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Evangelii Gaudium

PRIMEIRA EXORTAÇÃO APOSTÓLICA DO PAPA FRANCISCO


franciscanos.or g.br 1
ÍNDICE
1. Alegria que se renova e comunica [2-8].…..........................................………...………….. 4
2. A doce e reconfortante alegria de evangelizar [9-10].........................................………….. 8
Uma eterna novidade [11-13]..…………............................………………………………….. 9
3. A nova evangelização para a transmissão da fé [14-15] ........................................……. 10
A proposta desta Exortação e seus contornos [16-18].…...........................................….. 12
Capítulo I
A TRANSFORMAÇÃO MISSIONÁRIA DA IGREJA
1. Uma Igreja «em saída» [20-23]....………………......................................……..……….. 13
«Primeirear», envolver-se, acompanhar, frutificar e festejar [24].......................................….. 14
2. Pastoral em conversão [25-26]..................................…..………………………………….. 16
Uma renovação eclesial inadiável [27-33]..............................…..……………….………….. 17
3. A partir do coração do Evangelho [34-39].....................................…..………………….. 20
4. A missão que se encarna nas limitações humanas [40-45].......................................…….. 22
5. Uma mãe de coração aberto [46-49]..............................…..……………………..…….. 25
Capítulo II
NA CRISE DO COMPROMISSO COMUNITÁRIO
1. Alguns desafios do mundo atual [52]..............................…..…………………….…….. 27
Não a uma economia da exclusão [53-54]............................…..…………………….…….. 28
Não à nova idolatria do dinheiro [55-56]..............................…..…………………….…….. 29
Não a um dinheiro que governa em vez de servir [57-58].................................………….. 30
Não à desigualdade social que gera violência [59-60]...........................…..…………….. 31
Alguns desafios culturais [61-67]..............................…..…………………………………….. 32
Desafios da inculturação da fé [68-70]..……………………....…..…………………….…….. 35
Desafios das culturas urbanas [71-75]..……………………........…..…………………….…….. 37
2. Tentações dos agentes pastorais [76-77]..……………………........…..……..……….…….. 39
Sim ao desafio duma espiritualidade missionária [78-80]..…………………….......…….…….. 40
Não à acédia egoísta [81-83]......................…..……………………………………….…….. 41
Não ao pessimismo estéril [84-86]...........................…..…………………………………….. 42
Sim às relações novas geradas por Jesus Cristo [87-92]............................…..………….….. 44
Não ao mundanismo espiritual [93-97].................................…..…………………….……… 47
Não à guerra entre nós [98-101].............................…..…………………………………….. 49
Outros desafios eclesiais [102-109]...........................…..…………………….…………….. 50
Capítulo III
O ANÚNCIO DO EVANGELHO
1. Todo o povo de Deus anuncia o Evangelho [111]...................................…..……….…….. 54
Um povo para todos [112-114]................................…..…………………………………….. 54
Um povo com muitos rostos [115-118]..................................…..…………………….……… 56
Todos somos discípulos missionários [119-121]..………………………..…………………….. 58
A força evangelizadora da piedade popular [122-126]..………………………..……….…….. 59
De pessoa a pessoa [127-129]..…………………….…………………………………….…….. 61
Carismas ao serviço da comunhão evangelizadora [130-131]..……………………….….….. 63
Cultura, pensamento e educação [132-134]..……………………..………………….…..…….. 64
2. A homilia [135-136]..………………………..………………………………..……………… 65
O contexto litúrgico [137-138]..………………………..…………………….……………….….. 65

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A conversa da mãe [139-141]..………………………………………………………….…….. 66
Palavras que abrasam os corações [142-144]..………………………..……………….…….. 68
3. A preparação da pregação [145]..……………………..…………………….…………….. 69
O culto da verdade [146-148]..…………………….…………………………………….…….. 69
A personalização da Palavra [148-151]..………………………..…………………….….….. 71
A leitura espiritual [152-153]..………………………..…………………………………..…….. 73
À escuta do povo [154-155]..…………………….………………………………………..…….. 74
Recursos pedagógicos [156-159]..……………………....…..…………………….………..….. 75
4. Uma evangelização para o aprofundamento do querigma [160-162] ..…………………… 77
Uma catequese querigmática e mistagógica [163-168] ..……………………..……….…….. 78
O acompanhamento pessoal dos processos de crescimento [169-173]..………………………. 81
Ao redor da Palavra de Deus [174-175]..………………………..……………………..…….. 83
Capítulo IV
A DIMENSÃO SOCIAL DA EVANGELIZAÇÃO
1. As repercussões comunitárias e sociais do querigma [177].....…………………….……. 84
Confissão da fé e compromisso social [178-179]..……………………..……………………. 84
O Reino que nos chama [180-181]..….......…………………..…………………….………….. 86
A doutrina da Igreja sobre as questões sociais [182-185]..…......……………………….…….. 87
2. A inclusão social dos pobres [186]..………………………..…………………….……… 89
Unidos a Deus, ouvimos um clamor [187-192]..…........…………………..…………………….. 89
Fidelidade ao Evangelho, para não correr em vão [193-196]..………………………..………. 92
O lugar privilegiado dos pobres no povo de Deus [197-201]..………………………..………. 94
Economia e distribuição das entradas [202-208]..………………………..……………………. 96
Cuidar da fragilidade [209-216]..…………………….....…..…………………………………. 99
3. O bem comum e a paz social [217-221]..………………………..…………………………… 102
O tempo é superior ao espaço [222-225]..………………………..…………………………… 103
A unidade prevalece sobre o conflito [226-230]..………………………..……………………. 104
A realidade é mais importante do que a ideia [231-233]..……………………..……………… 106
O todo é superior à parte [234-237]..………………………..…………………………………. 107
4. O diálogo social como contribuição para a paz [238-241]..………………………..……… 108
O diálogo entre a fé, a razão e as ciências [242-243]..………………………..……………… 110
O diálogo ecumênico [244-246]..……………………...…..………………………………….. 111
As relações com o Judaísmo [247-249]..……………………....…..…………………………… 112
O diálogo inter-religioso [250-254]..………………………..…………………………………. 113
O diálogo social num contexto de liberdade religiosa [255-258]..…………………………. 115
Capítulo V
EVANGELIZADORES COM ESPÍRITO
1. Motivações para um renovado impulso missionário [262-263]..…………………………. 118
O encontro pessoal com o amor de Jesus que nos salva [264-267]..…………………………. 119
O prazer espiritual de ser povo [268-274]..……………………………………………………. 121
A acção misteriosa do Ressuscitado e do seu Espírito [275-280]..…………………………. 125
A força missionária da intercessão [281-283]..…………………….……………………….. 128
2. Maria, a Mãe da evangelização [284]..…………………………………………………… 129
O dom de Jesus ao seu povo [285-286]..……………………………………………………. 129
A Estrela da nova evangelização [287-288]..…………………………………………………. 130

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EVANGELII GAUDIUM busca desordenada de prazeres
DO PAPA FRANCISCO superficiais, da consciência isola-
AO EPISCOPADO, AO CLERO da. Quando a vida interior se fe-
ÀS PESSOAS CONSAGRADAS cha nos próprios interesses, deixa
E AOS FIÉIS LEIGOS de haver espaço para os outros,
SOBRE O ANÚNCIO DO já não entram os pobres, já não
EVANGELHO se ouve a voz de Deus, já não se
NO MUNDO ATUAL goza da doce alegria do seu amor,
nem fervilha o entusiasmo de fazer
Evangelii Gaudium o bem. Este é um risco, certo e per-
manente, que correm também os
1. A ALEGRIA DO EVANGELHO  en- crentes. Muitos caem nele, transfor-
che o coração e a vida inteira da- mando-se em pessoas ressentidas,
queles que se encontram com Jesus. queixosas, sem vida. Esta não é a
Quantos se deixam salvar por Ele escolha duma vida digna e plena,
são libertados do pecado, da triste- este não é o desígnio que Deus tem
za, do vazio interior, do isolamen- para nós, esta não é a vida no Es-
to. Com Jesus Cristo, renasce sem pírito que jorra do coração de Cris-
cessar a alegria. Quero, com esta to ressuscitado.
Exortação, dirigir-me aos fiéis cris-
tãos a fim de os convidar para uma 3. Convido todo o cristão, em qual-
nova etapa evangelizadora marca- quer lugar e situação que se encon-
da por esta alegria e indicar cami- tre, a renovar hoje mesmo o seu
nhos para o percurso da Igreja nos encontro pessoal com Jesus Cristo
próximos anos. ou, pelo menos, a tomar a decisão
de se deixar encontrar por Ele, de
1. ALEGRIA QUE SE RENOVA E O procurar dia a dia sem cessar.
COMUNICA Não há motivo para alguém poder
pensar que este convite não lhe diz
2. O grande risco do mundo atual, respeito, já que «da alegria trazida
com sua múltipla e avassaladora pelo Senhor ninguém é excluído».
oferta de consumo, é uma tristeza Quem arrisca, o Senhor não o de-
individualista que brota do cora- silude; e, quando alguém dá um
ção comodista e mesquinho, da pequeno passo em direção a Jesus,

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descobre que Ele já aguardava de ção, que havia de tornar-se supera-
braços abertos a sua chegada. Este bundante nos tempos messiânicos.
é o momento para dizer a Jesus O profeta Isaías dirige-se ao Mes-
Cristo: «Senhor, deixei-me enganar, sias esperado, saudando-O com
de mil maneiras fugi do vosso amor, regozijo: «Multiplicaste a alegria,
mas aqui estou novamente para re- aumentaste o júbilo» (9, 2). E anima
novar a minha aliança convosco. os habitantes de Sião a recebê-Lo
Preciso de Vós. Resgatai-me de com cânticos: «Exultai de alegria!»
novo, Senhor; aceitai-me mais uma (12, 6). A quem já O avistara no
vez nos vossos braços redentores». horizonte, o profeta convida-o a tor-
Como nos faz bem voltar para Ele, nar-se mensageiro para os outros:
quando nos perdemos! Insisto uma «Sobe a um alto monte, arauto de
vez mais: Deus nunca Se cansa de Sião! Grita com voz forte, arauto de
perdoar, somos nós que nos cansa- Jerusalém» (40, 9). A criação inteira
mos de pedir a sua misericórdia. participa nesta alegria da salvação:
Aquele que nos convidou a perdoar «Cantai, ó céus! Exulta de alegria,
«setenta vezes sete» (Mt 18, 22) dá- ó terra! Rompei em exclamações,
-nos o exemplo: Ele perdoa setenta ó montes! Na verdade, o Senhor
vezes sete. Volta uma vez e outra a consola o seu povo e se compade-
carregar-nos aos seus ombros. Nin- ce dos desamparados» (49, 13).
guém nos pode tirar a dignidade Zacarias, vendo o dia do Senhor,
que este amor infinito e inabalável convida a alegrar-se com o Rei que
nos confere. Ele permite-nos levan- chega «humilde, montado num ju-
tar a cabeça e recomeçar, com uma mento»: «Exulta de alegria, filha
ternura que nunca nos defrauda e de Sião! Solta gritos de júbilo, filha
sempre nos pode restituir a alegria. de Jerusalém! Eis que o teu rei vem
Não fujamos da ressurreição de Je- a ti. Ele é justo e vitorioso» (9, 9).
sus; nunca nos demos por mortos, Mas o convite mais tocante talvez
suceda o que suceder. Que nada seja o do profeta Sofonias, que
possa mais do que a sua vida que nos mostra o próprio Deus como
nos impele para diante! um centro irradiante de festa e de
alegria, que quer comunicar ao seu
4.  Os livros do Antigo Testamento povo este júbilo salvífico. Enche-me
preanunciaram a alegria da salva- de vida reler este texto: «O Senhor,
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teu Deus, está no meio de ti como que esteja em vós a minha alegria,
poderoso salvador! Ele exulta de e a vossa alegria seja completa»
alegria por tua causa, pelo seu (Jo 15, 11). A nossa alegria cris-
amor te renovará. Ele dança e grita tã brota da fonte do seu coração
de alegria por tua causa» (3, 17). transbordante. Ele promete aos
É a alegria que se vive no meio das seus discípulos: «Vós haveis de es-
pequenas coisas da vida quotidia- tar tristes, mas a vossa tristeza há
na, como resposta ao amoroso con- de se converter em alegria» (Jo 16,
vite de Deus nosso Pai: «Meu filho, 20). E insiste: «Eu hei-de ver-vos
se tens com quê, trata-te bem (…). de novo! Então, o vosso coração
Não te prives da felicidade presen- há-de alegrar-se e ninguém vos po-
te» (Sir 14, 11.14). Quanta ternura derá tirar a vossa alegria» (Jo 16,
paterna se vislumbra por detrás des- 22). Depois, ao verem-No ressus-
tas palavras! citado, «encheram-se de alegria»
(Jo 20, 20). O livro dos Atos dos
5.  O Evangelho, onde resplan- Apóstolos conta que, na primitiva
dece gloriosa a Cruz de Cristo, comunidade, «tomavam o alimen-
convida insistentemente à alegria. to com alegria» (2, 46). Por onde
Apenas alguns exemplos: «Alegra- passaram os discípulos, «houve
-te» é a saudação do anjo a Ma- grande alegria» (8, 8); e eles, no
ria (Lc 1, 28). A visita de Maria a meio da perseguição, «estavam
Isabel faz com que João salte de cheios de alegria» (13, 52). Um
alegria no ventre de sua mãe (cf. eunuco, recém-batizado, «seguiu
Lc 1, 41). No seu cântico, Maria o seu caminho cheio de alegria»
proclama: «O meu espírito se ale- (8, 39); e o carcereiro «entregou-
gra em Deus, meu Salvador» (Lc 1, -se, com a família, à alegria de ter
47). E, quando Jesus começa o seu acreditado em Deus» (16, 34). Por-
ministério, João exclama: «Esta é que não havemos de entrar, tam-
a minha alegria! E tornou-se com- bém nós, nesta torrente de alegria?
pleta!» (Jo 3, 29). O próprio Jesus
«estremeceu de alegria sob a ação 6. Há cristãos que parecem ter es-
do Espírito Santo» (Lc 10, 21). A colhido viver uma Quaresma sem
sua mensagem é fonte de alegria: Páscoa. Reconheço, porém, que a
«Manifestei-vos estas coisas, para alegria não se vive da mesma ma-

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neira em todas as etapas e circuns- no entanto ela encontra dificulda-
tâncias da vida, por vezes muito des grandes no engendrar também
duras. Adapta-se e transforma-se, a alegria». Posso dizer que as ale-
mas sempre permanece pelo menos grias mais belas e espontâneas,
como um feixe de luz que nasce da que vi ao longo da minha vida,
certeza pessoal de, não obstante são as alegrias de pessoas muito
o contrário, sermos infinitamente pobres que têm pouco a que se
amados. Compreendo as pessoas agarrar. Recordo também a ale-
que se vergam à tristeza por causa gria genuína daqueles que, mesmo
das graves dificuldades que têm de no meio de grandes compromissos
suportar, mas aos poucos é preciso profissionais, souberam conservar
permitir que a alegria da fé comece um coração crente, generoso e
a despertar, como uma secreta mas simples. De várias maneiras, estas
firme confiança, mesmo no meio alegrias bebem na fonte do amor
das piores angústias: «A paz foi maior, que é o de Deus, a nós ma-
desterrada da minha alma, já nem nifestado em Jesus Cristo. Não me
sei o que é a felicidade (…). Isto, cansarei de repetir estas palavras
porém, guardo no meu coração; de Bento XVI que nos levam ao
por isso, mantenho a esperança. É centro do Evangelho: «Ao início
que a misericórdia do Senhor não do ser cristão, não há uma decisão
acaba, não se esgota a sua compai- ética ou uma grande ideia, mas o
xão. Cada manhã ela se renova; é encontro com um acontecimento,
grande a tua fidelidade. (…) Bom é com uma Pessoa que dá à vida um
esperar em silêncio a salvação do novo horizonte e, desta forma, o
Senhor» (Lm 3, 17.21-23.26). rumo decisivo».

7.  A tentação apresenta-se, fre- 8.  Somente graças a este encon-


quentemente, sob forma de descul- tro – ou reencontro – com o amor
pas e queixas, como se tivesse de de Deus, que se converte em ami-
haver inúmeras condições para ser zade feliz, é que somos resgatados
possível a alegria. Habitualmente da nossa consciência isolada e da
isto acontece, porque «a socieda- auto-referencialidade. Chegamos
de técnica teve a possibilidade de a ser plenamente humanos, quan-
multiplicar as ocasiões de prazer; do somos mais do que humanos,
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quando permitimos a Deus que nos intensidade: «Na doação, a vida
conduza para além de nós mesmos se fortalece; e se enfraquece no
a fim de alcançarmos o nosso ser comodismo e no isolamento. De
mais verdadeiro. Aqui está a fonte fato, os que mais desfrutam da
da ação evangelizadora. Porque, vida são os que deixam a segu-
se alguém acolheu este amor que rança da margem e se apaixonam
lhe devolve o sentido da vida, como pela missão de comunicar a vida
é que pode conter o desejo de o aos demais». Quando a Igreja faz
comunicar aos outros? apelo ao compromisso evangeliza-
dor, não faz mais do que indicar
2. A DOCE E RECONFORTANTE aos cristãos o verdadeiro dinamis-
ALEGRIA DE EVANGELIZAR mo da realização pessoal: «Aqui
descobrimos outra profunda lei da
9. O bem tende sempre a comuni- realidade: “A vida se alcança e
car-se. Toda a experiência autênti- amadurece à medida que é entre-
ca de verdade e de beleza procura, gue para dar vida aos outros”. Isto
por si mesma, a sua expansão; e é, definitivamente, a missão». Con-
qualquer pessoa que viva uma liber- sequentemente, um evangelizador
tação profunda adquire maior sen- não deveria ter constantemente
sibilidade face às necessidades dos uma cara de funeral. Recuperemos
outros. E, uma vez comunicado, o e aumentemos o fervor de espírito,
bem radica-se e desenvolve-se. Por «a suave e reconfortante alegria
isso, quem deseja viver com digni- de evangelizar, mesmo quando
dade e em plenitude, não tem outro for preciso semear com lágrimas!
caminho senão reconhecer o outro (…) E que o mundo do nosso tem-
e buscar o seu bem. Assim, não nos po, que procura ora na angústia
deveriam surpreender frases de São ora com esperança, possa receber
Paulo como estas: «O amor de Cris- a Boa Nova dos lábios, não de
to nos absorve completamente» (2 evangelizadores tristes e descoro-
Cor 5, 14); «ai de mim, se eu não çoados, impacientes ou ansiosos,
evangelizar!» (1 Cor 9, 16). mas sim de ministros do Evangelho
cuja vida irradie fervor, pois foram
10.  A proposta é viver em um ní- quem recebeu primeiro em si a ale-
vel superior, mas não com menor gria de Cristo».

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UMA ETERNA NOVIDADE sempre renovar a nossa vida e a
nossa comunidade, e a proposta
11. Um anúncio renovado propor- cristã, ainda que atravesse perío-
ciona aos crentes, mesmo tíbios ou dos obscuros e fraquezas eclesiais,
não praticantes, uma nova alegria nunca envelhece. Jesus Cristo pode
na fé e uma fecundidade evange- romper também os esquemas enfa-
lizadora. Na realidade, o seu cen- donhos em que pretendemos apri-
tro e a sua essência são sempre o sioná-Lo, e surpreende-nos com a
mesmo: o Deus que manifestou o sua constante criatividade divina.
seu amor imenso em Cristo morto e Sempre que procuramos voltar à
ressuscitado. Ele torna os seus fiéis fonte e recuperar o frescor original
sempre novos; ainda que sejam ido- do Evangelho, despontam novas
sos, «renovam as suas forças. Têm estradas, métodos criativos, outras
asas como a águia, correm sem se formas de expressão, sinais mais
cansar, marcham sem desfalecer» eloquentes, palavras cheias de re-
(Is 40, 31). Cristo é a «Boa-Nova novado significado para o mundo
de valor eterno» (Ap 14, 6), sendo atual. Na realidade, toda a ação
«o mesmo ontem, hoje e pelos sécu- evangelizadora autêntica é sempre
los» (Heb 13, 8), mas a sua riqueza «nova».
e a sua beleza são inesgotáveis. Ele
é sempre jovem, e fonte de constan- 12.  Embora esta missão nos exija
te novidade. A Igreja não cessa de uma entrega generosa, seria um
se maravilhar com a «profundidade erro considerá-la como uma heroica
de riqueza, de sabedoria e de ci- tarefa pessoal, dado que ela é, pri-
ência de Deus» (Rm 11, 33). São mariamente e acima de tudo o que
João da Cruz dizia: «Esta espessu- possamos sondar e compreender,
ra de sabedoria e ciência de Deus obra de Deus. Jesus é «o primei-
é tão profunda e imensa, que, por ro e o maior evangelizador». Em
mais que a alma saiba dela, sem- qualquer forma de evangelização,
pre pode penetrá-la mais profunda- o primado é sempre de Deus, que
mente». Ou ainda, como afirmava quis chamar-nos para cooperar com
Santo Ireneu: «Na sua vinda, [Cris- Ele e impelir-nos com a força do seu
to] trouxe consigo toda a novida- Espírito. A verdadeira novidade
de». Com a sua novidade, Ele pode é aquela que o próprio Deus mis-
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teriosamente quer produzir, aque- tocou o coração: «Eram as quatro
la que Ele inspira, aquela que Ele horas da tarde» (Jo 1, 39). A me-
provoca, aquela que Ele orienta e mória faz-nos presente, juntamente
acompanha de mil e uma maneiras. com Jesus, uma verdadeira «nuvem
Em toda a vida da Igreja, deve-se de testemunhas» (Heb 12, 1). De
sempre manifestar que a iniciativa entre elas, distinguem-se algumas
pertence a Deus, «porque Ele nos pessoas que incidiram de maneira
amou primeiro» (1 Jo 4, 19) e é «só especial para fazer germinar a nos-
Deus que faz crescer» (1 Cor 3, 7). sa alegria crente: «Recordai-vos dos
Esta convicção permite-nos manter vossos guias, que vos pregaram a
a alegria no meio duma tarefa tão palavra de Deus» (Heb 13, 7). Às
exigente e desafiadora que ocupa vezes, trata-se de pessoas simples e
inteiramente a nossa vida. Pede-nos próximas de nós, que nos iniciaram
tudo, mas ao mesmo tempo dá-nos na vida da fé: «Trago à memória a
tudo. tua fé sem fingimento, que se encon-
trava já na tua avó Lóide e na tua
13.  E também não deveremos en- mãe Eunice» (2 Tm 1, 5). O crente
tender a novidade desta missão é, fundamentalmente, «uma pessoa
como um desenraizamento, como que faz memória».
um esquecimento da história viva
que nos acolhe e impele para dian- 3. A NOVA EVANGELIZAÇÃO PARA
te. A memória é uma dimensão da A TRANSMISSÃO DA FÉ
nossa fé, que, por analogia com a
memória de Israel, poderíamos cha- 14.  À escuta do Espírito, que
mar «deuteronômica». Jesus deixa- nos ajuda a reconhecer comuni-
-nos a Eucaristia como memória tariamente os sinais dos tempos,
quotidiana da Igreja, que nos intro- celebrou-se de 7 a 28 de outubro
duz cada vez mais na Páscoa (cf. de 2012 a XIII Assembleia Geral
Lc 22, 19). A alegria evangelizado- Ordinária do Sínodo dos Bispos,
ra refulge sempre sobre o horizon- sobre o tema  A nova evangeli-
te da memória agradecida: é uma zação para a transmissão da
graça que precisamos de pedir. fé cristã. Lá foi recordado que a
Os Apóstolos nunca mais esquece- nova evangelização interpela a
ram o momento em que Jesus lhes todos, realizando-se fundamental-

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mente em três âmbitos. Em primeiro recusaram. Muitos deles buscam
lugar, mencionamos o âmbito da secretamente a Deus, movidos pela
pastoral ordinária, «animada pelo nostalgia do seu rosto, mesmo em
fogo do Espírito a fim de incendiar países de antiga tradição cristã. To-
os corações dos fiéis que frequen- dos têm o direito de receber o Evan-
tam regularmente a comunidade, gelho. Os cristãos têm o dever de
reunindo-se no dia do Senhor, para o anunciar, sem excluir ninguém, e
se alimentarem da sua Palavra e do não como quem impõe uma nova
Pão de vida eterna». Devem ser in- obrigação, mas como quem parti-
cluídos também neste âmbito os fi- lha uma alegria, indica um horizon-
éis que conservam uma fé católica te estupendo, oferece um banquete
intensa e sincera, exprimindo-a de apetecível. A Igreja não cresce por
diversos modos, embora não parti- proselitismo, mas «por atração».
cipem frequentemente no culto. Esta
pastoral está orientada para o cres- 15. João Paulo II convidou-nos a re-
cimento dos crentes, a fim de corres- conhecer que «não se pode perder
ponderem cada vez melhor e com a tensão para o anúncio» àqueles
toda a sua vida ao amor de Deus. que estão longe de Cristo, «porque
Em segundo lugar, lembramos o esta é a tarefa primária da Igreja».
âmbito das «pessoas batizadas A atividade missionária «ainda hoje
que, porém, não vivem as exigên- representa o máximo desafio para a
cias do Batismo», não sentem uma Igreja» e «a causa missionária deve
pertença cordial à Igreja e já não ser (…) a primeira de todas as cau-
experimentam a consolação da sas». Que sucederia se tomássemos
fé. Mãe sempre solícita, a Igre- realmente a sério estas palavras?
ja esforça-se para que elas vivam Simplesmente reconheceríamos que
uma conversão que lhes restitua a ação missionária é o paradigma
a alegria da fé e o desejo de se de toda a obra da Igreja. Nesta
comprometerem com o Evangelho. linha, os Bispos latino-americanos
Por fim, frisamos que a evangeli- afirmaram que «não podemos ficar
zação está essencialmente rela- tranquilos, em espera passiva, em
cionada com a proclamação do nossos templos», sendo necessário
Evangelho àqueles que não conhe- passar «de uma pastoral de mera
cem Jesus Cristo ou que sempre O conservação para uma pastoral de-
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cididamente missionária». Esta tare- mento de todas as problemáticas
fa continua a ser a fonte das maio- que sobressaem nos seus territórios.
res alegrias para a Igreja: «Haverá Neste sentido, sinto a necessidade
mais alegria no Céu por um só pe- de proceder a uma salutar «descen-
cador que se converte, do que por tralização».
noventa e nove justos que não ne-
cessitam de conversão» (Lc 15, 7). 17.  Aqui escolhi propor algumas
diretrizes que possam encorajar e
A PROPOSTA DESTA EXORTAÇÃO E orientar, em toda a Igreja, uma nova
SEUS CONTORNOS etapa evangelizadora, cheia de ar-
dor e dinamismo. Neste quadro e
16.  Com prazer, aceitei o convite com base na doutrina da Constitui-
dos Padres sinodais para redigir ção dogmática Lumen Gentium,
esta Exortação. Para o efeito, re- decidi, entre outros temas, de me
colho a riqueza dos trabalhos do deter amplamente sobre as seguin-
Sínodo; consultei também várias tes questões:
pessoas e pretendo, além disso, a) A reforma da Igreja em saída
exprimir as preocupações que me missionária.
movem neste momento concreto da b) As tentações dos agentes pasto-
obra evangelizadora da Igreja. Os rais.
temas relacionados com a evan- c) A Igreja vista como a totalidade
gelização no mundo atual, que se do povo de Deus que evangeliza.
poderiam desenvolver aqui, são d) A homilia e a sua preparação.
inumeráveis. Mas renunciei a tratar e) A inclusão social dos pobres.
detalhadamente esta multiplicidade f) A paz e o diálogo social.
de questões que devem ser objecto g) As motivações espirituais para o
de estudo e aprofundamento cui- compromisso missionário.
dadoso. Penso, aliás, que não se
deve esperar do magistério papal 18.  Demorei-me nestes temas, de-
uma palavra definitiva ou comple- senvolvendo-os dum modo que tal-
ta sobre todas as questões que di- vez possa parecer excessivo. Mas
zem respeito à Igreja e ao mundo. não o fiz com a intenção de ofere-
Não convém que o Papa substitua cer um tratado, mas só para mos-
os episcopados locais no discerni- trar a relevante incidência prática

12 franciscanos.or g.br
destes assuntos na missão atual da constantemente este dinamismo de
Igreja. De fato, todos eles ajudam a «saída», que Deus quer provocar
delinear um preciso estilo evange- nos crentes. Abraão aceitou a cha-
lizador, que convido a assumir em mada para partir rumo a uma nova
qualquer atividade que se realize. terra (cf. Gn 12, 1-3). Moisés ou-
E, desta forma, podemos assumir, viu a chamada de Deus: «Vai; Eu
no meio do nosso trabalho diário, te envio» (Ex 3, 10), e fez sair o
esta exortação da Palavra de Deus: povo para a terra prometida (cf. Ex
«Alegrai-vos sempre no Senhor! De 3, 17). A Jeremias disse: «Irás aon-
novo vos digo: alegrai-vos!» (Fl 4, de Eu te enviar» (Jr 1, 7). Naquele
4). «ide» de Jesus, estão presentes os
cenários e os desafios sempre no-
Capítulo I vos da missão evangelizadora da
A TRANSFORMAÇÃO Igreja, e hoje todos somos chama-
MISSIONÁRIA DA dos a esta nova «saída» missioná-
IGREJA ria. Cada cristão e cada comunida-
de há-de discernir qual é o caminho
19.  A evangelização obedece ao que o Senhor lhe pede, mas todos
mandato missionário de Jesus: «Ide, somos convidados a aceitar esta
pois, fazei discípulos de todos os chamada: sair da própria comodi-
povos, batizando-os em nome do dade e ter a coragem de alcançar
Pai, do Filho e do Espírito Santo, todas as periferias que precisam da
ensinando-os a cumprir tudo quan- luz do Evangelho.
to vos tenho mandado» (Mt 28,
19-20). Nestes versículos, aparece 21.  A alegria do Evangelho, que
o momento em que o Ressuscitado enche a vida da comunidade dos
envia os seus a pregar o Evangelho discípulos, é uma alegria missio-
em todos os tempos e lugares, para nária. Experimentam-na os setenta
que a fé n’Ele se estenda a todos os e dois discípulos, que voltam da
cantos da terra. missão cheios de alegria (cf. Lc 10,
17). Vive-a Jesus, que exulta de ale-
1. UMA IGREJA «EM SAÍDA» gria no Espírito Santo e louva o Pai,
porque a sua revelação chega aos
20. Na Palavra de Deus, aparece pobres e aos pequeninos (cf. Lc 10,
franciscanos.or g.br 13
21). Sentem-na, cheios de admira- 23. A intimidade da Igreja com Je-
ção, os primeiros que se convertem sus é uma intimidade itinerante, e a
no Pentecostes, ao ouvir «cada um comunhão «reveste essencialmente
na sua própria língua» (Act 2, 6) a a forma de comunhão missionária».
pregação dos Apóstolos. Esta ale- Fiel ao modelo do Mestre, é vital
gria é um sinal de que o Evangelho que hoje a Igreja saia para anun-
foi anunciado e está frutificando. ciar o Evangelho a todos, em todos
Mas contêm sempre a dinâmica do os lugares, em todas as ocasiões,
êxodo e do dom, de sair de si mes- sem demora, sem repugnâncias e
mo, de caminhar e de semear sem- sem medo. A alegria do Evangelho
pre de novo, sempre mais além. é para todo o povo, não se pode
O Senhor diz: «Vamos para outra excluir ninguém; assim foi anun-
parte, para as aldeias vizinhas, a ciada pelo anjo aos pastores de
fim de pregar aí, pois foi para isso Belém: «Não temais, pois anuncio-
que Eu vim» (Mc 1, 38). Ele, de- -vos uma grande alegria, que o será
pois de lançar a semente num lu- para todo o povo» (Lc 2, 10). O
gar, não se demora lá a explicar Apocalipse fala de «uma Boa-Nova
melhor ou a cumprir novos sinais, de valor eterno para anunciar aos
mas o Espírito leva-O a partir para habitantes da terra: a todas as na-
outras aldeias. ções, tribos, línguas e povos» (Ap
14, 6).
22. A Palavra possui, em si mesma,
uma tal potencialidade, que não a «PRIMEIREAR», ENVOLVER-SE,
podemos prever. O Evangelho fala ACOMPANHAR, FRUTIFICAR E
da semente que, uma vez lançada FESTEJAR
à terra, cresce por si mesma, inclu-
sive quando o agricultor dorme (cf. 24. A Igreja «em saída» é a comuni-
Mc 4, 26-29). A Igreja deve aceitar dade de discípulos missionários que
esta liberdade incontrolável da Pa- «primeireiam», que se envolvem,
lavra, que é eficaz a seu modo e que acompanham, que frutificam e
sob formas tão variadas que muitas festejam. Primeireiam – desculpai o
vezes nos escapam, superando as neologismo –, tomam a iniciativa!
nossas previsões e quebrando os A comunidade missionária experi-
nossos esquemas. menta que o Senhor tomou a inicia-

14 franciscanos.or g.br
tiva, precedeu-a no amor (cf. 1 Jo 4, portação apostólica. A evangeliza-
10), e, por isso, ela sabe ir à frente, ção patenteia muita paciência, e
sabe tomar a iniciativa sem medo, evita deter-se a considerar as limita-
ir ao encontro, procurar os afasta- ções. Fiel ao dom do Senhor, sabe
dos e chegar às encruzilhadas dos também «frutificar». A comunidade
caminhos para convidar os excluí- evangelizadora mantém-se aten-
dos. Vive um desejo inexaurível de ta aos frutos, porque o Senhor a
oferecer misericórdia, fruto de ter quer fecunda. Cuida do trigo e não
experimentado a misericórdia infi- perde a paz por causa do joio. O
nita do Pai e a sua força difusiva. semeador, quando vê surgir o joio
Ousemos um pouco mais no tomar no meio do trigo, não tem reações
a iniciativa! Como consequência, lastimosas ou alarmistas. Encontra o
a Igreja sabe «envolver-se». Jesus modo para fazer com que a Palavra
lavou os pés aos seus discípulos. se encarne numa situação concreta
O Senhor envolve-Se e envolve os e dê frutos de vida nova, apesar de
seus, pondo-Se de joelhos diante serem aparentemente imperfeitos ou
dos outros para os lavar; mas, logo defeituosos. O discípulo sabe ofere-
a seguir, diz aos discípulos: «Sereis cer a vida inteira e jogá-la até ao
felizes se o puserdes em prática» (Jo martírio como testemunho de Jesus
13, 17). Com obras e gestos, a co- Cristo, mas o seu sonho não é estar
munidade missionária entra na vida cheio de inimigos, mas antes que a
diária dos outros, encurta as distân- Palavra seja acolhida e manifeste a
cias, abaixa-se – se for necessário sua força libertadora e renovadora.
– até à humilhação e assume a vida Por fim, a comunidade evangeliza-
humana, tocando a carne sofredo- dora jubilosa sabe sempre «feste-
ra de Cristo no povo. Os evangeli- jar»: celebra e festeja cada peque-
zadores contraem assim o «cheiro na vitória, cada passo em frente
de ovelha», e estas escutam a sua na evangelização. No meio desta
voz. Em seguida, a comunidade exigência diária de fazer avançar
evangelizadora dispõe-se a «acom- o bem, a evangelização jubilosa
panhar». Acompanha a humanida- torna-se beleza na liturgia. A Igreja
de em todos os seus processos, por evangeliza e se evangeliza com a
mais duros e demorados que sejam. beleza da liturgia, que é também
Conhece as longas esperas e a su- celebração da atividade evangeli-
franciscanos.or g.br 15
zadora e fonte dum renovado im- ciência esclarecida e operante de-
pulso para se dar. riva espontaneamente um desejo
de comparar a imagem ideal da
2. PASTORAL EM CONVERSÃO Igreja, tal como Cristo a viu, quis
e amou, ou seja, como sua Esposa
25.  Não ignoro que hoje os do- santa e imaculada (Ef 5, 27), com
cumentos não suscitam o mesmo o rosto real que a Igreja apresenta
interesse que noutras épocas, aca- hoje. (…) Em consequência disso,
bando rapidamente esquecidos. surge uma necessidade generosa
Apesar disso sublinho que, aquilo e quase impaciente de renovação,
que pretendo deixar expresso aqui, isto é, de emenda dos defeitos,
possui um significado programático que aquela consciência denuncia
e tem consequências importantes. e rejeita, como se fosse um exame
Espero que todas as comunidades interior ao espelho do modelo que
se esforcem por atuar os meios ne- Cristo nos deixou de Si mesmo».
cessários para avançar no caminho O Concílio Vaticano II apresen-
duma conversão pastoral e missio- tou a conversão eclesial como a
nária, que não pode deixar as coi- abertura a uma reforma perma-
sas como estão. Neste momento, nente de si mesma por fidelidade
não nos serve uma «simples admi- a Jesus Cristo: «Toda a renovação
nistração». Constituamo-nos em «es- da Igreja consiste essencialmente
tado permanente de missão», em numa maior fidelidade à própria
todas as regiões da terra. vocação. (…) A Igreja peregrina
é chamada por Cristo a esta re-
26. Paulo VI convidou a alargar o forma perene. Como instituição
apelo à renovação de modo que humana e terrena, a Igreja neces-
ressalte, com força, que não se di- sita perpetuamente desta reforma».
rige apenas aos indivíduos, mas Há estruturas eclesiais que podem
à Igreja inteira. Lembremos este chegar a condicionar um dinamis-
texto memorável, que não perdeu mo evangelizador; de igual modo,
a sua força interpeladora: «A Igre- as boas estruturas servem quando
ja deve aprofundar a consciência há uma vida que as anima, sustenta
de si mesma, meditar sobre o seu e avalia. Sem vida nova e espírito
próprio mistério (…). Desta cons- evangélico autêntico, sem «fidelida-

16 franciscanos.or g.br
de da Igreja à própria vocação», sui uma grande plasticidade, pode
toda e qualquer nova estrutura se assumir formas muito diferentes que
corrompe em pouco tempo. requerem a docilidade e a criativi-
dade missionária do Pastor e da co-
UMA RENOVAÇÃO ECLESIAL munidade. Embora não seja certa-
INADIÁVEL mente a única instituição evangeli-
zadora, se for capaz de se reformar
27. Sonho com uma opção missio- e adaptar constantemente, continu-
nária capaz de transformar tudo, ará a ser «a própria Igreja que vive
para que os costumes, os estilos, no meio das casas dos seus filhos
os horários, a linguagem e toda e das suas filhas». Isto supõe que
a estrutura eclesial se tornem um esteja realmente em contato com as
canal proporcionado mais à evan- famílias e com a vida do povo, e
gelização do mundo atual que à não se torne uma estrutura compli-
autopreservação. A reforma das cada, separada das pessoas, nem
estruturas, que a conversão pasto- um grupo de eleitos que olham para
ral exige, só se pode entender neste si mesmos. A paróquia é presença
sentido: fazer com que todas elas eclesial no território, âmbito para a
se tornem mais missionárias, que a escuta da Palavra, o crescimento da
pastoral ordinária em todas as suas vida cristã, o diálogo, o anúncio, a
instâncias seja mais comunicativa caridade generosa, a adoração e
e aberta, que coloque os agentes a celebração. Através de todas as
pastorais em atitude constante de suas atividades, a paróquia incen-
«saída» e, assim, favoreça a res- tiva e forma os seus membros para
posta positiva de todos aqueles a serem agentes da evangelização. É
quem Jesus oferece a sua amizade. comunidade de comunidades, san-
Como dizia João Paulo II aos Bispos tuário onde os sedentos vão beber
da Oceania, «toda a renovação na para continuarem a caminhar, e
Igreja há-de ter como alvo a missão, centro de constante envio missioná-
para não cair vítima duma espécie rio. Temos, porém, de reconhecer
de introversão eclesial». que o apelo à revisão e renova-
ção das paróquias ainda não deu
28. A paróquia não é uma estrutura suficientemente fruto, tornando-se
caduca; precisamente porque pos- ainda mais próximas das pessoas,
franciscanos.or g.br 17
sendo âmbitos de viva comunhão e É a Igreja encarnada num espaço
participação e orientando-se com- concreto, dotada de todos os meios
pletamente para a missão. de salvação dados por Cristo, mas
com um rosto local. A sua alegria
29. As outras instituições eclesiais, de comunicar Jesus Cristo exprime-
comunidades de base e pequenas -se tanto na sua preocupação por
comunidades, movimentos e outras anunciá-Lo noutros lugares mais
formas de associação são uma ri- necessitados, como numa constan-
queza da Igreja que o Espírito sus- te saída para as periferias do seu
cita para evangelizar todos os am- território ou para os novos âmbitos
bientes e setores. Frequentemente socioculturais. Procura estar sem-
trazem um novo ardor evangeliza- pre onde fazem mais falta a luz e
dor e uma capacidade de diálogo a vida do Ressuscitado. Para que
com o mundo que renovam a Igre- este impulso missionário seja cada
ja. Mas é muito salutar que não per- vez mais intenso, generoso e fecun-
cam o contato com esta realidade do, exorto também cada uma das
muito rica da paróquia local e que Igrejas particulares a entrar decidi-
se integrem de bom grado na pas- damente num processo de discerni-
toral orgânica da Igreja particular. mento, purificação e reforma.
Esta integração evitará que fiquem
só com uma parte do Evangelho e 31.  O Bispo deve favorecer sem-
da Igreja, ou que se transformem pre a comunhão missionária na sua
em nômades sem raízes. Igreja diocesana, seguindo o ideal
das primeiras comunidades cristãs,
30. Cada Igreja particular, porção em que os crentes tinham um só co-
da Igreja Católica sob a guia do seu ração e uma só alma (cf. Act 4, 32)
Bispo, está, também ela, chamada . Para isso, às vezes pôr-se-á à fren-
à conversão missionária. Ela é o te para indicar a estrada e sustentar
sujeito primário da evangelização, a esperança do povo, outras vezes
enquanto é a manifestação concre- manter-se-á simplesmente no meio
ta da única Igreja num lugar da ter- de todos com a sua proximidade
ra e, nela, «está verdadeiramente simples e misericordiosa e, em cer-
presente e opera a Igreja de Cristo, tas circunstâncias, deverá caminhar
una, santa, católica e apostólica». atrás do povo, para ajudar aque-

18 franciscanos.or g.br
les que se atrasaram e sobretudo avançado neste sentido. Também o
porque o próprio rebanho possui papado e as estruturas centrais da
o olfacto para encontrar novas es- Igreja universal precisam de ouvir
tradas. Na sua missão de promover este apelo a uma conversão pasto-
uma comunhão dinâmica, aberta e ral. O Concílio Vaticano II afirmou
missionária, deverá estimular e pro- que, à semelhança das antigas
curar o amadurecimento dos orga- Igrejas patriarcais, as conferências
nismos de participação propostos episcopais podem «aportar uma
pelo Código de Direito Canônico e contribuição múltipla e fecunda,
de outras formas de diálogo pasto- para que o sentimento colegial leve
ral, com o desejo de ouvir a todos, e a aplicações concretas». Mas este
não apenas alguns sempre prontos desejo não se realizou plenamente,
a lisonjeá-lo. Mas o objetivo destes porque ainda não foi suficientemen-
processos participativos não há-de te explicitado um estatuto das confe-
ser principalmente a organização rências episcopais que as considere
eclesial, mas o sonho missionário como sujeitos de atribuições con-
de chegar a todos. cretas, incluindo alguma autêntica
autoridade doutrinal. Uma centrali-
32. Dado que sou chamado a viver zação excessiva, em vez de ajudar,
aquilo que peço aos outros, devo complica a vida da Igreja e a sua
pensar também numa conversão do dinâmica missionária.
papado. Compete-me, como Bispo
de Roma, permanecer aberto às 33. A pastoral em chave missioná-
sugestões tendentes a um exercí- ria exige o abandono deste cômo-
cio do meu ministério que o torne do critério pastoral: «fez-se sempre
mais fiel ao significado que Jesus assim». Convido todos a serem ou-
Cristo pretendeu dar-lhe e às neces- sados e criativos nesta tarefa de re-
sidades atuais da evangelização. pensar os objetivos, as estruturas, o
O Papa João Paulo II pediu que o estilo e os métodos evangelizadores
ajudassem a encontrar «uma forma das respectivas comunidades. Uma
de exercício do primado que, sem identificação dos fins, sem uma con-
renunciar de modo algum ao que digna busca comunitária dos meios
é essencial da sua missão, se abra para os alcançar, está condenada
a uma situação nova». Pouco temos a traduzir-se em mera fantasia. A
franciscanos.or g.br 19
todos exorto a aplicarem, com ge- Portanto, convém ser realistas e não
nerosidade e coragem, as orienta- dar por suposto que os nossos in-
ções deste documento, sem impe- terlocutores conhecem o horizonte
dimentos nem receios. Importante completo daquilo que dizemos ou
é não caminhar sozinho, mas ter que eles podem relacionar o nosso
sempre em conta os irmãos e, de discurso com o núcleo essencial do
modo especial, a guia dos Bispos, Evangelho que lhe confere sentido,
num discernimento pastoral sábio e beleza e fascínio.
realista.
35.  Uma pastoral em chave mis-
3. A PARTIR DO CORAÇÃO DO sionária não está obsessionada
EVANGELHO pela transmissão desarticulada de
uma imensidade de doutrinas que
34.  Se pretendemos colocar tudo se tentam impor à força de insis-
em chave missionária, isso aplica-se tir. Quando se assume um objetivo
também à maneira de comunicar a pastoral e um estilo missionário,
mensagem. No mundo atual, com que chegue realmente a todos sem
a velocidade das comunicações e a excepções nem exclusões, o anún-
seleção interessada dos conteúdos cio concentra-se no essencial, no
feita pelos mass media, a mensa- que é mais belo, mais importante,
gem que anunciamos corre mais do mais atraente e, ao mesmo tempo,
que nunca o risco de aparecer mu- mais necessário. A proposta acaba
tilada e reduzida a alguns dos seus simplificada, sem com isso perder
aspectos secundários. Consequente- profundidade e verdade, e assim se
mente, algumas questões que fazem torna mais convincente e radiosa.
parte da doutrina moral da Igreja
ficam fora do contexto que lhes dá 36.  Todas as verdades reveladas
sentido. O problema maior ocorre procedem da mesma fonte divina e
quando a mensagem que anun- são acreditadas com a mesma fé,
ciamos parece então identificada mas algumas delas são mais impor-
com tais aspectos secundários, que, tantes por exprimir mais diretamen-
apesar de serem relevantes, por si te o coração do Evangelho. Neste
sozinhos não manifestam o cora- núcleo fundamental, o que sobres-
ção da mensagem de Jesus Cristo. sai é a beleza do amor salvífico de

20 franciscanos.or g.br
Deus manifestado em Jesus Cristo por isso que se diz que é próprio
morto e ressuscitado. Neste sentido, de Deus usar de misericórdia e é,
o Concílio Vaticano II afirmou que sobretudo nisto, que se manifesta a
«existe uma ordem ou “hierarquia” sua omnipotência».
das verdades da doutrina católica,
já que o nexo delas com o funda- 38.  É importante tirar as conse-
mento da fé cristã é diferente». Isto quências pastorais desta doutrina
é válido tanto para os dogmas da conciliar, que recolhe uma antiga
fé como para o conjunto dos ensina- convicção da Igreja. Antes de mais
mentos da Igreja, incluindo a doutri- nada, deve-se dizer que, no anún-
na moral. cio do Evangelho, é necessário que
haja uma proporção adequada.
37. São Tomás de Aquino ensinava Esta reconhece-se na frequência
que, também na mensagem moral com que se mencionam alguns te-
da Igreja, há uma hierarquia nas mas e nas acentuações postas na
virtudes e ações que delas proce- pregação. Por exemplo, se um pá-
dem. Aqui o que conta é, antes roco, durante um ano litúrgico, fala
de mais nada, «a fé que atua pelo dez vezes sobre a temperança e
amor» (Gal 5, 6). As obras de amor apenas duas ou três vezes sobre a
ao próximo são a manifestação ex- caridade ou sobre a justiça, gera-se
terna mais perfeita da graça interior uma desproporção, acabando obs-
do Espírito: «O elemento principal curecidas precisamente aquelas vir-
da Nova Lei é a graça do Espírito tudes que deveriam estar mais pre-
Santo, que se manifesta através da sentes na pregação e na catequese.
fé que opera pelo amor». Por isso E o mesmo acontece quando se fala
afirma que, relativamente ao agir mais da lei que da graça, mais da
exterior, a misericórdia é a maior Igreja que de Jesus Cristo, mais do
de todas as virtudes: «Em si mes- Papa que da Palavra de Deus.
ma, a misericórdia é a maior das
virtudes; na realidade, compete-lhe 39.  Tal como existe uma unidade
debruçar-se sobre os outros e – o orgânica entre as virtudes que im-
que mais conta – remediar as mi- pede de excluir qualquer uma de-
sérias alheias. Ora, isto é tarefa es- las do ideal cristão, assim também
pecialmente de quem é superior; é nenhuma verdade é negada. Não
franciscanos.or g.br 21
é preciso mutilar a integridade da risco de perder o seu frescor e já
mensagem do Evangelho. Além não ter «o perfume do Evangelho».
disso, cada verdade entende-se
melhor se a colocarmos em relação 4. A MISSÃO QUE SE ENCARNA
com a totalidade harmoniosa da NAS LIMITAÇÕES HUMANAS
mensagem cristã: e, neste contexto,
todas as verdades têm a sua pró- 40.  A Igreja, que é discípula mis-
pria importância e iluminam-se reci- sionária, tem necessidade de cres-
procamente. Quando a pregação é cer na sua interpretação da Palavra
fiel ao Evangelho, manifesta-se com revelada e na sua compreensão da
clareza a centralidade de algumas verdade. A tarefa dos exegetas e
verdades e fica claro que a prega- teólogos ajuda a «amadurecer o ju-
ção moral cristã não é uma ética ízo da Igreja». Embora de modo di-
estoica, é mais do que uma asce- ferente, fazem-no também as outras
se, não é uma mera filosofia práti- ciências. Referindo-se às ciências
ca nem um catálogo de pecados e sociais, por exemplo, João Paulo II
erros. O Evangelho convida, antes disse que a Igreja presta atenção
de tudo, a responder a Deus que às suas contribuições «para obter
nos ama e salva, reconhecendo-O indicações concretas que a ajudem
nos outros e saindo de nós mesmos no cumprimento da sua missão de
para procurar o bem de todos. Este Magistério». Além disso, dentro
convite não há-de ser obscurecido da Igreja, há inúmeras questões à
em nenhuma circunstância! Todas volta das quais se indaga e reflete
as virtudes estão ao serviço desta com grande liberdade. As diversas
resposta de amor. Se tal convite não linhas de pensamento filosófico,
refulge com vigor e fascínio, o edifí- teológico e pastoral, se se deixam
cio moral da Igreja corre o risco de harmonizar pelo Espírito no respei-
se tornar um castelo de cartas, sen- to e no amor, podem fazer crescer
do este o nosso pior perigo; é que, a Igreja, enquanto ajudam a expli-
então, não estaremos propriamente citar melhor o tesouro riquíssimo da
a anunciar o Evangelho, mas algu- Palavra. A quantos sonham com
mas acentuações doutrinais ou mo- uma doutrina monolítica defendida
rais, que derivam de certas opções sem nuances por todos, isto poderá
ideológicas. A mensagem correrá o parecer uma dispersão imperfeita;

22 franciscanos.or g.br
mas a realidade é que tal varieda- de hoje a mensagem evangélica no
de ajuda a manifestar e desenvol- seu significado imutável».
ver melhor os diversos aspectos da
riqueza inesgotável do Evangelho. 42.  Isto possui uma grande rele-
vância no anúncio do Evangelho,
41. Ao mesmo tempo, as enormes e se temos verdadeiramente a peito
rápidas mudanças culturais exigem fazer perceber melhor a sua beleza
que prestemos constante atenção e fazê-la acolher por todos. Em todo
ao tentar exprimir as verdades de o caso, não poderemos jamais tor-
sempre numa linguagem que per- nar os ensinamentos da Igreja uma
mita reconhecer a sua permanente realidade facilmente compreensível
novidade; é que, no depósito da e felizmente apreciada por todos;
doutrina cristã, «uma coisa é a subs- a fé conserva sempre um aspec-
tância (…) e outra é a formulação to de cruz, certa obscuridade que
que a reveste». Por vezes, mesmo não tira firmeza à sua adesão. Há
ouvindo uma linguagem totalmente coisas que se compreendem e apre-
ortodoxa, aquilo que os fiéis rece- ciam só a partir desta adesão que
bem, devido à linguagem que eles é irmã do amor, para além da cla-
mesmos utilizam e compreendem, é reza com que se possam compreen-
algo que não corresponde ao ver- der as razões e os argumentos. Por
dadeiro Evangelho de Jesus Cristo. isso, é preciso recordar-se de que
Com a santa intenção de lhes co- cada ensinamento da doutrina deve
municar a verdade sobre Deus e situar-se na atitude evangelizadora
o ser humano, nalgumas ocasiões, que desperte a adesão do coração
damos-lhes um falso deus ou um com a proximidade, o amor e o tes-
ideal humano que não é verdadei- temunho.
ramente cristão. Deste modo, somos
fiéis a uma formulação, mas não 43. No seu constante discernimen-
transmitimos a substância. Este é o to, a Igreja pode chegar também a
risco mais grave. Lembremo-nos de reconhecer costumes próprios não
que «a expressão da verdade pode diretamente ligados ao núcleo do
ser multiforme. E a renovação das Evangelho, alguns muito radicados
formas de expressão torna-se ne- no curso da história, que hoje já não
cessária para transmitir ao homem são interpretados da mesma manei-
franciscanos.or g.br 23
ra e cuja mensagem habitualmente esquecer aquilo que ensina, com
não é percebida de modo adequa- muita clareza, o Catecismo da Igre-
do. Podem até ser belos, mas ago- ja Católica: «A imputabilidade e
ra não prestam o mesmo serviço à responsabilidade dum ato podem
transmissão do Evangelho. Não te- ser diminuídas, e até anuladas,
nhamos medo de os rever! Da mes- pela ignorância, a inadvertência,
ma forma, há normas ou preceitos a violência, o medo, os hábitos,
eclesiais que podem ter sido muito as afeições desordenadas e ou-
eficazes noutras épocas, mas já tros fatores psíquicos ou sociais».
não têm a mesma força educativa Portanto, sem diminuir o valor do
como canais de vida. São Tomás de ideal evangélico, é preciso acompa-
Aquino sublinhava que os preceitos nhar, com misericórdia e paciência,
dados por Cristo e pelos Apóstolos as possíveis etapas de crescimento
ao povo de Deus «são pouquíssi- das pessoas, que se vão construin-
mos». E, citando Santo Agostinho, do dia após dia. Aos sacerdotes,
observava que os preceitos adicio- lembro que o confessionário não
nados posteriormente pela Igreja deve ser uma câmara de tortura,
se devem exigir com moderação, mas o lugar da misericórdia do Se-
«para não tornar pesada a vida nhor que nos incentiva a praticar o
aos fiéis» nem transformar a nossa bem possível. Um pequeno passo,
religião numa escravidão, quando no meio de grandes limitações hu-
«a misericórdia de Deus quis que manas, pode ser mais agradável a
fosse livre». Esta advertência, feita Deus do que a vida externamente
há vários séculos, tem uma atuali- correta de quem transcorre os seus
dade tremenda. Deveria ser um dos dias sem enfrentar sérias dificulda-
critérios a considerar, quando se des. A todos deve chegar a conso-
pensa numa reforma da Igreja e da lação e o estímulo do amor salvífico
sua pregação que permita realmen- de Deus, que opera misteriosamen-
te chegar a todos. te em cada pessoa, para além dos
seus defeitos e das suas quedas.
44.  Aliás, tanto os Pastores como
todos os fiéis que acompanham os 45.  Vemos assim que o compro-
seus irmãos na fé ou num caminho misso evangelizador se move por
de abertura a Deus não podem entre as limitações da linguagem e

24 franciscanos.or g.br
das circunstâncias. Procura comuni- é como o pai do filho pródigo, que
car cada vez melhor a verdade do continua com as portas abertas
Evangelho num contexto determina- para, quando este voltar, poder en-
do, sem renunciar à verdade, ao trar sem dificuldade.
bem e à luz que pode dar quando
a perfeição não é possível. Um co- 47. A Igreja é chamada a ser sem-
ração missionário está consciente pre a casa aberta do Pai. Um dos si-
destas limitações, fazendo-se «fra- nais concretos desta abertura é ter,
co com os fracos (…) e tudo para por todo o lado, igrejas com as por-
todos» (1 Cor 9, 22). Nunca se fe- tas abertas. Assim, se alguém quiser
cha, nunca se refugia nas próprias seguir uma moção do Espírito e se
seguranças, nunca opta pela rigi- aproximar à procura de Deus, não
dez auto-defensiva. Sabe que ele esbarrará com a frieza duma porta
mesmo deve crescer na compreen- fechada. Mas há outras portas que
são do Evangelho e no discernimen- também não se devem fechar: todos
to das sendas do Espírito, e assim podem participar de alguma forma
não renuncia ao bem possível, ain- na vida eclesial, todos podem fa-
da que corra o risco de sujar-se com zer parte da comunidade, e nem
a lama da estrada. sequer as portas dos sacramentos
se deveriam fechar por uma razão
5. UMA MÃE DE CORAÇÃO qualquer. Isto vale sobretudo quan-
ABERTO do se trata daquele sacramento que
é a «porta»: o Batismo. A Eucaris-
46.  A Igreja «em saída» é uma tia, embora constitua a plenitude da
Igreja com as portas abertas. Sair vida sacramental, não é um prêmio
em direção aos outros para chegar para os perfeitos, mas um remédio
às periferias humanas não signifi- generoso e um alimento para os
ca correr pelo mundo sem direção fracos. Estas convicções têm tam-
nem sentido. Muitas vezes é melhor bém consequências pastorais, que
diminuir o ritmo, pôr de parte a somos chamados a considerar com
ansiedade para olhar nos olhos e prudência e audácia. Muitas vezes
escutar, ou renunciar às urgências agimos como controladores da gra-
para acompanhar quem ficou caí- ça e não como facilitadores. Mas
do à beira do caminho. Às vezes, a Igreja não é uma alfândega; é a
franciscanos.or g.br 25
casa paterna, onde há lugar para saído pelas estradas, a uma Igreja
todos com a sua vida fadigosa. enferma pelo fechamento e a como-
didade de se agarrar às próprias
48. Se a Igreja inteira assume este seguranças. Não quero uma Igre-
dinamismo missionário, há-de che- ja preocupada com ser o centro, e
gar a todos, sem exceção. Mas, a que acaba presa num emaranhado
quem deveria privilegiar? Quando de obsessões e procedimentos. Se
se lê o Evangelho, encontramos alguma coisa nos deve santamente
uma orientação muito clara: não inquietar e preocupar a nossa cons-
tanto aos amigos e vizinhos ricos, ciência é que haja tantos irmãos
mas sobretudo aos pobres e aos nossos que vivem sem a força, a luz
doentes, àqueles que muitas vezes e a consolação da amizade com Je-
são desprezados e esquecidos, sus Cristo, sem uma comunidade de
«àqueles que não têm com que te fé que os acolha, sem um horizonte
retribuir» (Lc 14, 14). Não devem de sentido e de vida. Mais do que
subsistir dúvidas nem explicações o temor de falhar, espero que nos
que debilitem esta mensagem cla- mova o medo de nos encerrarmos
ríssima. Hoje e sempre, «os pobres nas estruturas que nos dão uma fal-
são os destinatários privilegiados sa proteção, nas normas que nos
do Evangelho», e a evangelização transformam em juízes implacáveis,
dirigida gratuitamente a eles é sinal nos hábitos em que nos sentimos
do Reino que Jesus veio trazer. Há tranquilos, enquanto lá fora há uma
que afirmar sem rodeios que existe multidão faminta e Jesus repete-nos
um vínculo indissolúvel entre a nos- sem cessar: «Dai-lhes vós mesmos
sa fé e os pobres. Não os deixemos de comer» (Mc 6, 37).
jamais sozinhos!
Capítulo II
49.  Saiamos, saiamos para ofere- NA CRISE DO
cer a todos a vida de Jesus Cristo! COMPROMISSO
Repito aqui, para toda a Igreja, COMUNITÁRIO
aquilo que muitas vezes disse aos
sacerdotes e aos leigos de Buenos 50.  Antes de falar de algumas
Aires: prefiro uma Igreja aciden- questões fundamentais relativas à
tada, ferida e enlameada por ter ação evangelizadora, convém re-

26 franciscanos.or g.br
cordar brevemente o contexto em pretar as moções do espírito bom
que temos de viver e agir. É habi- e do espírito mau, mas também – e
tual hoje falar-se dum «excesso de aqui está o ponto decisivo – esco-
diagnóstico», que nem sempre é lher as do espírito bom e rejeitar
acompanhado por propostas reso- as do espírito mau. Pressuponho as
lutivas e realmente aplicáveis. Por várias análises que ofereceram os
outro lado, também não nos seria outros documentos do Magistério
de grande proveito um olhar pu- universal, bem como as propostas
ramente sociológico, que tivesse a pelos episcopados regionais e na-
pretensão, com a sua metodologia, cionais. Nesta Exortação, pretendo
de abraçar toda a realidade de ma- debruçar-me, brevemente e numa
neira supostamente neutra e assép- perspectiva pastoral, apenas sobre
tica. O que quero oferecer situa-se alguns aspectos da realidade que
mais na linha dum discernimento podem deter ou enfraquecer os di-
evangélico. É o olhar do discípulo namismos de renovação missioná-
missionário que «se nutre da luz e ria da Igreja, seja porque afetam
da força do Espírito Santo». a vida e a dignidade do povo de
Deus, seja porque incidem sobre os
51.  Não é função do Papa ofere- sujeitos que mais diretamente par-
cer uma análise detalhada e com- ticipam nas instituições eclesiais e
pleta da realidade contemporânea, nas tarefas de evangelização.
mas animo todas as comunidades a
«uma capacidade sempre vigilante 1. ALGUNS DESAFIOS DO MUNDO
de estudar os sinais dos tempos». ATUAL
Trata-se duma responsabilidade
grave, pois algumas realidades ho- 52. A humanidade vive, neste mo-
diernas, se não encontrarem boas mento, uma viragem histórica, que
soluções, podem desencadear pro- podemos constatar nos progressos
cessos de desumanização tais que que se verificam em vários cam-
será difícil depois retroceder. É pos. São louváveis os sucessos que
preciso esclarecer o que pode ser contribuem para o bem-estar das
um fruto do Reino e também o que pessoas, por exemplo, no âmbito
atenta contra o projeto de Deus. Isto da saúde, da educação e da co-
implica não só reconhecer e inter- municação. Todavia não podemos
franciscanos.or g.br 27
esquecer que a maior parte dos clusão e da desigualdade social».
homens e mulheres do nosso tempo Esta economia mata. Não é possí-
vive o seu dia a dia precariamen- vel que a morte por enregelamento
te, com funestas consequências. dum idoso sem abrigo não seja notí-
Aumentam algumas doenças. O cia, enquanto o é a descida de dois
medo e o desespero apoderam-se pontos na Bolsa. Isto é exclusão.
do coração de inúmeras pessoas, Não se pode tolerar mais o fato de
mesmo nos chamados países ricos. se lançar comida no lixo, quando
A alegria de viver frequentemente há pessoas que passam fome. Isto é
se desvanece; crescem a falta de desigualdade social. Hoje, tudo en-
respeito e a violência, a desigual- tra no jogo da competitividade e da
dade social torna-se cada vez mais lei do mais forte, onde o poderoso
patente. É preciso lutar para viver, engole o mais fraco. Em consequên-
e muitas vezes viver com pouca cia desta situação, grandes massas
dignidade. Esta mudança de época da população veem-se excluídas e
foi causada pelos enormes saltos marginalizadas: sem trabalho, sem
qualitativos, quantitativos, velozes perspectivas, num beco sem saída.
e acumulados que se verificam no O ser humano é considerado, em si
progresso científico, nas inovações mesmo, como um bem de consumo
tecnológicas e nas suas rápidas que se pode usar e depois lançar
aplicações em diversos âmbitos da fora. Assim teve início a cultura do
natureza e da vida. Estamos na era «descartável», que aliás chega a ser
do conhecimento e da informação, promovida. Já não se trata simples-
fonte de novas formas de um poder mente do fenômeno de exploração
muitas vezes anônimo. e opressão, mas duma realidade
nova: com a exclusão, fere-se, na
NÃO A UMA ECONOMIA DA própria raiz, a pertença à socieda-
EXCLUSÃO de onde se vive, pois quem vive nas
favelas, na periferia ou sem poder
53.  Assim como o mandamento já não está nela, mas fora. Os ex-
«não matar» põe um limite claro cluídos não são «explorados», mas
para assegurar o valor da vida hu- resíduos, «sobras».
mana, assim também hoje devemos
dizer «não a uma economia da ex- 54.  Neste contexto, alguns defen-

28 franciscanos.or g.br
dem ainda as teorias da «recaída NÃO À NOVA IDOLATRIA DO
favorável» que pressupõem que DINHEIRO
todo o crescimento econômico,
favorecido pelo livre mercado, 55.  Uma das causas desta situa-
consegue por si mesmo produzir ção está na relação estabelecida
maior equidade e inclusão social com o dinheiro, porque aceitamos
no mundo. Esta opinião, que nunca pacificamente o seu domínio sobre
foi confirmada pelos fatos, exprime nós e as nossas sociedades. A crise
uma confiança vaga e ingênua na financeira que atravessamos faz-
bondade daqueles que detêm o po- -nos esquecer que, na sua origem,
der econômico e nos mecanismos há uma crise antropológica pro-
sacralizados do sistema econômico funda: a negação da primazia do
reinante. Entretanto, os excluídos ser humano. Criamos novos ídolos.
continuam a esperar. Para se poder A adoração do antigo bezerro de
apoiar um estilo de vida que exclui ouro (cf. Ex 32, 1-35) encontrou
os outros ou mesmo entusiasmar-se uma nova e cruel versão no feti-
com este ideal egoísta, desenvol- chismo do dinheiro e na ditadura
veu-se uma globalização da indi- duma economia sem rosto e sem
ferença. Quase sem nos dar con- um objetivo verdadeiramente huma-
ta, tornamo-nos incapazes de nos no. A crise mundial, que investe as
compadecer ao ouvir os clamores finanças e a economia, põe a des-
alheios, já não choramos à vista coberto os seus próprios desequilí-
do drama dos outros, nem nos in- brios e sobretudo a grave carência
teressamos por cuidar deles, como duma orientação antropológica que
se tudo fosse uma responsabilidade reduz o ser humano apenas a uma
de outrem, que não nos incumbe. A das suas necessidades: o consumo.
cultura do bem-estar anestesia-nos,
a ponto de perdermos a serenida- 56.  Enquanto os lucros de poucos
de se o mercado oferece algo que crescem exponencialmente, os da
ainda não compramos, enquanto maioria situam-se cada vez mais
todas estas vidas ceifadas por falta longe do bem-estar daquela mino-
de possibilidades nos parecem um ria feliz. Tal desequilíbrio provém
mero espetáculo que não nos inco- de ideologias que defendem a au-
moda de forma alguma. tonomia absoluta dos mercados e
franciscanos.or g.br 29
a especulação financeira. Por isso, der. É sentida como uma ameaça,
negam o direito de controle dos Es- porque condena a manipulação e
tados, encarregados de velar pela degradação da pessoa. Em última
tutela do bem comum. Instaura-se instância, a ética leva a Deus que
uma nova tirania invisível, às vezes espera uma resposta comprome-
virtual, que impõe, de forma unila- tida que está fora das categorias
teral e implacável, as suas leis e as do mercado. Para estas, se absolu-
suas regras. Além disso, a dívida e tizadas, Deus é incontrolável, não
os respectivos juros afastam os pa- manipulável e até mesmo perigoso,
íses das possibilidades viáveis da na medida em que chama o ser
sua economia, e os cidadãos do humano à sua plena realização e
seu real poder de compra. A tudo à independência de qualquer tipo
isto vem juntar-se uma corrupção ra- de escravidão. A ética – uma ética
mificada e uma evasão fiscal egoís- não ideologizada – permite criar
ta, que assumiram dimensões mun- um equilíbrio e uma ordem social
diais. A ambição do poder e do ter mais humana. Neste sentido, animo
não conhece limites. Neste sistema os peritos financeiros e os gover-
que tende a fagocitar tudo para au- nantes dos vários países a consi-
mentar os benefícios, qualquer rea- derarem as palavras dum sábio da
lidade que seja frágil, como o meio antiguidade: «Não fazer os pobres
ambiente, fica indefesa face aos participar dos seus próprios bens é
interesses do mercado divinizado, roubá-los e tirar-lhes a vida. Não
transformados em regra absoluta. são nossos, mas deles, os bens que
aferrolhamos».
NÃO A UM DINHEIRO QUE
GOVERNA EM VEZ DE SERVIR 58.  Uma reforma financeira que
tivesse em conta a ética exigiria
57. Por detrás desta atitude, escon- uma vigorosa mudança de atitudes
dem-se a rejeição da ética e a re- por parte dos dirigentes políticos, a
cusa de Deus. Para a ética, olha-se quem exorto a enfrentar este desa-
habitualmente com um certo despre- fio com determinação e clarividên-
zo sarcástico; é considerada con- cia, sem esquecer naturalmente a
traproducente, demasiado humana, especificidade de cada contexto. O
porque relativiza o dinheiro e o po- dinheiro deve servir, e não gover-

30 franciscanos.or g.br
nar! O Papa ama a todos, ricos e a reação violenta de quantos são
pobres, mas tem a obrigação, em excluídos do sistema, mas porque o
nome de Cristo, de lembrar que os sistema social e econômico é injus-
ricos devem ajudar os pobres, res- to na sua raiz. Assim como o bem
peitá-los e promovê-los. Exorto-vos tende a difundir-se, assim também
a uma solidariedade desinteressa- o mal consentido, que é a injustiça,
da e a um regresso da economia e tende a expandir a sua força nociva
das finanças a uma ética propícia e a minar, silenciosamente, as ba-
ao ser humano. ses de qualquer sistema político e
social, por mais sólido que pareça.
NÃO À DESIGUALDADE SOCIAL Se cada ação tem consequências,
QUE GERA VIOLÊNCIA um mal embrenhado nas estruturas
duma sociedade sempre contém um
59.  Hoje, em muitas partes, recla- potencial de dissolução e de morte.
ma-se maior segurança. Mas, en- É o mal cristalizado nas estruturas
quanto não se eliminar a exclusão sociais injustas, a partir do qual não
e a desigualdade dentro da socie- podemos esperar um futuro melhor.
dade e entre os vários povos será Estamos longe do chamado «fim da
impossível desarreigar a violência. história», já que as condições dum
Acusam-se da violência os pobres desenvolvimento sustentável e pa-
e as populações mais pobres, mas, cífico ainda não estão adequada-
sem igualdade de oportunidades, mente implantadas e realizadas.
as várias formas de agressão e de
guerra encontrarão um terreno fértil 60.  Os mecanismos da economia
que, mais cedo ou mais tarde, há- atual promovem uma exacerbação
-de provocar a explosão. Quando a do consumo, mas sabe-se que o
sociedade – local, nacional ou mun- consumismo desenfreado, aliado à
dial – abandona na periferia uma desigualdade social, é duplamen-
parte de si mesma, não há progra- te daninho para o tecido social.
mas políticos, nem forças da ordem Assim, mais cedo ou mais tarde, a
ou serviços secretos que possam ga- desigualdade social gera uma vio-
rantir indefinidamente a tranquilida- lência que as corridas armamen-
de. Isto não acontece apenas por- tistas não resolvem nem poderão
que a desigualdade social provoca resolver jamais. Servem apenas
franciscanos.or g.br 31
para tentar enganar aqueles que ta, relacionada com a desilusão e
reclamam maior segurança, como a crise das ideologias que se verifi-
se hoje não se soubesse que as ar- cou como reação a tudo o que pa-
mas e a repressão violenta, mais reça totalitário. Isto não prejudica
do que dar solução, criam novos só a Igreja, mas a vida social em
e piores conflitos. Alguns compra- geral. Reconhecemos que, numa
zem-se simplesmente em culpar, cultura onde cada um pretende ser
dos próprios males, os pobres e os portador duma verdade subjectiva
países pobres, com generalizações própria, torna-se difícil que os cida-
indevidas, e pretendem encontrar a dãos queiram inserir-se num projeto
solução numa «educação» que os comum que vai além dos benefícios
tranquilize e transforme em seres e desejos pessoais.
domesticados e inofensivos. Isto
torna-se ainda mais irritante, quan- 62.  Na cultura dominante, ocupa
do os excluídos veem crescer este o primeiro lugar aquilo que é ex-
câncer social que é a corrupção terior, imediato, visível, rápido, su-
profundamente radicada em muitos perficial, provisório. O real cede
países – nos seus governos, empre- o lugar à aparência. Em muitos
sários e instituições – seja qual for a países, a globalização comportou
ideologia política dos governantes. uma acelerada deterioração das
raízes culturais com a invasão de
ALGUNS DESAFIOS CULTURAIS tendências pertencentes a outras
culturas, economicamente desenvol-
61. Evangelizamos também procu- vidas mas eticamente debilitadas.
rando enfrentar os diferentes desa- Assim se exprimiram, em distintos
fios que se nos podem apresentar. Sínodos, os Bispos de vários conti-
Às vezes, estes manifestam-se em nentes. Há alguns anos, os Bispos
verdadeiros ataques à liberdade da África, por exemplo, retomando
religiosa ou em novas situações a Encíclica  Sollicitudo rei so-
de perseguição aos cristãos, que, cialis, assinalaram que muitas ve-
nalguns países, atingiram níveis zes se quer transformar os países
alarmantes de ódio e violência. Em africanos em meras «peças de um
muitos lugares, trata-se mais de uma mecanismo, partes de uma engre-
generalizada indiferença relativis- nagem gigantesca. Isto verifica-se

32 franciscanos.or g.br
com frequência também no domínio as suas necessidades. Estes movi-
dos meios de comunicação social, mentos religiosos, que se caracteri-
os quais, sendo na sua maior parte zam pela sua penetração sutil, vêm
geridos por centros situados na par- colmar, dentro do individualismo
te norte do mundo, nem sempre têm reinante, um vazio deixado pelo
na devida conta as prioridades e os racionalismo secularista. Além dis-
problemas próprios desses países so, é necessário reconhecer que, se
e não respeitam a sua fisionomia uma parte do nosso povo batizado
cultural». De igual modo, os Bispos não sente a sua pertença à Igreja,
da Ásia sublinharam «as influências isso deve-se também à existência de
externas que estão a penetrar nas estruturas com clima pouco acolhe-
culturas asiáticas. Vão surgindo for- dor nalgumas das nossas paróquias
mas novas de comportamento resul- e comunidades, ou à atitude buro-
tantes da orientação dos mas-media crática com que se dá resposta aos
(…). Em consequência disso, os as- problemas, simples ou complexos,
pectos negativos dos mass-media da vida dos nossos povos. Em mui-
e espetáculos estão a ameaçar os tas partes, predomina o aspecto ad-
valores tradicionais». ministrativo sobre o pastoral, bem
como uma sacramentalização sem
63.  A fé católica de muitos povos outras formas de evangelização.
encontra-se hoje perante o desafio
da proliferação de novos movimen- 64.  O processo de secularização
tos religiosos, alguns tendentes ao tende a reduzir a fé e a Igreja ao
fundamentalismo e outros que pare- âmbito privado e íntimo. Além dis-
cem propor uma espiritualidade sem so, com a negação de toda a trans-
Deus. Isto, por um lado, é o resulta- cendência, produziu-se uma cres-
do duma reação humana contra a cente deformação ética, um enfra-
sociedade materialista, consumista quecimento do sentido do pecado
e individualista e, por outro, um pessoal e social e um aumento pro-
aproveitamento das carências da gressivo do relativismo; e tudo isso
população que vive nas periferias provoca uma desorientação gene-
e zonas pobres, sobrevive no meio ralizada, especialmente na fase tão
de grandes preocupações humanas vulnerável às mudanças da adoles-
e procura soluções imediatas para cência e juventude. Como justamen-
franciscanos.or g.br 33
te observam os Bispos dos Estados fiável no que diz respeito ao âmbi-
Unidos da América, enquanto a to da solidariedade e preocupação
Igreja insiste na existência de nor- pelos mais indigentes. Em repetidas
mas morais objetivas, válidas para ocasiões, ela serviu de medianeira
todos, «há aqueles que apresentam na solução de problemas que afe-
esta doutrina como injusta, ou seja, tam a paz, a concórdia, o meio am-
contrária aos direitos humanos bási- biente, a defesa da vida, os direitos
cos. Tais alegações brotam habitual- humanos e civis etc. E como é gran-
mente de uma forma de relativismo de a contribuição das escolas e das
moral, que se une consistentemente universidades católicas no mundo
a uma confiança nos direitos abso- inteiro! E é muito bom que assim
lutos dos indivíduos. Nesta perspec- seja. Mas, quando levantamos ou-
tiva, a Igreja é sentida como se es- tras questões que suscitam menor
tivesse promovendo um convencio- acolhimento público, custa-nos a
nalismo particular e interferisse com demonstrar que o fazemos por fide-
a liberdade individual». Vivemos lidade às mesmas convicções sobre
numa sociedade da informação a dignidade da pessoa humana e
que nos satura indiscriminadamente do bem comum.
de dados, todos postos ao mesmo
nível, e acaba por nos conduzir a 66.  A família atravessa uma crise
uma tremenda superficialidade no cultural profunda, como todas as
momento de enquadrar as questões comunidades e vínculos sociais. No
morais. Por conseguinte, torna-se caso da família, a fragilidade dos
necessária uma educação que ensi- vínculos reveste-se de especial gravi-
ne a pensar criticamente e ofereça dade, porque se trata da célula bá-
um caminho de amadurecimento sica da sociedade, o espaço onde
nos valores. se aprende a conviver na diferença
e a pertencer aos outros e onde os
65. Apesar de toda a corrente se- pais transmitem a fé aos seus filhos.
cularista que invade a sociedade, O matrimônio tende a ser visto como
em muitos países – mesmo onde mera forma de gratificação afetiva,
o cristianismo está em minoria – a que se pode constituir de qualquer
Igreja Católica é uma instituição maneira e modificar-se de acordo
credível perante a opinião pública, com a sensibilidade de cada um.

34 franciscanos.or g.br
Mas a contribuição indispensável manifesta uma sede de participa-
do matrimônio à sociedade supe- ção de numerosos cidadãos, que
ra o nível da afetividade e o das querem ser construtores do desen-
necessidades ocasionais do casal. volvimento social e cultural.
Como ensinam os Bispos franceses,
não provém «do sentimento amoro- DESAFIOS DA
so, efémero por definição, mas da INCULTURAÇÃO DA FÉ
profundidade do compromisso as-
sumido pelos esposos que aceitam 68. O substrato cristão dalguns po-
entrar numa união de vida total». vos – sobretudo ocidentais – é uma
realidade viva. Aqui encontramos,
67. O individualismo pós-moderno especialmente nos mais necessita-
e globalizado favorece um estilo dos, uma reserva moral que guar-
de vida que debilita o desenvolvi- da valores de autêntico humanismo
mento e a estabilidade dos víncu- cristão. Um olhar de fé sobre a rea-
los entre as pessoas e distorce os lidade não pode deixar de reconhe-
vínculos familiares. A ação pasto- cer o que semeia o Espírito Santo.
ral deve mostrar ainda melhor que Significaria não ter confiança na
a relação com o nosso Pai exige e sua ação livre e generosa pensar
incentiva uma comunhão que cura, que não existem autênticos valores
promove e fortalece os vínculos in- cristãos, onde uma grande parte da
terpessoais. Enquanto no mundo, população recebeu o Batismo e ex-
especialmente nalguns países, se prime de variadas maneiras a sua
reacendem várias formas de guer- fé e solidariedade fraterna. Aqui há
ras e conflitos, nós, cristãos, insis- que reconhecer muito mais que «se-
timos na proposta de reconhecer mentes do Verbo», visto que se trata
o outro, de curar as feridas, de duma autêntica fé católica com mo-
construir pontes, de estreitar laços dalidades próprias de expressão e
e de nos ajudarmos «a carregar as de pertença à Igreja. Não convém
cargas uns dos outros» (Gal 6, 2). ignorar a enorme importância que
Além disso, vemos hoje surgir mui- tem uma cultura marcada pela fé,
tas formas de agregação para a porque, não obstante os seus limi-
defesa de direitos e a consecução tes, esta cultura evangelizada tem,
de nobres objetivos. Deste modo se contra os ataques do secularismo
franciscanos.or g.br 35
atual, muitos mais recursos do que vam a recorrer à bruxaria etc. Mas
a mera soma dos crentes. Uma cul- o melhor ponto de partida para
tura popular evangelizada contém curar e ver-se livre de tais fragilida-
valores de fé e solidariedade que des é precisamente a piedade po-
podem provocar o desenvolvimento pular.
duma sociedade mais justa e cren-
te, e possui uma sabedoria peculiar 70. Certo é também que, às vezes,
que devemos saber reconhecer com se dá maior realce a formas exte-
olhar agradecido. riores das tradições de grupos con-
cretos ou a supostas revelações pri-
69.  Há uma necessidade imperio- vadas, que se absolutizam, do que
sa de evangelizar as culturas para ao impulso da piedade cristã. Há
inculturar o Evangelho. Nos países certo cristianismo feito de devoções
de tradição católica, tratar-se-á de – próprio duma vivência individual
acompanhar, cuidar e fortalecer e sentimental da fé – que, na reali-
a riqueza que já existe e, nos pa- dade, não corresponde a uma au-
íses de outras tradições religiosas têntica «piedade popular». Alguns
ou profundamente secularizados, promovem estas expressões sem se
há que procurar novos processos preocupar com a promoção social
de evangelização da cultura, ain- e a formação dos fiéis, fazendo-o
da que suponham projetos a longo nalguns casos para obter benefícios
prazo. Entretanto não podemos ig- econômicos ou algum poder sobre
norar que há sempre uma chama- os outros. Também não podemos ig-
da ao crescimento: toda a cultura e norar que, nas últimas décadas, se
todo o grupo social necessitam de produziu uma ruptura na transmis-
purificação e amadurecimento. No são geracional da fé cristã no povo
caso das culturas populares de po- católico. É inegável que muitos se
vos católicos, podemos reconhecer sentem desiludidos e deixam de se
algumas fragilidades que precisam identificar com a tradição católica,
ainda de ser curadas pelo Evange- que cresceu o número de pais que
lho: o machismo, o alcoolismo, a não batizam os seus filhos nem os
violência doméstica, uma escassa ensinam a rezar, e que há um certo
participação na Eucaristia, crenças êxodo para outras comunidades de
fatalistas ou supersticiosas que le- fé. Algumas causas desta ruptura

36 franciscanos.or g.br
são a falta de espaços de diálogo sa de ser criada, mas descoberta,
familiar, a influência dos meios de desvendada. Deus não Se esconde
comunicação, o subjetivismo rela- de quantos O buscam com coração
tivista, o consumismo desenfreado sincero, ainda que o façam tactean-
que o mercado incentiva, a falta de do, de maneira imprecisa e incerta.
cuidado pastoral pelos mais pobres, 72. Na cidade, o elemento religio-
a inexistência dum acolhimento cor- so é mediado por diferentes estilos
dial nas nossas instituições, e a difi- de vida, por costumes ligados a
culdade que sentimos em recriar a um sentido do tempo, do território
adesão mística da fé num cenário e das relações que difere do esti-
religioso pluralista. lo das populações rurais. Na vida
quotidiana, muitas vezes os citadi-
DESAFIOS DAS CULTURAS nos lutam para sobreviver e, nesta
URBANAS luta, esconde-se um sentido profun-
do da existência que habitualmen-
71.  A nova Jerusalém, a cidade te comporta também um profundo
santa (cf. Ap 21, 2-4), é a meta sentido religioso. Precisamos de o
para onde peregrina toda a huma- contemplar para conseguirmos um
nidade. É interessante que a reve- diálogo parecido com o que o Se-
lação nos diga que a plenitude da nhor teve com a Samaritana, junto
humanidade e da história se reali- do poço onde ela procurava saciar
za numa cidade. Precisamos  iden- a sua sede (cf. Jo 4, 7-26).
tificar a cidade a partir dum olhar
contemplativo, isto é, um olhar de fé 73.  Novas culturas continuam a
que descubra Deus que habita nas formar-se nestas enormes geogra-
suas casas, nas suas ruas, nas suas fias humanas onde o cristão já não
praças. A presença de Deus acom- costuma ser promotor ou gerador
panha a busca sincera que indivídu- de sentido, mas recebe delas outras
os e grupos efetuam para encontrar linguagens, símbolos, mensagens
apoio e sentido para a sua vida. Ele e paradigmas que oferecem novas
vive entre os citadinos promovendo orientações de vida, muitas vezes
a solidariedade, a fraternidade, em contraste com o Evangelho de
o desejo de bem, de verdade, de Jesus. Uma cultura inédita palpita e
justiça. Esta presença não preci- está em elaboração na cidade. O
franciscanos.or g.br 37
Sínodo constatou que as transfor- convivem variadas formas culturais,
mações destas grandes áreas e a mas exercem muitas vezes práticas
cultura que exprimem são, hoje, um de segregação e violência. A Igre-
lugar privilegiado da nova evange- ja é chamada a ser servidora dum
lização. Isto requer imaginar espa- diálogo difícil. Enquanto há citadi-
ços de oração e de comunhão com nos que conseguem os meios ade-
características inovadoras, mais quados para o desenvolvimento da
atraentes e significativas para as vida pessoal e familiar, muitíssimos
populações urbanas. Os ambien- são também os «não-citadinos», os
tes rurais, devido à influência dos «meio-citadinos» ou os «resíduos ur-
mass-media, não estão imunes des- banos». A cidade dá origem a uma
tas transformações culturais que espécie de ambivalência permanen-
também operam mudanças signifi- te, porque, ao mesmo tempo que
cativas nas suas formas de vida. oferece aos seus habitantes infinitas
possibilidades, interpõe também
74. Torna-se necessária uma evan- numerosas dificuldades ao pleno
gelização que ilumine os novos desenvolvimento da vida de muitos.
modos de se relacionar com Deus, Esta contradição provoca sofrimen-
com os outros e com o ambiente, tos lancinantes. Em muitas partes do
e que suscite os valores fundamen- mundo, as cidades são cenário de
tais. É necessário chegar aonde são protestos em massa, onde milhares
concebidas as novas histórias e pa- de habitantes reclamam liberda-
radigmas, alcançar com a Palavra de, participação, justiça e várias
de Jesus os núcleos mais profun- reivindicações que, se não forem
dos da alma das cidades. Não se adequadamente interpretadas, nem
deve esquecer que a cidade é um pela força poderão ser silenciadas.
âmbito multicultural. Nas grandes
cidades, pode observar-se uma tra- 75. Não podemos ignorar que, nas
ma em que grupos de pessoas com- cidades, facilmente se desenvolve o
partilham as mesmas formas de so- tráfico de drogas e de pessoas, o
nhar a vida e ilusões semelhantes, abuso e a exploração de menores,
constituindo-se em novos setores hu- o abandono de idosos e doentes,
manos, em territórios culturais, em várias formas de corrupção e crime.
cidades invisíveis. Na realidade, Ao mesmo tempo, o que poderia

38 franciscanos.or g.br
ser um precioso espaço de encontro de os Bispos até ao mais simples
e solidariedade, transforma-se mui- e ignorado dos serviços eclesiais.
tas vezes num lugar de retraimento Prefiro refletir sobre os desafios
e desconfiança mútua. As casas e que todos eles enfrentam no meio
os bairros constroem-se mais para da cultura globalizada atual. Mas,
isolar e proteger do que para unir antes de tudo e como dever de jus-
e integrar. A proclamação do Evan- tiça, tenho a dizer que é enorme
gelho será uma base para restabe- a contribuição da Igreja no mundo
lecer a dignidade da vida huma- atual. A nossa tristeza e vergonha
na nestes contextos, porque Jesus pelos pecados de alguns membros
quer derramar nas cidades vida da Igreja, e pelos próprios, não
em abundância (cf. Jo 10, 10). O devem fazer esquecer os inúme-
sentido unitário e completo da vida ros cristãos que dão a vida por
humana proposto pelo Evangelho amor: ajudam tantas pessoas seja
é o melhor remédio para os males a curar-se seja a morrer em paz em
urbanos, embora devamos reparar hospitais precários, acompanham
que um programa e um estilo uni- as pessoas que caíram escravas
formes e rígidos de evangelização de diversos vícios nos lugares mais
não são adequados para esta reali- pobres da terra, prodigalizam-se
dade. Mas viver a fundo a realida- na educação de crianças e jovens,
de humana e inserir-se no coração cuidam de idosos abandonados
dos desafios como fermento de tes- por todos, procuram comunicar va-
temunho, em qualquer cultura, em lores em ambientes hostis, e dedi-
qualquer cidade, melhora o cristão cam-se de muitas outras maneiras
e fecunda a cidade. que mostram o imenso amor à hu-
manidade inspirado por Deus feito
2. TENTAÇÕES DOS AGENTES homem. Agradeço o belo exemplo
PASTORAIS que me dão tantos cristãos que ofe-
recem a sua vida e o seu tempo
76.  Sinto uma enorme gratidão com alegria. Este testemunho faz-
pela tarefa de quantos trabalham -me muito bem e me apoia na mi-
na Igreja. Não quero agora deter- nha aspiração pessoal de superar
-me na exposição das atividades o egoísmo para uma dedicação
dos vários agentes pastorais, des- maior.
franciscanos.or g.br 39
77. Apesar disso, como filhos des- a viver os próprios deveres como
ta época, todos estamos de algum mero apêndice da vida, como se
modo sob o influxo da cultura glo- não fizessem parte da própria iden-
balizada atual, que, sem deixar de tidade. Ao mesmo tempo, a vida
apresentar valores e novas possibi- espiritual confunde-se com alguns
lidades, pode também limitar-nos, momentos religiosos que propor-
condicionar-nos e até mesmo com- cionam algum alívio, mas não ali-
balir-nos. Reconheço que precisa- mentam o encontro com os outros,
mos de criar espaços apropriados o compromisso no mundo, a paixão
para motivar e sanar os agentes pela evangelização. Assim, é possí-
pastorais, «lugares onde regene- vel notar em muitos agentes evan-
rar a sua fé em Jesus crucificado e gelizadores – não obstante rezem
ressuscitado, onde compartilhar as – uma acentuação do individualis-
próprias questões mais profundas e mo, uma crise de identidade e um
as preocupações quotidianas, onde declínio do fervor. São três males
discernir em profundidade e com que se alimentam entre si.
critérios evangélicos sobre a pró-
pria existência e experiência, com 79.  A cultura mediática e alguns
o objectivo de orientar para o bem ambientes intelectuais transmitem,
e a beleza as próprias opções indi- às vezes, uma acentuada descon-
viduais e sociais». Ao mesmo tem- fiança quanto à mensagem da Igre-
po, quero chamar a atenção para ja, e um certo desencanto. Em con-
algumas tentações que afetam, sequência disso, embora rezando,
particularmente nos nossos dias, os muitos agentes pastorais desenvol-
agentes pastorais. vem uma espécie de complexo de
inferioridade que os leva a relativi-
SIM AO DESAFIO DUMA zar ou esconder a sua identidade
ESPIRITUALIDADE MISSIONÁRIA cristã e as suas convicções. Gera-se
então um círculo vicioso, porque as-
78.  Hoje nota-se em muitos agen- sim não se sentem felizes com o que
tes pastorais, mesmo pessoas con- são nem com o que fazem, não se
sagradas, uma preocupação exa- sentem identificados com a missão
cerbada pelos espaços pessoais de evangelizadora, e isto debilita a
autonomia e relaxamento, que leva entrega. Acabam assim por sufocar

40 franciscanos.or g.br
a alegria da missão numa espécie NÃO À ACÉDIA EGOÍSTA
de obsessão por serem como todos
os outros e terem o que possuem os 81. Quando mais precisamos dum
demais. Deste modo, a tarefa da dinamismo missionário que leve
evangelização torna-se forçada e sal e luz ao mundo, muitos leigos
dedica-se-lhe pouco esforço e um temem que alguém os convide a
tempo muito limitado. realizar alguma tarefa apostólica
e procuram fugir de qualquer com-
80.  Nos agentes pastorais, inde- promisso que lhes possa roubar o
pendentemente do estilo espiritual tempo livre. Hoje, por exemplo,
ou da linha de pensamento que tornou-se muito difícil nas paróquias
possam ter, desenvolve-se um rela- conseguir catequistas que estejam
tivismo ainda mais perigoso que o preparados e perseverem no seu
doutrinal. Tem a ver com as opções dever por vários anos. Mas algo pa-
mais profundas e sinceras que de- recido acontece com os sacerdotes
terminam uma forma de vida con- que se preocupam obsessivamente
creta. Este relativismo prático é agir com o seu tempo pessoal. Isto, mui-
como se Deus não existisse, decidir tas vezes, fica-se a dever a que as
como se os pobres não existissem, pessoas sentem imperiosamente ne-
sonhar como se os outros não exis- cessidade de preservar os seus es-
tissem, trabalhar como se aqueles paços de autonomia, como se uma
que não receberam o anúncio não tarefa de evangelização fosse um
existissem. É impressionante como veneno perigoso e não uma respos-
até aqueles que aparentemente dis- ta alegre ao amor de Deus que nos
põem de sólidas convicções doutri- convoca para a missão e nos torna
nais e espirituais acabam, muitas completos e fecundos. Alguns resis-
vezes, por cair num estilo de vida tem a provar até ao fundo o gosto
que os leva a agarrarem-se a segu- da missão e acabam mergulhados
ranças econômicas ou a espaços numa acédia paralisadora.
de poder e de glória humana que
se buscam por qualquer meio, em 82.  O problema não está sempre
vez de dar a vida pelos outros na no excesso de atividades, mas so-
missão. Não nos deixemos roubar bretudo nas atividades mal vividas,
o entusiasmo missionário! sem as motivações adequadas, sem
franciscanos.or g.br 41
uma espiritualidade que impregne 83.  Assim se gera a maior amea-
a ação e a torne desejável. Daí ça, que «é o pragmatismo cinzento
que as obrigações cansem mais do da vida quotidiana da Igreja, no
que é razoável, e às vezes façam qual aparentemente tudo procede
adoecer. Não se trata duma fadiga dentro da normalidade, mas na
feliz, mas tensa, gravosa, desagra- realidade a fé vai-se deteriorando
dável e, em definitivo, não assumi- e degenerando na mesquinhez».
da. Esta acédia pastoral pode ter Desenvolve-se a psicologia do túmu-
origens diversas: alguns caem nela lo, que pouco a pouco transforma
por sustentarem projetos irrealizá- os cristãos em múmias de museu.
veis e não viverem de bom grado o Desiludidos com a realidade, com
que poderiam razoavelmente fazer; a Igreja ou consigo mesmos, vivem
outros, por não aceitarem a custo- constantemente tentados a apegar-
sa evolução dos processos e que- -se a uma tristeza melosa, sem espe-
rem que tudo caia do Céu; outros, rança, que se apodera do coração
por se apegarem a alguns projetos como «o mais precioso elixir do de-
ou a sonhos de sucesso cultivados mônio». Chamados para iluminar e
pela sua vaidade; outros, por te- comunicar vida, acabam por se dei-
rem perdido o contato real com o xar cativar por coisas que só geram
povo, numa despersonalização da escuridão e cansaço interior e cor-
pastoral que leva a prestar mais roem o dinamismo apostólico. Por
atenção à organização do que às tudo isto, permiti que insista: Não
pessoas, acabando assim por se deixemos que nos roubem a alegria
entusiasmarem mais com a «tabe- da evangelização!
la de marcha» do que com a pró-
pria marcha; outros ainda caem na NÃO AO PESSIMISMO ESTÉRIL
acédia, por não saberem esperar e
quererem dominar o ritmo da vida. 84.  A alegria do Evangelho é tal
A ânsia hodierna de chegar a re- que nada e ninguém no-la poderá
sultados imediatos faz com que os tirar (cf. Jo 16, 22). Os males do
agentes pastorais não tolerem facil- nosso mundo – e os da Igreja –
mente tudo o que signifique alguma não deveriam servir como desculpa
contradição, um aparente fracasso, para reduzir a nossa entrega e o
uma crítica, uma cruz. nosso ardor. Vejamo-los como de-

42 franciscanos.or g.br
safios para crescer. Além disso, o para uma ordem de relações huma-
olhar crente é capaz de reconhecer nas que, por obra dos homens e a
a luz que o Espírito Santo sempre maior parte das vezes para além
irradia no meio da escuridão, sem do que eles esperam, se encami-
esquecer que, «onde abundou o pe- nham para o cumprimento dos seus
cado, superabundou a graça» (Rm desígnios superiores e inesperados,
5, 20). A nossa fé é desafiada a en- e tudo, mesmo as adversidades hu-
trever o vinho em que a água pode manas, converge para o bem da
ser transformada, e a descobrir o Igreja».
trigo que cresce no meio do joio.
Cinquenta anos depois do Concílio 85. Uma das tentações mais sérias
Vaticano II, apesar de nos entriste- que sufoca o fervor e a ousadia é a
cerem as misérias do nosso tempo e sensação de derrota que nos trans-
estarmos longe de optimismos ingê- forma em pessimistas lamurientos
nuos, um maior realismo não deve e desencantados com cara de vi-
significar menor confiança no Espí- nagre. Ninguém pode empreender
rito nem menor generosidade. Nes- uma luta, se de antemão não está
te sentido, podemos voltar a ouvir plenamente confiado no triunfo.
as palavras pronunciadas pelo Bea- Quem começa sem confiança, per-
to João XXIII naquele memorável 11 deu de antemão metade da batalha
de outubro de 1962: «Chegam-nos e enterra os seus talentos. Embora
aos ouvidos insinuações de almas, com a dolorosa consciência das
ardorosas sem dúvida no zelo, mas próprias fraquezas, há que seguir
não dotadas de grande sentido de em frente, sem se dar por vencido,
discrição e moderação. Nos tem- e recordar o que disse o Senhor a
pos atuais, não veem senão preva- São Paulo: «Basta-te a minha gra-
ricações e ruínas. [...] Mas a nós ça, porque a força manifesta-se na
parece-nos que devemos discordar fraqueza» (2 Cor 12, 9). O triun-
desses profetas de desgraças, que fo cristão é sempre uma cruz, mas
anunciam acontecimentos sempre cruz que é, simultaneamente, estan-
infaustos, como se estivesse iminen- darte de vitória, que se empunha
te o fim do mundo. Na ordem pre- com ternura batalhadora contra as
sente das coisas, a misericordiosa investidas do mal. O mau espírito
Providência está-nos levantando da derrota é irmão da tentação de
franciscanos.or g.br 43
separar prematuramente o trigo do deserto, existe sobretudo a neces-
joio, resultado de uma desconfian- sidade de pessoas de fé que, com
ça ansiosa e egocêntrica. suas próprias vidas, indiquem o
caminho para a Terra Prometida,
86.  É verdade que, nalguns luga- mantendo assim viva a esperança».
res, se produziu uma «desertifica- Em todo o caso, lá somos chama-
ção» espiritual, fruto do projeto de dos a ser pessoas-cântaro para dar
sociedades que querem construir de beber aos outros. Às vezes o
sem Deus ou que destroem as suas cântaro transforma-se numa pesada
raízes cristãs. Lá, «o mundo cristão cruz, mas foi precisamente na Cruz
está a tornar-se estéril e se esgota que o Senhor, trespassado, Se nos
como uma terra excessivamente entregou como fonte de água viva.
desfrutada que se transforma em Não deixemos que nos roubem a
poeira». Noutros países, a resistên- esperança!
cia violenta ao cristianismo obriga
os cristãos a viverem a sua fé às es- SIM ÀS RELAÇÕES NOVAS
condidas no país que amam. Esta GERADAS POR JESUS CRISTO
é outra forma muito triste de deser-
to. E a própria família ou o lugar 87. Neste tempo em que as redes
de trabalho podem ser também o e demais instrumentos da comunica-
tal ambiente árido, onde há que ção humana alcançaram progres-
conservar a fé e procurar irradiá- sos inauditos, sentimos o desafio de
-la. Mas «é precisamente a partir descobrir e transmitir a «mística» de
da experiência deste deserto, deste viver juntos, misturar-nos, encontrar-
vazio, que podemos redescobrir a -nos, dar o braço, apoiar-nos, parti-
alegria de crer, a sua importância cipar nesta maré um pouco caótica
vital para nós, homens e mulheres. que pode transformar-se numa ver-
No deserto, é possível redescobrir o dadeira experiência de fraternida-
valor daquilo que é essencial para de, numa caravana solidária, numa
a vida; assim sendo, no mundo de peregrinação sagrada. Assim, as
hoje, há inúmeros sinais da sede maiores possibilidades de comu-
de Deus, do sentido último da vida, nicação traduzir-se-ão em novas
ainda que muitas vezes expressos oportunidades de encontro e soli-
implícita ou negativamente. E, no dariedade entre todos. Como seria

44 franciscanos.or g.br
bom, salutar, libertador, esperanço- carne é inseparável do dom de si
so, se pudéssemos trilhar este cami- mesmo, da pertença à comunidade,
nho! Sair de si mesmo para se unir do serviço, da reconciliação com a
aos outros faz bem. Fechar-se em si carne dos outros. Na sua encarna-
mesmo é provar o veneno amargo ção, o Filho de Deus convidou-nos à
da imanência, e a humanidade per- revolução da ternura.
derá com cada opção egoísta que
fizermos. 89. O isolamento, que é uma con-
cretização do imanentismo, pode
88. O ideal cristão convidará sem- exprimir-se numa falsa autonomia
pre a superar a suspeita, a descon- que exclui Deus, mas pode também
fiança permanente, o medo de ser- encontrar na religião uma forma de
mos invadidos, as atitudes defensi- consumismo espiritual à medida do
vas que nos impõe o mundo atual. próprio individualismo doentio. O
Muitos tentam escapar dos outros regresso ao sagrado e a busca es-
fechando-se na sua privacidade piritual, que caracterizam a nossa
confortável ou no círculo reduzido época. são fenômenos ambíguos.
dos mais íntimos, e renunciam ao re- Mais do que o ateísmo, o desafio
alismo da dimensão social do Evan- que hoje se nos apresenta é respon-
gelho. Porque, assim como alguns der adequadamente à sede de Deus
quiseram um Cristo puramente espi- de muitas pessoas, para que não te-
ritual, sem carne nem cruz, também nham de ir apagá-la com propostas
se pretendem relações interpessoais alienantes ou com um Jesus Cristo
mediadas apenas por sofisticados sem carne e sem compromisso com
aparatos, por ecrãs e sistemas que o outro. Se não encontram na Igre-
se podem acender e apagar à von- ja uma espiritualidade que os cure,
tade. Entretanto o Evangelho convi- liberte, encha de vida e de paz, ao
da-nos sempre a abraçar o risco do mesmo tempo que os chame à co-
encontro com o rosto do outro, com munhão solidária e à fecundidade
a sua presença física que interpela, missionária, acabarão enganados
com o seu sofrimentos e suas reivin- por propostas que não humanizam
dicações, com a sua alegria conta- nem dão glória a Deus.
giosa permanecendo lado a lado. A
verdadeira fé no Filho de Deus feito 90. As formas próprias da religiosi-
franciscanos.or g.br 45
dade popular são encarnadas, por- falta ajudar a reconhecer que o úni-
que brotaram da encarnação da fé co caminho é aprender a encontrar
cristã numa cultura popular. Por isso os demais com a atitude adequada,
mesmo, incluem uma relação pes- que é valorizá-los e aceitá-los como
soal, não com energias harmoniza- companheiros de estrada, sem resis-
doras, mas com Deus, Jesus Cristo, tências interiores. Melhor ainda, tra-
Maria, um Santo. Têm carne, têm ta-se de aprender a descobrir Jesus
rostos. Estão aptas para alimentar no rosto dos outros, na sua voz, nas
potencialidades relacionais e não suas reivindicações; e aprender tam-
tanto fugas individualistas. Noutros bém a sofrer, num abraço com Je-
setores da nossa sociedade, cres- sus crucificado, quando recebemos
ce o apreço por várias formas de agressões injustas ou ingratidões,
«espiritualidade do bem-estar» sem sem nos cansarmos jamais de optar
comunidade, por uma «teologia da pela fraternidade.
prosperidade» sem compromissos
fraternos ou por experiências sub- 92.  Nisto está a verdadeira cura:
jectivas sem rostos, que se reduzem de fato, o modo de nos relacionar-
a uma busca interior imanentista. mos com os outros que, em vez de
nos adoecer, nos cura é uma frater-
91.  Um desafio importante é mos- nidade mística, contemplativa, que
trar que a solução nunca consistirá sabe ver a grandeza sagrada do
em escapar de uma relação pessoal próximo, que sabe descobrir Deus
e comprometida com Deus, que ao em cada ser humano, que sabe to-
mesmo tempo nos comprometa com lerar as moléstias da convivência
os outros. Isto é o que se verifica hoje agarrando-se ao amor de Deus,
quando os crentes procuram escon- que sabe abrir o coração ao amor
der-se e livrar-se dos outros, e quan- divino para procurar a felicidade
do sutilmente escapam de um lugar dos outros como a procura o seu
para outro ou de uma tarefa para Pai bom. Precisamente nesta época,
outra, sem criar vínculos profundos inclusive onde são um «pequenino
e estáveis: «A imaginação e mudan- rebanho» (Lc 12, 32), os discípulos
ça de lugares enganou a muitos». É do Senhor são chamados a viver
um remédio falso que faz adoecer o como comunidade que seja sal da
coração e, às vezes, o corpo. Faz terra e luz do mundo (cf. Mt 5, 13-

46 franciscanos.or g.br
16). São chamados a testemunhar, tar-se sobretudo de duas maneiras
de forma sempre nova, uma perten- profundamente relacionadas. Uma
ça evangelizadora. Não deixemos delas é o fascínio do gnosticismo,
que nos roubem a comunidade! uma fé fechada no subjetivismo,
onde apenas interessa uma determi-
NÃO AO MUNDANISMO nada experiência ou uma série de
ESPIRITUAL raciocínios e conhecimentos que su-
postamente confortam e iluminam,
93. O mundanismo espiritual, que mas, em última instância, a pessoa
se esconde por detrás de aparên- fica enclausurada na imanência
cias de religiosidade e até mesmo da sua própria razão ou dos seus
de amor à Igreja, é buscar, em vez sentimentos. A outra maneira é o
da glória do Senhor, a glória huma- neopelagianismo auto-referencial e
na e o bem-estar pessoal. É aquilo prometeuco de quem, no fundo, só
que o Senhor censurava aos fari- confia nas suas próprias forças e se
seus: «Como vos é possível acredi- sente superior aos outros por cum-
tar, se andais à procura da glória prir determinadas normas ou por
uns dos outros, e não procurais a ser irredutivelmente fiel a um certo
glória que vem do Deus único?» (Jo estilo católico próprio do passado.
5, 44). É uma maneira sutil de pro- É uma suposta segurança doutrinal
curar «os próprios interesses, não ou disciplinar que dá lugar a um eli-
os interesses de Jesus Cristo» (Fl 2, tismo narcisista e autoritário, onde,
21). Reveste-se de muitas formas, de em vez de evangelizar, se analisam
acordo com o tipo de pessoas e situ- e classificam os demais e, em vez
ações em que penetra. Por cultivar de facilitar o acesso à graça, conso-
o cuidado da aparência, nem sem- mem-se as energias a controlar. Em
pre suscita pecados de domínio pú- ambos os casos, nem Jesus Cristo
blico, pelo que externamente tudo nem os outros interessam verdadei-
parece correto. Mas, se invadisse ramente. São manifestações dum
a Igreja, «seria infinitamente mais imanentismo antropocêntrico. Não
desastroso do que qualquer outro é possível imaginar que, destas for-
mundanismo meramente moral». mas desvirtuadas do cristianismo,
possa brotar um autêntico dinamis-
94. Este mundanismo pode alimen- mo evangelizador.
franciscanos.or g.br 47
95. Este obscuro mundanismo mani- de elite, não sai realmente à pro-
festa-se em muitas atitudes, aparen- cura dos que andam perdidos nem
temente opostas mas com a mesma das imensas multidões sedentas de
pretensão de «dominar o espaço Cristo. Já não há ardor evangélico,
da Igreja». Nalguns, há um cuida- mas o gozo espúrio duma autocom-
do exibicionista da liturgia, da dou- placência egocêntrica.
trina e do prestígio da Igreja, mas
não se preocupam que o Evangelho 96.  Neste contexto, alimenta-se a
adquira uma real inserção no povo vanglória de quantos se contentam
fiel de Deus e nas necessidades con- com ter algum poder e preferem ser
cretas da história. Assim, a vida da generais de exércitos derrotados
Igreja transforma-se numa peça de antes que simples soldados dum ba-
museu ou numa possessão de pou- talhão que continua a lutar. Quan-
cos. Noutros, o próprio mundanis- tas vezes sonhamos planos apostó-
mo espiritual esconde-se por detrás licos expansionistas, meticulosos e
do fascínio de poder mostrar con- bem traçados, típicos de generais
quistas sociais e políticas, ou numa derrotados! Assim negamos a nos-
vanglória ligada à gestão de assun- sa história de Igreja, que é gloriosa
tos práticos, ou numa atração pelas por ser história de sacrifícios, de
dinâmicas de auto-estima e de rea- esperança, de luta diária, de vida
lização auto-referencial. Também se gasta no serviço, de constância no
pode traduzir em várias formas de trabalho fadigoso, porque todo o
se apresentar a si mesmo envolvido trabalho é «suor do nosso rosto».
numa densa vida social cheia de Em vez disso, entretemo-nos vaido-
viagens, reuniões, jantares, recep- sos a falar sobre «o que se deveria
ções. Ou então desdobra-se num fazer» – o pecado do «deveriaque-
funcionalismo empresarial, carrega- ísmo» – como mestres espirituais e
do de estatísticas, planificações e peritos de pastoral que dão instru-
avaliações, onde o principal benefi- ções ficando de fora. Cultivamos a
ciário não é o povo de Deus mas a nossa imaginação sem limites e per-
Igreja como organização. Em qual- demos o contacto com a dolorosa
quer um dos casos, não traz o selo realidade do nosso povo fiel.
de Cristo encarnado, crucificado e
ressuscitado, encerra-se em grupos 97. Quem caiu neste mundanismo

48 franciscanos.or g.br
olha de cima e de longe, rejeita a mundanismo espiritual leva alguns
profecia dos irmãos, desqualifica cristãos a estar em guerra com ou-
quem o questiona, faz ressaltar tros cristãos que se interpõem na
constantemente os erros alheios e sua busca pelo poder, prestígio,
vive obcecado pela aparência. Cir- prazer ou segurança econômica.
cunscreveu os pontos de referência Além disso, alguns deixam de viver
do coração ao horizonte fechado uma adesão cordial à Igreja por
da sua imanência e dos seus inte- alimentar um espírito de contenda.
resses e, consequentemente, não Mais do que pertencer à Igreja in-
aprende com os seus pecados nem teira, com a sua rica diversidade,
está verdadeiramente aberto ao pertencem a este ou àquele grupo
perdão. É uma tremenda corrup- que se sente diferente ou especial.
ção, com aparências de bem. De-
vemos evitá-lo, pondo a Igreja em 99. O mundo está dilacerado pelas
movimento de saída de si mesma, guerras e a violência, ou ferido por
de missão centrada em Jesus Cris- um generalizado individualismo
to, de entrega aos pobres. Deus que divide os seres humanos e põe-
nos livre de uma Igreja mundana -nos uns contra os outros visando
sob vestes espirituais ou pastorais! o próprio bem-estar. Em vários pa-
Este mundanismo asfixiante cura-se íses, ressurgem conflitos e antigas
saboreando o ar puro do Espírito divisões que se pensavam em parte
Santo, que nos liberta de estarmos superados. Aos cristãos de todas
centrados em nós mesmos, escondi- as comunidades do mundo, que-
dos numa aparência religiosa vazia ro pedir-lhes de modo especial um
de Deus. Não deixemos que nos testemunho de comunhão fraterna,
roubem o Evangelho! que se torne fascinante e resplan-
decente. Que todos possam admi-
NÃO À GUERRA ENTRE NÓS rar como vos preocupais uns pelos
outros, como mutuamente vos enco-
98. Dentro do povo de Deus e nas rajais animais e ajudais: «Por isto
diferentes comunidades, quantas é que todos conhecerão que sois
guerras! No bairro, no local de tra- meus discípulos: se vos amardes
balho, quantas guerras por invejas uns aos outros» (Jo 13, 35). Foi o
e ciúmes, mesmo entre cristãos! O que Jesus, com uma intensa oração,
franciscanos.or g.br 49
Jesus pediu ao Pai: «Que todos se- nos faz bem, apesar de tudo amar-
jam um só (…) em nós [para que] o -nos uns aos outros! Sim, apesar de
mundo creia» (Jo 17, 21). Cuidado tudo! A cada um de nós é dirigida
com a tentação da inveja! Estamos a exortação de Paulo: «Não te dei-
no mesmo barco e vamos para o xes vencer pelo mal, mas vence o
mesmo porto! Peçamos a graça mal com o bem» (Rm 12, 21). E
de nos alegrarmos com os frutos ainda: «Não nos cansemos de fa-
alheios, que são de todos. zer o bem» (Gal 6, 9). Todos nós
provamos simpatias e antipatias,
100.  Para quantos estão feridos e talvez neste momento estejamos
por antigas divisões, resulta difícil chateados com alguém. Pelo menos
aceitar que os exortemos ao perdão digamos ao Senhor: «Senhor, estou
e à reconciliação, porque pensam chateado com este, com aquela.
que ignoramos a sua dor ou preten- Peço-Vos por ele e por ela». Rezar
demos fazer-lhes perder a memória pela pessoa com quem estamos ir-
e os ideais. Mas, se virem o testemu- ritados é um belo passo rumo ao
nho de comunidades autenticamen- amor, e é um ato de evangeliza-
te fraternas e reconciliadas, isso é ção. Façamo-lo hoje mesmo. Não
sempre uma luz que atrai. Por isso deixemos que nos roubem o ideal
me dói muito comprovar como nal- do amor fraterno!
gumas comunidades cristãs, e mes-
mo entre pessoas consagradas, se OUTROS DESAFIOS ECLESIAIS
dá espaço a várias formas de ódio,
divisão, calúnia, difamação, vin- 102.  A imensa maioria do povo
gança, ciúme, a desejos de impor de Deus é constituída por leigos.
as próprias ideias a todo o custo, e Ao seu serviço, está uma minoria:
até perseguições que parecem uma os ministros ordenados. Cresceu a
implacável caça às bruxas. Quem consciência da identidade e da mis-
queremos evangelizar com estes são dos leigos na Igreja. Embora
comportamentos? não suficiente, pode-se contar com
um numeroso laicado, dotado de
101. Peçamos ao Senhor que nos um arreigado sentido de comuni-
faça compreender a lei do amor. dade e uma grande fidelidade ao
Que bom é termos esta lei! Como compromisso da caridade, da cate-

50 franciscanos.or g.br
quese, da celebração da fé. Mas, homens. Por exemplo, a especial
a tomada de consciência desta res- solicitude feminina pelos outros,
ponsabilidade laical que nasce do que se exprime de modo particular,
Batismo e da Confirmação não se mas não exclusivamente, na mater-
manifesta de igual modo em toda nidade. Vejo, com prazer, como
a parte; nalguns casos, porque não muitas mulheres partilham respon-
se formaram para assumir respon- sabilidades pastorais juntamente
sabilidades importantes, noutros com os sacerdotes, contribuem para
por não encontrar espaço nas suas o acompanhamento de pessoas, fa-
Igrejas particulares para poderem mílias ou grupos e prestam novas
exprimir-se e agir por causa dum contribuições para a reflexão teoló-
excessivo clericalismo que os man- gica. Mas ainda é preciso ampliar
tém à margem das decisões. Ape- os espaços para uma presença fe-
sar de se notar uma maior partici- minina mais incisiva na Igreja. Por-
pação de muitos nos ministérios que «o gênio feminino é necessário
laicais, este compromisso não se em todas as expressões da vida so-
reflete na penetração dos valores cial; por isso deve ser garantida a
cristãos no mundo social, político presença das mulheres também no
e econômico; limita-se muitas vezes âmbito do trabalho» e nos vários
às tarefas no seio da Igreja, sem um lugares onde se tomam as decisões
empenhamento real pela aplicação importantes, tanto na Igreja como
do Evangelho na transformação da nas estruturas sociais.
sociedade. A formação dos leigos
e a evangelização das categorias 104.  As reivindicações dos legíti-
profissionais e intelectuais consti- mos direitos das mulheres, a partir
tuem um importante desafio pasto- da firme convicção de que homens
ral. e mulheres têm a mesma dignidade,
colocam à Igreja questões profun-
103.  A Igreja reconhece a indis- das que a desafiam e não se podem
pensável contribuição da mulher na iludir superficialmente. O sacerdó-
sociedade, com uma sensibilidade, cio reservado aos homens, como
uma intuição e certas capacidades sinal de Cristo Esposo que Se en-
peculiares, que habitualmente são trega na Eucaristia, é uma questão
mais próprias das mulheres que dos que não se põe em discussão, mas
franciscanos.or g.br 51
pode tornar-se particularmente con- teólogos, que poderiam ajudar a
troversa se se identifica demasiado reconhecer melhor o que isto im-
a potestade sacramental com o po- plica no que se refere ao possível
der. Não se esqueça que, quando lugar das mulheres onde se tomam
falamos da potestade sacerdotal, decisões importantes, nos diferen-
«estamos na esfera da função e não tes âmbitos da Igreja.
na da dignidade e da santidade».
O sacerdócio ministerial é um dos 105.  A pastoral juvenil, tal como
meios que Jesus utiliza ao serviço estávamos habituados a desenvol-
do seu povo, mas a grande digni- vê-la, sofreu o impacto das mudan-
dade vem do Batismo, que é aces- ças sociais. Nas estruturas ordiná-
sível a todos. A configuração do rias, os jovens habitualmente não
sacerdote com Cristo Cabeça – isto encontram respostas para as suas
é, como fonte principal da graça – preocupações, necessidades, pro-
não comporta uma exaltação que blemas e feridas. A nós, adultos,
o coloque por cima dos demais. custa-nos ouvi-los com paciência,
Na Igreja, as funções «não dão compreender as suas preocupa-
justificação à superioridade de uns ções ou as suas reivindicações, e
sobre os outros». Com efeito, uma aprender a falar-lhes na linguagem
mulher, Maria, é mais importante que eles entendem. Pela mesma
do que os Bispos. Mesmo quando razão, as propostas educacionais
a função do sacerdócio ministe- não produzem os frutos esperados.
rial é considerada «hierárquica», A proliferação e o crescimento de
há que ter bem presente que «se associações e movimentos predo-
ordena integralmente à santidade minantemente juvenis podem ser in-
dos membros do corpo místico de terpretados como uma ação do Es-
Cristo». A sua pedra de fecho e o pírito que abre caminhos novos em
seu fulcro não são o poder enten- sintonia com as suas expectativas
dido como domínio, mas a potes- e a busca de espiritualidade pro-
tade de administrar o sacramento funda e dum sentido mais concreto
da Eucaristia; daqui deriva a sua de pertença. Todavia é necessário
autoridade, que é sempre um servi- tornar mais estável a participação
ço ao povo. Aqui está um grande destas agregações no âmbito da
desafio para os Pastores e para os pastoral de conjunto da Igreja.

52 franciscanos.or g.br
106. Embora nem sempre seja fácil vorosa da comunidade que desper-
abordar os jovens, houve crescimen- ta o desejo de se consagrar inteira-
to em dois aspectos: a consciência mente a Deus e à evangelização,
de que toda a comunidade os evan- especialmente se essa comunidade
geliza e educa, e a urgência de vivente reza insistentemente pelas
que eles tenham um protagonismo vocações e tem a coragem de pro-
maior. Deve-se reconhecer que, no por aos seus jovens um caminho de
atual contexto de crise do compro- especial consagração. Por outro
misso e dos laços comunitários, são lado, apesar da escassez vocacio-
muitos os jovens que se solidarizam nal, hoje temos noção mais clara
contra os males do mundo, aderin- da necessidade de melhor seleção
do a várias formas de militância e dos candidatos ao sacerdócio. Não
voluntariado. Alguns participam na se podem encher os seminários com
vida da Igreja, integram grupos de qualquer tipo de motivações, e me-
serviço e diferentes iniciativas mis- nos ainda se estas estão relaciona-
sionárias nas suas próprias dioce- das com insegurança afetiva, busca
ses ou noutros lugares. Como é bom de formas de poder, glória humana
que os jovens sejam «caminheiros ou bem-estar econômico.
da fé», felizes por levarem Jesus
Cristo a cada esquina, a cada pra- 108. Como já disse, não pretendi
ça, a cada canto da terra! oferecer um diagnóstico completo,
mas convido as comunidades a
107. Em muitos lugares, há escas- completarem e a enriquecerem es-
sez de vocações ao sacerdócio e à tas perspectivas a partir da consci-
vida consagrada. Frequentemente ência dos desafios próprios e das
isso fica-se a dever à falta de ardor comunidades vizinhas. Espero que,
apostólico contagioso nas comuni- ao fazê-lo, tenham em conta que,
dades, pelo que estas não entusias- todas as vezes que intentamos ler
mam nem fascinam. Onde há vida, os sinais dos tempos na realidade
fervor, paixão de levar Cristo aos atual, é conveniente ouvir os jovens
outros, surgem vocações genuínas. e os idosos. Tanto uns como outros
Mesmo em paróquias onde os sa- são a esperança dos povos. Os ido-
cerdotes não são muito disponíveis sos fornecem a memória e a sabe-
nem alegres, é a vida fraterna e fer- doria da experiência, que convida
franciscanos.or g.br 53
a não repetir tontamente os mesmos lo II afirmou que, se a Igreja «deve
erros do passado. Os jovens cha- realizar o seu destino providencial,
mam-nos a despertar e a aumentar então uma evangelização entendi-
a esperança, porque trazem consi- da como o jubiloso, paciente e pro-
go as novas tendências da huma- gressivo anúncio da Morte salvífica
nidade e abrem-nos ao futuro, de e Ressurreição de Jesus Cristo há-de
modo que não fiquemos encalha- ser a vossa prioridade absoluta».
dos na nostalgia de estruturas e cos- Isto é válido para todos.
tumes que já não são fonte de vida
no mundo atual. 1. TODO O POVO DE DEUS
ANUNCIA O EVANGELHO
109. Os desafios existem para ser
superados. Sejamos realistas, mas 111. A evangelização é dever da
sem perder a alegria, a audácia e Igreja. Este sujeito da evangeliza-
a dedicação cheia de esperança. ção, porém, é mais do que uma
Não deixemos que nos roubem a instituição orgânica e hierárquica;
força missionária! é, antes de tudo, um povo que pe-
regrina para Deus. Trata-se certa-
Capítulo III mente de um mistério que mergulha
O ANÚNCIO DO as raízes na Trindade, mas tem a
EVANGELHO sua concretização histórica num
povo peregrino e evangelizador,
110. Depois de considerar alguns que sempre transcende toda a ne-
desafios da realidade atual, quero cessária expressão institucional.
agora recordar o dever que incum- Proponho que nos detenhamos um
be sobre nós em toda e qualquer pouco nesta forma de compreender
época e lugar, porque «não pode a Igreja, que tem o seu fundamento
haver verdadeira evangelização último na iniciativa livre e gratuita
sem o anúncio explícito de Jesus de Deus.
como Senhor» e sem existir uma
«primazia do anúncio de Jesus Cris- UM POVO PARA TODOS
to em qualquer trabalho de evange-
lização». Recolhendo as preocupa- 112. A salvação, que Deus nos ofe-
ções dos Bispos asiáticos, João Pau- rece, é obra da sua misericórdia.

54 franciscanos.or g.br
Não há ação humana, por melhor dos seres humanos de todos os tem-
que seja, que nos faça merecer tão pos. Escolheu convocá-los como
grande dom. Por pura graça, Deus povo, e não como seres isolados.
atrai-nos para nos unir a Si. Envia Ninguém se salva sozinho, isto é,
o seu Espírito aos nossos corações, nem como indivíduo isolado, nem
para nos fazer seus filhos, para nos por suas próprias forças. Deus atrai-
transformar e tornar capazes de -nos, no respeito da complexa tra-
responder com a nossa vida ao seu ma de relações interpessoais que
amor. A Igreja é enviada por Jesus a vida numa comunidade humana
Cristo como sacramento da salva- supõe. Este povo, que Deus esco-
ção oferecida por Deus. Através da lheu para Si e convocou, é a Igreja.
sua ação evangelizadora, ela co- Jesus não diz aos Apóstolos para
labora como instrumento da graça formarem um grupo exclusivo, um
divina, que opera incessantemente grupo de elite. Jesus diz: «Ide, pois,
para além de toda e qualquer possí- fazei discípulos de todos os povos»
vel supervisão. Bem o exprimiu Ben- (Mt 28, 19). São Paulo afirma que
to XVI, ao abrir as reflexões do Sí- no povo de Deus, na Igreja, «não
nodo: «É sempre importante saber há judeu nem grego (…), porque to-
que a primeira palavra, a iniciativa dos sois um só em Cristo Jesus» (Gal
verdadeira, a atividade verdadeira 3, 28). Eu gostaria de dizer àqueles
vem de Deus e só inserindo-nos nes- que se sentem longe de Deus e da
ta iniciativa divina, só implorando Igreja, aos que têm medo ou aos in-
esta iniciativa divina, nos podemos diferentes: o Senhor também te cha-
tornar também – com Ele e n’Ele – ma para seres parte do seu povo, e
evangelizadores». O princípio da fá-lo com grande respeito e amor!
primazia da graça deve ser um fa-
rol que ilumine constantemente as 114.  Ser Igreja significa ser povo
nossas reflexões sobre a evangeli- de Deus, de acordo com o grande
zação. projeto de amor do Pai. Isto implica
ser o fermento de Deus no meio da
113. Esta salvação, que Deus rea- humanidade; quer dizer anunciar e
liza e a Igreja jubilosamente anun- levar a salvação de Deus a este nos-
cia, é para todos, e Deus criou um so mundo, que muitas vezes se sen-
caminho para Se unir a cada um te perdido, necessitado de ter res-
franciscanos.or g.br 55
postas que encorajem, deem espe- mente situado: «natureza e cultura
rança e novo vigor para o caminho. encontram-se intimamente ligadas».
A Igreja deve ser o lugar da miseri- A graça supõe a cultura, e o dom
córdia gratuita, onde todos possam de Deus encarna-se na cultura de
sentir-se acolhidos, amados, perdo- quem o recebe.
ados e animados a viverem segun-
do a vida boa do Evangelho. 116.  Ao longo destes dois milê-
nios de cristianismo, uma quanti-
UM POVO COM MUITOS ROSTOS dade inumerável de povos recebeu
a graça da fé, fê-la florir na sua
115. Este Povo de Deus encarna-se vida diária e transmitiu-a segundo
nos povos da Terra, cada um dos as próprias modalidades culturais.
quais tem a sua cultura própria. A Quando uma comunidade acolhe
noção de cultura é um instrumen- o anúncio da salvação, o Espírito
to precioso para compreender as Santo fecunda a sua cultura com a
diversas expressões da vida cristã força transformadora do Evange-
que existem no povo de Deus. Trata- lho. E assim, como podemos ver
-se do estilo de vida que uma deter- na história da Igreja, o cristianismo
minada sociedade possui, da forma não dispõe de um único modelo
peculiar que têm os seus membros cultural, mas «permanecendo o que
de se relacionar entre si, com as é, na fidelidade total ao anúncio
outras criaturas e com Deus. Assim evangélico e à tradição da Igreja,
entendida, a cultura abrange a to- o cristianismo assumirá também o
talidade da vida dum povo. Cada rosto das diversas culturas e dos
povo, na sua evolução histórica, de- vários povos onde for acolhido e
senvolve a própria cultura com legí- se radicar». Nos diferentes povos,
tima autonomia. Isso fica-se a dever que experimentam o dom de Deus
ao fato de que a pessoa humana, segundo a própria cultura, a Igreja
«por sua natureza, necessita abso- exprime a sua genuína catolicidade
lutamente da vida social» e mantém e mostra «a beleza deste rosto plu-
contínua referência à sociedade, riforme». Através das manifestações
na qual vive uma maneira concreta cristãs de um povo evangelizado, o
de se relacionar com a realidade. Espírito Santo embeleza a Igreja,
O ser humano está sempre cultural- mostrando-lhe novos aspectos da

56 franciscanos.or g.br
Revelação e presenteando-a com na Igreja. Não faria justiça à lógica
um novo rosto. Pela inculturação, da encarnação pensar num cristia-
a Igreja «introduz os povos com as nismo monocultural e monocórdico.
suas culturas na sua própria comu- É verdade que algumas culturas esti-
nidade», porque «cada cultura ofe- veram intimamente ligadas à prega-
rece formas e valores positivos que ção do Evangelho e ao desenvolvi-
podem enriquecer o modo como o mento do pensamento cristão, mas
Evangelho é pregado, compreen- a mensagem revelada não se iden-
dido e vivido». Assim, «a Igreja, tifica com nenhuma delas e possui
assumindo os valores das diversas um conteúdo transcultural. Por isso,
culturas, torna-se sponsa ornata mo- na evangelização de novas culturas
nilibus suis, a noiva que se adorna ou de culturas que não acolheram a
com suas jóias (cf. Is 61, 10)». pregação cristã, não é indispensá-
vel impor uma determinada forma
117.  Se for bem entendida, a di- cultural, por mais bela e antiga que
versidade cultural não ameaça seja, juntamente com a proposta do
a unidade da Igreja. É o Espírito Evangelho. A mensagem, que anun-
Santo, enviado pelo Pai e o Filho, ciamos, sempre apresenta alguma
que transforma os nossos corações roupagem cultural, mas às vezes,
e nos torna capazes de entrar na na Igreja, caímos na vaidosa sacra-
comunhão perfeita da Santíssima lização da própria cultura, o que
Trindade, onde tudo encontra a sua pode mostrar mais fanatismo do
unidade. O Espírito Santo constrói que autêntico ardor evangelizador.
a comunhão e a harmonia do povo
de Deus. Ele mesmo é a harmonia, 118.  Os Bispos da Oceania pe-
tal como é o vínculo de amor entre diram que a Igreja neste continen-
o Pai e o Filho. É Ele que suscita te «desenvolva uma compreensão
uma abundante e diversificada ri- e exposição da verdade de Cristo
queza de dons e, ao mesmo tempo, partindo das tradições e culturas lo-
constrói uma unidade que nunca é cais», e instaram todos os missioná-
uniformidade, mas multiforme har- rios «a trabalhar de harmonia com
monia que atrai. A evangelização os cristãos indígenas para garantir
reconhece com alegria estas múl- que a doutrina e a vida da Igreja
tiplas riquezas que o Espírito gera sejam expressas em formas legíti-
franciscanos.or g.br 57
mas e apropriadas a cada cultura». dades divinas e uma sabedoria que
Não podemos pretender que todos lhes permite captá-las intuitivamen-
os povos dos vários continentes, ao te, embora não possuam os meios
exprimir a fé cristã, imitem as mo- adequados para expressá-las com
dalidades adaptadas pelos povos precisão.
europeus num determinado momen-
to da história, porque a fé não se 120.  Em virtude do Batismo rece-
pode confinar dentro dos limites de bido, cada membro do povo de
compreensão e expressão duma Deus tornou-se discípulo missioná-
cultura. É indiscutível que uma úni- rio (cf. Mt 28, 19). Cada um dos
ca cultura não esgota o mistério da batizados, independentemente da
redenção de Cristo. própria função na Igreja e do grau
de instrução da sua fé, é um sujeito
TODOS SOMOS DISCÍPULOS ativo de evangelização, e seria ina-
MISSIONÁRIOS propriado pensar num esquema de
evangelização realizado por agen-
119. Em todos os batizados, desde tes qualificados enquanto o resto do
o primeiro ao último, atua a força povo fiel seria apenas receptor das
santificadora do Espírito que impele suas ações. A nova evangelização
a evangelizar. O povo de Deus é deve implicar um novo protagonis-
santo em virtude desta unção, que mo de cada um dos batizados. Esta
o torna infalível «in credendo», ou convicção transforma-se num apelo
seja, ao crer, não pode enganar-se, dirigido a cada cristão para que
ainda que não encontre palavras ninguém renuncie ao seu compro-
para explicar a sua fé. O Espírito misso de evangelização, porque,
guia-o na verdade e o conduz à sal- se uma pessoa experimentou verda-
vação. Como parte do seu mistério deiramente o amor de Deus que o
de amor pela humanidade, Deus salva, não precisa de muito tempo
dota a totalidade dos fiéis com um de preparação para sair a anunciá-
instinto da fé – o sensus fidei – que -lo, não pode esperar que lhe deem
os ajuda a discernir o que vem re- muitas lições ou longas instruções.
almente de Deus. A presença do Cada cristão é missionário na me-
Espírito confere aos cristãos uma dida em que se encontrou com o
certa conaturalidade com as reali- amor de Deus em Cristo Jesus; não

58 franciscanos.or g.br
digamos mais que somos «discípu- chamados a dar aos outros o tes-
los» e «missionários», mas sempre temunho explícito do amor salvífico
que somos «discípulos missioná- do Senhor, que, sem olhar às nos-
rios». Se não estivermos convenci- sas imperfeições, nos oferece a sua
dos disto, olhemos para os primei- proximidade, a sua Palavra, a sua
ros discípulos, que logo depois de força, e dá sentido à nossa vida. O
terem conhecido o olhar de Jesus, teu coração sabe que a vida não é
saíram proclamando cheios de ale- a mesma coisa sem Ele; pois bem,
gria: «Encontramos o Messias» (Jo aquilo que descobriste, o que te aju-
1, 41). A Samaritana, logo que ter- da a viver e te dá esperança, isso é
minou o seu diálogo com Jesus, tor- o que deves comunicar aos outros.
nou-se missionária, e muitos samari- A nossa imperfeição não deve ser
tanos acreditaram em Jesus «devido desculpa; pelo contrário, a missão
às palavras da mulher» (Jo 4, 39). é um estímulo constante para não
Também São Paulo, depois do seu nos acomodarmos na mediocrida-
encontro com Jesus Cristo, «come- de, mas continuarmos a crescer. O
çou imediatamente a proclamar (…) testemunho de fé, que todo o cristão
que Jesus era o Filho de Deus» (At é chamado a oferecer, implica di-
9, 20). Porque esperamos nós? zer como São Paulo: «Não que já o
tenha alcançado ou já seja perfeito;
121. Certamente, todos somos cha- mas corro para ver se o alcanço,
mados a crescer como evangeliza- (…) lançando-me para o que vem à
dores. Devemos procurar simultane- frente» (Fl 3, 12-13).
amente uma melhor formação, um
aprofundamento do nosso amor e A FORÇA EVANGELIZADORA DA
um testemunho mais claro do Evan- PIEDADE POPULAR
gelho. Neste sentido, todos deve-
mos deixar que os outros nos evan- 122.  Da mesma forma, podemos
gelizem constantemente; isto não pensar que os diferentes povos, nos
significa que devemos renunciar à quais foi inculturado o Evangelho,
missão evangelizadora, mas encon- são sujeitos colectivos ativos, agen-
trar o modo de comunicar Jesus que tes da evangelização. Assim é, por-
corresponda à situação em que vi- que cada povo é o criador da sua
vemos. Seja como for, todos somos cultura e o protagonista da sua his-
franciscanos.or g.br 59
tória. A cultura é algo de dinâmico, vezes com desconfiança, a pieda-
que um povo recria constantemente, de popular foi objecto de revalori-
e cada geração transmite à seguinte zação nas décadas posteriores ao
um conjunto de atitudes relativas às Concílio. Quem deu um impulso
diversas situações existenciais, que decisivo nesta direção, foi Paulo VI
esta nova geração deve reelaborar na sua Exortação Apostólica  Evan-
face aos próprios desafios. O ser gelii Nuntiandi. Nela explica que a
humano «é simultaneamente filho e piedade popular «traduz em si uma
pai da cultura onde está inserido». certa sede de Deus, que somente
Quando o Evangelho se inculturou os pobres e os simples podem ex-
num povo, no seu processo de trans- perimentar» e «torna as pessoas
missão cultural também transmite a capazes para terem rasgos de ge-
fé de maneira sempre nova; daí a nerosidade e predispõe-nas para
importância da evangelização en- o sacrifício até ao heroísmo, quan-
tendida como inculturação. Cada do se trata de manifestar a fé». Já
porção do povo de Deus, ao tradu- mais perto dos nossos dias, Bento
zir na vida o dom de Deus segundo XVI, na América Latina, assinalou
a sua índole própria, dá testemunho que se trata de um «precioso tesou-
da fé recebida e enriquece-a com ro da Igreja Católica» e que nela
novas expressões que falam por si. «aparece a alma dos povos latino-
Pode dizer-se que «o povo se evan- -americanos».
geliza continuamente a si mesmo».
Aqui ganha importância a piedade 124.  No  Documento de Apa-
popular, verdadeira expressão da recida, descrevem-se as riquezas
atividade missionária espontânea que o Espírito Santo explícita na
do povo de Deus. Trata-se de uma piedade popular por sua iniciativa
realidade em permanente desenvol- gratuita. Naquele amado Conti-
vimento, cujo protagonista é o Espí- nente, onde uma multidão imensa
rito Santo. de cristãos exprime a sua fé atra-
vés da piedade popular, os Bispos
123. Na piedade popular, pode-se chamam-na também «espiritualida-
captar a modalidade em que a fé de popular» ou «mística popular».
recebida se encarnou numa cultura Trata-se de uma verdadeira «espi-
e continua a transmitir-se. Vista por ritualidade encarnada na cultura

60 franciscanos.or g.br
dos simples». Não é vazia de con- que se acende, numa casa humilde,
teúdos, mas descobre-os e exprime- para pedir ajuda a Maria, ou nos
-os mais pela via simbólica do que olhares de profundo amor a Cristo
pelo uso da razão instrumental e, crucificado. Quem ama o povo fiel
no ato de fé, acentua mais o crede- de Deus, não pode ver estas ações
re in Deum  que o  credere Deum.  É unicamente como uma busca natu-
«uma maneira legítima de viver a ral da divindade; são a manifesta-
fé, um modo de se sentir parte da ção duma vida teologal animada
Igreja e uma forma de ser missioná- pela ação do Espírito Santo, que foi
rios»; comporta a graça da missio- derramado em nossos corações (cf.
nariedade, do sair de si e do pere- Rm 5, 5).
grinar: «O caminhar juntos para os
santuários e o participar em outras 126.  Na piedade popular, por
manifestações da piedade popular, ser fruto do Evangelho incultura-
levando também os filhos ou con- do, subjaz uma força ativamente
vidando a outras pessoas, é em si evangelizadora que não podemos
mesmo um gesto evangelizador». subestimar: seria ignorar a obra do
Não coarctemos nem pretendamos Espírito Santo. Ao contrário, somos
controlar esta força missionária! chamados a encorajá-la e fortalecê-
-la para aprofundar o processo de
125. Para compreender esta neces- inculturação, que é uma realidade
sidade, é preciso abordá-la com o nunca acabada. As expressões da
olhar do Bom Pastor, que não pro- piedade popular têm muito que nos
cura julgar mas amar. Só a partir ensinar e, para quem as sabe ler,
da conaturalidade afetiva que dá são um lugar teológico a que deve-
o amor é que podemos apreciar a mos prestar atenção particularmen-
vida teologal presente na piedade te na hora de pensar a nova evan-
dos povos cristãos, especialmente gelização.
nos pobres. Penso na fé firme das
mães ao pé da cama do filho doen- DE PESSOA A PESSOA
te, que se agarram a um terço ain-
da que não saibam elencar os arti- 127. Hoje que a Igreja deseja viver
gos do Credo; ou na carga imensa uma profunda renovação missioná-
de esperança contida numa vela ria, há uma forma de pregação que
franciscanos.or g.br 61
nos compete a todos como tarefa di- com a consciência de que esta men-
ária: é cada um levar o Evangelho sagem é tão rica e profunda que
às pessoas com quem se encontra, sempre nos ultrapassa. Umas vezes
tanto aos mais íntimos como aos exprime-se de maneira mais dire-
desconhecidos. É a pregação infor- ta, outras através dum testemunho
mal que se pode realizar durante pessoal, uma história, um gesto, ou
uma conversa, e é também a que outra forma que o próprio Espírito
realiza um missionário quando visi- Santo possa suscitar numa circuns-
ta um lar. Ser discípulo significa ter tância concreta. Se parecer pruden-
a disposição permanente de levar te e houver condições, é bom que
aos outros o amor de Jesus; e isto este encontro fraterno e missionário
sucede espontaneamente em qual- conclua com uma breve oração que
quer lugar: na rua, na praça, no se relacione com as preocupações
trabalho, num caminho. que a pessoa manifestou. Assim ela
sentirá mais claramente que foi ou-
128. Nesta pregação, sempre res- vida e interpretada, que a sua situ-
peitosa e amável, o primeiro momen- ação foi posta nas mãos de Deus, e
to é um diálogo pessoal, no qual a reconhecerá que a Palavra de Deus
outra pessoa se exprime e partilha fala realmente à sua própria vida.
as suas alegrias, as suas esperan-
ças, as preocupações com os seus 129. Contudo não se deve pensar
entes queridos e muitas coisas que que o anúncio evangélico tenha de
enchem o coração. Só depois desta ser transmitido sempre com deter-
conversa é que se pode apresentar- minadas fórmulas pré-estabelecidas
-lhe a Palavra, seja pela leitura de ou com palavras concretas que ex-
algum versículo ou de modo narrati- primam um conteúdo absolutamente
vo, mas sempre recordando o anún- invariável. Transmite-se com formas
cio fundamental: o amor pessoal de tão diversas que seria impossível
Deus que Se fez homem, entregou- descrevê-las ou catalogá-las, e cujo
-Se a Si mesmo por nós e, vivo, ofe- sujeito colectivo é o povo de Deus
rece a sua salvação e a sua amiza- com seus gestos e sinais inumerá-
de. É o anúncio que se partilha com veis. Por conseguinte, se o Evange-
uma atitude humilde e testemunhal lho se encarnou numa cultura, já
de quem sempre sabe aprender, não se comunica apenas através

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do anúncio de pessoa a pessoa. ja. Não se trata de um patrimônio
Isto deve fazer-nos pensar que, nos fechado, entregue a um grupo para
países onde o cristianismo é mino- que o guarde; mas são presentes
ria, para além de animar cada ba- do Espírito integrados no corpo
tizado a anunciar o Evangelho, as eclesial, atraídos para o centro que
Igrejas particulares hão-de promo- é Cristo, donde são canalizados
ver ativamente formas, pelo menos num impulso evangelizador. Um si-
incipientes, de inculturação. Enfim, nal claro da autenticidade dum ca-
o que se deve procurar é que a pre- risma é a sua eclesialidade, a sua
gação do Evangelho, expressa com capacidade de se integrar harmo-
categorias próprias da cultura onde niosamente na vida do povo santo
é anunciado, provoque uma nova de Deus para o bem de todos. Uma
síntese com essa cultura. Embora verdadeira novidade suscitada pelo
estes processos sejam sempre len- Espírito não precisa de fazer som-
tos, às vezes o medo paralisa-nos bra sobre outras espiritualidades e
demasiado. Se deixamos que as dons para se afirmar a si mesma.
dúvidas e os medos sufoquem toda Quanto mais um carisma dirigir o
a ousadia, é possível que, em vez seu olhar para o coração do Evan-
de sermos criativos, nos deixemos gelho, tanto mais eclesial será o seu
simplesmente ficar cômodos sem exercício. É na comunhão, mesmo
provocar qualquer avanço e, nes- que seja fadigosa, que um carisma
te caso, não seremos participantes se revela autêntica e misteriosamen-
dos processos históricos com a nos- te fecundo. Se vive este desafio, a
sa cooperação, mas simplesmente Igreja pode ser um modelo para a
espectadores duma estagnação es- paz no mundo.
téril da Igreja.
131.  As diferenças entre as pes-
CARISMAS AO SERVIÇO DA soas e as comunidades por vezes
COMUNHÃO EVANGELIZADORA são incômodas, mas o Espírito San-
to, que suscita esta diversidade,
130.  O Espírito Santo enriquece de tudo pode tirar algo de bom e
toda a Igreja evangelizadora tam- transformá-lo em dinamismo evan-
bém com diferentes carismas. São gelizador que atua por atração. A
dons para renovar e edificar a Igre- diversidade deve ser sempre con-
franciscanos.or g.br 63
ciliada com a ajuda do Espírito aquilo que, uma vez assumido, não
Santo; só Ele pode suscitar a diver- só é redimido, mas torna-se instru-
sidade, a pluralidade, a multiplici- mento do Espírito para iluminar e
dade e, ao mesmo tempo, realizar renovar o mundo.
a unidade. Ao invés, quando somos
nós que pretendemos a diversidade 133.  Uma vez que não basta a
e nos fechamos em nossos particu- preocupação do evangelizador
larismos, em nossos exclusivismos, por chegar a cada pessoa, mas o
provocamos a divisão; e, por outro Evangelho também se anuncia às
lado, quando somos nós que que- culturas no seu conjunto, a teologia
remos construir a unidade com os – e não só a teologia pastoral – em
nossos planos humanos, acabamos diálogo com outras ciências e ex-
por impor a uniformidade, a homo- periências humanas tem grande im-
logação. Isto não ajuda a missão portância para pensar como fazer
da Igreja. chegar a proposta do Evangelho à
variedade dos contextos culturais e
CULTURA, PENSAMENTO E dos destinatários. A Igreja, compro-
EDUCAÇÃO metida na evangelização, aprecia
e encoraja o carisma dos teólogos
132. O anúncio às culturas implica e o seu esforço na investigação teo-
também um anúncio às culturas pro- lógica, que promove o diálogo com
fissionais, científicas e acadêmicas. o mundo da cultura e da ciência.
É o encontro entre a fé, a razão e Faço apelo aos teólogos para que
as ciências, que visa desenvolver cumpram este serviço como parte
um novo discurso sobre a credibi- da missão salvífica da Igreja. Mas,
lidade, uma apologética original para isso, é necessário que tenham
que ajude a criar as predisposições a peito a finalidade evangelizadora
para que o Evangelho seja escu- da Igreja e da própria teologia, e
tado por todos. Quando algumas não se contentem com uma teologia
categorias da razão e das ciências de gabinete.
são acolhidas no anúncio da men-
sagem, tais categorias tornam-se 134.  As universidades são um
instrumentos de evangelização; é âmbito privilegiado para pensar e
a água transformada em vinho. É desenvolver este compromisso de

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evangelização de modo interdisci- e feliz do Espírito, um consolador
plinar e inclusivo. As escolas católi- encontro com a Palavra, uma fon-
cas, que sempre procuram conjugar te constante de renovação e cresci-
a tarefa educacional com o anúncio mento.
explícito do Evangelho, constituem
uma contribuição muito válida para 136.  Renovemos a nossa confian-
a evangelização da cultura, mesmo ça na pregação, que se funda na
em países e cidades onde uma situ- convicção de que é Deus que de-
ação adversa nos incentiva a usar seja alcançar os outros através do
a nossa criatividade para se encon- pregador e de que Ele mostra o seu
trar os caminhos adequados. poder através da palavra humana.
São Paulo fala vigorosamente sobre
2. A HOMILIA a necessidade de pregar, porque o
Senhor quis chegar aos outros por
135. Consideremos agora a prega- meio também da nossa palavra (cf.
ção dentro da Liturgia, que requer Rm 10, 14-17). Com a palavra,
uma séria avaliação por parte dos Nosso Senhor conquistou o cora-
Pastores. Deter-me-ei particularmen- ção da gente. De todas as partes,
te, e até com certa meticulosida- vinham para O ouvir (cf. Mc 1, 45).
de, na homilia e sua preparação, Ficavam maravilhados, «bebendo»
porque são muitas as reclamações os seus ensinamentos (cf. Mc 6, 2).
relacionadas com este ministério Sentiam que lhes falava como quem
importante, e não podemos fechar tem autoridade (cf. Mc 1, 27). E os
os ouvidos. A homilia é o ponto de Apóstolos, que Jesus estabelecera
comparação para avaliar a proxi- «para estarem com Ele e para os
midade e a capacidade de encon- enviar a pregar» (Mc 3, 14), atraí-
tro de um Pastor com o seu povo. ram para o seio da Igreja todos os
De fato, sabemos que os fiéis lhe povos com a palavra (cf. Mc 16,
dão muita importância; e, muitas 15.20).
vezes, tanto eles como os próprios
ministros ordenados sofrem: uns a O CONTEXTO LITÚRGICO
ouvir e os outros a pregar. É triste
que assim seja. A homilia pode ser, 137. Agora é oportuno recordar
realmente, uma experiência intensa que «a proclamação litúrgica da
franciscanos.or g.br 65
Palavra de Deus, principalmente lição. O pregador pode até ser ca-
no contexto da assembleia eucarís- paz de manter vivo o interesse das
tica, não é tanto um momento de pessoas por uma hora, mas assim a
meditação e de catequese, como sua palavra torna-se mais importan-
sobretudo o diálogo de Deus com te que a celebração da fé. Se a ho-
o seu povo, no qual se proclamam milia se prolonga demasiado, lesa
as maravilhas da salvação e se pro- duas características da celebração
põem continuamente as exigências litúrgica: a harmonia entre as suas
da Aliança». Reveste-se de um va- partes e o seu ritmo. Quando a pre-
lor especial a homilia, derivado do gação se realiza no contexto da
seu contexto eucarístico, que supera Liturgia, incorpora-se como parte
toda a catequese por ser o momen- da oferenda que se entrega ao Pai
to mais alto do diálogo entre Deus e como mediação da graça que
e o seu povo, antes da comunhão Cristo derrama na celebração. Este
sacramental. A homilia é um reto- mesmo contexto exige que a pre-
mar este diálogo que já está estabe- gação oriente a assembleia, e tam-
lecido entre o Senhor e o seu povo. bém o pregador, para uma comu-
Aquele que prega deve conhecer o nhão com Cristo na Eucaristia, que
coração da sua comunidade para transforme a vida. Isto requer que a
identificar onde está vivo e ardente palavra do pregador não ocupe um
o desejo de Deus e também onde é lugar excessivo, para que o Senhor
que este diálogo de amor foi sufo- brilhe mais que o ministro.
cado ou não pôde dar fruto.
A CONVERSA DA MÃE
138. A homilia não pode ser um
espetáculo de divertimento, não 139. Dissemos que o povo de Deus,
corresponde à lógica dos recursos pela ação constante do Espírito
mediáticos, mas deve dar fervor nele, se evangeliza continuamente
e significado à celebração. É um a si mesmo. Que implicações tem
gênero peculiar, já que se trata de esta convicção para o pregador?
uma pregação no quadro duma ce- Lembra-nos que a Igreja é mãe e
lebração litúrgica; por conseguinte, prega ao povo como uma mãe fala
deve ser breve e evitar que se pa- ao seu filho, sabendo que o filho
reça com uma conferência ou uma tem confiança de que tudo o que se

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lhe ensina é para seu bem, porque Senhor com o seu povo, deve ser
se sente amado. Além disso, a boa encarecido e cultivado através da
mãe sabe reconhecer tudo o que proximidade cordial do pregador,
Deus semeou no seu filho, escuta do tom caloroso da sua voz, da
as suas preocupações e aprende mansidão do estilo das suas frases,
com ele. O espírito de amor que rei- da alegria dos seus gestos. Mesmo
na numa família guia tanto a mãe que às vezes a homilia seja um pou-
como o filho nos seus diálogos, nos co maçante, se houver este espírito
quais se ensina e aprende, se cor- materno-eclesial, será sempre fecun-
rige e valoriza o que é bom; assim da, tal como os conselhos maçantes
deve acontecer também na homilia. duma mãe, com o passar do tempo,
O Espírito que inspirou os Evange- dão fruto no coração dos filhos.
lhos e atua no povo de Deus, inspi-
ra também como se deve escutar a 141. Ficamos admirados com os
fé do povo e como se deve pregar recursos empregues pelo Senhor
em cada Eucaristia. Portanto a pre- para dialogar com o seu povo, re-
gação cristã encontra, no coração velar o seu mistério a todos, cativar
da cultura do povo, um manancial a gente comum com ensinamentos
de água viva tanto para saber o tão elevados e exigentes. Creio que
que se deve dizer como para en- o segredo de Jesus esteja escondi-
contrar o modo mais apropriado do naquele seu olhar o povo mais
para o dizer. Assim como todos além das suas fraquezas e quedas:
gostamos que nos falem na nossa «Não temais, pequenino rebanho,
língua materna, assim também, na porque aprouve ao vosso Pai dar-
fé, gostamos que nos falem em ter- -vos o Reino» (Lc 12, 32); Jesus pre-
mos da «cultura materna», em ter- ga com este espírito. Transbordan-
mos do idioma materno (cf. 2 Mac do de alegria no Espírito, bendiz
7, 21.27), e o coração dispõe-se a o Pai por Lhe atrair os pequeninos:
ouvir melhor. Esta linguagem é uma «Bendigo-Te, ó Pai, Senhor do Céu
tonalidade que transmite coragem, e da Terra, porque escondeste estas
inspiração, força, impulso. coisas aos sábios e aos inteligentes
e as revelaste aos pequeninos» (Lc
140. Este âmbito materno-eclesial, 10, 21). O Senhor compraz-Se ver-
onde se desenrola o diálogo do dadeiramente em dialogar com o
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seu povo, e compete ao pregador O seu coração, esperançado na
fazer sentir este gosto do Senhor ao prática alegre e possível do amor
seu povo. que lhe foi anunciado, sente que
toda a palavra na Escritura, antes
PALAVRAS QUE ABRASAM OS de ser exigência, é dom.
CORAÇÕES
143. O desafio duma pregação
142. Um diálogo é muito mais do inculturada consiste em transmitir a
que a comunicação duma verdade. síntese da mensagem evangélica, e
Realiza-se pelo prazer de falar e não ideias ou valores soltos. Onde
pelo bem concreto que se comunica está a tua síntese, ali está o teu co-
através das palavras entre aqueles ração. A diferença entre fazer luz
que se amam. É um bem que não com sínteses e o fazê-lo com ideias
consiste em coisas, mas nas pró- soltas é a mesma que há entre o ar-
prias pessoas que mutuamente se dor do coração e o tédio. O prega-
dão no diálogo. A pregação pura- dor tem a belíssima e difícil missão
mente moralista ou doutrinadora e de unir os corações que se amam:
também a que se transforma numa o do Senhor e os do seu povo. O
lição de exegese reduzem esta co- diálogo entre Deus e o seu povo
municação entre os corações que reforça ainda mais a aliança entre
se verifica na homilia e que deve ambos e estreita o vínculo da cari-
ter um carácter quase sacramen- dade. Durante o tempo da homilia,
tal: «A fé surge da pregação, e a os corações dos crentes fazem si-
pregação surge pela palavra de lêncio e deixam-No falar a Ele. O
Cristo» (Rm 10, 17). Na homilia, a Senhor e o seu povo falam-se de mil
verdade anda de mãos dadas com e uma maneiras diretamente, sem
a beleza e o bem. Não se trata de intermediários, mas, na homilia,
verdades abstratas ou de silogismos querem que alguém sirva de instru-
frios, porque se comunica também mento e exprima os sentimentos, de
a beleza das imagens que o Senhor modo que, depois, cada um possa
utilizava para incentivar a prática escolher como continuar a sua con-
do bem. A memória do povo fiel, versa. A palavra é, essencialmen-
como a de Maria, deve ficar trans- te, mediadora e necessita não só
bordante das maravilhas de Deus. dos dois dialogantes mas também

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de um pregador que a represente Trata-se de indicações que, para
como tal, convencido de que «não alguns, poderão parecer óbvias,
nos pregamos a nós mesmos, mas mas considero oportuno sugeri-las
a Cristo Jesus, o Senhor, e nos con- para recordar a necessidade de de-
sideramos vossos servos, por amor dicar um tempo privilegiado a este
de Jesus» (2 Cor 4, 5). precioso ministério. Alguns párocos
sustentam frequentemente que isto
144. Falar com o coração implica não é possível por causa de tantas
mantê-lo não só ardente, mas tam- incumbências que devem desempe-
bém iluminado pela integridade da nhar; todavia atrevo-me a pedir que
Revelação e pelo caminho que essa todas as semanas se dedique a esta
Palavra percorreu no coração da tarefa um tempo pessoal e comuni-
Igreja e do nosso povo fiel ao longo tário suficientemente longo, mesmo
da sua história. A identidade cris- que se tenha de dar menos tempo a
tã, que é aquele abraço baptismal outras tarefas também importantes.
que o Pai nos deu em pequeninos, A confiança no Espírito Santo que
faz-nos anelar, como filhos pródi- atua na pregação não é meramente
gos – e prediletos em Maria –, pelo passiva, mas ativa e criativa. Impli-
outro abraço, o do Pai misericordio- ca oferecer-se como instrumento (cf.
so que nos espera na glória. Fazer Rm 12, 1), com todas as próprias
com que o nosso povo se sinta, de capacidades, para que possam ser
certo modo, no meio destes dois utilizadas por Deus. Um pregador
abraços é a tarefa difícil, mas bela, que não se prepara não é «espiri-
de quem prega o Evangelho. tual»: é desonesto e irresponsável
quanto aos dons que recebeu.
3. A PREPARAÇÃO DA PREGAÇÃO
O CULTO DA VERDADE
145. A preparação da pregação é
uma tarefa tão importante que con- 146. O primeiro passo, depois de
vém dedicar-lhe um tempo longo de invocar o Espírito Santo, é prestar
estudo, oração, reflexão e criativi- toda a atenção ao texto bíblico,
dade pastoral. Com muita amiza- que deve ser o fundamento da pre-
de, quero deter-me a propor um iti- gação. Quando alguém se detém
nerário de preparação da homilia. procurando compreender qual é a
franciscanos.or g.br 69
mensagem dum texto, exerce o 147. Em primeiro lugar, convém
«culto da verdade». É a humilda- estarmos seguros de compreender
de do coração que reconhece que adequadamente o significado das
a Palavra sempre nos transcende, palavras que lemos. Quero insistir
que somos, «não os árbitros nem em algo que parece evidente, mas
os proprietários, mas os depositá- que nem sempre é tido em conta:
rios, os arautos e os servidores». o texto bíblico, que estudamos, tem
Esta atitude de humilde e des- dois ou três mil anos, a sua lingua-
lumbrada veneração da Palavra gem é muito diferente da que usa-
exprime-se detendo-se a estudá-la mos agora. Por mais que nos pare-
com o máximo cuidado e com um ça termos entendido as palavras,
santo temor de a manipular. Para que estão traduzidas na nossa lín-
se poder interpretar um texto bí- gua, isso não significa que compre-
blico, faz falta paciência, pôr de endemos corretamente tudo o que
parte toda a ansiedade e atribuir- o escritor sagrado queria exprimir.
-lhe tempo, interesse e dedicação São conhecidos os vários recursos
gratuita. Há que pôr de lado qual- que proporciona a análise literária:
quer preocupação que nos inquie- prestar atenção às palavras que se
te, para entrar noutro âmbito de repetem ou evidenciam, reconhecer
serena atenção. Não vale a pena a estrutura e o dinamismo próprio
dedicar-se a ler um texto bíblico, dum texto, considerar o lugar que
se aquilo que se quer obter são ocupam os personagens etc. Mas
resultados rápidos, fáceis ou ime- o objetivo não é o de compreender
diatos. Por isso, a preparação da todos os pequenos detalhes dum
pregação requer amor. Uma pes- texto; o mais importante é desco-
soa só dedica um tempo gratui- brir qual é a mensagem principal,
to e sem pressa às coisas ou às a mensagem que confere estrutura
pessoas que ama; e aqui trata-se e unidade ao texto. Se o pregador
de amar a Deus, que quis falar. não faz este esforço, é possível que
A partir deste amor, uma pessoa também a sua pregação não tenha
pode deter-se todo o tempo que unidade nem ordem; o seu discur-
for necessário, com a atitude dum so será apenas uma súmula de vá-
discípulo: «Fala, Senhor; o teu ser- rias ideias desarticuladas que não
vo escuta» (1 Sam 3, 9). conseguirão mobilizar os outros. A

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mensagem central é aquela que o significa enfraquecer a acentuação
autor quis primariamente transmitir, própria e específica do texto que se
o que implica identificar não só uma deve pregar. Um dos defeitos duma
ideia mas também o efeito que esse pregação enfadonha e ineficaz é
autor quis produzir. Se um texto foi precisamente não poder transmitir
escrito para consolar, não deveria a força própria do texto que foi pro-
ser utilizado para corrigir erros; se clamado.
foi escrito para exortar, não deveria
ser utilizado para instruir; se foi es- A PERSONALIZAÇÃO DA PALAVRA
crito para ensinar algo sobre Deus,
não deveria ser utilizado para ex- 149. O pregador «deve ser o
plicar várias opiniões teológicas; se primeiro a desenvolver uma gran-
foi escrito para levar ao louvor ou de familiaridade pessoal com a
ao serviço missionário, não o utili- Palavra de Deus: não lhe basta
zemos para informar sobre as últi- conhecer o aspecto linguístico ou
mas notícias. exegético, sem dúvida necessário;
precisa de se abeirar da Palavra
148. É verdade que, para se en- com o coração dócil e orante, a
tender adequadamente o sentido fim de que ela penetre a fundo nos
da mensagem central dum texto, é seus pensamentos e sentimentos e
preciso colocá-lo em ligação com o gere nele uma nova mentalidade».
ensinamento da Bíblia inteira, trans- Faz-nos bem renovar, cada dia,
mitida pela Igreja. Este é um prin- cada domingo, o nosso ardor na
cípio importante da interpretação preparação da homilia, e verificar
bíblica, que tem em conta que o se, em nós mesmos, cresce o amor
Espírito Santo não inspirou só uma pela Palavra que pregamos. É bom
parte, mas a Bíblia inteira, e que, não esquecer que, «particularmen-
nalgumas questões, o povo cresceu te, a maior ou menor santidade
na sua compreensão da vontade do ministro influi sobre o anúncio
de Deus a partir da experiência da Palavra». Como diz São Paulo,
vivida. Assim se evitam interpreta- «falamos, não para agradar aos
ções equivocadas ou parciais, que homens, mas a Deus que põe à
contradizem outros ensinamentos prova os nossos corações» (1 Ts 2,
da mesma Escritura. Mas isto não 4). Se está vivo este desejo de, pri-
franciscanos.or g.br 71
meiro, ouvirmos nós a Palavra que gador tem que aceitar ser primeiro
temos de pregar, esta transmitir- trespassado por essa Palavra que
-se-á duma maneira ou doutra ao há-de trespassar os outros, porque
povo fiel de Deus: «A boca fala da é uma Palavra viva e eficaz, que,
abundância do coração» (Mt 12, como uma espada, «penetra até à
34). As leituras do domingo res- divisão da alma e do corpo, das
soarão com todo o seu esplendor articulações e das medulas, e dis-
no coração do povo, se primeiro cerne os sentimentos e intenções
ressoarem assim no coração do do coração» (Heb 4, 12). Isto tem
Pastor. um valor pastoral. Mesmo nesta
época, a gente prefere escutar as
150. Jesus irritava-Se com pre- testemunhas: «Tem sede de autenti-
tensiosos mestres, muito exigentes cidade (…), reclama evangelizado-
com os outros, que ensinavam a res que lhe falem de um Deus que
Palavra de Deus mas não se deixa- eles conheçam e lhes seja familiar
vam iluminar por ela: «Atam fardos como se eles vissem o invisível».
pesados e insuportáveis e colocam-
-nos aos ombros dos outros, mas 151. Não nos é pedido que se-
eles não põem nem um dedo para jamos imaculados, mas que não
os deslocar» (Mt 23, 4). E o Após- cessamos de melhorar, vivamos o
tolo São Tiago exortava: «Meus desejo profundo de progredir no
irmãos, não haja muitos entre vós caminho do Evangelho, e não dei-
que pretendam ser mestres, saben- xemos cair os braços. Indispensá-
do que nós teremos um julgamento vel é que o pregador esteja seguro
mais severo» (3, 1). Quem quiser de que Deus o ama, de que Jesus
pregar, deve primeiro estar dispos- Cristo o salvou, de que o seu amor
to a deixar-se tocar pela Palavra e tem sempre a última palavra. À vis-
fazê-la carne na sua vida concre- ta de tanta beleza, sentirá muitas
ta. Assim, a pregação consistirá vezes que a sua vida não lhe dá
na atividade tão intensa e fecunda plenamente glória e desejará sin-
que é «comunicar aos outros o que ceramente corresponder melhor a
foi contemplado». Por tudo isto, um amor tão grande. Todavia, se
antes de preparar concretamente o não se detém com sincera abertura
que vai dizer na pregação, o pre- a escutar esta Palavra, se não dei-

72 franciscanos.or g.br
xa que a mesma toque a sua vida, Espírito: designamo-la por  «lectio
que o interpele, exorte, mobilize, divina». Consiste na leitura da Pala-
se não dedica tempo para rezar vra de Deus num tempo de oração,
com esta Palavra, então na reali- para lhe permitir que nos ilumine
dade será um falso profeta, um em- e renove. Esta leitura orante da
busteiro ou um charlatão vazio. Em Bíblia não está separada do estu-
todo o caso, desde que reconheça do que o pregador realiza para
a sua pobreza e deseje compro- individuar a mensagem central do
meter-se mais, sempre poderá dar texto; antes pelo contrário, é dela
Jesus Cristo, dizendo como Pedro: que deve partir para procurar des-
«Não tenho ouro nem prata, mas o cobrir aquilo que essa mesma men-
que tenho, isto te dou» (At 3, 6). O sagem tem a dizer à sua própria
Senhor quer servir-Se de nós como vida. A leitura espiritual dum texto
seres vivos, livres e criativos, que deve partir do seu sentido literal.
se deixam penetrar pela sua Pa- Caso contrário, uma pessoa facil-
lavra antes de a transmitir; a sua mente fará o texto dizer o que lhe
mensagem deve passar realmente convém, o que serve para confir-
através do pregador, e não só pela mar as suas próprias decisões, o
sua razão, mas tomando posse de que se adapta aos seus próprios
todo o seu ser. O Espírito Santo, esquemas mentais. E isto seria, em
que inspirou a Palavra, é quem última análise, usar o sagrado para
«hoje ainda, como nos inícios da proveito próprio e passar esta con-
Igreja, age em cada um dos evan- fusão para o povo de Deus. Nunca
gelizadores que se deixa possuir devemos esquecer-nos de que, por
e conduzir por Ele, e põe na sua vezes, «também Satanás se disfar-
boca as palavras que ele sozinho ça em anjo de luz» (2 Cor 11, 14).
não poderia encontrar».
153. Na presença de Deus, numa
A LEITURA ESPIRITUAL leitura tranquila do texto, é bom
perguntar-se, por exemplo: «Senhor,
152. Há uma modalidade concre- a mim que me diz este texto? Com
ta para escutarmos aquilo que o Se- esta mensagem, que quereis mudar
nhor nos quer dizer na sua Palavra na minha vida? Que é que me dá
e nos deixarmos transformar pelo fastio neste texto? Porque é que isto
franciscanos.or g.br 73
não me interessa?»; ou então: «De À ESCUTA DO POVO
que gosto? Em que me estimula esta
Palavra? Que me atrai? E porque 154. O pregador deve também
me atrai?». Quando se procura ou- pôr-se à escuta do povo, para des-
vir o Senhor, é normal ter tentações. cobrir aquilo que os fiéis precisam
Uma delas é simplesmente sentir-se de ouvir. Um pregador é um con-
chateado e acabrunhado e dar tudo templativo da Palavra e também um
por encerrado; outra tentação muito contemplativo do povo. Desta for-
comum é começar a pensar naqui- ma, descobre «as aspirações, as ri-
lo que o texto diz aos outros, para quezas e as limitações, as maneiras
evitar de o aplicar à própria vida. de orar, de amar, de encarar a vida
Acontece também começar a procu- e o mundo, que caracterizam este
rar desculpas, que nos permitam di- ou aquele aglomerado humano»,
luir a mensagem específica do texto. prestando atenção «ao povo con-
Outras vezes pensamos que Deus creto com os seus sinais e símbolos
nos exige uma decisão demasiado e respondendo aos problemas que
grande, que ainda não estamos em apresenta». Trata-se de relacionar a
condições de tomar. Isto leva muitas mensagem do texto bíblico com uma
pessoas a perderem a alegria do situação humana, com algo que as
encontro com a Palavra, mas isso pessoas vivem, com uma experiên-
significaria esquecer que ninguém cia que precisa da luz da Palavra.
é mais paciente do que Deus Pai, Esta preocupação não é ditada por
ninguém compreende e sabe espe- uma atitude oportunista ou diplomá-
rar como Ele. Deus convida sempre tica, mas é profundamente religiosa
a dar um passo mais, mas não exi- e pastoral. No fundo, é uma «sen-
ge uma resposta completa, se ain- sibilidade espiritual para saber ler
da não percorremos o caminho que nos acontecimentos a mensagem de
a torna possível. Apenas quer que Deus», e isto é muito mais do que
olhemos com sinceridade a nossa encontrar algo interessante para di-
vida e a apresentemos sem fingi- zer. Procura-se descobrir «o que o
mento diante dos seus olhos, que Senhor tem a dizer nessas circuns-
estejamos dispostos a continuar a tâncias». Então a preparação da
crescer, e peçamos a Ele o que ain- pregação transforma-se num exercí-
da não podemos conseguir. cio de discernimento evangélico, no

74 franciscanos.or g.br
qual se procura reconhecer – à luz RECURSOS PEDAGÓGICOS
do Espírito – «um “apelo” que Deus
faz ressoar na própria situação his- 156. Alguns acreditam que podem
tórica: também nele e através dele, ser bons pregadores por saber o
Deus chama o crente». que devem dizer, mas descuidam o
como, a forma concreta de desen-
155. Nesta busca, é possível re- volver uma pregação. Zangam-se
correr apenas a alguma experiên- quando os outros não os ouvem ou
cia humana frequente, como, por não os apreciam, mas talvez não se
exemplo, a alegria de um reencon- tenham empenhado por encontrar
tro, as desilusões, o medo da soli- a forma adequada de apresentar a
dão, a compaixão pela dor alheia, mensagem. Lembremo-nos de que
a incerteza perante o futuro, a «a evidente importância do conteú-
preocupação com um ser querido, do da evangelização não deve es-
etc.; mas faz falta intensificar a conder a importância dos métodos
sensibilidade para se reconhecer o e dos meios da mesma evangeliza-
que isso realmente tem a ver com a ção». A preocupação com a forma
vida das pessoas. Recordemos que de pregar também é uma atitude
nunca se deve responder a pergun- profundamente espiritual. É respon-
tas que ninguém se põe, nem con- der ao amor de Deus, entregando-
vém fazer a crônica da atualidade -nos com todas as nossas capaci-
para despertar interesse; para isso, dades e criatividade à missão que
já existem os programas televisivos. Ele nos confia; mas também é um
Em todo o caso, é possível partir exímio exercício de amor ao próxi-
de algum fato para que a Palavra mo, porque não queremos oferecer
possa repercutir fortemente no seu aos outros algo de má qualidade.
apelo à conversão, à adoração, a Na Bíblia, por exemplo, aparece a
atitudes concretas de fraternidade recomendação para se preparar a
e serviço etc., porque acontece, às pregação de modo a garantir uma
vezes, que algumas pessoas gos- apropriada extensão: «Sê conciso
tam de ouvir comentários sobre a no teu falar: muitas coisas em pou-
realidade na pregação, mas nem cas palavras» (Sir 32, 8).
por isso se deixam interpelar pes-
soalmente. 157. Apenas, para exemplificar,
franciscanos.or g.br 75
recordemos alguns recursos prá- correr o risco de falar ao vento.
ticos que podem enriquecer uma Acontece frequentemente que os
pregação e torná-la mais atraente. pregadores usam palavras que
Um dos esforços mais necessários é aprenderam nos seus estudos e em
aprender a usar imagens na prega- certos ambientes, mas que não fa-
ção, isto é, a falar por imagens. Às zem parte da linguagem comum
vezes usam-se exemplos para tor- das pessoas que os ouvem. Há pa-
nar mais compreensível algo que se lavras próprias da teologia ou da
quer explicar, mas estes exemplos catequese, cujo significado não é
frequentemente dirigem-se apenas compreensível para a maioria dos
ao entendimento, enquanto as ima- cristãos. O maior risco dum pre-
gens ajudam a apreciar e acolher gador é habituar-se à sua própria
a mensagem que se quer transmitir. linguagem e pensar que todos os
Uma imagem fascinante faz com outros a usam e compreendem es-
que se sinta a mensagem como pontaneamente. Se se quer adap-
algo familiar, próximo, possível, tar à linguagem dos outros, para
relacionado com a própria vida. poder chegar até eles com a Pala-
Uma imagem apropriada pode le- vra, deve-se escutar muito, é preci-
var a saborear a mensagem que se so partilhar a vida das pessoas e
quer transmitir, desperta um desejo prestar-lhes benévola atenção. A
e motiva a vontade na direção do simplicidade e a clareza são duas
Evangelho. Uma boa homilia, como coisas diferentes. A linguagem
me dizia um antigo professor, deve pode ser muito simples, mas pouco
conter «uma ideia, um sentimento, clara a pregação. Pode-se tornar in-
uma imagem». compreensível pela desordem, pela
sua falta de lógica, ou porque tra-
158. Já dizia Paulo VI que os fiéis ta vários temas ao mesmo tempo.
«esperam muito desta pregação e Por isso, outro cuidado necessário
dela poderão tirar fruto, contanto é procurar que a pregação tenha
que ela seja simples, clara, dire- unidade temática, uma ordem clara
ta, adaptada». A simplicidade tem e ligação entre as frases, de modo
a ver com a linguagem utilizada. que as pessoas possam facilmente
Deve ser linguagem que os desti- seguir o pregador e captar a lógica
natários compreendam, para não do que lhes diz.

76 franciscanos.or g.br
159. Outra característica é a lin- a sério em cada pessoa o projeto
guagem positiva. Não diz tanto o que Deus tem para ela. Cada ser
que não se deve fazer, como so- humano precisa sempre mais de
bretudo propõe o que podemos Cristo, e a evangelização não de-
fazer melhor. E, se aponta algo veria deixar que alguém se con-
negativo, sempre procura mos- tente com pouco, mas possa dizer
trar também um valor positivo que com plena verdade: «Já não sou eu
atraia, para não se ficar pela quei- que vivo, mas é Cristo que vive em
xa, o lamento, a crítica ou o re- mim» (Gal 2, 20).
morso. Além disso, uma pregação
positiva oferece sempre esperan- 161. Não seria correto que este
ça, orienta para o futuro, não nos apelo ao crescimento fosse inter-
deixa prisioneiros da negativida- pretado, exclusiva ou prioritaria-
de. Como é bom que sacerdotes, mente, como formação doutrinal.
diáconos e leigos se reúnam perio- Trata-se de «cumprir» aquilo que
dicamente para encontrarem, jun- o Senhor nos indicou como res-
tos, os recursos que tornem mais posta ao seu amor, sobressaindo,
atraente a pregação! junto com todas as virtudes, aque-
le mandamento novo que é o pri-
4. UMA EVANGELIZAÇÃO meiro, o maior, o que melhor nos
PARA O APROFUNDAMENTO identifica como discípulos: «É este
DO QUERIGMA o meu mandamento: que vos ameis
uns aos outros como Eu vos amei»
160. O mandato missionário do (Jo 15, 12). É evidente que, quan-
Senhor inclui o apelo ao cresci- do os autores do Novo Testamento
mento da fé, quando diz: «ensi- querem reduzir a mensagem mo-
nando-os a cumprir tudo quanto ral cristã a uma última síntese, ao
vos tenho mandado» (Mt 28, 20). mais essencial, apresentam-nos a
Daqui se vê claramente que o pri- exigência irrenunciável do amor
meiro anúncio deve desencadear ao próximo: «Quem ama o próxi-
também um caminho de formação mo cumpre plenamente a lei. (…)
e de amadurecimento. A evange- É no amor que está o pleno cum-
lização procura também o cresci- primento da lei» (Rm 13, 8.10). De
mento, o que implica tomar muito igual modo, São Paulo, para quem
franciscanos.or g.br 77
o mandamento do amor não só re- UMA CATEQUESE QUERIGMÁTICA
sume a lei mas constitui o centro e E MISTAGÓGICA
a razão de ser da mesma: «Toda
a lei se cumpre plenamente nesta 163. A educação e a catequese es-
única palavra: Ama o teu próximo tão ao serviço deste crescimento. Já
como a ti mesmo» (Gal 5, 14). E, temos à disposição vários textos do
às suas comunidades, apresenta a Magistério e subsídios sobre a ca-
vida cristã como um caminho de tequese, preparados pela Santa Sé
crescimento no amor: «O Senhor e por diversos episcopados. Lembro
vos faça crescer e superabundar a Exortação Apostólica  Catechesi
de caridade uns para com os ou- tradendae (1979), o Diretório Geral
tros e para com todos» (1 Ts 3, para a Catequese  (1997) e outros
12). Também São Tiago exorta os documentos cujo conteúdo, sempre
cristãos a cumprir «a lei do Reino, atual, não é necessário repetir aqui.
de acordo com a Escritura: Amarás Queria deter-me apenas nalgumas
o teu próximo como a ti mesmo» considerações que me parece opor-
(2, 8), acabando por não citar ne- tuno evidenciar.
nhum preceito.
164. Voltamos a descobrir que
162. Entretanto, este caminho de também na catequese tem um papel
resposta e crescimento aparece fundamental o primeiro anúncio ou
sempre precedido pelo dom, por- querigma, que deve ocupar o cen-
que o antecede aquele outro pedi- tro da atividade evangelizadora e
do do Senhor: «batizando-os em de toda a tentativa de renovação
nome…» (Mt 28, 19). A adoção eclesial. O querigma é trinitário. É
como filhos que o Pai oferece gra- o fogo do Espírito que se dá sob a
tuitamente e a iniciativa do dom da forma de línguas e nos faz crer em
sua graça (cf. Ef 2, 8-9; 1 Cor 4, Jesus Cristo, que, com a sua morte e
7) são a condição que torna possí- ressurreição, nos revela e comunica
vel esta santificação constante, que a misericórdia infinita do Pai. Na
agrada a Deus e Lhe dá glória. É boca do catequista, volta a ressoar
deixar-se transformar em Cristo, vi- sempre o primeiro anúncio: «Jesus
vendo progressivamente «de acor- Cristo ama-te, deu a sua vida para
do com o Espírito» (Rm 8, 5). te salvar, e agora vive contigo todos

78 franciscanos.or g.br
os dias para te iluminar, fortalecer, cio que dá resposta ao anseio de in-
libertar». Ao designar-se como «pri- finito que existe em todo o coração
meiro» este anúncio, não significa humano. A centralidade do querig-
que o mesmo se situa no início e ma requer certas características do
que, em seguida, se esquece ou anúncio que hoje são necessárias
substitui por outros conteúdos que em toda a parte: que exprima o
o superam; é o primeiro em senti- amor salvífico de Deus como prévio
do qualitativo, porque é o anúncio à obrigação moral e religiosa, que
principal, aquele que sempre se tem não imponha a verdade mas faça
de voltar a ouvir de diferentes ma- apelo à liberdade, que seja pauta-
neiras e aquele que sempre se tem do pela alegria, o estímulo, a vita-
de voltar a anunciar, duma forma ou lidade e uma integralidade harmo-
doutra, durante a catequese, em to- niosa que não reduza a pregação
das as suas etapas e momentos. Por a poucas doutrinas, por vezes mais
isso, também «o sacerdote, como a filosóficas que evangélicas. Isto exi-
Igreja, deve crescer na consciência ge do evangelizador certas atitu-
da sua permanente necessidade de des que ajudam a acolher melhor
ser evangelizado». o anúncio: proximidade, abertura
ao diálogo, paciência, acolhimento
165. Não se deve pensar que, na cordial que não condena.
catequese, o querigma é deixado
de lado em favor duma formação 166. Outra característica da ca-
supostamente mais «sólida». Nada tequese, que se desenvolveu nas
há de mais sólido, mais profundo, últimas décadas, é a iniciação mis-
mais seguro, mais consistente e tagógica, que significa essencial-
mais sábio que esse anúncio. Toda mente duas coisas: a necessária
a formação cristã é, primariamen- progressividade da experiência
te, o aprofundamento do querigma formativa na qual intervém toda a
que se vai, cada vez mais e melhor, comunidade e uma renovada valo-
fazendo carne, que nunca deixa de rização dos sinais litúrgicos da ini-
iluminar a tarefa catequética, e per- ciação cristã. Muitos manuais e pla-
mite compreender adequadamente nificações ainda não se deixaram
o sentido de qualquer tema que se interpelar pela necessidade duma
desenvolve na catequese. É o anún- renovação mistagógica, que pode-
franciscanos.or g.br 79
ria assumir formas muito diferentes decer nele a verdade e a bondade
de acordo com o discernimento de do Ressuscitado. Se nós, como diz
cada comunidade educativa. O en- Santo Agostinho, não amamos se-
contro catequético é um anúncio da não o que é belo, o Filho feito ho-
Palavra e está centrado nela, mas mem, revelação da beleza infinita,
precisa sempre duma ambientação é sumamente amável e atrai-nos
adequada e duma motivação atra- para Si com laços de amor. Por isso,
ente, do uso de símbolos eloquen- torna-se necessário que a formação
tes, da sua inserção num amplo na  via pulchritudinis  esteja inserida
processo de crescimento e da inte- na transmissão da fé. É desejável
gração de todas as dimensões da que cada Igreja particular incentive
pessoa num caminho comunitário o uso das artes na sua obra evan-
de escuta e resposta. gelizadora, em continuidade com a
riqueza do passado, mas também
167. É bom que toda a cateque- na vastidão das suas múltiplas ex-
se preste uma especial atenção à pressões atuais, a fim de transmitir
«via da beleza (via pulchritudinis)». a fé numa nova «linguagem para-
Anunciar Cristo significa mostrar bólica». É preciso ter a coragem de
que crer n’Ele e segui-Lo não é algo encontrar os novos sinais, os novos
apenas verdadeiro e justo, mas tam- símbolos, uma nova carne para a
bém belo, capaz de cumular a vida transmissão da Palavra, as diversas
dum novo esplendor e duma alegria formas de beleza que se manifes-
profunda, mesmo no meio das pro- tam em diferentes âmbitos culturais,
vações. Nesta perspectiva, todas as incluindo aquelas modalidades não
expressões de verdadeira beleza convencionais de beleza que po-
podem ser reconhecidas como uma dem ser pouco significativas para
senda que ajuda a encontrar-se os evangelizadores, mas tornaram-
com o Senhor Jesus. Não se trata -se particularmente atraentes para
de fomentar um relativismo estético, os outros.
que pode obscurecer o vínculo in-
divisível entre verdade, bondade e 168. Relativamente à proposta
beleza, mas de recuperar a estima moral da catequese, que convida
da beleza para poder chegar ao a crescer na fidelidade ao estilo
coração do homem e fazer resplan- de vida do Evangelho, é oportuno

80 franciscanos.or g.br
indicar sempre o bem desejável, a – sacerdotes, religiosos e leigos –
proposta de vida, de maturidade, nesta «arte do acompanhamento»,
de realização, de fecundidade, sob para que todos aprendam a descal-
cuja luz se pode entender a nossa çar sempre as sandálias diante da
denúncia dos males que a podem terra sagrada do outro (cf. Ex 3, 5).
obscurecer. Mais do que como pe- Devemos dar ao nosso caminhar o
ritos em diagnósticos apocalípticos ritmo salutar da proximidade, com
ou juízes sombrios que se compra- um olhar respeitoso e cheio de com-
zem em detectar qualquer perigo paixão, mas que ao mesmo tempo
ou desvio, é bom que nos possam cure, liberte e anime a amadurecer
ver como mensageiros alegres de na vida cristã.
propostas altas, guardiões do bem
e da beleza que resplandecem 170. Embora possa soar óbvio, o
numa vida fiel ao Evangelho. acompanhamento espiritual deve
conduzir cada vez mais para Deus,
O ACOMPANHAMENTO em quem podemos alcançar a ver-
PESSOAL DOS PROCESSOS DE dadeira liberdade. Alguns creem-se
CRESCIMENTO livres quando caminham à margem
de Deus, sem se dar conta que ficam
169. Numa civilização parado- existencialmente órfãos, desampa-
xalmente ferida pelo anonimato e, rados, sem um lar para onde sem-
simultaneamente, obcecada com os pre possam voltar. Deixam de ser
detalhes da vida alheia, descarada- peregrinos para se transformarem
mente doente de morbosa curiosi- em errantes, que giram indefinida-
dade, a Igreja tem necessidade de mente ao redor de si mesmos, sem
um olhar solidário para contemplar, chegar a lado nenhum. O acompa-
comover-se e parar diante do outro, nhamento seria contraproducente,
tantas vezes quantas forem neces- caso se tornasse uma espécie de
sárias. Neste mundo, os ministros terapia que incentive esta reclusão
ordenados e os outros agentes de das pessoas na sua imanência e
pastoral podem tornar presente a deixe de ser uma peregrinação com
fragrância da presença solidária de Cristo para o Pai.
Jesus e o seu olhar pessoal. A Igre-
ja deverá iniciar os seus membros 171. Hoje mais do que nunca
franciscanos.or g.br 81
precisamos de homens e mulheres «por causa de algumas inclinações
que conheçam, a partir da sua ex- contrárias» que persistem. Por ou-
periência de acompanhamento, o tras palavras, as virtudes organi-
modo de proceder onde reine a zam-se sempre e necessariamente
prudência, a capacidade de com- «in habitu», embora os condiciona-
preensão, a arte de esperar, a do- mentos possam dificultar as opera-
cilidade ao Espírito, para no meio ções desses hábitos virtuosos. Por
de todos defender as ovelhas a nós isso, faz falta «uma pedagogia que
confiadas dos lobos que tentam introduza a pessoa passo a passo
desgarrar o rebanho. Precisamos até chegar à plena apropriação
de nos exercitar na arte de escutar, do mistério». Para se chegar a um
que é mais do que ouvir. Escutar, estado de maturidade, isto é, para
na comunicação com o outro, é a que as pessoas sejam capazes de
capacidade do coração que torna decisões verdadeiramente livres e
possível a proximidade, sem a qual responsáveis, é preciso dar tem-
não existe um verdadeiro encontro po ao tempo, com uma paciência
espiritual. Escutar ajuda-nos a indi- imensa. Como dizia o Beato Pedro
viduar o gesto e a palavra oportu- Fabro: «O tempo é o mensageiro
nos que nos desinstalam da cômo- de Deus».
da condição de espectadores. Só
a partir desta escuta respeitosa e 172. Quem acompanha sabe re-
compassiva é que se pode encon- conhecer que a situação de cada
trar os caminhos para um cresci- pessoa diante de Deus e a sua vida
mento genuíno, despertar o desejo em graça é um mistério que nin-
do ideal cristão, o anseio de cor- guém pode conhecer plenamente
responder plenamente ao amor de a partir do exterior. O Evangelho
Deus e o anelo de desenvolver o propõe-nos que se corrija e ajude
melhor de quanto Deus semeou a crescer uma pessoa a partir do
na nossa própria vida. Mas sem- reconhecimento da maldade objeti-
pre com a paciência de quem está va das suas ações (cf. Mt 18, 15),
ciente daquilo que ensinava São mas sem proferir juízos sobre a sua
Tomás de Aquino: alguém pode responsabilidade e culpabilidade
ter a graça e a caridade, mas não (cf. Mt 7, 1; Lc 6, 37). Seja como
praticar bem nenhuma das virtudes for, um válido acompanhante não

82 franciscanos.or g.br
transige com os fatalismos nem pulos missionários acompanham
com a pusilanimidade. Sempre discípulos missionários.
convida a querer curar-se, a pegar
no catre (cf. Mt 9, 6), a abraçar AO REDOR DA PALAVRA DE DEUS
a cruz, a deixar tudo e partir sem
cessar para anunciar o Evange- 174. Não é só a homilia que se
lho. A experiência pessoal de nos deve alimentar da Palavra de Deus.
deixarmos acompanhar e curar, Toda a evangelização está fundada
conseguindo exprimir com plena sobre esta Palavra escutada, medi-
sinceridade a nossa vida a quem tada, vivida, celebrada e testemu-
nos acompanha, ensina-nos a ser nhada. A Sagrada Escritura é fonte
pacientes e compreensivos com os da evangelização. Por isso, é preci-
outros e habilita-nos a encontrar as so formar-se continuamente na escu-
formas para despertar neles a con- ta da Palavra. A Igreja não evange-
fiança, a abertura e a vontade de liza, se não se deixa continuamente
crescer. evangelizar. É indispensável que a
Palavra de Deus «se torne cada vez
173. O acompanhamento espi- mais o coração de toda a atividade
ritual autêntico começa sempre e eclesial». A Palavra de Deus ouvida
prossegue no âmbito do serviço e celebrada, sobretudo na Eucaris-
à missão evangelizadora. A rela- tia, alimenta e reforça interiormente
ção de Paulo com Timóteo e Tito os cristãos e torna-os capazes de um
é exemplo deste acompanhamento autêntico testemunho evangélico na
e desta formação durante a ação vida diária. Superamos já a velha
apostólica. Ao mesmo tempo que contraposição entre Palavra e Sa-
lhes confia a missão de permane- cramento: a Palavra proclamada,
cer numa cidade concreta para viva e eficaz, prepara a recepção
«acabar de organizar o que ainda do Sacramento e, no Sacramento,
falta» (Tt 1, 5; cf. 1 Tm 1, 3-5), dá- essa Palavra alcança a sua máxima
-lhes os critérios para a vida pes- eficácia.
soal e a atividade pastoral. Isto é
claramente distinto de todo o tipo 175. O estudo da Sagrada Escritu-
de acompanhamento intimista, de ra deve ser uma porta aberta para
auto-realização isolada. Os discí- todos os crentes. É fundamental que
franciscanos.or g.br 83
a Palavra revelada fecunde radical- não for devidamente explicitada,
mente a catequese e todos os esfor- corre-se sempre o risco de desfigu-
ços para transmitir a fé. A evange- rar o sentido autêntico e integral da
lização requer a familiaridade com missão evangelizadora.
a Palavra de Deus, e isto exige que
as dioceses, paróquias e todos os 1. AS REPERCUSSÕES
grupos católicos proponham um es- COMUNITÁRIAS E SOCIAIS DO
tudo sério e perseverante da Bíblia QUERIGMA
e promovam igualmente a sua lei-
tura orante pessoal e comunitária. 177. O querigma possui um conte-
Nós não procuramos Deus tatean- údo inevitavelmente social: no pró-
do, nem precisamos de esperar que prio coração do Evangelho, apare-
Ele nos dirija a palavra, porque ce a vida comunitária e o compro-
realmente «Deus falou, já não é o misso com os outros. O conteúdo
grande desconhecido, mas mostrou- do primeiro anúncio tem uma reper-
-Se a Si mesmo». Acolhamos o te- cussão moral imediata, cujo centro
souro sublime da Palavra revelada! é a caridade.

Capítulo IV CONFISSÃO DA FÉ E
A DIMENSÃO SOCIAL DA COMPROMISSO SOCIAL
EVANGELIZAÇÃO
178. Confessar um Pai que ama in-
176. Evangelizar é tornar o Reino finitamente cada ser humano impli-
de Deus presente no mundo. «Ne- ca descobrir que «assim lhe confere
nhuma definição parcial e fragmen- uma dignidade infinita». Confessar
tada, porém, chegará a dar razão que o Filho de Deus assumiu a nos-
da realidade rica, complexa e dinâ- sa carne humana significa que cada
mica que é a evangelização, a não pessoa humana foi elevada até ao
ser com o risco de a empobrecer próprio coração de Deus. Confes-
e até mesmo de a mutilar». Desejo sar que Jesus deu o seu sangue por
agora partilhar as minhas preocu- nós impede-nos de ter qualquer dú-
pações relacionadas com a dimen- vida acerca do amor sem limites
são social da evangelização, preci- que enobrece todo o ser humano.
samente porque, se esta dimensão A sua redenção tem um sentido so-

84 franciscanos.or g.br
cial, porque «Deus, em Cristo, não 179. Este laço indissolúvel entre
redime somente a pessoa individu- a recepção do anúncio salvífico e
al, mas também as relações sociais um efetivo amor fraterno exprime-
entre os homens». Confessar que o -se nalguns textos da Escritura, que
Espírito Santo atua em todos impli- convém considerar e meditar aten-
ca reconhecer que Ele procura per- tamente para tirar deles todas as
mear toda a situação humana e to- consequências. É uma mensagem a
dos os vínculos sociais: «O Espírito que frequentemente nos habituamos
Santo possui uma inventiva infinita, e repetimos quase mecanicamen-
própria da mente divina, que sabe te, mas sem nos assegurarmos de
prover a desfazer os nós das vicis- que tenha real incidência na nossa
situdes humanas mais complexas e vida e nas nossas comunidades.
impenetráveis». A evangelização Como é perigoso e prejudicial este
procura colaborar também com habituar-se que nos leva a perder
esta ação libertadora do Espírito. a maravilha, a fascinação, o en-
O próprio mistério da Trindade nos tusiasmo de viver o Evangelho da
recorda que somos criados à ima- fraternidade e da justiça! A Palavra
gem desta comunhão divina, pelo de Deus ensina que, no irmão, está
que não podemos realizar-nos nem o prolongamento permanente da
salvar-nos sozinhos. A partir do co- Encarnação para cada um de nós:
ração do Evangelho, reconhecemos «Sempre que fizestes isto a um des-
a conexão íntima que existe entre tes meus irmãos mais pequeninos,
evangelização e promoção huma- a Mim mesmo o fizestes» (Mt 25,
na, que se deve necessariamente 40). O que fizermos aos outros,
exprimir e desenvolver em toda a tem uma dimensão transcendente:
ação evangelizadora. A aceitação «Com a medida com que medirdes,
do primeiro anúncio, que convida assim sereis medidos» (Mt 7, 2); e
a deixar-se amar por Deus e a amá- corresponde à misericórdia divina
-Lo com o amor que Ele mesmo nos para connosco: «Sede misericor-
comunica, provoca na vida da pes- diosos como o vosso Pai é miseri-
soa e nas suas ações uma primei- cordioso. Não julgueis e não sereis
ra e fundamental reação: desejar, julgados; não condeneis, e não se-
procurar e ter a peito o bem dos reis condenados; perdoai, e sereis
outros. perdoados. Dai e ser-vos-á dado
franciscanos.or g.br 85
(…). A medida que usardes com os série de ações destinadas apenas a
outros será usada convosco» (Lc 6, tranquilizar a própria consciência.
36-38). Nestes textos, exprime-se a A proposta é o Reino de Deus (cf.
absoluta prioridade da «saída de Lc 4, 43); trata-se de amar a Deus,
si próprio para o irmão», como um que reina no mundo. Na medida
dos dois mandamentos principais em que Ele conseguir reinar entre
que fundamentam toda a norma nós, a vida social será um espaço
moral e como o sinal mais claro de fraternidade, de justiça, de paz,
para discernir sobre o caminho de de dignidade para todos. Por isso,
crescimento espiritual em resposta à tanto o anúncio como a experiência
doação absolutamente gratuita de cristã tendem a provocar consequ-
Deus. Por isso mesmo, «também o ências sociais. Procuremos o seu
serviço da caridade é uma dimen- Reino: «Procurai primeiro o Reino
são constitutiva da missão da Igreja de Deus e a sua justiça, e tudo o
e expressão irrenunciável da sua mais se vos dará por acréscimo»
própria essência». Assim como a (Mt 6, 33). O projeto de Jesus é ins-
Igreja é missionária por natureza, taurar o Reino de seu Pai; por isso,
também brota inevitavelmente des- pede aos seus discípulos: «Procla-
sa natureza a caridade efetiva para mai que o Reino do Céu está perto»
com o próximo, a compaixão que (Mt 10, 7).
compreende, assiste e promove.
181. O Reino, que se antecipa e
O REINO QUE NOS CHAMA cresce entre nós, abrange tudo,
como nos recorda aquele princípio
180. Ao lermos as Escrituras, fica de discernimento que Paulo VI pro-
bem claro que a proposta do Evan- punha a propósito do verdadeiro
gelho não consiste só numa relação desenvolvimento: «Todos os homens
pessoal com Deus. E a nossa res- e o homem todo». Sabemos que «a
posta de amor também não deve- evangelização não seria completa,
ria ser entendida como uma mera se ela não tomasse em considera-
soma de pequenos gestos pessoais ção a interpelação recíproca que se
a favor de alguns indivíduos neces- fazem constantemente o Evangelho
sitados, o que poderia constituir e a vida concreta, pessoal e social,
uma «caridade por receita», uma dos homens». É o critério da univer-

86 franciscanos.or g.br
salidade, próprio da dinâmica do mos evitar de ser concretos – sem
Evangelho, dado que o Pai quer pretender entrar em detalhes – para
que todos os homens se salvem; e o que os grandes princípios sociais
seu plano de salvação consiste em não fiquem meras generalidades
«submeter tudo a Cristo, reunindo que não interpelam ninguém. É
n’Ele o que há no céu e na terra» preciso tirar as suas consequências
(Ef 1, 10). O mandato é: «Ide pelo práticas, para que «possam incidir
mundo inteiro, proclamai o Evange- com eficácia também nas comple-
lho a toda criatura» (Mc 16, 15), xas situações hodiernas». Os Pasto-
porque toda «a criação se encontra res, acolhendo as contribuições das
em expectativa ansiosa, aguardan- diversas ciências, têm o direito de
do a revelação dos filhos de Deus» exprimir opiniões sobre tudo aquilo
(Rm 8, 19). Toda a criação significa que diz respeito à vida das pesso-
também todos os aspectos da vida as, dado que a tarefa da evangeli-
humana, de tal modo que «a mis- zação implica e exige uma promo-
são do anúncio da Boa Nova de Je- ção integral de cada ser humano.
sus Cristo tem destinação universal. Já não se pode afirmar que a reli-
Seu mandato de caridade alcança gião deve limitar-se ao âmbito pri-
todas as dimensões da existência, vado e serve apenas para preparar
todas as pessoas, todos os ambien- as almas para o céu. Sabemos que
tes da convivência e todos os povos. Deus deseja a felicidade dos seus
Nada do humano pode lhe parecer filhos também nesta terra, embora
estranho». A verdadeira esperança estejam chamados à plenitude eter-
cristã, que procura o Reino escato- na, porque Ele criou todas as coi-
lógico, gera sempre história. sas «para nosso usufruto» (1 Tm 6,
17), para que todos possam usufruir
A DOUTRINA DA IGREJA SOBRE AS delas. Por isso, a conversão cristã
QUESTÕES SOCIAIS exige rever «especialmente tudo o
que diz respeito à ordem social e
182. Os ensinamentos da Igreja consecução do bem comum».
acerca de situações contingentes
estão sujeitos a maiores ou novos 183. Por conseguinte, ninguém
desenvolvimentos e podem ser ob- pode exigir-nos que releguemos a
jecto de discussão, mas não pode- religião para a intimidade secreta
franciscanos.or g.br 87
das pessoas, sem qualquer influên- orienta uma ação transformadora
cia na vida social e nacional, sem e, neste sentido, não deixa de ser
nos preocupar com a saúde das ins- um sinal de esperança que brota do
tituições da sociedade civil, sem nos coração amoroso de Jesus Cristo.
pronunciar sobre os acontecimentos Ao mesmo tempo, «une o próprio
que interessam aos cidadãos. Quem empenho ao esforço em campo so-
ousaria encerrar num templo e silen- cial das demais Igrejas e Comuni-
ciar a mensagem de São Francisco dades eclesiais, tanto na reflexão
de Assis e da Beata Teresa de Cal- doutrinal como na prática».
cutá? Eles não o poderiam aceitar.
Uma fé autêntica – que nunca é cô- 184. Aqui não é o momento para
moda nem individualista – compor- explanar todas as graves questões
ta sempre um profundo desejo de sociais que afetam o mundo atual,
mudar o mundo, transmitir valores, algumas das quais já comentei no
deixar a terra um pouco melhor de- terceiro capítulo. Este não é um do-
pois da nossa passagem por ela. cumento social e, para nos ajudar
Amamos este magnífico planeta, a refletir sobre estes vários temas,
onde Deus nos colocou, e amamos temos um instrumento muito apro-
a humanidade que o habita, com priado no Compêndio da Doutrina
todos os seus dramas e cansaços, Social da Igreja, cujo uso e estudo
com os seus anseios e esperanças, vivamente recomendo. Além disso,
com os seus valores e fragilidades. nem o Papa nem a Igreja possui o
A terra é a nossa casa comum, e monopólio da interpretação da re-
todos somos irmãos. Embora «a jus- alidade social ou da apresentação
ta ordem da sociedade e do Estado de soluções para os problemas con-
seja dever central da política», a temporâneos. Posso repetir aqui o
Igreja «não pode nem deve ficar à que indicava, com grande lucidez,
margem na luta pela justiça». Todos Paulo VI: «Perante situações, assim
os cristãos, incluindo os Pastores, tão diversificadas, torna-se-nos difí-
são chamados a preocupar-se com cil tanto o pronunciar uma palavra
a construção dum mundo melhor. única, como o propor uma solução
É disto mesmo que se trata, pois o que tenha um valor universal. Mas,
pensamento social da Igreja é pri- isso não é ambição nossa, nem
mariamente positivo e construtivo, mesmo a nossa missão. É às comu-

88 franciscanos.or g.br
nidades cristãs que cabe analisa- mente atentos, para ouvir o clamor
rem, com objetividade, a situação do pobre e socorrê-lo. Basta per-
própria do seu país». correr as Escrituras, para descobrir
como o Pai bom quer ouvir o clamor
185. Em seguida, procurarei con- dos pobres: «Eu bem vi a opressão
centrar-me sobre duas grandes do meu povo que está no Egito, e
questões que me parecem funda- ouvi o seu clamor diante dos seus
mentais neste momento da história. inspetores; conheço, na verdade,
Desenvolvê-las-ei com uma certa os seus sofrimentos. Desci a fim de
amplitude, porque considero que os libertar (…). E agora, vai; Eu te
irão determinar o futuro da humani- envio…» (Ex 3, 7-8.10). E Ele mos-
dade. A primeira é a inclusão social tra-Se solícito com as suas necessi-
dos pobres; e a segunda, a questão dades: «Os filhos de Israel clama-
da paz e do diálogo social. ram, então, ao Senhor, e o Senhor
enviou-lhes um salvador» (Jz 3, 15).
2. A INCLUSÃO SOCIAL DOS Ficar surdo a este clamor, quando
POBRES somos os instrumentos de Deus para
ouvir o pobre, coloca-nos fora da
186. Deriva da nossa fé em Cris- vontade do Pai e do seu projeto,
to, que Se fez pobre e sempre Se porque esse pobre «clamaria ao
aproximou dos pobres e marginali- Senhor contra ti, e aquilo tornar-se-
zados, a preocupação pelo desen- -ia para ti um pecado» (Dt 15, 9).
volvimento integral dos mais aban- E a falta de solidariedade, nas suas
donados da sociedade. necessidades, influi diretamente so-
bre a nossa relação com Deus: «Se
UNIDOS A DEUS, OUVIMOS UM te amaldiçoa na amargura da sua
CLAMOR alma, Aquele que o criou ouvirá a
sua oração» (Sir 4, 6). Sempre retor-
187. Cada cristão e cada comu- na a antiga pergunta: «Se alguém
nidade são chamados a ser instru- possuir bens deste mundo e, vendo
mentos de Deus ao serviço da liber- o seu irmão com necessidade, lhe
tação e promoção dos pobres, para fechar o seu coração, como é que
que possam integrar-se plenamente o amor de Deus pode permanecer
na sociedade; isto supõe estar docil- nele?» (1 Jo 3, 17). Lembremos tam-
franciscanos.or g.br 89
bém com quanta convicção o Após- rádicos de generosidade; supõe a
tolo São Tiago retomava a imagem criação de uma nova mentalidade
do clamor dos oprimidos: «Olhai que pense em termos de comunida-
que o salário que não pagastes, de, de prioridade da vida de todos
aos trabalhadores que ceifaram os sobre a apropriação dos bens por
vossos campos, está a clamar; e os parte de alguns.
clamores dos ceifeiros chegaram
aos ouvidos do Senhor do universo» 189. A solidariedade é uma rea-
(5, 4). ção espontânea de quem reconhe-
ce a função social da propriedade
188. A Igreja reconheceu que a exi- e o destino universal dos bens como
gência de ouvir este clamor deriva realidades anteriores à proprieda-
da própria obra libertadora da gra- de privada. A posse privada dos
ça em cada um de nós, pelo que não bens justifica-se para cuidar deles e
se trata de uma missão reservada aumentá-los de modo a servirem me-
apenas a alguns: «A Igreja, guiada lhor o bem comum, pelo que a so-
pelo Evangelho da Misericórdia e lidariedade deve ser vivida como a
pelo amor ao homem, escuta o cla- decisão de devolver ao pobre o que
mor pela justiça e deseja responder lhe corresponde. Estas convicções e
com todas as suas forças». Nesta li- práticas de solidariedade, quando
nha, se pode entender o pedido de se fazem carne, abrem caminho a
Jesus aos seus discípulos: «Dai-lhes outras transformações estruturais e
vós mesmos de comer» (Mc 6, 37), tornam-nas possíveis. Uma mudan-
que envolve tanto a cooperação ça nas estruturas, sem se gerar no-
para resolver as causas estruturais vas convicções e atitudes, fará com
da pobreza e promover o desenvol- que essas mesmas estruturas, mais
vimento integral dos pobres, como cedo ou mais tarde, se tornem cor-
os gestos mais simples e diários de ruptas, pesadas e ineficazes.
solidariedade para com as misérias
muito concretas que encontramos. 190. Às vezes trata-se de ouvir o
Embora um pouco desgastada e, clamor de povos inteiros, dos po-
por vezes, até mal interpretada, a vos mais pobres da terra, porque
palavra «solidariedade» significa «a paz funda-se não só no respeito
muito mais do que alguns atos espo- pelos direitos do homem, mas tam-

90 franciscanos.or g.br
bém no respeito pelo direito dos vir o clamor dos pobres, como bem
povos». Lamentavelmente, até os se expressaram os Bispos do Brasil:
direitos humanos podem ser usados «Desejamos assumir, a cada dia,
como justificação para uma defesa as alegrias e esperanças, as angús-
exacerbada dos direitos individuais tias e tristezas do povo brasileiro,
ou dos direitos dos povos mais ri- especialmente das populações das
cos. Respeitando a independência periferias urbanas e das zonas ru-
e a cultura de cada nação, é pre- rais – sem terra, sem teto, sem pão,
ciso recordar-se sempre de que o sem saúde – lesadas em seus direi-
planeta é de toda a humanidade tos. Vendo a sua miséria, ouvindo
e para toda a humanidade, e que os seus clamores e conhecendo o
o simples fato de ter nascido num seu sofrimento, escandaliza-nos o
lugar com menores recursos ou me- fato de saber que existe alimento
nor desenvolvimento não justifica suficiente para todos e que a fome
que algumas pessoas vivam menos se deve à má repartição dos bens
dignamente. É preciso repetir que e da renda. O problema se agrava
«os mais favorecidos devem renun- com a prática generalizada do des-
ciar a alguns dos seus direitos, para perdício».
poderem colocar, com mais liberali-
dade, os seus bens ao serviço dos 192. Mas queremos ainda mais, o
outros». Para falarmos adequada- nosso sonho voa mais alto. Não se
mente dos nossos direitos, é preciso fala apenas de garantir a comida
alongar mais o olhar e abrir os ouvi- ou um decoroso «sustento» para
dos ao clamor dos outros povos ou todos, mas «prosperidade e civili-
de outras regiões do próprio país. zação em seus múltiplos aspectos».
Precisamos de crescer numa soli- Isto engloba educação, acesso aos
dariedade que «permita a todos os cuidados de saúde e especialmente
povos tornarem-se artífices do seu trabalho, porque, no trabalho livre,
destino», tal como «cada homem é criativo, participativo e solidário, o
chamado a desenvolver-se». ser humano exprime e engrandece
a dignidade da sua vida. O salário
191. Animados pelos seus Pasto- justo permite o acesso adequado
res, os cristãos são chamados, em aos outros bens que estão destina-
todo o lugar e circunstância, a ou- dos ao uso comum.
franciscanos.or g.br 91
FIDELIDADE AO EVANGELHO, (Dn 4, 24). Nesta mesma perspec-
PARA NÃO CORRER EM VÃO tiva, a literatura sapiencial fala da
esmola como exercício concreto
193. Este imperativo de ouvir o da misericórdia para com os ne-
clamor dos pobres faz-se carne em cessitados: «A esmola livra da
nós, quando no mais íntimo de nós morte e limpa de todo o pecado»
mesmos nos comovemos à vista (Tb 12, 9). E de forma ainda mais
do sofrimento alheio. Voltemos a sensível se exprime Ben-Sirá: «A
ler alguns ensinamentos da Pala- água apaga o fogo ardente, e a
vra de Deus sobre a misericórdia, esmola expia o pecado» (3, 30).
para que ressoem vigorosamente Encontramos a mesma síntese no
na vida da Igreja. O Evangelho Novo Testamento: «Mantende en-
proclama: «Felizes os misericor- tre vós uma intensa caridade, por-
diosos, porque alcançarão miseri- que o amor cobre a multidão dos
córdia» (Mt 5, 7). O Apóstolo São pecados» (1 Pd 4, 8). Esta verdade
Tiago ensina que a misericórdia permeou profundamente a mentali-
para com os outros permite-nos dade dos Padres da Igreja, tendo
sair triunfantes no juízo divino: exercido uma resistência profética
«Falai e procedei como pessoas como alternativa cultural face ao
que hão-de ser julgadas segundo individualismo hedonista pagão.
a lei da liberdade. Porque, quem Recordemos apenas um exemplo:
não pratica a misericórdia, será «Tal como, em perigo de incêndio,
julgado sem misericórdia. Mas a correríamos a buscar água para o
misericórdia não teme o julgamen- apagar (…), o mesmo deveríamos
to» (2, 12-13). Neste texto, São fazer quando nos turvamos por-
Tiago aparece-nos como herdeiro que, da nossa palha, irrompeu a
do que tinha de mais rico a espi- chama do pecado; assim, quando
ritualidade judaica do pós-exílio, se nos proporciona a ocasião de
a qual atribuía um especial valor uma obra cheia de misericórdia,
salvífico à misericórdia: «Redime o alegremo-nos por ela como se fos-
teu pecado pela justiça, e as tuas se uma fonte que nos é oferecida
iniquidades, pela piedade para e na qual podemos extinguir o in-
com os infelizes; talvez isto consi- cêndio».
ga prolongar a tua prosperidade»

92 franciscanos.or g.br
194. É uma mensagem tão clara, 195. Quando São Paulo foi ter
tão direta, tão simples e eloquente com os Apóstolos a Jerusalém para
que nenhuma hermenêutica ecle- discernir «se estava a correr ou
sial tem o direito de relativizar. tinha corrido em vão» (Gal 2, 2),
A reflexão da Igreja sobre estes o critério-chave de autenticidade
textos não deveria ofuscar nem en- que lhe indicaram foi que não se
fraquecer o seu sentido exortativo, esquecesse dos pobres (cf. Gal 2,
mas antes ajudar a assumi-los com 10). Este critério importante para
coragem e ardor. Para quê compli- que as comunidades paulinas não
car o que é tão simples? As elabo- se deixassem arrastar pelo esti-
rações conceptuais hão-de favore- lo de vida individualista dos pa-
cer o contato com a realidade que gãos, tem uma grande atualidade
pretendem explicar, e não afastar- no contexto atual em que tende a
-nos dela. Isto vale sobretudo para desenvolver-se um novo paganismo
as exortações bíblicas que convi- individualista. A própria beleza do
dam, com tanta determinação, ao Evangelho nem sempre a consegui-
amor fraterno, ao serviço humilde mos manifestar adequadamente,
e generoso, à justiça, à misericór- mas há um sinal que nunca deve
dia para com o pobre. Jesus ensi- faltar: a opção pelos últimos, por
nou-nos este caminho de reconhe- aqueles que a sociedade descarta
cimento do outro, com as suas pa- e lança fora.
lavras e com os seus gestos. Para
quê ofuscar o que é tão claro? 196. Às vezes somos duros de
Não nos preocupemos só com não coração e de mente, esquecemo-
cair em erros doutrinais, mas tam- -nos, entretemo-nos, extasiamo-nos
bém com ser fiéis a este caminho com as imensas possibilidades de
luminoso de vida e sabedoria. Por- consumo e de distração que esta
que «é frequente dirigir aos defen- sociedade oferece. Gera-se assim
sores da “ortodoxia” a acusação uma espécie de alienação que nos
de passividade, de indulgência ou afeta a todos, pois «alienada é a
de cumplicidade culpáveis frente a sociedade que, nas suas formas de
situações intoleráveis de injustiça e organização social, de produção
de regimes políticos que mantêm e de consumo, torna mais difícil
estas situações». a realização deste dom e a cons-
franciscanos.or g.br 93
tituição dessa solidariedade inter- pela pobreza, assegurou que Deus
-humana». os tinha no âmago do seu coração:
«Felizes vós, os pobres, porque vos-
O LUGAR PRIVILEGIADO DOS so é o Reino de Deus» (Lc 6, 20); e
POBRES NO POVO DE DEUS com eles Se identificou: «Tive fome
e destes-Me de comer», ensinando
197. No coração de Deus, ocu- que a misericórdia para com eles é
pam lugar preferencial os pobres, a chave do Céu (cf. Mt 25, 34-40).
tanto que até Ele mesmo «Se fez
pobre» (2 Cor 8, 9). Todo o cami- 198. Para a Igreja, a opção pe-
nho da nossa redenção está assina- los pobres é mais uma categoria
lado pelos pobres. Esta salvação teológica que cultural, sociológica,
veio a nós, através do «sim» de política ou filosófica. Deus «mani-
uma jovem humilde, de uma peque- festa a sua misericórdia antes de
na povoação perdida na periferia mais» a eles. Esta preferência divi-
dum grande império. O Salvador na tem consequências na vida de
nasceu num presépio, entre ani- fé de todos os cristãos, chamados
mais, como sucedia com os filhos a possuírem «os mesmos sentimen-
dos mais pobres; foi apresentado tos que estão em Cristo Jesus» (Fl
no Templo, juntamente com dois 2, 5). Inspirada por tal preferência,
pombinhos, a oferta de quem não a Igreja fez uma opção pelos po-
podia permitir-se pagar um cordei- bres, entendida como uma «forma
ro (cf. Lc 2, 24; Lv 5, 7); cresceu especial de primado na prática da
num lar de simples trabalhadores, caridade cristã, testemunhada por
e trabalhou com suas mãos para toda a Tradição da Igreja». Como
ganhar o pão. Quando começou a ensinava Bento XVI, esta opção
anunciar o Reino, seguiam-No mul- «está implícita na fé cristológica
tidões de deserdados, pondo assim naquele Deus que Se fez pobre
em evidência o que Ele mesmo dis- por nós, para enriquecer-nos com
sera: «O Espírito do Senhor está sua pobreza». Por isso, desejo uma
sobre Mim, porque Me ungiu para Igreja pobre para os pobres. Estes
anunciar a Boa-Nova aos pobres» têm muito para nos ensinar. Além
(Lc 4, 18). A quantos sentiam o de participar do  sensus fidei,  nas
peso do sofrimento, acabrunhados suas próprias dores conhecem Cris-

94 franciscanos.or g.br
to sofredor. É necessário que todos pendentemente da sua aparência:
nos deixemos evangelizar por eles. «Do amor, pelo qual uma pessoa é
A nova evangelização é um convite agradável a outra, depende que lhe
a reconhecer a força salvífica das dê algo de graça». Quando ama-
suas vidas, e a colocá-los no cen- do, o pobre «é estimado como de
tro do caminho da Igreja. Somos alto valor», e isto diferencia a au-
chamados a descobrir Cristo neles: têntica opção pelos pobres de qual-
não só a emprestar-lhes a nossa quer ideologia, de qualquer tentati-
voz nas suas causas, mas também va de utilizar os pobres ao serviço
a ser seus amigos, a escutá-los, a de interesses pessoais ou políticos.
compreendê-los e a acolher a miste- Unicamente a partir desta proximi-
riosa sabedoria que Deus nos quer dade real e cordial é que podemos
comunicar através deles. acompanhá-los adequadamente no
seu caminho de libertação. Só isto
199. O nosso compromisso não tornará possível que «os pobres
consiste exclusivamente em ações se sintam, em cada comunidade
ou em programas de promoção e cristã, como “em casa”. Não se-
assistência; aquilo que o Espírito ria, este estilo, a maior e mais efi-
põe em movimento não é um exces- caz apresentação da boa nova do
so de ativismo, mas primariamen- Reino?» Sem a opção preferencial
te uma atenção prestada ao outro pelos pobres, «o anúncio do Evan-
«considerando-o como um só con- gelho – e este anúncio é a primeira
sigo mesmo». Esta atenção amiga caridade – corre o risco de não ser
é o início duma verdadeira preocu- compreendido ou de afogar-se na-
pação pela sua pessoa e, a partir quele mar de palavras que a atual
dela, desejo procurar efetivamente sociedade da comunicação diaria-
o seu bem. Isto implica apreciar mente nos apresenta».
o pobre na sua bondade própria,
com o seu modo de ser, com a sua 200. Dado que esta Exortação se
cultura, com a sua forma de viver a dirige aos membros da Igreja Ca-
fé. O amor autêntico é sempre con- tólica, desejo afirmar, com mágoa,
templativo, permitindo-nos servir o que a pior discriminação que so-
outro não por necessidade ou vai- frem os pobres é a falta de cuidado
dade, mas porque ele é belo, inde- espiritual. A imensa maioria dos po-
franciscanos.or g.br 95
bres possui uma especial abertura à palavras sejam objecto apenas de
fé; tem necessidade de Deus e não alguns comentários, sem verdadei-
podemos deixar de lhe oferecer a ra incidência prática. Apesar dis-
sua amizade, a sua bênção, a sua so, tenho confiança na abertura e
Palavra, a celebração dos Sacra- nas boas disposições dos cristãos
mentos e a proposta dum caminho e peço-vos que procureis, comuni-
de crescimento e amadurecimento tariamente, novos caminhos para
na fé. A opção preferencial pelos acolher esta renovada proposta.
pobres deve traduzir-se, principal-
mente, numa solicitude religiosa pri- ECONOMIA E DISTRIBUIÇÃO DAS
vilegiada e prioritária. ENTRADAS

201. Ninguém deveria dizer que 202. A necessidade de resolver as


se mantém longe dos pobres, por- causas estruturais da pobreza não
que as suas opções de vida impli- pode esperar; e não apenas por
cam prestar mais atenção a outras uma exigência pragmática de obter
incumbências. Esta é uma desculpa resultados e ordenar a sociedade,
frequente nos ambientes acadêmi- mas também para a curar duma
cos, empresariais ou profissionais, mazela que a torna frágil e indig-
e até mesmo eclesiais. Embora se na e que só poderá levá-la a novas
possa dizer, em geral, que a vo- crises. Os planos de assistência,
cação e a missão próprias dos fi- que acorrem a determinadas emer-
éis leigos é a transformação das gências, deveriam considerar-se
diversas realidades terrenas para apenas como respostas provisórias.
que toda a atividade humana seja Enquanto não forem radicalmen-
transformada pelo Evangelho, nin- te solucionados os problemas dos
guém pode sentir-se exonerado da pobres, renunciando à autonomia
preocupação pelos pobres e pela absoluta dos mercados e da espe-
justiça social: «A conversão espiri- culação financeira e atacando as
tual, a intensidade do amor a Deus causas estruturais da desigualdade
e ao próximo, o zelo pela justiça e social, não se resolverão os proble-
pela paz, o sentido evangélico dos mas do mundo e, em definitivo, pro-
pobres e da pobreza são exigidos blema algum. A desigualdade é a
a todos». Temo que também estas raiz dos males sociais.

96 franciscanos.or g.br
203. A dignidade de cada pessoa 204. Não podemos mais confiar
humana e o bem comum são ques- nas forças cegas e na mão invisível
tões que deveriam estruturar toda a do mercado. O crescimento equi-
política econômica, mas às vezes tativo exige algo mais do que o
parecem somente apêndices adi- crescimento econômico, embora o
cionados de fora para completar pressuponha; requer decisões, pro-
um discurso político sem perspecti- gramas, mecanismos e processos
vas nem programas de verdadeiro especificamente orientados para
desenvolvimento integral. Quantas uma melhor distribuição das entra-
palavras se tornaram molestas para das, para a criação de oportunida-
este sistema! Molesta que se fale des de trabalho, para uma promo-
de ética, molesta que se fale de so- ção integral dos pobres que supere
lidariedade mundial, molesta que o mero assistencialismo. Longe de
se fale de distribuição dos bens, mim propor um populismo irrespon-
molesta que se fale de defender os sável, mas a economia não pode
postos de trabalho, molesta que se mais recorrer a remédios que são
fale da dignidade dos fracos, mo- um novo veneno, como quando se
lesta que se fale de um Deus que pretende aumentar a rentabilidade
exige um compromisso em prol reduzindo o mercado de trabalho e
da justiça. Outras vezes acontece criando assim novos excluídos.
que estas palavras se tornam ob-
jecto duma manipulação oportu- 205. Peço a Deus que cresça o
nista que as desonra. A cômoda número de políticos capazes de en-
indiferença diante destas questões trar num autêntico diálogo que vise
esvazia a nossa vida e as nossas efetivamente sanar as raízes profun-
palavras de todo o significado. A das e não a aparência dos males
vocação dum empresário é uma do nosso mundo. A política, tão de-
nobre tarefa, desde que se deixe negrida, é uma sublime vocação, é
interpelar por um sentido mais am- uma das formas mais preciosas da
plo da vida; isto permite-lhe servir caridade, porque busca o bem co-
verdadeiramente o bem comum mum. Temos de nos convencer que a
com o seu esforço por multiplicar caridade «é o princípio não só das
e tornar os bens deste mundo mais micro-relações estabelecidas entre
acessíveis a todos. amigos, na família, no pequeno
franciscanos.or g.br 97
grupo, mas também das macro-rela- soluções a nível local para as enor-
ções como relacionamentos sociais, mes contradições globais, pelo que
econômicos, políticos». Rezo ao a política local se satura de pro-
Senhor para que nos conceda mais blemas por resolver. Se realmente
políticos, que tenham verdadeira- queremos alcançar uma economia
mente a peito a sociedade, o povo, global saudável, precisamos, neste
a vida dos pobres. É indispensável momento da história, de um modo
que os governantes e o poder finan- mais eficiente de interação que,
ceiro levantem o olhar e alarguem sem prejuízo da soberania das na-
as suas perspectivas, procurando ções, assegure o bem-estar econô-
que haja trabalho digno, instrução mico a todos os países e não ape-
e cuidados sanitários para todos os nas a alguns.
cidadãos. E porque não acudirem
a Deus pedindo-Lhe que inspire os 207. E qualquer comunidade da
seus planos? Estou convencido de Igreja, na medida em que preten-
que, a partir duma abertura à trans- der subsistir tranquila sem se ocu-
cendência, poder-se-ia formar uma par criativamente nem cooperar de
nova mentalidade política e econô- forma eficaz para que os pobres
mica que ajudaria a superar a dico- vivam com dignidade e haja a in-
tomia absoluta entre a economia e clusão de todos, correrá também o
o bem comum social. risco da sua dissolução, mesmo que
fale de temas sociais ou critique os
206. A economia – como indica o governos. Facilmente acabará sub-
próprio termo – deveria ser a arte mersa pelo mundanismo espiritual,
de alcançar uma adequada admi- dissimulado em práticas religiosas,
nistração da casa comum, que é o reuniões infecundas ou discursos
mundo inteiro. Todo o ato econômi- vazios.
co duma certa envergadura, que se
realiza em qualquer parte do pla- 208. Se alguém se sentir ofendido
neta, repercute-se no mundo intei- com as minhas palavras, saiba que
ro, pelo que nenhum governo pode as exprimo com estima e com a me-
agir à margem duma responsabili- lhor das intenções, longe de qual-
dade comum. Na realidade, torna- quer interesse pessoal ou ideologia
-se cada vez mais difícil encontrar política. A minha palavra não é a

98 franciscanos.or g.br
dum inimigo nem a dum opositor. A refugiados, os povos indígenas, os
mim interessa-me apenas procurar idosos cada vez mais sós e abando-
que, quantos vivem escravizados nados, etc. Os migrantes represen-
por uma mentalidade individualis- tam um desafio especial para mim,
ta, indiferente e egoísta, possam por ser Pastor duma Igreja sem fron-
libertar-se dessas cadeias indignas teiras que se sente mãe de todos.
e alcancem um estilo de vida e de Por isso, exorto os países a uma
pensamento mais humano, mais no- abertura generosa, que, em vez de
bre, mais fecundo, que dignifique a temer a destruição da identidade lo-
sua passagem por esta terra. cal, seja capaz de criar novas sínte-
ses culturais. Como são belas as ci-
CUIDAR DA FRAGILIDADE dades que superam a desconfiança
doentia e integram os que são di-
209. Jesus, o evangelizador por ferentes, fazendo desta integração
excelência e o Evangelho em pes- um novo fator de progresso! Como
soa, identificou-Se especialmente são encantadoras as cidades que,
com os mais pequeninos (cf. Mt já no seu projeto arquitetônico, es-
25, 40). Isto recorda-nos, a todos tão cheias de espaços que unem,
os cristãos, que somos chamados relacionam, favorecem o reconheci-
a cuidar dos mais frágeis da Terra. mento do outro!
Mas, no modelo «do êxito» e «in-
dividualista» em vigor, parece que 211. Sempre me angustiou a situa-
não faz sentido investir para que ção das pessoas que são objeto das
os lentos, fracos ou menos dotados diferentes formas de tráfico. Quem
possam também singrar na vida. dera que se ouvisse o grito de Deus,
perguntando a todos nós: «Onde
210. Embora aparentemente não está o teu irmão?» (Gn 4, 9). Onde
nos traga benefícios tangíveis e está o teu irmão escravo? Onde está
imediatos, é indispensável prestar o irmão que estás matando cada
atenção e debruçar-nos sobre as dia na pequena fábrica clandes-
novas formas de pobreza e fragili- tina, na rede da prostituição, nas
dade, nas quais somos chamados a crianças usadas para a mendicida-
reconhecer Cristo sofredor: os sem de, naquele que tem de trabalhar
abrigo, os toxicodependentes, os às escondidas porque não foi regu-
franciscanos.or g.br 99
larizado? Não nos façamos de dis- tista e conservadora; e no entanto
traídos! Há muita cumplicidade… A esta defesa da vida nascente está
pergunta é para todos! Nas nossas intimamente ligada à defesa de
cidades, está instalado este crime qualquer direito humano. Supõe a
mafioso e aberrante, e muitos têm convicção de que um ser humano
as mãos cheias de sangue devido a é sempre sagrado e inviolável, em
uma cômoda e muda cumplicidade. qualquer situação e em cada etapa
do seu desenvolvimento. É fim em
212. Duplamente pobres são as si mesmo, e nunca um meio para
mulheres que padecem situações resolver outras dificuldades. Se cai
de exclusão, maus-tratos e violên- esta convicção, não restam funda-
cia, porque frequentemente têm me- mentos sólidos e permanentes para
nores possibilidades de defender a defesa dos direitos humanos, que
os seus direitos. E todavia, também ficariam sempre sujeitos às conveni-
entre elas, encontramos continua- ências contingentes dos poderosos
mente os mais admiráveis gestos de turno. Por si só a razão é sufi-
de heroísmo quotidiano na defesa ciente para se reconhecer o valor
e cuidado da fragilidade das suas inviolável de qualquer vida huma-
famílias. na, mas, se a olhamos também a
partir da fé, «toda a violação da
213. Entre estes seres frágeis, de dignidade pessoal do ser humano
que a Igreja quer cuidar com pre- clama por vingança junto de Deus
dileção, estão também os nascitu- e torna-se ofensa ao Criador do ho-
ros, os mais inermes e inocentes de mem».
todos, a quem hoje se quer negar
a dignidade humana para poder 214. E precisamente porque é uma
fazer deles o que apetece, tirando- questão que mexe com a coerência
-lhes a vida e promovendo legis- interna da nossa mensagem sobre
lações para que ninguém o possa o valor da pessoa humana, não se
impedir. Muitas vezes, para ridicu- deve esperar que a Igreja altere a
lizar jocosamente a defesa que a sua posição sobre esta questão. A
Igreja faz da vida dos nascituros, propósito, quero ser completamen-
procura-se apresentar a sua posi- te honesto. Este não é um assun-
ção como ideológica, obscuran- to sujeito a supostas reformas ou

100 franciscanos.or g.br


«modernizações». Não é opção a nossa vida e a das gerações fu-
progressista pretender resolver os turas. Neste sentido, faço meu o
problemas, eliminando uma vida expressivo e profético lamento que,
humana. Mas é verdade também já há vários anos, formularam os
que temos feito pouco para acom- Bispos das Filipinas: «Uma incrível
panhar adequadamente as mulhe- variedade de insectos vivia no bos-
res que estão em situações mui- que; e estavam ocupados com todo
to duras, nas quais o aborto lhes o tipo de tarefas. (…) Os pássaros
aparece como uma solução rápida voavam pelo ar, as suas penas bri-
para as suas profundas angústias, lhantes e os seus variados gorjeios
particularmente quando a vida que acrescentavam cor e melodia ao
cresce nelas surgiu como resultado verde dos bosques. (…) Deus quis
duma violência ou num contexto de que esta terra fosse para nós, suas
extrema pobreza. Quem pode dei- criaturas especiais, mas não para
xar de compreender estas situações a podermos destruir ou transformar
de tamanho sofrimento? num baldio. (…) Depois de uma
única noite de chuva, observa os
215. Há outros seres frágeis e in- rios de castanho-chocolate da tua
defesos, que muitas vezes ficam à localidade e lembra-te que estão
mercê dos interesses econômicos a arrastar o sangue vivo da terra
ou de um uso indiscriminado. Refi- para o mar. (…) Como poderão os
ro-me ao conjunto da criação. Nós, peixes nadar em esgotos como o
os seres humanos, não somos me- rio Pasig e muitos outros rios que
ramente beneficiários, mas guardi- poluímos? Quem transformou o ma-
ães das outras criaturas. Pela nossa ravilhoso mundo marinho em cemi-
realidade corpórea, Deus uniu-nos térios subaquáticos despojados de
tão estreitamente ao mundo que vida e de cor?»
nos rodeia, que a desertificação do
solo é como uma doença para cada 216. Pequenos mas fortes no amor
um, e podemos lamentar a extinção de Deus, como São Francisco de
de uma espécie como se fosse uma Assis, todos nós, cristãos, somos
mutilação. Não deixemos que, à chamados a cuidar da fragilidade
nossa passagem, fiquem sinais de do povo e do mundo em que vive-
destruição e de morte que afetem mos.
franciscanos.or g.br 101
3. O BEM COMUM E A PAZ SOCIAL 219. E a paz também «não se
reduz a uma ausência de guerra,
217. Falamos muito sobre a ale- fruto do equilíbrio sempre precário
gria e o amor, mas a Palavra de das forças. Constrói-se, dia a dia,
Deus menciona também o fruto da na busca duma ordem querida por
paz (cf. Gal 5, 22). Deus, que traz consigo uma justiça
mais perfeita entre os homens». En-
218. A paz social não pode ser fim, uma paz que não surja como
entendida como irenismo ou como fruto do desenvolvimento integral
mera ausência de violência obtida de todos, não terá futuro e será
pela imposição de uma parte sobre sempre semente de novos conflitos
as outras. Também seria uma paz e variadas formas de violência.
falsa aquela que servisse como des-
culpa para justificar uma organiza- 220. Em cada nação, os habitan-
ção social que silencie ou tranqui- tes desenvolvem a dimensão social
lize os mais pobres, de modo que da sua vida, configurando-se como
aqueles que gozam dos maiores be- cidadãos responsáveis dentro de
nefícios possam manter o seu estilo um povo e não como massa ar-
de vida sem sobressaltos, enquanto rastada pelas forças dominantes.
os outros sobrevivem como podem. Lembremo-nos que «ser cidadão fiel
As reivindicações sociais, que têm é uma virtude, e a participação na
a ver com a distribuição das entra- vida política é uma obrigação mo-
das, a inclusão social dos pobres ral». Mas, tornar-se um povo é algo
e os direitos humanos não podem mais, exigindo um processo cons-
ser sufocados com o pretexto de tante no qual cada nova geração
construir um consenso de escritório está envolvida. É um trabalho lento
ou uma paz efémera para uma mi- e árduo que exige querer integrar-
noria feliz. A dignidade da pessoa -se e aprender a fazê-lo até se de-
humana e o bem comum estão por senvolver uma cultura do encontro
cima da tranquilidade de alguns numa harmonia pluriforme.
que não querem renunciar aos seus
privilégios. Quando estes valores 221. Para avançar nesta constru-
são afetados, é necessária uma voz ção de um povo em paz, justiça e
profética. fraternidade, há quatro princípios

102 franciscanos.or g.br


relacionados com tensões bipolares horizonte maior, da utopia que nos
próprias de toda a realidade social. abre ao futuro como causa final que
Derivam dos grandes postulados atrai. Daqui surge um primeiro prin-
da Doutrina Social da Igreja, que cípio para progredir na construção
constituem o «primeiro e fundamen- de um povo: o tempo é superior ao
tal parâmetro de referência para a espaço.
interpretação e o exame dos fenô-
menos sociais». À luz deles, desejo 223. Este princípio permite tra-
agora propor estes quatro princí- balhar a longo prazo, sem a ob-
pios que orientam especificamente sessão pelos resultados imediatos.
o desenvolvimento da convivência Ajuda a suportar, com paciência,
social e a construção de um povo situações difíceis e hostis ou as mu-
onde as diferenças se harmonizam danças de planos que o dinamismo
dentro de um projeto comum. Faço- da realidade impõe. É um convite
-o na convicção de que a sua apli- a assumir a tensão entre plenitude
cação pode ser um verdadeiro ca- e limite, dando prioridade ao tem-
minho para a paz dentro de cada po. Um dos pecados que, às vezes,
nação e no mundo inteiro. se nota na atividade sociopolítica
é privilegiar os espaços de poder
O TEMPO É SUPERIOR AO ESPAÇO em vez dos tempos dos processos.
Dar prioridade ao espaço leva-nos
222. Existe uma tensão bipolar a proceder como loucos para resol-
entre a plenitude e o limite. A ple- ver tudo no momento presente, para
nitude gera a vontade de possuir tentar tomar posse de todos os es-
tudo, e o limite é o muro que nos paços de poder e autoafirmação. É
aparece pela frente. O «tempo», cristalizar os processos e pretender
considerado em sentido amplo, faz pará-los. Dar prioridade ao tempo
referimento à plenitude como ex- é ocupar-se mais com iniciar pro-
pressão do horizonte que se abre cessos do que possuir espaços. O
diante de nós, e o momento é ex- tempo ordena os espaços, ilumina-
pressão do limite que se vive num -os e transforma-os em elos duma
espaço circunscrito. Os cidadãos cadeia em constante crescimento,
vivem em tensão entre a conjuntura sem marcha atrás. Trata-se de pri-
do momento e a luz do tempo, do vilegiar as ações que geram novos
franciscanos.or g.br 103
dinamismos na sociedade e com- rar o Espírito Santo (cf. Jo 16, 12-
prometem outras pessoas e grupos 13). A parábola do trigo e do joio
que os desenvolverão até frutificar (cf. Mt 13, 24-30) descreve um as-
em acontecimentos históricos impor- pecto importante de evangelização
tantes. Sem ansiedade, mas com que consiste em mostrar como o ini-
convicções claras e tenazes. migo pode ocupar o espaço do Rei-
no e causar dano com o joio, mas é
224. Às vezes interrogo-me sobre vencido pela bondade do trigo que
quais são as pessoas que, no mun- se manifesta com o tempo.
do atual, se preocupam realmente
mais com gerar processos que cons- A UNIDADE PREVALECE
truam um povo do que com obter SOBRE O CONFLITO
resultados imediatos que produzam
ganhos políticos fáceis, rápidos e 226. O conflito não pode ser igno-
efémeros, mas que não constroem rado ou dissimulado; deve ser acei-
a plenitude humana. A história jul- tado. Mas, se ficamos encurralados
gá-los-á talvez com aquele critério nele, perdemos a perspectiva, os
enunciado por Romano Guardini: horizontes reduzem-se e a própria
«O único padrão para avaliar jus- realidade fica fragmentada. Quan-
tamente uma época é perguntar-se do paramos na conjuntura conflitu-
até que ponto, nela, se desenvolve e al, perdemos o sentido da unidade
alcança uma autêntica razão de ser profunda da realidade.
a plenitude da existência humana,
de acordo com o carácter peculiar 227. Perante o conflito, alguns limi-
e as possibilidades da dita época». tam-se a olhá-lo e passam adiante
225. Este critério é muito apropria- como se nada fosse, lavam-se as
do também para a evangelização, mãos para poder continuar com a
que exige ter presente o horizonte, sua vida. Outros entram de tal ma-
adotar os processos possíveis e a neira no conflito que ficam prisio-
estrada longa. O próprio Senhor, neiros, perdem o horizonte, proje-
na sua vida mortal, deu a entender tam nas instituições as suas próprias
várias vezes aos seus discípulos que confusões e insatisfações e, assim,
havia coisas que ainda não podiam a unidade torna-se impossível. Mas
compreender e era necessário espe- há uma terceira forma, a mais ade-

104 franciscanos.or g.br


quada, de enfrentar o conflito: é po e eternidade, carne e espírito,
aceitar suportar o conflito, resolvê- pessoa e sociedade. O sinal distin-
-lo e transformá-lo no elo de ligação tivo desta unidade e reconciliação
de um novo processo. «Felizes os de tudo n’Ele é a paz. Cristo «é a
pacificadores» (Mt 5, 9)! nossa paz» (Ef 2, 14). O anúncio
do Evangelho começa sempre com
228. Deste modo, torna-se possível a saudação de paz; e a paz coroa
desenvolver uma comunhão nas di- e cimenta em cada momento as re-
ferenças, que pode ser facilitada só lações entre os discípulos. A paz é
por pessoas magnânimas que têm possível, porque o Senhor venceu o
a coragem de ultrapassar a superfí- mundo e sua permanente conflituali-
cie conflitual e consideram os outros dade, «pacificando pelo sangue da
na sua dignidade mais profunda. sua cruz» (Col 1, 20). Entretanto, se
Por isso, é necessário postular um examinarmos a fundo estes textos bí-
princípio que é indispensável para blicos, descobriremos que o primei-
construir a amizade social: a unida- ro âmbito onde somos chamados a
de é superior ao conflito. A solida- conquistar esta pacificação nas di-
riedade, entendida no seu sentido ferenças é a própria interioridade,
mais profundo e desafiador, torna- a própria vida sempre ameaçada
-se assim um estilo de construção pela dispersão dialéctica. Com co-
da história, um âmbito vital onde rações despedaçados em milhares
os conflitos, as tensões e os opos- de fragmentos, será difícil construir
tos podem alcançar uma unidade uma verdadeira paz social.
multifacetada que gera nova vida.
Não é apostar no sincretismo ou na 230. O anúncio de paz não é a
absorção de um no outro, mas na proclamação duma paz negociada,
resolução num plano superior que mas a convicção de que a unidade
conserva em si as preciosas poten- do Espírito harmoniza todas as di-
cialidades das polaridades em con- versidades. Supera qualquer con-
traste. flito numa nova e promissora sínte-
se. A diversidade é bela, quando
229. Este critério evangélico recor- aceita entrar constantemente num
da-nos que Cristo tudo unificou em processo de reconciliação até selar
Si: céu e terra, Deus e homem, tem- uma espécie de pacto cultural que
franciscanos.or g.br 105
faça surgir uma «diversidade recon- ceituais – está ao serviço da cap-
ciliada», como justamente ensina- tação, compreensão e condução
ram os Bispos da República Demo- da realidade. A ideia desligada
crática do Congo: «A diversidade da realidade dá origem a idealis-
das nossas etnias é uma riqueza. mos e nominalismos ineficazes que,
(…) Só com a unidade, a conver- no máximo, classificam ou defi-
são dos corações e a reconciliação nem, mas não empenham. O que
é que poderemos fazer avançar o empenha é a realidade iluminada
nosso país». pelo raciocínio. É preciso passar
do nominalismo formal à objetivi-
A REALIDADE É MAIS dade harmoniosa. Caso contrário,
IMPORTANTE DO QUE A IDEIA manipula-se a verdade, do mesmo
modo que se substitui a ginástica
231. Existe também uma tensão bi- pela cosmética. Há políticos – e
polar entre a ideia e a realidade: também líderes religiosos – que se
a realidade simplesmente é, a ideia interrogam por que motivo o povo
elabora-se. Entre as duas, deve não os compreende nem segue, se
estabelecer-se um diálogo constan- as suas propostas são tão lógicas
te, evitando que a ideia acabe por e claras. Possivelmente é porque
separar-se da realidade. É perigo- se instalaram no reino das puras
so viver no reino só da palavra, da ideias e reduziram a política ou a
imagem, do sofisma. Por isso, há fé à retórica; outros esqueceram a
que postular um terceiro princípio: simplicidade e importaram de fora
a realidade é superior à ideia. Isto uma racionalidade alheia à gente.
supõe evitar várias formas de ocul-
tar a realidade: os purismos angéli- 233. A realidade é superior à
cos, os totalitarismos do relativo, os ideia. Este critério está ligado à
nominalismos declaracionistas, os encarnação da Palavra e ao seu
projetos mais formais que reais, os cumprimento: «Reconheceis que
fundamentalismos anti-históricos, os o espírito é de Deus por isto: todo
eticismos sem bondade, os intelectu- o espírito que confessa Jesus Cris-
alismos sem sabedoria. to que veio em carne mortal é de
Deus». (1 Jo 4, 2). O critério da re-
232. A ideia – as elaborações con- alidade, duma Palavra já encarna-

106 franciscanos.or g.br


da e sempre procurando encarnar- cair em algum destes dois extremos:
-se, é essencial à evangelização. o primeiro, que os cidadãos vivam
Por um lado, leva-nos a valorizar a num universalismo abstrato e glo-
história da Igreja como história de balizante, miméticos passageiros
salvação, a recordar os nossos San- do carro de apoio, admirando os
tos que inculturaram o Evangelho fogos de artifício do mundo, que
na vida dos nossos povos, a reco- é de outros, com a boca aberta e
lher a rica tradição bimilenária da aplausos programados; o outro ex-
Igreja, sem pretender elaborar um tremo é que se transformem num
pensamento desligado deste tesou- museu folclórico de eremitas loca-
ro como se quiséssemos inventar o listas, condenados a repetir sempre
Evangelho. Por outro lado, este cri- as mesmas coisas, incapazes de se
tério impele-nos a pôr em prática a deixar interpelar pelo que é diverso
Palavra, a realizar obras de justiça e de apreciar a beleza que Deus es-
e caridade nas quais se torne fecun- palha fora das suas fronteiras.
da esta Palavra. Não pôr em práti- 235. O todo é mais do que a par-
ca, não levar à realidade a Palavra te, sendo também mais do que a
é construir sobre a areia, permane- simples soma delas. Portanto, não
cer na pura ideia e degenerar em se deve viver demasiado obceca-
intimismos e gnosticismos que não dos por questões limitadas e parti-
dão fruto, que esterilizam o seu di- culares. É preciso alargar sempre
namismo. o olhar para reconhecer um bem
maior que trará benefícios a todos
O TODO É SUPERIOR À PARTE nós. Mas há que o fazer sem se
evadir nem se desenraizar. É neces-
234. Entre a globalização e a lo- sário mergulhar as raízes na terra
calização também se gera uma fértil e na história do próprio lugar,
tensão. É preciso prestar atenção que é um dom de Deus. Trabalha-se
à dimensão global para não cair no pequeno, no que está próximo,
numa mesquinha quotidianidade. mas com uma perspectiva mais am-
Ao mesmo tempo convém não per- pla. Da mesma forma, uma pessoa
der de vista o que é local, que nos que conserva a sua peculiaridade
faz caminhar com os pés por terra. pessoal e não esconde a sua iden-
As duas coisas unidas impedem de tidade, quando se integra cordial-
franciscanos.or g.br 107
mente numa comunidade não se Igreja nos transmite e envia a pre-
aniquila, mas recebe sempre novos gar. A sua riqueza plena incorpora
estímulos para o seu próprio desen- acadêmicos e operários, empre-
volvimento. Não é a esfera global sários e artistas, incorpora todos.
que aniquila, nem a parte isolada A «mística popular» acolhe, a seu
que esteriliza. modo, o Evangelho inteiro e encar-
na-o em expressões de oração, de
236. Aqui o modelo não é a es- fraternidade, de justiça, de luta e
fera, pois não é superior às partes de festa. A Boa Nova é a alegria
e, nela, cada ponto é equidistante dum Pai que não quer que se perca
do centro, não havendo diferenças nenhum dos seus pequeninos. As-
entre um ponto e o outro. O modelo sim nasce a alegria no Bom Pastor
é o poliedro, que reflete a conflu- que encontra a ovelha perdida e a
ência de todas as partes que nele reintegra no seu rebanho. O Evan-
mantêm a sua originalidade. Tanto gelho é fermento que leveda toda a
a ação pastoral como a ação polí- massa e cidade que brilha no cimo
tica procuram reunir nesse poliedro do monte, iluminando todos os po-
o melhor de cada um. Ali entram os vos. O Evangelho possui um critério
pobres com a sua cultura, os seus de totalidade que lhe é intrínseco:
projetos e as suas próprias poten- não cessa de ser Boa Nova enquan-
cialidades. Até mesmo as pessoas to não for anunciado a todos, en-
que possam ser criticadas pelos quanto não fecundar e curar todas
seus erros, têm algo a oferecer que as dimensões do homem, enquanto
não se deve perder. É a união dos não unir todos os homens à volta da
povos, que, na ordem universal, mesa do Reino. O todo é superior
conservam a sua própria peculia- à parte.
ridade; é a totalidade das pessoas
numa sociedade que procura um 4. O DIÁLOGO SOCIAL COMO
bem comum que verdadeiramente CONTRIBUIÇÃO PARA A PAZ
incorpore a todos.
238. A evangelização implica tam-
237. A nós, cristãos, este princí- bém um caminho de diálogo. Nes-
pio fala-nos também da totalidade te momento, existem sobretudo três
ou integridade do Evangelho que a campos de diálogo onde a Igreja

108 franciscanos.or g.br


deve estar presente, cumprindo um mas sem a separar da preocupação
serviço a favor do pleno desenvol- por uma sociedade justa, capaz de
vimento do ser humano e procuran- memória e sem exclusões. O autor
do o bem comum: o diálogo com principal, o sujeito histórico deste
os Estados, com a sociedade – que processo, é a gente e a sua cultura,
inclui o diálogo com as culturas e as não uma classe, uma fracção, um
ciências – e com os outros crentes grupo, uma elite. Não precisamos
que não fazem parte da Igreja Ca- de um projeto de poucos para pou-
tólica. Em todos os casos, «a Igre- cos, ou de uma minoria esclarecida
ja fala a partir da luz que a fé lhe ou testemunhal que se aproprie de
dá», oferece a sua experiência de um sentimento colectivo. Trata-se de
dois mil anos e conserva sempre na um acordo para viver juntos, de um
memória as vidas e sofrimentos dos pacto social e cultural.
seres humanos. Isto ultrapassa a ra-
zão humana, mas também tem um 240. O cuidado e a promoção do
significado que pode enriquecer a bem comum da sociedade compete
quantos não creem e convida a ra- ao Estado. Este, com base nos prin-
zão a alargar as suas perspectivas. cípios de subsidiariedade e solida-
riedade e com um grande esforço
239. A Igreja proclama o «evan- de diálogo político e criação de
gelho da paz» (Ef 6, 15) e está consensos, desempenha um papel
aberta à colaboração com todas fundamental – que não pode ser
as autoridades nacionais e inter- delegado – na busca do desenvol-
nacionais para cuidar deste bem vimento integral de todos. Este pa-
universal tão grande. Ao anunciar pel exige, nas circunstâncias atuais,
Jesus Cristo, que é a paz em pessoa uma profunda humildade social.
(cf. Ef 2, 14), a nova evangeliza-
ção incentiva todo o batizado a ser 241. No diálogo com o Estado e
instrumento de pacificação e teste- com a sociedade, a Igreja não tem
munha credível duma vida reconci- soluções para todas as questões es-
liada. É hora de saber como pro- pecíficas. Mas, juntamente com as
jetar, numa cultura que privilegie o várias forças sociais, acompanha
diálogo como forma de encontro, as propostas que melhor corres-
a busca de consenso e de acordos pondam à dignidade da pessoa
franciscanos.or g.br 109
humana e ao bem comum. Ao fazê- tendo em vista procurar que sempre
-lo, propõe sempre com clareza os respeitem a centralidade e o valor
valores fundamentais da existência supremo da pessoa humana em to-
humana, para transmitir convicções das as fases da sua existência. Toda
que possam depois traduzir-se em a sociedade pode ser enriquecida
ações políticas. através deste diálogo que abre no-
vos horizontes ao pensamento e
O DIÁLOGO ENTRE A FÉ, A RAZÃO amplia as possibilidades da razão.
E AS CIÊNCIAS Também este é um caminho de har-
monia e pacificação.
242. O diálogo entre ciência e fé
também faz parte da ação evan- 243. A Igreja não pretende deter
gelizadora que favorece a paz. O o progresso admirável das ciências.
cientificismo e o positivismo recu- Pelo contrário, alegra-se e inclusi-
sam-se a «admitir, como válidas, vamente desfruta reconhecendo o
formas de conhecimento distintas enorme potencial que Deus deu à
daquelas que são próprias das ci- mente humana. Quando o progres-
ências positivas». A Igreja propõe so das ciências, mantendo-se com
outro caminho, que exige uma sín- rigor acadêmico no campo do seu
tese entre um uso responsável das objeto específico, torna evidente
metodologias próprias das ciências uma determinada conclusão que a
empíricas e os outros saberes como razão não pode negar, a fé não a
a filosofia, a teologia, e a própria contradiz. Nem os crentes podem
fé que eleva o ser humano até ao pretender que uma opinião cientí-
mistério que transcende a natureza fica que lhes agrada – e que nem
e a inteligência humana. A fé não sequer foi suficientemente compro-
tem medo da razão; pelo contrá- vada – adquira o peso dum dogma
rio, procura-a e tem confiança nela, de fé. Em certas ocasiões, porém,
porque «a luz da razão e a luz da alguns cientistas vão mais além do
fé provêm ambas de Deus», e não objeto formal da sua disciplina e
se podem contradizer entre si. A exageram com afirmações ou con-
evangelização está atenta aos pro- clusões que extravasam o campo
gressos científicos para os iluminar da própria ciência. Neste caso, não
com a luz da fé e da lei natural, é a razão que se propõe, mas uma

110 franciscanos.or g.br


determinada ideologia que fecha é uma contribuição para a unidade
o caminho a um diálogo autêntico, da família humana. A presença no
pacífico e frutuoso. Sínodo do Patriarca de Constanti-
nopla, Sua Santidade Bartolomeu I,
O DIÁLOGO ECUMÊNICO e do Arcebispo de Cantuária, Sua
Graça Rowan Douglas Williams, foi
244. O compromisso ecumênico um verdadeiro dom de Deus e um
corresponde à oração do Senhor precioso testemunho cristão.
Jesus pedindo «que todos sejam
um só» (Jo 17, 21). A credibilida- 246. Dada a gravidade do contra-
de do anúncio cristão seria muito -testemunho da divisão entre cris-
maior, se os cristãos superassem as tãos, sobretudo na Ásia e na África,
suas divisões e a Igreja realizasse torna-se urgente a busca de cami-
«a plenitude da catolicidade que nhos de unidade. Os missionários,
lhe é própria naqueles filhos que, nesses continentes, referem repeti-
embora incorporados pelo Batis- damente as críticas, queixas e sar-
mo, estão separados da sua plena casmos que recebem por causa do
comunhão». Devemos sempre lem- escândalo dos cristãos divididos.
brar-nos de que somos peregrinos, Se nos concentrarmos nas convic-
e peregrinamos juntos. Para isso, ções que nos unem e recordarmos o
devemos abrir o coração ao com- princípio da hierarquia das verda-
panheiro de estrada sem medos des, poderemos caminhar decidida-
nem desconfianças, e olhar prima- mente para formas comuns de anún-
riamente para o que procuramos: cio, de serviço e de testemunho. A
a paz no rosto do único Deus. O imensa multidão que não recebeu o
abrir-se ao outro tem algo de artesa- anúncio de Jesus Cristo não pode
nal, a paz é artesanal. Jesus disse- deixar-nos indiferentes. Por isso, o
-nos: «Felizes os pacificadores» (Mt esforço por uma unidade que facili-
5, 9). Neste esforço, mesmo entre te a recepção de Jesus Cristo deixa
nós, cumpre-se a antiga profecia: de ser mera diplomacia ou um de-
«Transformarão as suas espadas ver forçado para se transformar num
em relhas de arado» (Is 2, 4). caminho imprescindível da evange-
lização. Os sinais de divisão entre
245. Sob esta luz, o ecumenismo cristãos, em países que já estão
franciscanos.or g.br 111
dilacerados pela violência, juntam povo da Aliança e a sua fé como
outros motivos de conflito vindos da uma raiz sagrada da própria iden-
parte de quem deveria ser um ativo tidade cristã (cf. Rm 11, 16-18).
fermento de paz. São tantas e tão Como cristãos, não podemos con-
valiosas as coisas que nos unem! E, siderar o Judaísmo como uma re-
se realmente acreditamos na ação ligião alheia, nem incluímos os ju-
livre e generosa do Espírito, quan- deus entre quantos são chamados
tas coisas podemos aprender uns a deixar os ídolos para se converter
dos outros! Não se trata apenas de ao verdadeiro Deus (cf. 1 Ts 1, 9).
receber informações sobre os outros Juntamente com eles, acreditamos
para os conhecermos melhor, mas no único Deus que atua na história,
de recolher o que o Espírito semeou e acolhemos, com eles, a Palavra
neles como um dom também para revelada comum.
nós. Só para dar um exemplo, no
diálogo com os irmãos ortodoxos, 248. O diálogo e a amizade com
nós, os católicos, temos a possibi- os filhos de Israel fazem parte da
lidade de aprender algo mais so- vida dos discípulos de Jesus. O afe-
bre o significado da colegialidade to que se desenvolveu leva-nos a la-
episcopal e sobre a sua experiência mentar, sincera e amargamente, as
da sinodalidade. Através de um in- terríveis perseguições de que foram
tercâmbio de dons, o Espírito pode e são objeto, particularmente aque-
conduzir-nos cada vez mais para a las que envolvem ou envolveram
verdade e o bem. cristãos.

AS RELAÇÕES COM O JUDAÍSMO 249. Deus continua a operar no


povo da Primeira Aliança e faz nas-
247. Um olhar muito especial é cer tesouros de sabedoria que bro-
dirigido ao povo judeu, cuja Alian- tam do seu encontro com a Palavra
ça com Deus nunca foi revogada, divina. Por isso, a Igreja também se
porque «os dons e o chamamento enriquece quando recolhe os valo-
de Deus são irrevogáveis» (Rm 11, res do Judaísmo. Embora algumas
29). A Igreja, que partilha com o convicções cristãs sejam inacei-
Judaísmo uma parte importante das táveis para o Judaísmo e a Igreja
Escrituras Sagradas, considera o não possa deixar de anunciar Jesus

112 franciscanos.or g.br


como Senhor e Messias, há uma o dever de servir a justiça e a paz,
rica complementaridade que nos que deverá tornar-se um critério bá-
permite ler juntos os textos da Bíblia sico de todo o intercâmbio. Um di-
hebraica e ajudar-nos mutuamente álogo, no qual se procurem a paz
a desentranhar as riquezas da Pala- e a justiça social, é em si mesmo,
vra, bem como compartilhar muitas para além do aspecto meramente
convicções éticas e a preocupação pragmático, um compromisso ético
comum pela justiça e o desenvolvi- que cria novas condições sociais.
mento dos povos. Os esforços à volta de um tema
específico podem transformar-se
O DIÁLOGO INTER-RELIGIOSO num processo em que, através da
escuta do outro, ambas as partes
250. Uma atitude de abertura na encontram purificação e enrique-
verdade e no amor deve caracteri- cimento. Portanto, estes esforços
zar o diálogo com os crentes das também podem ter o significado de
religiões não-cristãs, apesar dos amor à verdade.
vários obstáculos e dificuldades,
de modo particular os fundamen- 251. Neste diálogo, sempre amá-
talismos de ambos os lados. Este vel e cordial, nunca se deve des-
diálogo inter-religioso é uma con- cuidar o vínculo essencial entre di-
dição necessária para a paz no álogo e anúncio, que leva a Igreja
mundo e, por conseguinte, é um a manter e intensificar as relações
dever para os cristãos e também com os não-cristãos. Um sincretis-
para outras comunidades religio- mo conciliador seria, no fundo,
sas. Este diálogo é, em primeiro um totalitarismo de quantos pre-
lugar, uma conversa sobre a vida tendem conciliar prescindindo de
humana ou simplesmente – como valores que os transcendem e dos
propõem os Bispos da Índia – «es- quais não são donos. A verdadeira
tar aberto a eles, compartilhando abertura implica conservar-se firme
as suas alegrias e penas». Assim nas próprias convicções mais pro-
aprendemos a aceitar os outros, fundas, com uma identidade clara
na sua maneira diferente de ser, de e feliz, mas «disponível para com-
pensar e de se exprimir. Com este preender as do outro» e «sabendo
método, poderemos assumir juntos que o diálogo pode enriquecer a
franciscanos.or g.br 113
ambos». Não nos serve uma aber- na sua totalidade, é de Deus e
tura diplomática que diga sim a para Deus. Reconhecem também
tudo para evitar problemas, por- a necessidade de Lhe responder
que seria um modo de enganar com um compromisso ético e com
o outro e negar-lhe o bem que se a misericórdia para com os mais
recebeu como um dom para parti- pobres.
lhar com generosidade. Longe de
se contraporem, a evangelização e 253. Para sustentar o diálogo com
o diálogo inter-religioso apoiam-se o Islão é indispensável a adequada
e alimentam-se reciprocamente. formação dos interlocutores, não
só para que estejam sólida e jubi-
252. Neste tempo, adquire gran- losamente radicados na sua identi-
de importância a relação com os dade, mas também para que sejam
crentes do Islão, hoje particular- capazes de reconhecer os valores
mente presentes em muitos países dos outros, compreender as pre-
de tradição cristã, onde podem ocupações que subjazem às suas
celebrar livremente o seu culto e vi- reivindicações e fazer aparecer as
ver integrados na sociedade. Não convicções comuns. Nós, cristãos,
se deve jamais esquecer que eles deveríamos acolher com afeto e
«professam seguir a fé de Abraão, respeito os imigrantes do Islão
e connosco adoram o Deus único e que chegam aos nossos países, tal
misericordioso, que há-de julgar os como esperamos e pedimos para
homens no último dia». Os escritos ser acolhidos e respeitados nos
sagrados do Islão conservam par- países de tradição islâmica. Rogo,
te dos ensinamentos cristãos; Jesus imploro humildemente a esses pa-
Cristo e Maria são objecto de pro- íses que assegurem liberdade aos
funda veneração e é admirável ver cristãos para poderem celebrar o
como jovens e idosos, mulheres e seu culto e viver a sua fé, tendo em
homens do Islão são capazes de conta a liberdade que os crentes
dedicar diariamente tempo à ora- do Islão gozam nos países ociden-
ção e participar fielmente nos seus tais. Frente a episódios de funda-
ritos religiosos. Ao mesmo tempo, mentalismo violento que nos preo-
muitos deles têm uma profunda cupam, o afeto pelos verdadeiros
convicção de que a própria vida, crentes do Islão deve levar-nos a

114 franciscanos.or g.br


evitar odiosas generalizações, por- O DIÁLOGO SOCIAL NUM
que o verdadeiro Islão e uma in- CONTEXTO DE LIBERDADE
terpretação adequada do Alcorão RELIGIOSA
opõem-se a toda a violência.
255. Os Padres sinodais lembra-
254. Os não-cristãos fiéis à sua ram a importância do respeito pela
consciência podem, por gratuita liberdade religiosa, considerada
iniciativa divina, viver «justifica- um direito humano fundamental. In-
dos por meio da graça de Deus» clui «a liberdade de escolher a reli-
e, assim, «associados ao mistério gião que se crê ser verdadeira e de
pascal de Jesus Cristo». Devido, manifestar publicamente a própria
porém, à dimensão sacramental crença». Um são pluralismo, que
da graça santificante, a ação divi- respeite verdadeiramente aqueles
na neles tende a produzir sinais, ri- que pensam diferente e os valori-
tos, expressões sagradas que, por zem como tais, não implica uma
sua vez, envolvem outros numa ex- privatização das religiões, com a
periência comunitária do caminho pretensão de as reduzir ao silêncio
para Deus. Não têm o significado e à obscuridade da consciência de
e a eficácia dos Sacramentos insti- cada um ou à sua marginalização
tuídos por Cristo, mas podem ser no recinto fechado das igrejas, si-
canais que o próprio Espírito sus- nagogas ou mesquitas. Tratar-se-ia,
cita para libertar os não-cristãos em definitivo, de uma nova forma
do imanentismo ateu ou de expe- de discriminação e autoritarismo. O
riências religiosas meramente indi- respeito devido às minorias de ag-
viduais. O mesmo Espírito suscita nósticos ou de não-crentes não se
por toda a parte diferentes formas deve impor de maneira arbitrária
de sabedoria prática que ajudam que silencie as convicções de maio-
a suportar as carências da vida e rias crentes ou ignore a riqueza das
a viver com mais paz e harmonia. tradições religiosas. No fundo, isso
Nós, cristãos, podemos tirar pro- fomentaria mais o ressentimento do
veito também desta riqueza conso- que a tolerância e a paz.
lidada ao longo dos séculos, que
nos pode ajudar a viver melhor as 256. Ao questionar-se sobre a in-
nossas próprias convicções. cidência pública da religião, é pre-
franciscanos.or g.br 115
ciso distinguir diferentes modos de de qualquer tradição religiosa,
a viver. Tanto os intelectuais como buscam sinceramente a verdade,
os jornalistas caem, frequentemen- a bondade e a beleza, que, para
te, em generalizações grosseiras e nós, têm a sua máxima expressão
pouco acadêmicas, quando falam e a sua fonte em Deus. Sentimo-los
dos defeitos das religiões e, muitas como preciosos aliados no com-
vezes, não são capazes de distin- promisso pela defesa da dignida-
guir que nem todos os crentes – nem de humana, na construção duma
todos os líderes religiosos – são convivência pacífica entre os po-
iguais. Alguns políticos aproveitam vos e na guarda da criação. Um
esta confusão para justificar ações espaço peculiar é o dos chamados
discriminatórias. Outras vezes, des- novos Areópagos, como o «Átrio
prezam-se os escritos que surgiram dos Gentios», onde «crentes e não-
no âmbito duma convicção crente, -crentes podem dialogar sobre os
esquecendo que os textos religio- temas fundamentais da ética, da
sos clássicos podem oferecer um arte e da ciência, e sobre a busca
significado para todas as épocas, da transcendência». Também este
possuem uma força motivadora que é um caminho de paz para o nosso
abre sempre novos horizontes, esti- mundo ferido.
mula o pensamento, engrandece a
mente e a sensibilidade. São des- 258. A partir de alguns temas so-
prezados pela miopia dos raciona- ciais, importantes para o futuro da
lismos. Será razoável e inteligente humanidade, procurei explicitar
relegá-los para a obscuridade, só uma vez mais a incontornável di-
porque nasceram no contexto duma mensão social do anúncio do Evan-
crença religiosa? Contêm princípios gelho, para encorajar todos os
profundamente humanistas que pos- cristãos a manifestá-la sempre nas
suem um valor racional, apesar de suas palavras, atitudes e ações.
estarem permeados de símbolos e
doutrinas religiosos. Capítulo V
EVANGELIZADORES
257. Como crentes, sentimo-nos COM ESPÍRITO
próximo também de todos aqueles
que, não se reconhecendo parte 259. Evangelizadores com espí-

116 franciscanos.or g.br


rito quer dizer evangelizadores flexões acerca do espírito da nova
que se abrem sem medo à ação evangelização.
do Espírito Santo. No Pentecostes,
o Espírito faz os Apóstolos saírem 261. Quando se diz de uma reali-
de si mesmos e transforma-os em dade que tem «espírito», indica-se
anunciadores das maravilhas de habitualmente uma moção interior
Deus, que cada um começa a en- que impele, motiva, encoraja e dá
tender na própria língua. Além sentido à ação pessoal e comuni-
disso, o Espírito Santo infunde a tária. Uma evangelização com es-
força para anunciar a novidade do pírito é muito diferente de um con-
Evangelho com ousadia (parresia), junto de tarefas vividas como uma
em voz alta e em todo o tempo e obrigação pesada, que quase não
lugar, mesmo contra-corrente. Invo- se tolera ou se suporta como algo
quemo-Lo hoje, bem apoiados na que contradiz as nossas próprias
oração, sem a qual toda a ação inclinações e desejos. Como gos-
corre o risco de ficar vã e o anún- taria de encontrar palavras para
cio, no fim de contas, carece de encorajar uma estação evangeliza-
alma. Jesus quer evangelizadores dora mais ardorosa, alegre, gene-
que anunciem a Boa Nova, não só rosa, ousada, cheia de amor até
com palavras mas sobretudo com ao fim e feita de vida contagiante!
uma vida transfigurada pela pre- Mas sei que nenhuma motivação
sença de Deus. será suficiente, se não arde nos
corações o fogo do Espírito. Em
260. Neste último capítulo, não suma, uma evangelização com es-
vou oferecer uma síntese da espiri- pírito é uma evangelização com o
tualidade cristã, nem desenvolverei Espírito Santo, já que Ele é a alma
grandes temas como a oração, a da Igreja evangelizadora. Antes
adoração eucarística ou a celebra- de propor algumas motivações e
ção da fé, sobre os quais já possuí- sugestões espirituais, invoco uma
mos preciosos textos do Magistério vez mais o Espírito Santo; peço-Lhe
e escritos célebres de grandes au- que venha renovar, sacudir, impelir
tores. Não pretendo substituir nem a Igreja numa decidida saída para
superar tanta riqueza. Limitar-me-ei fora de si mesma a fim de evange-
simplesmente a propor algumas re- lizar todos os povos.
franciscanos.or g.br 117
1. MOTIVAÇÕES PARA tempo, «há que rejeitar a tentação
UM RENOVADO IMPULSO duma espiritualidade intimista e in-
MISSIONÁRIO dividualista, que dificilmente se coa-
duna com as exigências da carida-
262. Evangelizadores com espírito de, com a lógica da encarnação».
quer dizer evangelizadores que re- Há o risco de que alguns momentos
zam e trabalham. Do ponto de vista de oração se tornem uma desculpa
da evangelização, não servem as para evitar de dedicar a vida à mis-
propostas místicas desprovidas de são, porque a privatização do esti-
um vigoroso compromisso social lo de vida pode levar os cristãos a
e missionário, nem os discursos e refugiarem-se nalguma falsa espiri-
ações sociais e pastorais sem uma tualidade.
espiritualidade que transforme o
coração. Estas propostas parciais 263. É salutar recordar-se dos pri-
e desagregadoras alcançam só pe- meiros cristãos e de tantos irmãos
quenos grupos e não têm força de ao longo da história que se manti-
ampla penetração, porque mutilam veram transbordantes de alegria,
o Evangelho. É preciso cultivar sem- cheios de coragem, incansáveis no
pre um espaço interior que dê senti- anúncio e capazes de uma grande
do cristão ao compromisso e à ativi- resistência ativa. Há quem se con-
dade. Sem momentos prolongados sole, dizendo que hoje é mais di-
de adoração, de encontro orante fícil; temos, porém, de reconhecer
com a Palavra, de diálogo sincero que o contexto do Império Romano
com o Senhor, as tarefas facilmente não era favorável ao anúncio do
se esvaziam de significado, que- Evangelho, nem à luta pela justiça,
brantamo-nos com o cansaço e as nem à defesa da dignidade huma-
dificuldades, e o ardor apaga-se. na. Em cada momento da história,
A Igreja não pode dispensar o pul- estão presentes a fraqueza huma-
mão da oração, e alegra-me imen- na, a busca doentia de si mesmo,
so que se multipliquem, em todas as a comodidade egoísta e, enfim, a
instituições eclesiais, os grupos de concupiscência que nos ameaça a
oração, de intercessão, de leitura todos. Isto está sempre presente,
orante da Palavra, as adorações sob uma roupagem ou outra; deri-
perpétuas da Eucaristia. Ao mesmo va mais da limitação humana que

118 franciscanos.or g.br


das circunstâncias. Por isso, não di- amor que descobriu Natanael no
gamos que hoje é mais difícil; é di- dia em que Jesus Se fez presente e
ferente. Em vez disso, aprendamos lhe disse: «Eu vi-te, quando estavas
com os Santos que nos precede- debaixo da figueira!» (Jo 1, 48).
ram e enfrentaram as dificuldades Como é doce permanecer diante
próprias do seu tempo. Com esta dum crucifixo ou de joelhos diante
finalidade, proponho-vos que nos do Santíssimo Sacramento, e fazê-
detenhamos a recuperar algumas -lo simplesmente para estar à frente
motivações que nos ajudem a imitá- dos seus olhos! Como nos faz bem
-los nos nossos dias. deixar que Ele volte a tocar a nossa
vida e nos envie para comunicar a
O ENCONTRO PESSOAL COM O sua vida nova! Sucede então que,
AMOR DE JESUS QUE NOS SALVA em última análise, «o que nós vimos
e ouvimos, isso anunciamos» (1 Jo
264. A primeira motivação para 1, 3). A melhor motivação para se
evangelizar é o amor que recebe- decidir a comunicar o Evangelho
mos de Jesus, aquela experiência é contemplá-lo com amor, é deter-
de sermos salvos por Ele que nos -se nas suas páginas e lê-lo com
impele a amá-Lo cada vez mais. o coração. Se o abordamos desta
Com efeito, um amor que não sen- maneira, a sua beleza deslumbra-
tisse a necessidade de falar da pes- -nos, volta a cativar-nos vezes sem
soa amada, de a apresentar, de a conta. Por isso, é urgente recuperar
tornar conhecida, que amor seria? um espírito contemplativo, que nos
Se não sentimos o desejo intenso permita redescobrir, cada dia, que
de comunicar Jesus, precisamos somos depositários dum bem que
de nos deter em oração para Lhe humaniza, que ajuda a levar uma
pedir que volte a cativar-nos. Pre- vida nova. Não há nada de melhor
cisamos de o implorar cada dia, para transmitir aos outros.
pedir a sua graça para que abra
o nosso coração frio e sacuda a 265. Toda a vida de Jesus, a sua
nossa vida tíbia e superficial. Colo- forma de tratar os pobres, os seus
cados diante d’Ele com o coração gestos, a sua coerência, a sua ge-
aberto, deixando que Ele nos olhe, nerosidade simples e quotidiana e,
reconhecemos aquele olhar de finalmente, a sua total dedicação,
franciscanos.or g.br 119
tudo é precioso e fala à nossa vida mensagem que não pode manipular
pessoal. Todas as vezes que alguém nem desiludir. É uma resposta que
volta a descobri-lo, convence-se de desce ao mais fundo do ser huma-
que é isso mesmo o que os outros no e pode sustentá-lo e elevá-lo. É a
precisam, embora não o saibam: verdade que não passa de moda,
«Aquele que venerais sem O co- porque é capaz de penetrar onde
nhecer, é Esse que eu vos anuncio» nada mais pode chegar. A nossa
(At 17, 23). Às vezes perdemos o tristeza infinita só se cura com um
entusiasmo pela missão, porque amor infinito.
esquecemos que o Evangelho dá
resposta às necessidades mais pro- 266. Esta convicção, porém, é sus-
fundas das pessoas, porque todos tentada com a experiência pessoal,
fomos criados para aquilo que o constantemente renovada, de sabo-
Evangelho nos propõe: a amizade rear a sua amizade e a sua mensa-
com Jesus e o amor fraterno. Quan- gem. Não se pode perseverar numa
do se consegue exprimir, de forma evangelização cheia de ardor, se
adequada e bela, o conteúdo es- não se está convencido, por experi-
sencial do Evangelho, de certeza ência própria, que não é a mesma
que essa mensagem fala aos an- coisa ter conhecido Jesus ou não
seios mais profundos do coração: O conhecer, não é a mesma coisa
«O missionário está convencido de caminhar com Ele ou caminhar tate-
que existe já, nas pessoas e nos ando, não é a mesma coisa poder
povos, pela ação do Espírito, uma escutá-Lo ou ignorar a sua Palavra,
ânsia – mesmo se inconsciente – não é a mesma coisa poder contem-
de conhecer a verdade acerca de plá-Lo, adorá-Lo, descansar n’Ele ou
Deus, do homem, do caminho que não o poder fazer. Não é a mesma
conduz à liberação do pecado e coisa procurar construir o mundo
da morte. O entusiasmo posto no com o seu Evangelho em vez de o
anúncio de Cristo deriva da con- fazer unicamente com a própria ra-
vicção de responder a tal ânsia». zão. Sabemos bem que a vida com
O entusiasmo na evangelização Jesus se torna muito mais plena e,
funda-se nesta convicção. Temos à com Ele, é mais fácil encontrar o
disposição um tesouro de vida e sentido para cada coisa. É por isso
de amor que não pode enganar, a que evangelizamos. O verdadeiro

120 franciscanos.or g.br


missionário, que não deixa jamais te] em que deis muito fruto» (Jo 15,
de ser discípulo, sabe que Jesus ca- 8). Independentemente de que nos
minha com ele, fala com ele, respi- convenha, interesse, aproveite ou
ra com ele, trabalha com ele. Sen- não, para além dos estreitos limites
te Jesus vivo com ele, no meio da dos nossos desejos, da nossa com-
tarefa missionária. Se uma pessoa preensão e das nossas motivações,
não O descobre presente no cora- evangelizamos para a maior glória
ção mesmo da entrega missionária, do Pai que nos ama.
depressa perde o entusiasmo e dei-
xa de estar seguro do que transmi- O PRAZER ESPIRITUAL DE SER
te, faltam-lhe força e paixão. E uma POVO
pessoa que não está convencida,
entusiasmada, segura, enamorada, 268. A Palavra de Deus convida-
não convence ninguém. -nos também a reconhecer que so-
mos povo: «Vós que outrora não
267. Unidos a Jesus, procuramos o éreis um povo, agora sois povo de
que Ele procura, amamos o que Ele Deus» (1 Pd 2, 10). Para ser evan-
ama. Em última instância, o que pro- gelizadores com espírito é preciso
curamos é a glória do Pai, vivemos também desenvolver o prazer espi-
e agimos «para que seja prestado ritual de estar próximo da vida das
louvor à glória da sua graça» (Ef pessoas, até chegar a descobrir
1, 6). Se queremos entregar-nos a que isto se torna fonte duma alegria
sério e com perseverança, esta mo- superior. A missão é uma paixão
tivação deve superar toda e qual- por Jesus, e simultaneamente uma
quer outra. O movente definitivo, o paixão pelo seu povo. Quando pa-
mais profundo, o maior, a razão e ramos diante de Jesus crucificado,
o sentido último de tudo o resto é reconhecemos todo o seu amor que
este: a glória do Pai que Jesus pro- nos dignifica e sustenta, mas lá tam-
curou durante toda a sua existên- bém, se não formos cegos, começa-
cia. Ele é o Filho eternamente feliz, mos a perceber que este olhar de
com todo o seu ser «no seio do Pai» Jesus se alonga e dirige, cheio de
(Jo 1, 18). Se somos missionários, afeto e ardor, a todo o seu povo.
antes de tudo é porque Jesus nos Lá descobrimos novamente que Ele
disse: «A glória do meu Pai [consis- quer servir-Se de nós para chegar
franciscanos.or g.br 121
cada vez mais perto do seu povo que estão alegres, choramos com os
amado. Toma-nos do meio do povo que choram e comprometemo-nos
e envia-nos ao povo, de tal modo na construção de um mundo novo,
que a nossa identidade não se com- lado a lado com os outros. Mas não
preende sem esta pertença. por obrigação, nem como um peso
que nos desgasta, mas como uma
269. O próprio Jesus é o modelo opção pessoal que nos enche de
desta opção evangelizadora que alegria e nos dá uma identidade.
nos introduz no coração do povo.
Como nos faz bem vê-Lo perto de 270. Às vezes sentimos a tenta-
todos! Se falava com alguém, fitava ção de ser cristãos, mantendo uma
os seus olhos com uma profunda so- prudente distância das chagas do
licitude cheia de amor: «Jesus, fitan- Senhor. Mas Jesus quer que toque-
do nele o olhar, sentiu afeição por mos a miséria humana, que toque-
ele» (Mc 10, 21). Vemo-Lo dispo- mos a carne sofredora dos outros.
nível ao encontro, quando manda Espera que renunciemos a procurar
aproximar-se o cego do caminho aqueles abrigos pessoais ou comu-
(cf. Mc 10, 46-52) e quando come nitários que permitem manter-nos à
e bebe com os pecadores (cf. Mc distância do nó do drama humano,
2, 16), sem Se importar que O cha- a fim de aceitarmos verdadeiramen-
mem de glutão e beberrão (cf. Mt te entrar em contacto com a vida
11, 19). Vemo-Lo disponível, quan- concreta dos outros e conhecermos
do deixa uma prostituta ungir-Lhe a força da ternura. Quando o faze-
os pés (cf. Lc 7, 36-50) ou quando mos, a vida complica-se sempre ma-
recebe, de noite, Nicodemos (cf. Jo ravilhosamente e vivemos a intensa
3, 1-21). A entrega de Jesus na cruz experiência de ser povo, a experi-
é apenas o culminar deste estilo que ência de pertencer a um povo.
marcou toda a sua vida. Fascinados
por este modelo, queremos inserir- 271. É verdade que, na nossa re-
-nos a fundo na sociedade, partilha- lação com o mundo, somos con-
mos a vida com todos, ouvimos as vidados a dar razão da nossa es-
suas preocupações, colaboramos perança, mas não como inimigos
material e espiritualmente nas suas que apontam o dedo e condenam.
necessidades, alegramo-nos com os A advertência é muito clara: fazei-

122 franciscanos.or g.br


-o «com mansidão e respeito» (1 ponto de se dizer, de quem não
Pd 3, 16) e «tanto quanto for pos- ama o irmão, que «está nas trevas
sível e de vós dependa, vivei em e nas trevas caminha» (1 Jo 2, 11),
paz com todos os homens» (Rm «permanece na morte» (1 Jo 3, 14)
12, 18). E somos incentivados tam- e «não chegou a conhecer a Deus»
bém a vencer «o mal com o bem» (1 Jo 4, 8). Bento XVI disse que «fe-
(Rm 12, 21), sem nos cansarmos char os olhos diante do próximo tor-
de «fazer o bem» (Gal 6, 9) e sem na cegos também diante de Deus»,
pretendermos aparecer como supe- e que o amor é fundamentalmente
riores, antes «considerai os outros a única luz que «ilumina incessan-
superiores a vós próprios» (Fl 2, 3). temente um mundo às escuras e
Na realidade, os Apóstolos do Se- nos dá a coragem de viver e agir».
nhor «tinham a simpatia de todo o Portanto, quando vivemos a mística
povo» (At 2, 47; cf. 4, 21.33; 5, de nos aproximar dos outros com
13). Está claro que Jesus não nos a intenção de procurar o seu bem,
quer como príncipes que olham des- ampliamos o nosso interior para
denhosamente, mas como homens receber os mais belos dons do Se-
e mulheres do povo. Esta não é a nhor. Cada vez que nos encontra-
opinião de um Papa, nem uma op- mos com um ser humano no amor,
ção pastoral entre várias possíveis; ficamos capazes de descobrir algo
são indicações da Palavra de Deus de novo sobre Deus. Cada vez que
tão claras, diretas e contundentes, os nossos olhos se abrem para re-
que não precisam de interpretações conhecer o outro, ilumina-se mais a
que as despojariam da sua força nossa fé para reconhecer a Deus.
interpeladora. Vivamo-las sine glos- Em consequência disto, se quere-
sa, sem comentários. Assim, expe- mos crescer na vida espiritual, não
rimentaremos a alegria missionária podemos renunciar a ser missioná-
de partilhar a vida com o povo fiel rios. A tarefa da evangelização en-
de Deus, procurando acender o riquece a mente e o coração, abre-
fogo no coração do mundo. -nos horizontes espirituais, torna-
-nos mais sensíveis para reconhecer
272. O amor às pessoas é uma a ação do Espírito, faz-nos sair dos
força espiritual que favorece o en- nossos esquemas espirituais limita-
contro em plenitude com Deus, a dos. Ao mesmo tempo, um missio-
franciscanos.or g.br 123
nário plenamente devotado ao seu outros. Mas, se uma pessoa coloca
trabalho experimenta o prazer de a tarefa dum lado e a vida privada
ser um manancial que transborda do outro, tudo se torna cinzento e
e refresca os outros. Só pode ser viverá continuamente à procura de
missionário quem se sente bem pro- reconhecimentos ou defendendo as
curando o bem do próximo, dese- suas próprias exigências. Deixará
jando a felicidade dos outros. Esta de ser povo.
abertura do coração é fonte de fe-
licidade, porque «a felicidade está 274. Para partilhar a vida com a
mais em dar do que em receber» gente e dar-nos generosamente,
(At 20, 35). Não se vive melhor fu- precisamos de reconhecer também
gindo dos outros, escondendo-se, que cada pessoa é digna da nossa
negando-se a partilhar, resistindo a dedicação. E não pelo seu aspecto
dar, fechando-se na comodidade. físico, suas capacidades, sua lin-
Isto não é senão um lento suicídio. guagem, sua mentalidade ou pelas
satisfações que nos pode dar, mas
273. A missão no coração do porque é obra de Deus, criatura
povo não é uma parte da minha sua. Ele criou-a à sua imagem, e
vida, ou um ornamento que posso reflete algo da sua glória. Cada ser
pôr de lado; não é um apêndice ou humano é objecto da ternura infini-
um momento entre tantos outros da ta do Senhor, e Ele mesmo habita
minha vida. É algo que não posso na sua vida. Na cruz, Jesus Cristo
arrancar do meu ser, se não me deu o seu sangue precioso por essa
quero destruir. Eu sou uma missão pessoa. Independentemente da
nesta terra, e para isso estou neste aparência, cada um é imensamen-
mundo. É preciso considerarmo-nos te sagrado e merece o nosso afeto
como que marcados a fogo por e a nossa dedicação. Por isso, se
esta missão de iluminar, abençoar, consigo ajudar uma só pessoa a vi-
vivificar, levantar, curar, libertar. ver melhor, isso já justifica o dom
Nisto se revela a enfermeira au- da minha vida. É maravilhoso ser
têntica , o professor autêntico, o povo fiel de Deus. E ganhamos ple-
político autêntico, aqueles que de- nitude, quando derrubamos os mu-
cidiram, no mais íntimo do seu ser, ros e o coração se enche de rostos
estar com os outros e ser para os e de nomes!

124 franciscanos.or g.br


A AÇÃO MISTERIOSA DO ram a pregar, «o Senhor cooperava
RESSUSCITADO E DO SEU ESPÍRITO com eles, confirmando a Palavra»
(Mc 16, 20). E o mesmo acontece
275. No terceiro capítulo, refleti- hoje. Somos convidados a descobri-
mos sobre a carência de espiritua- -lo, a vivê-lo. Cristo ressuscitado e
lidade profunda que se traduz no glorioso é a fonte profunda da nos-
pessimismo, no fatalismo, na des- sa esperança, e não nos faltará a
confiança. Algumas pessoas não sua ajuda para cumprir a missão
se dedicam à missão, porque cre- que nos confia.
em que nada pode mudar e assim,
segundo elas, é inútil esforçar-se. 276. A sua ressurreição não é
Pensam: «Para quê privar-me das algo do passado; contém uma for-
minhas comodidades e prazeres, se ça de vida que penetrou o mundo.
não vejo algum resultado importan- Onde parecia que tudo morreu,
te?» Com esta mentalidade, torna- voltam a aparecer por todo o lado
-se impossível ser missionário. Esta os rebentos da ressurreição. É uma
atitude é precisamente uma descul- força sem igual. É verdade que
pa maligna para continuar fechado muitas vezes parece que Deus não
na própria comodidade, na pregui- existe: vemos injustiças, maldades,
ça, na tristeza insatisfeita, no vazio indiferenças e crueldades que não
egoísta. Trata-se de uma atitude au- cedem. Mas também é certo que,
todestrutiva, porque «o homem não no meio da obscuridade, sempre
pode viver sem esperança: a sua começa a desabrochar algo de
vida, condenada à insignificância, novo que, mais cedo ou mais tarde,
tornar-se-ia insuportável». No caso produz fruto. Num campo arrasa-
de pensarmos que as coisas não do, volta a aparecer a vida, tenaz
vão mudar, recordemos que Jesus e invencível. Haverá muitas coisas
Cristo triunfou sobre o pecado e a más, mas o bem sempre tende a
morte e possui todo o poder. Jesus reaparecer e espalhar-se. Cada
Cristo vive verdadeiramente. Caso dia, no mundo, renasce a beleza,
contrário, «se Cristo não ressusci- que ressuscita transformada atra-
tou, é vã a nossa pregação» (1 Cor vés dos dramas da história. Os va-
15, 14). Diz-nos o Evangelho que, lores tendem sempre a reaparecer
quando os primeiros discípulos saí- sob novas formas, e na realidade o
franciscanos.or g.br 125
ser humano renasceu muitas vezes 278. A fé significa também acre-
de situações que pareciam irrever- ditar n’Ele, acreditar que nos ama
síveis. Esta é a força da ressurrei- verdadeiramente, que está vivo,
ção, e cada evangelizador é um que é capaz de intervir misteriosa-
instrumento deste dinamismo. mente, que não nos abandona, que
tira bem do mal com o seu poder e
277. E continuamente aparecem a sua criatividade infinita. Significa
também novas dificuldades, a ex- acreditar que Ele caminha vitorioso
periência do fracasso, as mesqui- na história «e, com Ele, estarão os
nhices humanas que tanto ferem. chamados, os escolhidos, os fiéis»
Todos sabemos, por experiência, (Ap 17, 14). Acreditamos no Evan-
que às vezes uma tarefa não nos gelho que diz que o Reino de Deus
dá as satisfações que desejaría- já está presente no mundo, e vai-se
mos, os frutos são escassos e as desenvolvendo-se aqui e além de
mudanças são lentas, e vem-nos várias maneiras: como a pequena
a tentação de se dar por cansa- semente que pode chegar a trans-
do. Todavia, não é a mesma coisa formar-se numa grande árvore (cf.
quando alguém, por cansaço, bai- Mt 13, 31-32), como o punhado
xa momentaneamente os braços e de fermento que leveda uma gran-
quando os baixa definitivamente de massa (cf. Mt 13, 33), e como
dominado por um descontentamen- a boa semente que cresce no meio
to crônico, por uma acédia que lhe do joio (cf. Mt 13, 24-30) e sempre
mirra a alma. Pode acontecer que nos pode surpreender positivamen-
o coração se canse de lutar, por- te: ei-la que aparece, vem outra
que, em última análise, se busca a vez, luta para florescer de novo. A
si mesmo num carreirismo sedento ressurreição de Cristo produz por
de reconhecimentos, aplausos, prê- toda a parte rebentos deste mun-
mios, promoções; então a pessoa do novo; e, ainda que os cortem,
não baixa os braços, mas já não voltam a despontar, porque a res-
tem garra, carece de ressurrei- surreição do Senhor já penetrou a
ção. Assim, o Evangelho, que é a trama oculta desta história; porque
mensagem mais bela que há neste Jesus não ressuscitou em vão. Não
mundo, fica sepultado sob muitas fiquemos à margem desta marcha
desculpas. da esperança viva!

126 franciscanos.or g.br


279. Como nem sempre vemos es- petáculo para que se possa contar
tes rebentos, precisamos de uma cer- quantas pessoas assistiram devido à
teza interior, ou seja, da convicção nossa propaganda. É algo de muito
de que Deus pode atuar em qual- mais profundo, que escapa a toda
quer circunstância, mesmo no meio e qualquer medida. Talvez o Senhor
de aparentes fracassos, porque «tra- Se sirva da nossa entrega para der-
zemos este tesouro em vasos de bar- ramar bênçãos noutro lugar do mun-
ro» (2 Cor 4, 7). Esta certeza é o do, aonde nunca iremos. O Espírito
que se chama «sentido de mistério», Santo trabalha como quer, quando
que consiste em saber, com certeza, quer e onde quer; e nós gastamo-nos
que a pessoa que se oferece e en- com grande dedicação, mas sem
trega a Deus por amor, seguramente pretender ver resultados espetacula-
será fecunda (cf. Jo 15, 5). Muitas res. Sabemos apenas que o dom de
vezes esta fecundidade é invisível, nós mesmos é necessário. No meio
incontrolável, não pode ser contabi- da nossa entrega criativa e gene-
lizada. A pessoa sabe com certeza rosa, aprendamos a descansar na
que a sua vida dará frutos, mas sem ternura dos braços do Pai. Continue-
pretender conhecer como, onde ou mos para diante, empenhemo-nos to-
quando; está segura de que não se talmente, mas deixemos que seja Ele
perde nenhuma das suas obras fei- a tornar fecundos, como melhor Lhe
tas com amor, não se perde nenhu- parecer, os nossos esforços.
ma das suas preocupações sinceras
com os outros, não se perde nenhum 280. Para manter vivo o ardor mis-
ato de amor a Deus, não se perde sionário, é necessária uma decidida
nenhuma das suas generosas fadi- confiança no Espírito Santo, porque
gas, não se perde nenhuma doloro- Ele «vem em auxílio da nossa fraque-
sa paciência. Tudo isto circula pelo za» (Rm 8, 26). Mas esta confiança
mundo como uma força de vida. Às generosa tem de ser alimentada e,
vezes invade-nos a sensação de não para isso, precisamos de O invocar
termos obtido resultado algum com constantemente. Ele pode curar-nos
os nossos esforços, mas a missão de tudo o que nos faz esmorecer no
não é um negócio nem um projeto compromisso missionário. É verda-
empresarial, nem mesmo uma orga- de que esta confiança no invisível
nização humanitária, não é um es- pode causar-nos alguma vertigem:
franciscanos.or g.br 127
é como mergulhar num mar onde 282. Esta atitude transforma-se
não sabemos o que vamos encon- também num agradecimento a Deus
trar. Eu mesmo o experimentei tantas pelos outros. «Antes de mais, dou
vezes. Mas não há maior liberdade graças ao meu Deus por todos vós,
do que a de se deixar conduzir pelo por meio de Jesus Cristo» (Rm 1,
Espírito, renunciando a calcular e 8). Trata-se de um agradecimento
controlar tudo e permitindo que Ele constante: «Dou incessantemente
nos ilumine, guie, dirija e impulsio- graças ao meu Deus por vós, pela
ne para onde Ele quiser. O Espírito graça de Deus que vos foi concedi-
Santo bem sabe o que faz falta em da em Cristo Jesus» (1 Cor 1, 4);
cada época e em cada momento. A «todas as vezes que me lembro de
isto chama-se ser misteriosamente fe- vós, dou graças ao meu Deus» (Fl
cundos! 1, 3). Não é um olhar incrédulo, ne-
gativo e sem esperança, mas uma
A FORÇA MISSIONÁRIA DA visão espiritual, de fé profunda,
INTERCESSÃO que reconhece aquilo que o próprio
Deus faz neles. E, simultaneamente,
281. Há uma forma de oração é a gratidão que brota de um co-
que nos incentiva particularmente ração verdadeiramente solícito pe-
a gastarmo-nos na evangelização e los outros. Deste modo, quando um
nos motiva a procurar o bem dos evangelizador sai da oração, o seu
outros: é a intercessão. Fixemos, coração tornou-se mais generoso,
por momentos, o íntimo dum gran- libertou-se da consciência isolada e
de evangelizador como São Pau- está ansioso por fazer o bem e par-
lo, para perceber como era a sua tilhar a vida com os outros.
oração. Esta estava repleta de se-
res humanos: «Em todas as minhas 283. Os grandes homens e mu-
orações, sempre peço com alegria lheres de Deus foram grandes in-
por todos vós (…), pois tenho-vos no tercessores. A intercessão é como
coração» (Fl 1, 4.7). Descobrimos, «fermento» no seio da Santíssima
assim, que interceder não nos afas- Trindade. É penetrarmos no Pai e
ta da verdadeira contemplação, descobrirmos novas dimensões que
porque a contemplação que deixa iluminam as situações concretas e
de fora os outros é uma farsa. as mudam. Poderíamos dizer que o

128 franciscanos.or g.br


coração de Deus se deixa comover amigo bem-amado: «Eis a tua mãe!»
pela intercessão, mas na realidade (Jo 19, 26-27). Estas palavras de Je-
Ele sempre nos antecipa, pelo que, sus, no limiar da morte, não expri-
com a nossa intercessão, apenas mem primariamente uma terna pre-
possibilitamos que o seu poder, o ocupação por sua Mãe; mas são,
seu amor e a sua lealdade se ma- antes, uma fórmula de revelação
nifestem mais claramente no povo. que manifesta o mistério duma mis-
são salvífica especial. Jesus deixava-
2. MARIA, A MÃE DA -nos a sua Mãe como nossa Mãe. E
EVANGELIZAÇÃO só depois de fazer isto é que Jesus
pôde sentir que «tudo se consuma-
284. Juntamente com o Espírito ra» (Jo 19, 28). Ao pé da cruz, na
Santo, sempre está Maria no meio hora suprema da nova criação, Cris-
do povo. Ela reunia os discípulos to conduz-nos a Maria; conduz-nos a
para O invocarem (At 1, 14), e as- Ela, porque não quer que caminhe-
sim tornou possível a explosão mis- mos sem uma mãe; e, nesta imagem
sionária que se deu no Pentecostes. materna, o povo lê todos os mistérios
Ela é a Mãe da Igreja evangeliza- do Evangelho. Não é do agrado do
dora e, sem Ela, não podemos com- Senhor que falte à sua Igreja o ícone
preender cabalmente o espírito da feminino. Ela, que O gerou com tan-
nova evangelização. ta fé, também acompanha «o resto
da sua descendência, isto é, os que
O DOM DE JESUS AO SEU POVO observam os mandamentos de Deus
e guardam o testemunho de Jesus»
285. Na cruz, quando Cristo supor- (Ap 12, 17). Esta ligação íntima en-
tava em sua carne o dramático en- tre Maria, a Igreja e cada fiel, en-
contro entre o pecado do mundo e a quanto de maneira diversa geram
misericórdia divina, pôde ver a seus Cristo, foi maravilhosamente expres-
pés a presença consoladora da Mãe sa pelo Beato Isaac da Estrela: «Nas
e do amigo. Naquele momento cru- Escrituras divinamente inspiradas, o
cial, antes de declarar consumada a que se atribui em geral à Igreja, Vir-
obra que o Pai Lhe havia confiado, gem e Mãe, aplica-se em especial à
Jesus disse a Maria: «Mulher, eis o Virgem Maria (…). Alem disso, cada
teu filho!» E, logo a seguir, disse ao alma fiel é igualmente, a seu modo,
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esposa do Verbo de Deus, mãe de Evangelho e entra a formar parte da
Cristo, filha e irmã, virgem e mãe fe- sua identidade histórica. Muitos pais
cunda. (…) No tabernáculo do ven- cristãos pedem o Batismo para seus
tre de Maria, Cristo habitou durante filhos num santuário mariano, mani-
nove meses; no tabernáculo da fé da festando assim a fé na ação mater-
Igreja, permanecerá até ao fim do na de Maria que gera novos filhos
mundo; no conhecimento e amor da para Deus. É lá, nos santuários, que
alma fiel habitará pelos séculos dos se pode observar como Maria reúne
séculos». ao seu redor os filhos que, com gran-
des sacrifícios, vêm peregrinos para
286. Maria é aquela que sabe trans- A ver e deixar-se olhar por Ela. Lá
formar um curral de animais na casa encontram a força de Deus para su-
de Jesus, com uns pobres paninhos portar os sofrimentos e as fadigas da
e uma montanha de ternura. Ela é a vida. Como a São João Diego, Ma-
serva humilde do Pai, que transbor- ria oferece-lhes a carícia da sua con-
da de alegria no louvor. É a amiga solação materna e diz-lhes: «Não se
sempre solícita para que não falte o perturbe o teu coração. (…) Não es-
vinho na nossa vida. É aquela que tou aqui eu, que sou tua Mãe?»
tem o coração trespassado pela es-
pada, que compreende todas as pe- A ESTRELA DA NOVA
nas. Como Mãe de todos, é sinal de EVANGELIZAÇÃO
esperança para os povos que sofrem
as dores do parto até que germine a 287. À Mãe do Evangelho vivente,
justiça. Ela é a missionária que Se pedimos a sua intercessão a fim de
aproxima de nós, para nos acompa- que este convite para uma nova eta-
nhar ao longo da vida, abrindo os pa da evangelização seja acolhido
corações à fé com o seu afeto ma- por toda a comunidade eclesial. Ela
terno. Como uma verdadeira mãe, é a mulher de fé, que vive e caminha
caminha connosco, luta connosco na fé, e «a sua excepcional peregri-
e aproxima-nos incessantemente do nação da fé representa um ponto de
amor de Deus. Através dos diferentes referência constante para a Igreja».
títulos marianos, geralmente ligados Ela deixou-Se conduzir pelo Espírito,
aos santuários, compartilha as vicis- através dum itinerário de fé, rumo a
situdes de cada povo que recebeu o uma destinação feita de serviço e

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fecundidade. Hoje fixamos n’Ela o importantes. Fixando-A, descobri-
olhar, para que nos ajude a anun- mos que aquela que louvava a Deus
ciar a todos a mensagem de salva- porque «derrubou os poderosos de
ção e para que os novos discípulos seus tronos» e «aos ricos despediu
se tornem operosos evangelizado- de mãos vazias» (Lc 1, 52.53) é
res. Nesta peregrinação evangeli- mesma que assegura o aconchego
zadora, não faltam as fases de ari- dum lar à nossa busca de justiça. E
dez, de ocultação e até de um certo é a mesma também que conserva
cansaço, como as que viveu Maria cuidadosamente «todas estas coisas
nos anos de Nazaré enquanto Jesus ponderando-as no seu coração» (Lc
crescia: «Este é o início do Evange- 2, 19). Maria sabe reconhecer os
lho, isto é, da boa nova, da jubilosa vestígios do Espírito de Deus tanto
nova. Não é difícil, porém, perceber nos grandes acontecimentos como
naquele início um particular aperto naqueles que parecem impercep-
do coração, unido a uma espécie de tíveis. É contemplativa do mistério
“noite da fé” – para usar as palavras de Deus no mundo, na história e na
de São João da Cruz – como que vida diária de cada um e de todos.
um “véu” através do qual é forçoso É a mulher orante e trabalhadora
aproximar-se do Invisível e viver na em Nazaré, mas é também nossa
intimidade com o mistério. Foi des- Senhora da prontidão, a que sai «à
te modo efetivamente que Maria, pressa» (Lc 1, 39) da sua povoação
durante muitos anos, permaneceu para ir ajudar os outros. Esta dinâ-
na intimidade com o mistério do seu mica de justiça e ternura, de contem-
Filho, e avançou no seu itinerário de plação e de caminho para os outros
fé». faz d’Ela um modelo eclesial para a
288. Há um estilo mariano na ati- evangelização. Pedimos-Lhe que nos
vidade evangelizadora da Igreja. ajude, com a sua oração materna,
Porque sempre que olhamos para para que a Igreja se torne uma casa
Maria, voltamos a acreditar na força para muitos, uma mãe para todos os
revolucionária da ternura e do afeto. povos, e torne possível o nascimento
N’Ela, vemos que a humildade e a dum mundo novo. É o Ressuscitado
ternura não são virtudes dos fracos, que nos diz, com uma força que nos
mas dos fortes, que não precisam enche de imensa confiança e firmís-
maltratar os outros para se sentir sima esperança: «Eu renovo todas
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as coisas» (Ap 21, 5). Com Maria, novos caminhos
avançamos confiantes para esta pro- para que chegue a todos
messa, e dizemos-Lhe: o dom da beleza que não se apaga.
Virgem e Mãe Maria, Vós, Virgem da escuta e da
Vós que, movida pelo Espírito, contemplação,
acolhestes o Verbo da vida Mãe do amor, esposa das núpcias
na profundidade da vossa fé humilde, eternas
totalmente entregue ao Eterno, intercedei pela Igreja, da qual sois o
ajudai-nos a dizer o nosso «sim» ícone puríssimo,
perante a urgência, mais imperiosa para que ela nunca se feche nem se
do que nunca, detenha
de fazer ressoar a Boa Nova de na sua paixão por instaurar o Reino.
Jesus. Estrela da nova evangelização,
Vós, cheia da presença de Cristo, ajudai-nos a refulgir com o
levastes a alegria a João o Batista, testemunho da comunhão,
fazendo-o exultar no seio de sua do serviço, da fé ardente e generosa,
mãe. da justiça e do amor aos pobres,
Vós, estremecendo de alegria, para que a alegria do Evangelho
cantastes as maravilhas do Senhor. chegue até aos confins da terra
Vós, que permanecestes firme diante e nenhuma periferia fique privada da
da Cruz sua luz.
com uma fé inabalável, Mãe do Evangelho vivente,
e recebestes a jubilosa consolação manancial de alegria para os
da ressurreição, pequeninos,
reunistes os discípulos à espera do rogai por nós.
Espírito Amen. Aleluia!
para que nascesse a Igreja
evangelizadora. Dado em Roma, junto de São Pe-
Alcançai-nos agora um novo ardor de dro, no encerramento do Ano da
ressuscitados Fé, dia 24 de Novembro – Soleni-
para levar a todos o Evangelho da dade de Nosso Senhor Jesus Cris-
vida to, Rei do Universo – do ano de
que vence a morte. 2013, primeiro do meu Pontificado.
Dai-nos a santa ousadia de buscar [Franciscus PP]

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