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Miang-Fong

MIANG-FONG
MIANG-FONG
RECEBIDO POR INSPIRAÇÃO ESPIRITUAL
POR
CHARLOTTE VON TROELTSCH
E
SUSANNE SCHWARTZKOPF

Um relato
sobre a vida
do grande Portador da Verdade,
que libertou o Tibete das trevas.
Miang-Fong

Relato sobre a vida do grande Portador da Verdade,


que libertou o Tibete das trevas.
Cumes de montanhas acidentadas, escarpadas, elevando-se altos contra o céu,
pairavam imóveis sobre um vale na região montanhosa, que se estendia indolentemente
entre as rochas. Neve eterna cobria os cumes, precipícios e fendas, transformando-se em
gelo verde-azulado, invulnerável à claridade ofuscante do sol.
Num dos lados do altiplano estavam deitados, recostados nas paredes rochosas,
dois vultos enormes, como se eles próprios fossem parte dessas rochas. Prazeirosamente
esticavam-se no calor do sol e olhavam ora para o céu azul escuro, ora deixavam
deslizar seus olhares sobre o movimento da alegre atividade ao seu redor e, sim, até por
cima deles.
Um rebanho de cabras montanhesas pastava em ambos os lados de um alegre
riacho borbulhante, pastoreado por um menino magro e alto que, sem cessar, tinha que
pular ora para cá, ora para o outro lado, para impedir que animais muito destemidos se
embrenhassem nas escarpas.
No seu zelo não deu atenção aos dois gigantes até que tropeçasse e caísse na mão
aberta de um deles, estendida no solo aquecido. Este o segurou e o sacudiu levemente.
“Não podes prestar atenção ao teu redor, anão?” exclamou ele com uma risada, que
provocou um eco ao redor, como se um trovão rimbombasse.
“Solta-me,” gritou o pequeno, defendendo-se com todas as forças. “Solta-me,
senão a Fu-Fu cairá lá adiante sobre as rochas.”
“E isso seria tão grave assim?” quis saber o gigante. Nisso, porém, ele afrouxou seu
punho de modo que o pequeno prisioneiro pudesse escapar.
Como um raio o menino chegou ao local perigoso ali adiante. Porém, o gigante foi
mais rápido. Erguendo-se um pouco, tinha estendido o comprido braço e segurado a
cabra. Agora estava suspensa sobre a cabeça de seu pequeno pastor, e novamente a
risada do gigante provocou eco na redondeza.
“Ponha imediatamente a Fu–Fu novamente no chão!” exigiu o menino, que se
voltou e veio correndo ofegantemente. Porém, o que ele poderia empreender contra o
gigante risonho?
Aí obteve ajuda inesperada. O segundo gigante despertou de sua sonolência e
imediatamente dirigiu-se categoricamente ao seu companheiro.
“Devolva a cabra ao menino, ele não merece que tu o atormentes, Uru.”
Imediatamente este colocou o animal no chão, que correu com altos saltos para
junto do seu pequeno dono.
“Fu-Fu, malvada,” repreendeu este, abraçando-a quase carinhosamente. “Que
imprudente és sempre!”
E ele apressou-se para, com a cabra resgatada, juntar-se ao rebanho que pastava
alegremente.
Aí lembrou-se de algo importante. Ele voltou-se, olhou para os dois gigantes que o
observavam e exclamou:
“Agradeço-te, ó grande!”
“A quem te referes, anão?” perguntou seu alegre atormentador.
“Ambos somos grandes.”
“Grande é aquele, que é justo,” foi a resposta inesperada.
O menino queria retirar-se, quando soou a voz poderosa de seu auxiliador:
“Tu me agradas. Venha para cá com os teus protegidos agitados e vamos conversar.
Uru só estava brincando. Ele não pode te fazer mal.”
Prontamente o menino assobiou, reunindo seus animais, bem observando que nas
proximidades dos dois homens gigantes a grama e as ervas cresciam abundantemente.
“O que chamas de justo?” perguntou o gigante, assim que o pequeno pastor estava
sentado comodamente sobre uma de suas pernas, espreitando ao seu redor.
“Justo é, quando a gente sabe bem no seu íntimo, o que deve fazer para viver em
equilíbrio com tudo.”
“Isto eu não entendo,” resmungou Uru, enquanto seu companheiro indagou:
“Quem te disse isso?” “Meu pai.”
“Então chame o teu pai, para que ele nos esclareça isso,” exigiu o gigante. “Isso eu
não posso. Ele não está mais aqui,” foi a resposta do menino. Foi acompanhada de um
suspiro.
“Com quem estás vivendo? A quem pertencem os animais?” quis saber o gigante.
“Agora eles pertencem a Wun, com quem eu também moro. Ele me bate, quando
alguma coisa acontece a uma das cabras.”
“Ele é o teu avô?”
“Eu não sei. Mas o sol quer partir, eu tenho que voltar para casa.” Levantou-se
rapidamente, assobiando chamou os seus animais e, numa trilha estreita, correu com
eles morro abaixo.
Uru levantou-se, seguindo-o com os olhos encosta abaixo.
“Lá embaixo há alguns montículos de toupeira, lá provavelmente seja a morada do
anão,” observou ele.
“É uma criança abençoada. Não o vês? Tu não deves fazer mal a ele,” advertiu seu
companheiro.
No outro dia, novamente o pastor e seu rebanho subiam céleres por sobre os
rochedos. A princípio, o menino queria dirigir seus passos em outra direção, porém
alguma voz dentro dele falou, que isso seria covardia. Também, nunca antes encontrou
os gigantes. Era bem possível que estes tenham ido embora.
Mas não! Lá estavam deitados e olhavam em sua direção. Repetidas vezes teve que
olhar para eles durante a sua escalada. Como essas figuras gigantescas combinavam
com o ambiente montanhoso! Dava a impressão que eles faziam parte dessas escarpas e
píncaros acidentados. Pareciam selvagens e sinistros, enquanto se contemplava somente
seus corpos enormes. Erguendo, porém, os olhos até suas cabeças, então todo o medo
desaparecia. O menino não compreendeu por que tinha sentido medo no dia anterior.
Hoje pareciam-lhe bons e alegres.
Dirigiu-se a eles com saudação sonora, e uma risada trovejante ecoou ao seu
encontro.
“Senta-te perto de nós, anão, “chamou Uru. “Dos teus animais eu vou cuidar bem.”
Mas somente depois que as cabras céleres começaram a pastar, acompanhadas de
muitas recomendações e carinhos do menino para que ficassem atentas, o pequeno
pastor atendeu ao convite. Um pouco receoso subiu na perna, estendida
hospitaleiramente, e olhou ao redor. O local elevado ofereceu-lhe uma visão mais
ampla, não só sobre as suas protegidas que pastavam espalhadas, mas também por entre
as montanhas.
O que ali viu, paralizou sua respiração. Seria possível que ali estivessem deitados
mais gigantes ainda? Por todo lado ele parecia encontrá-los.
Como se o gigante até então calado, que seu companheiro chamava de Muru,
tivesse compreendido os seus pensamentos, este perguntou:
“Por que te admiras, menino? Não sabias que nós somos em número maior que os
cumes das montanhas?”
“Quando é que vocês chegaram?” retrucou o menino. Uru riu alegremente, Muru,
porém, respondeu sério: “Nós nunca viemos. Nós sempre existimos, desde que as
montahas se encontram aqui.”
“Mas eu nunca vos tinha visto antes,” refletiu o pastor. “Como isso pode ser
possível?”
“A maior parte tu ainda não percebeste, anão,” exclamou Uru impetuosamente. “Os
teus olhos estavam cegos como os dos animaizinhos jovens. Eles se abrem somente aos
poucos”
“Então Wun, o velho lá embaixo, também ainda tem olhos cegos. Ele repreendeu-
me, quando o perguntei a respeito de vocês e disse que eu tinha inventado um conto.
Como se fosse possível inventar figuras desse tipo!” acrescentou o pequeno sorrindo.
“Tu não deves perguntar aos homens quando queres saber de nós.”
“Então eu pergunto a vós, ó grandes.”
“Isto está certo” elogiou Muru sério. “Também, terás resposta. Antes, porém, deves
relatar sobre ti. Como é que te chamam, e o que tu vivenciaste?”
“Wun me chama de Miang e, antes dele, o meu pai assim me chamava. Nós
moramos lá embaixo, desde que eu me lembre. Meu pai, a quem chamavam de o líder,
era maior e mais bonito que os outros. Um dia, ele saiu para espantar as grandes aves
que roubavam as nossas cabras. Então, os homens voltaram sem ele e disseram que a
montanha o tinha retido. Desde então, eu vivo com Wun, que mudou-se para a
choupana de meu pai, que é maior e mais bonita que a dele. Quando eu não obedeço, ele
me bate.”
“Então não gostas de estar com ele?” quis saber Muru.
“Não. Nada mais é bonito desde que meu pai desapareceu.”
“E tua mãe?”
“Eu não sei de nenhuma. Talvez eu não tive nenhuma,” pensativamente o disse o
menino. “Isso é tudo que posso lhes contar,” concluiu. “Agora devem me contar de
vocês.” Muru, porém, começou seu relato com uma pergunta:” Quem confeccionou a
tua sacola, na qual trazes o teu alimento para cá?”
“Eu próprio,” foi a resposta alegre do menino.
“E quem confeccionou a tua roupa?” E Muru apontou para a peça composta de
peles, que cobria as costas e coxas.
“Nisso Wun me ajudou, antigamente meu pai o fazia.”
“E quem te criou?”
“A mim?” espantou-se Miang. “Eu estou aqui, desde que posso me lembrar.”
“Isso não é muito tempo, anão,” arquejou Uru, enquanto Muru indagou: “E onde
estavas anteriormente?”
Essa pergunta foi além da compreensão de Miang. Feliz que tinha chegado a hora
de levar o rebanho até a fonte, ele se esquivou. Porém, enquanto deixava os animais
beberem e os reunia depois para a volta ao local de pastagem, ele raciocinou. Aquilo,
que finalmente decifrou, comunicou-o a Muru:
“Eu devo ter vindo, como as pequenas cabras, de uma velha.”
“Bem pensado,” elogiou o gigante. “E a mulher veio de uma outra, e assim
retrocede até a primeira. Esta, porém, foi criada.” Muru disse-o com ênfase.
“Isso deve ter feito um Grande,” refletiu Miang, que havia se encostado na perna
do gigante, para poder olhar-lhe no rosto. Com agrado o gigante olhou para o pequeno.
Um brilho havia nas feições inquisidoras.
“Sim, menino, aquele que criou a primeira mulher é o Maior em todo o mundo.
Tudo, o que podes ver, Ele o fez. Também a nós. Muito antes de haverem seres
humanos Ele nos chamou e nos designou guardas das montanhas. Nós somos como uma
parte desse mundo de pedras.”
Ele calou-se. Tinha dificuldade de expressar tudo isso em palavras. No menino,
porém, foi despertada uma grande curiosidade, ele queria saber mais.
“O que aconteceria, se vocês vos afastassem para bem longe desta montanha?”
“Então ela iria despedaçar-se e desmoronar aos poucos.”
“Vocês sempre estão deitados aqui? Isso não é enfadonho?”
Uru começou a rir.
“Anão, pensas por acaso que nós servimos com preguiça ao Altíssimo? Não,
quando vocês anões dormem, nós trabalhamos.”
“Nós melhoramos e construímos e alteramos por ordem superior,” recomeçou
Muru. “Nunca escutaste estrondos nas montanhas, quando as pedras rolam para baixo?”
Miang acenou com a cabeça. Como tudo isso era maravilhoso. Ele caiu em profunda
reflexão, e também os gigantes não disseram mais nada.
Quando o sol começou a declinar, o menino animou-se. Seu dever o chamava.
“Voltarei amanhã, ó gigantes” prometeu. Então deixou-os rapidamente com seu
bando travesso. E voltou todos os dias. Aos poucos formaram-se dentro dele
pensamentos e conceitos firmes. Os gigantes pouco podiam ajudá-lo nisso, porém, de
vez em quando, Muru direcionava com uma palavra o pensamento para um novo
caminho.
Existia um Altíssimo. Este criou tudo, tudo o que vivia, mas também todo o mais.
Isto estava tão firme na alma do menino, como se sempre o soubesse. Se, no entanto,
esse Altíssimo tinha criado tudo, então também tudo a Ele pertencia. Esta foi a segunda
verdade, que luminosamente surgiu em Miang. Se tudo é Dele, eu também sou Sua
propriedade. E agora lhe veio o derradeiro, que tinha que reconhecer a seguir: sendo eu
Sua propriedade, então tenho que servi-Lo com todas as minhas forças.
“Escuta, Muru,” falou ele certo dia.
“Eu preciso procurar o Altíssimo, para saber como devo serví-Lo. Eu prefiro cuidar
de Suas cabras do que das de Wun, que as tirou de meu pai. Mas onde estão as cabras
Dele, e onde está Ele?”
“Isto não podemos dizer-te, Miang. Tu deves ir mundo afora para encontrar a
resposta.”
Isto era uma novidade que primeiramente tinha que ser examinada a fundo. Mas o
pensamento tinha algo atrativo: ir para longe da limitação destas montanhas, para ver o
que havia além! Encontrar o Altíssimo e entrar no serviço Dele!
Cada dia aumentava seu ardente desejo íntimo, até que Miang apresentou-se numa
manhã aos seus amigos com a decisão firme: “Hoje, quando eu retornar com as cabras,
então quero deixar tudo e ir até o Altíssimo. Eu tenho dito isso a Wun. Ele concordou,
só que – – se eu for, nunca mais poderei voltar. Mas isto eu também não quero.”
“Não será difícil para ti separar-te de tuas cabras?” perguntou Muru
insistentemente, mas surpreendeu-se quando o menino respondeu muito sério: “Isto não
importa quando se quer procurar o Altíssimo e encontrá-Lo.”
Mais tarde, quando ele, como já se acostumara, procurou seu lugar no joelho de
Uru, pediu: “Vocês podem me aconselhar qual o caminho a seguir, para alcançar o meu
alvo o mais rápido possível?”
“Nós podemos te ajudar até a próxima parada do teu caminho, Miang. Mais não
podemos fazer, mas isso deverá realizar-se.”
“Venha hoje à noite novamente para cá, então Uru te alcançará por sobre os vales
até o cume branco lá no outro lado. Com isso te é poupada penosa escalada e um muito
difícil caminho.”
Encontrarás lá, onde serás colocado sobre os pés, uma morada. Nela mora um sábio
muito velho, o qual está destinado para ser teu professor. Entretanto, depende
unicamente de ti, se ele irá aceitar-te. No caso das dificuldades nas montanhas podemos
te ajudar desta vez. Todas as demais tu mesmo tens que vencê-las.”
“Eu poderei fazer isso?” perguntou o menino receoso. A profunda seriedade de seu
amigo gigante abafou um pouco o radioso espírito empreendedor.
“Tu poderás fazê-lo, se nunca perderes de vista o teu alvo, de encontrar o
Altíssimo. Então terás ajuda nas tuas caminhadas.” De noite, Miang estava perante seus
amigos. Estava vestido como sempre. Nada além da sacola de merenda mais recheada
indicava preparativos para a grande caminhada.
“Não tens uma vestimenta melhor, anão?” perguntou Uru amigavelmente.
“Morrerás de frio, pois lá em cima é gelado.”
“Não, não tenho nada melhor,” disse o menino com leve aflição. “Eu pedi a Wun
para me dar uma pele de meu pai, mas ele escarneceu de mim.”
“Por um instante os gigantes se entreolharam, depois Muru acenou
afirmativamente.
“Deita-te aqui por um curto espaço de tempo,” ordenou ele, “até chegar a hora de
levar-te embora. Durma, Miang, durma.”
Ao pronunciar essas palavras colocou carinhosamente a sua enorme mão sobre o
menino, que aconchegou-se confiantemente e logo adormeceu.
Em seguida, Uru soltou uma enorme massa de pedras e enviou-a com deslizamento
bem calculado até o vale. Com segurança ela alcançou os” montículos de toupeira”, os
quais até então foram a pátria de Miang. Muru, porém, tinha chamado. Um ente
minúsculo, nem da metade do tamanho do menino, encontrou-se à sua frente para
receber sua ordem.
Ele saiu, e não demorou muito, já tinha voltado. Cuidadosamente guiava ele a mais
bela das cabras, Fu-Fu, a travessa. Nas costas trazia uma trouxa com peles. Agora Muru
retirou a mão do rosto do menino e chamou-o.
“Miang, chegou a hora da tua peregrinação. Mas não deverás partir totalmente sem
bagagem. Leva a cabra e as peles como lembrança de teus amigos gigantes, mas
também como prova de como o Altíssimo cuida de todos que entram no serviço Dele.”
Miang, porém, que com grande alegria tinha cumprimentado Fu-Fu, da qual a
despedida lhe tinha parecido muito difícil, deixou a cabra e voltou-se subitamente para o
locutor.
“Muru, é verdade que o Altíssimo torna viável o meu caminho até Ele? Quer Ele
me aceitar como Seu servo, a mim, Miang, que nada de concreto sei Dele?”
E quando Muru acenou seriamente, brotou do menino impressionado:
“Ó Altíssimo, a quem eu sinto e pressinto, deixa-me encontrar o caminho até Ti,
para que eu Te sirva com todo o meu ser e Te agradeça pela Tua bondade não
merecida.”
A despedida foi curta. Uru segurou o menino, ergueu-se e esticou o enorme braço
para longe. Onde as pontas de seus dedos tocaram os rochedos, Miang foi amparado
pela mão de outro gigante.
Depois disso, encontrou-se entre gelo e neve num deserto de montanhas. Os picos
estranhos de rocha olhavam ameaçadoramente para ele, era muito frio.
Tremendo arrepiou-se e quase esqueceu de dirigir o seu agradecimento para o alto.
Aí já estava também Fu-Fu ao seu lado, igualmente tremendo de frio. Miang olhou para
o céu. O amanhecer não ia tardar.
“Espera só, Fu-Fu, até que apareça a roda de fogo, então aqueceremos e poderemos
reconhecer o nosso caminho,” consolou ele a sua companheira e, com isso, também a si
próprio. Encostados bem um no outro esperaram ambos o sol.
E ele veio. Dessa forma Miang ainda não o havia visto, em sua majestade e beleza.
Tudo parecia cor-de-rosa, dourado, até os picos de montanha ameaçadores perderam
todo o seu horror. Por longo tempo permaneceu o menino contemplando, e muitos
pensamentos acordaram no seu íntimo.
Nesse ínterim, Fu-Fu havia procurado por ervas escassas e matado sua fome. De
maneira provocadora colocou-se ao lado de seu pequeno senhor, para que este faça o
mesmo e beba. Então, porém, foi que Miang escutou nitidamente uma voz, dizendo:
“Está na hora de iniciares o caminho. Vá ao encontro da Luz, Miang.” Ao voltar-se
não percebeu ninguém que pudesse ter falado com ele. Mas as palavras ele as tinha
escutado claramente, isso era suficiente. Dirigiu seus passos sobre neve, gelo e
pedregulho em direção ao sol. Ele encontrou um raio de sol, que se estendeu dourado
trêmulo sobre o deserto como uma fita estreita, e ele resolveu seguí-lo enquanto o
poderia avistar. Tinha que estar cuidadosamente atento aos seus passos. Não estava
acostumado a caminhar nessa altitude. Várias vezes Fu-Fu, que o rodeava celeremente,
o empurrava para longe de algum profundo precipício, no qual seguramente teria caído.
Mais de uma vez escorregou, mas
levantou-se rapidamente. Não deu importância à dor, todos os seus pensamentos
caminhavam em direção ao alvo: encontrar o Altíssimo.
Perto do local, no qual ele agora – encostado à cabra – descansou, encontrava-se
um homem de joelhos. Seu cabelo era de um branco prateado, sua figura curvada.
Segurava as mãos trêmulas apertadas contra o rosto e em voz alta fluíam as palavras de
sua prece:
“Ó Tu, Todo Poderoso! Deixa-me ainda vivenciar poder servir-Te conforme Tu o
prometeste. Teu servo ficou velho, e fraco o seu invólucro terreno. Os dias passam, sem
que o menino abençoado apareça. Não permita que me chamem desta Terra, antes que
eu tenha Te servido verdadeiramente!”
Levantou a cabeça espreitando: Passos aproximaram-se sobre o pedregulho.
“Ó Altissimo, é esta a resposta ao meu pedido?”
Levantou-se o mais rápido que podia e saíu para fora. Os raios do sol brilhavam
claramente, quase claros demais para os seus velhos olhos, acostumados à escuridão.
No meio desse esplendor caminhava um menino, acompanhado por uma cabra. O
sinal prometido! “Ele virá para ti no brilhar do sol, seu alimento, porém, ele trará
consigo, para que não sofram necessidades. Uma cabra célere será, de agora em diante,
a tua companheira.”
Sem percebê-lo, por quase não se destacar de sua morada encaixada nas rochas,
caminhava o menino confiantemente, olhando cuidadosamente para o chão. Levantou
uma vez o olhar para o céu, e todo o brilho do sol espalhava-se sobre o seu rosto.
De repente, a cabra parou e impediu seu companheiro de seguir viagem. Agora,
enfim, ele olhou ao seu redor e percebeu o velho.
Ele irrompeu numa exclamação de alegria. O eremita, entretanto, dominou- se. Ele
não podia dar expressão à sua alegria.
“Quem és tu, forasteiro, que vens a essa solidão a estorvar o sossego de minha
velhice?”
“Sou um menino, chamam-me de Miang. Venho de longe para que tu me fales do
Altíssimo, mestre. Eu quero servir-te, até que eu encontre o Todo Poderoso e possa ser
Seu servo. Peço aceitar a Fu-Fu e a mim com bondade e ensina-me, pois eu sou muito
ignorante.”
Agora estava bem diante do velho e inclinou suplicante sua cabeça. Por um breve
instante a mão direita do ancião pousou sobre a cabeça do menino. Como este era jovem
e pequeno!
“Então entra, Miang. Apertado e escuro está aqui, moro na pobreza, mas posso te
falar do Altíssimo.”
“Fu-Fu também pode se esquentar aqui dentro? Estamos com frio.”
Estremecendo disse-o o menino, quando entrou na moradia que parecia uma
caverna, da qual emanava calor.
“Ela pode entrar,” concedeu o ancião.
Pouco depois, o mestre e seu hóspede estavam sentados sobre uma cama feita de
peles empilhadas, aos seus pés estava deitada a cabra. O ancião buscou um pão duro e
um cântaro de água quase vazio. Ofereceu ao menino e preparava-se para comer.
Rapidamente Miang abriu sua sacola e colocou um pedaço de carne seca e um pão
mais macio diante do hospedeiro.
“Deixa-me comer o pão duro e pega este, mestre,” pediu ele, enquanto já ia se
servindo. “Tens ainda um outro vasilhame, para que possa dar-te leite de Fu-Fu? Ela
quer te agradecer pelo calor.”
Enquanto ainda perguntava, percebeu uma pequena vasilha, rapidamente a buscou
e encheu-a com o leite morno cheiroso. Avidamente bebia o ancião. Parecia que, com a
bebida não costumeira, uma nova vida corria pelos seus membros.
“Altíssimo, eu Te agradeço!” exclamou radiante. “E também a ti agradeço, menino.
Eu estava tão fraco antes que tu vieste. Este leite me reanimou extraordinariamente.”
“Não irá faltar-te, enquanto Fu-Fu viver,” garantiu Miang, acariciando a cabra.
A seguir, ele teve que relatar e grande foi o espanto do ancião, quando ouviu de
que maneira o menino tinha chegado até ele.
“Podes realmente enxergar os gigantes e conversar com eles?” perguntou.
Miang afirmou entusiasticamente e acrescentou: “Eles me falaram de ti. De que
outra forma poderia ter-te achado?”
“E o que queres fazer, quando tiver-te ensinado tudo o que eu mesmo sei?” O
ancião precisava ter a confirmação daquilo que para ele já tinha se tornado certeza.
“Quando tu tiveres me dito tudo o que necessito saber para encontrar o meu
caminho para o Altíssimo, então eu irei para junto Dele e servirei a Ele, mestre.”
“Então fique comigo.”
Não foi uma concessão alegre sem restrições. O eremita tinha vivido na solidão por
um tempo longo demais, ele não desejava mudar seus hábitos. Contudo, a chegada do
menino não era a realização de suas preces ardentes? Toda vez que se lembrava disso
nos meses seguintes, retomava seus ensinamentos calorosamente, os quais vez por outra
deixava cessar completamente.
Miang não se importava muito com isso. Quando seu mestre estava comunicativo,
absorvia o saber com alegre dedicação para, nos tempo taciturnos, repensá-lo e
retrabalhá-lo no seu íntimo. Perguntas que surgiam eventualmente, ele mesmo deveria
tentar resolvê-las ou deixá-las de lado, para mais tarde. O ancião não gostava de ser
importunado com isso. Ele dava da maneira como brotava dele.
Quando era interrompido em seus pensamentos, ele podia ficar aborrecido e o
silêncio tornava-se pesado. O melhor, nesse caso, era ficar longe dele.
Nesses períodos Miang empreendia caminhadas através das montanhas, à procura
de alimentos. O pão, trazido por pastores que vinham procurar ajuda, era muito escasso,
de modo que nem sempre era suficiente para as poucas necessidades do ancião. Então
Miang imitava sua Fu-Fu: alimentava-se de ervas. De vez em quando ele encontrava
algum pastor, que procurava animais perdidos. A este podia auxiliar e recebia alguns
alimentos como agradecimento. O alimento era pouco mas, apesar disso, o pequeno se
desenvolvia, pois estava tão absorvido nos novos reconhecimentos, que não percebia
nenhuma escassez.
Assim passou longo espaço de tempo. Os dois eremitas perceberam isso pelo fato
de que Miang tinha que se curvar quando queria entrar na morada. Certo dia, o ancião
disse: “Nada mais posso ensinar-te, menino. Está na hora de procurar outros mestres.
Antes, porém, de deixar-me quero te dizer por que eu te aceitei. Eu sabia pouco sobre o
Altíssimo, quando uma séria fatalidade me empurrou para esta solidão. Mas de coração
eu O agradecia pelo abrigo e pedi a Ele que me mostrasse, como poderia serví-Lo. Aí
escutei uma voz: “Escuta o teu íntimo e aguarde!”
Isso eu fazia por longo, longo tempo. Cada vez mais claro tornava-se em mim o
reconhecimento do Todo Poderoso e de Seu atuar. No início, eu pensava que todo o
saber estava depositado em mim, que eu só precisaria cavar. Então percebi que, à minha
busca, sempre respondia uma voz auxiliadora. A ela devo tudo o que sei e também foi
ela que falou de ti. Quando em mim surgiu a certeza de que na inatividade não está o
verdadeiro servir ao Altíssimo, ela me anunciou a tua chegada. Que tu eras destinado
para ser o servo ativo do Todo Poderoso. Se eu te ensinasse e te mostrasse o caminho,
então o meu dever estaria cumprido. Eu reconhecer-te-ia pelo fato de teres uma cabra
como tua companheira. Também um outro sinal foi me indicado – este seria do tipo
espiritual. Tu vieste, com o sinal na testa, a cabra ao teu lado, e permaneceste comigo.
Esta noite, porém, a voz comunicou-me que chegou o dia de continuares a tua
caminhada. Então, ponha-te a caminho, Miang.”
Em momento nenhum ocorreu ao ouvinte de perguntar, para onde agora deveria
dirigir os seus passos. Seu Senhor Todo Poderoso, que o conduziu até aqui, continuaria
a ajudá-lo.
“Passe bem, mestre,” disse ele diligentemente. “Deixa-me agradecer-te por tudo o
que tens feito por mim. Ah, se pudesse demonstrar-te o meu agradecimento ainda
melhor do que somente com palavras!
“Deixe-me ficar com a cabra. Seu leite me faria falta.”
O ancião o disse rapidamente, sem se dar conta de que com isso tirava de Miang o
seu único amigo. Com a mesma rapidez o menino efetuou a separação. Ele acariciou
Fu-Fu, que, menos célere que antigamente, lhe ficou ainda mais querida na convivência
próxima. Em seguida, partiu.
Penosa foi sua caminhada por sobre pedregulho e escarpas. Certo é que,
entrementes, tinha se acostumado a essa escalada em região inóspita, mas eram sempre
somente trajetos curtos e com a certeza de que poderia voltar e chegar em casa. Agora
peregrinava ao encontro de um destino por ele desconhecido.
Mas por nenhum instante perdeu a alegre confiança de que o Todo Poderoso, que
até agora o tinha ajudado, continuaria a dirigir seus passos.
Certa vez, teve que descansar. Respirando fundo, olhava ao redor. Percebeu aí um
gigante, rente a uma rocha íngreme. Quantas vezes tinha passado por aqui e nunca o
tinha visto. Sem receio foi ao encontro do gigante que estava meio reclinado e
cumprimentou-o. Sua contemplação não fez surgir medo, somente alegre confiança.
“Então,” foi a resposta do gigante, “finalmente os teus olhos se abriram? Inúmeras
vezes passaste por cima de mim e eu poderia ter te segurado.”
“Então tu sempre estavas aqui como Uru e Muru, e eu não pude te enxergar!”
exclamou Miang entusiasmado.
O gigante o interrompeu:” O que sabes de meus irmãos lá do outro lado? “
“Ah, esses eu conheço bem. Eles foram muito amáveis comigo. Eles me ajudaram
mostrando o caminho que eu devia percorrer. Tu também irás me ajudar, se o Todo
Poderoso assim o quiser?” acrescentou confiantemente.
“Aí não há dúvida. O que o Todo Poderoso quer, isso acontece! Poderá ser bem
provável que eu deva auxiliar-te, ainda não o sei. Eu espero por um menino com uma
cabra.”
Aí Miang reconheceu cheio de felicidade a atuação de seu Senhor.
“Esse sou eu!” exclamou em voz alta.
“O menino eu vejo. Onde está a cabra?”
“Ela ficou com o mestre.”
“Isso eu não compreendo. Conte-me!”
E Miang contou ao ouvinte atento o que a sua curta vida lhe proporcionou até
agora.
“Então tu queres servir ao Altíssimo?” perguntou o gigante seriamente, e quando
Miang confirmava animadamente, ele continuou:
“Eu tenho a incumbência de ajudar-te na tua próxima caminhada. Por hoje, porém,
está muito tarde. Fique comigo. Quando o disco de fogo, que agora se despede de nós,
novamente nos cumprimentar, eu irei te acordar.”
Confiantemente o menino recostou-se nos enormes membros, sob cuja proteção
mal percebeu o vento sensivelmente frio da noite.
“Queres me dizer o que tu sabes do Todo Poderoso?” pediu ele, recebeu, porém, a
resposta inesperada: “Para isso não tenho autorização.”
Quando o gigante notou a decepção de seu companheiro, continuou: “Lembra-te:
quem te contou de nosso Senhor Todo Poderoso: Uru ou Muru?”
“Muru,” exclamou Miang, sem pensar.
“Este era o seu dever. Uru somente devia facilitar a caminhada. Eu, porém, sou
como Uru. Os dons mais elevados me são negados. Creia-me, no reino de nosso Senhor,
tudo está ordenado da maneira mais perfeita. Cada um se encontra exatamente no lugar
que pode preencher. Para mais além ele não deve aspirar. Ele iria negligenciar os seus
deveres.”
Perplexo, o menino refletiu sobre essas palavras, até que adormeceu e se encontrou
sonhando, como lhe parecia.
“Como eu poderei servir-Te?” ouviu-se perguntar. E ouviu imediatamente a
resposta da voz clara, que já conhecia:
“Isto tu saberás quando a tua preparação estiver concluída, não antes. Agora te é
permitido continuar aprendendo. Amanhã serás conduzido a um outro mestre. Aproveita
o tempo com ele, que somente será curto.”
Na total consciência dessa ordem Miang acordou. Houve uma despedida rápida.
Então seu novo amigo o levantou muito cuidadosamente por sobre os picos de rochas e
desfiladeiros e colocou-o sobre um cume de montanha mais baixa. Aqui não havia
pedregulho. Em toda parte brotava o verde. Mas antes que tivesse tempo suficiente para
olhar ao redor, sentiu-se novamente apanhado por uma mão, que se estendia para ele de
uma distância envolta por neblina. Desta vez seguiu em direção à origem da mão, e logo
Miang encontrou-se no meio da neblina, novamente bem no alto das escarpas. Parecia
que somente devia dar um rápido olhar para a beleza das áreas verdes.
Agora estava novamente diante de um gigante, cujos dedos ainda o seguravam
enquanto falava com ele. Parecia ser maior e mais rústico que os outros três. Nem
perguntou de onde veio e para onde iria, mas ordenou rudemente:” Para lá, é lá que
espera o teu mestre!”
O menino agradeceu e, quando os dedos enormes o soltaram lentamente,
prosseguiu na direção indicada. Sentia frio, apesar de ter confeccionado um traje dos
pelegos de seu pai, que cobria o seu corpo inteiro. No entanto, não precisou ir muito
longe e viu-se defronte de um desfiladeiro, que decaía verticalmente do lugar onde se
encontrava. Na borda desse desfiladeiro estava um homem de média idade que deixava
rolar pedras lá para baixo. Isso ocasionou o ruído inexplicável, que enchia o ar ao redor.
Agora parou e virou a cabeça.
“Tu, vem e me ajuda!” ordenou ele ao menino surpreso.
“Esta pedra é muito pesada.”
Miang aproximou-se de bom grado, e apesar de suas forças serem poucas e não
exercitadas, conseguiu empurrar o bloco de rocha para a profundeza, para a satisfação
do laborioso. Qual seria a finalidade disso? Miang gostaria ter perguntado, mas um
olhar para o rosto pouco amável de seu companheiro fê-lo calar. Trabalharam juntos,
sem falar, até que o sol se encontrasse alto no céu e as forças do menino ameaçavam
faltar.
Aparentemente com desprezo o homem olhou para ele.
“Está na hora que entres a meu serviço. Deves tornar-te um homem e não um
fracote.”
Com isso acenou para que Miang o seguisse. Eles se distanciaram do desfiladeiro e
entraram numa fenda estreita na rocha. Após poucos passos esta se alargava e lá
encontrou uma tenda feita de peles que, com o lado posterior, encostava na rocha. O
interior da tenda estava aquecido.
“O que tu me trazes?” queria saber o homem, ao entrar.
“Somente a mim mesmo,” retrucou Miang timidamente. Foi realmente pouco o que
ele trazia. Suspirou aliviadamente quando o homem lhe disse: “Então deves ganhar tu
mesmo o teu sustento. Eu não dou nada de graça.”
Ao proferir essas palavras, ditas em tom áspero, dirigiu-se ao fundo da tenda, de
onde voltou com alguns pães chatos e uma bebida de leite coalhado. Ordenou que
Miang sentasse num dos dois montes de peles. Então ofereceu-lhe pão e o jarro.
Vorazmente bebeu o menino extenuado, que desde o dia anterior não tinha se
alimentado e sentia falta do leite de Fu-Fu. Quando tinha colocado o jarro vazio no
chão, tentou comer do pão. Nesse momento sobreveio-lhe o cansaço, ele caíu sobre as
peles e adormeceu.
Sorrindo, o homem aparentemente tão duro olhou para o adormecido e,
involuntariamente, os seus pensamentos tornaram-se uma prece:
“Todo Poderoso, eu Te agradeço por me julgares digno de preparar um de Teus
servos. Abençoado é este menino. Não permitas que eu venha a esquecer minha missão
de forjar dele um homem. Não me deixes amolecer!”
Primeiramente deixou o seu hóspede dormir e retornou sozinho ao seu trabalho,
cujo ruído interrompia o silêncio, sem incomodar Miang.
Passado longo espaço de tempo, acordou Miang, fortificado e reanimado. Olhou ao
seu redor. Ali estavam os pães. Também o jarro estava cheio novamente. Como o
homen era amável! Era para ele um sinal de que tinha sido aceito no seu destino
provisório. Comeu e bebeu cheio de gratidão, depois lembrou-se da instrução da voz:
“Aproveita o teu tempo, que será de curta duração.” Por isso, não deveria demorar-se
observando a tenda exótica, deveria voltar rapidamente ao trabalho, que o aproximaria
de seu novo mestre.
Encontrou-o justamente no momento em que tentava movimentar uma pesada
pedra até a borda do desfiladeiro. Rapidamente juntou-se ao trabalho e com estrondo o
pedaço de rocha caiu para o fundo. Involuntariamente Miang debruçou-se, para olhar
para baixo, no entanto, sentiu-se agarrado bruscamente e puxado para trás.
“Curiosidade aqui traz a morte!” exclamou o mestre com voz áspera. E já tinha
soltado uma nova pedra.
Sem proferir palavra nenhuma, Miang pôs as mãos à obra e eles trabalharam, até
que a escuridão os circundou. Só então retornaram para a tenda.
O menino gostou do calor que o acolheu, porém, ainda não era hora para deliciar-se
com ele. O homem, munido com diversos utensílios, saiu novamente da tenda e chamou
Miang para junto dele. Caminharam poucos passos. Sob um ressalto de uma rocha havia
pedras empilhadas, sobre as quais o homem acendeu um fogo.
“Preste bem atenção,” ordenou a Miang. “Amanhã este é o teu serviço”
E o menino admirou-se, como com enorme rapidez pedras eram batidas umas
contra as outras, até que centelhas caissem sobre os gravetos. Quando o fogo estava em
alegres chamas, foi colocada em cima uma armação com quatro pés e, sobre a mesma,
um vasilhame delgado trabalhado em pedra. Continha leite, mas também outros
ingredientes, pois agradáveis odores se espalharam quando a mistura esquentou.
Espontaneamente, o menino tinha cuidado do fogo, agora o homem lhe disse para
deixá-lo apagar-se. Nisso, levantou cuidadosamente o vasilhame e levou-o para a tenda.
Estava fumegando: Miang nunca tinha visto uma coisa tão deliciosa.
“Venha,” foi o breve convite, com que o homem trouxe um pequeno vasilhame, no
qual despejou logo a metade do mingau. Depois, porém, ergueu-se, levantou as mãos e
disse:
“Todo Poderoso, nós Te agradecemos pelo alimento.”
Foram somente poucas palavras e, mesmo assim, pareciam provocar algo
grandioso. Tinham transformado o homem deselegante e pouco amável. Em Miang
brotou uma grande confiança.
“Eu te agradeço, mestre,” disse ele comovido, quando este lhe alcançou o pão e o
mingau.
“Não tens nada a agradecer-me. Esta refeição tu a ganhaste com o teu trabalho. Não
me chama de mestre, eu não o sou.”
“Como é que digo então?”
“Eu me chamo Fong,” foi a breve resposta.
Calados comiam ambos a sua refeição. A seguir, Miang foi mandado para lavar os
poucos utensílios num regato de água cristalina, gelada, que corria perto da tenda por
sobre as rochas.
“Durma,” disse depois.
Com saudade lembrou-se o menino da prece conjunta à noite, que para ele tornou-
se um costume. Parecia que devia rezar sozinho. Será que alguma vez ouviria de Fong
algo sobre o Todo Poderoso?
Então seguiram dias com muito trabalho. Miang aprendeu a conhecer a obrigação
do trabalho regular, e não era de seu agrado. No seu íntimo revoltou-se mais de uma vez
contra isso. Se ao menos soubesse, por que ambos, sob esforço máximo, deixavam rolar
as pedras para o abismo! Julgava que então lhe seria menos penoso.
Os dias passavam sem alegria. Fong falava somente o absolutamente necessário.
Nenhuma palavra de estímulo se fez ouvir. Nenhum gigante estava por perto.
Houve dias, nos quais o menino quase desanimou com o pensamento de que
pudesse estar no caminho errado. Ele realmente estava, mas de modo diferente do que
pensava. Enquanto ele pensava estar abandonado por tudo que o pudesse levar até o
Altíssimo, estava a ponto de abandonar o seu Senhor, porque não compreendia o
caminho Dele.
Tristemente pairavam os olhos de Fong sobre ele, quando gemia em sono inquieto.
Teria ajudado de bom grado, mas Miang deveria ele mesmo passar pela dura vivência.
Não se podia dar a ele ao menos uma indicação? Fong pediu fervorosamente por esta
alma que lhe foi confiada. Então veio resposta, o que devia fazer.
De manhã, quando o menino aprontava-se para ir ao trabalho, Fong virou-se e disse
asperamente: “Sem alegria fazes o teu trabalho. Desista, até que mudes de opinião.”
Miang olhou perplexo para Fong.
“Devo prosseguir a caminhada? Não me queres mais ao teu lado?”
“Tu ficas aqui, até o Altíssimo nos mandar novas ordens,” foi a resposta, que
pouca coragem deu ao menino para continuar a conversa. Não obstante, aprumou-se e
perguntou: “O que devo fazer, se não ajudar a ti com as pedras?”
“Nada.”
Isso era conclusivo. Com barulho de trovão foram lançados no penhasco diversas
pedras em seqüência rápida. Qualquer possibilidade de entender uma palavra estava
cortada.
Por alguns momentos Miang parou indeciso. Não podia entender que estava livre
para poder fazer o que bem entendesse. Em seguida olhou ao redor. Nunca tivera tempo
para fazê-lo. Inóspitas, as rochas miravam de alturas vertiginosas para baixo, fincadas
até as profundezas na neve e gelo. O esplendor do sol pairava luminoso sobre as
mesmas, mas seus raios mostravam ainda mais nitidamente quão acidentadas e rasgadas
elas eram.
Vagarosamente dirigiu-se Miang até um ressalto da rocha, que logo adiante
impedia a visão. Não havia um ser vivo em parte alguma. Se ao menos Fu-Fu estivesse
junto dele! Com esforço infinito alcançou o alvo que havia fixado, ele escalou as
encostas desse ressalto de rocha e obteve, então, uma visão ampla desimpedida.
Montanhas elevaram-se atrás de montanhas, entre elas havia profundos precipícios.
Também ao lado do ressalto, onde se encontrava, abria-se rente um precipício profundo.
O menino teve que desviar-se e fechar os olhos, teve vertigens. Sentou-se e apertou as
mãos contra o rosto. “Todo Poderoso,” gemeu ele e, novamente, “Todo Poderoso.”
Quando pronunciou a palavra sagrada pela segunda vez, emocionou-se. Como o
Altíssimo, que tudo isso criou, devia ser sublime, muito além do nosso entendimento!
Onde poderia morar, onde podia ser encontrado? Pois Miang queria procurá-Lo. Estava
ele no caminho certo até Ele? Não havia perda de tempo inútil com o trabalho pesado
em silêncio?
Sempre de novo os pensamentos voltavam-se para essas duas questões. Não estava
acostumado a encontrar respostas sem qualquer ajuda, mas as perguntas não o largavam,
pois precisavam ser solucionadas.
Ele repensou sua vida até agora: nitidamente palpável foi a condução do seu mais
alto Senhor durante os últimos anos. De modo maravilhoso tinha avançado, também
para aqui.
Também para aqui! A respiração do ser humano, que estava lutando por clareza,
parou, um fino véu caiu! A vontade do Altíssimo também o mandou para cá, isto ele
acreditava firmemente. Como podia desanimar-se a tal ponto?
Com isso também estava solucionada, como lhe parecia, a segunda pergunta. Se
estava aqui por vontade do Altíssimo, então o tempo não poderia ser inútil.
Respirou aliviado. Olhou ao seu redor e percebeu que o sol estava declinando.
Devia apressar-se na volta, se não queria perder a hora de seu compromisso de preparar
a refeição noturna. Mas a descida era bem mais dificultosa que a subida. Estava quase
completamente escuro quando chegou ao local do fogão, onde o fogo já havia se
apagado.
Entrou rapidamente na tenda, onde Fong parecia estar dormindo sobre o seu monte
de peles. Por longo tempo parou, indeciso, depois procurou o seu leito e caiu logo no
sono, apesar de sua fome de roer. Dormiu um sono profundo. Quando, na manhã
seguinte, abriu os olhos, a tenda estava iluminada pelos raios do sol. Ao seu lado, no
chão, estava a sua refeição. Estava sozinho. Pela primeira vez Fong não o havia
chamado. Apressadamente engoliu o pão e o mingau. Quando a primeira fome forte
estava saciada, parecia-lhe ouvir repentinamente a voz de Fong, que naquela vez tinha
dito, que deveria ganhar seu sustento trabalhando. Ontem não tinha feito nada. Hoje
perdeu a hora!
De fora chegou até ele o barulho de enorme trabalho, pedra por pedra rolava para a
profundeza. Miang não se reteve mais. Rapidamente juntou-se ao trabalhador e queria
ajudar. Fong interrompeu seu trabalho somente para dizer: “O trabalho te parece sem
utilidade e sentido. Tu estás livre!”
Novamente estava despedido. Porém, se ontem, após o primeiro espanto, havia
sentido um leve sentimento de alívio, hoje sentia somente tristeza. Fong havia sentido
os seus pensamentos! Fong rejeitava-o. Tinha sido um ajudante descontente e devia ter
sido um agradecido. Envergonhado caminhou riacho acima. Queria ficar nas
proximidades para poder chegar a tempo em casa, mas Fong não deveria poder vê-lo.
O murmurar da água, que alegremente saltitava para o vale, mal sobrepôs-se ao
barulho enorme das pedras. Miang jogou-se sobre o pedregulho e suplicou ao Altissimo
por ajuda, força e iluminação. Dessa forma nunca havia invocado o seu desconhecido
Senhor. Nunca tinha estado tão profundamente convicto, de que seu pedido seria ouvido
e atendido.
Nesse instante caiu novamente uma venda. Depois de ter rezado: “Eu sou o Teu
servo, Altíssimo, mesmo se ainda não conheço o meu serviço, nem sei tampouco, como
e com que posso servir-Te,” veio-lhe a certeza de que também Fong era um servo do
Altíssimo. A mando de seu Senhor ele executava o seu trabalho dia após dia. Contudo,
Miang também foi trazido até ele a Seu mando. Portanto, ele deveria ter considerado
imediatamente essa inútil movimentação de pedras como servir. Em vez disso, tinha
reclamado em seu íntimo. Não era de se admirar que Fong não mais o considerasse
digno de ajudar.
O menino caiu em ardente pranto. Não chorava facilmente, apesar de ser tão jovem
e sensível, mas estas lágrimas provinham de amarga vergonha e arrependimento e
trouxeram consigo sua benção. Quando esgotaram-se, havia surgido algo novo na alma
de Miang, a firme vontade de reparar seu erro. Daqui por diante queria assumir o
trabalho, por mais pesado, sem reclamar, sem questionar.
Perpassou-lhe: Não residia uma parte de sua culpa no constante questionamento
pelo porquê do trabalho? Por acaso, as suas cabras alguma vez perguntaram, por que os
chamava das mais suculentas ervas, para empenhar-se em outro caminho? O que o seu
Senhor deveria pensar de seu futuro servo, que a cada ordem queria antes saber o
motivo? Oh, como estava envergonhado!
Novamente corriam as lágrimas mal acalmadas e lavaram de sua alma o último
vestígio de presunção.
“Quem sou eu, Senhor, que me atrevo cismar a respeito de Tuas ordens?”
Em voz alta o tinha exclamado e não se admirou, quando recebeu resposta:
“És um pequeno homem insensato!” falou uma vozinha clara.
Ele se virou. Sobre uma pedra redonda na água estava sentada uma pequena figura
feminina. Fluentes como a água era seu vestido e seus cabelos. Parecia, às vezes, como
que se dissolvesse na correnteza. Miang olhou admirado para a graciosa criatura. Nunca
em sua vida havia visto algo tão bonito.
“Quem és tu?” perguntou receoso.
“Eu sou a vida dessa água, cada córrego, cada rio tem a sua. Eu pertenço a esta
água, e ela me pertence.”
O menino refletiu sobre a resposta
“Então tu também és uma serva do Altíssimo?” queria saber.
A ente confirmou e riu: “Eu sou o que tu queres ser.”
“Tu percebeste tudo o que eu disse e o que pensei?” indagou Miang.
“Isso não foi difícil saber,” sorriu a ente. “Esperamos todos os dias para que os teus
olhos se abrissem. Tu, porém, precisavas primeiro conhecer-te a ti mesmo, antes que
pudesses ver-nos. Olha ao teu redor!”
E o braço branco como a neve indicou ao redor. Aí Miang viu gigantes deitados, os
quais levantaram as cabeças e acenaram para ele. Mas ele viu ainda mais: em toda parte
movimentavam-se pequenos vultos céleres, trabalhando com afinco.
Júbilo preencheu o há pouco ainda desanimado. Ele não mais estava sozinho.
Sentiu-se incorporado ao grande número dos servos. Levantou-se rapidamente.
“Fique ainda,” pediu a ente.
“Querida ente, eu tenho que ir trabalhar,” afirmou Miang cordialmente.
“Qual é o teu trabalho?”
“Até agora tive que ajudar a soltar pedras e despachá-las para a profundeza,”
Miang quase não se permitia mais tempo para responder a pergunta.
“Que estranho,” disse lentamente a ente encantadora.
“Os gigantes não poderiam fazer isso bem melhor?”
O questionado não pensou nem um instante.
“Bem possível, mas o Altíssimo nos encarregou desse trabalho, então deve ser
necessário que nós o façamos.”
“Então vá ao teu trabalho,” sorriu a graciosa. “E quando te for permitido um
descanso, visite-me e conte-me sobre isso.”
“Vida, eu te agradeço,” exclamou o menino ao distanciar-se aos saltos. Ao seu lado
andavam com passos pequenos duas figurinhas cinzentas como pedra. Confiantemente
olharam para ele, que se sentia grosseiro e enorme ao lado deles.
“Acordaste finalmente, tu meio servo?” perguntou um deles, que portava uma
comprida barba encanecida. “Sabes tu agora algo do que significa servir?”
“Eu ainda sei muito pouco, mas eu o aprenderei.” retrucou Miang confiantemente.
Ele tinha alcançado Fong, que parecia desempenhar tranqüilamente o seu pesado
trabalho. Sem perguntar, Miang começou a trabalhar resolutamente. Ele sabia que não
mais seria mandado embora.
Os dois trabalharam silenciosamente, até o pôr do sol. Se Miang tinha esperado por
alguma palavra de Fong, então estava muito enganado. Seu mestre tinha ficado ainda
mais calado e isso, também, não mudou nos próximos dias. Miang, por sua vez, não
teve coragem para dirigir-se ao calado. Também, o que poderia ter dito? Daquilo que se
passava no seu íntimo, o homem parecia não querer saber nada. De outro assunto o
menino não sabia falar. Mas isso não o afetava mais.
Desde que parou de resmungar sobre a finalidade do trabalho que lhe parecia tão
inútil, concentrou toda a sua atenção sobre o mesmo. Ele viu, cheio de admiração, como
as grandes e pequenas pedras estavam encaixadas no solo. Observou as formas e
descobriu, então, que geralmente possuíam cores completamente diferentes. Algumas
eram brilhantes e reluzentes quando o sol incidia sobre elas, outras brilhavam do seu
interior em vermelho profundo ou azul saturado.
Como isso era belo! Com entusiasmo renovado ele cavou, empurrou, puxou e
arremessou. Somente lamentava que toda essa beleza devia implacavelmente cair no
abismo.
De um dia para outro ele começou a sentir satisfação no trabalho, principalmente
quando pôde observar como as forças de seu corpo aumentavam. Leve ficou para ele o
que antes lhe parecia tão difícil. Um dia, na alegria sobre essa descoberta, afastou
rapidamente as mão de Fong para o lado, quando este quis apanhar um grande e pesado
bloco. Sozinho o tirou do solo, rolou-o até o abismo e deixou-o cair com estrondo.
Aí Fong afastou-se do penhasco. Assustado, Miang virou-se e olhou para ele.
Estava o homem aborrecido pela sua autosuficiência?
Um olhar para as feições de Fong acalmaram-no, e mais, encheram-no de surpresa.
Havia um brilho de grande alegria nelas.
“Nós podemos parar de trabalhar, Miang,” ouviu a voz do homem. Também esta
estava totalmente transformada, muito mais suave do que antes. “O começo daquilo que
tu deverias aprender, está terminado. Vamos agradecer ao Altíssimo.”
Juntos caminharam até o ressalto de rocha, no qual Miang, há pouco tempo, tinha
passado o seu primeiro dia solitário. A subida, hoje, não lhe parecia mais difícil. Com o
coração aliviado caminhava atrás de seu companheiro, olhando alegremente ao redor.
Também a paisagem parecia mudada. Certamente os píncaros rochosos estendiam-
se até o céu, profundos desfiladeiros encontravam-se entre eles, mas a luz do sol
dourado iluminava tudo isso e, para onde dirigia seu olhar, encontrava a mais animada
vida. Como a um velho conhecido os gigantes acenavam para o menino feliz.
Alegremente cercavam-no as pequenas figuras dos homemzinhos cinzentos.
Chegando no topo, Fong levantou os braços para o céu e pronunciou uma curta e
fervorosa prece de gratidão, por ter o Todo Poderoso feito com que esta primeira parte
da formação tivesse tanto êxito.
Depois os dois sentaram no mesmo lugar, onde o menino tinha enfrentado sua
primeira e solitária luta consigo mesmo. E veja: Fong, o silencioso, começou a falar:
“Eu me alegro por ti, Miang. Nestas semanas tens aprendido muito, mais do que tu
mesmo ainda podes pressentir. Em força e habilidade tornaste-te um homem. Fazer isso
de ti era uma parte da minha missão recebida do Altíssimo. Certamente deves servir
futuramente ao nosso elevado Senhor com o espírito, porém, para a vida que deverás
levar, necessitas de um corpo bem treinado. Primeiramente este deveria ser
desenvolvido, antes que eu preenchesse o teu espírito facilmente impressionável com o
saber do Todo Poderoso.”
Os olhos de Miang arregalaram-se admirados.
“Então tu queres me falar do Altíssimo? Tu queres me ensinar?” Júbilo estava
contido em sua voz. Sobre as feições de Fong passou um sorriso, que o embelezou
maravilhosamente.
“Creia-me, Miang, eu ansiava pelo dia de poder fazer isso. Mas primeiro tu devias
ser preparado para isso. Tu tinhas que aprender, a partir de teu íntimo, a cumprir as
ordens do nosso Senhor sem questionar e sem reclamar. Ele não pode aproveitar servos
hesitantes. Depois tinhas que descobrir que o trabalho é uma benção. Deves alegrar-te
com ele!”
“Isto eu aprendi,” assegurou Miang convencido, “e nunca mais o esquecerei!”
“Achas que terias aprendido isso tão bem, se eu apenas o tivesse dito?” indagou
Fong.
O interrogado pensou um pouco, depois disse francamente:
“Acredito que não. Somente quando tive que sentir vergonha de minha inatividade
e indignidade, senti a bênção que se encontra escondida no trabalho.”
Ainda conversaram muito, os dois, aos quais a vontade do Senhor finalmente tinha
soltado as línguas. Somente agora Fong pediu que o aluno narrasse a sua vida até agora.
Miang o fez com palavras eloqüentes. O longo silêncio tinha reprimido muitas coisas,
fez amadurecer algumas, que agora procuravam expressar-se.
De tempos em tempos Fong levantava a mão. Então o narrador parava, e juntos
admiravam a maravilhosa condução, que tão seguramente guiou os passos de degrau a
degrau.
“Agora também entendo, por que o ancião teve que pedir-me a Fu-Fu,” exclamou
Miang repentinamente todo entusiasmado.
“Certamente, não poderia ser diferente,” afirmou Fong. “Tu tiveste que ser
desligado de tudo o que te atava ao passado, que ainda poderia tornar-te sensível. E
então chegaste até o companheiro rude,” continuou sorrindo. “Foi muito difícil?”
“Eu vi teu rosto na oração de graças, isto me ajudou.”
Miang o disse singelamente; o outro o compreendeu e não continuou a perguntar.
Esse dia eles concluíram em oração conjunta, tinham que agradecer por tal
grandiosidade.
Na manhã seguinte estavam, como de costume, no penhasco. Também hoje pouco
falaram. Pesado demais era o trabalho, mas trocaram um ou outro olhar satisfeito,
alguma exclamação alegre.
Quando o sol estava em seu ápice e seus raios perpendiculares tornaram o enorme
trabalho mais pesado, Fong afastou-se.
“Vamos comer algo e depois procurar a sombra, onde a encontrarmos.”
Foi um dia maravilhoso, ao qual seguiram outros parecidos. Após o trabalho
fatigante começavam os ensinamentos, que ainda acompanhavam Miang durante o sono
onde se tornavam vivências. Quando certa vez falavam que não existia um “por quê” no
servir ao Altíssimo, Miang acenou com a cabeça, convencido.
“Agora eu sei que, com as minhas perguntas primeiramente curiosas e que se
tornaram resmungos, eu teria estragado o meu futuro, se tu não me tivesses afastado do
caminho errado.”
“Quem te disse isso?” queria saber Fong.
“A voz, que às vezes me fala. Recentemente, de noite, ela me falou como eu era
tolo no início, e como estava em perigo de me tornar mau.”
“E tu ainda queres saber por que nós movimentamos as pedras?”
Miang enrubreceu. Gostaria muito dizer não e sentiu perfeitamente que essa
palavra não teria correspondido à verdade. As perguntas pelo motivo ele somente as
tinha deixado de lado.
“Agora posso dizer-te,” animava-o Fong, que deixava vagar seu olhar para longe.
“Está errado se te pedir para que não o faças?” foi a resposta totalmente inesperada do
aluno. “Eu sinto alguma coisa dentro de mim que me diz, que não mereço essa
explicação. Primeiro devo aprender direito a matar também o último “por quê” dentro
de mim.”
Cheio de alegria, Fong abraçou o jovem.
“Tu estás no melhor caminho, Miang. Minha pergunta deveria ser um teste. Foste
aprovado. Com isso, porém, chegou o momento em que deves deixar-me. Nada mais
posso te ensinar. Deves viver entre os homens e observar sua conduta. Deves colher
experiências para o teu futuro servir.”
Penetrantemente olhou para o companheiro. Viria a manifestar a pergunta: “Em
que consiste esse futuro servir?” Não, nada se expressou nas feições claras, sinceras,
somente o susto pela separação próxima. E, apesar dessa emoção tão natural, dominou-
se. Miang preparou-se para imediatamente iniciar sua caminhada.
Fong teve que sorrir um pouco.
“Não tem tanta pressa assim, meu amigo. Receberemos instrução sobre o que deves
empreender, para onde deves dirigir-te. Isso pode acontecer ainda hoje, ou somente nos
próximos dias. Deixe-nos aproveitar ainda cada hora que estaremos juntos.”
Inicialmente, Miang ainda estava um pouco atordoado por causa da comunicação
repentina, de modo que Fong achou melhor empreender uma caminhada com ele. Nisso,
chegaram até a pedra, sobre a qual havia se mostrado a alegre ninfa da água. Curioso,
Miang olhou para lá e ficou contente, quando a bela figura acenou cumprimentando.
“Eu não tive tempo para vir antes,” exclamou o humano. “Eu sei,” recebeu como
resposta. “Estiveste muito ativo, tão trabalhador, que agora nada mais há a fazer para ti.
Ande pelo mundo afora e, se os homens não te agradarem mais, procure por minhas
irmãs nas águas claras. Leva-lhes lembranças de Hima.” Desapareceu a figura após a
última palavra, mal Miang ainda pôde externar seu agradecimento. Então olhou para
Fong. O que este diria? Um olhar para as feições do mesmo confirmaram a Miang que
seu companheiro tudo havia visto e compreendido.
“Também podes ver os gigantes?” perguntou Miang, feliz. “Certamente, já há
muito são meus bons amigos. No início foi-lhes permitido ajudar-me no trabalho com as
pedras, ao qual também tive que me acostumar primeiro.”
Após longo silêncio pronunciou Miang uma pergunta, a qual já muito tempo o
ocupava: “Sempre soubeste do Altíssimo?”
“Sim,” foi a resposta. “Eu sabia Dele, porém, somente O encontrei aqui nesta
solidão. Meu pai havia me falado Dele, também deixava-me participar da sua oração
diária. Mas creia-me, o que nos é dado sem esforço, àquilo não damos atenção.”
Isso Miang entendeu por experiência própria. Devia, entretanto, refletir mais sobre
essas palavras. Ainda encontrava-se na procura pelo seu Senhor, quando ser-lhe-ia
permitido servir, servir realmente, não somente em ajudar a outrem? E em que iria
consistir o seu servir? O que quer que fosse, estava convicto de que o faria com alegria.
Até esse ponto haviam chegado os seus pensamentos, quando ouviu vozes. Fong
tinha parado, escutando. Seres humanos nesta solidão era algo totalmente incomum.
Mas não lhe pareciam totalmente inesperados, somente curiosidade, não surpresa
desenhava-se no rosto do homem, enquanto Miang sentiu um forte impulso de
esconder-se em algum lugar. As mãos de Fong o seguraram. Juntos olharam para o que
estava chegando.
Dois homens aproximavam-se, trazendo as suas robustas montarias nas rédeas
devido à trilha estreita. Tinham aspecto bem diferente das pessoas que Miang havia
visto antigamente e as quais, como ele, tinham seus corpos cobertos com peles. Estes
dois usavam vestimentas coloridas, o que parecia ao jovem surpreso algo imensamente
suntuoso, causando-lhe, entretanto, um certo desconforto.
Quando avistaram os dois que aguardavam, conduziram seus animais para detrás
de alguns grandes rochedos, acalmando-os com algumas palavras. Então vieram ao
encontro de Fong.
“És tu Fong, príncipe da tribo amarela?” perguntaram em dúvida, porém, com
respeito.
“Eu me chamo Fong,” retrucou o interpelado com dignidade. “O príncipe deixei de
lado, juntamente com as vestimentas.”
“Então, a despeito disso, és aquele que procuramos. A tua tribo necessita do
príncipe. Lá não existe mais ninguém que nos pudesse guiar. Venha conosco. Mais lá
embaixo aguardam as montarias, servos e vestimentas.”
Involuntariamente Fong abanou a cabeça. Com receio inexplicável Miang olhou
para ele. O que ele faria? Era ele realmente um príncipe? Como ele iria decidir-se? Aí
soou a voz de Fong, calma e firme.
“Não por capricho eu vim para esta solidão, mas para procurar o Altíssimo, para
que também o meu povo aprenda a encontrá-Lo. Se chegou o momento de meu retorno,
então quero acompanhá-los.”
Cortando as alegres exclamações dos homens, prosseguiu: “Fiquem aqui essa noite,
então quero procurar perscrutar a vontade do Altíssimo e lhes darei uma resposta
amanhã.”
Ele não havia dito: “Fiquem comigo.” Com espanto viu Miang, como os homens se
curvaram, caminharam calados até seus animais e retornaram pelo caminho pelo qual
chegaram. Somente quando estavam fora do alcance da vista, Fong falou com profundo
suspiro: “Então também nós teremos que voltar para casa, Miang. A hora da decisão
chegou para mim, mas também para ti. Antes de dormir, deixe-nos pedir ao Altíssimo
para que abra meus olhos e ouvidos para perscrutar Suas ordens.”
Foi uma oração maravilhosa, que Fong enviou ao alto para o seu Senhor. Longo
tempo Miang ainda teve que refletir sobre a mesma. Esta oração e toda a silenciosa
atuação de seu companheiro ensinaram-no a compreender melhor o sentido do servir do
que tudo o que até então vivenciara.
Quando acordou na manhã seguinte, diante dele estava Fong, vestido com
vestimentas suntuosas. Ele parecia tão majestoso, que involuntariamente Miang curvou-
se diante dele, como o tinha visto os homens fazerem.
“Levanta-te, Miang, chegou a hora em que eu, a mando do meu Altíssimo Senhor,
devo retornar para junto de meu povo. Se quiseres, isso não precisa ser uma separação
para nós. Me é permitido levar-te, se tu assim o desejares.”
Miang não conseguiu proferir palavra alguma. Suplicando estendeu as mãos.
“Eu separei uma vestimenta para ti, ela será suficiente até que possamos
providenciar uma melhor. Por ora, a época das peles terminou.”
Com agrado olhou para o jovem que, sem pensar muito, vestiu as peças estranhas
para ele e estava diante dele numa beleza inconsciente, singular.
Uma curta oração, uma rápida refeição, depois Fong pediu ao seu companheiro que
deixasse a tenda.
“Vamos ir ao encontro dos homens. Nossos passos para a vida lá embaixo devem
ocorrer voluntariamente.”
Fong instruiu o jovem para colocar em ordem os seus poucos pertences e as peles.
Não levaram nada consigo, mas tudo deveria estar aprovisionado da melhor forma
possível.
Depois caminharam para a vastidão dourada pelos raios do sol e rapidamente
encontraram a trilha que levava para baixo.
À beira de um riacho, que do alto emaranhado de montanhas precipitava-se por
entre as planícies verde-aveludadas, caminhava um belo jovem. Pensativo, mantinha a
cabeça abaixada, não dando atenção aos passarinhos e a outras pequenas figuras que
aqui e acolá dele se aproximavam confiantes.
Parecia não chegar a uma conclusão sobre aquilo que ocupava sua alma.
Suspirando, sentou-se num bloco de granito e não percebeu que a água respingava
justamente nesse local, cobrindo-o de vez em quando com uma golfada de gotas
aperoladas. Agora, porém, algumas alcançaram o seu rosto. Indiferente, as secou e
olhou ao seu redor.
“Então fui novamente para perto da água,” murmurou baixinho. “Parece que algo
me chama. Será que as irmãs de Hima têm uma mensagem para mim? Então vou
chamá-las logo.”
Levantou-se e lançou sua voz por cima do estrondo.
“Vós, irmãs, ouçam-me. Saudações tenho para vós de Hima, a formosa.”
Debruçou-se escutando. Parecia ter ouvido um riso límpido, mas o estrondo das águas o
tragou. Em lugar nenhum conseguiu avistar uma figura. Chamou novamente as mesmas
palavras, outra vez sem êxito.
“Por que elas não vem? Elas me escutam, isso eu sinto. Eu preciso delas.”
Tinha dito isso contrariado, então pensou: “Se eu necessito delas, devo chamar de
maneira diferente. Elas têm razão em não atender a tão tolo chamado. Eu não pedi que
viessem.”
Sorrindo, fez novamente soar sua voz: “Ó, irmãs de Hima, aqui está um homem
solitário que deseja dialogar com vocês. Peço-lhes que apareçam!”
Novo riso mais forte, simultaneamente o jovem sentiu-se envolvido como que por
leves véus. Diante dele, no chuviscar da água, estava uma figura que lhe parecia bem
conhecida.
“Hima!” exclamou alegremente.
“Não Hima,” soou ao seu encontro. “Eu me chamo Hila. Tu chamaste pelas irmãs.
Não sabes tu que em cada água só vive e reina uma de nós? Se quiseres ver mais, tens
que caminhar adiante.”
Foi dito de modo extrovertido. O ser humano ali não conseguia responder nesse
tom brincalhão. “Hila, eu estou solitário,” disse suplicante.
“Isto eu já ouvi uma vez,” riu a ente. “Agora que estou contigo, essa solidão
terminou. Ela também não precisaria existir, se nos teus pensamentos sismadores não te
tivesses absorvido tão inutilmente. Olha ao teu redor: tudo vive e está disposto a ajudar-
te.”
Assim como Hima o tinha feito antes, Hila indicou com o braço estendido ao redor
e os olhos de Miang pareciam abrir-se. Em toda parte viu os pequenos e pequeníssimos
entes, o vale do riacho parecia estar repleto de atividade. Suspirando aliviado, sentou-se
novamente na pedra grande, enquanto a ninfa escolheu um lugar envolto de água para
descansar.
“Tu estás recaindo em erros antigos, Miang,” animou ela o ser humano, que
procurava por palavras. Com isso, porém, ela não conseguia desencadear o fluxo de
suas palavras, ao contrário: ele teve que refletir tão intensamente sobre o sentido de suas
palavras, que esqueceu tudo ao seu redor.
“Erros antigos?” murmurou ele. “Erros antigos?”
Um som surdo, que parecia soar demoradamente de longe, o fez sobressaltar-se.
“O príncipe chama, adeus Hila, eu voltarei.”
“Procura o teu erro,” ecoou da água, mas Miang já tinha se afastado a passos
largos.
Quando, seguindo o som, chegou ao local onde um homem, com toda sua força, fez
soar os sons graves através de um enorme chifre de animal, encontrou-se em meio a
intenso movimento. De todos os lados homens aproximavam-se, cada um tinha deixado
os seus afazeres para ouvir o que o príncipe desejava. Após algum tempo todos
pareciam estar presentes, pois o chifre silenciou, em seu lugar ouvia-se a voz de grande
alcance de um homem, que subiu numa plataforma de pedras empilhadas.
“O príncipe Fong comunica a vós, ó homens, que é necessário combater os animais
predadores que parecem ter-se multiplicado enormemente, causando grande prejuízo
aos nossos rebanhos.”
Um murmúrio surdo perpassava as fileiras dos ouvintes.” Apesar de os nossos
pastores terem recebido a ajuda de uma escolta,” continuou o palestrante, “não lhes é
possível defender-se das pilhagens noturnas. Mas o que ainda é pior, nos chegam
notícias de assaltos aos assentamentos em direção ao nascer do sol, contra os quais as
mulheres e crianças são impotentes.” O murmúrio intensificou-se, exclamações
indignadas fizeram-se ouvir, algumas mãos se ergueram.
“Deve ser prestado auxílio imediato e uma expedição guerreira deve ser
empreendida contra os bandidos”
Subitamente levantaram-se as cabeças dos homens, seus membros se aprumaram:
uma expedição guerreira, isto era uma notícia bem-vinda!
“O príncipe Fong manda convocar-vos, ó homens. Não deveis acompanhá-lo
obrigados, isso deve acontecer voluntariamente. Também não devem participar desse
grupo os anciãos e nem os jovens, pois será um empreendimento sério que exige
valentia. Devem ficar também aqueles cujo cargo assim o exige. Voltem para casa e
decidam quem quer atender ao chamado. Voltem aqui hoje antes do anoitecer.”
O anunciante deixou a plataforma e foi imediatamente circundado pela multidão
excitada. Cada um parecia ter perguntas: “Em que direção seguiria o grupo, se o
príncipe os acompanharia, quem deveria ser considerado jovem e muitas coisas mais.
Inicialmente o homem deu respostas pacientemente, quando a afluência das pessoas
aumentou, ele se desvencilhou.
“Miang, onde está Miang,” gritou ele por sobre as vozes agitadas. “O príncipe
Fong chama-te. Eu te acompanho.” Rapidamente Miang dirigiu-se para perto dele.
Juntos abriram caminho por entre a multidão que se debandava em vários grupos.
“Achas, Hang, que o príncipe irá levar-me junto”? perguntou excitado. O outro o
olhou, detendo os passos por um momento, e levantou a mão, indeciso.
“Isto ninguém pode prever,” foi sua resposta.
“Se tu fosses um de nossos jovens eu não teria dúvida, mas contigo ele tem algo
especial em mente. No entanto, receberás tua resposta imediatamente,” acrescentou
Hang sorrindo, “lá adiante vejo o príncipe nos aguardando.”
Em frente a uma grande bonita tenda estava Fong, a cujo aspecto totalmente
modificado Miang teve que se acostumar sempre de novo. Não eram somente as suas
pomposas vestimentas que tornaram a sua figura extremamente imponente, também não
somente a expressão de seu semblante, mas pairava uma altivez sobre o seu antigo
companheiro, que parecia excluir qualquer intimidade. Miang sentiu-se incapaz de
aproximar-se de Fong da maneira habitual. Extintos pareciam os últimos dias de
deliciosa amizade na selvagem região montanhosa. Também agora o jovem aproximou-
se com profunda reverência ao que o aguardava e esperou que ele lhe dirigisse a
palavra, mesmo que tudo dentro dele o impelia a falar e perguntar. Se tivesse levantado
o olhar, deveria ter notado o olhar paternal de Fong sobre ele.
“Miang, mandei chamar-te,” iniciou ele, “porque tenho assuntos importantes para
tratar contigo. Como foste informado, eu devo partir amanhã com os meus súditos
contra os animais ferozes.”
Interrompendo-se involuntariamente, notou como o semblante de Miang cobriu-se
com palidez mortal. “O que tens?” exclamou assustado.
“Meu pai também partiu e nunca mais voltou,” respondeu Miang impetuosamente.
“Isso não é motivo de supor que eu também não retorne,” sorriu Fong
amavelmente. “Então ao menos deixe-me acompanhar-te,” irrompeu do jovem.”Mas já
percebo que queres dizer não. Falaste dos teus súditos. Eu sou o estranho que toleras
com bondade, mas do qual tu não necessitas!”
Fong tentou em vão interromper os palavras que brotavam. Somente quando o
exaltado parou para respirar, foi-lhe possível dizer com voz firme, amigável: “Estás
num caminho errado, Miang, que levar-te-á ao emaranhado de velhos erros. Eu havia te
escolhido para guiar o povo na minha ausência. Porém, quem não é capaz de controlar-
se a si mesmo, não pode guiar outros.”
Suspirando em silêncio, afastou-se e deixou Miang sozinho, uma presa dos mais
conflitantes sentimentos. Decepção, vergonha, arrependimento clamavam no peito de
Miang. Teve vontade de fugir para a solidão, sentiu-se, porém, preso a este local, do
qual tinha que observar como Lung, um homem mais idoso, prudente, foi chamado pelo
príncipe e provavelmente incumbido com a representação. Depois viu os preparativos
para a caça e a dor de talvez perder Fong sobrepôs-se a todas as outras vozes.
E com esse medo na alma arrastou-se até a sua tenda e jogou-se sobre o seu leito de
peles. Hora após hora passou, ele não o percebeu. Quando olhou ao redor, o breve
crepúsculo já havia chegado e a lua quase cheia enviou a sua luz prateada por sobre a
paisagem.
Agora a reunião certamente já havia começado. Miang assustou-se, entretanto,
consolou-se com o fato de que o príncipe havia recusado a sua participação no grupo.
Assim também era supérfluo nos preparativos. Mas a partida dele, queria e precisava
ver!
Saiu de sua tenda e esgueirou-se até a tenda de seu antigo companheiro. Esperou
por longo tempo, depois, ruídos confusos, vozes, o fungar dos cavalos indicaram o
encerramento da reunião. Agora o príncipe deveria aparecer.
Miang queria tentar obter alguma tarefa para o período da ausência. Se pedisse
humildemente, certamente Fong não recusaria. Mas o que foi isso? O ruído vindo do
local de reunião afastava-se mais e mais. Não havia dúvida, o grupo tinha se formado e
estava partindo a galope!
Aniquilado, Miang ficou parado ao lado da tenda, estremecendo de agitação
interior. Fong havia partido, talvez para nunca mais voltar! Fong novamente o havia
rejeitado! O que havia dito para zangar o nobre? Quando, desesperado, se fez essa
pergunta, ouviu dentro de si o eco de suas próprias palavras tolas e a resposta severa,
repreensiva, do príncipe entremeado à chamada de Hila, como canto de pássaros:
“Procura teu erro!”
Envergonhado esgueirou-se novamente para sua tenda, jogou-se de joelhos diante de seu leito e implorou ao
Altíssimo por clareza, para reconhecer seu erro e o seu caminho, por força para finalmente trilhar esse caminho!

Por longo tempo permaneceu absorto, nenhum ruído o atrapalhava, de modo que
finalmente adormeceu. Pareceu-lhe, então, que viu um homem muito jovem num
caminho solitário. Este caminho era estreito, mas de grande beleza em meio a uma
paisagem selvagem com todo tipo de perigos iminentes. Às vezes a subida era íngreme,
então o caminhante parava, como se tivesse dificuldade de respirar, porém, não olhou
para trás. Somente agora Miang percebeu que os olhos do homem estavam fechados.
Mas então era surpreendente que esse jovem conseguia caminhar de modo seguro.
Ainda enquanto Miang considerava isso, viu o caminhante tropeçar, mas antes que esse
pudesse cair, ele foi agarrado de cima por uma mão muito grande, luminosa, que
empurrou-o novamente sobre o caminho seguro. Isso repetiu-se várias vezes. Quando a
mão então novamente quis colocá-lo no caminho certo, o homem abanou a cabeça
negativamente. Ele começou a apalpar as imediações e fez tentativas de trilhar um
caminho diverso do indicado pela mão auxiliadora. Miang ficou impaciente.
“Deixa-te guiar, pois tu mesmo estás cego!” gritou para a figura do sonho. Este,
porém, tinha se demorado muito tempo com a procura. Nisso havia perdido o caminho
até então trilhado, tinha chegado a um declive úmido, coberto de musgo e escorregou
irresistivelmente rumo ao precipício.
Miang acordou com um grito. O que aconteceu? Nitidamente ainda via o jovem
resvalar e deslizar pelo caminho escorregadio em direção ao abismo. Ficou com medo.
Subitamente sabia que era ele o jovem! O Altíssimo não o havia conduzido até agora,
assim como ele o havia visto agora? Ele nunca soube para onde o seu caminho o
conduziria, também não o sabia agora. Só uma coisa estava certa. O Altíssimo o
mandava conduzir com mão firme. Ele só deveria deixar-se conduzir.
Era isso! Agora caiu-lhe a venda dos olhos. “Deixar-se conduzir,” isto ele tinha que
aprender, isto era o mais importante, pois ele não conhecia o caminho até o Altíssimo!
Mas como devia fazer isso, se deixar conduzir? “Não ter vontade própria,” murmurou
uma voz dentro dele. Sim, o que foi que ele queria? O que não havia estado de acordo
com a vontade do Altíssimo?
Então, novamente viu Fong diante de si, Fong, que até agora o havia instruído e
conduzido a mando do Altíssimo. Sim, a mando do Altíssimo! Isto Miang havia
esquecido. Ele mesmo queria decidir, interferir. E agora? Encontrava-se ele realmente já
diante do abismo? Com perigo de precipitar-se?
Calor percorreu as suas veias. Nenhum passo deveria seguir nesse caminho, que o
levava ao perigo máximo.
“Ó, Todo Poderoso,” irrompeu dele, “quero tornar-me Teu servo, ajuda-me para
que não venha a desviar-me do caminho, que devo trilhar até junto a Ti!”
Não agüentava mais ficar dentro da tenda, correu para o ar livre.
A lua estava no alto do céu, mas a Miang parecia que algo o chamava e o puxava
mais longe para a natureza. Era Hila, que o chamava?
Aqui fora estava claro que nem dia. A luz da lua pairava prateada sobre cada pedra,
cada palhinha de grama. Em pensamentos profundos caminhava Miang meio
inconsciente para diante. De repente, seu pé esbarrou numa pedra saliente. Ele tropeçou,
quase caiu. Levantou o olhar fixado no chão. Então viu algo que até então nunca havia
visto. Uma figura envolta em luz encontrava-se diante dele, sorriu para ele.
Estupefato Miang olhou para o milagre.
“Quem és tu?” balbuciaram seus lábios.
“Teu amigo,” veio cristalina a resposta.
“Meu amigo? Mas eu não te conheço!”
“Realmente não, Miang?” tinia novamente tão cristalino, tão amável até ele.
Então parecia como se um véu se rasgasse diante de seus olhos. Ele olhou nos
olhos da figura e então veio-lhe uma recordação, que ainda não conseguia compreender,
captar.
“Não continua procurando por ora,” ordenou o desconhecido. “Escuta-me, Miang.
Eu sou teu amigo, já lhe disse. O Altíssimo enviou-me para ajudar-te. Diga-me em que
posso te ajudar.”
Fervorosamente irrompeu de Miang: “Ó, Todo Poderoso, eu Te agradeço!
Maravilhosamente escutaste o meu rogo! Eu Te agradeço!”
Então dirigiu-se ao estranho:
“Eu não sei mais o que devo fazer, para me tornar um servo do Altíssimo, e mesmo
assim sei que devo sê-lo!”
“Tu fazes demais!” disse ele, calando-se novamente.
Perplexo, Miang olhou para ele. Não deveria fazer mais nada? Mas Fong não teve
que transportar pedras, a mando do Altíssimo, e ele não teve que ajudá-lo nesse
trabalho, por ordem do Altíssimo?
Parecia que o luminoso lia todos os pensamentos que perpassavam Miang.
“Trabalhar deves, deves movimentar tuas mãos. Muito trabalho te aguarda. Mas
deves fazê-lo como servo, em obediência ao teu Senhor, não rebelar-te e querer saber
melhor.
Ontem Fong quis confiar-te a condução de sua tribo. Tu, porém, só estavas cheio
de medo de que Fong pudesse expor-se ao perigo e nele sucumbir. Procuraste
medrosamente retê-lo, e mesmo assim, era o seu dever de partir e livrar o seu povo da
praga das feras. Não sabias tu que Fong é um servo do Altíssimo e somente atua
conforme as Suas ordens? Considera, opuseste-te ao Altíssimo, não a Fong!”
Totalmente perplexo escutou Miang essas palavras. Agora a névoa em seu interior,
que tudo tinha encoberto, se afastava. Sentia vergonha.
Miang caiu numa introspecção tão profunda que nem se deu conta que estava
novamente sozinho. A alvorada já se aproximava e ele continuava refletindo absorto.
Inconscientemente prosseguira, encontrando-se repentinamente junto ao pequeno
riacho, onde sabia que estava Hila, a ondina. Perpassou-lhe o pensamento – deveria
chamá-la?
Antes mesmo de chegar a uma decisão, repartiram-se as ondas e o rosto travesso de
Hila apareceu.
“Como é, servo do Altíssimo, encontraste o teu erro?”
“Sim” exclamou Miang alegremente. Um peso enorme lhe foi tirado do coração.
“Eu o vejo,” confirmou Hila, “e fico feliz com isso.”
Ela acenou para ele e, antes que ele conseguisse responder algo, havia
desaparecido. Agora, porém, Miang não mais se deteve ali. Voltou rapidamente,
rogando em silêncio que lhe fosse mostrado o que tinha que fazer. Ainda não havia
alcançado a sua tenda, quando encontrou um mensageiro, que alegremente exclamou:
“Que bom, que te encontro! Trago-te uma mensagem do príncipe Fong. Aqui está
ela.”
Postou-se com as pernas abertas diante de Miang e repetiu devagar e claramente as
palavras, como Fong o tinha encarregado.
“Diga ao meu filho Miang, que não continue inativo em sua tenda. Ele deve ir e
procurar aquele trabalho que está destinado a ele. Quem procura seriamente, esse
encontra.”
“Entendeste a mensagem, jovem?” perguntou o mensageiro, e Miang acenou
afirmativamente. “Então está bem.”
Sem mais uma palavra, o mensageiro deu as costas e prosseguiu seu caminho.
Miang, porém, não sabia bem o que fazer. Onde deveria procurar o seu trabalho? Ele
estava disposto, mas não sabia onde devia começar. Entretanto, o que havia aprendido
esta noite? “Deixar-se conduzir, nada querer sozinho.” Assim ele queria agir.
Silenciosamente rogou ao Altissimo:
“Altíssimo, permita que reconheça o que devo fazer!”
Então, continuou caminhando devagar. Diante de si estava o amplo vale, no qual a
tribo amarela armara as suas tendas. O sol agora já havia nascido e viva atividade via-se
ao redor das tendas. As mulheres assavam pão sobre pedras aquecidas. Crianças as
rodeavam e se deliciavam com o aroma que dali emanava. Muitos dos homens haviam
partido, porém, ainda havia número suficiente. Eles tratavam dos cavalos, e mais
distante, nas verdes encostas, via-se rebanhos de ovelhas com seus pastores.
Miang ponderava, indeciso, para onde deveria dirigir seus passos, quando uma
menininha correu ao seu encontro. Estava tão apressada, que esbarrou nele e ele a
amparou em seus braços.
“Para onde vais com tanta pressa, pequena menina?” perguntou Miang rindo.
Séria, a pequena respondeu, tirando os seus densos cabelos escuros do rosto: “Devo
buscar ajuda, meu pai está doente. Sente dores, queixa-se e geme.”
“A quem querias pedir ajuda, pequena?” perguntou Miang.
“Husa, a anciã, ela possui ervas curativas. Mas agora deixa-me ir embora.”
E a pequena soltou-se e correu rapidamente até a próxima tenda.
Miang a seguiu com o olhar. A criança era graciosa e muito séria para sua idade.
Não demorou muito e A-na retornou, seguida por uma anciã curvada, que levava uma
sacola na mão. Essa devia ser Husa. Ficando curioso, Miang seguiu as duas até a tenda,
não muito limpa, na qual o pai de A-na estava revirando-se no seu leito, gemendo.
Husa não perdeu muitas palavras. Ordenou A-na a esquentar água. Então preparou
um chá, o qual o homem teve que engolir. Parecia, porém, que também esse chá
medicinal lhe trazia pouco alívio.
Silenciosamente, Miang havia entrado na tenda atrás da anciã. O aspecto aqui não
era bonito. Havia sujeira por todos os lados. Panos sujos estavam no chão, havia louça
com restos de comida e o ar estava abafado e fumacento. Miang quis recuar arrepiado,
mas uma voz dentro dele disse: “Fique!” Então, permaneceu bem quieto e observou
como a anciã debruçou-se sobre o doente, dando-lhe para tomar o chá medicinal. Ele
engulia, mas não parava de gemer. Entretanto, não foi possível determinar o que lhe
faltava. À pergunta da anciã, onde sentia dores, ele respondeu queixoso: “Estão em todo
meu corpo e me beliscam como os diabos de fogo.”
“Diabos de fogo?” perguntou Miang admirado e aproximou-se um pouco. “O que é isso?”

“Ora, os pequenos diabos que vivem no fogo e que comem a madeira,” respondeu
Husa calmamente. Para ela, isso não parecia ser algo fantástico. Miang, porém,
admirou-se, ele não sabia o que era um “diabo”. Por isso continuou perguntando: “E o
que são diabos?”
Medrosamente os dois outros olharam ao redor. “Quieto,” respondeu Husa e pôs o
dedo sobre os lábios. “Isso não se deve falar em voz alta, senão eles vêm e podem nos
prejudicar. Mas vou dizer-te no ouvido, para que possas resguardar-te, jovem
forasteiro.”
E com voz rouca falou baixinho ao seu ouvido: “Diabos são entes maus, eles
tentam destruir as pessoas.”
Miang admirou-se. Ele nunca encontrou tais entes.
“E eles vivem no fogo?” continuou perguntando incrédulo. “Não somente no
fogo,” cochichou a anciã, “estão em toda parte, no ar, na água.”
“Pare!” exclamou Miang, “na água não vive ente ruim, isso eu sei com certeza. Eu
tenho visto a bela figura enteal que vive na vossa água! Ela é Hila, e ela quer bem a nós
seres humanos.”
Agora, a vez de admirarem-se era de Husa e do doente, que com essa novidade
quase esqueceu suas dores. Também A-na, que timidamente tinha ficado no fundo da
tenda, deu um passo para diante. Miang, porém, feliz, sabia de repente: aqui havia o que
fazer para ele.
“Posso sentar-me junto de vós?” perguntou amavelmente, e ambos pediram:
“Sim, senta-te junto de nós e conta-nos dos entes bons das águas.”
Com todo prazer Miang começou a contar o que tinha vivenciado com Hila e
Hima e como o ajudaram e o bem que lhe fizeram, como serviam ao Altíssimo.
Boquiabertos, Hisor, o pai de A-na, e Husa escutavam. Inacreditável era essa notícia e,
no entanto, o forasteiro falava disso com tanta certeza. E quando descreveu como eram
lindas e alegres as pequenas ninfas, estampava-se alegria nos rostos dos ouvintes.
“Sinto-me mais aliviado, desde que me contaste isso, forasteiro,” disse Hisor.
“Chamem-me Miang, este é o meu nome,” pediu o jovem. “Querem ouvir mais dos
bons entes, que são servos do Altíssimo?”
Com grande alegria Hisor e Husa concordaram. E Miang contou dos enormes
gigantes, de Uru e Muru e de sua fiel ajuda, como o conduziram até o príncipe Fong, e
como são diligentes servindo ao Altíssimo.
O espanto dos ouvintes aumentava. Tudo era novo para eles, nunca haviam
escutado algo igual. Hisor esqueceu-se de suas dores. Quando um raio oblíquo do sol
entrou na tenda, Husa sobressaltou-se.
“Tenho que voltar para casa,” exclamou ela. “Mas tu voltarás, Miang?” pediu ela,
“e continuarás nos narrando?”
Miang prometeu-o com alegria. Aqui, pois, havia encontrado o trabalho que devia
executar. E o mesmo havia sido conduzido até ele, não tinha sido ele que o desejara.
“Eu voltarei amanhã, para ver como vai Hisor,” prometeu. E Husa acrescentou
solicitamente: “E eu trarei novas ervas ainda melhores.”
Pois ela queria estar presente quando Miang contasse.
Já cedo no outro dia, Miang pôs-se a caminho. Mal podia esperar para continuar o
seu trabalho. Hoje o enfermo estava deitado bem quieto no seu leito. Parecia que estava
melhor.
“Como te sentes hoje, Hisor?” perguntou Miang amavelmente. E Hisor ergueu-se o
melhor que pôde e disse, contente:
“Então vieste mesmo, Miang? Como estou contente. Eu receava que te seria
incômodo visitar-me. Não é bonito aqui,” acrescentou lamentando. “Minha mulher
morreu, e A-na ainda é muito pequena para deixar tudo em ordem.”
Sim, isto dava para perceber. Timidamente A-na olhava do canto do fogão para
Miang. Ela se envergonhava e pretendia esforçar-se pondo ordem na tenda, pois ela
também queria muito que o forasteiro viesse e contasse.
“Como é, os diabos do fogo não te beliscaram mais?” perguntou Miang e riu
alegremente.
Este riso espantou o último resto de medo na alma de Hisor, de que talvez ainda um
diabo pudesse estar na proximidade para prejudicá-lo. Respirou como que aliviado e
juntou seu riso ao de Miang. Como isso fazia bem! Ele sentiu como estava melhorando
novamente.
“Quando estás comigo, Miang, então não sinto medo,” disse ele admirado e olhou
para o jovem. Qual seria o motivo disso? Escutaram passos lá fora e apressadamente
entrou Husa, novamente com uma sacola na mão.
“Já estás aqui, Miang?” exclamou contente. “Então quero preparar rapidamente o
chá de ervas, para que passem as dores de Hisor, e depois tu continuas contando, não
é?”
E assim aconteceu, e resposta seguia à pergunta e nova pergunta seguia à resposta.
Miang não sabia o quanto havia para contar dos gigantes e dos homenzinhos das pedras,
de Hila e Hima. O tempo passou voando.
“Agora deve ser preparada a comida,” disse Husa e, ainda cheia de felicidade sobre
o recém ouvido, tratou de ajudar A-na, que se esforçava a acender um fogo, no simples
local de fogo aberto.
Miang ficou observando, perdido em pensamentos. Como ele era rico, porque o
Altíssimo havia aberto os seus olhos para poder ver os servos fiéis, e dessa riqueza ele
agora queria dar aos seres humanos. Era isso que o Altíssimo agora exigia dele. Dessa
forma ele podia ajudar, servir. Miang estremeceu: Servir? Tornou-se com isso também
um servo do Altíssimo? Como uma corrente de fogo perpassou-lhe esse
reconhecimento. Quase caiu de joelhos, pelo excesso de felicidade, para agradecer ao
Altíssimo.
Soou então a clara voz de criança de A-na: “Vejam, os diabos do fogo!”
O fogo ardia resplandescente e, quando Miang olhou, ele também descobriu os
pequenos entes saltitantes nas chamas. Assustada, A-na queria esconder-se atrás de
Husa, porém, Miang pegou-lhe na mão e puxou a criança para a frente.
“Observe,” disse ele, “como são bonitos! E o que é belo não pode ser mau. Veja,
eles ajudam o fogo para que queime e nos esquente e nos prepare os alimentos! Vamos
escutar, o que nos têm a dizer”.
Como que paralizados, olhavam agora os quatro para as chamas, todos viam as
figuras palpitantes dançando, mas já não sentiam mais medo delas. E a Miang parecia
ouvir um fino tinir vítreo, sons delicados, que se juntaram para formar as seguintes
palavras:
“Também nós servimos ao Altíssimo, nós estamos felizes que isso nos é permitido!
Sirvam vós também!”
Longamente Miang escutava, até que o fogo se extingüiu, depois dirigiu-se aos
demais e contou o que tinha escutado. Surpresa tomou conta dos ouvintes. E Miang não
se cansou em responder todas as perguntas, pois esta vivência causava-lhe também a
maior alegria. Era-lhe permitido servir! Toda a aflição e todas as perguntas e procuras
dentro de si haviam desaparecido; preenchia-lhe uma alegria que fez estremecer o seu
íntimo.
Quando o sol novamente lembrou Husa de suas obrigações, Miang também queria
despedir-se. Mas Hisor pediu: “Fique mais um pouco, Miang, eu também quero contar-
te algo.”
E Miang permaneceu e escutou o relato de Hisor. A esposa de Hisor morreu de
uma febre violenta e deixou-o com A-na sozinho. Desde então ele não estava bem. A-na
somente sabia preparar as comidas mais básicas e tinha dificuldade em exercer as outras
tarefas. E agora, Hisor ainda ficara doente e não podia cuidar de seus animais, das
ovelhas e dos cavalos.
“O que achas, Miang,” perguntou um tanto hesitante, “será que há também entes
bons, que me ajudariam? Eu não posso ir até os teus gigantes para pedir-lhes ajuda, pois
eu nem os encontraria.”
Em suas palavras suplicantes havia um rogo não expresso. E Miang pediu ajuda no
seu íntimo. Ele viu a penúria de Hisor. Tinha muita vontade de ajudá-lo, mas era
homem e aqui só poderia ajudar uma mulher.
“Vamos pedir ao Altíssimo para que te envie ajuda,” disse Miang confiantemente,
e levantou as mãos e rezou fervorosamente: “Altíssimo, Tu vês a penúria de Hisor. A-na
ainda é muito pequena. Ajude-o, ele quer esforçar-se para fazer tudo o que dele exigires.
Os olhos de Hisor estavam fixados nos lábios de Miang durante essa curta prece, e
nas últimas palavras abanou a cabeça, afirmando com veemência. Ele estava disposto a
fazer tudo o que Miang exigiria dele. No dia seguinte, Miang novamente compareceu na
tenda de Hisor, porém, não veio sozinho. Ao seu lado caminhava uma mulher que,
assim que entrou na tenda, começou naturalmente a pôr ordem nas coisas. Hisor
observava boquiaberto este milagre e Miang sorriu. Depois, porém, relatou a Hisor o
que entrementes havia acontecido.
Ontem, quando regressou, encontrou essa mulher em frente à sua tenda, sentada
numa pedra. À sua pergunta de quem ela era, respondeu: “Eu procuro Miang, o servo do
Altíssimo.”
Imensamente surpreendido, Miang escutou essas palavras e perguntou-lhe o que
dele queria. Então a resposta dela foi: “Meu nome é Hirsa. O Altíssimo manda-me em
teu auxílio. Não continue perguntando, mas diga-me o que devo fazer.”
Então Miang contou-lhe, que acabou de pedir ao Altíssimo ajuda para Hisor.
Agora, sua prece foi atendida tão rapidamente, mal podia acreditar. Mas Hirsa falou as
poucas palavras:
“O Altíssimo é sábio.” Com isso, para ela tudo estava dito.
Hirsa ficou agora junto a Hisor, cuidava dele, e suas mãos eram maravilhosamente
leves. Cantando baixinho, pôs ordem em tudo na tenda, limpou-a, preparou a comida e
cuidou de A-na. Cada manhã ela voltava e, ao pôr do sol, desaparecia.
“Para onde sempre vais, Hirsa?” perguntou Hisor certa noite, quando novamente
quis desaparecer, após curto cumprimento.
“Isto não devo dizer-te, Hisor,” foi a resposta. “Mas eu voltarei e cuidarei de ti, até
que novamente encontres uma esposa.”
Tão feliz Hisor nunca havia estado em toda sua vida. Parecia que tinha entrado
claridade em sua tenda, antes tão escura e suja, que agora brilhava de limpa, tão logo
Hirsa chegava. Hisor rejuvenescia a cada dia. Os vizinhos, porém, pergutavam curiosos,
se tinha uma nova esposa.
“Não,” respondeu Hisor seriamente. “Hirsa me ajuda, mas não é minha esposa.”
Hisor gostava de olhar as chamas levantando-se em labaredas e observava os entes
do fogo. Às vezes parecia-lhe que podia ouvir seu canto:
“Nós servimos ao Altíssimo.”
Miang muitas vezes ainda retornara à tenda de Hisor. E logo também juntaram-se
vizinhos, que ouviram falar de que Miang sabia contar tão bem dos muitos entes no
fogo, na água e nas montanhas.
A tribo de pastores do príncipe Fong era um povo rude, endurecidos pela sua vida
nas montanhas. Mas também havia pessoas distintas entre eles, que possuíam grandes
rebanhos e que pagavam aos mais pobres pelo trabalho como pastores. Reinava boa
ordem na tribo amarela, regida há muito tempo pela estirpe de Fong.
O tempo em que Fong estivera ausente chegou ao fim. Certa tarde ecoaram
cornetas e via-se o grupo de cavaleiros retornarem para o amplo vale, e Fong na
dianteira. Grande júbilo recebeu os que retornaram. Todos saíram apressadamente das
tendas e aglomeraram-se para cumprimentar alegremente os caçadores. Tinham feito
muitas presas, notava-se isso pela grande quantidade de peles que traziam. Isso
provocou nova alegria, sabendo-se que a caça teve êxito e que a praga fora eliminada.
Também Miang havia saído de sua tenda e aguardava a chegada do grupo. Esperou,
porém, até que se aproximassem. Então foi ao encontro de Fong e cumprimentou-o. Um
curto olhar do príncipe tangeu-o.
“Eu te aguardo em minha tenda.”
Este foi o cumprimento de Fong e Miang curvou-se levemente em sinal de sua
disposição. Fong mal havia se sentado no seu leito de repouso, quando Miang solicitou
ser recebido. Ele não podia aguardar, queria apresentar-se ao príncipe e relatar-lhe o que
entrementes havia vivenciado. Ele esperava que Fong iria questioná-lo a respeito, mas
nada disso aconteceu. Fong indicou um lugar ao seu lado e falou sucintamente: “Tenho
que falar-te.”
Miang olhou para ele na expectativa. Não se atreveu a perguntar.
“O Altíssimo deu-me uma missão para ti, Miang,” disse Fong, e bondade vibrou
em suas palavras, o que emocionou Miang profundamente.
“Tu deves ir agora até uma outra tribo, amiga nossa, e levar ao príncipe de lá uma
mensagem minha. A tribo, chama-se a tribo dos Waringis, mora além da longa cadeia
de montanhas, no sul. Ainda não deves ter ouvido falar dela. São pessoas boas, mas
rudes e ignorantes e é vontade do Altíssimo, que leves a elas o saber Dele e de Sua sábia
condução. Tu, entrementes, já começaste a servir ao Altíssimo,” acrescentou Fong,
sorrindo.
Miang queria levantar-se bruscamente para expressar a sua alegria. Um olhar de
Fong , porém, o deteve. Não, não queria recair em seu velho erro da impetuosidade. Por
isso dominou-se e somente disse: “Eu obedecerei. Quando posso partir?”
Fong olhou com agrado para o jovem, que visivelmente tinha se modificado para
melhor durante a ausência de Fong. Tinha se tornado mais seguro e mais calmo. Agora
ele poderia começar com a sua nova e mais ampla missão.
“Amanhã cedo estará à tua espera um acompanhante, que te mostrará o caminho
até os Waringis,” disse Fong brevemente.
Com isso Miang estava dispensado. Com nenhuma palavra conseguira perguntar
pelo sucesso da caçada. Agora, também não tinha mais importância para ele, estava
ocupado demais com a nova missão. O Altíssimo o enviava com uma missão, era-lhe
permitido serví-Lo, podia dar de sua riqueza! Como isso era grandioso! Novamente
Miang, pensativo, dirigiu seus passos até a floresta próxima e, novamente, seu guia
luminoso estava diante dele, no mesmo lugar, e olhou sorrindo para ele.
“Como é, Miang,” disse ele,” agora te é permitido começar a servir, depois que
reconheceste o teu erro e te esforças em corrigí-lo. Sentes-te feliz?”
Miang somente acenou afirmativamente, seu coração estava repleto demais para
responder.
“Porém, deixa-te prevenir mais uma vez, Miang,” continuou o luminoso. “Nunca
aja de acordo com a tua própria maneira de pensar, peça sempre conselho e auxílio ao
Altíssimo, assim tornar-te-ás um verdadeiro servo.”
Depois dessas palavras a figura luminosa desapareceu da vista de Miang. Por muito
tempo continuou caminhando, colocou seus pensamentos em ordem, suplicou por
auxílio para sua grande missão, agradeceu e, finalmente, voltou alegre e feliz.
Cedo no dia seguinte – recém o sol aparecia atrás das montanhas no leste – Miang
escutou um leve sinal de guizo em frente a sua tenda.
Quando saiu, encontrou ali dois cavalos ricamente encilhados, um carregado com
provisões, o outro sem cavaleiro. Sobre um terceiro estava um homem, que olhava para
Miang com expectativa.
“És tu o meu guia até os Waringis?” perguntou Miang, e o homem confirmou.
“Sim, o príncipe Fong o ordenou. Podemos partir”.
“Não devo despedir-me de Fong?” perguntou Miang, mas seu acompanhante
negou.
“O príncipe não está disponível agora, encontra-se numa reunião. Devemos partir
sem demora.”
Para Miang não havia mais nada a fazer a não ser obedecer. Irrompia um lindo dia,
dourado levantou-se o sol e uma manhã de outono tão clara, como somente as
montanhas podem presentear, preencheu o coração de Miang com grande alegria. Os
dois dirigiram seus passos para o sul. Tudo aqui era estranho para Miang, como era
estranho para ele ainda toda a região, a vida entre tanta gente. Os dois viajantes
avançavam pela manhã, fresca de orvalho, adentro. Parecia a Miang como se nunca
tivesse vivenciado ainda um dia tão lindo. Será que era por isso que se sentia tão leve e
o seu coração batia tão contente? Ainda não sabia o que o esperava entre a tribo
desconhecida, sabia somente que se dirigia para lá a mando do Altíssimo, e isso era a
sua felicidade e a sua alegria.
Seu companheiro era de poucas palavras. Aparentemente não devia falar sobre os
Warringis. Assim também Miang se calava e podia, desse modo, apreciar melhor a
beleza da região, que percorriam. Tinham subido consideravelmente, mas isso não
afetava as fortes montarias. Avançavam dispostas, hora após hora, sem mostrar cansaço.
Perto do meio-dia repousaram na sombra embaixo de uma rocha saliente, pois aqui nas
alturas o sol ainda queimava forte. Depois, o caminho começou a descer em direção a
um vale montanhoso. Pradarias verdes, com grandes blocos de pedra espalhados,
estendiam-se frente aos olhos de Miang. O verde saturado lhe fazia bem, apesar de aqui
estar tudo ermo e despovoado. Em parte alguma um ser humano, nenhum animal, além
de alguns grandes pássaros, que aos gritos levantaram vôo quando os cavaleiros se
aproximaram.
Ainda mais descia o caminho, ele seguia agora através de um desfiladeiro
selvagem, no qual a água despencava e espumava. A espuma respingava no rosto de
Miang, ele porém riu alegremente. Tudo era novo para ele, tudo lhe parecia maravilhoso
e lindo. No desfiladeiro era escuro e os cavaleiros tiveram que cuidar muito para que os
animais não escorregassem no chão molhado. Repentinamente Miang soltou um grito.
Tinham alcançado a extremidade inferior do desfiladeiro e diante deles estendia-se, na
luz do sol poente que tudo dourava, um largo vale fértil. Parecia tranqüilo, pequenas
nuvens de fumaça, provenientes das moradias, revelavam que aqui moravam seres
humanos. Também, diante das tendas havia pequenas fogueiras, crianças corriam ao
redor, alguns adultos aqueciam suas mãos frias junto ao fogo, pois a noite caía
rapidamente e o frio já era outonal.
“São esses os Waringis?” perguntou Miang ao seu companheiro e indicou para a
linda paisagem.
“Não,” respondeu este e sorriu. Ele sentia o desejo impetuoso de Miang para
alcançar seu destino. “Não, dos Waringis ainda estamos muito distantes. Esta gente
pertence ainda à tribo amarela. Venha, vamos cavalgar até lá para pedir um pernoite.”
De início, uma decepção queria tomar conta de Miang, mas ele dominou-se.
Também não podia ser diferente, pois estavam somente um dia de cavalgada distante da
gente de Fong.
“Quanto tempo deveremos cavalgar até os Waringis?” dirigiu-se perguntando ao
seu companheiro.
“São sete dias de cavalgada,” foi a resposta dele e, com isso, Miang teve que
satisfazer-se.
Assim que se identificaram como enviados do príncipe Fong, os pastores os
receberam com prazer e ofereceram-lhes hospedagem para a noite. E um sono profundo
reanimou Miang, de modo que, na manhã seguinte, acordou com forças renovadas.
Novamente o sol brilhava, e uma alegre luminosidade pairava sobre a paisagem. Miang mal podia esperar até
que mais uma vez subissem nas suas montarias e despediram-se com saudações alegres de seus gentis hospedeiros. E
assim continuava, dia após dia. Quase todos os dias atravessavam mais outra cordilheira, que aqui, uma atrás da
outra, cortavam a paisagem como estreitas fileiras. Sempre de novo, os cumes alegravam Miang, pois
proporcionavam uma visão mais ampla. De noite, assim que o sol se punha, os viajantes repousavam. Algumas vezes
ainda encontraram abrigo junto a pastores, às vezes, porém, tiveram que pernoitar ao relento, num local protegido.

Aos poucos, Kapu, assim se chamava o acompanhante de Miang, ficou mais


comunicativo, somente a respeito dos Waringis calava-se persistentemente. Finalmente,
na manhã do sétimo dia, abria-se novamente um belo e largo vale diante dos olhos de
Miang e ele avistou um grande número de tendas brancas, que se agrupavam ao redor de
uma tenda maior.
“Aqui vivem os Waringis!” disse Kapu e indicou com o dedo para a pequena
cidade de tendas aos seus pés. Afinal, chegaram ao fim de sua viagem! Era para Miang
uma necessidade agradecer ao Altíssimo antes de seguir viagem, ao encontro de sua
missão. Sem se importar com Kapu, ajoelhou-se e orou em voz alta: “Altíssimo, eu Te
agradeço! Agora posso servir-Te. Quero fazer tudo o que de mim, Teu servo Miang,
exigires.”
Quando se levantou, as feições de Miang expressavam alegria.
“Vamos agora até os Waringis, Kapu,” disse ele.
Os dois cavaleiros aproximaram-se da cidade de tendas. Mensageiros, que os
tinham avistado de longe, já haviam anunciado a sua chegada.. Assim, já eram
esperados em frente às tendas. Um cavaleiro veio galopando ao seu encontro e parou-os.
“A quem procurais?” foi a pergunta.
“Eu procuro o príncipe dos Waringis,” respondeu Miang com dignidade.
“Eu tenho uma mensagem para ele do príncipe Fong, da tribo amarela.”
“Esperem aqui!” ordenou o Waringi e voltou para as tendas.
Não demorou muito, ele retornou e acompanhou os dois emissários até a espaçosa
tenda central. Atentamente Miang olhou ao seu redor. As tendas eram construídas de
modo diferente das da tribo amarela e armadas e dispostas de modo diferente. Eram
maiores e mais ricamente ornamentadas, também a ornamenação das armas dos homens
parecia mais rica.
“O príncipe Hador pede para entrar,” disse o Waringi que os acompanhara e abriu a
cortina que cobria a entrada da tenda. Miang entrou sozinho, Kapu permaneceu fora.
Uma figura masculina alta, esbelta, não muito jovem estava à sua frente. Educadamente
Miang inclinou-se diante do príncipe Hador e falou:
“Príncipe, eu sou o emissário de uma mensagem do príncipe Fong. Ele me entregou
esta bolsa para ti.”
A seguir, Miang tirou do bolso de sua vestimenta uma bolsa de couro, bordada com
filetes de couro colorido. Kapu havia-lhe entregue de manhã com a ordem de entregá-la
somente ao príncipe dos Waringis. Hador recebeu a bolsa e observou-a
minuciosamente. Parecia que o exame resultou satisfatório.
“Sim, ela é de Fong, sua marca está aqui,” disse ele. “Permita que eu abra a bolsa.”
Sem esperar o consentimento de Miang soltou a atadura de couro verde e abriu a
bolsa. Uma exclamação de surpresa escapou-lhe: a bolsa estava vazia! O que isso
deveria significar? Olhou para Miang interrogativamente. Este teve um pressentimento,
não, uma certeza, e ele a expressou:
“Escuta, príncipe Hador,” disse Miang, e olhou-o firmemente ao pronunciar as
palavras, “Fong envia-te esta bolsa vazia como presente, para que ela venha a encher-se
aqui com dádivas da sabedoria.”
“Isso eu não compreendo,” exclamou Hador um tanto impaciente. “Explica-te mais
detalhadamete, emissário de Fong!”
“Eu o quero explicar-te,” retrucou Miang, “se quiseres me dar ouvidos com
paciência.”
A curiosidade de Hador estava despertada. Ele indicou para um assento e sentou-se
ao lado. E Miang começou: “Príncipe, tu sabes que a tribo amarela vive feliz e satisfeita
sob a sábia condução de Fong.”
“Sim, isso é verdade,” interrompeu Hador, e havia algo de pesaroso na sua voz, o
que não passou desapercebido de Miang.
“Também a tua tribo poderia alegrar-se da mesma prosperidade,” continuou
sondando cuidadosamente.
Ansioso, Hador olhou para o interlocutor, e Miang continuou: “Fong está disposto
a comunicar-te o segredo de seus sucessos.” Excitado, Hador saltou do seu assento.
“O que dizes, emissário de meu amigo Fong? Continue falando! Trazes-me o
segredo bem guardado? Recompensarei ricamente a ti e a Fong. Estamos sofrendo
muito com assaltos de ladrões de tribos selvagens nômades, de modo que nunca
podemos viver em paz. Sabes tu um meio de mantê-los afastados de nós?”
“Sim,” disse Miang firmemente. “Existe uma proteção, que é mais eficaz do que as
melhores e mais fortes armas, e essa proteção eu posso trazer-vos.”
Novamente levantou-se Hador e percorreu a tenda a passos largos. “Eu tenho que
chamar os meus conselheiros,” exclamou ele e queria bater palmas, como sinal para os
criados. Miang, porém, levantou a mão, contestando.
“Assim não, príncipe,” advertiu ele. “Somente para os teus ouvidos é destinada a
mensagem que eu te trago. Somente quando tomares conhecimento da mesma, esta
poderá chegar aos ouvidos de teus conselheiros.”
Hador deu-se por satisfeito. “Então continua relatando,” pediu ele.
E agora, Miang começou a falar: “Saiba, príncipe, que existe Um que é maior e mais forte do que todos os
seres humanos, nas mãos do Qual se concentra todo o poder.”

“Onde está esse poderoso? exclamou Hador com insistência. “Eu quero procurá-lo
e pedir Sua proteção e Seu auxílio.”
“Isto tu podes fazer,” respondeu Miang alegremente.
E agora ele começou a instruir Hador no saber do Altíssimo. Sempre mais queria
saber Hador, aberta estava sua alma, que já há muito, insatisfeita, tinha procurado o
verdadeiro saber. Como um campo arado para semeadura, assim a sua alma estava
diante de Miang e, a ele, ao pequeno servo do Altíssimo, era permitido espalhar a
preciosa semeadura sobre o mesmo! Grande alegria preenchia Miang e ele deu com
mãos cheias. Finalmente calou-se. Hador estava sentado, perdido em pensamentos
profundos. Neste momento, abriu-se a entrada da tenda, um homem entrou, curvou-se e
falou:
“Príncipe, chegaram emissários que desejam falar-te.”
“Então temos que terminar por hoje,” disse Hador lastimando.
“Mas volte amanhã de manhã e continue me relatando.”
Isso Miang prometeu de bom grado. Então o príncipe mandou o servo conduzí-lo a
uma tenda e tratá-lo da melhor maneira possível como hóspede da tribo.
Muito feliz sobre o início de sua atividade, Miang passou o resto do dia a observar os Waringis. Eles o
agradaram bastante. Estavam vestidos com mais simplicidade que o povo de Fong, muitas vezes estavam sujos e
maltrapilhos. Pareciam não dar muito valor à sua aparência, enquanto que Hador estava ricamente vestido.

Novamente, na manhã seguinte, o príncipe Hador mandou chamar Miang para


junto dele. A aparência de Hador estava diferente, notava-se um profundo vivenciar
interior. Estava mais calmo e tranqüilo, a agitação, que o inquietara ontem, havia
desaparecido. Calmos, sim, comedidos, eram seus movimentos. Novamente pediu a
Miang que se sentasse.
“Temos tempo,” iniciou ele. “Os mensageiros, que ontem nos interromperam, estão
despachados. Uma tribo vizinha, os Aulas, pedem ajuda contra os ladrões e
saqueadores. Um bando de cavaleiros selvagens assaltaram os Aulas de noite e, como
estavam em maioria, conseguiram roubar os seus rebanhos. Agora eles pedem ajuda. O
inverno está para chegar e, com ele, a fome entrará nas tendas dos Aulas. O que
devemos fazer, Miang? Aconselha-me.”
Já no início da narrativa Miang tinha pedido auxílio. Agora sabia qual o conselho
que deveria dar.
“Acolham os Aulas aqui convosco,” disse Miang pausadamente, como se pesasse cada uma de suas palavras.
“Assim vós aumentais a vossa força. Se ajudares os Aulas durante o inverno, eles serão gratos a vós e vos ajudarão
quando um dia estiverdes em perigo.”

Hador refletiu. “Teu conselho é bom, amigo,” disse finalmente.


“Eu farei o que me aconselhas. Achas que o Altissimo estará de acordo se assim
agirmos? Pois eu quero fazer o que Ele aprovaria,” acrescentou meio constrangido.
Miang, porém, alegrou-se. A semeadura da verdade já havia brotado no coração de
Hador. Agora ele podia continuar.
E novamente os dois homens estiveram reunidos por longo tempo. Miang contava e
instruía, Hador absorvia ansiosamente todos os ensinamentos do mais jovem.
Horas se passaram, os dois não perceberam o decorrer do tempo. Um laço da mais
íntima confiança teceu-se entre ambos nessas ricas horas e ligou-os doravante por fiel
amizade. E a quem Hador chamava de amigo, este podia confiar na sua fidelidade e
prestatividade. Por fim, Hador terminou a conversa..
“Temos que parar,” disse lamentando. “Tenho ainda outros negócios. Mas volte
amanhã sem falta, Miang. Então vamos refletir sobre a maneira de como poderemos
transmitir a nova do Altíssimo para toda a tribo.”
E assim aconteceu. Dia após dia conversavam e deliberavam sobre como poderiam levar a verdade do
Altíssimo às pessoas simples. Até agora, a tribo não conhecia um ser superior, ao qual ele adorava e orava. As almas
ainda não estavam acordadas, mas não eram más, não estavam corrompidas.

“Que tal, se primeiramente reuníssemos todos os homens e eu contaria algo sobre


os “entes bons”?” perguntou Miang.
Isso também parecia o melhor a Hador. Assim, a noite foi destinada para isso.
Agrupados ao redor de uma grande fogueira, Miang falava ao rude povo de cavaleiros, e
descobriu-se que muitos deles podiam ver os servos do Altíssimo nas montanhas. Aí
tornou-se fácil para Miang, de encontrar o início. De bom grado ouviram-no os homens,
pois Miang possuía sobremaneira o dom da narrativa. Gostariam de ter ficado ainda
mais. E Miang prometeu voltar na noite seguinte, para continuar narrando.
Assim aconteceu por algum tempo, até que Miang pôde começar a falar aos homens do Altíssimo, de quem
todos estes “entes bons” eram servos. Os Waringis não conheciam o medo de entes” maus”, eles acreditavam que
conseguiriam saber lidar com tudo, se o enfrentassem sem medo. Miang encontrou muitos corações abertos também
entre as pessoas simples e viu brotar a semeadura que lhe foi permitido semear. Agora toda noite era encerrada com
um agradecimento ao Altíssimo e cada manhã iniciada com um pedido por auxílio e orientação.

Miang tentava esclarecer aos homens que eles não somente deviam obediência ao
príncipe Hador, mas antes de tudo ao Altíssimo, pois todos eram criaturas Dele, que os
criou. E isso eles entendiam bem, somente indagaram: “O que Ele nos ordena? Não
conhecemos a Sua vontade”.
Agora podia ser dado o segundo passo. Miang explicou, que o príncipe esforçava-
se por esclarecer-lhes a vontade do Altíssimo e que ele queria proceder segundo a
mesma. Eles somente precisariam seguir às suas instruções. Inicialmente deveriam,
durante o inverno, abrigar os Aulas, que estavam em dificuldades.
Aí, no entanto, houve fisionomias insatisfeitas, pois isso representava escassez de alimentos para todos. Miang,
porém, esclareceu: “Como seria, se vós estivésseis nessas dificuldades? O que vós diríeis se os Aulas simplesmente
vos rejeitassem levianamente?”

Desse ponto de vista o assunto já parecia ser diferente e quando Miang ainda
anunciou: “O Altíssimo vos recompensará, se vós auxiliardes os Aulas,” a maioria deles
deu-se por satisfeita.
A tribo dos Waringis despertava sempre mais no saber do Altíssimo e com bem
outros olhos os homens olhavam para o seu príncipe, que se tornara um servo do
Altíssimo. Seus olhos brilhavam e seus passos tornaram-se ainda mais firmes, as
palavras que proferia, mais determinadas.
Os Aulas foram acolhidos e sustentados pelos Waringis durante o inverno. Não demorou muito e mostrou-se,
que bons frutos essa ajuda abnegada trouxera. Pois no final do inverno, quadrilhas de ladrões empreenderam
novamente assaltos aos rebanhos da tribo, que pastavam em região mais afastada. Como a tribo dispunha agora de
homens suficientes, sempre puderam se defender e não houve prejuízo maior.

Na primavera, depois de celebrarem votos de amizade permanente, os Aulas


partiram para pastagens mais afastadas para criar novos rebanhos. Continuaram, porém,
em ligação constante com os Waringis, os quais prometeram-lhes sua ajuda, caso a
necessitassem.
A missão de Miang junto aos Waringis estava terminada. Certa noite aproximou-se dele o luminoso e ordenou-
lhe que retornasse para Fong, pois este necessitava dele. Miang estava de acordo. Mais uma vez estava ele sentado na
tenda de Hador, que lamentava a sua partida. Miang, porém, prometeu: “Se necessitares conselho e auxílio, ó
principe, envie um mensageiro para o príncipe Fong. Ele o ajudará.”

A despedida foi calorosa, porém curta, como é costume entre homens. Hador deu a
Miang um acompanhamento, que o conduziu em segurança de volta sobre as
montanhas.
Já apareciam os prenúncios da primavera. Os ventos sopravam mais amenos, um
verde tenro cobria as encostas e, aqui e acolá, brotava da terra o cálice colorido de uma
flor.
Miang sentia seu coração tão leve, tão feliz! Ele sabia que tinha cumprido sua
missão e, mais uma vez, agradeceu ao Altíssimo do fundo de seu coração que lhe foi
permitido cumprí-la. O olhar de Fong pairou com agrado sobre Miang, quando este
retornava. Estava mais másculo e mais amadurecido, sua postura mais determinada e
mesmo assim discreta.
“Vejo que tens aprendido alguma coisa com os Waringis,” com essas palavras
cumprimentou Fong seu antigo aluno e protegido. Nenhuma palavra de elogio sobre o
trabalho executado passou pelos seus lábios, mas isso Miang também não esperava.
Tinha somente o único desejo: ser incumbido de uma nova missão. Também não
demorou muito até que Fong o chamasse novamente.
“O Altíssimo está satisfeito com seu servo Miang,” assim iniciou a conversa, para a
qual havia mandado chamar Miang. “Porém, isso foi somente o começo de tuas
atividades. Grandes missões ainda te esperam, Miang, diante das quais a instrução dos
Waringis era somente uma pequena preparação. Mais profundamente deves penetrar
agora no saber sobre o Altíssimo, a Sua vontade e os Seus mandamentos. Para isso
necessitarás de um outro mestre, Miang, eu não posso te ensinar mais nada de novo.
Mas o Altíssimo sabe para onde quer te mandar, para poderes continuar a aprender e
amadurecer. Depois volte para cá, também aqui ainda tens missões a cumprir junto ao
meu povo, onde já começaste a ensinar. O Altíssimo mandará mostrar-te o teu
caminho.”
Miang, totalmente realizado com essa notícia, voltou para sua tenda. Ele sabia que
não devia preocupar-se, não pensar sobre o próximo passo de seu caminho. O Altíssimo
mandava guiá-lo com mão forte, ele somente devia deixar-se conduzir, então tudo daria
certo, então tudo aconteceria conforme desejado de cima, pelo Altíssimo. Novamente
Miang teve que aprender a dominar sua impaciência, seu ímpeto juvenil, pois passaram-
se dias, antes que foram-lhe transmitidos detalhes sobre sua nova missão.
Novamente Fong mandou chamá-lo e indagou: “Como é, Miang, como estás? Já
sabes, o que o Altíssimo exige de ti?”
Miang não o sabia. Começou a sentir vergonha, mas Fong não deixou chegar a
isso.
“O Altíssimo me deu a incumbência de equipar-te para uma longa caminhada,”
disse Fong solenemente. “Tua caminhada será longa, pois servirá para que continues
amadurecendo no reconhecimento da grandeza do Altíssimo e no reconhecimento
daquilo, do que um servo do Altíssimo necessita para tornar-se realmente útil. Deves
aprender agora a abrir teu olho interior e teu ouvido interior, Miang, e é isso que o
Altíssimo exige te ti antes de tudo. Para isso é necessário que aprendas o silêncio, pois
quem quer assimilar mensagens das alturas, não pode expressar suas próprias palavras
em voz alta. Do contrário iriam sobrepor-se às finas vozes dos mensageiros luminosos,
que querem aproximar-se de ti. “Entendeste o que eu disse, Miang?”
Clara e abertamente Miang olhou nos olhos de Fong. “Sim,” disse ele, “eu compreendo e agradeço ao
Altíssimo, que quer honrar-me com Sua bênção.” Fong estava satisfeito.

“Então apronta-te para partires amanhã, Miang,” acrescentou ainda. “Deverás


caminhar a pé, pois necessitarás de cada hora de tua caminhada para o teu
desenvolvimento. Leva tanta provisão quanta puderes carregar, sem te pesar muito, e,
depois, confie no auxílio do Altíssimo, que mandará conduzir-te.”
Uma emoção mais branda quis se apoderar de Fong, quando viu Miang diante de
si, ainda tão jovem, tão intocado pela vida. Porém, sabia que não poderia amolecer.
Assim dispensou Miang com breves palavras.
“Venha me ver mais uma vez amanhã cedo, talvez tenha mais uma mensagem para
ti,” foram suas últimas palavras.
Nessa noite Miang não conseguiu dormir muito. Imagens apareciam diante de seus
olhos interiores, uma seguia a outra, ele não conseguia retê-las. Seres humanos,
montanhas, animais desfilaram diante dele, percebia trajes e sons estranhos. Ele sabia
que isso estava ligado à sua missão, isso lhe bastava. No dia seguinte, ao nascer do sol,
encontrava-se Miang, pronto para a viagem, diante do príncipe Fong. Abençoando este
colocou sua mão direita sobre a cabeça de Miang.
“Siga, Miang, meu filho, para onde o Altíssimo mandar conduzir-te. Teu caminho
segue para sudeste. Tornaremos a nos ver novamente. Leve a minha bênção contigo.”
Profundamente comovido despediu-se Miang de seu velho professor. Ainda não
sabia para onde o levariam os seus passos, sabia somente que o Altíssimo mandaria
mostrar-lhe o caminho, Nele depositou toda sua confiança. E não foi decepcionado.
Quando Miang deixou a tenda de Fong, estava diante dele o seu amigo luminoso e
indicou com a mão para o caminho estreito que levava através do amplo vale até as
colinas distantes, atrás das quais encontrava-se o alvo de Miang.
“Dirija os teus passos para lá, Miang,” disse o luminoso. “Terás ajuda assim que a
necessitares.”
Alegre e fortificado caminhava Miang, distanciando-se da tribo amarela, de seu
protetor, ao encontro de um futuro desconhecido. Mas sentia alegria, nada mais que
grande alegria e feliz expectativa. Parecia a Miang, que não estava indo sozinho para o
desconhecido. Tinha a impressão de sentir leves passos ao seu lado, que agilizavam os
seus, e caminhava alegremente, ora refletindo profundamente, ora expressando palavras
alegres de agradecimento ao Altíssimo.
O caminho estreito serpenteava por entre colinas e paredes rochosas. Sempre de
novo parecia ter chegado ao fim e sempre aparecia de novo diante dos olhos de Miang
após uma curva. Perto do meio-dia esquentou, e Miang resolveu descansar um pouco.
Comeu algo de suas provisões trazidas, depois deitou-se numa encosta ensolarada e
fechou os olhos. Parecia-lhe então como se ouvisse finas vozes murmurando ao seu
redor. Algumas perguntaram: “Como é que esse homem vem até o nosso reino?” E
outras responderam: “Quieto, ele foi enviado. Nós devemos ajudá-lo.” Miang não ouviu
mais nada, pois tinha adormecido. Quando acordou, sentiu frio, pois havia surgido um
vento fresco e já era de tardezinha. Assim, continuou sua caminhada. Tudo era solidão
ao seu redor, silencioso e sem vozes humanas até que, ao entardecer, encontrou
pastores, que permitiram que ele se esquentasse junto à sua fogueira . Admirados
olhavam para o estranho viandante, que era tão diferente deles. Eles acharam que
deviam advertí-lo.
“Forasteiro,” iniciou pausadamente um homem de mais idade, “cuida-te dos
assaltantes que perambulam por esta região. É um bando especialmente perigoso, pois
tem um chefe que não recua diante de nada.”
Miang não mostrou medo. “O Altíssimo irá proteger-me,” disse confiantemente.
Os pastores olharam-no admirados.
“Este deve ser um príncipe muito poderoso, que te protege,” recomeçou o porta-
voz. “Onde ele mora? Nós podemos ir até ele?”
Ali estava novamente o feliz sinal para Miang, de que ele podia dar de seu tesouro
do saber. E o fez de muito bom grado. Calados escutaram os seus ouvintes e não
interromperam sua narrativa com nenhuma palavra. Quando Miang silenciou,
continuaram em silêncio. Inacreditável
parecia-lhes essa nova.
“Quando vos encontrardes alguma vez em perigo, então chamem por Ele!” disse
Miang.
“Poderão vivenciar o Seu poder.”
Caiu a noite. Os homens enrolaram-se em cobertores quentes e deitaram-se para
dormir junto ao fogo que ia se apagando lentamente. Uma lua minguante pálida estava
no céu. Miang demorou a adormecer. Olhava para o céu escuro da noite e o seu interior
procurava Aquele cujo servo lhe foi permito ser. Invisível era o Altíssimo, isto Miang
sabia. Ele era muito elevado para o olho humano, para a razão humana. Mas, não seria
possível ver um pouco de Sua magnificência, de Sua luz? Pois, que ao redor Dele devia
estar a luz, sim, que Ele mesmo seria a luz, isso Miang sabia em seu íntimo.
Sempre quando escutava assim o seu íntimo, começava a surgir um algo dentro dele, que ele não podia segurar,
não podia agarrar. Quando queria examiná-lo melhor, desfazia-se diante de seus olhos.

“Isto não é tua tarefa agora, Miang,” murmurou novamente uma fina voz no seu
íntimo, que já escutara uma vez. “Mais tarde também ser-te-á concedido aquilo por que
anseias. Mas somente quando tiveres cumprido tudo para o que o Altíssimo te necessita.
Não continua procurando agora.”
A voz calou-se e profunda paz envolveu a alma de Miang. Sobre asas macias veio
o sono e carregou-o junto. Levou-o até a altura para onde a sua alma havia ansiado
inconscientemente. Acordou na manhã seguinte fortalecido e alegre. Estava sozinho. Os
pastores haviam partido com seus animais. Mas tinham deixado um pão e um queijo ao
seu lado. Dessa forma quiseram agradecer a ele. Animado, mordeu o duro pão e comeu
o queijo gostoso. Um riacho na proximidade saciou sua sede.
“Assim Tu me deste para comer, Altíssimo, eu Te agradeço!” falou satisfeito e
preparava-se para partir. Nesse instante levantou-se à distância uma nuvem de poeira,
ouvia-se o tropel de cavalos e gritos agudos. Miang esperou calmamente pelo que estava
por vir. Ele sabia que nada iria lhe acontecer, que não fosse da vontade do Altíssimo.
Com grande gritaria veio um bando de cavaleiros selvagens ao seu encontro.
Rodearam-no e desceram de seus cavalos. Um dos bandidos, aparentemente seu líder,
dirigiu-se a ele aos berros: “Quem és tu e de onde vens?”
Calmamente Miang respondeu:
“Sou um peregrino e venho do noroeste.”
“Para onde vais?” quis saber o ladrão.
“Para lá para onde serei enviado,” foi a resposta, que novamente não satisfez o
líder.
“Quem te envia?” foi a próxima pergunta, à qual Miang respondeu com toda a
calma: “Meu Senhor.”
“E quem é o teu senhor?”
Com estalo o chicote de couro batia nas altas botas, bem próximo a Miang.
“O Altíssimo,” foi a breve resposta de Miang.
Ao ouvirem esta resposta todos caíram em altas gargalhadas.
Miang, porém, permaneceu bem calmo.
“Tu até pareces como se tivesses um senhor elevado, rapaz,” riu o líder
ironicamente, que bem viu que não havia nada para roubar de Miang. “Levem-no
convosco.”
Rapidamente ataram os pulsos de Miang com tiras de couro e ele não se defendeu.
Um cavaleiro colocou-o na garupa de seu cavalo e, por bem ou por mal, Miang teve que
acompanhá-los. Não tinha a menor idéia do que iria acontecer com ele, contudo
confiava firmemente na proteção do Altíssimo.
Em galope desenfreado galopava o bando todo, que parecia conhecer aqui cada
palmo do chão. Voavam praticamente sobre o chão plano, depois desviaram para um
desfiladeiro estreito, que aparentemente levava somente a um amontoado de rochas e
deram, então, uma volta fechada ao redor de uma rocha saliente.
Admirado, Miang avistou um amplo vale, onde pastavam grandes rebanhos. Aqui e
acolá havia tendas sujas. Uma delas que, um pouco maior e originalmente mais
ornamentada, parecia ser a tenda do líder. Ao menos ele desapareceu nela e não mais
voltou.
Miang foi levado a uma tenda mais afastada e lá pôde sentar-se. Soltaram-lhe as
algemas e não mais se importaram com ele. Pelo visto, consideravam-no insignificante
demais, para dedicarem-se mais a ele. Pensativo, Miang observou os seus arredores.
Aqui estava ainda pior do que na tenda de Hisor. Isso, porém, não o oprimiu muito. Ele
sabia que aqui tinha que cumprir uma missão, e somente isso importava.
“Toma!” gritou uma voz rude e grossas mãos de homem alcançaram um pedaço de
carne e um pouco de pão para Miang.
Miang levantou o olhar. Apesar do embrutecimento exterior, havia algo de bondoso
nos olhos da selvagem figura.
“Eu te agradeço, amigo,” disse Miang. O outro abanou a cabeça.“Eu não sou teu
amigo, mas deves estar com fome. Permaneça aqui, até que sejas chamado.”
Com isso deixou a tenda, e Miang ficou entregue a si próprio. Seus pensamentos
peregrinavam para longe, procuravam Fong. O que este diria se pudesse vê-lo aqui,
neste ambiente, como prisioneiro, entre ladrões? Miang teve que rir
levemente.Assim Fong certamente não havia imaginado a sua caminhada!
Nesse instante abriu-se rapidamente a entrada da tenda, o “amigo” involutário de Miang apareceu novamente e
ordenou que o acompanhasse. Miang chamou pouca atenção enquanto passavam por entre as fileiras de tendas.
Certamente ocorria freqüentemente que presos fossem trazidos para obter dinheiro de resgate.

Miang encontrava-se novamente diante do líder, que ainda segurava o chicote de


couro na mão direita. Ele examinou Miang minuciosamente, parecia, porém, não poder
chegar a uma conclusão sobre a sua pessoa.
“Qual é a finalidade de tua viagem?” perguntou repentinamente.
Miang hesitou por um momento. O que deveria dizer a esse homem? Ele não o
compreenderia. Aí pareceu como que a resposta lhe fosse colocada na ponta da língua e
sem refletir, Miang deu a resposta: “Eu procuro pessoas.”
“Tu procuras pessoas?” repetiu o líder admirado.
“E como queres encontrá-las aqui nas montanhas? E por que as procuras?”
“Eu as procuro para trazer-lhes tesouros.”
Avidamente brilharam os olhos do ladrão. Miang não tinha a aparência de alguém
que carregasse tesouros consigo, falava, porém, tão firmemente, que o ladrão o intimou:
“Entrega-me os teus tesouros!”
“Isso eu não posso,” foi a resposta de Miang.
“E por que não?” irritou-se o outro.
“Porque são visíveis somente a pessoas com mãos limpas.”
Miang o disse solenemente.
Perplexo, o ladrão olhou-o fixamente e a seguir involuntariamente para suas mãos
imundas.
“Isto eu não compreendo,” disse ele.
“Não, isto tu não podes compreender, pois as tuas mãos não estão limpas. Sujaste-
as com roubo e furto.”
Destemido, Miang proferiu essas palavras graves, o ladrão parecia não se
incomodar com isso.
“Eu gosto dessa vida,” disse impassível. “Eu estou bem, nós buscamos aquilo que
precisamos.”
“E tornam outras pessoas pobres e infelizes,” prosseguiu Miang. “E se viesse uma
tribo ainda mais forte e despojasse a tua tribo da mesma maneira? Como seria isso?”
“Pah,” disse o ladrão e cuspiu desdenhosamente no chão,
“não existe ninguém que seja mais forte do que eu.”
“Estás enganado,” disse Miang e ergueu-se. “Sim, existe alguém mais forte do que
tu, diante do qual tu não és mais do que um grão de areia sob seus pés!”
Surpreso, o ladrão encarou Miang.
“Nunca encontrei ninguem mais poderoso do que eu,” tentava convencer Miang,
mas este não podia calar.
“Tão verdadeiro como o sol se encontra no céu, tão certo existe Um, que é Senhor
sobre nós todos, ao qual todos nós devemos obedecer! Quem se rebela contra Ele, a este
Ele poderá destruir!”
Havia algo na postura e nas palavras de Miang, que não deixava de impressionar
também este coração endurecido. Ele abaixou o olhar diante dos olhos brilhantes de
Miang e disse quase tímido:” E tu conheces este grande Senhor?”
“Sim, eu O conheço e sou Seu servo, não, Seu emissário! Ele enviou-me até aqui,
para advertir-te! Afasta-te do teu erro, senão acabarás mal!”
O ladrão pulou do assento e levantou o chicote. “O que te atreves, forasteiro? Eu
vou te mostrar que ninguém manda em mim!”
O chicote baixou zunindo, mas Miang desviou habilmente e o braço do ladrão caiu
para o lado. Ele mesmo não sabia o que lhe acontecia.
“Tu não podes me fazer mal, se o meu Senhor não o permitir”, disse Miang
calmamente.
O ladrão quis avançar sobre ele, mas o seu pé enroscou-se no tapete que estava
estendido no chão, e ele tombou pesadamente. Parecia que estava ferido, pois não
levantou logo. Miang ajudou-o a se erguer. Constatou-se, então, que não podia firmar o
pé direito no chão, devia estar fraturado .
“Reconheces agora o poder do meu Senhor?” perguntou Miang.
O ladrão olhou fixamente para ele, coisa igual nunca havia vivenciado.
“O que queres dizer com isso?” balbuciou ele. Não era capaz de formular um
pensamento claro. Miang logo aproveitou a ocasião.
“Eu quero dizer que o Senhor poderoso, de quem eu falei e que é o meu Senhor,
mostrou a ti que Ele me protege,” disse.
O ladrão não sabia o que responder. Miang, porém, prosseguiu:
“Se tivesse sido a vontade do Altíssimo, então Ele também poderia ter te matado.
No entanto, não é Sua intenção matar pessoas.
Ele quer melhorá-las, torná-las pessoas melhores, às quais é permitido viver nesta
Terra em alegria e felicidade. Podes entender isso?”
Estupidamente o ladrão olhou para Miang. Tudo aconteceu muito rapidamente, ele
não conseguia assimilar as palavras de Miang. Miang percebeu, que primeiramente
deveria ajudar de outra forma. Ele chamou por auxílio e alguns homens levantaram o
seu líder e colocam-no sobre um leito de peles macias e cobertores, rapidamente
preparado. Ele gemia de dor.
“Chamem o médico!” ordenou Miang aos homens perplexos. “O pé está fraturado,
algo deve ser providenciado imediatamente.”
Um dos homens saiu e, após instantes, voltou com um ancião de barba grisalha, que cuidadosamente examinou
o pé e depois, com habilidade, endireitou o osso fraturado. O enfermo soltou um grito de dor, mas silenciou em
seguida. O pé foi entalado com um sarrafo de madeira e depois enfaixado. Até então tudo estava em ordem. O que
deveria acontecer agora? Por longo tempo Huda, o líder, não poderia subir num cavalo. Quem deveria liderar a tribo
em seu lugar? Olhares interrogativos dirigiam-se ao enfermo, este no entanto parecia não estar disposto a dar uma
resposta.

“Deixem-me sozinho com este aí!” ordenou e indicou com o dedo indicador preto-
marrom para Miang.
Os outros obedeceram, mesmo que visivelmente contrariados. O respeito por Huda
não parecia ser demasiado. Miang porém ficou calado, ele podia esperar. Por longo
tempo houve silêncio na tenda, até que Huda finalmente decidiu quebrá-lo e dar início à
conversa.
“O que disseste há pouco de um grande Senhor?” indagou.
“Como O chamaste?”
Miang alegrou-se sobre esta pergunta, e respondeu solicitamente.
“Seu nome é “o Altíssimo,” porque Ele é mais elevado e mais sublime do que
todos os príncipes da Terra. A Ele eu sirvo e Ele te mostrou, como Ele pode proteger os
Seus servos. Estás agora deitado aqui sem forças no teu leito, incapaz de levantar-te e a
dar um passo sequer. Sentes agora o Seu poder?”
Huda silenciou novamente. Longo tempo considerou sobre a pergunta de Miang.
Depois disse inesperadamente: “Então eu também quero ser Seu servo!”
“Tu acreditas que então estarias também protegido de todos os perigos, e dessa
proteção também gostarias de assegurar-te?”
Huda acenou. Isso parecia ser muito simples. Se existia Um mais forte do que ele,
o rude ladrão, então o melhor seria tornar-se servo desse mais forte. Miang leu os seus
pensamentos na testa.
“Acreditas tu, que ao Altíssimo interessam servos, que Dele somente desejam
exigir algo? O que tu dás a Ele para que Ele te proteja?”
Isso era algo totalmente novo para Huda, que até agora sempre somente tinha
exigido e tomado, nunca dado alguma coisa.
“Se devo alguma coisa a Ele, então diga-me o que devo pagar,” disse ele, e com
isso novamente tudo parecia esclarecido. Uma proteção tão forte resultaria para ele
também em tesouros maiores, portanto, ele bem que poderia prometer em ceder algo
dos mesmos.
Mas Miang novamente deu uma resposta bem inesperada.
“O Altíssimo não quer tesouros de seus servos, exige algo diferente do que um
pagamento em troca!”
“E isso seria?” perguntou Huda ansiosamente.
“Ele exige deles obediência e fidelidade” disse Miang enfaticamente. Obediência e
fidelidade – estes eram conceitos do quais Huda não havia tomado conhecimento em
toda a sua vida.
“Mas o que Ele ordena?” perguntou desconfiado.
Certamente era de ponderar se devia colocar-se sob a proteção desse poderoso. Mas
a dor no seu pé lembrou-o novamente do acontecido.
“Ele ordena que os homens devem ajudar-se mutuamente e não prejudicar-se
reciprocamente. Ele ordena a paz e não o roubo! Pois todas as pessoas são Suas
criaturas, também tu, Huda! E eles devem viver em paz e ajudar-se mutuamente.”
Isso não era do agrado de Huda. Onde ficaria então a sua vantagem? Mas queria continuar ouvindo.

“Conte-me mais do Altíssimo,” pediu ele e, de muito bom grado, fez Miang o que
lhe foi solicitado. Ele descreveu Deus como o Altíssimo, que tudo criou e a quem tudo
pertencia. Ele falou de seus servos, dos gigantes e dos pequenos na montanha e no vale,
na água e no fogo, e Huda escutou, sem perguntar. Seus olhos sempre mais se
arregalavam e, como numa criança, estavam fixos nos lábios de Miang.
“Por hoje chega,” disse Miang finalmente. “Deves descansar agora. Amanhã
voltarei a narrar-te.”
Huda concordou, tinham sido muitas as novidades, e não demorou muito e ele
estava dormindo sossegadamente no seu leito.
Porém, no lado de fora havia visível agitação entre os seus súditos. Os homens
discutiam gesticulando muito. Provavelmente brigavam para decidir quem agora iria
liderar no lugar de Huda. Um homem de aparência rude subiu numa pedra alta e gritou
para a multidão:
“Sigam-me, eu sei um local onde se encontra pastagem gorda e onde poderemos
ficar em segurança, até que tivermos espreitado para onde devemos nos dirigir para
nossa próxima pilhagem.”
Alguns gritaram aplaudindo, muitos porém, distanciaram-se dele, o impaciente
devolveu-lhes a razão. Eles queriam aguardar o que Huda iria determinar. No dia
seguinte, quando Miang saiu de sua tenda, viu que uma parte do bando havia partido e
que uma parte das tendas tinha sido desarmada. Isso lhe convinha, deveria ter
permanecido a parte melhor. E assim era. Os insatisfeitos, os quais eram insaciáveis nos
roubos, cuja mente estava dirigida à pilhagem e destruição, tinham partido. Os outros
queriam aguardar até que o pé de Huda tivesse sarado.
O pé fraturado obrigou Huda a ficar involuntariamente ocioso, o que não havia
conhecido em toda sua vida. Dentro dele surgiram pensamentos que até então sempre
tinha dispersado. Quadros surgiram diante de seus olhos interiores, os quais não gostava
de ver, mas que não o deixavam em paz: homens e mulheres se lamentando, gritos de
crianças que foram empurradas para trás a chicote, animais berrando sendo conduzidos
para longe, não importando se muitos morressem no caminho, vilarejos queimando.
Não eram quadros bonitos que Huda teve que rever, pois sempre via a si mesmo no
centro do poder destruidor como sendo o maior culpado.
Certamente, eles tinham acumulado riquezas. Porém, isso os tornou felizes?
Sempre havia briga e discussão e, se Huda não governasse com punho de ferro, sempre
de novo haveria de sentir revolta ao seu redor. Isso ele agora percebia nitidamente e não
ficou surpreso quando foi informado de que aproximadamente um terço dos homens
havia se desligado dele e o deixado. Não sentiu desgosto por isso. Sim, algo como asco
de sua vida de até agora queria surgir dentro dele. Aí lembrou-se de Miang e mandou
chamá-lo.
Com a fisionomia alegre, Miang entrou na tenda, na qual Huda, sem poder mexer-
se, estava deitado em seu leito. Miang notou que na alma desse homem travaram-se
lutas e, cuidadosamente, interveio e procurou conduzir Huda ao completo
reconhecimento de suas más ações. Aos poucos obteve êxito, pois a alma de Huda
sentiu uma leve ânsia por algo melhor. Dia após dia encontrava-se Miang sentado ao
lado do leito de Huda e revolvia cada vez mais o solo de sua alma. E chegou o momento
em que Huda irrompeu em lágrimas, lágrimas de arrependimento sobre si mesmo. Aí
Miang soube que tinha vencido, e agradeceu ao Altíssimo de todo coração.
“Tu me deste força, Altíssimo, eu Te agradeço!”
E somente agora o saber do Altíssimo pôde encontrar solo fértil em Huda. No dia
em que novamente conseguiu firmar o seu pé no chão e tentar os primeiros passos, este,
que estava diante de Miang, era um homem diferente do que havia sido ainda poucas
semanas atrás.
“O que deve acontecer agora?” perguntou preocupado.
E Miang respondeu: “Agora deves reparar o que erraste, para que o Altíssimo
possa perdoar-te.”
Isso era o mais amargo para Huda, encarar os seus e ter que confessar a sua culpa.
Mas Miang estava ao seu lado, ele o apoiou e o efeito foi totalmente surpreendente.
Entre aqueles, que continuaram fiéis a Huda, havia muitos que estavam cansados da
vida selvagem, da constante inquietação. Eles estavam satisfeitos em tornar-se
sedentários e de levar uma vida pacífica.. Mas onde eles seriam tolerados? Em toda
parte eram temidos, todos fugiam deles e ninguém haveria de querê-los em sua
vizinhança.
“Vós deveis ir até eles e devolver o gado roubado,” exigiu Miang, “então eles
ficarão convencidos de que a vossa intenção é séria.”
Huda pediu a Miang para que ainda permanecesse por algum tempo a fim de ajudá-
los a iniciar uma vida nova. Miang concordou com prazer, pois bem sabia que ainda não
podia abandoná-los à própria sorte. A sua vontade ainda era muito fraca, ainda não se
adaptaram à nova vida que queriam começar e, sobretudo, ainda não haviam encontrado
um local onde pudessem permanecer.
Na manhã seguinte, um emissário, que havia sido enviado, trouxe a notícia de que a
somente dois dias de viagem a tribo dos Aulas havia se estabelecido, a qual eles tinham
pilhado no verão passado. Esta era a melhor oportunidade para um novo começo! Miang
sugeriu que ele mesmo, com alguns emissários, queria ir até os Aulas, oferecendo-lhes
total indenização e tentar uma aliança duradoura, que viria proporcionar uma
sobrevivência a ambas as tribos.
Agradecida, a tribo aceitou esta oferta e, já na manhã seguinte, Miang partiu,
acompanhado por aproximadamente uma dúzia de homens mais velhos, em direção aos
Aulas. Tudo decorreu conforme desejado. Inicialmente, os Aulas não queriam confiar
nos assaltantes e em suas promessas, porém, quando Miang responsabilizou-se pela
veracidade de suas palavras, oferecendo-lhes completa indenização, declararam-se
dispostos a ajudar os antigos ladrões a iniciar uma nova vida. Prometeram auxiliar-se
mutuamente, caso uma ou a outra tribo passasse por necessidades.
Miang permaneceu ainda por algum tempo junto aos ladrões que agora se tornaram
sérios, ensinava e instruía no saber do Altíssimo e prometeu, quando teve que despedir-
se, voltar futuramente para visitá-los. Ele devia agora reiniciar sua caminhada,
ignorando para onde ela o levaria. Ao seu querer próprio já há tempo havia renunciado.
Sentia-se feliz em poder deixar-se conduzir. Qual seria agora o seu próximo destino?
Uma voz sedutora o chamava para longe. Ele sabia que ainda tinha muito a
aprender antes que se tornasse totalmente aquilo que era a íntima aspiração ardente da
sua alma fogosa. Em noites solitárias, cada vez mais intensamente, brotava no seu
íntimo uma lembrança de uma promessa, que o prendia e que devia cumprir. Teciam-se
fortes laços invisíveis do ser humano Miang para mundos superiores, dos quais vinha a
sua força e a sua condução. Percebia-o com gratidão, mesmo que somente o reconhecia
inconscientemente.
Passaram-se dias, sem que Miang encontrasse ser humano algum. A sua provisão,
recebida dos pastores, estava acabando. Então, de tardezinha, quando tinha novamente
escalado um desfiladeiro, tendo ao seu redor a solidão, seu pé bateu contra um
monumento de pedras empilhadas. Pontiagudo, destacava-se do céu noturno. Se não
tivesse batido nele, não o teria percebido. Agora seu olhar se fixava nele e o examinou
cuidadosamente. Não parecia ter sido construído por mãos de gigantes, para isso era
pequeno demais e também diferente. Expressava ser feito por mãos humanas e com
pensamentos humanos.
Mas como poderiam existir seres humanos nessa solidão? Miang olhou ao seu
redor. Não se ouvia nenhum som além do murmurar de uma pequena fonte, que
procurava seu caminho montanha abaixo, entre pedras e penachos escassos de capim e
musgo. Avistou, então, uma fenda na rocha. Parecia haver uma luz no seu interior, que
brilhava para fora.
Sem refletir, Miang entrou e encontrou-se, após alguns passos tateantes através de
um corredor estreito, numa espaçosa caverna na rocha, que recebia farta iluminação
através de uma abertura no meio do teto. De pé, diante de si, Miang viu um ancião com
os braços levantados em oração e com os olhos fechados. Silenciosamente moviam-se
os seus lábios. Miang não ousou adiantar-se. Esperou até que o espírito do eremita
pareceu ter se voltado novamente ao seu ambiente terreno. Abriu os olhos, e
contemplou Miang sem qualquer sinal de admiração. Parecia que o esteve aguardando,
pois examinava-o longa e perspicazmente com olhos claros e perscrutadores, que
pareciam penetrar até o fundo da alma de Miang. A seguir, indicou para um assento de
pedra e começou a falar:
“Tu foste anunciado a mim, aluno. Devo instruir-te no que eu te posso ensinar.
Começaremos.”
E sem mais, começou a anunciar para Miang o Deus único, sublime, sábio e
onipotente, diante de cujo poder e força a Terra estremece, as rochas despencam e as
estrelas escurecem, que pode ceifar seres humanos com a foice de sua ira, quando
trilham caminhos errados, maus. Porém, cujo amor paira também, qual um sol todo
poderoso, sobre a vida humana, perpassando-a e aquecendo-a, desabrochando-a, quando
submetem-se à Sua mão.
Sem respirar, escutava Miang. Ainda por muito tempo, depois de o sábio ter
silenciado, veio-lhe de suas palavras uma força como nunca antes tinha sentido e
parecia como se cada uma de suas palavras continuasse a viver dentro dele, se
enraizasse e começasse a florescer e carregar frutos. No silêncio, que doravante sempre
sucedia longamente às instruções do sábio, provinham para Miang os frutos mais
maduros do reconhecimento.
Por longo tempo Miang viveu externamente uma vida tranqüila, interiormente,
porém, uma vida muito ativa junto a Huang, o eremita na caverna de rocha do
Karakorum. Bem-aventurados foram esses meses para ele. Parecia como se Huang
retirasse um véu atrás do outro de seus olhos espirituais e como se irradiasse por detrás,
sempre mais luminosa, mais clara e mais grandiosa, a magnificiência do Altíssimo.
Correntes de força fluíam até ele nas noites silenciosas, enquanto estava deitado imóvel
sobre seu leito e abrindo o seu interior, para não perder sequer uma gota da bênção, que
queria revelar-se a ele. E no silêncio dessas noites claras crescia, ignorada por ele, a sua
força interior. Ele reunia forças para o futuro, riquezas eternas, que aumentavam no
silêncio, produziam frutos e fazendo brotar novas riquezas.
Miang tinha se acostumado totalmente ao silêncio. Escutava a sabedoria de Huang,
raras vezes fazia uma pergunta. Pois sabia: se ele levasse, o que ainda não estava
claramente reconhecido, no silêncio de seu interior para o alto, então lhe afluía logo
total clareza de todos os lados, e não havia necessidade de novas perguntas. Dessa
forma aprendeu, em si próprio, a bênção e o poder do silêncio. Para toda a sua vida isso
foi de grande, até decisiva importância. Do silêncio pofundo, pacífico e tão
imensamente vigoroso em sua alma, brotava reconhecimento sobre reconhecimento,
saber sobre saber. Também este aprendizado passou mais rapidamente do que ele o
desejava. Certa noite, aproximou-se novamente seu amigo luminoso do seu leito e
ordenou-lhe a deixar Huang.
“Ele te ensinou o que sabia, sua missão em relação a ti terminou. Agora ele pode
regressar aos eternos jardins celestiais e de lá continuar servindo com alegria.”
Assim falou o luminoso emissário de Deus, e Miang tinha que submeter-se a essa
decisão. Sem perguntar, sem lamentação, somente cheio do agradecimento mais
profundo, despediu-se de Huang, que lhe tinha ficado tão caro e que não reencontraria
nesta vida. Abençoando, o ancião colocou as mãos sobre sua cabeça.
“Siga o teu caminho, Miang, servo abençoado do Altíssimo. Traga aos seres
humanos, que anseiam por isso, o saber que trazes dentro de ti. Ajuda-os em sua
fraqueza a encontrar o caminho certo.”
“Agradeço ao venerável pai por toda a bondade que me tem demonstrado,” foi tudo
o que Miang conseguia responder.
Com isso despediu-se, para nunca mais voltar a este lugar. Uma vez mais
contemplou o monumento eregido por Huang diante de sua caverna, para chamar a
atenção de Miang. A seguir, firmou corajosamente seu cajado no chão rochoso e
começou a descer em direção ao sul, até um novo país, novos seres humanos, cujo
idioma talvez não mais pudesse compreender. No entanto, sempre encontraria o mesmo
medo, a mesma ignorância e a mesma miséria apática em suas almas. Alegremente
caminhou nesta bela manhã, disposto a servir e a ajudar.
Miang tinha alcançado uma nova etapa de sua vida, isso ele sentia nitidamente.
Qual um botão de uma flor, que rompe os seus invólucros protetores, estava seu espírito
prestes a desabrochar completamente. Os ensinamentos do sábio Huang foram o sol da
primavera, que fez com que os invólucros se rompessem. Miang nunca havia se sentido
tão leve como agora, quando descia as encostas íngremes da cordilheira, em direção ao
sul. Novamente a vida estendia-se diante dele como um enigma não solucionado. O que
este reservar-lhe-ia para o futuro?
Desta vez, não tardou muito até encontrar seres humanos. Eram pastores outra vez,
porém, vestidos de modo diferente dos até agora conhecidos, e seu idioma já se
diferenciava do da tribo amarela e dos Waringis. Os sons soavam mais suavemente,
porém ainda era possível uma boa comunicação. Amavelmente ofereceram a Miang
pão, leite talhado de égua e queijo e, agradecido, ele aceitou o alimento. Teve
dificuldade de conversar com as amáveis pessoas por longo tempo. Estava
demasiadamente desacostumado de falar. Mas eles também não o exigiam,
respeitosamente observavam o jovem, cujos olhos claros testemunhavam o espírito
incandescente no seu íntimo. Eles o percebiam, sem mais tecer pensamentos a respeito.
Mais e mais desceu Miang cordilheira abaixo, ao encontro de novas vivências. Ele
não questionava, não cismava, seguia a voz do seu íntimo, que ainda continuava
indicando para o sul. Aos poucos, as encostas se tornavam mais formosas, cobriam-se
de arbustos floridos. As montanhas ficavam mais baixas, em compensação, o capim era
mais suculento e abundante, os rebanhos mais numerosos. Satisfeitas pareciam as
pessoas que moravam aqui, em povoados fixos, com casas com telhados planos, que se
acomodavam, de preferência, nas fendas da cordilheira. Ainda mais estranhos soaram as
palavras de seu idioma ao ouvido de Miang, mas inconscientemente acostumava-se aos
novos sons e não teve dificuldade de se fazer entender. Solicitamente as pessoas
ofereciam provisões ao viajante calado, quando chegava a eles silenciosamente. Através
desse caminhar em silêncio, Miang absorveu muitas coisas em sua alma. Eram
vivências totalmente novas, as quais ainda não conseguia expressar em palavras, mas
que mais tarde lhe seriam de grande valia.
Certo dia, ao entardecer, chegou a uma povoação maior, na qual havia grande
agitação. Muita gente estava aglomerada e discutiam aos gritos. Apontavam em direção
ao oeste, Miang não conseguiu compreender o motivo dessa agitação. Calado, ficou
parado nas proximidades da aglomeração de pessoas. Nesse instante, uma mulher com
uma criança no colo distanciou-se da multidão. Soluçando fortemente, ela ia passando
por Miang, sem o perceber. Aí, seguindo a um sentimento irresistível, ele colocou sua
mão direita levemente sobre o braço dela, e algo tão dominador estava nesse movimento
calmo, que a mulher involuntariamente parou, levantando seu olhar cheio de lágrimas
para Miang.
“Qual é a tua dor, irmã?” perguntou Miang, e seu olhar tranqüilo pousou qual
bálsamo sobre sua alma.
Soluçando, a mulher respondeu: “Eles querem me tirar o meu filho, dizem que era
impuro e traria desgraça a todos nós. Mas eu não o entrego, certamente que não. Prefiro
que me matem!”
“Acalma-te,” disse Miang com voz sonora. “Ninguém pode tirar-te o teu filho, que
o Altíssimo te deu de presente, para que faças dele um ser humano.”
Ao ouvir essas palavras, a mulher começou a soluçar mais fortemente e a criança,
um menino de aproximadamente três anos, que até então havia escondido seu rosto no
pescoço da mãe, virou-se para Miang. Este assustou-se profundamete, pois nos olhos da
criança estava o olhar indomado de uma fera. Nunca havia visto algo semelhante.
“O que há com teu filho?” perguntou suavemente e a mulher relatou:
“Hun-fu era uma criança querida, sempre calma, até há pouco. Ele obedecia de
bom grado e era a minha única alegria, pois sou viúva. Meu marido despencou nas
rochas e ficou lá embaixo destroçado, quando quis salvar um animal perdido. A partir
daquele dia Hun-fu modificou-se. Ficou doente de susto, pois presenciou quando
trouxeram o cadáver despedaçado de seu pai para casa. Ele caiu em convulsões e,
quando acordou, mordia e arranhava a quem queria aproximar-se dele. Os outros dizem,
agora, que um espírito mau entrou nele, e que sua alma havia seguido o pai para o reino
intermediário. Eu, porém, amo meu filho e não quero perdê-lo.”
E afetuosamente apertou o menino em seus braços. Este, no entanto, ficou inquieto.
Parecia como se não suportasse a proximidade de Miang. Ele quis se desvenciliar da
mãe e bateu nela, quando esta não quis soltá-lo. Miang, entretanto, viu algo que ainda
nunca havia visto antes. Ele viu a alma tímida e medrosa da criança, mal animada pela
vida, empurrada para o lado por uma sombra escura, que deitou em cima dela e a
privava da respiração. E a sombra escura golpeava em sua direção e gritava-lhe palavras
más e ignominiosas, das quais a mãe se assustava.
“Deixe-nos ir,” pediu ela, mas Miang abanou a cabeça.
“Eu quero ajudar a ti e ao teu filho,” disse ele e, fixando bem a criança, obrigou a
sombra escura a dobrar-se diante de sua vontade. Reunindo toda a força de sua alma,
Miang levantou os braços e rogou:
“Altíssimo, olha do alto para nós! Veja esta pobre criança, à qual se aproximou o
demônio! Livra-a de sua carga.”
Fervorosamente rezava Miang, e como fascinados escutavam as pessoas
circundantes que haviam se aproximado. E quando Miang rezava, o espírito mau dentro
do menino gritava e queria defender-se. Miang, porém, colocou sua mão sobre a cabeça
do menino. Força do alto atravessava-o ardentemente e transmitia-se à criança. Com um
grito de raiva o trevoso soltou a sua vítima e a criança caiu, sem sentidos, nos braços da
mãe.
“Ele irá curar-se,” disse Miang com voz sonante e tão grande era a força que partia
dele, que ninguém se atreveu a contestar.
“Deixa dormir o teu filho por longo tempo,” disse à mãe. “Depois ele será te
presentado de novo. Mas depois protege-o de tudo o que é mau, para que este não torne
a apoderar-se dele.
Profundamente emocionada, a mulher afastou-se em direção à sua casa. De Miang,
no entanto, aproximou-se um homen e perguntou: “Forasteiro, quem és tu? E o que
fazes aqui em nosso povoado?”
Miang dirigiu seu olhar claro para o interrogador.
“Tu também necessitas de ajuda, porque assim me perguntas?
“Certamente, deves ser um sábio, pois adivinhas os meus pensamentos,” respondeu
o homem, admirado. “Em casa está a minha esposa, doente há semanas, não reconhece
ninguém e recusa todo tipo de alimento. Ninguém conseguiu ajudá-la. Permitas-me de
pedir a tua ajuda?”
Confiança estava nas palavras do pedinte e Miang soube que aqui aparecia uma
nova oportunidade para atuar. Solicitamente acompanhou o homem que seguia feliz na
sua frente, até uma choupana pobre, localizada um pouco afastada. No seu interior
estava abafado. O ar no ambiente revelava a presença de uma pessoa muito doente.
Miang aproximou-se. Inquieta, remexia-se uma mulher, relativamente jovem, em seu
leito. Seus lábios murmuravam palavras incompreensíveis. Silenciosamente o homem
chegou perto dela e dirigiu-lhe a palavra. Ela parecia não ouví-lo. O olhar de seus olhos
arregalados era vago. Parecia que enxergava algo a grande distância, do que seu olhar
não conseguia desvencilhar-se e que preenchia-a de terror.
Miang recolheu o seu íntimo em prece fervorosa. Depois pegou uma das mãos
irrequietas na sua e segurou-a com calma. Imediatamente sossegaram-se os movimentos
estremecedores do corpo, feliz o homem constatou-o. Mal ousava respirar. Fixamente
fitava Miang. O que ele faria agora? Miang fechou os olhos, enquanto segurava a mão
da mulher na sua. Silenciosamente pedia força para poder ajudar essa alma e livrá-la de
seu sofrimento.Quadros surgiram diante dos olhos internos de Miang. Ele via a mulher,
como moça jovem vivaz, no círculo de seus irmãos. Ela parecia ser uma das mais
alegres. Ele a via no próprio lar, ao lado de seu esposo, feliz e satisfeita. Então uma
sombra apoderou-se dela. Ela a agarrava. Com um grito ela caiu e uma mão escura
apertava a sua garganta, mal podia respirar.
Miang voltou-se para o homem: “O que aconteceu no dia em que a tua mulher
adoeceu?” perguntou severamente.
O homem ficou constrangido.
“Eu não me lembro mais, já faz muito tempo, senhor.”
“Lembra-te, caso contrário tua mulher morrerá,” exigiu Miang.
O homem começou a tremer. Abaixou os olhos. Minutos passaram, o silêncio
tornou-se opressivo. Gemendo a doente virava-se de um lado para o outro.
“Fala!” ordenou Miang novamente. “Olha para ela, o corpo não vai agüentar por
muito tempo.”
Hesitante, o homem contou: “Ó grande sábio, que tudo vês, eu quero contar-te o
que também pesa no meu coração desde aquele dia infausto e o que ainda não confiei a
ninguém.
Hu-na, minha mulher, esteve cedo no templo, para levar uma oferenda. Ela queria
rogar novamente para que nos fosse presenteado um filho, pois ainda estamos sem
filhos e essa amargura tivemos que engolir diariamente. Era nosso maior desejo e,
muitas vezes, já fizemos oferendas para isso, sempre em vão.
“Devemos fazer uma oferenda maior,” disse Hu-na para mim. “Não é suficiente
que eu leve frutas e flores para lá. Deve ser alguma coisa viva, se quisermos ser
presenteados com um filho vivo.” Mas de onde iríamos tirar um sacrifício? Somos
pobres, como vês, ó sábio, e possuímos somente o necessário. Hu-na, porém, não
sossegava. Dia e noite torturava-me com o desejo, de ter que fazer um sacrifício de algo
vivo. E finalmente prometi de conseguir um. Furtivamente entrei na propriedade do
meu vizinho e roubei uma ovelha e levei-a para minha esposa. Ela ficou muito feliz e,
juntos, a levamos até o templo, para sacrificá-la. O sacerdote matou-a e nos prometeu
que o nosso desejo seria realizado. Porém, esperamos em vão, e Hu-na continuava sem
filhos. Como uma doença isso roeu a sua alma. Onde avistava mães com crianças
pequenas, ela tinha que desviar os olhos. Ela começou a invejar outras mulheres mais
felizes, pela sua sorte. Dia e noite não pensou em outra coisa além de que maneira
poderia conseguir um filho.
“E então veio o dia infeliz, “o homem hesitou, como se não pudesse continuar. Mas
Miang não tirou os olhos dele.
“Minha mulher havia me deixado, ela não tinha agüentado mais. Quando acordei,
seu leito estava vazio. Pressenti algo de ruim. Rapidamente a procurei em todo lugar,
mas não pude encontrar uma pista dela. Fui até a frente da casa, mas lá também não
encontrei nada que pudesse indicar para onde poderia ter-se dirigido. Aí me lembrei
que, ultimamente, olhara muitas vezes para a encosta íngreme, ao lado do nosso vale e
muitas vezes mencionara: “Quem lá se jogasse dos altos rochedos, este encontraria a sua
paz.” Aí eu soube onde deveria procurá-la e corrí atrás dela. Ela já estava muito longe e
eu tive que me esforçar ao máximo para aproximar-me dela.
Sem fôlego eu subia, reunindo todas as forças e, quando o caminho estreito
dobrava num bloco de rocha, vi minha mulher diante de mim, como ela corria, sem se
virar, sempre mais para o alto, como se um poder invisível a impelisse para o cume
mais elevado.
Pressionando firmemente contra si, levava ela uma trouxa. Eu não podia
reconhecer o que era que ela estava levando. Quando, porém, cheguei mais perto, ouvi
um leve choro que saia da trouxa, e eu me assustei muito. Tive que parar um momento
para respirar fundo e esse momento foi suficiente para torná-la novamente inalcançável.
Como que se não sentisse cansaço, tontura, subia ela sem parar até a borda saliente de
um alto rochedo e, de lá, jogou a trouxa para baixo. Depois debruçou-se para olhar atrás
dela.
Me deu arrepios. Juntei minhas últimas forças e conseguí agarrá-la ainda na manga,
quando ela estava prestes a também jogar-se para baixo. Parecia como se agora todas as
forças a tivessem abandonado, ela caiu em meus braços e eu a puxei para longe da
borda perigosa.
“Hu-na, o que fizeste?” exclamei sacudindo-a.
Então ela despertou como de um sonho.
“A criança!” gritou ela. “Eu tinha que sacrificar uma criança, para que os deuses
me dessem uma!”
“De onde tiraste a criança?” perguntei horrorizado.
E, olhando-me, ela respondeu:
“Ninguém me viu, entrei bem silenciosamente e tirei a criança de Fu-sa. Ela ainda
tem muitas crianças, não lhe fará falta.”
Sacudí-a novamente com força e gritei horrorizado:
“E tu jogaste a pobre criança no abismo? Não escutaste o seu choro?”
“Escuta!” disse Hu-na e, no silêncio ao redor, ouvimos claramente um choro
lamentoso vindo lá de baixo. Soava miseravelmente abandonado e Hu-na tremia no
corpo todo, quando o escutou. “Os deuses não aceitaram o sacrifício!” murmurou ela e
depois caiu desmaiada aos meus pés.
Eu a levantei e a levei para casa. Não podia cuidar da criança, senão Hu-na teria
morrido, e não havia caminho do alto para o abismo, no qual a trouxa havia caído. Com
grande esforço consegui levá-la para casa, mas desde então ela está deitada aqui como a
vês, ó sábio. Eu te rogo, agora que sabes da verdade, ajuda-a, ajuda a pobre Hu-na!”
Profundamente abalado, Miang escutava o relato sobre o estravio dessa alma
humana. Como uma maldição paralizante pesava sobre ela a grave culpa e não a
deixava restabelecer-se. O que podia ser feito aqui? Ele sentiu que a mulher ficava mais
calma quando a tocava com a mão, quando a colocou na sua testa quente. Por longo
tempo a deixou aí e refletia sobre o relatado. Assim os seres humanos se enredam em
culpa e não conseguem livrar-se dessa rede sozinhos. Novamente gemeu a enferma. Ela
abriu os olhos e, pela primeira vez, havia neles algo como um reconhecimento.
Miang curvou-se sobre ela.
“Hu-na,” disse ele, e sua voz soante parecia encher todo o ambiente, “Hu-na,
arrependes-te daquilo que fizeste?”
Assustada, a mulher levantou o braço em defesa. Miang porém, não cedeu e
obrigou o olhar dela para o seu.
“Tu roubaste um filho de uma mãe, no delírio de que seu sacrifício pudesse te
ajudar! Não sabes que com isso te sobrecarregaste com uma grave culpa? Veja a mãe
que chora pelo seu filho perdido e isso deveria ajudar-te a obter uma criança? Com isso
barraste o caminho da alma que queria aproximar-se de ti. Ela agora não pode chegar
até ti, a tua culpa se interpôs entre vós duas.”
Hu-na irrompeu num choro compulsivo. Parecia que, com isso, dissolvia-se a
convulsão, que há tanto tempo a dominava.
“O que devo fazer?” lamentou-se ela.
“Corrija o teu erro,” disse Miang.
“Isso eu não posso,” lamentou Hu-na novamente, e seu choro aumentou.
“Sempre pode-se corrigir alguma coisa,” consolou Miang.
“Eu vou ajudar-te para isso, porém, antes de tudo, peça perdão ao Altíssimo, o
Qual tu zangaste com a tua má ação.”
Agora, Hu-na estava disposta a tudo e Miang podia semear os primeiros grãos de
um melhor reconhecimento na alma perturbada da pobre mulher. Depois dirigiu-se ao
homem.
“Trata-a bem, para que ela possa recuperar suas forças,” ordenou ele. “Então eu
voltarei e continuarei ajudando.”
O homem queria agradecer efusivamente, mas Miang recusou. Ele tinha que
respirar ar puro, nada mais o segurava aqui. Ele saiu da tenda e respirou fundo. Sentiu-
se melhor aqui fora ao ar livre e, involuntariamente, dirigiu seus passos para fora do
pequeno povoado. Logo havia deixado as choupanas para trás. Encontrava-se num
caminho que o levava através de arbustos floridos de média altura. Respirava fundo o
perfume das flores. Como era refrescante depois do ar abafado no quarto da enferma.
De repente, veio ao seu encontro um estranho cortejo. Homens vieram com um tipo
de maca. Nela parecia haver um doente. Ele estava coberto, não se podia ver o que
estava escondido embaixo da coberta. Miang parou e quis deixar passar os carregadores,
mas um impulso inexplicável fez com que perguntasse o que estavam carregando aqui.
Solícitos, os carregadores colocaram a maca no chão e secaram o suor de suas testas.
Um pequeno intervalo pareceu-lhes bem-vindo.
“Estamos levando Hung para o sacerdote, ele está velho e sua alma está disposta a
entrar no reino intermediário,” responderam.
“Posso vê-lo?” pediu Miang, e os carregadores levantaram a coberta.
Miang viu um rosto de ancião no qual estavam estampados os vestígios de uma
idade avançada. O homem estava deitado tranqüilamente, sua respiração era leve.
Miang já queria prosseguir, mas teve que fazer mais uma pergunta:
“Para onde o levais, homens?”
“Ao templo, para o sacerdote, para que esse possa rezar suas preces e ajudá-lo a
encontrar o caminho,” responderam naturalmente.
“Para o reino intermediário?” perguntou Miang. “E o que ele vai fazer lá?”
“Lá ele aguarda até que haja novamente um corpo, no qual ele possa morar. O seu
corpo atual ficou muito velho.”
“E assim vós sempre voltareis em um corpo novo?” perguntou Miang. “Podeis
escolhê-lo?”
“Isto nós não sabemos,” foi a resposta dos carregadores e, com isso, levantaram a
maca e queriam seguir caminho. Ao levantar a maca, porém, algo moveu-se na
extremidade inferior da maca, a coberta deslocou-se e Miang viu que ali havia mais uma
pessoa, uma criança pequena, que o mirava com seus olhos grandes.
“Quem é essa criança?” perguntou ele e mais uma vez os carregadores deram
informação.
“Hung encontrou-a nos arbustos há algumas semanas. Estava chorando e ele
escutou seus lamentos. Então subiu e apanhou-a. Ele quer entregá-la ao sacerdote.”
Miang estremeceu. Poderia ser essa a criança que foi atirada por Hu-na, e seria
possível um salvamento tão maravilhoso? Pediu que os homens descrevessem o local
onde Huang a havia encontrado. Não havia dúvidas, aqui ocorreu um milagre e a alma
de Hu-na estava libertada da culpa mais grave.
“Entreguem a criança a mim,” disse ele aos homens admirados. “Eu sei a quem
pertence e eu vou levá-la até sua mãe.”
Eles concordaram e assim Miang acolheu a leve carga e levou-a de coração feliz
até a choupana de Hu-na.
Lá, ele não era esperado. Tanto maior foi a surpresa quando ele retornou tão
depressa e, quando colocou a criança nos braços de Hu-na, as lágrimas correram
abundantemente e carregaram consigo a última teimosia, a última perturbação.
“Agora podes reparar o teu erro, Hu-na,” disse Miang muito feliz. “Devolva a
criança à mãe e peça-lhe perdão.”
“Desaparecerá com isso o obstáculo entre mim e a alma que quer vir?” perguntou
Hu-na receosa.
Miang confirmou. “Se te arrependeres sinceramente do teu delito e prometeres
nunca mais fazer tal coisa, então tudo pode ficar bem. Agora o teu marido deve chamar
a mãe da criança, pois tu estás muito fraca para ir até ela.”
E assim aconteceu. Fu-sa apertou seu filho nos braços e, na alegria de tê-lo de
volta, esqueceu de sentir raiva de Hu-na. Miang, porém, pôde mostrar às pessoas, agora
novamente felizes, que maravilhoso auxílio havia salvo a criança e de quem partiu essa
ajuda. Ele encontrou corações abertos, pois o sofrimento, assim como a alegria, os havia
amolecido.
Miang teve que prometer que voltaria e contaria mais do Altíssimo. A missão de
Miang nessa localidade parecia terminada, somente uma coisa ainda o ocupava muito: a
crença da volta do “reino intermediário”. Ele pediu ao seu amigo luminoso clareza sobre
estas questões e ela também foi lhe dada.
Foi lhe permitido ver o caminho seguido pela alma de Hung, que estava partindo,
quando esta pôde deixar seu corpo. Não podia afastar-se muito de seu invólucro antigo.
Muitos fios resistentes, densos, ainda a deixavam presa a ele, pois os olhos da alma
estavam direcionados para a Terra e para o retorno à Terra. Finalmente, ficaram mais
fracos e caíram, secos, pois a alma começou a observar o seu novo ambiente. Um
grande número de figuras e formas a cercavam. De início, não conseguia orientar-se.
Esse, portanto, deveria ser o “reino intermediário”! Porém, se era apenas um” reino
intermediário”, situado entre dois reinos, dos quais um deveria ser a Terra, onde então
estava o segundo?
Quando Miang chegou a essa ponderação, abriu-se uma fenda no “céu”que cobria o
reino intermediário, e ele avistou, muito distante desse mundo, uma luz brilhante e
maravilhosos jardins, nos quais seres humanos felizes estavam atuando diligentemente.
O coração de Miang jubilava. Esses luminosos jardins pareciam-lhe familiares, eles
deveriam ser o destino de muitas almas humanas que vagavam e procuravam no reino
intermediário, sem saber o que realmente lhes fazia falta.
“Olhem para cima!” tentou Miang gritar para elas, mas ninguém o escutava. Qual
formigas, que entram em seu formigueiro e dele saem novamente, assim pareciam a
Miang as numerosas almas, que lá se detinham sem poderem prosseguir. De tempos em
tempos desaparecia uma alma e Miang podia ver como ela retornava à Terra e lá
iniciava uma nova vida. Mas o que adiantava a nova vida, se ela não levasse a novos
reconhecimentos? Deveria continuar um constante perambular entre a Terra e o reino
intermediário? Qual seria o sentido disso?
Tristeza queria apoderar-se de Miang, sobre a inutilidade de tal vida humana, mas
depois ponderou: “Para isso o Altíssimo enviou-me para os seres humanos, para que eu
lhes mostre para onde deve levar a sua caminhada, que não devem ficar retidos no reino
intermediário, mas caminhar, ascendendo para os jardins eternos.”
Cinzento e turvo parecia tudo no reino do meio, nas alturas, porém, havia luz clara,
beleza e alegria. Quem chegasse lá em cima, este certamente não precisaria retornar à
Terra, este teria encontrado sua meta e poderia ser um servo do Altíssimo em felicidade
e alegria. Miang estava agradecido pelo novo saber. Agora poderia ajudar aos homens
ainda melhor, poderia advertí-los, para que não se prendessem à Terra, e mostrar-lhes o
caminho para os jardins celestes.
Animado, retomou novamente a sua caminhada, que o levava ainda mais para o
sul. O solo tornava-se cada vez mais fértil, a colheita era mais abundante, as árvores
estavam carregadas de frutos doces. Que seres humanos felizes deviam morar neste
paraíso! Ao passar, Miang os observava mais atentamente. Estavam vestidos mais
ricamente e mais bonitos, portavam a cabeça mais erguida do que os pobres pastores no
alto das montanhas e suas moradiam demonstravam riqueza. Entretanto, eram eles
também mais felizes? Com toda essa beleza que os cercava, deveria pairar sobre eles
um brilho como o do sol. Mas nada disso se via. Ao contrário, aborrecidos olhavam por
sobre todo esse esplendor que parecia não alegrá-los. Qual seria o motivo?
Miang aproximou-se de um pequeno templo, para o qual afluíam pessoas com
grinaldas de flores nos cabelos e nas mãos. Entrou junto com elas. O ambiente era
despojado e feio. Somente no fundo alguns degraus conduziam para um pedestal,
entronado por uma imagem horrível. Era, em traços grosseiros, uma espécie de figura
feminina, pintada toscamente. Diante dessa figura as pessoas colocavam suas flores,
ajoelhavam-se e murmuravam algumas palavras, que deveriam ser uma oração. Depois
levantavam-se com fisionomias impassíveis e deixavam novamente o templo. Miang
assustou-se profundamente. Isto seria um templo, um local de adoração? Como isso era
possível? Para ele seria impossível orar neste ambiente. Sufocante era a opressão de
muitas figuras grotescas, que estavam penduradas nas paredes e que também se
prendiam nas pessoas presentes no templo.
Agora descobriu, atrás do ídolo, uma figura que lhe passara despercebida na turva
penumbra do templo. Estava aí, imóvel, com os braços levantados. Parecia que toda
vida tinha se evadido dela. Cheias de veneração, olhavam as pessoas para essa figura
petrificada. Parecia-lhes algo magnífico, poder” rezar” dessa forma. Miang, porém, viu
que a alma desse homem estava tão enrijecida quanto o seu corpo, que não havia mais
vida nela e ele se horrorizou. O que poderia ser feito aqui?
Miang não conseguia desviar seu olhar dessa figura petrificada e parecia que o seu
olhar ia perpassando a armadura dessa alma sem vida. O sacerdote começou a
movimentar-se e, contrariado, voltou-se para Miang, deixou cair os braços e atravessou-
o, por sua vez, com seu olhar. Era uma luta entre alma e alma, na qual o sacerdote foi
vencido. Ele baixou os olhos e, aborrecido, deixou o templo por uma entrada na parede
dos fundos.
Um homem aproximou-se de Miang.
“Tu foste mais forte do que o sacerdote!” sussurou para Miang e indicou com a
cabeça para o templo.
Miang estava um pouco desconcertado.
“O que queres dizer com isso, amigo?” perguntou ele, para ganhar tempo.
“Ora, tu o expulsaste, tua força era maior. Isto ainda ninguém havia conseguido.
Posso acompanhar-te por um trecho?”
Miang olhou o homem mais detalhadamente. Havia uma súplica em seus olhos,
que exortou Miang a concordar. O homem conduziu-o, através de ruelas mais calmas,
até uma casa situada num jardim grande.
“Entre em minha casa!” convidou a Miang e este obedeceu. Ele ainda não sabia o
que o aguardava aqui, mas parecia-lhe correto aceitar o convite. Sentaram-se num
aposento fresco, sombreado e, hesitante, o acompanhante de Miang começou a falar:
“Eu te observava hoje no templo, ó forasteiro! Tu parecias ser diferente das pessoas
daqui, diferente, principalmente, do sacerdote e tu não tinhas medo dele. Eu gostei
disso, pois eu também não posso curvar-me diante do que os sacerdotes exigem de nós.
E, principalmente, eles não conseguem me dar respostas às minhas perguntas.”
O homem fez uma pausa. Ele não sabia como fazer com que Miang percebesse
qual era a sua ansiedade íntima. Miang, no entanto, viu o espírito atado que lutava para
libertar-se e um desejo fervoroso de assistí-lo acordou logo em seu íntimo.
“O que te oprime, amigo?” perguntou cordialmente, e parece que essas palavras
soltaram a língua do outro. Ele externou a ansiedade de seu coração com as palavras:
“Todos os dias eu vou ao templo, procuro rezar, trago minhas oferendas e cada dia
volto com o coração vazio. O sacerdote está mudo, não me dá respostas, muda é a
divindade – – será que não há ninguém que possa me dar respostas? Eu sou somente um
pequeno homem, eu não posso ajudar a mim mesmo, eu necessito de alguém mais forte
para me conduzir. Mas onde está esse mais forte? Por toda a minha vida eu o procurei,
mas ninguém pôde mostrá-lo. Agora vieste tu hoje e foste mais forte que o sacerdote, eu
bem o ví. Agora te peço: ajuda-me!”
Essas palavras continham um pedido tão suplicante, que Miang soube: aqui ele
poderia abrir o tesouro de seu saber e dar com mãos cheias.
Ansioso, Ma-tschi assimilava cada uma de suas palavras, não se cansava de escutar
e profunda alegria o preenchia. Seus olhos brilhavam, tinha vontade de abraçar Miang.
Algo, porém, o reteve. Apesar de sua juventude, pairava uma nobreza sobre Miang, que
excluía qualquer intimidade. Por longo tempo os dois conversaram e cada vez mais
leve, mais feliz, ficou o coração de Ma-tschi. Ele pediu a Miang para permanecer alguns
dias com ele, pois ainda queria convidar amigos para que se deixassem instruir por
Miang.
“Eles sentem o mesmo que eu,” disse Ma-tschi, esclarecendo, e Miang ficou
satisfeito.
Ma-tschi era um comerciante abastado. Pela primeira vez em sua vida, Miang
gozava do conforto e da comodidade de um lar rico.
Todos os ambientes eram ricamente ornamentados com tapetes macios e tecidos de
seda e vasos preciosos. Beleza cercava-o nesta casa e ele alegrou-se com isso, sem que
surgisse nele o desejo de querer possuir algo disso. Também, o que ele, em sua
caminhada, poderia fazer com essas coisas belas, mas incômodas? Ao tentar imaginá-lo,
Miang teve que sorrir. Não, quanto menos ele possuísse, tanto melhor seria para ele,
mais desimpedido ele poderia entregar-se à sua missão.
Era uma noite de outono quente e úmida, em que Miang, Ma-tschi e alguns de seus
amigos estavam reunidos na sala à meia luz. Servos tinham aceso um lampião suspenso,
de cujas janelas de papel colorido a luz transparecia tenuamente.
Ma-tschi foi o primeiro a falar: “Amigos,” disse ele, “vejam aqui o sábio, do qual
vos relatei. Ele está disposto a ensinar-vos. Escutem as suas palavras.”
Todos os olhares dirigiram-se para Miang, que ainda refletia em silêncio. Novamente surgiram imagens diante
de sua alma. Ele viu diante de si uma montanha alta, íngreme, em cujo pico brilhava uma luz clara. Espalhava seus
raios por sobre todas as encostas até ao vale lá embaixo, onde não se via nenhuma outra luz. Muitas pessoas
caminhavam lá embaixo sem rumo. Alguns dirigiam seu olhar interrogativo para o alto, porém, a luz parecia-lhes
muito alta e muito distante para que pudessem alcançá-la. Então apareceram, de cavernas escuras no lado da
montanha, figuras com longos trajes. Carregavam figuras esculpidas diante de si e colocaram-nas sobre pequenas
elevações no vale e chamavam as pessoas para junto de si.

“Aproximai-vos,” ouvia-se de sua boca, “ajoelhai-vos e adorai!”


E agitavam incensórios nas mãos, dos quais elevava-se densa fumaça cinzenta, que
se deitava, entorpecedora, sobre coração e mente das pessoas. Neste atordoamento,
muitas ficavam paradas e obedeciam ao que lhes era ordenado e as figuras nas
vestimentas longas acendiam pequenas lamparinas e gritavam: “Vejam a luz, a grande
luz!”
No entanto, mal iluminava o ambiente próximo às imagens esculpidas e, poucos
passos adiante, tudo permanecia no escuro. O coração de Miang estremeceu. Assim
acontecia aqui nesta Terra, com estes seres humanos! Eles quase nada sabiam da luz
clara, forte e pura no pico da alta montanha, porque fixavam seus olhos somente na
Terra e abriam seus ouvidos somente às palavras dos sacerdotes da caverna. Agora
Miang sabia o que tinha a fazer e a falar.
“Queridos amigos,” começou, e muita bondade estava contida no tom de suas
palavras. “Todos vós sabeis que estais numa caminhada nesta vida. A caminhada já
começou com o vosso nascimento e não está terminada com a vossa morte, pois,
quando a vossa alma deixa o corpo terreno, ela ainda não alcançou a sua meta e ela não
encontra paz nem sossego até tê-la alcançado.”
Os homens escutavam atentos, familiares lhes soavam essas palavras.
“Vejam este aposento,” continuou Miang. “Lá fora é noite, tudo está no escuro e
vós vos esforçais para espalhar um pouco de claridade ao redor de vós, para que não
precisais permanecer no escuro. Mas olhai, como é fraca a vossa luz! Mal ilumina
suficientemente este ambiente para que se possa distinguir todos os objetos.
Porém, sendo dia e brilhando o sol, podeis enxergar claramente, não somente cada
objeto, mas também a sua cor até o mínimo detalhe. Tudo ao redor de vós começa
novamente a viver o que antes parecia cercar-vos sem vida. Não é assim?”
Tiveram que concordar com ele, e um homem mais jovem, com vivacidade em sua
expressão, exclamou: “Está tão escuro no nosso interior, porque não temos um sol que
nos ilumine!”
“No entanto, existe um sol grande, poderoso, luminoso, que pode tornar o vosso
interior claro como o dia, desde que vós o deixeis entrar!” continuou Miang radiante. E
ele descreveu-lhes a imagem que há pouco lhe foi mostrada. “A grande e clara luz ainda
está em cima de nós, ela brilha e irradia para o espaço e ilumina tudo, como o faz o sol
no céu. Porém, se escondermo-nos em cavernas escuras ou baixamos o olhar
constantemente para o solo, então não podemos vê-la e ela não nos pode tornar alegres.”
Isto todos compreenderam e Miang continuou a contar-lhes de Deus, o Altíssimo, o
Qual, como um grande sol, brilha sobre tudo o que é criado. “Para Ele vós deveis orar,
Ele pode ajudar-vos!” exclamou Miang entusiasmado, “não para a figura repugnante no
templo, confeccionada por homens!”
“Foi Ele que te fez tão forte?” queriam saber os homens, aos quais Ma-tschi tinha
contado sua vivência no templo.
“Sim!” confessou Miang. “Somente Dele recebi a força e também vós a podeis
receber, se a pedirdes a Ele.”
Miang encontrou um solo já preparado nos corações desses homens. Somente
faltara ainda a mão do semeador, que deitasse as sementes douradas no solo. A
semeadura logo brotou e cresceu. Foi um trabalhar e atuar alegre para Miang, mas não
devia ficar assim por muito tempo. Pois devido ao seu esclarecimento contraiu a
inimizade dos sacerdotes, que temiam perder sua influência sobre as pessoas. Ma-tschi e
seus amigos pertenciam aos mais ilustres habitantes da cidade, e eles não guardaram
segredo sobre aquilo que vivenciavam. Dessa forma propagou-se rapidamente a notícia
do grande sábio e sempre mais pessoas afluíam para ele. Como que acordando de um
pesadelo, assim se sentiam as pessoas, quando Miang anunciava Deus. Bem no fundo
essas almas ainda não enrijecidas traziam uma saudade, não, um saber do Ser altíssimo,
que era o Senhor de todos eles. Um profundo alívio foi sentido por esses seres humanos
e os seus templos sombrios, com as horríveis imagens de ídolos, não os atraíam mais.
Esvaziavam-se e os sacerdotes espumavam de raiva.
Eles deliberaram entre si e chegaram à conclusão de que Miang devia ser
eliminado, como perigo para a fé e para o seu poder sobre as pessoas. Um sacerdote
fanático, o mesmo que não resistiu à força espiritual de Miang, foi escolhido para
assassinar Miang. O seu paradeiro era conhecido. Devia acontecer numa noite sem luar.
Mas o Altíssimo mandou advertir o seu servo. Quando o assassino entrou
silenciosamente pela janela, o leito estava vazio e, decepcionado, teve que voltar. Um
pensamento surgiu nele: será que o Deus dele era realmente tão forte que Ele o
protegia? Mas logo rejeitou esse pensamento. Isso não podia ser verdade! Ele deveria
repetir sua tentativa num outro dia, então certamente teria mais sorte.
Aquele, que ele procurava e pretendia matar, já havia sido retirado de seu poder.
Miang caminhava já sobre novos caminhos, ao encontro de novas missões. Antes de
partir, procurou alertar Ma-tschi, para que fielmente continuasse firme na verdade agora
encontrada. Auxílio ele receberia para que pudesse penetrar cada vez mais
profundamente, pudesse reconhecer cada vez mais. Com pesar no coração, despediu-se
Ma-tschi de Miang. Com ele, via desaparecer algo que nunca mais encontraria e
vivenciaria. Mas conformou-se sem reclamar, pois sabia que podia dirigir-se, a qualquer
momento, para onde estava o maior poder: ao Altíssimo. Muitos pensamentos
ocupavam Miang, quando novamente caminhava solitário e sozinho pela estrada. O que
seria das pessoas em cujos corações foi-lhe possível acender um raio da verdade? Eram
fracas e muitas lutas teriam pela frente. Poderiam elas resistir? Mas Miang também
sabia, que isso não era mais tarefa dele. Ele havia feito o que devia. O que disso
resultaria, sobre isso ele não tinha que decidir. Assim, alegremente levantou novamente
o olhar e observou mais atentamente a paisagem que atravessava. Chegou agora a uma
terra totalmente plana. Grandes búfalos da água puxavam baixas carretas, carregadas
com a colheita das lavouras. Os homens trabalhavam ativamente nas lavouras de arroz,
um sol forte brilhava sobre eles. Sua pele era marrom-escura e o suor corria-lhes pelas
faces. Pesado era esse trabalho, mas trazia também alimento para um longo período.
O sol queimava agora tão inclemente, que Miang procurou um local onde poderia
encontrar alguma sombra. Viu, então, à beira do caminho uma árvore frutífera com
grande copa e, aliviado, sentou-se embaixo dela. Ela protegia-o dos ardentes raios do
sol. De cansaço, seus olhos iam-se fechando, mas foi assustado por uma voz rouca, que
a ele dirigia insultos. Não deveria ter descansado aqui? Ele levantou o olhar e viu um
rosto vermelho de raiva. Não conseguiu entender as palavras que o agricultor seminu a
ele dirigia, mas compreendeu que ele não lhe permitia ficar aqui e, sem proferir palavra
alguma, cansado, levantou-se novamente para continuar a caminhada.
Nesse momento veio correndo uma pequena menina, pegou-o pela mão e puxou-o
para que a acompanhasse. Cheia de compaixão, ela presenciara o que havia acontecido e
conduziu o forasteiro até uma casa próxima e convidou-o a sentar-se num banco à
sombra da casa. A seguir, correu celeremente para o interior da casa e voltou com um
copo com leite fresco e ofereceu-o a Miang, sorrindo gentilmente. Agradecido, Miang
aceitou e matou sua sede. Quando, porém, quis levantar-se novamente e seguir a
caminhada, a pequena não o consentiu. Ela fê-lo sentar-se novamente no banco e
exclamou: “Não vá embora, forasteiro! Oha vai chamar a mãe.” Com isso desapareceu
novamente na casa. Miang contentou-se, pois o calor o havia cansado muito. Também
não demorou muito e apareceu uma mulher jovem, que tinha o mesmo sorriso amável
da filha e deu a entender a Miang, que poderia permanecer ali.
“Quando meu marido voltar do trabalho, irá fazer-te muitas perguntas,” disse
alegremente. “Tu pareces ter vindo de longe e, certamente, terás muito a narrar.”
Miang agora já estava acostumado que pessoas o retivessem em seu caminho e
assim concordou a permanecer até de noite.
As horas passaram rapidamente e Oha, a pequena, pulava alegremente de um lado
para outro entre ele e a mãe, trouxe-lhe flores, mostrou-lhe pedras coloridas e
conversava sem parar. Quando o sol começava a desaparecer, o agricultor voltou todo
empoeirado e suado. Atrás dele veio seu companheiro, o fiel búfalo, que puxava a sua
carreta e já conhecia sozinho o caminho para a estrebaria.
Surpreso, viu o forasteiro sentado em frente à casa, mas sua mulher esclareceu tudo
e ele se deu por satisfeito. Ele gostava de conversar de tardezinha após o trabalho e,
quando apareceu a lua., todos estavam sentados sossegadamente no banco da casa e
desfrutavam da paz ao seu redor. Miang contou, que havia sido rudemente afugentado,
quando quis descansar durante o meio-dia embaixo de uma grande árvore e a pequena o
confirmou, exclamando: “Era Mi, o velho mau, que não queria que ele ficasse ali!
“Por que ele não quis que eu descansasse embaixo de sua árvore?” perguntou
Miang, que não conseguia entender.
“Porque ele não dá nada a ninguém, nem a sombra de suas árvores!” exclamou o
agricultor.
“Mas ele não perde nada com isso.” perguntou Miang mais uma vez espantado.
“Ele está de tal modo possesso pela avareza, que até gostaria de ele mesmo não
comer e beber, somente para não gastar nada,” riu o agricultor pois, para ele, isso não
era novidade.
Miang , porém, abanou a cabeça: “Então ele é tão pobre?”
“Ao contrário, ele é rico, mas a riqueza tornou-o duro. Nunca dá uma esmola a um
pobre, espanta-os todos com seus cachorros.”
“Pobre homem!” deixou escapar Miang e, com isso, deixou os seus ouvintes muito
surpresos.
“Pobre, o rico Mi?” Como isso faz sentido? Miang, porém, explicou-lhes que eles
eram ricos em amor, mas o outro não e que aquele que não conhece o amor, era muito
pobre.
“Sua riqueza ele pode perder e o que lhe resta então? Ele não fez amizades com
isso.”
Isso, a boa gente teve que confirmar. Eles ofereceram um pernoite a Miang, que o
aceitou de bom grado. Parecia-lhe que alguma coisa ainda o prendia aqui. Durante a
noite, ele foi acordado por grande gritaria e quando se levantou e olhou pela janela, viu
um clarão vermelho no céu. Involuntariamente, teve que se lembrar do rosto vermelho
de raiva. Por longo tempo Miang ficou olhando para fora, até que o clarão diminuiu.
Depois, deitou novamente e dormiu tranqüilamente até de manhã. Quando levantou,
soube dos seus hospedeiros que, durante a noite, houve um incêndio na casa de Mi, o
rico agricultor e que o fogo tinha se espalhado tão rapidamente, que não foi possível
salvar coisa alguma.
“Agora ele ficou bem pobre,” acrescentaram com pesar. “Não mais pobre do que já
era antes,” disse Miang e eles o compreenderam.
Agora, porém, Miang devia continuar sua caminhada, pois tinha que aprender e
assimilar. Ele ainda devia conhecer e vivenciar a insensatez humana e a desgraça
humana, para disso tirar sabedoria e abrir ainda mais seus olhos e ouvidos interiores.
Ainda por muito tempo Miang percorreu essa terra fértil. Raramente permanecia
por tempo mais longo em uma das localidades. Somente quando encontrava pessoas que
ansiavam pelo saber e pela verdade, então permanecia e ajudava. Havia se tornado mais
forte, mais enrijecido, despretencioso durante este tempo de caminhada e aprendizado.
Cada vez mais se aprofundava nas almas das pessoas, sempre mais reconhecia sua
indolência interior, que os impedia de progredir e a qual os espíritos trevosos
aproveitavam para exercer domínio sobre elas. Muitas vezes sentia tristeza, quando
sempre de novo encontrava os mesmos defeitos, e às vezes parecia-lhe quase impossível
de remediar o mal. Mas então ouvia novamente a voz suave, que sussurrava:” Não
desanime, Miang, o Altíssimo ajuda, confia Nele!”
Então continuava sua caminhada fortalecido e encorajado. Certa noite, porém,
alcançou-o o chamado de que deveria retornar e voltar para Fong. Fong havia ficado
velho e necessitava dele. Na mesma hora Miang partiu e dirigiu-se novamente para o
norte, em direção às altas cordilheiras do Karakorum. De boa vontade deixou as
planícies quentes atrás de si. Ele era um filho das montanhas e sentia falta de sua brisa
fresca e áspera. Ansioso, inspirava o ar fresco das montanhas quando começou a escalá-
las. Sem perigo e sem vivências especiais, alcançou sua pátria terrena, a tribo amarela.
Encontrou-a em profundo pesar, pois Fong preparava-se para deixar a Terra.
Abatido, com os olhos fechados, estava deitado em seu leito. Ao seu redor
encontravam-se os mais nobres da tribo em profundo luto. Em suas feições havia paz.
Quando Miang aproximou-se, em silêncio, ele abriu os olhos e um sorriso feliz de
reconhecimento cobriu seu rosto.
“Tu vieste, Miang, meu filho?” exclamou feliz e levantou-se um pouco. Parecia
que, com a alegria, tinha recobrado novas forças.
“Deixem-me sozinho com ele,” pediu aos nobres e estes obedeceram.
Perscrutador, o olhar de Fong dirigia-se para Miang e o que viu devia ser de seu
agrado. “Agora tu amadureceste,” disse ele, “agora tu podes assumir a liderança da tribo
amarela, quando eu não mais estiver aqui. Cuide para que ela permaneça pura e
conserve a sua fé. Tu poderás instruí-la ainda melhor do que eu o consegui, pois o
Altíssimo tem te abençoado ricamente, Miang, meu filho!”
Profundamente comovido, ajoelhou-se Miang ao lado do leito do amigo paternal e
protetor, e recebeu a sua bênção. Na presença de seus conselheiros e pessoas de
confiança, Fong investiu Miang como seu sucessor. A seguir, fechou os olhos para
sempre.
Miang, porém, compareceu diante dos súditos e informou-os sobre o que Fong
havia determinado. Estes aclamavam o belo jovem, que se encontrava diante deles na
flor de sua força. “Eu quero ser um pai e um protetor para vós, como Fong o era,”
prometeu Miang, e uma voz pediu:
“Então seja Miang-Fong para nós! Que Fong continue vivo dentro de ti!”
A partir desse dia, o jovem chamar-se-ia Miang-Fong e o novo nome lembrava-o sempre de seu velho
professor, ao qual tanto tinha que agradecer e cujo exemplo esforçava-se a seguir. Com sabedoria guiava a tribo a ele
confiada, fortificava o saber do Altíssimo, ensinava e instruía sem cessar e, no entanto, sabia que tudo isso somente
seria de curta duração.

Certo dia alcançou-o uma mensagem do príncipe Hador. Miang-Fong recebeu os


mensageiros, que pediam uma audiência, em sua tenda. Expuseram-lhe um pedido do
príncipe Hador. Ele pediu proteção contra seus vizinhos, que novamente empreendiam
incursões predatórias em seu território, não deixando sua tribo viver em paz.
Miang-Fong ouvia pacientemente a queixa apresentada. Depois pediu aos
mensageiros que aceitassem a sua hospitalidade, pois devia primeiro pedir orientação do
alto. Isso eles compreenderam e retiraram-se. Em Miang-Fong, porém, os pensamentos
começavam a brotar. Poderosamente surgiu nele o saber de que o aguardavam missões
maiores do que conduzir a tribo amarela. Também Hador poderia fazer isso, caso sua fé
no Altíssimo tiver resistido e sua força, nos melhores anos, tiver aumentada. Disso,
aliás, tinha que certificar-se antes e, fervorosamente, rogou por ajuda e conselho. Então
escutou novamente a voz bem conhecida e, agora, já tão familiar, que lhe falou:
“Estás certo, Miang-Fong, quando acreditas que o Altíssimo te reserva uma missão
mais importante. O que até agora fizeste, foi tudo somente para te deixar amadurecer e
crescer interiormente. Um grande povo, entre as cordilheiras altíssimas, aguarda o
mensageiro enviado por Deus, para que os liberte de sua grande desgraça. Pedidos
suplicantes elevam-se desse povo até o trono do Altíssimo e, misericordioso, Ele lhes
concederá ajuda, assim que a hora para isso estiver madura. Unifica a tua tribo com a
dos Waringis, confia ao príncipe Hador a condução das duas tribos que, futuramente,
devem receber o nome em comum “povo das montanhas selvagens”. A proteção do
Altíssimo estará com eles, desde que se deixem conduzir obedientemente. Tu, porém,
prepara-te para, assim que isso esteja concluído, deixar esta região para sempre. Deves
dirigir-te até um povo estranho, cujo idioma ainda não conheces, numa terra muito
distante, ao encontro de um elevado servo do Altíssimo Deus, o qual te ensinará e
instruirá como conduzir um grande povo na força e na sabedoria do Alto.”
Miang-Fong recebeu agradecido a notícia e reuniu no dia seguinte os mais velhos
da tribo para uma deliberação. Eles receberam a novidade com profunda seriedade, pois
trouxe-lhes tristeza no primeiro momento: Deviam abrir mão de Miang-Fong, a quem
todos amavam e admiravam. Mas não houve contestação. Os mensageiros do príncipe
Hador foram chamados e a resolução foi-lhes apresentada. Isso era mais, muito mais do
que eles haviam esperado. Com grande alegria receberam a mensagem.
“Voltem para a vossa tribo e levem ao príncipe Hador a mensagem do Alto!”
ordenou Miang-Fong. “Ele deve, tão logo lhe seja possível, cavalgar até aqui, para que
eu possa entregar-lhe a tribo amarela.”
Passaram-se somente algumas semanas, quando, ao entardecer, chegou o príncipe
Hador com uma pequena comitiva e cumprimentou Miang-Fong com sincera alegria. A
resposta de Miang-Fong fora inesperada e, ainda agora, quase lhe parecia inacreditável.
A força e o poder das duas tribos juntas, manteria sob controle todos os assaltantes
selvagens, isso era certo.
“Mudem o vosso domicílio para próximo de nós,” convidou-os Miang-Fong.”
“Reunidos somos fortes o suficiente contra qualquer ataque. Depois, porém, tome a
liderança dos que te estão confiados. O Altíssimo os confia a ti, e Ele exigirá prestação
de contas de ti, de como procedeste com eles.”
“O que, porém, será de ti, meu amigo?” perguntou Hador, que ainda não conseguia
entender tudo.
“O Altíssimo me chama para um povo estranho,” foi a resposta de Miang-Fong.
Mais ele não disse e Hador teve que se contentar com essa resposta.
Quando tudo estava resolvido da melhor forma e Hador tinha assumido a condução
das tribos unidas, preparou-se Miang-Fong para a partida. Caminhou mais uma vez
pelas fileiras de tendas, visitando um ou outro para lhe dar algumas palavras
confortantes. Assim chegou também à tenda de Hisor, na qual outrora havia iniciado a
sua atuação como servo do Altíssimo. Ela era irreconhecível em comparação com
antigamente, pois onde antes havia sujeira e desordem, agora tudo brilhava de limpeza e
uma mulher jovem trabalhava e lidava cheia de alegria. Feliz e satisfeita era a aparência
de Hisor e A-na crescera, tornando-se uma linda moça. Miang-Fong ficou contente e
desejou-lhes toda felicidade também para o futuro.
Ele sabia os seus em boas mãos. Em toda parte encontrou vida assídua,
movimentada, que tornava as pessoas alegres e a fé no Altíssimo havia se tornado óbvia
para eles. Poderia partir sossegadamente. Miang-Fong não pretendia despedir-se
festivamente de sua tribo. Queria partir silenciosamente, para não despertar tristeza nos
corações dos que ficavam para trás. Assim, somente Hador sabia da hora da partida e,
também a ele, Miang-Fong pediu que o deixasse partir sem chamar a atenção das
pessoas.
O sol mal lançava seus primeiros raios sobre o horizonte, quando ele partiu,
acompanhado pela bênção do príncipe. No vilarejo de tendas todos ainda dormiam. A
alvorada tecia ainda seus véus cinzentos sobre arbustos e o vale. Uma vez mais voltou-
se Miang-Fong, depois partiu com o ânimo confiante. Seu caminho levava-o, dessa vez,
para o sudoeste, ao encontro do distante e desconhecido país. Seu coração batia mais
forte quando se lembrava de que deixava para trás, como uma vestimenta usada, tudo o
que até então vivenciara. Seu futuro estava incerto diante dele, desconhecido, coberto
por véus.
É desnecessário seguir todos os seus passos. Aproximamo-nos do destino de sua
aspiração, o país da Pérsia, no qual o sábio Zoroaster, a alma de fogo, com todo ardor de
seu coração testemunhava o herói esperado, o Saoshyant. E ao seu lado atuava Jadasa, a
pura, que ensinava às mulheres a pureza e o correto servir.
Por muito tempo Miang-Fong caminhou solitário. Para ele, o tempo passava
rapidamente. Nas noites vivenciava mais do que de dia, pois não era da vontade do
Altíssimo que no caminho ele fosse detido por pessoas com perguntas e pedidos de
ajuda. O que tinha que aprender em suas caminhadas – reconhecer a múltipla miséria
dos seres humanos, isto ele já tinha aprendido na sua última caminhada. Agora tinha
que ser preparado para o novo, ao encontro do qual estava indo. Quando, de noite,
repousava em leito simples, muitas vezes sob céu aberto, sobre relva ou feno, embaixo
de arbustos ou numa caverna protetora, então novamente passavam quadros e mais
quadros diante de seu espírito. Especialmente um o impressionara muito.
Ele viu uma grande árvore com muitos galhos, nos quais encontravam-se muitos
pássaros de diferentes plumagens. Uma mão luminosa espalhava grãos no chão embaixo
desta árvore. Aí vieram todos os pássaros e picavam os grãos. Um deles, porém, tinha
uma plumagem desconhecida, ele tinha um aspecto diferente dos outros. Mas também
ele se aproximou e tomou dos grãos. A mão do semeador quis detê-lo, mas uma voz
disse:
“Deixa picar também esse pássaro, ele também deve poder saciar-se. Assim é da
vontade de Deus.”
Miang-Fong não entendia esse quadro, mas ele não pôde esquecê-lo e, quando
tinha atravessado as montanhas protetoras da Pérsia, aproximando-se aos poucos da
capital, sentiu nesse país uma disposição bem ordenada, uma prosperidade sem
opulência, seres humanos satisfeitos, como ainda não havia encontrado antes. Em toda
parte via fisionomias alegres e vida ativa. Isso lhe agradava, e ele se esforçava para
entender-se com os moradores do país; logo aprendeu uma palavra, que sempre voltava
e que possuía um som mais claro que todas as outras, e notava-se que a mesma fazia
bater mais forte os corações e que era pronunciada em todos os tons de veneração,
alegria e gratidão, a palavra” Zoroaster”!
Nas praças das localidades encontrava as pessoas reunidas regularmente para
adoração a Deus. Silêncio e ordem reinavam em toda parte.
“Deveras, um país abençoado” pensou Miang-Fong novamente e,
involuntariamente, comparou-o com as planícies férteis, nas quais os homens
amarelados cultivavam o arroz, do país rico, no qual, porém, os corações das pessoas
erm tão pobres. Eles não tinham um Zoroaster, essa era a diferença. Aí foi dado a
Miang-Fong um novo reconhecimento: quanta coisa magnífica pode realizar um único
espírito puro, quando a força do Altíssimo está com ele. Um povo inteiro podia ser
transformado com isso. Mais alegre ainda, continuou sua caminhada. Nas estradas
aumentava o número de pessoas a pé e o de veículos. Todos dirigiam-se para a capital,
como se algo os chamasse para lá e Miang-Fong seguia essa peregrinação.
Finalmente chegou o momento em que Miang-Fong entrou nas ruas da maravilhosa
cidade. Ele não precisava perguntar pela moradia do Zoroaster. Em sonho lhe havia sido
mostrada a casa branca a qual devia procurar. E parecia-lhe um sonho quando se
encontrou diante de Zoroaster, apresentando-lhe o seu pedido de aceitá-lo como seu
aluno.
Zoroaster havia reunido seus alunos ao seu redor, para instruí-los. Surpreso olhou
para o jovem forasteiro, que tinha o aspecto totalmente diferente das pessoas de seu
país. Ele não pôde familiarizar-se com a fisionomia estranha e considerou fingimento o
jeito modesto de
Miang-Fong. Ele recusou o seu pedido. Parecia-lhe impossível aceitar um membro tão
estranho em sua comunidade. Iria incomodá-lo, e ele também não compreendia por que
esse forasteiro necessitaria de seu ensinamento. Estava prestes a se voltar novamente
aos seus alunos e considerava o assunto como resolvido, quando o jovem forasteiro
disse, em sílabas um pouco quebradas, no entanto compreensíveis: “Mestre, deixe que
também o pássaro estranho pique dos grãos dourados!”
Com essas palavras rompeu um véu diante dos olhos de Zoroaster e ele lembrou-se
novamente do quadro que lhe fora mostrado, do pássaro estranho que tinha se juntado
aos nativos e diligentemente picava junto o alimento espalhado.
Zoroaster não se arrependeu em nenhum momento de ter aceito Miang-Fong, pois
o jovem silencioso exercia a mais forte influência sobre os seus companheiros. Uma
força partia dele, que nenhum dos outros possuía, que os estimulava a imitá-lo. Sedento,
Miang-Fong absorvia cada palavra do Zoroaster em sua alma e processava-a em seu
íntimo, transformava-a em uma propriedade imperdível e acumulava, dessa forma,
tesouros para toda a sua vida.
Ele não fazia parte daqueles, que imitavam como escravos aquilo que lhes era
ensinado, que só obedeciam com o raciocínio. Sempre era impelido a continuar no
caminho que Zoroaster trilhava com eles. Para ele, todos os ensinamentos eram grãos
dourados de semeadura, que deviam ser cuidados, para crescerem e tornarem-se árvores
que ofereciam sombra. Também o seu saber sobre o Altíssimo, que Zoroaster chamava
de Ahuramazda, crescia e firmava-se e, como tesouro maior, adquiria o saber.
Demasiadamente rápido passou o tempo de aprendizado no belo país da Pérsia.
Miang-Fong agora estava pronto, preparado para a verdadeira missão de sua vida: levar
a luz da verdade para um povo, que sem essa ajuda deveria afundar na noite mais
escura. Por força própria não era mais capaz de ajudar-se a si mesmo, pois as trevas já
tinham cravadas suas garras profundamente em seu corpo. Extenuado até a morte estava
o corpo desse povo, repleto de graves feridas purulentas. Se deveria sarar novamente,
então estava na última hora de auxiliá-lo, senão extinguir-se-ia o último brilho da luz de
sua alma.
Todos sentiam dolorosamente a falta do jovem silencioso, que lhes tinha repassado
tanta força com o seu silêncio. As poucas palavras que tinha pronunciado, sempre
traziam clareza onde os outros não conseguiam prosseguir. Sempre, porém, o que ele
dizia era totalmente diferente daquilo que todos esperavam. Novos caminhos no pensar
e agir, mais inovadores que dos demais, foram trilhados por Miang-Fong.
Assim, certa vez respondeu à pergunta, qual seria a melhor forma de ajudar às
pessoas: “Deixem-nas passar fome!”
Ninguém conseguia entender isso, até que esclareceu: “Uma pessoa faminta pede
ardentemente por comida, pois a fome a tortura. Entretanto, se ofereceres comida ao
farto, então ele a despreza. Se uma pessoa acredita ter encontrado a verdade, então
dificilmente ele a aceitará de vós, mesmo se a verdade dele for uma ilusão. Somente
quando reconhecer que estava enganado, ele abrir-se-á para a vossa verdade.”
Isto era claro e inequívoco, mesmo assim um dos alunos ainda perguntou:” O que
queres dizer com deixar passar fome, Miang-Fong?”
Outra vez, igualmente claro veio o novo esclarecimento: “Não faz sentido oferecer
a verdade, somente a fome por ela abre as almas. Portanto, tirem do farto a vossa ajuda,
até que ele peça por ela, mesmo quando ele afirmar necessitar dela urgentemente.”
Também Jadasa afeiçoou-se ao jovem com os olhos escuros e sérios.
Foi mostrado a ela um quadro, no qual braços suplicantes se estendiam ao encontro
dele e vozes aflitas chamavam-no. Ela viu-o escalando o planalto do Tibete, um claro
lume na mão, que iluminava todos os precipícios e abismos escuros. Mas viu também
figuras horríveis, manchadas de sangue, que se interpunham em seu caminho, e seu
coração tremeu de compaixão pela miséria que ele haveria de ver e vivenciar.
Silencioso e discreto como havia chegado, Miang-Fong deixou o local de sua
última preparação. Ele sabia, que nunca mais voltaria a este lugar, nunca mais voltaria a
ver as pessoas que se tornaram caras para ele. Porém, muito acima de todos os desejos
humanos estava aquilo, para o qual ele foi designado: ser porta-archote da Luz e
conduzir um povo da escuridão novamente para o dia claro. A despedida foi calorosa e
cordial como nunca antes. Por longo tempo os olhares acompanharam o jovem, ao qual
todos tinham se afeiçoado e que, agora, novamente trilhava seu caminho tão solitário.
No coração de Miang-Fong vivia a alegria! Agora podia dedicar-se completamente
àquilo que ele tanto ansiara por toda sua vida: ao Altíssimo, que o havia escolhido como
Seu servo.
Durou vários meses até que Miang-Fong chegou ao pé das altas montanhas, que
circundavam o planalto com seus cumes cobertos de gelo, meses de aprofundamento
interior, de último fortalecimento. Certo dia, ao anoitecer, chegou a um pequeno
povoado nas montanhas, onde sopravam ventos frios. Choupanas baixas, sujas,
espremiam-se junto às paredes das encostas das montanhas, uma apertada à outra, como
se quisessem proteger-se mutuamente. Telhados planos, cinzentos fechavam-nas em
cima. A aldeia parecia deserta, somente a alguma distância ouvia-se sons estranhos,
como estalos, choros e gritos estridentes intercalados. Não soava nada atraente, mesmo
assim, Miang-Fong dirigiu seus passos para o lugar de onde vinham os sons.
Apresentou-se a ele um quadro horroroso. Um monte de gente tremendo apinhava-
se diante de algumas figuras selvagens que, com ruidosas matracas na mão
apresentavam danças, cujos movimentos lembravam os de animais selvagens, que
querem atirar-se sobre sua presa, mas que sempre são detidos no último momento. De
suas bocas também saíam os sons estridentes, que mudavam novamente para sons
invocantes. Pintadas com cores berrantes, vestidas com peles e plumas, essas figuras
proporcionavam um aspecto repelente. Um deles puxou agora uma faca de sua cinta e
queria dar um golpe rápido. Agarrou alguém do amontoado de gente e puxou-o,
paralizado de medo, para o seu lado. Miang-Fong via aquilo com pavor.
“Pára!” exclamou com voz estrondosa e com o braço levantado.
O que era isto? Admirado, o sacerdote mago deixou cair os braços. Nunca antes
havia acontecido aqui algo semelhante. Mas antes que pudesse refletir, já estava Miang-
Fong diante dele e tirou-lhe a faca. Ameaçadoramente mirava-o de cima a baixo.
“Como te atreves?” berrou o sacerdote mago e quis apanhar novamente a faca.
Entretanto, uma chama de ira sagrada tão forte chamejava dos olhos de Miang-Fong,
que deixou cair a mão, já levantada, e involuntariamente retrocedeu um passo.
Miang-Fong tomou a mão da vítima, ainda paralizada de medo, e confortava-a
amavelmente.
“Não tenhas medo, ele não pode fazer-te nenhum mal!” prometeu-lhe e dele partiu
tamanha força, que todos os moradores da aldeia suspiraram aliviados. Como um Deus,
descido do céu, assim lhes parecia Miang-Fong e eles caíram de joelhos diante dele e
queriam venerá-lo. Ele, porém, proibiu-o e lhes disse:
“Venham e mostrem-me onde moram. Eu quero ficar junto de vós e ajudar-vos.”
Eles ficaram radiantes, os dois sacerdotes, porém, afastaram-se furtivamente.
Tinham ficado com medo. Miang-Fong ia, rodeado pelos moradores, em direção à
aldeia. Ninguem queria deixá- lo, todos estavam presos nos seus olhos, sua boca e
aguardavam o que faria agora.
“Onde podemos conversar?” perguntou Miang-Fong e, procurando, olhou ao redor.
Eles apontaram para uma casa um pouco maior. De boa vontade o proprietário abriu a
porta e todos entravam, empurrando-se. Rapidamente acenderam um fogo no fogão, que
lançava luzes avermelhadas sobre os rostos dos presentes, aquecendo-os. Sentaram-se
no chão, outros permaneceram em pé no vão da porta ou ficaram aglomeradas no lado
de fora,.
Agora, Miang-Fong começou a falar.
“Digam-me, gente, o que aconteceu há pouco lá fora? O que fostes fazer lá, e
porque o homem vestido com peles queria matar um de vós?” Adiantou-se um homem
de mais idade, inclinou-se levemente diante de Miang-Fong, como se um respeito
desconhecido o obrigasse a fazer esse movimento inusitado, e começou a falar:
“Forasteiro, tu viste como um sacerdote mago, com o seu ajudante, queria
novamente roubar uma pessoa e sacrificá-la. Insaciável é ele em suas exigências. Ele
nos havia chamado e ameaçado, que chamaria a ira dos deuses sobre nós, se não
obedecessemos.”
“E o que teria acontecido com a vítima? perguntou Miang-Fong abalado.”
“Ele a teria abandonado e as suas posses teriam passado para o sacerdote,”
explicou o homem.
“Vós realmente acreditais, que deuses exigem tal sacrifício?” perguntou Miang-
Fong.
“Nós não o sabemos. Os sacerdotes assim o dizem e ameaçam-nos e maldizem-nos,
quando não obedecemos.”
“E aí ficam com medo?” perguntou Miang-Fong novamente.
As pessoas entreolharam-se acanhadas. Uma criança choramingava. As mulheres
olharam assustadas.
“Se não fizermos o que querem, então eles enfeitiçam o nosso gado para que fique
doente e morra, ou eles atraem fortes tempestades, ou maldizem as mulheres para que
não possam ter filhos.”
“Como um ser humano pode ter tanto poder?” admirou-se Miang-Fong, “e que
“deuses” são esses que os ajudam a praticar tanto mal?”
“Forasteiro, tu não os conheces, mas nós os conhecemos e temos medo deles,”
disse o velho cauteloso, e Miang-Fong leu concordância em todos os rostos. Então ele
se levantou: “Eu, porém, vos digo que não são deuses que ajudam esses sacerdotes! Um
Deus não prejudica os seres humanos, ele os ajuda!
“Tu tens um tal Deus?” queriam eles saber então e Miang-Fong afirmou.
“Vós mesmos vistes quão forte Ele é! O sacerdote perdeu seu poder sobre vós e teve que largar sua vítima!”
Isto todos eles tinham vivenciado, e ainda agora admiravam-se da coragem do forasteiro.

“O teu Deus pode ajudar a nós também?” queriam saber agora e Ming-Fong
afirmava-o alegremente.
“Meu Deus é um Deus bom, e Ele me mandou para junto de vós para que vos
auxilie e vos salve do poder dos sacerdotes, que vos corrompem. Se vós acreditais Nele
e pedís proteção a Ele, Ele vos protegerá, como tem vos ajudado nesta noite. Então não
mais precisais temer nenhum sacerdote, eles não vos podem fazer mal.”
Os rostos preocupados iluminaram-se. A força e a confiança de Miang-Fong
levantou a sua coragem. Eles mesmos o haviam vivenciado, como o sacerdote tinha
fugido, contra o qual todos eles juntos tinham sido impotentes.
“Mas ele voltará e exigirá novas vítimas,” disse alguém desanimado.
“Eu permanecerei convosco até aprenderdes a colocar-vos na proteção do bom
Deus,” prometeu Miang-Fong.
Irrompeu então tão grande alegria, que Miang-Fong teve que tapar seus ouvidos.
Um medo que durou anos, um pesadelo, que estava sufocando estes seres humanos, foi
afastado deles. Sozinhos, haviam sido muito fracos e ignorantes, agora, porém, com a
promessa de Miang-Fong, tornaram-se corajosos.
Passaram-se meses, nos quais Miang-Fong conseguiu tornar novamente alegres
estas pessoas intimidadas e amedrontadas. Mais francos eram seus olhares e escutava-se
risos alegres, quando reuniram-se para serem instruídos.
“É de se admirar,” disse certo dia Mu-hai, o ancião, para Miang-Fong, “o que de
nós fizeste. Nosso coração tornou-se leve desde que estás conosco. Antes havia um
grande peso nele, que quase nos sufocou.”
E assim era. A dominação dos sacerdotes não permitiu um desenvolvimento nas
almas das pessoas, somente medo e miséria. Agora podiam tratar de seu trabalho sem
preocupação, pois os sacerdotes não mais apareceram. Assim parecia. Na verdade,
porém, olhos atentos observavam tudo o que acontecia no pequeno vilarejo das
montanhas, pois havia um entre os moradores, que secretamente estava ao lado dos
sacerdotes e que de noite levava mensagens a eles. Ódio vivia na alma desse homem,
ódio contra a luz, que irradiava de Miang-Fong e que ele não podia suportar. Fu era
pobre porque era preguiçoso e esperava receber uma recompensa dos sacerdotes, se
prestasse serviços de espionagem a eles.
Miang-Fong, no entanto, continuou, despreocupado com as atividades trevosas, a
ajudar e a acender a luz nas almas dessas pessoas simples.
Quando foi informado, aos sacerdotes, de que a influência de Miang-Fong
aumentava diariamente e que não tomava nenhuma providência para deixar o vilarejo,
conspiraram sobre como podiam liquidá-lo. Era muito difícil aproximar-se dele, pois
sempre estava rodeado por pessoas, mas talvez oferecer-se-ia uma oportunidade de
encontrá-lo sozinho.
“Ele não vai acreditar nisso,” opinou Fu. “Além disso, não acredito que tesouros
possam atraí-lo.”
Assim tiveram que inventar algo diferente e, no final, chegaram a uma manha
diabólica. Amarraram um animal do pasto à meia altura de uma rocha saliente e
deixaram-no gemendo dolorosamente. Porém, aos homens do povoado Fu teve que
dizer que era um espírito irado com o povo, por terem abandonado os sacerdotes.
Medo supersticioso queria novamente apoderar-se das pessoas, pois lúgubres
entoavam os gemidos do animal faminto e torturado. Tinham-no amarrado num local
íngreme, onde estava em constante perigo de enforcar-se.
Miang-Fong, no entanto, resolveu averiguar corajosamente o motivo. Ele escalou o
caminho estreito que o levaria próximo ao local de onde vinham os gemidos. De
repente, seu pé deu um passo em falso numa pedra escorregadia e quase despencou.
Pareceu, porém, como se uma mão invisível o amparasse, até que seus pés
conseguissem pisar em solo firme. Nitidamente reconheceu agora, acima de si, o animal
amarrado e grande compaixão e ira sobre tanta maldade tomou conta dele. Com grande
esforço escalou o último trecho e encontrava-se, respirando aliviado, no pequeno
ressalto de rocha lisa. Inquieto, o animal queria encostar-se nele, ele sentia a ajuda, mas
era impossível soltá-lo. Ambos iriam despencar no abismo, pois não podiam
movimentar-se simultaneamente.
Enquanto Miang-Fong ainda refletia o que deveria fazer, um bloco de granito
despencou repentinamente lá do alto e passou próximo dele, ao mesmo tempo ouviu-se
um grito, e Miang-Fong viu o corpo de um homem passando por ele e caindo no
abismo. Ele não conseguiu ver de quem se tratava, no entanto, sabia que o acidentado
alcançou o fim a ele destinado. Dirigiu-se ao animal que tremia em todo o corpo,
encorajando-o.
“Eu vou buscar ajuda para ti, disse ele, e o animal deve tê-lo entendido, pois
aquietou-se.
Miang-Fong, porém, apressou-se, tão rapidamente quanto o caminho inclinado o
permitia, até o povoado e relatou o que havia vivenciado. Alguns homens colocaram-se
à disposição para voltar com ele e libertar o animal. Levaram cordas para a segurança
mútua e, incutindo ânimo, foi possível soltar o animal e trazê-lo para baixo.
A partir desse dia, Fu nunca mais foi visto.
Com a morte de Fu, desapareceu o único espírito mau do povoado e Miang-Fong
pôde continuar a atuar desimpedidamente. Aos poucos desapareceu o medo e crescia a
confiança e a força nas almas das pessoas e quando, após algum tempo, Miang-Fong
deles se despediu, ele sabia que eles permaneceriam fiéis à sua nova fé. Havia, no
entanto, ainda muitos seres humanos desanimados e amedrontados nesse grande país.
Pessoas embrutecidas e cruéis subjugavam os fracos, em toda parte faziam-se sacrifícios
humanos, sob a alegação de que os deuses assim o exigiam. Relativamente fácil havia
sido a vida de Miang-Fong naquele pequeno povoado nas montanhas distantes. Agora,
porém, quando avançava para a parte central do país, reconheceu o sinistro poder que os
sacerdotes e os príncipes de tribos mantinham em suas mãos.
Parecia que aqui existiam dois tipos de pessoas: os com as feições grosseiras,
narizes largos, olhos bem inclinados e membros nodosos, grosseiros. Elas também eram
mais fortes fisicamente que as outras, cuja cor da pele era mais clara e as feições dos
rostos mais delicadas.
Miang-Fong investigou a origem disso e foi informado que os homens Tau, como
se chamava a classe dominante, haviam invadido esta terra em época remota, vindos do
norte e desalojada a população local dos Ming, forçando-os sob seu domínio. Agora não
eram mais capazes de se defender, pois os homens Tau também tinham trazido sua
crença de magia, seus sacrifícios humanos e seus sacerdotes magos, que conseguiram,
com muita astúcia e mistificações, mas também com ajuda de auxiliares trevosos,
manter o povo Ming sob medo e em dependência.
Miang-Fong ainda não havia caminhado longe, quando deparou-se novamente com
vestígios desse culto horrivel. Blocos de pedra toscos, cobertos de sangue,
testemunhavam dos horrores, que aqui haviam acontecido. O local parecia deserto, onde
somente há pouco tempo devia ter ocorrido uma cena de horror. O coração de Miang-
Fong inflamou-se de ira. Procurando, olhou ao seu redor. No começo não pôde
descobrir um povoado. Algo, porém, atraiu o seu olhar: uma mulher velha, que estava
caída no chão a alguma distância. Ele foi até ela, tocou nela para ver se ainda estava
viva. Ela não deu nenhum sinal de que sentia o que lhe acontecia. Então virou o seu
corpo, para melhor poder enxergar. Mas, horrorizado, recuou alguns passos. Era um
rosto mutilado, com as órbitas dos olhos vazias. Nunca havia visto algo tão horrível.
Debruçou-se sobre o corpo. A mulher devia estar morta, o último sopro parecia ter
escapado do corpo. Mas não podia deixar a morta abandonada aqui! Animais selvagens
viriam e atacariam o cadáver. Procurando, olhou ao seu redor. Nas proximidades havia
somente pedras, nenhum arbusto, do qual poderia ter quebrado alguns galhos, e o chão
era duro. Assim empilhou pedras ao redor do corpo e cobriu-o igualmente com pedras.
A seguir, fez uma silenciosa oração pela pobre alma.
No entanto, ainda não havia terminado, quando, de diversos lados, aproximaram-se
figuras sinistras com facas apontadas ameaçadoramente, que o cercaram e investiram
contra ele com sons selvagens. Miang-Fong ficou parado calma e tranqüilamente e
olhou fixamente nos olhos deles. Isso era descomunal para eles, que sempre viam as
pessoas fugir em pavor mortal.
“Levem ele convosco!” ordenou o chefe, um gigante com olhos oblíquos, nariz
chato e expressão cruel no rosto.
Miang-Fong tolerou tudo. Conduziram-no até um povoado, construído toscamente
de pedras cinzentas, de modo que as habitações pouco se diferenciavam do chão
rochoso. Com gritaria triunfante, Miang-Fong foi levado a uma espécie de praça e lá
amarrado num poste. A seguir, com tambores e apitos estridentes, os homens chamaram
os habitantes das casas que, contrariados, compareceram. Admirados ao máximo,
perceberam o forasteiro, que se encontrava tão corajoso entre os selvagens. Algo assim
nunca lhes havia ocorrido. Parecia como se os selvagens ainda queriam deleitar-se na
contemplação do prisioneiro, pois o gigante parou diante de Miang-Fong e começou a
interrogá-lo.
“Quem és tu, e o que procuras aqui?”
Com voz sonante respondeu Miang-Fong: “Eu sou o mensageiro do Altíssimo e
vim para ajudar aos oprimidos neste país.”
Quase inacreditáveis soaram estas palavras, incompreensíveis e, mesmo assim,
havia algo nelas que chamou a atenção de todos. Os selvagens olharam para Miang-
Fong um tanto desnorteados, pois este não mostrava nenhum medo e nem queria
dobrar-se ao poder deles. O que deveriam fazer com ele? No entanto, não tinha ele
ameaçado de que queria libertar os oprimidos?
Subitamente, o gigante irrompeu numa gargalhada feia: “Tu queres libertar os
oprimidos? Liberta-te primeiro a ti mesmo! Ainda te encontras em nosso poder.”
“Somente pelo tempo que o meu Senhor, o Altíssimo, o permitir,” respondeu
Miang-Fong sem medo. “Nenhum momento mais.”
“Então, vamos ver, quem é o mais forte, teu Senhor, do qual falas tão
arrogantemente, ou esta minha faca aqui!” gabou-se o gigante. Ele levantou sua faca
curvada e queria dar o golpe, quando um pequeno cão, que estava junto aos moradores
espectadores, correu por entre suas pernas, latindo alto. O gigante tropeçou e caiu no
chão. Nisso, a faca encravou-se profundamente no seu próprio peito. Um grito fez se
ouvir na multidão. Em Miang-Fong, porém, elevou-se fervoroso agradecimento, pela
visível ajuda de seu Senhor.
“Quem agora ainda se atreve a duvidar que o Altíssimo protege seus servos?”
perguntou Miang-Fong.
Cheios de medo supersticioso olharam os sacerdotes magos para ele. Não tinham
coragem de levar o morto embora, até que Miang-Fong ordenou-lhes:
“Levem esse aí embora e soltem as minhas amarras, para que possa anunciar-vos
mais sobre o meu Senhor.”
Como se essas palavras quebrassem um encanto, alguns homens vieram correndo,
cortaram as cordas e afastaram-se dele novamente, com respeito. Miang-Fong, porém,
falou com eles, como se não tivesse acontecido nada de especial.
“Vós agora o vivenciastes, ó homens, que não precisais ter medo quando o
Altíssimo vos protege. Mas vós ainda não O conheceis, por isso também não podeis
pedir a Sua ajuda. Eu, porém, O conheço, e Ele me envia até vós para que eu vos
auxilie.”
Esta era outra nova, incompreensível para as pobres, amedrontadas pessoas. Existia
realmente um Ser elevado, que se apiedava delas?
“Então eu não roguei em vão,” fez se ouvir uma voz, e um jovem franzino
aproximou-se com entusiasmo e chegou-se bem perto de Miang-Fong. “Sempre de novo
roguei que nos viesse auxílio em nossa angústia. Eu, no entanto, não sabia a quem devia
rogar, mas sempre acreditava que devia existir um Deus bom, e nele tinha esperança.”
“Fizeste bem, e Ele ouviu o teu pedido,” disse Miang-Fong amavelmente. “E agora
todos vós podeis ouvir Dele. Muito posso anunciar-vos Dele, antes de tudo, porém,
saibam que Ele não esquece ninguém que está em apuros e que Seus servos O informam
sobre cada um que se esforça para o bem.”
Já essas poucas explicações eram tão avassaladoramente novas para essas pessoas –
que até agora sempre haviam sido mantidas sob medo de “deuses” ameaçadores, irados,
castigadores, ávidos por sangue e sacrifícios – que mal podiam acreditar no que estavam
ouvindo.
“Conte-nos mais sobre o Deus bom,” pediram. “Onde Ele está? Ele nos vê?
Podemos realmente fazer pedidos?”
O sofrimento suportado há tanto tempo havia deixado receptivas as pessoas, que
aqui se aglomeravam junto a Miang-Fong. Nem todos eram moradores do povoado.
Muitos continuavam tremendo diante do poder dos sacerdotes e afastaram-se
silenciosamente, para que não fossem vistos aqui. Eles acreditavam que os sacerdotes
podiam vê-los também de longe e eles receavam sua vingança. Min-fu, no entanto, o
jovem, que como primeiro ousara aproximar-se, escutava cheio de felicidade as palavras
de Miang-Fong e encorajava os demais a formular novas perguntas.
“Não podemos permanecer aqui, ó sábio,” disseram elas. “Venha para o nosso
povoado e conta-nos mais sobre o teu Senhor forte e bom.”
Novamente, foi encontrado um povoado no qual Miang-Fong podia atuar e ele o
fez cheio de alegria. Min-fu não saiu do lado dele e, quando chegou o momento em que
Miang-Fong foi chamado para espalhar a sua semeadura em outros corações, ele pediu:
“Deixa-me seguir contigo, ó grande mestre, para que não fiques sozinho em tua difícil
caminhada. Deixa-me ser o teu Tschila, teu aluno, que de ti aprende e te auxilia a tornar
as tuas caminhadas menos penosas.”
Satisfeito, Miang-Fong concordou. Era isso que ele esperava, que encontrasse
pessoas dispostas a apoiá-lo em sua grande obra.
Miang-Fong continuou percorrendo o país, de localidade em localidade e, em todo
lugar, deparou-se com o mesmo domínio de horror de superstição tenebrosa. Certo dia
alcançou-o o chamado de uma tribo especialmente ameaçada. Ele havia se dirigido para
o norte, rumo aos altos contrafortes da cordilheira. Lá encontrou um povoado maior,
chamado Kum-bum, no qual instalara-se um grupo de sacerdotes magos, que dali
dominava toda a região.
O chefe da tribo, um homen Tau, dominava as pessoas junto com os sacerdotes
magos e arrecadava dos circunvizinhos grande quantidade de gado, leite e grãos. Uma
tropa, armada com flechas e lanças, garantia-lhe o poder de extorquir tudo o que
desejava. Impotentes, os moradores tiveram que presenciar como eram roubados
continuamente.
A notícia do sábio forasteiro já havia chegado até aqui, e um homem corajoso
colocou-se à disposição para sondar Miang-Fong e para pedir sua ajuda. Pois, sobre ele
espalhavam-se fatos milagrosos: que era invulnerável, porque tinha um Deus poderoso,
que era mais forte do que todos os demais deuses, mais forte também que os sacerdotes,
que perante ele caíam mortos quando ele apenas os olhava. Novamente, as pessoas já
haviam adaptado os fatos à sua maneira de pensar.
O mensageiro, Mao-tsu, encontrou efetivamente o rastro de Miang-Fong e seu
companheiro, pois boatos singulares precederam-no sobre o seu poder e sua influência.
Mao-tsu inclinou-se profundamente diante do grande mestre sábio, como Miang-
Fong geralmente era chamado, juntou as palmas das mãos levantadas e pediu:
“Ó tu, grande mestre, os moradores de Kum-bum pedem a tua ajuda! Estão sendo
duramente ameaçados por Mao-dsung, o chefe selvagem, as suas vidas estão sempre em
perigo. Veio até nós a notícia de que tu te encontras na proteção de um Deus, cuja
magia é mais forte do que a dos deuses dos quais nos falam os sacerdotes. Viemos
pedir-te a proteção Dele!”
Admirado, Miang-Fong escutava as palavras. O que os homens haviam feito da
notícia sobre o Altíssimo? Quão rapidamente a tinham torcido de acordo com o seu
pensamento! Devia prestar muita atenção e reconstituir novamente a verdade.
“Conduze-me até Kum-bum,” ordenou a Ma-tsu, e de muito bom grado, este
obedeceu. O caminho era árduo. Selvagens torrentes das montanhas tinham que ser
transpostas, superados caminhos cheios de rochas e gelados sopravam os ventos vindos
do norte para o planalto aberto, no qual, ao sopé de uma pequena elevação, estava
situada Kum-bum. Aqui tudo revelava uma riqueza maior. Este planalto parecia ser
fértil, as moradias das pessoas mais sólidas.
Miang-Fong chegou a tempo para assistir a uma espécie de festa. Grande número
de pessoas percorria as ruas, porém, não pareciam felizes. Mesmo que elas
conversassem e trocassem cumprimentos, o som abafado de tambores e de apitos
estridentes proporcionavam a tudo uma nota sinistra. Aproximava-se agora um cortejo,
diante do qual todos recuaram, na dianteira um sacerdote ornamentado, envolto em
diversos panos coloridos, o rosto pintado em cores, agitando uma grande faca na mão
direita. Atrás dele seguiam mais algumas figuras semelhantes, sacudindo nas mãos
tambores ruidosos que, ao sacudir, soltavam seus sons dissonantes. Era um ruído
infernal, ao qual o silêncio mortal dos moradores oferecia um estranho contraste.
Miang-Fong observava o cortejo que estava se aproximando. Eram rostos
animalescos, cujas expressões cruéis ainda eram intensificadas pela pintura berrante. Ele
fixou seu olhar neles, enviando ao seu encontro pensamentos defensivos. Estes também
pareciam sentir alguma coisa, pois seus passos vieram a estancar, no entanto, logo a
seguir os pequenos tambores redondos rugiram ainda mais altos e os apitos soaram mais
estridentes e dissonantes. O cortejo movimentava-se justamente na direção em que
Miang-Fong e seu companheiro se encontravam. Aproximava-se já dos espectadores
aglomerados. Um tremor perpassou a multidão, Miang-Fong sentia o seu medo. Então
ele se adiantou, levantou imperativamente a mão e mandou o cortejo barulhento parar.
Com um movimento contrariado, o primeiro dos sacerdotes magos quis empurrá-lo para
o lado, Miang Fong, porém, estava como que enraizado, de modo que obrigou o outro a
parar também.
“Saia do meu caminho!” berrou o mago. “Tu nada tens a fazer aqui.”
“Estás enganado,” foi a resposta de Miang-Fong. “Eu procuro algo, que tu não
possuis e não conheces, entretanto, tens que me dar.”
“Tu falas em enigmas, homem,” respondeu o mago ironicamente. “O que não se
tem, não se pode dar. Ceda lugar, senão terás que sentir a minha faca.” E,
ameaçadoramente, a agitava diante do rosto de Miang-Fong.
“Tu perdeste algo!” disse Miang-Fong inesperadamente, e o mago abaixou-se,
como se quisesse apanhar alguma coisa do chão. Imediatamente Miang-Fong tirou-lhe a
faca, quebrou a lâmina ao meio e jogou-a aos pés do mago. Uivando de raiva, este quis
avançar sobre ele, porém, o olhar claro de Miang-Fong o deteve.
“Vês, que nada podes fazer contra mim?” perguntou Miang-Fong. “Agora dá-me
aquilo que tu não possues e não conheces: a liberdade para estas pessoas! Pare de
torturá-las e de amedrontá-las!”
Bravejando de raiva, o mago dirigiu-se aos seus companheiros.
“Peguem-no e amarrem-no!” ordenou.
Mas ele falou ao vento. De Miang-Fong partia algo que deteve até essas pessoas
depravadas. Elas não estavam armadas, traziam somente seus instrumentos barulhentos.
Quem poderia saber que tipo de magia ele possuía? Nunca antes havia acontecido que
alguém tivesse a coragem de enfrentar Hi-lao. Cheia de curiosidade, a multidão
observava. O que faria o sacerdote mago agora? Se realmente possuisse poder, então
devia mostrá-lo agora! Mas nada aconteceu. Ele tentou desviar e passar por Miang-
Fong. Este, porém, enfrentou-o novamente e disse: “Mais uma vez eu exijo de ti: deixa
estas pessoas em paz! Tu não tens poder sobre elas.”
O que faria Hi-lao? Ele sempre havia afirmado que os deuses iríam esmagar aquele
que se opusesse a ele? E agora não acontecia nada? Pela primeira vez, fizeram-se ouvir
vozes: “Agora, Hi-lao, onde estão teus deuses? Chama-os para ajudar-te!”
Então Miang-Fong levantou sua voz, e ela soou longe: “Amigos, os deuses, com os
quais ele vos ameaçava, não existem! Existe somente um Deus, a quem tudo tem que
servir e Seus servos não são inimigos dos seres humanos, mas seus amigos!”
“Vejam, vejam!” exclamou uma voz agitada e indicou para uma figura horrível,
que se formava atrás de Hi-lao. “O deus dele!”
Aos gritos, as pessoas queriam fugir. Hi-lao voltou-se e caiu ao chão gritando por
ajuda. Também para ele isso era novo.
“Foi ele quem o mandou!” gritou ele e indicou para Miang-Fong. “Ajudem-me,
gente boa!”
Então elas pararam e observaram com uma certa satisfação maliciosa o medo
daqueles, diante dos quais por tanto tempo tremeram. Miang-Fong, no entanto, levantou
seus braços para o céu e exclamou: “Ó Altíssimo, a quem me é permitido servir,
proteja-nos desse demônio, que esse homem gerou!”
Então desceu uma neblina luminosa e, diante dela, desfez-se a figura.
“Vistes vós, como o Altíssimo enviou para nós um raio de Sua pureza?” exclamou
Miang-Fong. “Não tenham medo desse homem, ele é impotente e não pode vos fazer
mal. Retirem-no daqui,” ordenou aos acompanhantes do sacerdote mago e eles
obedeceram.
E Miang-Fong voltou-se para os espectadores e disse: “Quem procura o bem,
encontrará o bem. Quem procura o mal, até ele virá o mal e o destrói. Vós o vistes.
Procurem sempre o bem, então sempre vos virá auxílio.”
Espalhou-se rapidamente a notícia do que havia acontecido e chegou também até
Mao-dsung, o chefe da tribo. Este encolerizou-se e partiu com seus soldados para
prender o intruso. Os moradores, porém, advertiram Miang-Fong e o esconderam em
seu povoado. Um corredor escuro, na casa de Göpek, que conduzia do porão da casa
para dentro da montanha, deu abrigo a Miang-Fong e seu companheiro e, às escondidas,
Göpek os abastecia com alimento e bebida.
A Miang-Fong não agradava esperar no esconderijo, parecia-lhe muito melhor
enfrentar Mao-dsung abertamente . Mas o seu guia luminoso ordenou-lhe: “Espere, até
que sejas chamado.” Contentou-se com isso e ensinava às escondidas.
Mao-dsung, porém, bravejava de raiva e jurou que iria incendiar tudo, se o intruso
não lhe fosse entregue. Deus, porém, ajudou Miang-Fong, para que não fosse
encontrado. Mao-dsung mandou vasculhar todas as casas, mas Miang-Fong não foi
encontrado. Quando seus soldados o informaram que não tinham achado o procurado,
Mao-dsung berrou: “Então eles vão me pagar!” E deu ordem para acender uma grande
fogueira, na qual os soldados deveriam jogar todos os pertences dos moradores.
Entraram nas casas, saquearam e levaram tudo, o que viam pelo caminho, para fora e
jogaram-no ao fogo. Os magos, no entanto, dançavam ao redor do fogo, gritavam e
cantavam suas selvagens invocações. Os moradores assistiam clamorosos e não sabiam
como ajudar-se. Havia muitos que agora teriam denunciado o esconderijo de Miang-
Fong, se o soubessem. Mas este havia ficado em segredo para todos.
O fogo, bem alimentado, aumentava, e sempre mais selvagens tornaram-se as
contorções dos membros dos sacerdotes, que dançavam ao redor. De repente, apareceu
Miang-Fong diante do fogo, como se surgido do solo. Imperativamente, levantou as
mãos e exclamou tão alto, que todos puderam ouvir:
“Em nome do Altíssimo Deus eu te ordeno, fogo, pára de queimar!”
Como que por encanto, as chamas baixaram, a crepitação diminuiu e, pouco tempo
depois, o fogo somente ardia sem chamas. Somente Miang-Fong viu os pequenos entes
do fogo, que rapidamente se afastavam. Todos os demais caíram de joelhos diante desse
grande”feitiço” e ficaram com muito medo.
Agora Miang-Fong dirigiu-se a Mao-dsung, que ainda não conseguiu compreender
o que aqui tinha acontecido, e disse: “E tu, servo das trevas, retira-te deste local e não
volta nunca mais! O teu tempo terminou, nada mais tens a fazer aqui.”
Com essas palavras aproximou-se mais do chefe, mas este retrocedeu. Não podia
suportar o olhar flamejante de Miang-Fong. Seus soldados seguiram-no.
Quando o povo viu que Mao-dsung e seus soldados foram embora, encheram-se de coragem, como nunca a
tiveram. Com pedaços de madeira em brasa, que retiravam do resto do fogo, investiram contra os sacerdotes magos e
os afugentaram, sim, perseguiram-nos até longe, voltando então triunfantemente.

Estas pessoas haviam assistido, pela primeira vez, ao atuar de um poder mais
elevado. Não paravam de admirar-se e elas, antes tão caladas, não se cansavam de
expressar sua admiração.
Miang-Fong, no entanto, não lhes deixou muito tempo para isso, mas exigiu:
“Agradeçam agora ao Altíssimo, que ajudou a livrar-vos desse jugo!”
E em voz alta e com as mão levantadas, enalteceu a bondade de Deus e acrescentou:

“Perdoa-lhes, ó Altíssimo, se ainda não sabem como agradecer-Te. Eles estão


dispostos a aprendê-lo.”
Miang-Fong não mais deixou recair os moradores de Kum-bum em seu antigo
afrouxamento e medo.
“Vós tendes que ajudar-vos a vós próprios,” disse ele. “Vós deveis eleger um
dentre vós, que vos guie, no lugar de Mao-dsung. A ele quero dar assistência, para que
aprenda a atuar de acordo com a vontade do Altíssimo. Se assim o fizerdes, então Ele
também vos protegerá. Nunca mais poderá atingir-vos tamanho sofrimento como tens
suportado até agora.”
Isso todos entenderam, e a escolha recaiu unanimamente sobre Göpek, um homem
de mais idade e ponderado, que já tinha perdido diversos filhos devido aos sacerdotes
magos. Ele nunca mais se dobraria diante deles.
Miang-Fong auxiliou-o a organizar tudo e a estabelecer leis, de acordo com as
quais as pessoas deveriam viver daqui por diante. Eram as seguintes:
1. Existe somente um Deus, o Altíssimo, que criou a todos nós.
2. A Ele devemos gratidão e obediência, pois Ele nos presenteou a nossa vida.
3. Também os animais e as plantas foram por Ele criados. O homem deve respeitá-
los como suas criaturas companheiras.
4. Sirvam todos ao Altíssimo, então vós todos sereis irmãos e nenhum de vós fará
mal algum ao outro.
5. Mantenham a paz entre vós, então sereis fortes.
6. Auxiliem um ao outro, então tudo prosperará.
Com essas leis, a tribo dos Mihao organizou, a partir de então, a sua vida. Miang-
Fong instruiu-os até que podia deixá-los cuidarem de si próprios. Göpek provou ser um
líder de confiança.
Quando Miang-Fong partiu, juntou-se a ele mais um grupo de jovens que, igual a
Min-fu, tinham o desejo de se tornarem seus Tschilas. Deles faziam parte Pao, Lung,
Dak e Su.
Miang-Fong viu agora ter chegada a hora para que ele e seus alunos preparassem
um local fixo, onde ele poderia ensiná-los, instruí-los e prepará-los diariamente, para
tornarem-se futuros auxiliares. Um grande plano, amplamente elaborado, começou a
formar-se no seu íntimo. Qual uma grande edificação, totalmente perpassada pela luz,
com muitos ambientes, surgiu nele um quadro do futuro Tibete. Uma luz radiante
deveria partir dessa edificação, deveria ser o sol, que aqueceria e iluminaria todo o país.
Até o último canto escuro do país deveriam chegar esses raios, para que não pudesse,
em lugar algum, manter-se ou até aninhar-se algo, que não pudesse persistir diante dos
olhos do Altíssimo.
Miang-Fong viu muitos fios de pensamentos luminosos partindo do ponto central
visualizado e eles eram como cordas fortes, nas quais os seres humanos poderiam
segurar-se. Através das mesmas, ele puxava as almas dos seres humanos para o alto,
pois simultaneamente com os raios de luz expedidos, deveriam esforçar-se para elevar
ininterruptamente fios do bom querer, da adoração e do servir, e estes deveriam então
elevar consigo as almas dos seres humanos a eles ligados. Cada vez mais nítido formou-
se o quadro diante de seus olhos, ele mal podia esperar a hora de iniciá-lo. Mas ainda
não fora encontrado o local no qual poderia estabelecer-se. Ele deveria esperar a hora do
Altíssimo e isto Miang-Fong já aprendera há muito tempo. Somente então, tudo seria
bem sucedido com a perfeição, que era inseparável de tudo que o Altíssimo mandava
executar de acordo com Sua vontade. Se mãos humanas interviéssem impaciente e
intempestivamente nessa fina tecedura, romper-se-iam os fios de apoio, e isso não
deveria acontecer.
Assim, Miang-Fong percorreu o vasto país com os seus Tschilas, ensinando-os.
Sem medo, enfrentava em todo lugar a superstição tenebrosa e as intrigas dos
sacerdotes. A fama do poder mágico do grande mestre precedia-o e preparava as
pessoas para o seu atuar. Mesmo que muitas vezes misturavam-se relatos inventados,
mal compreendidos e mal interpretados, estes, no entanto, sempre coincidiam com a
verdade no que se referia ao seu poder sobre os falsos sacerdotes e encorajavam as
pessoas para que se livrassem de seu domínio.
Kum-bum já há muito ficara para trás. Dirigia agora seus passos para o leste,
caminhava através de vastos planaltos, regiões inabitadas. Cordilheiras íngremes foram
atravessadas. O guia, então, chamou-os novamente para o sul. Dessa forma percorreu
longas distâncias pelo país, até que, certo dia, alcançou-o o chamado para estabelecer-
se. Encontrava-se no sopé de uma montanha moderadamente alta, que ascendia em
forma de terraços. Do seu pico deveria haver uma ampla vista dos arredores. Quem lá
em cima morasse, poderia reinar como um soberano. Tinha o país aos seus pés.
“Esta montanha deve tornar-se um centro para o Altíssimo,” explicou-lhe o seu
guia luminoso. “Veja, como se eleva em degraus até o cume, um símbolo do
desenvolvimento do espírito humano para o alto. De degrau para degrau ele deve elevar-
se, cada degrau deve prepará-lo para o próximo mais elevado. Nenhum pode ser
omitido. Assim deves ensiná-lo aos seres humanos e assim deves classificá-los: no
degrau inferior estão aqueles que iniciam a aprender a assimilar em si a verdade. Feito
isso, eles podem levantar o pé até o próximo degrau. Assim continuará, do auxiliar para
o servir, para um novo procurar e encontrar. Edifica isso no teu íntimo e, depois,
comece a conduzir os teus alunos nesse caminho.”
Agora a questão ainda era: quando e como Miang-Fong pretendia dar início à
construção do local de ensinamento para os seus alunos. Aí, um acontecimento veio em
seu auxílio, que lhe mostrou o caminho e que também proporcionou-lhe os ajudantes
necessários para esse fim. Na proximidade da montanha de terraços, em cujo cume
deveria ser erguida a construção material, que seria a imagem do templo espiritual e que
seria construída para todo o Tibete, havia na planície um povoado, com cuja população
Miang-Fong já havia entrado em contato. Eles o receberam de modo amável e
prestativo, pois também até eles chegara a notícia do grande milagreiro e suscitara a sua
curiosidade ao máximo.
Aquela região ainda era mais intocada por estar mais afastada. A população não era
numerosa e estava igualmente afastada tanto da riqueza como da pobreza. Esta média
saudável havia favorecido também o seu equilíbrio interior, de modo que Miang-Fong
nunca havia encontrado almas tão abertas como aqui em Lao-tschang.
Mas, então, sobreveio repentinamente uma grande desgraça a estes seres humanos,
como nunca haviam vivenciado. Irrompeu entre eles uma epidemia, a qual não
conseguiam controlar. Atacava inicialmente as crianças, espalhava-se depois também
entre os adultos e ceifou muitos deles em curto espaço de tempo. Não havia sacerdotes
por perto, que pudessem combater a epidemia com fórmulas e bebidas mágicas, os
conhecimentos das pessoas, porém, não eram suficientes para combater a doença.
Assim, consideravam Miang-Fong como um enviado do céu, quando veio em seu
auxílio e, cheios de confiança, solicitaram sua ajuda.
Miang-Fong foi ver os doentes e reconheceu o perigo que essa epidemia
representava. Caso não fosse detida logo, em breve toda a região estaria desabitada. Mas
ele também reconheceu a causa: tratava-se de uma doença transmitida pelo leite dos
animais. Quem se abstinha de consumir o leite, restabelecia-se em pouco tempo. Para os
outros não havia salvação. Uma doença do sangue, que se manifestava em inúmeras
úlceras purulentas, tirava todas as forças e deixava o corpo apodrecer. De onde, porém,
vinha essa doença até os animais? Miang-Fong investiguou e solicitou esclarecimento
ao seu guia. Então, foi-lhe mostrado uma planta, que neste ano vicejava
abundantemente, e cuja seiva provocava essa doença febril. Mas enquanto não fazia mal
aos animais, o ácido venenoso transmitia-se através de seu leite para os seres humanos e
os matava.
Após Miang-Fong ter chegado a esse reconhecimento, ordenou que os moradores
de Lao-tschang conduzissem seu gado para pastos situados em altitude maior, onde essa
planta não crescia e onde encontrariam alimento melhor. Acontece que houve, naquele
verão, um clima adverso nessa planície, e somente a planta nefasta sobreviveu à seca e
vicejou. Aos moradores, no entanto, ordenou que se abstivessem do leite por algum
tempo, então o sangue iria purificar-se novamente e eles se restabeleceriam. Nem todos
submeteram-se à essa ordem, mas quem o fez, logo mais colhia a recompensa pela sua
obediência, enquanto os outros continuavam sucumbindo à doença.
Abriram-se, então, os olhos dos moradores de Lao-tschang, uma vez que viam como Miang-Fong e seus alunos
eram incansáveis no auxílio aos doentes, cuidavam deles, lavavam e davam banho a eles, colocavam compressas
aliviadoras e encorajavam-nos. Abriam-se também os corações, deixando entrar muitas sementes, que brotavam no
solo fértil. Quando a epidemia havia sido extinta, os moradores de Lao-tschang queriam que Miang-Fong
permanecesse com eles.

“Fique conosco, ó grande mestre,” suplicavam eles, “ensina-nos como devemos


adorar o teu Deus. Tu és mais sábio do que todos nós. Caso nos atingisse novo
infortúnio, estaríamos desamparados sem ti.”
Miang-Fong, porém, não queria continuar morando entre eles. Já sentia
dolorosamente a falta do silêncio e solidão da natureza intocada, onde se sentia tão mais
perto de Deus. Sabia, também, que seus alunos necessitavam de isolamento e silêncio
para poderem assimilar e desenvolver-se, e ele o explicou aos moradores de Lao-
tschang. Eles o compreenderam e ofereceram-se para ajudá-lo a construir um local,
onde pudesse morar com os seus alunos, sem serem incomodados por eles.
Miang-Fong indicou para a montanha em terraços distante e disse:
“Essa montanha foi escolhida pelo Altíssimo para ser nossa moradia. Situa-se bem
acima das atividades e pensamentos dos seres humanos, no entanto, não
inacessivelmente distante deles. Se vós estais dispostos a ajudar-me, então queremos
construir lá um mosteiro, no qual poderei morar com os meus alunos.”
Isso alegrou os moradores de Lao-tschang e, diligentemente, ofereceram sua ajuda.
A partir daquele dia começou um laborioso edificar na montanha do Altíssimo, Tao-
Schan, como foi chamada dali em diante. De noite, foi mostrado um quadro a Miang-
Fong, sobre como deveria ser o mosteiro e ele deu instruções aos construtores de como
deviam construí-lo. Havia, porém, alguém entre eles que também tinha o dom de ver
quadros, que lhe eram mostrados de noite, e ele sabia como empregar e conduzir as
pessoas, para que surgisse uma cópia fiel daquilo que havia sido mostrado do Alto.
Devagar, mas continuamente aumentava a construção no Tao-schan. O prédio ficou
maior do que, por enquanto, era necessário para Miang-Fong e seu pequeno grupo, mas
ele sabia que em breve mais pessoas viriam até ele. Muito importante era, também, a
criação de jardins, pois tinham que providenciar a produção do próprio alimento. Foram
criados vários deles no lado sul da montanha, em terraços diferentes, para grãos e
hortaliças. Também foram plantadas árvores frutíferas. Min-fu foi incumbido da
supervisão dos jardins. Ele tinha se fortalecido muito durante os anos de peregrinação.
Simples e modestos eram todos eles. Em cima, na parte plana da montanha, foi
instalado um jardim ao redor do mosteiro, para o qual também foi mostrado um modelo
a Miang-Fong. Essa instalação tinha por base um profundo significado. Este jardim
deveria lembrar àqueles, que o freqüentassem, os eternos jardins celestiais. Por isso,
deveria ser enfeitado com muitas flores, e cercas vivas de arbustos verdes deviam
dividí-lo em muitas partes, das quais cada uma seria mantida, predominantemente,
numa cor só.
“A cor azul”, assim explicava Miang-Fong a seus alunos,” deve lembrar-vos da
verdade eterna, que é tão clara e transparente e tão imutável como o céu azul acima de
vós”.
“A cor vermelha fala-vos do amor do Altíssimo, que nos guia e conduz. Quente é
essa cor e ela brilha até longe. Assim, também deve o nosso amor pelas pessoas
estender-se para longe e fazer bem a elas”.
“As flores amarelas sejam para vós a imagem da luz celeste. Muito significativa é
essa cor, pois a luz, eterna em seu brilho radiante, deve levantar-se agora sobre este país
e deve expulsar a escuridão do mesmo. Onde a luz chegar, ali desaparecerá a escuridão,
ela é afuguentada pela luz. Esta é a nossa missão daqui por diante – espalhar a luz ao
nosso redor e para distâncias longínquas”.
“O verde, porém, que não faltará em nenhum dos jardins, é como a mão
auxiliadora, que nós queremos estender às pessoas. O verde liga todas as cores entre si.
Silenciosa e modestamente ela está aí, ela mesma não quer ser nada e, no entanto,
nenhuma flor seria verdadeiramente bonita sem suas folhas verdes, sem o gramado
verde, onde ela se encontra. O verde dos campos alimenta o gado. Verde é aquilo que o
solo produz para a nossa alimentação em grande parte, nós não podemos carecer do
verde”.
“Vamos, portanto, assimilar a verdade eterna do Alto, encher nosso coração com
amor cálido, para que possamos levar a luz para a escuridão e tornar-nos auxiliares dos
seres humanos”.
Afortunados, os alunos acolheram dentro de si o novo saber. Nunca mais o
esqueceram e tornou-se a base para sua divisão em grupos distintos.
“Primeiramente deveis procurar pela verdade com toda a ânsia de vosso coração,”
ensinou Miang-Fong. “Esvaziai o vosso íntimo, para que possa encher-se com os
tesouros da verdade. Quanto menos estiverdes preenchidos com saber próprio, tanto
mais podereis assimilar daquilo que o Altíssimo nos doa. Por isso, não deixeis que
vossos pensamentos vaguem procurando por aí – eles ficariam presos à Terra. Não
deveis preencher-vos com pensamentos, mas com a verdade e essa é saber. O saber,
porém, não pode ser encontrado, ele nos será presenteado do Alto, se estivermos abertos
para isso.”
Assim e de forma similar ensinava Miang-Fong seus alunos. Todas as noites,
quando o trabalho penoso estava concluído, ele os reunia em sua volta e lhes falava e,
agradecidos, acolhiam cada uma de suas palavras.
Principalmente Dak sabia escutar e assimilar, melhor que qualquer outro. Seus
olhos tornavam-se cada vez mais brilhantes, somente poucas palavras saíam de sua
boca. Pois Miang-Fong continuou ensinando: “Quando tiverdes recebido da verdade,
não a transmiteis logo em seguida. Não a deixais voar que nem os filhotes de pássaros,
que esvoaçam do ninho. Eles ainda não podem voar, quando recém saíram do ovo.
Primeiramente devem crescer e suas asas devem poder suportá-los, antes que possam
arriscar seu primeiro vôo. Portanto, deixai crescer e fortalecer o saber da verdade dentro
de vós, antes que o transmitais a outrem. Silenciai a respeito, até que o tenhais
compreendido completamente.”
Assim ensinava Miang-Fong seus alunos a reconhecer o poder do silêncio e, logo,
estavam acostumados a permanecer em silêncio após os ensinamentos noturnos. E
Miang-Fong continuou: “Quando o vosso corpo descansa de noite, então aquilo, que
está vivo em vós, vós próprios, pode deixá-lo. Pois o corpo é somente vosso invólucro,
do qual vós necessitais como proteção aqui na Terra, e esse invólucro necessita de
repouso. Vós próprios, porém, deveis pedir de noite o caminho para os jardins eternos,
deveis procurá-lo, pois lá no Alto é a vossa pátria. Tentai, já agora, aproximar-vos um
pouco. Vós o podeis, mesmo que não o compreendesseis de dia. Procurai os jardins em
silêncio, sem palavras, mas elevai o vosso espírito ansiosamente ao encontro deles, para
que não errais o caminho, quando um dia deixardes o vosso invólucro terreno.”
“Mestre,” perguntou Su, “é-nos permitido retornar aos jardins eternos quando
ficarmos velhos e nosso invólucro terreno quebrar? Não precisaremos voltar?”
“Isso dependerá de vós,” explicou Miang-Fong, pacientemente. “Quem, de noite, já
consegue ascender muito no caminho para os jardins eternos, o seu pé tornou-se leve e
rápido. Ele encontra o caminho e a pátria o atrai. Mas somente aquele que tiver vencido
o seu eu, terá seu pé tão leve e tão rápido, que a Terra não mais pode chamá-lo de volta
e retê-lo.”
“Mas como nós podemos vencer o nosso eu?” perguntou agora Lung, o mais
vagaroso e pensativo de seus alunos. Havia certa preocupação nessa pergunta.
Miang-Fong, porém, sorriu: “Lung, para aprender isso, fomos todos conduzidos
para o Tao-schan aqui. Não é fácil aprender isso, mas quem o faz, já prova aqui na Terra
a felicidade bem-aventurada dos jardins celestiais. Quero dar-vos um exemplo. Vós
conheceis Min-ha, a jovem mulher que viu seu filho morrendo. Também sabeis, como
cuidava do filho dia e noite, como tudo fez, para mantê-lo com vida. Nisso, ela
esqueceu-se de si mesma, pensou somente no sofrimento do filho e cuidou dele dia e
noite e, com seu cuidado abnegado, conseguiu salvá-lo. Ela se sentia feliz e em nenhum
momento lembrou-se dos sacrifícios prestados ao filho. Ela não teria compreendido se
alguém a tivesse elogiado ou admirado. Para ela era natural, ela tinha vencido o seu eu,
por amor ao seu filho. Se vós ajudardes a outrem assim como Min-ha ajudou seu filho,
quando somente viveis com o pensamento: o que eu posso fazer, para manter o outro
com vida, então vós esquecereis o vosso próprio eu, e nem vos ocorrerá ter desejos para
vós próprios.”
Assim e de modo semelhante ensinava o sábio e introduziu seus alunos, cada dia mais profundamente, naquilo
que eles deveriam saber e guardar dentro de si, para poderem difundir luz, a luz da verdade, que ele tinha aceso neles.
Meses haviam passado. Chegou o dia em que
Miang-Fong pôde mudar-se com seus alunos para o novo prédio, mesmo que ainda não estivesse totalmente
concluído. Os homens de Lao-tschang tinham ajudado diligentemente na construção do mosteiro. Eles próprios
alegravam-se com o andamento dos trabalhos. Agora, quando o trabalho aproximava-se de seu final, muitos
lamentavam o fato de, em breve, terem que deixar a montanha do Altíssimo. A vida em comum os agradava e
sentiam por ter que deixá-la. Assim, alguns dos mais jovens pediram a Miang-Fong, que os aceitasse no grupo de
seus alunos. Miang-Fong examinou-os e, onde encontrava sincero desejo por uma vida com mais sentido, por um
saber aprofundado e o anseio de auxiliar aos outros, então ele consentia.

Assim, em pouco tempo, multiplicou-se o número de moradores do mosteiro em


três, até quatro vezes, e Miang-Fong teve que dividí-los em grupos, de acordo com sua
igual espécie e maturidade espiritual. Já pôde elevar alguns de seus alunos mais antigos
para “auxiliadores”, que o assistiam na instrução dos”aprendizes”. Tratava-se
especialmente de Dak, o mais maduro de seus Tschilas, mas também Su e Pao. Lung era
muito vagaroso. Ele ainda devia continuar a assimilar e aprofundar os ensinamentos no
seu íntimo, e Min-fu pediu ao mestre, que também doravante lhe confiasse os jardins.
Com esse trabalho estava totalmente ocupado. Ele educou, entre os mais jovens, um
grupo de ajudantes solícitos, que cuidavam da alimentação necessária dos moradores do
mosteiro. Certo dia, chegou uma mensagem até Miang Fong, de que num povoado
distante, chamado Kombodscha, também havia irrompida uma epidemia e que eles não
sabiam como ajudar-se. A notícia de sua ajuda milagrosa aos moradores de Lao-tschang
havia chegado até eles e, agora, pediam a ele que também os ajudasse. Eles estavam
confiantes de que ele seria o único que poderia ajudá-los.
Miang-Fong consultou seu guia luminoso e recebeu a resposta que deveria partir e
dirigir-se ao Kombodscha. Isso resultaria em grande bênção para ele e promoveria
muito a causa do Altíssimo. Então, Miang-Fong escolheu alguns de seus alunos para
seguirem com ele. Entregou a Dak a direção do mosteiro na montanha Tao-schan.
Os mensageiros de Kombodscha conduziram-no, cheios de alegria, pelo caminho
mais curto até sua pátria tão atormentada. A situação, lá, era realmente grave. Uma
grande parte da população já havia morrido por causa da epidemia febril semelhante à
peste e, os até agora preservados, tremiam de medo e não arriscavam deixar suas casas.
Miang-Fong ia de casa em casa, consolava e encorajava e sua atitude sem medo
deu novo ânimo aos deprimidos. Parecia que somente a sua presença espalhava saúde e
novo ânimo. Depois que Miang-Fong se convenceu do que se tratava aqui, começou a
combater vigorosamente a doença. Mandou erigir um tipo de cabana de proteção, na
qual mandou deitar todos os enfermos sobre leitos limpos. A seguir, todas as casas
deviam ser limpas minuciosamente, eliminando sujeira, às vezes de anos, e que deveria
ser queimada publicamente. Com isso, muitos germes da doença foram destruídos.
Depois, ordenou para todos os moradores lavagens, três vezes por dia, com água
fervida, à qual eram acrescentadas determinados sucos de plantas com efeito curativo.
Em suas caminhadas pelos arredores, ele havia pedido auxílio aos pequenos servos do
Altíssimo, e eles mostraram-lhe as ervas singelas, as quais continham a ajuda contra o
mal. Miang-Fong ordenou que pessoas jovens, que não tinham sido infectadas,
colhessem essas ervas em quantidade suficiente e que as mulheres preparassem as
poções medicinais. Também os corpos dos enfermos eram lavados com essa poção três
vezes por dia, não sendo utilizados panos para as lavagens, mas sim fibras macias, que
eram depois queimadas.
Muitos restabeleceram-se aos poucos. Aqueles, que a epidemia tinha enfraquecido
demais, vieram a falecer, porém, não era mais uma morte dolorosa, mas lento apagar da
força viva. Os outros, que haviam seguido as instruções de Miang-Fong, permaneceram
com saúde e, depois de semanas, quando Miang-Fong pôde respirar aliviado, seu
esforço foi ricamente recompensado. Os moradores de Kombodscha agradeceram-lhe
efusivamente, mas Miang-Fong rechaçou.
“Não a mim compete o agradecimento. Agradeçei Àquele, que me ajudou a
encontrar os remédios certos, que ordenou aos Seus servos que me indicassem as ervas
curativas.” Admirados, os moradores de Kombodscha perguntaram: “Quem é aquele, de
quem falas? Nós não o conhecemos, e também não enxergamos ninguém que te ajuda!”
Então Miang-Fong podia começar a instruí-los. Agora estavam dispostos a ouvir e
assimilar, pois o medo pela saúde de seus corpos não os afligia mais. Miang-Fong
mostrou-lhes que havia ainda um outro sofrimento, que era muito pior que o sofrimento
do corpo – o da alma faminta. E eles começaram a compreendê-lo.
Satisfeito e alegre retornou o pequeno grupo à montanha do Altíssimo, onde
encontraram tudo na mais perfeita ordem. Todos trabalhavam ativamente na conclusão
da obra iniciada. Miang-Fong alegrou-se com a dedicação de seu pequeno grupo. Isso
incentivava-o a dar a eles, por seu lado, tanto quanto eram capazes de assimilar. A ele
mesmo foi dado reconhecimento sobre reconhecimento nas horas silenciosas de
meditação. Tornou-se para ele uma necessidade de intercalar horas de silêncio em sua
rotina diária, e seus alunos seguiram seu exemplo. E eram essas horas as que mais os
presenteavam. Todos sentiam isso e, agradecidos, eles acolheram essa nova revelação.
Aos poucos, começou Miang-Fong a instituir uma rígida disciplina diária. Às horas
de estudo seguiam horas de silêncio. Os dias iniciavam e terminavam com uma oração.
Isto dava a cada dia uma consistência firme. No entanto, em silêncio, Miang-Fong já
trabalhava na futura estruturação da vida de mosteiro, que devia tomar formas ainda
muito mais rígidas. Os que aqui estudavam deveriam ser retirados da humanidade. Isto
deveria se fazer sentir de todas as maneiras. Quem era aceito como aluno no mosteiro
do Altíssimo, dava sua vida a Ele, doravante ele não mais pertencia a si
mesmo. Uma ânsia só deveria preenchê-lo: avançar para as fontes do verdadeiro saber,
deixar-se preencher completamente pela verdade, com o fim de levá-la até os outros.
Pois Miang-Fong educava seus alunos para serem auxiliares para o seu povo. Ele lhes
mostrava o precipício das trevas, que havia se aberto no país do Tibete. Deviam
reconhecer o perigo para todo o país que nisso se encontrava, de que a fé nos sacerdotes
magos com seu séquito de horrores, medo e opressão das almas, dominava grande parte
da população. Todos eles o haviam vivenciado com maior ou menor intensidade, quase
todos tinham a lamentar uma vítima entre seus parentes mais próximos.
Miang-Fong, porém, lhes ensinou que o Altíssimo é um Deus do amor, que por
amor deu a vida às Suas criaturas e que desejava que elas vivessem a vida, a elas
presenteada, em paz e alegria.
“Ele vos criou, não para uma existência de sofrimento e de medo. Cheios de alegria
deveis novamente ascender para os jardins eternos, dos quais viestes, deveis escalar
degrau por degrau, em esforço incansável. Então, se assim agires, tornar-vos-eis mais
fortes e com agrado pairará o olhar do Altíssimo sobre vosso esforço.”
“Mas como pode acontecer, ó mestre,” perguntou Lung, o pensativo “que os
sacerdotes magos possam exercer um poder tão grande sobre as pessoas? Onde os
enfrentaste, seu poder logo sucumbiu, nenhum de nós, porém, conseguiu fazer isso.”
“O motivo disso, Lung,” ensinou Miang-Fong, “é que vós nada sabíeis do
Altíssimo. Por isso Sua força não podia estar em vós, e somente com Sua força consegui
enfrentar os sacerdotes magos e diante de Sua força quebrou o poder deles.”
“Os sacerdotes também não têm conhecimento do Altíssimo, ou eles só o ocultam
de nós? “continuaram perguntando.
“Se sabem ou não, isso não lhes posso dizer. Em todo caso eles servem a um outro
senhor e não ao Altíssimo.”
Isso foi uma novidade avassaladora para os alunos. Um outro senhor? Quem
poderia ser? Que os deuses, dos quais falavam para os seres humanos, com os quais
ameaçavam, não eram deuses, isto eles agora já compreendiam. Quem, no entanto, era
então o senhor, do qual Miang-Fong falava há pouco?
Miang-Fong continuou ensinando: “Como o Altíssimo é o próprio amor, como Ele
vive na Luz e é a própria Luz, assim existe também um senhor das trevas e a este
servem os vossos sacerdotes.”
Um senhor das trevas? Não conseguiam imaginar nada em pormenores. Miang-
Fong teve que continuar esclarecendo: “Este é um inimigo do Altíssimo. Ele tenta de
tudo para apagar nos seres humanos o saber do Altíssimo. Seus servos não podem nunca
falar Dele. Ele
promete-lhes poder e riqueza se eles servirem a ele e, como a maioria dos seres
humanos almeja poder e riqueza por parecer-lhes o mais desejável, ele sempre encontra
ferramentas solícitas. Onde os servos dele aparecem, aí surge escuridão nas almas das
pessoas, aí elas se torcem de medo e não têm coragem de dar um passo sequer por
vontade própria. Meus alunos! Cuidem-se de todos que vos querem prometer poder e
riqueza! Eles vos puxam junto para o abismo da perdição, que também os tragará.
Certamente também o Altíssimo tem tesouros para distribuir, mas estes são de outra
espécie. Tesouros do saber Ele vos presenteia em abundância, e eles são eternos. Quem
adquire esses tesouros para si,. neste brilha a luz da verdade, e ele pode levar este saber
também para outros seres humanos, iluminando-os no seu íntimo. Onde, porém, surgir
claridade, lá o senhor das trevas não tem mais espaço. Ele tem que recuar diante da luz,
ele não a suporta.
Compreendeis agora, porque tenho que instruí-los e ensiná-los aqui no isolamento?
Aqui não pode aproximar-se um sedutor de vós. Sem impedimento, podeis assimilar a
luz da verdade dentro de vós e deixá-la crescer, de tal modo que ninguém poderá tirá-la
novamente de vós. Cada hora de silêncio, porém, fortalece em vós a força para enfrentar
os servos das trevas e vencê-los. Uma multidão desses portadores da luz deve-se
derramar a partir daqui sobre o Tibete, cada qual uma luz forte e pura, que por sua vez
espalha luz ao seu redor. Para isso eu vos instruo, pois essa é a minha missão, que me
foi transmitida pelo Altíssimo: Levar luz para esse país escuro, que o senhor das trevas
escolheu para seu reino. Entretanto, ele deve ser novamente tirado dele, e para isso será
necessária a vossa ajuda. Aprendei, desde já, a enviar vossos pensamentos para aqueles
que necessitam de um apoio. Cada um desses pensamentos seja puro e claro, um bastão
firme, no qual um fraco pode se apoiar. Pois pensamentos são como cordas firmes e
fortes. Elas permanecem ligadas convosco e estabelecem simultaneamente ligação entre
vós e outros. Vejam-no sempre assim diante de vós: Vós mantereis muitos ligados a este
local, se vós lhes derdes o apoio de pensamentos puros, e daqui pode lhes afluir a força
do Altíssimo.”
Isso todos compreenderam, e duplamente abençoada era doravante a hora do
silêncio, na qual os alunos aprenderam, não somente a receber do Alto, mas também a
atuar à distância. Visivelmente formava-se o seu aspecto exterior de acordo com sua
vida interior. Sua fisionomia começou a ser espiritualizada , e Miang-Fong alegrou-se,
quando olhava nos seus olhos claros, que eram um retrato de seu espírito em
amadurecimento.
Os anos seguintes passaram cheios de paz. Sem ser incomodado, Miang Fong pôde
continuar ampliando a sua escola, e sua fama já começou a espalhar-se para longe. Já
havia acontecido várias vezes, que moradores de povoações distantes tinham solicitado
professores da escola do Tao-Schan. Miang-Fong podia então enviar os mais maduros
de seus alunos auxiliares, para divulgar o saber sobre o Altíssimo entre os seres
humanos. Eles voltavam após algum tempo, para continuar aprendendo e se
aperfeiçoando.
Miang-Fong classificou agora os alunos em três grupos: os verdes, que denominou
de alunos que procuravam. Eles ainda procuravam pela verdade, que deveria tornar-se-
lhes uma ajuda interior, por isso a cor verde. Foi lhe mostrado também um traje de
mosteiro, um manto comprido simples, atado com um cinto na cintura.
Ao segundo grupo pertenciam os irmãos que estudavam, que já tinham encontrado
a verdade e que agora nela se aprofundavam e ampliavam seu saber. Sua cor era o
amarelo, pois deviam acender em seu íntimo a luz da verdade.
O terceiro grupo eram os irmãos azuis, que eram enviados aos seres humanos como
auxiliares. Para isso necessitavam da força, que se encontra na verdade, a cor azul.
Os irmãos operários, que cultivavam o solo e que cuidavam do abastecimento
terreno, usavam vestuário marrom curto, pois manuseavam a terra e os frutos por ela
produzidos. Eles encontravam-se separados do grupo de três classes de alunos do
mosteiro.
No decorrer do tempo, tornou-se necessário anexar ainda um quarto grupo mais
elevado, que se situava acima dos três grupos de alunos. Devido ao constante
aprofundamento, do abrir-se interiormente, alguns espíritos estavam amadurecidos no
silêncio a tal ponto, que também eles conseguiam receber mensagens do Alto e ver os
servos de Deus. Abriu-se sua visão e audição interiores e foram agraciados com a
capacidade de assimilar mais que outras pessoas.
Dak era o primeiro, no qual o mestre percebeu o novo dom. Ele não havia falado
disso, não teve coragem, com receio de que essa revelação lhe pudesse ser tirada
novamente. Miang-Fong, no entanto, encontrou-o certo dia no jardim, mantendo
diálogo com um servo de Deus, invisível para os homens, e sentiu-se muito feliz.
“Alcançaste agora um degrau, do qual podes estender a mão para o alto e segurar
uma outra mão, Dak,” disse Miang-Fong. “Se conservares isto, nunca te faltará a força e
o auxílio.”
Miang-Fong recebeu, agora, a ordem de conceder a Dak uma bênção especial e
conferir a ele, como o primeiro, o grau de um”lama”. “Lama quer dizer servo vidente de
Deus”, ensinou-o seu guia luminoso. “Muitos lamas ainda provirão daqui e, como os
filhos se separam da mãe, para poder levar uma vida própria, como é desejado por Deus,
assim esses lamas devem fundar novos mosteiros pelo país afora, nos quais, por sua vez,
reunirão alunos e os formarão para serem auxiliares de seu povo. Dessa forma, no
decorrer do tempo, todo o Tibete deverá ser coberto com uma rede de mosteiros e, nas
malhas dessa rede de luz, os seres humanos deverão encontrar apoio e proteção contra
as manobras das trevas. Tu, porém, deves permanecer aqui como o protetor de todos os
mosteiros e daqui sairá sempre a maior força, aqui o Altíssimo fará anunciar suas
mensagens e mandará dar suas ordens. Tu és o “lama superior”, que se encontra acima
de todos os demais irmãos e mosteiros. Aqui a fonte da verdade sempre deve fluir do
modo mais puro e forte.”
Foi um grande dia de solenidade, quando Dak recebeu a bênção do Altíssimo da
mão de Miang-Fong. No mosteiro havia sido instalada uma sala maior, como sala de
devoção. Era a única sala do mosteiro que estava ricamente ornamentada, pois, “em
honra a Deus, o homem deve fazer tudo, por Ele deve desenvolver a maior beleza
dentro de si, para Ele nada pode ser suficientemente belo.”
Assim foram confeccionados, no decorrer dos anos, utensílios de ouro e de prata,
tecidos de seda cobriam as paredes e, no meio da sala, encontrava-se uma mesa baixa,
que sempre estava ornamentada com lindas flores, que os jardins ofereciam. Apesar da
altitude, os jardins haviam se desenvolvido maravilhosamente sob os cuidados
carinhosos de Min-fu e seus auxiliares. Já há tempo ele se entendia bem com os
pequenos servos do Altíssimo e sabia como pedir seu conselho. Nunca algo desandava,
sempre sabia a hora certa para semear, plantar e colher. Visivelmente a bênção de Deus
pairava sobre esta obra.
As celas dos irmãos do mosteiro eram as mais simples possíveis, não continham
nenhum tipo de utensílios, nada que pudesse desviar o sentido do vivenciar interior. Um
leito duro, que não convidava para um longo descanso, era tudo o que havia de
equipamento nas celas. No alto do muro de pedras encontrava-se uma pequena janela,
sempre aberta, que não permitia olhar para fora. Os irmãos deviam se aprofundar em
seu íntimo, deviam procurar os mundos superiores, quando o dia ia se findando.
Estreitas eram as celas, situavam-se uma ao lado da outra, como alvéolos de uma
colmeia de abelhas. O silêncio era obrigatório aqui, nenhum irmão podia entrar na cela
de outro. Mas todos os moradores do mosteiro submetiam-se de boa vontade às severas
regras, pois todos vivenciavam a bênção que lhes advinha desse autodomínio.
Os alunos mais antigos, que deveriam ser enviados como professores, eram
instruídos pelo próprio Miang Fong. Ele lhes dava tarefas, que estimulavam o seu
espírito e o mantinham ativo. Antes que Dak fosse instituído lama, Miang-Fong reuniu
os alunos mais antigos e fez o seguinte discurso: “Um dentre vós amadureceu agora
tanto, que se tornou um portador da Luz. Ele encontra-se em ligação com um elevado
guia, que o conduz. Agora chegou a hora, em que ele será enviado para junto dos seres
humanos, para que ele próprio formasse um centro de luz. Juntem os vossos rogos ao
seu redor, para que ele assimile totalmente a bênção do Altíssimo no dia de sua
consagração.”
O dia da instituição de Dak como lama havia chegado. Radiante o sol iluminava e
aquecia o puro ar da primavera. Um silêncio de expectativa pairava sobre o mosteiro,
pois era a primeira solenidade dessa espécie, que podia ser vivenciada, e algo de muito
especial aguardavam dela os moradores do mosteiro. E também não foram
decepcionados em suas expectativas. Em cortejo solene caminhavam os alunos até a
sala de devoção, primeiro os irmãos azuis, os auxiliadores, a seguir os amarelos e por
fim os verdes. Cada qual conhecia o lugar a ele destinado e, silenciosamente, o ocupava.
Canto solene do coro masculino enchia o ambiente e recebia-os com intensa vibração.
Luz do alto parecia encher o ambiente, este parecia mais claro do que em outros dias.
Em vestimenta branca de sacerdote, encontrava-se Miang-Fong atrás da mesa
ornamentada com flores, as mãos elevadas para o alto, aprofundado em oração.
Quando o canto terminou, houve silêncio profundo. Miang-Fong baixou os braços
e começou a falar: “Vós, servos do Altíssimo, e vós, que o pretendeis ser, ouçam, o que
o Altíssimo vos manda dizer: Ele escolheu um de vosso grupo para ser portador de
elevada força, para que partisse, para tornar-se uma coluna de Luz no Tibete e, que em
sua volta, muitos pudessem se reunir. O Altíssimo determinou para ele um novo nome,
que deverá usar daqui em diante.
Ajoelha-te diante da face de teu mais elevado Senhor, Dak, que doravante deverás
chamar-te Dao-tse! Este nome significa” servo da mais elevada Luz!” Ele deve
proporcionar-te força, para sempre permaneceres nos caminhos do Altíssimo e servires
a Ele em inquebrantável fidelidade. Verde seja a tua cor daqui por diante, o verde claro
da natureza despertando, que presenteia todas as criaturas com força vital. Vista, junto
com teu novo nome, a vestimenta verde do lama auxiliador. Ela o lembrará sempre de
teu compromisso diante do Altíssimo. E agora, receba a bênção do Altíssimo, que Ele te
concede por meu intermédio!”
Dak ajoelhou-se diante da mesa coberta de flores. Sua alma ascendeu e percebeu
sons que o encheram com bem-aventurança. Então veio de cima um fluxo de força até
ele, que o fez estremecer até o seu íntimo. Miang-Fong havia pousado as mãos sobre
sua cabeça com as palavras: “Tu, Altíssimo, que adoramos, conceda a Teu servo aqui
ajoelhado diante de Ti, a força para que se torne um portador de Tua Luz!”
Aos poucos o fluxo de força recolheu-se novamente. Alguns alunos ajudaram Dao-
tse a se levantar e Pao colocou-lhe o manto de seda verde-claro. Aos sons de um solene
coral masculino deixaram todos a sala de devoção, onde haviam vivenciado algo
inesquecível. Dak, porém, que agora se chamava Dao-tse, logo pôde iniciar sua nova
atuação. Do Kombodscha veio o pedido, que lhes fosse enviado um irmão que pudesse
permanecer junto deles. Eles estariam dispostos a erguer um mosteiro para ele e muitos
jovens já estariam esperando poder ingressar nesse convento como alunos.
A despedida foi curta. Mais uma vez Miang-Fong colocou sua mão, abençoando,
sobre a cabeça de seu antigo aluno, a seguir este partiu, acompanhado pelos votos de
felicidade dos irmãos. Dao-tse fundou o mosteiro de Kombodscha, cujos resquícios
ainda hoje existem, e grande benção partiu também daquele local. No Kombodscha não
haviam se esquecido da ajuda de Miang-Fong no passado e, assim, também receberam o
seu aluno com toda a confiança.
Depois da partida de Dao-tse do mosteiro, seus irmãos sentiram muita falta do
jovem calado, que agora havia se tornado um homem completamente amadurecido. No
entanto, logo mais outros colocaram-se em seu lugar e a vida no mosteiro, rigidamente
disciplinada, não permitia que os pensamentos se prendessem a lembranças.
Foi Pao que ocupou o lugar de Dak. Também ele crescia visivelmente e seu espírito
florescia. Era mais animado do que havia sido Dak, alegria distribuía ao seu redor.
Nunca lhe faltava um gracejo, onde havia oportunidade para isso. Miang-Fong
observava o seu amadurecimento cheio de satisfação. Com toda sua alegria não lhe
faltava a seriedade varonil e Miang-Fong já podia incumbí-lo de tarefas mais
importantes. Também foi Pao o segundo a ser consagrado lama, quando novamente
chegou um pedido a Miang-Fong para enviar um irmão do mosteiro do Altíssimo.
Desta vez, o pedido veio de uma região, na qual o senhor das trevas ainda mantinha
as rédeas do poder em mãos, deixando o povo estremecer de medo. Entretanto, também
lá havia pessoas, às quais chegara a notícia do Altíssimo Senhor, que era mais forte que
os homens Tau e os sacerdotes. Secretamente estes enviaram a Miang-Fong o pedido
suplicante por ajuda. O que deveria ser feito neste caso? Miang-Fong não podia enviar
uma única pessoa para uma região tão ameaçada pela luta, este dificilmente poderia
realizar alguma coisa. Por esse motivo foi cedido a Pao, que fora designado para esta
tarefa, um pequeno grupo de auxiliadores azuis, homens corajosos, que ansiavam aceitar
a luta contra o senhor das trevas.
Novamente realizou-se uma solenidade na sala de devoção e Pao recebeu, com a
ordenação como lama, o novo nome: Pao-san-tse, que quer dizer “combatente pela
Luz.” Miang-Fong esclareceu-lhe o significado do novo nome. Ele deveria ser um
lutador, para enfrentar os inimigos com a coragem da convicção. Necessitaria de muita
força. Nessa luta, a verdade deveria ser a sua espada invencível. Por essa razão, o
Altíssimo determinara para ele a resplandecente cor azul da verdade.
“Vá, Pao-san-tse,” exclamou Miang-Fong. “Luta e vence em nome do Altíssimo.
Ele te chamou, Ele te envia para a luta contra o senhor das trevas. Luta com Sua força.”
Assim, o número de irmãos do mosteiro reduziu-se pelo grupo que partiu, mas com
isso não surgiram lacunas. Sempre chegavam novos alunos, atraídos pela fama do
mosteiro. Miang-Fong teve que limitar o número de alunos. Nem todos que o
solicitavam, podiam ser aceitos. Mas Dao-tse no Kombodscha estava disposto a aceitar
os que aqui tiveram que ser dispensados, caso se mostrassem aptos para as grandes
tarefas que lhes deveriam ser delegadas.
O trabalho de Pao-san-tse não foi fácil, mas também ele conseguiu, como outrora
Miang-Fong, quebrar o poder dos sacerdotes magos e dos homens Tau ligados a eles, e
o povo em Ladak sentiu-se aliviado. Solícitos uniram-se, sob a condução de Pao-san-
tse, numa comunidade, para lutar contra o poder do senhor das trevas e, contra essa
força de defesa, fora em vão todo tipo de ataques, ameaças e perseguições dos servos
das trevas. Tempos mais felizes irromperam para Ladak. Eles haviam cooperado na luta
pela libertação do poder das trevas e, ainda hoje, vive lá um espírito mais livre do que
no restante do Tibete que, após um tempo da mais bela florescência, caiu novamente nas
mãos das trevas. Entretanto, não é sobre isso que queremos relatar aqui, mas sobre a
difusão da verdade, do saber do Altíssimo. Em toda parte onde a verdade se alojou, a
vida floresceu, as pessoas respiravam mais aliviadas, sua existência havia recebido um
sentido.
Novamente passaram-se anos cheios de paz, nos quais Miang-Fong instruía e
ensinava, e ele mesmo penetrava sempre mais fundo no saber sobre Deus e Suas leis.
Era isso que agora se esforçava passar aos seus alunos: um reconhecimento da profunda
sabedoria de Deus, de Suas elevadas leis que mantêm e regem o universo. A ele próprio
era freqüentemente permitido elevar-se de noite para alturas luminosas, onde lhe afluía
saber e reconhecimento de todos os lados. Lá no alto, tudo parecia-lhe conhecido, como
se apenas acordasse do que na Terra estava coberto por um véu do esquecimento. Então
Miang-Fong reconheceu pela primeira vez o que significava “matéria” , uma
condensação, que impede a visão de enxergar os mundos superiores. Entretanto, não
havia nisso também sabedoria do Altíssimo? Gostariam os seres humanos viver ainda
na Terra, se constantemente tivessem diante de seus olhos a magnificiência dos jardins
celestes? Não, era melhor assim como estava e aqueles, aos quais seria aberta a visão
para contemplar os mundos superiores, tinham a missão de informar outros sobre isso,
mantendo viva a saudade, para que não ficassem presos na matéria, mas se esforçassem
para ascender.
A Miang-Fong foi mostrado o circular dos espíritos humanos, o eterno ir e vir entre
o aquém e o além. Causava-lhe, porém, tristeza ter que observar como, em cada nova
vida terrena, a maioria dos seres humanos sobrecarregava-se com novas culpas e como
uma nova vida não levava para cima, mas sempre mais para baixo. Acordava nele uma
ardente ânsia, que dia e noite não o deixava sossegar, de advertir os seres humanos e de,
mais uma vez, empenhar uma caminhada para falar-lhes, acordá-los com palavras
flamejantes.. No mosteiro tudo estava bem encaminhado. Certamente os alunos mais
velhos necessitavam dele, pois somente ele poderia conduzí-los mais para o alto, pois
nenhum outro encontrava-se tão adiantado em seu desenvolvimento espiritual como ele,
porém, não poderiam ficar sem ele por algum tempo? Tanto mais eles deveriam cuidar
dos demais alunos, sem constantemente poder pedir-lhe conselhos, e essa autonomia
lhes faria bem.
E o Altíssimo atendeu a sua prece. Certa noite viu novamente quadros desfilando
diante de seus olhos. Eram diferentes daqueles de antigamente, quando o sofrimento no
Tibete o conduziu ao país, devido à opressão dos sacerdotes magos. Dessa vez viu
muitas pessoas ao lado de um imenso tear. Era um tecido comprido, artisticamente
confeccionado, o qual era tecido por um grande número de pessoas. Não era possível
ver sua borda superior, estava muito alta. Na borda inferior teciam as pessoas, porém,
enquanto que na parte superior distinguiam-se claramente lindas trepadeiras e flores,
embaraçavam-se aqui os fios e, impacientes, muitos rebentavam-nos e depois queriam
novamente atá-los. Disso resultava cada vez um nó, no qual era contida a luz clara, que
de cima penetrava no tecido. E como eram feias as cores na borda inferior! Escuras,
sujas, cinzentas ou berrantes. Raras vezes via Miang-Fong um tecelão sentado ali que,
pacientemente e sem ser molestado, conseguia tecer e ligar fios puros. Ao redor dessas
pessoas havia um brilho mais claro e pareciam alegres e felizes, enquanto que as outras
pareciam rabugentas e aborrecidas, incomodando-se mutuamente e até enfrentando-se
verbal e fisicamente.
“Porque não agís como aqueles!” exclamou Miang-Fong e indicava para os
tecelões quietos, cujo trabalho era tão bem sucedido.
Mas ninguém o escutava e ele teve que desistir.
“Veja aqui a humanidade, que devia ter participado na grande tecedura da criação!”
ouvia Miang-Fong uma voz falar.
“Experimenta mostrar-lhes, como vem intervindo perturbadoramente, como
prejudicam a beleza do todo, com seu agir obstinado!”
Miang-Fong acordou com tristeza no coração. Constantemente via esse quadro
diante de seus olhos, no entanto, mais ardentemente ainda brotava nele o desejo de
ajudar e advertir. Ele entregou o mosteiro ao mais velho de seus alunos e partiu,
totalmente solitário e sozinho, como havia partido nos anos de sua juventude, para o
mundo desconhecido. Naquela época ele mesmo ainda era um aluno, um aprendiz.
Agora ele podia dar, podia atuar conduzindo. E a bênção e a proteção do Altíssimo o
acompanhavam em todos os seus caminhos.
Por muito tempo ainda circulavam, entre os seres humanos, histórias milagrosas
sobre o grande mestre, que tinha percorrido o país, que a muitos havia chamado e
advertido e acordado para um atuar melhor. Era como se fogo tivesse atingido as almas,
quando falava, assim se ouvia falar dele e os que o haviam escutado nunca mais o
esqueciam. Diante dele as trevas recuavam, ele as varria da sua frente como que com
uma espada em brasa e empurrava-as de volta aos seus esconderijos mais ocultos. Havia
agora mais claridade no Tibete, desimpedidamente podia descer o fluxo de luz do
Altíssimo, e mais aliviado tornou-se o coração das pessoas. Mesmo que nem todos
tivessem abandonado sua inércia interior, outros incandesciam tanto mais. Parecia que
um amplo acordar perpassava todo o país. Agora cumpriu-se em Miang-Fong, o que
havia admirado na Pérsia: que uma única pessoa podia mudar um país inteiro.
Quando Miang-Fong retornou ao mosteiro do Altíssimo na montanha Tao-schan,
deixou atrás de si um outro Tibete daquele quando iniciou sua viagem. Perpassado por
fios luminosos, nos quais ardia aqui e acolá uma clara luz, como pequenos archotes,
assim estava diante de seus olhos espirituais e alegrava seu coração. Não havia
trabalhado em vão. No entanto, o trabalho ainda não terminara, outros mosteiros deviam
ser construídos, para servirem como pontos de apoio. Naquela época, todos estes
mosteiros estavam servindo à verdade, irradiavam pureza para longe e atraíam espíritos
humanos que procuravam.
Quão diferente é hoje a situação no Tibete! Em toda parte alojaram-se firmemente
as trevas mais escuras, usando conscientemente os poucos seguidores da verdade, que
ainda restaram daqueles tempos longíquos, para seus próprios propósitos, ao
adicionarem à verdade fé falsa, erros e sedução. O tibetano é muito receptivo para
coisas e ocorrências sobrenaturais. Ele quer penetrar nos segredos do universo
espiritual, mas não o consegue mais, porque a verdade foi soterrada e em toda parte
envereda por caminhos errados. Do silêncio ordenado por Miang-Fong ele fez
afastamento da alma, no que conseguiu ir longe. Mas o que lhe adianta aprender a
enviar sua alma conscientemente para o Bönspa, o reino intermediário? Mais adiante
não consegue ir, pois sempre permanece ligada à Terra, presa à Terra. No Tibete
encontram-se somente ainda restos do verdadeiro saber.
Antigamente, porém, nos tempos de Miang-Fong ele floresceu, também nos
corações das pessoas humildes, pois a simples e infantil confiança em Deus é o caminho
para isso. Juntando-se, então, a esta ainda um espírito forte como guia, que os conduz e
acelera o seu desenvolvimento, grandes feitos podem ser alcançados.
Agora Miang-Fong averiguou em seu íntimo, onde deveria erigir pontos de apoio
da Luz em forma de mosteiros, e foi-lhe mostrada a distribuição dos mosteiros por todo
o país. Entrementes, tantos irmãos haviam chegado ao amadurecimento de um lama,
que podia preencher todos os postos vagos nos mosteiros.
Assim, Su foi enviado para Kum-bum, onde erigiu um mosteiro, que ainda hoje é
afamado, atraindo muitos. Uma vibração de verdadeira procura se encontra lá, ainda
hoje. A pesquisadora do Tibete também lá esteve, e foi ordenada ao posto de lama
feminina; hoje em dia, porém, um lama, de longe, não é mais aquilo o que era
antigamente, mesmo que eles próprios considerem-se fontes de sabedoria e de um saber
mais elevado. Su recebeu o nome de lama Sao-tse, isto significa “portador da Luz no
Norte.” Feliz foi sua mão e bênção pairava sobre seu atuar. Os mosteiros do Dao-tse e
do Sao-tse permaneceram por mais tempo em estreita ligação com o mosteiro matriz,
conservaram-se por mais tempo puros e intocados.
Porém, quando os mosteiros estavam erigidos e todos firmemente interligados entre
si, Miang-Fong viu aproximar-se o fim da obra de sua vida. Cada vez mais podia
aprofundar-se, agora, na sabedoria do alto, sempre mais abria-se seu olho interior e ele
via parte por parte da magnificiência do Altíssimo.
Certa noite, aconteceu que ele foi conduzido para o alto, até um grande salão.
Colunas gigantescas circundavam-no, luz fluía de cima, de uma altura insondável. No
piso reluzante do gigantesco salão abobadado projetava-se a luz em círculos e em raios,
cruzando-se, formando estrelas num infindável jogo das mais brilhantes e delicadas
cores. Mais lindo ainda do que este jogo encantador da luz e das cores, mais elevado e
irresistívelmente atraente era um altar branco no meio do salão, sobre o qual uma taça
aberta brilhava no mais maravilhoso vermelho púrpura. Sons celestes de jubilosa
adoração enchiam o ambiente e uma sublime figura luminosa, perante cujo esplendor
Miang-Fong caiu de joelhos e baixou os olhos, aproximou-se do altar e levantou o
cálice ardendo em púrpura em direção ao fluxo branco de luz, que do alto afluía
reforçadamente ao mesmo. E um pássaro com asas brancas como neve permaneceu
verticalmente sobre a taça levantada, no meio do fluxo de força e estendia suas asas.
Quase sem sentidos estava Miang-Fong deitado no chão, pressionado para baixo
pela força, à qual não pôde contrapor-se e, mesmo assim, assimilava tudo e conservava-
o no seu íntimo para sempre, inesquecível, único. Quando novamente encontrou-se em
seu leito, ainda preenchido pelo vivenciado e inflamado à mais alta incandescência de
seu íntimo, ouviu a voz de seu amigo luminoso dizer:
“A ti foi dado ver o rei dos mundos, nunca o esqueças! Mas não comenta nada com
os teus, eles ainda não podem compreendê-lo. Um outro virá para falar-lhes disso,
mesmo que seja somente em tempos futuros. Essa não é mais a tua missão. Prepara-te,
para que a tua missão na Terra chegue ao fim. Esteja atento, para estar preparado a
qualquer hora. Fortifica os teus e dê-lhes como último presente uma imagem da taça
sagrada, que se encontra lá no alto no santuário do Altíssimo, para acolher a Sua força.”
O mensageiro luminoso calou, e Miang-Fong recolheu-se em profunda reflexão.
Por quanto tempo ainda lhe será permitido ser um auxiliar de seu povo? Devia
aproveitar cada momento que ainda lhe restava. E, incansavelmente, empenhou-se no
trabalho, para concluir o último que ainda lhe restava fazer.
Miang-Fong fez, conforme lhe foi ordenado: mandou confeccionar um precioso
cálice vermelho de cristal de acordo com o modelo da taça sagrada que havia visto no
templo do Altíssimo. Os tibetanos sabiam produzir uma liga de vidro de alto valor. O
material para isso oferecia-lhes o país em abundância, e eles tinham descoberto como
colorir o vidro por inteiro. Até agora, porém, ninguém ainda conseguira fabricar vidro
vermelho, somente azul ou verde.
Quando foi confrontado com essa dificuldade, Miang-Fong pediu auxílio, e não
demorou até que este lhe foi dado. Poucos dias depois, fez-se anunciar um homem de
aparência estrangeira. Ele tinha uma mensagem a dar ao grande mestre. Um homem
idoso, de cabelo grisalho curvou-se profundamente diante de Miang-Fong. Portava um
chapéu pontiagudo de cor cinza, uma vestimenta justa, que consistia de uma calça
comprida e de um casaco curto, e um largo manto pregueado por cima. Com sons
guturais, mas na língua dos tibetanos, ele cumprimentou Miang-Fong com as palavras:
“O Altíssimo envia-me até ti, ó grande mestre! Eu devo ajudar-te a confeccionar o
recipiente, do qual necessitais.” E tirou um pedaço de vidro das pregas de seu manto,
que apresentava a cor vermelha, que ainda não sabiam produzir no Tibete.
Com o coração comovido, Miang-Fong reconheceu novamente a bondosa
condução de seu mais alto Senhor. Ele saudou o homem, mandou-o fortalecer-se e
descansar no mosteiro. A seguir, Hu-si-nan iniciou seu trabalho. Tinha vindo de longe,
do país Tarim. Por ordem de Deus havia partido há meses, para trazer a ajuda a Miang-
Fong, da qual este necessitava. Ele mostrou aos irmãos a fabricação e a coloração do
vidro vermelho, ao qual deviam ser adicionados determinados metais, fundidos em alta
temperatura e, após algumas semanas, a taça estava diante dos olhos de Miang-Fong,
assim como a havia visto de noite. Não era necessário descrevê-la para Hu-si-nan, o
velho também a conhecia.
“Em cada templo da minha terra natal encontra-se uma taça dessas,” contou ele.
“Mensageiros do Altíssimo mostraram-nos sua imagem. Mostraram-nos também a
imagem do templo nas alturas mais elevadas, e à sua imagem construímos os nossos
templos.
Havia, então, ainda outros povos que também tinham conhecimento do Altíssimo,
que O adoravam e eram por Ele conduzidos? Quão maravilhosa era essa notícia! Miang-
Fong agradeceu do fundo do coração por isso. Convidou Hu-si-nan para permanecer
junto deles. O velho, porém, recusou-se.
“Eu somente posso permanecer aqui até que vos tenho ensinado os conhecimentos
que me foram presenteados,” disse solenemente. “Quando for chamado pelo Altíssimo,
devo deixar-vos.” E, certa manhã, os irmãos encontraram a sua cela vazia, quando
vieram procurá-lo por não ter-se apresentado. A mando de Deus, Hu-si-nan havia
partido, no meio da noite, para executar uma nova tarefa. Nunca mais foi visto no
mosteiro, porém, ficou inesquecido, e muitas vezes falava-se do velho artesão do
desconhecido país Tarim.
A taça vermelha ornamentava, doravante, a mesa na sala de devoção e enchia os corações dos ouvintes com
uma noção da magnificência celeste. Miang-Fong havia lhes explicado que, na parte mais alta do céu, no templo do
Altíssimo, também se encontrava uma taça semelhante, na qual derramava a força do alto. Ela a absorvia, e quando
estava totalmente cheia, então ela transbordava e lançava a força para tudo o que é criado. A taça terrena também foi
destinada para absorver a força do alto e a transmití-la ao transbordar. Eles deviam abrir bem os seus corações para
esse sublime acontecimento, então a força chegaria também até eles no dia em que é distribuída pelo Altíssimo à Sua
criação.

Mais do que isso Miang-Fong não devia dizer aos seus, e era o bastante para eles.
Até o dia de hoje sussurra-se ainda da misteriosa taça vermelha que antigamente se
encontrava na montanha Tao-Schan e que havia feito milagres. Lendas e contos ataram-
se à mesma, imaginados pelo espírito desejoso de milagres dos seres humanos, mas
tinham como ponto positivo ajudar a manter a lembrança. A própria taça, porém,
desapareceu. Ninguém conhece o seu paradeiro.
Miang-Fong passou seus últimos anos na Terra em atuação intensificada para o
Altíssimo. Insistia junto aos irmãos, o mais fervorosamente possível, de que eles seriam
responsáveis pela manutenção da verdade e sempre de novo os instruía:
“Não deixem desviar-vos nem uma polegada do caminho reto da verdade. Cada
um, até o menor dos passos para o lado, leva às redes do senhor sobre as trevas. Ele
espera pelo momento em que vós puderdes enfraquecer, ele não conhece piedade, com
riso sarcástico ele vos atrairia à destruição. Porém, se permanecerdes com a verdade,
então sereis protegidos. Ele tem que permanecer afastado de vós, pois a verdade vos
envolve como um muro protetor, intransponível.”
Quando Miang-Fong assim falava a eles, então os alunos inflamavam-se em seu
íntimo e prometiam agir de acordo com suas palavras. Todos ainda tinham na lembrança
os tempos horríveis, quando o Tibete era dominado pelo senhor das trevas. Eles ainda o
temiam e, por muito tempo, a luz da verdade foi mantida pura através dos mosteiros,
que continuavam enviando servos puros do Altíssimo para todo o extenso país. Quem
recebera os ensinamentos do mosteiro, esse estava invulnerável às tentações do mundo
lá fora.
Quando os dias de Miang-Fong estavam contados e ele sentiu aproximar-se o seu
fim, chamou todos os irmãos à sua presença, abençou-os e mais uma vez dirigiu-lhes a
palavra.
“Não lamentais a minha partida,” falou amavelmente o sábio mestre. “Sigai
destemidamente o vosso caminho, mesmo se não mais encontrar-me entre vós. Vós
sempre sereis conduzidos pelos servos do Altíssimo. Eles nunca abandonar-vos-ão, se
vós não os abandonardes.
Concentrem luz ao redor de vós e, então, ide e levai essa luz até os seres humanos.
Eles necessitam dela. Portadores da luz deveis ser neste país, para que nunca mais
decaia para as trevas. Quando virdes pessoas alegres perto de vós, então cumpristes o
vosso dever. Se, porém, voltar o sofrimento, então perguntai-vos o que negligenciastes.
Depende de vós, de como se cumprirá o destino do Tibete. Vós sois aqueles que devem
manter a ligação com o alto, então o auxílio virá para todos. Pudestes vivenciar
milagres, quando um ser humano desabrochava durante a noite, quando era-lhe trazida a
verdade, como ele acordava de sono profundo e reconhecia quem ele era e qual era a
sua missão. Consigam muitos desses milagres, vós, meus alunos, então confiantemente
podereis um dia prestar contas, quando deixares o vosso corpo terreno.”
“Mestre,” perguntou aí um de seus alunos, e um ardente desejo estava por trás
dessa pergunta, “Mestre, tu voltarás? Ou permanecerás no alto, nos jardins eternos, de
onde vieste?”
“Isso está na vontade do Altíssimo,” foi a resposta de Miang-Fong, “se Ele quiser
me abençoar novamente com uma missão na Terra ou se me for permitido serví-Lo lá
no alto. Vós, porém, meus alunos, cuidai para que não precisais retornar, por terdes
omitido algo, por ainda não terdes amadurecido para uma vida nos jardins celestes! Não
deixais passar nenhum dia, no qual não vos perguntais: tenho feito tudo o que devia
fazer, o que podia fazer? Examinai-vos severamente a cada noite, façam recolhimento
ao vosso íntimo e não vos poupais. Somente a verdade auxilia-nos para diante! E nunca
esqueceis de exercitar-vos no silêncio. No silêncio cresce vossa força interior, no
silêncio despertam em vós reconhecimentos, no silêncio pode aproximar-se o vosso
guia invisível. Silenciar é mais poderoso que falar, pois as palavras humanas originam-
se somente dos pensamentos dos seres humanos, da vontade dos seres humanos; no
silêncio de vossas almas, porém, fala a vós o Altíssimo.”
Comovidos, os alunos escutavam as palavras do velho mestre. Suas feições
estavam transfiguradas. Nunca esqueceram o que ele lhes havia falado naquela hora.
A seguir, Miang-Fong os mandou embora.
“Ide agora, somente Su-an-tse fique comigo.”
Fatigado, Miang-Fong fechou os olhos. O esforço havia sido quase demasiado para
o seu corpo, do qual a alma começava a desligar-se. Durante longo tempo Su-an-tse
esteve sentado junto ao leito e observava o mestre estendido inerte. Os raios do sol
poente incidiam cada vez mais oblíquos no simples quarto. E quando o último raio
atingiu o rosto de Miang-Fong, este mais uma vez abriu os olhos e disse nitidamente:
“Meu Senhor e meu Deus, a Ti eu sirvo em toda a eternidade!’
Então fecharam-se suas pálpebras e profundo silêncio estendeu-se no crepúsculo do
quarto. Silenciosamente orava Su-an-tse no leito do falecido mestre, cujo rosto tornava-
se cada vez mais transfigurado. Um sopro de paz, de pureza, de bondade cobria-o.
E os sentidos despertos de Su-an-tse viram as figuras luminosas, que levavam o
querido mestre consigo. Para o alto e cada vez mais alto, até desaparecerem, até ficarem
visíveis somente delicadas nuvenzinhas de luz e um leve som de acordes sobrenaturais
iam-se desvanecendo.
Por longo tempo ainda permaneceu Su-an-tse junto ao leito de Miang-Fong. Ele
havia sido aquele entre seus alunos, que nos últimos anos tinha estado mais próximo
dele, e ele tinha sido escolhido pelo Alto como seu sucessor.
Calmo e lúcido, firme e determinado, encarregou-se da condução do mosteiro e
dirigiu-o por muitos anos dentro do espírito de Miang-Fong, até que também ele foi
chamado para a eternidade.
Um lama superior sucedeu ao outro. As regras e prescrições de Miang-Fong foram
complementadas, o mosteiro foi ampliado. Sempre, porém, o mosteiro na montanha
Tao-Schan conservou a condução espiritual. O lama superior desse mosteiro era o
superior de todos os demais. Espiritualmente ele era o mais elevado e mantinha sem
turvação a ligação com o Alto.
Enquanto essa ligação persistiu, o Tibete esteve protegido contra as trevas, que
inutilmente esforçavam-se por recuperar o seu domínio perdido. Não sem razão este
mosteiro estava situado na maior altitude. Mas quando os mosteiros mais afastados
começaram a rebelar-se contra a condução pela montanha Tao-Schan, abriu-se a
primeira brecha e as trevas penetraram e espalharam-se rapidamente.
O querer próprio e o egoísmo novamente venceram e, após a mais bela florescência
de muitos séculos, o Tibete sucumbiu novamente ao poder das trevas.
APÊNDICE
Teor do final sobrecolado:
Agora, porém, seu domínio terá seu fim. IMANUEL libertará também esse povo de
seu fardo. Ele lhe dará nova vida e fielmente o povo do Tibete servirá novamente ao
Altíssimo.

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