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Marina Arantes & Pedro Martins


2020
7 Ideias Para Não Ser Um

Terapeuta Sabe-Tudo
Marina Arantes
&
Pedro Martins

7 Ideias Para Não Ser Um

Terapeuta Sabe-Tudo

Formato de e-book. Distribuição gratuita.

Disponível em:
www.intervencoesterapeuticas.com.br/sabetudo

Ilustrações de
Tayná Portilho

Uberlândia-MG
Brasil
2020
Sumário

Introdução........................................................................................................................ 5

Alertas de que Você está Sendo um Terapeuta Sabe-Tudo.............................................. 8

Ideias para não ser um Terapeuta sabe-tudo.................................................................. 11

Implicações Clínicas de não ser um Terapeuta Sabe-Tudo............................................... 18

Conclusão: Ideias para ser um Terapeuta Sabe-Junto...................................................... 22


Mr. Know It All
Well ya think you know it all
But ya don't know a thing at all
Ain't it something y'all
When somebody tells you something bout you
Think that they know you more than you do
So you take it down another pill to swallow.

Sr. Sabe-Tudo
Bem, você pensa que sabe tudo
Mas, você não sabe de nada
Não é uma coisa, gente
Quando alguém te diz algo sobre você
Acha que te conhece mais do que você mesmo
Então, você engole outro sapo.

Kelly Clarkson

Composição: Brett James, Brian Seals, Dante Jones & Esther Dean
MARINA ARANTES & PEDRO MARTINS 7 IDEIAS PARA NÃO SER UM TERAPEUTA SABE-TUDO

Quando a cantora Kelly Clarkson entoa os versos direcionados ao “Sr. Sabe-Tudo”,


provavelmente tem como interlocutor um par romântico que, segundo descreve a canção,
acha que sabe mais a seu respeito do que ela mesma. A letra segue como um protesto da
narradora, no qual afirma que é ela quem sabe de si. Avisa, então, ao rapaz sobre os perigos
de continuar orientado pela ideia de que sabe tudo: “Você acha que me conhece. É por isso
que eu estou te deixando sozinho. Porque, querido, você não sabe nada sobre mim”. Afinal,
quem quer estar em uma relação na qual não há abertura para ser conhecido em seus próprios
termos?
Em diferentes níveis, é possível imaginar que todos nós, em algum momento, já
experimentamos a sensação desagradável de participar de uma relação – seja ela estável ou
efêmera; importante ou banal; amorosa ou de qualquer outro tipo – em que não somos
ouvidos. Nesse tipo de interação, nos sentimos roubados de nosso senso de nós mesmos:
afetados enquanto o outro fala para nós, sobre nós, ditando quem somos e o quê devemos
fazer (Shotter, 2012). Esse tipo de interação é o que Littlejohn e Foss (2008), inspirados em
Bakhtin, chamam de monólogos: relações nas quais há um sentido de finalização do outro,
sem enriquecimento mútuo para os participantes.
Neste livro, queremos falar sobre relações monológicas em terapia e, principalmente,
como evitá-las. Afinal, como terapeutas, é nossa função construir um tipo de relação com
nossos clientes que está em contraste direto com os monólogos: relações dialógicas, nas quais
os interlocutores, de forma fluída, estão abertos à construção conjunta e à possibilidade de
se transformarem mutuamente (Littlejohn & Foss, 2008). Falando sobre o diálogo em terapia,
Anderson (2019) reflete:
“Escutar, pensar, ouvir e falar fazem parte de ser um aprendiz respeitoso que responde
a partir de uma posição de abertura para a alteridade do outro: abertura para aprender
com a lógica e maneira de construir sentidos do outro, e abertura para ter a sua lógica
e maneira de construir sentidos questionada, criticada, ou para que o outro não
concorde com elas” (p. 265).
A postura do não saber é central neste contexto (Anderson & Goolishian, 2002). Essa
postura informa um modo de ser e de estar em relação, por parte do terapeuta, no qual suas
ações direcionam-se a uma curiosidade genuína para aprender com o cliente sobre sua própria
história, de modo que sua alteridade – “sua diferença, singularidade e realidade” (Anderson,
2019, p. 263) – possa ser respeitada e apreciada. “Não saber” demanda que o terapeuta não

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MARINA ARANTES & PEDRO MARTINS 7 IDEIAS PARA NÃO SER UM TERAPEUTA SABE-TUDO

limite suas explicações a noções teóricas e conhecimentos pré-concebidos, mas, em


contraste, esteja aberto para sua reconstrução artesanal, no momento da terapia, de acordo
com o desdobramento da conversa.
Então, voltando à música para uma comparação bem-humorada, se construirmos uma
escala imaginária orientada pela noção da dialogia, em um extremo, teremos o “Sr. Sabe-
Tudo” e, no outro, a alguém orientado pela postura do não saber. O par romântico para quem
a cantora direciona suas palavras faria bem em ouvi-las e mudar sua postura em direção a
uma curiosidade genuína sobre as histórias que ela tem para contar! Trazendo essa
comparação para o contexto da nossa discussão – a terapia – entendemos que a diferença
entre essas duas formas de estar em relação pode ser visualizada na figura do “Terapeuta
Sabe-Tudo”, de um lado do contínuo, e do “Terapeuta Colaborativo-Dialógico” do outro.
Reconhecemos que a maior parte de nós, terapeutas, está comprometida com as
histórias das pessoas e não se acha nenhum sabe-tudo. Ao mesmo tempo, a brincadeira nos
ajuda a dar visibilidade para essa importante tensão da prática clínica: em nossa formação,
recebemos mensagens contraditórias no que diz respeito ao quê devemos ou não saber sobre
nossos clientes. Em um sentido, somos ensinados a respeitar as diferenças e a aprender com
a singularidade das histórias das pessoas. Ao mesmo tempo, somos também convidados a
ocupar a posição de especialistas, aqueles que devem ter as respostas e orientar as pessoas
sobre como proceder em suas vidas.
Partindo de um reconhecimento da dificuldade de superar essa tensão na prática
terapêutica, neste livro, temos o objetivo de oferecer sete ideias de como não ser um
terapeuta sabe-tudo. Elas são produto de nossa interação com conceitos e práticas advindas
do construcionismo social (McNamee, Gergen, Camargo-Borges & Rasera, 2020; Shotter,
2012), particularmente daquelas informadas pela Terapia Colaborativo-Dialógica (Anderson,
2019; Anderson & Goolishian, 2002). Oferecemos essas ideias como sensibilidades às quais o
terapeuta pode estar atento em sua prática, se estiver interessado em conduzi-la a partir de
uma noção da dialogia.
Se, por um lado, a postura do não saber e a possibilidade de estabelecer relações
dialógicas em terapia parecem ter bastante apelo entre os terapeutas, por outro, em nossa
experiência clínica e como supervisores, percebemos que entender suas implicações práticas
e colocá-las em movimento no cotidiano não é tarefa fácil. De fato, a ideia deste livro surgiu

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MARINA ARANTES & PEDRO MARTINS 7 IDEIAS PARA NÃO SER UM TERAPEUTA SABE-TUDO

em um contexto de supervisão, quando uma terapeuta1, que está no início de sua carreira
clínica, nos contou que, por mais que entendesse teoricamente e valorizasse ao extremo esse
modo de estar em interação, achava muito desafiador se manter nele no cotidiano da clínica.
Foi buscando responder a esse dilema tão comum que elaboramos este livro. Ele está
organizado a partir de uma lógica da prática: as ideias oferecidas chamam atenção para
aspectos da postura do terapeuta e de suas ações que, em nosso contexto, têm se mostrado
úteis para a construção de relações dialógicas em terapia. Se você quiser entender mais da
teoria que sustenta essas intervenções, sugerimos que busque as referências citadas ao longo
deste texto. Adicionalmente, convidamos você a também estar em contato conosco por meio
do Projeto Intervenções Terapêuticas (www.intervencoesterapeuticas.com.br/home), no qual
oferecemos conhecimento honesto e descomplicado sobre a prática do terapeuta.
Nos capítulos a seguir, apresentamos primeiro alguns sinais que podem te alertar para
a possibilidade de estar sendo um Terapeuta Sabe-Tudo. Na sequência, oferecemos sete
ideias práticas de como não ser um Terapeuta Sabe-Tudo. Depois, refletimos sobre as
implicações clínicas dessas ideias e seguimos para a conclusão.

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Somos gratos à nossa aluna e amiga Érica S. Lins Ferraz por toda sua disponibilidade em “não saber” conosco
em tantos contextos e, com isso, saber tanto e tão bem. Foi no contexto de nossas conversas sobre a clínica
que a primeira ideia deste livro surgiu.

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Alertas de que Você está Sendo um Terapeuta Sabe-Tudo

Como você pode saber se está sendo um Terapeuta Sabe-Tudo? Neste capítulo, vamos
apresentar alguns sinais de alerta aos quais você pode estar atento em sua prática. Observá-
los sugere a necessidade da construção de uma postura reflexiva na conversa, ou seja, uma
atenção próxima ao processo conversacional, na qual o terapeuta se preocupa com sua
tomada de decisões na sessão e seus efeitos para o desdobramento da conversa. Em comum,
todos os alertas a seguir destacam a importância de nos mantermos em colaboração com os
clientes: orientados em nosso modo de estar com o outro por uma noção de que ambos temos
espaço e responsabilidade pelos rumos e efeitos da conversa (Anderson, 2019).

Alerta 1: Quando você percebe que está só esperando o cliente fazer uma pausa para poder
compartilhar o que está pensando.
Este é um sinal de que você parou de prestar atenção no que o cliente está dizendo.
Neste ponto, você corre o risco de oferecer uma fala ou pergunta que seja mais responsiva às
suas próprias expectativas do que ao momento imediato da conversa. Consequentemente
isso pode ser menos útil para mantê-la andamento em uma direção coerente com o que está
sendo dito naquele momento. Isso para não mencionar o quanto seu cliente pode se sentir
incompreendido, e pouco ouvido quando isso acontece.

Alerta 2: Quando você tem um senso (ou mesmo uma certeza) de que deveriam dedicar a
sessão de terapia a outro assunto, diferente daquele trazido pelo cliente.
Este é um sinal de que você está fazendo escolhas quanto ao conteúdo que deve ser
cuidado em terapia, colocando seus próprios valores e preferências como sendo mais
importantes do que os de seu cliente. Consequentemente, ao se dedicarem a uma conversa
que, muito provavelmente, está desconectada das demandas dele, vocês correm o risco de
terminarem a sessão com aquela sensação de que remaram, remaram, mas morreram na
praia. Sem dizer que, ao tentar cuidar do conteúdo da sessão, você está se colocando como o
único especialista naquele diálogo, negando ao cliente a sua posição de ser responsável pelos
temas a serem tratados em terapia.

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Alerta 3: Quando você fala mais do que seu cliente na sessão.


Este é um sinal de que a terapia – na posição de cliente – poderia te fazer bem. Se sua
conversa interna está mais conectada com você mesmo e o que você tem a dizer e oferecer,
talvez seja o momento de se perguntar porque lhe parece tão importante e necessário assim
falar de todas essas coisas. É claro que fazer sua própria terapia é apenas uma maneira de
conseguir isso. Estar em supervisão ou, até mesmo, ter outros contextos nos quais pode falar
sobre você mesmo podem ser também boas ideias. O mais importante é lembrar que suas
intervenções como terapeuta devem sempre ser orientadas pelo que o cliente considera
importante – qualquer fala ou pergunta deve idealmente ser conectada ao conteúdo da
terapia, e não a algo externo a ela que simplesmente acontece em seu próprio diálogo interno
naquele momento. Com isso, buscamos garantir que o cliente se sinta respeitado em seu
direito de falar, de ser ouvido, e de ser cuidado naquela hora especial de sua semana, a
terapia, que ele buscou justamente para isso.

Alerta 4: Quando você insiste nas mesmas perguntas e hipóteses mesmo o cliente te
mostrando que elas não fazem sentido para ele.
Este é um sinal de que você está mais encantado pelas suas próprias hipóteses do que
pela conversa imediata e, muitas vezes, mais preocupado em se mostrar um profissional
competente e inteligente do que participar da terapia imediata. Nunca se esqueça que a
competência e a inteligência do terapeuta devem ser medidas por sua habilidade de sustentar
o movimento do diálogo, de forma que a novidade possa surgir. Por isso, não podemos julgar
o brilhantismo de uma pergunta ou reflexão enquanto elas estão só em nossa cabeça. Pelo
contrário, elas antes precisam acontecer para o outro, fazer sentido para ele, e alcançar
efeitos desejáveis ao manter a conversa em andamento. Uma intervenção maravilhosa, mas
fora de contexto, não é uma intervenção maravilhosa: ela é apenas uma intervenção fora de
contexto.

Alerta 5: Quando você busca uma explicação, teórica ou não, que justifique o fato do cliente
não ver sentido em alguma fala ou pergunta que fez.
Este é um sinal de que você não está disposto a repensar sua própria postura e suas
contribuições para o processo terapêutico de seu cliente. O sentido das suas falas e perguntas
não está dado a priori, nem é garantido por sua intenção. Longe disso. A negociação conjunta

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de sentidos é a atividade criadora e transformadora em terapia. Por isso, qualquer fala em


sessão só ganha sentido à medida que constrói um espaço comum de entendimento na qual
terapeuta e cliente podem caminhar juntos. O poeta americano Henry David Thoreau diz que
“a felicidade só real quando compartilhada”. Para o propósito de nosso argumento aqui,
parafraseamos a ideia assim: “o sentido só é real quando compartilhado”. Ou seja, ao dizer
que algo que você falou não fez sentido para o cliente por qualquer questão que seja
intrínseca a ele, você está negando o aspecto dialógico e relacional da construção de sentidos,
primordiais para a terapia. Aqui, somos lembrados do que o terapeuta Steve de Shazer (1984)
chamava de “a morte da resistência”: o seu cliente não é resistente. É você quem não
encontrou a forma que ele está disposto a colaborar com você.

Se o alerta soou para você em uma ou mais das situações acima: estamos juntos!
Mesmo com anos de experiência clínica – ou especialmente por isso – estamos suscetíveis, ao
menor descuido, a assumir posturas dominadoras com nossos clientes. Isso porque não é nada
simples sustentar sua prática em uma perspectiva diferente daquela que comumente
aprendemos enquanto nos formamos, e que também fazem parte do imaginário social sobre
o terapeuta: de que ele deve sempre saber o que dizer, quando dizer, e que recebe seus
honorários justamente para isso. Por mais que tenhamos consciência de que essa postura
autoritária do especialista nem sempre é terapêutica e útil nas conversas com nossos clientes,
fomos culturalmente condicionados a atrelar nossas noções de competência profissional a
ela. Por isso, a busca por sustentar outra forma de estar na relação terapêutica demanda
esforço, uma atenção e revisão constante das nossas escolhas em sessão e, ainda assim, por
vezes nos percebemos na posição autoritária de sabe-tudo. Para isso, o próximo capítulo
oferece sete ideias sobre o que fazer quando qualquer um desses alertas soarem em sua
conversa interna.

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Ideias para não ser um Terapeuta Sabe-Tudo

Os sinais de que você está se distanciando de uma postura colaborativa na conversa


com seu cliente foram identificados. E agora, José? Bem, assim como as ideias apresentadas
neste capítulo, este e-book não pretende saber tudo o que você deve fazer ou deixar de fazer
enquanto terapeuta. Ao invés de um manual, com regras e técnicas específicas a serem
seguidas indiscriminadamente, queremos te apresentar princípios norteadores que deverão
sensibilizar sua atenção e escuta como terapeuta, em direção a uma postura mais
colaborativa, menos autoritária, e potencialmente transformadora.

Ideia 1: Esteja sempre disposto a ser corrigido.


O terapeuta John Winslade, no workshop intitulado “Re-historiando narrativas de
conflito na terapia e mediação de conflitos” ministrado em São Paulo, em 2015, foi
questionado por uma das participantes sobre o que o terapeuta deveria fazer para não
colonizar a história do cliente com seus próprios sentidos. Essa pergunta partia do
pressuposto de que todas as falas e expressões do terapeuta são, em si mesmas, intervenções
que guiam os caminhos da conversa e constituem as respostas possíveis naquele contexto.
John respondeu que “não há como escapar da construção conjunta de sentidos. Por isso, para
não colonizarmos a história do outro, precisamos estar sempre dispostos a ser corrigidos”.
Estar disposto a ser corrigido: uma consigna direta, mas que atravessa de um jeito complexo
a postura do terapeuta.
A partir dela, o profissional se mostra comprometido com a noção de que não é o único
especialista na conversa terapêutica e que, por isso, não deve presumir que os seus sentidos
sejam mais legítimos que os do cliente. Essa noção deve impregnar os olhos e ouvidos do
terapeuta, que passa a se colocar na conversa (seja fazendo perguntas, oferecendo narrativas,
ou reagindo às falas do cliente) de um jeito cauteloso e curioso, entregando ao cliente a
responsabilidade e a condição de quem pode (ou não) legitimar a história que está sendo
construída em sessão.
É importante lembrar que uma pergunta curiosa – como por exemplo, a nossa tão
querida “isso faz sentido para você?” – não garante, por si só, a sua disposição a ser corrigido.
Isso se produz, sim, em quão radicalmente atento, curioso, e disponível você, como terapeuta,

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está ao ouvir a resposta. Não tenha medo de ser corrigido, isso não te faz um terapeuta menos
competente. Aliás, muitas vezes é na tensão com o diferente, com aquilo que não faz sentido,
que o cliente consegue encontrar as palavras mais adequadas para descrever sua própria
experiência.

Ideia 2: Não se apegue às suas perguntas ou hipóteses.


A habilidade do terapeuta em se desapegar de suas próprias perguntas e hipóteses
está diretamente atrelada à sua condição de garantir aquilo que é mais precioso em uma
conversa terapêutica: a construção conjunta de significados. Esteja comprometido com a ideia
de que a utilidade e adequação de suas falas não podem ser medidas a priori, ou seja, antes
de serem de fato colocadas no contexto de uma interação real. Existe uma distância
importante entre, por um lado, o que sua teoria ou conhecimento prévio de mundo te
informam em sua em sua própria conversa individual e interna e, por outro lado, os efeitos
que elas produzem na interação imediata com o outro.
Aqui, somos lembrados da cena com as lagostas de Woody Allen em Noivo Neurótico,
Noiva Nervosa (Annie Hall). Ao tentar fazer um jantar romântico cozinhando lagostas vivas
que escapam da panela, a personagem acaba vivendo um momento marcante e muito
especial. O problema acontece quando, com outra pessoa, em outro momento, tenta
reproduzir o feito, propositalmente libertando as lagostas da panela. É claro que o evento não
funciona da mesma forma dessa segunda vez. Mais apegado ao conteúdo prévio – as lagostas
fugindo – do que conectado às possibilidades do momento atual do encontro, a personagem
cometeu o erro que queremos aqui evitar: acreditar que uma ação é boa ou ruim em si
mesma, independente de nosso interlocutor e da interação imediata.
Portanto, como terapeuta, avalie suas escolhas sempre de dentro do contexto
relacional da terapia, do ponto comum, construído conjuntamente em sua conversa com o
cliente. Isso significa estar preparado para abrir mão daquelas ofertas que não fizeram sentido
para o outro ou que não os ajudaram a caminhar em direção à abertura da narrativa e suas
possíveis novidades. Por isso, qualquer intervenção, por mais brilhante que pudesse ter
parecido em seu próprio diálogo interno, está sempre sujeita a se tornar instantaneamente
dispensável, se não te ajudar a caminhar junto com o outro.

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Ideia 3: Avalie frequentemente se a sua própria conversa interna está sendo responsiva à
conversa imediata.
O tempo da conversa – também chamado de “timing” – deve ser sempre um dos
principais critérios organizadores da atividade do terapeuta. Já ouviram a expressão “a coisa
certa na hora errada”? É disso que estamos falando. A escolha quanto ao que responder da
narrativa e expressões do cliente, deve ser sempre informada pelos aspectos mais emergentes
do encontro. Assim, o terapeuta deve sempre se perguntar se aquela pergunta ou fala que
construiu em sua própria conversa interna está conectada com o que está sendo conversado,
no momento em que a oferta se torna possível.
Esta avaliação se torna especialmente útil no exercício da presença radical junto ao
cliente (McNamee, 2015). Ou seja, uma vez que você compreende que precisa estar
totalmente atento e disponível a seguir os caminhos indicados pelo seu cliente, deixar-se
ocupar pela própria elaboração da sua conversa interna torna-se perigoso. Voltando ao
ditado, “uma pergunta/fala/hipótese certa na hora errada”, não só faz com que esta oferta
seja inútil no processo conversacional de vocês, como também dificulta o exercício da
presença radical, tão importante na postura de um terapeuta não-autoritário. Um bom jeito
de começar este exercício de avaliação quanto ao timing do encontro, é tomar nota do que
estiver pensando (de forma breve, para não correr o risco de se desengajar ainda mais da
conversa imediata), e assim, seguir atento e disponível para responder às emergências do
encontro.

Ideia 4: Faça ofertas ao invés de análises conclusivas.


Talvez você pense que para não ser um Terapeuta Sabe-Tudo, você não pode fazer
afirmações em sessão. Mas, não é bem assim. Compreendemos que o possível autoritarismo
de “saber tudo” não está em nenhuma afirmação em si mesma, mas na postura e na forma
com que ela é feita. A mesma frase – por exemplo, “isso que você está dizendo me faz pensar
que liberdade é um valor importante pra você” – pode ser entendida pelo cliente como uma
afirmação inegociável da sua parte ou como uma oferta, passível de negociação. A diferença
está tanto no tipo de relação estabelecida com o cliente, na forma como você construiu sua
hipótese em seu diálogo interno, e também na maneira como escolhe contá-la para o cliente
naquele momento. Idealmente, em uma relação dialógica bem construída e nutrida ao longo
do tempo; com uma hipótese que surge em seu diálogo interno como uma possibilidade, e

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não uma verdade; e com uma fala sobre ela em tom de exploração conjunta; podemos fazer
afirmações sem correr o risco de sermos Terapeutas Sabe-Tudo.
Quanto aos cuidados que devem ser tomados neste processo de construção da
hipótese, leia novamente as Ideias 1 e 2. Elas são preciosas neste processo de aprender a
reconhecer o quanto suas falas e perguntas estão abertas e disponíveis à negociação de
sentidos com o cliente. Em relação à forma como você expressa suas ideias para o cliente,
aspectos muitas vezes negligenciados quando falamos sobre postura clínica, como o tom de
voz e as expressões não verbais do terapeuta, assumem aqui o status de máxima importância.
Uma forma interessante de se atentar para estes aspectos, em como eles participam
da relação com o outro e que efeitos eles geram, é prestar atenção nas suas conversas
cotidianas. Avalie suas sensações e respostas, com relação ao modo como o seu interlocutor
age ao te fazer sentir convidado ao diálogo, dando a entender que está aberto à negociação.
Em contraste, preste atenção a que elementos da interação te convidam a uma postura
reativa, de defesa ou refutação de seu argumento. Como terapeuta, tome notas sobre quais
posturas parecem fazer o primeiro tipo de convite e, então, utilize esse conhecimento para se
engajar com seus próprios clientes.

Ideia 5: Transforme suas hipóteses em perguntas.


É impossível não formular hipóteses enquanto conversamos com nossos clientes. Aliás,
esse é um processo natural de estar em conversa em qualquer contexto. Enquanto ouvimos
o outro, formulamos entendimentos sobre o que está sendo dito. Especificamente
relacionada à atividade da terapia está o fato de que somos treinados em nossa formação
para produzir esses entendimentos a partir de uma base interventiva. A premissa é essa: como
especialistas, precisamos entender o que se passa para decidir o que fazer. Contudo, já
reparou como a busca por uma hipótese pode te desengajar da conversa? É como se sua
atenção estivesse focada em “pescar” aspectos específicos que te ajudem a formular alguma
hipótese, deixando de fora a riqueza dos detalhes e a forma particular do cliente de te contar
isso. Ou, pior ainda, quando você já acha que descobriu do que se trata a fala do cliente e fica
só esperando o momento certo de intervir a partir daquela verdade que você e seu
conhecimento especializado estabeleceram sobre ele.
Nessa hora, nós achamos muito importante o lembrete de que você pode criar
entendimentos, mas que não precisa entender rápido demais. Então, a sugestão é essa: utilize

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suas hipóteses como produtos inacabados e foque em como elas funcionam para o
desdobramento da conversa (Lannamann & McNamee, 2011). Para cada entendimento que
você chegar sozinho, questione-se: se eu tomar essa hipótese como possibilidade, e não como
verdade, que perguntas ela me inspira a fazer? Sobre quais aspectos dessa história a hipótese
me deixa curioso? Essa é uma habilidade a ser desenvolvida. Como supervisores, percebemos
que jovens terapeutas costumam ter dificuldades com essa transformação, mas aprendê-la é
talvez uma das capacidades mais libertadoras para sua prática. Como exercício, oferecemos o
exemplo a seguir.
Imaginemos que, durante a conversa com um cliente, você chegou ao entendimento
de que ele está em depressão. Não foi o cliente quem usou essa palavra: ela chega até seu
diálogo interno a partir de seu conhecimento especializado. Contemple-a por um momento.
Que aspectos da fala do cliente te inspiraram essa hipótese? O que mais você pode perguntar
sobre esses aspectos específicos? Se você fosse utilizar outros nomes, ao invés de depressão,
que outras possibilidades te surgem? Tente agora transformar essa palavra em uma imagem
conectada ao que o cliente está te contando neste momento. Que metáforas ela te inspira?
Isso não significa dizer que sua hipótese esteja errada. Nem que esteja certa. Significa, sim,
afirmar que ela pode ser mais produtiva abrindo e explorando novos caminhos de conversa
do que simplesmente fechando-o em apenas um.

Ideia 6: Segure o seu momento.


Pegamos emprestada essa frase de um meme atual, que diz: “Segura o seu momento.
Você tá emocionado”. Utilizado em contextos de brincadeira entre amigos, o meme provoca
a ideia de que uma pessoa está agindo sem pensar muito, tomada por alguma emoção
possivelmente desconectada do contexto imediato e que supostamente seria mais adequada
à situação. Muitas vezes, enquanto ouvimos nossos clientes falarem, ficamos emocionados de
diferentes formas: somos tocados por suas palavras, às quais nossos corpos reagem e que nos
ajudam a estar com as pessoas e produzir sentidos com elas sobre suas vidas. Emocionar-se,
nesse sentido, não é um problema, senão um grande recurso para o terapeuta (Shotter, 2012).
Porém, quando essa emoção te desconecta da conversa e te faz pensar que você
simplesmente precisa falar sobre ela, é hora de se lembrar de nossa dica bem-humorada e
pensar: “terapeuta, segure o seu momento”.

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MARINA ARANTES & PEDRO MARTINS 7 IDEIAS PARA NÃO SER UM TERAPEUTA SABE-TUDO

Nós sabemos que, do contexto da emoção, surge um desejo grande de oferecer o


próprio entendimento para o cliente e seguir a conversa a partir dele. Contudo, convém
lembrar que, muitas vezes, o que o cliente mais precisa é que aquele momento seja apenas
sobre ele, para que possa falar de forma pausada, refletir sobre quais palavras melhor se
encaixam para contar sua história e, mais ainda, poder se ouvir falando em voz alta quanto à
sua questão. O processo de organizar uma narrativa na audiência do terapeuta e encontrar o
que parece se “encaixar” melhor não é nada banal. De fato, Shotter e Katz (1999) afirmam
que é deste processo que se constitui o mais importante da terapia: construir um contexto
em que o cliente possa ouvir o que já sabe de novas maneiras, conectar pontos já conhecidos
de formas inéditas e, assim, reconhecer em sua história novidades. Sempre que você estiver
“emocionado” dessa forma, precisando falar, pergunte-se: essa fala está a favor de quem? Ela
serve para ampliar para o cliente ou simplesmente aquietar a minha própria emoção?
Dependendo da resposta, você ganha um senso renovado do que fazer.

Ideia 7: Compartilhe a escolha do caminho com seu cliente.


Nossa última dica diz respeito ao que McNamee (2001) chama de “reflexividade
relacional”. Ela funciona como um antídoto prático à noção de que o terapeuta sabe tudo,
incluindo quais são os melhores caminhos para a sessão. É muito comum em nossa prática
pensarmos em diferentes possibilidades de como dar prosseguimento à conversa terapêutica.
Se tomarmos nossas perguntas como intervenções que ajudam a construir a história contada
na sessão, então, ficamos cientes da dimensão ética contida nessas escolhas. Quando
decidimos falar “a”, e não “b”, guiamos a sessão para um determinado caminho que terá
efeitos. Uma boa ideia, portanto, é compartilhar com o cliente a escolha desse caminho.
Afinal, se você tem mais de uma boa ideia que lhe parece útil, por que não as
compartilhar todas e deixar que o próprio cliente decida qual tem mais apelo para si? Na
prática, isso significa dizer abertamente para o cliente algo como: “Eu estou pensando em três
possibilidades diferentes de como seguirmos nessa conversa. Vou compartilhar as três com
você e te pedir que me ajude a decidir qual parece mais útil para esse momento”. Assim como
em outras dicas deste texto, essa ideia aparentemente simples carrega uma aposta na
contramão da cultura tradicional das práticas de cuidado. Isso porque o terapeuta utiliza seu
lugar de especialidade – o de quem pode decidir os caminhos da conversa, a partir de seu
conhecimento – para descontruir a noção de que é o especialista único naquela conversa.

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MARINA ARANTES & PEDRO MARTINS 7 IDEIAS PARA NÃO SER UM TERAPEUTA SABE-TUDO

Enquanto atendemos, experimentamos sempre como um alívio a possibilidade de seguir a


conversa por um caminho que o próprio cliente nos ajudou a escolher.

Não ser um Terapeuta Sabe-Tudo é uma tarefa tão potente quanto desafiadora. Afinal,
abrir mão da postura do especialista, que de alguma forma garante contornos mais rígidos
para a conversa terapêutica, exige do profissional uma atenção contínua a duas posições
distintas que ele ocupa naquela interação: a de anfitrião e a de convidado. Essa metáfora de
Anderson (2012) nos convida a pensar que, enquanto especialista do processo conversacional,
o terapeuta deve se posicionar como um bom anfitrião, fazendo o cliente se sentir confortável
e acolhido, ao saber que lhe serão oferecidas as condições necessárias para que tenham um
bom encontro. Neste papel, cabe ao terapeuta oferecer um contexto de conversa fluído o
suficiente para que o seu convidado se sinta à vontade, e firme o suficiente para que ele
reconheça que, quando necessário, será conduzido por aquele que o recebe.
No entanto, ao mesmo tempo em que é convidado do terapeuta no contexto clínico,
o cliente é também aquele que recebe o profissional para ouvir e acompanhar a sua história,
posicionando-o também como convidado naquela conversa. Nesta posição, o terapeuta deve
cuidar para ser um convidado agradável, do tipo que receberia um novo convite ao final do
encontro: ao mesmo tempo interessado e respeitoso, curioso e paciente, falando com
generosidade e ouvindo com atenção. Entendemos que as sete ideias apresentadas neste
capítulo te ajudarão a seguir como bom anfitrião e bom convidado de seus clientes,
acompanhando-os com a disponibilidade e a sensibilidade intrínsecas a uma boa parceria de
conversa. A fim de ilustrar como estas sensibilidades informam a conversa interna e as
escolhas feitas por uma terapeuta em sessão, no próximo capítulo compartilhamos com você
a análise do processo de reflexão e tomada de decisão da profissional, por meio de um
exercício imaginativo.

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Implicações Clínicas de não ser um Terapeuta Sabe-Tudo

Vamos fazer um exercício de imaginação. A transcrição a seguir foi retirada de um


episódio da série Gilmore Girls: Um Ano Para Recordar2. Rory é uma mulher de 32 anos que
sempre foi muito estudiosa e, até há algum tempo, teve sucessos importantes em sua carreira
de jornalista, tendo frequentado uma universidade de prestígio e publicado em colunas de
revistas renomadas. Porém, no momento da cena transcrita a seguir, ela está há alguns meses
tentando trabalhar sem sucesso, se envolvendo em alguns projetos que não vão para frente
e tendo que participar em outros que não acredita. A cena se passa em um hotel onde Rory
vai encontrar sua mãe, Lorelai, que é também sua melhor amiga. Rory chega com uma
aparência desgastada e está muito agitada enquanto fala, andando de um lado para o outro,
contando para a mãe que acabou de ter sua primeira noite de sexo casual na vida. Ela parece
perturbada.
Imagine que Rory é a sua cliente e está te contando essa história. Enquanto você a
acompanha, tome notas sobre o que te chama atenção e se destaca para você. Como
terapeuta, que conversas você gostaria de ter com ela?
R: Sexo casual. Foi o meu primeiro sexo casual.
L: Só é casual se não for vê-lo de novo. Você vai vê-lo de novo?
R: Ele estava com uma fantasia de Wookiee3! Não. Eu não vou encontrá-lo de novo!
L: Isso parece meio duro.
R: Sexo casual. Eu tenho 32 anos e só estou fazendo isso agora?
L: É a sua primeira vez, né?
R: Sim.
L: Uau.
R: Por quê?
L: Achei que a faculdade fosse pra isso.
R: Exatamente. Estou atrasada. (...) Perfeito. Estou atrasada em tudo.
L: Não está não.
R: Mesmo? Eu não tenho carreira, nem apartamento. Mas, olha só, sexo casual é
comigo mesma!
L: Você está sendo dura demais consigo mesma.
R: Minha vida amorosa é um desastre. (...) Logan.
L: Logan Huntzberger? Eu pensava que ele era noivo daquela herdeira francesa.
R: Ele é.
L: Oh.
R: Eles não vivem juntos. Ela vive em Paris.

2
Disponível no serviço de streaming Netflix. Criada por Amy Sherman-Palladino.
3
Personagem fictício do universo Star Wars.

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L: Mas, eles estão noivos.


R: Sim.
L: E eles vão se casar.
R: Sim.
L: Bem, se te faz se sentir melhor, isso é muito mais vadia do que sexo casual.
(...)
R: Eu estou estragando tudo. Minha vida, minha carreira... Eu ando pra lá e pra cá sem
um plano, uma lista ou sem ideia do que fazer. Isso é o Karma. É por isso que a Condé
Nast não me responde. Eles reconhecem uma fracassada quando veem uma.
(...)
L: Vem aqui. Senta. O que está acontecendo aqui? Essa não é você. Entrando em pânico.
Mentindo...
(...)
R: Eu estou me sentindo muito perdida esses dias. Esse ano inteiro, parece que o chão
vai se abrir a qualquer momento e eu vou cair.
L: A vida tem sido bem boa com você até agora. Era sua vez de enfrentar alguns
problemas. Altos e baixos, filha. Quanto mais velha você for, mais vão ter.
(...)
R: Eu sou só uma grande fracassada pegadora de Wookiee e sem futuro.

Como vemos, são muitas as possibilidades de conversar com Rory a partir dos pedidos
implícitos em sua fala, certo? Anote quais são suas hipóteses e reflita um momento sobre elas.
O que mais te chamou atenção? Sobre o quê você fica tentado a conversar com sua cliente?
Para participarmos mais ativamente dessa conversa, levantamos três hipóteses que nos
ocorreram enquanto escrevemos. Lembramos que, coerente com o que temos argumentado
ao longo deste livro, não há uma resposta correta ou forma específica de convidar nossa
cliente imaginária para esta conversa. Vamos imaginar alguns caminhos possíveis, a fim de
ilustrar nossas ideias sobre como não ser um terapeuta sabe-tudo, e esperamos que isso te
inspire a pensar sobre os seus próprios caminhos. Especialmente, é digno de nota que,
qualquer caminho só poderia fazer sentido de fato dependendo das respostas oferecidas por
Rory no momento da sessão.
Como ela percorre por muitas possibilidades em sua fala, são muitas as ideias que nos
ocorrem enquanto a ouvimos falar. Aqui estão alguns exemplos:
• Rory se cobra demais. Ela é muito dura consigo mesma.
• Rory está vivendo muitas coisas pela primeira vez e, pelo que diz de sua história de
vida, não está acostumada a não saber o que fazer.

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• Rory vive sua história a partir de muitas pressões relacionadas à sua geração: ser
mulher e viver sua sexualidade; ser jornalista em um mundo que desvaloriza essa
profissão; ter 32 anos e muitas expectativas sobre o que isso significa.
Perceba quantas possibilidades de conversa se abrem enquanto a escutamos. Nossa
experiência nos mostra que ter essa quantidade de hipóteses e ideias enquanto um cliente
fala pode ser intenso e nos desconectar da conversa. Então, uma primeira ideia
potencialmente útil seria a de seguir conectado com a conversa externa, mais do que a interna.
Enquanto ouvimos Rory, tomamos nota sempre que algo nos ocorre, de modo que, ao invés
de ficarmos pensando sobre aquela intervenção supostamente ótima, podemos seguir o fluxo
das ideias da cliente. Fazer anotações breves sobre o que pensamos, nos ajudaria nesta tarefa.
Sua fala agitada, contudo, nos toca e nos emociona, produzindo uma vontade de
intervir, falar alguma coisa que possa acalmá-la. Mas, então, lembramos que talvez desabafar
sem ser julgada talvez seja o mais importante para ela, neste momento em que o julgamento
(ou o medo dele) faz parte da construção do problema. Assim, seguramos nosso momento e
simplesmente a ouvimos com toda a nossa atenção. Seguimos tomando notas quando
necessário até que alguma pausa natural se instale na conversa e tenhamos a oportunidade
de falar algo.
E agora, o que fazer com tantas hipóteses e ideias sobre o que conversar? Ao invés de
decidir por conta própria, podemos compartilhar a escolha do caminho com a cliente. Falamos
algo nesse sentido: “Rory, enquanto eu te ouço, penso em várias possibilidades de como
continuar essa conversa. Pensei em compartilhar algumas delas para você me ajudar a decidir
por onde seguimos. O que acha?”
Se ela concordar em nos ouvir, poderíamos seguir apresentando nossas reflexões,
falando sobre elas como ofertas, ao invés de análises conclusivas. Algo como: “Nós pensamos
em três caminhos que poderíamos seguir. O primeiro, tem a ver com a forma como você
parece se cobrar. Ficamos pensando em como isso participa do que está vivendo neste
momento. O segundo tem a ver com a quantidade de coisas que você está vivendo pela
primeira vez: sexo casual, dificuldades no trabalho. Nos perguntamos: como esse ineditismo
participa da dificuldade que está vivendo? Por fim, entendemos que há muitos aspectos do
seu dilema que têm a ver com um certo momento de vida da sua geração: sobre ser mulher
de uma determinada idade, sobre ser jornalista no ano de 2016, enfim... Talvez seja uma

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possibilidade falarmos sobre essas diferentes questões e como elas funcionam para você
individualmente. Algum desses caminhos te parece útil?”.
Fazemos essas ofertas entendendo que Rory pode, inclusive, não achar utilidade em
nenhuma delas. Aqui, não nos apegarmos a nenhuma das nossas ofertas e perguntas é um
lembrete importantíssimo para seguirmos caminhando no processo de eleger o conteúdo da
história que parece ser mais relevante para Rory, naquele momento. Suponhamos que ela
escolha o caminho que diz sobre sua cobrança consigo mesma. Ao invés de compartilhar o
que já pensamos, há uma maneira de tornar essa conversa ainda mais dialógica: podemos
começar nos interessando pela própria escolha de Rory por esse caminho. Por que ele lhe
pareceu promissor? Enquanto ouvimos Rory se explicar, nos dispomos a refletir com ela e a
transformar nossos próprios entendimentos originais.
Partindo, então, dessa hipótese de que Rory é muito dura consigo mesma, que
perguntas podemos fazer? Muitas. Mas, como precisamos tomar decisões – apostando em
alguns caminhos, ao invés de outros, citamos algumas como exemplo: Desde quando você se
lembra desta cobrança participando da sua vida? Se esta cobrança tivesse voz própria e
pudesse falar, o que ela diria? A voz dela se parece com a de alguém que você conhece? De
quem? O que esta cobrança já trouxe de bom para a sua vida? O que/quanto ela já te custou?
Você se lembra de alguma história importante em que a cobrança não esteve presente? Se
você magicamente pudesse olhar para sua situação sem a cobrança, o que veria diferente? O
que esta cobrança está tentando te mostrar sobre o que você valoriza e deseja para a sua
vida?
É importante lembrar que escolhemos fazer cada uma dessas perguntas na medida em
que o fluxo da conversa nos permite chegar até elas, e com disposição para sermos corrigidos.
Obviamente, não podemos nos esquecer da importância do timing da conversa terapêutico.
Queremos garantir que vamos construir cada possibilidade em conjunto com nossa cliente,
passo a passo, para que ela possa ter sua integridade respeitada e, assim, construirmos juntos
uma interação dialógica. Dessa forma, oferecemos tempo para que cada pergunta ou oferta
sejam feitas. Esperamos por sua resposta. Avaliamos os seus efeitos. Só então seguimos
adiante. Lembre-se: os seus movimentos e escolhas na conversa devem ser sempre
informados pela resposta imediatamente anterior da sua cliente. O foco está no
desdobramento, na construção conjunta, e não na intervenção em si.

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Conclusão: Ideias Para Ser um Terapeuta Sabe-Junto

Em seu workshop ministrado em São Paulo em 20164, Harlene Anderson fez o seguinte
convite aos terapeutas presentes: imaginem-se vendados enquanto conversam com seus
clientes, deixando-se ser guiados por eles enquanto caminham juntos. “Confie no seu guia”,
ela dizia, ao explicar que é o cliente que nos diz se estamos caminhando na direção certa, se
estamos indo rápido ou devagar demais, e até onde podemos ir. Por isso, o exercício da
postura colaborativa em terapia é um exercício de confiança mútua, que exige cuidado,
atenção, engajamento e sensibilidade, enquanto nos movimentamos juntos no diálogo.
Assim como a pessoa vendada se permite ser conduzida pelo guia, ele também se
permite acompanhar proximamente por aquele que está guiando. Por isso, enquanto
caminham juntos, torna-se difícil distinguir quem está acompanhando quem. Esse é o tipo de
interação que queremos alcançar nas conversas com nossos clientes, como Terapeutas-que-
Não-Querem-Saber-Tudo. A construção dos caminhos em uma conversa dialógica é feita de
forma mútua. Compartilhamos a responsabilidade pela boa conversa e por quem nos
tornamos enquanto dela participamos (Anderson, 2012).
Segundo Anderson (2019), não há como produzir mudanças significativas na vida do
cliente sem que o terapeuta também se transforme ao longo do processo. Ao abrir mão de
saber a priori qual a forma mais adequada de ajudar o seu cliente, e em qual ponto esperam
chegar, o terapeuta se permite surpreender com as novidades que surgem ao longo do
encontro. Descobre, assim, narrativas, intervenções e efeitos até então inimagináveis em sua
própria conversa interna. Por esta condição de acompanharmos um ao outro, entendemos
que não pensamos e conversamos sobre os clientes, mas sim, com eles. Essa condição de saber
com é o que torna uma conversa dialógica possível (Shotter, 2012). Ao invés de um Terapeuta
Sabe-Tudo, queremos ser um Terapeuta Sabe-Junto.
É claro que, assim como a pessoa que está vendada, que conta com as suas próprias
percepções enquanto caminha, mesmo sendo guiada por outra pessoa, o terapeuta também
tem seus movimentos informados por tudo aquilo que o constitui enquanto profissional. Por
exemplo, a teoria que sustenta sua prática, suas experiências prévias e seus próprios valores.

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Relacionamentos e Conversações Transformadoras em Terapia, Consultoria, Educação e Pesquisa. 05 e 06 de
Agosto de 2016. Organização: Interfaci.

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Sabemos que não é possível e nem desejável abandonar todos estes organizadores a fim de
não ser um Terapeuta Sabe-Tudo. Muitas vezes, estar em colaboração com o cliente exige que
nos posicionemos quanto a algum assunto. É por isso que não precisamos (e nem devemos)
eliminar por completo nossas especialidades e o que sabemos. Afinal, todos os nossos
recursos podem se constituir como forma de sermos responsivos à conversa imediata e
provocar efeitos interessantes na sustentação do movimento dialógico (Doricci, Crovador &
Martins, 2017).
A diferença básica está entre o terapeuta utilizar sua especialidade e conhecimento
sobre o outro, em um dado momento, porque essa é a coisa a se fazer (Terapeuta Sabe-Tudo)
ou porque, como resposta a um pedido do cliente, naquele momento, tal conhecimento pode
ampliar possibilidades para caminharem juntos (Terapeuta Sabe-Junto).
A esta altura, você deve ter notado que a palavra “postura” participou de uma forma
importante neste livro. Longe de ser uma escolha casual, o uso da palavra nos ajuda a reiterar
que o propósito de todas as ideias que apresentamos aqui devem estar para o terapeuta como
formas de se orientar na relação com seus clientes, e não como técnicas a serem replicadas
indiscriminadamente. Não saber deve ser entendido como uma postura filosófica, um jeito de
se orientar na conversa a partir de um repertório de indicadores sensíveis que direcionam a
prática do terapeuta em direção à uma forma mais ética e justa de colaborar com os seus
clientes. A ideia de colaboração que nos inspira – seja na construção deste material, seja nos
nossos consultórios – está mais relacionada com a forma como cuidamos do processo
conversacional, do que a um jeito específico de estar na conversa (Anderson, 2019).
Ao mesmo tempo, nossa aposta, com este livro, está em compartilhar algumas formas
que têm nos ajudado nos mantermos atentos a sensíveis a essa postura enquanto
conversamos com nossos clientes. Ocupar a posição de um Terapeuta-que-Não-Sabe-Tudo,
não quer dizer ser um Terapeuta-Não-Sabe-Nada, mas sim, ser um Terapeuta Sabe-Junto. Dito
de outro modo, argumentamos que tudo aquilo que o terapeuta sabe deverá ser entendido
enquanto uma possibilidade dentre outras e, como tal, deve ser insistentemente medida e
avaliada a partir dos efeitos que provoca na conversa terapêutica. A postura do não saber não
é sobre não saber nada, mas sobre não saber mais ou saber melhor do que o seu cliente.
Nós sempre conseguimos fazer isso? Certamente não. Mantermo-nos na postura do
não saber se torna possível como prática cotidiana, enquanto observamos seus efeitos e,
principalmente, construímos entendimentos sobre nossa própria forma particular de estar

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nela. Assim, terminamos este livro com duas esperanças: que o leitor possa experimentar-se
terapeuta de novas formas a partir de sua leitura e que, na melhor de nossa possibilidade,
jamais façamos jus a uma “homenagem” em músicas de Kelly Clarkson.

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Referências

Anderson, H. (2012). Collaborative Relationships and Dialogic Conversations: Ideas for a


Relationally Responsive Practice. Family Process, 51 (1), 8-24.
Anderson. H. (2019). Prática colaborativo-dialógica: Uma orientação para maneiras de ser e
vir a ser com outros convidando o potencial para generatividade e transformação. In
M. A. Grandesso (Org.) Construcionismo social e práticas colaborativo-dialógicas:
contextos e ações transformadoras (pp. 259-270). Curitiba: CRV.
Anderson, H., & Goolishian, H.A. (1998). O cliente é o especialista: a abordagem terapêutica
do não saber. In: S. McNamee & K. J. Gergen. A terapia como construção social (pp. 147-
171). Porto Alegre: Artes Médicas.
de Shazer, S. (1984). The death of resistance. Family Process, 23, 11-17.
Doricci, G. C., Crovador, L. F. & Martins, P. P. S. (2017). O especialista relacional na terapia
familiar de fundamentação epistemológica construcionista social. Nova Perspectiva
Sistêmica, 59, 37-51.
Littlejohn, S., & Foss, K. A. (2008). Theories of human communication. Boston, MA: Cengage
Learning.
Lannamann, J. W., & McNamee, S. (2011). Narratives of the interactive moment. Narrative
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McNamee, S. (2015). Radical Presence: Alternatives to the therapeutic state. European
Journal of Psychotherapy & Counselling, 4, 373-383.
McNamee, S. (2001). Reconstruindo a terapia num mundo pós-moderno: Recursos
relacionais. In M. M. Gonçalves & O. F. Gonçalves (Orgs.) Psicoterapia, discurso e
narrativa: A construção conversacional da mudança (pp. 237-264). Coimbra: Quarteto
Editora.
McNamee, S., Gergen, M., Camargo-Borges, C., & Rasera, E. F. (2020). The Sage Handbook of
Social Constructionist Practice. London: Sage.
Shotter, J. (2012). More than cool reason: ‘Withness-thinking’ or ‘systemic thinking’ and
‘thinking about systems’. International Journal of Collaborative Practices, 3(1),1-13
Shotter, J., & Katz, A. M. (1999). ‘Living moments’ in dialogical exchanges. Human Systems, 9,
81-93.

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Sobre os Autores

Marina Arantes e Pedro Martins


são fundadores do Projeto Intervenções Terapêuticas.
www.intervencoesterapeuticas.com.br/home
construcionismo.pratica@gmail.com

Marina Arantes é psicóloga pela Universidade Federal de Uberlândia e mediadora de conflitos


pelo Instituto Conversações. É membra associada do Taos Institute. Como psicóloga clínica,
atua com crianças, adultos e famílias em uma prática sensível às premissas do
construcionismo social sobre realidade e produção de sentidos. Está envolvida em diferentes
contextos de formação, comprometidos com a disseminação das ideias construcionistas
sociais: como co-supervisora de alunos da Universidade Federal de Uberlândia trabalhando
com populações vulneráveis em diferentes contextos, como coordenadora e docente no curso
“Construcionismo Social na Prática”, e como supervisora clínica de outros terapeutas. É co-
fundadora e docente do Instituto Verso: Mediação de Conflitos, onde trabalha como
mediadora, além de articular múltiplos contextos que têm por objetivo a propagação de
formas alternativas de resolver e entender conflitos. CRP 04/41234.
E-mail: marina.arantes.s@gmail.com

Pedro Martins é doutor e mestre em Psicologia pela Universidade de São Paulo e psicólogo
pela Universidade Federal de Uberlândia. É membro associado do Taos Institute. Hoje, atua
como psicólogo clínico na cidade de Uberlândia - MG, onde atende indivíduos, famílias e casais
a partir de uma perspectiva construcionista social. Coordena o curso “Construcionismo Social
na Prática”, no qual anualmente oferece uma introdução aos principais conceitos teóricos e
práticos relacionados à construção social. Além disso, é docente convidado na formação em
Terapia Familiar do Instituto ConversAções, em Ribeirão Preto. Sua pesquisa e prática estão
voltadas para o trabalho com famílias em contextos clínicos e de saúde mental. Atuou como
pesquisador no Laboratório de Pesquisa e Estudo em Práticas Grupais da FFCLRP-USP e como
colaborador no Programa de Atendimento às Famílias do Hospital-Dia de Psiquiatria do
Hospital das Clínicas da USP de Ribeirão Preto. Em 2012 e 2015, foi pesquisador visitante na
University of New Hampshire, Estados Unidos da América. CRP 04/48637.
E-mail: pedropablomartins@gmail.com

Como citar:
Arantes, M., & Martins, P. (2020). 7 Ideias para não ser um Terapeuta Sabe-Tudo. Uberlândia:
sem editora. Disponível em: www.intervencoesterapeuticas.com.br/sabetudo

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No campo da terapia, colaboração poderia ser uma daquelas palavras
que, eventualmente, caem na graça e na boca das pessoas, e se
tornam praticamente vazias de significado - uma palavra que,
repetida tantas vezes, perde sua força e importância. Igualmente,
não saber poderia ser um conceito que parece tão bonito na teoria,
mas tão distante de ser reconhecido e praticado. Na contramão
disso, com este livro - de forma compreensível e acessível - Marina
Arantes e Pedro Martins nos presenteiam com a oportunidade de
reconhecer a potência dessas ideias, ao mesmo tempo em que
oferecem possibilidades concretas para as encarnarmos como
postura em nossa prática. Para terapeutas iniciantes, ele é um bom
orientador - um mapa, que apesar de jamais substituir o território
original e as possibilidades de caminhos a serem percorridos na "vida
real", oferece caminhos certeiros. Para terapeutas mais experientes,
um lembrete de como "não ser um terapeuta sabe-tudo" é um
horizonte a nunca ser perdido de vista em nossa prática. Uma leitura
indispensável para todos que desejam construir bons diálogos com
seus clientes!

Ana Flávia N. Manfrim


Mestra em Psicologia pela
Universidade Federal de Uberlândia

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