povoações que
acompanhava a praia de Coqueiros, pertencente a Seu Paizinho e D. Hia.
Existiam algumas casinhas nos tabuleiros pertencentes aos primeiros moradores,
que faziam carvão com a lenha apanhada e plantavam roça, pagando o foro com
a carga de farinha. As terras do sul da vila eram férteis, próprias para a cana,
contendo, na época, alguns engenhos.

Em meados do século XX, a vila era estruturada por uma pequena área
urbana e uma vasta área rural dividida entre três grandes proprietários -
Francisco José das Neves (que adquiriu Gurugi I entre nos anos 40), Nelson
Pimentel (que adquiriu a parte de S. Paizinho e D. Hia, Gurugi II, entre nos anos
50) e a família Lundgren - e o Estado, que possuía parte abrangendo do Gurugi I,
arrendada por Francisco José das Neves.

Com a morte de Francisco das Neves, seus herdeiros tornaram-se os


arrendatários e, na década de 70, conseguiram a posse definitiva daquelas
terras. Então, as lotearam e venderam a terceiros, interessados em plantar cana-
de-açúcar para ingressar no programa governamental do Pró-álcool. Os
moradores iniciaram uma ação de resistência que teve como resposta a violência
dos proprietários, que promoviam a destruição de residências.

A fazenda Gurugi da Praia, formada por Gurugi II e Barra do Gramame, e


parte do Jacumã pertenciam a Nelson Pimentel. Em 1946, ele desmatou parte de
Gurugi da Praia onde mandou plantar coqueiros. Os moradores lhe pagavam,

252
Há duas versões para a origem do nome da cidade: ou seria uma homenagem ao Conde
Maurício de Nassau ou à fruta do conde. Ver a respeito Núcleo de Documentação e Informação
Histórica Regional (NDIHR), 1996, Uma história do Conde.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 593

como condição para permanecerem na terra, um dia de trabalho, tratando dos


coqueiros. Em 1958, as terras foram arrendadas e os antigos moradores
obrigados a pagar o foro. Nos anos 70, as terras foram divididas e foi exigido que
os moradores esvaziassem a área para ser loteada e voltada para a criação de
gado. Os agricultores resistiram e, em 1987, fundaram as Associações de
Moradores de Barra do Gramame e de Gurugi II, que conseguiram a
desapropriação das terras pelo INCRA, em 19/05/88253. O lavrador assassinado
integrava o Conselho Fiscal da Associação de Gurugi II.

Gurugi I foi adquirido pelo Estado e dividido entre os posseiros que logo
receberam os títulos de posse, ao passo que Gurugi II foi desapropriado, mas os
posseiros ainda não haviam recebido os títulos. Dentro do Gurugi II localiza-se o
sítio Ipiranga que ficou sob a posse dos pequenos proprietários. Ao todo, são
mais de cem famílias morando na área.

O antigo administrador da propriedade, que até três anos antes havia pago
durante 30 anos o arrendamento aos antigos proprietários, não aceitou o novo
sistema de posse. Ele mantinha sob seu domínio uma área de terra no terreno
desapropriado, onde trabalhavam pessoas, trazidas por ele de municípios
vizinhos, pelo regime de arrendamento. Com a desapropriação, a comunidade
entendeu que este sistema não deveria continuar. No dia 26/12/88, um mutirão,
do qual a vítima tomou parte, plantou 3000 pés de inhame em uma área cultivada
por um agricultor, havia mais de 15 anos. Reivindicando os direitos do antigo
proprietário, o administrador e seus companheiros resolveram destruir a
plantação. Reuniram cerca de sessenta homens para executar este trabalho, que
foi feito por volta das 14 horas, quando não se encontrava nenhum posseiro no
local. Os posseiros só chegaram ao local quando os primeiros já haviam se
retirado. A orientação para a destruição partiu do administrador numa reunião
entre os arrendatários, dentre os quais contavam-se cerca de 20 moradores.
Essa parte da comunidade organizava-se em torno da Fetag (Federação dos
Trabalhadores da Agricultura), ao passo que os demais organizavam-se em torno
da Comunidade Eclesial de Base, sendo a vítima um dos líderes, além do frei
ligado à CPT (Comissão Pastoral da Terra).

No dia 27/12/88, o governador do Estado (Tarcísio Burity) visitou o local e


prometeu que em três dias ali colocaria um destacamento policial; em 29/12/88, o
motorista, armado de revólver e espingarda calibre 12, junto com sua esposa e

253
Este relato histórico também proveio da publicação do IDEME. Ele aparece nos autos, mas de
modo fragmentado e confuso. Nas entrevistas realizadas por Marcelo Gomes Justo, esta
reconstrução é recorrente para explicar os acontecimentos que culminaram na morte do lavrador.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 594

familiares destruíram o pavilhão de reunião dos agricultores de Gurugi II,


localizado em área arrendada por uma tia da família.

O que se observa de modo geral é que, além do conflito de terras, existem


conflitos pessoais graves na região, que envolvem muitas relações familiares e
antigas brigas, a maior parte opondo moradores nascidos na área de outros, ali
chegados mais tarde.

Observações finais

O delegado comprovou a materialidade do crime com a anexação dos


exames: laudo necroscópico e laudo de exame de constatação de impacto de
projétil. Ele ouviu inicialmente nove testemunhas (duas defenderam os
indiciados) e pela seqüência de fatos narrados anteriores ao homicídio, atribuiu a
responsabilidade aos dois indiciados. Relacionou o delito com o problema dos
conflitos de terra. O inquérito foi encerrado em menos de dez dias com o pedido
de prisão preventiva dos indiciados que foi acatado pelo juiz. No entanto, não foi
apreendida a arma do motorista mesmo com o testemunho de que ele possuía
uma espingarda calibre 12, que é o mesmo calibre encontrado na parede da casa
da vítima. Deste modo, não foi possível pedir um exame de comparação entre a
arma e os fragmentos de chumbos encontrados no local do delito. Outra falha
importante da polícia refere-se ao fato de o administrador da fazenda ter sido
considerado foragido durante todo o processo, apesar de várias testemunhas
afirmarem que ele era visto correntemente na cidade.

No decorrer das investigações, foram ouvidas 39 testemunhas, mas outras


21 pessoas citadas nos depoimentos não foram ouvidas nem pela polícia nem
pelo judiciário. Chama atenção o perfil geral desses 21 citados por sua
importância para o desenrolar das investigações: proprietários das áreas em
litígio; pessoas muito próximas aos indiciados (irmãos, esposas e parentes
também diretamente implicados nos conflitos de terra); testemunhas oculares da
trama do assassinato ou da fuga dos assassinos; dirigentes (advogados e
religiosos) das associações envolvidas; vítimas de agressões anteriores por parte
dos indiciados.

Em relação à qualidade dos interrogatórios, também houve falhas uma vez


que o álibi apresentado pelos réus não foi adequadamente explorado: ambos
afirmam que no momento do crime estavam vendo televisão em companhia de
outras pessoas; essas outras pessoas, no entanto, mencionam nomes diferentes
em seus depoimentos quando descrevem quem estava em companhia dos réus
vendo televisão e não se verificou o programa assistido.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 595

A promotoria pediu que os autos retornassem à delegacia para a oitiva de


duas testemunhas, que eram conhecidas da vítima. Depois, baseou-se no
relatório do delegado para denunciar os dois indiciados, pedindo suas punições.
Foram pedidas duas acareações, sendo apenas uma realizada. A promotoria não
pediu para ouvir testemunhas no Tribunal do Júri.

O juiz aceitou a denúncia e pronunciou os dois réus. A defesa entrou com


recurso e conseguiu anular a sentença de pronúncia. Após a segunda sentença
de pronúncia, ocorreu um “tumulto” no processo porque apareceram dois outros
suspeitos, contra os quais nada se provou. Na segunda sentença de pronúncia, o
juiz fez referência à repercussão nacional e internacional do fato e reafirmou que
havia todos os indícios para a condenação

O promotor apontou irregularidades no processo, como a falta de páginas,


referindo-se a arrombamento do Fórum, quando o processo foi parcialmente
incinerado.

Quanto à defesa, três pontos merecem destaque: 1) no pedido de recurso


da pronúncia, a defensoria acusou o cerceamento de defesa por ter havido falha
na intimação do motorista; 2) conflito entre os dois advogados de defesa: o
primeiro advogado do administrador é advogado de ofício da comarca de
Campina Grande, portanto impedido de advogar em causas particulares com
poderes outorgados em procuração particular, podendo apenas funcionar em
processos com requisitos da Justiça Gratuita. Assim, o segundo advogado
constituído requisitou ao juiz que fossem anulados todos os atos do primeiro
advogado desde o momento de sua habilitação nos autos (15/1/90). O primeiro
advogado respondeu que houve uma interpretação errônea por parte do segundo
quanto aos artigos que ele teria infringido; 3) em vários momentos a defesa
alegou uma suposta tentativa de linchamento contra o administrador e ameaças a
seus familiares por parte da associação ligada à CPT como motivo para o
relaxamento do pedido de prisão preventiva e justificativa para a sua fuga.

O posicionamento da procuradoria também deve ser ressaltado, pois, foi a


favor da anulação da pronúncia e pelo desprovimento do recurso contra a
absolvição do motorista.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 596

1.3.Violência rural na Bahia

Data: 21 de outubro de 1988

Resumo
No dia 21 de outubro de 1988, um fazendeiro e seu primo, que havia sido
também seu empregado, deram vários tiros de arma de fogo contra três
agricultores, atingido mortalmente um deles. Segundo as declarações do filho da
vítima, esta veio acompanhada por ele e mais dois outros homens, quando surgiu
um veículo Ford F-1000 com cinco indivíduos que pararam e já saíram atirando,
tendo o seu pai sido atingido mortalmente e outro agricultor fugido pelas matas
com o primo do fazendeiro em sua perseguição. O fazendeiro colocou então a
bicicleta da vítima no carro e levou para sua propriedade.

O fato se prende a problemas de terras, indenizadas pela CHESF


(Companhia Hidrelétrica do São Francisco) as quais o fazendeiro queria retomar.
O fazendeiro negou possuir arma e ter atirado, mas foram apreendidas várias
armas de sua propriedade, antes e depois do homicídio. Um lavrador declarou
que o fazendeiro lhe emprestara um revólver calibre 38, relacionando um arsenal
de armas pertencentes a ele.

O primo do fazendeiro relatou que estava voltando de Santo-Sé, para onde


havia ido em decorrência do roubo de uma vaca, quando avistou os quatro
indivíduos e reconheceu o agricultor (a vítima) que teria matado a sua criação.
Desceu então do carro com um rifle, acompanhado de seu primo armado com um
revólver, e de um empregado deste armado com uma escopeta – todas as armas
e o automóvel pertencentes ao fazendeiro. Em seguida, fizeram disparos
atingindo o agricultor. O empregado, que se achava na carroçaria do carro,
negou que estivesse armado e declarou que iam buscar mudadeiras quando no
caminho viram os quatro homens, que vinham de bicicleta, e alguém gritou: “oí, o
ladrão”, atirando contra eles. O quarto homem que estava no carro, um lavrador,
confirmou que iam buscar mudadeiras, quando o veículo foi parado pelos quatro
homens que vinham de bicicleta, para conversar. Quando aconteceram os
disparos, ele fugiu para a mata.

Há uma declaração do suplente de delegado do Município de Santo-Sé, a


quem o fazendeiro foi procurar, relatando um tiroteio. Ele foi acusado de ter se
evadido de Santo-Sé para evitar confrontos, mas negou tal atitude.

No dia 13 de dezembro de 1988, o delegado pediu a prisão preventiva do


fazendeiro e seu primo pelo homicídio do agricultor e pela tentativa de homicídio
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 597

do outro que fugiu pela mata. Os demais ocupantes do carro foram arrolados
como testemunhas.

No dia 6 de março de 1989, foi decretada a prisão preventiva dos réus,


mas no dia 9 de outubro do mesmo ano, esta foi revogada. Em 25 de fevereiro de
1992, foi novamente decretada a prisão preventiva do primo do fazendeiro, que
foi revogada em 20 de março. O mandato de prisão, no entanto, não foi cumprido
porque o réu teve ciência da decisão, e fugiu, ficando escondido, certamente na
região. A Defesa trouxe considerável informação atestando a sua permanência
no distrito da culpa, por via do Cartório da Vara Criminal de Juazeiro. Desse
modo, conseguiu a revogação da prisão preventiva.

Em 09 de abril de 1992, o júri negou, por cinco votos a dois, que o


fazendeiro tivesse sido o autor do crime de homicídio, absolvendo-o. Quanto a
seu primo, os jurados responderam que ele de fato realizou disparos, mas o fez
repelindo agressão injusta à sua pessoa. Em relação à tentativa de homicídio
qualificado, os jurados concluíram que o fazendeiro disparou contra aquele
agricultor em legítima defesa. Quanto ao lavrador que se encontrava no carro dos
réus, o Conselho de Sentença reconheceu que a testemunha incorreu na prática
do crime de falso testemunho. O juiz determinou então que o fazendeiro devesse
comparecer a Juízo em Santo-Sé, duas vezes por mês, e seu primo fosse
condenado a três meses de reclusão. A acusação apelou da sentença e no dia
31 de dezembro de 1992, a Procuradoria Geral de Justiça deu um parecer
favorável à apelação. Em 31 de agosto de 1993, o julgamento foi anulado.

Local

O crime ocorreu na estrada que liga Ponta d’Água a Malvinas, Município


de Santo-Sé, Bahia, que além das duas localidades citadas, é formado também
por Brejo da Brazida, Cajuí, Brejo Grande da Martinha e Volta da Serra. Santo-Sé
localiza-se à beira do rio São Francisco, no noroeste do estado, mais
especificamente no sertão baiano, entre os municípios de Remanso, Casa Nova,
Juazeiro e Petrolina.

A Bahia é o maior estado do Nordeste, com 559.951 km2 de extensão e


uma população, em 1988 - ano do homicídio - de 11.396.000 habitantes. Nas
últimas décadas, os conflitos rurais e as violações aos direitos humanos deles
decorrentes vêm crescendo consideravelmente. De 1987 para 1988 o número de
conflitos duplicou e o número de mortos nestes conflitos subiu 60%. Os conflitos
envolvem, de um lado, fazendeiros, grileiros, pistoleiros e policiais e, de outro,
agricultores, povos indígenas e agentes religiosos militando a seu favor.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 598

Em 1988, eram 91 os conflitos naquele estado, sendo a quase totalidade


deles (87) por questões de terra. Estes últimos envolviam 60.541 pessoas e
provocaram 14 homicídios, 5 desaparecimentos, 33 tentativas de homicídio, 28
ameaças de morte, 26 prisões ilegais, dois casos de lesão corporal, um caso de
tortura, dois seqüestros e dois casos de cárcere privado. Em relação à
propriedade, também foram registradas várias violações: 281 despejos judiciais;
1576 expulsões; 291 casos de grilagem; um roubo; 824 tentativas de expulsão;
421 ameaças de expulsão; 349 destruições de roças; 25 destruições de casas.254

As primeiras mortes registradas em conflitos de terras na Bahia


aconteceram em 1971. De lá até 1989, foram 178 os mortos neste contexto,
sendo que o pico de ocorrências se deu em 1981, quando foram registrados 55
homicídios, auge de um movimento de aumento dos assassinatos iniciado em
1979 e que então começou a declinar.255
O estado da Bahia pode ser dividido em três partes, no que se refere à luta
pela terra: de Camamu, no litoral sul, até o extremo sul; do litoral até Vitória da
Conquista, no interior, ao sul; e o restante do estado, onde localiza-se Santo-Sé.
Metade dos conflitos e a grande maioria dos assassinatos ocorrem nas duas
primeiras faixas, relacionados com o cultivo do cacau, dominado pela antiga
figura dos “coronéis”. A resposta do governo aos problemas latifundiários da
região tem sido insuficiente: o Plano Nacional de Reforma Agrária desapropriou,
entre 1985 e 1989, 448.584 hectares, correspondendo a 1/17 do anunciado, e
assentou 3.707 famílias, 1/70 do prometido256.

O conflito específico que resultou nesta morte data de 1979 e envolve 35


famílias.

Vítimas

A vítima de homicídio era um agricultor pardo, de 41 anos, casado, natural


de Teixeira (PB), residente em Malvinas, Sento Sé (BA). A vítima de tentativa de
homicídio era também um agricultor, que vivia do plantio de milho, feijão,
mamona e mandioca, casado, de 36 anos, natural de Sento Sé, onde residia (na
localidade de Cajuí).

O filho do agricultor assassinado era pardo, solteiro, nascido em


Conceição (PB), com 19 anos, residente em Malvinas. Outro lavrador que
acompanhava a vítima, já havia sofrido atentado pelo mesmo fazendeiro, vinte
254
CPT, Conflitos no campo - Brasil, 1988, pp. 18; 22; 24; 28; 29; 62.
255
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, Assassinatos no campo - crime e
impunidade 1964-1985, São Paulo, 1987, p. 213.
256
CPT, Rompendo o cerco e a cerca - Conflitos no campo, 1989, pp. 11 e 27.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 599

dias antes. Este último lavrador era casado, pai de três filhos, com 26 anos,
natural de São Paulo, criado em Conceição de Piancó (PB), residente em
Malvinas desde 1985.

Os três sobreviventes do atentado do dia 21 de outubro prestaram


depoimento como testemunhas.

Indiciados

Foram indiciados: um agropecuário (proprietário da fazenda São Luiz),


amasiado, pai de quatro filhos, natural de Sento Sé, de 56 anos, branco,
residente em Juazeiro (BA), com segundo grau completo, sem antecedentes
criminais; e seu primo, que havia trabalhado para ele, casado, pai de dois filhos,
com 22 anos, pardo, residente em Juazeiro, com primário completo.

Testemunhas

Além das três vítimas sobreviventes, outros dezoito homens foram


arrolados como testemunhas. A maioria (12) era casada e com filhos; cinco eram
solteiros e sobre o último, não se informa o estado civil. Sobre a origem étnica, há
informação apenas para dois deles: um pardo e um branco. No que se refere à
naturalidade, 8 eram provenientes do próprio município de Santo-Sé, 4 vinham de
outros municípios da Bahia, dois eram pernambucanos, um cearense e sobre o
último, não se informa. Suas idades distribuíam-se da seguinte forma: três tinham
entre 34 e 39 anos; cinco estavam na faixa dos quarenta anos; também cinco, na
dos cinqüenta; três tinham mais 62 anos; para os demais, não se informa. Sobre
a residência, informa-se que a maioria (9) morava no próprio Santo-Sé e 4 em
outros municípios da Bahia. Seis eram agricultores, um motorista, um garimpeiro,
um operador de máquinas, um funcionário da Delegacia, um cabo, um ex-padre e
testemunhou ainda o prefeito, que era advogado de profissão e havia sido
deputado.

Relações hierárquicas entre protagonistas

As relações mais propriamente hierárquicas são entre os indiciados que,


além de serem primos, tiveram por um tempo vínculos empregatícios, sendo o
mais velho (fazendeiro) patrão do mais novo. Havia relações hierárquicas
também entre três testemunhas (dois vaqueiros e o lavrador que se encontrava
no carro dos agressores) e o fazendeiro, que era seu patrão. Entre as vítimas
sobreviventes ao atentado conta-se o filho do agricultor assassinado. Ambos e os
demais sobreviventes viviam relações de conflito de terra (incluindo acusações
de roubo e morte de gado) com o fazendeiro indiciado. Além destas, outras sete
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 600

testemunhas eram amigos ou vizinhos dos indiciados. Apenas uma testemunha


era relacionada com o agricultor morto. As demais eram moradores da região (4)
e líderes locais (4).

Contextos/Cenários

Os conflitos na área indenizada pela CHESF decorriam do fato de ser uma


área muito cobiçada, desde que a companhia começara a instalar ali projetos de
irrigação do Baixo Irecê.

A região ficou então marcada pela violência que acompanha os conflitos


de terra na Bahia. Segundo os depoimentos das testemunhas, episódios
anteriores de roubo de gado, derrubada de cercas, queima de roças que
ocasionavam atentados com armas de fogo eram recorrentes.

A presença de grande número de pistoleiros fortemente armados na


fazenda em conflito também era freqüente.

“Física” dos acontecimentos

Segundo depoimentos, o fazendeiro teria vendido parte de sua


propriedade a um vizinho, também lavrador, e outra parte teria sido apropriada
pelo Estado para o assentamento de lavradores, tendo sido o fazendeiro
indenizado pela CHESF. No entanto, o fazendeiro não aceitou essa situação e
dai decorreram os episódios violentos.

No dia 08/06/83, o fazendeiro prestou queixa contra três agricultores da


região por destruírem 500 metros de cerca de sua propriedade, atearem fogo em
uma das casas ali existentes, destruindo-a parcialmente e os objetos que se
encontravam em seu interior.

No dia 11/02/85, o fazendeiro prestou nova queixa afirmando que havia


mais de um ano vinham desaparecendo de sua fazenda criatórios como gado,
ovelhas e porcos e que, depois de falecimento do seu vaqueiro em janeiro de 85,
o furto aumentara. Ainda em 1985, ocorreu o assassinato de um cunhado do
fazendeiro, ocasião em que agricultores, inclusive uma das vítimas sobreviventes
do atentado de 1988, foram a Salvador denunciar os fatos às autoridades.

Em 31/07/87, a vítima fatal deste caso e um outro agricultor foram à


Delegacia de Santo-Sé solicitar providências contra o fazendeiro, seu irmão e
outros 55 homens, entre jagunços e pistoleiros, fortemente armados, que haviam
invadido suas propriedades, incendiando e saqueando.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 601

Desde esse época, a Diocese de Juazeiro vinha exigindo que o fazendeiro


fosse preso, devido ao clima de terror que este espalhava na região,
atormentando as trinta e cinco famílias de Malvinas.

Em contrapartida, no dia 09/11/87, o fazendeiro prestou outra queixa


contra três agricultores que afirmava terem invadido sua propriedade. Na noite
anterior à queixa, o filho de um desses agricultores teria passado na casa de um
dos moradores, disparando para o ar e ameaçando-o. O acusado, por sua vez,
afirma que o fazendeiro havia atentado contra a sua vida e a de outros
agricultores da região.

Em 1988 os conflitos tornaram-se ainda mais violentos. O proprietário da


roça vizinha à fazenda São Luiz relatou que cerca de dez meses antes do
conflito, o fazendeiro lhe entregou um revólver, alegando que o local onde este
plantava cebola, mamona e feijão era perigoso, devido aos conflitos de terra
existentes.

Alguns depoimentos relatam que o fazendeiro proibira a passagem das


Malvinas para a Ponta D’Água, local onde os moradores de Malvinas faziam
compras. E também que o fazendeiro conseguira expulsar dez famílias de
lavradores da região.

Ocorreu, naquele mesmo ano, a morte de um primo do fazendeiro, cujos


matadores fugiram.

No dia 06 de agosto, o fazendeiro, em represália à derrubada de um


colchete (armação para a exposição da carne), deu dois tiros em direção a um
agricultor, quando este, junto com outra pessoa, estava consertando o pneu da
bicicleta à beira da estrada. Este agricultor era um dos que sofreriam o atentado
duas semanas depois. Inclusive, no mesmo dia 06, logo após ter atirado, o
fazendeiro já mandara um recado ameaçando o outro agricultor que seria
assassinado poucos dias depois.

O primo do fazendeiro relatou que vinte dias antes do homicídio, uma


pessoa estava cortando o arame quando foi surpreendida pelo fazendeiro que
disparou dois tiros para cima e assim fez a pessoa fugir. Uma semana antes do
homicídio, roubaram uma vaca da fazenda e é por isso que eles tinham ido a
Santo-Sé registrar a queixa, quando, na volta, encontraram os três agricultores.
Uma das testemunhas, morador da região, afirma ter comprado uma vaca do
agricultor assassinado que seria pertencente ao fazendeiro.

Mesmo após o homicídio, os conflitos continuaram. No dia 18/01/89, o


agricultor contra o qual o fazendeiro havia prestado queixa em 1987 prestou
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 602

queixa de que sua residência fora invadida, na manhã do dia 10, por quatro
pessoas desconhecidas, armadas. Por volta das 17:00 horas, teria aparecido o
próprio fazendeiro, dirigindo seu carro, junto com o motorista e outras pessoas na
boleia. Dias depois, o fazendeiro encontrou os filhos do agricultor, menores de
idade, apontou uma arma contra eles dizendo que os mesmos fossem embora,
se não os mataria um por um. Algum tempo antes, o fazendeiro teria contratado
dois matadores, em ocasiões diferentes, pagando ao primeiro 200.000,00
cruzados e ao segundo 1.500.000,00 cruzados, para matar o agricultor.

Observações finais

As falhas das instituições de controle são flagrantes nesse caso, desde os


antecedentes do crime (quando diversas vezes a polícia, a justiça e até
representantes do poder executivo foram solicitados para intervir no conflito),
passando pelos momentos imediatamente posteriores (quando a delegacia local
mostrou não poder tomar as providências adequadas), até as investigações em si
mesmas.

Sobre a incapacidade de a polícia e o poder executivo local encaminharem


o caso e os conluios dos indiciados com o poder público, o depoimento do filho
da vítima é esclarecedor. Afirma que, após o fato, os sobreviventes encontraram
o carro do prefeito do município, que os trouxe até a cidade de Santo-Sé, onde
não encontraram nem o delegado nem o escrivão. Um soldado foi então à casa
de um cabo e lá relatou o acontecido. Juntamente com o cabo, os sobreviventes
saíram à procura de providências e se surpreenderam com a presença do
fazendeiro na casa do candidato à prefeito. Foram, em seguida, até o delegado,
que afirmou que àquela hora já não era mais possível tomar qualquer providência
e que ia telefonar para Sobradinho e Juazeiro para interceptarem os agressores,
no caminho. Não tendo carro da prefeitura, os sobreviventes se utilizaram do
carro do padre para resgatar o cadáver. Trouxeram-no a Santo-Sé e, como não
havia quem fizesse a perícia, levaram o corpo a Juazeiro. Posteriormente o
cadáver foi levado a Santo-Sé e sepultado.

Sobre as falhas nas investigações, nota-se em primeiro lugar algumas


levantadas pela própria defesa. Nos pedidos para a revogação da prisão
preventiva, a defesa argumenta que não se sabe quem presidiu o IP. Nas Contra
Razões de Apelação do fazendeiro, chama-se a atenção para o fato de, embora
o crime ter ocorrido em 21/10/88, o exame de pólvora só ser realizado em
08/12/88, já transcorridos, vários dias.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 603

Também o vice-presidente do tribunal aponta as deficiências do aparelho


policial e judiciário, quando confere parecer sobre Habeas Corpus para os réus e
decide considerá-los primários, uma vez que as queixas crimes contra os
mesmos encontravam-se paralisadas nas delegacias.

As investigações são também muito falhas no que se refere à oitiva de


testemunhas. Vinte e três pessoas mencionadas nos depoimentos mas não são
chamadas a depor, apesar de estarem diretamente ligadas aos conflitos de terra:
lavradores que vivem na área e têm histórias de conflitos com os indiciados;
pistoleiros supostamente contratados pelo fazendeiro para matar lavradores;
parentes próximos aos indiciados e às vítimas; membros de instituições
mediadoras do conflito como a Igreja e a polícia; testemunhas oculares do crime.

Finalmente em relação às falhas do poder executivo, temos que mencionar


as várias vezes que foi solicitado para intervir no caso e não deu solução
satisfatória. A Polícia Federal também expôs suas deficiências em 16/03/92,
quando o Serviço Público Federal comunicou que estava totalmente
impossibilitado de atender requisição do juiz no sentido de enviar força policial
federal à cidade para garantir a tranqüilidade e a segurança de todos no dia do
julgamento.

1.4.Violência rural no Piauí

Data: 22 de maio de 1989

Resumo
O caso refere-se a homicídio ocorrido no dia 22/05/89, por volta das 16
horas, no portão de acesso à localidade Cariman, município de José de Freitas,
que tem como acusado o proprietário da localidade Alívio. Não houve testemunha
ocular do fato, mas várias pessoas o acusam como autor ou mandante. Todas as
pessoas que moram naquela região conheciam a vítima e sabiam que o único
inimigo que ela tinha era o proprietário, o qual já vinha a ameaçando havia muito
tempo. A arma do crime, no entanto, não foi encontrada. Mais tarde, apontou-se
também a participação de um “biscateiro” como o autor material do homicídio. O
proprietário acabou confessando o crime, mas depois alegou ter sido torturado –
versão reforçada por testemunhas que o viram nos dias seguintes e pelo fato de
não ter sido feito exame de corpo de delito, apesar da solicitação da defesa. A
Federação dos Trabalhadores da Agricultura (Fetag) assumiu a assistência da
promotoria.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 604

Em 23/06/89, o delegado solicitou a prisão preventiva do proprietário. Em


11/02/91, solicitou a prisão preventiva do “biscateiro”. A prisão de ambos foi
decretada em 13/02/91. Em 25/06/91, eles foram pronunciados. Em 31/07/91,
foram condenados, pelo Tribunal do Júri, a dezesseis anos de reclusão. Em
11/03/92, a Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Piauí, por unanimidade e
contrariamente ao parecer da Procuradoria Geral de Justiça, decidiu acolher
preliminar suscitada pelos réus para anular o julgamento, por defeito na
formulação dos quesitos. No entanto, o segundo julgamento, marcado para dali a
oito meses, não chegou a ocorrer porque a defesa não compareceu ao mesmo e
depois pediu o desaforamento do processo. Assim, os réus continuaram presos
até 4/05/95, quando o biscateiro fugiu da Colônia Penal Agrícola, aproveitando-se
de uma ocasião de saída para trabalhar na área externa da Colônia.

Local

O homicídio aconteceu no portão de acesso à localidade Cariman,


município de José de Freitas, no estado do Piauí, Nordeste do país. Além de
Cariman, José de Freitas é formado por várias outras localidades como Alívio
(onde morava a vítima, em litígio com um dos indiciados que reivindicava a
propriedade de sua área), Santiago, Sambaíba, Tinguis, Jatobá d’Água, Santo
Antônio, Buritirama. O município integra a poção meio norte do estado, formada
ainda por Barras, União, Altos, Campo Maior, onde se concentram a maior parte
dos conflitos por terra do estado.

O Piauí é um estado de 250.934 Km2, e possuía, em 1989, ano do


homicídio, uma população de 2.584.000 habitantes. Os conflitos por terra, apesar
de serem freqüentes – àquela época envolvendo cerca de 700 pessoas em
disputa por 21.000 hectares – não produzem muitos acontecimentos violentos.
Em 1971, registrou-se pela primeira vez uma morte deles decorrentes. Depois
disso, elas só voltaram a ser registradas em 1984 e de lá até 1989, haviam sido
quatro os assassinatos. São mais freqüentes os casos de ameaça de
assassinato, lesão corporal, agressão física, ameaça de expulsão e destruição de
residências.

Os conflitos decorrem sobretudo de ações de grileiros e da ausência de


uma política de redistribuição de terra para o estado. Entre 1985 e 1989, o Plano
Nacional de Reforma Agrária desapropriou 13.231 hectares e assentou 243
famílias, sendo que a meta era desapropriar 3.000.000 ha e assentar 99.900
famílias.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 605

Vítima

Lavrador, residente na localidade Alívio em José de Freitas, ligado ao


Sindicato dos Trabalhadores Rurais.

Indiciados

O primeiro indiciado era proprietário rural (criação de gado), casado, tinha


35 anos, residente em Alívio, município de José de Freitas. Fora preso por volta
de 1975, e, após o homicídio, em 23/10/89, foi feita uma queixa crime contra ele
por ameaças.

O segundo declarou que era lavrador mas estava vivendo de “biscates”.


Era negro, nascido em Campo Maior/PI, solteiro, 21 anos, residente no bairro de
Flores, no mesmo município. Já fora preso uma vez por ter sido contratado para
matar uma pessoa, crime que acabou não cometendo, e foi preso outras vezes
por distúrbio. É acusado, nos depoimentos das testemunhas, de ter praticado
estupros e arrombamentos.

Testemunhas

Vinte e cinco pessoas foram arroladas como testemunhas neste caso,


sendo apenas uma delas do sexo feminino. A grande maioria (19) era nascida no
próprio estado do Piauí, uma outra era cearense e sobre a última, não se informa
a procedência. Vinte das testemunhas eram casadas, 4 solteiras e não há dados
sobre o estado civil da última. A distribuição etária dava-se do seguinte modo:
seis tinham entre 18 e 29 anos; seis estavam na faixa dos trinta; sete na dos
quarenta; três tinham entre 53 e 62 anos; sobre os últimos três, não se informa a
idade. Quanto à ocupação, 17 eram lavradores, a mulher declarou-se doméstica,
um era físico, outro era proprietário de terra que trabalhava como motorista e os
demais exerciam funções de pouca qualificação: carpinteiro, vaqueiro, pedreiro,
boiadeiro. A maior parte (20) residia no próprio município de José de Freitas, 3
moravam em Campo Maior, um na capital, Teresina, e o último não informou.
Seis das testemunhas eram analfabetas, uma tinha nível superior e sobre 18
delas informa-se apenas que sabiam assinar o nome.

Relações hierárquicas entre protagonistas

Entre o proprietário indiciado e a vítima as relações eram de conflito, dado


que o primeiro reivindicava a propriedade da área em que morava a última. Das
testemunhas, 11 eram parentes ou conhecidas dos réus, 6 eram parentes ou
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 606

conhecidas da vítima, 3 eram relacionadas a ambos os lados e 5 foram


chamadas a depor porque viram os suspeitos na região, logo após o crime.

Contextos/ Cenários

A região meio norte do Piauí, em que se encontra o município de José de


Freitas concentra os conflitos de terra do estado que envolvem, por um lado,
proprietários e grileiros e, por outro, trabalhadores rurais organizados em torno de
seu sindicato, associado à Federação dos Trabalhadores da Agricultura (Fetag) e
ligado ao Partido dos Trabalhadores (PT) e à Igreja. Talvez este alto grau de
organização impede que os conflitos deteriorem em situações de violência muito
freqüentemente. Quando acontece, como no caso em questão, as instituições
mediadoras mobilizam trabalhadores de todos os municípios vizinhos para
pressionar as autoridades a tomar providências.

“Física” dos acontecimentos

Quando o fazendeiro comprou a área, em 1980, a vítima já morava no


local. Em 1986, a vítima começou a cultivar as terras sem pagar a renda ao
proprietário. Então, em 1988, este quis impedi-la de usar suas terras sem o
pagamento da renda, mas o agricultor conseguiu permanecer no local com a
ajuda do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, que lhe informou que ele só
poderia deixar o local mediante uma indenização por suas benfeitorias pagas
pelo proprietário. Data dai o início do conflito que culminou no assassinato.

Observações finais

O inquérito policial colheu os depoimentos de vinte testemunhas, sendo


que as dezoito primeiras foram ouvidas num único dia e apontaram, direta ou
indiretamente, a culpa dos indiciados. Elas viram os dois suspeitos, ou viram
rastros ou as tocaias usadas para surpreender a vítima. O relatório do delegado,
cujo autor é um terceiro sargento da PM que se mantém presidindo todo o
inquérito, incrimina o proprietário, com base nesses testemunhos, apesar da não
apreensão da arma do crime. Mais de um ano e meio depois do relatório, o
delegado enviou um ofício ao juiz pedindo a decretação da prisão preventiva do
“biscateiro”, que foi preso e confessou o crime. Assim a autoria do crime teria
sido desvendada. Entretanto as investigações apresentaram algumas falhas,
sobretudo o fato de não chamar para depor 18 pessoas mencionadas nos
depoimentos: familiares e colegas dos indiciados e da vítima, membros das
instituições mediadoras envolvidas no caso, policiais que participaram das
investigações.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 607

Nota-se ainda no transcorrer do processo uma rotatividade de advogados


de defesa.

Não foi apurada a denúncia de que os réus confessaram mediante tortura.


O exame de corpo de delito foi pedido pela defesa, mas não foi feito.

Vale ressaltar que neste processo penal o papel de pressão do Sindicato


dos Trabalhadores Rurais nos julgamentos é reconhecido tanto pela defensoria
quanto pelo juiz.

1.5.assassinato de líder sindical no Rio de Janeiro

Data: 06 de junho de 1988

Resumo
Às 06.45 horas do dia 06 de junho de 1988, segunda-feira, à margem da
rodovia Amaral Peixoto (RJ-106), Km 123, o presidente do Sindicato dos
Trabalhadores Rurais de Cabo Frio foi atingido por cinco projéteis de arma de
fogo, disparados de revólver calibre 32, por um motorista e um policial militar. O
sindicalista foi perseguido e derrubado. Os autores do crime foram motivados
pelo pagamento de Cz$ 50.000,00 e mais a promessa de pagamento de Cz$
150.000,00 feita por um lavrador, um empregado da fazenda Campos Novos, e o
administrador da fazenda, que intermediou o homicídio a mando do proprietário,
que vivia conflitos de terra com um grupo de posseiros, entre os quais estava a
vítima. Os assassinos apreenderam uma maleta preta portada pela vítima, com
documentos relativos ao conflito de terras, que foram entregues ao delegado
encarregado do caso que, no entanto, não anexou aos autos. Estes documentos
seriam levados para uma audiência com a direção superior do MIRAD em
Brasília, no dia 08 de junho.

O crime revoltou a população da cidade, acarretando protestos populares


como passeatas e comícios. A CPT produziu vários relatórios a respeito do caso,
a Subcomissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil atuou
como assistente da acusação. O caso adquiriu também ampla repercussão na
imprensa nacional. Apesar disso, os agressores não se intimidaram e várias
testemunhas foram ameaçadas, deixando inclusive de comparecer a algumas
oitivas.

Além dos cinco homens mencionados, foi indiciado um outro fazendeiro,


residente em sítio vizinho, que fez o pagamento aos pistoleiros. O policial foi
preso, em nível disciplinar, em sua unidade, nos dias seguintes ao crime e depois
foi expulso da corporação. Em 05/07/88, foi decretada a prisão preventiva do
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 608

policial, do motorista e do empregado da fazenda. Em 17/07/89, com exceção do


fazendeiro vizinho, todos os demais foram pronunciados e recomendados para
custódia enquanto aguardavam o julgamento pelo Tribunal do Júri. No dia
23/11/90, o motorista foi condenado a 14 anos de prisão; em 08/03/91, o
empregado da fazenda foi também condenado a 14 anos de prisão e há
referência ao fato de que o policial recebeu a mesma pena. Já o proprietário da
fazenda Campos Novos foi impronunciado pela 4ª Câmara Criminal do Tribunal
do Júri.

Local

O assassinato aconteceu no KM 123,5 da rodovia RJ-106, que liga os


municípios de Cabo Frio (cidade onde se localizava a fazenda palco do conflito)
e Búzios, no estado do Rio de Janeiro, região Sudeste do país. Esses
municípios integram a Região dos Lagos, famoso pólo turístico do estado.

O estado do Rio é o segundo mais populoso e desenvolvido do Brasil.


Possui 43.305 quilômetros quadrados de extensão e uma população de
13.541.000 habitantes.257 Por ser um estado mais desenvolvido, com uma
sociedade civil mais organizada em torno de associações, sindicatos, partidos
políticos e outros tipos de organizações, os meios de comunicação ficam mais
atentos aos casos de violência e o poder judiciário é mais passível de controle.
Nem por isso, os conflitos estão ausentes.

No ano do crime, 1988, a CPT mapeou 12 conflitos no contexto rural do


estado do Rio, sendo 3 decorrentes de questões trabalhistas e 9 relativos à luta
pela terra. O total de pessoas envolvidas nestes conflitos era de 16.002. Em
conseqüência dos conflitos, além deste assassinato, foram registrados dois casos
de trabalho escravo vitimando 32 crianças e adolescentes; um atentado; 28
casos de agressão física; 3 de prisão ilegal; uma ameaça de morte. Além da
violência física, registraram-se também casos de violência contra a posse de
terra: 109 despejos judiciais; 11 ameaças de expulsão; 24 destruições de roças.

Ao longo de toda a década de 80, estes números não variaram muito,


denunciando o fato de que nenhuma política para a questão fundiária foi adotada.
O Plano Nacional de Reforma Agrária, lançado em 1985, não chegou sequer
perto das suas próprias metas: até o final da década, haviam sido assentadas

257
Os números relativos à violência no Rio de Janeiro provêm dos relatórios anuais divulgados
pela Comissão Pastoral da Terra (CPT-Goiânia), entre 1986 e 1989, e do relatório produzido pelo
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, Assassinatos no campo - crime e impunidade
1964-1985, São Paulo, 1987.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 609

apenas 535 famílias em 21.912 hectares, sendo que o prometido era assentar
16.000 famílias em 250.000 hectares no estado do Rio de Janeiro.

Vítima

Lavrador, 1º grau incompleto, casado, natural de Espírito Santo, residente


na fazenda Campos Novos, Cabo Frio - RJ. Presidente do Sindicato dos
Trabalhadores Rurais de Cabo Frio.

Indiciados

Seis homens foram indiciados pelo assassinato do sindicalista: um policial


militar lotado na cidade de Campos, um motorista desempregado residente na
mesma cidade, o proprietário da fazenda Campos Novos, que residia em
Ipanema (Rio de Janeiro), o administrador do imóvel e outro empregado da
fazenda residente em Búzios, e um outro fazendeiro residente nas imediações.
Quatro tinham antecedentes criminais: este segundo fazendeiro havia sido
processado 11 vezes entre 1965 e 1988 (ameaça, estelionato, lesão corporal
dolosa e culposa, corrupção de menores, furto, apropriação indébita, fraude
processual, homicídio simples, esbulho possessório - ocupação violenta de
imóvel alheio, usurpação de função pública, violência arbitrária, exploração de
prestígio, coação no concurso do processo, exercício arbitrário das próprias
razões, abuso de poder - estes últimos, crimes de funcionário público); o
administrador da fazenda havia sido absolvido de um processo por
atropelamento; o proprietário da fazenda Campos Novos havia sofrido um
processo por estelionato em 1979, arquivado sete anos depois; o outro sitiante de
Campos Novos havia sido preso e processado por porte de arma. O proprietário
da fazenda era libanês, não há informação sobre a naturalidade do motorista e os
demais eram todos cariocas. Os autores materiais do crime (o policial e o
motorista) tinham 27 e 28 anos de idade respectivamente, o autor intelectual (o
proprietário da fazenda Campos Novos) estava com 75 anos, e os demais
(intermediários da transação) estavam na casa dos 50. O PM era negro, o
fazendeiro vizinho era pardo e os demais eram brancos. O motorista era solteiro,
o fazendeiro vizinho era separado judicialmente e os outros eram todos casados.

Testemunhas

Quinze pessoas foram testemunhas deste caso, sendo apenas três


mulheres. Cinco eram brancas, duas pardas, uma negra e sobre as demais não
consta a informação da cor. A maior parte (10) eram solteiras e as demais,
casadas. Uma das testemunhas tinha 10 anos de idade, quatro tinham entre 22 e
28 anos, uma estava com 44 anos, uma tinha 57 anos, sobre duas delas consta
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 610

apenas a informação “maior” de idade, e para as demais não há informação. O


menino era estudante, 6 eram trabalhadores autônomos pouco especializados ou
proprietários de pequenos comércios (mecânico, locador de automóveis,
açougueiro, motorista, cozinheira, prostituta), duas testemunhas eram
funcionárias públicas (servente, bedel), 5 eram lavradores e o último, Delegado
Regional do Ministério da Reforma Agrária. Sobre o grau de instrução, a
informação é vaga: o menino, como foi dito, era estudante, um era analfabeto,
para 4 constava apenas a informação “alfabetizado”, o delegado supostamente
tinha nível superior e para os 8 restantes, não há informação. Quanto à
residência, 9 moravam na própria Cabo Frio, duas em Barra de São João, uma
em Angelin, uma em Macaé, uma em Búzios e a última no Rio de Janeiro.

Relações hierárquicas entre protagonistas

As relações eram hierárquicas sobretudo entre os indiciados: um era


proprietário de uma fazenda, dois eram seus empregados e sitiantes, os demais
eram amigos - um PM, um motorista e um fazendeiro vizinho, para o qual o
administrador já havia trabalhado. O pai da vítima havia sido empregado do
proprietário da fazenda. Entre as testemunhas, 7 eram familiares ou conhecidas
dos indiciados, 4 eram relacionadas com a vítima, uma havia presenciado o
crime, uma era o Delegado Regional do Ministério da Reforma Agrária e duas
apresentaram-se espontaneamente para falar a respeito dos conflitos de terra
que promoveram o crime. Entre estas, inclui-se um lavrador, sócio da Associação
dos Moradores de Angelin, que, segundo ele, não tinha bom relacionamento com
o sindicalista assassinado.

Contextos/Cenários

O assassinato ocorreu na estrada que liga Búzios a Cabo Frio, município


onde se localiza a fazenda palco dos conflitos. Segundo o laudo do exame do
local, o trecho da estrada é mal iluminado e ermo, sem casas nas imediações.

A região é toda dominada pelo conflito de terras que, não raras vezes, se
desdobra em ameaças e até atos de violência. Ressalta o fato de os conflitos de
terras serem também atravessados por relações de parentesco, assumindo,
freqüentemente, a forma de conflitos de famílias. Neste contexto, o comércio
ilegal de armas é comum e episódios de ameaças, atentados e assassinatos
envolvendo moradores da região são recorrentes não só no município de Cabo
Frio, como também nos vizinhos Rio das Ostras, Macaé, São Pedro da Aldeia e
outros. O medo é dominante, o que levou até mesmo algumas testemunhas do
caso a não comparecerem às oitivas.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 611

Os conflitos são bastante institucionalizados: por um lado, as disputas dão-


se sempre em torno de decisões dos órgãos dos governos; por outro lado, os
trabalhadores rurais estão organizados em torno do Sindicato dos Trabalhadores
Rurais, a comunidade local participa da Associação dos Moradores de Angelin e
a CPT acompanha os conflitos e os casos de violência na região. As relações
entre os membros destas organizações e entre eles e os “de fora” incluem
solidariedade, cooperação, mas também rivalidade e competição.

“Física” dos acontecimentos

O policial militar relata na sua confissão, durante o IP, que o proprietário


vizinho à fazenda Campos Novos tinha lhe dito que queria eliminar um “fiscal
rural”, devido a problemas de terras, uma vez que o tal “fiscal” estaria dando
cobertura a “invasores de terras”.

O proprietário da fazenda Campos Novos relatou, em 07/07/88, que sua


propriedade possui 5.215,5 hectares. Segundo ele, no final do governo do
Presidente João Goulart, a fazenda começou a ser “invadida” por sem-terra. Em
1968, o IRRA, antecessor do INCRA, constatou a ocupação da fazenda por parte
de setenta e duas famílias, porém não tomou qualquer providência. Em 1971, o
INCRA teria registrado a presença de 131 famílias, mas novamente não teria
tomado qualquer providência, o que permitiu que as “invasões” continuassem.
Em setembro de 1979, por meio da Companhia Agrícola Campos Novos, de sua
propriedade, dirigiu uma carta ao INCRA - RJ, após entendimentos com o
Coordenador daquele órgão, propondo a venda ao INCRA de uma parte da
fazenda, para nela serem assentados todos os “posseiros, grileiros e invasores”.
Em maio de 1981 fez nova proposta ao INCRA, para a qual não recebeu
qualquer resposta. Em 1982, denunciou, junto ao IBDF, o desmatamento da área
na qual estava sendo cortado pau-brasil para fazer ‘carvão’ e nenhuma
providência teria sido tomada. O depoimento do proprietário prossegue afirmando
que em 1983, o Presidente João Figueiredo baixou os decretos determinado a
desapropriação de 3.203,43 hectares da fazenda com o objetivo de reformular a
estrutura fundiária da região, criar 327 unidades familiares e organizar uma
cooperativa. Imediatamente, o INCRA emitiu-se na posse do imóvel
desapropriado e promoveu, contra a Cia. Campos Novos, ação de
desapropriação na qual só se discutiu o valor da indenização a ser paga ao
proprietário da fazenda. Apesar de decorridos mais de cinco anos da
desapropriação, o INCRA não assentou qualquer família.

O delegado regional do Ministério da Reforma Agrária, em seus


depoimentos, defendeu o INCRA, dizendo que, em 13/07/88, posteriormente ao
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 612

depósito do valor da indenização calculada pelos técnicos do INCRA em juízo, a


Cia. Agrícola Campos Novos solicitou o levantamento correspondente a 80%
daquele valor. O INCRA opôs-se em face de divergências surgidas na ‘cadeia
dominial’ decorrentes do título de propriedade apresentado pelo proprietário da
fazenda.

Ainda segundo o delegado, em 1984, o INCRA verificou que a área estava


sendo ocupada por novos posseiros, muitos deles vindos de Campos, no mesmo
estado, o que motivou requerimento de expulsão destes posseiros. Antes da
desapropriação, contra a maioria dos posseiros, e depois dela, contra os
posseiros que estavam na área não desapropriada, a Cia. Campos Novos
moveu, na Comarca de Cabo Frio, processos de reintegração de posse. Por
motivos de excesso de serviço na Comarca, estes processos não tiveram
andamento. Um dos processos foi contra os membros da família da vítima, cujo
chefe (seu pai) havia trabalhado, havia muitos anos, para a fazenda. Os filhos
assumiram a condição de posseiros. As terras ocupadas pela família estavam
fora da área desapropriada em 1983. Entre os anos de 1974 e 1976, a vítima foi
trabalhar na fazenda. Ao Referido nacional foi cedida casa próxima à sede da
fazenda, como aliás era feito com todos os empregados. Foram propostas duas
ações distintas contra o sindicalista e seu irmão. O segundo fez um acordo, na
ação de reintegração de posse que lhe foi movida, e recebeu como indenização a
importância que pedira, aproximadamente dez milhões de cruzeiros. A vítima
pedira uma importância maior que a recebida por seu irmão. Entretanto, desistiu
de sair, porque havia sido convidado para ser o presidente do Sindicatos dos
Trabalhadores Rurais da região. Em janeiro de 1987, por iniciativa do INCRA do
Rio de Janeiro, que tinha autonomia em relação a Brasília, foi promovida a
desapropriação de mais 1.828,7881 hectares da fazenda Campos Novos. Nesta
desapropriação ficou incluída a área ocupada pelo sindicalista, que é a área sede
da fazenda. A partir desta segunda desapropriação, o MIRAD mandou uma
comissão, vinda de Brasília, para fazer um estudo de modificação do decreto de
desapropriação, porque a fazenda ficara apenas com 182 hectares, em torno da
casa da sede, deixando de constituir uma unidade econômica, que justificasse
uma exploração agropecuária. A Lei que modificou a estrutura do MIRAD
determina que nenhuma propriedade desapropriada poderá ficar com uma área
reservada para o proprietário inferior a 25% do total da área. Este é o motivo pelo
qual não houve a emissão, ainda da segunda área desapropriada. Em virtude de
não ter sido emitida a posse, o então INCRA não pôde iniciar o trabalho de
assentamento de 150 famílias. Em abril de 1988, este órgão teve conhecimento
oficial de denúncia formulada pelo proprietário da fazenda, sobre invasão
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 613

ocorrida em área correspondente à segunda desapropriação e próxima à sede.


Em face da denúncia recebida, designou um grupo para conhecimento mais
detalhado da situação do fato. Foi constatado que a invasão ocorrera em área de
posse ocupada pelo sindicalista.

Este é o histórico do conflito que motivou o assassinato. Os assassinos


apreenderam uma maleta portada pela vítima, com documentos relativos ao
conflito de terras, que seriam levados para uma audiência com a direção superior
do MIRAD em Brasília, no dia 08 de junho.

Dias após ao assassinato, o proprietário da fazenda arrombou a porta do


quarto do seu administrador, único a acusá-lo durante a instrução criminal, a fim
de subtrair documentos e objetos de provas que pudessem incriminá-lo.
Entretanto, em diligência realizada no apartamento do fazendeiro, em Ipanema
(Rio de Janeiro), a polícia apreendeu um caderno com anotações diversas e um
bilhete escrito pelo seu administrador, dando notícias de que a empreitada
relativa ao homicídio havia sido cumprida.

Observações finais

Faltam na fotocópia do processo todas as folhas da data de 30/09/88 até


13/03/89 (a última folha antes do intervalo é a de número 438 e a primeira depois
do intervalo é a de n.º 889). Neste intervalo está o restante da instrução criminal
(com a oitiva das testemunhas de defesa: assentadas de audiências e oitiva de
testemunhas nas folhas n.º 497/498, 568/569, 578 e 609) e as alegações finais
do MP (864/865) e da Assistência da Acusação, nas folhas 886/888. Faltam
também: provas da defesa apresentadas nas folhas
498/499/500/501/502/503/504, 633/634, 712/713/714/715, 799, 820/821/822 e
peças técnicas: laudo de munição (fls. 530); auto de reconhecimento dos réus.
Faltam as alegações finais das defesas de três dos réus nas folhas 933, 945, 954
e 957, todas postulando pela improcedência da acusação e impronúncia dos
acusados; uma oitiva de uma testemunha que não foi possível identificar
(26/08/88); as Contra Razões de Recurso do MP e as da Assistência de
Acusação, bem como o parecer do juiz.

Mesmo com estas falhas, é possível fazer algumas considerações sobre o


andamento do caso na polícia e na justiça. Algumas providências que a polícia
poderia ter tomado: tentar obter os cheques do pagamento pelo crime, investigar
mais a fundo - atentando para as contradições nos depoimentos e para as provas
e documentos apreendidos, nem todos anexados aos autos - a participação do
proprietário da fazenda no assassinato; procurar entre as 39 pessoas
mencionadas nos depoimentos, e não ouvidas como testemunhas, as que
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 614

provavelmente teriam importantes informações a fornecer, como parentes dos


réus, das testemunhas e da vítima bem como outras pessoas também envolvidas
nos conflitos de terra em questão e sobretudo várias pessoas mencionadas como
álibi dos réus.

Se as investigações policiais tivessem sido melhor realizadas, talvez o


desfecho para o caso tivesse sido diferente, se bem que ele segue a maior parte
dos julgamentos de crimes no meio rural: condenação dos pistoleiros e
absolvição dos mandantes.

1.6.Violência em conflito com povos indígenas no Amazonas

Data: 28 de março de 1988

Resumo
O caso refere-se a massacre de índios Tikuna, em 28 de março de 1988,
em terras disputadas com posseiros e um madeireiro ali residente havia mais 30
anos. Parte da área, a que pertencia ao madeireiro, havia sido desapropriada
pela FUNAI, no entanto, ele não aceitara a indenização, ficando o processo em
trâmite na Justiça. O clima estava tenso havia algum tempo, já tendo ocorrido
denúncias de ataques de ambos os lados, até que os fatos culminaram no
massacre.

Os depoimentos apontaram para 25 pessoas responsáveis pelo homicídio


de catorze Tikuna, dez dos quais desaparecidos, cujos corpos sumiram nas
águas do Rio Solimões, e mais 21 vítimas de lesões corporais, incluindo crianças.
O madeireiro - que tinha antecedentes criminais por receptação de contrabando e
tráfico de drogas, tendo sido indiciado em Inquérito em junho de 1981 - aparece
como o líder máximo do massacre, pois, foi visto dentro do seu barco, ancorado
nas margens do rio, no local da ocorrência. Sete espingardas e farta munição
foram apreendidas no barco de sua propriedade.

A situação se agravou ainda mais, após o massacre. Índios de outras


comunidades localizadas ao longo do rio até o lugar Vendaval organizam-se para
dar apoio às comunidades vitimadas. Poucos dias depois, houve um conflito
entre 15 índios Tikuna e brancos. Um índio matou a faca um rapaz de 16 anos. A
Polícia Federal e a Polícia Militar chegaram momentos depois quando um índio
de 15 anos estava sendo linchado e conseguiram salvá-lo. O delegado federal
solicitou então reforço policial. Foi aberto, pela PF, inquérito policial para apurar o
espancamento contra o índio.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 615

No dia 08 de abril de 1988, o delegado solicitou a prisão preventiva de 13


indiciados. A prisão foi decretada no dia 19 de abril. Nove dias depois, o juiz
determinou que o madeireiro, por ter mais de 70 anos, ficasse recolhido em
residência particular e que os demais réus fossem submetidos a exames médicos
e que alguns fossem removidos para a Delegacia de Polícia da cidade, devido à
superlotação das celas da Polícia Federal. Por indicação do Ministério Público,
em 01 de novembro, foi concedida liberdade para todos os réus, inclusive para
um que se encontrava foragido. Em 13 de julho de 1990, todos os réus foram
pronunciados, dois dos quais à revelia.

Local

Área discriminada pela FUNAI para constituir reserva indígena Tikuna na


Boca do Capacete, igarapé que mede aproximadamente cinqüenta metros de
largura. A localidade situa-se no município de Benjamim Constant, no
Amazonas, à beira do rio Solimões, margem esquerda de quem demanda sua
nascente, a duas horas de barco motor da sede do município de Tabatinga. Além
de Boca do Capacete, o município é formado por várias localidades: Havaí, São
Leopoldo, Porto Espiritual, Niterói, Guanabara, Lauro Sodré, Teresina I, Teresina
II, Teresina III, São Paulo de Olivança.

Havia pouco mais de quatro anos que fora instalada a primeira escola
municipal no local. Na área da saúde, os únicos médicos que algumas vezes
apareciam eram do Campus Avançado do Alto Solimões.

Além do cultivo da terra, as populações das regiões do Médio e alto


Solimões vivem da atividade pesqueira. Estes lagos, imensos viveiros, são a
fonte básica da alimentação das populações ribeirinhas. No entanto, a pesca
predatória, que serve aos grandes hotéis de Manaus e fornece produtos para
exportação, vinha ameaçando algumas espécies de peixe e diminuindo a
produtividade dos pescadores. Frente a essa situação, centenas de comunidades
de índios, ribeirinhos e lavradores mobilizaram-se para criar comitês de pesca e
proteção de lagos de preservação. Apesar da ausência de apoio sindical, vários
comitês conseguiram boa mobilização; São Paulo de Olivança organizou uma
das mais desenvolvidas ações de preservação de lagos e rios. Os comitês, além
de elaborarem propostas de leis municipais, organizam grupos que vigiam dia e
noite os lagos, sendo que nos lagos de preservação a pesca é proibida durante o
ano todo e nos lagos de manutenção, é controlada. Nos encontros, os
participantes conheceram as antigas lutas dos indígenas, que desde os anos 70
empenhavam-se na proteção dos lagos. Em algumas ocasiões, membros das
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 616

comunidades foram presos devido a conflitos com a pesca empresarial de


armadores-geleiros258.

No que se refere à questão especificamente indígena, além dos


armadores-geleiros, esta população tem que se defrontar com fazendeiros,
madeireiros e mineradoras. Segundo a CPT, o assassinato de índios no
Amazonas faz parte de uma campanha de dizimação promovida por esses
agentes, que conta até mesmo com o apoio da FUNAI259.

Vítimas

Ao todo, foram 35 as vítimas, sendo 14 fatais (10 desaparecidas) e 21 de


lesões corporais, embora no relatório do delegado só constem 19 vítimas de
lesão corporal. A maior parte (29) era do sexo masculino e trabalhava como
agricultor (12). Entre as demais, havia um estudante, dois monitores bilingüe,
uma dona de casa, um responsável por balsa; para os outros, não se informa a
ocupação. Os dados dos autos sugerem que todas as vítimas eram Tikuna, mas
as informações sobre as origens étnicas restringem-se a 15 delas, todas
classificadas como “pardas”. Quanto à naturalidade, informa-se que 28 nasceram
no próprio município de Benjamim Constant, a maioria na comunidade de São
Leopoldo e uma nasceu em Belém dos Solimões, também no Amazonas. No que
se refere à residência, 30 moravam em Benjamim Constant, novamente a maioria
na própria São Leopoldo; uma em Porto Nova Lima e uma em Campo Alegre,
ambos municípios amazonenses. Sobre a maioria das vítimas (24) não há
informação sobre o estado civil; entre as demais, 10 declararam-se casadas e 4
solteiras. Suas idades distribuíam-se da seguinte forma: seis eram crianças e
adolescentes de 6 a 16 anos; doze eram jovens de 18 a 29; cinco tinham entre 35
e 43 anos; três eram idosos, de 58 a 77 anos de idade; sobre os restantes, não
há informação.

Indiciados

Treze homens foram indiciados neste caso. Nove deles não tinham
antecedentes criminais; o líder, um madeireiro proprietário de um armazém, tinha
antecedentes por receptação e contrabando. Além do madeireiro, os outros eram
9 agricultores, um pescador, um professor e um funcionário de serraria. Todos
eram amazonenses, assim como as vítimas, a maior parte (11) era de nascidos
em Benjamim Constant, um em Tabatinga e um em Fonte Boa. Todos residiam
na própria Boca do Capacete, três deles havia mais de 25 anos e dois, mais de

258
CPT, Rompendo o cerco e a cerca - Conflitos no campo, 1989, p. 19.
259
CPT, Conflitos no campo - Brasil, 1988, p. 48.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 617

quatro anos. A maioria (8) era casada, com filhos; 4 eram solteiros; e o último
amasiado, com enteados. Suas idades concentravam-se na faixa dos 22 aos 32
anos (sete deles), 4 estavam na casa dos quarenta anos, e o madeireiro tinha 73
anos de idade.

Testemunhas

Além de 17 das vítimas de lesão corporal, outras 30 pessoas foram


ouvidas como testemunhas. Entre estas, 28 eram homens. Metade era nascida
em Benjamim Constant, uma em Bom Pastor e uma Tabatinga, todos municípios
amazonenses. A maioria (23) residia na própria Benjamim Constant; uma em
Tabatinga; sobre as demais, não há informação. Quanto à ocupação, informa-se
que 12 eram agricultores e/ou pescadores, 6 comerciantes, um monitor bilingüe,
uma dona de casa, um professor primário, um religioso, um vereador. Destacam-
se os líderes das comunidades: o presidente da Comunidade do Capacete, o
secretário da Cruzada do Novo Porto Lima e o "primeiro capitão" de São
Leopoldo (título que parece se referir a lideranças indígenas). Em relação ao
estado civil, metade das testemunhas declararam-se casadas, 7 solteiras, duas
viúvas, uma amasiada, uma desquitada. A maioria eram jovens entre 15 e 29
anos (doze pessoas); oito tinham entre 32 e 49; sete estavam na faixa dos 50
anos.

Relações hierárquicas entre os protagonistas

Havia relações hierárquicas entre os réus, dado que dois deles cultivavam
terras na propriedade do madeireiro. Havia também relações de parentesco entre
alguns dos envolvidos: um dos réus era casado com uma Tikuna, uma das
testemunhas era parente de um dos réus e de uma das vítimas. Quatro
testemunhas eram parentes das vítimas e 16 eram parentes, amigos ou
fornecedores de madeira para os réus. Entre as testemunhas, 17 foram vítimas
de lesões corporais. Seis testemunhas presenciaram os fatos, outras 3 eram
moradoras da região.

Contextos/Cenários

O massacre ocorreu em uma das áreas já discriminadas pela FUNAI para


constituir futura reserva indígena Tikuna, e que por isso se tornou cenário de
muitos conflitos, em que ocorrências de pouca importância, não raro, motivam
sérias disputas entre indígenas, posseiros e madeireiros. Consta que, por
delegação do Governo Federal, já teria a FUNAI iniciado processo de
desapropriação, por via administrativa, de parte das áreas reclamadas,
oferecendo quantias consideradas irrisórias pelos posseiros e pelo madeireiro.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 618

“Física” dos acontecimentos

O processo demarcatório das áreas do Tikuna já há muito tempo se


arrastava entre os altos escalões do Governo Federal, porém sem previsão de
data para a efetivação da pretendida reserva. Tais informações foram tornadas
públicas como inicial da Ação Declaratória que tramitava no Foro da Seção
Judiciária Federal no Amazonas. Esse feito se constituiu em mais um esforço da
nação Tikuna em busca de comprovar a relação jurídica que alegava possuir com
as terras ditas ocupadas por seus ancestrais, desde épocas que se perdem na
memória dos tempos. Consta que o Governo Federal já teria iniciado o processo
de desapropriação via FUNAI oferecendo quantias consideradas irrisórias pelos
posseiros e pelo madeireiro, moradores e agricultores igualmente tradicionais das
terras. A localidade Boca do Capacete era uma das áreas já discriminadas pela
FUNAI para constituir futura reserva indígena Tikuna.

Como conseqüência, vários foram os episódios que opuseram Tikuna e


posseiros. Em janeiro de 1987, o madeireiro, que ali morava havia mais de 30
anos, foi impedido de continuar suas atividades, tornando-se então pescador. Em
23 de março do mesmo ano, a FUNAI orientou o Capitão da comunidade de São
Leopoldo e um indígena residente em Capacete para fazer a imediata retirada do
ex-madeireiro de sua propriedade. Este senhor deveria proceder a sua mudança
na semana seguinte, passando a ocupar, conforme entendimentos anteriores,
uma casa na boca do igarapé Capacete.

No dia 27 de março, houve uma reunião da qual participaram as


comunidades de Porto Lima, Bom Pastor, Porto Espiritual e São Leopoldo. De
acordo com o combinado, as comunidades deveriam comparecer à Boca do
Capacete, onde aguardariam a presença dos Capitães daquelas comunidades,
do advogado da FUNAI e da Polícia de Benjamim Constant, para fazer ocorrência
de desaparecimento de um boi de uma das comunidades.

A partir daí, o ex-madeireiro fez várias queixas contra os índios, dizendo


que eles o haviam expulsado de sua casa e saqueado seu armazém.

Observações finais

O relacionamento das várias comunidades - lavradores e índios - com as


instâncias mediadoras é bastante problemático. A ingerência da FUNAI por vezes
chega a acirrar os conflitos e as polícias, tanto militar quanto federal, não são
capazes de conter os desfechos violentos para os mesmos.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 619

Sobre o trabalho da polícia especificamente na condução das


investigações deste caso, algumas reparações devem ser feitas: só consta
Relatório Parcial da Polícia Federal do dia 17/06/88, que é utilizado para a
Denúncia; além das 19 vítimas de lesão corporal mencionadas neste relatório,
duas outras foram feridas, mas não foram submetidas a Exame de Corpo de
Delito e nem sequer chamadas para depor; do mesmo modo, outras 25 pessoas
foram mencionadas nos depoimentos, mas não foram arroladas nem como réus
nem como testemunhas, muito embora várias delas tenham presenciado os fatos
e outras tenham sido vistas na posição de atacantes; dez pessoas ficaram
desaparecidas.

1.7.Violência em conflito com povos indígenas no Mato Grosso

Data: 16 de outubro de 1988

Resumo
O caso integra uma série de conflitos no estado do Mato Grosso
envolvendo a posse e a exploração pela terra entre várias tribos indígenas
(Gavião, Arara, Cinta Larga, Suruí e Zoró), posseiros, garimpeiros, madeireiros,
grandes proprietários e grileiros.

No dia 16 de outubro, posseiros que haviam sido atacados por índios três
dias antes estavam entrincheirados em Paraíso da Serra, quando foram
informados que os índios estavam queimando e saqueando casas na beira da
estrada que liga Paraíso da Serra/MT a Boa Vista do Pacarana/RO. Os posseiros
formaram então dois grupos e, utilizando-se de duas camionetas, uma Toyota
azul e uma Pick-up vermelha, saíram no encalço dos índios. Encontraram no
caminho quatro grupos de índios, travando com eles acirrada batalha, resultando
na morte de um cacique Suruí. Após o matarem, jogaram seu corpo na mata e
atearam fogo.
As investigações levaram à indicação dos seguintes suspeitos: um
agricultor residente na reserva Zoró, um tratorista autônomo, um motorista, um
operador de máquinas pesadas, um pequeno pecuarista, um açougueiro e dois
garimpeiros, que até o dia do crime exploravam um garimpo localizado na
estrada do Jacaré, no Distrito de Paraíso da Serra/MT.

A não punição imediata dos acusados gerou um clima de revolta entre os


índios e chamou a atenção da imprensa, que passou a constantemente se
reportar à ocorrência. O descontentamento das várias tribos indígenas foi
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 620

transformado em revolta porque, avançadas as investigações e apontados os


suspeitos, os índios os viam circulando livremente na região.

Diante disso, no dia 17/02/89, foi pedida a prisão preventiva de todos os


suspeitos, com exceção do açougueiro. No dia 26/02/89, foram presos o
tratorista, o motorista e o pequeno pecuarista. No dia 02/03/89, foi preso o
operador de máquinas. O tratorista foi também condenado por outro processo -
de lesão corporal em Espigão d’Oeste - mas em 30 de março de 1989,
encontrava-se em liberdade condicional. Os outros não foram mais encontrados.
No dia 29/06/89, foi concedido o relaxamento da prisão provisória.

Local

O corpo do cacique Suruí foi encontrado a cinqüenta metros da margem


direita da estrada que liga a localidade de Boa Vista do Pacarana, em Espigão do
Oeste/RO ao distrito de Paraíso da Serra no município de Aripuanã/MT, perto de
uma escola municipal de tijolo aparente. A área pertence à reserva indígena
Zoró, situada no município de Aripuanã no estado de Mato Grosso, próxima
ao rio Roosevelt e divisa com Rondônia.

O estado do Mato Grosso, localizado na poção Centro-oeste do país,


abrange uma área de 881.001 Km2. Em 1988, ano do homicídio, a população do
estado era de 1.660.000 habitantes.260

Mato Grosso é um dos estados com situação conflituosa mais acirrada no


meio rural do país. Até mesmo o bispo da região da Prelazia de São Félix do
Araguaia, dom Pedro Casaldáliga, era ameaçado de morte.
Naquele ano foram demarcados 42 conflitos, que abrangiam uma área de
2.107.361 hectares. Entre esse conflitos, apenas um era relativo a questões
trabalhistas: tratava-se de um caso de 300 peões trabalhando em regime de
escravidão. Todos os demais decorriam da disputa pela terra e envolviam 16.776
pessoas. Esses conflitos provocaram: 4 assassinatos (três trabalhadores rurais
além do homicídio aqui relatado), 10 atentados, 6 ameaças, 7 prisões ilegais, 45
agressões, dois desaparecimentos, 7 seqüestros, 17 despejos, 13 expulsões,
duzentas tentativas de expulsão, duas destruições de casas.

Não são constantes os casos de homicídio no meio rural do estado, sendo


mais característica a ocorrência de picos desta violência. Assim, entre 1986 e

260
Os números relativos à violência no Mato Grosso provêm dos relatórios anuais divulgados pela
Comissão Pastoral da Terra (CPT-Goiânia), entre 1986 e 1989, e do relatório produzido pelo
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, Assassinatos no campo - crime e impunidade
1964-1985, São Paulo, 1987.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 621

1992, foram registrados 39 homicídios, vinte e um deles contra trabalhadores no


ano de 1986 e 12 em 1990.

A alta incidência de conflitos decorre da ausência de um plano de


redistribuição de terras no estado. O programa de reforma agrária anunciado pelo
governo Sarney, ficou longe de cumprir sua meta, que era de assentar 41.900
famílias em 1.510.000 hectares. Entre 1985 e 1989, de fato foram assentadas
4.249 famílias em 709.593 hectares.

Em relação especificamente à situação dos povos indígenas, o


assassinato em Aripuanã não foi um ato isolado. No mesmo ano de 1988, outros
27 índios foram mortos em confrontos com fazendeiros, madeireiros e
mineradoras em todo o país. É possível relacionar a violência contra os
chamados povos da floresta (que incluem também seringueiros e posseiros) com
a violência contra a natureza, realizada em queimadas e devastações.

Também não foi atípico o fato de a vítima deste caso ser um cacique:
assim como as lideranças dos trabalhadores rurais, as lideranças indígenas são
as mais visadas nos ataques.
Vítima

Cacique Suruí, nascido em 19/04/23 (55 anos), casado, residente na


aldeia Sete de Setembro, município de Cacoal (RO).

Indiciados

Seis homens foram indiciados por este crime: um agricultor


desempregado, um tratorista, um motorista, um operador de máquinas pesadas
(ex-grileiro), um pequeno pecuarista e um açougueiro. Suas origens apontam
para o caráter de frente de expansão da região: dois paraenses (um pardo), dois
capixabas (brancos), um mineiro (negro), um gaúcho. O mais novo era o
tratorista, com 27 anos e o mais velho era o motorista, de 44 anos. Todos eram
ao menos alfabetizados e o tratorista tinha primeiro grau completo. Quatro deles
eram pais de família. O motorista possuía antecedentes criminais - dois
processos e um inquérito, por homicídio, tendo chegado a cumprir pena. O ex-
grileiro e o pequeno pecuarista também apresentavam antecedentes criminais.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 622

Testemunhas

Dezessete pessoas foram chamadas a testemunhar neste caso, sendo


que a grande maioria (15) era do sexo masculino. Também entre elas, a
naturalidade revela o alto nível de imigração e a diversidade desta que
caracteriza a região: 5 eram provenientes da região Sul do país; o mesmo
número vinha da região Norte; duas testemunhas eram paulistas; uma, cearense;
outra japonesa naturalizada; e apenas uma era mato-grossense; sobre a última,
informa-se somente que era brasileira. Suas idades distribuíam-se de modo muito
equilibrado: quatro tinham entre 20 e 28 anos; o mesmo número, de 32 a 38; de
50 a 52; e de 60 a 66 anos de idade; três tinham entre 40 e 43; sobre as demais,
não há informação. No que se refere às ocupações, quatro eram trabalhadores
rurais (agricultor, tratorista, posseiro); três proprietários agrícolas; dois
funcionários da FUNAI; dois índios; dois políticos (o prefeito e um deputado
estadual); dois comerciantes; uma doméstica; um mecânico. A maior parte das
testemunhas (14) eram casadas; uma era solteira; uma desquitada; sobre a
última, não há informação. Quanto ao grau de instrução, informa-se apenas que
sete delas eram alfabetizadas. Finalmente, em relação aos locais de residência, a
grande parte (13) residia no estado de Rondônia; uma morava no Paraná; e uma
no próprio Mato Grosso; sobre as demais, não há informação.

Relações hierárquicas entre os protagonistas

As relações entre os protagonistas são bem hierarquicamente


demarcadas. A vítima era cacique Suruí residente em reserva indígena ocupada
por posseiros. Entre os réus, contam-se dois posseiros na área em conflito, dois
empregados de grandes proprietários na mesma área, um grileiro e um
comerciante, recém chegado à região, amigo dos demais. Entre as testemunhas,
há três grandes proprietários, patrões dos dois réus citados acima e de outras
duas testemunhas. Dois funcionários da FUNAI que, como tal, são tutores dos
dois índios que testemunharam, além da vítima. Há ainda outros dois pequenos
proprietários, que presenciaram os acontecimentos; uma amasiada de um
garimpeiro suspeito foragido; e um mecânico, conhecido dos réus. Os demais
são políticos: um representante legal dos posseiros; o prefeito de Espigão
d'Oeste; o ex-prefeito desta cidade; uma deputada estadual.

Contextos/Cenários

A região é, segundo os depoimentos, bastante violenta, sendo conhecida


como "região de pistoleiros". Houve um episódio de conflito entre índios e
posseiros um ano antes, quando os índios mataram um colono e seus dois filhos.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 623

“Física” dos acontecimentos

Na reserva indígena dos Zoró existem diversos posseiros que lá se


instalaram em meados do ano de 1984. No ano de 1986 a FUNAI montou uma
barreira, com apoio da Polícia Federal, não permitindo mais a entrada, na área
indígena de posseiros e também a retirada de madeiras, cobiçadas por
madeireiros dos municípios vizinhos no estado de Rondônia. Em setembro de
1987, os Zoró queimaram o Posto Policial. Nesta ocasião, um representante legal
dos posseiros e um cacique Zoró firmaram acordo que previa, por parte dos
posseiros, a construção de estrada de acesso à Aldeia Zoró, fornecimento de
alimentação, atendimento médico e também um carro. Em troca, os índios
abririam mão da área conflitante. A obra foi iniciada e os posseiros retiraram
cargas de madeiras, já derrubadas, conforme suas declarações, autorizados
pelos indígenas. No entanto, no dia 13 de outubro de 1988, os trabalhadores que
faziam a abertura da estrada foram atacados, por cerca de 350 índios de diversas
tribos: Gavião, Arara, Cinta Larga, Suruí e alguns Zoró. Os índios,
posteriormente, liberaram os trabalhadores para que avisassem os demais
posseiros de que deveriam abandonar a área indígena ou seriam expulsos. Em
vista destes fatos armou-se uma verdadeira operação de guerra, de um lado os
índios propensos a atacarem e de outro os posseiros se organizando na
localidade de Paraíso da Serra/MT, armados, aguardando o prometido ataque
indígena. Os índios, informados da organização armada dos posseiros, os quais
estariam com armas e bombas, resolveram dispersar e retornar às suas aldeias.
Assim sendo, os indígenas se dividiram em pequenos grupos rumo às reservas.
No dia 16 de outubro, os posseiros, entrincheirados em Paraíso da Serra/MT,
foram informados que os índios estavam queimando e saqueando casas na beira
da estrada que liga Paraíso da Serra/MT a Boa Vista do Pacarana/RO, e então
formaram dois grupos e, utilizando-se de duas camionetas, passaram a perseguir
os índios. Encontraram no caminho quatro grupos de índios, travando com eles
batalha, que resultou na morte do cacique.

Observações finais

O juiz que pediu a prisão preventiva dos suspeitos reconheceu a seriedade


do trabalho do delegado, fazendo referência aos elogios que a imprensa fez em
relação a este. Entretanto, 31 pessoas mencionadas nos depoimentos não foram
arroladas como testemunhas ou indiciadas, ressaltando-se entre elas dois outros
suspeitos que não foram encontrados pela polícia (um terceiro foi morto),
proprietários de terras na área de conflito que firmaram acordo com os índios, e
os caciques que lideravam os índios nos confrontos com os posseiros.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 624

A Procuradoria da República fez a Denúncia baseando-se no relatório do


delegado. Defendeu a competência da Justiça Federal para julgar o caso e não
permitiu que os réus fossem soltos, mesmo sendo alegado, pela defesa, o final
do prazo para a manutenção da preventiva.

O juiz federal defendeu a competência da Justiça Federal, pois considerou


a União ofendida na defesa dos interesses indígenas. Um mês depois de indeferir
o pedido de liberdade provisória, teve que relaxar a prisão preventiva em função
da possível lesão aos direitos dos réus. Um outro juiz federal defendeu a
incompetência da Justiça Federal. Mas, o acórdão opinou pela competência da
Justiça Federal. Não se chegou ainda à sentença de pronúncia.

A intenção inicial das autoridades - delegado, procuradores e juizes - em


punir os acusados acabou sendo diluída com o tempo. Os réus foram soltos
porque acabou o prazo para mantê-los presos sem julgamento. E, uma vez
soltos, circulavam livremente pelo local do delito sem ser cumprida determinação
judicial de permanecerem em residência declarada. O conflito de competência,
entre a Justiça Federal e a Estadual, acabou por deslocar o caso da realidade de
um homicídio para uma discussão das esferas judiciárias, ao longo de mais de
seis anos.

2. Violência em conflitos de terra no Nordeste


Os sete processos relativos a homicídios no contexto rural brasileiro
abrangem as quatro regiões do país - Norte, Nordeste, Centro-oeste e Sudeste, e
referem-se aos dois principais tipos de conflito: por terra e em torno da questão
indígena. Além disso, os processos fornecem importante subsídio para a
compreensão da atuação tanto dos órgãos do governo como das organizações
não-governamentais no campo, aspecto fundamental na história recente do
país261.

O contexto é o da Nova República, primeiro governo civil após 21 anos de


ditadura militar. O período é marcado pela consolidação da aliança de setores da
burguesia industrial e financeira com representantes mais modernos dos
proprietários rurais. A Nova República iniciou-se assim pressionada pelas
organizações dos trabalhadores e pelos grandes proprietários e acabou por
produzir o I Plano Nacional de Reforma Agrária, que desagradou a ambos
(TAVARES DOS SANTOS, 1993).

261
Conforme foi visto na Parte II “As Graves Violações de Direitos Humanos e a Imprensa (1980-
1996)”, capítulo 8. “Violência Rural: uma década de lutas em torno da terra”.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 625

Segundo José Vicente Tavares dos Santos, este plano foi limitado embora
tenha significado um avanço em relação aos sessenta anos precedentes. O
maior número de assentamentos - entre 1985 e 1989 foram assentadas 75 mil
famílias, o que correspondia a 40% do que foi assentado nos 60 anos anteriores -
não foi capaz de impedir o acirramento dos conflitos no campo. Este acirramento
deveu-se, por um lado, ao aumento da exclusão social decorrente da progressiva
retirada do Estado da política de bem-estar social no campo e, por outro, à
tentativa de universalização do complexo agro-industrial.

*.*.*.*.*

Quatro casos de homicídios em conflitos de terras relatados nos autos


analisados aconteceram na região Nordeste do país, nos estados que
concentram grande parte dos homicídios no contexto rural do país: no Maranhão
em 1987, na Paraíba e na Bahia em 1988, no Piauí em 1989.

No Maranhão, um agricultor foi morto por ter ferido o garrote de uma


fazenda vizinha, cujo responsável tinha desavenças antigas com este lavrador
em decorrência do fato de ele participar da CPT. Na Paraíba, outro agricultor
ligado à Comunidade Eclesial de Base foi morto no auge de um conflito
estabelecido entre antigos moradores de uma região, que haviam conseguido a
desapropriação da área, e o administrador da fazenda do antigo proprietário, que
não se conformava com a nova situação. Na Bahia, um fazendeiro e um primo
mataram um agricultor, morador de área anteriormente pertencente ao fazendeiro
porém desapropriada pela Companhia Hidrelétrica do São Francisco para
assentamento de trabalhadores rurais. Finalmente, no Piauí um fazendeiro matou
um agricultor que morava em suas terras e que, auxiliado pelo Sindicato dos
Trabalhadores Rurais, exigia uma indenização pelas benfeitorias realizadas para
sair da área.

O primeiro aspecto que ressalta aqui é que as quatro mortes decorreram


de conquistas políticas dos trabalhadores, respondidas com violência pelos
grandes proprietários. Esta situação foi conseqüência, de um lado, da
incapacidade (ou o desinteresse) do Estado para solucionar os problemas
agrários brasileiros e, de outro, do fortalecimento dos movimentos dos
trabalhadores rurais no período. Dentre as lutas dos trabalhadores, destaca-se
mobilização dos atingidos pelas barragens hidrelétricas, como no caso da Bahia.
A luta dos atingidos pela barragem do Sobradinho somou-se à luta dos atingidos
por outras barragens hidrelétricas e à luta dos seringueiros na Amazônia para
colocar a questão do meio-ambiente no debate político nacional e garantir
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 626

importantes conquistas para os trabalhadores rurais (TAVARES DOS SANTOS,


1993: 15).

O caso da Paraíba também não foi isolado. Ele se insere no conjunto de


mobilizações em torno da conquista da posse da terra pelos agricultores que
ganhou força com o apoio da Igreja nos anos 80. E essas mobilizações remetem
ao movimentos de posseiros na zona da mata paraibana da década de 70 e,
antes ainda, às Ligas Camponesas do fim do anos 50 e começo dos 60 (JUSTO,
1998).

Nos quatro casos, as vítimas eram membros de associações ligadas ao


movimento dos agricultores. A vítima do Maranhão era ligada à CPT. Na Paraíba,
além de agricultor, a vítima era também funcionário da prefeitura, nascido na
região em que foi morto, tinha 40 anos, era casado e pai de seis filhos, pardo e
fazia parte da Associação Comunitária, da Comunidade Eclesial de Base e do
Partido dos Trabalhadores. Na Bahia, a vítima fatal tinha exatamente o mesmo
perfil, embora não fosse nascido na região do conflito: agricultor, 41 anos,
casado, paraibano; além dele, outros três foram vítimas do mesmo atentado e
conseguiram sobreviver: seu filho, solteiro, 19 anos, pardo, paraibano e outros
dois lavradores, um deles, casado e pais de três filhos, 26 anos, paulista. Por fim,
a vítima do Piauí era um agricultor ligado ao STR.

Os antagonismos entre as associações nas quais militavam as vítimas e


os grupos que apoiavam os acusados permeavam os conflitos havia já bastante
tempo. Os indiciados nos quatro casos também eram moradores da região em
que se dava o conflito, vários desde o nascimento. No Maranhão, foram
indiciados dois irmãos, encarregados de uma fazenda onde residiam com seu pai
e suas respectivas famílias, de 22 e 24 anos, analfabetos. Na Paraíba, os
acusados foram um motorista, de 37 anos, casado e um administrador de
fazenda, de 40 anos, casado e pai de 6 filhos, com primário completo – ambos
tinham antecedentes criminais. Na Bahia, os réus também eram familiares, dois
primos: o primeiro, um agropecuário, casado e pai de 4 filhos, de 56 anos,
branco, com segundo grau completo, sem antecedentes criminais; o segundo, um
ex-empregado seu, casado e pai de dois filhos, de 22 anos, pardo, com primário
completo. Perfil semelhante tinham os agressores do Piauí: um agropecuário,
casado, de 35 anos e um “biscateiro”, negro, solteiro, 21 anos – também ambos
com antecedentes criminais.

No Maranhão, os encarregados da fazenda foram absolvidos, pelo


Tribunal do Júri, 7 anos após os fatos. Na Paraíba, um dos indiciados foi
absolvido e o outro, que ficou 9 anos foragido, voltou à comunidade e espera em
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 627

liberdade a reabertura do processo. Na Bahia, 4 anos após o homicídio, o


Tribunal do Júri absolveu o fazendeiro ao passo que seu primo foi condenado a
três meses de reclusão; no ano seguinte, o julgamento foi anulado. No Piauí, o
fazendeiro e o ex-lavrador foram condenados, pelo Tribunal do Júri, a 16 anos de
reclusão, mas 6 anos depois o ex-lavrador fugiu da Colônia Penal Agrícola.

Por um lado, o fato de os quatro casos terem chegado a julgamento final


os caracteriza como uma exceção entre os homicídios no contexto agrário
brasileiro. Segundo a CPT, dentre os 1.730 casos de assassinatos de
trabalhadores rurais, líderes sindicais e religiosos e advogados ligado ao
movimento, de 1964 a 1992, apenas 30 tinham ido a julgamento em 1992 e,
dentre estes, houve condenação em 18 casos.

Por outro lado, o perfil das vítimas e dos agressores nestes processos
ilustra o “conflito clássico” 262 entre proprietários e trabalhadores, que predomina
na cena da questão agrária brasileira, na qual a região Nordeste se destaca
como pólo de concentração dos conflitos.

3.Assassinato de líder sindical no Sudeste

Aconteceu no Rio de Janeiro, em 1988, o único processo analisado


referente a conflitos rurais na região Sudeste do país. O homicídio decorreu de
conflitos históricos entre o proprietário da Companhia Agrícola Campos Novos e
posseiros, que passaram a ocupar uma área pertencente àquela empresa já no
final dos anos 60. Desde então, os trabalhadores começaram a se organizar para
garantir a sua permanência na área, enquanto o proprietário vinha tentando que o
governo desse uma solução para o conflito, mas essa veio lenta e precária: em
1983, uma parte da área foi desapropriada, mas nenhuma família foi assentada
pelo INCRA até 1988, quando foi paga a indenização ao proprietário. Em relação
à área não desapropriada, a companhia entrou com vários pedidos de
reintegração de posse. Parte dos trabalhadores aceitou a indenização pelas
benfeitorias feitas nas terras e parte deles recusou, como o presidente do
Sindicato dos Trabalhadores Rurais. Em 1987, a área em que ele cultivava suas
terras também foi desapropriada. O presidente do sindicato juntara documentos
relativos a esse conflito para levar a uma audiência com a direção do MIRAD em
Brasília, mas foi assassinado dois dias antes, em empreitada que articulou os
proprietários de duas fazendas na área desapropriada, o administrador e um
outro empregado da fazenda Campos Novos, um policial e um desempregado.

262
Parte II “As Graves Violações de Direitos Humanos e a Imprensa (1980-1996)”, capítulo 8.
“Violência Rural: uma década de lutas em torno da terra”, subitem 6. “Atores”.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 628

O primeiro ponto a se observar é a atuação do Estado, que não é nada


homogênea, sofrendo variações segundo o governo e o órgão encarregado da
intervenção mais imediata. A análise do caso não pode menosprezar o fato de o
conflito ter passado pelas gestões anteriores, contemporâneas e posteriores ao
regime militar e nem desconsiderar a variedade de órgãos envolvidos: IRRA
(antecessor ao INCRA), INCRA, MIRAD, IBDF, Ministério da Reforma Agrária, a
polícia militar além dos órgãos do Poder Judiciário. Por vezes, a intervenção se
deu a favor dos posseiros, por vezes contra eles.

Já em relação aos trabalhadores, sua resistência é fortemente ancorada


na atuação de instituições mediadoras como os sindicatos, órgãos da Igreja e
organizações não governamentais. No caso do Rio de Janeiro, a vítima era um
lavrador capixaba, com primeiro grau incompleto, levado pelo pai para Cabo Frio,
quando este foi trabalhar na fazenda Campos Novos. Depois da morte do pai,
com o acirramento do conflito com o proprietário da fazenda, este lavrador
tornou-se presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Cabo Frio. Desse
modo, transformou-se em uma das mais importantes lideranças rurais do país, o
que explica a grande mobilização após a sua morte, que contou com a
participação de ampla rede: a Associação dos Moradores de Angelin e a CPT
(que já atuavam no conflito), a Subcomissão de Direitos Humanos da OAB (que
prestou assistência à família da vítima), a Anistia Internacional, o CEDI e o IBASE
(que protestaram contra o homicídio). Mas a mobilização de amplos setores da
sociedade civil organizada não se faz sem conflitos. No processo analisado, por
exemplo, um dos militantes da Associação de Moradores de Angelin afirma que o
presidente do STR não mantinha boas relações com o grupo. Para entender um
pouco da situação, devemos fazer uma breve incursão pelo histórico deste
movimento.

A organização dos trabalhadores rurais no Rio de Janeiro remonta pelo


menos à década de 40 e é muito importante na construção do movimento
nacional em torno da questão agrária. Em 1949, deu-se a formação da Comissão
dos Lavradores em Xerem, embrião da Associação dos Lavradores Fluminenses,
registrada no início dos anos 50. Essa Associação fomentou o desenvolvimento
dos Núcleos de trabalhadores nos diversos municípios do estado. Em 1954,
durante a II Conferência Nacional dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas, em
São Paulo, foi fundada a ULTAB (União dos Lavradores e Trabalhadores
Agrícolas do Brasil). Cinco anos depois, durante a I Conferência Estadual dos
Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Rio de Janeiro, constituiu-se a FALERJ
(Federação das Associações de Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Estado
do Rio de Janeiro), reconhecida pelo Ministério do Trabalho em 1963 (PUREZA,
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 629

1982). No ano anterior, havia sido conquistada a regulamentação do sindicalismo


rural, quando então forças políticas diversas sindicalizaram suas bases, formadas
tanto por assalariados quanto por não assalariados. Segundo Leonilde Sérvolo
de Medeiros (1989), as primeiras propostas de organização sindical dos
trabalhadores do campo, até o início dos anos 60, tinham como estrutura básica
a conjunção de especialização e espacialização.

Ultrapassando esta vocação especializada, ainda em 1963, foi fundada a


CONTAG (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura), que
articulava os trabalhadores da lavoura, da pecuária e similares, da produção
extrativa vegetal e os produtores autônomos. O poder público representado pelos
sindicatos vinculados à CONTAG, desde seus primórdios, antagonizaram com o
poder privado das "associações rurais". No entanto, ambos empunhavam
bandeiras comuns, como a reforma agrária e a garantia dos direitos trabalhistas.
A articulação das lutas pela terra e pela regularização das relações de trabalho
demonstrava como a distinção entre assalariado e pequeno proprietário não era
definitiva no campo, uma vez que os assalariados também tinham acesso a lotes
para cultivos de subsistência. Em 1965, foi criado o Sindicato dos Trabalhadores
Rurais, de fato uma tentativa de desmobilização, mas que foi superada pela
CONTAG (MEDEIROS, 1989: 5).

Em meados dos ano 70, com o ingresso da Igreja no movimento,


começam a se deflagrar as disputas internas. Nesta época, ocorre uma mudança
na posição da Igreja: se antes ela lutava pela aplicação do Estatuto da Terra,
passa agora a se preocupar com a pauperização crescente. Nesse momento, o
Estado começa a tentar desativar, por meio da repressão militar a seus
representantes, os mecanismos que a Igreja estava construindo no campo para
organizar as populações rurais, ocupando o lugar deixado pelos partidos de
esquerda, extintos pela ditadura. Segundo José de Souza Martins, a Igreja
desempenha um papel que os partidos e sindicatos não podem desempenhar
porque ela não está imbuída da lógica do contrato, que também não faz parte da
heterogênea realidade rural brasileira formada por lavradores, pequenos
proprietários, assalariados e índios. A Igreja consegue desempenhar esse papel
porque não possui ela própria um projeto de política fundiária a ser imposto aos
moradores do campo. E vale lembrar também que a origem social de vários
bispos é campesina (MARTINS, 1986: 55-77).

No início dos anos 80, formula-se, no interior mesmo do movimento


sindical, uma crítica à condução "administrativa" dos conflitos pela CONTAG e
surgem movimentos específicos como os Sem-terra e os atingidos por barragens,
como vimos acima. "Portadores de uma certa autonomia em relação aos
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 630

sindicatos e considerando-se instrumentos mais ágeis para encaminhamento de


certas demandas, esses movimentos impulsionaram acampamentos e
ocupações, algumas vezes em franca oposição aos sindicatos locais, outras em
alianças com eles e dividindo tarefas" (MEDEIROS, 1989: 6). Além destes
movimentos específicos, ocorre a convergência dos sindicalistas "autênticos"
com os opositores à CONTAG para a formação da CUT (Central Única dos
Trabalhadores), cujo I Congresso se dá em agosto de 1983.

O cenário dos anos 80 é de um intenso processo de diferenciação


econômica no campo, com a expulsão em massa de trabalhadores, a formação
de amplo contingente de trabalhadores temporários, a constituição de vasto
segmento de pequenos produtores ligados à agroindústria e a intensificação do
processo de transformação da terra em ativo financeiro. Neste cenário, o
movimento dos trabalhadores rurais, apesar das divisões internas, fortalece-se
sobretudo na região Sudeste do país. Foi justamente esta mobilização que
impediu que os muitos conflitos pela terra no Rio de Janeiro provocassem mais
casos de violência fatal263. Apesar disso, as ameaças e os atentados
permanecem e, em muitas regiões como na do caso analisado, o medo domina a
população local.

Os antecedentes criminais dos indiciados neste caso dão uma idéia da


freqüência deste tipo de delito e do conluio que envolve seus agentes: o
proprietário da fazenda Campos Novos fora processado por estelionato em 1979;
seu administrador fora absolvido de um processo por atropelamento; um outro
empregado seu também indiciado já havia sido processado e preso por porte de
arma; o outro fazendeiro de área desapropriada, para o qual o administrador da
fazenda Campos Novos já havia trabalhado, fora processado 11 vezes entre
1965 e 1988 inclusive por homicídio; curiosamente os autores materiais do
homicídio são os únicos que não possuíam antecedentes criminais: um policial
militar e um motorista desempregado. As informações nos autos indicam que o
policial militar e o motorista foram pagos pelos fazendeiros para cometerem o
homicídio e a transação foi articulada pelos empregados da fazenda em que vivia
a vítima.

O conluio entre as autoridades policias e judiciárias e os fazendeiros, no


entanto, ultrapassa a participação do policial militar na empreitada. O desfecho
do caso representa bem a distribuição da justiça no país: condenação para os
pobres (autores materiais do delito) e absolvição dos ricos (autores intelectuais),

263
Parte II “As Graves Violações de Direitos Humanos e a Imprensa (1980-1996)”, capítulo 8.
“Violência Rural: uma década de lutas em torno da terra”, subitem 4. “Cenário: a lógica da
expansão”.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 631

os maiores interessados no homicídio. O policial militar, o motorista e os


empregados da fazenda foram condenados, pelo Tribunal do Júri, em 1990, a 14
anos de reclusão. Os dois fazendeiros foram impronunciados.

4. Violência em conflitos envolvendo povos indígenas na Região Amazônica

Dentre os processos estudados, dois referem-se a assassinatos de


indígenas em conflitos pela terra. Ambos ocorreram em 1988, um no Amazonas
(região Norte) e outro no Mato Grosso (região Centro-oeste). O conflito
amazonense envolvia o povo Tikuna e o mato-grossense, vários povos sendo
que a vítima fatal do conflito foi um cacique Suruí.

O assassinato de 14 Tikuna e as agressões contra outros 21 foi decorrente


de histórico conflito pela terra, que só poderia ser resolvido com a demarcação da
área indígena, o que era continuamente protelado pelo governo federal, apesar
de a FUNAI já ter anunciado a constituição de futura reserva ali. A área
ancestralmente ocupada pelos Tikuna era disputada por posseiros, moradores da
região havia mais de 30 anos, e madeireiros. Em 1987, a FUNAI proibiu que um
dos madeireiros continuasse com sua atividade e orientou os líderes das
comunidades locais para efetivarem esta proibição. O madeireiro então fez várias
queixas contra os índios que, supostamente, o teriam expulsado de sua casa e
saqueado seu armazém. Em 28/03/88, este madeireiro organizou o massacre,
contando com a participação de 12 pessoas, a maior parte agricultores da região.

No Mato Grosso, o assassinato do cacique Suruí insere-se em conflito de


terras que envolvia as tribos Gavião, Arara, Cinta Larga, Suruí e Zoró, posseiros
que haviam chegado de várias regiões do país desde meados dos anos 80,
grileiros e madeireiros dos municípios vizinhos a Rondônia. Em 1986, a FUNAI e
a Polícia Federal fizeram uma barreira em torno da reserva da tribo Zoró, para
evitar a chegada de mais posseiros e madeireiros. No entanto, em 1988 deu-se
início à construção de uma estrada até a aldeia, contra a qual os índios de várias
tribos investiram em um ataque em 13/10/88. Em seguida, os índios passaram
também a saquear e queimar casas de agricultores e garimpeiros, que então
reagiram com o ataque que resultou na morte do cacique.

Os conflitos entre grupos indígenas, posseiros, garimpeiros e madeireiros


na região Amazônica são conseqüência das políticas específicas dos governos
nos últimos 60 anos. Segundo José Vicente Tavares dos Santos, a história desta
região até 1990 pode ser dividida em quatro períodos. O primeiro vai de 1930 a
1945 e caracteriza-se pela implementação de uma política de orientação das
correntes migratórias internas no sentido da industrialização, da urbanização e da
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 632

colonização do Oeste e da Amazônia (TAVARES DOS SANTOS, 1993: 5-7).


Para Martins, estas correntes deslocaram também os conflitos e a luta dos
camponeses no Brasil. “O deslocamento dos migrantes e o deslocamento da
grilagem para a região amazônica já estavam deslocando, também, as lutas
camponesas e o movimento social que elas encerravam: suas táticas, seus
meios, seu projeto histórico implícito” (MARTINS, 1989: 138).

O período seguinte vai até 1963 e nele ocorre a consolidação da política


de colonização pelo estado de São Paulo, com vistas a controlar os
desempregados e os pobres de outras regiões. Em decorrência, tem-se uma
transformação do espaço social, segundo a qual, por um lado, fortalece-se o
campesinato meridional que produz alimentos para agroindústria regional e, por
outro, os camponeses das regiões cafeeiras, de pecuária e subsistência
começam a ser expulsos para as cidades ou a se tornarem trabalhadores
assalariados. Ao mesmo tempo, os trabalhadores rurais começam a se organizar
(TAVARES DOS SANTOS, 1993: 7-9).

Durante a ditadura imposta a partir de 1964, deflagraram-se conflitos no


campo, nos quais o governo não ficou imparcial, uma vez que os grandes
proprietários de terra haviam sido um importante segmento social de apoio ao
golpe de Estado que levou os militares ao poder. Entretanto, a organização dos
trabalhadores também se fortaleceu neste período. Este fortalecimento foi
decorrente, de um lado, do mencionado processo de proletarização dos
trabalhadores rurais, e de outro, do acirramento da concentração fundiária
(TAVARES DOS SANTOS, 1993: 10-13). Além da repressão aos movimentos
camponeses, a estratégia inicial do governo, para a região Amazônica
especificamente era ocupá-la com colonos provenientes do Nordeste, ao longo
da Rodovia Transamazônica. Com o fracasso do programa, voltou-se para o
plano de "pólo de crescimento", coordenado pela Superintendência para o
Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM), que oferecia incentivos diretos a
grandes empresas, para que ocupassem a área com o cultivo mecanizado em
larga escala, destinado à exportação. Essa superposição de planos aliada à falta
de fiscalização adequada acabou atraindo para a região especuladores da terra
que entraram em confronto com os trabalhadores expulsos de outras regiões do
país - principalmente devido à construção de hidrelétricas no Nordeste e no Sul -
que partiram para a Amazônia em busca da garantia de sua subsistência. Essa
região, muito pouco abastecida de instituições que garantissem o respeito às leis,
tornou-se então a mais violenta em relação aos conflitos agrários do Brasil
(MARTINS, 1986: 81-91).
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 633

No último período (1985-1990), o maior número de assentamentos não foi


capaz de impedir o acirramento dos conflitos no campo, sobretudo na região
Amazônica, em conseqüência da atuação dos vários governos que procuraram
implementar uma política de integração nacional, baseada na colonização desta
região, sem dar o suporte necessário aos trabalhadores e sempre favorecendo o
grande capital moderno e industrial (TAVARES DOS SANTOS, 1993: 13-16).

Nesta perspectiva que privilegia um suposto “progresso econômico” no


sentido da modernização do país, desde a emergência do Estado nacional, a
política dos governos para as populações indígenas tem sido a do amparo para o
seu processo de “civilização”. Assim, a inexorabilidade da destruição dos povos
indígenas foi assumida como um dado da expansão do capitalismo para o
campo. “Embutida nesta idéia é que está a concepção do desamparo como
característica principal dos povos indígenas (...) do desamparo de cultura, onde
se define a verdadeira impotência e paralisia políticas” (PAOLI, 1983: 22).

Foi contra esse processo que se insurgiram os grupos indígenas que


aparecem nos dois casos analisados. E foi como conseqüência desta resistência,
que foram vitimados. No Amazonas, foram 35 Tikuna, nascidos na comunidade
em que eclodiu o conflito, entre os quais incluíam-se 6 crianças. No Mato Grosso,
a vítima foi um cacique Suruí, de 55 anos. Os episódios deixam claro que ainda
hoje o massacre não só cultural mas também físico dos indígenas é freqüente, o
que compromete a idéia de um “progresso”, supostamente patrocinador do
desaparecimento gradual da violência na sociedade brasileira.

O mito de “humanização da penalidade” e do desaparecimento gradual da


violência, inspirando os modernos códigos penais se contrapõe, portanto, à
atualização dos processos de “desumanização dos indígenas” e às tentativas
perpetradas por estes de recuperação da “humanidade arrebatada”. Esta oposição
encontra-se idealmente recolocada num contexto de intensificação dos atos de
brutalidade nos conflitos sociais naquelas sociedades agrárias que teriam passado
pelo “processo de descolonização” e que, no momento atual, caracterizam-se pelo
fenômeno da “modernização capitalista na agricultura” (ALMEIDA, 1997: 90).

Do lado oposto, como agressores, estavam: no Amazonas, um grupo de


pessoas também nascidas na região, lideradas por um madeireiro, proprietário de
um armazém, de 73 anos, com antecedentes criminais por receptação e
contrabando; o restante do grupo era formado por 9 agricultores (dois agregados
do madeireiro), um pescador, um professor e um funcionário de serraria. No Mato
Grosso, foram indiciados um agricultor desempregado, um tratorista, um
açougueiro, um ex-grileiro que conseguira trabalho como operador de máquinas
pesadas, um pequeno pecuarista e um motorista – os últimos três com
antecedentes criminais - naturais das regiões Norte, Sudeste e Sul do país. Dois
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 634

garimpeiros foram também apontados como agressores, mas não foram mais
localizados.

A origem das testemunhas nos dois casos segue a mesma distinção: no


caso do Amazonas, a maior parte eram nascidas na localidade ao passo que, no
caso do Mato Grosso, dentre as 17 testemunhas, 5 eram sulistas, 5 nortistas,
duas paulistas, duas cearenses e uma japonesa.

Os dois processos analisados ilustram enfim a complexidade dos conflitos


na região Amazônica, em que se confrontam vários povos indígenas, posseiros
vindos de todas as regiões do país, seringueiros grileiros, garimpeiros e
madeireiros, com interesses antagônicos: preservação do meio ambiente X
exploração das riquezas naturais; posse da terra legitimada pelo trabalho X
propriedade legal da terra. A precariedade da intervenção do poder público, que
arrasta por anos as decisões relativas a essas disputas, possibilita que os
conflitos se tornem violentos e, nestes, os camponeses e os povos indígenas
sejam transformados nas vítimas preferenciais.

Em relação à polícia e ao poder judiciário, a intervenção não é menos


precária. No caso do Amazonas, os réus foram pronunciados dois anos após os
fatos, mas dois deles já estavam foragidos. Neste ínterim, índios de várias
comunidades organizaram-se para dar apoio aos grupos vitimados, o que
provocou novo conflito apenas 15 dias após o massacre, entre índios e brancos.
Um índio matou um rapaz de 16 anos e, em represália, houve uma tentativa de
linchamento de um índio de 15 anos, salvo pela polícia.

No Mato Grosso, a não punição imediata dos acusados gerou um clima de


revolta entre os índios e, em decorrência, 4 meses depois foi determinada a
prisão provisória de todos os indiciados, mas dois deles já estavam
desaparecidos, além de dois garimpeiros também acusados pelas testemunhas e
jamais encontrados. O tratorista foi condenado ainda por outro processo, mas um
mês depois já se encontrava em liberdade condicional. Depois de cumpridos 3
meses de prisão, foi pedido o relaxamento da mesma.

A atuação dos poderes executivo e judiciário e das polícias militar e


federal em relação aos conflitos envolvendo os povos indígenas indica que a
lógica predominante ainda é a do inexorável fim destas culturas, diante da
“necessária” expansão do capitalismo para o campo, rumo ao “progresso”. No
entanto, a história tem mostrado que em nome deste “progresso”, a região
amazônica do país tem convivido com violências constantes e destruição de
modos de vida centenários.
PARTE IV
O ESTADO, DIREITOS HUMANOS E VIOLÊNCIA

INTRODUÇÃO
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 636

A JUSTIÇA PENAL E A PROTEÇÃO DOS DIREITOS264

Sérgio Adorno

A Justiça penal no Brasil vem experimentando, ao que parece, uma crise


sem precedentes. Os crimes e a violência cresceram e mudaram de padrão; o
aparelho judiciário continuou operando como o fazia há décadas, mostrando-se
pouco permeável ao impacto das mudanças sociais que alteraram
substantivamente as formas e os padrões de conflitualidade social. A justiça
penal envelheceu acentuando tensões entre as leis e as práticas sociais e
institucionais.

Por um lado, predomina o domínio abstrato e idealizado da lei, inscrito nos


códigos, ensinado nos livros e nas academias, proclamado solenemente nos
tribunais. Por outro lado, a aplicação cotidiana dos preceitos legais, que se
tornam objeto de disputa e negociação entre diferentes atores que, enredados
nas teias da moralidade, interpretam aqueles preceitos segundo interesses
particulares e conforme as necessidades de funcionamento da organização.
Deste confronto decorrem implicações. Primeiro, a existência de uma tensão
permanente entre a idéia das pessoas concebidas como entidades morais e a
realidade das hierarquias de riqueza e poder. Segundo, a existência de tensão,
nas sociedades democráticas, entre lei, segurança e ordem. Terceiro, face às
implicações anteriores, o sistema de justiça criminal passa a ser visto como
frouxamente articulado, carente de eficácia e incapaz de realizar as finalidades
para os quais foi criado e existe (Paixão, 1988).

Compreender as raízes histórico-sociais deste fenômeno não é tarefa fácil.


Pouco se sabe a respeito da história do poder judiciário no Brasil, além das
descobertas contidas nos estudos de Leal (1975), de Nequete (1973), de Shirley
(1973) e de Kant de Lima (1994). Em particular, a tese de Victor Nunes Leal é
bastante conhecida entre os cientistas sociais: a organização policial e judiciária
no Brasil, desde a Colônia, passando pelo Império e mesmo ao longo da
experiência republicana, ao menos até às vésperas do golpe de 1964, guardou
pouca independência face aos poderes locais. Conforme sustém Leal, na Colônia
a legislação portuguesa demarcava imperfeitamente a distinção de funções
judiciais segundo sua natureza, funções estas dispostas em uma ordem
hierárquica dotada de acanhado rigor. Disto resultava a concentração de funções

264
Extraído parcialmente de: Adorno, S. (1996). A gestão urbana do medo e da insegurança.
Violência, crime e justiça penal na sociedade brasileira contemporânea. São Paulo, mimeo. Tese
de Livre-Docência, FFLCH/USP, 207-222.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 637

policiais, judiciais e administrativas sob mãos das mesmas autoridades,


circunstância que certamente contribuía para exacerbar a arbitrariedade na
distribuição da justiça penal. Se a administração joanina em seu afã para reforçar
a autoridade régia emigrada para a colônia procurou conferir novo dinamismo e
ampliar o raio de ação do aparelho judiciário, não se inclinou a intervir na
concentração de funções, aspecto que perdurou mesmo após a independência
do país e a despeito da Constituição de 1824 haver declarado a autonomia da
magistratura mediante reconhecimento dos direitos de inamovibilidade e
vitaliciedade, direitos esses somente limitados pelas prerrogativas do Poder
Moderador.

Durante a vigência da forma monárquica de governo, a organização


judiciária sofreu importantes intervenções político-legislativas. Com a Reforma do
Código Penal de 1832, obra de liberais, promoveu-se a mais profunda
descentralização das funções judiciais, investindo-se os juizes de paz de amplos
poderes no controle da ordem pública. As agitações políticas e as revoluções
regionais que percorrem o período regencial, na década de 1830, logo colocaram
essa reforma sob o crivo dos vorazes críticos conservadores. Em 1841, instituiu-
se a reforma do Código Penal a qual, em movimento contrário, promoveu a
centralização das funções judiciais, transferindo seu controle para as autoridades
provinciais, em especial seus presidentes. Por fim, lei de 1871 procurou limitar o
poder discricionário das autoridades policiais, promovendo maior diferenciação
entre estas funções e as judiciais. Nenhuma dessas iniciativas de reforma logrou
reforçar a justiça pública, torná-la um poder independente dos poderes locais ou
imune às influências e pressões dos governos estaduais e sequer sedimentar
seus fundamentos burocrático-legais. Às vésperas do fim da monarquia,
multiplicaram-se as críticas sugestivas de fortes indícios de corrupção na
magistratura, manifestas em diversas situações como nomeação de parentes
para os tribunais ou troca de “favores” com políticos e grandes proprietários
locais em proveito de vantagens pecuniárias e honrarias. Nesses acordos, a
contrapartida certamente residia em sentenças favoráveis a uma das partes em
litígio nos tribunais, o que comprometia a universalidade da justiça pública.

A primeira Constituição republicana (1891) promoveu acentuadas


modificações na organização judiciária, conferindo-lhes maior autonomia local e
regional, mediante a criação do Supremo Tribunal Federal e a atribuição de
competência aos Estados para instituir sua própria organização judiciária bem
como para legislar em matéria de processo, a par de outras significativas
alterações como aquelas que intervieram no tribunal de júri (Nequete, 1973;
Shirley, 1973; Leal, 1975). Desde a instauração da forma republicana de governo,
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 638

as sucessivas intervenções do poder político promovendo substantivas


alterações na organização judiciária buscaram assegurar-lhe autonomia e
independência face aos partidarismos locais. Nas regiões mais desenvolvidas do
país, à medida em que caminhava, ora a passos acelerados ora a passos lentos,
a “modernização” do aparato estatal de governo, logrou-se alcançar certo êxito
no projeto de instituição de um poder judiciário completamente autônomo, na
medida em que se estabeleceram certos controles internos, conquanto
sustentados na ética e na cultura judiciais, tendentes a neutralizar o impacto das
influências políticas locais.

Este cenário não chegou, porém, a se consolidar nas regiões menos


desenvolvidas onde o peso do “coronelismo”, mesmo em sua faceta “moderna”,
se faz ainda presente. Não obstante tais tendências “modernizantes”, em alguns
momentos perturbada pela ocorrência de um escândalo que põe sob suspeita a
neutralidade e imparcialidade dos julgamentos - como são os complexos casos
que envolvem poderosos interesses econômicos -, a organização judiciária não
parece estar completamente “instrumentalizada” para distribuir justiça sine ira et
studio, para lembrar uma das qualidades da gestão burocrático-legal como
concebida por Max Weber (1974). No caso da justiça penal, se o “partidarismo”
de que falava Victor Nunes Leal parece menos atuante ou talvez se revele menos
transparente, sobretudo nos tribunais instalados nas grandes metrópoles onde a
multiplicidade de interesses tende a estabelecer uma sorte de barreira às
influências políticas diretas, não é de somenos importância o profundo hiato entre
o mundo das formalidades legais e o mundo da cultura judicial, entre a
moralidade pública e a moralidade privada que parece servir como uma espécie
de guia silencioso que rege os julgamentos e disciplina as sentenças por detrás
dos estatutos legais.

A atual Constituição (1988) manteve a organização judicial em tribunais


federais e tribunais estaduais. No que concerne à justiça penal, a competência
dos tribunais federais alcança crimes que envolvem dois ou mais estados da
federação, crimes que envolvem Estados nacionais (como narcotráfico,
contrabando internacional de armas etc.) bem como crimes tais como o genocídio
de populações indígenas. A criminalidade comum é da competência dos tribunais
estaduais, cuja organização e funcionamento são regulamentados por leis
promulgadas pelo poder legislativo estadual. Comparativamente às outras duas
agências que compõem o sistema de justiça criminal (polícia e sistema
penitenciário), o aparelho judiciário é dotado de maior complexidade, em todos os
aspectos em que possa ser observado: estrutura, funcionamento, ritos
processuais, atuação de agentes institucionais. Concorre para essa
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 639

complexidade pouco acessível à compreensão imediata, notadamente por parte


do cidadão comum, a inexistência de um organograma formal próprio da Justiça
penal.

Tudo parece indicar que o aparelho judiciário pouco se preocupa em


controlar ou avaliar os resultados de sua atividade. Observa-se certa dificuldade
em acompanhar todas as trajetórias dos processos penais, dada a
heterogeneidade de situações e a complexidade dos ritos de apuração da
responsabilidade e de julgamento. Essas rotinas judiciárias deixam entrever a
prática de resguardar informações dos observadores "externos" e estranhos à
organização, informações essas reservadas aos "entendidos" ou aos "iniciados".
Quando descortinados esses ritos, transparece a fragilidade das linhas formais
de articulação com outras agências de contenção da criminalidade, a despeito da
rigidez da estrutura hierárquica funcional e operacional de que essa organização
- a judiciária - está freqüentemente investida. Particularmente, essa desproporção
entre as linhas de articulação e a rigidez hierárquica interna tende a dificultar e
retardar o andamento dos processos penais. Quase sempre, é possível constatar
que a morosidade do andamento processual se deve às requisições de laudos
ausentes ou de laudos complementares, solicitações de informações a outros
órgãos, mandados de citação e de intimação não cumpridos, enfim uma série de
providências que independem do poder judiciário. O Ministério Público é a
agência que mais requisita esse tipo de documentação, pois não pode prescindir
dela, caso contrário não pode caracterizar legalmente a denúncia.
Em contraste com as ag
ências policiais, é flagrante a rigidez da estrutura
hierárquica bem como dos ritos judiciários. O magistrado ocupa papel central no
sistema de justiça criminal brasileiro. Como comenta Kant de Lima, “a legislação
brasileira que rege o processo penal estatui o princípio do livre convencimento do
juiz. Segundo juristas brasileiros (ver, p.ex., Rosa, 1982: 267-273), a referida
legislação adotou um sistema alternativo ao da prova legal, que vem a ser o
sistema pelo qual o juiz tem a liberdade de tomar sua decisão baseado
exclusivamente em sua própria consciência. Segundo o sistema brasileiro (arts.
157 e 381, Código do Processo Penal) o juiz deve tomar sua decisão atendendo
ao seu próprio julgamento, mas limitado ao que consta dos autos”. [...] “De um
juiz criminal espera-se que mostre total imparcialidade entre a acusação e a
defesa” (Lima, 1994: 24). A condução de todo o processo penal está, de fato,
inteiramente subordinada ao magistrado, quem dispõe, entre outras, da faculdade
de interrogar réus e testemunhas, determinar novas diligências, mandar juntar
provas, aceitar ou não petições, reconhecer ou não indícios que encaminhem a
versão dos acontecimentos em direção oposta àquela que apareça como
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 640

predominante no Inquérito Policial. De tudo isso, importa ressaltar que a tradição


penal brasileira atribui considerável margem de discricionariedade ao juiz,
representada pelo princípio do livre convencimento. Essa margem de
discricionariedade parece responder, senão no todo ao menos em parte, pelo fato
de haver julgamentos tangiversados, como que atropelados por “móveis extra-
judiciais” que não se atêm necessariamente aos fatos e às provas contidas nos
autos.

Os ritos judiciários obedecem igualmente a regras formais que


regulamentam as comunicações escritas e orais entre agentes institucionais no
desempenho de suas tarefas especializadas, como soe acontecer no modelo
burocrático-legal de administração pública da justiça. Sempre que os autos são
remetidos a outras agências ou a outras seções, segue-se uma folha plena de
carimbos, datas e assinaturas, acusando encaminhamento, recebimento, vistas e
retorno. Reforçados por uma cultura organizacional no interior da qual buscam
legitimidade para suas práticas, os distintos agentes institucionais tendem a
apropriar-se dessas regras enquanto instrumentos de poder pessoal, conferindo-
lhes um sentido particular e próprio: em lugar de servirem-se delas para
assegurar a universalidade dos procedimentos que torna possível a neutralidade
na distribuição da justiça, nelas apoiam-se para fazer valer sua superioridade
hierárquica diante daqueles que se encontram, em algum momento e pelos mais
distintos motivos, submetidos às malhas de um poder cujo acesso lhes é difícil e
cuja compreensão de sua lógica lhes escapa.

A distância que separa julgados e julgadores parece intransponível a


começar pelo papel do próprio magistrado, única autoridade qualificada para
inquirir e à qual se deve com exclusividade dirigir-se a palavra, como ocorre nas
audiências judiciais. Tudo é igualmente mediado por uma linguagem estranha,
referida a códigos e a entendimentos quase secretos, cuja tradução depende
daqueles que desfrutam a posse de um saber especializado, o jurídico, o saber
das leis: os promotores públicos, os assistentes da promotoria, os advogados de
defesa e, na ausência destes, os funcionários do cartório, estes qualificados não
apenas para alcançar o universo cultural dos justiçados, no que se atiram com
extrema dedicação, como também para inflar rumores que circulam livremente
pelos corredores dos tribunais e para exacerbar sentimentos de medo diante dos
poderes ilimitados da autoridade judiciária: a capacidade de mandar prender a
qualquer deslize, mesmo se motivado pelo desconhecimento das regras formais
(Marques Jr., 1995: 31).

Se no domínio dos tribunais de justiça as linhas de atuação e articulação


institucional parecem muito menos frágeis e mais delimitadas, comparativamente
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 641

ao cenário que apresentam as agências policiais, não é menos certo que pareça
haver um permanente contraste entre os fundamentos burocrático-legais que
regem a divisão de papéis e de competências entre os diferentes manipuladores
judiciais e as estratégias adotadas por esses atores no curso do processo penal.
Ao que tudo parece indicar, essas estratégias apelam não raro para argumentos
extraídos de fontes estranhas à lei e aos fundamentos jurídicos, mais
propriamente argumentos fundados na moralidade pública. Nesse sentido, o que
parece estar em jogo nos julgamentos, especialmente aqueles que têm lugar no
tribunal do júri, é a maior ou menor adequação das vítimas e agressores aos
modelos de comportamento julgados "normais" e "universais". Se é assim, essas
estratégias tendem a reforçar arranjos pessoais na solução de pendências
intersubjetivas. Nessa perspectiva, prevalece o modelo patrimonial de
administração judiciária, que reproduz modalidades de ação herdadas da
tradição, pouco compatíveis com as exigências de controle social próprias da
moderna sociedade urbana, caracterizada por amplas e complexas bases
demográficas e por formas coletivas de organização criminal.

Um amplo hiato entre o direito e os fatos, entre o enunciado legal e as


situações concretas de discriminação e exclusão ainda se mantém a despeito
das profundas mudanças no sentido da “modernização” a que esta sociedade
vem sendo submetida há mais de cinqüenta anos. Este hiato acaba contribuindo
para diluir critérios universais de juízo destinados a solucionar litígios e
pendências nas relações intersubjetivas. Em situações como esta, a distribuição
da justiça acaba alcançando alguns cidadãos em detrimento de outros, o acesso
da população aos serviços judiciais é dificultado por razões de diversas ordens e,
muito dificilmente, as decisões judiciárias deixam de ser discriminatórias.

Parte destes dilemas institucionais é tratado a seguir quando se enfoca a


intervenção do sistema de justiça criminal diante dos casos selecionados de
graves violações de direitos humanos.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 642

CAPÍTULO 16
JUSTIÇA FORMAL: ESTRUTURA E FUNCIONAMENTO DO SISTEMA DE JUSTIÇA PENAL265

Sérgio Adorno

A moderna sociedade e Estado democráticos floresceram, como se sabe,


no contexto da transição do feudalismo ao capitalismo, verificado na Europa
ocidental entre os séculos XV e XVIII. No curso desse processo, operaram-se
substantivas transformações na economia, na sociedade, no Estado e na cultura.
A dissolução do mundo social e intelectual da Idade Média acelerou-se no último
quartel do século XVIII, conhecido como a “era das revoluções” (Hobsbawn,
1977; Nisbet, 1977), convergindo para o fenômeno que Max Weber (1981)
nomeou “desencantamento do mundo”. Foi no bojo desse processo de
desencantamento das visões mágicas do mundo e de laicização da cultura que
se consolidaram as sociedades modernas, caracterizadas por acentuada e
progressiva diferenciação de suas estruturas sociais e econômicas, no interior
das quais nasceram e se desenvolveram a empresa capitalista e o Estado
burocrático e se separaram da esfera religiosa a ciência, a arte e a moral (Weber,
1981).

Essas mudanças, que invadem todas as esferas da existência social,


atingem também o direito. Segundo o mesmo Weber, o traço distintivo do direito
moderno é seu caráter sistemático: é um direito de juristas. Apelando para a
formação especializada, a racionalização do direito se fundou na
profissionalização das funções da justiça e da administração pública. Seus
princípios fundamentais consistiram em: positividade, legalidade e formalidade.
Positividade porque o direito moderno exprime a vontade de um legislador
soberano o qual, por intermédio de meios jurídicos de organização, regulamenta
as atividades da vida social. Legalidade porque “não reconhece outro
ordenamento jurídico que não seja estatal, e outra forma de ordenamento estatal
que não seja a lei” (Bobbio, 1984). Formalidade porque o direito moderno define
o domínio onde se pode exercer legitimamente o livre arbítrio das pessoas
privadas (cf. Habermas, 1987, t.1).

No curso desse processo, o Estado de Direito vem cumprindo papel


decisivo na pacificação da sociedade. O Estado moderno constituiu-se como
centro que detém o monopólio quer da soberania jurídico-política quer da
violência física legítima, processo que resultou na progressiva extinção dos

265
A análise que se segue aproveita parte do capítulo 2, parte II, de Adorno (1996), citado.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 643

diversos núcleos beligerantes que caracterizavam a fragmentação do poder na


Idade Média (Weber, 1970; Bobbio, 1984). Porém, o simples fato dos meios de
realização da violência física legítima estarem concentrados nas mãos do Estado
não foi condição suficiente para assegurar a pacificação dos costumes e hábitos
enraizados na sociedade desde tempos imemoriais. Daí a necessidade de um
direito positivo, fruto da vontade racional dos homens, voltado, por um lado, para
restringir e regular o uso dessa força e, por outro lado, para mediar os
contenciosos dos indivíduos entre si. A eficácia dessa pacificação relacionou-se,
como demonstrou Elias (1990), com o grau de auto-contenção dos indivíduos, ou
seja, sua obediência voluntária às normas de convivência, bem como se
relacionou com a capacidade coatora do Estado face àqueles que descumprem o
direito. A pacificação da sociedade resultou de um longo e penoso processo de
expropriação das formas tradicionais de resolução de conflitos, herdadas da alta
Idade Média.

A sociedade brasileira também conheceu acentuado processo de


modernização. Desde o último quartel do século XIX, os desdobramentos
econômico-sociais da cafeicultura no Oeste paulista já apontavam para decisivas
transformações como sejam: superação da propriedade escrava, formação do
mercado de trabalho livre, industrialização e urbanização, mudanças nas bases
do poder político de que resultou a substituição da monarquia pela forma de
governo republicana, a instauração de um novo pacto constitucional que
formalmente consagrava direitos civis e políticos e instituía um modelo liberal-
democrático de poder político. Esse conjunto de mudanças ocorreu em menos de
um século. Inspiradas pelo processo democrático em curso em algumas
sociedades do mundo ocidental capitalista, essas transformações incidiram
igualmente na organização de um sistema judicial moderno, fundado na distinção
formal entre interesses privados e negócios públicos, na independência dos
poderes, na autonomia da magistratura, na regulação legal da ação dos atores
judiciais e de suas práticas institucionais. Em matéria penal, este sistema supôs
um complexo institucional articulado em torno de agências policiais, do ministério
público, dos tribunais de justiça penal e do sistema penitenciário.

Pouco se sabe a respeito da história do sistema judicial no Brasil, além das


descobertas contidas nos estudos de Leal (1975), de Nequete (1973), de Shirley
(1973) e de Kant de Lima (1994). Em particular, a tese de Victor Nunes Leal é
bastante conhecida entre os cientistas sociais: a organização policial e judiciária
no Brasil, desde a Colônia, passando pelo Império e mesmo ao longo da
experiência republicana, ao menos até às vésperas do golpe de 1964, guardou
pouca independência face aos poderes locais. Conforme sustém Leal, na Colônia
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 644

a legislação portuguesa demarcava imperfeitamente a distinção de funções


judiciais segundo sua natureza, funções estas dispostas em uma ordem
hierárquica dotada de acanhado rigor. Disto resultava a concentração de funções
policiais, judiciais e administrativas sob mãos das mesmas autoridades,
circunstância que certamente contribuía para exacerbar a arbitrariedade na
distribuição da justiça penal. Nenhuma das reformas judiciais realizadas ao longo
da monarquia (1832, 1841 e 1871) logrou reforçar a justiça pública, torná-la um
poder independente dos poderes locais ou imune às influências e pressões dos
governos estaduais e sequer sedimentar seus fundamentos burocrático-legais.

A primeira Constituição republicana (1891) promoveu acentuadas


modificações na organização judiciária, conferindo-lhes maior autonomia local e
regional, mediante a criação do Supremo Tribunal Federal e a atribuição de
competência aos Estados para instituir sua própria organização judiciária bem
como para legislar em matéria de processo, a par de outras significativas
alterações como aquelas que intervieram no tribunal de júri (Nequete, 1973;
Shirley, 1973; Leal, 1975). Desde a instauração da forma republicana de governo,
as sucessivas intervenções do poder político promovendo substantivas
alterações na organização judiciária buscaram assegurar-lhe autonomia e
independência face aos partidarismos locais. No caso da justiça penal, nem
sempre a independência do poder judicial esteve assegurada. Neste domínio, um
forte hiato entre o mundo das formalidades legais e o mundo da cultura judicial
tendeu a reger as investigações policiais e os julgamentos, não raro conduzindo a
situações paradoxais de flagrante injustiça.

A organização policial encontra-se definida na Constituição Federal de


1988. Ela divide-se em dois níveis: federal e estadual. No primeiro nível, situa-se
a polícia federal à qual incumbe investigar os crimes de competência da União,
quais sejam aqueles que envolvem dois ou mais estados da federação, crimes
que envolvem Estados nacionais (como narcotráfico, contrabando internacional
de armas etc.) bem como crimes tais como o genocídio de populações indígenas.
A criminalidade comum é da competência das polícias estaduais. A organização
das forças policiais de contenção à ordem pública é regulamentada em legislação
federal, porém seu funcionamento é atribuição dos governos estaduais que lhes
conferem particularidades, muitas das quais resultantes de raízes histórico-
sociais locais266. Na atualidade, no Estado de São Paulo, a autoridade pública

266
Para um conhecimento das raízes histórico-sociais da organização policial e judiciária no Brasil
reporto-me ao clássico livro de Leal (1975). No que concerne ao estado de São Paulo, o estudo
de Heloísa Fernandes (1974) sobre a formação do aparato militar repressivo permanece a mais
completa referência sobre o assunto.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 645

encarregada de formular e implementar políticas públicas de policiamento e


vigilância policiais é o Secretário de Estado dos Negócios da Segurança Pública
ao qual estão subordinadas a Polícia Militar e a Polícia Civil, a primeira incumbida
do policiamento ostensivo-preventivo e a segunda da polícia judiciária.

Comandada, via de regra, por Coronel situado no mais alto grau da


hierarquia militar, à PMSP estão subordinados os seguintes orgãos: Comando de
Policiamento da Capital (CPC), Comando do Corpo de Bombeiros (CC/CB),
Academia de Polícia Militar do Barro Branco (APMBB), os Comandos de
Policiamento de Área Metropolitano (CPA/M-1-5), a Companhia Independente de
Polícia de Guarda, o Comando de Policiamento de Trânsito (CPT), o Comando
de Policiamento de Choque (CPChq), o Batalhão de Policiamento Feminino, o
Presídio Militar Romão Gomes, o Serviço de Rádio Patrulha e o Centro de
Operações da Polícia Militar (COPOM).

Em cada instância, as áreas de competência são rigidamente definidas, os


poderes centralizados, a disciplina consoante modelo militar, a promoção
segundo critérios de mérito e antigüidade. A seleção e recrutamento de policiais
prevêm exigências físicas, psíquicas, intelectuais e morais adequadas à natureza
do trabalho a ser desenvolvido. Os selecionados passam por treinamento
específico que inclui, além do adestramento físico específico (condicionamentos,
aprendizado no manejo de armas, táticas e estratégias policiais empregadas nas
operações de policiamento), conhecimento da estrutura e funcionamento da
organização bem como da legislação pertinente, ao lado de informações de
conhecimento geral. Em termos de funcionamento, o policiamento ostensivo-
preventivo processa-se através do patrulhamento de ruas e de espaços públicos
de circulação de pessoas, bem assim através de operações que visam objetivos
específicos, tais como apreensão de armas não autorizadas, de drogas, de
cargas contrabandeadas; proteção de atividades bancárias sobretudo nos dias
destinados a pagamento de trabalhadores; retenção de carros furtados.

A Polícia Civil é dirigida pelo Delegado Geral, indicado pelo Secretário de


Segurança Pública e nomeado pelo Governador do Estado. Ao Delegado Geral
subordinam-se os seguintes órgãos: o Departamento Estadual de Investigações
Criminais (DEIC), a Corregedoria da Polícia Civil (CORREGEPOL), o
Departamento Estadual de Polícia do Consumidor (DECON), a Academia de
Polícia Civil (ACADEPOL), o Departamento Estadual de Polícia Administrativa
(DEPAD), o Departamento das Delegacias Regionais de Polícia da Grande São
Paulo (DEGRAN), o Departamento de Polícia do Interior (DERIN), o
Departamento Estadual de Trânsito (DETRAN). Cada um desses departamentos
subdivide-se em divisões e unidades. Ao DEGRAN e ao DERIN estão
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 646

subordinados os distritos policiais. Fazem parte ainda da estrutura da Secretaria


de Segurança Pública o Instituto de Identificação "Ricardo Gumbleton Daunt", os
Institutos Médico-Legais, o Instituto de Polícia Técnica e Científica. Cabe à
Polícia Civil o desempenho de atribuições relativas à investigação criminal.

Nesse terreno, as operações limitam-se a identificar possíveis autores de


delitos, ouvir testemunhas, preparar laudos periciais, elaborar relatórios e
produzir inquéritos, além dos serviços administrativos de expedição de
documentos variados. As condições de recrutamento, seleção e treinamento não
se distinguem radicalmente daquelas previstas para os ingressantes na Polícia
Militar, embora, ao que tudo indica, sejam menos rigorosas. As condições de
trabalho são porém distintas, quanto aos padrões salariais, ao regime de
trabalho, às normas de acesso aos postos elevados na hierarquia funcional. Os
operadores técnicos no âmbito da delegacia policial podem ser divididos em dois
grupos: primeiro, a chefia de plantão, a qual é composta pelo delegado titular,
pelo delegado assistente, pelo chefe do cartório e pelo chefe dos investigadores;
segundo, as equipes de plantão, compostas pelo delegado, pelo escrivão, pelos
investigadores e por um carcereiro. No total, são cinco as equipes de plantão.

Estudando a organização policial civil em uma grande metrópole brasileira,


Paixão (1982) analisou a estrutura formal assim como os usos que os policiais
fazem de suas práticas institucionais. Ele ressaltou o caráter precário dos
mecanismos formais de inspeção, a generalização de um modelo patrimonial de
organização e a fragilidade das linhas de articulação entre a estrutura formal e as
atividades práticas. No que concerne a estas últimas, Paixão constata que elas
são orientadas por algumas teorias acerca da "natureza" dos delinqüentes e pelo
estoque de conhecimentos empíricos disponíveis na organização. Trata-se de
uma "lógica-em-uso"267 nos meios policiais, a qual consiste em um conjunto de
categorizações dos possíveis delinqüentes, das modalidades de ação
delinqüencial, de métodos destinados a colocar em destaque evidências, que
implicam o estabelecimento de uma rede de informantes que operacionalizam a
investigação policial. O resultado desse confronto entre a organização formal e a
cultura organizacional reside em desqualificar o império da lei, frequentemente
considerada pelo agente policial antes um obstáculo do que uma garantia efetiva
de controle social. Auto-representados como purificadores da sociedade, os
agentes policiais contribuem para rotinizar os métodos ilegais de investigação,
apelando não raro para as torturas e mesmo execuções sumárias (Américas
Watch, 1987; Pinheiro e outros, 1991), estimulando a criminalização de

267
Trata-se de uma “lógica-em-uso” reforçada pelas tradições inquisitoriais do direito penal
brasileiro. Sobre o assunto, ver Kant de Lima (1989, 1990 e 1994).
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 647

segmentos populacionais pouco preparados para assegurar seus direitos civis


contra o arbítrio da organização, aspecto que vem sendo tematizado pelos
estudos de Paulo Sérgio Pinheiro (Pinheiro, 1982; 1983; 1984; 1989 e Pinheiro e
Sader, 1985).

Algumas outras características da rotina policial parecem reforçar essa


mesma lógica de funcionamento informal. Em geral, as delegacias possuem uma
arquitetura similar. No andar superior, localizam-se os serviços burocráticos. No
andar térreo, localizam-se o espaço destinado ao atendimento do público, um
número reduzido de celas e um pequeno pátio. Não é novidade a constatação da
superpopulação nessas celas. Em espaço destinado a um pequeno número de
indivíduos, encontram-se cerca de 40 presos, aguardando encaminhamento ou
decisão judiciária. Alguns dos presos estão, em verdade, cumprindo pena porque
já foram julgados e condenados. Apenas esperam a existência de vagas no
sistema penitenciário268.

No cotidiano das delegacias de polícia civil, uma das figuras centrais é o


escrivão. De modo geral, ele passa a maior parte do tempo no local de trabalho,
inteira-se de tudo o que acontece às suas voltas, acompanha o movimento das
pessoas - público e funcionários -, familiariza-se tanto com a linguagem da
malandragem e com a gíria policial quanto com os preceitos jurídicos que devem
conduzir o inquérito policial. Não raro, subsidia o trabalho do delegado,
esclarecendo-lhe dúvidas, indicando-lhe caminhos a serem seguidos, apontando-
lhe soluções. Mais do que qualquer outro agente institucional, mostra-se
interessado pelo que faz e julga mesmo ser indispensável no interior da
engrenagem policial. As atividades dessa agência estão nuclearizadas em torno
de si, constituindo-se os demais - investigadores, delegados, auxiliares de
escritório - emanações desse ator central. Essa observação indica de fato a
precariedade das linhas hierárquicas de competência e de poder no âmbito da
agência policial. Contribui para acentuar esse traço a precariedade dos recursos
materiais disponíveis, o que muitas vezes constrange os atores institucionais à
não diferenciação entre recursos próprios e recursos públicos. O resultado mais
flagrante é a confusão entre as linhas institucionais de ação policial e a tosca
diferenciação de funções segundo seu grau de competência e complexidade,
campo aberto para arbitrariedades de toda sorte.

268
De acordo com a Portaria 1/81, de 14/5/81, do Juiz da Vara das Execuções Criminais, da
Corregoria dos Presídios do Estado e da Polícia Judiciária da Capital, presos à disposição da
justiça passam a ficar recolhidos nos xadrezes dos distritos policiais face à superpopulação da
Casa de Detenção. Essa situação tendeu a se agravar na medida em que muitos desses
recolhidos encontram-se sentenciados, cumprindo pena em estabelecimentos inadequados.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 648

Tanto assim que, a despeito das diretrizes “modernizantes”, adotadas nos


últimos vinte anos e apesar dos investimentos feitos na expansão dos quadros
técnico e administrativo, não se têm logrado êxito em coibir ou restringir as
práticas de contenção violenta realizadas ao arrepio da ordem jurídica, bem como
não têm logrado combater, de modo eficaz, a corrupção policial. De fato, ao lado
da maior implementação técnica persistem as rondas policiais ostensivas com
suas espetaculares demonstrações de alvedrio policial (Fernandes, 1989) - cujos
resultados chegam a ser irrisórios, quando não provocam mortes inexplicáveis,
como vem se sucedendo com relativa regularidade - a par dos maus tratos
impingidos a delinqüentes ou a pessoas suspeitas da prática de delitos. Ademais,
a corrupção policial parece ter se acentuado nos últimos anos (Mingardi, 1992).
Os “conluios” entre pequenos empresários, traficantes de drogas e policiais, civis
e militares, parecem constituir um poder paralelo ao do Estado, concorrendo com
o poder público no controle e monopólio da violência física legítima. Ao mesmo
tempo, a “lógica-em uso”, impressa às mais variadas atividades policiais,
inclusive às inspeções e investigações (Paixão, 1982), age no sentido de reforçar
as tensões entre estrutura formal e cultura organizacional, fragilizando o papel
dos estatutos legais como instrumento de orientação da conduta policial, mais
propriamente instrumento de pacificação social e de oferta de segurança aos
cidadãos.

A atual Constituição (1988) manteve a organização judicial em tribunais


federais e tribunais estaduais. No que concerne à justiça penal, a competência
dos tribunais federais e dos tribunais estaduais está restrita à natureza dos
crimes, conforme explicitado anteriormente. Comparativamente às outras duas
agências que compõem o sistema de justiça criminal (polícia e sistema
penitenciário), o aparelho judiciário é dotado de maior complexidade, em todos os
aspectos em que possa ser observado: estrutura, funcionamento, ritos
processuais, atuação de agentes institucionais. Concorre para essa
complexidade pouco acessível à compreensão imediata, notadamente por parte
do cidadão comum, a inexistência de um organograma formal próprio da Justiça
penal. No caso do estado de São Paulo, esse organograma, em verdade, tem
que ser "deduzido" da leitura da Constituição estadual, de leis complementares e
de provimentos do Tribunal de Justiça269.
Esses estatutos definem as competências dos Tribunais de Justiça e de
Alçada, dispõem sobre a divisão de trabalho entre Grupos, Câmaras e Plenários,

269
Trata-se do art. 54 da Constituição do Estado de São Paulo, das Leis-Complementares no. 35,
de 14/3/79 e 225, de 13/11/79, da Lei no. 3947, de 08 de dezembro de 1983 e do Provimento no.
29, de 20 de fevereiro de 1984, da Presidência do Tribunal de Justiça.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 649

regulamentam o Conselho Superior de Magistratura. A leitura desses estatutos


também permite verificar que a organização Judiciária da Comarca de São Paulo
está constituída por Tribunais de primeira e segunda instâncias. Os de primeira
instância compõem-se de Câmaras ou Turmas, especializadas ou agrupadas em
seções especializadas. Os de segunda instância compõem-se de Tribunal de
Justiça, ao qual estão diretamente afetos o Plenário, a Primeira e Segunda Seção
Civil, a Seção Criminal, o Conselho Superior de Magistratura e a Câmara
Especial; do Primeiro e Segundo Tribunais de Alçada Civil e do Tribunal de
Alçada Criminal. Nesse nível, a Seção Criminal ocupa-se das ações penais
relativas a crimes sujeitos à pena de reclusão, exceto delitos contra o patrimônio;
crimes contra o patrimônio seguidos de morte; infrações penais envolvendo
drogas; crimes falimentares e crimes de responsabilidade de prefeitos e
vereadores.

Ao Tribunal de Alçada Criminal compete o julgamento de crimes a que não


seja cominada pena de reclusão e os crimes contra o patrimônio. Essa
organização encontra-se nuclearizada em foro central e em foros regionais, estes
compreendendo tanto varas cíveis quanto criminais270. Há uma divisão de
trabalho judiciário entre as Varas distritais e centrais. Algumas Varas
especializam-se no julgamento de crimes para os quais se prevê pena de
detenção (contravenções em geral, lesão corporal, homicídio culposo). É o caso,
por exemplo, da 1a. Vara Criminal da Penha. Por sua vez, os crimes contra o
patrimônio somente são julgados nas Varas centrais (Fórum Mário Guimarães).
Os crimes capitulados nos artigos 121 a 127 do Código Penal são de
competência do Tribunal de Júri. Esses crimes são julgados nos tribunais
distritais ou centrais, conforme o local (delegacia distrital) onde a ocorrência foi
registrada.

Em contraste com as agências policiais, é flagrante a rigidez da estrutura


hierárquica bem como dos ritos judiciários. O magistrado ocupa papel central no
sistema de justiça criminal brasileiro. Como comenta Kant de Lima, “a legislação
brasileira que rege o processo penal estatui o princípio do livre convencimento do
juiz. Segundo juristas brasileiros (ver, p.ex., Rosa, 1982: 267-273), a referida
legislação adotou um sistema alternativo ao da prova legal, que vem a ser o
sistema pelo qual o juiz tem a liberdade de tomar sua decisão baseado
exclusivamente em sua própria consciência. Segundo o sistema brasileiro (arts.
157 e 381, Código do Processo Penal) o juiz deve tomar sua decisão atendendo
ao seu próprio julgamento, mas limitado ao que consta dos autos”. [...] “De um

270
Havia, no período observado, onze foros regionais (Santana, Santo Amaro, Jabaquara, Lapa,
São Miguel Paulista, Penha, Itaquera, Tatuapé, Vila Prudente, Ipiranga, Pinheiros).
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 650

juiz criminal espera-se que mostre total imparcialidade entre a acusação e a


defesa” (Lima, 1994: 24). A condução de todo o processo penal está, de fato,
inteiramente subordinada ao magistrado, que dispõe, entre outras, da faculdade
de interrogar réus e testemunhas, determinar novas diligências, mandar juntar
provas, aceitar ou não petições, reconhecer ou não indícios que encaminhem a
versão dos acontecimentos em direção oposta àquela que apareça como
predominante no Inquérito Policial. De tudo isso, importa ressaltar que a tradição
penal brasileira atribui considerável margem de discricionariedade ao juiz,
representada pelo princípio do livre convencimento. Essa margem de
discricionariedade parece responder, senão no todo ao menos em parte, pelo fato
de haver julgamentos tangiversados, como que atropelados por “móveis extra-
judiciais” que não se atêm necessariamente aos fatos e às provas contidas nos
autos.

Os ritos judiciários obedecem igualmente a regras formais que


regulamentam as comunicações escritas e orais entre agentes institucionais no
desempenho de suas tarefas especializadas, como soe acontecer no modelo
burocrático-legal de administração pública da justiça. Sempre que os autos são
remetidos a outras agências ou a outras seções, segue-se uma folha plena de
carimbos, datas e assinaturas, acusando encaminhamento, recebimento, vistas e
retorno. Reforçados por uma cultura organizacional no interior da qual buscam
legitimidade para suas práticas, os distintos agentes institucionais tendem a
apropriar-se dessas regras enquanto instrumentos de poder pessoal, conferindo-
lhes um sentido particular e próprio: em lugar de servirem-se delas para
assegurar a universalidade dos procedimentos que torna possível a neutralidade
na distribuição da justiça, nelas apoiam-se para fazer valer sua superioridade
hierárquica diante daqueles que se encontram, em algum momento e pelos mais
distintos motivos, submetidos às malhas de um poder cujo acesso lhes é difícil e
cuja compreensão de sua lógica lhes escapa.

A distância que separa julgados e julgadores parece intransponível a


começar pelo papel do próprio magistrado, única autoridade qualificada para
inquirir e à qual se deve com exclusividade dirigir-se a palavra, como ocorre nas
audiências judiciais. Tudo é igualmente mediado por uma linguagem estranha,
referida a códigos e a entendimentos quase secretos, cuja tradução depende
daqueles que desfrutam a posse de um saber especializado, o jurídico, o saber
das leis: os promotores públicos, os assistentes da promotoria, os advogados de
defesa e, na ausência destes, os funcionários do cartório, estes qualificados não
apenas para alcançar o universo cultural dos justiçados, no que se atiram com
extrema dedicação, como também para inflar rumores que circulam livremente
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 651

pelos corredores dos tribunais e para exacerbar sentimentos de medo diante dos
poderes ilimitados da autoridade judiciária: a capacidade de mandar prender a
qualquer deslize, mesmo se motivado pelo desconhecimento das regras formais
(cf. Marques Jr., 1994).

Toda esta estrutura e funcionamento do sistema de justiça criminal bem


como seus respectivos ritos institucionais materializam-se quer no curso do
inquérito policial quer no curso do processo penal. No Brasil, os ritos de apuração
de responsabilidade em contenciosos penais, inclusive nos casos de homicídios
dolosos, são realizados em duas fases: a policial e a judicial. A primeira
compreende o conjunto de procedimentos técnicos destinados a apurar os fatos
que resultaram no crime e a identificar possíveis autores. A segunda compreende
o conjunto dos procedimentos técnicos voltados para a apuração da
responsabilidade penal, para o julgamento da culpa e para a distribuição de
sanções. A primeira fase tem início com a notícia de um evento criminal que,
levado ao conhecimento de autoridade pública - policiais militares ou mesmo civis
-, enseja a lavratura de um registro oficial, o Boletim de Ocorrência Criminal. Em
tese, todo B.O. deveria ser seguido da abertura de inquérito policial, peça
documental que reúne os resultados da investigação policial. Na prática, nem
todo B.O. converte-se em inquérito policial, conforme já se sustentou
anteriormente. Muitos crimes sequer chegam a ser investigados. No caso dos
homicídios dolosos, como são os casos de linchamentos, era de se esperar que a
gravidade da ofensa criminal determinasse obrigatoriamente a abertura de
inquérito policial. Mas, mesmo aqui, não há garantias de que assim o seja.

Esta primeira fase é qualificada, em termos das tradições jurídico-penais,


como fase inquisitorial. Nela, o papel das agências policiais é identificar
evidências e indícios que comprovem a materialidade do delito, que reconheçam
possíveis agressores e que estabeleçam o nexo lógico entre delito e autoria.
Nesse momento, embora suspeitos e testemunhas possam ser acompanhados
por defensoria, pública ou privada, sua presença não é imperativa, mesmo
porque ela ainda não pode oficialmente intervir, a não ser orientar informalmente
seus constituídos quanto ao comportamento a ser adotado diante das
autoridades coatoras. Do mesmo modo, conquanto o Ministério Público possa
designar promotor público para o acompanhamento de um caso ainda na esfera
policial e durante o preparo do inquérito policial, a intervenção formal deste
operador técnico do direito é desencadeada somente a partir da nomeação por
ato judicial da magistratura.

O inquérito policial, nascido de uma portaria baixada por delegado em cujo


distrito ou delegacia o caso foi registrado, é o documento que consubstancia
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 652

todos os procedimentos relativos às investigações policiais. Contém relato do


crime; descrição da procura, localização e prisão dos possíveis culpados bem
como da procura, localização e intimação de testemunhas, que podem ser
presenciais ou não; anexação de folha de antecedentes criminais assim como de
laudos técnicos variados, resultantes de perícia no local do crime, da autópsia
das vítimas fatais (o chamado laudo necroscópico), de exames de armas e/ou
instrumentos utilizados e de outros exames considerados essenciais para
reforçar o rol de provas documentais e não-documentais (provas orais, extraídos
dos testemunhos). Durante esse procedimento, se os agressores forem
surpreendidos realizando a ofensa criminal - o linchamento, por exemplo -, eles
poderão ser presos em flagrante e permanecerem sob esta condição durante o
prazo de realização do inquérito, a menos que decisão judicial promova o
relaxamento do flagrante e determine a liberação dos acusados. Se os suspeitos
não forem presos em flagrante, eles poderão ser presos para averigüação, por
curto prazo de tempo ou segundo determinação judicial sob o argumento de que
esta condição visa não apenas protegê-los contra eventuais represálias de quem
quer que seja, ou porque ela assegura o curso das investigações e evita a
diluição de provas. O Código do Processo Penal estabelece que o inquérito
policial de indiciado preso deve ser concluído em dez dias; o de indiciado solto
em trinta dias. A dilatação desses prazos está legalmente prevista de sorte que,
na prática, muitos acusados permanecem presos por tempo muito superior aos
trinta dias, aguardando o desfecho das investigações.

Durante as investigações, se houver suficientes evidências de que os


acusados são efetivamente suspeitos de haver participado do crime ou
colaborado em sua realização, eles serão qualificados como indiciados. Com o
relatório final do delegado, o inquérito policial é concluído e remetido ao Forum
Central ou regional. Recebido em cartório e encaminhado a juiz, o inquérito é
distribuído para o Ministério Público para designação de um promotor quem, na
qualidade de procurador da sociedade civil, deve oferecer denúncia. De posse
desse documento, o promotor dentro de um prazo estatutariamente determinado
adota um dos seguintes comportamentos: (a) solicita o retorno do inquérito
policial ao distrito ou delegacia de origem para completar investigações, recolher
novas provas, ouvir testemunhos não recolhidos, anexar laudos técnicos ou
proceder a perícias até então não realizadas, responder a quesitos determinados
julgados essenciais para elucidar o caso; (b) solicitar o arquivamento do inquérito
policial, caso esteja convencido de que as provas reunidas não são suficientes
para incriminar os indiciados ou ainda caso esteja convencido da impossibilidade
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 653

de se dar prosseguimento às investigações; (c) apresentar denúncia, acusando


os indiciados de participação no crime.

O inquérito então retorna ao Fórum para apreciação por parte do juiz o


qual pode acolher ou não o arquivamento do inquérito policial, acolher ou não a
denúncia. Se a denúncia for acolhida, instaura-se o processo penal e os
indiciados passam a ser qualificados como réu. Inicia-se assim a fase judicial,
fase identificada na tradição jurídico-penal como acusatorial. Esta fase é
considerada acusatorial porque é fundada no princípio do contraditório penal,
através do qual se facultam às partes em litígio - acusadores, acusados e seus
defensores - confrontar e contestar provas. É deste confronto que o magistrado
extrai seu “livre convencimento”, base para a expedição da sentença judicial
decisória. Nesta fase, há acusadores e defensores formalmente constituídos e
reconhecidos. Na hipótese de os réus não disporem de recursos para contratar
defensoria particular, o magistrado indica defensor público. Quando há mais de
um réu respondendo pelo mesmo crime em idêntico processo penal e ambos não
disponham de recursos ou fortuna pessoal para a contratação de um advogado
particular, é comum que o juiz nomeie advogado dativo para a defesa de um dos
réus, isto é, um advogado particular é convocado para exercer as funções de
defensoria pública às expensas do poder público.

Após o interrogatório dos réus, inicia-se a instrução criminal, momento em


que se requisitam novos depoimentos das testemunhas anteriormente ouvidas na
fase policial bem como se requisitam depoimentos de novas testemunhas, não
arroladas na fase precedente. Neste momento, para formar seu “livre
convencimento”, o juiz pode determinar a junção de novas provas documentais,
requisitar novas perícias técnicas, reclamar respostas a quesitos não
completamente respondidos ou respondidos insatisfatoriamente por ocasião do
inquérito policial. Encerrada a instrução, promotoria e defensoria apresentam
suas alegações finais. Seguem-se diligências saneadoras destinadas a encerrar
definitivamente a junção de documentos e outras provas. Neste momento, o
processo penal encontra-se preparado para a audiência em que será proferida a
sentença “intermediária”. Esta sentença pode contemplar as seguintes
possibilidades: impronúncia, absolvição sumária, desclassificação ou pronúncia.
Nas três primeiras, os réus não serão levados ao tribunal de júri seja porque
reconhecida a ausência de provas materiais capaz de pronunciá-los, seja porque
não foram reconhecidos como culpados pelo crime cometido ou ainda porque se
considerou a natureza do delito fora do alcance e competência do tribunal do júri.
Nos casos de linchamento, tal possibilidade ocorre quando o processo penal é
“montado” para admitir que populares agrediram a vítima ou vítimas do
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 654

linchamento e que a morte sobreveio à agressão. Tratar-se-ia assim de agressão


seguida de morte, crime de competência dos tribunais singulares.

Mas, se a sentença intermediária pronunciar os réus, eles serão


submetidos a júri popular. Nesta circunstância, é como se um novo procedimento
penal tivesse início. Nesta última fase, há toda uma rigorosa codificação ritual
para assegurar lisura nos procedimentos e para garantir que os jurados não
sofram pressões externas que possam interferir na condução do julgamento e
comprometer previamente seu resultado. Esta última fase principia com a
apresentação, por parte do Ministério Público, do libelo acusatório, que poderá ou
não ser acolhido pelo magistrado, peça que é contestada pela defensoria em sua
apresentação do contra-libelo acusatório. A isto, segue-se o saneamento das
nulidades, através do qual se busca esclarecimentos de fatos considerados
relevantes para o desenrolar do processo penal. Finalmente, instituem-se
procedimentos visando à constituição do corpo de jurados e à realização da
sessão do tribunal do júri em que o caso - por exemplo, um linchamento - será
julgado. O corpo de jurados é constituído a partir de uma lista anual, elaborada
pelo próprio tribunal. Para cada julgamento, são designados vinte e um nomes,
dentre os quais serão sorteados sete que integrarão o Conselho de Sentença.
Tanto defensoria quanto promotoria podem questionar a pertinência e
oportunidade de participação de algum nome entre os sorteados, pleiteando sua
substituição, o que poderá ou não ser acolhido pelo magistrado.

Em princípio, a sentença do tribunal do júri - condenação ou absolvição - é


soberana, não podendo ser reformada no todo ou em parte. O que pode ser
matéria de recurso a instância judicial superior é o “quantum” da sentença, cuja
fixação é atribuição do juiz. Recurso também poderá subir caso demonstrado que
o processo penal foi conduzido com algum vício processual o que recomenda sua
extinção e o reinício de novos procedimentos inquisitoriais e acusatoriais. Entre
esses vícios, elencam-se: obtenção de provas documentais e orais de forma
inadequada ou fraudulenta; cerceamento visível de defesa; flagrantes erros
técnicos na elaboração de laudos e perícias; não cumprimento de prazos
legalmente previstos para as mais diversas operações e atividades burocráticas
ou não observância de requisitos fundamentais na elucidação de fatos, como por
exemplo a perícia do local. Trata-se, em verdade, de aspecto controvertido
porque, se por um lado a inobservância de qualquer requisito legal pode
comprometer a distribuição da justiça segundo critérios de eqüidade (Rawls,
1981), por outro lado pode estimular o “tumulto” processual, contribuindo para
reduzir a capacidade de intervenção da justiça criminal e, por conseguinte, para
inflacionar a impunidade penal.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 655

Assim, instaura-se no domínio do aparelho penal um amplo hiato entre o


direito e os fatos, entre o mundo abstrato e idealizado da lei - inscrito nos
códigos, ensinado nos livros e nas academias, proclamado solenemente nos
tribunais - e a aplicação cotidiana dos preceitos legais, que tornam objeto de
disputa e negociação entre diferentes atores, inclusive operadores técnicos do
direito que, enredados nas teias da moralidade pública e privada, interpretam
aqueles preceitos segundo interesses particulares e conforme as necessidades
de funcionamento da organização judicial. Esse hiato acaba contribuindo para
diluir critérios universais de juízo destinados a solucionar litígios e pendências
nas relações sociais e nas relações intersubjetivas, como são os casos de
linchamento. Em situações como esta, a distribuição da justiça acaba alcançando
alguns cidadãos em detrimento de outros, o acesso da população aos serviços
judiciais é dificultado por razões de diversas ordens e, muito dificilmente, as
decisões judiciais deixam de ser discriminatórias. Nas situações em que esses
cenários se exacerbam e se radicalizam, como são as decorrentes da
intervenção judicial nos casos de linchamento, o resultado mais evidente é a
impunidade como regra. Algumas de suas razões são abordadas nas análises
subseqüentes.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 656

CAPÍTULO 17
JUSTIÇA VIRTUAL: O INQUÉRITO POLICIAL E O PROCESSO PENAL SOB A ÓTICA DOS
OPERADORES DO DIREITO.

Nancy Cardia

Introdução
As entrevistas com os operadores do direito tiveram por objetivo identificar
de forma exploratória os critérios que esses operadores utilizam para avaliar seu
próprio desempenho e o de seus colegas. A análise dos processos penais, dos
casos selecionados para a reconstrução, prevista no plano de pesquisa, envolve
entre outras uma avaliação da atuação desses operadores na fase de inquérito
policial e no decorrer do processo penal. Um dos critérios de avaliação é o que
está estabelecido no Código de Processo Penal. A decisão de entrevistar os
operadores partiu da suposição de que além, dos critérios formais, poderiam
existir critérios informais, socialmente compartilhados pelos operadores de direito,
sobre o que constitui um inquérito e um processo ideais, e cujo conhecimento
poderia enriquecer a análise dos processos. Optou-se então por realizar um
número reduzido de entrevistas com profissionais da área (conforme descrição
metodológica contida no capítulo 4 deste relatório). Estas entrevistas tiveram por
objetivo explorar os obstáculos para a realização de um inquérito e de processos
ideais no caso de crimes contra a vida.

As entrevistas com os delegados abordaram o inquérito policial ideal, em


casos de homicídio, o inquérito policial real e o papel do Código de Processo
Penal na composição do inquérito policial. O processo penal ideal foi abordado
junto aos promotores públicos e juízes, ou seja houve uma adaptação do roteiro
de entrevista às especificidades da experiência e da ocupação dos entrevistados.
Apesar desta restrição todos os promotores e juízes abordaram também o
inquérito policial, mas nenhum delegado teceu comentários sobre o processo
penal. Dado que o roteiro continha perguntas abertas, os entrevistados
dispunham de liberdade para enfatizarem certos temas e/ou tratarem de outros
temas relativos à atuação do sistema judiciário nos casos de homicídio. Como
resultado, as entrevistas trouxeram à tona outros temas que são salientes para
esses entrevistados e que não haviam sido considerados pela equipe quando da
elaboração do roteiro.

A apresentação dos resultados das entrevistas observa a seguinte ordem:


o inquérito policial ideal e o processo penal ideal; o inquérito policial e o processo
penal reais, a percepção do Código de Processo Penal; e, por fim. os outros
temas relevantes para se entender e avaliar como têm sido conduzidos os
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 657

inquéritos e os processos referentes a homicídios e o papel do sistema de justiça


criminal na prevenção ou dissuasão do homicídio.

1. O inquérito policial ideal


Ao falarem sobre o inquérito ideal e o real os entrevistados abordam os
seguintes temas: o tempo de duração dos inquéritos; a qualidade das provas
coletadas; a infra-estrutura necessária para a coleta de provas; o tipo de registro
das informações; o estilo, a linguagem e a aparência do inquérito; as relações
entre os operadores do direito; o desfecho do processo; e outros indicadores de
desempenho.

É consenso entre os entrevistados que o inquérito policial ideal, em caso


de homicídio, é aquele de autoria conhecida com prisão em flagrante. Se a
autoria for desconhecida, somente um caso que tenha tido ampla repercussão
nos meios de comunicação será capaz de exercer forte pressão sobre os
operadores para elucidarem-no. O inquérito ideal tem investigação rápida e se
compõe de provas fortes ligando o suspeito ao crime, isto é apresenta provas
técnicas que não deixam dúvidas quanto a relação entre o crime e o autor e
essas provas são complementadas por testemunhos de pessoas com
credibilidade e capacitadas para fazê-lo. O inquérito ideal permite que seja
solicitada e concedida a prisão preventiva do indiciado.

No inquérito ideal há forte cooperação entre os operadores do direito. O


inquérito é rápido porque há infra-estrutura: pessoal treinado, motivado, com bom
salário, em número suficiente para atender a demanda. As equipes possuem os
instrumentos necessários para a realização das tarefas. O local do crime foi
preservado, permitindo uma perícia cuidadosa. As equipes de perícia chegaram
rapidamente ao local e dispuseram de recursos materiais e humanos para
realizarem todos os testes necessários. As testemunhas são localizadas e
aceitam depor. Estas testemunhas são pessoas capacitadas, e fazem
depoimentos consistentes. O inquérito resultante é capaz de reconstruir o
ocorrido sem necessidade de investigações complementares. O delegado dialoga
com o promotor e está informado sobre o tipo de evidência que o promotor
necessita para apresentar no plenário de Júri. O delegado tem acesso fácil e ágil
ao promotor e ao juiz para solicitar mandados de busca e apreensão e mesmo de
prisão. O promotor acompanha o inquérito de modo a se familiarizar com os
dados e se assegurar que terá as informações que vai necessitar em plenário. A
família da vítima acompanha o caso e estimula os policiais e a promotoria a
concluírem seus trabalhos. Uma vez remetido ao Ministério Público, o inquérito
ideal não mais retorna à delegacia pois o promotor ratifica, em sua denúncia, o
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 658

relatório do delegado. Por fim, o inquérito ideal resulta do trabalho de uma


mesma equipe, desde sua instauração até o momento em que o delegado conclui
o inquérito com seu relatório.

O inquérito policial ideal leva a uma denúncia que é aceita pelo judiciário e
em última instância ajuda a obter uma condenação ou uma absolvição quando se
trata de legítima defesa.

O tempo
O inquérito policial ideal no caso de homicídio deveria ser ágil. Essa
agilidade, posta em números, significaria 90 dias e não os 30 dias previstos no
Código de Processo Penal. É um consenso entre os entrevistados quer sejam
delegados, promotores ou juízes, que nos dias de hoje é muito difícil que um
inquérito policial referente a homicídio se encerre em 30 dias. Isso só seria
possível nos casos em que ocorre prisão em flagrante, onde há testemunhas do
ocorrido que tenham credibilidade e disposição para testemunharem em juízo e
quando os laudos estejam prontos rapidamente. Assim o prazo de 30 dias é
descrito como “um prazo teórico” (promotor 4) que seria adequado às
características do que era a sociedade, do perfil e da incidência da criminalidade
e às condições de trabalho da polícia na década dos anos 40. Hoje o prazo
mínimo deveria ser de 90 dias.

O inquérito deveria ser ágil para se garantir que o processo como um todo
seja rápido sem que se deixe de respeitar os direitos dos envolvidos mas de
modo a garantir que a justiça se efetive. A justiça efetiva é, no entender dos
entrevistados, mais do que a justiça formal. A justiça formal em termos dos
trâmites do inquérito (e posteriormente do processo) no entender dos operadores
do direito sempre ocorre. Mas a justiça efetiva, com a condenação dos
responsáveis ou absolvição daqueles que praticaram homicídio em legítima
defesa, exige agilidade dos operadores do direito: "Se você julgar muito tempo
depois, você não vai conseguir reproduzir a verdade... Então você fica, às vezes
fazendo da justiça um símbolo de alguma coisa essencialmente formal. Você
instaura o inquérito, chega a uma conclusão e dá uma sentença. Mas você não
resolveu a questão. Você não promoveu a justiça, você não apurou nada. Mas
formalmente você tem, estatisticamente o processo decidido direitinho." (juiz 1)

A agilidade é necessária para garantir a solidez das provas e para que não
haja perda de informações. Com o passar do tempo aumenta o risco de
mudanças na equipe que informa o inquérito desde sua instauração e com isso
crescem as chances de perda de informações. Aparentemente não existem
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 659

procedimentos institucionais que garantam memória dos inquéritos e sequer que


ela possa ser continuamente atualizada. O passar do tempo também propicia a
perda de informações de caráter pericial, pois novos casos vão ocorrendo e
assumindo prioridade em relação aos casos mais antigos. Isso facilita também a
perda de material para exame tais como: armas e projéteis ou ainda material para
exame laboratorial.

A localização de testemunhas e o conteúdo dos depoimentos também são


prejudicados pelo tempo. Com o tempo, as testemunhas mudam de residência e
sua localização nem sempre é possível. Quanto mais o tempo passa, mais as
testemunhas ficam passíveis de sofrerem pressões de familiares dos suspeitos e
das vítimas. A própria memória dos eventos vai se diluindo e aumentando a
probabilidade de confundirem "opinião com fatos" (delegado 5). Com isto, a
precisão dos testemunhos é prejudicada, assim também como a precisão e a
certeza no reconhecimento dos participantes dos eventos pelas testemunhas. O
efeito do tempo sobre os testemunhos é reconhecido por todos os entrevistados
como aquele tempo que "enfraquece as provas". A prova testemunhal que é
reconhecida como uma prova necessária, mas não suficiente, seria a mais
afetada pelo tempo. Assim, o tempo afetaria a qualidade das provas coletadas,
como se verá a seguir.

A agilidade na condução do inquérito policial dependerá da existência de


uma infra-estrutura adequada às necessidades e da facilidade de comunicação
entre os operadores do direito: entre os delegados, promotores e juízes. Muitas
medidas que devem ser tomadas ao longo do inquérito e posteriormente do
processo judicial, exigem que haja colaboração entre esses agentes, seja para a
realização de diligências e de exames ou para a emissão de mandados, seja
para o fornecimento de informações complementares, para realização de outras
diligências ou para apresentação de réu preso ao juiz. A cooperação é facilitada
quando os canais de comunicação são simplificados e diretos. O uso de fax ou
mesmo de telex é apontado pelos entrevistados como tornando mais rápido o
trabalho de todos os envolvidos principalmente quando os deslocamentos na
cidade são tão onerosos em termos de tempo. Essa cooperação é encorajada
quando o padrão de interação entre as corporações não é competitiva. Essa
comunicação mais rápida exige também plantões do judiciário e da promotoria
para a emissão de mandados de prisão e de busca e apreensão.

De parte dos promotores, o inquérito ideal exige que leiam atentamente os


pedidos de dilação de prazo dos delegados para não permitirem que os
inquéritos demorem mais do que o estritamente necessário, para sugerirem
linhas de investigação e para evitarem que haja prescrição ou a tentação de
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 660

“procrastinação desnecessária”: "Eu vejo o que estão fazendo. O que é que foi
feito entre uma concessão de prazo e outra para ver se eles não estão jogando
lá. Vejo quem está sendo acusado, quem é o indiciado, a classe social, réu
potentado a gente tá de olho ali mesmo, para ver se não há nenhuma
procrastinação desnecessária" (promotor 1).

A qualidade das provas


A qualidade das provas é o que permite estabelecer de modo claro e sem
margem à ambigüidades, o nexo entre o ato e o suspeito da agressão. Boas
provas são aquelas que estabelecem um vínculo entre o ato e o suspeito que não
pode ser alterado, que não muda com o tempo. Essas são as provas "fortes".
São fortes porque convencem o juiz, os jurados e permitem ao promotor fazer
"uma robusta denúncia e ao juiz uma robusta sentença" (delegado 5). São provas
em geral técnicas, produzidas por profissionais treinados e "aceitas no mundo
jurídico de modo isofismável" (delegado 6). O que se pode discutir nessas provas
é a interpretação dos laudos, mas quanto melhor a prova mais indiscutível ela
será.

De modo geral o inquérito policial ideal contém provas fortes e essas são
prioritariamente as provas técnicas, os laudos produzidos pelo Instituto de
Criminalística e pelo Instituto Médico Legal ou ainda pelos Departamentos de
Medicina Legal de universidades. Mas não exclui outros tipos de provas: filmes,
fotografias, fitas gravadas, e até mesmo provas testemunhais quando fornecidas
por testemunhas com credibilidade.

As provas técnicas exigem agilidade da polícia: a polícia deve chegar


rápido ao local da ocorrência de modo a garantir a integridade do local e das
evidências. Isto exige que a Polícia Militar, em geral a primeira a chegar ao local,
esteja treinada para manter a área em condições para os peritos e anotar os
dados necessários para a localização posterior de testemunhas (quando houver).
No inquérito ideal também os peritos devem chegar rapidamente ao local e o
médico legista deveria ser um dos peritos presentes.

As provas constantes do inquérito ideal devem permitir aos operadores do


direito responder de modo claro às seguintes perguntas: como a vítima morreu,
quem matou e dar elementos que permitam esclarecer as circunstâncias da
morte, a motivação e a intenção do agressor. Há necessidade de que o inquérito
contenha informações detalhadas sobre o perfil da vítima e o perfil do autor.
Essas informações são essenciais para uma qualificação adequada do homicídio
e sua correspondente punição, compatível com a gravidade da ofensa criminal.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 661

Essas informações são, então, básicas para a atuação dos promotores e dos
juízes.
Essas perguntas exigem uma definição clara da causa mortis e uma
reconstrução o mais fiel possível dos eventos que levaram à morte. Para que isso
ocorra são necessários laudos necroscópicos completos com informações sobre
peso e altura da vítima, uso de drogas (exames toxicológicos), e eventual uso de
armas (exames residuográficos) por parte da vítima. São necessários ainda
informações sobre a trajetória das balas, a distância dos disparos, exames
datiloscópicos e teste de armas, quando apreendidas, para identificar se são as
responsáveis pelos disparos que causaram os ferimentos.

A preservação do local é uma etapa essencial para que boa parte dessas
informações constem do inquérito e o tempo entre o momento da ocorrência e a
chegada das equipe é um fator de grande importância para a obtenção das
provas listadas acima: "Tem que ser uma coisa rápida entendeu? Porque está
tudo ali naquele momento. Daqui a dez minutos pode não ter mais nada"
(delegado 4). Outra condição é a disponibilidade de equipes de policiais civis, de
peritos e do Instituto Médico Legal chegarem rapidamente aos locais de
ocorrência, pois mesmo com o local preservado algumas provas ou evidências
são modificadas pelas condições climáticas.

Os depoimentos de testemunhas, como mencionado acima, também


devem ser obtidos o mais rápido possível, pois "no calor dos fatos a pessoa fala a
verdade. Ao chegar lá no Fórum ela é orientada, ela vai querer mudar a verdade"
(delegado 2). Essa afirmação é corroborada até mesmo por juízes que
consideram o inquérito policial como uma "mera peça informativa" (juiz 2) distinta
do processo de conhecimento que ocorre uma vez aceita a denúncia. Os juízes
aceitam que o depoimento prestado na polícia pode ser mais fiel aos fatos
quando esse depoimento foi fornecido sem qualquer constrangimento. “Mas, por
outro lado também, a gente percebe que a prova produzida na polícia, a
inquirição de testemunha que é feita logo após a ocorrência do crime, ela é mais
fiel à verdade dos fatos. Em juízo você demora seis meses, às vezes anos, pra
colher o testemunho da testemunha. Em juízo ela já sofre uma série de
influências, até esquecimento mesmo, pressão de réu, pressão de família da
vítima, sabe, ela pode chegar aqui já meio deturpada. Tudo isso nós vamos
analisar na hora, quem será, qual será o momento em que ela falou a verdade.
Em princípio você deveria acolher mais a prova na justiça por pelo fato de o réu
ter advogado, tá. Mas às vezes não, às vezes a prova na polícia é melhor por ser
mais próxima cronologicamente ao crime" (juiz 3).
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 662

No encaminhamento do inquérito ideal a população coopera com a polícia


fornecendo informações que complementem as provas periciais. Os depoimentos
testemunhais são, em geral, considerados as provas mais frágeis de um
processo judicial. Se efetivamente o são ou não, isso vai depender da
qualificação das testemunhas. Ou seja, a qualidade do depoimento como prova
depende da "qualidade da testemunha". O perfil da testemunha ideal seria o
seguinte: portadora de maior escolaridade, mais culta, não jovem demais
(criança) nem tão idosa; não portadora de deficiência auditiva ou visual, não
dispor de vínculos com o acusado ou com a vítima; e, por fim, ocupar-se em
certas atividades certas ocupações que exigem maior capacidade de observação,
como por exemplo um desenhista. Esse perfil constitui portanto uma testemunha
com maior peso. Ter maior peso significa que os operadores do direito, quando
têm que escolher entre dois testemunhos divergentes sobre um mesmo fato,
"quando a prova está dividida" (promotor 5), conferirão maior valor àquele
depoimento que se enquadra nas condições acima. Assim os testemunhos não
são considerados como tendo o mesmo valor; e, quando há divergência, em
teoria depoimentos de pessoas com as características acima disporiam de maior
credibilidade. Existem expectativas quanto ao comportamento da testemunha
ideal: o seu testemunho se mantém no tempo, é coerente, não hesita e mostra
segurança; não se confunde, é preciso nas descrições.

O tipo de registro das informações


O ideal é que os depoimentos de todos os envolvidos quer acusados, quer
testemunhas sejam filmados e gravados e as transcrições das gravações sejam
incorporadas na íntegra ao processo. Isso garantiria a fidedignidade dos
depoimentos, o que hoje não ocorre em virtude do modo como os depoimentos
são registrados: o delegado pergunta ao depoente e dita ao escrivão as
respostas.

Os entrevistados entendem que, por maior que seja o cuidado tanto do


escrivão como do delegado, possivelmente ocorrem falhas nessas transcrições.
Essas falhas podem explicar diferenças entre os depoimentos feitos nas
delegacias e aqueles prestados em juízo. Assim, os entrevistados defendem o
uso de tecnologia mais desenvolvida. Havendo a possibilidade de gravação e até
a filmagem dos depoimentos, haveria maior fidedignidade no registro das falas, e
a não coerção dos depoentes. Essas técnicas deveriam ser incorporadas aos
inquéritos policiais. Desse modo evitar-se-ia perder alguns depoimentos, em
especial confissões dos acusados quando esses, em juízo, rechaçam as
confissões como tendo sido obtidas através de tortura: “Olha, quando chega aqui
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 663

coisa também muda. Lá o réu confessou, mas chega aqui em juízo o réu diz:
‘não, eu não confessei. Eu só assinei aquilo’. É o que normalmente se fala, ‘só
assinei porque eu tomei choque, eles me bateram bastante. Então eu nem li o
que lá estava escrito, só assinei pela promessa de que se eu assinasse eles
parariam de me bater’. Isto é uma coisa meio...Então, depende do lado em que
você está” (juiz 2).

Em termos das provas, um bom inquérito policial deveria oferecer algum


tipo de proteção para as testemunhas de modo a que elas pudessem comparecer
em juízo e manter seus depoimentos originais sem nenhum constrangimento ou
risco pessoal.

A infra-estrutura necessária para a coleta de provas e para o


encaminhamento das investigações
Uma coleta ágil de dados e de material para exames exige equipes de
peritos descentralizadas com recursos humanos e materiais para a realização
das tarefas. Essas equipes devem ser bem treinadas, bem pagas, terem carga de
trabalho compatível com as tarefas e estarem à disposição de cada seccional de
polícia.

A condução de um inquérito policial em caso de homicídio é considerado


pelos entrevistados como uma atividade que não pode ser confundida com a
"clínica geral" (promotor 5) da polícia. A condução desse tipo de inquérito exige
especialização e habilidades específicas. Esse fato é reconhecido pelos
delegados entrevistados que também defendem que o ideal é terem equipes
especializadas nas delegacias. “O ideal seria o plantão não trabalhar com
inquérito. O plantão seria só para atender às partes e dar prioridade aos casos de
flagrante, né...(...).[Antes] tinha as chefias dos investigadores e as chefias dos
escrivães... Faziam os inquéritos. Porque eles vinham todos os dias, então, dava
para você agilizar, entendeu? Porque a chefia do investigador tinha duas ou três
equipes de investigadores, então, você distribuía um pouco de serviço pra cada
um e eles davam maior agilidade” (delegado 4). Trabalhando com um mesmo tipo
de delito esses profissionais acumulariam conhecimento, poderiam identificar
padrões de ação delituosa e traçarem perfis de transgressores. Isso permitiria
que os casos fossem elucidados de modo mais rápido e que os inquéritos
pudessem, com maior probabilidade, resultar em condenações.

O inquérito policial ideal, em casos de homicídio, é o que tem sido


produzido pelo Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa em São Paulo
- DHPP, órgão da Secretaria de Estados dos Negócios da Segurança Pública.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 664

Esse inquérito é o ideal por ser essa uma delegacia especializada o que garante
a acumulação de conhecimento. Suas equipes são percebidas como bem
treinadas, e motivadas. Cuidando de um caso do começo ao fim, as informações
não se perdem. Dispondo de seus próprios peritos, obtêm com facilidade e
agilidade exames e laudos.

Como esse Departamento dispõe de melhores condições de trabalho - tem


funcionários treinados, especializados em um tipo de atividade, com muitos anos
de experiência no tema e no mesmo departamento -, consegue reciclar as
equipes e treinar os novos profissionais de modo contínuo. Suas equipes ainda
podem acompanhar os casos no Tribunal de Júri, conhecer seus desfechos e se
auto-avaliarem, pois identificam em que medida o inquérito por eles produzidos
afetou o desfecho do processo.

O estilo, a linguagem e a aparência do inquérito ideal


O inquérito ideal deve ser como "um livro, tem que ter começo, meio e fim"
(delegado 6). Esse inquérito deve ser bem escrito, o português deve ser correto,
e deve ser bem apresentado. Ele deve permitir ao promotor oferecer a denúncia
rapidamente e ao juiz uma manifestação também rápida sobre, por exemplo, um
pedido de prisão preventiva.

Além disso as informações contidas no inquérito devem permitir ao


promotor bom desempenho nos tribunais: "deve poder convencer os jurados lá na
frente, depois de 5 ou 10 anos às vezes a condenar aquele indivíduo" (delegado
1). O inquérito não pode conter falhas técnicas que possam vir a prejudicar a
condenação. Todos os delegados ouvidos parecem ter consciência de que o
“material bruto” para obter a condenação está contido no inquérito, ainda que o
inquérito não seja peça comprobatória mas apenas investigativa. Por isso eles
deveriam: "arrolar o máximo de provas possível para garantir a convicção do juiz.
Ele se baseia em cima das provas que mandamos para ele. Se ficar uma coisa
muito flácida, muito irrelevante, o advogado coloca o cliente na rua" (delegado 4).
Fazer o máximo possível é ter o máximo de provas periciais e de depoimentos de
testemunhas, dando embasamento legal ao promotor e ao juiz "fechando ao
máximo possível esse emaranhado de coisas"(delegado 4).

O relatório do delegado é o momento em que se conclui o inquérito


policial. Esse relatório, em termos ideais, não deve ser opinativo mas deve ser
uma peça que mostre a lógica do inquérito: "deve dar uma seqüência lógica aos
fatos, não opinar" (delegado 5). Não opinar é a percepção predominante entre os
entrevistados. O relatório tem que descrever o que foi feito: o relatório do local, as
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 665

provas colhidas, as perícias realizadas, as testemunhas ouvidas, as pessoas


investigadas e justificar cada um dos passos dados. Os entrevistados
reconhecem que esse ideal é muito difícil de ser atendido, pois mesmo ao
descreverem como se comportou uma testemunha ao depor e "mesmo ao indiciar
uma pessoa (ele) vai estar expressando a sua opinião individual" (delegado 2).

Na produção do inquérito ideal, os policiais estão conscientes que o


promotor irá trabalhar com a memória auditiva dos jurados, já que não há
produção de provas no plenário. Assim o inquérito ideal deveria conter não só o
máximo de provas possíveis mas também o máximo de provas utilizáveis pelo
promotor em um discurso de duas horas frente aos jurados. O promotor necessita
de informações que fiquem gravadas na memória dos jurados, por isso as
informações sobre o perfil das vítimas e dos réus no que tange a valores, estilo
de vida e atitudes ou ainda que descrevem as circunstâncias nas quais o crime
ocorreu são percebidas como essenciais pelos promotores. Essas são as
informações que os jurados tenderiam a guardar. São também informações
essenciais para a classificação correta do delito e para a produção da pena,
permitindo que se estabeleçam as motivações do delito e as intenções do
agressor.

As relações entre os operadores do direito


Como mencionado no sub-item tempo as relações entre os operadores do
direito têm repercussão sobre o inquérito policial e até mesmo sobre a condução
do processo judicial. Há, entre os entrevistados, um grande consenso sobre o
que constitui um inquérito ideal, porém não há consenso sobre qual o tipo de
relação que deveria existir entre os operadores.

Os grupos convergem na defesa da necessidade de se encontrar formas


de melhorar o diálogo entre eles. Esse diálogo é considerado essencial para que
haja confiança mútua. Para os delegados a solução está em agilizar as formas de
comunicação e na ampliação do contato entre os operadores. Para os
promotores e juízes há necessidade de que o Ministério Público acompanhe e
analise os inquéritos como manda a Constituição de 1988. No inquérito ideal,
segundo o ponto de vista da agência policial, o que precisa melhorar é o diálogo
entre os três grupos: delegados, promotores e juízes mantendo-se o respeito à
autonomia das respectivas corporações. Sob a perspectiva dos promotores e dos
juízes, os promotores deveriam acompanhar cada passo da investigação policial
e até sugerir linhas de investigação, pondo em prática o papel que a Constituição
lhes atribui. Um inquérito ideal seria aquele produzido por delegados que
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 666

merecem a confiança dos promotores e dos juízes e que tenha sido


acompanhado de perto por algum promotor.

O conhecimento do desfecho do processo penal


O inquérito policial ideal permite que haja a condenação dos culpados e a
absolvição daqueles que cometeram homicídio em legítima defesa. Apesar do
desfecho processual ser um importante indicador da qualidade do inquérito
policial, em geral ele não é conhecido pelos policiais que nele trabalharam. O
Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa - DHPP é um dos únicos
setores da polícia civil que acompanha o desfecho de seus inquéritos seguindo
os julgamentos para identificar problemas na condução dos inquéritos e assim
obter informações para os cursos de treinamentos que oferecem.

Outros indicadores de desempenho


Apesar das competições existentes entre os operadores do direito,
relatadas acima, os delegados entrevistados revelam que o uso que os
promotores e juízes fazem dos inquéritos e em especial do relatório que o
delegado faz ao final do inquérito é considerado como um indicador da qualidade
do trabalho por eles realizados. Um bom inquérito não volta ao delegado, após
ser encaminhado para a promotoria, com pedidos de novas diligências. Ele
permite ao promotor solicitar a prisão preventiva do acusado e ter esse pedido
aceito, pois confere ao juiz convicção sobre o caso. Um bom relatório do
delegado é utilizado, ainda que em parte, pelo promotor para fazer sua denúncia.

2. O processo penal ideal


O processo penal ideal seria aquele no qual o réu responde ao processo
preso. Isso porque se baseia em um inquérito onde há pouca ou nenhuma dúvida
sobre a materialidade do crime e sobre a culpa do acusado. A fase de instrução
corre rápida: os depoimentos são gravados, o indiciado comparece e não mente
em seu interrogatório, as testemunhas são localizadas e comparecem; as provas
permitem ao juiz uma avaliação segura e uma decisão justa; e, por fim, não há
recurso contra a pronúncia.

No Tribunal de Júri, o juiz mantém a ordem, assegura o respeito aos


direitos dos envolvidos e os jurados são isentos. O réu, se solto, comparece; se
preso, é apresentado pelas autoridades competentes. O promotor dispõe de
informações sobre os motivos do crime, para qualificar corretamente a ação. A
família da vítima está presente para acompanhar o julgamento. As testemunhas
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 667

comparecem e depõem sem constrangimentos ou riscos. Não há pedidos de


diligências complementares durante o julgamento. O juiz elabora os quesitos de
modo claro e o júri entende corretamente o significado das perguntas. Se
condenado, o réu cumpre integralmente a sentença. Não há recurso contra a
sentença ou protesto por novo júri.

Há consenso que o processo penal ideal é resultado de um conjunto de


fatores que vão da qualidade do inquérito policial (ideal), ao desempenho do
promotor incluindo todas as instâncias envolvidas: "ele (promotor) trabalha em
equipe. Quer dizer, o sucesso ou não de uma condenação depende do
promotor... mas essa dependência não é tão grande só do promotor. Por mais
brilhante que o promotor seja, ....primeiro você depende fundamentalmente de
um bom delegado, do trabalho investigatório que o delegado determinou, ... uma
perícia bem feita, de um laudo é... de uma autópsia, de um laudo necroscópico
bem feito... De testemunhas que sejam capazes de reproduzir com mais precisão
aquilo que viram ou deixaram de ver, ou que sejam capazes de darem
informação ou que se prontifiquem a dar as informações, que muitas vezes elas
se recusam a dar. Entendeu? ...Vai depender... até mesmo dos jurados, né, do
que leva os jurados a votar. Muitas vezes do que leva ao jurado votar sim ou não
numa determinada causa. Às vezes o sujeito vota pensando numa outra coisa,
pensando...ele vota pra absolver por pena. Ele vota pra absolver porque ele acha
que se for condenado a pena é muito grave e ele não merece tanta pena né"
(promotor 4).

Ao falarem sobre o processo penal ideal em caso de homicídio, todos os


entrevistados, em algum momento da entrevista, sentiram necessidade de
comparar o que ocorre nos tribunais brasileiros com o que ocorre nos Estados
Unidos ou nas novelas brasileiras. Com isso pretenderam deixar claro que o caso
brasileiro é diferente. As comparações, todas espontâneas, referem-se ao fato do
réu, em caso de homicídio, responder ao processo preso, ao tipo de interação
que ocorre em plenário, ao tipo de produção de prova e ao papel dos jurados.
Observa-se que há insatisfação dos entrevistados com todas esses temas.

O tempo
Assim como o inquérito policial o processo penal não deveria ser
demorado. Os entrevistados revelam que, em média (considerando-se as duas
situações, réu solto e réu preso), o processo penal não deveria durar mais de
dois anos ou até dois anos e meio. Isso é um consenso entre juízes e
promotores: “Em torno de um ano mais ou menos, é a média. Uns vão mais
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 668

rápido, outros demoram mais, mas a média é de um ano para a decisão de


primeira instância. Depois isto fica sujeito a recurso. Sendo que ... a preferência
no Tribunal da Justiça é pelo julgamento dos acusados presos, que giram em
torno de seis meses a um ano para o processo ser julgado e devolvido para a
vara de origem. Quando o réu é solto, este tempo esta em torno de mais ou
menos um ano e meio à dois anos” (juiz 2).

Um processo longo é garantia de impunidade, na perspectiva dos


entrevistados, pelos motivos já apresentados em relação ao inquérito policial.
Quanto mais tempo se passa mais enfraquecem as provas por perda de
testemunhas (não mais são localizadas) e pelo esquecimento das testemunhas
(os depoimentos são menos fiéis) reduzindo a probabilidade de se "descobrir a
verdade real". Aumentando o tempo, aumenta também a probabilidade de
rotatividade nos operadores de direito. Cada vez que um novo juiz ou um novo
promotor entrar em contato com o processo, maior tempo será necessário para
que ele se familiarize com as informações e maior a probabilidade de que alguma
informação se perca. Outro problema decorrente da rotatividade de pessoal são
mudanças na avaliação do processo: "o processo podia estar muito bom para um
promotor mas (vem outro), as testemunhas não foram achadas, o promotor
(novo) pode achar que aquilo é muito pouco ou que as provas da defesa colocam
o resto em dúvida. Se ele não tiver certeza que a pessoa praticou o crime ele não
vai pedir prá pessoa ser condenada. Ele pede absolvição... São tantos problemas
que acontecem depois do inquérito, né porque a prova fica fraca, testemunhas
não são localizadas. Às vezes as testemunhas mudam a versões" (promotor 2).
Além disso, quando uma mesma equipe acompanha o processo judicial ele
correria mais rápido, pois há familiaridade dos membros da equipe com o
conteúdo do processo: “se você fez a instrução do processo inteirinho .....você vai
perder muito pouco tempo. Se você conhece o depoimento, foi você a tomar,
entendeu? Já é diferente um processo, um julgamento no Tribunal, onde você
não teve contato com nada. Você tem que reler, ler inteirinho...”(juiz 2) Assim no
processo ideal, há pouca ou nenhuma rotatividade de pessoal, um mesmo
promotor acompanharia o caso do começo ao fim e um mesmo juiz instruiria o
caso e o presidiria em plenário.

No processo ideal a produção das provas é agilizada: “Tem processo em


que a prova toda é produzida diante do juízo onde foi cometido o crime, então
fica mais fácil para intimar as testemunhas e encontrá-las. Todavia, há outros
casos em que as testemunhas, como a gente chama, são ‘de fora’. Nestes é
preciso pedir carta precatória para que os depoimentos das testemunhas sejam
colhidos no juízo que não seja do processo, então isto demanda tempo” (juiz 2)
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 669

As testemunhas são todas moradoras da localidade onde o processo tramita; os


defensores não utilizam táticas para retardarem o processo tais como arrolarem
testemunhas de outras localidades: “você vê que,... quando eles querem alongar
o processo, levar pra prescrição, é comum eles arrolarem pessoas de Manaus,
arrolar outro do Rio Grande do Sul, outra que não sei o quê, assim...você tem
que ouvir...Sem impedir a testemunha”(juiz 1)

A utilização da prisão cautelar ou da custódia cautelar deveria ocorrer em


todos os casos de homicídio para se evitar que os processos sejam
deliberadamente prolongados por manobras da defesa ou sequer cheguem a
julgamento pelo desaparecimento do réu: "No mundo inteiro ninguém responde
solto casos de homicídio, né? O mundo civilizado inteiro, dá um valor a vida
assim extremo. O Estado não abre mão disto, né? Até em outras coisas o Estado
pode ser um pouco menos rígido e tal. Mas o que ocorre é que em casos de
crimes de homicídio quando a vida humana é um bem tutelado pela lei, protegido,
né?" (promotor 1). Entre os entrevistado, é consenso que, quando o réu está
preso, é do seu interesse e de seu representante legal que o processo ande
rápido. O Código de Processo Penal confere prioridade aos casos em que o réu
está preso. Nesses casos, o advogado do réu evitaria usar de recursos que são
considerados protelatórios, por exemplo, o recurso contra a pronúncia.

O processo ideal é então aquele que tendo boas provas dá ao operadores


segurança para julgar em curto espaço de tempo: "Então você tem segurança,
então você tem condenação num prazo curto, em que a vítima sente que existe
um resposta estatal àquela ofensa ao direito dela efetivo, e que o sujeito vai
cumprir determinada pena" (juiz 5).

A qualidade das provas coletadas


No processo ideal, o juiz aceita a denúncia do promotor, pois esta
denúncia é o resultado de uma avaliação técnica cuidadosa do inquérito e das
provas lá contidas. Como tal, espera-se que se o promotor avalie que houve um
crime que o judiciário aceite essa avaliação. A rejeição da denúncia é entendida
como uma crítica do judiciário ao trabalho da promotoria.

A qualidade da denúncia está atrelada à qualidade das provas constantes


do inquérito policial. O processo penal ideal exige, então, que o inquérito também
seja ideal: deve conter provas técnicas e periciais que provem a relação entre o
indiciado e o ato. Deve fornecer também informações sobre o contexto em que
ocorreu o evento, sobre as motivações e intenções do indiciado. As testemunhas
devem ter credibilidade, serem coerentes, e transmitirem segurança em seus
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 670

depoimentos. Visto que maior peso é dado às provas técnicas o processo ideal
contém mais provas periciais (que sobrevivem ao tempo) e técnicas do que
testemunhais. "As provas periciais não tem a falibilidade da prova oral, porque?...
pois são provas exclusivamente técnicas. Obviamente elas podem estar ai
sujeitas a alguma crítica, mas se nós pudéssemos ....dar um índice para a prova
oral e para a prova técnica, naturalmente, que a prova técnica teria um índice
muito maior do que a prova oral. O aspecto é técnico e guarda vinculação com a
perícia.. Isto para um juiz é um dado concreto que se fica sujeito a crítica. Não
fica na mesma medida em que fica a falibilidade do ser humano “ (juiz 2).

Isso não significa que os operadores dispensem as provas testemunhais,


ao contrário elas são consideradas como provas muito importantes desde que
fornecidas por testemunhas com o perfil que valorizam: "Eu acho que, eu acho
que a prova científica é importantíssima, né, mas num primeiro momento, pra
saber qual a causa da morte. Agora, pra se verificar a responsabilidade do réu, a
prova testemunhal é indispensável” ( juiz 3).

No processo ideal, o réu não poderia mentir durante o seu interrogatório


em juízo. Hoje isso é permitido pela legislação atual, pois o interrogatório do réu
pelo juiz é considerado como uma forma dos indiciados apresentarem sua
defesa/versão dos fatos. Isso não é considerado perjúrio e, segundo o ponto de
vista dos juízes entrevistados, deveria sê-lo: “cada vez que eu interrogo, eu
alerto, você não tá obrigado a responder nenhuma das minhas perguntas, só que
o seu silêncio pode ser interpretado em prejuízo da sua defesa. No Brasil não
existe o perjúrio, ...existe no direito americano.... mesmo o réu lá tem que dizer a
verdade. Aqui não, ele não é obrigado, ele dá a sua versão, dá a versão que ele
quer, e ela pode ou não encontrar coerência com as provas nos autos. Só que se
ele negar o fato e a prova nos autos vier confirmar oficialmente que realmente
não foi ele, ele é absolvido, tá. Se ele negar o fato e a prova toda for em sentido
contrário, ele vai ser condenado, ainda que tenha negado...A confissão é uma
prova também, a confissão espontânea em juízo, além de elemento probatório, é
uma atenuante, tá. O nosso código penal prevê ao réu que confessa, atenuante.
Confessa espontaneamente, perante a autoridade policial ou judicial é uma
atenuante, quer dizer, pode importar numa fixação de pena, no mínimo, menor. A
lei do crime organizado prevê inclusive outros benefícios pra aquele réu que
confessa e indica os parceiros etc. Então, no nosso código penal já existe o
benefício da confissão, outros estão sendo criados por leis novas”(juiz 4).

Um dos entrevistados sugeriu que o Brasil deve ser o único país do mundo
em que é permitido ao réu mentir. No processo ideal, o indiciado não poderia
mentir em seu interrogatório: “Aqui parece que é o único país em que o réu pode
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 671

mentir é no Br. ...Não tem nenhuma pena pra isso, aqui é considerado o
interrogatório dele não como uma prova, mas como meio de defesa, é meio do
réu se defender, então ele pode mentir. Eu também acho que tá errado, devia ter
uma pena... Mentiu, ele vai ter a pena agravada, qualquer coisa assim, e se ele
confessar ele pode ter a pena atenuada, tem, se ele mentir não vai ter a pena
agravada" (juiz 3).

As provas coletadas na instrução devem ser de tal qualidade a permitir que


o juiz as examine e possa chegar a uma conclusão clara sobre as intenções do
acusado: "O juiz faz um juízo de valor sobre as provas para saber do elemento
subjetivo do crime, da intenção do agente, ou se ele agiu por imprudência,
imperícia ou negligência, ou se ele pretendia o resultado diretamente ou se ele
assumiu o risco de produzir esse resultado....Nem sempre isso é fácil de se fazer
por quem você vai ter que valorar toda prova, os depoimentos colhidos para
saber se ele agiu de uma forma ou de outra" (juiz 2). Esta atividade de avaliar as
intenções do agente é considerada a tarefa mais difícil do juiz.

O tipo de coleta e de registro das informações e a infra-estrutura


necessária para a coleta de provas
Os depoimentos na instrução são muito demorados devido a uma
complexa triangulação. O promotor pergunta ao juiz que ai dirige a pergunta ao
depoente. As respostas são ditadas pelo juiz ao escrivão: “aí o juiz pergunta o
que a pessoa sabe. E aí a pessoa vai relatar pra ele. E o juiz, ele reproduz, ele
escreve, ele dita pra escrevente aquilo. Depois os advogados e o promotor têm a
oportunidade também de fazer perguntas às testemunhas...através do juiz,
sempre através do juiz. Porque o sistema nosso é diferente do americano que
você vê em filme...O americano, você vê o advogado, o promotor perguntando
diretamente, aqui não” (juiz 1). Essa triangulação teria como origem uma
preocupação em proteger os depoentes de potenciais manipulações por parte do
promotor ou da defesa: "para evitar perguntas capciosas" (promotor 3).

Hoje, isto está sendo percebido como um artifício pouco eficaz, pois de
qualquer modo o depoente ouve a pergunta que o promotor/advogado faz ao juiz.
Além da técnica ser confusa, ela faculta múltiplas interpretações. O juiz interpreta
o que o promotor/advogado perguntou e interpreta a resposta do depoente. Os
depoimentos assim obtidos não são considerados fiéis ou precisos e podem dar
margem a discrepâncias entre a informação que foi levantada no inquérito e as
provas em juízo: "quem dita as declarações aqui é o juiz e na delegacia é o
delegado, quer dizer pode haver uma simples divergência pelo fato de duas
pessoas diferentes estarem ditando" (juiz 3). Há uma preocupação, entre os
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 672

juízes, com a fidedignidade da interpretação que o magistrado faz do que o


depoente disse. É interessante que essa preocupação dos juízes não alcance
promotores/advogados no exercício da mesma operação. Talvez porque
percebam que esses profissionais podem contestá-lo quanto a eventual
possibilidade desta crítica lhes ser imputada como comportamento subjetivo ou
arbitrário. As mudanças que defendem corrigiriam qualquer um dos tipos de erros
possíveis. Os juízes defendem que, no processo ideal, as tomadas de
depoimento sejam filmadas, gravadas e as transcrições feitas com auxílio de
computador: "Hoje já é decodificado pelo computador. Ela vai fazendo e você vai
vendo no vídeo. Aí você pega na íntegra o que a pessoa tá falando, com as
palavras dela. Você lê o depoimento e você vê assim que às vezes a pessoa fala:
'eu tô cansado', aí ele escreve assim 'eu tô cansado'... vai ser bem fiel ao que a
pessoa tá dizendo.... E não escapa nenhuma palavra. Porque no depoimento
comum, onde o juiz ditava prô escrevente... então ouve o que o cidadão diz, você
interpreta e edita. E às vezes pode faltar fidelidade. Veja, às vezes tem problema
de vocabulário, entende? Porque é interessante aí dependendo da região eles
usam vocabulário que a gente não está acostumado. Você acaba distorcendo o
que foi dito... A reprodução autêntica do que ele diz é muito mais fiel e prá
descobrir a verdade é muito importante.(.....) se você faz uma reprodução
autêntica do que ele diz, que fica muito mais fiel. Que pra você descobrir a
verdade é muito mais importante” (juiz 1). Nesse novo procedimento o juiz
permitiria perguntas diretas da defesa e da promotoria aos depoentes garantindo
que as perguntas fossem adequadas ao contexto.

A separação entre o Ministério Público e o Judiciário deveria ser total,


inclusive no que se refere às instalações. Os promotores sentem-se
constrangidos por ocuparem espaço dentro dos Fóruns ou tribunais e defendem
a necessidade de instalações independentes.

Outro aspecto da infra-estrutura, necessária ao encaminhamento dos


processos de homicídio, refere-se aos cartórios. Idealmente estes deveriam estar
informatizados de modo a que todas as medidas solicitadas pelos operadores
jurídicos fossem atendidas e monitoradas de modo mais ágil. A informatização
dos cartórios daria também maior confiabilidade ao trabalho do sistema de justiça
penal.

As etapas do processo
No processo ideal deveria haver maior poder para o juiz simplificar o
processo de instrução sem com isso pôr em risco as garantias de ampla defesa
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 673

do acusado. Essa simplificação ocorreria principalmente nos casos de prisão em


flagrante, com réu confesso ou onde todos (promotor, defesa e juiz) concordam
que houve legítima defesa.

O processo se inicia com a instrução e isso requer o interrogatório do


indiciado e a tomada de depoimento, em juízo, das testemunhas selecionadas
pelo promotor e pelo advogado de defesa. O procedimento atual é considerado
muito longo, reproduzindo o que foi feito no inquérito. A maioria dos juízes
entrevistados está insatisfeita com essa duplicação de esforços e com a forma
como os depoimentos são coletados e registrados. Os operadores do direito
sugerem que, no processo ideal, a agilidade seria alcançada se fossem
modificadas as etapas do processo, por exemplo se for eliminada uma das fases
de tomada de depoimentos ou aquela que ocorre na polícia ou a que ocorre no
judiciário. Se forem eliminados os depoimentos na instrução, então os
depoimentos colhidos pela polícia terão que ser feitos na presença de um
advogado e o promotor necessariamente deverá atuar como titular da ação
penal. Se forem eliminados os depoimentos na polícia, seria feito um juízo de
admissibilidade. partir do qual se instauraria o processo judicial, ou seja a ação
penal ocorreria simultaneamente às investigações. O promotor trabalharia junto
com a polícia e os suspeitos/indiciados seriam acompanhados desde o início por
seus advogados: “(Hoje)....as testemunhas podem ser ouvidas três vezes: uma
na fase do inquérito policial, outra durante a instrução, antes da pronúncia, .....e a
terceira vez no plenário, durante o julgamento, na presença dos jurados... poderia
ser suprimido uma dessas fases. Talvez a fase em juízo, né, se já tem a prova no
inquérito, (teria) a obrigatoriedade do réu ter advogado durante a instrução
policial, né, aí suprimiria a fase na justiça, .... o réu já iria pra julgamento no
tribunal do júri, aí sim, ouviria novamente as testemunhas, já na presença dos
jurados....(....) deveria mudar a legislação, promotor acompanharia também a
instrução, o inquérito e o réu teria, teria a obrigação de ter um advogado“ (juiz 3).

A eliminação de etapas do inquérito ou do processo penal é defendida por


promotores e juízes entrevistados; os delegados não tocam nesse tema. Isso é
compreensível porque qualquer alteração nesse processo afetará o modo como
conduzem os inquéritos. Da parte do Ministério Público, essas mudanças são
desejáveis porque: “o inquérito, quer queira quer não, ele tá funcionando muito
como um processo também....embora não tenha a presença do advogado... Em
juízo normalmente vai se reproduzir as provas que foram colhidas na fase
inquisitiva, notadamente depoimento de testemunhas, certo? Então na verdade
você veja: é um processo que ele se prolonga, ....ele poderia... você eliminaria,
ou como é que se restringiria a questão do inquérito, porque, por exemplo, em
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 674

outros países você faz direto, a produção da prova ele é feita automaticamente,
concomitantemente à instalação do procedimento penal. Quer dizer, você tem um
procedimento num juízo preliminar de admissibilidade da acusação.... já vamos
ouvir as testemunhas perante o juiz” (promotor 4).

Essas mudanças estão interligadas: se o promotor efetivamente passar a


fiscalizar o inquérito policial, pode-se eliminar etapas do processo; por sua vez,
isso exigirá o aumento do número de promotores e a criação de uma infra-
estrutura de acompanhamento do trabalho dos policiais: “A mudança teria que
ser a partir do inquérito. O promotor tem que trabalhar no inquérito policial, para
isso é preciso aumentar o quadro de promotores. Para isso é preciso repensar o
Ministério Público em algumas coisas” (promotor 5)

No processo ideal, o recurso contra a pronúncia seria eliminado. Isso


garantiria a agilidade do processo e não afetaria os direitos do acusado pois,
segundo os entrevistados, o recurso contra a pronúncia serve apenas para
prolongar o processo, sobrecarregando ainda mais os tribunais: segundo os
entrevistados, a grande maioria desses recursos (mais de 90%) é rejeitada pelos
tribunais: “a pronúncia é a regra, normalmente os crimes dolosos contra a vida
são julgados pelo júri. Então esse recurso é extremamente protelatório. A lei não
devia prever esse tipo de recurso, porque o réu ganha tempo e o tempo apaga
tudo” (promotor 5). A fase do libelo acusatório, de responsabilidade do promotor,
também poderia ser eliminada sem prejuízo para a acusação, segundo os
entrevistados, pois atualmente o libelo só faz repetir os termos da denúncia. Um
vez no plenário do júri, o processo ideal dispensaria as diligências
complementares, uma possibilidade aberta à defesa e que esta, segundo os
entrevistados, nunca utiliza.

No Tribunal do Júri, o procedimento ideal seria que todos os debates


fossem gravados e transcritos e não apenas os depoimentos das testemunhas e
o interrogatório do réu. A gravação permitiria recuperar os debates no Tribunal de
Júri em sua integridade e dirimir dúvidas posteriores, até mesmo embasar pedido
de novo julgamento: “Acontecido alguma nulidade, ela tem que ser manifestada
pelas partes na hora...Porque o procedimento do julgamento no plenário é um
procedimento oral. Então, não adianta depois o promotor falar assim ‘Ah, mas
aconteceu isso!’. Bom, mas onde é que tá escrito que aconteceu isso? Só há um
registro sucinto dizendo assim ‘O promotor requereu a condenação nos termos
do libelo’. ‘O defensor requereu a absolvição usando tais e tais teses’. Mas não
fica tudo gravado..., impossível. Não existe gravação, tá? No Brasil, nós ainda
não temos isso. Então, o que é, o que é reduzido a termo? O interrogatório... o
interrogatório do réu... os depoimentos das testemunhas, só. Fora isso, os
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 675

debates são orais” (promotor 2). A gravação serviria também para os


participantes monitorarem seu desempenho e captarem como os jurados
receberam os argumentos utilizados.

Plenário do júri
O corpo de jurados deve ser idôneo, não ter laços de parentesco com os
operadores do direito, não ter vínculos com vítima e/ou agressores, ter
capacidade de compreender os debates e os quesitos que terão que responder.

Deveria ser possível julgar réu revel para evitar o adiamento de


julgamentos, especialmente naqueles em que havendo forte possibilidade de
condenação, o réu, instruído pelo advogado, se evade. A condenação não é
necessariamente o epílogo de um processo ideal, pois casos de legítima defesa
podem acabar indo a plenário de júri, mas deveria ser o epílogo de um processo
bem formulado, com provas claras, com testemunhos fortes. A condenação é
entendida como tendo um efeito pedagógico: "Quando você pune, você não está
só retribuindo pelo crime que praticou como você está dizendo a tantos outros
que não cometa a mesma coisa porque a conseqüência vai ser aquela. Dai
porque a impunidade incentiva a criminalidade e isso é verdade mesmo.
Mormente a criminalidade contra a vida" (promotor 1).

O promotor deve analisar cuidadosamente o processo para avaliar as


provas e encontrar uma maneira de traduzi-las para os jurados: "O promotor e o
advogado são os técnicos, eles é que tem que simplificar, traduzir pro jurado em
termos leigos, a prova do processo. Então não é o júri que não trabalha bem, por
vezes são esses profissionais que não sabem realizar bem seu trabalho prá
esclarecer os jurados, né? "(promotor 3).

Deve, o promotor, discernir dentre as provas que dispõe, quais


eventualmente podem ter maior impacto frente aos jurados, que serão lembradas
por eles e que poderão ajudá-los a responder aos quesitos, como o promotor
deseja. Aqui entram as emoções: "o ser humano de uma forma geral ele sabe o
que é o amor, ele sabe o que é o ódio, ele sabe o que é a violenta emoção, ele
sabe o que é a legítima defesa. Ele sabe o que é o valor da vida, não é? Ele sabe
o que significa a morte. No âmbito assim dos sentimento do ser humano, né?
Então são essas emoções é que são trabalhadas num processo do júri. Isso, isso
então eu considero que é mais importante do que ser técnico" (promotor 3). Isso
é que justifica que o promotor deva estar preparado para fazer "o teatro, fazer júri
é interpretar o mal, o dano da violência, a dor da violência" (promotor 1). Mais do
que apresentar provas, o promotor precisa ter elementos para discutir os valores
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 676

dos envolvidos. Não bastaria esclarecer quem é o autor; seria necessário que o
promotor dispusesse de elementos sobre o comportamentos da vítima e do
agressor para que possam "remexer os valores das 7 pessoas do povo"
(promotor 3). Se o promotor não "preencher a lacuna das circunstâncias, o
advogado de defesa vem e preenche” (promotor 1) e, nesses casos, sempre em
vantagem do acusado.

São as lacunas do processo que justificam também o recurso, no processo


ideal, aos antecedentes do réu (caso eles existam) para dirimir possíveis dúvidas
dos jurados: "até mesmo se você tem um processo que ....a prova que ele
cometeu aquele crime não está, digamos assim muito boa, não está né há
grande possibilidade de se suprir essa eventual lacuna com os antecedentes.
Então o jurado põe o seguinte raciocínio na cabeça: 'bom ele é mesmo, o cara
não presta, é bandido, só pode ser ele'. Então esse tipo de concepção também
acontece....Há países, me parece que, eu não tenho certeza, nos Estados Unidos
você não pode falar nada da vida pregressa do indivíduo. Ele pode ser o maior
bandido, ele pode ter matado 20 ou 30 anteriormente, que essas questões não
podem ser discutidas no caso do julgamento. É certo? Não é. Muitas vezes é
bom senso. Se você usar o bom senso né ...olha o sujeito furtou ali, furtou lá você
encontrou o mesmo sujeito, furtou de novo.(....) Vamos supor que você tenha
alguns elementos de prova que eles seriam mais difíceis de conhecimento dos
jurados, quer dizer haveria uma margem a dúvidas esse momento é suplantado
com os antecedentes...Quer dizer os antecedentes passam a ter uma importância
razoável na condenação principalmente quando você não tem (outras provas)"
(promotor 4). Interessa menos se o caso específico se enquadra no padrão
anterior e mais a possibilidade de generalização do comportamento.

Ainda no processo ideal, as testemunhas são protegidas de qualquer


constrangimento por parte do réu, da família do réu ou ainda da vítima: “instalar
as testemunhas num local, acho que isso seria imprescindível, pra evitar aquele
contato, porque eu acho que quem já foi vítima de um crime, não tem que passar
por nenhum outro constrangimento ... Eu podendo, eu evito mesmo, então
dificilmente acontece esse tipo de coisa. E mesmo assim quando acontece, já
não são aqueles delitos graves. Porque os graves, eles já estão presos, eu faço
tudo de uma maneira, a vítima simplesmente não vai ver o réu, a não ser no
momento de fazer o reconhecimento, não precisa nem ficar aqui na frente,
assistindo, justamente pra evitar. Eu acho que o réu tem todos os direitos, mas a
vítima também. Já passou por um constrangimento uma vez, porque vai ficar aqui
de novo frente `a frente, às vezes, passando medo" (juiz 4).
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 677

Nesse processo ideal, a família da vítima está presente no plenário do júri.


Essa presença vai motivar o promotor e dar um sentido para o trabalho dos
jurados, equilibrando a presença do réu e de sua família, mostrando que uma
outra família foi agredida e que espera uma reparação: "Você não tenha dúvida
de uma coisa: quando você tem contato com as pessoas (família da vítima), não
que seu trabalho vá ser melhor ou pior, mas muito mais motivado... Porque você
vê a importância do seu trabalho..." (promotor 5).

O juiz deve zelar pela legalidade do processo, garantir um tratamento


civilizado entre os operadores mantendo a ordem, formulando os quesitos e
instruindo os jurados quanto ao comportamento deles e quanto ao
sentido/significado dos quesitos: "o juiz é fundamental, principalmente para
explicar os quesitos, que são as perguntas que são feitas aos jurados para eles
responderem, que vai ser com base na resposta a esses quesitos que vai ser
dada a sentença condenatória ou absolutória e o juiz tem que explicar muito bem
e de forma totalmente imparcial prá que o jurado não possa tender prá um lado
nem prá o outro" ( juiz 3).

A condenação é considerada o epílogo mais provável de um processo


judicial de homicídio que chegou a ser julgado pelo Tribunal de Júri, para maioria
dos entrevistados. Isso não garante que a pena seja cumprida. A maior frustração
dos promotores, juízes e delegados é que, quando ocorre uma condenação por
homicídio, o número e os tipos de benefícios existentes garantem que seja
cumprido uma pena quase que simbólica. Esse fato é criticado por todos os
entrevistados que defendem mudanças no Código Penal para eliminar os
benefícios. De acordo com esses entrevistados, não é necessário aumentar as
penas mas cumpri-las integralmente: “Então o réu é condenado a 12 anos por um
homicídio qualificado, é um crime grave. Se ele cumprir 1/6 em regime fechado,
ele já pode ir pra colônia agrícola, então, 2 anos, ele já vai pra uma colônia
agrícola. Depois mais dois anos, ele já pode receber o livramento
condicional....(....) ...teria que mudar, desses benefícios, porque se é imposta
uma pena de doze anos, que cumpra os doze anos, né. ou então, vamos (ter)
uma pena mais severa, pra que o benefício não represente muito” (juiz 3). O não
cumprimento integral da pena alimentaria na sociedade a sensação de
impunidade. Esse sentimento seria agravado em virtude da pena mínima imposta
ao homicídio simples o que, sob a perspectiva dos entrevistados, merece hoje
pena mais branda do que aquela imposta ao roubo: “Quando você valoriza o
patrimônio. .....o homicídio simples é punido com uma pena mínima de 6 anos e
um roubo à mão armada com 5 anos e 4 meses, você vai notar que é quase a
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 678

mesma coisa. No meu modo de pensar você tirar uma vida é muito mais grave do
que tirar de uma carteira 10 reais” (juiz 5).

O processo penal ideal deveria ainda eliminar a possibilidade de “protesto


por novo júri”, o que ocorre sempre que a pena for igual ou superior a 20 anos de
reclusão, pois esse tipo de recurso estaria inibindo os juízes quando da decisão
sobre a sentença adequada: “recurso de protesto por novo Júri”, por exemplo,
recurso por novo Júri é um recurso absurdo.... O que é protesto por novo Júri?
Diz o seguinte: se o indivíduo for condenado a uma pena superior a 20 anos, ele
automaticamente tem direito a um novo julgamento, entendeu, tem esse... Sabe o
que acontece? Os juízes quando chega uma situação em que ele vê a
possibilidade de dar uma pena dessa natureza, o que ele faz? Ele não dá a pena,
então ele dá 19 anos, para evitar o protesto por um novo Júri” (promotor 4). Essa
obrigatoriedade de recorrer contra o quantum da sentença também seria mais um
fator a sobrecarregar os tribunais. Há ainda o impacto sobre a sociedade que se
animara com a punição para se frustrar mais adiante, caso a sentença não seja
mantida ou devido à aplicação dos benefícios de redução da pena.

O processo penal ideal seria facilitado pela implementação dos Juizados


Especiais Criminais, que dariam maior agilidade à polícia, ao Ministério Público e
à Justiça Penal, reduzindo o número de inquéritos e de processos para instrução:
“Esse novo tribunal especial criminal que tá sendo...Agora, isso vai, vai auxiliar
muito, vai ajudar muito a polícia. Vai ajudar muito o poder judiciário também, né?
...É, as contravenções penais vão ser julgadas rapidamente. Isso é muito
importante. Vamos ter mais condições de investigar os crimes graves” (delegado
3).

3. O inquérito policial real


É grande a distância entre o inquérito ideal e o real e o mesmo se dá em
relação ao processo ideal e real. A maioria dos casos de homicídio, hoje em dia,
é de autoria desconhecida. Esses casos têm grande chance de permanecerem
sem elucidação, pois a polícia tem dificuldades em chegar rápido ao local do
crime. Quando o faz, com freqüência o local não está preservado o que resulta
em pouca ou nenhuma evidência a ser periciada.

Os grupos encarregados de periciar o local (Instituto de Criminalística - IC


e o Instituto Médico-Legal - IML) demoram para fazê-lo e quando chegam quase
nada resta da cena do crime. Há pouca ou nenhuma testemunha dos eventos
disposta ou localizável para depor no inquérito. As famílias das vítimas não
acompanham o inquérito. Poucos exames e perícias são realizados e quando o
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 679

são demoram para serem anexados ao inquérito e não são conclusivos o


suficiente para dar segurança para os operadores se pronunciarem. Há pouca ou
nenhuma investigação por diferentes motivos: as equipes têm que cuidar de um
grande número de inquéritos; há constante rotatividade de pessoal; há perda de
informação (pela falta de memória dos eventos); faltam equipamentos; e o
acesso às testemunhas é precário. Os distritos policiais que deveriam cuidar dos
casos de autoria conhecida aparentemente não conseguem fazê-lo: cuidam do
casos de prisão em flagrante e que não requeiram investigações suplementares.
Se tiverem que localizar testemunhas e/ou convencê-las a depor, o caso já se
complica. Com poucas provas periciais, com pouca ou nenhuma testemunha,
mesmo esses inquéritos podem se prolongar no tempo e não redundar em
condenação. De modo geral, a tendência é de que os casos se arrastem no
tempo e terminem sendo arquivados. Inquéritos demorados acabarão merecendo
vários pedidos de dilação de prazos submetidos ao Ministério Público.

As relações entre os membros do M.P. e a polícia são tensas e marcadas


pela desconfiança mútua. Há pouca cooperação e muita rivalidade. Os
promotores concordam com os pedidos de dilação do prazo dos inquéritos, mas
não o fazem por terem realizado uma análise atenta do inquérito ou por
confiarem no encaminhamento que os policiais responsáveis estão conferindo às
investigações, mas por falta de tempo, por estarem sobrecarregados.
Aparentemente à medida em que consentem com mais prazo para o inquérito,
mais aumenta sua suspeita quanto ao desempenho da polícia. Os canais de
comunicação entre os operadores do direito são muito formais e complexos, o
que agrava os problemas de comunicação entre eles.

Raramente os delegados conhecem o epílogo dos inquéritos, pois eles


demoram muito, vários delegados passam por um mesmo caso, os policiais não
são chamados a depor na fase de instrução (quando o caso chega até essa fase)
e menos ainda no tribunal de júri.

Os casos de autoria desconhecida deveriam ser investigados, se a vítima


não morreu no local, pelo distrito policial da área. Porém, a sobrecarga dos
distritos é tamanha que sequer esses casos conseguem investigar. A tendência é
de encaminhar todos os inquéritos de homicídio para o Departamento de
Homicídios e Proteção à Pessoa - DHPP. Ainda assim, parte dos casos de
autoria desconhecida será arquivada por falta de evidência quanto à autoria. Uma
parte desses casos, segundo os entrevistados, seria de autoria conhecida pela
população do local onde ocorrem mas a população não auxilia a polícia em suas
investigações. Outra parte requereria investigações que a polícia não tem
condições de realizar ou por não ter equipes disponíveis e/ou os equipamentos
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 680

necessários, ou porque esses casos exigiriam investigações mais complexas


para as quais a polícia não dispõe de recursos humanos e/ou materiais. Os
delegados entrevistados parecem estar preocupados com a falta de elucidação
de casos em geral, não distinguindo aqui os homicídios dentre os outros delitos,
mas sim a crescente incapacidade da polícia em investigar qualquer delito.

Os operadores entrevistados percebem que existem hoje duas


modalidades de inquéritos policiais de homicídios: os inquéritos feitos pela
Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa (DHPP) e aqueles
produzidos pelos Distritos Policiais. O DHPP, por definição, só atuaria nos casos
de autoria desconhecida, quer quando a vítima ainda está no local do crime
(casos recentes) quer aqueles casos que o Distrito Policial da área tentou
investigar mas, não tendo obtido sucesso, os encaminhou ao DHPP (casos mais
antigos). Apesar de trabalhar com casos de autoria desconhecida e notoriamente
mais difíceis de serem investigados, pois os casos ocorreram há mais tempo, os
inquéritos do DHPP são percebidos como muito próximos do ideal: porque têm
começo meio e fim, as perícias necessárias são realizadas; as provas são bem
feitas; todos os depoimentos são tomados. O inquérito é percebido pelos
promotores como contendo todas as informações que os promotores necessitam
para fazerem uma denúncia adequada. Os policiais do DHPP, encarregados dos
inquéritos, acompanham o processo até o julgamento; o desfecho dos casos é
usado para avaliar as provas coletadas e o encaminhamento que ofereceram às
investigações.

Em contraste, os inquéritos produzidos pelos Distritos Policiais são


considerados um verdadeiro desastre: "são terríveis, são mal feitos. Eles não têm
idéia de coisa nenhuma, enfim é um horror... eqüivale a eu chamar, por exemplo,
dez pessoas para juntar peças e essas pessoas sequer sabem o que é que vai
acabar. O que vai acontecer depois que a gente juntar essas peças todas? Sei lá!
Vai sair um automóvel, vai sair uma motocicleta, vai sair um barco" (promotor 1).

A maior diferença entre os operadores do direito ao se referirem ao


inquérito policial real, no caso de homicídio, está em que, enquanto os delegados
dos distritos policiais enfatizam os obstáculos para realizarem o inquérito, os
promotores e juízes realçam as falhas encontradas nos inquéritos as quais vão
impedir a realização da justiça.

São vários os fatores que contribuem para que os inquéritos sejam longos
e inconclusivos. Eles envolvem rotinas de trabalho, recursos humanos e
materiais, não só da polícia civil como de outras instituições de apoio (Polícia
Militar, IC. IML), divisão de tarefas e de responsabilidades entre instituições,
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 681

relacionamento entre instituições e entre os operadores do direito - em especial a


forma de comunicação entre eles -, relacionamento da polícia com a comunidade
e imagem que a polícia tem junto à comunidade. Esses fatores vão afetar o
tempo que o inquérito leva, a qualidade da evidência coletada e o desfecho do
inquérito. Esses fatores parecem interagir alimentando um círculo vicioso.

O tempo
O inquérito policial real, no caso de homicídio, tem como prazo limite o
tempo de prescrição desse delito. Como esse tempo é de 20 anos, esse é o
tempo que os operadores percebem como o prazo limite do caso. No Código de
Processo Penal, como dito anteriormente, esse prazo é de 30 dias. Nos dias de
hoje esse prazo é considerado como impossível de ser preenchido. “O Código de
Processo Penal diz o seguinte que estando no caso do homicídio, o réu, o
indiciado solto, eu tenho 30 dias pra investigar. Sendo que eu posso, diante da
complexidade das investigações, solicitar maior prazo. E, normalmente, quando a
gente pede prazo pra o poder judiciário, eles vão concedendo pra gente. A gente
só tem que tomar cuidado com a prescrição do crime. No caso de homicídio
prescreve em vinte anos. Mas outros crimes, contravenções, prescrevem em um
tempo muito menor. Às vezes, um ano. Então a gente tem que ter esse cuidado
pra não prescrever” (delegado 2).

A necessidade de um prazo maior para a conclusão do inquérito já seria


um consenso entre os operadores do direito. Segundo um dos entrevistados,
estaria em curso um acordo entre eles de que o prazo mínimo é de 90 dias. Esse
acordo seria uma alternativa de redução para reduzir a sobrecarga de tarefas de
todos os envolvidos (delegados, promotores, funcionários dos cartórios e juízes)
e agilizar o inquérito: ”Depende do juiz. Só que eles tão chegando à conclusão
que, .... que o tempo que se leva da ‘burrocracia’, aí é que eu digo ‘burro’, não é
burocracia, de ir e vir de 30 em 30 dias, e se perder 10, l5 dias nesse
trâmite....eles chegaram à conclusão que é preferível dar o óbvio; uma reunião
que nós tivemos com eles, chegamos à conclusão que 90 dias é um tempo médio
de esclarecimento de um crime,” (delegado 5).

O não preenchimento dos prazos é uma das potenciais fonte de conflitos


entre a polícia civil e o Ministério Público, pois a cada 30 dias os delegados têm
que solicitar uma dilação dos prazo para continuarem as investigações. Nessa
ocasião, de certo modo, submetem-se a uma análise por parte do Ministério
Público da forma como estão conduzindo o inquérito, que pode redundar em
censura: “Porque todos os inquéritos têm prazo. Além do prazo de prescrição...
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 682

são dois anos para você concluir, até o final do processo. Mas se em um ano,
dois anos você... O promotor já começa a mandar carta malcriada.....Aí o que
acontece, muitas vezes acaba expirando o prazo no próprio Fórum, entendeu?”
(delegado 4).

Os pedidos de dilação de prazos deveriam ser examinados caso a caso.


Na prática, isso não vem ocorrendo. Premidos pelo volume de trabalho, os
promotores vem desenvolvendo critérios para selecionar quais processos terão o
pedido de dilação examinados e com quais concordarão sem exame: "O
promotor é massacrado por uma avalanche de inquéritos com pedidos de prazo e
assina concordando, em geral.. Dependendo do número dá prá olhar, pelo menos
fazer uma triagem de olhar a data do crime e o tipo de crime... Olha essas datas
buscando os casos que correm o risco de prescrever, aqueles que estão
próximos disso ele seleciona e examina com maior cuidado e se for o caso
denúncia antes de terminar a coleta de provas para não perder o prazo"
(promotor 3).

Um dos critérios então é observar a data da ocorrência para que o


processo não seja arquivado por prescrição. A concessão quase automática do
pedido de dilação de prazo não resulta de um aumento de confiança dos
promotores na atuação dos delegados, mas resulta de uma impossibilidade que
provoca desconforto: "(Na teoria) seria o caso de fazer essa avaliação se é de se
conceder ou não o prazo.. Mas na prática é impossível...você recebe uma média
de 10 a 15 inquéritos por dia pedindo prazo... Você tem audiência, você tem que
inquirir testemunha em outros processos em andamento, você temos júris pra
fazer, então não dá” (promotor 4).

Vários são os fatores que impossibilitam o cumprimento desse prazo,


mesmo pelo DHPP e esses fatores vão afetar não só o prazo mas a qualidade do
inquérito:

a) falta de material/evidência para exames e perícias técnicas, o que por


sua vez decorre da falta de preservação do local do crime, da falta de equipes de
policiais civis especializadas para “fazerem o local”, e da falta de equipes dos
institutos (IC e IML) para chegarem rapidamente ao local;

b) rotinas de trabalho, volume de trabalho e rotatividade de pessoal nos


distritos policiais;

c) falta de equipamentos e materiais para IC e IML realizarem exames,


falta de recursos humanos, rotinas de trabalho e volume de trabalho do IC e do
IML;
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 683

d) relacionamento da polícia com a comunidade; e, por fim:

e) relacionamento entre os agentes.

A infra-estrutura necessária para a coleta de provas, para o


encaminhamento das investigações e seu impacto sobre o tempo
(a) Preservação do local e o comprometimento das provas materiais

Tanto os inquéritos policiais produzidos pelo DHPP como pelos Distritos


Policiais são descritos como originários de situações opostas àquelas que se
vêem em filme americano: "tá o morto lá chega o delegado, chega o investigador,
chega já o legista, já bate a fotografia, já preserva o local, já colhe o sangue, já
colhe a impressão digital etc."(promotor 5). A queixa geral dos policiais civis e dos
promotores é que raramente o local do crime é preservado: a população, os
parentes da vítima e os próprios policiais militares (em geral os primeiros policiais
a chegarem ao local), todos contribuem para tumultuar a cena. Os problemas vão
desde a remoção de corpos para hospital (porque a polícia e/ou a família não
conseguiram detectar que a vítima estava morta), passando pela remoção de
peças do vestuário da vítima pela família (tênis) até à retirada de cápsulas
deflagradas do local onde os projéteis alcançaram (a população as retira para
guardar como souvenir e a Polícia Militar para entregá-las aos peritos policiais).

Não são poucos os problemas que as ações da população e da polícia no


local do crime, geram para a condução das investigações: “Uma vez um indivíduo
caiu morto, tava morto a facada, chamada a Polícia Militar, a Polícia Militar ficou
no local... Quando o delegado chegou, o cadáver estava sem o tênis. Aí o
delegado olhou, ‘tá sem o tênis, roubo de tênis, latrocínio, mataram o rapaz para
roubar o tênis’. A conclusão tava meio ali. Aí conversa vai, conversa vem, por
uma sorte, conversou com o policial (militar). ...’O que que aconteceu?’ ...a
família da vítima chegou lá e falou ‘o tênis é novo, então deixa a gente pegar,
ficar já com o tênis, porque de repente alguém pode roubar o tênis dele’. Aí, na
maior, o policial tirou da vítima e deu pra família e foi embora, o cara ficou lá sem
o tênis, ...A Polícia Militar não está preparada, não tem preparação suficiente
para preservar o local e outra coisa: não tem conhecimento básico, técnico,
preliminar para... até mesmo para constatar mortes ....o sujeito pega um corpo,
às vezes o sujeito tá morto, pegam o corpo, levam por hospital” (promotor 4).

A polícia civil reconhece que os problemas de preservação do local


também decorrem de falta de preparo dos policiais civis assim como dos
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 684

militares. A Polícia Militar também não estaria treinada para colher todas as
informações sobre testemunhas presentes na cena do crime para que a Polícia
Civil possa, posteriormente, localizá-las: “Uma das dificuldades que nos temos
hoje, né, falando abertamente, é a preservação do local, que não há uma
conscientização, mesmo da população e mesmo de policiais que primeiro
atendem o local, com esta preocupação na preservação. Então, é um problema
que a gente vem encontrando, mas a gente vem ai com palestras na Academia
de Polícia vai tentando ai levar a consciência a todos” (delegado 6).

O problema da preservação do local começa com a rotina de comunicação


do caso: a notícia do crime chega primeiro à Polícia Militar através do telefone
190. A PM despacha o carro mais próximo para atender ao local. Confirmada a
ocorrência, a PM comunica à delegacia local o crime. O delegado de plantão
deve então chefiar a equipe que irá ao local. A rapidez de sua chegada à cena
vai depender das tarefas que estiver realizando quando ele foi comunicado do
homicídio. Se estiver lavrando um flagrante, ele terá que decidir se interrompe ou
não esse flagrante: "ou eu interrompo o flagrante para fazer o local, ou a PM tem
que esperar eu terminar o flagrante para poder fazer esse local de homicídio.
Normalmente, quando a vítima ainda está no local ai eu paro o flagrante para
poder fazer o local. Prá poder acelerar, prá poder tirar o corpo, prá viatura,
porque não pode ficar muito tempo lá" (delegado 2). As prioridades de
atendimento não decorrem da gravidade do crime mas de necessidades do
momento e dos recursos disponíveis: hoje em dia, os distritos policiais contam
com poucos policiais especializados em investigar principalmente crimes mais
complexos como homicídio. Os delegados informam ainda que a ida ao local será
a única vez que sairão da delegacia para investigar aquela ocorrência: “nós só
vamos até o local quando acontece” (delegado 4). Até o delegado chegar ao local
do crime já terá se passado algum tempo. Iisso aumenta a probabilidade de que
a evidência já tenha sido contaminada ou destruída. O delegado solicita a
presença de peritos do IC e do IML após esse levantamento do local, o que
significa que mais tempo ainda terá se passado entre a ocorrência e o momento
em que os peritos examinam a área e o corpo. O fato das atividades não serem
simultâneas mas consecutivas leva a que muito tempo se passe e que as
pessoas ou o clima alterem o meio ambiente e destruam evidências ou, pelo
menos, prejudiquem a coleta delas.

O Instituto de Criminalistica e o Instituto Médico Legal também não têm


estruturas ágeis para chegarem aos locais. Eles têm que atender a número
crescente de ocorrências em áreas muito distantes da cidade. São institutos
centralizados e com um número reduzido de funcionários. Uma reclamação
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 685

freqüente dos entrevistados é que há necessidade de se descentralizar e no


mínimo dotar cada seccional da polícia, no Município, com equipes de peritos
para cuidarem dos casos de homicídios. As distâncias a serem percorridas pelas
equipes são enormes, acrescidas às dificuldades do trânsito; é freqüente que
essas equipes cheguem ao local da ocorrência muitas horas depois do fato: “Por
exemplo, a sexta seccional, a seccional de Santo Amaro tem mais de vinte
(delegacias), entendeu? Então, é uma área muito vasta. Vai, se você atende um
homicídio na zona sul e socorreram a vítima, mas tem local, foi dentro de um bar,
socorreram a vítima, mas tem local para perícia. Você tem que solicitar a perícia
do Butantã, certo, o I.C. sede que tem toda a parte de sangue, pra se deslocar
até Parelheiros, vamos dar um exemplo assim, são mais de, quer ver... são 55,
são uns 70 km mais ou menos....Até chegar lá no local, se chove, se é um local
que pega chuva, umidade, alguma coisa...”(delegado 4).

Uma vez constatada a morte, o delegado de plantão abre o inquérito


solicitando as perícias e laudos. Ele vai identificar a vítima; se a autoria for
conhecida e não houver flagrante, vai levantar dados sobre o agressor(es). Os
delegados entrevistados revelam que a maioria das vítimas são identificadas
posteriormente pela família ou por impressão digital. Feita a identificação da
vítima irão arrolar as testemunhas, se existirem, localizá-las através de dados
que devem ter sido coletados pela PM e intimá-las a depor. Irão também chamar
familiares da vítima para levantar dados sobre a vida da vítima: “identificar as
rixas, os antecedentes, a vida pessoal, o uso de drogas”(delegado 4), buscando
as “motivações do crime...vamos buscar tirar tudo da vida dela” (delegado 5). O
grau de sucesso dos delegados nessa busca vai variar de acordo com os
recursos humanos e materiais disponíveis para isso.

(b) Recursos humanos, rotinas e volume de trabalho e rotatividade de pessoal


nos distritos policiais

Os distritos policiais diferem do Departamento de Homicídios e Proteção à


Pessoa (DHPP) em todas os aspectos listados anteriormente: recursos humanos,
rotina de trabalho e no volume de trabalho. Por isso, destacaremos neste tópico
os inquéritos policiais relativos a casos de homicídio realizados nos distritos
policiais comparando-os, quando pertinente, com aqueles do DHPP.
• Os recursos humanos e as rotinas de trabalho

Os Distritos Policiais não mais dispõem de equipes especializadas. O que


existe hoje em dia são equipes de plantão que trabalham com a seguinte rotina:
ficam 12 horas de plantão, folgam um dia, fazem mais 12 horas de plantão,
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 686

folgam mais um dia e no terceiro dia de trabalho (5o. dia consecutivo) cuidariam
de investigar os casos que atenderam no plantão e que constituem “seus casos”.
Em teoria, após cada dois plantões, teriam um dia para encaminharem as
investigações relativas a inquéritos em andamento. Mas, como esse tempo não é
suficiente, acabam tentando dar continuidade aos inquéritos durante os plantões.
Procuram conduzir as atividades internas tais como: solicitação de exames e
perícias, pedidos de dilação de prazo, tomada de depoimentos de testemunhas
citadas, entre outras. Mas os delegados, nos plantões também têm que cuidar
das ocorrências, dos flagrantes, tomar providências em relação ao Distrito e,
portanto, da carceragem além de todas as tratativas relativas aos presos. Um
delegado entrevistado, descrevendo seus plantões, relatou que tem, em média, 3
ou 4 flagrantes além das ocorrências comuns (média de 25 a 30 por plantão) que
devem ser registradas nos Boletins de Ocorrência. Como os crimes estão
aumentando, vem crescendo o número de inquéritos em andamento e se
ampliando o descompasso entre a rotinas de trabalho e a necessidade de se
investigar os delitos: “Nós temos um dia só para trabalhar nos inquéritos, só que
infelizmente um dia só não dá, devido ao volume de serviço, você tem que fazer
isso nos outros dias de plantão também...O plantão é de, são de doze horas. ...Aí
você descansaria 24 horas .. e no terceiro dia (de trabalho), que nós falamos, a
gente volta pra delegacia. Às vezes na parte da tarde, para fazer os inquéritos,.....
Então, você acaba nos plantões atendendo as partes, cuidando da carceragem e
tocando os inquéritos” (delegado 4).

É assim que chegam a situações (como a descrita no item [a] preservação


do local) de terem que escolher qual tarefa será adiada e, portanto, prejudicada:
flagrante ou local. Se o número de ocorrências for alto e se o número de detidos
no Distrito também for alto, segundo os entrevistados, há pouco ou nenhum
pessoal para realizar investigações mesmo nos casos de delitos muito graves
como homicídio: “Estou ligado a uma equipe composta de são dois
investigadores e um escrivão... eu tenho uma faixa aqui de 75 (inquéritos em
andamento). E isso é pouco aqui, entendeu?” (delegado 4).

Um dos delegados entrevistados relatou que o número de inquéritos, em


seu distrito policial, é tão grande que, por decisão do delegado seccional, os
inquéritos de homicídio estão sendo remetidos ao DHPP, com exceção daqueles
de prisão em flagrante do agressor: “porque o Departamento de Homicídios tem
mais recursos, tem mais policiais, mais investigadores, mais escrivães. Eles têm
o disque-denúncia deles, nós não temos isso...” (delegado 2)271.

271
Nem mesmo o encaminhamento dos casos de autoria desconhecida para o DHPP garantem
que esses serão resolvidos. O que tende a ocorrer é que, quando os casos de autoria
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 687

Aumentando os casos, aumentando os inquéritos. Daí leva-se mais tempo


para que cada membro da equipe se dedique a cada inquérito e mais tempo se
demora para concluí-lo. O número de inquéritos em mãos de cada funcionário é
tão grande que não conseguem se lembrar dos casos; cada vez que entram em
contato com o material têm que reler tudo o que está no inquérito. “cada escrivão
(tem) trezentos inquéritos,... ele não tem só aquele caso de homicídio. Ele tem
caso de homicídio, de estelionato, de furto, de roubo, de ação indébita,
contravenções em geral. ...Ele tem que trabalhar um pouco em cada inquérito pra
poder tomar providências em todos. Cada vez que chega um inquérito de fora,
com a quantidade de trezentos inquéritos, o escrivão e o delegado têm que ler
totalmente o inquérito pra poder se recordar o que aconteceu pra verificar o que
está faltando no inquérito pra poder dar o despacho”(delegado 2).

Acompanhar os inquéritos vai se tornando uma tarefa “humanamente


impossível” (delegado 4). Como conseqüência, aumenta a seletividade dos
delegados sobre quais ocorrências irão se transformar em inquérito e sobre quais
inquéritos serão investigados. A seletividade dos delegados na instauração do
inquérito é justificada, pois “se todos as ocorrências virarem inquérito policial vai
sobrecarregar a polícia, vai sobrecarregar o Ministério Público, vai sobrecarregar
o Judiciário que já está prá la’de caótico. Então a gente tenta. tem ocorrência que
às vezes, é até conveniente, que a própria vítima não tem mais interesse”
(delegado 4).

Os delegados entrevistados reconhecem então que, mesmo que tenham


interesse em um caso e que lhe queiram dar um bom encaminhamento, com
tantos inquéritos em andamento não há possibilidade de fazê-lo, ao menos como
deveria ser feito: “a gente tenta, né. Tem às vezes inquérito que você começa,
começa, começa, né, vai indo, vai indo, aí você fala, pera, tá faltando alguma
coisa. Aí você tem que reler de novo, entendeu? Pra tentar ver se ficou algum
ponto obscuro, alguma falha, pra tentar suprir, entendeu? Mas esses (policiais)
que tem 200 inquéritos...Isso é humanamente impossível” (delegado 4). O que
definirá se os casos serão ou não investigados serão fatores completamente
aleatórios: facilidade de obtenção de informações ou repercussão do caso: "A
investigação é difícil, nós temos aqui....uma gama de serviços muito grande além
de homicídio...roubo, furto. Isso atrapalha no nosso trabalho de investigação.
....Porque durante as doze horas em plantão é difícil a gente poder sair daqui da
delegacia, certo,... Então há uma carga de trabalho muito grande pra gente

desconhecida chegam ao DHPP, já se passou muito tempo e isso reduz em muito a probabilidade
de serem resolvidos. Mesmo no DHPP há um expressivo volume de trabalho: cada delegado
chefia, em média, cerca de 150 inquéritos. A diferença entre eles e os distritos policiais é que
podem se dedicar só a investigar esses casos, todos exclusivamente de homicídio.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 688

conseguir executar. Então nem todos os casos, a maioria não dá mesmo pra
fazer investigação. Eu estaria mentindo se estivesse falando que dá. Alguns
casos a gente consegue esclarecer, alguns casos que a gente tem informações
anônimas. Esses casos a gente dá preferência pra investigar" (delegado 2). Os
casos de repercussão levam a pressões sobre a equipe: “Então, se, se houver
um crime que dependa muito de investigação, esse crime não vai ser
esclarecido....Não será esclarecido, a não que seja um crime de ampla
repercussão. Aí nós somos cobrados....Então, não tem jeito. Aí tem que ir atrás...
Talvez nem esclareça, mas dar-se-á mais atenção àquilo...” (delegado 3).

Os outros casos têm forte probabilidade de acabarem prescrevendo sem


que os inquéritos tenham terminado: “Só que cada escrivão tem cerca de
duzentos e cinqüenta, trezentos inquéritos. Então muitos casos, inclusive, estão
chegando perto da prescrição já. E não consigo concluir o inquérito” (delegado 2).

• inquérito e as cadeias nos distritos

Além da rotina de investigações a cada 3 dias trabalhados, a presença de


detentos nas cadeias dos distritos é considerado como o outro obstáculo à
investigação e que impede a polícia judiciária de cumprir seu papel. Essa
percepção é um consenso entre os delegados entrevistados e um aspecto que os
diferencia dos outros profissionais ouvidos. A preocupação com a situação
carcerária nos distritos é exclusiva dos policiais. Tomar conta dos detentos e o
receio das rebeliões são fatores que, segundo os delegados, afetam a condução
dos inquéritos. A sobrecarga de tarefas vai aumentar mais ainda a seletividade
na definição do o que é ou não prioridade de trabalho. Aumenta também o
arbítrio nas decisões.

Dependendo do grau de superlotação e do tipo de detento (grau de


periculosidade)272 que está na carceragem, maior ou menor é o receio de fugas
ou de tentativas de fuga. O delegado responsável pelo plantão teme sair do
distrito para fazer um local de homicídio; teme também que os investigadores
saiam e que o distrito fique mais vulnerável a rebeliões e tentativas de fuga.
Como esses eventos redundam em sindicâncias internas e como o resultado

272
Os distritos policiais aparentemente estão “especializados” abrigando cada um deles um tipo
de detento: alguns distritos têm em seus xadrezes só mulheres, outros têm só homicidas, outros
só traficantes de drogas e assim por diante. Ou seja, procura-se manter uma população
homogênea no distrito em termos do tipo de delito que cometeram e pelo qual cumprem pena.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 689

delas podem afetar suas carreiras, há um forte incentivo para não deixarem seus
postos: “(sem carceragem) ...você pode, às vezes, sair do plantão pra se
deslocar para um local e fazer uma diligência mais demorada, sem receio da
carceragem. Às vezes você sai para um local, como eu te falei no caso da
(delegacia) 93 que teve a fuga, você sai pro local e quando você volta não tem
mais os presos! Aí, você fala, pô, agora você não sabe se você sai para fazer a
diligência ou se você sai esperando que os presos fujam, ou....Você tem essa
preocupação de acontecer alguma coisa na carceragem. Aí isso vai gerar uma
sindicância administrativa ou um processo administrativo, entendeu?... Somos
responsabilizados. Então, eu vou sair daqui e se foge um preso? Então, você fica
com aquele receio” (delegado 4).

A presença dos presos nos distritos é considerada com um sorvedouro dos


recursos humanos e materiais desses distritos. Os delegados se percebem como
vítimas da inação de outras instituições: seriam forçados a realizar tarefas que
não lhes competem e que os impedem de exercer aquelas que são de sua estrita
competência. Assim ficam expostos a críticas dentro do governo e por parte da
sociedade : "Porque você vive em função de preso. A função da polícia não é
para tomar conta de preso. ....O problema de preso é da Justiça....é a Justiça que
tem que tomar conta dele e providenciar a penitenciária. O distrito deveria ter um
ou dois xadrezes para simplesmente esses casos de flagrante,...e você fazer a
remoção” (delegado 4).

Assim, investigam-se aqueles casos que provocam repercussão ou


pressão ou quando alguma informação chega até eles; não é a polícia que toma
a iniciativa mas é a população que precisa querer informá-la. Ou seja, alguns
casos são investigados porque, por algum motivo aleatório, uma informação
importante chegou ao distrito e a equipe pôde investigar. Mas a rotina parece ser
a não investigação. Isso está gerando muita frustração e até mesmo
desmotivação das equipes, inclusive dos delegados: “eu não consigo investigar
roubo; eu tenho roubo de carro aqui, roubam nove carros por dia na minha área...
Eu não consigo prender um ladrão, porque eu não tenho gente pra
investigar.....80% da nossa força de trabalho é carceragem..E 20% ficar por...pra
polícia judiciária, que é a destinação principal da polícia civil. Então nós temos
uma inversão total, né?” (delegado 1).

Em conseqüência, os delegados reconhecem que a polícia judiciária não


mais preenche seu principal papel: “Olha, hoje não há condições de, de fazer
investigação. Nenhuma delegacia faz investigação... Se falarem hoje pra um, pra
um... qualquer delegacia, vocês fizeram alguma campana hoje? Eles nem sabem
o que é isso. Por quê? Porque eles esqueceram já o que é isso. ... Campana é
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 690

você ficar atrás de alguém sem ser, sem ser visto.. E campana não é tão simples.
Nós não temos condições de fazer. Porque aqui tem que ficar no mínimo quatro,
cinco investigadores na delegacia diariamente. Não pode ter rebelião.... A
qualquer momento pode um preso matar outro...” (delegado 3). Com o tempo,
aqueles profissionais que tinham habilidade técnica perdem essas habilidades
por “falta de uso” enquanto os novos policiais sequer chegam desenvolvê-las.

É possível que esses obstáculos para a realização dos inquéritos


expliquem em parte a falta de motivação que os delegados afirmam existir em
suas equipes e que denominam de falta de vocação: “o maior problema que nós,
nós temos é, é a falta de vocação de policiais. Você vê? Policiais hoje entram na
carreira pra manter o emprego. Ele não tem vontade de servir, não tem vontade
em praticar o bem, não tem vontade e, em atender as pessoas. Eles olham no
relógio, se faltar uma hora, eles rezam pra que passe o tempo...”(delegado 3). O
problema da desmotivação e do despreparo profissional não afetaria apenas os
investigadores e escrivães de polícia, mas estaria afetando também os
delegados: “E o delegado deveria, deveria se preparar mais, estudar mais, coisa
que ele não está fazendo ultimamente. Isso é que tá ocorrendo.... Ler um livro
jurídico.....estudar mais. O delegado de hoje não é mais aquele delegado
intelectualizado. Não sei se falta, se falta tempo, não sei se falta vontade, não sei
se falta vocação, mas a verdade é que acontece isso” (delegado 3).

O problema da presença de presos nos distritos é percebido como não


passageiro e como um que tende a piorar ainda mais a imagem da polícia:
“Como esse problema da cadeia a gente percebe que não vai acabar logo, então,
nós da polícia vamos continuar sendo é, tachada como incompetente..... nós só
teremos condições maiores de mostrar que a nossa polícia é competente quando
acabar esse problema da cadeia” (delegado 3).

Em contraste com essa frustração e desmotivação, os policiais do DHPP


relatam suas realizações, os casos que conseguem esclarecer, a imagem que
têm junto aos outros operadores do direito e realçam a qualidade dos
funcionários do Departamento: “o recurso principal (do DHPP) é a
intelectualidade dos delegados, dos investigadores e dos escrivães, então para
ver qual é a diferença, ...Pega um inquérito qualquer, aleatoriamente, você vai ver
estética, você vai ver Português, você vai ver o posicionamento do escrivão,
datilografia, então você vai encontrar um profissional, um escrivão, fazendo muito
bem o seu trabalho, desempenhando muito bem, um escrivão de policia... ...os
escrivães eles são caprichosos, então eles recebem orientação pra fazer (o
inquérito) desse jeito...o investigador vê como se faz investigação, ele não tem
que bater em ninguém, ele tem que usar a cabeça, ele tem que aprender a usar o
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 691

cérebro. A coisa mais gostosa que tem é você brincar com a mente do criminoso,
então aprender, inclusive é beneficio prá eles inclusive na vida particular deles,
vão raciocinar melhor, aquele exercício de pensamento que causa, vem dentro
de uma lógica, o camarada sabe se posicionar, isso vai trazer beneficio pro
inquérito” (delegado 6).

• Rotatividade de pessoal

Os casos de homicídio, para os quais está previsto extenso limite para


prescrição, são os que com maior probabilidade são afetados pela rotatividade de
pessoal. Os delegados reconhecem que essa rotatividade prejudica o
encaminhamento das investigações e compromete a elucidação do caso porque
se perde sua continuidade e suas informações: “Esse inquérito aqui já passou por
uns dez delegados. Esse inquérito começou no dia 26 de dezembro de 87, ele
tem relatada a parte policial em 20 de abril de 94...Tem muitas diligências,
entendeu? Pessoas que não arrolaram testemunhas na época, então, pra ver se
você achou alguma testemunha, aí você vai lá e intima essa pessoa. Quando
não, às vezes você não ouve a pessoa logo em seguida, aí essa testemunha
muda-se, perde-se o endereço, ninguém sabe mais e você não consegue
localizar. Com relação ao laudo, você solicita o laudo, mas a vítima não foi fazer
o exame ... aí o IML, depois de algum tempo, informam que nada consta na ficha
dele, aí você tem que correr atrás da vítima de novo” (delegado 4).

A rotatividade é resultado da estrutura da carreira profissional onde as


freqüentes mudanças de posto são básicas para a promoção na carreira. Os
delegados, assim como os promotores e juízes, permanecem pouco tempo em
um mesmo posto e isso prejudica as investigações: informações são perdidas e o
conhecimento correspondente deixa de ser acumulado; os operadores do direito
não percebem relações entre os casos, não criam familiaridade com a população,
não ganham sua confiança; não estabelecem vínculos de confiança com os outro
operadores de direito da área e não acompanham o caso quando esse chega ao
Judiciário. Assim, desconhecem seu desfecho e em que medida seu
desempenho contribuiu para o desfecho. Os entrevistados percebem alguns dos
custos da rotatividade “Eu tenho certeza absoluta que foi o cidadão que matou a
mulher mas eu não consegui provar isso... até minha saída de lá. Eu estava
chegando próximo de provar. Infelizmente a gente as vezes é transferido de uma
delegacia pra outra, isso atrapalha. Porque a gente sai e os casos ficam para que
outros solucionem. As vezes a contento, as vezes até melhor do que a gente, as
vezes não conseguem” (delegado 2). Às vezes, esses delegados reencontram
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 692

um inquérito que deixaram anos atrás, quando esse chega, ainda sem solução, a
um departamento especializado (DHPP): “eu tenho um caso meu aqui. Eu atendi
um suicídio que não convencia o distrito que era suicídio e...enfim, quando fui
removido de lá e assumi meu posto aqui no Departamento de Homicídios,
continuei minha vidinha normal... O inquérito lá não foi relatado. Hoje aportou
aqui o mesmo inquérito. Então...até o meu despacho inaugural que foi:
‘Reassumo, porque eu inaugurei aquele inquérito...’”(delegado 5).

Apesar da rotatividade de pessoal ser comum, não existem mecanismos


institucionais para prevenir que ela afete a condução dos inquéritos. O DHPP
desenvolveu técnicas para documentar nos mínimos detalhes o que ocorreu em
cada caso de modo a garantir a continuidade das investigações. Assim, a
descrição do local do crime pelo delegado deve ser exaustiva: “(descrever)
Situação meteorológica, se estava chovendo, se era frio ou quente ou estava
calor, se possível ate a fase lunar, porque tudo isso? Porque nos sabemos que
no calor ou no frio, você tem modificações, fenômenos que modificam o cadáver;
então nos vamos saber, (pela perícia) estava com a perna esquerda
enrijecida...opa! hoje o clima esta tal! Porque esta preocupação? Porque nos
temos que trazer tudo para o inquérito de uma forma tão cristalina, que se o
delegado de policia for removido, morre ou acontecer alguma coisa, quem pegar
este inquérito, vai ter uma idéia precisa do que aconteceu, então você ... não é a
solução de continuidade...” (delegado 6).

A falta de equipamentos e de infra-estrutura se soma aos problemas


decorrentes das rotinas de trabalho (plantões e terceiros dias) e de
disponibilidade para investigação, a par da superposição de múltiplas tarefas,
agravando o que já é precário: “Às vezes calha de não ter viatura...você depende
da viatura para o investigador ir até o local intimar as pessoas. Aí intima para o
seu próximo plantão dali a dois ou três dias. Aí a pessoa quando vem tudo bem e
quando ela não vem? Aí você tem que fazer esse serviço tudo de novo,
entendeu? Para o próximo plantão para que a mesma equipe de escrivão e de
investigador” (delegado 4).

(c) Falta de equipamentos e materiais para IC e IML realizarem exames, falta de


recursos humanos, rotinas de trabalho e volume de trabalho do IC e do IML

Enquanto o delegado e sua equipe devem estar investigando o caso, o IC


e o IML devem estar realizando os exames solicitados. Uma vez coletado os
materiais, os exames demoram meses para serem realizados: de 6 a 8 meses é
o tempo mencionado pelos entrevistados para terem os laudos anexados ao
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 693

inquérito. Várias são as dificuldades que favorecem essa demora do meio de


comunicação usado - ofícios -, até à rotina de trabalho dos peritos que também
funcionam em regime de plantão, única oportunidade em que podem ser
localizados: "o escrivão que está com esse caso vai pedir o laudo pro, pro
Instituto de Criminalistica..., faz um ofício. Isso vai chegar lá depois de uns quinze
dias. Eles vão receber aquilo, vão mandar para o perito que está com esse caso.
(ele) Tá de plantão só na outra semana. Aí ele vai ver, não está pronto
ainda....Sei lá tem uns cinqüenta em cima daquele pedido" (delegado 3).

A demora na apresentação dos laudos pelo IC e pelo IML é apontada com


um dos fatores que atrasa o inquérito. Se houvesse maior agilidade na resposta
desses institutos, o inquérito também poderia ser mais rápido: ”Tem inquérito que
em um mês eu termino, o certo seria terminar em 30 dias, mas infelizmente a
burocracia, o excesso de serviços que nós temos....às vezes um laudo demora
seis, oito meses para eles enviarem para mim, então, não adianta você terminar
o inquérito, por exemplo, lesão corporal, você ouve todas as partes, testemunhas,
indiciados, para depois indiciá-lo. Mas você não tem o laudo, no qual vem a
classificação da lesão pra você qualificar em qual lesão foi: se é leve, grave ou
gravíssimo. Então, você depende muito das provas periciais, e às vezes demora
um mês, seis meses, viu? Depende muito do tipo de inquérito” (delegado 4).

Os delegados entrevistados criticam a atuação do IML e do IC só no que


se refere ao tempo que levam para responder com os laudos; mas, em termos da
qualidade do trabalho realizado, elogiam a qualidade dos exames que esses
institutos realizam; caso contrário, não se manifestam. As restrições ao trabalho
desses grupos, por parte da polícia civil, são sutis e se referem ao que seria
desejável para melhorar o inquérito: descentralização dos peritos, aumento do
número de equipes, subordinação do legista ao delegado, maior agilidade no
provimento de exames e laudos. Quando perguntados diretamente, elogiam tanto
o IML quanto o IC: “São Paulo, .. o estado líder da federação, nós temos
institutos, que é o IML, e o IC- Instituto de Criminalística, que há muitos e muitos
anos eles vêm prestando um serviço maravilhoso......à polícia judiciária e ao
Judiciário. O que ocorre com eles, com esses dois institutos, é o que ocorre de
um modo geral, com a polícia e com outros órgãos públicos: falta de recursos.
Faltam recursos humanos e recursos materiais...Apesar que o IC agora, ele está
com equipamento moderno, já deve estar usando esse equipamento; então, a
tendência da prova material é...é melhorar..., a cada nova...nova técnica incluída,
que eles conseguem, a prova técnica vai melhorando. A celeridade, aí fica na
dependência do ser humano, né?” (delegado 1). Parte dessa demora é até
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 694

justificada pelos delegados como conseqüência da escassez de recursos do


Estado como um todo, mas parte é atribuída à mão-de-obra.

Os promotores e juízes entrevistados não discutiram em profundidade a


qualidade das provas periciais produzidas, exceto aquelas relativas aos exames
necroscópicos. O que eles discutem, com freqüência, é a ausência de perícias.
Muitos exames básicos nunca são feitos: testes de balística, daticloscópicos,
residuográficos, zonas de chamuscamento, trajetória da bala, toxicológicos, pesar
ou medir as vítimas e mesmo fotografias para ilustrar o inquérito são raras:
"Primeiro é a falta de meios, né a falta de técnica. Você não tem material para
fazer exame para colher a impressão digital (em uma arma), isso é básico... Isso
não existe.. Se não existe isso, você imagine outras coisas né?” (juiz 5).

Sem esses exames, esses profissionais se sentem inseguros para


denunciarem ou para pronunciarem os acusados pela agressão: “eu acho que
precisaria haver aqui no Brasil, na área penal, o que falta é investigação
científica......aqui você fica muito dependendo dos depoimentos...né? E eu acho
que muita coisa poderia ser resolvida, com mais certeza, se tivesse critério
científico...Que quando você tem a medicina ...legal, você vê que tem ‘n’ métodos
pra resolver o problema, né? Por exemplo, se você quer saber se uma pessoa
atirou ou não atirou, você registra o resíduo de pólvora na mão... E aqui
raramente se faz um exame desse....né? Exame datiloscópico... Datiloscópico,
impressão digital.. É...vê se tem...hã...foto da pessoa, ter sido apreendida ou não,
um bem roubado. Se foi apreendido com ele, veja... existe, existiria modos muito
mais simples de fazer essa prova, de estabelecer a certeza” (juiz 1).

Os juízes e promotores convivem com a frustração de saber que existem


técnicas de exames que poderiam suprir as lacunas dos inquéritos mas que
faltam recursos financeiros ao Estado para arcar com os custos desses exames:
“É claro que existem deficiências a nível estrutural, tanto seja só na parte da
perícia como todo. A realidade é a seguinte, hoje em dia a situação tá muito difícil
no país, é difícil o nível de trabalho tanto na polícia, como aqui no Fórum,
trabalhando, escrevente, é muito difícil, muitos se matam além daquilo que
poderiam fazer. Mas é claro tudo isso, a falta de estrutura financeira dificulta
muito... realização de certas perícias e tem certas perícias que nós só
conseguimos fazer com o pessoal de Campinas, com aquela equipe são
caríssimas, não são pra todos os processos. Tudo isso dificulta o trabalho de
obtenção de provas que poderia levar a júri. mas eu diria que via de regra, que
isso dificulta, que isso é praticamente impossível de você conseguir” (juiz 4).
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 695

Com os exames produzidos pelo IML ocorre algo semelhante ao que se


passa com o IC: os laudos são considerados satisfatórios pelos policiais e muito
criticados pelos outros entrevistados. Alguns profissionais se revelaram
indignados com a atuação do IML: "O IML é um desastre, O IML é um cadáver
que apodrece ali por lado de Pinheiros e temos notícias terríveis sobre o IML,
temos desconfianças outras sobre o IML, por exemplo: do IML eu tenho notícia e
até me reservo a fonte dessa notícia, de que peritos do IML não acompanham a
autópsia...Então há barbaridades extremas em laudos do IML, a falta de zelo
profissional, a dissidia profissional é um negócio assustador" (promotor 1).

Reconhece-se que há excesso de trabalho. Se um exame necroscópico


deve demorar de 3 a 4 horas para ser executado, cada funcionário poderia,
então, no máximo, elaborar 3 laudos por dia por funcionário. No entanto, o IML
produz 15 laudos por funcionário/dia. O ônus é que o trabalho deixa muito a
desejar. A ausência de informações elementares pode comprometer todo o
trabalho da polícia e do Ministério Público levando o júri a aceitar a versão que o
réu oferecer para o caso: " Por exemplo, laudo necroscópico....é um dado para
nós de relevância fundamental, ....que um bom laudo necroscópico faz o cadáver
falar, certo. Posição do disparo, determinação do ângulo de penetração, colheitas
de vestígios, de resquícios, de coisas que eventualmente podem ficar nas unhas,
nas mãos, nos pés; o estado em que o cadáver chega, o estado da roupa; se o
tiro é a curta distância, se o tiro é a longa distância, se há zona de
chamuscamento, se há zona de esfumaçamento....Tem uma série de dados
técnicos que um é... até, até coisas importantes... saber... que pode nos auxiliar
indiretamente. O excesso de trabalho leva à falta de atenção ..ele tem que ir
tocando, os cadáveres vão chegando e eles tem que ir mandando embora...ele
começa a não dar muita importância aos casos... é tudo igual, vai do jeito que vai
e tal e muitas vezes isso cria problemas para nós. Nós já tivemos uma época
várias reuniões com o IML... fica um diálogo de surdos....embora tenha uma lei
que determine isso uma coisa básica para se colocar num laudo é o peso e a
altura da vítima. Pois não tem o peso e a altura das vítimas... e isso é muito
importante. Em muitos casos o sujeito alega legítima defesa e que ele fala que o
indivíduo era um cara de dois metros de altura e era super forte. Olha se você
não tem fotografia, se você não tem nada, se o laudo não falou qual é a altura do
sujeito de repente a altura pode ser qualquer uma...”(promotor 4).

Com pouca provas técnicas, sem condições de reconstruir o que se


passou no local do crime e com laudos incompletos, os inquéritos continuam
dependentes das provas testemunhais. Estas, por sua vez, dependem da
existência de testemunhas, da capacidade da polícia localizar as testemunhas e
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 696

da disposição das testemunhas para depor. Para que essas testemunhas


auxiliem na apuração dos fatos elas devem também ter credibilidade e
idoneidade. O que ocorre é que há uma grande dificuldade em encontrar
testemunhas dispostas a depor na polícia e na justiça.

(d) Relacionamento da polícia com a comunidade

• As testemunhas

A prova testemunhal provoca muita ambigüidade entre os operadores do


direito, é percebida como uma espécie de “mal necessário”. É percebida como a
prova mais falha, de menor fidedignidade e validade. É também aquela que mais
é afetada pelo tempo porque baseada na memória das pessoas: se a testemunha
se lembrar de todos os detalhes muito tempo após os eventos não terá
credibilidade e, se não se lembrar, não será de muita valia. É a prova mais
susceptível de responder a pressões externas: do agressor ou da família da
vítima. É portanto, a prova que menos segurança dá aos operadores, mas sem
ela não há como conduzir o inquérito. Para a polícia a prova testemunhal é falha
porque o ser humano é falho: “A (prova) testemunhal é a produzida pela pessoa;
e ela é muito combatida, porque o homem é mentiroso por natureza, e é falho por
natureza....Então, às vezes ela mente a testemunha, ...por interesse e às vezes
ela mente por ignorância; outras vezes por esquecimento, por ilusão; então tem
diversos aspectos que fazem da prova testemunhal, uma prova relativamente
falha....No mundo jurídico ela é chamada de ‘a prostituta das provas’....Veja...o
conceito que ela tem. Mas, sem ela não tem processo...Porque...o processo não
é dirigido para o homem?...as partes, tanto o interessado, quanto a vítima; um
acusado, uma vítima, o juiz, ele não é um ser humano? Como nós poderíamos
fazer tudo isso aí se não tivesse a palavra de outro ser humano?” (delegado 1).

A prova testemunhal provoca insegurança por que não se pode prever


com certeza o que a pessoa dirá na instrução ou em plenário, não se pode prever
se ela não se negará a depor em juízo. Não se pode garantir que ela esteja
presente e, o pior, não se pode prever o que dirá: “Porque faz parte ...da pessoa
humana. Muita vez (sic) ela muda de opinião; a pessoa, ‘cê’ pode...ameaçar,
amedrontar,...a pessoa pode se mudar...Omitir os fatos... Não se lembrar ao certo
da verdade. Uma prova técnica não é mutável. Então, a... no interior do cadáver
da vítima, recolhe-se um projétil, por exemplo, né?..O suspeito da autoria possuía
uma arma. Pega-se a arma do suspeito, confronta-se com o projétil encontrado
dentro da vítima, e, tecnicamente, constata-se que, aquela arma disparou aquele
projétil” (delegado 5).
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 697

O depoimento de uma mesma pessoa pode variar no tempo não só por


problemas de memória ou de pressão, mas por ter sido tomado e ditado por
pessoas diferentes. Ou seja, além dos fatores que seriam “intrínsecos” ao ser
humano teríamos mais um representado pelas diferenças nas técnicas de
tomada de depoimentos: “duas declarações da mesma pessoa não precisam ser
exatamente idênticas, mesmo porque quem dita as declarações aqui é o juiz e na
delegacia é o delegado. Quer dizer, pode haver uma simples divergência pelo
fato de duas pessoas diferentes estarem ditando. O que interessa é a relevância
e a importância de certas alterações, tá. Se uma testemunha diz aqui que não viu
e no distrito policial disse que viu, ela tá mudando, confrontando frontalmente a
declaração dela. Agora, quanto a certos detalhes, isso é comum, tá, e isso não
importa que ela esteja mentindo. Veja bem, ela vai ser ouvida pelo delegado, um
auto de flagrante, uma hora depois dos fatos e aqui às vezes alguns meses
depois. Eu não posso querer que essa testemunha recorde dos mínimos
detalhes, como ela falou na delegacia de polícia de polícia, não seria humano, faz
parte do ser humano ter falhas de memória com o passar do tempo. Eu não vou
me lembrar o que aconteceu há um ano com a mesma exatidão que eu me
lembrava há um ano atrás, logo depois do fato. Então o juiz tem que saber
diferenciar isso, tá” (juiz 4).

Outro agravante da prova testemunhal é que não há homogeneidade no


depoimento de duas pessoas que estiveram no local quando ocorreu o fato: “E
depoimento é muito falível...muito falível, porque aquilo que eu disse: um
enxerga, o outro não enxerga; um ouve bem, o outro não ouve; um tava
prestando atenção, o outro não tava... Entende? Muito falível. Às vezes você
ouve uma pessoa que estava próxima do crime e ele fala 'Ah, mas eu não tava a
tempo, eu não tava prestando...eu tava distraído...' e você vai fazer o quê? Ele
estava mesmo” (juiz 1).

• Testemunhas: localização e colaboração

Essa testemunha falível ainda é a principal fonte de informação dos


inquéritos. Enquanto os institutos de criminalística e o médico legal realizam os
exames e laudos, o delegado encarregado do caso deve estar tomando os
depoimentos das testemunhas e realizando as diligências necessárias. Porém, os
delegados entrevistados relataram que um dos problemas atuais é a pouca
disponibilidade das equipes para realizarem trabalhos externos, tendo em vista a
necessidade de manterem-nas dentro dos distritos por temerem a ocorrência de
rebeliões. Para localizarem as testemunhas ou suspeitos necessitam: ter os
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 698

endereços completos e corretos, tempo para se deslocarem até esses locais e


carros disponíveis. Quando há equipes que possam se deslocar e há carros
disponíveis, surge o problema da localização. Essa localização é dificultada,
segundo os delegados, pelo fato dos policiais militares que primeiro atendem a
ocorrência, com freqüência, não anotarem corretamente os endereços e até
mesmo o nome das testemunhas. Quando os endereços estão corretos, se for na
periferia, outro problema será a localização das pessoas. Os operadores
entrevistados reconhecem que, hoje em dia, a população não coopera com nem
com a polícia nem com a justiça na localização das testemunhas e de suspeitos:
"periferia, a região de Sto. Amaro é muito grande, né, além de ter muita favela, ter
essa zona de Parelheiros, que é a única zona rural de SP, a dificuldade que os
nossos oficiais de justiça têm pra se chegar à testemunha, pra se chegar ao réu,
porque ninguém quer dizer nada, ninguém quer acusar, ninguém quer indicar
onde o réu mora, certo, então é difícil" (juiz 3).

Quando a polícia consegue localizar e intimar as testemunhas nem sempre


elas comparecem. Ouvir as testemunhas está se tornando uma grande
dificuldade e algo que atrasa o inquérito: “Localização das testemunhas, oitiva
das testemunhas....dada a quantidade de processos, inquéritos que a delegacia
tem marca para ouvir uma testemunha daqui a um mês, dois meses. Aí vem, a
testemunha não aparece, tem que chamar, mandar trazer, ai vai o delegado vai o
investigador” (promotor 4). Nessas condições, o delegado vai depender de ter
carro disponível no dia reservado para investigações a serem executadas pela
equipe responsável pelo caso: “Às vezes, calha de não ter viatura.. você depende
da viatura para o investigador ir até o local intimar as pessoas. Ai intima para o
seu próximo plantão dali a dois ou três dias. Aí a pessoa vem tudo bem, e
quando ela não vem? Aí você tem que fazer esse serviço tudo de novo,
entendeu? Para o próximo plantão, para que a mesma equipe de escrivão e de
investigador atenda“ (delegado 4). A falta de equipamentos, a rotina de trabalho,
a relação da polícia com a comunidade, a sua disposição em colaborar com a
polícia, todos esses aspectos vão interferir no tempo do inquérito.

• A polícia e a comunidade

Os delegados, promotores e juízes entrevistados são unânimes quanto ao


fato de que hoje em dia há uma grande dificuldade em encontrar pessoas
dispostas a testemunhar não só na polícia como em juízo. O principal motivo
seria o medo da retaliação dos acusados e/ou de seus familiares ou
amigos/associados. Para a polícia parte dessa falta de cooperação provém da
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 699

falta de confiança da população na própria polícia. O importante é que


aparentemente vem aumentado a dificuldade em se encontrar pessoas dispostas
a falar sobre o que viram ou sabem. Essa seria uma das causas do aumento do
número de homicídios de autoria desconhecida.

O medo da população é atribuído, por alguns entrevistados, ao descaso


com que o Estado teria para com eles: "A prova mais importante hoje é a
testemunha e esse é um problema que nós temos...Os crimes acontecem em
favelas..Há uma distância muito grande são dois mundos... a justiça chega muito
dificilmente à favela. O rapazinho morre lá numa briga com outro...Prás
testemunhas falarem é difícil. Ninguém quer saber, ninguém que chegar perto da
justiça, ninguém quer chegar perto da polícia e a gente depende
fundamentalmente deles” (promotor 4). O local preferencial do medo é a favela,
mas não é o único: a periferia como um todo seria o cenário desse medo. É
também onde mais ocorrem homicídios e onde cresce o número de casos de
autoria desconhecida.

As pessoas não querem depor porque são ameaçadas. Os juízes


entrevistados reconhecem que elas são verdadeiras e que se concretizam: "E às
vezes a pessoa tá sendo ameaçada e não quer revelar tal fato a polícia. Hoje em
dia nestes crimes praticados em complexos de favelas, impera a ‘lei do silêncio’ e
se a pessoa der com a língua nos dentes vai morrer e acaba virando um outro
processo. Então, temerosos por esse tipo de violência urbana...as pessoas
acabam não dizendo a verdade. Isto para um juiz é um fato muito difícil pra você
apurar a realidade como aconteceu" (juiz 2). Reconhece-se, pela ausência de
alternativas, que o Estado não teria como proteger essas pessoas, quando muito
o que os juízes podem fazer é não forçar testemunhas a falar tudo o que sabem:
“Eu, hoje, fiz uma audiência que a vítima, que foi morta, ela tinha sido
testemunha de um outro processo aqui...E ela foi morta. O réu do outro processo
tava preso, mas ele acertou com o amigo dele e uma outra pessoa pra matarem
aquela testemunha. Ela tinha acusado, ela tinha sido testemunha e tinha acusado
aquele réu.... a gente tem que saber que você não pode forçar a testemunha a
dizer tudo que ela sabe, cê tem que deixar naturalmente, quer que fale a
verdade, mas você não pode colocá-la na parede, que ela tá colocando em risco
a própria vida, né, e essa colocou, perdeu a vida” (juiz 3). Há uma impotência dos
operadores em relação a esses fatos. Apenas os delegados do DHPP citaram em
suas entrevistas a alternativa de programas de proteção às testemunhas e
relataram a experiência do Departamento com essa atividade. Sem garantias, a
população não depõe; sem isso, os inquéritos não conseguem avançar.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 700

Para a polícia, a população não colabora em parte por medo e em parte


porque não confia na polícia. Essa desconfiança á atribuída a dois fatores: ao
medo como conseqüência da violência da polícia durante a ditadura e à baixa
qualidade dos serviços prestados à população pela polícia: “Mas, normalmente, o
problema mais grave é que as pessoas não querem se envolver com a polícia,
com a justiça. Muitas vezes elas presenciam um fato mas elas se omitem, saem
do local. Não existe uma confiabilidade da população em relação ao trabalho da
polícia... a pessoa vem à delegacia, ela quer ser atendida rápido. Acontece que,
as vezes, o acúmulo de ocorrências... aqui é uma delegacia muito carregada, faz
uma média de 25 a 30 ocorrências-dia. Então, as vezes, acumula pessoas pra
fazer ocorrências... e as pessoas não gostam de esperar. Entendeu? Você vai
num hospital tem uma fila enorme pra ser atendido e a pessoa espera..... dá um
desespero na pessoa. Por que? Porque não gosta de polícia mesmo. A
população em geral não gosta da gente. As vezes até aplaude o trabalho da
gente quando ele dá certo. Mas, de fato, a população tem medo da polícia. Por
causa de uma época anterior, da qual eu não participei... Porque na época da
repressão se praticou muitas arbitrariedades mas também se esclareceu muitos
crimes, pelo que eu sei“(delegado 2).

Os delegados entrevistados também aceitam que o lugar do “silêncio” é a


favela. A diferença entre os delegados e os outros operadores do direito está em
que os juízes e promotores entrevistados parecem aceitar como legítima a
estratégia do silêncio como auto-proteção enquanto os delegados parecem ficar
irritados com essa estratégia e no limite culpam a população pelo o que ocorre
nas “favelas”: “Vamos dizer, cada homicídio que ocorra uma favela, será que eles
não sabem quem teria sido o autor ? Lógico que eles sabem, mas para evitar,
vamos dizer assim, ameaça, uma agressão posterior, entendeu? Ou ser vítima de
um outro homicídio, eles ignoram, como se nada fosse. Feito da ‘lei do silêncio’
que a gente diz, né. E vão cuidar da vida deles, sem se envolver. Infelizmente
isso pra nós nos dificulta muito. Quando a pessoa, às vezes a pessoa cria
coragem e denuncia anonimamente, mas aí fica aquele fator, quem é que vai
realmente provar que foi aquela pessoa” (delegado 4). Nessas condições, fica
mais fácil não assumir responsabilidade pelas apurações dos casos que ocorrem
nesses lugares perigosos e atribuir a um ajuste de contas os delitos que lá
ocorrem: "Tem sido muito difícil (investigar), não só pro inquérito de homicídios.
Aliás eu posso até falar...é...com uma certa tranqüilidade, porque aqui, os
homicídios que ocorreram na minha área, eu estou aqui há onze meses, foram
todos esclarecidos...Com exceção de um, na favela, que foi...acerto de contas,
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 701

esse aí é difícil...identificar, ninguém fala. Mas os outros foram todos...e não são
muitos também" (delegado 1).

O fato de que algumas vezes as testemunhas se disponham a depor na


polícia mas se recusam a depor em juízo não só afeta a condução do processo -
que por vezes tem que ser arquivado -, mas também referenda suspeitas
segundo as quais os outros operadores tenham sobre a atuação da polícia, o que
agrava as relações entre eles: “O homicídio ocorre em geral em local de favela,
normalmente você vai ter uma disputa por drogas pessoal que tem um grupo de
quadrilhas ali, disputa entre eles. Tem alguns justiceiros, eles criam um, todos
criam uma situação de terror muito grande na comunidade. Ninguém vai
...nenhuma testemunha se habilita a dizer quem é o autor, né, embora todos
saibam ....A não ser em determinados casos quando a coisa cria um vulto, ou
quando há uma disputa entre um e outro. Aí normalmente né, às vezes, a polícia
dá uma forçada, o cara começa a levantar, começa a ficar uma coisa mais clara
porque os nomes vão sendo falados. Só que o indivíduo fala o nome. Às vezes
fala para a polícia mas ele não fala no processo.... Não fala porque ele tem medo,
porque se ele vai no processo ele é testemunha. Aí ele (acusado) vai ficar
sabendo quem é que está falando contra ele" (promotor 4).

(e) O relacionamento entre os operadores do direito

As investigações, como visto acima, se arrastam no tempo por uma série


de dificuldades, o que de tempos em tempos põe em contato delegados,
promotores e juízes. Nessas ocasiões, tem-se algum tipo de solicitação do
delegados ao Ministério Público e/ou ao Judiciário: pedidos de mandados de
prisão preventiva, de busca e apreensão, pedidos de dilação de prazo,
solicitações diversas. Ocorrem também pedidos de informação por parte do
Ministério Público. A percepção que esses grupos têm entre si não constitui algo
neutro mas algo que terá efeito sobre a natureza das relações. Se há confiança e
respeito mútuo, deve haver maior cooperação entre eles e maior delegação de
tarefas o que agilizaria o inquérito. Se, ao contrário, há desconfiança, haverá
menor colaboração e menor predisposição para delegar bem como maior
exigência no cumprimento de todas as formalidades. Isso resultaria em menor
agilidade e possivelmente em um tempo maior para a execução das tarefas273.
Nessas manifestações, predominam comentários dos promotores e juízes sobre
a polícia e dos delegados sobre as relações com os juízes e com os promotores.

273
É importante notar que todas os comentários sobre a atuação da diferentes instituições foram
espontâneos; o roteiro de entrevista não abordava esse tema.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 702

Os juízes e promotores não comentaram sobre as relações entre suas


instituições.

Delegados percebem que são alvo de desconfiança tanto por parte do


Ministério Público quanto do Judiciário. Ao mesmo tempo, sentem falta de
cooperação por parte destes órgãos. As percepções que os juízes e promotores
entrevistados têm da polícia ratificam o mal-estar dos delegados: há suspeita e
desconfiança sobre os métodos e objetivos da polícia. Existe a percepção, por
alguns entrevistados, de que esse tipo de relação compromete o andamento e a
qualidade dos inquéritos e dos processos criminais e, portanto, a realização da
justiça. Alguns entrevistados chegam a sugerir que esse descompasso e falta de
cooperação entre as instituições favorecem o crescimento da criminalidade
alimentando a impunidade.

Os policiais civis, em profunda crise de identidade profissional, dadas as


dificuldades que encontram no dia a dia para exercerem seu papel de polícia
judiciária, estão muito sensíveis às críticas que sentem que lhes são feitas e se
ressentem muito da imagem negativa que a polícia teria junto ao Ministério
Público e ao Judiciário. Parte da indignação dos policiais contra estas duas
instituições advém do que percebem como sendo de sua responsabilidade a
situação carcerária nos distritos policiais. Para os policiais entrevistados, os
distritos policiais estão superlotados e a situação não muda porque o Ministério
Público e o Judiciário nada fazem. De modo indireto, essas duas instituições
estariam sustentando uma situação que os impede de cumprirem seu papel
(realizarem os inquéritos). A sociedade só perceberia o fracassso da polícia
enquanto as outras instituições não só são poupadas, mas ocupariam um posto
privilegiado de críticos: "Agora, o que mais tem causado problemas, eu acho até
que é a maior causa de criminalidade hoje, é a falta de, de sintonia entre os
órgãos encarregados de combater o crime. É inacreditável que juízes ficam ainda
grudados naquela cadeira e não, não sabem o que tá acontecendo no ambiente
social. É incrível como o promotor público só apareça em caso de repercussão.
.(....)...eu acho que o grande problema hoje, acho que a maior causa de
criminalidade, é essa falta de sintonia entre juiz-promotor e delegado.. .(...)...eu
estou aqui há seis meses. Aqui não veio juiz nenhuma vez. Eles têm que vir uma
vez por mês. Não vieram. O promotor não veio. Tem até livros aí, só que eles não
leram, entende? Eles alegam o quê? Tão nem aí. Agora, o preso aqui tá
morrendo, não tão preocupado que os presos tão morrendo, não é? Se o preso
tem direito a sair, se ninguém os convocar, ele vai ficar aí. Se o preso já cumpriu
pena e tá aqui e ninguém fala nada, vai ficar. Então, falta um pouco de interesse.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 703

Eles, eles alegam acúmulo de serviço. Eu também tenho acúmulo de


serviço“(delegado 3).

• A comunicação entre os operadores

As regras que norteiam as comunicações entre esses profissionais


parecem construídas para favorecerem desentendimentos. Não há canais agéis,
desburocratizados de comunicação. Há um ritual onde está rigidamente
determinado quem se comunica com quem, com vários “gatekeepers” ao longo
do processo. O caminho é frustrante para todos os envolvidos e o fruto disso é
mais falta de cooperação entre eles com grave prejuízos para a sociedade.

As rotinas que dificultam a comunicação estão presentes em todas as


instituições e ocorrem em todas as direções: da Polícia para o Judiciário ou
Ministério Público; do Ministério Público para a Polícia; do Judiciário para a
Polícia. As comunicações menos prejudicadas parecem ser aquelas entre o
Judiciário e o Ministério Público.

Quando a polícia necessita, com urgência, de uma manifestação da


autoridade judiciária, encontra dificuldades: "pra pedir a prisão temporária tem
que ir até o Fórum, esperar, tem que esperar o promotor falar, tem que ler, o juiz
tem que ler, né? Então, é, por telex não é dada esse... mas o juiz pede por telex
várias, várias providências em vários casos. Por que não também atender a essa
prisão por telex?... Não é mais fácil? Mais comunicativo? E mesmo que fosse
feito também por telex, a resposta do telex, a gente percebe que não há sintonia.
A gente percebe que, que o crime está caminhando por falta de vontade das
autoridades. Quando você quer colocar alguém na cadeia, o outro não quer.
Quando o outro quer, você não quer. Quando um quer, um quer aparecer, o outro
quer aparecer pra imprensa, o outro quer ser mais vedete, do que a vedete o
outro quer ter quinze minutos de fama, umas coisas assim... Então, atrapalha
muito isso no trabalho de repressão, de apuração de um crime......(....).... um juiz
quando ele, ele manda ofícios pra delegacia é como se ele fosse inimigo do
delegado, entendeu? ‘Determino sob pena de desobediência’. Em primeiro lugar,
ele não é chefe do delegado. Ele é do poder judiciário. E o delegado por sua vez,
é do poder executivo. Então, não pode haver desobediência de um órgão em
relação a outro” (delegado 3).

Quando o Ministério Público necessita exames complementares tem que


solicitá-los através da delegacia de polícia: “O nosso sistema é muito complicado,
é muito burocratizado, por exemplo: o legista não está ligado hierarquicamente
ao delegado. O Instituto de Criminalística também não. Então, muitas vezes eu
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 704

recebo um inquérito aqui e quero um exame de balística, ou quero uma


reconstituição etc., isso vai então vai para a delegacia, a delegacia manda para o
IC, o IC vai ver quando vai poder ser marcado o dia etc.” (promotor 5).

O Instituto de Criminalística, por sua vez, tem uma rotina cujas


características não contribuem para facilitar a colaboração entre essas
instituições, o que é reconhecido pela polícia: “Em compensação, tem casos na
polícia que é irritante. Tem pedidos do poder judiciário que não são cumpridos.
Então, o juiz pede um laudo... Nós temos que encaminhar esse laudo. Esse
laudo, às vezes não está pronto...E demora um mês, dois meses, três meses, um
ano, dois anos... Então, o juiz que tá pedindo, ele tem que sentenciar, ele tem
que concluir o processo. E sem o laudo pra dizer se houve crime ou não, pra
dizer se houve arrombamento ou não, pra dizer se é um crime com circunstância
agravante ou não, ele precisa ter isso...Então, pede uma, duas, três, quatro,
cinco, seis, dez vezes. É claro que há uma... Ele não tem outro, outro, outro meio
de, de, de pedir isso. Então, ele "Determino, tal...", ele tem prazo também pra
cumprir. Então, pergunta-se, tudo bem, se, se ocorre de um lado essa falha
policial e do outro lado essa prepotência judicial, por que não entrar em contato
via fone? Então, se fosse via fone evitaria dez ofícios......e em meia hora
resolveria” (delegado 3).

As dificuldades de comunicação e a falta de cooperação afetam todas as


etapas do sistema de justiça criminal. Isso culmina com a não apresentação dos
réus presos em delegacias e com a sensação pelos juízes de total falta de
colaboração por parte das outras instituições: "a maior dificuldade que a gente
tem tido é a apresentação de réu ...os réus presos, eles estão presos nas mais
variadas localidades de SP, delegacia, detenção, centro de observação
criminológica às vezes em comarcas, em outras cidades do interior, e o júri só se
realiza com a presença do réu. Eu não posso julgar um indivíduo sem que ele
esteja presente no plenário. Então, se ele está preso, a polícia tem que
apresentá-lo, tem que vir mediante escolta. E nós temos perdido muitos júris pela
falta de apresentação dos réus, então, isso, às vezes, é um prejuízo muito grande
que nos causa. Tem fase, atualmente tá apresentando bem, tem épocas que o
mês todo não apresenta réu...é um problema, mas nós não ficamos totalmente
sem serviço porque nós temos réus soltos também, então julgamos outros
processos ao mesmo tempo, né. ... Existe uma norma, nós temos que requisitar o
réu com, no mínimo, 10 dias de antecedência, mas nós requisitamos com três
meses de antecedência” (juiz 3).

Faltariam comunicação e entrosamento entre todos os setores


encarregados da execução penal e da polícia: “nós mandamos a requisição pra
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 705

Corregedoria dos Presídios, eles que têm que ver onde o réu tá preso e
encaminhar pra autoridade policial pra que ele seja apresentado. Mas muitas
vezes o réu é transferido nas vésperas do julgamento, é transferido de um
presídio pra outro e, por exemplo, a Casa de Detenção recebe e ao invés de nos
comunicar que nos comunicar que transferiu para o Centro de Observação
Criminológica, não nos comunica, então ele simplesmente não nos é
apresentado. O Centro de Observação não tá sabendo e a Detenção já não tem
como nos transferir porque o réu não tá lá" (juiz 3).

Sob a perspectiva dos delegados encarregados dos distritos policiais, a


apresentação de réus presos é mais uma dificuldade com a qual têm que lidar,
muitas vezes “herdada” de outros setores da polícia: “Nosso caso aqui nós tamos
com 86, aqui é um presídio feminino, tamos com 86 mulheres. Em cinco xadrezes
que comportariam no máximo, no máximo, 40.... às vezes ...também que tem que
levá-las pro Fórum pra fazer audiências, né. Isso aí já competiria à captura,
né...Às vezes nós fazemos a escolta aí fora. Então, um caso que se poderia estar
investigando, se tá desviando a função pra carregar preso pra Fórum ou para
médico“ (delegado 4).

Os delegados dos distritos, entrevistados, se percebem como a face mais


exposta da polícia e a mais vulnerável às críticas. Sentem que a polícia foi o
componente do sistema de justiça criminal que mais sofreu modificações em
decorrência da Constituição de 1988 e o mais ameaçado por modificações
futuras. Sabem que não têm apoio da população, dada a má imagem da polícia;
temem que o Ministério Público esteja tentando avocar o controle do inquérito
policial. Isso é agravado pelas dificuldades objetivas que têm para investigar os
delitos. A baixa taxa de resolução de delitos, o número de inquéritos que
conseguem chegar aos tribunais, a qualidade desses inquéritos são aspectos que
não ajudam a melhorar a imagem desses profissionais junto aos promotores e
aos juízes. Os delegados, de um lado, se percebem como vítimas de uma série
de situações274 frente às quais são impotentes para mudar, mas que de fato os
impedem de cumprir seu principal papel, o de polícia judiciária. De outro,
percebem os promotores como parte do problema e como uma ameaça para o
futuro.

Estas percepções se intensificam à medida em que os inquéritos vão


sendo arquivados por falta de identificação da autoria. Essa falha alimenta as
suspeitas que os promotores têm sobre a necessidade do inquérito policial.

274
Percebem-se como assistentes sociais, como juízes de paz, conselheiros familiares,
administradores do portal do inferno (cadeias), operário do direito penal, entre outros.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 706

• A suspeição mútua e competição

A polícia civil desfruta de uma imagem junto aos outros operadores do


direito como uma corporação heterogênea: existiram bons e maus policiais,
policiais honestos e policiais corruptos, policiais que respeitam as leis e policiais
que as violam. Para distinguir quem é quem, é necessário ter mais contato com
os policiais. Pelas características das carreiras, onde todos ficam pouco tempo
em uma mesma localidade, vara ou instância (ou entrância) situação idêntica à
dos policiais, não há condições para que se desenvolva alguma familiaridade e
confiança. Todos os entrevistados ao falarem dos casos que deram maior
satisfação profissional relataram algum caso que ocorreu em suas passagens por
comarcas do interior do Estado. Nesses postos, as dificuldades de
relacionamento entre esses operadores são reduzidas havendo maior
proximidade física e maior informalidade na comunicação. Nessas comarcas,
sentiram, em geral, maior realização e satisfação profissional, porque
conseguiram preencher as expectativas face aos objetivos institucionais, o maior
deles o de fazer/distribuir justiça. A proximidade entre os operadores permitia,
nessas comarcas, maior confiança mútua e maior colaboração. Isso redundava
em ganhos para a coletividade: “pra cidade é muito bom ter um promotor que se
fixe lá, que se interesse ... então existe um relacionamento bom, é, você sabe
quem é o delegado, se você pode confiar nele, você sabe quem são as pessoas
que costumam causar problemas, né, em cidade ... isso é uma coisa típica de
cidade pequena” (promotor 3).

Os delegados e promotores entrevistados, descrevendo as situações em


que interagem, sugerem que a maior parte das contatos entre eles se dá através
de solicitação de dilação de prazos ou quando um promotor é nomeado para
acompanhar um caso que teve repercussão. Nas duas circunstâncias, a relação
será percebida, pelos delegados, como uma espécie de “intervenção”. Os
pedidos de dilação de prazo os expõem a uma avaliação da condução do
inquérito. Como dito anteriormente, na medida em que os promotores não têm
condições de analisar os pedidos, fazem concessões automáticas. Isso não deve
ser interpretado como manifestação de confiança, ao contrário provoca mal-estar
entre os promotores que sabem que deveriam ser mais exigentes. O potencial
para conflitos permanece no ar.

O maior deles é sobre quem deve administrar o inquérito. A polícia não


tem dúvidas de que o delegado é o presidente do inquérito; já o Ministério Público
acha que, se o inquérito tem como destinatário o promotor, esta seria a
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 707

autoridade competente para acompanhar seu desenrolar desde o início e assim


poupar tempo e evitar erros. O Judiciário afirma que, embora a Constituição dite
que o Ministério Público deve acompanhar o inquérito, este órgão vem evitando
fazê-lo, deixando nas mãos da polícia um grande poder para definir quem será ou
não indiciado. A polícia admite que está mais e mais sendo seletiva na abertura
de inquéritos, dada a sobrecarga de tarefas que enfrenta. Essa seletividade,
como sugerido, abre caminho para critérios arbitrários o que confirmaria os
temores dos juízes: “Eu acho que o nosso processo aqui...ele não é bom. Esse
meio de descoberta da verdade. Veja, na Europa, na Europa Ocidental, e nos
Estados Unidos, você vê isso muito em filme americano. Quem comanda a
investigação é o promotor.... eles não acompanham. E a nossa associação tem
criticado muito isso. Aqui a Constituição Federal diz que o promotor é que deveria
fiscalizar a polícia. E eles se omitem nesse dever.... eu acho que eles deveriam
fiscalizar. ....o titular acaba sendo o delegado a polícia....É a polícia, porque só
vai ser processado .....Aquele que a polícia indiciou. Se a polícia se omite nisso,
essa pessoa sequer chega a ser denunciada. Então ela que escolhe, ela que
seleciona quem vai ser indiciada e quem não vai. Então por isso que o Hélio
Bicudo diz, que quem acaba fazendo funcionar a justiça penal, sendo o titular da
ação penal, é a polícia, não é o promotor” (juiz 1).

Há uma forte percepção de competição entre promotores e delegados pelo


inquérito policial. O inquérito é então qualificado como espaço “político”: “Existe
uma distância muito grande entre o Ministério Público... (e a polícia).
Politicamente, ...delegados e promotores mais lúcidos não disputam isto a nível
de trabalho, trabalho comum, trabalho no Inquérito, no processo, e nem devem
disputar. Mas o fato é que as duas instituições disputam politicamente espaços...
Quando o Ministério Público busca avançar nas suas prerrogativas e nas suas
atribuições no plano criminal, sem dúvida, na medida em que ele avança ele vai
tirando um certo espaço da polícia. Alguns até entendem que o Inquérito Policial
seria desnecessário em alguns casos e tal. E eu até entendo que seria
dispensável. Mas na maioria dos casos, o Inquérito Policial é indispensável..., nos
casos de homicídio o Inquérito Policial é indispensável. De modo que tudo isto
faz com que haja disputa das instituições no plano político. Disputa que a gente
não deve trazer no trabalho porque, na verdade, nós estamos fazendo
exatamente a mesma coisa, caminhando na mesma direção e dentro do mesmo
barco” (promotor 4).

Mas a disputa não fica restrita às instituições: os inquéritos e processos


dependem para um bom desenvolvimento de uma cooperação entre essas
instituições. É com base nas evidências que a polícia coleta que o Ministério
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 708

Público fará a denúncia. A polícia precisa do apoio do Ministério Público e do


Judiciário para realizar diligências e efetuar prisões. Na visão dos delegados essa
competição não é cavalheiresca: “O delegado de polícia não quer alvejar, mas
não gosta de ser alvo, tá? Existe muita gente que quer ter o poder do delegado
de polícia, quer ter um inquérito policial, enfim, certo? Agora, eu acho que o fim
maior não é essas diferenças pessoas e de instituições, e sim, o fim maior é a
coletividade, é a paz e a segurança pública...Tem muitos que não pensam assim.
Então aí fica querendo um tomar o lugar do outro, ter mais poder que o outro. E
eu acho que é um erro; porque tudo é uma engrenagem, e uma engrenagem com
uma rebarba não faz a máquina andar” (delegado 5).

Nessa disputa onde os dois lados querem garantir que o público esteja
protegido, é justamente o público que estará mais vulnerável como reconhece um
delegado: “É, e quem sofre com isso não é a polícia, quem sofre com isso é as
pessoas que perdem os entes queridos, aqueles que perdem seus veículos,
aqueles que perdem seus amigos... eles que sofrem tanto com isso porque eles
gostariam de, de ver esclarecido e recuperar seu bem, né? Quem... A pior coisa
que tem é você sair daqui agora, vai pegar seu carro e tem um vazio no lugar do
seu carro. Cê olha aquele vazio e fala ‘Pô, ali é meu carro, era meu carro’, né?
Isso acaba com você” (delegado 3).

São dois os temas que causam mal-estar entre juízes e promotores em


relação à polícia e que faz com que eles tenham muita cautela ao examinar um
inquérito policial: a possibilidade do uso de violência na obtenção de informações
(tortura) e a corrupção policial que poderia levar policiais a cometerem delitos
como homicídio. Esses temas não surgem quando falam sobre os policiais do
DHPP. É interessante observar que esses são considerados como os policiais
exemplares, acima de suspeitas: “O inquérito policial não é uma boa coisa, mas
eu acho que para a realidade brasileira ele é necessário. Agora precisa agilizar,
precisa ter mais distritos, mais delegados, mais investigadores. Pagar melhor
esse pessoal porque eles ganham mal e porcamente. Trabalham mal
conseqüentemente. Todos têm bico por fora. Surge o problema da corrupção,
que felizmente eu não enfrento. Como eu trabalho com a melhor polícia de São
Paulo (DHPP) esse é um problema que eu não enfrento, mas eu sei que os
colegas das varas criminais eles vivem com esse problema” (promotor 5).

A tortura, nas palavras de um juiz entrevistado seria a “principal técnica” de


investigação da polícia o que ele denomina de “investigação à brasileira”,
caracterizada ainda pela resolução maciça de delitos ou “inquérito por atacado”:
”Uma outra situação que pode ocorrer, ocorre com freqüência que é tortura nas
delegacias. A tortura, enfim que é ter crimes praticados na investigação, que
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 709

ocorre com freqüência. Então ocorre o sujeito se responsabilizar por atacado, por
vários processos. Num dia só, num único dia eles resolvem 20 casos que estão
pendentes....(...) Que crédito eu, juiz, vou dar prá uma confissão que algum réu
tenha dado numa situação dessas? Nenhum! ..... (...) ele possivelmente tenha
praticado alguns daqueles fatos, possivelmente possa ter praticado até todos,
como pode ter não ter praticado nenhum....” (juiz 5). Os delegados entrevistados
percebem que a imagem de violência associada a polícia decorre da suspeita do
uso da tortura, mas eles revelam também uma ambigüidade em relação ao seu
uso: “Porque na época da repressão se praticou muitas arbitrariedades, mas
também se esclareceu muitos crimes, pelo que eu sei. Hoje... às vezes entra uma
pessoa de flagrante em crime de roubo, furto... A gente não tem como... meios
pra investigar essa pessoa e descobrir se ela praticou outros crimes. E ela acaba
respondendo só aquele caso de flagrante. Quando que antes você conseguia,
das formas que se utilizava, se esclarecer uma porção de crimes. Tá? Se
esclarecia 10, 20, 30 crimes que aquela pessoa praticou. Com apreensão de
objetos, recuperação do que foi subtraído... Seria óbvio que eu sou contrário aos
meios que se ... trabalhavam... que se usavam naquela época pra trabalhar. Não
sou favorável a isso...Então a população por isso tem medo da polícia. Pelo
pouco que a gente faz a... o esclarecimento dos fatos... se esclarece muito
pouco...” (delegado 2). Esse entrevistado reconhece a “eficiência” da tortura e a
inexistência de métodos adequados para um competente trabalho policial. Sua
fala revela certa nostalgia por uma técnica cujo uso ajudou a comprometer a
imagem da polícia. As críticas ao uso da força pela polícia são rechaçadas por
outro delegado ao comentar as suspeitas que seriam levantadas sempre que a
polícia prende alguém: “imediatamente questionam se não aplicaram alguma
violência contra o preso...preferem acreditar no defensor do que na polícia...mas
tem pessoas que não podem ficar em liberdade, porque ele vai praticar o mal em
outras pessoas. Se ela ficar encarcerada, o mal menor é de praticar o mal a
alguém ...mas prá algum companheiro de cela, no máximo, né” (delegado 3).
Outro delegado, ainda ao final da entrevista, perguntou aos entrevistadores se
não iam lhe perguntar sobre o uso da tortura: “Vocês não vão perguntar se a
polícia bate, espanca e tortura? Nós gravamos tudo justamente para não chegar
em juízo e dizer: ’eu confessei, mas fui ameaçado, fui torturado’” (delegado 5).

Essas falas sugerem uma ambigüidade em relação ao uso da força na


obtenção de depoimentos. É possível que a falta de uma rejeição cabal desses
métodos, por parte da polícia civil, sustente a permanência da suspeita das
outras instituições sobre a licitude das investigações policiais. Quando os
inquéritos contêm poucas provas técnicas e poucos depoimentos de
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 710

testemunhas, é muito difícil que a acusação se sustente só com a confissão do


acusado. Nesses casos, o que tende a acontecer é a absolvição: “na dúvida você
prefere absolver, porque só a certeza pode gerar a sentença. Então como os
processos são mal feitos, como as provas são mal conduzidas desde a fase
investigativa...[absolve-se]” (juiz 5). As absolvições são outro ponto de atrito entre
os delegados e o Ministério Público. A principal fonte de satisfação profissional,
segundo os delegados entrevistados, estaria em esclarecer os casos,
encontrando os responsáveis e “tirando os delinqüentes de circulação” (delegado
3). Quando o juiz não aceita a denúncia ou quando o promotor pede a
absolvição, esses delegados se sentem traídos: “Ao término do inquérito, aí é
outras instituições e independe do delegado de polícia. Por isso que aquele
jargão popular: ‘A polícia prende, a justiça solta.’ Não é verdade. Certo? Não é
verdade. Mas, que é fascinante, é” (delegado 5). Para outros delegados, é quase
incompreensível que, após terem conseguido solucionar o caso, seu “autor não
seja condenado, tinha as provas, testemunha tudo. Chega lá no Fórum e o juiz
absolve”(delegado 4).

Como os delegados não acompanham os casos até o julgamento e não


depõem em plenário, eles não têm elementos para entender o que ocorreu e por
que não houve condenação, a despeito da condução do inquérito na direção
contrária. A responsabilidade pela absolvição acaba recaindo “no juiz” ou no
“judiciário”. A falta de informações também alimenta as suspeitas e concepções
errôneas; é um forte obstáculo ao desenvolvimento da confiança mútua sugerida
pelo delegado: "Se houvesse a confiança, que não existe, do poder judiciário com
a polícia, fatalmente, esses, esses casos seriam resolvidos. Agora, por que não
há confiança do poder judiciário na polícia? Por quê? O poder judiciário é mais
puro que a polícia? Ou por que a polícia aparece mais nos jornais de forma
deprimente? Então... Mas o judiciário também aparece nos jornais de forma
deprimente.... Acho que eles têm que entender que a polícia vai existir sempre. E
nós temos que entender que a justiça vai ter que existir sempre....E o promotor
público que está no meio vai existir sempre, num regime democrático,
né?...Mesmo nos regimes mais fechados sempre existiu. Então, já que as
instituições vão existir, vão ser permanentes...” (delegado 3).

A qualidade dos inquéritos: o estilo, a linguagem e a aparência do


inquérito
O inquérito policial, que resulta do quadro descrito acima, é um inquérito
pobre. Com freqüência, se destina ao arquivamento porque sequer a autoria
consegue ser estabelecida. A exceção à regra são os inquéritos relatados pelo
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 711

DHPP. Estes recebem uma profusão de elogios dos promotores: “o DHPP, é o


departamento de homicídios que trabalha excelentemente bem. É um
departamento que..., olha, eu só tenho elogios ao DHPP. Com toda a deficiência
material eles conseguem fazer trabalhos milagrosos no DHPP. De modo que eu
acho que com toda deficiência, o DHPP acaba cumprindo nestas expectativas até
a mais do que... que... que com a ... o que eles têm deveriam cumprir. Agora, em
contrapartida, os Inquéritos dos Distritos Policiais são terríveis, são mal feitos.
Eles não tem idéia de coisa nenhuma, enfim... É um horror.. é extremamente
importante, e todo mundo sabe, que valores, por exemplo, culturais sejam
remexidos e é por isto que o homicídio é julgado por sete pessoas do povo. É
necessário que esses valores sejam trazidos. Então, coisas assim extremamente
importantes da argumentação em plenário, não são trazidos pelo Distrito Policial.
Pelo DHPP sim” (promotor 1).

Os juízes não parecem fazer distinção entre os inquéritos. Para estes, de


um modo geral os inquéritos são: “Péssimos... ‘investigação à brasileira’. A
polícia pega uns tantos suspeitos...daí vem o preconceito. Por que essas
pessoas são suspeitas? Aí toda a carga de preconceito social que aquelas
pessoas têm ...” (juiz 5).

É raro que os delegados tenham informações sobre o seu próprio


desempenho. O DHPP é o único departamento da polícia que acompanha os
casos até o plenário do júri como forma de monitorarem o que ocorreu com o
inquérito: “Nós temos policiais que seguem o julgamento do Plenário do Júri, para
ver as falhas o que ocorreu, foi absolvido, por que? Foi falha nossa?“ (delegado
6). Os outros delegados nada sabem, ao menos se procurarem se informar nos
cartórios: “eu, às vezes, tenho interesse num caso mais, que me chamou mais a
atenção... eu acompanho e tenho a minha relação dos inquéritos que eu mando
para fórum, tudo né. Então, passado um tempo eu vou lá até o cartório e verifico,
se... esse caso de homicídio aí, tem vira e mexe eu tenho acompanhado, sempre
eu chego no cartório e vejo se tem... Um caso que, sabe, que tem mais
relevância assim, né, particularmente pra mim...Homicídio..tráfico de
entorpecente, entendeu? Eu também tenho muito interesse assim em saber, se a
pessoa, se o serviço que eu fiz foi bem feito e a pessoa chegou a juízo e foi
condenada. Então, esses tipos de coisas, os delitos mais graves, né,
normalmente” (delegado 4). O que ocorre normalmente é que esses profissionais
trabalham sem saber em que medida foram bem sucedidos na forma de conduzir
o inquérito. Sem essa informação é difícil que consigam melhorar seu
desempenho e produzirem inquéritos que dêem um bom embasamento aos
promotores.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 712

Autoria desconhecida
O aumento dos casos de homicídio com autoria desconhecida está
preocupando os promotores entrevistados. Todos eles revelaram-se insatisfeitos
com esse aumento. O crescimento da “autoria desconhecida” e conseqüente
arquivamento de casos de homicídio é coerente com os obstáculos citados para
a realização dos inquéritos policiais. O que é deveras preocupante é o fato dos
delegados entrevistados não parecerem considerar esse aumento um problema,
pois dele não fizeram qualquer menção; é quase como se isso fosse dado como
normal. Esse crescimento se dá majoritariamente nos casos de homicídios
investigados pelos distritos policiais. O que estaria ocorrendo é que os casos
mais complexos, que exigiriam mais investigação mais acurada, vão ficando de
lado. Tanto tempo se passa que, ao serem enviados para o DHPP ou para a
promotoria, a única providência possível é pedir o arquivamento. Como o
percentual parece alto aos promotores - eles suspeitam que entre 50 e 60% dos
casos de homicídio estariam sendo arquivados como autoria desconhecida -,
estaria de certo modo aumentando a impunidade. O agravante é que, segundo
um dos promotores, são os homicídios mais terríveis as chacinas, os crimes
planejados os que ficam impunes: "Então, na prática, o que acontece é que a
repressão é muito boa quando tem prisão em flagrante, porque ... já prende, é
uma coisa rápida, dez dias já conclui o inquérito, já começa o processo. Acontece
justamente no caso de crimes, digamos assim, que são os menos escabrosos, os
menos graves, os que não são ligados a crime organizado, a quadrilhas,
né...geralmente um crime passional, ou mesmo uma briga de vizinhos. Então...é
mais comum que isso aconteça com...pessoas...menos perigosas, digamos
assim...Porque, o homicídio é sempre um crime grave, mas a gente vê que tem
coisas que são horríveis, planejadas, praticadas por motivos péssimos ... E quem
é preso mesmo acaba sendo aquele que não planejou, que não tem uma
quadrilha, aquele que não tem prática de saber que já tem que fugir, que tem que
não deixar rastro, essas coisas. E por outro lado, os ... muitos dos crimes que são
gravíssimos, chacinas, permanecem com autoria desconhecida e os inquéritos
rodam por muitos anos, né" (promotor 3).

Para os promotores, a imagem da polícia civil é afetada por esse aumento


da autoria desconhecida, além de ser mais um indício de mau desempenho.
Alguns deles ainda levantam suspeitas de que parte desses casos de autoria
desconhecida seria “queima de arquivo” realizada pelo próprios policiais: "Nossa
eficiência é pequena.... num mês 67 arquivamentos, uns 40 crimes não
solucionados. Num mês é coisa que assusta. E porque isso acontece? Porque
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 713

nós não temos uma estrutura ágil, os crimes ocorridos na periferia de São Paulo
os autores são mais do que conhecidos, porém não delatados. .... É a ‘lei do
silêncio’.... eu incluo aqui algumas queimas de arquivo praticadas por policiais
que se transformam em autorias desconhecidas. É 'feeling', é cheiro. Você vê é
um inquérito que não foi investigado, você vê que falta ouvir pessoas, quando vai
para o DHPP é tarde demais" (promotor 5).

4. O processo penal real


Pelo observado acima, menos da metade dos inquéritos policiais relativos
a casos de homicídio que chegam ao Ministério Público reúne condições para
que o promotor possa oferecer denúncia. Parte da má imagem que os
promotores têm da polícia civil decorre do que encontram nos inquéritos. A
maioria dos inquéritos realizados nos distritos policiais é considerado “muito
ruim”. Isso significa que, com frequência, os inquéritos apresentam pouca
evidência para que possam denunciar os agressores identificados. Os juízes
entrevistados compartilham dessa mesma imagem. A baixa qualidade dos
inquéritos acaba ampliando as dúvidas sobre a necessidade dessa etapa e
justificando as certezas daqueles que defendem a sua eliminação: “O inquérito
policial feito nas delegacias de polícia, ele não funciona. Algumas provas são
produzidas lá e não são repetidas: perícia são sempre na fase de inquérito. Mas
ele não é um elemento probatório por si só, mesmo porque lá não existe
advogado, não sei se vocês sabem disso, tá. O delegado de polícia quando ele
trabalha ele faz o trabalho de investigação, que vai servir como sustentação pra
que o promotor possa ou não denunciar alguém por determinado crime....Ele só
se torna réu quando eu recebo a denúncia, o juiz recebe a denúncia, recebo a
denúncia de folhas, fixe-se, recebida a denúncia já existe uma ação penal
proposta, até então é mera investigação” (juiz 4).

Se o inquérito demorou muito tempo, a probabilidade de se localizar as


testemunhas ou de se obter exames complementares é muito restrita, ou seja,
quanto maior o tempo decorrido menor a possibilidade de que a instrução possa
corrigir as falhas e preencher as lacunas do inquérito original.

Promotor: denunciar ou não


Ao receber o inquérito o promotor deve decidir se vai denunciar o agressor
identificado e em qual condição o fará. Os promotores entrevistados revelam que
desenvolvem estratégias para lidar com a falta de evidência dos inquéritos:
podem, por exemplo, pedir que o caso seja julgado como lesão corporal ao invés
de tentativa de homicídio: "A gente atua já pensando no Júri, até é uma tentativa
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 714

de homicídio mas, não tá muito bem caracterizada, é difícil convencer (júri), é


mais fácil conseguir uma punição denunciando por lesão corporal, que o juiz não
vai cair nessa conversinha mas o jurado pode né" (promotor 3).

Pode ocorrer também que um promotor apresente denúncia qualificando o


delito de uma forma e que outro promotor, ao assumir o caso, promova o
reenquadramento legal do crime porque com o tempo “as provas
enfraqueceram”, isto é as testemunhas não mais são encontradas, o conteúdo
dos testemunhos mudou, as provas técnicas não eram suficientes.

O tempo

• efeito do tempo no processo penal

O tempo afeta o processo penal do mesmo modo que afeta o inquérito:


quanto mais tempo se passar, menor a probabilidade de punição. O tempo no
processo vai depender da duração da instrução e das apelações que a defesa
utilizar. O tempo da instrução vai depender, por sua vez, de uma série de
circunstâncias, entre as quais: o volume de trabalho do juiz e do promotor
encarregados do processo bem assim sua disponibilidade para as audiências; a
manutenção da mesma equipe: juiz, promotor e advogado275; a disponibilidade do
réu para se apresentar às audiências; a localização e conseqüente apresentação
das testemunhas. Outra variável a ser considerada é a condição do réu. Se o réu
estiver preso, ele terá prioridade na agenda do tribunal e as audiências e o
julgamento (se ele for pronunciado) deverão ser agilizados.

Segundo os entrevistados, grande parte dos casos de homicídio são


processos que envolvem réus soltos. Isso porque o Código de Processo Penal
estabelece condições muito rígidas para que o réu responda ao processo preso:
“a regra é a liberdade durante o processo, tá, artigo 310 do código de processo
penal, ele pode responder solto ao processo, a prisão preventiva é a exceção, tá.
Ela só existe em alguns, em 3 casos: artigo 312, garantia da ordem pública,
conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, tá.
... o réu não tem residência fixa, não tem nenhuma trabalho ....(...). E tem a
garantia da ordem pública. Garantia da ordem pública acontece naqueles casos
que a conduta se reveste às vezes de tanta gravidade, tá, que havendo indícios
de autoria, ....é importante para a garantia da ordem pública seja assegurada,
que ele permaneça preso. Um latrocínio: um rapaz que, na hora de um assalto,
matou a vítima, tá, foi preso em flagrante, isso já um indício de autoria. Como é

275
Como se sabe, o “turn-over” de operadores do direito constitui sério obstáculo ao andamento
regular do processo.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 715

que você vai conceder a ele liberdade provisória? Amanhã ele vai no mesmo
farol, no mesmo local e vai fazer a mesma coisa, e aí nós não vamos ter uma
vítima, vamos ter duas. Então, o importante é o seguinte, a prisão preventiva é
uma exceção e ela não pode, os motivos da decretação dela não podem ser
estendidos, porque senão vai cair na arbitrariedade” (juiz 4).

Quando o réu responde em liberdade seria de seu interesse prolongar ao


máximo o processo - e seu representante legal se empenha nesta estratégia -
pois, quanto mais tempo se passar entre o fato ocorrido e o julgamento, menor a
chance de condenação. É consenso entre os entrevistados que os julgamentos
com réu solto tendem a demorar mais mesmo quando o advogado não se utiliza
de “manobras protelatórias” porque, na agenda dos tribunais de júri, dá-se
prioridade aos casos de réu preso. Essa prioridade, que atende a exigências do
Código de Processo Penal, acaba afetando a percepção que os operadores têm
dos homicídios e os casos de réu solto são percebidos, e quiçá tratados, como
casos não prioritários: “os crimes com prisão em flagrante o processo é mais
rápido e a justiça rápida é mais justa, né. Os crimes, é ... que o réu está solto já
demora um pouco mais, até porque depois do processo não tem aquela
prioridade, né, o juiz sempre marca as audiências de réu preso antes e as de réu
solto marca pra quando dá, né” (promotor 3).

Uma das estratégias utilizadas pela defesa para prolongar o processo é a


de recorrer da pronúncia. Isso aumenta o tempo do processo em ao menos um
ano, pois os tribunais estão sobrecarregados de recursos e não têm condições
para agilizar a sua manifestação: "nós podemos dizer que em média, em caso de
réu solto como recurso - com recurso da pronúncia -, entre o fato e a data do
julgamento, nós levaríamos aí uns três, uma média de uns três anos, às vezes
quatro, às vezes, às vezes até mais. Mas a média seria aí de uns três anos, três
anos e meio mais ou menos, pra julgar....em casos de complexidade média,
digamos assim, nada de grandes coisas excepcionais e tal....Se você tiver casos
de maior repercussão a tendência é que esses casos andem mais rapidamente
porque é a opinião pública, a imprensa, todo mundo fica em cima, tal, papapá...
então... Há a possibilidade desse caso passar à frente, ser julgado o mais
rapidamente possível....Existe um critério básico que é o critério de ordem que
ele chega, ele vai saindo na ordem que ele vai chegando, esse é um critério
básico, certo? Vai se julgando de acordo com que vai chegando” (promotor 4).

• Volume de trabalho
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 716

Os juízes entrevistados avaliam seu volume de trabalho deles como


adequado. Enquanto policiais e promotores reclamam de sobrecarga, os juízes
aparentam estar satisfeitos com o número de processos sob seu encargo. A
média é de 250 processos por juiz sendo acompanhados em momentos
determinados da instrução, do julgamento e do sentenciamento: “o que eu posso
dizer é o seguinte, a Capital tá melhor aparelhada, inclusive com número de
juízes do que no Interior, tá. Eu já trabalhei com 10 vezes o volume de trabalho
que eu tenho aqui, isso eu não tô dizendo que eu trabalho com poucos
processos. na realidade, nós temos em média 500 e poucos processos pra 2
juízes, dá em média 250, mas esse número não pode ser visto como 250
processos pelo seguinte, os processos aqui, as varas criminais da Capital, os
processos viram muito rápido. Então, tô sempre sentenciando muita coisa e tô
sempre com mais, que o volume de trabalho aqui é grande Então, às vezes, as
pessoas têm uma imagem errada, a questão de número às vezes não
corresponde exatamente aquilo que aparenta; o juiz tem 250 processos só?
não...os processos tão sempre mudando,sempre mudando”(juiz 4).

• Condições de infra-estrutura

Os juízes entrevistados também se revelam relativamente satisfeitos com


as condições de infra-estrutura; as reclamações referem-se à falta de
informatização. Os juízes mencionam que usam computadores pessoais no
trabalho. Já, os promotores queixam-se da inexistência de infra-estrutura: não
têm instalação própria - usam salas cedidas pelo Poder Judiciário; têm poucos
funcionários: em média um funcionário para cada 4 promotores; não têm
telefones ou computadores para atender a todos os promotores; não têm
máquinas de fax: “O suporte técnico? Um telefone, uma máquina de escrever, um
micro computador. Tudo muito deficiente, até pela própria estrutura do
funcionalismo, que ganhando mal vai recrutando sempre pessoas menos
qualificadas...Nós temos três, quatro funcionários ali.... Para vinte promotores.
Isto agora que tá muito bom, né? Antes nós não tínhamos nenhum funcionário...
Nós tivemos acesso a uma linha de telefone direto agora há questão de alguns
meses atrás, que nem telefone direto nós tínhamos. Tinhamos alguns ramais,
dois ramais para atender vinte promotores” (promotor 1). Essas condições
espartanas incluem as instalações físicas; os promotores não têm sequer uma
sala privada para atenderem as testemunhas: “Nos fóruns, as salas dos
promotores são salas cedidas pelo Judiciário. Nós não temos sequer um gabinete
nosso. Se o juiz não quiser, sei lá, seria um absurdo, mas se não quiser servir
café...“ (promotor 5).
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 717

Outra dificuldade relativa a infra-estrutura disponível para o Ministério


Público é a inexistência de apoio para a localização de testemunhas, o que lhe
retira a agilidade para realizar oitivas. Dependente da colaboração de outras
instituições do sistema de justiça criminal, promotores ressaltam a falta de
autonomia para iniciativas: “Então você vai muitas vezes recorrer à polícia ou
basicamente ao oficial de justiça -que é o funcionário do Fórum responsável por
localizar e intimar testemunha, tal, para que elas compareçam para serem
ouvidas, né. ... basicamente o trabalho pessoal do promotor se resume aí a um
computador - dele mesmo -, eventualmente alguns estagiários pra auxiliá-lo,
coisas assim. Mas a parte técnica maior você tem que buscar na polícia”
(promotor 4).

• tempo e a rotatividade de pessoal

A rotatividade de pessoal, segundo entrevistados teria como principal


efeito o retardamento do processo penal. A elevada rotatividade exigiria que o
novo promotor ou novo juiz se familiarizasse com o conteúdo do inquérito policial
e do processo. Segundo os promotores, tal mudança poderia afetar também a
avaliação que o promotor faz do caso, em especial o tipo de qualificação que ele
faz do delito: “Quando o promotor chega num lugar, como substituto ou acabou
de chegar, ele não conhece nada, então tudo vem pra ele pela primeira vez, ele
tem que ler, por isso o trabalho rende menos, né” (promotor 3).

O maior ou menor contato do promotor, com o caso, vai depender da fase


em que está o processo quando ocorre a substituição - se for na fase da
instrução, ele ainda acompanhará a oitiva das testemunhas e do réu; se for na
fase final, já no tribunal do júri, ele terá acesso ao que está registrado nos autos,
a menos que decida chamar as testemunhas para depor em plenário. Esse
contato mais direto com o processo tem um papel não desprezível no
convencimento pessoal do promotor quanto à responsabilidade do acusado e
quanto à credibilidade das testemunhas. É plausível que essa falta de contato
com essa fase da construção do processo também tenha impacto sobre o
convencimento e sobre a motivação do promotor e, portanto, sobre seu
desempenho em plenário. Esse ponto não é levantado pelos entrevistados.

Os juízes entrevistados consideram normal a rotatividade de pessoal e


acreditam que isso não afeta em nada o andamento do processo, mesmo quando
a substituição ocorre no último momento, com o caso já em julgamento. A maior
ou menor familiaridade com o caso não seria um fator relevante para a condução
dos trabalhos em plenário, mas sim a competência geral do juiz.: “nós somos
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 718

quatro juízes, eu sou o titular e tem três auxiliares e nós dividimos os finais de
processo pelos quatro. Então, os processos que eu estou acompanhando a
instrução, que eu recebi a denúncia, ouvi as testemunhas, dei a decisão de
pronúncia, eu vou marcar depois o júri numa vaga na minha pauta. Essa é a
regra geral, mas eu posso fazer o júri pra um colega, o colega fazer um júri pra
mim, não tem problema, nós temos competência total aqui” (juiz 3).

As etapas do processo penal


• A instrução

Como abordado no “processo penal ideal”, na instrução do processo penal


é feita nova colheita de provas, com a apresentação do réu e sua inquirição e
com a oitiva das testemunhas. A qualidade dessa colheita de provas vai
depender de quanto tempo demorou o inquérito e de quanto tempo transcorreu
entre o fim do inquérito e o começo do processo. É o tempo transcorrido que
mais afeta a localização das testemunhas e a lembrança dos fatos. Ainda que
todas as testemunhas importantes do inquérito tenham sido localizadas, isso não
assegura que o conteúdo dos relatos seja mantido. Parte das diferenças que
surjam podem ser consequência do tempo, parte do fato de que agora quem
traduz a fala da testemunha é o juiz, parte porque estão presentes o promotor e o
advogado de defesa e parte pelo próprio contexto em que se dá a oitiva: o
Fórum, um local reconhecido pelos promotores como inibidor de pessoas que
não têm muito contato com a justiça: “A Justiça de uma maneira geral, nós somos
um pouco distantes da população........(...)... Porque quando elas vêm aqui e são
atendidas pela gente, esse atendimento é talvez a coisa mais importante que o
resultado do Júri para elas perceberem que a autoridade..Porque essas pessoas
são maltratadas, essa é que é a verdade. Em todas as repartições em todos os
lugares e tal elas têm barreiras para entrar e tal. E quando eles são atendidos
aqui” (promotor 5).

A localização das testemunhas é considerada um problema para alguns


dos promotores e juízes entrevistados; para outros, isso não ocorreria e as
testemunhas estariam até respondendo à intimação enviada por carta, dada a
falta de oficiais de justiça para realizarem esta tarefa: “hoje em dia, nós estamos
intimando inclusive por carta. Nem o oficial de justiça tem ido, a primeira
intimação é por cartinha sedex e as vítimas e as pessoas têm
comparecido,simplesmente por uma intimação por carta” (juiz 4).

As maiores dificuldades na oitiva de testemunhas ocorre quando a


testemunha mora nas zonas rurais do município: “não se acha testemunha, não
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 719

se acha réu, é zona rural, né, sítios, chácaras” (juiz 3). À medida em que passa o
tempo aumenta a probabilidade de que a testemunha mude de residência e aí a
localização fica comprometida. Isso pode comprometer até mesmo o desfecho do
processo se essa testemunha fôr muito importante para esclarecimento dos fatos:
“Às vezes acontece de uma vítima se mudar, mas não é a regra,.. é claro, que
uma testemunha dessas que não seja localizada, muitas vezes, se isso acontece,
vai levar a uma absolvição, porque uma testemunha fundamental pra que
demonstrasse a autoria de determinado réu... isso acontece, mas não é a regra.
...mas via de regra não, por incrível que pareça as vítimas são localizadas, as
testemunhas comparecem. Acho que vocês tiveram mais tempo, hoje até que tá
tranqüilo, mas 1:00 hora da tarde o andar fica lotado de pessoas pra serem
ouvidas e tal, É uma coisa gratificante saber que funciona” (juiz 4).

Por fim, outra dificuldade consiste em que a testemunha mantenha o seu


depoimento. Os promotores mencionam que, com freqüência, a pessoa se dispõe
a depor na delegacia mas, em juízo, desiste com medo de retaliação (como
mencionado no item 3). Se esta for uma testemunha muito importante, sua
desistência poderá levar ao arquivamento do processo.

A decisão de persistir ou não na localização das testemunhas de difícil


localização dependerá da experiência do promotor: “pela minha experiência,
(tenho) a capacidade de chegar e falar: Eu tenho um processo que tem quatro
testemunhas, as quatro presenciais. Foram ouvidas duas e duas não foram
localizadas. Ora, eu avalio o peso destas duas testemunhas e avalio o peso da
falta das outras duas. De repente, da minha avaliação eu posso chegar a
conclusão seguinte: ‘Olha, eu não preciso destas duas testemunhas. Estas outras
que compareceram são o bastante’, você tá entendendo? eu desisto da oitiva
delas e o processo se acelera” (promotor 1).

O ritual da colheita da prova também é muito diferente daquele


experimentado pelas testemunhas, durante o inquérito. A principal diferença está
em que agora promotor e advogado de defesa estão igualmente buscando
descobrir os fatos, moderados pela atuação do juiz: “O delegado de polícia só
busca de forma inquisitiva a descoberta dos fatos. E aqui não, a gente participa
de uma relação tripartite. Quer dizer, o juiz colhe a prova, mas há a faculdade da
defesa e a acusação também produzirem a prova através das perguntas. Então,
o exercício do contraditório é para quê? Pra procurar e provar a verdade real....A
atividade inquisitiva (no inquérito policial) é como se fosse, mal comparando um
saca rolhas, você vai sacarrolhando a prova. Aqui não. Aqui você dá a
oportunidade para que todos participem , para que esta participação conjunta e
contraditória surja a verdade. Nem sempre ocorre, mas é o que se busca” (juiz 2).
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 720

Na instrução, o juiz faz todas as perguntas ao réu e às testemunhas para


garantir que não haja direcionamento dos relatos. O promotor pergunta ao juiz
que faz a pergunta à testemunha. A seguir, o juiz dita a resposta da testemunha
ou do réu para os autos. Esse ritual é considerado, como descrito no item 2,
ultrapassado, como consumindo muito tempo. O principal objetivo desse ritual
seria o de: “evitar condução. A justificativa disso seria para evitar uma pergunta
capciosa, pergunta conduzida por uma parte. Porque a parte teria interesse de às
vezes fazer uma pergunta: ‘quer dizer que o cara era branco, né?’. É diferente
você perguntar para uma testemunha ‘qual é a cor do cara?’....na verdade esse
procedimento ele alonga uma audiência, ele é pouco produtivo sobre esse
aspecto, porque, veja bem, eu tenho que perguntar pro juiz, pro juiz perguntar pra
testemunha... e também é uma coisa curiosa. Porque você quando pergunta pro
juiz, a testemunha tá sentada ali, ela tá ouvindo você perguntar pro juiz, né.
Então é... então se eventualmente você quis... quiser passar alguma mensagem
subliminar, você quando fala, mesmo para o juiz, você já passou,... é louvável a
preocupação, a solução encontrada não resolve basicamente essa questão e eu
acho que ela até fica sendo até mais antiprodutiva” (promotor 4).

Além do ritual na oitiva das testemunhas, outro problema mencionado


pelos promotores é a dificuldade de comunicação entre os operadores do direito
e as testemunhas. As diferenças no vocabulário e no uso da língua portuguesa
sugerem que há quase um choque cultural entre os dois grupos: "Se você tem
um crime ocorrido no Jardim Grimaldi você vai ter testemunhas que falam um
português precaríssimo: usam expressões, é incrível totalmente diferentes. Por
exemplo, boné é bonel, jaleco é jaco. São coisas que você precisa entender
porque.. Tem testemunha aí que tem (um vocabulário, que você se pergunta)...
que língua que esse homem está falando? Eu não sei. É impressionante, é
impressionante. Claro que essa pessoa tem um pouco de medo de vir ao
Fórum... Todo esse cerimonial" (promotor 5).

• desfecho da instrução

Ao final da instrução, após a análise das provas, o juiz decide se pronuncia


ou não o indiciado. Essa análise das provas é considerada uma das tarefas mais
difíceis. As provas devem ter permitido ao juiz alguma reconstrução dos fatos
ocorridos: “Veja bem, o processo criminal ....o que se está julgando é justamente
um fato, um crime, na realidade, é uma coisa que ocorreu, é um assalto, é um
fato concreto, tá. ....É claro que existem provas técnicas, como perícia e tal, mas
também existe a prova oral, que num processo criminal é muito importante, as
pessoas que presenciaram um fato... O que é importante pra um juiz decidir, o
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 721

que é sempre determinante são as provas, se não existirem provas, ninguém


pode ser condenado. Ainda que tenha sido o autor do delito, porque o juiz só
julga com base naquilo que tá no processo, o que acontece às vezes é que não
existem provas, daí o resultado imediato é a absolvição“ (juiz 4).

Nessa análise, não basta, por exemplo, que o indiciado tenha confessado
na delegacia; é essencial que as provas constantes do inquérito corroborem os
termos da confissão: “eu acredito que apenas a confissão na polícia é difícil pra
você levar o réu a júri, se depois em juízo ele nega. Você tem que analisar se a
confissão dele, com base nas outras testemunhas, com base na prova técnica,
nos laudos. Se ele confessa na polícia que ele deu três tiros na vítima, dois pelas
costas, um na cabeça, aí depois de dois meses, vem um laudo que prova que a
vítima foi morta com dois tiros nas costas, um na cabeça e em juízo ele vem e
fala que não foi ele? Então, a gente tem que analisar aquela confissão como
certa, porque tá condizente com a prova técnica” (juiz 3).

Idealmente os juízes preferem basear suas decisões em provas técnicas,


mas reconhecem que, na maioria dos casos de homicídio, as provas
testemunhais são as mais disponíveis. A avaliação dos conteúdo dos
testemunhos é subjetiva e isso provoca um certo desconforto pelo grau de
incerteza não só em relação às testemunhas mas quanto à própria habilidade de
discernir entre as diferentes versões: “É difícil explicar, como nós lidamos com o
nosso próprio convencimento. É uma questão de experiência do dia-a-dia, de
você saber quem está mentindo, quem não está mentindo. É uma coisa que
quanto maior a experiência, maior facilidade a gente adquire, fazer as perguntas
que levem àquela contradição, pela maneira de resposta do ...(....) ...não existe
assim uma, como o juiz sabe quando a pessoa tá mentindo ou não” (juiz 4). Um
critério de avaliação das testemunhas é comparar os relatos que fez do evento,
em diferentes momentos, e ponderar as mudanças; outro é comparar seu
comportamento, se seguro ou hesitante: “Primeiro, pelas declarações que ela já
tenha dado na polícia, tá. Segundo, pela maneira como ela modifica o
depoimento em juízo, às vezes ela fica hesitante, às vezes simplesmente de você
alertá-la novamente, ela; não, não foi bem isso; já volta, às vezes não. Não é
difícil, tá, às vezes as declarações são totalmente diferentes na polícia“ (juiz 4).
Os juízes não explicam como fazem para separar as mudanças que decorrem da
intervenção de diferentes pessoas intermediando a fala da testemunha
(delegado, no inquérito, ditando as respostas da testemunha para o escrivão;
juízes, no processo). No mesmo sentido, não explicam como “controlam” a
interferência de mudanças causadas pelo efeito do tempo sobre a memória das
testemunhas, ou ainda os efeitos provocados pelo relato sumariado pelo juiz. Do
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 722

mesmo modo, não tratam das conseqüências, para o desfecho processual, do


eventual desencontrole entre o juíz que promoveu a avaliação das provas e
aquele que proferiu a sentença judicial decisória.

Outro problema relativo à análise das provas diz respeito à comparação


entre relatos antagônicos, o que é chamado “prova dividida”: “Mas é que essa
prova é muito, é muito dividida, tem pessoas que tem testemunhas que falou que
foi ele, vem uma outra que fala, não foi ele, porque ele tava comigo lá em Santos
naquele momento. Então o jurado vai ter que ver quem tá falando a verdade,
quem tá falando a mentira, ele vai ter que optar por uma versão que tá no
processo” (juiz 3). Nesses casos, os critérios de avaliação dos testemunhos
incluem grau de isenção presumida da testemunha, congruência entre os
diferentes depoimentos de uma mesma testemunha, congruência entre provas
técnicas e relatos da testemunha: “a análise das provas é, a tarefa mais difícil do
juiz, a valoração de cada prova. Porque o depoimento de uma testemunha pode
valer mais que a de outra num processo. Isso acontece. Por que às vezes o juiz
aceita o depoimento de um e não da outra? Mas tudo isso o juiz fundamenta na
hora da sentença. Porque a testemunha fulano de tal é isento, não tinha nenhum
vínculo com o réu ou com as partes, já tinha prestado depoimento idêntico
anteriormente, mostrou coerência, segurança na hora de prestar o depoimento.
Em compensação a testemunha sicrana é parente do réu, demonstrou interesse
em beneficiar, que é patente às vezes e é por aí. Agora, o que é importante frisar
é o seguinte: no nosso direito, qualquer decisão do direito é fundamentada, tá ali
no processo, o juiz decide sempre fundamentadamente e cada decisão cabe
recurso, tanto pra defesa como para o ministério público, tá “(juiz 4).

Para poder qualificar adequadamente a ação, o juiz deve ainda avaliar


qual era a intenção do indiciado. Deve então fazer “um juízo de valor sobre
aintenção do agente: se ele agiu por imprud6encia, imperícia ou negligência,ou
se ele pretendia o resultado diretamente, ou se ele assumiu o risco do
resultado...Nem sempre é fácil de se fazer porque você vai ter que valorar toda a
prova” (juiz 2).

Após à análise das provas, o juiz expede sua sentença, pronunciando ou


não o indiciado276; se pronunciado, o agora réu vai a julgamento. Nesse caso, a
agilidade do julgamento e do processo penal vai ser determinada pela estratégia
do advogado de defesa em apelar ou não da pronúncia. Essa apelação retardará
o andamento do processo em ao menos um ano.

276
O juiz pode ainda desclassificar o delito, e absolver sumariamente o acusado.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 723

O julgamento
O júri é interpretado pelos promotores como sendo o momento do reviver o
que foi o delito: “Júri é um teatro no sentido mais sério da palavra... Então,
quando a gente vive este teatro que é o dramalhão da morte, da orfandade e do
peso da própria violência, você acaba incorporando o personagem. Então, não
tem como se faça Júri sem se morrer também, sem se buscar, até interpretar o
mal, o dano da violência, a dor da violência e isto é terrível, precisa ter uma
cabeça assim, muito controlada“(promotor1).

• Papel dos operadores no júri

Ao descreverem o julgamento, os promotores e os juízes sentiram


necessidade de definir o seu próprio papel dentro do julgamento. É interessante
que, nessa descrição, cada corporação arroga para si o papel principal. Para os
promotores, eles são o elemento chave do júri: “Bom o promotor é a peça mais
importante - não quero aqui puxar a sardinha para o meu lado - mas o promotor é
a peça mais importante no processo do Júri. Porque toda a acusação é ele que
formula, certo. É ele que faz a denúncia, é ele que vai acompanhar toda a
produção da prova, é ele que vai também fazer a inquirição das testemunhas..
em juízo, é ele que vai deduzir a acusação em plenário, é ele que vai ficar
falando lá duas horas, é ele que vai interrogar as testemunhas em plenário...”
(promotor 4).

Para os juízes, seu papel de presidente do tribunal do júri é central. O juiz


garante o respeito às formalidades, a ordem entre as partes, o respeito às
normas regulamentares relativas ao tempo disponível para que acusação e
defensoria se manifestem. Igualmente, é o responsável pela formulação dos
quesitos de acordo com as alegações da promotoria e da defesa: “ele é o
presidente,.. ele vai zelar, o poder de polícia é dele pra que as partes se tratem
com respeito, promotor, advogado se tratem com respeito, diante de uma certa
normalidade. Ele vai verificar, durante o debate o tempo de cada um, o tempo
que cada um leva pra apresentar a sua tese. Porque o trabalho mais importante
do juiz durante todo o processo do tribunal do júri é a formulação dos quesitos,
por exemplo, o promotor vai apresentar a tese dele de que aquela pessoa é
culpada por causa de determinado fato. A defesa ou vai negar que o réu tenha
cometido o delito ou vai admitir, mas vai apresentar uma tese, que ele agiu em
legítima defesa dele ou de terceiro, que a vítima o teria provocado
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 724

injustificadamente. Tudo isso vai ser considerado na hora da formulação dos


quesitos” (juiz 4).

Em termos das formalidades, o juiz tem que garantir que os princípios da


justiça sejam respeitados: “É se ater à lei e aos princípios de direito. Os princípios
de analogia, dar mesmo tratamento aos casos semelhantes, os princípios de
isonomia que é : todos tem os mesmos direitos perante a lei e devem ser tratados
da mesma forma e correlatos...” (juiz 2). “Se decidirem que ele é culpado, é o juiz
que aplica a pena. O juiz simplesmente aplica a pena, desde que eles entendam
que ele seja culpado. Se entender que é inocente, o juiz absolve, mantém a
liberdade, entendeu? Não é uma coisa simples, não, é complicado” (juiz 1).

O juiz dá garantia aos jurados de que os debates entre as partes serão


caracterizados pela cortesia; dará instruções sobre como os jurados devem se
comportar na sala secreta quando forem votar os quesitos: não podem se
comunicar entre si, devem votar sim ou não para cada uma das perguntas; e, por
fim, o presidente da sessão do júri deve explicar os quesitos: “em princípio
parece que o juiz não faz nada no júri. Ele fica sentando lá só assistindo e tal,
mas, eu percebo que os jurados tão muito ligados na presença do juiz...Um
debate acirrado que possa ocorrer, os jurados na hora eles olham pro juiz pra
saber qual vai ser a providência que o juiz vai tomar...manter a ordem...Na sala
secreta o juiz é fundamental, principalmente pra explicar os quesitos, que são as
perguntas que são feitas aos jurados pra eles responderem, que vai ser com
base na resposta a esses quesitos, que vai ser dada a sentença, né,
condenatória, absolutória, e o juiz tem que explicar muito bem e de forma
totalmente imparcial, pra que o jurado não possa tender pra um lado nem pro
outro naquele momento” (juiz 3).

A exigência de um convencimento individual dos jurados é um outro ponto


de diferença, realçada pelos juízes, entre o modelo de júri brasileiro e o
americano: “aqui também é diferente, os jurados não podem se comunicar uns
com realçado pelos juízes os outros, o convencimento dele tem que vir
isoladamente. É diferente, por exemplo, modelo americano, um jurado
conversando com outro, às vezes eles têm que se reunir até que todo mundo
concorde. Aqui não, cada um vai responder aquilo que entende. Então, às vezes
o resultado nem é unânime, 5 jurados votaram de um jeito, outros de outra forma.
O importante é que os jurados não podem se comunicar. Tudo isso cabe ao juiz,
como presidente do tribunal manter a ordem pra que não haja nulidade durante o
trabalho. Orientar os jurados, na hora dos quesitos, sem que haja um pré-
julgamento, tá, porque justamente os jurados são pessoas leigas, eles precisam
de alguma orientação, tá, cabe ao juiz orientá-los , explicando cada um dos
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 725

quesitos, o que importará a resposta de uma forma ou de outra pro resultado


daquele fato” (juiz 4). A exigência de não comunicação entre os jurados, segundo
um dos juízes entrevistados, resulta do medo da influência de um sobre outro (ou
outros), e da crença segundo a qual essa influência pode representar um tipo de
persuasão perniciosa sobre os jurados. Como se verá mais adiante, esses
procedimentos não parecem garantir uma boa decisão dos jurados nem uma
decisão congruente com as expectativas e avaliações dos promotores e juízes,
além do que tais procedimentos estão associados a uma série de dúvidas que
alguns dos operadores têm sobre a validade do júri.

• réu no Tribunal de Júri

A lei obriga a presença do réu no plenário do júri. Uma das dificuldades


para a realização do júri tem sido a presença do réu. É consenso entre os
entrevistados que quando o réu aguarda o julgamento em liberdade e há forte
chance de que ele venha a ser condenado, com frequência ele desaparece antes
do julgamento. “E aqui tem um problema, não se pode fazer Júri com um réu
revel, réu foragido. O procedimento do Júri pára na metade quando o réu está
foragido” (promotor 1).

Alguns promotores defendem que essa restrição deveria ser eliminada:


"por causa desse problema da exigência da presença física do réu, muitos
julgamentos se perderam, então 'tá tendo uma certa é ... flexibilização deste
dispositivo da lei na jurisprudência. Então, tem alguns lugares, alguns juízes e ...
isso já foi até reconhecido pelo Tribunal, que quando o réu é intimado
pessoalmente e não aparece, tão achando possível fazer o julgamento dizendo:
'foi intimado pessoalmente, foi dada oportunidade a ele comparecer, não
compareceu porque não quis'.... Porque é uma estrutura da justiça muito grande
que é empregada pra fazer o júri pra simplesmente se perder aquilo. Então
conforme o lugar, se você perde a data de julgamento de hoje, vai marcar daqui a
6 meses, daqui a um ano..." (promotor 3).

Outro problema recorrente, e que atrasa o julgamento, é a não


apresentação de réu preso: “nós temos um preso que está em Franco da Rocha
que não foi apresentado. É a segunda vez que nós requisitamos esse preso...
veja bem . .. por burocracia... Ele precisa vir com escolta, quem faz essa escolta
é a polícia militar, mas quem está cuidando do preso é a polícia civil...... (....) O
Estado não pode deixar uma pessoa presa e ser negligente na apresentação dele
quando o juiz a chama” (juiz 5).
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 726

Estando o réu presente o julgamento tem início com a escolha dos jurados.
Essa escolha também é dotada de algumas peculiaridades: em cada vara de júri,
é feita, no começo do ano, uma escolha dos jurados que atuarão ao longo de
todo o ano, naquela vara. A cada mês, um mesmo grupo de pessoas atua como
jurado em mesmo local. Assim, um promotor e um juiz contarão com um mesmo
corpo de jurados em diferentes julgamentos. Isso não é um fato neutro; essa
presença de um mesmo grupo de jurados afeta o desempenho do promotor,
como se verá a seguir. O procedimento de escolha dos jurados é o seguinte: “é
feita uma lista no começo do ano, um menor sorteia aqueles que vão figurar
durante todo o ano na lista dos jurados da cidade ou da comarca. E daí são
sorteados por sessão aqueles que vão participar daquela sessão, eles participam
da primeira e assim por diante, eles são sorteados pra cada julgamento” (juiz 4).

A lista deve conter uma “amostra” da sociedade: “Veja bem, ela é feita de
forma com que apareçam pessoas de diversos grupos sociais. Então existem
funcionários públicos, então existem é profissionais liberais, então existem de
todas as camadas sociais, porque senão você não tá representando a sociedade.
A idéia do júri é o julgamento pelos seus próprios pares, então esses nomes que
aparecem na lista, ainda mais comunidades pequenas, é muito fácil de ser feito.
São pessoas idôneas, ninguém com antecedente criminal, ninguém com qualquer
processo tramitando, nada disso, mas representantes da população, professores,
médicos, engenheiros” (juiz 4).

Tanto o promotor como o advogado de defesa podem impugnar um jurado.


Segundo os entrevistados, o perfil do jurado ideal varia caso a caso; parece
haver resistência dos advogados de defesa em aceitar jurados que tenham
profissões técnicas: engenheiros, matemáticos, pessoas que usem muito o
raciocínio lógico, pois essas pessoas tenderiam a ser mais resistentes a
argumentos sobre emoções: “advogados recusam jurados de carreiras técnicas
porque essas pessoas têm uma maneira lógica de raciocínio que não admite
certas saídas. Então é assim:’matou? tem que cumprir, tem que pagar pelo
crime’” (promotor 2). Haveria também uma tendência a rejeitar jurados que
possam se identificar com alguma das partes: “tanto o advogado como o
promotor, na hora que é feito o sorteio, na hora do início da sessão, eles podem
recusar um número certo de jurados de maneira que eles possam equilibrar o júri.
É claro que de acordo com o crime, de acordo com o tipo de pessoa a ser julgado
interessa pra acusação e pra defesa que o jurado tem mais mulheres ou menos
mulheres, mais pessoas idosas, menos pessoas idosas. No caso de aborto, pra
acusação não interessa haver mulheres, depende do caso” (juiz 4).
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 727

Além do sorteio anual, há o sorteio dos jurados do mês e, no tribunal, o


sorteio dos jurados que vão atuar naquele julgamento específico. O promotor
balisa sua atuação na sua experiência anterior com esse grupo de jurados. Ele
tem em mente, ao fazer a acusação e ao pedir a sentença, o que ocorreu em
julgamentos anteriores frente a esse mesmo corpo de jurados e o que eles
poderiam estar esperando dele, como promotor: “São sorteados 21 jurados que
vão atuar durante um mês naquela Vara de Júri......então o promotor não vai
ficando pedindo condenação sem provas. Porque os pedidos de condenação
dele se enfraquecem... Quando ele não tiver provas ele pede absolvição. Quando
ele tiver provas ele pede condenação. Aí o que acontece? Ele capta a confiança
dos jurados, porque o jurado vai falar: ‘não, se ele tá pedindo a condenação hoje,
vou prestar atenção, deve ser caso (para condenar), porque quando não é o caso
ele pede absolvição’. É uma estratégia de atuação né...então acontece bastante.
É, tanto por problemas que acontecem depois do inquérito, porque a prova fica
fraca, porque as testemunhas não são localizadas, às vezes as testemunhas
mudam as versões.. fica muito difícil” (promotor 3).

• Produção da prova

Não é sempre que as testemunhas são chamadas para depor em plenário.


Isso depende de uma decisão dos promotores e dos advogados de defesa.
Quando não há apresentação das testemunhas, o promotor, em sua
apresentação, se refere aos depoimentos nos autos do processos. Os
entrevistados não mencionam a presença de policiais depondo em plenário;
aparentemente, esse procedimento não é usual, o que também representa uma
diferença entre o tribunal de júri no Brasil e em outros países. Também não há
produção de prova em plenário. Essa seria outra diferença entre o tribunal de júri
brasileiro e o americano: “(EUA) E o processo ele ocorre, a produção da prova
vai se dar perante os jurados o tempo todo. ...Qual é o inconveniente nosso
disso? Significaria que os júris demorariam... os jurados teriam que comparecer
muito mais, com muito mais dias, ou então teriam que permanecer durante
meses, como no caso que aconteceu com o Simpson, às vezes um ano
eventualmente.. A nossa justiça não suportaria esse custo, porque nós teríamos
que chamar jurados, nosso jurados são pessoas do povo, são pessoas que têm
suas atividades, têm outras funções e nós temos que chamar esses... E de
repente é um sujeito que, imagine você, um comerciante, um professor, um
bancário, ou mesmo um sujeito que trabalha numa empresa privada, ficar à
disposição da Justiça durante três, quatro meses direto” (promotor 4). Os
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 728

julgamentos são em geral muito rápidos, raramente duram mais de um dia. O


custo é um dos motivos da agilidade deles.

• Testemunha em plenário ou não

Os promotores decidem sobre a necessidade ou não da presença das


testemunhas em plenário dependendo da sua experiência profissional e
dependendo do conjunto das provas. A presença das testemunhas em plenário
dá aos jurados um contato maior com o caso do que a mera leitura das peças: “a
gente percebe que os advogados, os promotores, eles fazem questão de que a
testemunha seja ouvida em plenário, na presença dos sete jurados... Pra eles
poderem sentir o problema, né. Então, pelo que as testemunha tá falando é como
se o julgamento fosse mais real, sentisse mais a realidade. (sem esses
depoimentos ocorre). Absolvição, absolvição, sem dúvida“(juiz 3). Os promotores
entrevistados revelam preferir enfatizar em plenário as provas técnicas e só
utilizar as provas testemunhais quando são essenciais: “quando eu faço júri, ... eu
costumo bater muito nas provas técnicas, né. Porque ... a prova testemunhal é
meio variado, as pessoas se contradizem ... né, agora se tem lá o laudo dizendo
que levou 10 facadas pelas costas, levou 10 facadas pelas costas. Não tem como
dizer “não, não foi bem pelas costas”, né! É difícil ... contrariar isso. Então,
quando esse elemento ‘tá bom” (promotor 3). A prova testemunhal é essencial
quando há testemunhos antagônicos: "Prova dividida. Depoimento dos dois
lados. Tem gente dizendo que a vítima estava armada, alguma coisa assim. Eu
arrolei porque alguma coisa precisa ser esclarecida na frente do jurado. Se a
prova tivesse muito segura eu não teria arrolado. Isso é problema tático meu.
Cada uma age de uma maneira. Há colegas que gostam de levar testemunha em
plenário sempre, eu não. Isso é muito pessoal, muito pessoal. Não dá para você
dizer que está certo ou errado” (promotor 5).

A prova testemunhal provoca dupla insegurança: não se pode avaliar de


antemão como a testemunha vai se comportar e como os jurados vão interpretar
aquele testemunho. Entre a instrução e o julgamento, pode ter se passado muito
tempo e a testemunha pode mudar seu depoimento por todos os fatores já
elencados: memória, pressão externa, etc. Assim, a dúvida dos promotores
estará no quanto de mudança do testemunho será aceitável: “um fato ocorrido
em abril de 93, que vai ser julgado em março de 96 - e até que esse processo
não foi dos mais demorados - é evidente que a memória da testemunha está bem
prejudicada, e que isso vais ser bem explorado, que ela vai ser incoerente....Até
porque se ela for coerente também ela está mentindo. Se ela disser exatamente
o que ela disse há dois anos atrás, a percepção da memória não permite isso, ela
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 729

tá mentindo. Ela não vai se lembrar a quantos metros a vítima estava do réu,
quantas cadeiras tinham e tal. E começa (o advogado de defesa) a se perguntar
coisas desse tipo para tentar desacreditar sim” (promotor 5).

Os juízes sentem insegurança sobre a capacidade dos jurados


discernirem, entre as testemunhas, quais estão falando a verdade: “no meu caso,
não. Sou eu que vou julgar, (no plenário) vão ser os jurados. Será que os jurados,
que não têm a prática, que não tão em contato todo dia com testemunha, com
inqüirição, será que eles têm a percepção pra verificar se a testemunha tá
falando a verdade? é difícil, né” (juiz 3). O julgamento no tribunal de júri provoca a
insegurança, nos operadores do direito, pela imprevisibilidade que atribuem ao
comportamento dos principais protagonistas leigos: testemunhas e jurados.

• tempo e as mudanças nos agressores

O tempo passado entre o crime e o julgamento é mais um elemento de


que se vale a defesa para justificar um pedido de absolvição, não porque esteja
convencida da inocência do réu, mas porque este teria passado por um
regeneração espontânea: o crime teria sido um ponto de virada na vida daquela
pessoa que, tendo tomado consciência da magnitude do seu ato, se arrependeu
e passara a ser um cidadão exemplar. O crime ficaria sendo “um mal que veio
para o bem” e um ato isolado na vida daquela pessoa. O recurso a esse
argumento, por parte da defesa, é bem aceito pelos jurados, segundo os
promotores: "Quanto mais tempo se passar entre o fato e a data em que vai ser
julgado melhor é para o advogado quando o réu está solto. O caso aconteceu há
4 anos atrás (o advogado diz) 'ele cometeu esse crime ai, mas depois desses 4
anos ele não fez mais nada. Ele fez um fato ocasional" (promotor 4). Esse tipo de
argumento também parece ser aceito pelos juízes entrevistados e não só pelos
jurados, como revela um juiz comentando Mathias Arrudão: “Eu não tô julgando
aquela que cometeu o crime. O tempo modificou muito....Hoje, ela é uma pessoa
madura, responsável, séria...mas aí tem que ser julgado o criminosos, aquele da
época do fato...E daí que ele entendia que muitas vezes a Justiça tá a serviço do
crime. Por isso que veja...principalmente no crime, se você não resolver a
questão logo, ela perde...perde oportunidade ou...perde interesse” (juiz 1).

Os promotores se preparam para esse argumento do advogado da defesa


e para uma eventual absolvição. Nessa avaliação da potencial perda do caso,
entra até o perfil do advogado de defesa; é alguém que assiste a criminosos
habituais ou não: “o caso ocorreu em 93 e vai ser julgado, provavelmente, em 96.
Ora, em 3 anos ele não cometeu nenhum delito...Isso é um argumento que o
jurado realmente se sensibiliza. Se ele tiver chance de não colocar esse cidadão
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 730

na cadeia ... eu não sei quantos anos ele tem, não conheço o caso assim com
mais especificidade, peguei ao acaso. Mas, pelo que eu conheço do advogado,
pelo que eu sei ele não pega caso assim... de gente perigosa, nem nada. Então
ele vai ter essa argumentação em seu favor, né. É claro que num julgamento
mais rápido, no calor dos acontecimentos, beneficia a acusação, quer dizer: a
vítima tá fresquinha, o fato tá fresco, as provas tão colhidas agora” (promotor 5).

• Ausência da família da vítima

O argumento da regeneração espontânea tem mais peso e é mais


facilmente assimilável pelos jurados pela presença maciça da família do réu e
pela ausência da família da vítima: "a grande maioria dos casos é assim: aquela
vítima já se foi ninguém mais liga prá ela.. E aquele réu, que pode ser uma
pessoa que cometeu um crime bárbaro: tá lá a mãe dele, tá lá a mulher dele, tá o
filho dele. Então isso é uma coisa que atrapalha a justiça, né. não tem ninguém
la'prá falar: 'esta pessoa aqui está esperando esta condenação', mas a defesa tá
dizendo: 'todas essas pessoas estão aqui esperando ver esse homem voltar para
casa'" (promotor 3). Enquanto isso o promotor não dispõe de elementos para
contrabalançar esse apelo emocional com dados sobre a dimensão da perda no
seio de outra família, a da vítima, ou seja do dano causado pelo réu: “(não tem
ninguém) prá me fornecer subsídios,..prá me trazer uma notícia, por exemplo de
que ele era um bom pai, de que ele era um sujeito trabalhador e tal. Porque esse
tipo de informação não tem. O que eu sei é que esse cidadão morreu... Na
periferia de São Paulo a violência é tão grande, mas tão grande, tão brutal, tão
brutal que as pessoas esquecem, perdem.. Tem mãe que perde o filho e não vem
depor. É uma coisa assustadora isso. Ou quando vem depor, depõe assim sem
dar as informações necessárias quase com má vontade” (promotor 5).

No limite, esses julgamentos ocorrem sem público, o que para os


promotores é mais um indicador do grau de indiferença da sociedade em relação
aos homicídios. Nessa avaliação, eles descontam o fato de que tanto tempo se
passou entre o perda das famílias e a ação do Estado e que há tantos obstáculos
para as famílias se manterem informadas que elas desistem, não por indiferença
mas por impotência: "Você fazer um Júri sem nenhuma pessoa te assistido: afinal
alguém morreu. Se você subir agora você vai ver, não tem ninguém aí nos
tribunais...Eu acho que esse é um dos grandes problemas, eu acho que a gente
se acostumou a viver com a violência. Tratar a violência como uma coisa
absolutamente normal. A maioria das pessoas perdeu a capacidade de se
indignar com a violência" (promotor 5).
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Ao final do julgamento o juiz apresenta aos jurados as perguntas às quais


eles deverão rsponder “sim” ou “não”. Para formular essas perguntas, o processo
deverá conter informações sobre as circunstâncias em que a morte ocorreu.
Essas informações referem-se aos motivos que levaram o réu a ter praticado o
ato. O conhecimento dos motivos permite ao juiz definir se a pena deve ser
agravada ou se deve ser reduzida. Para isso é necessário saber se o réu
cometeu o homicídio sob o domínio de forte emoção; se, por motivo de relevante
valor moral ou de relevante valor social, todas essas circunstâncias atenuantes,
isto é que contribuem para a redução da pena imposta. Ou, ao contrário, é
preciso saber se o crime foi cometido por motivo torpe fútil; se o meio empregado
foi cruel ou insidioso; se a morte foi consumada para assegurar impunidade ou
vantagem de outro crime, todas estas circunstâncias agravantes que podem
aumentar o quantum da pena imposta. A maior dificuldade comprobatória, para
os promotores entrevistados, estaria na identificação dos motivos e da intenção
do réu. O juiz deverá ter essas informações para formular os quesitos.

• Quesitos

A construção dos quesitos é um procedimento complexo, segundo os


promotores e juízes enrevistados. É mais um dos pontos onde nos diferenciamos
do que se passa em tribunais de júri americanos: “Porque o júri aqui no Brasil não
é feito por quesito único, como nós estamos acostumados lá ver nos Estados
Unidos. Então, pelo menos nos filmes nós estamos acostumados a ver que o júri
se reúne e vota com o quesito: é culpado ou inocente? Aqui não é assim, é o juiz
que vai verificar de acordo com as respostas de todos os quesitos, se o júri
considerou aquele réu culpado ou inocente. Então, cada um dos quesitos vai se
referir a uma das peças da defesa, primeiro enquanto a existência do fato,
primeiro quesito- se o fato realmente ocorreu, se a vítima faleceu em razão do
ferimento, se aquele ferimento teria sido causado, foi o próprio réu ou outra
pessoa, o réu teria agido em legítima defesa....Mesmo a legítima defesa no júri
são 3 quesitos, 3 ou 4 quesitos. Então aí são as teses todas, se houve privilégios,
se houve justa provocação da vítima. A resposta dos jurados a todos esses
quesitos é que o juiz vai verificar, qual a tese que foi aceita e qual a pena. O juiz
aplica a pena no final, qual a pena que vai ser imposta àquele réu” (juiz 4).

As intenções e o estado emocional do réu também serão avaliados pelos


jurados, nas respostas aos quesitos: “Ele matou em legítima defesa, sim ou não?
Se foi em legítima, ele tá absolvido. Tem outro quesito, a violenta emoção, se o
jurado reconhece que o réu agiu sob o domínio de violenta emoção, a pena é
reduzida, então o juiz vai reduzir a pena. Tem um quesito no final, (se) existem
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 732

atenuantes a favor do réu. Se o jurado responder que sim, o juiz também diminui
a pena, pode aumentar a pena como agravante, se o homicídio foi cometido por
motivo torpe é uma qualificadora, o juiz tem que agravar a pena. Então, com base
nessa... nas respostas ele vai fixar a pena” (juiz 3).

As respostas dos jurados vão definir não só a condenação mas vão


permitir ao juiz dispor de indicadores para fixar o tipo de pena e seu
correspondente quantum. Os juízes entrevistados parecem estar tranqüilos
quanto à capacidade dos jurados compreenderem o significado dos quesitos; já,
os promotores consideram-nos muito complicados. Reconhecem que, por vezes,
os jurados se enganam votando errado em virtude da não compreensão das
perguntas: “às vezes os quesitos usam termos técnicos e às vezes os quesitos
se.. criam uma certa complexidade ao... indivíduo que não entende porque a
legítima defesa não se pergunta ao sujeito assim ao jurado fácil assim: ‘o réu agiu
em legítima defesa? Sim ou não?.... porque muitas vezes têm acontecido
situações de, do jurado leigo não entender propriamente a questão que está
sendo colocada, e às vezes votar pensando uma coisa e votar, e votar errado.
Cria alguma complexidade, cria algumas dificuldades..” (promotor 4).

• Desfecho dos processos

As respostas dos jurados serão contadas e valerá a maioria simples de


votos. Ao juiz caberá então a promulgação da sentença, caso os jurados tenham
se manifestado pela condenação. O sentenciamento é rápido: ”o juiz proferir a
sentença, ele não demora mais que quatro ou cinco dias. A menos que ele tenha
um acúmulo de serviço muito grande... Entende? Mas o juiz que sabe administrar
bem o trabalho dele, ele profere aí...sei lá... três, quatro sentenças por dia. Ele
faz isso diariamente, todo dia” (juiz 2).

A grande frustração de todos os operadores do direito é que mesmo


quando há a condenação, dificilmente há o cumprimento integral da pena:
“Agora, eu acho que a grande frustração, mas a grande frustração mesmo do
promotor do Júri é esta questão mesmo da pena. A questão da pena é a grande
frustração porque eu acredito que a pena no homicídio deva ser uma pena que
preocupe muito com esta questão da prevenção geral. Deva ser uma pena
dirigida a esta prevenção geral ao máximo... A preocupação geral de todo
mundo, de juiz, de promotor, das pessoas que estão envolvidas em crimes de
morte deviam ser exatamente esta preocupação de projetar esta pena. Fazer
com que esta pena, na verdade, fosse alguma coisa que se projetasse, que
tivesse a sua... uma publicidade maior, a fim que se retirasse das mãos de outros
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 733

os revólveres e as facas e que o acusado especificamente fosse só um


instrumento dessa, você tá entendendo, dessa projeção de pena como
prevenção geral do crime de morte. “(promotor 1). A pena não cumprida significa
que não se oferece à sociedade um exemplo que sirva de dissuasor para novos
crimes contra a vida. Essa mesma frustração é expressa por delegados: “ Hoje
em dia, por exemplo, se alguém é condenado a dez anos, você vê no jornal ‘José
foi condenado a dez anos’. Quem não sabe, pensa que ele vai ficar dez anos,
mas não vai ficar dez anos porque a lei de execução é clara: cumprindo um sexto
muda de regime. Então, ele vai mudar de regime, tendo bom comportamento
muda de regime. Então, dez anos, cumpre um sexto, vai ficar preso de forma
fechada dois anos e pouco...O indivíduo sabe que vai ficar aquele tempo preso.
Nós temos sursis, condicional, temos várias formas de, de, de gazua de prisão,
pra abrir a porta da prisão” (delegado 3). A mesma frustração e preocupação está
presente junto aos juízes acrescida da certeza de que não haverá re-educação e
recuperação do preso: “Isto é um grande paradoxo para um juiz. Você vai
condenar, o júri vai condenar, você vai mandar o réu para a cadeia e sabe que
ele não vai ter condições de melhorar. Mas é este o sistema vigente, não é?” (juiz
2).

Apesar da pena e da condenação, há pouca confiança de que o réu não


cometerá outro delito semelhante ou que potenciais homicidas serão dissuadidos
por receio da pena. O que ocorre então quando os jurados não condenam,
quando o resultado do julgamento não acompanha a expectativa do juiz ou do
promotor? Os promotores são ambíguos em relação ao que tende a acontecer ao
final dos julgamentos de casos de homicídio. Alguns acreditam que a maioria
resulta em condenação, pelo menos na vara onde atuam. Outros acham que é
difícil obter condenação quando muito tempo se passou ou em determinados
tipos de julgamento quando envolvem um determinado perfil de vítimas (por
exemplo, delinqüentes). Quando não há condenação, porém o promotor a
esperava, a tendência dos entrevistados é de se conformar com a decisão; o
mesmo ocorre com os juízes: “Tem, (discrepância entre jurados e o juiz) eu não
quero ter a pretensão de poder julgar, porque muitas vezes eu saio do júri
achando que o réu deve ser absolvido e ele é condenado, ou deva ser
condenado e é absolvido, né. Mas será que eu que tô com a razão? Não é? Será
que os jurados não decidiram melhor do que eu?” (juiz 3). Situação idêntica com
os promotores: “Então eu acabo ficando...a gente faz uma análise criteriosa e vê
qual acha a solução mais justa, então...ninguém é infalível, né? .(sem o júri).
automaticamente o que eu falasse, fosse, não precisaria ter o júri. Era só eu falar:
‘então vai ser isso e pronto’... Então a gente procura argumentar e às vezes ...
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 734

mesmo a gente não conseguindo, a gente compreende porque dentro daquela


circunstância do processo houve aquele resultado. Então, em geral, eu acho os
resultados aceitáveis ... quando não são aceitáveis, como nesses casos eu acabo
me conformando com o que ... houve alguns casos que eu recorri” (promotor 3).
Ao promotor cabe se conformar ou recorrer da sentença. Não é usual que
recorram da sentença, segundo um dos promotores entrevistados. Dos 40 casos
julgados em tribunais de júris nos quais participou, ele recorreu da sentença em
três julgamentos.

De modo geral, a maioria dos juízes e dos promotores entrevistados


revela-se satisfeita com o resultado de seu trabalho no tribunal ainda que nem
sempre consigam os resultados esperados. Juízes e promotores divergem
apenas no que se refere à reação ao júri, como se verá a seguir, mas não na
satisfação e realização profissionais: “O juiz quando decide, ele tem que tá
convicto de que tá fazendo a coisa certa. Eu quando condeno alguém ou absolvo
alguém, eu tenho que tá certa de que eu tô fazendo a coisa correta, então todos
esses processos dão satisfação. Se amanhã, uma sentença minha for reformada
por entendimento diverso, ainda assim, no momento em que eu proferi, eu tava
convicta que tava certa, tá, e às vezes permaneço convicta que estava certa
ainda assim. O importante no juiz é isso, é que o trabalho sempre tem que ser
fundado em provas, sempre com serenidade, com convicção, o juiz sempre vai
estar satisfeito. Eu, via de regra, sempre tô satisfeita com os meus processos, é
claro que alguns processos difíceis que, via de regra, o juiz tem mais trabalho
quando são sentenciado, o juiz tem mais satisfação. Claro, às vezes é número
muito grande de réus, às vezes algum delito muito grave, é claro que tudo isso dá
uma satisfação, é justamente porque teve mais trabalho, a satisfação é maior”
(juiz 4).

Parte da satisfação dos juízes parece estar fundamentada no fato de que


os julgamentos, bem ou mal, acontecem e que alguma justiça se aplica: "por
incrível que pareça as vítimas são localizadas, as testemunhas comparecem.
Acho que vocês tiveram mais tempo, hoje até que tá tranqüilo, mas 1:00 hora da
tarde o andar fica lotado de pessoas pra serem ouvidas e tal, É uma coisa
gratificante saber que funciona. Não é como deveria ser” (juiz 4). Não sendo a
justiça ideal, é a real e possível no entender deles.

Significado do júri
Ao descreverem o julgamento de casos de homicídio, os juízes e
promotores também falaram sobre o que acham da instituição tribunal de júri. Há
uma diferença sensível entre os juízes e promotores nesse tópico: os promotores
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 735

fazem uma forte defesa do tribunal de júri enquanto os juízes têm dúvidas quanto
à pertinência desta instituição.

A defesa dos promotores está baseada no fato de que o júri é uma


instituição democrática porque os jurados representam a diversidade da
sociedade e porque ele julga pessoas de todas as condições sociais: “no Júri é
diferente, no Júri senta pobre, senta rico, o crime de homicídio é praticado... E
olha te digo uma coisa, viu, os potentados aqui estiveram e saíram daqui com a
pena que precisavam, mesmo no período da Ditadura. Eu era estudante ainda e
me lembro de alguns Júris, onde um deles era de um delegado de polícia ligado a
repressão, pessoa que..., sei que foi condenado mesmo, não tem como. E é por
isto que eu acredito mais no Júri mesmo. O Júri dinamiza muito o Direito“
(promotor 1). O júri também permite aos operadores do direito compartilharem a
responsabilidade por julgar, esse seria um outro aspecto da demcracia do júri: “O
jurado é um cidadão médio.. E nesse sentido eu acho o Júri muito democrático,
cê tá dividindo a responsabilidade, eu acho ótimo isso” (promotor 5).

Ao dividir a responsabilidade, promotores e juízes entram em contato com


a noção de justiça de cidadãos comuns, com seu valores e crenças populares.
Isso, a longo prazo, forçaria a própria justiça a se rever. O que seria considerado
o ponto fraco do júri - ser composto por pessoas leigas - é justamente o que
enriqueceria esta instituição, na visão dos promotores: “Então, algumas pessoas
que não gostam da instituição do júri, argumentam que o homem do povo é um
leigo, ele não é um técnico. Então, ele não tem, é, parâmetros pra proceder um
julgamento. Então, alguns tentam diminuir, esvaziar a competência do júri, até
acabar com a instituição do júri. E por outro lado, uma corrente sustentando a, a,
a força dessa instituição, né? Que é a expressão máxima da democracia: é a
participação do homem do povo na concretização da justiça, né? Então.. o
homem do povo ele não é um técnico, não é? Então, ele vai julgar de acordo com
a sua experiência de vida, ele vai trazer a sua experiência de vida pra julgar. E, é,
os valores, básicos do ser humano não precisa ser juiz pra ter” (promotor 2).

Além de colocar a justiça em contato com as noções de justiça próprias de


cidadãos comuns, participar do júri é uma experiência que educaria a população
em relação à justiça. Teria então um duplo efeito: sobre o judiciário e sobre a
população: “os brasileiros desconhecem a nossa justiça né e tão muito
acostumados com Júri com filme americano. ...Mas é curioso observar como,
jurados, pessoas ...classe média que vão lá, são convocados, que começam a
achar ‘puxa vida, como é interessante’,.... Mas é um universo mais restrito, quer
dizer, ele não tem a dimensão... até a importância cultural, porque nos Estados
Unidos eles dão uma importância cultural para essa questões jurídicas muito
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 736

grande, né. ...o Júri tem esse lado mais, o lado do apaixonante, o lado do
dinâmico, que normalmente você não observa, no dia-a-dia dos outros
processos” (promotor 4).

Participar do júri levaria as pessoas a aumentarem sua crença na justiça


pública, aumentando seu conhecimento e compreensão sobre as complexidades
desta instituição. Essas pessoas, melhor informadas, poderiam influenciar outras
no futuro: “É interessante.. a sociedade critica muito a justiça, então é
interessante ela participar para ver o que está sendo ... Então é muito fácil todo
mundo falar ‘ah, a justiça absolve todo mundo, Fulano foi condenado mas ‘tá na
rua, ninguém vai preso’. E aí o momento que aquela pessoa participa d’um
julgamento e ela própria absolve um réu, então ela ‘tá vendo porque a justiça ‘tá
absolvendo, né, porque é muito fácil achar que todo mundo tem que ser
condenado e chegar lá e a própria pessoa não condenar, por exemplo, então ... a
... a visão que ela tem pode mudar, a versão das pessoas que ‘tão em volta dela
também pode mudar. Porque ela vai levar aquela experiência que ela teve”
(promotor 3).

Já, os juízes temem que os jurados, sendo pessoas leigas, não tenham a
imparcialialidade necessária para julgarem, ou não tenham o discernimento
requerido para avaliar as provas. Os jurados não estariam imunes aos efeitos dos
meios de comunicação e de outras pressões que podem ocorrer: “são pessoas
leigas que vão julgar seus próprios pares. Hoje em dia é muito, seria
praticamente impossível você não admitir que um jurado possa sofrer esse tipo
de influência. (meios de comunicação) Todo mundo hoje em dia, por mais
humilde que as pessoas sejam, tem uma televisão em casa ou conhece alguém
da casa ao lado que tem uma televisão, então as pessoas assistem esse tipo de
notícia. Existem jornais especializados na televisão em passar notícias desse
tipo. Muitas vezes o júri já está de uma certa forma pré-concebido contrária ou às
vezes favoravelmente a uma pessoa. Às vezes também a imprensa faz o papel
inverso, tá, com determinada estória ou uma situação. Então, o júri popular, às
vezes ele, justamente por serem pessoas leigas se deixam influenciar pelo meio,
e isso pode ser positivo ou pode ser negativo em certas situações. Então é isso”
(juiz 4).

A existência de fatores externos e até de pressões é reconhecida pelos


promotores. Estes admitam que tais circunstâncias podem afetar o resultado de
um julgamento. Reconhecem igualmente que outros valores, tal como o apoio
popular a certos homicídios, prejudica alguns julgamentos, mas esses aspectos
não retirariam do júri o seu valor. Um promotor descrevendo o julgamento de um
“justiceiro” acusado de várias mortes conta que fora do tribunal: “havia esse
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 737

público, que tinha tido faixas, mas ... é uma inibição psicológica aos jurados, né.
pra acusação é difícil lidar com as convicções arraigadas que as pessoas têm,
então ... tenho certeza que um dos jurados é ... votou pela absolvição dele
provavelmente com o pensamento: ‘ele matou e fez muito bem em matar, eu
também teria feito isso’. Era uma pessoa que tinha um irmão policial que foi
morto por um bandido. Eu não sabia isso antes, evidente! Senão teria recusado
esse jurado...às vezes a pessoa acha...ele é culpado, mas que por esse
crime...ele não deve ser condenado...né, embora tenha praticado. Então, é...a
gente acaba lidando com vários fatores externos, né. Mas também ficou preso
durante algum tempo, então...com esses elementos que eu tinha eu...ia ser difícil
recorrer” (promotor 3).

A existência dessas pressões externas é outro fator que fortaleceria as


dúvidas dos juízes em relação ao júri. Em cidades do interior esse problema seria
ainda mais grave e justificaria que os julgamentos ficassem sob esclusiva
responsabilidade dos juízes, porque nessas localidades, havendo maior
familiaridade, haveria maior probabilidade de pré-julgamento e da utilização de
informação não pertinente ao caso: “Na minha opinião pessoal, eu acho que seria
mais adequado um juiz, tá. Às vezes, eu não posso, eu não sou crítica, vamos
dizer, nunca é feita justiça no júri, não, às vezes é sim, muitas vezes é sim, mas
muitas vezes eu acho que também não, tá. Por quê? Por causa de todas esses
fatores externos, vocês trabalham com ciências sociais sabem disso. Nós
estamos falando de SP, às vezes, eu trabalhei no Interior, como todos os meus
colegas aqui, ....cidade pequena, que tem apenas um juiz, um delegado, um
promotor, tá, um médico, às vezes, bom, naquela cidade todo mundo se
conhece, então de acordo com o conceito daquela pessoa que praticou o delito
vai ter dentro daquela comunidade em que ela reside, ela vai ser condenada ou
absolvida. Muitas vezes por fatores externos que não estão no processo. Às
vezes a própria conduta da vítima, aliás outras condutas da vítima ....são levadas
ao julgamento sem que tenham interferido no delito. O conceito da vítima também
às vezes é trazido pra esse tipo de julgamento. ....a influência em cidades
menores é muito maior do que em SP, então, é por isso que eu sou favorável”
(juiz 4).

Os promotores entrevistados não só defendem mais fortemente a


instituição do júri como defendem a sua ampliação para outros tipos de crime, de
modo que o júri passasse a julgar, por exemplo, crimes contra a economia
popular, crimes da imprensa e do colarinho branco: “a instituição do júri no Brasil
sofreu muitas transformações...Houve uma época em que o jurado, até muito
recente, em que o jurado popular, ele julgava os crimes contra a economia
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 738

popular, também...e os crimes de imprensa. Mas hoje já há uma reivindicação do


Ministério Público brasileiro pra que se amplie a competência do júri novamente...
Principalmente, a reivindicação maior é pra que se amplie a competência do júri
pra julgar crimes contra a ordem econômica”(promotor 2).

Percepção do Código de Processo Penal


Poucos entrevistados se referem espontaneamente ao Código de
Processo Penal ao falarem do inquérito policial ou do processo penal. De fato o
conteúdo do Código de Processo Penal não seria um obstáculo para a condução
dos inquéritos ou dos processos relativos a homicídios. Quando instados a falar
sobre o Código, a resposta mais freqüente se refere ao desuso de alguns crimes
tais como adultério e sedução. O Código de Processo Penal estaria
desatualizado também no que diz respeito a determinadas formalidades e etapas.
Ao falarem do Código de Processo Penal surgem diferenças de ênfases entre os
operadores do direito entrevistados e que revelam diferenças entre corporações.

Os juízes entrevistados estão preocupados com as tipificações de delitos e


com o que percebem como uma desatualização do Código em termos dos novos
tipos de delitos que surgiram com as novas tecnologias: fraudes fiscais, crimes
do colarinho branco, novos tipos de crimes que não podiam ser previstos em
1941 quando o atual código foi produzido. Os juízes defendem a exclusão dos
delitos em desuso: adultério e sedução, a inclusão dos crimes do colarinho
branco e fiscais, a redução da ênfase sobre os “delitos de pobres”, a
simplificação dos processos, eliminação de etapas para “agilizar os feitos” e
mudanças na concessão de benefícios para se garantir o cumprimento integral
das penas: “vê com o código: você tem que definir com anterioridade o que é
crime e qual a pena. É um princípio, uma garantia democrática de qualquer
cidadão...a gente tem que saber o que é permitido e o que não é. O que é crime
e o que não é...A crítica talvez que recebia isso aí é...que se deveria reservar a
prisão como eu disse agora a pouco a quem merece. E o que deveria ser incluído
no código penal que não existe aqui é o crime...o...crime cometido pela empresa.
Esses crimes financeiros, os crimes cometidos por aqueles que exploram os
consumidores. Existe basicamente impunidade. O crime fiscal. É comum, você vê
aí na imprensa, que em país de primeiro mundo, se alguém sonegar imposto, ele
é preso. Se alguém fraudar, por exemplo, um medicamento, a fabricação de um
medicamento, ele é preso. Né? Se alguém abusar do consumidor; veja, aqui você
tem...você tem um catálogo de condutas e comportamento que...você só policia e
faz controle do povo. Do cidadão comum, da pessoa física. Só ele é... que
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comete o crime. Só ele que vai pra prisão, né? Por isso, acho que você já ouviu
falar daqueles três 'pês' do direito penal, né?.. Aqui literalmente é isso” (juiz 1).

Os benefícios aplicados às penas é outro tópico que, segundo os juízes,


deveria mudar: “eu acho que tem muita coisa pra mudar,....homicídio, crime
doloso contra a vida, eu acho que precisaria ser mudado é a parte de
pena,....precisaria ser mais rigoroso,...a concessão de benefícios, né,...(hoje)
você cumprindo 1/6, já tem direito de mudar de regime, é quase que uma
impunidade” (juiz 3).

O que poderia ser eliminado do Código de Processo Penal, sem colocar


em risco o amplo direito de defesa do acusado, são as etapas que hoje
constituem mera formalidade: “Agora, existem alguns pontos que poderiam
simplificados e facilitados tanto em benefício de todas as partes, como do
processo mais ágil e mais rápido.... Por exemplo, ah, é matéria mais técnica, o
procedimento ordinário tem uma fase de diligência, tá , que vida de regra nem é
utilizada pelas partes, antes das alegações finais, poderia esse artigo
simplesmente ser suprimido e se alguma diligência fosse necessária, que ela já
fosse requerida na fase de alegações finais” (juiz 4).

As formalidades que não têm uma utilidade no processo penal vão ajudar
a manter a sobrecarga da polícia, do Ministério Público e do Judiciário garantindo
a continuidade do congestionamento atual e a manutenção da impunidade: “você
tem um processo penal que não se atina mais com o nosso tempo, porque esse
processo era um processo burocratizado para aquele tempo, que não havia
computador, .....não eram cometidos tantos delitos. Hoje não, enquanto você tá
perdendo tempo resolvendo esse caso, já ocorreram 3, 4 casos naquele espaço
de tempo e você tem que dar respostas e você acaba não conseguindo dar
respostas. Então isso gera impunidade, porque os casos não são julgados.. ..A
justiça penal é justiça de .... o número de pobre que vão aos tribunais criminais é
cerca de 90% de gente pobre. Isso é uma coisa que vem da tipificação do delito”
(juiz 5).

Os promotores entrevistados enfatizam a necessidade de mudanças


formais no Código de Processo Penal para tornar os processos mais agéis.
Essas sugestões envolvem mudanças nos procedimentos e eliminação de
etapas: “todos os procedimentos estão vinculados a gravidade do crime. Ora,
existe crime de extrema gravidade que dá para resolver em meia hora e existe
crime de menor..., por exemplo, imagine um engavetamento na Dutra. Homicídio
culposo com três pessoas mortas, ou quatro ou dez pessoas mortas. É um crime
de gravidade pequena, menor. Homicídio culposo, foi por imprudência. Me
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 740

parece que isto demora mais para apurar que um homicídio, que é um crime
extremamente grave, homicídio triplamente qualificado, onde o réu foi preso em
flagrante, tá certo? E que todo mundo tá ali, viu, foi preso em flagrante tem dez
segundos. Podia trazer na hora, mudar o sistema e trazer na hora e resolver isto
na hora, você tá entendendo? Então, este..., vincular o procedimento à gravidade
do crime, me parece que hoje é alguma coisa ultrapassada” (promotor 1).

Simplificar os procedimentos no plenário do júri, eliminando o libelo e


modificações no tipo de inquirição das testemunhas são outras propostas dos
promotores: “diminuir o número de atos, agilizar um pouco o procedimento, que o
que é muito solene. ...Veja, essa fase de se fazer um libelo que vai ser
sustentado no plenário, né? (promotor 2). Na instrução, as partes deveriam fazer
as perguntas diretamente aos depoentes: “Mas isso, veja bem, eu acho que essa
é uma questão que deveria ser mudada no Código, que é, mesmo na fase da
instrução, a inquirição direta pelas partes”(promotor 4). Os quesitos poderiam ser
simplificados para garantir sua compreensão pelos jurados: “há um projeto de lei
em andamento no Congresso pra discutir justamente essa questão de
modificação do processo penal, da parte do Júri, até pra simplificar“(promotor 4).
A eliminação das etapas que prolongam o processo é a reforma mais defendida
pelos promotores, porque prolongar o processo penal seria algo contra o
interesse da justiça.

Para outros promotores, o mais importante não é mudar o Código mas


tornar as estruturas mais agéis. Não seria o caso de eliminar recursos que
atrasam o processo mas sim de criar estruturas capazes de responder de modo
mais dinâmico às demandas: “Então há algumas coisas que poderiam ser
modificadas, poderiam agilizar. Mas nosso problema é ainda de estrutura. O
problema não é o recurso. O problema é demorar um ano para ser julgado o
recurso. Isso, isso de recorrer é quase um direito natural, todo réu não se
conforma com uma decisão contrária. O que nós precisamos é ter uma estrutura
de agilidade, que esses recursos sejam julgados rapidamente. E nós sabemos
que a estruturas dos nossos distritos policiais é ruim, então o inquérito as vezes
fica um ano, um ano e meio, praticamente paralisado. É erro do Código? Não! É
erro da nossa estrutura. A nossa estrutura é um erro, o Código está certo”
(promotor 5).

Os delegados entrevistados estão preocupados com as perdas sofridas na


promulgação da Constituição de 1988, em especial com a perda do direito de
decretar prisão temporária e de expedir mandados de busca e de apreensão. Na
perspectiva dos delegados, o Código de Processo Penal deveria ser alterado de
forma a que os delegados viessem a recuperar os poderes perdidos. A parte
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relativa a execução das penas também deveria mudar para se garantir seu
cumprimento integral: “eu acho que a prisão poderia temporária poderia ser
decretada por nós delegados....Prisão temporária é para fins de investigação.
Quem investiga é a polícia civil, por que nós delegados não poderíamos decretar
a prisão temporária comunicar com quem se encontra aqui para que o juiz
apenas ratifique posteriormente e nós faríamos aquilo que o juiz pede (...) isso
não tem problema. Outro caso também seria uma leve busca e apreensão”
(delegado 2). A outorga desses poderes aos delegados poderia agilizar o
inquérito policial, dizem os delegados: “daria maior celeridade ao inquérito
policial, é, determinhadas ações que são tolhidas para a autoridade policial.
Como exemplo: a busca e apreensão familiar que já foi outrora... o ato do
delegado de polícia e que hoje é um ato do juiz de direito. Então o que acontece
na busca? Muitas vezes, a arma do crime tá dentro daquela moradia, uma...outro
tipo de prova, uma carta, uma roupa da vítima, enfim, qualquer objeto, qualquer
forma de prova que a gente possa trazer pros autos. E também acho que é uma
bruta responsabilidade o juiz de direito, sem estar vendo o que está acontecendo,
ele como autoridade judiciária, ter que determinar o que se passa pela busca.
Sendo que é a autoridade policial que tinha, que detinha esse poder, deixou de
ter por interesses é, é, é...políticos e de algumas facções da sociedade. Também
porque em certa época houve abusos. Mas, eu acho que hoje nós temos uma
polícia renovada, nós temos homens, como também tínhamos em outros tempos,
é, é...de caráter e de hombridade” (delegado 5).

Qualquer que seja a pena ela deveria ser cumprida para reduzir as
sensação de impunidade: “O que deveria ser mudado na minha opinião é o
critério das penas. O indivíduo que, por exemplo, está sem habilitação, se a lei
diz sem habilitação, pena é de tanto, tem que cumprir essa pena, né? Então, nos
pequenos casos é que se verifica se há no país a impunidade ou não”(delegado
3).

5. Outros temas abordados


• homicídio

Ao falarem do inquérito e do processo muitos entrevistados se referiram


também ao que pensam do homicídio e dos homicidas. Os delegados de polícia
entrevistados e vários dos juízes tendem a perceber o homicídio como um tipo de
delito que não poderia ser evitado, que não pode ser prevenido. A punição,
através da pena, não serviria como dissuasor do homicídio porque ele resulta de
um descontrole de emocional que pode afetar qualquer pessoa, mas que seria
mais comum entre pessoas com pouca educação formal. O homicida seria um
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 742

criminoso ocasional e não um criminoso habitual. Esse caráter aleatório do


homicídio referenda a impossibilidade de prevenção: "Os motivos que levam a
pessoa a praticar um homicídio são os mais variáveis possíveis, certo? Já, o que
leva uma pessoa a praticar um furto é quase que um motivo único, né. Ela tem a
tendência criminosa, ela quer furtar, ela não quer trabalhar, sabe, é uma
personalidade mais deturpada. Já, o homicídio não, o homicida, ele não é um
criminoso, é difícil cê cê, claro tem os homicidas perversos, tal, mas é difícil você
tachar o homicida como um criminoso como traficante, como o estuprador, sabe,
que tem uma personalidade mais perversa... o homicida é um criminoso eventual,
entendeu, ele pratica o crime na eventualidade, lógico que não são todos os
casos, tem o matador profissional, que também vai ser julgado pelo júri...o
matador profissional é bem mais fácil, esses são criminosos, justiceiros, que nós
temos vários aqui" (juiz 3). Enquanto o homicida seria um criminoso ocasional e,
portanto, menos perigoso, o assaltante é que teria a mente criminosa, e que
representaria um perigo para a sociedade. Essa visão do homicida é
compartilhada até mesmo pelos promotores: "Olha, o homicida em geral, porque
isso já esta mudando, é um criminoso ocasional, certo?” (promotor 5). No limite
dessa ocasionalidade, o homicídio é alguma coisa que pode acontecer a
qualquer um e por isso deve ser julgado por homens comuns que possam se
colocar no lugar do réu e entendê-lo: “o homicídio é um crime mais, fora do
comum, porque muitas vezes o que leva uma pessoa a cometer o homicídio é
uma série de fatores que pode influir em qualquer um de nós. Cê tá numa briga
de trânsito, cê tá numa briga de família, marido e mulher, um provoca, vai num
crescendo, sabe? É diferente de um crime comum, do furto, o furto, não, a
pessoa é é já tem aquela personalidade criminosa, no furto não tem muita
variante. No homicídio não, uma série de fatores que pode levar a pessoa, o
homem médio praticar um crime, então é importante que essa pessoa seja
julgada pelo próprio par, né, que vai poder analisar melhor essa circunstância”
(juiz 3).

Ao considerar o homicídio como um delito não passível de prevenção e


que poderia acontecer a qualquer pessoa, esses profissionais se eximem de
resposabilidade pela sua ocorrência. A responsabilidade caberia a outros setores
da sociedade, às escolas, e as famílias, por exemplo, que deveriam ensinar aos
alunos como conter seus impulsos e a dominar suas emoções. Ao sistema de
justiça criminal só caberia a responsabilidade de lidar com as conseqüências dos
atos: “Homicídio não há condições de, de alguém prevenir homicídios. Porque a
forma de prevenir homicídio é a educação. É a educação escolar, a educação
familiar, né? Não a polícia. A polícia não vai prevenir homicídios. Se eu quiser te
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 743

matar, se eu, se eu ficar agora, aqui, se eu me perder com você, uma briga que
eu te mato, quem é que vai, quem é que ia dizer que eu ia te matar? Quem que
vai num bar... quem que vai dizer que alguém vai tirar um revólver e matar o
outro ou dar uma paulada no outro? É, é, imprevisível o homicídio, né? Então,
não há como você evitar policialmente falando. Agora, há como evitar
educacionalmente falando. Acho que deveria existir uma maior atenção do
Estado na parte de educação, pra, pras pessoas. Bom o, o homicídio é, na minha
opinião, o, o crime mais desconcertante na nossa vida social. Não há um meio de
impedir a sua prática. Muitas vezes a gente ouve é, pessoas não, não
especializadas dizer que, que homicídio poderia ser prevenido.....Uma falácia,
não é verdade. Ninguém sabe o momento que alguém vai ter um, um dissabor,
uma desavença......vai ter o sistema nervoso abalado e vai praticar um homicídio.
Então, é aquele sistema nervoso que, que pediu que ele prati..., que ele deixasse
de praticar essa ação, é, sistema nervoso, é aquela falta de um, de uma maior
orientação familiar... Né? E talvez tivesse uma escola, alguém que dissesse, um
currículo, uma matéria que dissesse é, qualquer momento de, briga, qualquer
discussão, “Não se perca, não se perca! Vamo fazer um teste aqui na sala! Você,
xinga ele: desgraçado! Não, não responda, calma!”. Então, quanto ao homicídio,
muito difícil nós prevenirmos, e é muito difícil também nós reprimirmos” (delegado
3).

A diferença entre o homicida e o assaltante estaria em que o assaltante


planeja o seu delito enquanto o homicida reage a uma intensa emoção, ou seja é
dominado por um impulso e não emprega a razão. Os promotores enfatizam, em
suas falas sobre o homicídio, o aspecto das emoções: “No homicídio sempre há
emoções, tornando o crime mais grave: o desejo de vingança torna o crime mais
grave ou uma outra emoção num sentido oposto - a pessoa que age sob notória
emoção, então são circunstâncias que podem diminuir a pena ou aumentar a
pena” (promotor 2), “porque o homicídio é o que envolve, paixões, é diferente de
um assalto, de um furto, de um crime menor, um acidente de trânsito, né, coisas
assim. O homicídio tem um... socialmente uma importância diferente” (promotor
4).

Sem poder prevenir, sem poder prever quem se perderá nos meandros de
suas emoções, aos operadores do direito restaria lidar com as conseqüências
sem poder atuar sobre as causas: “Veja, nós combatemos o efeito. Nós temos
que esperar acontecer a morte de alguém prá investigar. Nós não trabalhamos na
prevenção. É outra coisa, você não pode falar numa prevenção propriamente
dita, de homicídio, por que você nunca sabe o que passa na cabeça de alguém.
O pensamento não paga imposto, então você não sabe o que está ocorrendo na
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 744

cabeça da pessoa, daqui a pouco o camarada entra aqui e me dá um tiro. Como


você vai prevenir? O que pode ser feito é um controle rígido do uso de arma, mas
se ele não tiver arma ele vai matar com a bola de bilhar, ele vai jogar a bola com
tanta força na cabeça do cara, ou a bola de boliche, que vai causar traumatismo
craneo-encefálico, como você vai evitar isso, certo” (delegado 5).

São poucos os entrevistados que percebem as leis e sua aplicação como


tendo um poder dissuasor, mesmo no caso do homicídio: “ vida...Que é valor
mais importante, da área penal. Ou seja, o que se quer, proteger a vida...por isso
que você pune, quem quer cometer qualquer agressão que suprima a vida, né?”
(juiz 1). Estes entrevistados são juízes e promotores; nenhum delegado acredita
que as leis possam impedir a ocorrência de crimes contra a vida. Os
entrevistados, que defendem aplicação das leis como um dissuasor do homicídio,
enfatizam também o papel da sociedade nessa contenção. As leis são
percebidas como falhas no sentido de não sinalizarem que um maior valor deve
ser dado à vida do que aos bens patrimoniais: “O homicídio simples é punido com
uma pena mínima de 6 anos e um roubo à mão armada com 5 anos e 4 meses.
Você vai notar que é quase a mesma coisa. No meu modo de ver tirar uma vida é
muito mais grave do que tirar de uam carteira 10 reais. Então você nota que no
processo de tipificação, na lei, já existe uma direção para atingir o pobre” (juiz 5).

Essa visão expressa na lei estaria presente também na sociedade. Para


conter os crimes contra a vida, além de mudanças na legislação, seria necessário
re-sensibilizar as pessoas para o valor da vida humana: “E que também se
buscasse com um trabalho desse se conscientizar as pessoas de que a vida é
um negócio sério. A sociedade brasileira assimila muito o criminoso, o assassino,
né? Há uma anestesia social em relação ao homicídio.... Há uma anestesia
social. Agora está assim, em razão da própria mídia, né? Porque é a mídia que
forma isto de uma maneira geral, né? Em relação, ao delito patrimonial, você vê
que há uma indignação muito grande contra o assaltante, contra o estuprador,
né, contra o ladrão...Porque na verdade, os valores sociais estão mais ou menos
neste patamar. Os valores materiais acabam se interpondo a outros valores, à
própria vida. Acho que uma revolução cultural neste sentido, e um trabalho
cultural, no sentido de se prevenir o crime de homicídio é essencial mesmo e a
nossa grande frustração é esta: é este esforço que a gente faz de até buscar um
discurso, nesta ética, de projetar esta pena para o futuro e dizer: “Este fez e vai
levar a pena”. Mas na verdade o nosso interesse maior é que ele seja o
instrumento que se possa ter na mão para que outros não possam...para que
outros não matem” (promotor 1).
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 745

Para esses entrevistados a pena pode ser um dissuasor e pode impedir


que o homicídio continue a crescer.

• A pena e a prisão. Prisão para quem?

Alguns entrevistados também abordaram espontaneamente o tema da


prisão e da pena. Ao tratarem desses temas referiram-se à função da pena,
àqueles aos quais deveriam ser aplicadas pena de restrição de liberdade, às
penas alternativas e a necessidade de se re-educar ou re-socializar os apenados.
As menções a essas questões surgiram nas entrevistas junto aos juízes e aos
delegados. Há uma forte frustração entre esses entrevistados com a prisão; ela
não estaria conseguido preencher nenhuma das funções que lhe são atribuídas:
“A pena, ela tem três funções: castigar o criminoso....que é...uma vontade social.
Em sociedade que se cometeu um crime, tem que ser castigado. A mãe castiga o
filho, cê sabe o castigo, porque você fez coisa errada; então é uma necessidade
da sociedade fazer ele pagar por aquilo que ele fez. Segunda condição: reprimir o
crime, né? Há, então eu não vou cometer o crime, porque se eu cometer, eu
sofrerei uma pena. Então, é intimidativa a pena. Eu vou...eu não vou fazer nada
de errado, nada fora da lei, se não eu sofrerei as penas da lei. E a terceira
condição é: pegar esse criminoso, castigá-lo, e regenerá-lo. Que ele cumpra a
pena e saia regenerado, porque ele já foi castigado, né? ...E deve voltar ao seio
social e continuar vivendo normalmente. Dessas três funções, regenerar...não
está se regenerando ninguém na cadeia, muito pelo contrário....Não existe a
laborterapia efetivamente, né? Quer dizer, não se vai dar uma...um ofício para o
marginal. Sai pior da cadeia. Tanto que a gente vê: a reincidência do condenado.
E, infelizmente, a sociedade não dá oportunidade ao criminoso. Uma vez que
criminoso parece que. ele sempre vai ser tachado de criminoso e não há opção
nem chance social pra ele né?...O Estado não dá, e um particular não tem
condições de dar, então ele fica...Outra condição da pena que não está surtindo
efeito é a intimidativa. A criminalidade está em índices alarmantes, não é?
Aumenta-se a criminalidade porque as pessoas não têm medo de sofrer a pena.
Elas não tão se importando, né? Então, a solução tem que ser discutida
socialmente: aumentar as penas, ou, efetivamente cumpri-las? Eu acho que o
quanto da pena é suficiente” (delegado 5).

Nos dois grupos, encontramos entrevistados que defendem a pena de


privação de liberdade a ser aplicada somente para quem representar um perigo à
sociedade: “Mas, eu entendo também, tá em discussão muito isso atualmente
ainda, que só deveria haver recolhimento em prisão, punição com prisão, né, pra
quem oferece perigo à sociedade, né, perigo, né?... Se você tem, por exemplo,
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 746

quem...é...um estuprador, um assaltante, quem usa de violência .... Porque tem


gente que...que efetivamente é violento, usa muito a violência e coloca em perigo
né, o cidadão aí. Mas aqui se prende indiscriminadamente, gente por besteira,
gente que não pagou alimento, gente que comprou um carro e não pagou a
prestação, né.....gente que brigou no baile, aí...a população carcerária é enorme.
Você onera excessivamente o Estado, você faz dessas pessoas criminosas,
porque, na medida em que elas entram em contato com outro lá e se revoltam,
porque acontece uma porção de coisas com elas na prisão, que elas acabam se
revoltando. Normalmente...aí sim se tornam criminosas, né?” (juiz 1).

Além da prisão ser desnecessária, de superlotar as cadeias e de formar


criminosos, a prisão indevida de pessoas aumentaria os gastos do Estado, sem
que haja ganhos para a sociedade. Sendo mais seletivo em relação a quem entra
no sistema prisional, gastar-se-ia menos e talvez sobrassem recursos para se
investir em programas de recuperação: “Então, se você tivesse um sistema
prisional reservado a esses que oferecem perigo, talvez se tivesse condição de
tratar. Porque o Estado não gastaria o quanto gasta com tudo isso, mas...sem
utilidade nenhuma... Então, me preocupa muito a área penal. O volume de
recursos que o Estado gasta, sem nenhum retorno. Ou com precaríssimo retorno,
né?” (juiz 1). O ponto de vista desse juiz é compartilhado por um dos delegados
entrevistados: “Eu...eu sou favorável à manutenção do preso..., cujo crime que
ele tenha cometido seja um crime grave.....um crime que ofende, um crime que
agride a sociedade,. esse não tem outro jeito, tem que ser recolhido mesmo...
agora, a maioria dos presos, eu digo a maioria mesmo...eles poderiam ter uma
outro forma de pagamento à sociedade, do dano provocado a essa sociedade...
Então nós temos aí muitos presos que ocupam lugar exatamente desses outros
que mereciam ser recolhidos, né? “(delegado 1).

À medida que a criminalidade cresce, maior razão há para maior


seletividade sobre quem deve perder a liberdade. Crescendo a criminalidade,
cresce o descompasso entre a necessidade de vagas e sua. Como é impossível
construir prisões em curto espaço de tempo, a tendência é de que o deficit de
vagas continue crescendo apesar da construção de nova as cadeias ou
penitenciárias: “É a mesma coisa que em caso de detenção, cadeias públicas e
penitenciárias, não dá pra acompanhar, você começa a construir uma
penitenciária amanhã, quanto tempo ela vai demorar pra ficar pronta? O número
de crimes nesse meio tempo, é por isso que acontece superlotação, que não é
desejada por ninguém, muito pelo contrário, porque com superlotação no presídio
ninguém vai ser reintegrado na sociedade. Eles estão lá simplesmente esperando
acabar de cumprir a pena, esperando pra voltar, é isso o que acontece. Então, é
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 747

claro que acontece essa dificuldade de estruturação, mas isso também não é
uma coisa exclusiva do Brasil, muitos países tem, problema carcerário então é
problema mundial, dificuldade de volume de pessoas encarceradas” (juiz 4) .

Com superlotação, com condições desumanas e sem qualquer programa


de recuperação o que as prisões garantiriam hoje é a reincidência: “também não
existe um trabalho para a recuperação dos presos. Muita gente critica, mas não
vem aqui verificar se o preso tá precisando de assistência judiciária gratuita, tá
precisando de médico, assistência dentária, criticar é muito fácil” (delegado 2). A
sociedade teria sua parcela de responsabilidade nessa situação, pois ela ignora o
que ocorre dentro das prisões e o que acontece com os presos quando as
deixam: “E isso também é uma das causas da criminalidade, né? Recentemente
um indivíduo voltou pra cadeia e falou abertamente ‘Olha, eu tive umas vinte
proposta pra assaltar, nenhuma pra trabalhar ... Tô aqui outra vez. “É isso. Então,
veja você que a nossa sociedade também é, com todo respeito, é uma sociedade
hipócrita, né? Uma sociedade não, entende esse tipo de problema... Como é que
faz aquele indivíduo que saiu da cadeia se a sociedade vira as costas pra ele? E
vira mesmo! É só perguntar pros presos. Isso não interessa publicar, isso não
interessa a imprensa falar, não há interesse nisso. Mas pergunta pra qualquer
preso residente aqui como ele é tratado aí fora” (delegado 3).

As penas alternativas são apontadas como uma possível resposta a tais


problemas; através delas, poder-se-ia garantir que os delitos de menor gravidade,
que hoje praticamente não são punidos, mereçam alguma punição, além do que
não se incorreria nos riscos de expor esses réus primários ao contato com
reincidentes ou criminosos envolvidos em delitos mais graves. Os entrevistados
defendem então que aos delitos graves sejam aplicadas penas de restrição de
liberdade e que esta seja efetivamente cumprida. Quanto aos delitos leves,
sugerem outro tipo de punição, sendo a pena alternativa uma das opções:
“medidas alternativas, educativas e curativas que é muito melhor do que prender.
O fulano é deixado num fim de semana trabalhando num hospital, carregando
maca e coisa que o valha.... Tem muito mais eficácia do que a pena privativa de
liberdade. Hoje em dia, a pena privativa de liberdade não ressocializa o preso. O
preso fica como um depósito, fica amontoado em uma delegacia de polícia ou na
própria penitenciária e isto não produz nada, nem para a sociedade e nem para
ele próprio. Pelo contrário, acho que hoje em dia, da forma que a pena privativa
de liberdade vem sendo cumprida, isto gera mais violência, não só dentro do
sistema, como capacita aos indivíduos internados para outras atividades
criminais quando da sua desinternação. Infelizmente, nós aqui da vara do júri, só
trabalhamos com penas altas e ao juiz não cabe outra alternativa a não ser
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 748

aplicar a pena que a lei lhe confere aplicar. É um fato inegável porque os distritos
policiais, como nós sabemos, estão super lotados e não há nenhum tipo de
atividade de reeducação e ressocialização efetiva do preso”(juiz 2).

CAPÍTULO 18
JUSTIÇA REAL: A JUSTIÇA NO TEMPO
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 749

Sérgio Adorno
Wânia Pasinato Izumino
Jacqueline Sinhoretto
Fernado Salla
Luís Antônio Francisco de Souza

De tudo o quanto foi dito até agora, pode-se depreender que o desfecho
processual resulta de uma complexa operação institucional para a qual
concorrem decisivamente as práticas dos operadores do direito em suas tarefas
de apuração da responsabilidade penal e de distribuição de sanções consoante
condições previamente dadas, isto é determinadas pela estrutura e
funcionamento do sistema de justiça criminal. Viu-se que, embora o campo de
atuação institucional esteja delimitado por códigos e formalidades normativas, os
operadores técnicos do direito transformam-no, ora alargando-o ora restringindo-
o, introduzindo adaptações e arranjos “locais” de sorte a acomodá-lo diante das
pressões do mundo externo, provenham elas das mudanças sociais em curso -
entre as quais, a emergência e crescimento da criminalidade urbana violenta e
seu impacto sobre o sistema de justiça criminal -, ou de outras fontes como a
crise fiscal, como interesses políticos em torno da manutenção de um estilo
tradicional e convencional de exercício do controle social ou ainda de demandas
por preservação de privilégios corporativos. Deste modo, entre o inquérito ideal e
real bem como entre o processo penal ideal e real, traduzem os operadores do
direito uma justiça potencial em justiça virtual, mediante permanente e contínua
interpretação das possibilidades reais e concretas de aplicação dos preceitos
legais.

O ulterior desenvolvimento desta análise concentra-se na observação dos


efeitos reais desta sorte de justiça virtual. Trata-se agora de enfocar o curso das
investigações policiais e o andamento dos processos penais instaurados nos
casos de linchamentos observados nesta pesquisa. Cuida-se agora de inventariar
obstáculos, desvios, negligências e omissões que retardam o andamento das
investigações policiais e dos procedimentos burocráticos e processuais, que
contribuem para diluir a materialidade do delito e de sua correspondente
responsabilidade penal e que assim estimulam a impunidade como regra nos
julgamento dos casos examinados.

Este última parte da análise está subdivida em três sessões. A primeira é


dedicada ao cumprimento das formalidades legais. Buscou-se repertoriar
garantias e requisitos processuais (portanto previstos no Código do Processo
Penal) que deixam de ser observados pelos operadores do direito. A segunda
sessão enfoca o tempo da justiça mediante acurado exame da morosidade
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 750

processual. Procurou-se mensurar o lapso de tempo entre a ocorrência do


linchamento e o desfecho processual bem como identificar razões e responsáveis
pela morosidade. Por fim, a terceira sessão expõe os resultados da ação penal
sob a forma de sentença judicial decisória nos casos de linchamento observados
ao mesmo tempo. Ao fazê-lo identifica três mecanismos, subjacentes ao
andamento processual - ruído, rumor e tumulto - que contribuem para pertubar a
aplicação das leis penais.

1. Requisitos, formalidades e garantias processuais


Como se sabe, a emergência da moderna Justiça penal nos quadros do
Estado de Direito foi seguida de rigorosa codificação dos procedimentos judiciais.
Em diferentes países e sociedades, a modernização da legislação penal - em
particular na Europa durante e logo após o processo revolucionário em fins do
século XIX e início do século XX - ensejou todo um grande debate entre
processualistas visando a alcançar fórmulas, política e juridicamente aceitáveis,
capazes de promover a apuração da responsabilidade penal segundo regras
fixas, precisas e objetivas que, se não eliminassem, ao menos reduzissem o
campo possível de aplicação de sanções arbitrárias e injustas. Tornou-se
imperativo fundar toda uma arquitetura de provas e contra-provas que permitisse
aos julgadores não apenas conhecer todas as versões, pontos de vista e
aspectos sobre um fato criminal determinado - daí a pertinência do contraditório
penal e de todas as garantias proporcionadas à produção de provas, facultadas
quer a acusadores quer a acusados -, como também decidir segundo o critério de
certeza e liqüidez jurídicas.
Tais princípios foram sendo aperfeiçoados ao longo dos séculos XIX e XX
quer impulsionados pelos avanços técnicos que instituíram a polícia científica
quer estimulados pelas direções e avanços no campo da retórica jurídica. Ambos
fenômenos - avanços no campo científico e avanços na retórica jurídica -
convergiram então para a codificação dos rituais e práticas institucionais de
produção da verdade jurídica em condições determinadas de eficácia, material e
simbólica. Daí o imperativo da justiça penal moderna: justiça rápida, eficaz,
líqüida e certa. Daí também todos os cuidados que se cercam na produção de
provas documentais e de provas orais bem como na observância de requisitos
que assegurem ampla defesa aos acusados.

A sociedade brasileira é tributária destas tradições. No direito penal e


processual penal brasileiros busca-se, em princípio, assegurar a apuração da
responsabilidade criminal segundo todos os requisitos, formalidades e garantias
de modo a que o desfecho processual reflita não o arbítrio dos julgadores, porém
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 751

a convicção constituída a partir do jogo contraditório entre provas e contra-


provas. No entanto, a despeito da retórica jurídica, nem sempre tem sido assim.
Particularmente nos casos de linchamento observados, uma série de
circunstâncias turvam o prosseguimento regular do processo penal, conforme
sugerido anteriormente. O maior problema consiste na reunião de provas
documentais e provas orais. A leitura crítica dos processos penais selecionados,
relativos aos casos de linchamento examinados, deixa entrever não poucos
deslizes burocrático-administrativos e técnicos, cujas motivações repousam em
causas variadas. Certamente, não se podem desconhecer as limitações de
ordem burocrática, nascidas de uma legislação penal e processual penal
ultrapassadas que dificultam o cumprimento das formalidades e requisitos com
padrões mínimos de eficiência, celeridade e precisão, como aliás apontam
delegados, promotores e juízes entrevistados.

Do mesmo modo, inadequadas condições de trabalho contribuem para


reter a produtividade em níveis muito aquém do esperado277. Instalações
deficitárias, espaços insuficientes para realização das atividades e para
armazenamento de material de trabalho (inclusive processos), carência de
equipamentos, lenta informatização das rotinas de serviço impedindo rápida
recuperação de informações, acentuada fragmentação entre as agências que
compõem o sistema de justiça criminal e, dentro de cada agência, entre divisões,
departamentos, seções e setores - tudo isso contribui para que seja
profundamente desequilibrada a relação entre os novos processos entrados no
sistema e os processos arquivados porque definitivamente solucionados. O
resultado mais evidente disto é o acúmulo crescente de processos penais com
graves repercussões nas rotinas de serviço, as quais tendem cada vez mais a
perder sua formalidade e mesmo rigor. Trata-se, como se viu, de queixas
recorrentes nas entrevistas realizadas com operadores técnicos do direito, as
quais não parecem estar desprovidas de suas razões. A título de ilustração, de
acordo com dados fornecidos pelo Banco Nacional de Dados do Poder Judiciário,
havia na região Sudeste do país, em 1990, um resíduo da ordem de 980.711
processos judiciais. Neste mesmo ano, havia um juiz para cada 34.045
habitantes, uma taxa reconhecidamente desfavorável quando comparada com a
de outros países (Apud Sadek & Arantes, 1994, p.40).

277
Não se dispõem, pelo momento, de dados a respeito das relações entre funcionários e número
de processos penais. Suspeita-se que a taxa seja muito baixa em comparação com a de outras
sociedades do mundo ocidental capitalista. De qualquer modo, dados relativos à relação entre
juízes e população indicam que, no Brasil, o déficit é bastante acentuado. Assim, enquanto nesta
sociedade a relação é de um magistrado para cada 29.542 habitantes, na Alemanha é de um juiz
para cada 3.448 habitantes; na Itália, um para cada 7.142 habitantes (cf. Sadek & Arantes, 1994,
p. 39).
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 752

Quando isto acontece, são igualmente visíveis repercussões no


desempenho funcional, manifestas no desleixo com que se executam as mais
distintas funções, na imperícia ou improbidade técnica, no despreparo dos
recursos humanos disponíveis, na falta de motivação e de estímulo para
cumprimento de tarefas segundo exigências não apenas de produtividade mas
também de destreza técnica, na confusão entre interesses privados e funções
públicas. Instaura-se assim uma sorte de círculo vicioso através do qual entraves
burocráticos associados a precárias condições de trabalho reforçam o mau
desempenho funcional. Este, por sua vez, estimula o relaxamento das rotinas de
serviço, as leituras equivocadas ou pouco rigorosas dos estatutos legais e das
normas funcionais, a pouca concentração e/ou identificação com as finalidades e
os meios de realização e de distribuição da justiça penal. No mais, a cultura
organizacional vem reforçar ainda mais este círculo vicioso, dispensando a
necessidade periódica de reciclagem e atualização bem assim capturando
rapidamente as novas gerações de funcionários, recém recrutadas, cujo
comportamento é logo constrangido a adequar-se ao movimento e rítmo impostos
pelo círculo vicioso. Como se viu no item anterior, inúmeras destas situações
puderam ser flagradas nas falas dos operadores técnicos do direito entrevistados.

2. Os processos de linchamento

A junção de documentos
Problemas desta ordem, com seus impasses e dilemas, manifestam-se
com certa clareza nos processos penais, em particular nas tarefas de reunião de
provas documentais e de provas orais bem como nos trâmites burocráticos e nas
operações técnicas do direito penal. São freqüentes os problemas relacionados à
junção de documentos, como ausência de anexação, anexação incompleta ou
com flagrantes erros de informação ou ainda ausência de solicitação de
documento vital para esclarecimentos dos fatos, identificação de suspeitos e/ou
de testemunhas. No linchamento da Lapa, a vítima sequer chegou a ser
identificada. Inexistiam registros clínicos no hospital para onde ela havia sido
transferida quando resgatada por policiais militares das mãos de seus
linchadores. Do mesmo modo, pesquisa dactiloscópica não localizou qualquer
registro no Instituto de Identificação Criminal em São Paulo. A despeito da
ausência completa de informações, não se deu prosseguimento às investigações
mediante consulta aos Institutos de Identificação Criminal de outros estados da
Federação. Suspeitas de antecedentes criminais não chegam a ser investigadas.
No linchamento em Carapicuíba, a folha de antecedentes do indiciado somente é
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 753

providenciada quanto ele já se encontrava morto. Em contrapartida, a esse tipo


de investigação não foram submetidos os outros dois suspeitos de haverem
assassinado o irmão do indiciado, móvel imediato do linchamento, os quais não
chegam sequer a ser identificados no processo penal.

Parece haver uma espécie de consenso entre a autoridade policial que


preside inquéritos e a promotoria com relação à junção de determinados
documentos, como atestado de óbito, folhas de antecedentes de indiciados e/ou
outras certidões judiciais, alusivos quer aos indiciados, quer às vítimas ou até
mesmo às testemunhas. Esses documentos que, à primeira vista, já deveriam
estar contidos no inquérito policial, instruindo portanto o relatório do delegado,
são quase sempre deixados à responsabilidade da promotoria a qual, como
iniciativa de praxe antes de proceder ou não à denúncia, solicita sua anexação o
que, na prática, se traduz em retorno do inquérito à delegacia. No linchamento do
Jardim Noronha, a junção de tais documentos somente foi concretizada um ano e
dois meses após a solicitação. A par dos efeitos sobre a morosidade processual,
semelhante consenso, reforçado pela partilha convencional das
responsabilidades entre uma e outra agência, não deixa de produzir eventos
paradoxais.

No linchamento do Jardim Miriam, o laudo necroscópico do linchado foi


anexado ao inquérito cerca de três meses após a ocorrência. A despeito do
laudo, a promotoria solicita o retorno do inquérito ao distrito policial para
anexação do correspondente atestado de óbito, providência cumprida em
novembro de 1982. Em fins de fevereiro do ano seguinte, o delegado que
presidia o inquérito solicitou novamente o mesmo documento, o que contribuiu
para retardar o andamento do processo. O paradoxal aqui não é a reiteração de
providência já cumprida, mas a própria solicitação do atestado de óbito face à
existência de um laudo necroscópico. Parece residir aqui uma leitura burocrática
e automática dos estatutos legais. O artigo 62 do Código do Processo Penal -
CPP estipula que, em caso de morte do acusado, somente será extinta a
punibilidade e em conseqüência arquivados os autos, à vista do atestado de óbito
e por ordem do juiz, que baixará a decisão após ter ouvido pronunciamento do
Ministério Público a respeito. Ora, tudo indica que este preceito legal não se
aplica às vítimas fatais do linchamento, cuja morte é oficialmente explicitada no
respectivo laudo técnico278.

278
Não se conseguiu saber, até o momento, se esta exigência constitui formalidade legalmente
instituída ou se trata de mera rotina, respaldada pela cultura organizacional.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 754

Outro aspecto, menos freqüente entre os casos observados porém não


menos significativo, é a junção de peças processuais estranhas ao processo
penal em andamento. Embora nada sugira, pelo momento, que se trate de um
equívoco intencional, nem por isso eventos desta ordem deixam de produzir
conseqüências graves, mesmo até irreversíveis. No processo penal relativo ao
linchamento ocorrido em Carapicuíba, foram anexadas peças processuais
relativas a outra ocorrência e a outra vítima, fato verificado em data distinta
daquele linchamento. Tratava-se, por conseguinte, de um outro inquérito. Com
base nestas peças estranhas, a promotoria solicitou o arquivamento do inquérito,
o que foi deferido pela autoridade judiciária. Em virtude deste equívoco, abdicou-
se de dar prosseguimento às investigações e ao conseqüente processo para
apuração de responsabilidade penal pelo linchamento ocorrido em Carapicuíba,
observado nesta pesquisa.

Atendimento de demandas dos operadores técnicos do direito


Há outras situações similares que igualmente perturbam o desenrolar do
processo penal. Em alguns casos, constata-se o não cumprimento de solicitações
procedentes da promotoria ou do magistrado. Se esta constatação é em si
inquietante, mais ainda o é verificar que parte das demandas sequer é cobrada
por parte das autoridades judiciais. Em outros casos, ao contrário, constata-se a
reiteração de providências já anteriormente cumpridas, motivada quase sempre
por leitura superficial do inquérito policial ou processo penal, ou ainda leitura
apenas das últimas partes do processo. Há também casos em que se adotam ou
se demandam providências completamente desnecessárias ou não justificadas
satisfatoriamente. No linchamento em Ribeirão Pires, o inquérito policial transitou
durante quatro anos entre a delegacia e o Fórum para que sucessivas
solicitações do Ministério Público fossem cumpridas. No Linchamento da Praça
da Sé, promotor do Serviço de Inquéritos Policiais (SIP) solicitou extinção de
punibilidade do linchado pelo crime de lesões corporais contra uma das
testemunhas do evento. Mais tarde, quando da oferta da denúncia, o promotor
reitera novamente este pedido, que é deferido pela autoridade judiciária. No
entanto, informa o cartório ter deixado de cumprir a decretação judicial de
extinção de punibilidade sob o argumento de que, no inquérito policial, não havia
indiciamento formal da vítima por esse crime, a qual figurava desde o Boletim de
Ocorrência como “averigüado”. No linchamento em Mauá, a vítima recebeu tiro.
Apesar do fato ter ocorrido em 1989, somente em 1992 o delegado responsável
pelo inquérito policial solicitou perícia no projétil extraído do corpo do linchado,
projétil que - ao que tudo indica - se encontrava sob guarda judicial. Não há, nos
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 755

autos, qualquer resposta ao ofício; igualmente, não há cópia da requisição da


perícia ou cópia do respectivo laudo. Nenhuma autoridade juidicial - promotor ou
juiz - jamais cobrou o cumprimento desta providência, essencial à elucidação dos
fatos e à possível identificação de seus responsáveis, penalmente puníveis.

Ao mesmo tempo, não raro se solicitam providências desnecessárias. No


linchamento em Osasco, legistas informam, no laudo necroscópico, haver
extraído sangue da vítima para realização de exame de dosagem alcoólica e do
teste HIV III para identificação do virus da Aids. O primeiro exame não acusou
presença de álcool. Quanto ao segundo, não há qualquer notícia sobre sua
realização e mesmo justificativa sobre sua pertinência. No linchamento em
Ribeirão Pires, por longo tempo a promotoria insistiu na localização de três
testemunhas. Havia a suspeita de que uma delas havia falecido, o que motivou
morosa consulta em arquivos variados para localizá-lo sem que se lograsse
algum êxito. Procedeu-se então à tomada de depoimento das testemunhas
remanescentes para o que foi marcada audiência, cujo conhecimento foi
transmitido através de carta precatória. A audiência, contudo, não pôde ser
realizada porque nenhuma dessas duas testemunhas compareceu. Nesta data,
“melhor examinando os autos”, o juiz percebeu que uma das testemunhas já
havia sido ouvida em juízo, sendo portanto desnecessárias as diligências.
Determinou-se assim a devolução da carta precatória sem o seu cumprimento.
Nos autos do linchamento na Praça da Sé, a escrivã, diretora de cartório em Vara
Criminal, solicitou autorização para xerocopiá-los. Não há qualquer justificativa
para este procedimento. Mesmo assim, o pedido é deferido pelo juiz. Nos autos
do linchamento em Mauá, o delegado responsável pelo inquérito endereçou ofício
à Polícia Militar requerendo cópia do talão de registro da ocorrência de crimes.
No mesmo sentido, não há nada que justifique um pedido desta natureza. O
ofício jamais foi respondido; o delegado também não o reiterou.

Provas documentais (exames e laudos técnicos)


Estes desmandos, que parecem constituir regra integrados que estão às
rotinas do serviço judicial, tornam-se ainda mais salientes quando se observam
as perícias e laudos técnicos. Uma das limitações mais flagrantes nos inquéritos
policiais é o não recolhimento para perícia dos instrumentos empregados no
linchamento, aspecto que desfigura a reconstrução factual do crime justamente
porque o local não pode ser reproduzido tal como provavelmente se encontrava
durante o justiçamento popular. No linchamento em Osasco, constata-se
justamente esta impossibilidade. Em seu laudo sobre o local do crime, o perito
descreve que “alguns objetos utilizados como a arma contra a vítima
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 756

encontravam-se do lado dele, conforme fotos anexas. São eles: um bloco de


granito, de grandes dimensões em forma de paralepípedo e um pedaço de
madeira usado como cabo para enxada, que na foto apresentava-se partido” (pp.
34-35 dos autos). Entretanto, nenhum desses objetos foi apreendido pela polícia
para realização de perícia. No linchamento em Mauá, a autoridade policial, ao
instaurar o inquérito, solicitou a realização de exames necrocópicos nas vítimas
assim como o comparecimento de perito do Instituto de Criminalística ao local do
crime. Não foi apreendida nenhuma arma, instrumento ou objeto utilizado pelos
linchadores. No laudo do local do crime, observa-se que o perito descreve a
existência de duas enxadas nas quais havia manchas de sangue. Estes
instrumentos também não foram recolhidos para exame.

Em Carapicuíba, laudo relativo à perícia no local descreve a presença de


um cabo de pá ao lado do corpo da vítima, provavelmente empregado pelos
linchadores. O instrumento não foi contudo confiscado para perícia. No Jardim
Noronha, o dono do bar, vítima do assalto - estopim do linchamento -, foi
indiciado no inquérito policial um mês após a ocorrência do linchamento.
Somente neste momento verificou-se a apreensão da arma que se encontrava
em seu poder já que, durante a luta corporal entre o comerciante e o assaltante a
qual precedeu ao justiçamento popular, foram disparados tiros contra o linchado.
Em Ribeirão Pires, na portaria que instaurou o inquérito policial determinou-se,
além dos exames necroscópicos e de corpo de delito, perícia na escopeta
encontrada ao lado dos corpos das vítimas. No entanto, testemunha ouvida no
inquérito declarou ter visto um policial encontrá-la nas imediações do local do
crime e colocá-la próximo ao corpo das vítimas, para que “não fosse furtada”.
Circunstâncias como esta contribuem decisivamente para alterar o cenário do
crime, o que é ainda mais agravado pelo lapso de tempo entre a ocorrência do
linchamento e a perícia do local. Tudo converge para dificultar ou mesmo
inviabilizar a reconstrução dos fatos, a demonstração da materialidade do crime,
a identificação de culpados e o estabelecimento de nexo imperativo entre o crime
e seus possíveis autores.

Os laudos necroscópicos não estão igualmente isentos de problemas. O


mais evidente é o não reconhecimento do emprego de meio cruel na execução
do crime. Na Lapa, a vítima foi perseguida por moradores da pensão e linchada
na rua com apoio de transeuntes. Apesar da desproporção de forças entre vítima
e seus algozes, o laudo pericial concluiu não ter havido emprego de meio cruel
na produção da morte. Em Ribeirão Pires, uma das vítimas, jovem negro, foi
morto com um tiro na fronte, seguido de socos e pontapés. O jovem adolescente,
branco, foi morto com uma violenta pancada nas costas. Aqui, igualmente, os
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 757

peritos não reconheceram emprego de meio cruel. Situação idêntica ocorre com
a vítima do linchamento na Praça da Sé. Idem com a vítima de linchamento em
Osasco. Em Campinas, ao contrário, os laudos dos exames necroscópicos
descrevem ferimentos muito graves concentrados no tórax e na cabeça das
vítimas. Neste caso - que, de resto, não é muito diferente dos demais casos
observados -, os peritos reconhecem que a morte foi produzida por meio
insidioso ou cruel, circunstância relevante para caracterizar o homicídio como
crime qualificado, dotado por conseguinte de circunstâncias agravantes.

Esta arbitrariedade na caracterização da morte é ainda mais gritante no


linchamento em Mauá. Ao solicitar o laudo necroscópico, o delegado responsável
pelo inquérito policial pediu atenção especial à possível existência de vestígios
que permitissem relacionar o linchamento e o crime que o motivara (o estupro
seguido de morte de uma adolescente), tais como marcas de arranhões,
mordeduras etc. No laudo referente a um dos linchados, os legistas descrevem a
presença de marcas produzidas por unhas, no tórax e nas coxas. Descrevem-nas
como “marcas de defesa”. No laudo da segunda vítima do linchamento, os sinais
são descritos como leves e não chegam a ser qualificados ou classificados pelos
legistas. No primeiro laudo, a peritagem reconhece o emprego de meio cruel na
produção da morte; no segundo, adota entendimento oposto. O paradoxal é que
ambas as vítimas foram linchadas pelo mesmo grupo, o qual fez uso dos
mesmos meios e instrumentos. Este caso sugere que a resposta aos quesitos da
peritagem comporta certa margem de discricionariedade e subjetividade, o que
no limite compromete o rigor que se pretende imprimir às investigações policiais e
aos laudos técnicos.

Neste mesmo domínio, observou-se o estabelecimento de conexões


discutíveis entre o linchamento e o crime que poderia tê-lo motivado. Como se
verá mais a frente, é comum que o eixo das investigações se desloque do
linchamento para o crime ou evento que o teria precedido e estimulado. Com este
procedimento - não raro facilitado pelos “ruídos”, “rumores” e “tumultos” que
acompanham o curso do andamento processual -, desloca-se simultaneamente o
foco dos linchadores para os linchados que passam a ser responsabilizados
pelos acontecimentos consolidando assim simbolicamente uma profecia popular
que se auto-realiza. O bandido não é apenas responsável pelos crimes que
grassam no bairro, mas também responsável por constranger populares ao
linchamento. Por essa razão, as autoridades policiais e judiciais, ao que parecem
capturadas e seduzidas por essa lógica circular nutrida pelos sentimentos
coletivos, tendem a buscar nexos entre crimes diversos com o propósito,
inconsciente talvez, de referendar o justiçamento popular. No linchamento em
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 758

Mauá, as investigações policiais procuram estabelecer nexo entre o estupro da


jovem e o linchamento que se seguiu à sua morte. Baseiam-se, para tanto, nos
laudos necroscópicos. Por um lado, sublinham a presença de marcas de
arranhões em uma das vítimas do linchamento; por outro, destacam que a jovem
estuprada foi encontrada com as roupas do avesso, podendo ser a autora dos
arranhões. Logo, há um vínculo entre o estupro e o linchamento. As vítimas
teriam estuprado e assasinado a jovem, razão por que teriam sido linchadas.
Assim, explica-se e justifica-se o linchamento. Uma vez esclarecido e justificado,
não há por que punir os agressores que somente teriam se antecipado à ação
saneadora, rigorosa e implacável da justiça pública.

Nesse cenário, não é estranho que as versões populares contaminem


mesmo as provas documentais. Nestas situações, o curso das investigações
pode até adquirir rumo contrário aos laudos técnicos. Um exemplo desta
circunstância pode ser encontrado no linchamento da Praça da Sé. Como
relatado anteriormente, o estopim do conflito intersubjetivo que motivou o
linchamento residiu nos desentendimentos entre banqueiros do jogo de dados e
jogador o qual, sentindo-se ludibriado, teria sacado de uma arma e desferido tiros
contra um dos banqueiros, pondo-se em fuga em seguida, ocasião que teria sido
linchado por populares que se encontravam no local. Esta é uma versão
sustentada pelos indiciados e por testemunhas. Todavia, o exame residuográfico
realizado no corpo da vítima do linchamento resultou negativo, isto é não
confirmou que ela tivesse disparado tiros. No mesmo sentido, não se identificou
qualquer registro de arma de fogo em nome desta vítima, embora sua esposa,
em seu depoimento, alegasse que seu marido, motorista profissional, geralmente
andava armado. Não obstante, a tendência das autoridades judiciais foi ignorar
os argumentos técnicos, perfilando assim as versões de indiciados e
testemunhas.

Provas Orais (presenciais e testemunhais)


Não menos graves são os problemas relacionados à reunião de provas
orais, presenciais ou testemunhais. Neste domínio, as dificuldades de
identificação, localização, intimação e presença de testemunhas nas audiências
são incontáveis e incalculáveis. Em parte resultam de uma forte inclinação para o
silêncio. As testemunhas de tipo ocular, aquelas que presenciaram o desenrolar
dos fatos, são raras. Entre populares e moradores, é mesmo possível que muitos
tenham acompanhado os acontecimentos. Nem todos são arrolados como
testemunhas ou mesmo identificadas enquanto tais. Entre aqueles que o são,
uma pequena parte se habilita a falar sobre o que viu. A maior parte, habilita-se a
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 759

falar sobre o que ouviu dizer ou sobre o que sabe a respeito da criminalidade
local, a propósito dos fatos que estimularam o linchamento ou mesmo sobre a
identidade das vítimas. Mais difícil, é encontrar quem se proponha a depor contra
os indiciados e réus. Uma outra dificuldade reside na elevada mobilidade da
população. Por um lado, há uma mobilidade estimulada por processos sociais
mais amplos, como alterações (inclusive geográficas) no mercado de trabalho ou
fluxos migratórios e que alcançam cidadãos comuns os quais eventualmente
possam estar envolvidos, como vítimas, agressores ou testemunhas, nos
linchamentos. Por outro lado, a simples possibilidade de qualquer cidadão
comum ser notificado pela polícia ou pela justiça penal para depor em inquérito
penal ou em juízo já constitui forte pressão para mudar de bairro ou desaparecer,
mesmo que temporariamente. Esta circunstância é certamente facilitada pelo
próprio ritmo e andamento dos feitos processuais cuja morosidade contribui
decisivamente para a dispersão de testemunhas.

Não sem razão, as autoridades policiais e os agentes judiciais revelam


pouca disposição para identificar e localizar testemunhas. No caso do
linchamento de Ribeirão Pires, uma vez aceita a denúncia contra dezenove
indiciados, foi marcada audiência para interrogatório dos réus, dois meses mais
tarde. Após a sessão, o Ministério Público solicitou citação, através de edital,
para três réus que não compareceram. Foram enviados ofícios para várias
repartições e órgãos públicos (Coordenadoria dos Estabelecimentos
Penitenciários do Estado de São Paulo, Tribunal Regional Eleitoral, Receita
Federal) para sua localização. Nova audiência foi marcada, a qual não pôde ser
realizada em virtude da não localização dos réus. Nova audiência novamente não
pôde ocorrer pelo mesmo motivo. Nesta ocasião, o juiz observou que “havia no
processo endereços dos réus na cidade de São Paulo, onde eles ainda não
tinham sido procurados”. A tentativa de localização prossegue, sem sucesso. Em
maio de 1987, novamente agendada audiência para colher depoimentos dos
réus. Antes desse período, buscou-se em vão localizá-los. O resultado desse
insucesso somente foi comunicado à Comarca de Ribeirão Pires em agosto
daquele ano, portanto muito depois da data agendada para audiência.

No Linchamento ocorrido na Praça da Sé, são igualmente recorrentes as


dificuldades em localizar réus e testemunhas. Um dos réus deixou de comparecer
à audiência para seu interrogatório. Em seu despacho, o juiz chega a alertar o
oficial de justiça de que o advogado deste réu era comumente visto no Fórum,
circunstância que poderia facilitar a localização e intimação daquele. No
linchamento em Campinas, os mesmos problemas. Os réus não são localizados,
não obstante constasse dos autos certidão confirmando seus endereços. Há
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 760

casos em que as sucessivas tentativas frustradas em localizar réus constrangem


autoridades judiciárias à decretação de revelia, circunstância em que o processo
penal prossegue com prejuízos para sua defensa e usufruto de direitos que lhe
são legalmente facultados. Se o réu comparece em qualquer momento do
processo, é então revogado o decreto de revelia. No entanto, nem sempre isto se
segue de imediato ao comparecimento do réu. Há situações em que o processo
penal tem prosseguimento, o réu o acompanha através de seu defensor, é
mesmo intimado e o decreto revogando a revelia não é baixado. Foi justamente
o que ocorreu com um dos réus no linchamento da Praça da Sé. Mera
formalidade? Talvez. Do ponto de vista prático, a não revogação da revelia
significa que o réu está impedido de manifestar-se, de depor e expor sua versão
dos acontecimentos. Trata-se, por conseguinte, de uma situação de cerceamento
de direitos de defesa.

Outro problema, comumente notado, diz respeito a não citação de pessoas


identificadas como possíveis autores do linchamento ou o não arrolamento de
testemunhas que seguramente têm algo a dizer. Intencional ou não, este tipo de
omissão constitui falta grave porque, na maior parte das vezes, inviabiliza a ação
da justiça oficial em suas atribuições constitucionais de pacificação da sociedade
mediante controle coercitivo da ordem pública. No linchamento em Campinas,
quatro pessoas são mencionadas, em diversos depoimentos, como tendo
participado ativamente do linchamento. Contudo, não são indiciadas, muito
menos ainda arroladas como testemunhas. Em Mauá, observa-se pouca
disposição das autoridades policiais em intimar e colher depoimento de
testemunhas. Logo após o primeiro pedido de dilação de prazo, relatório dos
investigadores dá conta da localização da sogra e da companheira da primeira
vítima do linchamento. As duas residiam no local onde ocorreu o justiçamento
popular, presenciaram as mortes, dispunham do nome de um dos envolvidos no
crime. A despeito desta condição, digamos privilegiada face aos outros casos
observados, elas somente foram intimadas dois meses e doze dias após o crime.
No caso do Jardim Noronha, haviam procedimentos que deveria ter sido
adotados mas não o foram: algumas testemunhas alegam que os linchadores
eram moradores do bairro. Uma delas inclusive confirma conhecer alguns
agressores de vista. Não se concretizaram diligências para identificá-los. A
promotoria não adotou qualquer providência no sentido de localizar testemunhas
e identificar suspeitos. Nada se fêz para localizar o outro assaltante que
acompanhava a vítima no momento do linchamento. No caso da Praça da Sé, a
defensoria deixa de arrolar testemunhas.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 761

Portanto, ao que tudo parece indicar, as provas orais, presenciais ou não,


muitas vezes a única fonte de que se dispõe para elucidação dos fatos - vez que
as provas documentais se encontram eivadas de equívocos e problemas,
conforme anterioremente relatado - não são levadas muito a sério. De certo
modo, as dificuldades reais em localizar réus e testemunhas (face à mobilidade
intensa entre trabalhadores urbanos pauperizados associada ao acúmulo de
serviço judicial que impede imediato e rápido cumprimento das intimações)
acabam como que justificando o desleixo no recolhimento destas provas.
Ademais, o desleixo não se traduz somente no ato de abdicar da intimação deste
ou daquele réu, desta ou daquela testemunha; mais do que isto, se traduz em
leitura superficial dos depoimentos. Em muitos deles, há valiosas pistas que, se
perfiladas com atenção e sagacidade, certamente conduziriam as investigações
policiais a resultados menos frustrantes e mais adequados aos fins institucionais
do sistema de justiça criminal. Situações de constrangimento de réus, não
apuradas ou apuradas sem o necessário rigor, acabam tendo repercussão no
desfecho processual. No caso da Praça da Sé, os réus alegam ter confessado
sob tortura a participação no linchamento, na fase do inquérito policial. Em juízo,
negam a autoria e chegam inclusive a declinar o nome dos policiais que os teriam
agredido. A alegação de tortura é aceita como argumento para impronúncia dos
réus. Porém, nenhuma iniciativa é tomada para averigüar a veracidade desta
alegação, não tendo sido ouvidos os três policiais sob os quais recaía acusação
de haver praticado tortura para obtenção de confissão.

Em vista disto não é estranho que os esforços em localizar e intimar réus e


testemunhas pareçam uma espécie de perseguição entre gatos e ratos, um
mótuo perpétuo desprovido de direção definida, sentido próprio e finalidade a ser
alcançada em algum momento do percurso. É ela então que responde em parte
pela morosidade penal, como se verá no item seguinte deste relatório. E
responde porque alimentada pela acomodação e ajustes dos agentes judiciais à
lógica perversa de rotinas burocratizadas de serviço administrativo.

Outro exemplo significativo desta lógica que captura e restringe a


capacidade criativa destes agentes na busca de soluções e alternativas racionais
para os problemas com que se defrontam é a seguir relatado. No processo de
linchamento em Mauá, o juiz acolheu denúncia proposta pelo Ministério Público
em novembro de 1992. A audiência para interrogatório do réu foi agendada tão
somente para junho do ano seguinte. Em março de 1993, o réu foi intimado, mas
o processo permaneceu parado aguardando a data de audiência. Havia, no
processo, informação de que o réu, preso, havia sido transferido da Cadeia
Pública de Mauá para a Cadeia Pública de Santo André. A despeito desta
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 762

informação, em junho de 1993 o cartório expediu mandado de intimação para o


réu, dirigido à Cadeia de Mauá. Descoberto o equívoco, foi expedido novo
mandado, agora para a Cadeia de Santo André, porém somente em agosto do
mesmo ano, isto é após a data prevista para realização da audiência a qual foi
agendada inicialmente para março de 1994 e, em seguida, para o mês de
setembro do mesmo ano. Todos os procedimentos burocráticos tiveram de ser
renovados. Neste interim, o réu retornou à Cadeia de Mauá de onde foi
posteriormente transferido para a Casa de Detenção. As audiências foram sendo
sucessivamente adiadas porque o réu não era localizado já que o cartório ou não
o intimava ou o intimava em local onde ele não mais se encontrava. Finalmente,
o magistrado parece ter tido o bom senso de determinar a permanência do réu
em Mauá a fim de que as sucessivas e contínuas transferências não
atrapalhassem mais o andamento do processo. Ainda assim, tal determinação
não surtiu efeito pois, em dezembro de 1994, o réu havia retornado à Casa de
Detenção. Convém notar que, mesmo após a determinação do juiz, os ofícios
requisitando a presença do réu para audiência não continham qualquer menção à
ordem de sua permanência em Mauá. Este é tipicamente um caso de “ruído” no
andamento processual, como se verá mais adiante.

Trâmites burocrático-administrativos
A par de todos esses problemas que contaminam a produção de provas,
há problemas relacionados aos trâmites administrativos. Em uma justiça pública,
orientada por princípios burocrático-legais que apelam para comunicação escrita
como requisito para assegurar direitos, é de se esperar que os trâmites
administrativos não constituam óbice ao cumprimento dessa exigência. Ao
contrário e em particular no processo penal, esses trâmites devem ser de molde
a garantir a execução do contraditório penal de forma a que se possa reunir e
articular todas as provas e contra-provas de cujo confronto resulta o ato de julgar,
mais propriamente o convencimento do juiz manifesto em sentença decisória.
Mas, esse cenário não parece ser regra nos casos observados. A par dos
pesados e embaraçosos trâmites previstos em legislação processual penal, a
cultura organizacional encarrega-se de adicionar outros tantos tornando o
andamento do processo um verdadeiro cipoal. No linchamento da Lapa, o
processo circulou durante cinco meses em vara criminal de tribunal singular.
Entre idas e vindas, um novo promotor designado para o caso “descobriu” que os
autos cuidavam de homicídio razão por que deveriam ser remetidos a uma vara
do tribunal de júri. No linchamento do Jardim Miriam, o laudo necroscópico foi
enviado equivocamente para um outro distrito policial que não aquele por onde
corria o caso. Antes de alcançar definitivamente o distrito policial de origem, o
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 763

laudo teve que ser remetido à seccional regional, como aliás é feito com todo o
trâmite administrativo de inquérito, embora esse fluxo pouco parece fazer sentido
pois que nenhuma providência é adotada nessa divisão, exceto a de tumultuar o
andamento dos feitos.

No caso da Praça da Sé, o inquérito policial é remetido ao Fórum por


intermédio da seccional. Nela, o inquérito é devolvido ao distrito policial.
Verificado o engano, o documento reinicia seu percurso, pelo mesmo caminho.
No mesmo caso, o vai e vem entre Tribunal Regional Eleitoral e Ministério
Público consumiu nove meses em incessante e irracional busca para localização
do endereço de testemunhas. Ainda, neste mesmo caso, a promotoria insiste na
localização de uma testemunha. Solicita prazo à autoridade judiciária. O pedido é
atendido com a concessão de trinta dias. Decorridos três meses após à
autorização judiciária, o cartório comunica ao juiz que o prazo concedido havia se
esgotado. Na mesma data, o Ministério Público anexa relatório da Polícia Militar
informando a localização da testemunha.

É comum que a morte de réu não seja acompanhada de imediata


decretação da extinção de punibilidade. No caso de Itapecerica da Serra, um dos
réus faceleu antes de ter início a fase judicial. Documento dando ciência do fato
somente foi anexado um ano e quatro meses após o evento. A extinção de
punibilidade ocorreu quase três meses após. No caso Carapicuíba, o único
indiciado veio a morrer quatro anos e dez meses após o linchamento. O atestado
de óbito somente foi anexado ao inquérito um ano e dez meses após sua morte.
É então solicitada sua folha de antecedentes criminais que revela inúmeras
passagens pela polícia por assalto a banco, furto e lesão corporal. Em
compensação, em Ribeirão Pires, face à suspeita de falecimento de uma
testemunha o Ministério Público consumiu meses insistindo na anexação do
correspondente atestado de óbito. Depois de inúmeras investidas em cartórios de
registro civil sem qualquer êxito, o promotor resolve desistir da oitiva desta
testemunha279.

Existência de informalidades

279
Esta situação merece ainda comentário adicional. O Ministério Públicou pleiteou consulta aos
registros civis de 1980 até março de 1988. A resposta foi negativa. Insistiu uma vez mais por
entender que somente havia sido consultado o livro de 1980. O oficial maior consultou o juiz sobre
como proceder. Este determinou consultar novamente o Ministério Público. Foi novamente
enviado ofício ao cartório de registro civil, cuja resposta é idêntica à anterior. Inconformado, a
promotoria insiste na continuação das diligências para localização do atestado de óbito. Por fim,
como não lograsse qualquer êxito, desiste de ouvir esta testemunha.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 764

Se, por um lado, os trâmites são tumultuados, por outro lado é possível
identificar informalidades no curso do processo penal. Em um ou outro caso,
flagra-se o Ministério Público alegando que promoverá diligências por conta
própria e com seus próprios meios, o que parece estranho já que este órgão não
os dispõe. É o que se verificou, por exemplo, no caso da Praça da Sé. Não há, no
processo, descrição de quais são esses meios e recursos. Em geral, tais
diligências são infrutíferas. Não é mesmo improvável que se trate de um
expediente adotado para enfrentar o acúmulo de serviço, amenizando o volume
de inquéritos e processos penais aguardando encaminhamento para desfecho
decisório. Mais curioso ainda é constatar informalidades na intimação de réus e
de testemunhas. No caso de Mauá, onde se verificou verdadeiro tumulto na
localização de réu preso, fato já relatado anterioriormente, funcionário do cartório
informou que havia deixado de expedir um ofício - certamente relativo à
determinação do juiz para que o réu permanecesse finalmente na Cadeia de
Mauá - pois “em contato telefônico com a Cadeia Pública local, o funcionário C.
comprometeu-se em providenciar a escolta para o réu ser apresentado na
audiência designada às fls. retro, tudo conforme determinação verbal”. Nestas
circunstâncias, é muito difícil avaliar o quanto iniciativas desta ordem contribuem
para acelerar os trâmites processuais sem comprometer e agredir direitos
assegurados pela legislação penal.

Como se procurou demonstrar, todos esses distintos problemas com seus


respectivos óbices e soluções concorrem, por um lado, para dificultar a produção
de provas, ora diluindo a materialidade do delito, ora diluindo a responsabilidade
penal, ora a ambos. Por outro lado, concorrem para retardar em demasia o
andamento do processo penal, como se verá no item que se segue, cujas
conseqüências para apuração da responsabilidade penal são igualmente graves.

3. Processos de Grupo de Extermínio e Justiceiros

O tempo processual tem o sentido da defesa dos direitos do acusado,


porém as práticas de cada instituição acabam por limitar e distorcer o sentido
original dessa garantia. A morosidade, diferente do tempo socialmente
necessário do processo, significa a negação dos direitos do acusado e uma
protelação da justiça, na medida em que aumenta e torna mais imprecisas as
providências tomadas no processo. Embora as diligências e os tempos no
processo criminal estejam definidos por regras estritas, as instituições ou órgãos
envolvidos na formalização do processo possuem práticas e dinâmicas próprias.
Isso implicaria, de alguma forma, no caráter fragmentário e particularizado do
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 765

processo, que nada mais é do que um conjunto de ações legais separadas e


estanques. Implicaria, ainda, na produção de provas e evidências em tempos
reais diferenciados, criando descompassos que não somente prejudicam o
processo de administração concreta da justiça como provocam incontáveis
atrasos e contradições. A morosidade pode ser conseqüência da deficiência
material ou da inadequação dos seus recursos humanos de cada instituição
envolvida no processo. Mais do que isso, no entanto, a morosidade pode refletir a
descrença dos operadores do direito na eficiência do sistema de justiça ou
mesmo na própria idéia de justiça pública, instituição e ideal cuja defesa deveria
ser seu principal objetivo.

Um número significativo de particularidades imprimem um grande


diferencial na ação penal e no curso do processo criminal. No caso dos justiceiros
de Osasco, no qual o réu morreu durante o processo, dos 3 anos e 4 meses de
duração total, foram dispendidos 11 meses somente para a localização da
certidão de óbito. A fase de instrução criminal durou um ano e sete meses. Desse
total, nove meses foram consumidos para localização e inquirição das
testemunhas. No caso do Butantã, também com a morte do acusado, foram
gastos 7 meses e meio na localização e junção da certidão de óbito aos autos e
conseqüente encerramento do processo. No caso de Guarulhos (181/82), o
inquérito policial durou dez dias e a instrução criminal durou um ano e nove
meses, sendo que, destes, 5 meses foram necessários para a prisão do acusado.
3 meses foi o tempo que demorou para a localização e interrogatório das
testemunhas, tempo consideravelmente pequeno em comparação com os
demais. O maior tempo foi dispendido na fase de apelação: 1 ano e 8 dias. O
processo ficou parado em cartório durante cinco anos e três meses, aguardando
o cumprimento do mandado de prisão expedido contra o réu.

No caso de Itapecerica, o inquérito policial durou 8 meses. A fase mais


longa foi a intermediária, que durou 1 ano, 8 meses e 24 dias. A demora para
localizar as testemunhas bem como a desatenção do promotor e do juiz em
relação ao conteúdo dos autos provocou retardamento na fase de instrução
criminal. Na fase do inquérito, além da demora na localização das testemunhas,
houve um substancial atraso motivado pela tramitação do pedido de dilação de
prazo. No caso de São Bernardo dos Campos, os prazos, até a sentença inicial,
foram cumpridos exemplarmente. Porém, os autos foram desmembrados e no
caso do réu 3 houve nova fase judicial, uma revisão criminal, um novo júri e um
recurso de apelação, durando ao todo 5 anos, 4 meses e sete dias. A fase mais
demorada foi a da revisão criminal (2 anos e sete meses), sendo a maior parte do
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 766

tempo consumida com o cumprimento de despachos e pelo julgamento do


recurso.

No caso de Guarulhos (203/84), o inquérito durou 8 meses. Após esse


prazo, foi remetido ao Fórum, sem nenhuma justificativa; somente nessa ocasião,
após três pedidos de dilação de prazo, é que o promotor solicita a prisão
preventiva dos acusados, instruindo seu pedido com notícias de jornal que
falavam da atuação do grupo de extermínio. A demora facilitou a fuga dos
indiciados; quanto ao quinto indiciado, mesmo estando presente na reconstituição
do crime, e estando em liberdade, a demora do inquérito e a demora do juiz em
conceder a prisão provisória permitiram seu desaparecimento. Nos autos
relativos aos réus 1, 2 e 3, entre a denúncia e a pronúncia, transcorreram 2 anos
e 6 meses. Em relação ao réu 4, foram 1 ano e 5 meses.

No caso da zona sul, o inquérito durou 13 dias; a instrução criminal, 6


meses e 19 dias; o julgamento demorou mais 6 meses. As maiores demoras
ocorreram na fase de instrução por causa da dificuldade em localizar as
testemunhas. Houve greve dos funcionários do judiciário e constantes demoras
para execução de despachos dos cartórios. No caso de Embu, o processo
demorou 6 anos e quase três meses. A fase policial durou 5 meses. A
intermediária 6 meses e 24 dias. A primeira fase judicial, um ano e um mês e
meio. A fase de recurso, um ano dez meses e meio e, a segunda fase judicial,
três anos e meio. Um dos principais fatores da demora no processo foi a
mudança de comarca dos réus e defensores (o que provocou o atendimento das
solicitações por precatórias). Não houve qualquer preocupação com o
cumprimento dos prazos legais. Foram necessários, por exemplo, cinco meses e
meio para que o juiz recebesse a denúncia do promotor.

No entanto, o caso de São Bernardo demonstra que os prazos exigidos


por lei não são completamente irreais. A localização, intimação e oitiva de seis
testemunhas de acusação e 4 de defesa, bem como a marcação de audiências
foram feitas em prazo significativamente inferior - 69 dias – ao exigido por lei. O
prazo costuma ser de seis meses para a realização de cada audiência. Contudo,
quando o processo foi desmembrado e estava em fase de apelação, houve
expressiva demora no cumprimento dos prazos e no andamento do processo. Ou
seja, nos casos em que há maior visibilidade e maior pressão da mídia ou de
organizações de defesa dos direitos humanos, o tempo processual é
significativamente reduzido. O mesmo pode-se dizer em relação à qualidade,
presteza e detalhamento dos exames e dos laudos emitidos. Parece evidente,
pela leitura dos casos de justiceiros e de grupos de extermínio que os prazos e
procedimentos previstos na legislação não são cumpridos. Nenhuma medida
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 767

administrativa ou judicial é tomada para resolver esses problemas, dentro do


próprio processo. Ao contrário, parece haver um consenso entre as instituições
da administração da justiça e os operadores do direito no sentido de fazer vistas
grossas a essas contínuas transgressões cotidianas.

Junção de documentos

À exceção do caso de São Bernardo e de Guarulhos (181/82), nos demais


casos de grupos de extermínio analisados, a junção dos documentos se deu fora
dos tempos estabelecidos pela legislação. Na fase do inquérito policial, os
exames necroscópico, de dosagem alcoólica e do local do crime, muito embora
tenham alguns sido feitos dentro dos prazos, sua junção na forma de laudos ao
processo se dava meses depois de encaminhado o inquérito para o Ministério
Público. A demora na anexação de atestados de antecedentes, por vezes
solicitados pelo promotor já na fase intermediária ou da tomada de depoimentos
de testemunhas também seguiu o ritual de prazos maiores do que os previstos
sobretudo pelo Código de Processo Penal.

Mesmo na fase judicial, documentos essenciais para a conclusão do


processo muitas vezes demoram a ser anexados. Exemplo disso ocorreu com o
caso de Osasco, quando o réu faleceu em meio ao andamento do processo. E
para que fosse decretada extinta a punibilidade do réu, o juiz e o também
promotor público solicitaram a localização e anexação da certidão de óbito aos
autos. Entre essas solicitações e a anexação aos autos da certidão decorreram-
se onze meses. Igual situação se deu com o caso do justiceiro do Butantã no
qual o réu também faleceu durante o andamento do processo. Neste caso, a
busca da certidão de óbito para anexação aos autos durou 7 meses e 11 dias.

No caso do justiceiro de Guarulhos (181/82), embora a junção de


documentos na fase do IP tenha se dado com agilidade, na fase judicial a
anexação de certidões, buscando a informação sobre a existência em outras
comarcas de processos em que o réu figurava como acusado e sobre o seu
paradeiro em estabelecimentos penitenciários, se arrasta por mais de três meses.

Documentos acabam sendo juntados ao processo sem que tenham sido


requisitados oficialmente No caso do justiceiro do Butantã, dentre os exames
realizados durante a fase do IP, pelo menos dois deles - o de dosagem alcoólica
da vítima e de perícia dos projéteis que provocaram a sua morte - não tiveram
qualquer requisição formal. Mas ocorre também a situação inversa, ou seja,
exames são solicitados, mas não são atendidos, como se deu no caso de
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 768

Guarulhos (203/84), com os laudos da faca e dos projéteis retirados do corpo da


vítima que nunca chegaram a ser juntados.

A interveniência de um defensor pode significar a junção de vários


documentos que em tese beneficiariam um réu. Esse foi o caso do justiceiro de
Itapecirica cujo processo teve, além dos exames e laudos de praxe, uma série de
documentos anexados a pedido do defensor, como atestados, declarações e
abaixo-assinados de moradores destinados a justificar a revogação da prisão
preventiva decretada do réu.

A junção de documentos a um processo fica extremamente complicada e


retarda o seu andamento quando ocorre a mudança de comarca do réu, na
medida em que todas as manifestações e ciências devem ocorrer por meio de
precatória. Esse foi o caso do grupo de extermínio do Embu. Neste caso, ainda,
na fase do IP, ou seja, às vezes há uma certa presteza em elaborar os exames,
mas o que é comum é a demora na anexação desses laudos ao inquérito policial.

Atendimento das demandas dos operadores técnicos do direito

No que se refere aos tempos previstos no Código, os casos de execução


sumária na sua maioria indicam que as instituições envolvidas no desenrolar de
um processo “fazem” o seu próprio tempo para o atendimento das formalidades.
É assim que já se observou acima que os laudos que são solicitados na fase do
inquérito podem até ser aparentemente datados de alguns dias depois de
ocorrido o crime, mas na prática são anexados meses depois, o que certamente
indica que não foram efetivamente realizados logo após o crime. Órgãos como o
Instituto de Criminalística ou o Instituto Médico Legal possuem os seus próprios
tempos na realização dos exames e para a emissão de laudos, sem que sigam
os prazos sugeridos pela legislação.

Da mesma forma, na fase judicial o processo enfrenta o ritmo construído


por outras agências. O cartório pode ficar um período muito acima do previsto
com os autos antes de distribuí-lo para a autoridade competente ou mesmo antes
de elaborar as citações ou intimações necessárias. Exemplo dessa forma de o
cartório administrar o seu próprio tempo encontra-se nas providências que devem
ser tomadas para a intimação das testemunhas nas audiências que ocorrem de
praxe com um intervalo de seis meses. Embora os cartórios tenham apenas dois
dias para tomar as providências necessárias, só quando se aproxima a data da
realização da audiência é que os despachos serão cumpridos. A demora em
intimar ou citar testemunhas resulta muitas vezes na dificuldade em localizá-las,
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 769

provocando muitas vezes o cancelamento da audiência pela não localização e


pela impossibilidade de suspendê-la.

No caso de Itapecirica, embora o juiz pedisse maior agilidade para as


providências constantes de seus despachos, mesmo assim o cartório não cumpre
esses prazos. Além disso, expede uma intimação de testemunha que já era
falecida e que havia informações disso no processo. Mesmo assim, o cartório
expede a intimação e o oficial de justiça vai até a casa onde é informado da
morte da testemunha.

Nem sempre ficam claros os motivos que levam os operadores técnicos do


direito a desenvolver determinados procedimentos no andamento de um
processo. É assim que no caso do justiceiro de Osasco embora as testemunhas
residissem no município de São Paulo, as duas testemunhas foram intimadas por
meio de métodos diferentes, uma por carta precatória e outra pelo correio. No
caso do justiceiro do Butantã testemunhas deixaram de comparecer a uma
audiência porque o oficial de justiça nem mesmo chegou a convocá-las, pois
estava de licença médica. No caso dos justiceiros de Guarulhos (203/84) o
Inquérito Policial foi remetido para o Fórum sem estar concluído e o promotor
então pede a prisão preventiva dos acusados, porém o seu pedido não está
fundado nos autos mas em notícias de jornal que indicavam que os acusados
estavam envolvidos em vários crimes na região.

Algumas demandas dos operadores técnicos do direito, para diversos


órgãos públicos, demoram a ser atendidas e nem sempre recebem sequer uma
satisfação do atraso ou do não-cumprimento da solicitação. É o que ocorre com a
localização de testemunhas ou mesmo do réu. Os operadores recorrem para
tanto ou à Prefeitura ou mesmo à Polícia. A demora ou simples omissão de um
ou de outro significam muitas vezes que audiências podem ser suspensas. A
demora no andamento do processo pode ainda ficar maior se o endereço não é
localizado pela Prefeitura ou se as testemunhas mudam de endereço. No caso de
Itapecirica da Serra, o juiz pediu à Polícia para localizar uma testemunha mas os
prazos que foram dados não foram cumpridos e chegou a ameaçar com um
comunicado à Corregedoria de polícia para que de imediato fosse atendido. Só
então o delgado, depois de um pedido de novo prazo para as buscas respondeu
que não fora possível localizar as testemunhas, por terem se mudado de
endereço. No caso do grupo de extermínio de Guarulhos (181/82), o promotor
solicitou a anexação dos laudos das armas utilizadas na prática do crime bem
como dos projéteis e ainda as folhas de antecedentes. O laudo das armas nunca
foi anexado e nem mesmo o promotor fez qualquer cobrança. No caso de
Guarulhos (203/84), o promotor solicitou que uma pessoa indicada por uma
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 770

testemunha fosse localizada. O atendimento dessa demanda demorou alguns


dias no cartório que alegou não ter clareza do que efetivamente desejava o
promotor, fazendo com que o juiz retornasse os autos para ele. Uma vez
esclarecido, o juiz deferiu o pedido, enviando um ofício para a delegacia. Porém,
nunca houve qualquer resposta a esse ofício nem indicação de qualquer
providência tomada pelo delegado em localizar a pessoa. E, também, juiz e
promotor não fizeram qualquer cobrança. Da mesma forma, mandados de prisão
podem não ser cumpridos. Este foi o caso do justiceiro de Guarulhos (181/82),
quando o promotor pediu a prisão do acusado mas três meses depois desse
pedido o mandado ainda não havia sido cumprido.

Um problema freqüente que pode estender a duração de um processo é o


desconhecimento do inteiro teor dos autos por parte dos operadores, que
acabam solicitando providências nem sempre procedentes. Exemplo disso
ocorreu com o caso do justiceiro de Itapecirica da Serra no qual o promotor
solicitou a devolução dos autos para o delegado, com a anuência do juiz, porém
sem que houvesse necessidade, uma vez que a informação requerida já estava
nos autos.

Dado interessante, que aponta para uma certa acomodação das relações
entre a polícia e a justiça, diz respeito aos pedidos de dilação de prazo. Em
quase todos os processos analisados sempre que houve solicitação, da parte do
delegado, de dilação do prazo de conclusão do Inquérito Policial ela foi atendida
sem maiores problemas.

Provas Documentais (exames e laudos técnicos)

Quanto às provas documentais, o que se observa dos casos analisados é


que os exames realizados nem sempre são solicitados formalmente, como o
exame de dosagem alcoólica da vítima no caso de Osasco. Quanto ao conteúdo
dos laudos, muitos deles são superficiais e poucas informações proporcionam de
modo a esclarecer as condições em que se deu o crime. A superior qualidade
dos laudos, no caso do Butantã e principalmente de São Bernardo do Campo,
permitem constatar que não há um padrão regular de qualidade na geração e
emissão desses laudos. Fatores diversos como a ação de determinados peritos,
a importância e a visibilidade pública do caso, podem concorrer para tanto.

A insatisfatória qualidade dos exames e dos laudos se apresenta de modo


claro no caso de Guarulhos (181/82). Ausência de informações essenciais sobre
a vítima, como peso e estatura não constam do laudo necroscópico. Mas o pior é
que consta desse laudo ser a vítima um indivíduo branco e de cabelos castanhos,
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 771

quando o boletim de ocorrência referia-se à vítima como sendo de cor preta e de


cabelo preto de tipo carapinha. Tal desencontro de informação, mas
principalmente as contradições do laudo necroscópico, levou a defesa a sustentar
a ausência de materialidade do delito. Além da qualidade evidentemente precária
desse laudo, o juiz, na sentença de pronúncia, transcrita acima, sem qualquer
argumento consistente, simplesmente defende o laudo necroscópico, não
obstante a flagrante contradição apontada pela defesa. Desse caso ainda é
considerado incompleto o laudo do exame do local do crime no qual consta a
existência de marca de um disparo contra uma parede, quando as testemunhas
disseram ter o agressor ter feito dois ou três disparos antes de acertar a vítima.

No caso de Guarulhos (203/84), além dos exames terem inúmeras falhas,


sem apresentarem qualquer detalhamento das condições em que se encontrava
a vítima, as mutilações que apresentava, os projéteis retirados do corpo foram
encaminhados pelo IML para a delegacia que só dois meses depois os
encaminhou para o Instituto de Criminalística para realizar a perícia. Uma faca
encontrada sobre a vítima não foi periciada.

A anexação de documentos, como a Folha de Antecedentes e certidões


criminais, aos autos do caso de Osasco não redundou em qualquer medida que
levasse o réu a responder pelo crime preso. No caso do justiceiro de Itapecerica
da Serra, o exame dos projéteis e a perícia das armas apreendidas indicavam
que havia uma correlação entre ambos, porém nem a autoridade policial nem
judicial solicitou qualquer exame que comparasse os projéteis e as armas. Exame
que poderia ter ajudado na apuração do envolvimento do acusado no crime, uma
vez que alegava portar no dia do crime determinado tipo de arma. Foi somente
na fase das alegações finais que o promotor se refere ao fato dos projéteis
serem do mesmo calibre da arma apreendida com o acusado.

Dentre os casos analisados, o caso da Zona Sul foi o único que teve a
realização do exame perinecroscópico, feito com o cadáver ainda no local do
crime. Porém, o laudo só foi anexado um ano e um mês depois de tal forma que
nenhuma contribuição forneceu uma vez que quando de sua junção aos autos
estava às vésperas do julgamento do júri, não sendo utilizado nem pela defesa
nem pela acusação.

Ou seja, pelas análises feitas nos processos, as provas materiais e


periciais não acrescentaram evidências que fossem, de alguma forma, decisivas
para o andamento do processo. Muitas vezes, notamos que os laudos periciais
são realizados de forma burocrática, como obrigação processual e não como
tendo real potencialidade de desvendar detalhes importantes do crime.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 772

Provas orais (presenciais e testemunhais)

As provas testemunhais representam um ponto crítico em todo o processo


criminal. São consideradas essenciais para ação penal na medida em que
proporcionam a reconstrução dos eventos, os fundamentos da acusação e da
defesa e as informações essenciais aos operadores técnicos do direito.
Tradicionalmente, as provas testemunhais são consideradas problemáticas. É
comum, por exemplo, encontrar casos em que, não obstante as testemunhas
declararem, na fase do inquérito policial, que os indiciados possuem reputação
de matadores na região, somente após findadas as diligências policiais, e já na
fase da denúncia, é que o promotor solicita maiores informações sobre os
indiciados. No caso de Guarulhos (203/84), por exemplo, somente na fase de
instrução criminal é que foram anexadas as folhas de antecedentes dos réus. Por
esses documentos, todos respondiam a vários inquéritos por homicídio, todos
praticados num período curto (entre maio e dezembro de 1984); uma prisão
preventiva poderia, portanto, não somente impedir que os indiciados se
foragissem, como também poderia impedir o cometimento de outros crimes.

Uma das dimensões do tempo real da justiça é a localização das


testemunhas. A localização é tremendamente dificultada pela existência de
constrangimentos múltiplos, relações pessoais, ameaças, precariedade dos
vínculos dos indivíduos na comunidade. De certa forma, quanto mais longo é um
processo mais frágeis se tornam os testemunhos. Quanto mais tempo dura um
processo, mais, portanto, as declarações escritas das testemunhas ganham
caráter de verdade, independente dos contextos particulares de sua produção
diante do delegado ou do juiz de instrução. É comum, nos processos analisados,
o desaparecimento das testemunhas após uma primeira inquirição feita quer na
polícia, quer na primeira instrução criminal. O desaparecimento das testemunhas,
em si mesmo, pode ser compreendido pelas oscilações do mercado de trabalho
ou pelas fragilidade dos laços das pessoas com o bairro em que residem ou pela
precariedade da moradia: existem levas e levas de indivíduos, sobretudo nos
bairros periféricos de nossas grandes cidades, que participam de uma constante
e compreensível onda de migrações internas. Dentro do contexto específico dos
processos criminais, o sumiço das testemunhas pode significar, em primeiro
plano, a descrença na capacidade do sistema de justiça criminal em lhes dar
garantias, e, em segundo, devem-se às relações personalizadas existentes entre
vítimas, agressores e testemunhas e as tensões que eles provocam. Ainda no
caso de Guarulhos (203/84), a defesa, nos caso dos réus 1, 2 e 3, não
apresentou testemunhas; duas audiências não se realizaram porque houve
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 773

dificuldade em encontrar a amásia da vítima; de nove testemunhas arroladas,


apenas quatro foram ouvidas.

Não obstante, os processos analisados estão fortemente ancorados nas


declarações de testemunhas ou das vítimas, quando sobrevivem. Nem sempre
as declarações das testemunhas, ou mesmo sua qualificação, estão fielmente
ancoradas nas disposições do CPP. Em muito casos, como no caso de
Itapecerica da Serra, foram ouvidas na fase de inquérito policial dez
testemunhas, sendo que sete delas já haviam, de alguma forma, se envolvido ou
acompanharam o grupo de patrulhamento do bairro. Uma das testemunhas era
inclusive padrasto de uma das vítimas e foi apontada como mentora do mesmo
grupo de patrulhamento. Ou seja, o envolvimento das testemunhas com um dos
lados, às vezes, com ambos os lados, minam a confiabilidade dos testemunhos.
Não obstante, por motivos mais ou menos claros, as testemunhas nem sempre
são presenciais. Nessa categoria se encerram os policiais, quando chamados a
depor.

No caso de São Bernardo, os laudos necroscópicos indicaram, por


exemplo, que houve execução das seis vítimas com armas de fogo e punhaladas.
As vítimas receberam vários golpes e tiros que caracterizam execução sumária,
pois os ferimentos foram feitos de cima para baixo e de costas. Para recompor os
fatos foram apresentadas dez testemunhas, sendo 6 de acusação e 4 de defesa.
A testemunha principal foi um menino que estava presente ao local do crime,
embora não tenha visto o crime. Mas foi por intermédio dela que a polícia chegou
a um dos acusados e este indicou os demais. Devido a ausência de mais provas
testemunhais, os investigadores foram arrolados como testemunhas. No caso de
Guarulhos (203/84), segundo alguns dos relatos, a vítima foi perseguida e, ao se
refugiar na casa vizinha; os agressores a localizaram; os agressores permitiram
que o casal que residia na casa invadida deixasse o local. A amásia da vítima e
esse casal viram parte das agressões mas disseram não poder identificar os
agressores. Apenas uma testemunha fez reconhecimento positivo, indicando
quem eram os componentes do grupo de assassinos.

A acusação utiliza os testemunhos para formular as bases de sua


argumentação; o peso da prova recai, portanto, sobre a acusação. O promotor
público tem enormes dificuldades para arrolar e trazer à presença do juiz as
testemunhas já inquiridas no inquérito policial. Parece ser uma regra a falta de
empenho das autoridades policiais em localizar as testemunhas quanto
solicitadas pelo promotor público ou pelo juiz. No rumoroso caso de Guarulhos
(203/84), foram ouvidas 8 testemunhas. Uma delas alegou que foi forçada a
emprestar o carro aos assassinos. Conforme outras testemunhas, na verdade,
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 774

ela teria tido participação ativa no caso; essa testemunha era conhecida no bairro
como preso albergado que andava armado e com a proteção de policiais. Devido
às denúncias de outras testemunhas, finalmente e apenas na fase judicial, o
delegado que presidira o inquérito resolveu indiciar esta testemunha; durante as
investigações, no entanto, ela foi baleada e faleceu. Algumas vezes,
aparentemente para tornar o inquérito mais rápido, o delegado sequer ouviu as
testemunhas.

Em todos os processos analisados as dificuldades na localização e


intimação das testemunhas se repetem monotonamente. No caso de Osasco, por
exemplo, foram três as testemunhas, sendo uma delas um irmão da vítima. Uma
das testemunhas não foi localizada (estaria morando em outro estado). A outra
também não foi localizada na fase do inquérito, mas por solicitação do promotor,
na fase de instrução, a polícia finalmente teve de localizar a testemunha.
Portanto, a acusação pôde dispor de apenas um depoimento. Na fase do
inquérito, as testemunhas não foram ouvidas. Aparentemente não houve
empenho da polícia na localização das testemunhas. No caso do Butantã, no
inquérito foram arroladas 3 testemunhas de acusação; sendo que uma delas era
irmã da vítima, testemunha presencial. Nenhuma delas foi localizada. Não havia
testemunhas de defesa. O cunhado da vítima chegou a testemunhar, sem no
entanto ter sido arrolado ou intimado para tanto.

Em geral, as testemunhas fornecem endereços no inquérito policial onde,


depois, já na fase de instrução criminal, já não estão residindo. Então, é comum o
oficial de justiça não localizar essas testemunhas. No caso de Guarulhos
(181/82), por exemplo, três testemunhas de acusação foram ouvidas dentro de
um período de 3 meses, mas houve enorme dificuldade na sua localização. No
caso de Embu, houve dificuldades em localizar e intimar as testemunhas,
primeiro porque deveria ser por carta precatória, em razão de morarem algumas
testemunhas em São Bernardo. Só para intimar as testemunhas foram gastos 5
meses. No caso de Guarulhos (203/84), o Promotor arrolou policiais como
testemunhas. Mesmo a testemunha que mais deu informações sobre o caso
(porque um dos agressores teria estuprado sua irmã) depois não pode ser mais
encontrada pois não havia fornecido seu novo endereço.

Algumas iniciativas parecem ser eficientes. No caso de Guarulhos


(203/84), na fase de instrução criminal do réu 4, ou seja, após o
desmembramento do processo original, foram ouvidas 9 testemunhas em apenas
duas audiências consecutivas. Isso somente foi possível porque o juiz e o
promotor exigiram que essas testemunhas fossem intimadas pessoalmente, o
que se mostrou eficaz. Mas suplantar as dificuldades de localização e de garantir
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 775

a presença das testemunhas não elide a dificuldade maior quanto ao valor


atribuído ao testemunho e quanto ao uso específico que o sistema de justiça
criminal faz dele. Esses são problemas que extrapolam, naturalmente, as
considerações desse relatório.

Trâmites Burocráticos-Administrativos

Os maiores problemas encontrados nos processos relativos ao


cumprimentos dos trâmites burocráticos e administrativos referem-se à demora
com que os cartórios cumprem os despachos das autoridades judiciárias. Os
cartórios não somente retêm os processos por períodos mais longos do que
permite a lei, como também não agilizam as diligências solicitadas dentro dos
prazos.

No caso de Butantã a notícia da morte do acusado foi dada por uma


testemunha que revelou ao oficial de justiça que a intimava. Uma audiência foi
adiada porque nenhuma testemunha foi intimada. A oficial de justiça não
executou suas tarefas por estar em licença médica (quase dois meses). A
audiência para interrogatório do réu não ocorreu por não ter sido ele localizado,
mesmo depois de três tentativas. O Ministério Público solicitou a decretação da
revelia. O juiz não acatou a solicitação e intimou o acusado por edital. Mais uma
vez a audiência foi adiada, diante do não comparecimento do réu. 8 meses e
meio depois do início da fase judicial foi então decretada a revelia do réu. O
delegado no caso de Butantã fez uma única solicitação de dilação de prazo para
conclusão do inquérito. O inquérito policial ficou parado por dois meses na
delegacia, quando o prazo é de 30 dias.

No caso de Guarulhos (181/82), o oficial de justiça deveria entregar a


intimação para o acusado. Porém não o encontrando na sua residência deixou
um cartão com uma pessoa para que o acusado entrasse em contato com ele.
Dias depois uma pessoa se apresenta ao cartório e se constata, depois de um
exame de impressão digital que não era o acusado.

No caso de guarulhos (203/84), a amásia da vítima não pode ser


localizada porque, na intimação o endereço dado foi Guarulhos, quando a
testemunha morava em São Paulo, por engano do Cartório. O primeiro oficial de
justiça que procurou intimar o réu 1 afirmou em sua certidão que foi informado
que este estaria viajando “sem data para retornar”; o segundo oficial de justiça
também escreveu a mesmo coisa em sua certidão “estando em local incerto e
não sabido”. O escrivão teria encontrado o atestado de óbito de uma testemunha
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 776

e indiciado, quando procurava endereço de outras testemunhas por ordem do


promotor.

No caso de Itapecerica, o cartório também pode ser apontado como


responsável por inúmeros e injustificados atrasos, não obstante as pressões do
juiz para o cumprimento dos prazos em caráter de urgência. O cartório também
foi desatento com a morte de uma testemunha. Embora tivesse notícias de sua
morte, o cartório intimou-a para uma audiência. O oficial de justiça foi intimar,
portanto, um morto.

No caso da zona sul, um mandado de intimação cumprido foi extraviado e


o cartório demorou para emitir outro, por ordem o juiz. A promotoria solicitou ao
cartório a obtenção de uma fita de um programa de rádio onde houve a narração
do crime, mas sem sucesso.

Portanto, não obstante os poucos exemplos dados aqui, pode-se dizer que
os procedimentos burocráticos e administrativos implicados no processo penal, e
cuja responsabilidade cabe aos cartórios, não parecem ser levados com
seriedade. Basta lembrar, além dos problemas arrolados, que não há, nos
processos, mecanismo de averiguação de responsabilidades ou de punição dos
responsáveis pelos atrasos ou pelas ausências de cumprimentos de despachos
judiciais. Estranhamente, os motivos que forçam a imprecisão das ações judiciais
ou que provocam demoras inaceitáveis não são passados em revista pelas
autoridades que deveriam zelar pela qualidade material e legal do processo.

Existência de Informalidades ou as regras informais das instituições

As informalidades cometidas pelos operadores do direito são encontradas,


ao longo do processo, de forma bastante comum. Mas informalidade não significa
apenas que os operadores procuram resolver vários problemas de forma não
oficial. Em alguns casos, resolver problemas dessa forma pode significar a
abreviação da duração de um processo, quando por exemplo, um oficial de
justiça solicita a um morador do bairro a notificação verbal de uma testemunha.
Em outros, pode significar claramente uma forma de subtrair um direito ou
salvaguarda constitucional, como no caso de pressões ilegais exercidas pela
polícia sobre um suspeito.

Para começar, no caso de Osasco, a polícia sequer levantou a questão do


fato de o agressor estar sendo indiciado em dois outros inquéritos sobre
homicídio, sendo que um deles teria ocorrido, segundo a imprensa, no mesmo
dia em que ocorreu o homicídio que deu origem ao processo 65/86. O delegado
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 777

poderia ter solicitado a prisão preventiva do indiciado, mas não o fez. Neste caso,
ainda, nos autos não há quanto às formas pelas quais a polícia localizou uma das
testemunhas, nem quanto aos procedimentos e solicitações formais, não só na
fase de inquérito como também na de instrução criminal.

Os procedimentos formais, previstos no CPP, somente dão uma


orientação geral aos operadores de direito, estes não parecem considerá-los
regras estritas. Tanto no caso de Osasco como no de Butantã foram feitos
exames de dosagem alcoólica sem que houvesse qualquer solicitação formal
para tanto. No caso de Butantã, além desse exame, foi feito, também sem
solicitação formal, o exame dos projéteis extraídos do cadáver. Os órgãos da
administração judicial, aparentemente, possuem seus rituais próprios que se
colocam numa posição de independência em relação às exigências das
formalidades processuais.

No caso de Guarulhos (181/82), o acusado foi localizado pela polícia


militar mas não apresentado à delegacia polícia. O acusado se apresentou algum
depois voluntariamente, mas conseguiu escapar do flagrante evadindo-se da
delegacia. Isto prejudicou o flagrante e ocorreu provavelmente por ser o acusado
inspetor de quarteirão e conhecido dos policiais. Quando o prazo do flagrante
terminou ele se apresentou à polícia.

Não há, no caso de Itapecirica, clareza de informação sobre a decisão do


juiz sobre a decretação da revogação da prisão preventiva solicitada pelo
promotor. Não se sabe se os atestados de antecedentes e as certidões negativas
estavam anexadas aos autos quando da decisão. Mesmo as informações do
atestado e das certidões estavam claramente incompletas. Uma das
testemunhas, sobre a qual repousava a suspeita de participação no crime, e que
era menor, havia se mudado alegando estar sob ameaça dos bandidos. Mas não
houve nenhum empenho da polícia em localizá-la.

Outra informalidade a ser considerada, no caso de Guarulhos (203/84), foi


a demora na solicitação da prisão preventiva dos indiciados; não obstante haver
indícios bastantes para tal, sua demora deu tempo para que quatro indiciados se
foragissem. O laudo necroscópico descreve 9 ferimentos no corpo da vítima;
apenas um mês depois, foi juntado um ofício do IML encaminhando as balas
retiradas do corpo. Apenas dois meses depois, o delegado enviou as balas para
o Instituto de Criminalística. (O comum é o IML encaminhar direto ao IC). No
laudo do exame do local do crime, há a referência à faca, mas nenhuma perícia
foi procedida nela. Uma espingarda foi apreendida com o primeiro indiciado, mas
não consta nos autos que alguma perícia tenha sido feita sobre ela. No caso de
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 778

Embu, o inquérito foi concluído mas estava incompleto e o promotor solicitou a


inquirição de uma testemunha e anexação de uma folha de antecedentes. Esse
procedimento demorou três meses. Os despachos do juiz quase nunca eram
cumpridos prontamente. O oficial de justiça e o cartório fizeram confusão quanto
ao bairro de residência dos acusados. Para interrogatório em juízo os réus se
apresentaram com advogado constituído voluntariamente. O fato é que para essa
audiência o oficial de justiça não havia localizado os réus. Uma das vítimas
compareceu ao cartório e foi cientificada da data da audiência e nessa mesma
ocasião concordou em avisar uma testemunha. Um dos réus foi intimado por
precatória mas esta não havia sido cumprida. O réu compareceu porque foi
informado da audiência no júri por método informal. Os outros dois réus
constituíram defensor antes mesmo de receberem a intimação para tal. Pois essa
intimação não foi cumprida pelo oficial de justiça.

No caso de Embu as intimações permitem a suposição de que uma vez


que a pessoa não foi encontrada o oficial de justiça deixava recado para vizinhos
ou parentes dos intimados que ainda residiam no local. O que é um indicador do
grau de informalidade para a intimação para as audiências. Essa informalidade
revela uma certa reforma dos procedimentos extremamente formais previstos
para o andamento do processo. Pode ser considerada como uma crítica à própria
formalidade do processo.

Atos da defensoria

Os defensores procuram, dentro dos limites do processo, criar condições


para garantir a defesa do acusado. Boa parte de suas estratégias referem-se à
indicação de testemunhas que joguem dúvidas sobre a versão levantada pela
acusação. Curioso que, na ausência dessas testemunhas, os defensores usam
outros meios, mais teatrais, através dos quais conseguem protelar o curso do
processo. Os defensores públicos, aparentemente, se desvencilham de casos
cujo espectro não lhes seja favorável. O defensor público, no caso Butantã, foi
designado pelo juiz depois de decretada a revelia do acusado. Compareceu a
uma audiência onde foram ouvidas as testemunhas de acusação. Depois disso
pediu para ser substituído “alegando uma decisão do Encontro da Defensoria
Pública”. No caso de Guarulhos (181/82), o defensor dativo foi substituído por
outro na fase das alegações finais, o que fez com que o prazo oficial de 5 dias se
estendesse para 44 dias. Depois disso, mais de cinco anos se passaram e o
acusado constituiu um defensor para solicitar a revogação da prisão preventiva.
No caso de Guarulhos (203/84), o réu 1 constituiu defensor. Em março de 1985,
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 779

o defensor pediu afastamento e o réu constituiu outro, logo depois o réu fugiu. Os
defensores públicos - dos demais réus - na fase de alegações finais,
ultrapassaram em muito o tempo regular que tinham, o que revela no mínimo
despreocupação com o caso. Apenas um defensor buscou outras formas de
atuação, quando interpôs recurso. O réu 4 também constituiu defensor que
sequer apresentou defesa prévia nem arrolou testemunhas. O defensor tentou
contradizer uma testemunha numa audiência, no que foi interrompido pelo juiz
que presidia a mesma.

No caso de SBC, o defensor constituído de um dos acusados esteve


presente e acompanhando todo o processo; os demais tiveram defensores
dativos nomeados. Com exceção de um que foi mais atuantes, os demais foram
no mínimo displicentes, por exemplo não comparecendo a algumas audiências e
nem mesmo esgotando todos os recursos processuais. Foram responsáveis pela
demora na fase das alegações finais. No caso do réu 4, o novo júri foi mais
demorado (2 anos e 4 meses) porque o defensor procurou esgotar todos os
mecanismos de recurso regular. Protelou claramente submeter o réu a novo júri.
Não tinha qualquer interesse e compromisso com o caso. Depois de conseguir
adiar várias audiências, o defensor pediu para sair do caso, o que motivou a
nomeação de um novo defensor, no caso uma defensora, o juiz oficiou a
comissão de ética da OAB. No caso do réu 1 (que não foi a júri uma segunda
vez), a fase do desmembramento até a fase de apelação e revisão da sentença
foi de 5 anos e 4 meses. O defensor numa das audiências, trocou ofensas com o
promotor e abandonou o caso e o réu. Só depois de um ano é que um defensor
foi constituído. A confusão na questão dos defensores (dois constituídos) e outros
problemas de prazo fizeram com que se passassem 4 anos entre a audiência em
que o defensor abandonou a sessão e uma nova audiência. Foram cinco
defensores a passar pelo caso, entre dativos e constituídos.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 780

CAPÍTULO 19
O TEMPO DA JUSTIÇA: A QUESTÃO DA MOROSIDADE PROCESSUAL

Sérgio Adorno
Jacqueline Sinhoretto
Wânia Pasinato Izumino

Uma das mais completas e atuais análises da morosidade processual foi


recentemente desenvolvida por equipe de pesquisadores do Centro de Estudos
Sociais da Universidade de Coimbra, liderada por Boaventura de Sousa Santos
(Santos & outros, 1996). A investigação empreendida enfocou objeto duplo: por
um lado, analisou o desempenho dos tribunais portugueses de primeira instância
enquanto instituições de resolução de litígios e de controle social; por outro lado,
cuidou de observar o acesso dos cidadãos à justiça, abordando suas motivações
para acioná-la bem assim suas representações quanto à eficácia dos direitos e
do funcionamento das instâncias judiciais e judiciárias. Neste domínio, a questão
da morosidade mereceu atenção especial na medida em que constitui uma das
variáveis - um indicador mesmo - através da qual é possível avaliar o
desempenho dos operadores do direito e das instâncias de distribuição de justiça,
certamente uma das interfaces entre o sistema jurídico e o sistema político em
sociedades democráticas.

De início, é preciso reconhecer flagrantes diferenças entre o projeto de


investigação desenvolvido em Portugal e o projeto de investigação “Continuidade
Autoritária e Construção da Democracia”, em curso no NEV/USP. A começar, os
objetos são distintos, a despeito do campo comum de investigação constituído
em torno do papel da Justiça na construção da democracia contemporânea em
sociedades semi-periférica e periférica, para reportar-se à conceituação do
próprio Sousa Santos. Quanto à metodologia, o projeto português sustentou-se
fundamentalmente em procedimentos de coleta e análise de dados quantitativos,
ainda que casos tenham sido selecionados para exame particularizado. No
projeto NEV/USP, desenvolvido em etapas, o essencial da investigação repousa
no estudo de casos de violação de direitos humanos; não obstante, inicialmente
se procurou quantificar ocorrências dessa espécie, veiculadas pela imprensa
nacional. Algo na mesma direção pode ser dito quanto à observação e exame
analítico da questão da morosidade. Neste particular, porém, as diferenças são
mais sutis e talvez não sejam tão relevantes pois que o Projeto NEV/USP se
apoiou decisivamente na experiência metodológica portuguesa. Essa a razão
pela qual, inclusive, valeria a pena destacar os principais aspectos desta
experiência, antes de apontar as pequenas divergências.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 781

Como já salientado anteriormente, no capítulo 4 deste relatório, Sousa


Santos & colaboradores distinguem dois aspectos relacionados à morosidade
processual: por um lado, espera-se que a justiça seja rápida porque a duração
excessiva do processo judicial provoca a erosão da prova com graves
conseqüências para a justa reparação do direito violado; por outro lado, a
celeridade no andamento processual não pode ser de molde a comprometer a
segurança jurídica e os direitos dos cidadãos. Por conseguinte, o tempo ideal de
duração de um processo deve harmonizar rapidez e eficiência com a proteção
dos direitos. A esse ponto médio, denominam morosidade necessária, ou seja o
cumprimento dos prazos legais visto sob a ótica das práticas judiciais. É sob este
ponto de vista que foi observada e analisada a morosidade legal. Empiricamente,
o conceito foi operacionalizado levando-se em consideração prazos
regulamentados em estatutos legais e tempos médios de andamento e/ou
permanência de autos intra e entre repartições judiciais, estimados com base em
observação piloto in loco. Para efeitos de contagem do tempo, considerou-se o
percurso desde o início do processo até à resolução efetiva do litígio. Não foram
consideradas as fases pré-judiciais (nas quais têm lugar mecanismos de
negociação, mediação e conciliação anteriores à instauração da ação judicial
propriamente dita), nem as fases pós-judiciais (nas quais ocorre o cumprimento
da decisão proferida no processo, como pagamento de indenização, multa,
recolhimento à prisão etc.).

Esse procedimento permitiu, por conseguinte, alcançar o tempo médio de


andamento de um processo judicial (civil e/ou penal), bem como identificar casos
de longa duração processual. Feito isto, o passo seguinte consistiu em explorar
as causas da morosidade legal. Neste domínio, Santos & colaboradores
diferenciam as causas endógenas das causas funcionais. As primeiras
compreendem uma série de situações ou circunstâncias inerentes ao sistema
judicial e contrária às partes em litígio. Podem ser endêmicas, sempre que
estejam associadas ao volume de trabalho ou às rotinas estabelecidas e
consolidadas no tempo ou provocadas por imperícia, despreparo e/ou negligência
dos operadores técnicos e não-técnicos do direito280. Por sua vez, compreende-
se por morosidade funcional a série de situações ou circunstâncias provocada
por uma das partes, sempre na defesa de seus próprios interesses.

280
Os operadores técnicos do direito compreendem todos aqueles atores que dispõem de saber
especializado, adquirido em formação profissional própria, exercitada em ensino de terceiro grau
(universitário). Por operadores não-técnicos compreendem-se funcionários, que não foram
submetidos ao mesmo tipo de treinamento profissional, em cujo saber é adquirido através da
manipulação das rotinas administrativas do serviço. A diferença é aqui significativa, como se verá
mais a frente, pois que se cuidará de identificar agentes - atores e práticas institucionais -
responsáveis pela morosidade processual.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 782

Entre as causas da morosidade endógena, o estudo lista: as condições de


trabalho (instalações e equipamentos); a irracionalidade na distribuição dos
funcionários judiciais; a irracionalidade na distribuição dos magistrados; o
despreparo e negligência dos funcionários judiciais; o despreparo e a negligência
de promotores públicos e magistrados; o volume de trabalho; o recurso a técnicos
externos aos tribunais; o cumprimento de cartas precatórias e rogatórias. A
análise do peso relativo de cada um desses fatores conduziu à conclusão,
segundo à qual “dentro de cada tribunal, as diferentes causas actuam de forma
diversa sobre cada uma das secções. Em regra, os graus de incidência causal
variam com grande amplitude, relativamente à mesma causa de morosidade, de
secção para secção de processos, pelo que a elaboração destes quadros
[transcritos no correr do texto] sofre de alguma perversão generalizadora, que
oculta o facto de no mesmo tribunal haver secções a funcionar em condições
óptimas e outras em condições péssimas” (Santos & outros, 1996: 442).

Em vista desta observação, os pesquisadores sustentam três outras


conclusões: (a) “a morosidade é tanto mais forte quanto mais variadas, intensas e
acumulativas forem as causas”. [...] “As diferentes causas de morosidade actuam,
assim, em sistema de feedback umas sobre as outras”; (b) a irracionalidade na
distribuição dos funcionários judiciais ocorre com maior freqüência nos tribunais
com piores condições de trabalho e quando essa irracionalidade é, por si só, uma
‘causa forte’, a pendência de processos e o volume de trabalho nas secções
aumenta de imediato”; (c) “a impreparação ou negligência dos funcionários
judiciais ou dos magistrados verifica-se em qualquer tipo de tribunal e quando
acontece tem, por si só, uma forte repercussão no aumento da morosidade” (pp.
442; 447).

Pois bem, feitas estas considerações, impõe-se agora apontar as


diferenças entre a análise da morosidade no estudo realizado pelos
pesquisadores do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e
análise empreendida nesta pesquisa do NEV/USP. Em linhas gerais, os
conceitos e a metodologia de contabilização do tempo são idênticas. No entanto,
foi necessário introduzir adaptações em face das peculiaridades do direito penal
e processual penal brasileiros. Em primeiro lugar, nosso Código do Processo
Penal não demarca prazos para determinadas operações ou atividades judiciais.
Em não poucas circunstâncias, foi necessário estimar o transcurso “razoável” de
tempo para esta ou aquela operação, esta ou aquela atividade. Para tanto,
recorreu-se a consultas a diferentes cartórios com vistas a alcançar uma espécie
de “tempo médio” que servisse de parâmetro e de estimativa. No entanto, para
surpresa dos pesquisadores, a heterogeneidade de respostas à consulta era
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 783

tamanha que, na melhor das hipóteses, comprometia a fidedignidade que se


esperava atribuir a este procedimento. A heterogeneidade respondia a duas
ordens de orientação da conduta: em algumas consultas, tratava-se de evidente
palpite de um funcionário sem qualquer justificativa plausível; em outras, as
diferentes respostas certamente refletiam distintos desempenhos entre tribunais,
como aliás sugerem Santos & colaboradores. Mesmo assim, através de múltiplas
e sucessivas consultas, logrou-se alcançar algum consenso a respeito de forma a
fixar-se um tempo médio para algumas operações e/ou atividades, conforme
contido nos quadros apresentados no capítulo 4, no item “o tempo da justiça:
uma análise das formalidades e dos prazos no andamento dos processos
penais”.

Outra dificuldade enfrentada diz respeito à impossibilidade de traduzir a


morosidade necessária em termos de um diagrama padrão - como ocorreu no
projeto português -, em virtude da natureza da violação de direitos humanos
enfocada. De fato, conforme se procurará mostrar mais a frente, os casos
enfocados não se ajustam à duração média de um processo penal instaurado
para julgamento de homicídio doloso, sujeito portanto ao tribunal do júri, média
essa em torno de 60 meses. Em geral, os casos de linchamento observados
ultrapassam em muito esta expectativa. Deste modo, seria preciso construir uma
média especial que assegurasse a construção de um diagrama padrão para
casos desta espécie. Se assim não for, corre-se o risco de uniformizar situações
certamente muito distintas, como são por exemplo aquelas relativas a um
homicídio comum, verificado no cotidiano das relações intersubjetivas, e aquelas
pertinentes ao homicídio resultante de um linchamento cujas motivações, como
se demonstrou anteriormente, respondem a inquietações sociais de outra ordem
e natureza.

Ainda, mesmo considerando tais especificidades, observou-se que os


casos de linchamento não são homogêneos entre si, no que concerne à duração
do processo penal. Um procedimento mais adequado e preciso recomendaria a
construção de algumas classes de perfis-padrão que pudessem ser aplicadas a
distintos casos de linchamento observados. Deste modo, a variável tempo estaria
completamente “sob controle”, permitindo alcançar resultados fidedignos e
comparáveis entre si e com outras espécies de violação de direitos humanos e
com outros tipos de violência praticados contra a vida que teriam resultado em
desfecho fatal. No estágio atual da investigação, esta precisão metodológica
ainda não foi alcançada. Encontra-se em fase de desenvolvimento pois que, para
alcançá-la, estão sendo investigados detalhes de procedimentos judiciais e
judiciários que interferem na composição dos perfis-padrão. Por isso, nesta
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 784

etapa, ainda optou-se por recorrer a um padrão único, instrumento de medida


aplicado para mensurar a morosidade processual nos casos de linchamento
observados nesta pesquisa .

No curso da investigação metodológica, decidiu-se operar uma


classificação não presente na pesquisa coordenada por Santos & colaboradores.
Trata-se da distinção entre tempo útil e tempo morto. Como explicitado
anteriormente, há providências que concorrem para o andamento e desfecho
processual, adotadas e realizadas no curso de um tempo determinado. Essas
providências, absolutamente necessárias de acordo com as normas
regulamentares, foram classificadas como integrando o “tempo útil” da vida
processual. O tempo em que o processo permaneceu retido, em qualquer setor
do sistema de justiça criminal e sob responsabilidade de quem quer que seja (ou
seja, em mãos de qualquer um dos operadores técnicos e não-técnicos do
direito) foi classificado como “tempo morto”, pois que esse é justamente um lapso
temporal que concorre para a erosão das provas e para protelar direitos com
sérias repercussões negativas para a eficácia e eficiência da justiça. Finalmente,
estabeleceu-se ainda uma nova sub-classificação no interior da categoria “tempo
útil”: com e sem providências. Trata-se, nesta circunstância, de distinguir o
dispêndio de tempo dentro do prazo legalmente estabelecido. Algumas
providências são adotadas antes da conclusão do prazo legalmente estipulado e
concorrem para acelerar o andamento de outras fases, reduzindo possíveis
desequilíbrios ou atrasos na duração final dos processos. Outras, contudo, são
adotadas antes de esgotado o prazo regulamentar; contudo, o andamento do
processo para a etapa seguinte somente ocorre no último dia útil. Nesse sentido,
o processo permaneceu retido, ainda que legalmente autorizado. Embora tudo
isso possa parecer uma espécie de sofisticação metodológica estéril, ela teve por
objetivo precisar a observação e análise do comportamento dos agentes
responsáveis pela morosidade necessária.

A análise que se segue está dividida em dois itens: duração dos


processos e dispêndio do tempo. Na medida do possível, buscou-se avançar nas
explicações das causas da morosidade necessária. Para tanto, a análise apoiou-
se fundamentalmente em informações extraídas das entrevistas com os
operadores técnicos do direito. Não foi possível checar a autenticidade dos
pontos de vista esboçados - especialmente no tocante a aspectos determinados,
como volume de trabalho, precariedade das condições de trabalho, despreparo
dos funcionários etc. -, devido à ausência de fontes de informação disponíveis,
como relatórios técnicos, auto-avaliações administrativas, estatísticas judiciais.
No estudo levado a feito pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 785

Coimbra, a equipe de pesquisadores teve acesso aos relatórios da corregedoria


judiciária, o que permitiu uma sorte de avaliação qualitativa das dificuldades
enfrentadas que contribuem para acentuar a morosidade legal, nesta ou naquela
seção judicial, neste ou naquele tribunal. Nesta pesquisa, desenvolvida pelo
NEV/USP, não foi possível ainda ter acesso a uma documentação desta ordem,
embora se tenha tentado. Do mesmo modo, será necessário recorrer com maior
acuidade às informações contidas no Banco de Dados do Poder Judiciário que
certamente permitirá refinar a análise das causas da morosidade.

2. Os processos de linchamento

Duração dos processos penais


A duração dos processos judiciais instaurados para apuração de
responsabilidade penal nos casos de linchamento que resultaram em desfecho
fatal se encontra registrada no gráfico 1, cuja transcrição se segue.

Gráfico 1
Linchamentos em São Paulo, 1980-1989
Duração total dos processos (em meses)

CA M PIN A S 120,33

LA PA 101,41

RIBEIRÃ O PIRES 100,34

ITA PEC.SERRA 92,28

CA RA PICU ÍBA 91,30

M AUÁ 68,48

PRA Ç A D A SÉ 61,11

M O RO SID A D E N ECESSÁ RIA 52,36

JA RD IM N O RO N H A 22,52
JA RD IM M IRIA M 20,40

O SA SCO 11,29
ID EA L 10,16

0 20 40 60 80 100 120 140

Fonte: Poder Judiciário. Inquéritos policiais e processos penais


Pesquisa NEV/USP (1993-1997)

Conforme se pode verificar, a morosidade ideal (aquela resultante da


contabilização dos prazos previstos no Código do Processo Penal) prevê o
dispêndio de 10,16 meses para conclusão de todos os procedimentos judiciais e
judiciários, desde o registro da ocorrência policial até à sentença judicial
transitada em julgado. Convém observar que esse lapso de tempo inclui as fases
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 786

de denúncia, pronúncia e o julgamento do homicídio doloso pelo tribunal do júri. A


considerar esse parâmetro, todo o processo deveria estar concluído em menos
de um ano. Trata-se evidentemente de um lapso de tempo pouco compatível com
a realidade judicial/judiciária atual. Certamente, quando o legislador o considerou,
em fins da década de 1930, lhe parecia uma medida razoável, adequada a uma
época em que a evolução da criminalidade ainda estava sob controle das
autoridades encarregadas da preservação da ordem pública. Com a aceleração
do crescimento das taxas de violência criminal, desde a década de 1970,
acentuada ao longo da década passada, o descompasso entre o volume de
ocorrências e a capacidade de intervenção judicial/judiciária tendeu a se ampliar,
implodindo os prazos regularmente estabelecidos. Na atualidade, os operadores
técnicos do direito, quando entrevistados, ressaltam a caducidade destes prazos.

Por conseguinte, não é de estranhar que, à exceção do linchamento em


Osasco, todos os demais casos se afastaram desse parâmetro temporal, a
maioria dos quais inclusive de modo flagrantemente acentuado. Aliás, oportuno
destacar, o linchamento em Osasco acomoda-se de modo imperfeito dentro
desse lapso temporal. Como se constará a seguir, todos seus procedimentos se
concentraram exclusivamente na esfera policial. O inquérito foi arquivado sem
qualquer evidência de que se pretendia investigar o caso com vistas a punir os
linchadores. O desempenho da agência policial sugere desistência de aplicação
das leis penais. Sob esta perspectiva, se considerarmos o tempo regularmente
determinado para conclusão do inquérito policial (30 dias), a morosidade legal foi
justamente de 10,29 meses. Nunca é demais lembrar que, neste linchamento, o
desestímulo para o prosseguimento das investigações e da conseqüente ação
penal foi simbolicamente selado com o depoimento da própria mãe do linchado
que declarou se sentir aliviada com a morte do filho. Proferida por pessoa julgada
a mais interessada no esclarecimento dos fatos e na punição dos agressores, a
declaração acabou sendo interpretada simbolicamente como uma espécie de um
duplo despacho de arquivamento: por um lado, autorização por “quem de direito”;
por outro lado, condenação do caso ao esquecimento coletivo.

Em virtude da caducidade destes prazos regulamentares, impôs-se


portanto a necessidade de recorrer ao exame da morosidade necessária, de
acordo com a conceituação anteriormente definida. Nesta pesquisa, a
morosidade necessária foi estimada em 52,36 meses (4 anos, 1 mês e seis dias).
Ainda que esse lapso temporal possa estar ajustado às expectativas de cidadãos
brasileiros que recorrem (ou não) à justiça pública na busca de resolução para
seus litígios, expectativas aliás reforçada por padrões vigentes de cultura jurídico-
política e cívica, ele é ainda excessivo quando comparado com a morosidade
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 787

legal em outros países, como se constata pela leitura do quadro 14, a seguir
transcrito:

Quadro 14
Morosidade comparada (processos cíveis)

País Tribunal Morosidade


FRANÇA Tribunal de Grande Instance 12,9 meses
(média 1976-1986) Tribunal de Instance 4,2 meses
ITÁLIA Tribunali Primo Grado 26 meses
(1988) Preture 14,4 meses
ALEMANHA Amstsgerichte 4,5 meses
(1988) Landgerischte 8,9 meses
PORTUGAL Tribunais de 17 meses
(1988) Primeira Instância
Fonte:Morosidade processual nos Estados-membros da CEE (programa cidadão e justiça), 1991.
Para Portugal, Estatísticas de Justiça, 1988.
In: Santos & outros (1996), citado.

Evidentemente, é preciso fazer alguns reparos. Os dados contidos no


quadro 14 referem-se à litigação cível que, como se sabe, obedece a regras
processuais distintas da litigação criminal. Assim, rigorosamente, esses dados
não se prestariam a uma comparação com a morosidade processual observada
nesta investigação. Os casos cíveis envolvem ações de diversa natureza, entre
as quais: reconhecimento de paternidade; família e alimentos; divórcio e
separação; herança e sucessões; reparações em acidentes de trânsito;
responsabilização contratual; dívidas, prêmios, seguros; despejo urbano e rural;
propriedade, posse e expropriação; procedimentos cautelares, para mencionar
algumas delas. Dependendo da natureza da ação, os processos podem se
arrastar anos nos tribunais, enquanto outros merecem rápida decisão judicial.
Evidentemente, um raciocínio da mesma ordem poderia ser aplicado aos casos
de competência da justiça penal. No entanto, é pouco provável que a morosidade
necessária nestes casos seja idêntica àquela observável para os casos de
competência da justiça cível. E, mesmo que assim fosse, é de suspeitar que os
agentes responsáveis pela morosidade revelassem a mesma composição, o
mesmo peso ou a mesma combinação entre si.

Igualmente, a comparação não pode abstrair as profundas diferenças de


tradição e organização judiciais nos países acima relacionados. Certamente, as
interfaces entre o sistema judicial e o sistema político teriam que ser levadas em
consideração, em particular as relações com os outros poderes Executivo e
Legislativo assim como o peso da burocracia estatal e traços da cultura política
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 788

que mediatizam as relações entre os cidadãos e o aparelho judicial. Todos esses


elementos, tomados isoladamente ou combinados entre si segundo determinada
configuração, acabam influenciando a oferta de serviços judiciais, notadamente a
capacidade de distintos sistemas judiciais responderam com rapidez e eficiência
à resolução de litígios seja nas relações entre classes e grupos sociais, seja nas
relações intersubjetivas.

Ademais, as interfaces entre sistema judicial e sistema político teriam


ainda que ser examinadas sob a ótica da natureza mesma do conflito
intermediado, pois que o peso e influência de cada um dos elementos acima
mencionados podem variar não apenas em função de distintas tradições e
organizações judiciárias, mas também em função da natureza do litígio. Por
exemplo, é possível que, nos conflitos cuja resolução seja do domínio da justiça
cívil, os cidadãos revelem maior capacidade de pressão sobre as instâncias
judiciais, traço inclusive reforçado por uma cultura política que valoriza a
preservação de interesses relacionados à família, à propriedade, aos interesses
ligados às atividades produtivas em geral etc. Em circunstâncias como esta, é
muito possível que o perfil da burocracia estatal seja outro e que as relações
entre o sistema judicial e o político ensejem decisões judiciais rápidas. Neste
cenário, a morosidade processual poderá estar ajustada às expectivas dos
cidadãos por soluções rápidas. Contudo, outro pode ser o cenário quando em
foco estão os conflitos cuja resolução cai no âmbito da justiça criminal.

Finalmente, convém observar que, via de regra, os casos de competência


da justiça cível dificilmente são carreados e julgados em tribunal do júri,
cicunstância que tende a tornar o percurso processual mais moroso. Mesmo nos
casos afetos à justiça criminal, não é comum sê-lo. Em Portugal, por exemplo, o
julgamento de litígios criminais pelo júri depende de recurso formulado e
endereçado às autoridades judiciárias pela defensoria. Dependendo do
desenrolar do caso, a estratégia da defensoria consistirá justamente em avocar o
concurso do júri. Mas, pelo que se sabe, não é rotina fazê-lo, razão por que a
maior parte dos casos é julgada pelos tribunais singulares. No Brasil, como
afirmado anteriormente, os homicídios dolosos constituem competência exclusiva
do tribunal do júri, instituto cuja sentença condenatória ou absolutória não pode
ser reformada no todo ou em parte, por nenhuma instância judiciária superior,
exceto no tocante ao quantum e natureza da pena e exceto quanto à anulação do
processo em virtude de vício ou erro reconhecido nos procedimentos judiciais
e/ou em seu andamento. Em virtude dessas características, a distribuição da
justiça penal faculta a intermediação de não poucos recursos judiciais até à
decisão final, transitada em julgado, o que constitui um componente a mais da
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 789

morosidade processual, como aliás censuram não poucos operadores técnicos


do direito, em especial magistrados, aspecto ressaltado nas entrevistas
realizadas.

Caso fosse possível abstrair todas essas ponderações que turvam o rigor
que se deve imprimir às análises comparativas, seríamos necessariamente
levados à conclusão segundo a qual a morosidade processual nos casos de
linchamento observados nesta pesquisa está muito além da morosidade nos
países relacionados. Mesmo comparando com a de Portugal, o país onde a
morosidade é mais acentuada face aos demais, ainda assim nosso lapso de
tempo é três vezes maior; ou seja, no intercurso de tempo necessário para o
julgamento de um caso de homicídio doloso resultante de linchamento (ocorrido
no município de São Paulo ou em sua região metropolitana), em Portugal são
julgados três processos cíveis.

O gráfico 1 indica que, em apenas outros dois casos - os linchamentos


ocorridos no Jardim Miriam e no Jardim Noronha - a morosidade processual
esteve abaixo da morosidade necessária. Nos demais, esteve sempre acima
desse parâmetro. O caso do Jardim Miriam refere-se ao linchamento de um
homem, portador de distúrbios mentais, que matou e esquartejou sua sobrinha. O
do Jardim Noronha tem como vítima delinqüente linchado durante assalto em bar.
Ambos tiveram seus inquéritos policiais arquivados. Ambos parecem sugerir que
o perfil das vítimas serviu como poderoso desestímulo ao prosseguimento das
investigações. No primeiro desses casos, a linha de conduta adotada pelos
agentes da polícia civil investiu na apuração da sanidade mental do linchado,
seus antecedentes e os motivos que o levaram a praticar o homicídio de sua
sobrinha. Tudo parece concorrer para que o linchamento fosse considerado sob a
ótica das autoridades encarregadas de apurar os fatos e promover a punição dos
linchadores uma sorte de seqüência natural dos acontecimentos. No segundo
caso, não se tomaram providências no sentido de se identificarem suspeitos ou
mesmo de se localizarem testemunhas. Do mesmo modo, pouco esforço se fez
para identificar e localizar o outro delinqüente que acompanhava a vítima durante
o assalto e que conseguiu escapar ao linchamento. Mais do que desistência de
punição, essa linha de conduta parece sugerir uma sorte de convergência entre o
comportamento coletivo de populares que lincham e o comportamento daqueles
encarregados de pacificar a sociedade e preservar a ordem pública: ambos
parecem movidos pela mesma desconfiança nas instituições públicas de
resolução de litígios criminais. Há, no entanto, uma diferença singular: enquanto
cidadãos comuns tomam a justiça em suas próprias mãos, autoridades públicas
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 790

parecem reconhecer nessa modalidade de justiçamento popular uma espécie de


antecipação da justiça pública e oficial.

Nos demais casos, os inquéritos e processos penais foram se arrastando


por longos anos, muito além da morosidade necessária. As razões são variadas,
como se verá mais a frente. Grosso modo, em alguns processos pesa mais o
tempo dispendido na obtenção de provas documentais (técnicas); em outros, o
tempo é quase inteiramente consumido na localização e intimação de réus e
testemunhas; em outros, firulas burocrático-legais, equívocos na condução dos
procedimentos técnicos e legais, retenção dos inquéritos e/ou processos penais
sem justificativa plausível respondem pela morosidade processual observada. Em
alguns dos casos, cada um desses elementos tem sua parcela de
responsabilidade; em outros, ela resulta de uma combinação desses elementos e
circunstâncias determinadas. Não parece, neste domínio, ter-se identificado uma
causalidade padrão. Ao menos, parece razoável a hipótese levantada por Santos
& colaboradores (1996) a respeito do efeito cumulativo de uma causa sobre as
outras.

Certo ou não, mesmo para os padrões dominantes na justiça criminal no


Estado de São Paulo a morosidade processual, constatada nesta investigação, é
excessiva. Dados extraídos de outras pesquisas, a seguir transcritas nas tabelas
5 a 7, o indicam.

Tabela 5A
Morosidade em processos julgados em Varas Criminais segundo a natureza do crime
Município de São Paulo
1990

Duração roubo roubo roubo c/ estupro


(mês) simples qualificado agravantes
menos de 6 7 126 48 6
de 6 a 12 5 39 32 7
de12 a 18 1 29 9 3
de 18 a 24 3 17 12 1
de 24 a 30 - 24 13 3
de 30 a 36 - 18 2 -
mais de 36 1 29 31 3
Total 17 282 147 23
Fonte: Poder Judiciário. Pesquisa NEV/Geledés
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 791

Tabela 5B
Morosidade em processos julgados em Varas Criminais segundo natureza do crime
Município de São Paulo
90

Duração latrocínio tentativa de tráfico de Total


(mês) roubo drogas
menos de 6 1 46 18 252 (41,72%)
de 6 a 12 1 24 8 116 (19,20%)
de12 a 18 2 5 4 53 (8,77%)
de 18 a 24 3 4 - 40 (6,62%)
de 24 a 30 2 2 - 44 (7,28%)
de 30 a 36 1 1 - 22 (3,64%)
mais de 36 6 - 7 77 (12,74%)
Total 16 82 37 604
Fonte: Poder Judiciário. Pesquisa NEV/Geledés

Tabela 6
Morosidade em crimes dolosos contra a vida segundo desfecho processual
Município de São Paulo, IV Tribunal do Júri, Fórum Regional da Penha
1984-1988

Duração/desfecho Absolvição % Condenação


% Desclassificação % Total (%)
< 12 meses 26 36,62 70
40,70 20 37,04 116 (39,05)
12-24 meses 32 45,07 73
42,44 27 50,00 132 (44,44)
24-36 meses 9 12,68 24
13,95 7 12,96 40 (13,46)
36-48 meses 3 4,23 2
1,16 0,00 5 (1,68)
Sem informação 1 1,41 3
1,74 0,00 4 (1,34)
Total 71 100 172
100 54 100 297
% 23,91 57,91 18,18 100
Fonte: Processos penais. Pesquisa NEV/USP-CEDEC, 1989.

Tabela 7A
Morosidade em crimes dolosos contra a vida segundo desfecho processual
Município de São Paulo, III Tribunal do Júri, Fórum Regional de Santo Amaro
1984-1989

Duração/desfech Absolvição % Condenação % Sentença % Total %


o Interm.
< 12 meses 1 14,29 3 15,00 14 25,00 18 21,69
12-24 meses 2 28,57 7 35,00 25 44,64 34 40,96
24-36 meses 1 14,29 7 35,00 10 17,86 18 21,69
36-48 meses 2 28,57 2 10,00 3 5,36 7 8,43
> 48 meses 1 14,29 0,00 0,00 1 1,20
Sem informação 0,00 1 5,00 4 7,14 5 6,02
Total 7 100,00 20 100,00 56 100,00 83 100,00
% 8,43 24,10 67,47 100
Fonte: Processos penais. Pesquisa JCVCM, O papel da Justiça Criminal na solução dos
conflitos de gênero, 1991-1996.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 792

Tabela 7B
Morosidade em crimes de lesão corporal segundo o desfecho processual
Município de São Paulo, 1ª Vara Criminal, Fórum Regional de Santo Amaro
1984-1989

duração/desfecho Absolvição % Condenação % Total %


< 12 meses 59 38,06 24 28,92 83 34,87
12-24 meses 77 49,68 48 57,83 125 52,52
24-36 meses 13 8,39 8 9,64 21 8,82
36-48 meses - 0,00 1 1,20 1 0,42
sem inf. 6 3,87 2 2,41 8 3,36
Total 155 100 83 100 238 100
% 65,13 34,87 100
Fonte: Processos penais. Pesquisa JCVCM, O papel da Justiça Criminal na solução dos conflitos
de gênero, 1991-1996.

Na tabela 5 (A e B), encontram-se dados extraídos da pesquisa


“Discriminação racial e justiça criminal” (Adorno, 1995), cujo objeto consistiu em
identificar, caracterizar e explicar as causas do acesso diferencial de brancos e
negros à Justiça criminal em São Paulo. Estes objetivos foram alcançados
mediante análise da distribuição das sentenças judiciais para crimes de idêntica
natureza cometidos por ambas categorias de réus. O universo empírico de
investigação compreendeu crimes violentos julgados, em primeira instância, no
município de São Paulo, no ano de 1990, por tribunal singular. Embora a
morosidade processual aqui referida exclua os homicídios dolosos, de qualquer
modo a comparação entre esta e aquela ilustrada no gráfico 1 já permite alguma
aproximação. Como se pode verificar, 69,69% dos processos criminais
observados tem sua resolução em até 18 meses. Se considerarmos o total de
processos nessa condição (=421), a grande maioria mereceu sentença decisória
em primeira instância em até 6 meses (59,85%). Salvo nos processos penais
instaurados para apuração de responsabilidade por crimes de roubo seguido de
morte (latrocínio), os demais casos acompanham esta tendência.

Por conseguinte, é menor a proporção de processos penais cuja resolução


final dispendeu consumo entre 18 e 36 meses (17,54%). Os processos penais
cuja duração excedeu a 36 meses representaram a proporção de 12,74%. Talvez
não se trate de uma taxa desprezível face às expectativas dos cidadãos comuns
em relação à distribuição de justiça rápida e eficaz. É bem provável que essa
taxa seja justamente mais elevada nos processos mais complexos, aqueles que
ensejam maior número de procedimentos burocráticos e suscitem maior número
de medidas protelatórias. Não sem motivos, entre os processos penais
observados que se encontram nessa condição, são os casos de latrocínio, roubo
com agravante e tráfico de drogas aqueles que acusaram as proporções acima
da média, respectivamente 37,50%, 21,08% e 18,91%. A propósito, a título de
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 793

hipótese, é possível suspeitar que as causas funcionais exerçam aqui maior


influência na morosidade processual do que as causas endógenas.

Mesmo que se pondere a existência de limitações que restringem o


alcance e a precisão científicas da comparação pretendida281, duas conclusões
podem ser extraídas da análise realizada. Primeiramente, a morosidade
processual (nesses casos de crimes violentos julgados pelos tribunais singulares)
enquadra-se nos mesmos padrões da morosidade em alguns países da CEE,
conforme disposto no quadro 14, anteriormente transcrito. Portanto, tudo leva
crer que, nesses casos, a justiça têm observado prazos regulamentares e mesmo
aqueles institucionalizados pela cultura organizacional, cumprindo assim as
exigências de justiça rápida282. Em segundo lugar, em decorrência mesmo dessa
conclusão, são enormes as distâncias entre essa morosidade e aquela pertinente
aos casos de linchamento observados nesta investigação “Continuidade
Autoritária e Construção da Democracia”. Nem se diga que essas distâncias se
expliquem em virtude da natureza do crime julgado. Conclusões em sentido
contrário podem ser sustentadas pela análise dos dados contidos nas tabelas 6 e
7.

A primeira delas, tabela 6, faz referência aos dados da pesquisa “Violência


Urbana, Justiça Criminal e Organização Social do Crime” (Adorno, 1991 e 1994).
Esta pesquisa teve por objeto de práticas de produção da verdade jurídica283.
Empiricamente, ocupou-se da observação de 297 processos penais instaurados
para apurar responsabilidade em crimes dolosos contra a vida, julgados em um

281
Essas limitações provêm de duas circunstâncias. Em primeiro lugar, nessa pesquisa -
“Discriminação racial e justiça criminal” - a observação dos processos penais foi encerrada com a
decisão judicial em primeira instância. Não se considerou a existência de recursos a instâncias
superiores. Convém observar, contudo, que a proporção de processos nessa condição não é tão
elevada, como talvez se pudesse suspeitar. Em segundo lugar, é preciso lembrar que os crimes
de competência dos tribunais singulares têm seus procedimentos processuais abreviados quando
comparados com aqueles de competência do tribunal do júri.
282
Uma conclusão desta ordem, para ser generalizada, estaria a merecer exame de séries
históricas, além de análises mais aprofundadas do que se está em condições de fazê-lo, pelo
momento. De qualquer modo, neste nível, parece que as desconfianças do cidadão na justiça
relevam de outro lugar; talvez, não resultem efetivamente da morosidade, embora ela seja tema
freqüentemente presente nos debates públicos e nas pesquisas de opinião, porém do pequeno
número de casos que efetivamente chega ao conhecimento do juiz, é submetido a julgamento e
acaba por merecer sentença judicial decisória. Grande parte das ocorrências policiais sequer
chega a se converter em inquérito policial, aliás como já se sublinhou anteriormente; entre os
inquéritos, é elevada a proporção de feitos arquivados. A respeito, vide Adorno (1994b).
283
De acordo com Foucault, "cada sociedade tem o seu regime de verdade, sua 'política geral' de
verdade; isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os
mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, as
maneiras como se sanciona uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados
para obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como
verdadeiro". (Foucault, 1979: 12). V. também Foucault (1980: 17).
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 794

dos tribunais de júri da capital de São Paulo, no período de janeiro de 1984 a


junho de 1988. A pesquisa privilegiou a comparação entre o perfil social dos
condenados e o dos absolvidos, com vistas a verificar os móveis extra-legais que
intervêem nas decisões judiciárias, o contraste entre a formalidade dos códigos e
da organização burocrática e as práticas orientadas pela cultura institucional, o
entrecruzamento entre os pequenos acontecimentos que regem a vida cotidiana
e os fatos que regem a concentração de poderes no sistema de justiça criminal,
bem assim a intersecção entre o funcionamento dos aparelhos de contenção da
criminalidade, a construção de trajetórias biográficas e as operações de controle
social.

Conforme se pode constatar, a grande maioria dos casos julgados


(83,49%) mereceram decisão judicial em até 24 meses após o registro da
ocorrência policial, o que é um lapso temporal razoável uma vez considerado que
os procedimentos judiciais nos casos de competência do tribunal de júri são mais
extensos - porém nem tanto, como revelam os dados - do que aqueles cuja
atribuição está afeta aos tribunais singulares. Essa tendência independe do
desfecho processual, pois as proporções em casos de absolvição (81,69%), de
condenação (83,64%) e desclassificação (87,04%) não apenas são uniformes
entre si como também gravitam em torno da média. Igualmente uniformes são as
proporções de processos penais cuja morosidade oscilou entre 24 e 36 meses:
12,68% naqueles em que o desfecho resultou em absolvição; 13,95% em
condenação; e 12,96% em declassificação. É irrelevante a proporção de casos
cuja morosidade tenha ultrapassado esse lapso temporal (1,68%). Assim, nos
homicídios dolosos, cujo julgamento é atribuição exclusiva do tribunal de júri - o
que, como já se disse, tende a ampliar o consumo de tempo necessário até à
sentença decisória, quando menos porque seus procedimentos processuais
reclamam dois despachos judiciais (o de denúncia e o de pronúncia) -, a
morosidade padrão também não parece exceder a 24 meses. Esse lapso de
tempo também não distoa daqueles referidos à comparação internacional (quadro
14), mormente se considerarmos que o litígio civil não demanda o recurso ao
tribunal de júri. Portanto, uma vez mais, a distância que separa a morosidade
processual nos homicídios comuns daquela pertinente aos homicídios resultantes
de linchamentos permanece bastante acentuada.

Finalmente, poder-se-ia argumentar que o parâmetro temporal indicado na


pesquisa NEV/USP-CEDEC (1989) se refere a uma média geral de todos os
crimes dolosos contra a vida julgados pelo tribunal do júri observado. Seria
necessário examinar o comportamento dessa média segundo a natureza do litígio
que teria resultado em desfecho fatal. Para fazer face a esta ponderação, tomou-
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 795

se como referência estudo de caso sobre violência contra a mulher. Na tabela 7


(A e B), encontram-se dados extraídos da pesquisa realizada por Wânia P.
Izumino, a qual subsidiou sua dissertação de mestrado em sociologia, recém
defendida284. Nesta pesquisa, a autora procurou analisar a intervenção judicial
em conflitos nas relações de gênero que resultaram em desfecho fatal para
mulheres ou em lesões corporais. Como se pode constatar, nos casos em que se
verificou desfecho fatal 40,96% dos processos instaurados foram encerrados
entre 12-24 meses. Em idêntica proporção (21,69%), situam-se processos que
tiveram desfecho em menos de 12 meses ou entre 24-36 meses. É bem menor a
proporção de processos encerrados em 48 meses (8,43%). Menor ainda a
proporção daqueles que consumiram tempo superior a 48 meses (1,20%).
Cenário não muito diferente observa-se nos processos instaurados para
apuração de responsabilidade penal em lesões corporais. A grande maioria
(87,39%) não ultrapassou os 24 meses. Do total de processos, mais da metade
(52,52%) conheceu desfecho processual entre 12 e 24 meses.

Por conseguinte, mesmo nos casos em que a Justiça penal se ocupa de


crimes específicos cometidos contra determinados segmentos da população e/ou
cujas particularidades ensejam maior complexidade e maior controvérsia jurídica,
a morosidade processual não transborda os padrões médios para o julgamento
de crimes contra a pessoa (estimado entre 12-24 meses a julgar pelas pesquisas
aqui consideradas). Tudo indica que, nos casos que envolvem criminalidade
comum ou conflitos nas relações intersubjetivas com desfecho fatal ou lesões à
integridade física das vítimas, os operadores técnicos e não-técnicos do direito
tendem a observar prazos legais ou, na ausência destes, os prazos fixados pela
cultura organizacional. O mesmo não ocorre com as graves violações de direitos
humanos. Esses casos não parecem se ajustar aos modelos normativos de
julgamento propostos por nossas tradições de justiça penal.

Como se sabe, nossas tradições liberais de justiça penal assentam-se no


princípio do livre-arbítrio, através do qual os indivíduos são considerados
entidades morais capazes de discernir racionalmente entre o bem e o mal, entre
o justo e o injusto, entre o certo e o errado, entre o legal e o ilegal. Sob esta
perspectiva, os indivíduos são portadores de responsabilidade moral; neles
repousam o desejo e/ou a vontade de permanecerem obedientes à ordem social
(isto é, obedientes às regras morais e legais dominantes); ou, contrariamente,
ofenderem-na mediante comportamentos que ameacem a integridade (física,

284
Cf. Izumino, W.P. Justiça Criminal e Violência contra a Mulher. (O papel da Justiça Criminal na
solução dos conflitos de gênero, 1991-1996). São Paulo, mimeo. Mestrado em Sociologia,
FFLCH/USP, 1996.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 796

psicológica ou moral) de quem quer que seja, e/ou ainda ameacem o patrimônio
público ou privado, a saúde pública, valores preservados como símbolos de uma
identidade grupal ou nacional etc. Essa representação do homem enquanto
sujeito portador de razão e responsabilidade, capaz tanto de obedecer quanto de
agredir, constituiu o sólo no qual modernamente se erigiu, em diferentes
sociedades do mundo ocidental, uma sorte de justiça penal sustentada no triplé:
materialidade do delito, autoria e nexo entre materialidade/autoria. Todo seu
modelo normativo e a cultura judicial que o pôs em funcionamento convergem
portanto para a “individualização” da responsabilidade penal sob o argumento de
que as motivações são necessariamente restritas à órbita do indivíduo em seu
mundo privado.

Ora, trata-se de um modelo normativo e de uma cultura judicial muito


pouco compatíveis com a fenomenologia das graves violações dos direitos
humanos. Como se procurou demonstrar através da análise pormenorizada dos
casos de linchamento selecionados, as motivações, a intervenção dos agentes
sociais (agências e atores), a dinâmica dos acontecimentos guardam profundas
diferenças face ao quanto e ao que se sabe a respeito do crime comum.
Dificilmente, as motivações são individuais; a decisão ou não de linchar resulta
de todo um processo social para o qual concorrem o compartilhar de experiências
subjetivas comuns, a intensidade com que determinados fatos e acontecimentos
perturbam a vida e os sentimentos coletivos, a maior ou menor presença da
polícia e da justiça como instituições de intermediação de conflitos locais bem
como de outras agências de proteção e de intermediação como igrejas e grupos
de culto religioso, associações de bairro, movimentos sociais, partidos políticos.
Trata-se, por conseguinte, de um microcosmo social muito distinto do
microcosmo que envolve o mundo da criminalidade comum, ainda que eles
mantenham entre si não poucos pontos de contato, conforme se procurou
sustentar anteriormente, inclusive o fato de ambos terem sido, cada um a seu
modo, afetados pelo rumos dos acontecimentos sociais e políticos que marcaram
a transição e a consolidação da democracia nesta sociedade. Por uma ou outra
razão, o crescimento acelerado da criminalidade urbana violenta e a explosão
das graves violações de direitos humanos parecem ter sido estimuladas por uma
raiz comum: as dificuldades das instituições públicas de controle social em conter
os litígios e a violência decorrente nos marcos do Estado democrático de Direito.

Essas dificuldades contudo foram e têm sido mais acentuadas quando a


violência envolveu e envolve direitos humanos. Sob esta perspectiva, a longa
morosidade processual nos casos de linchamento observados parece ser
sintoma ao menos de duas ordens de fenômenos: por um lado, as dificuldades
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 797

das agências de contenção da ordem pública e de pacificação social em ajustá-


los aos modelos normativos de justiça penal disponíveis e ao alcance dos
operadores técnicos e não-tecnicos do direito; por outro lado, as dificuldades
desses próprios operadores compreendê-los como casos passíveis de punição
através das instâncias públicas de justiça. É como se esses operadores
considerassem tais casos como excluídos do contrato social, como afetos ao
mundo da natureza e à barbárie. Uma sorte de autoritarismo social, incapaz de
ver e aceitar as profundas diferenças de uma ordem social hierarquizada?
Talvez. Neste caso, a longa morosidade ao contribuir para a erosão das provas,
para a diluição da responsabilidade penal e por fim para a impunidade estaria
dizendo algo além da mera inadequação das instituiçöes à proteção dos direitos
humanos; estaria apontando para uma espécie de pólo de resistência autoritário
incrustrado no coração mesmo dos operadores do direito, seguramente sério
obstáculo à democratização do aparelho penal e, por extensão, à pacificação da
sociedade nos marcos do Estado democrático de direito.

O dispêndio do tempo
O gráfico 2, a seguir transcrito, indica como o tempo judicial é consumido
entre as distintas fases do processo penal. Considerando o tempo estimado para
a morosidade necessária nos casos de linchamento observados (52,36 meses),
poder-se-ia dividir esse lapso idealmente do seguinte modo: 2,63 meses na fase
policial; 4,16 meses para a fase intermediária; 27,5 meses para a primeira fase
judicial; e 18,06 meses para a segunda fase judicial. Essa distribuição ideal
corresponderia às proporções de 5,04%; 7,94%; 52,52%; e 34,49%
respectivamente.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 798
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 799

Como se pode verificar, não há uma tendência predominante no que concerne ao


consumo do tempo judicial. Múltiplas situações podem ser observadas. Há casos
de linchamento - como em Osasco e Carapicuíba - em que praticamente toda a
morosidade processual está concentrada na fase policial. Nestes casos, a
apuração da responsabilidade penal não ultrapassa os procedimentos
investigatórios. Justamente por não avançarem além deste ponto, tendem a
permanecer inconclusos. Há porém outros casos em que o tempo de retenção
dos procedimentos judiciais, ainda na fase policial, está abaixo ou dentro das
expectativas (2,63 meses). É o que ocorreu com os linchamentos ocorridos na
Praça da Sé e em Itapecerica. Nos linchamentos do Jardim Miriam, Ribeirão
Pires e Lapa, esse mesmo tempo é pouco mais extenso.

A fase intermediária é também responsável pela morosidade processual,


sobretudo nos linchamentos ocorridos no Jardim Miriam, no Jardim Noronha, em
Itapecerica da Serra, na Lapa e em Campinas. Ela consumiu praticamente a
maior parte de toda a morosidade processual no linchamento verificado em
Ribeirão Pires. Apenas no linchamento da Praça da Sé, esta mesma fase
obedeceu às expectativas (4,16 meses). Um pouco mais extenso foi o consumo
de tempo no linchamento ocorrido em Mauá. Portanto, esta fase intermediária
contribui igualmente para retardar o andamento e o conseqüente desfecho
processuais, embora não devesse fazê-lo vez que nela concretizam-se
procedimentos judiciais mais simplificados.

Finalmente, parte substantiva da morosidade processual reside na fase


judicial. Em apenas seis dos casos observados, os procedimentos judiciais
alcançaram esta fase. Nenhum deles chegou a alcançar a segunda fase judicial;
isto é, nenhum deles havia sido submetido ao julgamento pelo tribunal de júri. Em
alguns casos, a morosidade, nesta fase, é tão extensa quanto à das fases
precedentes. O linchamento ocorrido em Campinas presta-se a ilustrar essa
observação, com o agravante de que não houve, até o momento, desfecho
processual. No mesmo sentido, encontra-se o andamento processual do
linchamento de Mauá. O linchamento da Lapa, já com seu desfecho processual,
experimentou igualmente longa morosidade nesta fase. No linchamento da Praça
da Sé, cujas fases policial e intermediária estiveram ambas dentro de suas
respectivas expectativas, teve quase toda sua morosidade concentrada na
primeira fase judicial.

Não parece haver, por conseguinte, uma razão primordial que explique
esta variabilidade no consumo do tempo judicial. A “lógica” que preside a
morosidade processual não reside nas diferentes fases judiciais. Certamente,
distintas circunstâncias, em cada caso, concorrem para que o processo emperre
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 800

aqui ou acolá, nesta ou naquela fase judicial. Em alguns casos, dificuldades na


consecução e prosseguimento de investigações retêm os procedimentos judiciais
na fase policial. Em outros, o cumprimento de formalidades, a insistência na
realização de perícias técnicas ou ainda na localização de réus e testemunhas
explicam a concentração da morosidade nas fases intermediária e judicial. Há
casos em que todas essas situações se combinam retardando o andamento
judicial em todas as fases. Seja o que for, se há alguma lógica regulando a
morosidade processual, esta não parece repousar à primeira vista no consumo
do tempo segundo as fases do andamento judicial.

A análise anterior parece indicar que o maior peso da morosidade


processual tende a ficar sob encargo dos operadores não técnicos do direito
(funcionários burocráticos, peritos etc). Mas, convém destacar igualmente a
responsabilidade dos operadores técnicos, em particular delegados e promotores
públicos. Em três dos casos acima indicados (em que houve sentença judicial
intermediária ou decisória), a responsabilidade de delegados não é desprezível.
Nos linchamentos de Campinas (34,29 meses) e Ribeirão Pires (18,26 meses)
respectivamente 28,5% e 24,18% esteve sob encargo daquela autoridade
judicial. No linchamento de Mauá, esse lapso temporal também não é desprezível
(10,54 meses), o que corresponde a 15,3% de todo o andamento processual. No
linchamento de Itapecerica da Serra, 33,9% de todo o andamento processual
(31,18 meses) esteve sob responsabilidade do promotor público. De modo geral,
é muito pequeno o tempo em que processos penais permanecem sob a
responsabilidade de juízes, em geral incumbidos de despachar e proferir
sentenças.

Nos casos de linchamento cujos inquéritos policiais foram arquivados, é


acentuadamente maior a responsabilidade dos operadores técnicos do direito,
em especial delegados. Como se pode constatar, no linchamento em
Carapicuíba, a participação do delegado na morosidade é 54,55% de todo o
andamento processual, representando o consumo de 49,83 meses. No Jardim
Noronha é de 45,72%, correspondendo ao dispêndio de 10,30 meses. No mesmo
sentido, não é desprezível a responsabilidade deste agente na morosidade
processual correspondente aos linchamentos do Jardim Miriam (7,67 meses,
37,4% de todo andamento judicial); e em Osasco (4,06 meses, 35,99% de todo o
andamento judicial). Portanto, tudo indica que a participação do delegado
orientando e coordenando o curso das investigações é decisiva para o eventual
arquivamento do inquérito policial.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 801

Certamente, muitas razões podem concorrer para explicar a morosidade


sob responsabilidade dos operadores técnicos do direito, entre as quais o
acúmulo de processos. As tabelas, a seguir transcritas, apontam algo nessa
direção:

Tabela 8
Processos Entrados e Julgados na Justiça Criminal
Brasil e Estado de São Paulo
1º trimestre de 1991

Região Entrados Julgados Resíduo

São Paulo 124.289 58.837 65.452


(47,33%)

Brasil 227.289 97.869 129.420


(43,05%)
Fonte: Supremo Tribunal Federal. Banco Nacional de Dados do Poder Judiciário

Tabela 9
Número de Habitantes, Cargos e Juízes, Por Região
São Paulo e Brasil
Dezembro, 1991

Região Habitantes Postos Juízes A/B


(A) (B)

São Paulo 33516127 1791 1227 27.316

Brasil 155 7111 5317 28.680


milhões
Fonte: Supremo Tribunal Federal. Banco Nacional de Dados do Poder Judiciário

Referências

ALEMANHA 1/3448 habitantes


ITÁLIA 1/7692 habitantes
FRANÇA 1/7142 habitantes
Fonte: In: Sadek & Bastos (1994).

Embora os dados se refiram ao ano de 1991, eles permitem alguma


avaliação do acúmulo de processos. Como se pode ver, em um mesmo trimestre,
o resíduo resultante da diferença entre processos entrados no sistema e
processos julgados é elevado, representando cerca de 52,67% de todos os feitos.
Essa proporção significa que apenas metade dos processos que dão entrada no
sistema, durante um período de tempo determinado, conhecem alguma solução
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 802

ao final desse lapso temporal. Há, por conseguinte, um acúmulo progressivo que
tende a agravar ainda mais o cenário da morosidade e da eficácia da justiça
penal brasileira. Concorre para explicá-lo a relação, extremamente desfavorável
quando comparada com a de outros países, entre o número de juízes por
habitante. No Estado de São Paulo, essa relação é nove vezes inferior à da
Alemanha; quatro vezes inferior à da França e da Itália. Não é, portanto, de
estranhar que a morosidade seja ainda mais agravada naqueles casos em que a
violência parece pouco se ajustar aos parâmetros ditados pela legislação penal
vigente, como nos casos de graves violações de direitos humanos.

Ademais, é preciso considerar o elevado “turn-over” entre operadores


técnicos do direito, já apontado anteriormente e que, nos processos de
linchamento observados, tende a se confirmar, conforme se pode examinar pelo
quadro 15, cuja transcrição segue abaixo:

Quadro 15
Distribuição do número de agentes que atuaram em cada processo de linchamento
1980-1989

Caso Delegados Promotores Juízes

Campinas 7 9 9
Carapicuíba 4 13 5
Itapecerica da 2 15 11
Serra
Jardim Miriam 6 5 2
Jardim Noronha 3 2 3
Lapa 7 10 10
Mauá 1 7 6
Osasco 2 3 1
Praça da Sé 3 7 14
Ribeirão Pires 5 9 10
Fonte: Poder judiciário - inquéritos policiais e ações penais
Pesquisa NEV/USP (1993-1997)

Conforme se pode constatar, é extremamente elevada a rotatividade de


operadores técnicos do direito em cada um dos casos de linchamento observado.
A elevada rotatividade contribui para agravar ainda mais a morosidade
processual. Cada vez que um novo operador atua em um caso determinado, ele
deve dispender tempo adicional para a leitura de todo o processo e inteirar-se de
suas particularidades. Não raro, o acúmulo de processos penais constrange não
poucos operadores a concentrarem atenção apenas nas partes finais do feito,
procedimento que não raro motiva andamento processual desnecessário,
exigência de providências já anteriormente adotadas e às vezes até tomada de
decisões equivocadas, com sérios prejuízos não somente para o dispêndio de
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 803

tempo do andamento processual como também para seu correspondente


desfecho.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 804

CAPÍTULO 20
O DESFECHO PROCESSUAL: AS DECISÕES JUDICIAIS E PROTEÇÃO DOS DIREITOS
HUMANOS

Sérgio Adorno
Fernando Salla
Luís Antônio Francisco de Souza

1. Os processos de linchamento
No quadro 16, que segue abaixo, podem ser constatadas as estreitas
relações entre morosidade processual e impunidade.

Quadro 16
Desfecho Processual
Linchamentos em São Paulo, 1980-1989

Processos de Linchamentos Desfecho Tempo de Duração


Lapa Réus impronunciados 8 anos e 3 meses
Ribeirão Pires Réus impronunciados 11 anos, 5 meses e
4 dias
Jardim Miriam Não houve indiciados. 1 ano, 1 mês e 1 dia
Inquérito arquivado
Carapicuíba Extinta a punibilidade. 7 anos, 4 meses e
Inquérito arquivado 16 dias
Praça da Sé Réus impronunciados 5 anos
Jardim Noronha Arquivamento do 1 ano e 10 meses
inquérito
Itapecerica da Serra 11 réus condenados a 7 anos e 2 meses
4 anos de reclusão
Campinas Réus pronunciados. 11 anos e 1 mês
Processo em
andamento
Osasco Inquérito Arquivado 10 meses e 5 dias
Mauá Pronúncia do réu. 6 anos e 5 meses
Processo em
andamento
Fonte: Poder Judiciário do Estado de São Paulo Inquéritos Policiais e Processos Penais. -
Pesquisa Continuidade Autoritária e Construção da Democracia, NEV/USP (1993-1997)
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 805

Os resultados demonstram que, nos casos de linchamento observados, a


não punição constitui regra e norma como desfecho processual. O único caso em
que se verificou punição - o linchamento de Itapecerica da Serra - o crime foi
reclassificado para lesões corporais seguida da morte, tendo os agressores sido
condenados à pena de reclusão de quatro anos.

Conforme se procurou demonstrar, esse desfecho está associado a quatro


fatores fundamentais: primeiro, legislação penal ultrapassada criando inúmeros
obstáculos ao andamento processual, em cuja origem está também o acúmulo de
feitos nos cartórios dos fóruns; segundo, legislação penal inadequada para os
casos de graves violações de direitos humanos, inadequação que acaba no limite
fundamentando uma cultura judicial que tende a excluir tais casos do “contrato
social” e, por conseguinte, da aplicação de leis universais capazes de promover a
pacificação da sociedade nos termos do Estado democrático de direito; terceiro, o
próprio desempenho dos operadores técnicos e não técnicos do direito,
materializada na baixa qualidade dos inquéritos policiais e nos tumultos que não
raro caracterizam os processos penais. No limite, tudo isso acentua a morosidade
e contribui, ainda que involuntariamente, para a erosão de provas, para a diluição
de responsabilidade penal e para a impunidade dos responsáveis por graves
violações de direitos humanos.

2. Os processos de grupo de extermínio e justiceiros

No quadro 17, pode-se observar que não há um padrão específico para o


desfecho processual dos casos de grupos de extermínio e justiceiros, em São
Paulo.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 806

Quadro 17
Desfecho Processual
Grupos de Extermínio e Justiceiros em São Paulo, 1980-1989

Processos de Grupos de Extermínio Desfecho Processual


Tempo de Duração
Justiceiro em Osasco Extinta a punibilidade
3 anos, 4 meses e 3
(morte) dias
Justiceiro no Butantã Extinta a punibilidade
4 anos, 3 meses e
(morte) 27 dias
Justiceiro em Guarulhos Absolvido por Acórdão
8 anos,9 meses e 19
dias
Grupo de Extermínio em Itap.da Serra 1 réu foi absolvido, o 3 anos, 3 meses e
outro teve a punibilidade 19 dias
extinta (morte)
Grupo de Extermínio no Embu 3 réus condenados 6 anos, 2 meses e
21 dias
Grupo de Extermínio em Guarulhos 3 réus pronunciados. 8 anos, 2 meses e
Aguarda a prisão dos 14 dias
réus
Grupo de Extermínio em Guarulhos 1 réu condenado 2 anos, 1 mês e 21
(desmemb.) dias
Grupo de Extermínio em Guarulhos 1 réu pronunciado. 8 anos, 4 meses e
(desmemb.) Aguarda a prisão do 12 dias
réu
Grupo de Extermínio no Capão Redondo Condenado 2 anos, 7 meses e 2
dias
Grupo de Extermínio no Capão Redondo Extinta a punibilidade 1 ano, 8 meses e 19
(desmemb.) (morte) dias
Grupo de Extermínio em S.Bernardo do Condenado 6 anos e 2 meses
Campo
Grupo de Extermínio em S.Bernardo do Condenado 6 anos, 3 meses e 3
Campo (desmembramento – A) dias
Grupo de Extermínio em S.Bernardo do Condenado 6 anos, 2 meses e
Campo (desmembramento – B) 12 dias
Fonte: Poder Judiciário do Estado de São Paulo - Inquéritos Policiais e Processos Penais -
Pesquisa Continuidade Autoritária e Construção da Democracia, NEV/USP (1993-1997)

Os resultados demonstram uma grande dispersão das decisões judiciais


nos casos de grupo de extermínio e de justiceiros. De 8 processos, considerados
os diferentes desmembramentos, houve 4 sentenças condenatórias, 4 extinções
de punibilidade por morte, 2 absolvições e 2 pronúncias com os réus foragidos.

A morosidade desses processos é uma característica distintiva, pois a


média de duração deles foi de 6 anos, sendo que, em alguns casos, esse tempo
excedeu os 8 anos. Apesar do número maior de casos de condenação, se
comparados com os casos de linchamento, eles às vezes são abertamente
favoráveis aos réus, na medida em que desqualificam a existência mesma do
grupo de extermínio ao qual os crimes estariam ligados. Em um caso, a pena foi
reduzida porque o crime de homicídio foi desclassificado para agressão seguida
de morte. Em outro caso, a justiça não procura mostrar a relação que o réu tinha
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 807

com outros homicídios ocorridos na mesma região. Mesmo o sentimento popular


de justiça interfere nessas decisões ao direcionar as atenções do judiciário para a
personalidade “negativa” da vítima e para a “positiva” do réu. Esse ponto parece
ser fundamental ao discutirmos a necessidade do judiciário para dar respostas
cristalinas que possam coibir práticas de homicídios sumários. O poder judicário,
em geral, e os processos criminais, em particular, devem ser pensados a partir de
um contexto social no qual, às vezes, os valores parecem se mostrar
embaralhados: é necessário que os operadores do direitos reconheçam seu
papel social ao proferirem justiça em casos isolados. Ao mesmo tempo, é
importante discutir o valor e o sentido das decisões da justiça, bem como os
problemas processuais das mais diversas ordens, que acarretaram os desfechos
nos processos analisados.

No caso do grupo de extermínio do Embu, sobressai o fato de que os


crimes foram cometidos com o propósito claro de “justiçamento” de dois
indivíduos que praticavam crimes na região, por três cidadãos que não tinham
trajetória policial ou criminal anterior. Todas as provas indicaram a
responsabilidade dos agressores; porém, o júri decidiu desclassificar os crimes
para lesões corporais numa das vítimas e lesões corporais seguidas de morte,
para outra. Ao dar essa sentença, a justiça sinalizou que a “justiça pelas próprias
mãos” pode ser entendida como uma alternativa moral e socialmente aceitável,
não obstante o princípio da legalidade. Isso está expresso na alegação de que os
réus teriam sido “impelidos por motivo de relevante valor social.” Além da
necessidade de autoproteção, os réus, segundo versão da defesa, não tiveram
intenção de matar uma das vítimas, a morte foi uma decorrência acidental. Mais
do que isso, os réus, sendo primários, estavam cumprindo uma espécie de dever
social, ao protegerem a si próprios e sua comunidade da tirania e do terror
promovidos pelos “bandidos”. Esse tipo de ambigüidade nas decisões da justiça
está presente, em maior ou menor escala, em praticamente todos os processos
criminais analisados, referentes a grupos de extermínio, linchamentos ou mesmo
violência policial.

No caso do Capão Redondo, no qual uma jovem de 22 anos foi ameaçada


e depois executada por dois homens que, dizia-se, eram integrantes de um grupo
de execução sumária na região, o processo transcorreu dentro dos prazos
definidos pela lei e chegou à condenação de um dos réus. O segundo réu não
chegou a ser condenado pois estava foragido e, durante o processo, acabou por
ser assassinado. O processo teve este desfecho porque uma testemunha – um
rapaz surdo-mudo – apontou os responsáveis e esclareceu as circunstância do
assassinato. A testemunha, após ter prestado o depoimento decisivo, foi também
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 808

assassinada, supostamente pelos mesmos criminosos. Tanto o réu 1 quanto a


testemunha 10 teriam declarado na polícia seu envolvimento no crime. Não
obstante, não foi lavrado o flagrante, o que, em parte, teria permitido a fuga do
réu 2. O réu 1 e a defesa persistentemente usaram o argumento de que todo o
processo foi armado pela polícia, que teria “pendurado” o réu 1 para que
confessasse esse crime e outros mais. O que chama a atenção no processo, no
entanto, é a articulação que se estabeleceu entre os réus e o grupo de extermínio
da região, vários indivíduos foram arrolados no processo com a designação de
pertencerem a tal grupo, sem, no entanto, nenhuma ação ter sido intentada
contra os mesmos. Mesmo assim, a justiça acolheu a acusação e o réu 1 foi
condenado a 19 anos e seis meses de reclusão.

No caso de São Bernardo, no qual houve homicídio sêxtuplo, os três


acusados foram condenados a 36 anos de reclusão, após um processo que
durou mais de seis anos. Esse desfecho foi possível na medida em que houve
várias testemunhas que apontaram os responsáveis pela chacina – sendo que
uma delas estava no próprio local - e o motivo que teria levado um vigia de um
centro comunitário para menores a “contratar” a morte dos meninos. Não
obstante a existência de informações no processo que indicavam a possível não
participação do réu 1 na execução do assassinato, ele também foi condenado a
cumprir a mesma punição que os demais. O desfecho também foi possível na
medida em que houve grande repercussão do caso na mídia e foi possível a
prisão dos principais suspeitos que, da mesma forma que no caso anterior, teriam
“confessado” o crime diante da autoridade policial. Afora alguns detalhes técnicos
que não foram observados, o que causou uma demora maior do que o que prevê
a lei, o maior problema foi o fato de as autoridades não procurarem aprofundar as
investigações no sentido de apurar a responsabilidade dos diretores do Centro
Comunitário no homicídio, conforme informações de testemunhas e dos próprios
réus.

Em dois processos, os réus foram absolvidos, sendo que em no caso de


Guarulhos 181/82, a absolvição ocorreu por Acórdão do Supremo Tribunal de
Justiça, em flagrante contradição às informações contidas nos autos. Neste caso,
como aliás ocorre com muitos outros, o inquérito policial procurou construir a
imagem da vítima enquanto pessoa trabalhadora e de bem, mas não se esmerou
na construção da imagem do agressor. Apesar do delegado notar a
periculosidade do agressor, foi exatamente a imprensa que procurou denunciar
as relações de cumplicidade que existiriam entre o agressor e a polícia. O
indiciado, além de ser inspetor de bairro, também era informante da polícia e
justiceiro. Isso transparece na atitude do policial encarregado de efetuar sua
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 809

prisão, deixando que o indiciado se apresentasse voluntariamente à delegacia.


Não obstante o caso não ser típico de justiceiro, pois foi motivado por um
desentendimento corriqueiro, a frágil tese da defesa de que o agressor atirou em
legítima defesa, mesmo sendo ele um justiceiro com vários outros processos
contra si, ganhou corpo e deu o fundamento do Acórdão de absolvição. A própria
morosidade do processo também desempenhou papel nessa decisão, na medida
em que o caso deixou de ter repercussão na mídia.

No outro caso de absolvição, ocorrido em Itapecerica da Serra, a situação


de impunidade é ainda mais grave já que o crime ficou perfeitamente
caracterizado como tendo sido praticado por um grupo de extermínio: as vítimas
eram criminosos que atuavam no bairro e os algozes eram pessoas que se
organizaram em torno de um comerciante. De um total de mais de 20
componentes, apenas quatro foram indiciados; apenas um, exatamente o
responsável pelo grupo, foi levado ao tribunal, sendo que, no julgamento diante
do júri foi considerado inocente das acusações. A absolvição do líder do grupo
por si só surpreende, ainda mais se tivermos em mente que ele era suspeito de
tentar matar uma investigadora de polícia e de estar envolvido em furtos e
receptação de armas de grosso calibre. Além disso, esse indivíduo admitiu que
havia sido criada uma “organização para eliminar bandidos do bairro.” Dois
indiciados desapareceram. Um outro acabou sendo assassinado no
estabelecimento comercial no qual trabalhava. Um dos motivos que talvez tenha
concorrido para a absolvição do principal réu foi o patente apoio que tinha da
comunidade local, que em mais de uma ocasião, se manifestaram
favoravelmente a ele, quer assinando petições para suspender o efeito da prisão
temporária, quer comparecendo às sessões do Júri. A linha de ação da defesa foi
procurar argumentar que não havia, nos autos, nada que pudesse comprovar a
materialidade do delito. Sendo interrogado no Júri, o réu disse que as vítimas
“barbarizavam todo o Jardim Jacira, assaltando e estuprando todo mundo”.
Afirmações como essa sensibilizam os jurados que, de certa forma, se
solidarizam com o “infortúnio” dessas comunidades dominadas por criminosos.

No caso do grupo de extermínio de Guarulhos 203/84, três indivíduos,


conhecidos como irmãos chagas e mais três outros, assassinaram brutalmente
um indivíduo que, por sinal, também tinha antecedentes policiais e criminais.
Cinco responderam criminalmente. Havia várias versões para o ocorrido, sendo
que a que teve maior repercussão dentro do processo foi a de ação de grupo de
extermínio, não obstante as contínuas intervenções da defesa na linha da tese de
linchamento, tese essa também defendida na imprensa. Além disso, a defesa
alegou que, nos autos, não havia provas da autoria e da culpabilidade do réu.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 810

Dadas as características do caso, os réus estavam sendo acusados por


homicídio doloso, violação de domicílio e vilipêndio de cadáver, o crime teve
ampla repercussão na imprensa. Esta, ao descrever detalhes do crime e dos
criminosos, constantemente, fazia-lhes referências discriminatórias. De qualquer
forma, a justiça foi mais ágil nesse processo do que é costumeiro, solicitando dois
desmembramento para evitar postergações desnecessárias. A polícia foi
particularmente lenta, mas, de forma geral, não prejudicou o andamento do
processo. A promotoria, inclusive, solicitava a anexação de recortes de jornais
que davam notícia sobre o crime e sobre a culpabilidade dos réus. Após a
pronúncia, 4 réus permaneceram foragidos e o processo permaneceu parado,
aguardando que a prisão fosse realizada; apenas um dos réus foi julgado e
condenado por sua participação no evento. Por tudo isso, os processos – original
e desmembrados - tiveram duração em média de 8 anos.

Em quatro processos, houve a extinção da punibilidade motivada pela


morte dos acusados. Em grande parte, eles foram mortos no momento em que se
envolviam em outros crimes ou enquanto aguardavam, presos, o desenrolar dos
processos. A morte do réu torna aceitável a tese de que eles estavam, de fato,
envolvidos com grupos de extermínio em suas regiões.

No caso do justiceiro em Osasco, embora a vítima tenha sido assassinada


com o uso de faca, o que não é característico desse tipo de crime, o motivo e a
ficha criminal do indiciado permitiram classificá-lo como tal. A vítima teria tentado
“acertar contas” com o assassino de um amigo seu, por isso foi morta. O autor do
crime, enquanto estava sendo processado, foi assassinado na cadeia. Tanto na
fase policial como na fase de formação de culpa, o indiciado havia confessado a
autoria do crime. Casos que terminam com a morte do réu, dentro dos domínios
da administração da justiça, devem ser avaliados com mais cautela. Se
observarmos que houve significativa demora processual, mesmo o réu estando
respondendo preso, pode-se perguntar se não haveria, na morte do réu, a
responsabilidade das autoridades que, não somente deveriam preservar sua
vida, como garantir que a justiça fosse feita? As autoridades não teriam sido
coniventes com a justiça dos detidos? Notícias da imprensa apontavam a
presença de um segundo agressor e apontavam também a existência de outros
crimes na região que, no limite, poderiam ter relação com o presente caso. Todas
as diligências do processo, portanto, revelam pouco interesse em fazer com que
a justiça foi feita, durante os três anos e quatro meses de duração do processo.

No caso do Jaguaré, também com poucas características de crime de


justiceiros já que o réu e a vítima eram pessoas que se conheciam, sendo vistos
anteriormente freqüentando o mesmo bar; as testemunhas falam de um
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 811

desentendimento havido entre ambos resultando daí o desfecho trágico. Não


obstante, a imprensa, a polícia e a promotoria concluíram que ambos faziam
parte de um grupo de matadores do local. Embora o agressor admitisse o crime e
havendo testemunhas, o processo demorou mais de quatro anos, sendo extinto
em decorrência da morte do réu. No processo, além da incapacidade da justiça
em promover justiça em termos aceitáveis, ressaltam-se os depoimentos das
testemunhas francamente favoráveis ao réu e desfavoráveis à vítima, essa tida
como pessoa de “má reputação”, “arruaceiro” e “viciado”.

De uma forma geral, os desfechos dos crimes de grupos de extermínio e


de justiceiros poderiam ter sido diferentes. Todos os casos, apesar das
dificuldades já descritas, continham informações suficientes que poderiam
suportar um desfecho condenatório dos réus. Um dos fatores que pode ter
contribuído para a impunidade dos crimes cometidos por grupos de extermínio é
a proximidade dos componentes do grupo e das testemunhas que poderiam
prestar informações sobre os responsáveis. Como todos moram no mesmo bairro
e, naturalmente, compartilham de uma vida social cheia de conflitos, as
testemunhas não se sentem suficientemente livres para auxiliar a justiça. Outro
fator corresponde à maneira como as autoridades policiais e judiciais lidam com o
caso; vimos que o processo criminal está pejado de encruzilhadas e de detalhes
técnicos que, uma vez não observados, podem dar oportunidade para recursos
prorrogatórios que não remetem ao problema da justiça – e consequentemente
ao sentimento de injustiça – existentes em nossa sociedade, mas remetem a
problemas burocráticos e legais. A intensidade das substituições de juízes,
promotores e defensores dentro do transcurso do processo também pode ser
apontada como fator burocrático a emperrar as pesadas engrenagens da
administração da justiça. A dificuldade maior para a realização da justiça nestes
casos refere-se ao esmaecimento da própria idéia de justiça que deveria revestir
todos os atos do processo criminal. Claramente, os autos estão cheios de ações
fragmentárias, cujo objetivo original se perdeu no tempo, e de instituições
apartadas que, em regra, mais competem entre si do que contribuem para o bom
andamento do feito; isso tudo compromete sensivelmente a eficiência da
máquina da justiça e, por conseqüência, aumenta o descrédito quanto sua
capacidade em solucionar e reduzir as tensões e conflitos decorrentes das
relações pessoais, numa sociedade cada vez mais sedenta de justiça.
Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP 812

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