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MIANG-FONG
MIANG-FONG
RECEBIDO POR INSPIRAÇÃO ESPIRITUAL
POR
CHARLOTTE VON TROELTSCH
E
SUSANNE SCHWARTZKOPF
Um relato
sobre a vida
do grande Portador da Verdade,
que libertou o Tibete das trevas.
Miang-Fong
Por longo tempo permaneceu absorto, nenhum ruído o atrapalhava, de modo que
finalmente adormeceu. Pareceu-lhe, então, que viu um homem muito jovem num
caminho solitário. Este caminho era estreito, mas de grande beleza em meio a uma
paisagem selvagem com todo tipo de perigos iminentes. Às vezes a subida era íngreme,
então o caminhante parava, como se tivesse dificuldade de respirar, porém, não olhou
para trás. Somente agora Miang percebeu que os olhos do homem estavam fechados.
Mas então era surpreendente que esse jovem conseguia caminhar de modo seguro.
Ainda enquanto Miang considerava isso, viu o caminhante tropeçar, mas antes que esse
pudesse cair, ele foi agarrado de cima por uma mão muito grande, luminosa, que
empurrou-o novamente sobre o caminho seguro. Isso repetiu-se várias vezes. Quando a
mão então novamente quis colocá-lo no caminho certo, o homem abanou a cabeça
negativamente. Ele começou a apalpar as imediações e fez tentativas de trilhar um
caminho diverso do indicado pela mão auxiliadora. Miang ficou impaciente.
“Deixa-te guiar, pois tu mesmo estás cego!” gritou para a figura do sonho. Este,
porém, tinha se demorado muito tempo com a procura. Nisso havia perdido o caminho
até então trilhado, tinha chegado a um declive úmido, coberto de musgo e escorregou
irresistivelmente rumo ao precipício.
Miang acordou com um grito. O que aconteceu? Nitidamente ainda via o jovem
resvalar e deslizar pelo caminho escorregadio em direção ao abismo. Ficou com medo.
Subitamente sabia que era ele o jovem! O Altíssimo não o havia conduzido até agora,
assim como ele o havia visto agora? Ele nunca soube para onde o seu caminho o
conduziria, também não o sabia agora. Só uma coisa estava certa. O Altíssimo o
mandava conduzir com mão firme. Ele só deveria deixar-se conduzir.
Era isso! Agora caiu-lhe a venda dos olhos. “Deixar-se conduzir,” isto ele tinha que
aprender, isto era o mais importante, pois ele não conhecia o caminho até o Altíssimo!
Mas como devia fazer isso, se deixar conduzir? “Não ter vontade própria,” murmurou
uma voz dentro dele. Sim, o que foi que ele queria? O que não havia estado de acordo
com a vontade do Altíssimo?
Então, novamente viu Fong diante de si, Fong, que até agora o havia instruído e
conduzido a mando do Altíssimo. Sim, a mando do Altíssimo! Isto Miang havia
esquecido. Ele mesmo queria decidir, interferir. E agora? Encontrava-se ele realmente já
diante do abismo? Com perigo de precipitar-se?
Calor percorreu as suas veias. Nenhum passo deveria seguir nesse caminho, que o
levava ao perigo máximo.
“Ó, Todo Poderoso,” irrompeu dele, “quero tornar-me Teu servo, ajuda-me para
que não venha a desviar-me do caminho, que devo trilhar até junto a Ti!”
Não agüentava mais ficar dentro da tenda, correu para o ar livre.
A lua estava no alto do céu, mas a Miang parecia que algo o chamava e o puxava
mais longe para a natureza. Era Hila, que o chamava?
Aqui fora estava claro que nem dia. A luz da lua pairava prateada sobre cada pedra,
cada palhinha de grama. Em pensamentos profundos caminhava Miang meio
inconsciente para diante. De repente, seu pé esbarrou numa pedra saliente. Ele tropeçou,
quase caiu. Levantou o olhar fixado no chão. Então viu algo que até então nunca havia
visto. Uma figura envolta em luz encontrava-se diante dele, sorriu para ele.
Estupefato Miang olhou para o milagre.
“Quem és tu?” balbuciaram seus lábios.
“Teu amigo,” veio cristalina a resposta.
“Meu amigo? Mas eu não te conheço!”
“Realmente não, Miang?” tinia novamente tão cristalino, tão amável até ele.
Então parecia como se um véu se rasgasse diante de seus olhos. Ele olhou nos
olhos da figura e então veio-lhe uma recordação, que ainda não conseguia compreender,
captar.
“Não continua procurando por ora,” ordenou o desconhecido. “Escuta-me, Miang.
Eu sou teu amigo, já lhe disse. O Altíssimo enviou-me para ajudar-te. Diga-me em que
posso te ajudar.”
Fervorosamente irrompeu de Miang: “Ó, Todo Poderoso, eu Te agradeço!
Maravilhosamente escutaste o meu rogo! Eu Te agradeço!”
Então dirigiu-se ao estranho:
“Eu não sei mais o que devo fazer, para me tornar um servo do Altíssimo, e mesmo
assim sei que devo sê-lo!”
“Tu fazes demais!” disse ele, calando-se novamente.
Perplexo, Miang olhou para ele. Não deveria fazer mais nada? Mas Fong não teve
que transportar pedras, a mando do Altíssimo, e ele não teve que ajudá-lo nesse
trabalho, por ordem do Altíssimo?
Parecia que o luminoso lia todos os pensamentos que perpassavam Miang.
“Trabalhar deves, deves movimentar tuas mãos. Muito trabalho te aguarda. Mas
deves fazê-lo como servo, em obediência ao teu Senhor, não rebelar-te e querer saber
melhor.
Ontem Fong quis confiar-te a condução de sua tribo. Tu, porém, só estavas cheio
de medo de que Fong pudesse expor-se ao perigo e nele sucumbir. Procuraste
medrosamente retê-lo, e mesmo assim, era o seu dever de partir e livrar o seu povo da
praga das feras. Não sabias tu que Fong é um servo do Altíssimo e somente atua
conforme as Suas ordens? Considera, opuseste-te ao Altíssimo, não a Fong!”
Totalmente perplexo escutou Miang essas palavras. Agora a névoa em seu interior,
que tudo tinha encoberto, se afastava. Sentia vergonha.
Miang caiu numa introspecção tão profunda que nem se deu conta que estava
novamente sozinho. A alvorada já se aproximava e ele continuava refletindo absorto.
Inconscientemente prosseguira, encontrando-se repentinamente junto ao pequeno
riacho, onde sabia que estava Hila, a ondina. Perpassou-lhe o pensamento – deveria
chamá-la?
Antes mesmo de chegar a uma decisão, repartiram-se as ondas e o rosto travesso de
Hila apareceu.
“Como é, servo do Altíssimo, encontraste o teu erro?”
“Sim” exclamou Miang alegremente. Um peso enorme lhe foi tirado do coração.
“Eu o vejo,” confirmou Hila, “e fico feliz com isso.”
Ela acenou para ele e, antes que ele conseguisse responder algo, havia
desaparecido. Agora, porém, Miang não mais se deteve ali. Voltou rapidamente,
rogando em silêncio que lhe fosse mostrado o que tinha que fazer. Ainda não havia
alcançado a sua tenda, quando encontrou um mensageiro, que alegremente exclamou:
“Que bom, que te encontro! Trago-te uma mensagem do príncipe Fong. Aqui está
ela.”
Postou-se com as pernas abertas diante de Miang e repetiu devagar e claramente as
palavras, como Fong o tinha encarregado.
“Diga ao meu filho Miang, que não continue inativo em sua tenda. Ele deve ir e
procurar aquele trabalho que está destinado a ele. Quem procura seriamente, esse
encontra.”
“Entendeste a mensagem, jovem?” perguntou o mensageiro, e Miang acenou
afirmativamente. “Então está bem.”
Sem mais uma palavra, o mensageiro deu as costas e prosseguiu seu caminho.
Miang, porém, não sabia bem o que fazer. Onde deveria procurar o seu trabalho? Ele
estava disposto, mas não sabia onde devia começar. Entretanto, o que havia aprendido
esta noite? “Deixar-se conduzir, nada querer sozinho.” Assim ele queria agir.
Silenciosamente rogou ao Altissimo:
“Altíssimo, permita que reconheça o que devo fazer!”
Então, continuou caminhando devagar. Diante de si estava o amplo vale, no qual a
tribo amarela armara as suas tendas. O sol agora já havia nascido e viva atividade via-se
ao redor das tendas. As mulheres assavam pão sobre pedras aquecidas. Crianças as
rodeavam e se deliciavam com o aroma que dali emanava. Muitos dos homens haviam
partido, porém, ainda havia número suficiente. Eles tratavam dos cavalos, e mais
distante, nas verdes encostas, via-se rebanhos de ovelhas com seus pastores.
Miang ponderava, indeciso, para onde deveria dirigir seus passos, quando uma
menininha correu ao seu encontro. Estava tão apressada, que esbarrou nele e ele a
amparou em seus braços.
“Para onde vais com tanta pressa, pequena menina?” perguntou Miang rindo.
Séria, a pequena respondeu, tirando os seus densos cabelos escuros do rosto: “Devo
buscar ajuda, meu pai está doente. Sente dores, queixa-se e geme.”
“A quem querias pedir ajuda, pequena?” perguntou Miang.
“Husa, a anciã, ela possui ervas curativas. Mas agora deixa-me ir embora.”
E a pequena soltou-se e correu rapidamente até a próxima tenda.
Miang a seguiu com o olhar. A criança era graciosa e muito séria para sua idade.
Não demorou muito e A-na retornou, seguida por uma anciã curvada, que levava uma
sacola na mão. Essa devia ser Husa. Ficando curioso, Miang seguiu as duas até a tenda,
não muito limpa, na qual o pai de A-na estava revirando-se no seu leito, gemendo.
Husa não perdeu muitas palavras. Ordenou A-na a esquentar água. Então preparou
um chá, o qual o homem teve que engolir. Parecia, porém, que também esse chá
medicinal lhe trazia pouco alívio.
Silenciosamente, Miang havia entrado na tenda atrás da anciã. O aspecto aqui não
era bonito. Havia sujeira por todos os lados. Panos sujos estavam no chão, havia louça
com restos de comida e o ar estava abafado e fumacento. Miang quis recuar arrepiado,
mas uma voz dentro dele disse: “Fique!” Então, permaneceu bem quieto e observou
como a anciã debruçou-se sobre o doente, dando-lhe para tomar o chá medicinal. Ele
engulia, mas não parava de gemer. Entretanto, não foi possível determinar o que lhe
faltava. À pergunta da anciã, onde sentia dores, ele respondeu queixoso: “Estão em todo
meu corpo e me beliscam como os diabos de fogo.”
“Diabos de fogo?” perguntou Miang admirado e aproximou-se um pouco. “O que é isso?”
“Ora, os pequenos diabos que vivem no fogo e que comem a madeira,” respondeu
Husa calmamente. Para ela, isso não parecia ser algo fantástico. Miang, porém,
admirou-se, ele não sabia o que era um “diabo”. Por isso continuou perguntando: “E o
que são diabos?”
Medrosamente os dois outros olharam ao redor. “Quieto,” respondeu Husa e pôs o
dedo sobre os lábios. “Isso não se deve falar em voz alta, senão eles vêm e podem nos
prejudicar. Mas vou dizer-te no ouvido, para que possas resguardar-te, jovem
forasteiro.”
E com voz rouca falou baixinho ao seu ouvido: “Diabos são entes maus, eles
tentam destruir as pessoas.”
Miang admirou-se. Ele nunca encontrou tais entes.
“E eles vivem no fogo?” continuou perguntando incrédulo. “Não somente no
fogo,” cochichou a anciã, “estão em toda parte, no ar, na água.”
“Pare!” exclamou Miang, “na água não vive ente ruim, isso eu sei com certeza. Eu
tenho visto a bela figura enteal que vive na vossa água! Ela é Hila, e ela quer bem a nós
seres humanos.”
Agora, a vez de admirarem-se era de Husa e do doente, que com essa novidade
quase esqueceu suas dores. Também A-na, que timidamente tinha ficado no fundo da
tenda, deu um passo para diante. Miang, porém, feliz, sabia de repente: aqui havia o que
fazer para ele.
“Posso sentar-me junto de vós?” perguntou amavelmente, e ambos pediram:
“Sim, senta-te junto de nós e conta-nos dos entes bons das águas.”
Com todo prazer Miang começou a contar o que tinha vivenciado com Hila e
Hima e como o ajudaram e o bem que lhe fizeram, como serviam ao Altíssimo.
Boquiabertos, Hisor, o pai de A-na, e Husa escutavam. Inacreditável era essa notícia e,
no entanto, o forasteiro falava disso com tanta certeza. E quando descreveu como eram
lindas e alegres as pequenas ninfas, estampava-se alegria nos rostos dos ouvintes.
“Sinto-me mais aliviado, desde que me contaste isso, forasteiro,” disse Hisor.
“Chamem-me Miang, este é o meu nome,” pediu o jovem. “Querem ouvir mais dos
bons entes, que são servos do Altíssimo?”
Com grande alegria Hisor e Husa concordaram. E Miang contou dos enormes
gigantes, de Uru e Muru e de sua fiel ajuda, como o conduziram até o príncipe Fong, e
como são diligentes servindo ao Altíssimo.
O espanto dos ouvintes aumentava. Tudo era novo para eles, nunca haviam
escutado algo igual. Hisor esqueceu-se de suas dores. Quando um raio oblíquo do sol
entrou na tenda, Husa sobressaltou-se.
“Tenho que voltar para casa,” exclamou ela. “Mas tu voltarás, Miang?” pediu ela,
“e continuarás nos narrando?”
Miang prometeu-o com alegria. Aqui, pois, havia encontrado o trabalho que devia
executar. E o mesmo havia sido conduzido até ele, não tinha sido ele que o desejara.
“Eu voltarei amanhã, para ver como vai Hisor,” prometeu. E Husa acrescentou
solicitamente: “E eu trarei novas ervas ainda melhores.”
Pois ela queria estar presente quando Miang contasse.
Já cedo no outro dia, Miang pôs-se a caminho. Mal podia esperar para continuar o
seu trabalho. Hoje o enfermo estava deitado bem quieto no seu leito. Parecia que estava
melhor.
“Como te sentes hoje, Hisor?” perguntou Miang amavelmente. E Hisor ergueu-se o
melhor que pôde e disse, contente:
“Então vieste mesmo, Miang? Como estou contente. Eu receava que te seria
incômodo visitar-me. Não é bonito aqui,” acrescentou lamentando. “Minha mulher
morreu, e A-na ainda é muito pequena para deixar tudo em ordem.”
Sim, isto dava para perceber. Timidamente A-na olhava do canto do fogão para
Miang. Ela se envergonhava e pretendia esforçar-se pondo ordem na tenda, pois ela
também queria muito que o forasteiro viesse e contasse.
“Como é, os diabos do fogo não te beliscaram mais?” perguntou Miang e riu
alegremente.
Este riso espantou o último resto de medo na alma de Hisor, de que talvez ainda um
diabo pudesse estar na proximidade para prejudicá-lo. Respirou como que aliviado e
juntou seu riso ao de Miang. Como isso fazia bem! Ele sentiu como estava melhorando
novamente.
“Quando estás comigo, Miang, então não sinto medo,” disse ele admirado e olhou
para o jovem. Qual seria o motivo disso? Escutaram passos lá fora e apressadamente
entrou Husa, novamente com uma sacola na mão.
“Já estás aqui, Miang?” exclamou contente. “Então quero preparar rapidamente o
chá de ervas, para que passem as dores de Hisor, e depois tu continuas contando, não
é?”
E assim aconteceu, e resposta seguia à pergunta e nova pergunta seguia à resposta.
Miang não sabia o quanto havia para contar dos gigantes e dos homenzinhos das pedras,
de Hila e Hima. O tempo passou voando.
“Agora deve ser preparada a comida,” disse Husa e, ainda cheia de felicidade sobre
o recém ouvido, tratou de ajudar A-na, que se esforçava a acender um fogo, no simples
local de fogo aberto.
Miang ficou observando, perdido em pensamentos. Como ele era rico, porque o
Altíssimo havia aberto os seus olhos para poder ver os servos fiéis, e dessa riqueza ele
agora queria dar aos seres humanos. Era isso que o Altíssimo agora exigia dele. Dessa
forma ele podia ajudar, servir. Miang estremeceu: Servir? Tornou-se com isso também
um servo do Altíssimo? Como uma corrente de fogo perpassou-lhe esse
reconhecimento. Quase caiu de joelhos, pelo excesso de felicidade, para agradecer ao
Altíssimo.
Soou então a clara voz de criança de A-na: “Vejam, os diabos do fogo!”
O fogo ardia resplandescente e, quando Miang olhou, ele também descobriu os
pequenos entes saltitantes nas chamas. Assustada, A-na queria esconder-se atrás de
Husa, porém, Miang pegou-lhe na mão e puxou a criança para a frente.
“Observe,” disse ele, “como são bonitos! E o que é belo não pode ser mau. Veja,
eles ajudam o fogo para que queime e nos esquente e nos prepare os alimentos! Vamos
escutar, o que nos têm a dizer”.
Como que paralizados, olhavam agora os quatro para as chamas, todos viam as
figuras palpitantes dançando, mas já não sentiam mais medo delas. E a Miang parecia
ouvir um fino tinir vítreo, sons delicados, que se juntaram para formar as seguintes
palavras:
“Também nós servimos ao Altíssimo, nós estamos felizes que isso nos é permitido!
Sirvam vós também!”
Longamente Miang escutava, até que o fogo se extingüiu, depois dirigiu-se aos
demais e contou o que tinha escutado. Surpresa tomou conta dos ouvintes. E Miang não
se cansou em responder todas as perguntas, pois esta vivência causava-lhe também a
maior alegria. Era-lhe permitido servir! Toda a aflição e todas as perguntas e procuras
dentro de si haviam desaparecido; preenchia-lhe uma alegria que fez estremecer o seu
íntimo.
Quando o sol novamente lembrou Husa de suas obrigações, Miang também queria
despedir-se. Mas Hisor pediu: “Fique mais um pouco, Miang, eu também quero contar-
te algo.”
E Miang permaneceu e escutou o relato de Hisor. A esposa de Hisor morreu de
uma febre violenta e deixou-o com A-na sozinho. Desde então ele não estava bem. A-na
somente sabia preparar as comidas mais básicas e tinha dificuldade em exercer as outras
tarefas. E agora, Hisor ainda ficara doente e não podia cuidar de seus animais, das
ovelhas e dos cavalos.
“O que achas, Miang,” perguntou um tanto hesitante, “será que há também entes
bons, que me ajudariam? Eu não posso ir até os teus gigantes para pedir-lhes ajuda, pois
eu nem os encontraria.”
Em suas palavras suplicantes havia um rogo não expresso. E Miang pediu ajuda no
seu íntimo. Ele viu a penúria de Hisor. Tinha muita vontade de ajudá-lo, mas era
homem e aqui só poderia ajudar uma mulher.
“Vamos pedir ao Altíssimo para que te envie ajuda,” disse Miang confiantemente,
e levantou as mãos e rezou fervorosamente: “Altíssimo, Tu vês a penúria de Hisor. A-na
ainda é muito pequena. Ajude-o, ele quer esforçar-se para fazer tudo o que dele exigires.
Os olhos de Hisor estavam fixados nos lábios de Miang durante essa curta prece, e
nas últimas palavras abanou a cabeça, afirmando com veemência. Ele estava disposto a
fazer tudo o que Miang exigiria dele. No dia seguinte, Miang novamente compareceu na
tenda de Hisor, porém, não veio sozinho. Ao seu lado caminhava uma mulher que,
assim que entrou na tenda, começou naturalmente a pôr ordem nas coisas. Hisor
observava boquiaberto este milagre e Miang sorriu. Depois, porém, relatou a Hisor o
que entrementes havia acontecido.
Ontem, quando regressou, encontrou essa mulher em frente à sua tenda, sentada
numa pedra. À sua pergunta de quem ela era, respondeu: “Eu procuro Miang, o servo do
Altíssimo.”
Imensamente surpreendido, Miang escutou essas palavras e perguntou-lhe o que
dele queria. Então a resposta dela foi: “Meu nome é Hirsa. O Altíssimo manda-me em
teu auxílio. Não continue perguntando, mas diga-me o que devo fazer.”
Então Miang contou-lhe, que acabou de pedir ao Altíssimo ajuda para Hisor.
Agora, sua prece foi atendida tão rapidamente, mal podia acreditar. Mas Hirsa falou as
poucas palavras:
“O Altíssimo é sábio.” Com isso, para ela tudo estava dito.
Hirsa ficou agora junto a Hisor, cuidava dele, e suas mãos eram maravilhosamente
leves. Cantando baixinho, pôs ordem em tudo na tenda, limpou-a, preparou a comida e
cuidou de A-na. Cada manhã ela voltava e, ao pôr do sol, desaparecia.
“Para onde sempre vais, Hirsa?” perguntou Hisor certa noite, quando novamente
quis desaparecer, após curto cumprimento.
“Isto não devo dizer-te, Hisor,” foi a resposta. “Mas eu voltarei e cuidarei de ti, até
que novamente encontres uma esposa.”
Tão feliz Hisor nunca havia estado em toda sua vida. Parecia que tinha entrado
claridade em sua tenda, antes tão escura e suja, que agora brilhava de limpa, tão logo
Hirsa chegava. Hisor rejuvenescia a cada dia. Os vizinhos, porém, pergutavam curiosos,
se tinha uma nova esposa.
“Não,” respondeu Hisor seriamente. “Hirsa me ajuda, mas não é minha esposa.”
Hisor gostava de olhar as chamas levantando-se em labaredas e observava os entes
do fogo. Às vezes parecia-lhe que podia ouvir seu canto:
“Nós servimos ao Altíssimo.”
Miang muitas vezes ainda retornara à tenda de Hisor. E logo também juntaram-se
vizinhos, que ouviram falar de que Miang sabia contar tão bem dos muitos entes no
fogo, na água e nas montanhas.
A tribo de pastores do príncipe Fong era um povo rude, endurecidos pela sua vida
nas montanhas. Mas também havia pessoas distintas entre eles, que possuíam grandes
rebanhos e que pagavam aos mais pobres pelo trabalho como pastores. Reinava boa
ordem na tribo amarela, regida há muito tempo pela estirpe de Fong.
O tempo em que Fong estivera ausente chegou ao fim. Certa tarde ecoaram
cornetas e via-se o grupo de cavaleiros retornarem para o amplo vale, e Fong na
dianteira. Grande júbilo recebeu os que retornaram. Todos saíram apressadamente das
tendas e aglomeraram-se para cumprimentar alegremente os caçadores. Tinham feito
muitas presas, notava-se isso pela grande quantidade de peles que traziam. Isso
provocou nova alegria, sabendo-se que a caça teve êxito e que a praga fora eliminada.
Também Miang havia saído de sua tenda e aguardava a chegada do grupo. Esperou,
porém, até que se aproximassem. Então foi ao encontro de Fong e cumprimentou-o. Um
curto olhar do príncipe tangeu-o.
“Eu te aguardo em minha tenda.”
Este foi o cumprimento de Fong e Miang curvou-se levemente em sinal de sua
disposição. Fong mal havia se sentado no seu leito de repouso, quando Miang solicitou
ser recebido. Ele não podia aguardar, queria apresentar-se ao príncipe e relatar-lhe o que
entrementes havia vivenciado. Ele esperava que Fong iria questioná-lo a respeito, mas
nada disso aconteceu. Fong indicou um lugar ao seu lado e falou sucintamente: “Tenho
que falar-te.”
Miang olhou para ele na expectativa. Não se atreveu a perguntar.
“O Altíssimo deu-me uma missão para ti, Miang,” disse Fong, e bondade vibrou
em suas palavras, o que emocionou Miang profundamente.
“Tu deves ir agora até uma outra tribo, amiga nossa, e levar ao príncipe de lá uma
mensagem minha. A tribo, chama-se a tribo dos Waringis, mora além da longa cadeia
de montanhas, no sul. Ainda não deves ter ouvido falar dela. São pessoas boas, mas
rudes e ignorantes e é vontade do Altíssimo, que leves a elas o saber Dele e de Sua sábia
condução. Tu, entrementes, já começaste a servir ao Altíssimo,” acrescentou Fong,
sorrindo.
Miang queria levantar-se bruscamente para expressar a sua alegria. Um olhar de
Fong , porém, o deteve. Não, não queria recair em seu velho erro da impetuosidade. Por
isso dominou-se e somente disse: “Eu obedecerei. Quando posso partir?”
Fong olhou com agrado para o jovem, que visivelmente tinha se modificado para
melhor durante a ausência de Fong. Tinha se tornado mais seguro e mais calmo. Agora
ele poderia começar com a sua nova e mais ampla missão.
“Amanhã cedo estará à tua espera um acompanhante, que te mostrará o caminho
até os Waringis,” disse Fong brevemente.
Com isso Miang estava dispensado. Com nenhuma palavra conseguira perguntar
pelo sucesso da caçada. Agora, também não tinha mais importância para ele, estava
ocupado demais com a nova missão. O Altíssimo o enviava com uma missão, era-lhe
permitido serví-Lo, podia dar de sua riqueza! Como isso era grandioso! Novamente
Miang, pensativo, dirigiu seus passos até a floresta próxima e, novamente, seu guia
luminoso estava diante dele, no mesmo lugar, e olhou sorrindo para ele.
“Como é, Miang,” disse ele,” agora te é permitido começar a servir, depois que
reconheceste o teu erro e te esforças em corrigí-lo. Sentes-te feliz?”
Miang somente acenou afirmativamente, seu coração estava repleto demais para
responder.
“Porém, deixa-te prevenir mais uma vez, Miang,” continuou o luminoso. “Nunca
aja de acordo com a tua própria maneira de pensar, peça sempre conselho e auxílio ao
Altíssimo, assim tornar-te-ás um verdadeiro servo.”
Depois dessas palavras a figura luminosa desapareceu da vista de Miang. Por muito
tempo continuou caminhando, colocou seus pensamentos em ordem, suplicou por
auxílio para sua grande missão, agradeceu e, finalmente, voltou alegre e feliz.
Cedo no dia seguinte – recém o sol aparecia atrás das montanhas no leste – Miang
escutou um leve sinal de guizo em frente a sua tenda.
Quando saiu, encontrou ali dois cavalos ricamente encilhados, um carregado com
provisões, o outro sem cavaleiro. Sobre um terceiro estava um homem, que olhava para
Miang com expectativa.
“És tu o meu guia até os Waringis?” perguntou Miang, e o homem confirmou.
“Sim, o príncipe Fong o ordenou. Podemos partir”.
“Não devo despedir-me de Fong?” perguntou Miang, mas seu acompanhante
negou.
“O príncipe não está disponível agora, encontra-se numa reunião. Devemos partir
sem demora.”
Para Miang não havia mais nada a fazer a não ser obedecer. Irrompia um lindo dia,
dourado levantou-se o sol e uma manhã de outono tão clara, como somente as
montanhas podem presentear, preencheu o coração de Miang com grande alegria. Os
dois dirigiram seus passos para o sul. Tudo aqui era estranho para Miang, como era
estranho para ele ainda toda a região, a vida entre tanta gente. Os dois viajantes
avançavam pela manhã, fresca de orvalho, adentro. Parecia a Miang como se nunca
tivesse vivenciado ainda um dia tão lindo. Será que era por isso que se sentia tão leve e
o seu coração batia tão contente? Ainda não sabia o que o esperava entre a tribo
desconhecida, sabia somente que se dirigia para lá a mando do Altíssimo, e isso era a
sua felicidade e a sua alegria.
Seu companheiro era de poucas palavras. Aparentemente não devia falar sobre os
Warringis. Assim também Miang se calava e podia, desse modo, apreciar melhor a
beleza da região, que percorriam. Tinham subido consideravelmente, mas isso não
afetava as fortes montarias. Avançavam dispostas, hora após hora, sem mostrar cansaço.
Perto do meio-dia repousaram na sombra embaixo de uma rocha saliente, pois aqui nas
alturas o sol ainda queimava forte. Depois, o caminho começou a descer em direção a
um vale montanhoso. Pradarias verdes, com grandes blocos de pedra espalhados,
estendiam-se frente aos olhos de Miang. O verde saturado lhe fazia bem, apesar de aqui
estar tudo ermo e despovoado. Em parte alguma um ser humano, nenhum animal, além
de alguns grandes pássaros, que aos gritos levantaram vôo quando os cavaleiros se
aproximaram.
Ainda mais descia o caminho, ele seguia agora através de um desfiladeiro
selvagem, no qual a água despencava e espumava. A espuma respingava no rosto de
Miang, ele porém riu alegremente. Tudo era novo para ele, tudo lhe parecia maravilhoso
e lindo. No desfiladeiro era escuro e os cavaleiros tiveram que cuidar muito para que os
animais não escorregassem no chão molhado. Repentinamente Miang soltou um grito.
Tinham alcançado a extremidade inferior do desfiladeiro e diante deles estendia-se, na
luz do sol poente que tudo dourava, um largo vale fértil. Parecia tranqüilo, pequenas
nuvens de fumaça, provenientes das moradias, revelavam que aqui moravam seres
humanos. Também, diante das tendas havia pequenas fogueiras, crianças corriam ao
redor, alguns adultos aqueciam suas mãos frias junto ao fogo, pois a noite caía
rapidamente e o frio já era outonal.
“São esses os Waringis?” perguntou Miang ao seu companheiro e indicou para a
linda paisagem.
“Não,” respondeu este e sorriu. Ele sentia o desejo impetuoso de Miang para
alcançar seu destino. “Não, dos Waringis ainda estamos muito distantes. Esta gente
pertence ainda à tribo amarela. Venha, vamos cavalgar até lá para pedir um pernoite.”
De início, uma decepção queria tomar conta de Miang, mas ele dominou-se.
Também não podia ser diferente, pois estavam somente um dia de cavalgada distante da
gente de Fong.
“Quanto tempo deveremos cavalgar até os Waringis?” dirigiu-se perguntando ao
seu companheiro.
“São sete dias de cavalgada,” foi a resposta dele e, com isso, Miang teve que
satisfazer-se.
Assim que se identificaram como enviados do príncipe Fong, os pastores os
receberam com prazer e ofereceram-lhes hospedagem para a noite. E um sono profundo
reanimou Miang, de modo que, na manhã seguinte, acordou com forças renovadas.
Novamente o sol brilhava, e uma alegre luminosidade pairava sobre a paisagem. Miang mal podia esperar até
que mais uma vez subissem nas suas montarias e despediram-se com saudações alegres de seus gentis hospedeiros. E
assim continuava, dia após dia. Quase todos os dias atravessavam mais outra cordilheira, que aqui, uma atrás da
outra, cortavam a paisagem como estreitas fileiras. Sempre de novo, os cumes alegravam Miang, pois
proporcionavam uma visão mais ampla. De noite, assim que o sol se punha, os viajantes repousavam. Algumas vezes
ainda encontraram abrigo junto a pastores, às vezes, porém, tiveram que pernoitar ao relento, num local protegido.
“Onde está esse poderoso? exclamou Hador com insistência. “Eu quero procurá-lo
e pedir Sua proteção e Seu auxílio.”
“Isto tu podes fazer,” respondeu Miang alegremente.
E agora ele começou a instruir Hador no saber do Altíssimo. Sempre mais queria
saber Hador, aberta estava sua alma, que já há muito, insatisfeita, tinha procurado o
verdadeiro saber. Como um campo arado para semeadura, assim a sua alma estava
diante de Miang e, a ele, ao pequeno servo do Altíssimo, era permitido espalhar a
preciosa semeadura sobre o mesmo! Grande alegria preenchia Miang e ele deu com
mãos cheias. Finalmente calou-se. Hador estava sentado, perdido em pensamentos
profundos. Neste momento, abriu-se a entrada da tenda, um homem entrou, curvou-se e
falou:
“Príncipe, chegaram emissários que desejam falar-te.”
“Então temos que terminar por hoje,” disse Hador lastimando.
“Mas volte amanhã de manhã e continue me relatando.”
Isso Miang prometeu de bom grado. Então o príncipe mandou o servo conduzí-lo a
uma tenda e tratá-lo da melhor maneira possível como hóspede da tribo.
Muito feliz sobre o início de sua atividade, Miang passou o resto do dia a observar os Waringis. Eles o
agradaram bastante. Estavam vestidos com mais simplicidade que o povo de Fong, muitas vezes estavam sujos e
maltrapilhos. Pareciam não dar muito valor à sua aparência, enquanto que Hador estava ricamente vestido.
Miang tentava esclarecer aos homens que eles não somente deviam obediência ao
príncipe Hador, mas antes de tudo ao Altíssimo, pois todos eram criaturas Dele, que os
criou. E isso eles entendiam bem, somente indagaram: “O que Ele nos ordena? Não
conhecemos a Sua vontade”.
Agora podia ser dado o segundo passo. Miang explicou, que o príncipe esforçava-
se por esclarecer-lhes a vontade do Altíssimo e que ele queria proceder segundo a
mesma. Eles somente precisariam seguir às suas instruções. Inicialmente deveriam,
durante o inverno, abrigar os Aulas, que estavam em dificuldades.
Aí, no entanto, houve fisionomias insatisfeitas, pois isso representava escassez de alimentos para todos. Miang,
porém, esclareceu: “Como seria, se vós estivésseis nessas dificuldades? O que vós diríeis se os Aulas simplesmente
vos rejeitassem levianamente?”
Desse ponto de vista o assunto já parecia ser diferente e quando Miang ainda
anunciou: “O Altíssimo vos recompensará, se vós auxiliardes os Aulas,” a maioria deles
deu-se por satisfeita.
A tribo dos Waringis despertava sempre mais no saber do Altíssimo e com bem
outros olhos os homens olhavam para o seu príncipe, que se tornara um servo do
Altíssimo. Seus olhos brilhavam e seus passos tornaram-se ainda mais firmes, as
palavras que proferia, mais determinadas.
Os Aulas foram acolhidos e sustentados pelos Waringis durante o inverno. Não demorou muito e mostrou-se,
que bons frutos essa ajuda abnegada trouxera. Pois no final do inverno, quadrilhas de ladrões empreenderam
novamente assaltos aos rebanhos da tribo, que pastavam em região mais afastada. Como a tribo dispunha agora de
homens suficientes, sempre puderam se defender e não houve prejuízo maior.
A despedida foi calorosa, porém curta, como é costume entre homens. Hador deu a
Miang um acompanhamento, que o conduziu em segurança de volta sobre as
montanhas.
Já apareciam os prenúncios da primavera. Os ventos sopravam mais amenos, um
verde tenro cobria as encostas e, aqui e acolá, brotava da terra o cálice colorido de uma
flor.
Miang sentia seu coração tão leve, tão feliz! Ele sabia que tinha cumprido sua
missão e, mais uma vez, agradeceu ao Altíssimo do fundo de seu coração que lhe foi
permitido cumprí-la. O olhar de Fong pairou com agrado sobre Miang, quando este
retornava. Estava mais másculo e mais amadurecido, sua postura mais determinada e
mesmo assim discreta.
“Vejo que tens aprendido alguma coisa com os Waringis,” com essas palavras
cumprimentou Fong seu antigo aluno e protegido. Nenhuma palavra de elogio sobre o
trabalho executado passou pelos seus lábios, mas isso Miang também não esperava.
Tinha somente o único desejo: ser incumbido de uma nova missão. Também não
demorou muito até que Fong o chamasse novamente.
“O Altíssimo está satisfeito com seu servo Miang,” assim iniciou a conversa, para a
qual havia mandado chamar Miang. “Porém, isso foi somente o começo de tuas
atividades. Grandes missões ainda te esperam, Miang, diante das quais a instrução dos
Waringis era somente uma pequena preparação. Mais profundamente deves penetrar
agora no saber sobre o Altíssimo, a Sua vontade e os Seus mandamentos. Para isso
necessitarás de um outro mestre, Miang, eu não posso te ensinar mais nada de novo.
Mas o Altíssimo sabe para onde quer te mandar, para poderes continuar a aprender e
amadurecer. Depois volte para cá, também aqui ainda tens missões a cumprir junto ao
meu povo, onde já começaste a ensinar. O Altíssimo mandará mostrar-te o teu
caminho.”
Miang, totalmente realizado com essa notícia, voltou para sua tenda. Ele sabia que
não devia preocupar-se, não pensar sobre o próximo passo de seu caminho. O Altíssimo
mandava guiá-lo com mão forte, ele somente devia deixar-se conduzir, então tudo daria
certo, então tudo aconteceria conforme desejado de cima, pelo Altíssimo. Novamente
Miang teve que aprender a dominar sua impaciência, seu ímpeto juvenil, pois passaram-
se dias, antes que foram-lhe transmitidos detalhes sobre sua nova missão.
Novamente Fong mandou chamá-lo e indagou: “Como é, Miang, como estás? Já
sabes, o que o Altíssimo exige de ti?”
Miang não o sabia. Começou a sentir vergonha, mas Fong não deixou chegar a
isso.
“O Altíssimo me deu a incumbência de equipar-te para uma longa caminhada,”
disse Fong solenemente. “Tua caminhada será longa, pois servirá para que continues
amadurecendo no reconhecimento da grandeza do Altíssimo e no reconhecimento
daquilo, do que um servo do Altíssimo necessita para tornar-se realmente útil. Deves
aprender agora a abrir teu olho interior e teu ouvido interior, Miang, e é isso que o
Altíssimo exige te ti antes de tudo. Para isso é necessário que aprendas o silêncio, pois
quem quer assimilar mensagens das alturas, não pode expressar suas próprias palavras
em voz alta. Do contrário iriam sobrepor-se às finas vozes dos mensageiros luminosos,
que querem aproximar-se de ti. “Entendeste o que eu disse, Miang?”
Clara e abertamente Miang olhou nos olhos de Fong. “Sim,” disse ele, “eu compreendo e agradeço ao
Altíssimo, que quer honrar-me com Sua bênção.” Fong estava satisfeito.
“Isto não é tua tarefa agora, Miang,” murmurou novamente uma fina voz no seu
íntimo, que já escutara uma vez. “Mais tarde também ser-te-á concedido aquilo por que
anseias. Mas somente quando tiveres cumprido tudo para o que o Altíssimo te necessita.
Não continua procurando agora.”
A voz calou-se e profunda paz envolveu a alma de Miang. Sobre asas macias veio
o sono e carregou-o junto. Levou-o até a altura para onde a sua alma havia ansiado
inconscientemente. Acordou na manhã seguinte fortalecido e alegre. Estava sozinho. Os
pastores haviam partido com seus animais. Mas tinham deixado um pão e um queijo ao
seu lado. Dessa forma quiseram agradecer a ele. Animado, mordeu o duro pão e comeu
o queijo gostoso. Um riacho na proximidade saciou sua sede.
“Assim Tu me deste para comer, Altíssimo, eu Te agradeço!” falou satisfeito e
preparava-se para partir. Nesse instante levantou-se à distância uma nuvem de poeira,
ouvia-se o tropel de cavalos e gritos agudos. Miang esperou calmamente pelo que estava
por vir. Ele sabia que nada iria lhe acontecer, que não fosse da vontade do Altíssimo.
Com grande gritaria veio um bando de cavaleiros selvagens ao seu encontro.
Rodearam-no e desceram de seus cavalos. Um dos bandidos, aparentemente seu líder,
dirigiu-se a ele aos berros: “Quem és tu e de onde vens?”
Calmamente Miang respondeu:
“Sou um peregrino e venho do noroeste.”
“Para onde vais?” quis saber o ladrão.
“Para lá para onde serei enviado,” foi a resposta, que novamente não satisfez o
líder.
“Quem te envia?” foi a próxima pergunta, à qual Miang respondeu com toda a
calma: “Meu Senhor.”
“E quem é o teu senhor?”
Com estalo o chicote de couro batia nas altas botas, bem próximo a Miang.
“O Altíssimo,” foi a breve resposta de Miang.
Ao ouvirem esta resposta todos caíram em altas gargalhadas.
Miang, porém, permaneceu bem calmo.
“Tu até pareces como se tivesses um senhor elevado, rapaz,” riu o líder
ironicamente, que bem viu que não havia nada para roubar de Miang. “Levem-no
convosco.”
Rapidamente ataram os pulsos de Miang com tiras de couro e ele não se defendeu.
Um cavaleiro colocou-o na garupa de seu cavalo e, por bem ou por mal, Miang teve que
acompanhá-los. Não tinha a menor idéia do que iria acontecer com ele, contudo
confiava firmemente na proteção do Altíssimo.
Em galope desenfreado galopava o bando todo, que parecia conhecer aqui cada
palmo do chão. Voavam praticamente sobre o chão plano, depois desviaram para um
desfiladeiro estreito, que aparentemente levava somente a um amontoado de rochas e
deram, então, uma volta fechada ao redor de uma rocha saliente.
Admirado, Miang avistou um amplo vale, onde pastavam grandes rebanhos. Aqui e
acolá havia tendas sujas. Uma delas que, um pouco maior e originalmente mais
ornamentada, parecia ser a tenda do líder. Ao menos ele desapareceu nela e não mais
voltou.
Miang foi levado a uma tenda mais afastada e lá pôde sentar-se. Soltaram-lhe as
algemas e não mais se importaram com ele. Pelo visto, consideravam-no insignificante
demais, para dedicarem-se mais a ele. Pensativo, Miang observou os seus arredores.
Aqui estava ainda pior do que na tenda de Hisor. Isso, porém, não o oprimiu muito. Ele
sabia que aqui tinha que cumprir uma missão, e somente isso importava.
“Toma!” gritou uma voz rude e grossas mãos de homem alcançaram um pedaço de
carne e um pouco de pão para Miang.
Miang levantou o olhar. Apesar do embrutecimento exterior, havia algo de bondoso
nos olhos da selvagem figura.
“Eu te agradeço, amigo,” disse Miang. O outro abanou a cabeça.“Eu não sou teu
amigo, mas deves estar com fome. Permaneça aqui, até que sejas chamado.”
Com isso deixou a tenda, e Miang ficou entregue a si próprio. Seus pensamentos
peregrinavam para longe, procuravam Fong. O que este diria se pudesse vê-lo aqui,
neste ambiente, como prisioneiro, entre ladrões? Miang teve que rir
levemente.Assim Fong certamente não havia imaginado a sua caminhada!
Nesse instante abriu-se rapidamente a entrada da tenda, o “amigo” involutário de Miang apareceu novamente e
ordenou que o acompanhasse. Miang chamou pouca atenção enquanto passavam por entre as fileiras de tendas.
Certamente ocorria freqüentemente que presos fossem trazidos para obter dinheiro de resgate.
“Deixem-me sozinho com este aí!” ordenou e indicou com o dedo indicador preto-
marrom para Miang.
Os outros obedeceram, mesmo que visivelmente contrariados. O respeito por Huda
não parecia ser demasiado. Miang porém ficou calado, ele podia esperar. Por longo
tempo houve silêncio na tenda, até que Huda finalmente decidiu quebrá-lo e dar início à
conversa.
“O que disseste há pouco de um grande Senhor?” indagou.
“Como O chamaste?”
Miang alegrou-se sobre esta pergunta, e respondeu solicitamente.
“Seu nome é “o Altíssimo,” porque Ele é mais elevado e mais sublime do que
todos os príncipes da Terra. A Ele eu sirvo e Ele te mostrou, como Ele pode proteger os
Seus servos. Estás agora deitado aqui sem forças no teu leito, incapaz de levantar-te e a
dar um passo sequer. Sentes agora o Seu poder?”
Huda silenciou novamente. Longo tempo considerou sobre a pergunta de Miang.
Depois disse inesperadamente: “Então eu também quero ser Seu servo!”
“Tu acreditas que então estarias também protegido de todos os perigos, e dessa
proteção também gostarias de assegurar-te?”
Huda acenou. Isso parecia ser muito simples. Se existia Um mais forte do que ele,
o rude ladrão, então o melhor seria tornar-se servo desse mais forte. Miang leu os seus
pensamentos na testa.
“Acreditas tu, que ao Altíssimo interessam servos, que Dele somente desejam
exigir algo? O que tu dás a Ele para que Ele te proteja?”
Isso era algo totalmente novo para Huda, que até agora sempre somente tinha
exigido e tomado, nunca dado alguma coisa.
“Se devo alguma coisa a Ele, então diga-me o que devo pagar,” disse ele, e com
isso novamente tudo parecia esclarecido. Uma proteção tão forte resultaria para ele
também em tesouros maiores, portanto, ele bem que poderia prometer em ceder algo
dos mesmos.
Mas Miang novamente deu uma resposta bem inesperada.
“O Altíssimo não quer tesouros de seus servos, exige algo diferente do que um
pagamento em troca!”
“E isso seria?” perguntou Huda ansiosamente.
“Ele exige deles obediência e fidelidade” disse Miang enfaticamente. Obediência e
fidelidade – estes eram conceitos do quais Huda não havia tomado conhecimento em
toda a sua vida.
“Mas o que Ele ordena?” perguntou desconfiado.
Certamente era de ponderar se devia colocar-se sob a proteção desse poderoso. Mas
a dor no seu pé lembrou-o novamente do acontecido.
“Ele ordena que os homens devem ajudar-se mutuamente e não prejudicar-se
reciprocamente. Ele ordena a paz e não o roubo! Pois todas as pessoas são Suas
criaturas, também tu, Huda! E eles devem viver em paz e ajudar-se mutuamente.”
Isso não era do agrado de Huda. Onde ficaria então a sua vantagem? Mas queria continuar ouvindo.
“Conte-me mais do Altíssimo,” pediu ele e, de muito bom grado, fez Miang o que
lhe foi solicitado. Ele descreveu Deus como o Altíssimo, que tudo criou e a quem tudo
pertencia. Ele falou de seus servos, dos gigantes e dos pequenos na montanha e no vale,
na água e no fogo, e Huda escutou, sem perguntar. Seus olhos sempre mais se
arregalavam e, como numa criança, estavam fixos nos lábios de Miang.
“Por hoje chega,” disse Miang finalmente. “Deves descansar agora. Amanhã
voltarei a narrar-te.”
Huda concordou, tinham sido muitas as novidades, e não demorou muito e ele
estava dormindo sossegadamente no seu leito.
Porém, no lado de fora havia visível agitação entre os seus súditos. Os homens
discutiam gesticulando muito. Provavelmente brigavam para decidir quem agora iria
liderar no lugar de Huda. Um homem de aparência rude subiu numa pedra alta e gritou
para a multidão:
“Sigam-me, eu sei um local onde se encontra pastagem gorda e onde poderemos
ficar em segurança, até que tivermos espreitado para onde devemos nos dirigir para
nossa próxima pilhagem.”
Alguns gritaram aplaudindo, muitos porém, distanciaram-se dele, o impaciente
devolveu-lhes a razão. Eles queriam aguardar o que Huda iria determinar. No dia
seguinte, quando Miang saiu de sua tenda, viu que uma parte do bando havia partido e
que uma parte das tendas tinha sido desarmada. Isso lhe convinha, deveria ter
permanecido a parte melhor. E assim era. Os insatisfeitos, os quais eram insaciáveis nos
roubos, cuja mente estava dirigida à pilhagem e destruição, tinham partido. Os outros
queriam aguardar até que o pé de Huda tivesse sarado.
O pé fraturado obrigou Huda a ficar involuntariamente ocioso, o que não havia
conhecido em toda sua vida. Dentro dele surgiram pensamentos que até então sempre
tinha dispersado. Quadros surgiram diante de seus olhos interiores, os quais não gostava
de ver, mas que não o deixavam em paz: homens e mulheres se lamentando, gritos de
crianças que foram empurradas para trás a chicote, animais berrando sendo conduzidos
para longe, não importando se muitos morressem no caminho, vilarejos queimando.
Não eram quadros bonitos que Huda teve que rever, pois sempre via a si mesmo no
centro do poder destruidor como sendo o maior culpado.
Certamente, eles tinham acumulado riquezas. Porém, isso os tornou felizes?
Sempre havia briga e discussão e, se Huda não governasse com punho de ferro, sempre
de novo haveria de sentir revolta ao seu redor. Isso ele agora percebia nitidamente e não
ficou surpreso quando foi informado de que aproximadamente um terço dos homens
havia se desligado dele e o deixado. Não sentiu desgosto por isso. Sim, algo como asco
de sua vida de até agora queria surgir dentro dele. Aí lembrou-se de Miang e mandou
chamá-lo.
Com a fisionomia alegre, Miang entrou na tenda, na qual Huda, sem poder mexer-
se, estava deitado em seu leito. Miang notou que na alma desse homem travaram-se
lutas e, cuidadosamente, interveio e procurou conduzir Huda ao completo
reconhecimento de suas más ações. Aos poucos obteve êxito, pois a alma de Huda
sentiu uma leve ânsia por algo melhor. Dia após dia encontrava-se Miang sentado ao
lado do leito de Huda e revolvia cada vez mais o solo de sua alma. E chegou o momento
em que Huda irrompeu em lágrimas, lágrimas de arrependimento sobre si mesmo. Aí
Miang soube que tinha vencido, e agradeceu ao Altíssimo de todo coração.
“Tu me deste força, Altíssimo, eu Te agradeço!”
E somente agora o saber do Altíssimo pôde encontrar solo fértil em Huda. No dia
em que novamente conseguiu firmar o seu pé no chão e tentar os primeiros passos, este,
que estava diante de Miang, era um homem diferente do que havia sido ainda poucas
semanas atrás.
“O que deve acontecer agora?” perguntou preocupado.
E Miang respondeu: “Agora deves reparar o que erraste, para que o Altíssimo
possa perdoar-te.”
Isso era o mais amargo para Huda, encarar os seus e ter que confessar a sua culpa.
Mas Miang estava ao seu lado, ele o apoiou e o efeito foi totalmente surpreendente.
Entre aqueles, que continuaram fiéis a Huda, havia muitos que estavam cansados da
vida selvagem, da constante inquietação. Eles estavam satisfeitos em tornar-se
sedentários e de levar uma vida pacífica.. Mas onde eles seriam tolerados? Em toda
parte eram temidos, todos fugiam deles e ninguém haveria de querê-los em sua
vizinhança.
“Vós deveis ir até eles e devolver o gado roubado,” exigiu Miang, “então eles
ficarão convencidos de que a vossa intenção é séria.”
Huda pediu a Miang para que ainda permanecesse por algum tempo a fim de ajudá-
los a iniciar uma vida nova. Miang concordou com prazer, pois bem sabia que ainda não
podia abandoná-los à própria sorte. A sua vontade ainda era muito fraca, ainda não se
adaptaram à nova vida que queriam começar e, sobretudo, ainda não haviam encontrado
um local onde pudessem permanecer.
Na manhã seguinte, um emissário, que havia sido enviado, trouxe a notícia de que a
somente dois dias de viagem a tribo dos Aulas havia se estabelecido, a qual eles tinham
pilhado no verão passado. Esta era a melhor oportunidade para um novo começo! Miang
sugeriu que ele mesmo, com alguns emissários, queria ir até os Aulas, oferecendo-lhes
total indenização e tentar uma aliança duradoura, que viria proporcionar uma
sobrevivência a ambas as tribos.
Agradecida, a tribo aceitou esta oferta e, já na manhã seguinte, Miang partiu,
acompanhado por aproximadamente uma dúzia de homens mais velhos, em direção aos
Aulas. Tudo decorreu conforme desejado. Inicialmente, os Aulas não queriam confiar
nos assaltantes e em suas promessas, porém, quando Miang responsabilizou-se pela
veracidade de suas palavras, oferecendo-lhes completa indenização, declararam-se
dispostos a ajudar os antigos ladrões a iniciar uma nova vida. Prometeram auxiliar-se
mutuamente, caso uma ou a outra tribo passasse por necessidades.
Miang permaneceu ainda por algum tempo junto aos ladrões que agora se tornaram
sérios, ensinava e instruía no saber do Altíssimo e prometeu, quando teve que despedir-
se, voltar futuramente para visitá-los. Ele devia agora reiniciar sua caminhada,
ignorando para onde ela o levaria. Ao seu querer próprio já há tempo havia renunciado.
Sentia-se feliz em poder deixar-se conduzir. Qual seria agora o seu próximo destino?
Uma voz sedutora o chamava para longe. Ele sabia que ainda tinha muito a
aprender antes que se tornasse totalmente aquilo que era a íntima aspiração ardente da
sua alma fogosa. Em noites solitárias, cada vez mais intensamente, brotava no seu
íntimo uma lembrança de uma promessa, que o prendia e que devia cumprir. Teciam-se
fortes laços invisíveis do ser humano Miang para mundos superiores, dos quais vinha a
sua força e a sua condução. Percebia-o com gratidão, mesmo que somente o reconhecia
inconscientemente.
Passaram-se dias, sem que Miang encontrasse ser humano algum. A sua provisão,
recebida dos pastores, estava acabando. Então, de tardezinha, quando tinha novamente
escalado um desfiladeiro, tendo ao seu redor a solidão, seu pé bateu contra um
monumento de pedras empilhadas. Pontiagudo, destacava-se do céu noturno. Se não
tivesse batido nele, não o teria percebido. Agora seu olhar se fixava nele e o examinou
cuidadosamente. Não parecia ter sido construído por mãos de gigantes, para isso era
pequeno demais e também diferente. Expressava ser feito por mãos humanas e com
pensamentos humanos.
Mas como poderiam existir seres humanos nessa solidão? Miang olhou ao seu
redor. Não se ouvia nenhum som além do murmurar de uma pequena fonte, que
procurava seu caminho montanha abaixo, entre pedras e penachos escassos de capim e
musgo. Avistou, então, uma fenda na rocha. Parecia haver uma luz no seu interior, que
brilhava para fora.
Sem refletir, Miang entrou e encontrou-se, após alguns passos tateantes através de
um corredor estreito, numa espaçosa caverna na rocha, que recebia farta iluminação
através de uma abertura no meio do teto. De pé, diante de si, Miang viu um ancião com
os braços levantados em oração e com os olhos fechados. Silenciosamente moviam-se
os seus lábios. Miang não ousou adiantar-se. Esperou até que o espírito do eremita
pareceu ter se voltado novamente ao seu ambiente terreno. Abriu os olhos, e
contemplou Miang sem qualquer sinal de admiração. Parecia que o esteve aguardando,
pois examinava-o longa e perspicazmente com olhos claros e perscrutadores, que
pareciam penetrar até o fundo da alma de Miang. A seguir, indicou para um assento de
pedra e começou a falar:
“Tu foste anunciado a mim, aluno. Devo instruir-te no que eu te posso ensinar.
Começaremos.”
E sem mais, começou a anunciar para Miang o Deus único, sublime, sábio e
onipotente, diante de cujo poder e força a Terra estremece, as rochas despencam e as
estrelas escurecem, que pode ceifar seres humanos com a foice de sua ira, quando
trilham caminhos errados, maus. Porém, cujo amor paira também, qual um sol todo
poderoso, sobre a vida humana, perpassando-a e aquecendo-a, desabrochando-a, quando
submetem-se à Sua mão.
Sem respirar, escutava Miang. Ainda por muito tempo, depois de o sábio ter
silenciado, veio-lhe de suas palavras uma força como nunca antes tinha sentido e
parecia como se cada uma de suas palavras continuasse a viver dentro dele, se
enraizasse e começasse a florescer e carregar frutos. No silêncio, que doravante sempre
sucedia longamente às instruções do sábio, provinham para Miang os frutos mais
maduros do reconhecimento.
Por longo tempo Miang viveu externamente uma vida tranqüila, interiormente,
porém, uma vida muito ativa junto a Huang, o eremita na caverna de rocha do
Karakorum. Bem-aventurados foram esses meses para ele. Parecia como se Huang
retirasse um véu atrás do outro de seus olhos espirituais e como se irradiasse por detrás,
sempre mais luminosa, mais clara e mais grandiosa, a magnificiência do Altíssimo.
Correntes de força fluíam até ele nas noites silenciosas, enquanto estava deitado imóvel
sobre seu leito e abrindo o seu interior, para não perder sequer uma gota da bênção, que
queria revelar-se a ele. E no silêncio dessas noites claras crescia, ignorada por ele, a sua
força interior. Ele reunia forças para o futuro, riquezas eternas, que aumentavam no
silêncio, produziam frutos e fazendo brotar novas riquezas.
Miang tinha se acostumado totalmente ao silêncio. Escutava a sabedoria de Huang,
raras vezes fazia uma pergunta. Pois sabia: se ele levasse, o que ainda não estava
claramente reconhecido, no silêncio de seu interior para o alto, então lhe afluía logo
total clareza de todos os lados, e não havia necessidade de novas perguntas. Dessa
forma aprendeu, em si próprio, a bênção e o poder do silêncio. Para toda a sua vida isso
foi de grande, até decisiva importância. Do silêncio pofundo, pacífico e tão
imensamente vigoroso em sua alma, brotava reconhecimento sobre reconhecimento,
saber sobre saber. Também este aprendizado passou mais rapidamente do que ele o
desejava. Certa noite, aproximou-se novamente seu amigo luminoso do seu leito e
ordenou-lhe a deixar Huang.
“Ele te ensinou o que sabia, sua missão em relação a ti terminou. Agora ele pode
regressar aos eternos jardins celestiais e de lá continuar servindo com alegria.”
Assim falou o luminoso emissário de Deus, e Miang tinha que submeter-se a essa
decisão. Sem perguntar, sem lamentação, somente cheio do agradecimento mais
profundo, despediu-se de Huang, que lhe tinha ficado tão caro e que não reencontraria
nesta vida. Abençoando, o ancião colocou as mãos sobre sua cabeça.
“Siga o teu caminho, Miang, servo abençoado do Altíssimo. Traga aos seres
humanos, que anseiam por isso, o saber que trazes dentro de ti. Ajuda-os em sua
fraqueza a encontrar o caminho certo.”
“Agradeço ao venerável pai por toda a bondade que me tem demonstrado,” foi tudo
o que Miang conseguia responder.
Com isso despediu-se, para nunca mais voltar a este lugar. Uma vez mais
contemplou o monumento eregido por Huang diante de sua caverna, para chamar a
atenção de Miang. A seguir, firmou corajosamente seu cajado no chão rochoso e
começou a descer em direção ao sul, até um novo país, novos seres humanos, cujo
idioma talvez não mais pudesse compreender. No entanto, sempre encontraria o mesmo
medo, a mesma ignorância e a mesma miséria apática em suas almas. Alegremente
caminhou nesta bela manhã, disposto a servir e a ajudar.
Miang tinha alcançado uma nova etapa de sua vida, isso ele sentia nitidamente.
Qual um botão de uma flor, que rompe os seus invólucros protetores, estava seu espírito
prestes a desabrochar completamente. Os ensinamentos do sábio Huang foram o sol da
primavera, que fez com que os invólucros se rompessem. Miang nunca havia se sentido
tão leve como agora, quando descia as encostas íngremes da cordilheira, em direção ao
sul. Novamente a vida estendia-se diante dele como um enigma não solucionado. O que
este reservar-lhe-ia para o futuro?
Desta vez, não tardou muito até encontrar seres humanos. Eram pastores outra vez,
porém, vestidos de modo diferente dos até agora conhecidos, e seu idioma já se
diferenciava do da tribo amarela e dos Waringis. Os sons soavam mais suavemente,
porém ainda era possível uma boa comunicação. Amavelmente ofereceram a Miang
pão, leite talhado de égua e queijo e, agradecido, ele aceitou o alimento. Teve
dificuldade de conversar com as amáveis pessoas por longo tempo. Estava
demasiadamente desacostumado de falar. Mas eles também não o exigiam,
respeitosamente observavam o jovem, cujos olhos claros testemunhavam o espírito
incandescente no seu íntimo. Eles o percebiam, sem mais tecer pensamentos a respeito.
Mais e mais desceu Miang cordilheira abaixo, ao encontro de novas vivências. Ele
não questionava, não cismava, seguia a voz do seu íntimo, que ainda continuava
indicando para o sul. Aos poucos, as encostas se tornavam mais formosas, cobriam-se
de arbustos floridos. As montanhas ficavam mais baixas, em compensação, o capim era
mais suculento e abundante, os rebanhos mais numerosos. Satisfeitas pareciam as
pessoas que moravam aqui, em povoados fixos, com casas com telhados planos, que se
acomodavam, de preferência, nas fendas da cordilheira. Ainda mais estranhos soaram as
palavras de seu idioma ao ouvido de Miang, mas inconscientemente acostumava-se aos
novos sons e não teve dificuldade de se fazer entender. Solicitamente as pessoas
ofereciam provisões ao viajante calado, quando chegava a eles silenciosamente. Através
desse caminhar em silêncio, Miang absorveu muitas coisas em sua alma. Eram
vivências totalmente novas, as quais ainda não conseguia expressar em palavras, mas
que mais tarde lhe seriam de grande valia.
Certo dia, ao entardecer, chegou a uma povoação maior, na qual havia grande
agitação. Muita gente estava aglomerada e discutiam aos gritos. Apontavam em direção
ao oeste, Miang não conseguiu compreender o motivo dessa agitação. Calado, ficou
parado nas proximidades da aglomeração de pessoas. Nesse instante, uma mulher com
uma criança no colo distanciou-se da multidão. Soluçando fortemente, ela ia passando
por Miang, sem o perceber. Aí, seguindo a um sentimento irresistível, ele colocou sua
mão direita levemente sobre o braço dela, e algo tão dominador estava nesse movimento
calmo, que a mulher involuntariamente parou, levantando seu olhar cheio de lágrimas
para Miang.
“Qual é a tua dor, irmã?” perguntou Miang, e seu olhar tranqüilo pousou qual
bálsamo sobre sua alma.
Soluçando, a mulher respondeu: “Eles querem me tirar o meu filho, dizem que era
impuro e traria desgraça a todos nós. Mas eu não o entrego, certamente que não. Prefiro
que me matem!”
“Acalma-te,” disse Miang com voz sonora. “Ninguém pode tirar-te o teu filho, que
o Altíssimo te deu de presente, para que faças dele um ser humano.”
Ao ouvir essas palavras, a mulher começou a soluçar mais fortemente e a criança,
um menino de aproximadamente três anos, que até então havia escondido seu rosto no
pescoço da mãe, virou-se para Miang. Este assustou-se profundamete, pois nos olhos da
criança estava o olhar indomado de uma fera. Nunca havia visto algo semelhante.
“O que há com teu filho?” perguntou suavemente e a mulher relatou:
“Hun-fu era uma criança querida, sempre calma, até há pouco. Ele obedecia de
bom grado e era a minha única alegria, pois sou viúva. Meu marido despencou nas
rochas e ficou lá embaixo destroçado, quando quis salvar um animal perdido. A partir
daquele dia Hun-fu modificou-se. Ficou doente de susto, pois presenciou quando
trouxeram o cadáver despedaçado de seu pai para casa. Ele caiu em convulsões e,
quando acordou, mordia e arranhava a quem queria aproximar-se dele. Os outros dizem,
agora, que um espírito mau entrou nele, e que sua alma havia seguido o pai para o reino
intermediário. Eu, porém, amo meu filho e não quero perdê-lo.”
E afetuosamente apertou o menino em seus braços. Este, no entanto, ficou inquieto.
Parecia como se não suportasse a proximidade de Miang. Ele quis se desvenciliar da
mãe e bateu nela, quando esta não quis soltá-lo. Miang, entretanto, viu algo que ainda
nunca havia visto antes. Ele viu a alma tímida e medrosa da criança, mal animada pela
vida, empurrada para o lado por uma sombra escura, que deitou em cima dela e a
privava da respiração. E a sombra escura golpeava em sua direção e gritava-lhe palavras
más e ignominiosas, das quais a mãe se assustava.
“Deixe-nos ir,” pediu ela, mas Miang abanou a cabeça.
“Eu quero ajudar a ti e ao teu filho,” disse ele e, fixando bem a criança, obrigou a
sombra escura a dobrar-se diante de sua vontade. Reunindo toda a força de sua alma,
Miang levantou os braços e rogou:
“Altíssimo, olha do alto para nós! Veja esta pobre criança, à qual se aproximou o
demônio! Livra-a de sua carga.”
Fervorosamente rezava Miang, e como fascinados escutavam as pessoas
circundantes que haviam se aproximado. E quando Miang rezava, o espírito mau dentro
do menino gritava e queria defender-se. Miang, porém, colocou sua mão sobre a cabeça
do menino. Força do alto atravessava-o ardentemente e transmitia-se à criança. Com um
grito de raiva o trevoso soltou a sua vítima e a criança caiu, sem sentidos, nos braços da
mãe.
“Ele irá curar-se,” disse Miang com voz sonante e tão grande era a força que partia
dele, que ninguém se atreveu a contestar.
“Deixa dormir o teu filho por longo tempo,” disse à mãe. “Depois ele será te
presentado de novo. Mas depois protege-o de tudo o que é mau, para que este não torne
a apoderar-se dele.
Profundamente emocionada, a mulher afastou-se em direção à sua casa. De Miang,
no entanto, aproximou-se um homen e perguntou: “Forasteiro, quem és tu? E o que
fazes aqui em nosso povoado?”
Miang dirigiu seu olhar claro para o interrogador.
“Tu também necessitas de ajuda, porque assim me perguntas?
“Certamente, deves ser um sábio, pois adivinhas os meus pensamentos,” respondeu
o homem, admirado. “Em casa está a minha esposa, doente há semanas, não reconhece
ninguém e recusa todo tipo de alimento. Ninguém conseguiu ajudá-la. Permitas-me de
pedir a tua ajuda?”
Confiança estava nas palavras do pedinte e Miang soube que aqui aparecia uma
nova oportunidade para atuar. Solicitamente acompanhou o homem que seguia feliz na
sua frente, até uma choupana pobre, localizada um pouco afastada. No seu interior
estava abafado. O ar no ambiente revelava a presença de uma pessoa muito doente.
Miang aproximou-se. Inquieta, remexia-se uma mulher, relativamente jovem, em seu
leito. Seus lábios murmuravam palavras incompreensíveis. Silenciosamente o homem
chegou perto dela e dirigiu-lhe a palavra. Ela parecia não ouví-lo. O olhar de seus olhos
arregalados era vago. Parecia que enxergava algo a grande distância, do que seu olhar
não conseguia desvencilhar-se e que preenchia-a de terror.
Miang recolheu o seu íntimo em prece fervorosa. Depois pegou uma das mãos
irrequietas na sua e segurou-a com calma. Imediatamente sossegaram-se os movimentos
estremecedores do corpo, feliz o homem constatou-o. Mal ousava respirar. Fixamente
fitava Miang. O que ele faria agora? Miang fechou os olhos, enquanto segurava a mão
da mulher na sua. Silenciosamente pedia força para poder ajudar essa alma e livrá-la de
seu sofrimento.Quadros surgiram diante dos olhos internos de Miang. Ele via a mulher,
como moça jovem vivaz, no círculo de seus irmãos. Ela parecia ser uma das mais
alegres. Ele a via no próprio lar, ao lado de seu esposo, feliz e satisfeita. Então uma
sombra apoderou-se dela. Ela a agarrava. Com um grito ela caiu e uma mão escura
apertava a sua garganta, mal podia respirar.
Miang voltou-se para o homem: “O que aconteceu no dia em que a tua mulher
adoeceu?” perguntou severamente.
O homem ficou constrangido.
“Eu não me lembro mais, já faz muito tempo, senhor.”
“Lembra-te, caso contrário tua mulher morrerá,” exigiu Miang.
O homem começou a tremer. Abaixou os olhos. Minutos passaram, o silêncio
tornou-se opressivo. Gemendo a doente virava-se de um lado para o outro.
“Fala!” ordenou Miang novamente. “Olha para ela, o corpo não vai agüentar por
muito tempo.”
Hesitante, o homem contou: “Ó grande sábio, que tudo vês, eu quero contar-te o
que também pesa no meu coração desde aquele dia infausto e o que ainda não confiei a
ninguém.
Hu-na, minha mulher, esteve cedo no templo, para levar uma oferenda. Ela queria
rogar novamente para que nos fosse presenteado um filho, pois ainda estamos sem
filhos e essa amargura tivemos que engolir diariamente. Era nosso maior desejo e,
muitas vezes, já fizemos oferendas para isso, sempre em vão.
“Devemos fazer uma oferenda maior,” disse Hu-na para mim. “Não é suficiente
que eu leve frutas e flores para lá. Deve ser alguma coisa viva, se quisermos ser
presenteados com um filho vivo.” Mas de onde iríamos tirar um sacrifício? Somos
pobres, como vês, ó sábio, e possuímos somente o necessário. Hu-na, porém, não
sossegava. Dia e noite torturava-me com o desejo, de ter que fazer um sacrifício de algo
vivo. E finalmente prometi de conseguir um. Furtivamente entrei na propriedade do
meu vizinho e roubei uma ovelha e levei-a para minha esposa. Ela ficou muito feliz e,
juntos, a levamos até o templo, para sacrificá-la. O sacerdote matou-a e nos prometeu
que o nosso desejo seria realizado. Porém, esperamos em vão, e Hu-na continuava sem
filhos. Como uma doença isso roeu a sua alma. Onde avistava mães com crianças
pequenas, ela tinha que desviar os olhos. Ela começou a invejar outras mulheres mais
felizes, pela sua sorte. Dia e noite não pensou em outra coisa além de que maneira
poderia conseguir um filho.
“E então veio o dia infeliz, “o homem hesitou, como se não pudesse continuar. Mas
Miang não tirou os olhos dele.
“Minha mulher havia me deixado, ela não tinha agüentado mais. Quando acordei,
seu leito estava vazio. Pressenti algo de ruim. Rapidamente a procurei em todo lugar,
mas não pude encontrar uma pista dela. Fui até a frente da casa, mas lá também não
encontrei nada que pudesse indicar para onde poderia ter-se dirigido. Aí me lembrei
que, ultimamente, olhara muitas vezes para a encosta íngreme, ao lado do nosso vale e
muitas vezes mencionara: “Quem lá se jogasse dos altos rochedos, este encontraria a sua
paz.” Aí eu soube onde deveria procurá-la e corrí atrás dela. Ela já estava muito longe e
eu tive que me esforçar ao máximo para aproximar-me dela.
Sem fôlego eu subia, reunindo todas as forças e, quando o caminho estreito
dobrava num bloco de rocha, vi minha mulher diante de mim, como ela corria, sem se
virar, sempre mais para o alto, como se um poder invisível a impelisse para o cume
mais elevado.
Pressionando firmemente contra si, levava ela uma trouxa. Eu não podia
reconhecer o que era que ela estava levando. Quando, porém, cheguei mais perto, ouvi
um leve choro que saia da trouxa, e eu me assustei muito. Tive que parar um momento
para respirar fundo e esse momento foi suficiente para torná-la novamente inalcançável.
Como que se não sentisse cansaço, tontura, subia ela sem parar até a borda saliente de
um alto rochedo e, de lá, jogou a trouxa para baixo. Depois debruçou-se para olhar atrás
dela.
Me deu arrepios. Juntei minhas últimas forças e conseguí agarrá-la ainda na manga,
quando ela estava prestes a também jogar-se para baixo. Parecia como se agora todas as
forças a tivessem abandonado, ela caiu em meus braços e eu a puxei para longe da
borda perigosa.
“Hu-na, o que fizeste?” exclamei sacudindo-a.
Então ela despertou como de um sonho.
“A criança!” gritou ela. “Eu tinha que sacrificar uma criança, para que os deuses
me dessem uma!”
“De onde tiraste a criança?” perguntei horrorizado.
E, olhando-me, ela respondeu:
“Ninguém me viu, entrei bem silenciosamente e tirei a criança de Fu-sa. Ela ainda
tem muitas crianças, não lhe fará falta.”
Sacudí-a novamente com força e gritei horrorizado:
“E tu jogaste a pobre criança no abismo? Não escutaste o seu choro?”
“Escuta!” disse Hu-na e, no silêncio ao redor, ouvimos claramente um choro
lamentoso vindo lá de baixo. Soava miseravelmente abandonado e Hu-na tremia no
corpo todo, quando o escutou. “Os deuses não aceitaram o sacrifício!” murmurou ela e
depois caiu desmaiada aos meus pés.
Eu a levantei e a levei para casa. Não podia cuidar da criança, senão Hu-na teria
morrido, e não havia caminho do alto para o abismo, no qual a trouxa havia caído. Com
grande esforço consegui levá-la para casa, mas desde então ela está deitada aqui como a
vês, ó sábio. Eu te rogo, agora que sabes da verdade, ajuda-a, ajuda a pobre Hu-na!”
Profundamente abalado, Miang escutava o relato sobre o estravio dessa alma
humana. Como uma maldição paralizante pesava sobre ela a grave culpa e não a
deixava restabelecer-se. O que podia ser feito aqui? Ele sentiu que a mulher ficava mais
calma quando a tocava com a mão, quando a colocou na sua testa quente. Por longo
tempo a deixou aí e refletia sobre o relatado. Assim os seres humanos se enredam em
culpa e não conseguem livrar-se dessa rede sozinhos. Novamente gemeu a enferma. Ela
abriu os olhos e, pela primeira vez, havia neles algo como um reconhecimento.
Miang curvou-se sobre ela.
“Hu-na,” disse ele, e sua voz soante parecia encher todo o ambiente, “Hu-na,
arrependes-te daquilo que fizeste?”
Assustada, a mulher levantou o braço em defesa. Miang porém, não cedeu e
obrigou o olhar dela para o seu.
“Tu roubaste um filho de uma mãe, no delírio de que seu sacrifício pudesse te
ajudar! Não sabes que com isso te sobrecarregaste com uma grave culpa? Veja a mãe
que chora pelo seu filho perdido e isso deveria ajudar-te a obter uma criança? Com isso
barraste o caminho da alma que queria aproximar-se de ti. Ela agora não pode chegar
até ti, a tua culpa se interpôs entre vós duas.”
Hu-na irrompeu num choro compulsivo. Parecia que, com isso, dissolvia-se a
convulsão, que há tanto tempo a dominava.
“O que devo fazer?” lamentou-se ela.
“Corrija o teu erro,” disse Miang.
“Isso eu não posso,” lamentou Hu-na novamente, e seu choro aumentou.
“Sempre pode-se corrigir alguma coisa,” consolou Miang.
“Eu vou ajudar-te para isso, porém, antes de tudo, peça perdão ao Altíssimo, o
Qual tu zangaste com a tua má ação.”
Agora, Hu-na estava disposta a tudo e Miang podia semear os primeiros grãos de
um melhor reconhecimento na alma perturbada da pobre mulher. Depois dirigiu-se ao
homem.
“Trata-a bem, para que ela possa recuperar suas forças,” ordenou ele. “Então eu
voltarei e continuarei ajudando.”
O homem queria agradecer efusivamente, mas Miang recusou. Ele tinha que
respirar ar puro, nada mais o segurava aqui. Ele saiu da tenda e respirou fundo. Sentiu-
se melhor aqui fora ao ar livre e, involuntariamente, dirigiu seus passos para fora do
pequeno povoado. Logo havia deixado as choupanas para trás. Encontrava-se num
caminho que o levava através de arbustos floridos de média altura. Respirava fundo o
perfume das flores. Como era refrescante depois do ar abafado no quarto da enferma.
De repente, veio ao seu encontro um estranho cortejo. Homens vieram com um tipo
de maca. Nela parecia haver um doente. Ele estava coberto, não se podia ver o que
estava escondido embaixo da coberta. Miang parou e quis deixar passar os carregadores,
mas um impulso inexplicável fez com que perguntasse o que estavam carregando aqui.
Solícitos, os carregadores colocaram a maca no chão e secaram o suor de suas testas.
Um pequeno intervalo pareceu-lhes bem-vindo.
“Estamos levando Hung para o sacerdote, ele está velho e sua alma está disposta a
entrar no reino intermediário,” responderam.
“Posso vê-lo?” pediu Miang, e os carregadores levantaram a coberta.
Miang viu um rosto de ancião no qual estavam estampados os vestígios de uma
idade avançada. O homem estava deitado tranqüilamente, sua respiração era leve.
Miang já queria prosseguir, mas teve que fazer mais uma pergunta:
“Para onde o levais, homens?”
“Ao templo, para o sacerdote, para que esse possa rezar suas preces e ajudá-lo a
encontrar o caminho,” responderam naturalmente.
“Para o reino intermediário?” perguntou Miang. “E o que ele vai fazer lá?”
“Lá ele aguarda até que haja novamente um corpo, no qual ele possa morar. O seu
corpo atual ficou muito velho.”
“E assim vós sempre voltareis em um corpo novo?” perguntou Miang. “Podeis
escolhê-lo?”
“Isto nós não sabemos,” foi a resposta dos carregadores e, com isso, levantaram a
maca e queriam seguir caminho. Ao levantar a maca, porém, algo moveu-se na
extremidade inferior da maca, a coberta deslocou-se e Miang viu que ali havia mais uma
pessoa, uma criança pequena, que o mirava com seus olhos grandes.
“Quem é essa criança?” perguntou ele e mais uma vez os carregadores deram
informação.
“Hung encontrou-a nos arbustos há algumas semanas. Estava chorando e ele
escutou seus lamentos. Então subiu e apanhou-a. Ele quer entregá-la ao sacerdote.”
Miang estremeceu. Poderia ser essa a criança que foi atirada por Hu-na, e seria
possível um salvamento tão maravilhoso? Pediu que os homens descrevessem o local
onde Huang a havia encontrado. Não havia dúvidas, aqui ocorreu um milagre e a alma
de Hu-na estava libertada da culpa mais grave.
“Entreguem a criança a mim,” disse ele aos homens admirados. “Eu sei a quem
pertence e eu vou levá-la até sua mãe.”
Eles concordaram e assim Miang acolheu a leve carga e levou-a de coração feliz
até a choupana de Hu-na.
Lá, ele não era esperado. Tanto maior foi a surpresa quando ele retornou tão
depressa e, quando colocou a criança nos braços de Hu-na, as lágrimas correram
abundantemente e carregaram consigo a última teimosia, a última perturbação.
“Agora podes reparar o teu erro, Hu-na,” disse Miang muito feliz. “Devolva a
criança à mãe e peça-lhe perdão.”
“Desaparecerá com isso o obstáculo entre mim e a alma que quer vir?” perguntou
Hu-na receosa.
Miang confirmou. “Se te arrependeres sinceramente do teu delito e prometeres
nunca mais fazer tal coisa, então tudo pode ficar bem. Agora o teu marido deve chamar
a mãe da criança, pois tu estás muito fraca para ir até ela.”
E assim aconteceu. Fu-sa apertou seu filho nos braços e, na alegria de tê-lo de
volta, esqueceu de sentir raiva de Hu-na. Miang, porém, pôde mostrar às pessoas, agora
novamente felizes, que maravilhoso auxílio havia salvo a criança e de quem partiu essa
ajuda. Ele encontrou corações abertos, pois o sofrimento, assim como a alegria, os havia
amolecido.
Miang teve que prometer que voltaria e contaria mais do Altíssimo. A missão de
Miang nessa localidade parecia terminada, somente uma coisa ainda o ocupava muito: a
crença da volta do “reino intermediário”. Ele pediu ao seu amigo luminoso clareza sobre
estas questões e ela também foi lhe dada.
Foi lhe permitido ver o caminho seguido pela alma de Hung, que estava partindo,
quando esta pôde deixar seu corpo. Não podia afastar-se muito de seu invólucro antigo.
Muitos fios resistentes, densos, ainda a deixavam presa a ele, pois os olhos da alma
estavam direcionados para a Terra e para o retorno à Terra. Finalmente, ficaram mais
fracos e caíram, secos, pois a alma começou a observar o seu novo ambiente. Um
grande número de figuras e formas a cercavam. De início, não conseguia orientar-se.
Esse, portanto, deveria ser o “reino intermediário”! Porém, se era apenas um” reino
intermediário”, situado entre dois reinos, dos quais um deveria ser a Terra, onde então
estava o segundo?
Quando Miang chegou a essa ponderação, abriu-se uma fenda no “céu”que cobria o
reino intermediário, e ele avistou, muito distante desse mundo, uma luz brilhante e
maravilhosos jardins, nos quais seres humanos felizes estavam atuando diligentemente.
O coração de Miang jubilava. Esses luminosos jardins pareciam-lhe familiares, eles
deveriam ser o destino de muitas almas humanas que vagavam e procuravam no reino
intermediário, sem saber o que realmente lhes fazia falta.
“Olhem para cima!” tentou Miang gritar para elas, mas ninguém o escutava. Qual
formigas, que entram em seu formigueiro e dele saem novamente, assim pareciam a
Miang as numerosas almas, que lá se detinham sem poderem prosseguir. De tempos em
tempos desaparecia uma alma e Miang podia ver como ela retornava à Terra e lá
iniciava uma nova vida. Mas o que adiantava a nova vida, se ela não levasse a novos
reconhecimentos? Deveria continuar um constante perambular entre a Terra e o reino
intermediário? Qual seria o sentido disso?
Tristeza queria apoderar-se de Miang, sobre a inutilidade de tal vida humana, mas
depois ponderou: “Para isso o Altíssimo enviou-me para os seres humanos, para que eu
lhes mostre para onde deve levar a sua caminhada, que não devem ficar retidos no reino
intermediário, mas caminhar, ascendendo para os jardins eternos.”
Cinzento e turvo parecia tudo no reino do meio, nas alturas, porém, havia luz clara,
beleza e alegria. Quem chegasse lá em cima, este certamente não precisaria retornar à
Terra, este teria encontrado sua meta e poderia ser um servo do Altíssimo em felicidade
e alegria. Miang estava agradecido pelo novo saber. Agora poderia ajudar aos homens
ainda melhor, poderia advertí-los, para que não se prendessem à Terra, e mostrar-lhes o
caminho para os jardins celestes.
Animado, retomou novamente a sua caminhada, que o levava ainda mais para o
sul. O solo tornava-se cada vez mais fértil, a colheita era mais abundante, as árvores
estavam carregadas de frutos doces. Que seres humanos felizes deviam morar neste
paraíso! Ao passar, Miang os observava mais atentamente. Estavam vestidos mais
ricamente e mais bonitos, portavam a cabeça mais erguida do que os pobres pastores no
alto das montanhas e suas moradiam demonstravam riqueza. Entretanto, eram eles
também mais felizes? Com toda essa beleza que os cercava, deveria pairar sobre eles
um brilho como o do sol. Mas nada disso se via. Ao contrário, aborrecidos olhavam por
sobre todo esse esplendor que parecia não alegrá-los. Qual seria o motivo?
Miang aproximou-se de um pequeno templo, para o qual afluíam pessoas com
grinaldas de flores nos cabelos e nas mãos. Entrou junto com elas. O ambiente era
despojado e feio. Somente no fundo alguns degraus conduziam para um pedestal,
entronado por uma imagem horrível. Era, em traços grosseiros, uma espécie de figura
feminina, pintada toscamente. Diante dessa figura as pessoas colocavam suas flores,
ajoelhavam-se e murmuravam algumas palavras, que deveriam ser uma oração. Depois
levantavam-se com fisionomias impassíveis e deixavam novamente o templo. Miang
assustou-se profundamente. Isto seria um templo, um local de adoração? Como isso era
possível? Para ele seria impossível orar neste ambiente. Sufocante era a opressão de
muitas figuras grotescas, que estavam penduradas nas paredes e que também se
prendiam nas pessoas presentes no templo.
Agora descobriu, atrás do ídolo, uma figura que lhe passara despercebida na turva
penumbra do templo. Estava aí, imóvel, com os braços levantados. Parecia que toda
vida tinha se evadido dela. Cheias de veneração, olhavam as pessoas para essa figura
petrificada. Parecia-lhes algo magnífico, poder” rezar” dessa forma. Miang, porém, viu
que a alma desse homem estava tão enrijecida quanto o seu corpo, que não havia mais
vida nela e ele se horrorizou. O que poderia ser feito aqui?
Miang não conseguia desviar seu olhar dessa figura petrificada e parecia que o seu
olhar ia perpassando a armadura dessa alma sem vida. O sacerdote começou a
movimentar-se e, contrariado, voltou-se para Miang, deixou cair os braços e atravessou-
o, por sua vez, com seu olhar. Era uma luta entre alma e alma, na qual o sacerdote foi
vencido. Ele baixou os olhos e, aborrecido, deixou o templo por uma entrada na parede
dos fundos.
Um homem aproximou-se de Miang.
“Tu foste mais forte do que o sacerdote!” sussurou para Miang e indicou com a
cabeça para o templo.
Miang estava um pouco desconcertado.
“O que queres dizer com isso, amigo?” perguntou ele, para ganhar tempo.
“Ora, tu o expulsaste, tua força era maior. Isto ainda ninguém havia conseguido.
Posso acompanhar-te por um trecho?”
Miang olhou o homem mais detalhadamente. Havia uma súplica em seus olhos,
que exortou Miang a concordar. O homem conduziu-o, através de ruelas mais calmas,
até uma casa situada num jardim grande.
“Entre em minha casa!” convidou a Miang e este obedeceu. Ele ainda não sabia o
que o aguardava aqui, mas parecia-lhe correto aceitar o convite. Sentaram-se num
aposento fresco, sombreado e, hesitante, o acompanhante de Miang começou a falar:
“Eu te observava hoje no templo, ó forasteiro! Tu parecias ser diferente das pessoas
daqui, diferente, principalmente, do sacerdote e tu não tinhas medo dele. Eu gostei
disso, pois eu também não posso curvar-me diante do que os sacerdotes exigem de nós.
E, principalmente, eles não conseguem me dar respostas às minhas perguntas.”
O homem fez uma pausa. Ele não sabia como fazer com que Miang percebesse
qual era a sua ansiedade íntima. Miang, no entanto, viu o espírito atado que lutava para
libertar-se e um desejo fervoroso de assistí-lo acordou logo em seu íntimo.
“O que te oprime, amigo?” perguntou cordialmente, e parece que essas palavras
soltaram a língua do outro. Ele externou a ansiedade de seu coração com as palavras:
“Todos os dias eu vou ao templo, procuro rezar, trago minhas oferendas e cada dia
volto com o coração vazio. O sacerdote está mudo, não me dá respostas, muda é a
divindade – – será que não há ninguém que possa me dar respostas? Eu sou somente um
pequeno homem, eu não posso ajudar a mim mesmo, eu necessito de alguém mais forte
para me conduzir. Mas onde está esse mais forte? Por toda a minha vida eu o procurei,
mas ninguém pôde mostrá-lo. Agora vieste tu hoje e foste mais forte que o sacerdote, eu
bem o ví. Agora te peço: ajuda-me!”
Essas palavras continham um pedido tão suplicante, que Miang soube: aqui ele
poderia abrir o tesouro de seu saber e dar com mãos cheias.
Ansioso, Ma-tschi assimilava cada uma de suas palavras, não se cansava de escutar
e profunda alegria o preenchia. Seus olhos brilhavam, tinha vontade de abraçar Miang.
Algo, porém, o reteve. Apesar de sua juventude, pairava uma nobreza sobre Miang, que
excluía qualquer intimidade. Por longo tempo os dois conversaram e cada vez mais
leve, mais feliz, ficou o coração de Ma-tschi. Ele pediu a Miang para permanecer alguns
dias com ele, pois ainda queria convidar amigos para que se deixassem instruir por
Miang.
“Eles sentem o mesmo que eu,” disse Ma-tschi, esclarecendo, e Miang ficou
satisfeito.
Ma-tschi era um comerciante abastado. Pela primeira vez em sua vida, Miang
gozava do conforto e da comodidade de um lar rico.
Todos os ambientes eram ricamente ornamentados com tapetes macios e tecidos de
seda e vasos preciosos. Beleza cercava-o nesta casa e ele alegrou-se com isso, sem que
surgisse nele o desejo de querer possuir algo disso. Também, o que ele, em sua
caminhada, poderia fazer com essas coisas belas, mas incômodas? Ao tentar imaginá-lo,
Miang teve que sorrir. Não, quanto menos ele possuísse, tanto melhor seria para ele,
mais desimpedido ele poderia entregar-se à sua missão.
Era uma noite de outono quente e úmida, em que Miang, Ma-tschi e alguns de seus
amigos estavam reunidos na sala à meia luz. Servos tinham aceso um lampião suspenso,
de cujas janelas de papel colorido a luz transparecia tenuamente.
Ma-tschi foi o primeiro a falar: “Amigos,” disse ele, “vejam aqui o sábio, do qual
vos relatei. Ele está disposto a ensinar-vos. Escutem as suas palavras.”
Todos os olhares dirigiram-se para Miang, que ainda refletia em silêncio. Novamente surgiram imagens diante
de sua alma. Ele viu diante de si uma montanha alta, íngreme, em cujo pico brilhava uma luz clara. Espalhava seus
raios por sobre todas as encostas até ao vale lá embaixo, onde não se via nenhuma outra luz. Muitas pessoas
caminhavam lá embaixo sem rumo. Alguns dirigiam seu olhar interrogativo para o alto, porém, a luz parecia-lhes
muito alta e muito distante para que pudessem alcançá-la. Então apareceram, de cavernas escuras no lado da
montanha, figuras com longos trajes. Carregavam figuras esculpidas diante de si e colocaram-nas sobre pequenas
elevações no vale e chamavam as pessoas para junto de si.
“O teu Deus pode ajudar a nós também?” queriam saber agora e Ming-Fong
afirmava-o alegremente.
“Meu Deus é um Deus bom, e Ele me mandou para junto de vós para que vos
auxilie e vos salve do poder dos sacerdotes, que vos corrompem. Se vós acreditais Nele
e pedís proteção a Ele, Ele vos protegerá, como tem vos ajudado nesta noite. Então não
mais precisais temer nenhum sacerdote, eles não vos podem fazer mal.”
Os rostos preocupados iluminaram-se. A força e a confiança de Miang-Fong
levantou a sua coragem. Eles mesmos o haviam vivenciado, como o sacerdote tinha
fugido, contra o qual todos eles juntos tinham sido impotentes.
“Mas ele voltará e exigirá novas vítimas,” disse alguém desanimado.
“Eu permanecerei convosco até aprenderdes a colocar-vos na proteção do bom
Deus,” prometeu Miang-Fong.
Irrompeu então tão grande alegria, que Miang-Fong teve que tapar seus ouvidos.
Um medo que durou anos, um pesadelo, que estava sufocando estes seres humanos, foi
afastado deles. Sozinhos, haviam sido muito fracos e ignorantes, agora, porém, com a
promessa de Miang-Fong, tornaram-se corajosos.
Passaram-se meses, nos quais Miang-Fong conseguiu tornar novamente alegres
estas pessoas intimidadas e amedrontadas. Mais francos eram seus olhares e escutava-se
risos alegres, quando reuniram-se para serem instruídos.
“É de se admirar,” disse certo dia Mu-hai, o ancião, para Miang-Fong, “o que de
nós fizeste. Nosso coração tornou-se leve desde que estás conosco. Antes havia um
grande peso nele, que quase nos sufocou.”
E assim era. A dominação dos sacerdotes não permitiu um desenvolvimento nas
almas das pessoas, somente medo e miséria. Agora podiam tratar de seu trabalho sem
preocupação, pois os sacerdotes não mais apareceram. Assim parecia. Na verdade,
porém, olhos atentos observavam tudo o que acontecia no pequeno vilarejo das
montanhas, pois havia um entre os moradores, que secretamente estava ao lado dos
sacerdotes e que de noite levava mensagens a eles. Ódio vivia na alma desse homem,
ódio contra a luz, que irradiava de Miang-Fong e que ele não podia suportar. Fu era
pobre porque era preguiçoso e esperava receber uma recompensa dos sacerdotes, se
prestasse serviços de espionagem a eles.
Miang-Fong, no entanto, continuou, despreocupado com as atividades trevosas, a
ajudar e a acender a luz nas almas dessas pessoas simples.
Quando foi informado, aos sacerdotes, de que a influência de Miang-Fong
aumentava diariamente e que não tomava nenhuma providência para deixar o vilarejo,
conspiraram sobre como podiam liquidá-lo. Era muito difícil aproximar-se dele, pois
sempre estava rodeado por pessoas, mas talvez oferecer-se-ia uma oportunidade de
encontrá-lo sozinho.
“Ele não vai acreditar nisso,” opinou Fu. “Além disso, não acredito que tesouros
possam atraí-lo.”
Assim tiveram que inventar algo diferente e, no final, chegaram a uma manha
diabólica. Amarraram um animal do pasto à meia altura de uma rocha saliente e
deixaram-no gemendo dolorosamente. Porém, aos homens do povoado Fu teve que
dizer que era um espírito irado com o povo, por terem abandonado os sacerdotes.
Medo supersticioso queria novamente apoderar-se das pessoas, pois lúgubres
entoavam os gemidos do animal faminto e torturado. Tinham-no amarrado num local
íngreme, onde estava em constante perigo de enforcar-se.
Miang-Fong, no entanto, resolveu averiguar corajosamente o motivo. Ele escalou o
caminho estreito que o levaria próximo ao local de onde vinham os gemidos. De
repente, seu pé deu um passo em falso numa pedra escorregadia e quase despencou.
Pareceu, porém, como se uma mão invisível o amparasse, até que seus pés
conseguissem pisar em solo firme. Nitidamente reconheceu agora, acima de si, o animal
amarrado e grande compaixão e ira sobre tanta maldade tomou conta dele. Com grande
esforço escalou o último trecho e encontrava-se, respirando aliviado, no pequeno
ressalto de rocha lisa. Inquieto, o animal queria encostar-se nele, ele sentia a ajuda, mas
era impossível soltá-lo. Ambos iriam despencar no abismo, pois não podiam
movimentar-se simultaneamente.
Enquanto Miang-Fong ainda refletia o que deveria fazer, um bloco de granito
despencou repentinamente lá do alto e passou próximo dele, ao mesmo tempo ouviu-se
um grito, e Miang-Fong viu o corpo de um homem passando por ele e caindo no
abismo. Ele não conseguiu ver de quem se tratava, no entanto, sabia que o acidentado
alcançou o fim a ele destinado. Dirigiu-se ao animal que tremia em todo o corpo,
encorajando-o.
“Eu vou buscar ajuda para ti, disse ele, e o animal deve tê-lo entendido, pois
aquietou-se.
Miang-Fong, porém, apressou-se, tão rapidamente quanto o caminho inclinado o
permitia, até o povoado e relatou o que havia vivenciado. Alguns homens colocaram-se
à disposição para voltar com ele e libertar o animal. Levaram cordas para a segurança
mútua e, incutindo ânimo, foi possível soltar o animal e trazê-lo para baixo.
A partir desse dia, Fu nunca mais foi visto.
Com a morte de Fu, desapareceu o único espírito mau do povoado e Miang-Fong
pôde continuar a atuar desimpedidamente. Aos poucos desapareceu o medo e crescia a
confiança e a força nas almas das pessoas e quando, após algum tempo, Miang-Fong
deles se despediu, ele sabia que eles permaneceriam fiéis à sua nova fé. Havia, no
entanto, ainda muitos seres humanos desanimados e amedrontados nesse grande país.
Pessoas embrutecidas e cruéis subjugavam os fracos, em toda parte faziam-se sacrifícios
humanos, sob a alegação de que os deuses assim o exigiam. Relativamente fácil havia
sido a vida de Miang-Fong naquele pequeno povoado nas montanhas distantes. Agora,
porém, quando avançava para a parte central do país, reconheceu o sinistro poder que os
sacerdotes e os príncipes de tribos mantinham em suas mãos.
Parecia que aqui existiam dois tipos de pessoas: os com as feições grosseiras,
narizes largos, olhos bem inclinados e membros nodosos, grosseiros. Elas também eram
mais fortes fisicamente que as outras, cuja cor da pele era mais clara e as feições dos
rostos mais delicadas.
Miang-Fong investigou a origem disso e foi informado que os homens Tau, como
se chamava a classe dominante, haviam invadido esta terra em época remota, vindos do
norte e desalojada a população local dos Ming, forçando-os sob seu domínio. Agora não
eram mais capazes de se defender, pois os homens Tau também tinham trazido sua
crença de magia, seus sacrifícios humanos e seus sacerdotes magos, que conseguiram,
com muita astúcia e mistificações, mas também com ajuda de auxiliares trevosos,
manter o povo Ming sob medo e em dependência.
Miang-Fong ainda não havia caminhado longe, quando deparou-se novamente com
vestígios desse culto horrivel. Blocos de pedra toscos, cobertos de sangue,
testemunhavam dos horrores, que aqui haviam acontecido. O local parecia deserto, onde
somente há pouco tempo devia ter ocorrido uma cena de horror. O coração de Miang-
Fong inflamou-se de ira. Procurando, olhou ao seu redor. No começo não pôde
descobrir um povoado. Algo, porém, atraiu o seu olhar: uma mulher velha, que estava
caída no chão a alguma distância. Ele foi até ela, tocou nela para ver se ainda estava
viva. Ela não deu nenhum sinal de que sentia o que lhe acontecia. Então virou o seu
corpo, para melhor poder enxergar. Mas, horrorizado, recuou alguns passos. Era um
rosto mutilado, com as órbitas dos olhos vazias. Nunca havia visto algo tão horrível.
Debruçou-se sobre o corpo. A mulher devia estar morta, o último sopro parecia ter
escapado do corpo. Mas não podia deixar a morta abandonada aqui! Animais selvagens
viriam e atacariam o cadáver. Procurando, olhou ao seu redor. Nas proximidades havia
somente pedras, nenhum arbusto, do qual poderia ter quebrado alguns galhos, e o chão
era duro. Assim empilhou pedras ao redor do corpo e cobriu-o igualmente com pedras.
A seguir, fez uma silenciosa oração pela pobre alma.
No entanto, ainda não havia terminado, quando, de diversos lados, aproximaram-se
figuras sinistras com facas apontadas ameaçadoramente, que o cercaram e investiram
contra ele com sons selvagens. Miang-Fong ficou parado calma e tranqüilamente e
olhou fixamente nos olhos deles. Isso era descomunal para eles, que sempre viam as
pessoas fugir em pavor mortal.
“Levem ele convosco!” ordenou o chefe, um gigante com olhos oblíquos, nariz
chato e expressão cruel no rosto.
Miang-Fong tolerou tudo. Conduziram-no até um povoado, construído toscamente
de pedras cinzentas, de modo que as habitações pouco se diferenciavam do chão
rochoso. Com gritaria triunfante, Miang-Fong foi levado a uma espécie de praça e lá
amarrado num poste. A seguir, com tambores e apitos estridentes, os homens chamaram
os habitantes das casas que, contrariados, compareceram. Admirados ao máximo,
perceberam o forasteiro, que se encontrava tão corajoso entre os selvagens. Algo assim
nunca lhes havia ocorrido. Parecia como se os selvagens ainda queriam deleitar-se na
contemplação do prisioneiro, pois o gigante parou diante de Miang-Fong e começou a
interrogá-lo.
“Quem és tu, e o que procuras aqui?”
Com voz sonante respondeu Miang-Fong: “Eu sou o mensageiro do Altíssimo e
vim para ajudar aos oprimidos neste país.”
Quase inacreditáveis soaram estas palavras, incompreensíveis e, mesmo assim,
havia algo nelas que chamou a atenção de todos. Os selvagens olharam para Miang-
Fong um tanto desnorteados, pois este não mostrava nenhum medo e nem queria
dobrar-se ao poder deles. O que deveriam fazer com ele? No entanto, não tinha ele
ameaçado de que queria libertar os oprimidos?
Subitamente, o gigante irrompeu numa gargalhada feia: “Tu queres libertar os
oprimidos? Liberta-te primeiro a ti mesmo! Ainda te encontras em nosso poder.”
“Somente pelo tempo que o meu Senhor, o Altíssimo, o permitir,” respondeu
Miang-Fong sem medo. “Nenhum momento mais.”
“Então, vamos ver, quem é o mais forte, teu Senhor, do qual falas tão
arrogantemente, ou esta minha faca aqui!” gabou-se o gigante. Ele levantou sua faca
curvada e queria dar o golpe, quando um pequeno cão, que estava junto aos moradores
espectadores, correu por entre suas pernas, latindo alto. O gigante tropeçou e caiu no
chão. Nisso, a faca encravou-se profundamente no seu próprio peito. Um grito fez se
ouvir na multidão. Em Miang-Fong, porém, elevou-se fervoroso agradecimento, pela
visível ajuda de seu Senhor.
“Quem agora ainda se atreve a duvidar que o Altíssimo protege seus servos?”
perguntou Miang-Fong.
Cheios de medo supersticioso olharam os sacerdotes magos para ele. Não tinham
coragem de levar o morto embora, até que Miang-Fong ordenou-lhes:
“Levem esse aí embora e soltem as minhas amarras, para que possa anunciar-vos
mais sobre o meu Senhor.”
Como se essas palavras quebrassem um encanto, alguns homens vieram correndo,
cortaram as cordas e afastaram-se dele novamente, com respeito. Miang-Fong, porém,
falou com eles, como se não tivesse acontecido nada de especial.
“Vós agora o vivenciastes, ó homens, que não precisais ter medo quando o
Altíssimo vos protege. Mas vós ainda não O conheceis, por isso também não podeis
pedir a Sua ajuda. Eu, porém, O conheço, e Ele me envia até vós para que eu vos
auxilie.”
Esta era outra nova, incompreensível para as pobres, amedrontadas pessoas. Existia
realmente um Ser elevado, que se apiedava delas?
“Então eu não roguei em vão,” fez se ouvir uma voz, e um jovem franzino
aproximou-se com entusiasmo e chegou-se bem perto de Miang-Fong. “Sempre de novo
roguei que nos viesse auxílio em nossa angústia. Eu, no entanto, não sabia a quem devia
rogar, mas sempre acreditava que devia existir um Deus bom, e nele tinha esperança.”
“Fizeste bem, e Ele ouviu o teu pedido,” disse Miang-Fong amavelmente. “E agora
todos vós podeis ouvir Dele. Muito posso anunciar-vos Dele, antes de tudo, porém,
saibam que Ele não esquece ninguém que está em apuros e que Seus servos O informam
sobre cada um que se esforça para o bem.”
Já essas poucas explicações eram tão avassaladoramente novas para essas pessoas –
que até agora sempre haviam sido mantidas sob medo de “deuses” ameaçadores, irados,
castigadores, ávidos por sangue e sacrifícios – que mal podiam acreditar no que estavam
ouvindo.
“Conte-nos mais sobre o Deus bom,” pediram. “Onde Ele está? Ele nos vê?
Podemos realmente fazer pedidos?”
O sofrimento suportado há tanto tempo havia deixado receptivas as pessoas, que
aqui se aglomeravam junto a Miang-Fong. Nem todos eram moradores do povoado.
Muitos continuavam tremendo diante do poder dos sacerdotes e afastaram-se
silenciosamente, para que não fossem vistos aqui. Eles acreditavam que os sacerdotes
podiam vê-los também de longe e eles receavam sua vingança. Min-fu, no entanto, o
jovem, que como primeiro ousara aproximar-se, escutava cheio de felicidade as palavras
de Miang-Fong e encorajava os demais a formular novas perguntas.
“Não podemos permanecer aqui, ó sábio,” disseram elas. “Venha para o nosso
povoado e conta-nos mais sobre o teu Senhor forte e bom.”
Novamente, foi encontrado um povoado no qual Miang-Fong podia atuar e ele o
fez cheio de alegria. Min-fu não saiu do lado dele e, quando chegou o momento em que
Miang-Fong foi chamado para espalhar a sua semeadura em outros corações, ele pediu:
“Deixa-me seguir contigo, ó grande mestre, para que não fiques sozinho em tua difícil
caminhada. Deixa-me ser o teu Tschila, teu aluno, que de ti aprende e te auxilia a tornar
as tuas caminhadas menos penosas.”
Satisfeito, Miang-Fong concordou. Era isso que ele esperava, que encontrasse
pessoas dispostas a apoiá-lo em sua grande obra.
Miang-Fong continuou percorrendo o país, de localidade em localidade e, em todo
lugar, deparou-se com o mesmo domínio de horror de superstição tenebrosa. Certo dia
alcançou-o o chamado de uma tribo especialmente ameaçada. Ele havia se dirigido para
o norte, rumo aos altos contrafortes da cordilheira. Lá encontrou um povoado maior,
chamado Kum-bum, no qual instalara-se um grupo de sacerdotes magos, que dali
dominava toda a região.
O chefe da tribo, um homen Tau, dominava as pessoas junto com os sacerdotes
magos e arrecadava dos circunvizinhos grande quantidade de gado, leite e grãos. Uma
tropa, armada com flechas e lanças, garantia-lhe o poder de extorquir tudo o que
desejava. Impotentes, os moradores tiveram que presenciar como eram roubados
continuamente.
A notícia do sábio forasteiro já havia chegado até aqui, e um homem corajoso
colocou-se à disposição para sondar Miang-Fong e para pedir sua ajuda. Pois, sobre ele
espalhavam-se fatos milagrosos: que era invulnerável, porque tinha um Deus poderoso,
que era mais forte do que todos os demais deuses, mais forte também que os sacerdotes,
que perante ele caíam mortos quando ele apenas os olhava. Novamente, as pessoas já
haviam adaptado os fatos à sua maneira de pensar.
O mensageiro, Mao-tsu, encontrou efetivamente o rastro de Miang-Fong e seu
companheiro, pois boatos singulares precederam-no sobre o seu poder e sua influência.
Mao-tsu inclinou-se profundamente diante do grande mestre sábio, como Miang-
Fong geralmente era chamado, juntou as palmas das mãos levantadas e pediu:
“Ó tu, grande mestre, os moradores de Kum-bum pedem a tua ajuda! Estão sendo
duramente ameaçados por Mao-dsung, o chefe selvagem, as suas vidas estão sempre em
perigo. Veio até nós a notícia de que tu te encontras na proteção de um Deus, cuja
magia é mais forte do que a dos deuses dos quais nos falam os sacerdotes. Viemos
pedir-te a proteção Dele!”
Admirado, Miang-Fong escutava as palavras. O que os homens haviam feito da
notícia sobre o Altíssimo? Quão rapidamente a tinham torcido de acordo com o seu
pensamento! Devia prestar muita atenção e reconstituir novamente a verdade.
“Conduze-me até Kum-bum,” ordenou a Ma-tsu, e de muito bom grado, este
obedeceu. O caminho era árduo. Selvagens torrentes das montanhas tinham que ser
transpostas, superados caminhos cheios de rochas e gelados sopravam os ventos vindos
do norte para o planalto aberto, no qual, ao sopé de uma pequena elevação, estava
situada Kum-bum. Aqui tudo revelava uma riqueza maior. Este planalto parecia ser
fértil, as moradias das pessoas mais sólidas.
Miang-Fong chegou a tempo para assistir a uma espécie de festa. Grande número
de pessoas percorria as ruas, porém, não pareciam felizes. Mesmo que elas
conversassem e trocassem cumprimentos, o som abafado de tambores e de apitos
estridentes proporcionavam a tudo uma nota sinistra. Aproximava-se agora um cortejo,
diante do qual todos recuaram, na dianteira um sacerdote ornamentado, envolto em
diversos panos coloridos, o rosto pintado em cores, agitando uma grande faca na mão
direita. Atrás dele seguiam mais algumas figuras semelhantes, sacudindo nas mãos
tambores ruidosos que, ao sacudir, soltavam seus sons dissonantes. Era um ruído
infernal, ao qual o silêncio mortal dos moradores oferecia um estranho contraste.
Miang-Fong observava o cortejo que estava se aproximando. Eram rostos
animalescos, cujas expressões cruéis ainda eram intensificadas pela pintura berrante. Ele
fixou seu olhar neles, enviando ao seu encontro pensamentos defensivos. Estes também
pareciam sentir alguma coisa, pois seus passos vieram a estancar, no entanto, logo a
seguir os pequenos tambores redondos rugiram ainda mais altos e os apitos soaram mais
estridentes e dissonantes. O cortejo movimentava-se justamente na direção em que
Miang-Fong e seu companheiro se encontravam. Aproximava-se já dos espectadores
aglomerados. Um tremor perpassou a multidão, Miang-Fong sentia o seu medo. Então
ele se adiantou, levantou imperativamente a mão e mandou o cortejo barulhento parar.
Com um movimento contrariado, o primeiro dos sacerdotes magos quis empurrá-lo para
o lado, Miang Fong, porém, estava como que enraizado, de modo que obrigou o outro a
parar também.
“Saia do meu caminho!” berrou o mago. “Tu nada tens a fazer aqui.”
“Estás enganado,” foi a resposta de Miang-Fong. “Eu procuro algo, que tu não
possuis e não conheces, entretanto, tens que me dar.”
“Tu falas em enigmas, homem,” respondeu o mago ironicamente. “O que não se
tem, não se pode dar. Ceda lugar, senão terás que sentir a minha faca.” E,
ameaçadoramente, a agitava diante do rosto de Miang-Fong.
“Tu perdeste algo!” disse Miang-Fong inesperadamente, e o mago abaixou-se,
como se quisesse apanhar alguma coisa do chão. Imediatamente Miang-Fong tirou-lhe a
faca, quebrou a lâmina ao meio e jogou-a aos pés do mago. Uivando de raiva, este quis
avançar sobre ele, porém, o olhar claro de Miang-Fong o deteve.
“Vês, que nada podes fazer contra mim?” perguntou Miang-Fong. “Agora dá-me
aquilo que tu não possues e não conheces: a liberdade para estas pessoas! Pare de
torturá-las e de amedrontá-las!”
Bravejando de raiva, o mago dirigiu-se aos seus companheiros.
“Peguem-no e amarrem-no!” ordenou.
Mas ele falou ao vento. De Miang-Fong partia algo que deteve até essas pessoas
depravadas. Elas não estavam armadas, traziam somente seus instrumentos barulhentos.
Quem poderia saber que tipo de magia ele possuía? Nunca antes havia acontecido que
alguém tivesse a coragem de enfrentar Hi-lao. Cheia de curiosidade, a multidão
observava. O que faria o sacerdote mago agora? Se realmente possuisse poder, então
devia mostrá-lo agora! Mas nada aconteceu. Ele tentou desviar e passar por Miang-
Fong. Este, porém, enfrentou-o novamente e disse: “Mais uma vez eu exijo de ti: deixa
estas pessoas em paz! Tu não tens poder sobre elas.”
O que faria Hi-lao? Ele sempre havia afirmado que os deuses iríam esmagar aquele
que se opusesse a ele? E agora não acontecia nada? Pela primeira vez, fizeram-se ouvir
vozes: “Agora, Hi-lao, onde estão teus deuses? Chama-os para ajudar-te!”
Então Miang-Fong levantou sua voz, e ela soou longe: “Amigos, os deuses, com os
quais ele vos ameaçava, não existem! Existe somente um Deus, a quem tudo tem que
servir e Seus servos não são inimigos dos seres humanos, mas seus amigos!”
“Vejam, vejam!” exclamou uma voz agitada e indicou para uma figura horrível,
que se formava atrás de Hi-lao. “O deus dele!”
Aos gritos, as pessoas queriam fugir. Hi-lao voltou-se e caiu ao chão gritando por
ajuda. Também para ele isso era novo.
“Foi ele quem o mandou!” gritou ele e indicou para Miang-Fong. “Ajudem-me,
gente boa!”
Então elas pararam e observaram com uma certa satisfação maliciosa o medo
daqueles, diante dos quais por tanto tempo tremeram. Miang-Fong, no entanto, levantou
seus braços para o céu e exclamou: “Ó Altíssimo, a quem me é permitido servir,
proteja-nos desse demônio, que esse homem gerou!”
Então desceu uma neblina luminosa e, diante dela, desfez-se a figura.
“Vistes vós, como o Altíssimo enviou para nós um raio de Sua pureza?” exclamou
Miang-Fong. “Não tenham medo desse homem, ele é impotente e não pode vos fazer
mal. Retirem-no daqui,” ordenou aos acompanhantes do sacerdote mago e eles
obedeceram.
E Miang-Fong voltou-se para os espectadores e disse: “Quem procura o bem,
encontrará o bem. Quem procura o mal, até ele virá o mal e o destrói. Vós o vistes.
Procurem sempre o bem, então sempre vos virá auxílio.”
Espalhou-se rapidamente a notícia do que havia acontecido e chegou também até
Mao-dsung, o chefe da tribo. Este encolerizou-se e partiu com seus soldados para
prender o intruso. Os moradores, porém, advertiram Miang-Fong e o esconderam em
seu povoado. Um corredor escuro, na casa de Göpek, que conduzia do porão da casa
para dentro da montanha, deu abrigo a Miang-Fong e seu companheiro e, às escondidas,
Göpek os abastecia com alimento e bebida.
A Miang-Fong não agradava esperar no esconderijo, parecia-lhe muito melhor
enfrentar Mao-dsung abertamente . Mas o seu guia luminoso ordenou-lhe: “Espere, até
que sejas chamado.” Contentou-se com isso e ensinava às escondidas.
Mao-dsung, porém, bravejava de raiva e jurou que iria incendiar tudo, se o intruso
não lhe fosse entregue. Deus, porém, ajudou Miang-Fong, para que não fosse
encontrado. Mao-dsung mandou vasculhar todas as casas, mas Miang-Fong não foi
encontrado. Quando seus soldados o informaram que não tinham achado o procurado,
Mao-dsung berrou: “Então eles vão me pagar!” E deu ordem para acender uma grande
fogueira, na qual os soldados deveriam jogar todos os pertences dos moradores.
Entraram nas casas, saquearam e levaram tudo, o que viam pelo caminho, para fora e
jogaram-no ao fogo. Os magos, no entanto, dançavam ao redor do fogo, gritavam e
cantavam suas selvagens invocações. Os moradores assistiam clamorosos e não sabiam
como ajudar-se. Havia muitos que agora teriam denunciado o esconderijo de Miang-
Fong, se o soubessem. Mas este havia ficado em segredo para todos.
O fogo, bem alimentado, aumentava, e sempre mais selvagens tornaram-se as
contorções dos membros dos sacerdotes, que dançavam ao redor. De repente, apareceu
Miang-Fong diante do fogo, como se surgido do solo. Imperativamente, levantou as
mãos e exclamou tão alto, que todos puderam ouvir:
“Em nome do Altíssimo Deus eu te ordeno, fogo, pára de queimar!”
Como que por encanto, as chamas baixaram, a crepitação diminuiu e, pouco tempo
depois, o fogo somente ardia sem chamas. Somente Miang-Fong viu os pequenos entes
do fogo, que rapidamente se afastavam. Todos os demais caíram de joelhos diante desse
grande”feitiço” e ficaram com muito medo.
Agora Miang-Fong dirigiu-se a Mao-dsung, que ainda não conseguiu compreender
o que aqui tinha acontecido, e disse: “E tu, servo das trevas, retira-te deste local e não
volta nunca mais! O teu tempo terminou, nada mais tens a fazer aqui.”
Com essas palavras aproximou-se mais do chefe, mas este retrocedeu. Não podia
suportar o olhar flamejante de Miang-Fong. Seus soldados seguiram-no.
Quando o povo viu que Mao-dsung e seus soldados foram embora, encheram-se de coragem, como nunca a
tiveram. Com pedaços de madeira em brasa, que retiravam do resto do fogo, investiram contra os sacerdotes magos e
os afugentaram, sim, perseguiram-nos até longe, voltando então triunfantemente.
Estas pessoas haviam assistido, pela primeira vez, ao atuar de um poder mais
elevado. Não paravam de admirar-se e elas, antes tão caladas, não se cansavam de
expressar sua admiração.
Miang-Fong, no entanto, não lhes deixou muito tempo para isso, mas exigiu:
“Agradeçam agora ao Altíssimo, que ajudou a livrar-vos desse jugo!”
E em voz alta e com as mão levantadas, enalteceu a bondade de Deus e acrescentou:
Mais do que isso Miang-Fong não devia dizer aos seus, e era o bastante para eles.
Até o dia de hoje sussurra-se ainda da misteriosa taça vermelha que antigamente se
encontrava na montanha Tao-Schan e que havia feito milagres. Lendas e contos ataram-
se à mesma, imaginados pelo espírito desejoso de milagres dos seres humanos, mas
tinham como ponto positivo ajudar a manter a lembrança. A própria taça, porém,
desapareceu. Ninguém conhece o seu paradeiro.
Miang-Fong passou seus últimos anos na Terra em atuação intensificada para o
Altíssimo. Insistia junto aos irmãos, o mais fervorosamente possível, de que eles seriam
responsáveis pela manutenção da verdade e sempre de novo os instruía:
“Não deixem desviar-vos nem uma polegada do caminho reto da verdade. Cada
um, até o menor dos passos para o lado, leva às redes do senhor sobre as trevas. Ele
espera pelo momento em que vós puderdes enfraquecer, ele não conhece piedade, com
riso sarcástico ele vos atrairia à destruição. Porém, se permanecerdes com a verdade,
então sereis protegidos. Ele tem que permanecer afastado de vós, pois a verdade vos
envolve como um muro protetor, intransponível.”
Quando Miang-Fong assim falava a eles, então os alunos inflamavam-se em seu
íntimo e prometiam agir de acordo com suas palavras. Todos ainda tinham na lembrança
os tempos horríveis, quando o Tibete era dominado pelo senhor das trevas. Eles ainda o
temiam e, por muito tempo, a luz da verdade foi mantida pura através dos mosteiros,
que continuavam enviando servos puros do Altíssimo para todo o extenso país. Quem
recebera os ensinamentos do mosteiro, esse estava invulnerável às tentações do mundo
lá fora.
Quando os dias de Miang-Fong estavam contados e ele sentiu aproximar-se o seu
fim, chamou todos os irmãos à sua presença, abençou-os e mais uma vez dirigiu-lhes a
palavra.
“Não lamentais a minha partida,” falou amavelmente o sábio mestre. “Sigai
destemidamente o vosso caminho, mesmo se não mais encontrar-me entre vós. Vós
sempre sereis conduzidos pelos servos do Altíssimo. Eles nunca abandonar-vos-ão, se
vós não os abandonardes.
Concentrem luz ao redor de vós e, então, ide e levai essa luz até os seres humanos.
Eles necessitam dela. Portadores da luz deveis ser neste país, para que nunca mais
decaia para as trevas. Quando virdes pessoas alegres perto de vós, então cumpristes o
vosso dever. Se, porém, voltar o sofrimento, então perguntai-vos o que negligenciastes.
Depende de vós, de como se cumprirá o destino do Tibete. Vós sois aqueles que devem
manter a ligação com o alto, então o auxílio virá para todos. Pudestes vivenciar
milagres, quando um ser humano desabrochava durante a noite, quando era-lhe trazida a
verdade, como ele acordava de sono profundo e reconhecia quem ele era e qual era a
sua missão. Consigam muitos desses milagres, vós, meus alunos, então confiantemente
podereis um dia prestar contas, quando deixares o vosso corpo terreno.”
“Mestre,” perguntou aí um de seus alunos, e um ardente desejo estava por trás
dessa pergunta, “Mestre, tu voltarás? Ou permanecerás no alto, nos jardins eternos, de
onde vieste?”
“Isso está na vontade do Altíssimo,” foi a resposta de Miang-Fong, “se Ele quiser
me abençoar novamente com uma missão na Terra ou se me for permitido serví-Lo lá
no alto. Vós, porém, meus alunos, cuidai para que não precisais retornar, por terdes
omitido algo, por ainda não terdes amadurecido para uma vida nos jardins celestes! Não
deixais passar nenhum dia, no qual não vos perguntais: tenho feito tudo o que devia
fazer, o que podia fazer? Examinai-vos severamente a cada noite, façam recolhimento
ao vosso íntimo e não vos poupais. Somente a verdade auxilia-nos para diante! E nunca
esqueceis de exercitar-vos no silêncio. No silêncio cresce vossa força interior, no
silêncio despertam em vós reconhecimentos, no silêncio pode aproximar-se o vosso
guia invisível. Silenciar é mais poderoso que falar, pois as palavras humanas originam-
se somente dos pensamentos dos seres humanos, da vontade dos seres humanos; no
silêncio de vossas almas, porém, fala a vós o Altíssimo.”
Comovidos, os alunos escutavam as palavras do velho mestre. Suas feições
estavam transfiguradas. Nunca esqueceram o que ele lhes havia falado naquela hora.
A seguir, Miang-Fong os mandou embora.
“Ide agora, somente Su-an-tse fique comigo.”
Fatigado, Miang-Fong fechou os olhos. O esforço havia sido quase demasiado para
o seu corpo, do qual a alma começava a desligar-se. Durante longo tempo Su-an-tse
esteve sentado junto ao leito e observava o mestre estendido inerte. Os raios do sol
poente incidiam cada vez mais oblíquos no simples quarto. E quando o último raio
atingiu o rosto de Miang-Fong, este mais uma vez abriu os olhos e disse nitidamente:
“Meu Senhor e meu Deus, a Ti eu sirvo em toda a eternidade!’
Então fecharam-se suas pálpebras e profundo silêncio estendeu-se no crepúsculo do
quarto. Silenciosamente orava Su-an-tse no leito do falecido mestre, cujo rosto tornava-
se cada vez mais transfigurado. Um sopro de paz, de pureza, de bondade cobria-o.
E os sentidos despertos de Su-an-tse viram as figuras luminosas, que levavam o
querido mestre consigo. Para o alto e cada vez mais alto, até desaparecerem, até ficarem
visíveis somente delicadas nuvenzinhas de luz e um leve som de acordes sobrenaturais
iam-se desvanecendo.
Por longo tempo ainda permaneceu Su-an-tse junto ao leito de Miang-Fong. Ele
havia sido aquele entre seus alunos, que nos últimos anos tinha estado mais próximo
dele, e ele tinha sido escolhido pelo Alto como seu sucessor.
Calmo e lúcido, firme e determinado, encarregou-se da condução do mosteiro e
dirigiu-o por muitos anos dentro do espírito de Miang-Fong, até que também ele foi
chamado para a eternidade.
Um lama superior sucedeu ao outro. As regras e prescrições de Miang-Fong foram
complementadas, o mosteiro foi ampliado. Sempre, porém, o mosteiro na montanha
Tao-Schan conservou a condução espiritual. O lama superior desse mosteiro era o
superior de todos os demais. Espiritualmente ele era o mais elevado e mantinha sem
turvação a ligação com o Alto.
Enquanto essa ligação persistiu, o Tibete esteve protegido contra as trevas, que
inutilmente esforçavam-se por recuperar o seu domínio perdido. Não sem razão este
mosteiro estava situado na maior altitude. Mas quando os mosteiros mais afastados
começaram a rebelar-se contra a condução pela montanha Tao-Schan, abriu-se a
primeira brecha e as trevas penetraram e espalharam-se rapidamente.
O querer próprio e o egoísmo novamente venceram e, após a mais bela florescência
de muitos séculos, o Tibete sucumbiu novamente ao poder das trevas.
APÊNDICE
Teor do final sobrecolado:
Agora, porém, seu domínio terá seu fim. IMANUEL libertará também esse povo de
seu fardo. Ele lhe dará nova vida e fielmente o povo do Tibete servirá novamente ao
Altíssimo.