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Tornar-se

terapeuta
exercícios de presença e escuta

Gabriela F. Almeida
Larissa Abrão
Para colegas terapeutas,
uma pergunta que não pode descansar:
“Como melhorar presença e escuta?”
GABRIELA FRANCO DE ALMEIDA
LARISSA GUIMARÃES MARTINS ABRÃO

TORNAR-SE TERAPEUTA:
EXERCÍCIOS DE PRESENÇA E ESCUTA

E-BOOK COM DISTRIBUIÇÃO GRATUITA.


DISPONÍVEL EM: WWW.NOSSOGABINETE.COM
ILUSTRAÇÕES: MARIANE GONDIM
PRIMEIRA EDIÇÃO: JUNHO DE 2020
SEGUNDA EDIÇÃO: AGOSTO DE 2023

UBERLÂNDIA, MG

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO................................................................................................... pg.06
COMECE POR AQUI ............................................................................................. pg.07
INSTRUÇÕES DE
LEITURA................................................................................................................... pg.09
EXERCÍCIO DE PRESENÇA 01 - COMO O MEU CORPO ACOLHE A
CONVERSA?............................................................................................................. pg.10
EXERCÍCIO DE PRESENÇA 02 - É PRECISO LER ADÉLIA PRADO
..................................................................................................................................... pg.12
EXERCÍCIO DE PRESENÇA 03 - AS PALAVRAS E A MELODIA SÃO UM
CONVITE ............................................................................................................... pg.13
EXERCÍCIO DE PRESENÇA 04 - ATENÇÃO ÀS EXPECTATIVAS E ÀS
POSIÇÕES ............................................................................................................. pg.15
EXERCÍCIO DE PRESENÇA 05 - TODA PLANTA TEM COLO
.................................................................................................................................... pg.17
EXERCÍCIO DE PRESENÇA 06 - NÃO MATE CONVERSAS, FAÇA BOAS
PERGUNTAS............................................................................................................ pg.19
EXERCÍCIO DE PRESENÇA 07 - FIQUE COM A GENTE NESTE TEXTO
SOBRE O BUBER..................................................................................................... pg.21
EXERCÍCIO DE PRESENÇA 08 - JOGUEMOS NO TIME DO JORDAN
..................................................................................................................................... pg.23
EXERCÍCIO DE PRESENÇA 09 - FAZER-SE PRESENTE NA AUSÊNCIA
..................................................................................................................................... pg.24
EXERCÍCIO DE PRESENÇA 10 – REPETIR O TRECHO COMPLICADO
..................................................................................................................................... pg.25
EXERCÍCIO DE PRESENÇA 11 – QUAL O SOM DAS COISAS?
..................................................................................................................................... pg.26
EXERCÍCIO DE PRESENÇA 12 - SEMPRE QUE PUDER OU ACHAR
NECESSÁRIO, REVISITE TABACARIA
..................................................................................................................................... pg.28
EPÍLOGO.................................................................................................................. pg.29
NOTA SOBRE AS
AUTORAS................................................................................................................. pg. 31

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APRESENTAÇÃO

O Nosso Gabinete nasceu no final de 2019 e não tínhamos a mínima noção do que
estava por vir. Em 2020, quando a pandemia provocou em nós muitos ajustamentos, Gabi
fortaleceu a ideia de seguir na prosa digital com terapeutas e estudantes de psicologia
interessados em saber mais sobre o trabalho na clínica. Naquele momento, em que já
tínhamos experiência como professoras do ensino superior, percebíamos que a maioria
dos currículos acadêmicos deixava lacunas e rastros de insegurança no exercício da
prática psicoterapêutica. Ela e eu pensamos nos próprios percursos e em como nos fez
falta uma orientação mais diretiva e ao mesmo tempo não veementemente técnica pra que
pudéssemos fazer nossos passos clínicos menos titubeantes. Quase vinte anos separam a
minha graduação da graduação da Gabi e ainda assim essa orientação se mantinha como
uma ausência significativa nas academias.
Pensando nessa necessidade, Gabi deu início aos primeiros esboços do que seria
um texto para a interlocução com psicólogos em formação e terapeutas, que juntasse
linguagem poética, experiência clínica e a velha e boa arte de bem perguntar voltada para
a prática terapêutica. Quando ela me convidou, de fato, para colaborar com o texto, o tom
era todo dialógico e interativo e, claro, eu adorei que o projeto estivesse ficando com essa
cara!
Mantivemos o tópico introdutório, datado, para que não nos esqueçamos de que
sobrevivemos a um vírus que sacudiu nossas crenças e de que podemos celebrar uma das
profissões da interseção entre humanidades e saúde que mais crescem no país. A clínica
é um ofício de artesania que desafia perenemente nosso desejo de aprender. Queremos
que você se sinta instigada a estar diante do outro com curiosidade fresca e disposição
para as interrogações.

Larissa Guimarães Martins Abrão


Psicóloga Clínica, Professora e Doutora em Psicologia
Agosto de 2023

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COMECE POR AQUI

Mamãe achava estudo


a coisa mais fina do mundo.
Não é. A coisa mais fina
do mundo é o sentimento.
(Trecho de Ensinamento - Adélia Prado)

Há muito para se pensar sobre a nossa construção enquanto terapeutas.


Trabalhar na clínica é viver constantemente encarando o real do humano, como se
não bastasse a nossa íntima fragilidade cotidiana. A clínica escancara a imperfeição, o
sofrimento, a injustiça, mas, obviamente e para alívio de todos, nos abraça também com
as porções mais generosas da humanidade: o amor, a realização e a felicidade.
Enquanto mergulhamos numa história, nosso corpo está ali exposto, atento,
escolhendo com cuidado as palavras.
O quanto de conteúdo precisamos saber para fazermos a melhor apreensão e
devolutiva de tudo o que ouvimos de nossos clientes?...
No exercício de repensar a prática clínica e enquanto supervisora de estágio, surge
uma inquietação com cara de constatação. Parece haver algo anterior ao conteúdo
aprendido e, estranhamente, chego a uma conclusão: a clínica não é um lugar de saber
formal. Pelo menos não como a gente rapidamente se apressa a achar que é. Explico...
No ensino da Psicologia, temos a tarefa presunçosa, ousada e necessária de
ensinarmos sobre a clínica. Nesse movimento, me chama atenção, por exemplo, uma
aluna que chega com um caderno de pensamentos, que se senta em posição de escuta e
segura firmemente a caneta contra o queixo, atenta, me acompanhando com alguma
pergunta curiosa. Essa menina provavelmente já leu poesia, gosta de cinema, respeita a
arte e carrega consigo, além do caderno, algumas inconformidades. Se saio dessa esfera
e reparo em meus colegas terapeutas, algo semelhante acontece: aqueles que mais admiro
são notáveis em sua sensibilidade; são atentos, perspicazes. Obviamente, se eu anuncio
que os admiro, isso conta de mim, mas não tenho aqui a pretensão de neutralidade e
partilho com você essa “minha” (não inédita, nem brilhante) constatação: para sermos
bons terapeutas, precisamos de sensibilidade.
Chegamos então diante dessa palavra importante: sensibilidade. No corre-corre da
vida e das conversas, nos automatismos, no desejo de conhecer técnicas e dominar algum
saber, por vezes, a gente se perde, se acostuma, se anestesia. Mas parece que não dá pra

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ser um bom terapeuta sem nos sujarmos, sem brincarmos com as experiências, sem
habitar o cosmos e usufruir da vida. Ou, como diria o Manoel de Barros, é preciso
desaprender e apalpar as intimidades do mundo.
Este livro, então, surge dessa constatação: é preciso romper com o saber
conteudista e repetitivo e exercitar a sensibilidade da presença. Sensibilidade também é
exercício e a proposta aqui é nos posicionarmos mais atentos e curiosos no mundo e em
conversas através de exercícios que oportunizem nosso repensar de práticas e favoreçam
nossa aproximação com o estudo formal e a aplicação da Psicologia. A pergunta que
tomamos como norte para toda a elaboração dos exercícios é: “Como melhorar presença
e escuta?”.
Agradeço formalmente à minha amiga e colega de profissão, Ana Flávia Manfrim,
por ter me apresentado em uma bonita expressão algo que defendo tanto: o exercício de
presença. Ana Flávia, você está no meu hall de terapeutas sensíveis e admiráveis! É um
prazer dividir a mesa e risadas com você!
Convidei a professora Larissa Abrão, doutora em Psicologia e Gestalt-terapeuta,
para me ajudar na elaboração deste E-Book. Ela é uma das pessoas mais sensíveis que
conheço - com quem tive a sorte de me casar - e alguém que me ajuda há bastante tempo
a ser uma pessoa e uma terapeuta melhor.
Um beijo em todo mundo,

Gabriela Franco de Almeida


Doutora em Ciências da Saúde e Psicóloga clínica
Junho de 2020

_______________
Sobre o nome “exercício de presença”: a primeira vez que vi essa expressão foi em uma publicação da Ana
Flávia Manfrim, amiga citada acima. Ela escreveu espontaneamente, fruto de seu exercício pessoal,
reunindo palavras a partir de coisas que já vinha estudando e pensando. Exercitar a presença é a
possibilidade de nos situarmos em um momento (geralmente o momento presente) e nos entregarmos à
experiência, prestando atenção nos afetos provocados. De forma semelhante, na Esquizoanálise, há o nome
“experiência estética”. Nos escritos do Viktor Frankl, por sua vez, talvez pudéssemos identificar a
expressão “valores de experiência” (ou “valores de vivência”). Por fim, outra expressão de significado
semelhante e que muito me toca, foi criada pelo Paulo Brabo e é apresentada na ilustração de um homem
bebendo café: “a disciplina da pausa”. Se você conhecer mais expressões com significados parecidos, fique
à vontade para compartilhar comigo.

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INSTRUÇÕES DE LEITURA

1) Comece pela introdução acima.


2) Como este é um livro interativo, tenha sempre em mãos papel e caneta para fazer os
exercícios sugeridos. Quem acompanha o Nosso Gabinete provavelmente já tem um
caderninho separado para o aprimoramento na clínica, né?...
3) Achamos importante ressaltar que todo este livro é pensado a partir de uma pergunta:
“Como melhorar a presença e a escuta?”.
4) Às vezes nos utilizamos da palavra cliente e outras nos utilizamos da palavra paciente.
Mas, não se preocupe, elas não carregam aqui nenhuma diferença.
5) Se você é iniciante na Psicologia e ainda não atendeu, também não se preocupe: faça
os exercícios pensando em conversas importantes de seu cotidiano.
6) Se suje com esses exercícios.

UMA NOTA: Somos muito atentas às questões de gênero que atravessam a linguagem e
pra que esse não seja um texto que vai te cansar com vários malabarismos linguísticos
buscando contemplar os gêneros masculino e feminino na redação (p.ex., terminar as
frases com o/a), vamos considerar o fato de que a psicologia é uma profissão
majoritariamente feminina, que ainda somos um pouco menosprezadas pela gramática e
vamos assumir nossa conversa aqui usando o gênero feminino pra nos dirigirmos a você,
terapeuta. Isso não quer dizer que queremos dialogar apenas com psicólogas! Vocês,
rapazes, são muito bem-vindos, mas caso se sintam excluídos no estilo redacional,
aproveitem pra já começar um exercício importantíssimo na clínica: a empatia.

Boa leitura pra todas!

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EXERCÍCIO DE PRESENÇA 01 – COMO O MEU CORPO ACOLHE A
CONVERSA?

Para realizar um atendimento clínico nos paramentamos de intervenções e


recursos. Estamos com a teoria prontinha na cabeça ou desesperados procurando alguma
frase de efeito. Mas, antes até da palavra, falemos do corpo e de suas gentilezas.
Conta-se uma história interessante do ex-Presidente dos Estados Unidos, o
Abraham Lincoln. A secretária o avisa da chegada de um homem que estava agendado
para uma conversa e Lincoln se levanta, olha pela porta, e diz à secretária que não iria
recebê-lo. A secretária se desculpa, mas ousadamente questiona: “Por quê?... Ele estava
agendado”. O ex-Presidente explica sem rodeios: “Não fui com a cara dele!” A secretária
insiste: “Mas senhor Presidente, com todo respeito, que culpa ele tem de ter a cara que
tem?...” Lincoln responde: “Depois dos trinta anos, todo mundo tem culpa de ter a cara
que tem”.
Essa história está muito implicada com a perspectiva existencial, não é verdade?
Caberia aqui uma pergunta: “E a participação desse homem em ter a cara que tem?”.
A conversa aqui, terapeuta, está longe de ser uma conversa sobre beleza ou
estética. É uma conversa sobre simpatia.
Meu corpo acolhe o outro?... Como está a minha habilidade de acolhimento?...
Enquanto escrevemos este material, estamos passando pela pandemia causada
pelo Coronavírus e os psicólogos estão com um desafio: o atendimento on-line. Atender
on-line permite que a gente se olhe durante todo o atendimento e isso é interessante
demais. Enquanto escuto, como o meu corpo se posiciona? Transmito confiança?
Transmito segurança? Corporalmente tolero a palavra vinda do outro?
Bem, agora é com você... Papel e caneta em mãos, vamos para o primeiro
exercício:
A) Escolha uma conversa presencial que você considera muito especial. Pode ser
uma conversa de trabalho ou uma conversa pessoal.
B) Corporalmente, como você se posicionou nessa conversa?...
C) Gaste um tempinho pensando em uma pessoa que te deixa super à vontade.
Não vale namorad@ ou “ficante” (porque a ideia aqui não é a de erotização).
Corporalmente, como essa pessoa age com você?
D) Provavelmente você conhece vários psicólogos. Corporalmente, o que te
incomoda ou o que te chama atenção positivamente?

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E) Considerando unicamente sua postura corporal, como um paciente saberia que
você o está acolhendo?

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EXERCÍCIO DE PRESENÇA 02 – É PRECISO LER ADÉLIA PRADO (E
QUINTANA, LEMINSKI, DRUMMOND...)

Copiamos aqui o poema que foi citado lá na nossa introdução, Ensinamento. É de


Adélia Prado e está no livro Bagagem, de 1975. Não tenha pressa em passar por ele.

Minha mãe achava estudo


a coisa mais fina do mundo.
Não é.
A coisa mais fina do mundo é o sentimento.
Aquele dia de noite, o pai fazendo serão,
ela falou comigo:
"Coitado, até essa hora no serviço pesado".
Arrumou pão e café, deixou tacho no fogo com água quente.
Não me falou em amor.
Essa palavra de luxo...

A poesia está cheia de delicadezas e fala bem fundo das nossas humanidades, por
isso nos ajuda muitíssimo na clínica.
Poesia não precisa ser escrita, nem dita, ela está nas miudezas, nos gestos, nos
olhos. O outro, que recebe a sua poesia, muitas vezes não vai saber nomeá-la assim (nem
é necessário), mas vai reconhecê-la.
E não é só você, a poeta. Também é preciso enxergar a poesia no seu paciente, no
seu interlocutor. Às vezes ela vai estar num abraço mais demorado que seu paciente te dá
e que contém ali, no gesto, muitas lágrimas, muitos “obrigados” e a sensação de ter sido
visto e de estar te dando um presente que não se descreve.
A poesia treina a alma para traduzir o que não cabe no ordinário do verbo. Então,
demore-se nas poesias.

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EXERCÍCIO DE PRESENÇA 03 – AS PALAVRAS E A MELODIA SÃO UM
CONVITE

A vida é curta demais para


contentar-se com palavras.
E difícil demais, porém,
para dispensá-las.
(André Comte-Sponville)

Quando estamos diante da leitura de um texto ou dentro de uma conversa, a


palavra nos convida a habitar novas percepções, novos espaços, novos entendimentos e
isso pode ser mais profundo à medida que pensamos sobre os termos escolhidos. Numa
música, não apenas a palavra nos convida, mas a melodia (que é o seu conjunto de sons).
E aqui vai um alerta: as conversas também têm melodias.
Você já pensou em como escolhe a sua prosódia ao falar com seu paciente? A
prosódia é o ritmo, a melodia da fala. O que você acentua quando fala? Qual a tônica e,
portanto, a energia empregada no seu jeito de se colocar? Isso faz diferença, por exemplo,
para dizer que você acolhe, que presta atenção, que está viva diante do que te contam. A
prosódia produz reações, inclusive corporais, no interlocutor. Uma ilustração disso são
aquelas sessões em que o paciente sai dizendo que ali, na conversa com você, é o único
momento do dia em que ele se sente entendido. Por que será? Claro que não se trata só
da prosódia, mas comece a tomar consciência de como você fala. Certamente, vai
perceber que esse elemento é mais significativo do que você imaginava.
Com relação à fala do paciente, enquanto terapeutas precisamos (ou deveríamos!)
estar atentos à linguagem que ele usa e ao jeito como fala. Algumas perguntas precisam
ser feitas diretamente ao longo das sessões, em nossos rascunhos ou reflexões futuras:
Por que o paciente usou a palavra X e não a palavra Y?
Uma sugestão: Quando essa dúvida surgir, pergunte ao seu paciente. Isso é
importante, pois o convida a repensar de um jeito prático o uso das palavras e, na vida
dele, nas conversas diárias, pode alterar o rumo de muitos conflitos.
Bem, agora é para você se exercitar...
A) Puxe em sua memória uma de suas últimas conversas
“conflituosas”. Qual era o tema da conversa?
B) Como você entrou nesse diálogo? (aflito, irritado, calmo...)
C) Como seu interlocutor soube que você entrou dessa forma?

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D) Qual era a sua expectativa sobre seu interlocutor?
E) Qual era a expectativa de seu interlocutor sobre você nessa
conversa?
F) Repassando esse diálogo em sua cabeça, como você escolheu as
palavras para habitar essa conversa?
G) Se você pudesse trocar algumas palavras, quais palavras você
trocaria? Existiria outra forma de dizer o que você gostaria?

_________________________________

COMTE-SPONVILLE, A. Bom dia, angústia! São Paulo: Martins Fontes, 1997.

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EXERCÍCIO DE PRESENÇA 04 – ATENÇÃO ÀS EXPECTATIVAS E ÀS
POSIÇÕES

No exercício 03, especialmente nos itens C), D) e E), quisemos insinuar o óbvio:
as tais das expectativas... E como elas são perigosas, não?
Num diálogo, a expectativa muitas vezes nos coloca lentes para enxergar o outro
e, a partir dessas lentes, estabelecemos posições para as pessoas. Explicaremos melhor
esse tal conceito de posição: cada frase carrega em si algo não só sobre mim, mas sobre
como enxergo o outro. Portanto, quando falo, estou estabelecendo lugar para esse outro
existir diante de mim. Aqui, cabe um repeat: nos diálogos, estou constantemente
estabelecendo e negociando lugares para esse outro existir diante de mim. Se falo de um
jeito, posso colocar essa pessoa numa posição mais ou menos confortável, o que vai
provocar uma reação do meu interlocutor.
Para exemplificar e chegar diretamente ao ponto, a Gabi tem uma história
importante do consultório.
O paciente Guilherme (nome fictício) conta que a esposa é muito autoritária e em
muitas conversas complicadas, ele acaba explodindo. A expectativa dele que comumente
aparecia em relação à esposa nos diálogos, é a de que ela era controladora, dominadora.
Consequentemente, ela se irritava, também explodia, e a conversa acabava gerando uma
briga e algumas noites mal dormidas. Guilherme a descrevia unicamente como
controladora e ele entrava em muitas conversas se colocando assim, como o sufocado.
Portanto, qual era o espaço que ele oferecia para ela existir nessa conversa?... Ela poderia
ser outra coisa?... A expectativa dele enrijecia tanto a posição dela que parecia não haver
espaço para outro funcionamento. Além disso, ele estava muito focado em uma única
descrição sobre ela: “A minha esposa é controladora”.
Olhando melhor para as necessidades de Guilherme (quais eram essas
necessidades? Haveria alguma outra forma de cuidar disso?), ele começa a perceber o
quanto se coloca pouco participativo em muitas situações. Nesse sentido, outra descrição
para a esposa acontece: ela precisa acionar muitas vezes o modo cuidadosa, zelosa,
superprotetora, que se confundia para Guilherme com o modo controladora.
O que acontecia nos diálogos entre eles, então, era que Guilherme já esperava que
a esposa se comportasse sendo controladora, pois era assim que ele a via. Esta era uma
cristalização da posição da mulher tecida por ele – não quer dizer que ela era de fato isso
e apenas assim. Diante desse controle que o paciente atribuía à esposa, ele se encolhia,

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pois já imaginava que ela não lhe permitiria participar e, com isso, abria mais espaço para
o controle dela. Esse modo de se enxergarem, com posições rígidas e expectativas pré-
definidas de comportamento, criava um círculo vicioso de insatisfação um com o outro e
só reforçava os enrijecimentos.
Então, tendo dito tudo isso, vamos exercitar:
A) Escolha uma conversa conflituosa para repensar aqui - talvez essa
possa ser a mesma conversa escolhida no exercício 03... Como a sua expectativa
te coloca lentes para enxergar esse outro? Que lentes são essas?
B) Quais necessidades suas te ajudaram a construir essas lentes?
C) Qual lugar você estabelece para essa pessoa existir?
D) Como é o conforto desse lugar para você e para ela?
E) Negocie essa expectativa com você: como você poderia cuidar
melhor dessas suas necessidades mencionadas no item B)?

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EXERCÍCIO DE PRESENÇA 05 – TODA PLANTA TEM COLO

Toda planta tem colo, pode reparar. Olhe atentamente para alguma... O que
aconteceria se numa mágica você se aninhasse ali?... O que aconteceria se numa pausa, a
gente, de fato, só tomasse um café enquanto observa e acolhesse essas miudezas que
insistimos em atropelar?
O quanto nossas certezas e costumes nos impediriam de experimentar novas
porções da vida?... Quantas sensações potentes poderíamos experimentar se a gente
topasse um dia de sol?... Se a gente se afagasse no movimento e reparasse mais no que há
fora?...
Do jeito que o mundo vem se organizando, o convite é para produzirmos e
consumirmos mais, muitas vezes sem o filtro do próprio desejo. Por isso é preciso, muitas
vezes ao dia, parar para perceber se estamos mesmo presentes naquilo que fazemos. Buber
falava da relação Eu-Isso que estabelecemos nos diálogos e o que ele quer dizer com esse
termo é que objetificamos muito das nossas relações cotidianas, transformando o contato
em automatismo útil, sem que o encontro autêntico aconteça.
Além do Buber, Frankl também nos ensinou muito sobre isso e sugerimos que
você veja as videoaulas sobre eles lá no Nosso Gabinete no YouTube.
Um minuto a mais na obviedade automatizada e a gente não viu, não viveu.
Sair das obviedades, se desapegar de conceitos, repensar certezas. É isso o que
Manoel de Barros nos propõe em Uma didática da invenção, olha só...

Para apalpar as intimidades do mundo é preciso saber:


a) Que o esplendor da manhã não se abre com faca
b) O modo como as violetas preparam o dia para morrer
c) Por que é que as borboletas de tarjas vermelhas têm devoção
por túmulos
d) Se o homem que toca de tarde sua existência num fagote, tem
salvação
e) Que um rio que flui entre dois jacintos carrega mais ternura que
um rio que flui entre dois lagartos
f) Como pegar na voz de um peixe
g) Qual lado da noite que umedece primeiro
Etc
Etc
Etc
Desaprender oito horas por dia ensina os princípios

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Depois da ajuda do Manoel, vamos para o nosso exercício...
A) No poema a gente se sente meio embaralhado, não é? Parece que
não entendemos direito porque o autor nos convida a desaprender; a
desacostumar, a dar outros lugares para as coisas que habitualmente estamos
acostumados demais. O exercício, então é... Qual automatismo você poderia
quebrar? O que você poderia inserir ou retirar de sua rotina que te ajudaria a
quebrar esse automatismo?

(Um alerta: se na nossa agenda não cabem quinze minutos de


contemplação ou de meditação ou de leitura ou de carinho nas plantas ou em
seus bichos, muita coisa precisa ser revista. O “colo das plantas” também é
saúde mental.)

______________________________

BARROS, M. O livro das ignorãças. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1993.

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EXERCÍCIO DE PRESENÇA 06 – NÃO MATE CONVERSAS, FAÇA BOAS
PERGUNTAS

Que mania a gente tem de encher tudo com as palavras - mas nem sempre com as
melhores palavras, não é mesmo? Podemos trocar muitas afirmações, julgamentos e
conflitos por boas perguntas, mas muito frequentemente estamos interessados em ter
razão e funcionamos de forma maniqueísta: “X é melhor que Y”; “Se eu estou certa, logo,
ela está errada”. Numa tentativa de amenizar as coisas, a gente pode sacar de uma
costumeira pergunta: “Você quer ter razão ou ser feliz?”
Aqui em casa nós adoramos a frase do Paulo Brabo: “Não quero partir do
pressuposto que um de nós esteja certo e o outro errado, apenas porque discordamos”.
Ela combate qualquer recurso infantil de polarizar. Não é preciso concordar sempre, eis
o clichê salvador dos mundos e das relações. Podemos caber todos... Garçom, mais uma
cadeira, por favor.
Citamos esse exemplo claramente conflituoso e maniqueísta, de “X ser melhor
que Y”, mas rotineiramente perdemos a chance de nos encontrarmos com as pessoas e de
criarmos mais possibilidades de diálogo toda vez que matamos uma conversa com
afirmações (e certezas).
As perguntas nos ajudam a demonstrar disposição para estar com o outro:
funcionam como tentativa de compartilhar entendimentos e curiosidade. A gente
conversa melhor com as perguntas. Posicionar-me com as perguntas me ajuda e ajuda o
outro a repensar certezas, evitando muitas confusões. Que coisa boa é mudar e ampliar
uma ideia. Assim o mundo muda para a gente e as mesmices tediosas podem ser vencidas.
Guarde uma coisa: se você fizer uma afirmação radical, ela pode matar a conversa.
Se você fizer uma pergunta, por outro lado, ela pode abrir muitas possibilidades, gerando
um repensar e uma novidade. Isso costuma gerar uma agradabilidade, pois na curiosidade
queremos habitar; costuma ser gostoso.
Uma colocação que Larissa sempre usa para que um pensamento possa ser
compartilhado com o paciente, sem que isso se apresente como uma interpretação
autoritária, é algo do tipo: “o que você me fala me leva a pensar que... O que te parece?”.
Mas, cuidado. Sua pergunta demonstra e gera curiosidade ou ela é simplesmente
para você reafirmar certezas, razões e demonstrar o quanto sabe sobre algo? No
consultório devemos cuidar para que as intervenções afirmativas não sejam confundidas
com intervenções interrogativas. Veja só... Podemos perguntar para o paciente: “Isso é

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bom, não é?”. Se fizermos isso, nos adiantamos oferecendo um sentido, entregando com
a pergunta a resposta desejada, ideal. No fundo, então, essa intervenção não é uma
intervenção interrogativa, e sim afirmativa. Uma pergunta melhor, para esse exemplo,
seria: “Como é isso para você?.”. Há uma diferença gigante aqui.
Também é necessário que a suspensão das reações rápidas e óbvias seja uma regra.
Uma das situações clínicas vividas pela Larissa pode servir de exemplo: um paciente e
sua esposa estavam tentando ter um filho há algum tempo, sem sucesso. Numa sessão,
logo ao chegar, ele contou: minha esposa está grávida. Talvez, num primeiro ímpeto, a
reação da Larissa pudesse ser de alegria, ou de apresentar as felicitações, especialmente
por se tratar de uma batalha do casal. Mas, a escuta atenta da frase (que reúne, também
elementos do exercício 03, já mencionado), a percepção da baixa energia envolvida no
relato da notícia, levou a uma outra reação da terapeuta, que foi simplesmente a de
perguntar: “e como você está se sentindo?”. Essa pergunta, que não pressupôs a felicidade
do paciente, permitiu que ele falasse de todas as dúvidas e ambiguidades que estava
vivendo com um fato tão aparentemente desejado.
É preciso encontrar perguntas úteis para construirmos as diferenças que desejamos
em determinadas conversas.
Nesse clima, resolvemos propor a tarefa em forma de pergunta: Vamos para o
exercício agora?
A) Puxe em sua memória e anote uma situação em que você ou alguém
te perguntou algo, mas não houve de fato interesse pela resposta. Como você sabe
que não houve interesse pela resposta?
B) Agora puxe em sua memória uma conversa em que a pergunta foi
feita e houve interesse pela resposta. Como você sabe que houve interesse pela
resposta?
C) Na situação A e na situação B houve diferença na forma como a
pergunta foi elaborada?
D) Quais são as perguntas mais agradáveis para fazer e para ouvir?
Como essas perguntas são feitas? Elas geram curiosidade e a conversa se
transforma em mais gostosa ou matam a conversa?
E) No seu cotidiano, escolha alguém para treinar (essa pessoa pode ou
não ser avisada). Experimente habitar nesse diálogo com curiosidade, sem achar
que entendeu tudo rápido demais. Boas perguntas precisarão ser elaboradas
inevitavelmente.

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EXERCÍCIO DE PRESENÇA 07 – FIQUE COM A GENTE NESTE TEXTO
SOBRE O BUBER

Todo viver verdadeiro é encontro.


(Buber)

Martin Buber é um autor muito importante para a psicologia e oferece para a


prática clínica a noção do dialogismo. O dialogismo nos permite tomar a terapia como
diálogo, como conversa, e isso significa dizer que o terapeuta não se coloca acima, como
quem sabe mais, mas curioso para ouvir e aprender com o cliente sobre os fenômenos -
daí a importância das boas perguntas. No dialogismo a teoria não é dada a priori, antes
do paciente e do encontro terapeuta-cliente. É preciso encontro, é preciso conversa, é
preciso presença, e a verdade não está na fala do terapeuta oferecida em uma
interpretação, por exemplo.
Sobre o encontro, Buber é bastante enfático ao dizer que ele só acontece “pela
graça”. Significa que quanto mais a gente procura o encontro e, quanto mais você, como
terapeuta, procura se conectar e dizer coisas impactantes para causar boa impressão, mais
artificial você corre o risco de ser e, consequentemente, mais distante estará do encontro.
O terapeuta oferece como devolutiva a sua compreensão (“Interessante, eu não
entendi assim...”) e outras novas perguntas (“Como você imagina que seria?”; “O que te
faz pensar isso?”) que convidam o paciente a uma nova percepção. Afinal, é nossa função
não fazer descansarem as certezas.
Como a mudança vem, então? Ela vem a partir desse movimento de jogar luz ao
fenômeno contado. Poder (re)pensá-lo de outra forma, de outro lugar, com outra pessoa.
As percepções e descrições não são estáticas, estão constantemente em negociação com
as palavras, com o tempo, com os novos acontecimentos, com o compartilhar da
experiência. Ao nos oferecer a sua experiência, o cliente tenta apresentar o fenômeno com
a perspectiva que tem no aqui-agora. São as nossas intervenções que podem oferecer
outros jeitos de olhar, outras respostas e posições e, assim, permitem ao cliente sair da
condição de solidão. Nesse tempo-espaço em que estamos genuinamente juntos, o que há
de mais sagrado em meu cliente, toca o que há de mais sagrado em mim.
Voltando ao Buber e à sua história que muito influenciou sua teoria, ele passou
vinte anos afastado de sua mãe e em seus relatos revela que passou esse tempo procurando
o encontro com ela. Quando finalmente se viram, uma frustração acontece: não foi como

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imaginado, como ele havia “treinado” em seus pensamentos e expectativas. Tudo o que
ele escreveu sobre encontro autêntico tem relação, então, com esse momento de aguardar
o retorno da mãe. A reparação não acontece, há um encontro de certa maneira frio e ele
percebe a artificialidade. Ele esperou demais por esse momento, ensaiou como deveria
ser e as coisas no mundo real não fluíram. Buber aposta que o verdadeiro encontro só
existe na manifestação do autêntico entre as coisas. Sendo assim, ou as pessoas se
encontram ou não se encontram. A noção de encontro tem muita relação com a noção de
autenticidade: duas autenticidades se tocam e podem existir ali.
Tendo dito tudo isso e fazendo uma transposição para a nossa construção enquanto
psicólogas clínicas, resgatamos aqui a fala da Larissa em um vídeo sobre o Buber no
Nosso Gabinete (perdão pelo “merchan”!): “Se quero ser a terapeuta que vai tocar e dizer
tudo, o terapeuta perfeito (...) me afasto de uma autenticidade para entrar num papel.”.
Certamente a gente aprende a ser terapeuta com a experiência de outros, com a
vivência na clínica enquanto paciente de outros psicólogos, com as leituras, com os
vídeos, com os cursos, com as referências que nos inspiram. Mas ninguém pode ser o
terapeuta que você tem se tornado, só você.
Só a sua experiência pode contribuir com alguma diferença no mundo. Sim, tem
uma porção que só você pode fazer.

___________________________

BUBER, M. Eu e tu. São Paulo: Centauro. 8 ed., 2001. (Originalmente publicado em 1923)

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EXERCÍCIO DE PRESENÇA 08 – JOGUEMOS NO TIME DO JORDAN

O Exercício 07 pode te conectar com uma insegurança: Tem muita gente melhor.
OK, “ela” pode ser melhor, mas, o que a gente vai fazer enquanto isso? Algumas
outras perguntas talvez te ajudem a repensar... Você só conta sobre o mundo a partir
desses conceitos de “melhor” e “pior”? Só dá pra descrever assim?
Se você ainda não pegou a referência do título, “Jordan” é o Michael Jordan do
basquete. Basta uma olhada rápida na Internet para você ver o cara voar e descobrir que
ele foi um gigante, talvez tecnicamente o melhor até agora. Mas, e quantos outros caras
precisaram também jogar para o basquete acontecer?
Na história sobre Jordan e seu time, ouvimos as pessoas em volta contarem que
precisavam batalhar por um espaço próprio ao coabitarem com um jogador tão genial. Aí
entra a atitude a ser tomada por você: encontrar seu território de potencialidades
particulares. Jordan era incrível nos dribles, ficava no ar mais segundos do que todos os
seus colegas e adversários e tinha um poder enorme de liderança dentro do time, mas era
absolutamente suscetível ao ímpeto competitivo e tinha um modo de exortar os colegas
que beirava ao assédio moral. O que isso traduz, então? Que ninguém é genial em todas
as habilidades e que não vai funcionar se você quiser simplesmente se igualar ao outro
fazendo “como ele”. Se estamos falando aqui do quanto o autêntico é importante na vida
do seu cliente, isso serve para você também. Seja a melhor terapeuta que você consegue
a partir das SUAS habilidades, do SEU conhecimento de si. O parâmetro competitivo
pode ser fundamental no esporte, por exemplo, onde há de fato uma competição, mas na
sua profissão, cabe perguntar: você está competindo com quem? Descobrir seu próprio
potencial tem que fazer sentido para você, não pra uma convenção social.
De novo, a gente se repete: sim, tem uma porção que só você pode fazer.

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EXERCÍCIO DE PRESENÇA 09 – FAZER-SE PRESENTE NA AUSÊNCIA

Escrevemos a crônica abaixo depois de uma experiência bonita, em junho de 2020.


O título é “Bolo na terapia em tempos de pandemia”.
Oito horas e um minuto, envio mensagem para Artur (nome fictício): “Estou
pronta, pode me ligar quando estiver disponível”. Espero e nada. Oito horas e dez
minutos, mas Artur não retorna... Começo a pensar: “O que houve?...”
Em nossa última sessão, ele me conta que estava se sentindo muito cansado. Esse
não era um relato inédito, tampouco o cansaço de Artur era inédito. Lembro-me disso e
desejo que ele estivesse dormindo.
Oito horas e vinte minutos... e nada de Artur.
De cá, do celular, velo o silêncio e o possível sono dele.
Artur me conta mais tarde que estava dormindo e compartilho que fiquei de cá
torcendo por isso. Para ele, certamente não poderia ter algo mais terapêutico.

Depois de ler o relato acima, te convidamos para o exercício de se colocar presente


na ausência. Isso significa ser capaz de dividir com seu cliente aquilo que não
necessariamente está no mesmo espaço-tempo que ele. Nesse momento das nossas vidas
profissionais, muitas de nós são convidadas a experimentar atendimentos por uma
plataforma virtual, por um outro tipo de mediação. É um desafio para quem está
acostumada com o corpo físico, e não só com a imagem, com os cheiros, com a
possibilidade do abraço depois de uma sessão doída. A despedida na sessão virtual é mais
abrupta, com um clique a pessoa desaparece.
Não queremos defender aqui uma tutela ou confluência, além disso, sabemos que
a distância não é definida apenas pela tecnologia. Com a crônica sobre o bolo desejamos
nos lembrar da ressonância. A ressonância te conta o que é preciso e com isso permite
que as questões daquela pessoa a quem você assiste reverberem, te ocupem e te iluminem.
Como você poderia realizar a presença apesar da ausência? Escolha pelo menos
um cliente, ou uma pessoa querida para oferecer essa presença. Seja criativa.

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EXERCÍCIO DE PRESENÇA 10 – REPETIR O TRECHO COMPLICADO

Numa ida ao YouTube, digite “De samba e flor – Marcos Paiva Sexteto & Kivitz”.
São sete minutos de jazz, rap, poesia e convocação, no registro de um ensaio. Se em
algum momento a música em questão for retirada do ar, escolha outra do Kivitz (ou de As
Bahias e a Cozinha Mineira... ou do eterno-maravilhoso Caetano).
Fica uma pergunta, o quanto é possível captar da música, das notas, da poesia ali
cantada? Ouvidos treinados o fazem, não sem atenção; não sem repetição. Um professor
de música é capaz de ouvir nuances que nós não conseguimos e se você já tocou algum
instrumento, poderá atestar: é preciso treinar repetindo aquele trecho complicado algumas
vezes até que ele se torne mais fácil e exequível. Aí está um dos desafios da clínica, pois
nem sempre tudo o que o paciente diz é inteligível naquele momento. Às vezes, a gente
pensa que compreendeu, como diante de um quebra-cabeça do qual, por enquanto, só
temos algumas partes. O sentido vai aparecendo à medida que juntamos outras peças.
Para acontecer assim, é preciso não ignorar o que parece complicado ou dissonante e
entregar-se ao que você ainda não entendeu, o que envolve, também e sempre, mais
estudo e mais disposição de alma.
Alguns abandonam o desafio e ficam estagnados na repetição das músicas que já
sabem tocar. Nossa amiga queridíssima e terapeuta analítico-comportamental, Graziela
Siebert, diria: “É preciso ampliar o repertório”.
Isso posto, vamos para o exercício reflexivo?...
A) Em sua jornada de tornar-se terapeuta, qual seria esse “trecho
complicado” do momento? Identificar esse “trecho” é importante porque muitas
vezes a gente nem reconhece a paralisação que vivemos.
B) Como você pode cuidar melhor dele? Qual o seu plano para ele?
C) Quem pode te ajudar nisso? Como?

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EXERCÍCIO DE PRESENÇA 11 – QUAL O SOM DAS COISAS?

Ainda no clima de música do exercício anterior, queremos te contar sobre o nome


de nossa clínica em Uberlândia, inspirado também por uma canção do Caetano, Terceira
Margem do Rio. O texto de apresentação é o seguinte:

O Senhor sabe o que é o silêncio?


É a gente mesmo, demais.
(Trecho de Grande Sertão: Veredas – Guimarães Rosa)

Essa frase de Guimarães Rosa vem de ‘Grande Sertão: Veredas’


e, ao falar da existência de todos nós pelo verbo do jagunço
Riobaldo, fala daquilo que também é matéria do ofício do
psicoterapeuta: o não-dito. Se a palavra nos é importante e conta
do universo simbólico que nos compõe, a margem da palavra tem
a mesma importância e revela de nós tanto quanto aquilo que
pronunciamos. À sua margem transitam ainda outros elementos
do trabalho terapêutico: as sinuosidades do que se fala e o
sentimento que isso provoca, o corpo, e o próprio terapeuta,
como um co-viajante. É daí a ideia de um barco que possa singrar
os veios, os desvãos do que vai pela alma do paciente. Então,
numa homenagem a tudo o que podemos ao margear a palavra,
apresentamos nossa proposta de intervenções psicoterapêuticas,
numa clínica que decidimos nomear como “Margem da
Palavra”.

Durante as sessões, podemos ouvir o relato do cliente de diversas formas. Aliás,


um relato pode ser contado e ouvido de diferentes maneiras. Se me posiciono para escutar
como terapeuta, minha escuta é diferente da escuta de amiga, da escuta de esposa, da
escuta de mãe. Mas, muitas vezes, é preciso sair da escuta de terapeuta para ouvir além.
Nesse sentido, é importante convidarmos o cliente para se ouvir e falar de diferentes
posições. Na clínica, por exemplo, há aquele experimento interessante de troca de lugares,
que na Gestalt-terapia leva o nome de “Cadeira Vazia”: por alguns momentos a gente
pede para o cliente sentar-se em nossa poltrona e se ouvir um pouco. Nessa proposta,
você pode pedir ao paciente para que se ouça, por exemplo, como sua mãe ou como seu
marido. Essa é a segunda etapa do experimento, depois que o cliente já dirigiu suas
palavras à poltrona vazia, como se ali houvesse uma pessoa a quem ele quer falar e não
consegue. Após ter dito o que desejava, o cliente se coloca no lugar daquele para quem
ele falou. O convite feito na Cadeira Vazia, portanto, é para desbloquear os não-ditos,

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mas é também para ouvir: o cliente se senta no lugar da pessoa a quem direcionou sua
fala, de modo, agora, a ouvir o que foi dito a partir de uma outra perspectiva. Ouvir sempre
de um mesmo lugar, sempre de um mesmo jeito, é perigoso demais.
Aqui, o exercício é: tem muita coisa para ser ouvida para além do aparente, mas,
com quais ouvidos a gente ouve?
A) Faça um relato de uma sessão (ou de uma conversa do cotidiano).
O que foi ouvido apressadamente? O que se perdeu enquanto vocês olharam só
para o aparente?
B) Como seria implantar o recurso apresentado acima nessa conversa?

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EXERCÍCIO DE PRESENÇA 12 - SEMPRE QUE PUDER OU ACHAR
NECESSÁRIO, REVISITE “TABACARIA”

Não sou nada.


Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
(Trecho de Tabacaria – Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa)

Fernando Pessoa, com o heterônimo Álvaro de Campos, escreveu coisas lindas


demais para serem lidas apenas uma vez ou para ficarem resumidas nesses quatro versos.
É preciso ler Tabacaria. Você vai descobrir por quê.

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EPÍLOGO

Antes de vocês ir embora, quero dividir uma última curiosidade sobre a confecção
dessas páginas. Quando a Gabi me apresentou a ideia do livro e me fez o convite para
escrevermos juntas, eu me lembrei de uma história lida há muito tempo, provavelmente
no livro “O Mercador e o Papagaio” (de Nossrat Peseschkian) informação que não vou
conseguir checar porque não o tenho mais (perdeu-se num dos meus muitos
“empréstimos”). A história, com todas as falhas de memória que o tempo produz, contava
algo próximo disso:
Um grupo de cientistas havia descoberto um navio muito engenhoso e nenhum
dos especialistas convidados conseguia colocar a embarcação em marcha. Engenheiros
náuticos de toda parte do mundo chegavam lá, faziam cálculos, usavam seus dispositivos,
suas máquinas e até punham as engrenagens para funcionar, mas o navio não dava de si,
não saía do lugar. Esse era o mistério: por que é que mesmo com tudo em funcionamento,
a engenhoca não se movia?
Quase desistindo do intento, alguém se lembra do seu Zé Canoeiro, que já havia
construído muitos barcos, navegado por muitas águas, estado em muitos navios de grande
porte e ajudado em muitas casas de máquinas de naus variadas por aí afora. Obviamente,
os cientistas desmereceram a participação dele, alegaram que as embarcações que ele
construíra eram todas muito singelas e que nas outras mais complexas onde ele estivera,
sua função era a de um simples operador, portanto, ele deveria entender apenas de fazer
jangadas e canoas ou de obedecer a ordens nas casas de máquinas. Discussão de cá, de lá
e resolvem que não havia nada a perder com essa tentativa, até porque o homem era da
localidade mesmo, estava à mão. Chamam, então, seu Zé Canoeiro.
Eis que ele entra na casa de máquinas do navio e não calcula nada, não leva um
dispositivo sequer. Ele passa horas ali ouvindo e observando as engrenagens roncarem.
No pequeno embornal que ele tinha levado, uma ou duas ferramentas. De repente, seu Zé
Canoeiro tira do embornal um martelinho, chega bem perto da junção de uma engrenagem
com uma tubulação qualquer e dá uma martelada. Pronto, o navio se move! O preço do
conserto: 10 mil reais. A equipe acha um absurdo!
- Mas o senhor é canoeiro, não tem estudo, não tem
ciência, quer cobrar 10 mil por uma martelada??
Ao que ele responde:

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- Não, moço. A martelada custou só 5 reais. O restante,
estou cobrando porque eu sabia ONDE e COMO martelar.
Se você chegou até aqui, imagino que tenha lido todo o livro. Então, quero te
perguntar: qual o significado dessa história para nós, psicólogas, terapeutas, aprendizes
do “funcionamento das relações"?
Se você respondeu que a história fala do embate entre ciência e sabedoria popular,
que a narrativa trata da necessidade de valorização do conhecimento que se faz pelas vias
da experiência, está certo, mas não é isso, ainda, que mais me parece dialogar com o teor
desse livro.
Para mim, o que fez com que essa história me saltasse dos recôncavos da memória
foi a importância do processo que o canoeiro escolhe. A sabedoria romantizada e mágica
que o protagonista demonstra não é o que vai acontecer nos nossos consultórios, na nossa
prática clínica, mesmo extra-setting.
O que provavelmente vai nos ocorrer é que à medida que vamos estabelecendo
um lugar como terapeutas, vamos entendendo que é o processo de estar junto com o
paciente que importa. São a observação, a escuta e a entrega para o momento de estar
diante de uma pessoa e seus fenômenos que podem nos garantir a possibilidade de
iluminar aquele caminho. Por isso, escolhemos falar da presença e tudo o que envolve o
ato de estar presente, como o canoeiro fez diante das engrenagens.
Que nossa conversa com você reverbere e que, sobretudo, esse livro sirva para as
suas próprias descobertas.
Obrigada pela leitura!

Larissa

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SOBRE AS AUTORAS

GABRIELA FRANCO DE ALMEIDA

Psicóloga, trabalha na perspectiva existencial-humanista e é idealizadora e


produtora do projeto “Nosso Gabinete”, que começou como um canal do YT e página do
Instagram voltados para a psicologia e é hoje um instituto de educação que oferece cursos
voltados para a instrumentalização da prática clínica. Gabi tem mestrado e doutorado em
Ciências da Saúde e além do trabalho clínico no setting da psicoterapia, atua como
supervisora no contexto da clínica ambulante e saúde mental. Desde 2015 trabalha como
professora universitária e atualmente é professora efetiva da Universidade do Estado de
Minas Gerais (UEMG).

LARISSA GUIMARÃES MARTINS ABRÃO

Professora na UEMG desde 1997, concluiu seu doutorado em Psicologia pela


UnB em 2009 e ama seus ofícios de professora e de terapeuta. Psicóloga com atuação
em Gestalt-terapia, é pesquisadora na área de gênero e na psicologia clínica.
Larissa Abrão é sócia-fundadora do Instituto Verus, instituição de formação em
Gestalt-terapia. Até 2021, manteve com sua irmã Ludmilla, que é pedagoga, um canal e
uma página no Instagram, intitulada “Prosa em Família”. Lá, se dispuseram a conversar
sobre conflitos e processos de comunicação intrafamiliares. Atualmente, junto com a
Gabi, é gestora do projeto “Nosso Gabinete” e comanda o quadro “Fala, Linduca!”.

Aliás, um dos cursos no “Nosso Gabinete” que você precisa conhecer é o


Conduções Clínicas, ministrado por Gabi e Larissa. Imagine que a mesma tonalidade
usada aqui no livro, a mesma ênfase na proposta de esmiuçamento das intervenções
clínicas estão lá no curso, de modo ampliado e detalhado. Há outros cursos também, para
gostos variados! Só pra citar alguns do nosso catálogo:
- Clínica da Existência
- Facilitando a Clínica com Adolescentes
-Cuidado Medicamentoso
- Manejo de Conflitos
-Terapia Narrativa

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-Clínica do Amor
E outros mais!

Gabi e Larissa também fundaram em Uberlândia, em 2014, a clínica de Psicologia


Margem da Palavra.
Para trocas bonitas, mande um e-mail para: gabrielafrancoalmeida@hotmail.com
ou larissapesquisas@hotmail.com
Ficaremos felizes em receber um pouquinho da sua experiência com o E-book.

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