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ESPECIAL - 2019 REVOLTA NA RAZÃO JACOBIN.COM.

BR

BRASIL
BRASIL

“Há todo um velho mundo ainda


por destruir e todo um novo
mundo a construir. Mas nós
conseguiremos, jovens amigos,
não é verdade?”

ROSA LUXEMBURGO

MARX & COMPANHIA


ESPECIAL - 2019
Odeio os indiferentes. Como
Friederich Hebbel acredito que
“viver significa tomar partido”.
Não podem existir os apenas
homens, estranhos à cidade.
Quem verdadeiramente vive
não pode deixar de ser cidadão,
e partidário. Indiferença é abulia,
parasitismo, covardia, não é vida.
Por isso odeio os indiferentes.

— ANTONIO GRAMSCI

1
Camaradas

PUBLISHER TRADUÇÃO A revista Jacobin Brasil é uma


Cauê Seigner Ameni Everton Lourenço voz destacada da esquerda
Hugo Albuquerque radical no mundo. Agora, em
Manuela Beloni REDAÇÃO
português, contribui no país
James Hermínio para uma perspectiva socialista
CONSULTORA EDITORIAL
na política, economia e cultura.
Sabrina Fernandes PODCAST
Aline Klein ASSINATURAS
DIRETOR DE CRIAÇÃO Daniel Corral IMPRESSA R$ 40,00
Guilherme Ziggy DIGITAL R$ 20,00
PREPARAÇÃO
PLANO JACOBINO (2 EDIÇÕES)
DESENVOLVIMENTO Livia Lima
R$ 60,00
Victor Marques
DIREÇÃO DE ARTE PLANO BOLCHEVIQUE
(2 EDIÇÕES + LIVRO + DESCONTO)
APOIO EDITORIAL Alles Blau /
R$ 120,00
Benjamin Fogel Elisa von Randow
Aline Klein Julia Masagão
Conselheiro Ramalho, 945,
Alex Hochuli
DESIGN GRÁFICO conjunto 02,
CONSELHO EDITORIAL Rodrigo Corrêa Bela Vista, São Paulo,
(2020) CEP 01331-001
Marília Moshkovich PRODUÇÃO GRÁFICA
Jorge Pereira Lilia Góes Autonomia Literária © 2019
Rosane Borges ISSN: 2675-0031
Jean Tible REVISÃO FINAL
Silvio Almeida Mariana Serafini
Debora Baldin LIVRARIAS
Esther Dweck Blooks Livraria (SP e RJ)
Helena Vieira Livraria da Travessa
Camila de Caso (SP, RJ e Portugal)
Livraria Leonardo da Vinci (RJ)
Livraria Tapera Taperá (SP)
Livraria Simples (SP)
Livraria Vertov (PR)
Livraria Cirkula (RS)
Livraria Da Rua (MG)

CIRCULAÇÃO
novembro de 2019

PERIODICIDADE
semestral
TIRAGEM
6 mil exemplares
VISITAS NO SITE
528.000 desde maio de 2019
Especiais especial - 2019 jacobin brasil

23
Quem tem medo
de Marx e de
seus amigos?
LINCOLN SECCO

46
Fascismos:
velhos e novos
ENZO TRAVERSO

62
Brasil em
queda livre
84
ESTHER DWECK

Os inimigos
de Gramsci
DANIELA MUSSI E ALVARO BIANCHI

110
O lugar da raça
no capital
DOUGLAS RODRIGUES BARROS
Colaboradores
capa
Catarina Bessell

Sabrina Fernandes é consultora Samuel Silva Borges é doutorando Adrienne Pine é professora associada
editorial de Jacobin Brasil e produtora em sociologia na UnB e produtor no departamento de antropologia
do canal Tese Onze. do canal Cifra Oculta. da American University.
André Pagliarini é historiador Benjamin Fogel é editor contribuinte Sonia Guajajara é coordenadora
especializado em América Latina de Africa is a Country e Jacobin nacional da Articulação de Povos
e leciona no Dartmouth College. Magazine. É também doutorando Indígenas do Brasil.
em história latino-americana na
Lincoln Secco é professor de história Isabel Loureiro é professora
New York University.
contemporânea na USP e autor de aposentada do Departamento de
A batalha dos livros (2018). Ben Cowan é professor associado Filosofia da UNESP e colaboradora
na University of California San Diego da Fundação Rosa Luxemburgo.
Gabrielle Nascimento é estudante
e autor de Securing sex: morality
de direito, feminista negra e militante Rafael Limongelli é doutorando
and repression in the making of cold
anticárcere. em educação na UNICAMP, performer
war brazil (2016).
e autor de DUNA (2018).
Allende Renck é crítico de arte,
Douglas Rodrigues Barros
professor, curador e tradutor. Guilherme Ziggy é poeta, jornalista,
é doutorando em ética e filosofia
diretor de criação de Jacobin Brasil e
Daniela Mussi é pós-doutoranda política na UNIFESP, romancista
autor de Consultas autônomas (2019).
em ciência política na USP. e autor de Lugar de negro, lugar
de branco? (2019).
Alvaro Bianchi é professor livre-
docente e diretor do Instituto de James Hermínio é graduado em
Filosofia em Ciências Humanas da direito e mestrando em filosofia
UNICAMP. do direito na PUC-SP.

Jones Manoel é historiador, educador Esther Dweck é professora associada


popular, militante do PCB e mestre do Instituto de Economia da UFRJ.
em Serviço Social.
Enzo Traverso é historiador e
professor da Cornell University.

Créditos das imagens – p.39 O nascimento de uma nação, D.W. Griffith, 1915, EUA. p.41 Y’a bon banania’, De Andreis, 1915,
França. p.43 Abdias do Nascimento, Okê Oxóssi, 1970. MASP.10811. Foto MASP p. 44 David Hammons, African American Flag,
1990 p. 45 Jean-Michel Basquiat, Per Capita, 1981 p.74 Mikel Casal in A ditadura é assim, 2015, Boitempo Editorial. p.77 Martin
Rowson in Manifesto comunista em quadrinhos, 2019, Editora Veneta p.78 Cartaz para o Dia da Mulher, 8 de março de 1914,
exigindo direitos de voto para as mulheres, 1914, Karl Maria Stadler p.89 Arquivo da polícia fascista sobre Antonio Gramsci, 1933
p.92 Retrato de Antonio Gramsci por volta de 30 anos, ainício dos anos 1920 pp. 96 e 98 Propaganda anti-comunista no Brasil,
anos 1960 p.111, 113, 115 e 117 Imagens da série Eu, mestiço (2017), de Jonathas de Andrade p.128 Rosa Luxemburgo, mugshot
feita na prisão de Varsóvia em 1906 p.131 Rosa Luxemburgo, 2ª International (conferência socialista) em Stuttgart, 1907
p.132 Julgamento contra Rosa Lusemburgo em Berlim, junho-julho de 1914. p.137 Revista soviética Червоний Перець
(Pimenta Vermelha), Ucrânia, 1924. Tradução de Lígia Fernandes. p.139 Cartaz soviético de propaganda, por Z. Artsrunyan, 1978.
Em português: A imprensa deve ser uma ferramenta para a construção do socialismo. Tradução de Guilherme Ziggy.
Seções

LINHA CAPITAL QUER QUE EU ARMAS CASA O FIM DO


DE FRENTE CULTURAL DESENHE? DA CRÍTICA GRANDE COMEÇO

8 36 56 75 96 120
TRIBUNA REDFLIX DESIGUAL E BALA NA GIRONDINOS FRENTE
Crítica como Os rumos COMBINADO AGULHA O anticomu- POPULAR
guilhotina lucrativos O desejo Do problema nismo que Não há luta
SABRINA FERNANDES da justiça de reparar à alternativa a esquerda por liberdade
GABRIELLE
JAMES HERMÍNIO
gosta sem a luta
11
NASCIMENTO
61 JONES MANOEL indígena
81
MEGAFONE EMPIRISMO SABRINA FERNANDES

A internet 38 VULGAR ANOTAÇÕES 100


fala POR OUTRO As crifas do Pânico TERMIDOR 128
LADO bolsonarismo moral acima Cruzada FUNDO DO BAÚ
Negritude de tudo Socialismo
12 Gospel Ltda
estrelar SAMUEL SILVA BORGES
ou barbárie
AFETOS E ALLENDE RENCK
ADRIENNE PINE
DESAFETOS ISABEL LOUREIRO

O pior 104
diplomata VERSALHES 136
do mundo Uma aliança MATERIALISMO
ANDRÉ PAGLIARINI anticomunista ESOTÉRICO
BENJAMIN FOGEL Nossos
astrólogos
desbancam
o deles

138
VALOR DE USO
Lenin faria
revistas
Linha
de
frente
a melhor defesa
é o ataque
LINHA DE FRENTE
TRIBUNA

Crítica
como
guilhotina

¶ O MARXISMO é uma teoria revolucionária, e teorias


revolucionárias apavoram quem está no poder. O medo de teorias
revolucionárias pode criar teorias reacionárias, assim como teorias
da conspiração. Para os capitalistas, é necessário inculcar o medo da
teoria revolucionária no restante da população, antes que esta
alimente uma práxis revolucionária capaz de derrubar os poderosos.

Para desmontar qualquer teoria da conspiração acerca de um


marxismo cultural, é preciso apresentar o marxismo para as
pessoas. É nesse contexto que surge o projeto especial Jacobin
Brasil: para equipar os leitores com ferramentas que extirpem
o medo do marxismo causado pelos discursos anticomunistas.
Jacobin Magazine é uma revista socialista que tem pautado
debates acerca de alternativas no mundo anglofono. É nosso
interesse trazer um pouco de seu conteúdo para o Brasil, mesmo
que temporariamente, para apresentarmos uma visão radical da
sociedade. Nisso, o marxismo é aliado. O marxismo que vai abolir
a propriedade privada, mas não, não vai tomar sua televisão.
O marxismo que questiona a tradição patriarcal da família
nuclear, não para destruir suas relações afetuosas, mas para criar
configurações emancipadas que não dependam da invisibilização
do trabalho feminino no espaço privado. O marxismo que
pretende organizar os trabalhadores para que estes não sejam
mais ou menos explorados de acordo com gênero, raça e
sexualidade. O marxismo para que os trabalhadores sejam livres.

8
A teoria da conspiração de um tal marxismo cultural e todas
as suas variáveis – do gramscismo cultural à ditadura gayzista
feminazi pós-moderna – se faz presente há muito tempo.
Apesar de possuir outro foco, a Alemanha nazista perseguia
judeus e comunistas, enquanto justificava seu combate a um
certo bolchevismo cultural – este, diziam, desvirtuava os valores
arianos por meio da arte moderna.

Hitler tinha razão em temer os comunistas. Não porque os


comunistas tentavam manipular as pessoas a seu favor com a
ajuda do movimento Bauhaus, mas porque eles se organizavam
contra projetos de dominação tal como o Nazismo. Para Hitler,
era necessário atacar e derrotar a União Soviética antes que a
conspiração entre judeus e bolcheviques tomasse o mundo.
Milhões de soviéticos sofreram e morreram por conta de Hitler.
Entretanto, outros milhões também perseveraram e o Exército
Vermelho é reconhecido mundialmente pelo seu papel
fundamental de derrotar o nazismo no campo de batalha.

Hoje, a aliança liberal-conservadora teme socialistas e comunistas


também. Teme tanto que mente abertamente ao afirmar que
o nazismo teria sido de esquerda. Mesmo não existindo um
partido comunista de grande alcance, ou regime socialista
bem estruturado, que dirá um exército capaz de fazer racistas
e burgueses tremerem em suas bases. Não há. Ainda.

O marxismo não tomou conta das universidades brasileiras.


Os professores de história não pregam o socialismo todos os dias.
Nem a esquerda brasileira parece ser muito apegada a um projeto
socialista e ao marxismo – o medo do socialismo e do horizonte
comunista também está presente no campo universitário.
Todavia, o marxismo persevera como filosofia da práxis, capaz
de inspirar lideranças, provocar intelectuais e tirar as pessoas do
limbo. A qualquer momento, o marxismo pode ressurgir como
força política e a direita não pode tolerar esse risco.

Fomentar uma teoria da conspiração marxista, que pretende


adentrar sua casa, destruir a sua família com ideologia de gênero

9
TRIBUNA POR SABRINA FERNANDES

e, ao mesmo tempo, promover distorções históricas que renegam


as mortes passadas e contemporâneas causadas pelo capitalismo,
é uma forma de ataque preventivo.

A classe capitalista se alia aos valores conservadores para manter


as coisas como estão. Qualquer mudança na ordem do dia gerada
pela crítica é potencialmente perigosa, portanto, associam até
mesmo as demandas mais básicas de direitos humanos, herdadas
de um liberalismo mais progressista, ao grande mal do comunismo.
A burguesia sabe que socialistas e comunistas não se contentarão
com garantias legais para encarcerados. Eles não se darão por
satisfeitos com a manutenção de investimento público em
educação. Eles planejam uma sociedade cuja universidade é
popular, crítica, gratuita e para todos. Eles são tão perigosos
que não vão parar com a implementação de direitos trabalhistas.
Eles querem o fim do trabalho explorado e para isso pretendem
expropriar a burguesia, socializar a propriedade e construir uma
sociedade radicalmente diferente.

Faz sentido que a burguesia tema comunistas e sua teoria


marxista. Não faz sentido que a classe trabalhadora partilhe
desse medo.

Não existe o tal Decálogo de Lenin, mas se existisse, seria


completamente diferente. Sem dúvida, traria como fundamento
a assertiva leninista de que “sem teoria revolucionária, não há
movimento revolucionário”.

Jacobin Brasil não é uma revista de teoria densa, nos moldes das
discussões acadêmicas, mas é uma revista que considera a
importância da teoria coesa em cada análise. Sua passagem por
essas terras é breve, mas não a esmo. Promovemos a revolta da
razão e a razão da revolta. Fazemos isso porque ecoamos Carlos
Marighella na certeza de que “não é racional renunciar a ser livre”.

A teoria revolucionária pode ser como uma guilhotina que corta


fora a dominação para instaurar uma outra organização social.
Jacobin Brasil se expressa com um objetivo: afiar essa lâmina.

10
LINHA DE FRENTE
MEGAFONE

A internet fala

É sério, Giovani! É sério esse rolê Um pouco rude pessoal da revista


de Jacobin Brasil? Quero muito. jacobin soando igual ao ali kamel
<_ @giovaniflow, São Paulo vá tomar na buçanha, sabe??
<_ @angrysigh, Internet
Discordamos Jacobin Magazine
é uma revista muito interessante, É um processo dolorido
exceto quando aproveita um tema Os esquerdistas autoflagelantes
da atualidade para ser sempre, da revista Jacobin, que passam
sempre do contra. mais tempo criticando o socialismo
<_ @mohorte, Espanha do que advogando por ele, são
ativamente prejudiciais ao nosso
Aquele pessoal da CIA que movimento. <_ Tyler Burns, EUA
quer Bernie 2020 Muitas entidades
ditas de esquerda são psyops Nada mal para uma revista de
da CIA, eu chamo esse pessoal esquerdistas autoflagelantes
de “Jacobin Left” em referência à A revista Jacobin é a melhor
revista berniebro que acha que expressão intelectual que eu
deveria ter mudança de regime conheço da atual emergência de
em países como Síria, Venezuela e um movimento socialista nos
até China e pra qual socialismo = EUA, com particular apoio entre
sistema público de saúde. os jovens. <_ João Rodrigues,
<_ @tankpopper, China Portugal
E a gente estava bem ansiosa Nosso muito obrigado! Eu não
também Muito ansioso para falo pela Jacobin e não seguia
a leitura e o lançamento da Jacobin sua cobertura sobre Brasil até
Brasil, camarada! <_ @lackingclass, recentemente. Mas desde e
Internet durante as eleições, eu acho que
eles ofereceram uma análise
Laura, tá convidada! É isso que de esquerda consistentemente
sinto falta no debate aqui e espero excelente, perspicaz e justa sobre
que a Jacobin Brasil traga esse a crise em evolução no Brasil.
economês que a americana traz! Eu os aplaudo por isso.
Como economista de formação <_ @mattyrichy , São Paulo
e não cientista político queria
mais debate econômico na E tá cada dia mais complexa
esquerda, você poderia chamar a Obrigado pela grande cobertura
@lauraabcarvalho para a Jacobin sobre o Brasil! Política brasileira é
Brasil! <_ @GuilhermePSouto, Goiás incrivelmente complexa e a
Jacobin tem feito um trabalho
Esse governo se detona sozinho
fantástico ao falar dela para uma
Jamais esperaria uma publicação audiência estrangeira.
da esquerda elogiar a direita no <_ @Mfor_tuna, Inglaterra
Brasil. A revista Jacobin escreveu
um artigo que detona a política Pelo menos uma!
externa do país. Lógico escrito Edição brasileira da jacobin? porra,
por um esquerdista. <_ @ finalmente alguma notícia boa.
moreira57, Internet <_ @naosoueunaoein,
Rio de Janeiro
LINHA DE FRENTE POR ANDRÉ PAGLIARINI
AFETOS E DESAFETOS TRADUÇÃO EDUARDO PIMENTA ILUSTRAÇÃO MARCELO FIEDLER

O pior
diplomata
do mundo

O principal arquiteto da política externa Jean Wyllys, havia deixado o país


por temer por sua vida.
de Jair Bolsonaro combina uma retórica Eram apenas os primeiros meses
de nacionalismo fanático com uma do governo, mas enquanto Bolso-
naro tropeçava fora no exterior, os
patética submissão aos Estados Unidos. escândalos políticos se amontoa-
vam em casa. Relatos de transações
financeiras suspeitas envolvendo
a esposa do presidente e o asses-
sor de um de seus filhos, senador
recém-eleito, apareciam nas man-
chetes nacionais desde antes da
¶ O NOVO PRESIDENTE protofas- Davos, chamou o desempenho de posse. Então, enquanto Bolsonaro
cista do Brasil teve dificuldade para Bolsonaro de um “grande fracasso”, jantava com executivos e políti-
controlar a narrativa nos seus pri- notando que “ele tinha o mundo cos proeminentes na Suíça, um dos
meiros meses no cargo. Jair Bolsona- inteiro assistindo e sua melhor fala principais jornais do Brasil liga-
ro emitiu várias decisões controver- foi chamar as pessoas para vir pas- va seu filho Flávio a membros de
sas, apenas para recuar logo depois; sar as férias no Brasil”. Outro jor- um esquadrão da morte do Rio de
seu vice-presidente o contradisse nalista compartilhou a reação de Janeiro conhecido como Escritório
publicamente em diversas ocasiões; um amigo presente no discurso de do Crime. Esta é a mesma milícia
e ele fez feio em sua primeira apari- Bolsonaro: “Nunca passei por nada que supostamente esteve envol-
ção internacional no Fórum Econô- assim com um presidente aqui... vida no assassinato da vereadora
mico Mundial em Davos, Suíça. Esta Realmente bizarro”. Investidores Marielle Franco, em março de 2018.
última foi particularmente humi- ansiosos para capitalizar com o Apesar da atenção crescente da
lhante para um país como o Brasil, novo clima de negócios do Brasil mídia nesses escândalos e tantos
que anseia por reconhecimento esperavam um comprometimento outros que se sucederam em 2019, o
internacional. firme com a Reforma da Previdên- projeto político geral do clã Bolso-
Segundo as análises, o público cia, entre outras medidas regres- naro permanece intacto. Sua agen-
exclusivo de plutocratas e filantro- sivas, mas ficaram decepcionados da imensamente reacionária é defi-
pos em Davos não ficou impres- pela apresentação amadora do pre- nida por um componente nacional
sionado pelos comentários cho- sidente. Bolsonaro, em vez de ten- que tem sido destacado de forma
cantemente curtos e forçados do tar consertar o dano, foi ao Twitter ampla e um componente de políti-
presidente. Heather Long, corres- celebrar a notícia de que o deputa- ca externa que em geral tem rece-
pondente do Washington Post em do abertamente gay e de esquerda, bido menos atenção.  

12
AFETOS E DESAFETOS

Araújo busca
satisfazer o fervor
O componente nacional é sem reacionário que PRERROGATIVAS
dúvida o aspecto mais ameaça-
dor da presidência de Bolsona-
tomou de assalto IMPERIALISTAS
A política externa que Ernesto Araú-
ro. Porém vale a pena analisar a o corpo político jo vem desenvolvendo é uma rejei-
sua política externa para enten-
der o que ela revela sobre o papel
brasileiro, ção generalizada da abordagem
implementada pelos governos do
que o Brasil estabelece para si, no afirmando uma Partido dos Trabalhadores (PT), no
momento em que forças da direi-
ta radical mais juntam poder real
nova visão para o poder de 2003 a 2016. A partir do
governo de Luiz Inácio Lula da Sil-
ao redor do mundo em muitas Brasil no cenário va (2003-10), o Brasil assumiu um
décadas. Isto é especialmente
importante, considerando o papel
mundial. papel proativo nos assuntos glo-
bais, e rompeu com o neoliberalis-
de liderança do Brasil na América mo da década anterior, quando o
Latina e tudo o que está em jogo governo vendia ativos valiosos do
agora que a era da chamada “Maré Estado e abraçava a austeridade em
Rosa” de governos de esquerda troca de um pacote de resgate de
chega ao fim. O novo ministro das US$ 41,5 bilhões do Fundo Monetá-
Relações Exteriores, Ernesto Araú- rio Internacional (FMI).
jo, é o ator principal nesse drama. O governo de Lula foi particular-
é a belicosidade rasa de Bolsonaro. mente ativo na América Latina. Em
CRUZADA DE ÚLTIMA HORA Araújo, que se imagina um pensa- 2005, o Brasil bloqueou a propos-
Desde que assumiu, Araújo descar- dor profundo, tem em mente algo ta da Área de Livre-Comércio das
tou qualquer pretensão de conci- um pouco diferente. Na sua visão, Américas (Alca), um projeto esta-
liação com os críticos internacio- a presidência de Bolsonaro seria dunidense de longa data para ligar
nais de Bolsonaro. Pelo contrário, uma cruzada de última hora para América do Norte, América do Sul e
vem traduzindo ansiosamente as fortalecer o edifício de uma civili- Caribe (exceto Cuba) em um acordo
opiniões reacionárias do presiden- zação ocidental sob sítio. comercial como o Nafta (Tratado
te em uma política externa gros- Ele não demonstra timidez sobre Norte-Americano de Livre Comér-
seira e imprudente, que já alterou articular o que estaria em jogo, con- cio). As forças progressistas na
as relações internacionais do país forme sua visão de mundo. Num América Latina resistiram ao que
de formas que acenderam alertas editorial publicado na Bloomberg reconheceram como uma imposi-
entre parceiros comerciais funda- logo depois de sua posse, Araú- ção neoliberal dos Estados Unidos.
mentais e aliados antigos – com jo criticou ferozmente o filósofo O governo Lula, com um impor-
a notável exceção dos Estados anglo -austríaco Ludw ig Wit t- tante aliado na Argentina de Néstor
Unidos, que vê Bolsonaro como genstein por apresentar uma “des- Kirchner, tinha capital político sufi-
um parceiro natural. Araújo bus- construção pós-moderna avant- ciente para afundar o acordo. Em vez
ca satisfazer o fervor reacioná- la-lettre do sujeito humano” que de aceitar uma estrutura de livre-
rio que tomou de assalto o corpo teria estabelecido “as raízes filosó- -comércio desenhada por Washin-
político brasileiro, afirmando uma ficas de nossa ideologia globalista gton, Lula optou pela integração
nova visão para o Brasil no cená- totalitária atual”. Entender as idios- regional, e trabalhou para fortalecer
rio mundial. Ao fazer isso, ele fere a sincrasias intelectuais de Araújo é o Mercosul, um bloco comercial sul-
posição global do país em nome de a chave para compreender o radi- -americano a que receosos políticos
um projeto nacional radical cujo calismo simplório e a depravação brasileiros prestaram pouca atenção
exemplo perfeito, mas incompleto, intelectual do Brasil de Bolsonaro. desde sua criação em 1991.

14
O PIOR DIPLOMATA DO MUNDO

Enquanto no poder, o PT apoiou O papel global brasileiro como par- com o engajamento do Brasil no
inequivocamente outros gover- te do bloco geopolítico do BRICS Oriente Médio, que o então presi-
nos progressistas da “Maré Rosa” (Brasil, Rússia, Índia, China e Áfri- dente iraniano Mahmoud Ahma-
– Venezuela, Equador, Argentina, ca do Sul) trouxe reconhecimento dinejad disse que poderia “ajudar
Bolívia, Uruguai, entre outros –, e internacional – e também fez o Bra- na promoção da paz e da estabili-
dedicou tanta atenção à América sil chegar a ser visto com uma certa dade”. Quaisquer que sejam suas
Latina que alguns dos vizinhos do reticência pelo establishment con- falhas e sucessos, a política exter-
Brasil se queixaram de uma ten- servador dos Estados Unidos. na do PT era sem dúvida assertiva
dência arrogante e quase imperia- Em 2012, Dov S. Zakheim, em – uma qualidade que, através das
lista. “É óbvio que o Brasil só quer artigo para o National Interest de respostas que provocava, expunha
nossos recursos”, disse Marco Her- Henry Kissinger, se preocupava as inseguranças do imperialismo
minio Fabricano, membro do gru- com a insuficiente atenção dis- estadunidense do século 21.
po indígena Mojeño da Bolívia, em pensada “à herança brasileira do
2011. “[O presidente] Evo [Morales] manto do Império Português na “PASSE AVE-MARIA”
acha que pode nos trair com seus África, facilitada por sua crescen- Depois do golpe parlamentar que
aliados brasileiros.” te influência econômica”. Zakheim, instalou na presidência o trai-
Além dessas objeções, os gover- que trabalhou no Departamen- çoeiro vice-presidente de Dilma,
nos do PT enfrentaram críticas to de Defesa sob os presidentes Michel Temer, o Brasil deu um
crescentes por não terem contem- Ronald Reagan e George W. Bush, gigantesco passo atrás no cenário
plado um horizonte para além de não via “nenhuma indicação de global, em nome de uma política
um modelo de desenvolvimento que o senso de império, e do direi- externa supostamente mais rea-
puramente extrativista, uma ten- to que o acompanha, está dimi- lista. “A solidariedade pragmática
dência que se tornou ainda mais nuindo [no Brasil]”. para com os países do Sul global
aguda com a sucessora de Lula, Dil- Desde a Guerra Fria, os arquite- continuará sendo uma importan-
ma Rousseff (2011-16). Finalmen- tos da política externa dos Estados te estratégia da política externa
te, em 2016, as tentativas de longa Unidos sempre desconfiaram da brasileira”, declarou, em maio de
data do PT de mitigar o conflito de diplomacia Sul-Sul independen- 2016, o então ministro das Relações
classes por meio da cooptação de te, particularmente quando esta Exteriores, José Serra, referindo-se
membros-chave da elite industrial passou a ser a política oficial de a uma nova abordagem internacio-
e financeira entraram em colapso uma nação tão grande e economi- nal que abandonaria projetos polí-
por completo. camente importante quanto o Bra- ticos mais amplos – por exemplo, a
Sob o PT, o Brasil também apro- sil. De fato, avaliações alarmistas ideia de que o BRICS pudesse even-
fundou seus laços comerciais, cul- da liderança do Brasil em assun- tualmente servir como um con-
turais e políticos com a África. tos globais eram evidentes tanto trapeso para a hegemonia global
Como observou o historiador Ben- na administração republicana de dos Estados Unidos – em favor de
jamin Fogel num artigo no portal George W. Bush quanto na demo- uma interpretação mais estreita do
Africa is a Country, “no final do crata de Barack Obama, revelando interesse nacional. “Esta é a estra-
segundo mandato de Lula, o Brasil uma continuidade das prerroga- tégia Sul-Sul correta, e não a que foi
tinha 37 missões diplomáticas na tivas imperiais estadunidenses, praticada para fins publicitários,
África, o maior número depois de disfarçadas sob discursos oficiais com baixos benefícios econômicos
Estados Unidos, França, Rússia e nominalmente diferentes. e altos investimentos diplomáti-
China, enquanto o comércio do país Enquanto Bush se incomodava cos”, argumentou Serra.
com o continente africano subiu de com a independência do Brasil na Em agosto de 2016, o Secretá-
US$ 4 bilhões para US$ 24 bilhões”. América Latina, Obama irritava-se rio de Estado dos Estados Unidos,

15
AFETOS E DESAFETOS

John Kerry, se encontrou com Ser- que ele chamou de “eixo globalis- “NADA MENOS QUE
ra no Rio de Janeiro e expressou ta” formado por China, Europa e a UM MILAGRE”
seu entusiasmo com a mudança esquerda estadunidense. Aos 52 anos, Araújo é excepcional-
da guarda política produzida pelo Outros gestos simbolicamente mente jovem, nos padrões brasi-
golpe parlamentar: “Eu acho que importantes incluem a retirada do leiros, para o cargo de ministro
é apenas uma declaração hones- Brasil do Pacto Global pela Migra- das Relações Exteriores. Embora
ta dizer que ao longo dos últimos ção, da Organização das Nações tenha sido diplomata por quase
anos, as discussões políticas aqui Unidas ( ONU ); a ambiguidade trinta anos, ocupando alguns pos-
no Brasil não permitiram o pleno quanto a abandonar o Acordo Cli- tos importantes ao longo de sua
florescimento, por assim dizer, do mático de Paris; a intenção decla- carreira, nunca administrou uma
potencial dessa relação”. A disposi- rada de mudar sua embaixada em embaixada no exterior. De acordo
ção de Temer em adotar um papel Israel de Tel Aviv para Jerusalém, com vários relatos, a hierarquia
bem menor para o Brasil agradou aborrecendo importantes parcei- do Itamaraty aparentemente não
aos Estados Unidos, o que não é ros comerciais no mundo árabe; e ficou feliz com o fato de uma figu-
surpresa. De fato, a política exter- sua participação na agressiva cam- ra tão inexpressiva receber o cargo
na de Temer, enfatizando os inte- panha internacional para isolar e, mais importante.
resses materiais imediatos sobre finalmente, remover do governo Araújo pode não ter as creden-
supostos compromissos ideológi- o venezuelano Nicolás Maduro. A ciais costumeiras para o papel
cos, prefigurava a postura supos- nova disposição do Brasil de ceder que agora ocupa, mas é um ávido
tamente “não ideológica” de Araújo sua liderança no hemisfério está discípulo de Olavo de Carvalho, o
nos assuntos globais. ligada ao desejo de se submeter guru pseudointelectual da extrema
Ao contrário de seus antecesso- aos Estados Unidos liderados por direita brasileira que por décadas
res, Donald Trump dificilmente Trump. tem traficado as teorias da cons-
enfrentará um governo brasileiro Mas, além dessas considerações, piração que ajudaram a impulsio-
que desafie suas preferências polí- as tendências ideológicas pessoais nar a ascensão de Bolsonaro. No
ticas. Durante a campanha, Bol- de Araújo são visivelmente bizar- atual clima político do Brasil, essa
sonaro não demonstrou nenhum ras. Ele representa a epidemia de conexão já é meio-caminho para o
esforço para reavivar a trajetória mentiras convertidas em armas sucesso. De fato, em seu primeiro
independente que caracterizava a políticas – por exemplo, sobre discurso oficial, Araújo disse que,
política externa do Brasil sob o PT e como o PT pretendia forçar edu- “após o presidente Jair Bolsonaro,
Araújo saudou Trump como “o pas- cação sexual explícita para crian- [Olavo de Carvalho] talvez seja o
se Ave-Maria da Civilização Oci- ças na escola, ou como a esquerda grande responsável pela imensa
dental”, referindo-se a uma jogada iria proibir a carne vermelha e as transformação que o Brasil está
de desespero no futebol america- relações heterossexuais – que tem vivendo”.
no que é a última esperança de um dominado a política brasileira, Olavo de Carvalho escolheu a
time vencer ou empatar um jogo, disseminada por canais não regu- dedo Araújo para ser o ministro
que normalmente acontece nos lamentados como WhatsApp e das Relações Exteriores de Bolso-
últimos segundos de uma partida. Facebook. A orientação ideológica naro (e também ajudou a aprovar
Durante a campanha presidencial, asinina de Araújo parece ser o que ou vetar nomes para outras áreas
Araújo buscou as boas graças dos lhe rendeu o emprego. O extremis- no governo). De forma imprová-
Estados Unidos ao propor uma ta, em resumo, foi promovido exa- vel, pelo seu engajamento com o
aliança entre os três maiores países tamente por ser um extremista. governo brasileiro, o mundo pre-
cristãos do mundo – Brasil, Estados cisa agora encarar as ideias absur-
Unidos e Rússia – para combater o das de um eremita que não vive no

16
O PIOR DIPLOMATA DO MUNDO

“Estudos têm
mostrado que a
crença em teorias
te governo poderia ser examinado conspiratórias
Brasil, onde seu papel decisivo nes- produzido um público maior para
argumentos históricos e sociológi-
mais de perto, mas na zona rural da está associada cos pseudointelectuais. Há muito

Carvalho já comentou sobre tan- a sentimentos


Virgínia, nos Estados Unidos. mais a ser dito sobre como Olavo
de Carvalho conquistou o alcance
tos assuntos diferentes que é difí- de impotência, que tem hoje, mas sua influência

de sua visão de mundo. Mas dois incerteza e uma


cil chegar a uma teoria unificadora é agora uma realidade que os pro-
gressistas no Brasil precisam enca-
aspectos particularmente inter- generalizada falta rar de frente.

naram lugares-comuns na direita de capacidade de


-relacionados nas falas dele se tor- O argumento de que as forças
progressistas exerceriam uma
brasileira nos últimos anos: (1) uma ação e controle” influência decisiva sobre as nor-
definição irracionalmente elástica mas e costumes cotidianos pros-
de “comunismo”, combinada com perou, apesar (ou talvez por causa)
uma insistência na relevância con- do recuo real da esquerda desde
tinuada dessa ideologia como uma pelo menos o fim da Guerra Fria.
ameaça sociopolítica; (2) um pâni- Como obser vou o psicólogo Embora o PT tenha se deslocado
co fervoroso do “marxismo cultu- social Sander van der Linden, “uma gradativamente para o centro a fim
ral”, uma nebulosa teoria da cons- série de estudos têm mostrado que de conseguir uma vitória histórica
piração que postula que ardilosos a crença em teorias conspiratórias em 2002, seus inimigos invetera-
esquerdistas exerceriam controle está associada a sentimentos de dos alegaram que o partido havia
total sobre quase todos os aspec- impotência, incerteza e uma gene- simplesmente desenvolvido uma
tos do pensamento na sociedade ralizada falta de capacidade de camuflagem mais eficaz para sua
moderna. ação e controle”. Tais sentimentos agenda subversiva. Mais recente-
Não está de todo claro por que certamente floresceram entre um mente, a noção de que os marxistas
as ideias de Carvalho se tornaram número considerável de eleitores furtivamente venceram a guerra
tão preponderantes, mas há alguns anti-PT e membros das elites con- cultural se tornou um artigo de fé
elementos a serem considerados. servadoras desde pelo menos 2010. unificador para os movimentos de
O primeiro fator e indiscutivel- De fato, no início do segundo man- direita em todo o mundo.
mente o mais decisivo é a gradual dato da Dilma, essa multidão per- Mas Olavo de Carvalho não é um
radicalização de direita que ocor- deu qualquer receio sobre isso e mero imitador. Ele tem protesta-
reu ao longo dos treze anos do PT passou a contestar abertamente os do contra a ameaça supostamente
no poder. Depois que o partido de resultados de eleições livres. iminente do comunismo na Amé-
Lula venceu quatro eleições presi- Uma explosão no acesso à inter- rica Latina há décadas. De acordo
denciais consecutivas, milhões de net é outro fator que explica a pro- com ele, a manifestação mais insi-
brasileiros passaram a desconfiar liferação das teorias conspiratórias diosa dessa ofensiva secreta seria o
abertamente dos processos demo- de Olavo de Carvalho. Ávido youtu- Foro de São Paulo, uma conferência
cráticos, seja porque achavam que ber, ele posta críticas frequentes na de partidos políticos de esquerda
as eleições estariam sendo mani- plataforma que a socióloga Zeynep de mais de vinte países da Améri-
puladas, seja porque demagogos Tufekci chama de “um dos mais ca Latina e do Caribe, estabelecida
populistas teriam efetivamente poderosos instrumentos de radica- em 1990. Steve Bannon, o guru de
comprado a lealdade de eleitores lização do século 21”. Por último, o Donald Trump que tem se aproxi-
ignorantes por meio dos progra- aumento da educação superior nos mado do clã Bolsonaro, também
mas sociais do governo. governos do PT também pode ter protesta abertamente contra o

17
AFETOS E DESAFETOS

“marxismo cultural”, buscando for- mo’ para descrever a estratégia do zas da tentativa do PT de destruir o
mar uma união transnacional de PT e tudo o que acontecia no país, país e conquistar o poder absoluto”,
movimentos identitários brancos e numa época em que todos pensa- afirmou Araújo, retomando aquela
cristãos para enfrentá-lo. vam que o comunismo era apenas que se tornou a linha padrão dos
Uma recente reunião de cúpula uma espécie de coletivismo que eleitores conservadores que busca-
entre Bannon e Olavo de Carvalho havia morrido com a União Sovié- vam demonstrar estar motivados
representou um encontro de duas tica, cegos para a sua sobrevivência por fatores além da simples hostili-
linhas distintas, embora ligadas, sob muitos outros disfarces na cul- dade ao PT. Mesmo após revelações
de reacionarismo histérico. Curio- tura e nas ‘questões globais’”. sobre a conduta do ministro Moro
samente, Bannon tratou Carva- Araújo também vincula explici- no The Intercept Brasil, o gover-
lho como o veterano respeitável tamente Olavo de Carvalho a Bol- no Bolsonaro mantém seu apoio à
naquele encontro, sugerindo que sonaro, proclamando em um artigo operação.
as teorizações paranoicas do brasi- para a revista conservadora New Para Araújo, a crescente circu-
leiro têm um impacto orgânico na Criterion que “graças à explosão no lação das reflexões de Olavo de
política global. Da forma como vem acesso à internet e, especialmente, à Carvalho produziu algo como uma
sendo invocado pelos arquiconser- revolução das redes sociais, as ideias libertação nacional: “Vivemos por
vadores atualmente, o “marxismo [de Olavo de Carvalho] de repente muito tempo limitados pelo dis-
cultural” é uma reconstituição da começaram a percorrer todo o país, curso globalista de esquerda. Ago-
ameaça existencial de que o fascis- atingindo milhares de pessoas que ra podemos viver em um mundo
mo sempre precisou para florescer. haviam sido alimentadas apenas onde criminosos podem ser presos,
Por causa de seus textos numero- com os mantras oficiais. Essas ideias onde pessoas de todos os estratos
sos e de sua presença no YouTube, romperam todas as barreiras e con- sociais podem ter as oportunida-
Carvalho deveria figurar de forma vergiram com a postura corajosa do des que merecem e onde podemos
proeminente em qualquer análise único político brasileiro verdadeira- nos orgulhar de nossos símbolos e
futura da atual conjuntura. mente nacionalista dos últimos cem praticar nossa fé. O sistema de con-
Ernesto Araújo canalizava a anos, Jair Bolsonaro, dando-lhe um trole psicopolítico está acabado, e
escrita prolífica e os vídeos de Ola- nível totalmente inédito de apoio isto é nada menos que um milagre”.
vo de Carvalho no YouTube em um popular”. Esse era o ímpeto de que O que Araújo vê como um poder
blog pessoal que manteve antes de o Brasil precisava para se remodelar de previsão na obra de Olavo de
se tornar ministro das Relações em um “país nacionalista, conserva- Carvalho é, na verdade, teoria da
Exteriores. Nele, Araújo se referia dor e antiglobalista”. conspiração elementar. Em um
ao “globalismo” como um produto Ele também observou a impor- estilo que o ministro das Relações
do “marxismo cultural” (uma cone- tância de investigações anticor- Exteriores claramente imita, Car-
xão com claras nuances antissemi- rupção como a Operação Lava Jato, valho invoca tantas referências
tas). Para o ministro das Relações cujo rosto público, o juiz Sergio esotéricas e obscuras em suas falas
Exteriores, Carvalho destaca-se Moro, foi nomeado ministro da que seus argumentos podem ser
como “talvez a primeira pessoa no Justiça de Bolsonaro após presidir difíceis de identificar. A intenção,
mundo a enxergar o globalismo um julgamento intensamente polí- com certeza, é exatamente essa: ao
como resultado da globalização tico que levou à prisão do ex-presi- parecer abastecer-se facilmente
econômica, entender seus horrí- dente Lula. “A investigação sobre o de um poço profundo de conhe-
veis propósitos e começar a pensar esquema de corrupção do PT – tal- cimento, Carvalho imbui uma
em como derrubá-lo. Por muitos vez o maior empreendimento cri- camada de sofisticação àquilo que,
anos ele também foi a única pessoa minoso que já existiu – evoluiu e essencialmente, não passa de cli-
no Brasil a usar a palavra ‘comunis- começou a esclarecer as profunde- chê reacionário.

18
O PIOR DIPLOMATA DO MUNDO

Ao abastecer-se
facilmente de
um poço profundo
Identificar o PT no poder como
uma aventura comunista, por de conhecimento, Araújo comprometeu o Brasil pode
muito bem já ter atingido seu ápice.
exemplo, é afirmar que as palavras Carvalho imbui Enquanto isso, ele não tem demons-
não têm significado. A campanha
presidencial de 2018 estava infes- uma camada trado a capacidade de trazer o Bra-
sil de volta da margem radical, caso
tada desse tipo de niilismo ideo- de sofisticação os ventos da diplomacia interna-
lógico, com uma parte esmagadora
dos eleitores anti-PT incapazes ou àquilo que, cional comecem a mudar.
Que fará ele, por exemplo, se
indispostos a defender Bolsona- essencialmente, Trump não vencer a reeleição em
ro nos méritos de suas propostas
desumanas, mas ansiosos para não passa de 2020? Os relacionamentos em que o
Brasil aposta todas as suas fichas
atacar Fernando Haddad, o candi- clichê reacionário. hoje poderiam facilmente tornar
dato do PT, com acusações absur- o país um pária amanhã. Além
das. É nesse contexto que a política disso, Araújo pode enxergar uma
externa brasileira está agora sendo luta civilizacional compartilha-
elaborada. da que colocaria o Brasil ao lado
dos Estados Unidos, mas os pre-
“EU SEI QUEM EU SOU” sidentes estadunidenses nunca
É nítida a ironia nisso tudo: a trataram a maior nação da Améri-
direita brasileira por muito tempo ca Latina como um parceiro igual.
acusou o PT de politizar a burocra- Trump, especialmente, se preocupa
cia federal e conduzir as relações nomia, Paulo Guedes, um rígido pouquíssimo com a América Lati-
exteriores de forma ideológica. economista neoliberal treinado na. Não obstante o entusiasmo do
Agora, no entanto, Ernesto Araújo na Universidade de Chicago, possa senador da Flórida, Marco Rubio,
está afastando o Brasil de prati- implementar reformas favoráveis pelo governo Bolsonaro, Araú-
camente todos os grandes países aos negócios, apesar da sede de jo está se iludindo se acha que os
industrializados, exceto os Esta- sangue autoritária de Bolsonaro e Estados Unidos vão colocar de lado
dos Unidos, reivindicando para da cruzada civilizacional imagina- um histórico imperialista para tra-
si mesmo o manto da elaboração da por Araújo. var uma guerra conjunta contra
de políticas racionais e imparciais, Ao desenhar um papel global rea- valores progressistas.
apesar das questões existenciais cionário para o Brasil, Araújo está Araújo usa seu ministério para
que o chanceler invoca em seus claramente tentando marcar pon- proclamar em voz alta um novo
pronunciamentos. tos políticos em casa, já que o con- papel internacional para o Brasil
Em nome de um antiglobalismo servadorismo descarado invade o (e para si mesmo). “Nós nos torna-
obscuro, o fervoroso ministro que mainstream brasileiro como em mos diplomatas que fazem coisas
quer ser visto como uma mão fir- nenhum momento desde o fim da que só são importantes para outros
me tem atraído críticas tanto dos ditadura. A aposta de Araújo é bem diplomatas.”, argumentou ele em
neoliberais da The conomist quanto alta, conforme “a luta pró ou con- seu primeiro discurso oficial. “Isso
dos liberais do The New York Times. tra a ordem global tornou-se uma precisa acabar. Deixemos de olhar
Os investidores internacionais – luta pelo controle da ordem glo- no espelho e passemos a olhar pela
que veem o Brasil principalmente bal”, como Quinn Slobodian colo- janela. Ou melhor ainda, vamos sair
como um mercado em expansão e cou recentemente em um artigo na à rua para o Brasil verdadeiro. Não
um produtor de matérias-primas revista New Statesman. A onda rea- tenhamos medo do povo brasileiro.
– esperam que o ministro da Eco- cionária transnacional com a qual Somos parte do povo brasileiro.”

19
AFETOS E DESAFETOS

Não há dúvida
de que em um
confronto direto
O compromisso de Araújo de
sacudir a cultura oficial do Brasil entre Araújo, o do Brasil – de fato, ambos com-
partilham de um poço profundo
não é inerentemente uma má ideia guerreiro cultural de egoísmo em sua crença de que
– o Itamaraty é tão elitista quanto
qualquer outra instituição em uma que se vê em uma homens durões e assertivos pode-
riam facilmente resolver proble-
sociedade desigual como o Bra- luta civilizacional, mas complexos. Mas é difícil ima-
sil. Mas, ao apelar para um “senso
comum” que seria autoevidente, e os pragmáticos ginar Araújo conquistando apoio
político independentemente de seu
Araújo está prometendo alinhar a de sangue-frio nas presidente ou de seu venerado guru
política externa brasileira com as
premissas reacionárias do presi- Forças Armadas, intelectual. Um golpe potencial-
mente fatal para Araújo será, por-
dente e de Olavo de Carvalho. Bolsonaro ficaria tanto, se Olavo de Carvalho ou suas
Nesse sentido, o discurso de pos-
se de Araújo ofereceu uma destila- com os últimos. ideias forem efetivamente desacre-
ditadas nos próximos anos.
ção de sua visão emocional de polí- Outro possível revés para Araú-
tica externa: “Aqueles que dizem jo se chama Eduardo Bolsonaro, o
que não existem homens e mulhe- filho do presidente nomeado para
res são os mesmos que pregam que assumir a embaixada em Washin-
os países não têm direito a guardar gton a despeito de seu despreparo
suas fronteiras, são os mesmos que mento com os ditames das potên- abissal para o posto mais impor-
propalam que um feto humano é cias estrangeiras. A ditadura que tante da diplomacia internacional.
um amontoado de células descar- governou o país de 1964 a 1985, Bolsonaro, o pai, até afirmou que,
tável, são os mesmos que dizem por exemplo, deferia inteiramente caso o senado rejeitasse a indica-
que a espécie humana é uma doen- a Washington em seus primeiros ção do Bolsonaro, filho, de presi-
ça e que deveria desaparecer para anos, com o embaixador do Brasil dente da Comissão de Relações
salvar o planeta”. nos Estados Unidos proclamando Exteriores da Câmara dos Deputa-
Ele continuou com talvez a mais que “o que é bom para os Estados dos para embaixador, ele lhe entre-
sucinta articulação já vista da onda Unidos é bom para o Brasil”. Con- garia o cargo do próprio Araújo. A
reacionária que assola o mundo: forme o regime envelheceu, setores ironia nesse cenário seria nítida: o
“Quando eu era criança [...] e adoles- mais vigorosamente nacionalistas chanceler de qualificações questio-
cente [...], ouvia muita gente dizen- das Forças Armadas prevalece- náveis que conseguiu seu posto por
do: ‘O mundo caminha inexoravel- ram e procuraram transformar o questões meramente ideológicas
mente para o socialismo’. Mas não país em uma potência hemisférica desfeito por um rapaz até menos
caminhou. Não caminhou porque por conta própria. Até aqui, Araújo preparado por razão mais absurda
alguém foi lá e não deixou. Hoje combina o discurso obstinado des- ainda. “Se puder dar um filé mig-
escutamos que a marcha do glo- sa segunda corrente com a essência non ao meu filho, eu dou”, disse o
balismo é irreversível. Mas não é submissa da primeira. presidente. Itamaraty, nesse caso,
irreversível. Nós vamos lutar para É possível que, no caos que pro- seria o corte nobre.
reverter o globalismo e empurrá-lo vavelmente definirá a presidência Os militares também poderiam
de volta ao seu ponto de partida”. de Bolsonaro, Araújo acabe cain- colocar em perigo o emprego de
Há muito os brasileiros deba- do. Seu ardente senso de autoim- Araújo. Desentendimentos com as
tem o equilíbrio adequado entre portância casa com o objetivo de Forças Armadas já ameaçam redu-
a autoafirmação nacionalista no Bolsonaro de alterar drasticamen- zir sua influência. Não há dúvida
cenário mundial e o consenti- te a orientação da política externa de que em um confronto direto

20
entre Araújo, o guerreiro cultural de Olavo de Carvalho. Em certo o Brasil não é isso tudo que o pre-
que se vê em uma luta civilizacio- ponto no clássico de Cervantes, o sidente Bolsonaro acredita e que eu
nal, e os pragmáticos de sangue- protagonista encontra-se deitado também acredito, dirão que o Brasil
-frio nas Forças Armadas, Bolsona- à beira da estrada em algum lugar não tem capacidade de influir nos
ro ficaria com os últimos. No fim em La Mancha, delirante e derro- destinos do mundo, de defender
das contas, os militares agora ocu- tado. Nesse triste estado, Quixo- os valores maiores da humanidade,
pam vastos setores do alto escalão te confunde um camponês com o que devemos apenas exportar pro-
no atual governo. Ainda assim, a marquês de Mântua. O camponês dutos e atrair investimentos, pois
visão de política externa grossei- exasperado responde que não é afinal somos um bom país, quieto
ramente conspiratória de Araújo já um aristocrata, que é vizinho de e pacífico, mas não temos poder
se tornou parte central da imagem Quixote e que o conhece há anos. O para nada. Dirão que o Brasil é ape-
nacional e internacional do Brasil camponês, então, lembra o homem nas Alonso Quijano. Mas o Brasil
sob Bolsonaro. Este é exatamente prostrado de que ele não é Dom responderá: ‘Eu sei quem eu sou’”.
o rosto que o atual governo parece Quixote, como afirma, mas Alonso Se Araújo conhece como termina
querer apresentar ao mundo. Quijano. Dom Quixote para, pensa a história de Dom Quixote é uma
Em seu discurso de posse, Araú- e responde: “Eu sei quem sou”. questão em aberto.
jo relatou uma lição que apren- Para Araújo, a moral da história é
deu com Dom Quixote por meio clara: “Algumas pessoas dirão que
POR LINCOLN SECCO ILUSTRAÇÃO CATARINA BESSELL

Quem
tem medo
de Marx
e de seus
amigos?
Se você não deve à classe
trabalhadora, não há o que temer.

23
POR LINCOLN SECCO

¶ UM FANTASMA RONDA O PLANETA. Contra ele se


unem todas as potências numa sagrada aliança para
esconjurá-lo: um “bispo” evangélico e o czar da
economia, Bannon e Olavo, neoliberais e milicianos.
Para essa aliança, qualquer coisa que não se
assemelha a um projeto conservador de direita deve
ser marxismo. Desde 2013 não houve partido de
oposição que não tivesse sido acusado pelo governo
de “marxista”. Feministas e o movimento LGBTQ+,
ecologistas e militantes de direitos humanos,
curadorias de museus e performances artísticas,
pesquisas acadêmicas e religiões afro-brasileiras
aparecem como homogêneos aos olhos de sua
oposição. O marxismo volta a ser reconhecido por
todos os poderes como um poder, mas não qualquer
Feministas e
LGBTQ+, ecologistas
poder: uma conspiração.
A história, porém, não é tão simples quanto uma
paráfrase do Manifesto comunista. Os ideólogos da
e militantes de
luta contra o “gramscismo” e o “marxismo cultural”
atacam algo muito diferente daquilo que pertence ao direitos humanos,
arcabouço teórico de Marx e Engels.
curadorias de
BERÇO REVOLUCIONÁRIO museus e artistas,
Karl Marx não se considerava marxiano ou marxista. pesquisas
Esses termos adentraram o vocabulário político por
obra de seus adversários na Alemanha em torno de acadêmicas e
1850, e na Associação Internacional dos Trabalhadores religiões afro-
depois de 1864. Quando partidários de suas ideias
adotaram o termo “marxismo” em 1882, Marx o -brasileiras
recusou terminantemente. Mais tarde Engels admitiu aparecem como
o uso na Inglaterra desde que fosse impresso como
“the so called marxism” ou “o tal marxismo”. homogêneos
A palavra se fixou durante a vigência da Segunda aos olhos de
Internacional, criada em 1889 como doutrina dos
partidos sociais democratas e trabalhistas recém- sua oposição.
fundados. Desde então, o termo foi reivindicado por O marxismo volta a
pessoas que aderiram às mais diferentes correntes
políticas. Mas haveria um núcleo comum ou um ser reconhecido por
“mínimo marxista”? todos os poderes
Não se pode responder a isso fora da história.
Karl Marx nasceu numa era de revoluções, como a como um poder, mas
chamou Eric Hobsbawm. O século 18 foi marcado não qualquer poder:
pela Revolução Francesa, mas várias outras erupções
se sucederam. uma conspiração.
24
QUEM TEM MEDO DE MARX E DE SEUS AMIGOS?

Uma onda revolucionária se iniciou dois anos É a mentalidade do excluído que substitui a luta
depois do nascimento de Marx. A partir de 1820, por reformas dentro da ordem, não pela revolução,
as agitações atravessaram Portugal, Espanha, mas pela vingança. O socialismo precisa da
Grécia, Polônia, Bélgica e a América Latina. Depois organização, do partido, do programa, enfim, da
dos intentos absolutistas de Carlos X, na França, classe. E aqui, Karl Marx comparece à nossa história.
também este país retomou o método revolucionário
em julho de 1830, quando se estabeleceu como país CRÍTICA DA CRÍTICA CRÍTICA
independente. Ao contrário do que imaginam nossos “antimarxistas
Finalmente, uma nova onda chegou com a culturais”, a leitora e o leitor já perceberam que as
Primavera dos Povos (1848): Roma, Paris, Viena, ideias herdadas pelos socialistas se originaram do
Praga, Budapeste, Frankfurt e outras cidades foram mesmo contexto que mobilizava os revolucionários
sacudidas por uma combinação de estudantes, liberais e os nacionalistas (nem sempre unidos):
operários, artesãos e intelectuais socialistas. a luta de uma classe trabalhadora, a conquista do
Aquela era uma etapa de revoluções liberais e poder de Estado e não a conquista de consciências ou
burguesas, mas que sacramentaram duas ideias de pequenos poderes dispersos e, a partir do século
centrais que seriam incorporadas ao arcabouço 20, tudo isso dentro de Estados Nacionais.
marxista: a revolução e a luta de classes. Aquelas O cerne da crítica de Marx não dizia respeito à
revoluções foram burguesas pela sua direção política, cultura, mas à economia política. Embora se
por seus limites teóricos e por suas realizações. preocupasse com as diversas formas de dominação,
Ficaram circunscritas a uma igualdade simplesmente seu pressuposto fundamental foi a ação prática pela
jurídica e a uma liberdade abstrata. Esqueceram derrubada da ordem burguesa.
também, e convenientemente, a fraternidade. Marx iniciou sua obra combatendo filósofos
É verdade que mobilizaram o “Terceiro Estado” metafísicos que separavam o sujeito e o objeto, assim
(em sua maioria, o povo) e difundiram uma como a teoria e a prática. Ele criticou os chamados
mensagem universal. Seus limites, no entanto, socialistas utópicos que, embora erguessem
fizeram-nas refluir ao espaço nacional e a regimes doutrinas e fantasias igualitárias e generosas,
sem participação popular. restringiam-se à organização de experimentos
Como notou o historiador francês Albert Soboul, coletivistas sem a devida atenção à necessidade de
a multidão parisiense que fazia aquelas revoluções derrubar toda a estrutura de dominação da burguesia.
não constituía uma classe. Eram artesãos, pequenos Contra os socialistas utópicos, Marx se aproximou
comerciantes, ambulantes, desempregados e, de uma outra linhagem socialista que procurava
excepcionalmente, operários. Enfim, eram sans meios práticos de derrubar a ordem existente, mesmo
culottes, ou seja, não vestiam o calção e as meias da que fosse pela conspiração e por tentativas
aristocrata, e sim calça, camisa e uma jaqueta curta, revolucionárias vanguardistas. Marx não gostava do
a carmanhola. Sua linguagem era radical, contra anarquista Pierre-Joseph Proudhon, preferia o
os grandes (nobres eram todos os ricos). Mas não “comunista” prático Louis-Auguste Blanqui. Este era
questionava a propriedade, não tinha um programa e muito mais um herdeiro do jacobinismo, embora na
usava uma violência nem sempre vertical, de baixo França o termo communisme tenha aparecido por
para cima. Às vezes seu ódio se movia para os lados. volta de 1840.
Até o conservador François Furet arguiu que Para avançar em sua perspectiva, era necessário
aquelas pessoas estavam unidas menos por uma conhecer os fundadores da economia política. Assim,
forma comum de inserção na produção do que Marx iniciou seus estudos com os clássicos Adam
por uma mentalidade, no sentido mais amplo que Smith e David Ricardo e apreendeu a teoria do valor
os historiadores franceses deram à palavra. trabalho. Também deveu muito ao fisiocrata francês

25
POR LINCOLN SECCO

François Quesnay, que elaborou o tableau économique, necessidade”. A frase foi muito usada pelos
um esquema de reprodução da economia; ou seja, anarquistas e tinha uma origem cristã (Atos 4:35).
um modelo de fluxos de riqueza entre as classes Marx o sabia muito bem.
sociais. O desenvolvimento do marxismo passa Um Marx já maduro rendia homenagens àqueles
então, necessariamente, pela compreensão e pela que primeiro difundiram ideais socialistas nos anos
crítica ao pensamento liberal do seu tempo. 1830 e 1840, entre eles, Louis Blanc e Étienne Cabet,
Karl Kautsky e Vladimir Lenin escreveram que que usaram aquela frase antes. Ressoava numa
o marxismo teria três fontes: a economia política organização de revolucionários emigrados alemães:
inglesa, a filosofia clássica alemã e o socialismo alfaiates, relojoeiros e artesãos que militaram com
utópico francês. No entanto, Marx também Friedrich Engels na Liga dos Justos. Quando Marx
foi conhecedor dos fisiocratas franceses, como ingressou naquela organização, concorreu para a
François Quesnay e Vincent de Gournay, o propositor troca do lema “todos os homens são irmãos” para
do lema laissez-faire, laissez-passer, le monde va de “proletários de todos os países, uni-vos”; e do nome,
lui-même [deixai fazer, deixai passar; o mundo vai passaria a ser Liga dos Comunistas.
por si mesmo]. Os esboços que Marx escreveu antes da redação de
O esquema, ao navegar na história, precisa ser O capital e que ficaram conhecidos como Grundrisse,
complementado. Entre aquelas fontes, destacam-se: entre os alemães, e Borrador, na América Latina,
1) ao lado da filosofia clássica alemã, um modelo de foram finalizados no início de 1858. Neles, o autor
Revolução e a ideia de luta de classes que Marx atacava com ironia as ideias de bancos cooperativos e
retirou de historiadores liberais como Guizot, de troca de produtos pela quantidade de horas de
Mignet e a notável Madame de Staël; 2) ao lado da trabalho envolvidas em sua produção sem que
economia política inglesa, a contribuição dos houvesse planos para abolir as relações de produção
fisiocratas que permitiu tratar das classes como capitalistas. Não se tratava de retornar a um mundo
temas também econômicos; e 3) além do socialismo de produtores isolados que fariam um intercâmbio
utópico, que Marx e Engels criticam no Manifesto simples de mercadorias, sem a presença do dinheiro
comunista, a ação prática do comunismo francês de como mediador. A abolição do dinheiro só poderia ser
“Blanqui e seus camaradas” foi essencial para a realmente efetivada com a abolição do sistema de
solidificação do marxismo. produção capitalista.
A prática que interessou a Marx não foi a de Como Marx demonstrou, a mais valia não é
comunidades alternativas. Ele não deixou um modelo extraída de trabalhadores porque os empresários
de planificação econômica que pudesse orientar pagam a eles menos do que seria “justo”. Muitas vezes
sociedades socialistas, embora tivesse escrito alguns pagam abaixo do valor por decorrência das lutas
excertos a respeito tanto em O capital como em sua entre as classes. Mas não é isso que importa aqui.
Crítica do programa de gotha (1875). Este último é o A troca entre o capital e o trabalho está baseada
que chega mais perto de uma ideia de sociedade no valor que realmente a mercadoria força de
emancipada do capital dentro da obra marxiana. trabalho tem, ou seja, o conjunto dos meios de
A crítica sobre o programa do Partido Social- subsistência que permite a sobrevivência do
Democrata da Alemanha realizado em Gotha era de trabalhador. A exploração ocorre no interior da
1875. Ali, Marx distinguiu uma “primeira fase da produção e nada tem a ver com o momento da troca.
sociedade comunista, tal como brota da sociedade Além disso, os valores das mercadorias raramente
capitalista depois de um longo e doloroso parto”, e condizem com os seus preços de mercado porque
uma fase superior, quando “a sociedade poderá só no longo prazo e no conjunto da produção os
inscrever em suas bandeiras: de cada qual, segundo preços e os valores se equilibrariam.
sua capacidade; a cada qual, segundo a sua

26
QUEM TEM MEDO DE MARX E DE SEUS AMIGOS?

Ainda assim, Marx e Engels tiveram muito


respeito por alguns dos socialistas utópicos. O mais
eminente deles foi o galês Robert Owen, proprietário
de indústrias na Escócia. Owen tentou diminuir a
jornada de trabalho, criou jardins de infância, uma
comunidade socialista nos Estados Unidos (Nova
Harmonia) e inventou o bônus por hora de trabalho
para substituir o dinheiro. Através dele, o socialismo
ganhava ares de uma nova proposta de organização
econômica. Owen era o grande crítico do
malthusianismo. Ele mesmo constatou, em 1818,
que, ao contrário do que Thomas Malthus pregava,
não havia um crescimento geométrico da população
contra um crescimento aritmético dos alimentos.
O que havia de fato era a superprodução, pois a
população aumentara 20% e a produção 1.500%.
Foi vivendo entre socialistas reformadores como
Fourier, Cabbet e Lammenais, que Marx pôde
aprimorar sua própria teoria. Em alguns pontos, eles
O comunismo eram mais avançados que Marx. Fourier, por exemplo,

é um movimento criticava o casamento monogâmico. Proudhon nutriu


uma saudável descrença em relação ao Estado.
prático que, em Acrescente-se a eles o nome de Sismondi, na Suíça, e

sua autoatividade, teremos outros autores que contribuíram muito para


a crítica do capitalismo. Marx até mesmo admitiu,
em sua prática mais tarde, o papel das cooperativas como uma

autônoma, explica tentativa de abolição das relações de produção


capitalistas no interior do próprio capitalismo.
a si mesmo o seu Mas parou por aí. Ele não era um seguidor daqueles

papel na história. socialistas. Jamais acreditou que o comunismo fosse


uma ideia a ser proposta por pessoas generosas
Os fatos precisam e nem que consciências seriam disputadas

ser apropriados não por estudantes ou professores de marxismo.


O comunismo é um movimento prático que, em
pelo pensamento sua autoatividade, em sua prática autônoma, explica

isolado, e sim pela a si mesmo o seu papel na história. Os fatos precisam


ser apropriados não pelo pensamento isolado,
ação. Sua teoria e sim pela ação. Sua teoria é da práxis, uma ação

é da práxis, uma mediada pelo conhecimento coletivo.


A própria teoria que Marx e Engels desenvolveram
ação mediada foi uma expressão do momento histórico em que

pelo conhecimento estavam inseridos, já que não é a consciência


que determina a vida, mas esta que determina a
coletivo consciência.

27
POR LINCOLN SECCO

O materialismo histórico é a concepção através da


qual se compreende a história e as ações humanas a Não há uma
partir da organização do modo de produção da vida utopia deslocada
material. Para viver é preciso alimentar-se, vestir-se e
morar, e essa produção é inseparável de todo o resto no socialismo
que os seres humanos fazem. marxista, mas uma
Numa carta de 1846 Marx escreveu que “os seres
humanos, ao produzirem as forças produtivas, as utopia concreta
relações sociais, produzem também as ideias, as que parte da
categorias, isto é, a expressão abstrata, ideal,
precisamente dessas relações sociais”. Marx não transformação
reduz a ideia à matéria. Elas são opostas, mas existem material. Não por
dentro de uma unidade.
Por conta disso, não há nenhum ideal “marxista” acaso, Engels
a ser combatido, mas práticas reais e muito concretas. insistia na ênfase
O que separa Marx de todos os demais socialistas
é que o socialismo não seria produto do pensamento desse socialismo
ou de uma mera mudança cultural, e sim da prática.
O socialismo precisa ser o resultado historicamente
como científico.
necessário da própria sociedade capitalista e, ao
mesmo tempo, de uma revolução social. O proletário
seria um “parteiro” da nova sociedade ou o “coveiro” da
burguesia. Não há uma utopia deslocada no socialismo
marxista, mas uma utopia concreta que parte da
transformação material. Não por acaso, Engels insistia
na ênfase desse socialismo como científico.

AQUELES QUE SE SUCEDERAM


O republicano socialista francês Louis-Auguste
Blanqui viveu muito para um homem do século 19
que passou 35 anos na prisão. Foi eleito in absentia
(pois estava preso fora da capital) como o presidente
de honra da Comuna de Paris e terminou sua
trajetória sendo o revolucionário modelo do século 19.
Lenin seria o da primeira metade do século 20.
Uma maioria proletária iria se formar em
decorrência de leis econômicas irrefreáveis e alguns
propunham que o socialismo poderia ser resultado
de reformas graduais no interior do capitalismo.
Recorrendo ora a Kant, ora a Darwin ou Spencer,
os socialistas da Segunda Internacional reduziam o
marxismo a um imperativo ético ou ao seu oposto
complementar, uma inevitabilidade mecânica da
evolução econômica.

28
QUEM TEM MEDO DE MARX E DE SEUS AMIGOS?

Contra esse fatalismo, se opuseram Rosa A nova geração de marxistas ocidentais não surgiu
Luxemburgo, Vladimir Lenin, Antonio Gramsci e de preferências individuais por temas estéticos.
muitos outros. Era uma nova geração que provinha Theodor Adorno não teorizaria sobre as mudanças
de áreas economicamente marginais da Europa musicais sem falar na produção em massa de rádios.
continental. Enquanto o líder operário da Social- A crítica do progresso não teria sentido sem a
Democracia alemã, August Bebel, nasceu em 1840, ascensão do nazismo num país industrial como a
Eduard Bernstein, contra quem Rosa Luxemburgo Alemanha. Foi a fábrica fordista e a alienação do
debateria na polêmica sobre “Reforma ou revolução”, proletariado, também no lazer e na cultura de massa,
nasceu em 1850. O herdeiro ortodoxo dos escritos de que deslocaram a teoria marxista para a compreensão
Marx e Engels, Karl Kautsky, nasceu seis anos depois. de uma vida fragmentada e da sua recomposição sob
Lenin veio ao mundo em 1870, e Rosa no ano seguinte. uma falsa unidade pelo espetáculo.
Gramsci vinte anos depois. Josef Stalin e Leon Trotsky O desemprego, a terceirização e outras mudanças
nasceram em 1878 e 1879, respectivamente. no mercado de trabalho levaram os marxistas à
Trotsky, Lenin e Stalin eram da Social-Democracia análise da degradação do trabalho (Braverman), assim
russa, Rosa começara sua militância na Polônia e como a Revolução Cubana, as lutas anticoloniais na
Gramsci era da Sardenha. Eles foram a primeira África e na Ásia e a explosão de Maio de 1968
geração de marxistas do século 20. intensificaram os estudos de historiadores marxistas
Depois da derrota das revoluções europeias na sobre os protestos espontâneos das multidões de
Alemanha, com o assassinato de Rosa Luxemburgo e marginalizados. Ninguém abandonou o apelo à classe
Karl Liebknecht, e a derrota na Finlândia, Itália, Hungria, operária para favorecer manipulações. Foi a
Letônia e Polônia, a nova geração de marxistas mudou importância material da superestrutura que produziu
sua preocupação teórica. Esses se voltaram para os temas teorias marxistas da cultura. O marxismo jamais foi
culturais, a filosofia e a arte. Afastaram-se da militância cultural, econômico ou político. Ele simplesmente
em partidos e refugiaram-se em instituições acadêmicas. responde ao movimento real da história.
Separaram-se do movimento operário; e, por fim, Nas situações em que o marxismo não podia se
deixaram em segundo plano abordagens que ocupar apenas dos temas filosóficos, os revolucionários
caracterizaram a geração anterior. combinaram nação e classe, operariado e campesinato e,
Mas não é como se ali estivesse nascendo um com isso, geraram uma abordagem nova que envolveu o
“marxismo cultural”. Esse afastamento possuía estudo científico da guerra revolucionária (Mao
raízes políticas que transbordaram para a teoria Tsé-Tung e o general vietnamita Giap), interpretações
e não o reverso. inovadoras das classes sociais (Mao Tsé-Tung e o líder
Não é que Marx e Engels não tivessem preocupações guineense Amílcar Cabral), da questão indígena (o
com a arte. Trotsky escreveu Literatura e revolução peruano Mariátegui) e colonial (Caio Prado Júnior, no
(1923) e Lenin deixou seus Cadernos filosóficos (1930). Brasil, e o trotskista argentino Milcíades Peña).
Mas o foco da geração deles era a transformação Obviamente que se trata de predominâncias aqui. Mao
prática da sociedade através da conquista do poder Tsé-Tung legou obras filosóficas, por exemplo.
político. A maioria foi leitora do oficial prussiano A partir dos anos 1960, depois que o stalinismo
Clausewitz, que tratava, ainda que de passagem, entrou em crise, o movimento comunista internacional
questões militares enquanto seus objetos de estudo se dividiu entre a China e a União Soviética, diversas
eram abordados com recurso à economia e à história. filosofias se digladiaram na Europa Ocidental e até os
Gramsci tinha como preocupação central a hegemonia leitores da Escola de Frankfurt ou de Georg Lukács se
como um fenômeno que nasce na fábrica, ou seja, nas dedicaram a problemas bastante materiais.
relações de produção econômicas. Algo muito distante Guy Debord, o teórico da sociedade do espetáculo,
da distopia “gramscista” de seus críticos. tinha em alta conta a obra de Clausewitz e se

29
POR LINCOLN SECCO

preocupava claramente com uma revolução social


que abarcasse inclusive as artes e a vida cotidiana.
O filósofo francês Louis Althusser era militante do
Partido Comunista e se dedicou à interpretação
de O capital e dos “aparelhos ideológicos de Estado”.
Amílcar Cabral foi simultaneamente um líder
guerrilheiro, estudioso do imperialismo e teórico
da libertação do colonialismo. Fredric Jameson, ao
escrever sobre a lógica cultural do pós-modernismo,
baseou-se em experiências reais do mundo do
trabalho intelectual na época do capitalismo tardio,
numa explícita referência a Ernest Mandel, um
dirigente trotskista que escreveu seu principal livro
de economia logo depois de participar do Maio de
1968. O próprio historiador do “marxismo ocidental”,
Perry Anderson, publicou nos anos 1970 o estudo
marxista mais importante sobre o Estado Moderno,

O “marxismo” Linhagens do estado absolutista (1974).

não é uma teoria MATERIALIDADE DA CULTURA


exterior ao mundo Estudar uma corrente de pensamento interessa

e que o contempla
mais se ela teve alguma efetividade mensurável na
vida social. O número de edições do Manifesto

para expor os seus comunista na Rússia antes de 1917 ou da Bíblia no

erros num catálogo


período clássico do imperialismo são índices dessa
importância, mas isoladamente não são números

universal. Não é definidores de uma transformação cultural.

produto de uma
Nesse caso, a tiragem deve estar a serviço da história.
Por outro lado, a cultura, para os marxistas,

cabeça individual, mas não se define apenas como um conjunto de valores,

o autoconhecimento
preferências, hábitos, sentimentos e ideias
compartilhadas. Há uma organicidade e

que o movimento reciprocidade da economia e da cultura que as

real elabora sobre


tornam inseparáveis, exceto para fins analíticos.
Um grupo social toma consciência da contradição

si mesmo. entre as forças materiais da produção e as relações

O pensamento
de produção no campo das superestruturas.
Mas a forma não é a do conhecimento de uma

não espelha um imposição de uma esfera autônoma chamada

mundo exterior, mas


economia. Ao contrário: é uma exigência de
renovação cultural, se for realista e correspondente a

integra uma práxis um grupo social fundamental, que provoca aquela

revolucionária.
necessidade “econômica” como uma força consciente,
organizada, institucional. Se a consciência for apenas

30
QUEM TEM MEDO DE MARX E DE SEUS AMIGOS?

a crítica de grupos que não representam nenhuma A natureza bem-sucedida do romance policial
classe histórica, ela será arbitrária. sob a sociedade capitalista, para Mandel, não está no
As instituições são inseparáveis das ideias que as reflexo dos interesses burgueses, mas na capacidade
constituem, e essa é a visão do marxismo acerca da de criticá-los sem extrapolar os limites estruturais
materialidade das ideologias. Não há forma sem do capital. Poderíamos acrescentar que é uma
conteúdo e vice-versa. Por isso, a Sociedade Civil não literatura que exibe problemas sem verdadeiras
é a sede das ideologias, como o social liberal italiano saídas; em que os crimes não têm explicação nas
Norberto Bobbio afirmava. Estas nascem tanto na contradições sociais, mas nos indivíduos. Assim,
fábrica quanto nas cabeças de filósofos. O que as a solução dos crimes conduz quase sempre à
torna algo além de uma extravagância individual reconciliação com o mundo burguês.
é o seu sentido cultural, sua penetração nas massas. É por isso que toda crítica logo se transforma numa
Não se trata, portanto, de meros valores, mas da força mercadoria e seus impulsos negativos se integram a
material que emerge quando esses grupos se uma rebeldia aceitável. A própria Revolução de 1968
movimentam ao redor de ideias. pode ser incorporada pela produção de mercadorias,
As classes sociais são organizadas ideologicamente, quando líderes foram iconizados e práticas
mas essa organização é material. Nos limites de uma horizontais e rebeldes foram incorporadas pela
dada estrutura social e econômica, os grupos sociais propaganda e, depois, interiorizadas nas empresas.
lutam pelo poder ou para conservá-lo. Assim, criam a De maneira distorcida, é claro.
concepção de mundo adequada aos seus interesses. Ainda assim marxistas se aventuraram na escrita
A vitória e a manutenção do poder dependem de romances. Nos anos 1960, o comunista Per Wahlöo
também da difusão da ideologia. E essa difusão, por abandonou suas fracassadas tentativas de emplacar
sua vez, depende de instrumentos materiais (seja a livros políticos depois que se associou a sua
tipografia, o rádio ou a informática). Dependem, companheira Maj Sjöwall. Programaram e escreveram
em suma, de um suporte material no interior da dez romances policiais. A estreia foi Roseanna (1965)
superestrutura. Como analisar o processo de com a temática da violência contra a mulher, temática
massificação cultural de um país nos anos 1970 usada também pelo escritor sueco Stieg Larsson.
sem citar o número de televisores, a estrutura Mas o próprio marxismo não poderia se tornar
da propriedade, o oligopólio das emissoras? um objeto cultural mercantilizado? É claro que pode, e
Ou como estudar o século 21 sem observar o isso deve ser confrontado por vias marxistas. Decerto,
número de smartphones, os acessos a sites e blogs, muitas obras feitas para chocar a burguesia só abalam
os milhões de usuários de grupos de WhatsApp a moral vigente na primeira vez. Na segunda, são
ou o mundo subterrâneo da deep web? expostas em galerias de arte. Toda violação inofensiva
De diferentes maneiras, os autores marxistas da padronização da vida só é realizada por um
ofereceram os princípios para uma análise da cultura produto padronizado. Daí que o significado do ataque
como fenômeno reprodutível em escala industrial. a uma performance parece funcionar como uma velha
Isso não significa um abandono do materialismo técnica diversionista, ainda que atinja a liberdade
histórico e da organização dos trabalhadores, mas de expressão. O fato de seus executores serem
a necessidade de compreender a relação cultural inconscientes é algo perfeitamente cabível numa
no interior da reprodução material das estruturas guerra, já que os soldados jamais conhecem o lugar
da sociedade capitalista. Ernst Mandel era leitor de de seu pelotão na estratégia global.
romances policiais e, depois do reconhecimento No entanto, também se deve perguntar: por que
que seu livro O capitalismo tardio (1972) teve, acabou o marxismo ainda incomoda? Veja-se o que dizia
por escrever uma verdadeira história social daquele Mandel, em torno da tormenta de 1968 em seu livro
gênero: Delícias do crime. Os estudantes, os intelectuais e as lutas de classes:

31
POR LINCOLN SECCO

“Poderíamos comentar o papel dos livros de bolso […] falsas que permitiram a eleição de Bolsonaro em 2018.
na transformação da teoria revolucionária em objeto O marxismo cultural é a autodescrição dos seus
de consumo. Esta teoria adquire agora um valor de próprios criadores. A caricatura do pensamento do
troca […]. Mas o valor de uso desta mercadoria outro existe porque as teorias conspiratórias são
particular é difundir a teoria, […] incentivar a paixão basicamente fetichistas. Agarram-se a notícias falsas
anticapitalista”. e a indivíduos que personificariam uma conspiração.
Os chefes daqueles que combatem o suposto Assim, uma mulher não é uma pessoa, e sim a
marxismo cultural não são desprovidos de ideologia encarnação da ideologia de gênero. Além dos
e de projeto político e econômico. Não por acaso, poderosos meios de difusão do capitalismo
think tanks e veículos midiáticos propagam o mesmo informacional, não há novidade nenhuma aqui para
discurso de alerta à população. Eles sabem que a quem conhece a difusão dos falsos “Protocolos dos
disputa pela hegemonia não se reduz a uma noite de Sábios de Sião” e a “denúncia” do complô judaico-
autógrafos ou à inauguração de uma exposição de bolchevique.
arte conceitual (de resto importantes por si mesmas, Muito do que é apontado como exemplar do
é óbvio). Não hesitam em se aliar a procuradores, marxismo cultural não possui a mínima relação com
juízes, militares e milicianos para exercer coerção o pensamento marxista. Não estamos, sinto dizer,
sobre rebeldes e indesejados. Disputam e ganham numa realidade pós-moderna, sujeitos a grupos de
governos, e, quando necessário para produzir pânico poder divididos de forma infinitesimal num mundo
e garantir consentimento, perturbam artistas, pós-industrial. Nem a autorreferencialidade da arte, a
acadêmicos e ativistas com teorias bizarras e escrita intertextual, as sopas Campbell de Andy
contraperformances duvidosas. Warhol e o pastiche substituíram a luta pelo controle
Por que se teme tanto Marx? Ao descobrir o porquê, do Estado. Ao menos para um marxista, qualquer que
a leitora e o leitor podem identificar os sujeitos reais seja sua corrente.
que o temem. Afinal, o medo só poderá ser produzido É certo que se tornou mais complexa a dominação
e mobilizado por aqueles que não querem que o através de uma miríade de relações de poder
marxismo seja instrumento da emancipação de uma moleculares que se corporificam em instituições
outra classe de pessoas. disciplinares. Mas a crítica de uma moral
Cabe lembrar que a maioria dos focos da “guerra universalmente aceita sequer é típica de nosso tempo.
cultural” da nova direita não é propriamente o que Também houve muitas mudanças, mas nenhuma
Marx, Lenin ou Gramsci escreveram. Ficções como a ruptura com o modo de produção capitalista. A
de um suposto “Decálogo de Lenin” eram concebidas financeirização não aboliu a importância do valor no
antes das fake news virarem moda. Tampouco miram processo produtivo. Sim, a luta de classes não parece
as propostas reais que comunistas ou trabalhistas mais tão simples. Mas quando o foi?
fazem. Essa função é terceirizada para os políticos Gramsci criou outra categoria ao lado do proletário
profissionais, que frequentemente o fazem alegando a para dar conta de novas formas de dominação. Para
existência de uma conspiração. No entanto, a ele, o subalterno tem como locus da subordinação
influência de sua propaganda antimarxista é enorme. algo exterior ao processo produtivo, diferentemente
Quando algum incauto se aventura a redigir uma do operariado. Mas, como marxista que era, ele não
crítica ao suposto “gramscismo”, os resultados são abandonou a natureza econômica da subalternidade,
pífios. No entanto, a influência é desproporcional. apenas ampliou sua dimensão cultural. As diferentes
Não existe “gramscismo” em Gramsci, é óbvio. Nem demandas dos subalternizados outrora
marxismo cultural elaborado por qualquer marxista, marginalizadas pelos próprios marxistas têm forte
como já vimos aqui. Esses termos integram uma relação com o recorte de classe. O que alguns
operação de marketing tanto quanto as notícias sociólogos caracterizaram como as pautas de novos

32
QUEM TEM MEDO DE MARX E DE SEUS AMIGOS?

movimentos sociais, destinadas a superar em Por que se teme


relevância a pauta de classe, se demonstram
compatíveis com o desenvolvimento da análise e tanto Marx?
práxis marxista. Ao descobrir o
Não é de se espantar que muitas feministas se
situaram no campo do marxismo ou persistiram no porquê, a leitora
seu entorno. Angela Davis manteve-se vinculada ao e o leitor podem
Partido Comunista dos Estados Unidos; a teórica
alemã do “valor dissociado” Roswitha Scholz identificar os sujeitos
participou da leitura iconoclasta do marxismo junto reais que o temem.
ao grupo Krisis; e Silvia Federici construiu uma
análise econômica e social sobre um tema clássico de Afinal, o medo
Marx: a acumulação primitiva, agora sob a só poderá ser
perspectiva de suas vítimas, as bruxas e os povos
escravizados. produzido e
Há sim quem busque outras vias para a mobilizado por
emancipação ou ataque às “grandes narrativas
opressoras”, dentre as quais o marxismo seria mais aqueles que não
uma, intrinsecamente eurocêntrica, machista, racista querem que o
ou algo semelhante. Mas assim como sempre houve
lideranças operárias que encontraram subterfúgios marxismo seja
para aderir ao capitalismo, por que pessoas instrumento
submetidas a outras dimensões da opressão
capitalista não teriam espaço para também fazê-lo? da emancipação
Há dimensões inescapáveis da opressão que não de uma outra
podem ser atingidas por quem não as viveu.
E há a necessária etapa da apreensão conceitual e classe de
generalizante sem a qual qualquer diálogo, qualquer
organização e qualquer luta coletiva se tornam
pessoas.
impossíveis. A maioria dos líderes bolcheviques ou
socialistas revolucionários da Rússia nunca tinha
trabalhado numa fazenda ou numa fábrica, mas
liderou uma revolução social. Da mesma forma,
jamais poderiam tê-lo feito sem integrar partidos
de ampla participação das classes oprimidas.
Naquela fase de universalização das diversas lutas
contra a classe dominante, não se encontrou uma
força teórica e política melhor que o marxismo.
O marxismo põe a nu a barbárie de cada
monumento de cultura e o ócio de classe que cada
obra de arte pressupõe. Tudo o que se revela para
nós segundo sua ótica não pode se apresentar senão
mostrando atrás de si as origens sociais materiais
de sua produção.

33
O “marxismo” não é uma teoria exterior ao
mundo e que o contempla para expor os seus erros
num catálogo universal. Não é produto de uma
cabeça individual, mas o autoconhecimento que
o movimento real elabora sobre si mesmo.
O pensamento não espelha um mundo exterior,
mas integra uma práxis revolucionária.
O marxismo se nega a si mesmo como
mercadoria porque nos revela que tudo o que
conhecemos, em breve estará transformado.
Ou como o próprio Marx afirma em O capital,
a dialética “é um incômodo para a burguesia
porque não se deixa impressionar por nada”.
Razões não faltam para se temer tanto Karl
Marx como sua turma.

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Capital
cultural
Como aplicar seus
sentidos politicamente

35
CAPITAL CULTURAL
REDFLIX POR GABRIELLE NASCIMENTO

Os rumos
lucrativos
da injustiça

A 13ª Emenda escancara o


encarceramento aqui também

¶ O DOCUMENTÁRIO da cineasta estadunidense Ava


DuVernay, 13ª Emenda (2016), exibe diversas entrevis-
tas e análises com especialistas e militantes do movi-
mento negro que enfrentam cotidianamente as (in)
justiças criminais de seu país. O resultado é uma críti-
ca ao sistema penal contemporâneo e ao seu paralelo
histórico com o racismo nos Estados Unidos. Contu-
do, essa não é apenas uma história de dores. Passamos
por ciclos de resistência.
Enquanto o movimento negro luta e avança, o racismo
também se organiza e reorganiza. Para cada nova vitória
em que o movimento negro esfacelava uma sistemática
racista, surgia uma reação que procurava reestabelecer
explorados e exploradores. Esses sistemas, tais como a
escravidão, as leis de Jim Crow, a guetificação e o encar-
ceramento em massa da população negra1 se consolida-
ram na esteira do capitalismo moderno.
Apesar do Brasil não se caracterizar por políticas de
estado segregacionistas no modelo de apartheid, isso
também ocorre por aqui. Desde 1888, na sequência da 1 Em As Duas Faces do Gueto (2008)
tardia Abolição da Escravatura, a história da população Loïc Wacquant caracteriza a escravidão,
negra brasileira vem sendo a mesma: pobreza, subju- a Jim Crow, o gueto e o encarceramento
gação, prisões e mortes. Não à toa, dois anos depois da em massa como as quatro “instituições
peculiares” e relaciona as formas de
assinatura da Lei Áurea, foi promulgado o Código Penal
trabalho destinadas à população negra
de 1890 – o primeiro da República –, que criminalizava com a forma como a base econômica
práticas particularmente negras, como a capoeira. estava posta nas épocas analisadas.

36
Na espinha dorsal do documentário 13ª Emen- Em maio de 2019, no Amazonas, cerca de cinquen-
da, há uma linha do tempo que procura analisar o ta pessoas foram brutalmente assassinadas dentro de
crescimento do encarceramento nos Estados Uni- quatro unidades carcerárias diferentes, que curiosa-
dos ao longo dos anos. Era de se esperar que, depois mente estão sob a batuta da mesma empresa: a Uma-
de décadas de governos republicanos e uma mar- nizzare. Em 2017, no mesmo estado, outras cinquenta
cha crescente da indústria punitiva, a eleição do mortes ocorreram dentro de prisões privadas. E isso é
democrata Bill Clinton em 1993 representasse uma o que se pode contar. As consequências são familiares
interrupção nesse paradigma, ou que significasse, desesperados nas portas dos necrotérios, instituições
pelo menos, algum nível de regressão. Mas não. Des- omissas, aumento de repressão dentro e fora dos muros
cobrimos, na realidade, que durante essa década, o e, principalmente, a certeza de que a vida não vale mui-
tamanho da população encarcerada estaduniense to. Assim como nos Estados Unidos, relações entre as
praticamente dobrou. empresas do complexo industrial-prisional e políticos
Fenômeno parecido ocorreu no Brasil. Desde os “da bala” são consideradas profundamente amistosas e
anos 1990, o encarceramento vem crescendo no economicamente frutíferas.
país. Quando o Partido dos Trabalhadores (PT) assu- Enquanto isso, no estado de São Paulo, que possui
miu a presidência em 2002 com Lula, esse índice um terço da população carcerária do Brasil, o gover-
não caiu: entre os anos de 2000 e 2014 o encarce- nador João Doria já fez pública suas intenções de
ramento feminino, por exemplo, teve um aumento importar as políticas de privatização prisionais dos
de quase seiscentos por cento. A Política de Drogas Estados Unidos. Apresentado por Doria, o edital segue
de 2006, apesar de estabelecer penas mais brandas o modelo de cogestão de alguns dos presídios de Ama-
para usuários, importou as narrativas e a militari- zonas, Sergipe, Bahia, entre outros. Também caminha-
zação da Guerra às Drogas, que criminaliza e ceifa mos para importar, por meio do pacote anticrime do
comunidades inteiras sob a farsa do combate ao trá- atual Ministro da Justiça Sérgio Moro, medidas cada
fico. Bem sabemos que não é nas favelas e nos terri- vez mais punitivas, como os acordos do modelo plea
tórios periféricos que se estabelecem os escritórios bargain. O documentário de Ava DuVernay retrata esse
dos verdadeiros traficantes, capacitados para acio- modelo através da história de Kalief Browder. O puni-
nar helicópteros e transportar toneladas de pasta tivismo é um artefato ideológico poderoso lá e aqui:
base através de nossas fronteiras. Mas ainda assim, elege candidatos de direita e encarcera pessoas negras
foram nesses territórios periféricos que instala- por todos os cantos.
ram as Unidades de Polícia Pacificadora (UPP), como Importante dizer que as prisões não têm relação
aconteceu no Rio de Janeiro. Pacificadores que desa- alguma com o aumento ou a diminuição da crimina-
parecem com os Amarildos, arrastam as Cláudias lidade. Se trata de uma decisão estritamente política,
por avenidas e executam os DGS nas vielas. afinal “cada país tem o número de presos que deci-
E exatamente como o seletivo sistema penal esta- de politicamente ter”, como afirma o jurista argenti-
dunidense não pune aqueles que assassinam jovens no Eugenio Raúl Zaffaroni. E é no campo da política
negros desarmados, aqui, no país que vitima qua- que precisamos atuar para demarcar que as vidas
se 70 mil pessoas por ano, em sua maioria jovens das pessoas negras importam e não são passíveis de
negros, há dispositivos como os Autos de Resistên- serem compradas ou ceifadas em nome do interesse
cia disponíveis para justificar os incontáveis corpos do capital. Se no documentário de DuVernay encon-
que se empilham nas periferias em nome da lei e tramos uma imagem impactante da industrialização
da ordem. É um grande acerto que o documentário do encarceramento negro, é com isso em mente que
apresente o encarceramento em massa e a violência devemos considerar as falas de políticos e ideólogos
policial como projetos que se complementam, por- que professam que o Brasil deveria ser mais como os
que a maior consequência do cárcere é a morte. Estados Unidos.

37
CAPITAL CULTURAL
POR OUTRO LADO POR ALLENDE RENCK

Negritude
estelar

De Frantz Fanon a Kendrick Lamar,


a Arte Negra conecta questionamentos e conjura
uma constelação de resistências políticas.

¶ EM 1915, o cineasta estadunidense D. W. Griffith


lançou sua mais impactante obra cinematográfica:
O nascimento de uma nação. O filme foi aclamado
pela crítica por suas inovações tecnológicas e técni-
cas – na fotografia, nos planos, nas sequências e nos
movimentos de câmera, nos cortes e nas propostas
estéticas. E teve um efeito no modo corrente de fazer
cinema no princípio do século 20. Porém, havia um
detalhe. Os críticos que o aplaudiram tinham apenas
que ignorar convenientemente um único – e defini-
dor – aspecto: o seu inescrupuloso racismo, inves-
tido no avanço das ideias de supremacia branca da
época na sociedade estadunidense.
38
POR OUTRO LADO

Filmes que impactam o meio resgatada por Achille Mbembe em Negra, como forma de instituir,
social não são apenas filmes, mas seu Crítica da razão negra (2013) – ao mesmo tempo, comunicação e
catalisadores. O nascimento de uma de que o nome “negro” adviria “de resistência. O projeto escravagista
nação foi responsável por ressusci- um mecanismo mais de atribuição de supressão cultural ia além da
tar o grupo de ódio Ku Klux Klan do que de autodesignação”. Para tentativa de apagar a língua origi-
(KKK), nos Estados Unidos, e por Fanon, “negro” é “uma alcunha, a nal. Era também necessário promo-
inventar os rituais mais imageti- túnica com que alguém me enco- ver, por exemplo, a supressão reli-
camente fortes desse grupo racista, briu e sob a qual tentou me encer- giosa com o impedimento de culto.
como a cruz em chamas e os capu- rar” e entre esse nome imposto e o O confronto da Arte Negra parte da
zes brancos. corpo sobre o qual ele é imposto há resistência mista a essas tecnolo-
Os críticos que ignoraram o racis- “algo que permanecerá para sempre gias supremacistas.
mo latente do filme não agiram, de no âmbito da distância”. A proposta Dois exemplos chamam a aten-
forma alguma, em uma bolha. O da Arte Negra é justamente elabo- ção contra esse apagamento: o sam-
nascimento de uma nação foi lan- rar essa distância entre o corpo e a ba, no Brasil, que tem suas raízes
çado em uma época favorável a estrutura que o oprime. nos batuques e nos rituais religio-
pseudociências que advogavam sos vindos de África; e os negro spi-
grotescamente a favor da ideologia DE SAMBA E RESISTÊNCIA rituals, nos Estados Unidos, gênero
supremacista. Quatro anos antes, o A Arte Negra precisa ser compreen- musical formado como uma relei-
Congresso Universal das Raças foi dida no contexto do lugar social e tura da cultura imposta em relação
sediado em Londres. O evento reu- economicamente relegado ao cor- à cultura originária.
niu um grupo de pseudocientistas po negro, sobretudo, nos últimos O samba nasce no Brasil a par-
e de supremacistas brancos para séculos. O corpo negro, a partir tir de três elementos: 1) dos frag-
discutir uma distinção fundamen- das grandes navegações imperia- mentos recompostos da cultura e
tal entre os corpos humanos. Para listas das potências europeias, foi das religiões iorubá (isto é, o que
os presentes, existia uma inferiori- tornado mercadoria. Esse projeto podia ser resgatado através de um
dade biológica do negro em relação de controle reifica a subjetivida- diálogo entre as diferentes etnias
ao branco que exigia uma formula- de humana dos corpos vindos de e dialetos); 2) da necessidade de
ção conceitual de separação racial. África e também institui nesses comunhão dos corpos como uma
Já em 1915, ano de estreia de O nas- corpos uma supressão histórica. forma de comunicação pela arte; 3)
cimento de uma nação, foi lançada A mercantilização possibilita um e de uma proposta política de revo-
em Paris uma farinha de banana avanço no processo de eliminação lução. Esta última é uma afronta à
açucarada que perpetuou no imagi- do corpo. Não surpreende, então, a tentativa de “controle dos corpos
nário francês uma face caricatural perversa técnica de mistura étnica pela melancolia” perpetrada pelos
do negro – um rosto inventado por empreendida pelos escravagistas senhores de escravos. Há no samba
um pintor branco – dentro do signi- europeus: o projeto da escravização um tipo de afirmação da potência
ficante “y’a bon banania”. A existên- do povo negro se apoiava em um de ser feliz daqueles que se demora-
cia de um congresso, de uma orga- tipo de impossibilidade de comu- vam nas rodas como em uma festa.
nização grupal de um pensamento nicação desse povo entre si. Um Os negro spirituals partem de
que inferiorizasse o ser negro, e de dos recursos empregados consistia propostas semelhantes, ou seja,
uma construção visual massiva que em impedir que que povos de uma também pretendem ser um tipo de
perpetuasse essa inferioridade na mesma etnia, que falavam uma desvio das estruturas opressivas
imagem levam água para o moinho mesma língua, ficassem juntos. instauradas pelos brancos, tam-
da afirmação do psiquiatra e teóri- É justamente dentro dessa lógi- bém funcionam como culto, um
co marxista Frantz Fanon – depois ca que primeiro acontece uma Arte tipo de relação com o divino, e tam-

40
Não é por acaso que Fanon inicia
seu Pele negra, máscaras brancas
citando, das teses de Karl Marx
sobre Feuerbach, a de número
onze: “o problema não é mais
conhecer o mundo, mas
transformá-lo” ou, dito de outra
forma, para finalizar o livro:
“o verdadeiro salto consiste em
introduzir a invenção na existência”.

bém afirmam uma possibilidade tência política desses corpos. Não COMPLEXO ARTE NEGRA-
de ser feliz em liberdade. Existe, no surpreende, portanto, que ambas POLÍTICA NEGRA
entanto, entre o samba e os negro manifestações artísticas tenham Não foi apenas a Arte Negra que
spirituals uma diferença marcan- funcionado como modo de auxi- percebeu a potência artística da
te que parte do contexto regional liar na fuga dos negros escraviza- ancestralidade africana. Em 1915,
da escravização no continente dos. Há relatos de que os spirituals coincidindo com o lançamento do
americano. Na América do Norte, davam direções para o negro que filme de Griffith nos Estados Uni-
a evangelização cristã dos povos fugisse, enquanto as rodas de sam- dos, o dadaísta alemão Carl Eins-
de África foi de tal forma violenta, ba, por serem consideradas “peri- tein publicou o seu Negerplastik.
que uma tentativa de resgate mes- gosas” aos olhos do senhor escra- Trata-se de um livro que pela pri-
mo que fragmentária da cultura vagista, funcionavam como uma meira vez reivindicava o estatuto
iorubá se colocou como um enor- distração durante a fuga. pleno de obra de arte das propostas
me desafio. Dessa forma, os negro Nas Américas, a Arte Negra acon- estéticas do continente africano e
spirituals são resultado da apro- tece como uma forma de se colocar buscava se desviar da percepção
priação do cristianismo pelo negro, em confronto contra a colonização etnocêntrica europeia. Einstein,
que ressignifica a religião cristã dos corpos negros ao mesmo tem- nesse volume, propõe uma releitura
a partir da perspectiva do povo po que se propõe a manter algum da arte europeia, uma releitura que
escravizado. tipo de relação sagrada com a passe pela força da arte africana. É
Embora partam de religiosida- ancestralidade. nesse sentido que se movimentam
des diferentes, o samba e os spi- É um levante rebelde contra a as vanguardas estéticas como o
rituals possibilitam uma comu- dominação e suas tecnologias – dadaísmo e o surrealismo, naquilo
nhão religiosa dos corpos negros muitas delas operantes até hoje e que o crítico de arte Hal Foster cha-
escravizados, ao mesmo tempo cada vez mais imbricadas na estru- mou, em O retorno do real (1996), de
que instauram um esforço de resis- tura capitalista. “o artista como etnógrafo”.

41
NEGRITUDE ESTELAR

A luta pelos Direitos Civis dos


negros não teria conseguido se sus-
tentar sem o intenso apoio da clas-
se artística negra. Artistas como
Nina Simone e Billie Holiday, com
suas canções de resistência políti-
ca, afirmavam o caráter humano
do corpo preto. As obras do escritor
James Baldwin propunham uma
perspectiva na qual o sistema capi-
talista predava com a pauperização
do corpo negro, de forma a esta-
belecer um conjunto infindável
de miséria nos bairros periféricos
estadunidenses. Pinturas de artis-
tas plásticos como David Ham-
mons traziam um deslocamento
perspectivo do país como em sua
O movimento em direção à força ria de 1935, o poeta Aimé Césaire African American Flag, de 1990.
primitiva africana funcionou nas funda o movimento Négritude; Os movimentos artísticos orga-
vanguardas históricas em chave no Brasil, em 1944, o dramaturgo nizados, assim como o movimen-
dupla. Por um lado, compreendeu- Abdias do Nascimento começa as to pelos Direitos Civis, se mobi-
-se a potência revolucionária da atividades do Teatro Experimen- lizaram institucionalmente com
produção artística do negro. Wal- tal do Negro; nos Estados Unidos, algum sucesso, tomando para si a
ter Benjamin afirmou em seu texto a partir da década de 1960, o poeta ideia de que o melhor a se fazer era
sobre o surrealismo, que apenas os Amiri Baraka funda o BAM – Black criar uma unidade da negritude.
surrealistas haviam compreendi- Arts Movement; e assim por dian- No entanto, ao perceber a natu-
do o Manifesto comunista (1848) te. Todos os movimentos desse reza estrutural da opressão racial,
de forma integral; os surrealistas, período histórico funcionavam o apelo à instituição não foi sufi-
por sua vez, tomaram justamente dentro de uma lógica semelhante ciente – era necessário um novo
a África como ponto de referência de afirmação da identidade negra deslocamento.
potencial para sua proposta políti- e da reivindicação da potência
co-artística. Porém, por outro lado, africana como forma de se colo- “UM CORPO QUE QUESTIONA”
a valorização no movimento tam- car politicamente contra os pro- Pode-se dizer que a Arte Negra
bém perpetuou o mote histórico de jetos de colonização. Deles, o mais contemporânea foi engatilhada
que a potência negra só se realiza sintomático foi o de Baraka, pois no evento da obra de Jean-Michel
quando afirmada por um branco. andava lado a lado com o movi- Basquiat. A proposta artística de
É contra esse mote que, a partir mento político em favor da negri- Basquiat, seu neoexpressionis-
dos anos 1930, os movimentos de tude que acabou mais conhecido mo com motivos da urbanidade
Arte Negra começam a se estabe- como Movimento pelos Direitos negra, de fato, mobiliza o que tanto
lecer ao redor do mundo. Na Nigé- Civis nos Estados Unidos. Fanon quando Mbembe compreen-

43
POR OUTRO LADO

dem como imperativo. É um tra- fundamental entre todos os indiví- canção de seu disco To pimp a
balho em direção à compreensão duos. A partir dessa diferença fun- butterfly (2015) que repetia a frase
da humanidade do ser-negro, uma damental, da impossibilidade de “Every Nigger Is a Star”, todo pre-
proposta de tensão na distância unidade, a própria proposta este- to é uma estrela. Entender a Arte
entre o corpo e a alcunha “negro”. reotípica, o negro y’a bon banania, Negra hoje é entender que ela fun-
Ao fim de Pele negra, máscaras é desativada. É disso que se trata ciona como uma constelação polí-
brancas (1952), Fanon fala que “se a Arte Negra contemporânea: da tica de resistência, uma proposta
o branco contesta minha humani- compreensão da singularidade e da de mobilização comum contra o
dade, eu mostrarei, fazendo pesar proposição de um laço (vide Lacan), opressor.
sobre sua vida todo o meu peso de de uma comunidade, de uma cons- Não é por acaso que Fanon inicia
homem, que não sou esse y’a bon telação dos corpos negros. seu Pele negra, máscaras brancas
banania que ele insiste em imagi- Achille Mbembe expõe esse ponto citando, das teses de Karl Marx
nar”. Para o autor marxista, cabia em Crítica da razão negra, num tre- sobre Feuerbach, a de núme-
ao negro na estrutura racista um cho intitulado “Democracia e poéti- ro onze: “o problema não é mais
único direito: “exigir do outro um ca da raça”, nos dizendo que “o que conhecer o mundo, mas trans-
comportamento humano”. precisamos imaginar é uma política formá-lo” ou, dito de outra forma,
O que Basquiat faz, ao inserir o do humano que seja, fundamental- para finalizar o livro: “o verdadei-
negro como personagem princi- mente, uma política do semelhan- ro salto consiste em introduzir a
pal de suas obras, expostas a um te, mas num contexto em que, cabe invenção na existência”.
mundo elitista e branco, nada mais admitir, o que partilhamos logo de A Arte Negra, por toda a sua his-
é do que a inserção da humanida- início são as diferenças”. tória, funciona como o desejo cor-
de na negritude. Basquiat afirma a Em 2015, Kendrick Lamar esco- poral de Fanon: é um constante
singularidade humana, a diferença lheu um sample para iniciar uma questionamento.

44
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às experiências do conhecimento. Uma
expedição disposta a explorar os confins
do Universo e os desvãos da alma. Uma
rede neural pronta para as sinapses
que só a leitura é capaz de estimular.
POR NICOLAS ALLEN E MARTÍN CORTÉS ILUSTRAÇÃO MARCELO FIEDLER

Fascismos:
velhos
e novos Entrevista com o
historiador italiano
ENZO TRAVERSO
sobre o termo que
está na boca do povo

¶ França, Itália, Hungria, Polônia, Áustria, até mesmo


alguns que antes pareciam à salvo, como Espanha e Ale-
manha – a lista de países sob a sombra da extrema direita
está crescendo. O triunfo de Bolsonaro no Brasil e a presi-
dência de Trump nos Estados Unidos abriram um debate
sobre a escala planetária daquilo que antes parecia apenas
um fenômeno europeu. ¶ O debate inevitavelmente retor-
na à questão do fascismo. Como podemos compreender
movimentos de extrema direita que evocam sua memória,
mas que emergem num contexto histórico radicalmente
distinto, usando uma linguagem diferente do discurso
sobre “sangue e solo” do século 20?

46
ENZO TRAVERSO

Em seu livro The new faces of fascism [As novas faces do fascismo], o historiador
Enzo Traverso mira nesse alvo em movimento. O resultado é o conceito de “pós-fas-
cismo”, a tentativa de Traverso de formular uma resposta que dê conta das continui-
dades e descontinuidades históricas entre o fascismo clássico e uma direita radical
que guarda uma forte familiaridade com a do passado. Nicolas Allen e Martín Cor-
tés conversaram com o historiador para discutir a tentativa de reinvenção da direita
radical – e como a esquerda também pode se reinventar e antecipar seus inimigos.
NICOLAS ALLEN E MARTÍN CORTÉS: Os debates contemporâneos sobre fascismo e

populismo muitas vezes ficam atolados no ambiente da semântica. Em The


new faces of fascism, você adota uma abordagem diferente. Você está mais
preocupado em como essas palavras são usadas no discurso público e no
que elas podem revelar sobre os “usos públicos da História”. Pode falar um
pouco sobre a inspiração geral para o livro?
ENZO TRAVERSO: As interpretações do passado não podem ser dissociadas do seu uso

público no presente. Me interesso em conceituar o fascismo, mas esse esforço não


é apenas historiográfico e não é politicamente “neutro”. Por exemplo, eu faço distin-
ção entre fascismo e populismo: o primeiro significa a destruição da democracia; o
segundo é um estilo político que pode adotar direções diferentes, às vezes opostas,
mas que geralmente está localizado no interior de uma estrutura democrática.
Não tenho certeza sobre como analisar a noção de fascismo na atualidade, muitas
vezes se abusa dela. Normalmente, a ameaça do retorno do fascismo tem sido uma
preocupação da esquerda. Hoje, ela tem se transformado num refrão das elites que
estão sob a ameaça do populismo de direita e do pós-fascismo (pense em Madeleine
Albright e Robert Kagan, nos Estados Unidos, ou em Matteo Renzi, na Itália).
O tipo de frente única “antifascista” que as elites tradicionais propõem, no
entanto, esconde sua própria responsabilidade na criação das condições que per-
mitiram que a nova direita radical emergisse e se espalhasse, da Europa Oriental à
Europa Ocidental, dos Estados Unidos ao Brasil.
A inspiração geral para o meu livro está em uma pergunta: o que significa “fascis-
mo” no século 21? Devemos considerar o surgimento da nova direita em escala
global como um retorno ao fascismo clássico dos anos 1930 ou, ao contrário, deve-
mos tomá-lo como um fenômeno completamente novo? Como defini-lo? Como
identificar seus contrastes?
Com base no título, pode-se pensar que o livro é sobre “neofascismo”. Em
vez disso, você afirma que a deriva à direita na política europeia é um fenô-
meno “pós-fascista”, ligado ao fascismo clássico, mas também distante
dele. Pode explicar brevemente por que essa diferença é importante?
O neofascismo – os movimentos que se dizem afiliados ao fascismo clássico – é um
fenômeno marginal. Uma das chaves para o sucesso da nova direita radical é a
representação de si mesma como algo novo: ou eles não possuem origens fascistas
(como Trump ou Salvini), ou romperam de maneira significativa com seu próprio
passado (Marine Le Pen, que baniu seu pai da Frente Nacional).
A nova direita é nacionalista, racista e xenofóbica. Na maioria dos países da
Europa Ocidental, pelo menos naqueles em que a direita radical está no poder ou se

48
FASCISMOS: VELHOS E NOVOS

tornou significativamente mais forte, ela adota uma pria Comissão Europeia. A UE tornou-se uma ferramen-
retórica democrática e republicana. Ela mudou sua ta do capitalismo financeiro, que impôs suas regras a
linguagem, sua ideologia e seu estilo. todos os governos-membros por meio de uma estrutura
Em outras palavras, ela abandonou seus velhos legal compulsória, feita de um sistema complexo de leis,
hábitos fascistas, mas ainda não se tornou uma coisa às vezes inscritas nas constituições.
completamente diferente, ainda não é um componen- A realização mais espetacular das elites neoliberais foi
te normal de nossos sistemas políticos. a transformação da sua própria falência social – em 2008,
Por um lado, a nova extrema direita não é mais fas- foram salvas pelos Estados – numa crise financeira dos
cista; por outro, não podemos defini-la sem compará- próprios Estados, que supostamente teriam gastado
-la ao fascismo. A nova direita é uma coisa híbrida que dinheiro além de suas possibilidades e que deveriam
pode retornar ao fascismo ou que pode se transformar agora se transformar em instituições rentáveis e compe-
numa nova forma de democracia populista, conserva- titivas. Depois de dois presidentes da Comissão Euro-
dora e autoritária. O conceito de pós-fascismo tenta peia como José Manuel Barroso (atual conselheiro do
capturar isso. Goldman Sachs) e Jean-Claude Juncker (ex-chefe de um
É impossível prever a sua evolução. Nesse ponto, a paraíso fiscal como Luxemburgo); depois da crise grega
comparação com o período do entreguerras do século 20 e de dez anos de políticas de austeridade numa escala
é importante: em ambos os casos, há uma falta de ordem continental, a ascensão de líderes populistas de direita
internacional. O caos depois da Grande Guerra foi o como Matteo Salvini e Viktor Orbán não tem nada de
resultado do colapso do chamado “Concerto Europeu” – surpreendente: “O sono da razão engendra monstros”.
o liberalismo clássico do século 19 – e o de hoje, uma Não podemos lutar de maneira efetiva contra o pós-
consequência do fim da Guerra Fria. O fascismo e o pós- -fascismo defendendo a UE . É mudando a UE que pode-
-fascismo nasceram dessa situação caótica e flutuante. mos derrotar o nacionalismo e o populismo de direita.
Você oferece a Frente Nacional francesa Grande parte da sua análise está centrada
como o exemplo típico do pós-fascismo. A na França. Lá, quase parece que na verdade a
ascensão da Vox na Espanha, ou de Salvi- nova extrema direita seria melhor compreen-
ni na Itália, tem te encorajado a adicionar dida como um retorno do reprimido: que a
nuances a quaisquer aspectos da definição integração da Frente Nacional ao status quo
de trabalho básica de pós-fascismo ou você é um processo de explicitação da história
tem visto esses movimentos como uma con- autoritária e colonial na raiz da Quinta Repú-
firmação do seu esboço conceitual geral? blica. Isso está correto? Se for o caso, é pos-
O sucesso da extrema direita na França, Itália, Hungria, sível estender esse raciocínio a outros países
Áustria, Polônia e, mais recentemente, na Espanha e na enfrentando tendências de extrema direita?
Alemanha – dois países que eram considerados exceções Na Europa, uma onda xenofóbica e racista direcionada
– reforça uma tendência geral. A Frente Nacional francesa contra imigrantes asiáticos e africanos inevitavelmente
foi uma precursora. Obviamente, isso abre uma questão possui um sabor neocolonial – os imigrantes e refugia-
dramática sobre o futuro da União Europeia. Não acredi- dos muçulmanos, que são seus alvos, vêm de antigas
to que a UE possa sobreviver se esses movimentos pós- colônias europeias. Este é um “retorno do reprimido”
-fascistas nos países da Europa Ocidental e Central forem que revela de maneira impressionante a persistência de
vitoriosos nas próximas eleições europeias. Provavel- um inconsciente colonial europeu. Mas a velha retórica
mente ela não desapareceria da noite para o dia, mas o colonial e racista foi abandonada.
colapso da UE se tornaria inevitável no médio prazo. A Frente Nacional não é mais um movimento de nos-
A ascensão desses movimentos reacionários e nacio- tálgicos da Argélia Francesa, agora ela se apresenta
nalistas “eurofóbicos”, no entanto, é um produto das como uma defensora da identidade nacional francesa,
políticas implementadas durante vinte anos pela pró- que estaria ameaçada pela globalização, pela imigração

49
ENZO TRAVERSO

em massa e pelo fundamentalismo islâmico. Essa pos- desigualdades sociais explodiram em escala global e a
tura neocolonial pode incluir hábitos republicanos e democracia começou a ser esvaziada de seu conteúdo.
“progressistas”: por um lado, desejam preservar as raí- O fascismo certamente possui um caráter “trans-
zes cristãs da França e da Europa contra a “invasão” -histórico” – basta pensar nas ditaduras militares na
islâmica; por outro lado, pretendem defender os direi- América Latina nos anos 1960 e 1970 – e não pode ser
tos humanos (às vezes até de mulheres e gays) contra o desconectado do capitalismo, que era uma de suas
obscurantismo islâmico. premissas. No entanto, encarar o fascismo como um
Esses argumentos são bem populares na mídia france- resultado da crise global do capitalismo não significa
sa, para além das fileiras da Frente Nacional: muitos considerá-lo como seu resultado inevitável.
intelectuais públicos, que não querem ser confundidos Nos Estados Unidos, o resultado da crise do capitalis-
com Marine Le Pen, têm se transformado nos seus alia- mo não foi o fascismo, foi o New Deal. O fascismo per-
dos mais eficientes, como Alain Finkielkraut, que recen- tence a uma época histórica – o século 20 – na qual ele
temente se juntou à Academia Francesa. Depois dos ata- destruiu a democracia. Hoje, o pós-fascismo perdeu a
ques terroristas de 2015, François Hollande e o seu dimensão subversiva de seus ancestrais: não pretende
primeiro ministro Manuel Valls adotaram políticas suprimir o parlamentarismo ou os direitos individuais;
sugeridas pela Frente Nacional: estado de exceção, toque em vez disso, tenta destruir a democracia por dentro.
de recolher, expulsão em massa de imigrantes sem docu- Você escreve sobre a atual “quebra do tabu” em
mentos. Eles até tentaram adotar o princípio da privação torno de afirmações abertas de identidades
da cidadania para terroristas com dupla nacionalidade políticas fascistas ou de ultradireita. Você reco-
(ou seja, cidadãos franceses de origem norte-africana). nhece que a extrema direita europeia alcan-
Você dá algum crédito a termos como çou alguma legitimidade ao preencher o vácuo
“microfascismo” ou outros conceitos que deixado pelos partidos social-democratas em
veem o fascismo como uma dinâmica trans- recuo, mas parece que você está enfatizando
-histórica dentro do capitalismo? um ponto mais profundo, que toca na ideia do
“Microfascismo” parece uma definição inadequada, que você chama de um “regime de historicida-
uma vez que estamos diante de um fenômeno global. de”. Pode elaborar sobre a conexão que você
Como uma democracia autêntica exige igualdade social, traça entre nossas “democracias amnésicas” e
podemos dizer que, especialmente na era neoliberal, o a ascensão da extrema direita?
capitalismo consiste no “desmonte” da democracia – O pós-fascismo é um fenômeno global que não possui
como Wendy Brown explicou tão bem. Essa é uma ten- características monolíticas ou mesmo homogêneas.
dência geral do próprio capitalismo, não uma de suas Seu coquetel explosivo de nacionalismo, xenofobia,
patologias ou uma de suas formas degeneradas. racismo, liderança carismática, “identitarismo” reacio-
Desde a primeira metade do século 19, um pensador nário e políticas regressivas antiglobalização pode
liberal clássico como Tocqueville compreendia que o assumir diferentes formas.
desenvolvimento do capitalismo ameaçava o que ele Por exemplo, a forma radical de neoliberalismo
considerava a “afinidade eletiva” entre a sociedade de endossada por Bolsonaro é desconhecida na Europa,
mercado e a democracia. Essa visão de uma corres- onde o pós-fascismo é alimentado pela raiva e pelo des-
pondência entre capitalismo e democracia tornou-se contentamento com as políticas neoliberais da UE. Des-
um mito na segunda metade do século 20, na era do se ponto de vista, me parece que uma premissa funda-
Estado de Bem-Estar Social. mental para o surgimento do pós-fascismo reside na
De fato, essa “humanização” do capitalismo foi uma falta de uma alternativa de esquerda ao neoliberalismo.
consequência da Revolução de Outubro. Após o colap- Tanto o comunismo quanto a social-democracia, os
so do socialismo real e o fim da descolonização, o modelos hegemônicos da esquerda no século 20, fra-
capitalismo redescobriu sua natureza “selvagem”. As cassaram: o socialismo real entrou em colapso, parali-

50
FASCISMOS: VELHOS E NOVOS

A esquerda
ficou “órfã”:
ela não pode
sado por suas próprias contradições, e a social-democracia – a ferramenta para a
humanização do capitalismo durante a Guerra Fria – esgotou sua função histórica

reivindicar quando o capitalismo se tornou neoliberal. O socialismo precisa ser reinventado.

e nem
Porém, na competição entre a esquerda e a direita para se reinventar, o pós-fas-
cismo está um passo à frente. Mas diferentemente de seus ancestrais, que foram

esquecer o apoiados pelas classes dominantes da Europa continental nos anos 1930, o pós-

passado –
-fascismo ainda não se tornou a principal opção das elites neoliberais. Ele pode-
ria se tornar a principal opção após uma crise geral do capitalismo ou um súbito

ela precisa colapso da UE . O medo do bolchevismo, a principal fonte do fascismo nos anos

superá-lo.
entre as duas guerras mundiais, não existe mais.
No meu livro, falo de um “regime de historicidade” neoliberal cujos horizontes são
limitados pelo presente. Essa é uma dificuldade tanto para os movimentos da direita
quanto para os da esquerda. O pós-fascismo não possui o horizonte utópico de seus
ancestrais: ele não tenta conquistar a imaginação coletiva com o mito de um “novo
homem”, o “Reich milenar” e uma nova civilização. Ao invés disso, a lógica do pós-fas-
cismo é a do “pessimismo cultural”: a defesa de valores tradicionais e de identidades
nacionais “ameaçadas”; reivindicações pela soberania nacional contra a globalização
e a busca de um bode expiatório nos imigrantes, refugiados e muçulmanos.
O livro está preocupado principalmente com a Europa. Mesmo suas bre-
ves discussões sobre a política estadunidense são principalmente para
refutar a ideia de que Trump poderia ser compreendido sob a lente do
fascismo. Você vê alguma aplicabilidade mais ampla para o “regime de
historicidade” geral que você descreve? A vitória de Bolsonaro no Brasil
não nos convida a considerar a escala global do fenômeno pós-fascista?
Como muitos observadores apontaram, Trump exibe características tipicamente
fascistas: liderança autoritária e carismática; ódio à democracia; desprezo pela
lei; exibições de força; desdém pelos direitos humanos; racismo, misoginia,
homofobia abertos – mas não existe um movimento fascista por trás dele. Ele foi
eleito como o candidato do Partido Republicano, que é um pilar do establishment
político estadunidense. Essa situação paradoxal não pode se tornar permanente
sem colocar em questão a estrutura democrática dos Estados Unidos.
Um dilema semelhante, de uma maneira ainda mais dramática e impressionan-
te, está em jogo no Brasil após a eleição de Bolsonaro. Ele é mais radical do que
seus colegas estadunidenses ou europeus: Marine Le Pen rompeu com o antisse-
mitismo de seu pai e adotou uma retórica democrática, mas Bolsonaro é um apo-
logista da tortura e da ditadura militar. Enquanto Marine Le Pen e Salvini desejam
restabelecer políticas protecionistas, Bolsonaro é um fanático neoliberal.
A Petrobras, o pilar do capitalismo brasileiro, não o apoia. Como muitos ana-
listas brasileiros têm apontado, por trás de Bolsonaro existem três poderosas
forças conservadoras: balas, bois, e Bíblia – militares, latifundiários e o funda-
mentalismo evangélico.
Em outras palavras, um verdadeiro movimento fascista clássico combi-
naria as duas coisas que faltam a Trump e a Bolsonaro: a mobilização de
massa e o apoio unificado das elites. Isso está correto?

51
ENZO TRAVERSO

Sim, acredito que essa é uma diferença fundamental que aspectos utilizáveis desse legado, a esquerda
os distingue do fascismo clássico, mesmo que as classes global permanecerá sem rumo. Quais seriam
dominantes possam acomodar a ambos perfeitamente, esses aspectos utilizáveis do legado comunista?
em especial na ausência de qualquer alternativa efetiva. O Occupy Wall Street nos Estados Unidos e os Indigna-
Nos países da UE , no entanto, essa opção não está na dos na Espanha expressaram o desejo de uma alternati-
agenda. Os movimentos de massa militarizados do fas- va, assim como o Syriza, na Grécia, antes de sua virada
cismo clássico foram uma consequência da brutalização política no verão de 2015. Hoje, Bernie Sanders, Jeremy
da política produzida pela Grande Guerra. Hoje, isso tem Corbyn e o Podemos provam que a esquerda está à pro-
ocorrido no Iraque, na Líbia, na Síria e no Iêmen, mas não cura de novas ideias, novos caminhos e novas esperan-
nos países da UE, nos Estados Unidos ou no Brasil. É por ças. Sanders incorpora uma mudança na história da
isso que o precursor de Trump e Bolsonaro não é nem esquerda estadunidense, depois do New Deal na década
Mussolini nem Hitler, mas Berlusconi. Uma nova crise de 1930 e da Nova Esquerda na década de 1960. Ele dá
global, no entanto, poderia mudar o perfil da extrema uma nova legitimidade à ideia do socialismo num país
direita em muitos países. onde ele nunca foi hegemônico. No Reino Unido e na
Uma das seções mais interessantes do seu Espanha, Corbyn e o Podemos simbolizam uma ruptura
novo livro apresenta uma discussão sobre a radical com a longa sequência do social-liberalismo.
escola europeia de historiadores “antifascis- Essas experiências são passos rumo à invenção de
tas” e sua revisão da História, que se supõe um novo modelo para uma esquerda global. Os para-
“politicamente neutra”. Por que você os acha digmas antigos fracassaram, mas ainda não foram
tão perigosos e por que seria essencial rea- substituídos. Um novo modelo deve combinar uma
firmar a importância de uma historiografia interpretação crítica do mundo e um projeto para sua
antifascista? transformação revolucionária, como Marx sugeriu em
A linha divisória entre o fascismo e a democracia é sua famosa Tese Onze.
moral e política. Na Europa continental e, em anos mais O comunismo incorporou essa combinação e estabe-
recentes, na América Latina, a democracia nasceu da leceu o horizonte utópico para o século 20. A minha úni-
resistência e da luta antifascista. Onde quer que essas ca certeza é que uma esquerda nova e alternativa para o
lutas tenham trazido a democracia, sua versão “anti-an- século 21 será anticapitalista, mas não sei se ela chama-
tifascista” seria apenas frágil, amnésica e infiel à sua rá a si mesma de “comunista”. Ela provavelmente inven-
própria história. tará novos conceitos e imagens – como o socialismo e o
A esquerda precisa lembrar desse elo genético entre o comunismo fizeram durante os últimos dois séculos.
antifascismo e a democracia. A democracia não pode Mas uma nova esquerda global não será inventada à
ser reduzida a um dispositivo jurídico e político, às partir de uma tabula rasa – dizer que ocorreu uma rup-
“regras do jogo”; também não pode ser vista como um tura histórica com modelos passados não significa que
simples corolário da sociedade de mercado. A democra- uma esquerda global não precisaria de memória e de
cia é uma conquista histórica de revoluções políticas e uma consciência histórica.
da luta antifascista. Quebrar ou negar esse elo histórico Uma compreensão crítica das derrotas do passado é
é a maneira mais direta de “desfazer o demos” (“povo”, inevitável. O que ajudou a esquerda a superar suas der-
em grego antigo: δημοκρατία, ou dēmokratía). rotas, desde a Comuna de Paris até o golpe chileno de
Você descreveu os recentes “movimentos das 1973, foi a convicção de que o futuro pertencia ao socia-
praças” como o Occupy Wall Street e os Indig- lismo, e que mesmo os fracassos mais trágicos seriam
nados espanhóis como uma tentativa de inven- apenas batalhas perdidas nesse caminho. Essa crença
tar um “novo comunismo”. Ao mesmo tempo, em um objetivo histórico estava carregada de uma
você parece sugerir que, sem revisitar critica- dimensão teleológica, mas também dava à esquerda
mente o “velho comunismo” e descobrir alguns uma força extraordinária, que hoje não existe mais.

52
53
ENZO TRAVERSO

Você parece cético quanto ao uso político do populismo pela esquerda. Como é
uma palavra frequentemente usada com objetivos contraditórios – para agru-
par fenômenos díspares como a França Insubmissa e a Frente Nacional – você
sugere que “populismo” acaba borrando as fronteiras entre esquerda e direita.
Que certos intelectuais e partidos políticos de esquerda tenham adotado o rótu-
lo de “populismo de esquerda”, tentando traçar um caminho entre “a praça” e as
“urnas”, isso parece não entrar nas suas considerações. Você acha que existe
algum lugar para um populismo de esquerda na luta contra o pós-fascismo?
Na minha visão, o populismo é um estilo político que pode ser compartilhado por
líderes de orientações diferentes – e até mesmo opostas – tanto à direita quanto à
esquerda do espectro político. Mas um estilo e uma retórica em que a virtude seria
incorporada pelo “povo”, em oposição às elites corruptas, isso simplesmente define
a forma, não o conteúdo de uma força política. Na América Latina, o populismo de
esquerda usava a demagogia e muitas vezes assumia características autoritárias,
mas seu objetivo era incluir as classes mais baixas no sistema social e político. Na
Europa Ocidental, o populismo de direita é xenofóbico, racista e reivindica políti-
cas de exclusão.
Como enfatizou Marco D’Eramo, na maioria dos casos, a estigmatização do
“populismo” revela um desprezo aristocrático e elitista pelo “povo”. Se “populismo”
significa que Corbyn, Sanders e o Podemos são intercambiáveis com Salvini,
Orbán, Trump e Bolsonaro, então é um conceito completamente inútil ou até mes-
mo perigoso.
Sei que alguns pensadores radicais veem o populismo como uma alternativa a
uma clivagem supostamente obsoleta entre esquerda e direita, e muitas vezes eles
apresentam argumentos valiosos nesse sentido. Sob certas circunstâncias, esse
uso do populismo pode funcionar, mas em um contexto global de crescentes
movimentos pós-fascistas, isso traz o risco de gerar mal-entendidos perigosos.
Para encerrar, gostaríamos de perguntar sobre a recente controvérsia em tor-
no do chamado “argumento de esquerda por fronteiras fechadas”, que tem
levantado vários questionamentos sobre soberania e sobre seu uso político
como um conceito para a esquerda. Você tem alguma opinião sobre o assunto?
Reivindicar “fronteiras fechadas” na era dos “estados murados” e das fronteiras
militarizadas contra imigrantes e refugiados parece extremamente perigoso para
mim. Em última análise, isso legitima a xenofobia, defesas reacionárias da “identi-
dade nacional” e um retorno à soberania nacional – o refrão do pós-fascismo. Pen-
sar que a globalização capitalista poderia ser enfrentada pelo restabelecimento
das fronteiras nacionais é uma ideia regressiva, na medida em que todas as ques-
tões cruciais do século 21 exigem uma solução global – desde a ecologia até as
desigualdades sociais e as transferências demográficas.
Desde suas origens, o internacionalismo pertence à esquerda, e eu não acho que
poderíamos facilmente abandonar ou rejeitar o universalismo. Em uma era global,
o socialismo precisa redescobrir o significado original das fronteiras como pontos
de encontro, em vez de linhas de separação.

54
Quer
que eu
desenhe?

P.S.: A terra é esférica

55
QUER QUE EU DESENHE?
DESIGUAL E COMBINADO

O desejo
de reparar
¶ Já é um clichê afirmar que o maior sistema socializado que supera o
produto de exportação cubano é o dos Estados Unidos de maneira
E se o país mais rico atendimento médico exemplar, consistente no combate à
mas não deixa de ser mortalidade infantil, na proporção
do mundo tivesse um fato. Desde 1959, Cuba tem de médicos por habitantes e em
um programa médico desenvolvido um modelo de outros indicadores fundamentais
diplomacia incomparável na sua – além de ainda fornecer mais
internacionalista essência – um modelo que, no assistência médica a países do
como o de Cuba? que tem de melhor, se aproxima Sul Global do que todos os países
de um tipo de internacionalismo do G8 juntos.
conduzido pelo Estado.
Nos últimos anos, mais brasileiros
Cuba é um país pequeno, com um passaram a fazer coro com o
pib equivalente a três quartos do de “Vai pra Cuba!”. A referência
Porto Rico, que sofre um bloqueio imperialista é justamente o país
de décadas pela maior potência por trás dos bloqueios. Então
mundial – seu vizinho ao norte, os como seria se os Estados Unidos,
Estados Unidos. Ainda assim, Cuba país mais rico do mundo,
fornece aos seus cidadãos alguns implantasse um programa médico
dos melhores cuidados médicos em internacionalista semelhante ao
qualquer parte do mundo, com um de Cuba?

56
América do Sul
Realizações médicas cubanas
em outros países (por todos os
anos, até 31 de dezembro de 2017)

3.224.716
Cirurgias Países que contam
Venezuela com médicos cubanos

Países que contam


com médicos cubanos
e inscrição no Programa
Cubano de Saúde Integrada
100.984
Vacinas
aplicadas
Equador

53.648
Partos
Bolívia

Número de médicos cubanos


em outros países em um ano típico
(1960-2000)

3.350
Equivalente hipotético para
os Estados Unidos
(como porcentagem da população)

109.854
57
DESIGUAL E COMBINADO

Europa e Ásia

11.127
Cirurgias
Portugal

Inscritos no “exército de jaleco branco”,


a reserva flutuante de médicos cubanos
voluntários (2014)

50.000
Equivalente hipotético para
os Estados Unidos
(como porcentagem da população)

1.453.950

58
139.860
Vacinas
aplicadas
Paquistão

Total de cubanos enviados


para outros países para trabalhar
na Saúde (1960-2015)

67.589
Tempo que levaria para os 72.092
Estados Unidos Partos
alcançarem esse número Timor Leste

8 meses
59
DESIGUAL E COMBINADO

Total de anos trabalhados por


cubanos em outros países
(1960-2000)

África
134.000
Tempo que levaria para
os Estados Unidos
alcançarem esse número

564.706
Partos realizados
Argélia
7 meses
e 15 dias
11.127
Cirurgias
Portugal

1.060.561
Vacinas
aplicadas
Guiné Equatorial

1.325.283
Cirurgias
Namíbia

60
R$ 11,2 mi - Corte nas iniciativas para Implementação da Política Nacional sobre Mudança do Clima. / 65 - Número de reportagens plagiadas por Joice Hasselmann / 432% - Aumento patrimonial de
Eduardo Bolsonaro em quatro anos / 31% - As pessoas que avaliaram o governo Bolsonaro como ruim ou péssimo na pesquisa do Ibope de junho de 2019 / 39kg - Quantidade de cocaína dividida em
37 pacotes na mala de militar da comitiva de Bolsonaro que foi apreendida na Espanha / R$ 5,8 bi - Tamanho do corte, quer dizer, contingenciamento, do governo federal para o orçamento da Educação.
O governo anunciou desbloqueio de R$2 bi em 30/09. R$3,8 bi seguem bloqueados. / 117 - Fuzis incompletos encontrados na casa de amigo do suspeito do assassinato da vereadora Marielle Franco e
Anderson Gomes, no Rio de Janeiro / 6 - Número de lideranças do governo Bolsonaro que renunciaram ou foram demitidas em menos de seis meses de governo

61
6

65
117
EMPIRISMO VULGAR

31%
QUER QUE EU DESENHE?

39kg
432%
As cifras do
bolsonarismo

R$ 5,8 bi

R$ 11,2 mi
Janeiro
Educação

de governo
o tamanho do estrago.

Joice Hasselmann

apreendida na Espanha
Ligue os pontos para entender

Aumento patrimonial de
sobre Mudança do Clima.
Corte nas iniciativas para

federal para o orçamento da


Tamanho do corte, quer dizer,

casa de amigo do suspeito do

comitiva de Bolsonaro que foi


contingenciamento, do governo

37 pacotes na mala de militar da


Número de lideranças do governo
Fuzis incompletos encontrados na

assassinato da vereadora Marielle


Eduardo Bolsonaro em quatro anos

Quantidade de cocaína dividida em


demitidas em menos de seis meses

pesquisa do Ibope de junho de 2019


Implementação da Política Nacional

Bolsonaro como ruim ou péssimo na


Franco e Anderson Gomes, no Rio de

As pessoas que avaliaram o governo


Bolsonaro que renunciaram ou foram

Número de reportagens plagiadas por


POR ESTHER DWECK

Brasil
em
queda
livre Os efeitos do
desmonte
neoliberal são
diversos e não ha´
alternativa senão
a luta de classes

62
¶ O capitalismo é um sistema gerador de crises. Existem
crises econômicas mundiais, mas também existem crises
cuja configuração e impacto direto diz respeito ao arranjo
produtivo e financeiro de um país ou microrregião. O Brasil
já passou por algumas crises sérias, mas hoje vive a mais
lenta recuperação econômica de sua história. Entre 2015 e
2016, a taxa de crescimento econômico retraiu quase qua-
tro pontos percentuais por ano, passando a subir módicos
um por cento ao ano em 2017 e 2018. ¶ A deterioração do
quadro econômico é grave e isso significa mais perdas
e riscos para a população. Desde 2015, os indicadores de
desigualdade de renda voltaram a crescer e os níveis de
pobreza e pobreza extrema, em queda desde 2003, reverte-
ram sua trajetória. O Brasil que elegeu Bolsonaro é também
o Brasil do desemprego. Vagas de emprego formal cres-
cem muito lentamente, enquanto a informalidade dispara,
tendo como símbolo as empresas de entrega e transporte
particular baseadas em aplicativos.

63
ESTHER DWECK

FALSAS SOLUÇÕES PARA financeira do capital, dada a inten-


CRISES ESPERADAS sa volatilidade interacional dos
Nos Estados Unidos e na Europa, há fluxos, a política fiscal passou a se
um debate intenso sobre por que a voltar exclusivamente para o con-
recuperação da crise econômica glo- trole da dívida pública. A lógica de
bal de 2008 foi a mais lenta quando um sistema de repartição, baseado
comparada a outras recessões, inclu- na tributação e na transferência
sive a Grande Depressão de 1929. A de renda, foi substituída por uma
crise de 1929 levou a uma mudança lógica estritamente de avaliação do
significativa na teoria econômica, custo do sistema, de forma a não
formando um consenso, teórico e comprometer a rentabilidade dos
político, a respeito da necessidade detentores da dívida.
de políticas que garantissem o ple- Essa política inaugura e conso-
no emprego e atuassem de forma a lida a lógica neoliberal que, para
redistribuir renda. O economista Pierre Dardot e Christian Laval, é a
John Maynard Keynes foi o respon- de juros, cabe estabilizar tanto o prática de colocar as grandes orien-
sável por apontar que esses seriam preço quanto o nível de produto. À tações da política econômica acima
os dois grandes problemas do sis- política fiscal cabe responder pela de qualquer controle democrático
tema econômico. Após a Segunda estabilização da trajetória de dívi- e evitar que as alternâncias elei-
Guerra Mundial, suas ideias foram da pública, totalmente subordina- torais afetem essas orientações. O
reforçadas e houve um amplo enten- da à política monetária, abando- objetivo é a “constitucionalização
dimento de que o sistema econômi- nando sua função de indutora do econômica”, de modo que todos os
co continuaria sujeito a flutuações crescimento econômico e da redis- governos, independentemente de
periódicas e que caberia ao Estado tribuição de renda. suas ideologias políticas e da pla-
assumir o controle do volume de Nesse contexto, a visão prepon- taforma com a qual foram eleitos,
emprego e se encarregar também da derante a respeito da importância fiquem atados na forma de condu-
redistribuição de renda. e da funcionalidade dos sistemas ção da economia.
A partir dos anos 1970, esse con- de bem-estar social sofreu uma Essa visão a respeito da lógica
senso dissipou-se. Já nos anos 1990, inversão completa. Enquanto no neoliberal permite compreender
em um contexto de ampla liberali- período do pós-guerra havia certa porque hoje, mesmo diante de
zação financeira, um “novo consen- concordância entre as potências uma nova crise econômica mun-
so” se formou. A gestão macroeco- econômicas de que era preciso dial, não há um consenso em tor-
nômica deixou de ter um papel ativo construir sistemas de seguridade no de ideias semelhantes às que
no controle do ciclo econômico e social, a partir do governo da pri- surgiram após a Grande Depressão
passou a ser responsável pela manu- meira-ministra da Inglaterra Mar- de 1929. Pelo contrário, estamos
tenção da estabilidade de preços garet Thatcher, que se iniciou em diante do agravamento das carac-
e pelo retorno esperado do capi- 1979, essa visão perdeu força. Como terísticas da economia mundial
tal, defendendo a lógica financeira resultado, os sistemas de seguri- que estavam presentes na origem
internacional. Esse novo consenso dade social passaram a ser vistos, da crise global de 2008, como as
estabeleceu uma distinção clara exclusivamente, como uma poten- bolhas financeiras, e a recupera-
nas atribuições das políticas mone- cial obrigação de longo prazo dos ção econômica segue lenta e as
tária e fiscal. À política monetária, Estados, que poderia comprometer desigualdades crescentes. Mas o
com base em regimes de metas de a trajetória futura da dívida públi- novo consenso neoliberal persiste
inflação e controle da taxa básica ca. A fim de garantir a valorização mesmo assim.

64
É comum O BRASIL EM QUEDA LIVRE

que se forme
um poderoso
bloco de
grandes
empresários e
No Brasil, o consenso neoliberal os mecanismos de transferências
não se estabeleceu de forma linear. direta de renda, previdenciárias e
A aprovação da Constituição bra-
rentistas, que assistenciais. Desde sua aprovação,

encontraria
sileira, que tem diversos elemen- houve uma redução na desigualda-
tos inspirados na formação de um de medida pelo índice de Gini da
Estado de bem-estar social, ocorreu
mais de um renda domiciliar per capita. A ten-

economista
em 1988, quando o mundo passava dência crescente desde a década de
pelas mudanças da onda neoliberal. 1960, quando a pesquisa domiciliar
Essa inspiração dos anos 1980 se
para declarar foi iniciada, foi revertida a partir de

que a situação
junta com as instituições desenvol- 1990, e esse movimento se acentuou
vimentistas das décadas de 1940- ao longo da década de 2000, man-
60 e com as mudanças institucio-
das finanças tendo essa trajetória até 2015.

públicas é
nais neoliberais que foram sendo Sabe-se que a regulamentação
introduzidas a partir da década de dos direitos previstos na Constitui-
1990 em uma superposição tripla.
claramente ção não foi imediata, mas ocorreu

enferma e é
A nova onda neoliberal, que se de forma gradual e em diferentes
iniciou em 2016, tenta acabar com governos, mesmo naqueles que são
essa superposição institucional.
preciso considerados tipicamente neoli-

resgatar a
Em grande parte, esse movimento berais, como os governos Collor e
apresenta-se como resposta à uti- FHC . No governo Collor, por exem-
lização do espaço ainda existente
“austeridade plo, foi regulamentada a previdên-

fiscal”.
para adoção de políticas que leva- cia rural, com as leis aprovadas em
ram, entre 2004 e 2014, a um cres- 1991, que passaram por alterações
cimento com redistribuição de importantes em 2008.
renda, baixo desemprego e redução No entanto, mesmo com a redu-
de juros. A política econômica que ção do indicador de desigualdade
impera hoje, auxiliada pela pro- de renda desde 1990, o Brasil ain-
moção de instabilidade nas ins- da é considerado um dos países
tituições políticas, é uma reação mais desiguais do mundo. E a
às mudanças na estrutura social nossa desigualdade não é apenas
brasileira, que, embora limitadas uma desigualdade de renda, mas
diante dos desafios impostos pelas uma desigualdade marcada por
raízes históricas de exploração e um sistema econômico de explo-
opressão, impactaram a economia ração de mão de obra escravizada
política do país. – raízes históricas da desigualdade.
Como destaca Silvio Almeida, em
CAPITALISMO À BRASILEIRA seu livro O que é racismo estrutu-
A aprovação da Constituição Fede- ral? (2018), um dos elementos mais
ral de 1988 consolidou e ampliou marcantes dessa desigualdade his-
diversos direitos sociais e estabele- tórica é a desigualdade racial, que
ceu as bases legais para um estado não foi amenizada mesmo com as
de bem-estar social, combinando mudanças econômicas observadas
a garantia de provisão de servi- nesse período. Ao contrário, como
ços, como saúde e educação, com destaca Almeida, ainda que não se

65
ESTHER DWECK

possa negar os impactos terríveis renda às famílias – previdência,


da escravidão, as formas contem- abono salarial, seguro desempre-
porâneas de racismo são produtos go e benefícios assistenciais, como
de um capitalismo avançado e da Bolsa Família e Benefício de Pres-
racionalidade moderna e ajudam, tação Continuada (BPC) – reforça-
por exemplo, a “naturalizar” o paga- das pela valorização real do salário
mento de salários mais baixos a mínimo. Quanto às demais despe-
determinados grupos como negros sas públicas, houve um aumento
e mulheres. A questão racial é pro- dos gastos com saúde e educação
fundamente econômica. e dos investimentos em infraestru-
A desigualdade é um fenôme- tura social e econômica.
no multifacetado e isso pode ser A partir do governo Lula, houve
observado até mesmo nos diver- também a expansão dos investi-
sos avanços ao longo dos anos mentos da Petrobrás e do financia-
2000. Nesse período, ocorreram: (a) mento ao investimento por parte
redução da desigualdade de ren- dos bancos públicos, ambos com
da pessoal, especialmente, entre no Ensino Médio na idade certa – requisitos de exigência de compras
os assalariados; (b) ampliação da um aumento de 117% entre 2002 a de produtos produzidos no Brasil,
participação dos salários na ren- 2015 – enquanto os jovens brancos garantindo estímulos a diversas
da, indicando uma mudança na permaneceram em mesmo número; cadeias produtivas domésticas.
distribuição funcional da renda, e, no mesmo período, o aumento de Tais medidas foram realiza-
que foi complementada por uma 268% de jovens negros no ensino das mesmo com um aparato ins-
redução do pagamento de juros superior, que passaram de pouco trumental já reduzido por conta
real pelo governo; (c) melhora em mais de 400 mil para 1,6 milhão, das mudanças implementadas
indicadores de acesso a bens e enquanto houve um aumento de na década de 1990. Por exemplo,
serviços com recortes de gênero, 26% dos jovens brancos. Em 2019, o processo de privatização das
raça e região; (d) formalização do os estudantes negros já são maioria empresas estatais reduziu o volu-
mercado de trabalho e redução da entre os estudantes das universi- me de investimentos dessas com-
precarização; (e) queda da pobreza dades federais do país, represen- panhias. Enquanto as empresas
e da extrema pobreza medidas em tam 51%. estatais chegaram a mobilizar 7%
termos de renda e pelos indicado- Foram diversos instr umen- do PIB em investimentos na déca-
res de pobreza multidimensional, tos necessários para viabilizar da de 1970, após o aumento de
que combinam outras restrições tais mudanças, e é certo que seus participação de capital privado, o
para além da renda, também com efeitos são diferenciados no que pico foi de pouco mais de 2% em
recortes de gênero, raça e região; e diz respeito a cada avanço. Todas 2013 – o que representa o dobro do
(f) crescimento regional diferencia- essas frentes se conectam em uma montante apresentado em 2003. A
do, reduzindo as distâncias entre forma específica de gestão do abertura do Banco do Brasil não
as macrorregiões no Brasil. Estado, que pode ser compreendi- reduziu o seu papel no fomento
O estudo de Tereza Campello, da a partir de duas dimensões cen- da agricultura, e BNDES e CEF reto-
ex-Ministra de Desenvolvimento trais: a condução da política fiscal maram o protagonismo no crédito
Social, intitulado Faces da desigual- e a coordenação estatal dos inves- de longo prazo, tanto para inves-
dade no Brasil (2018) chama a aten- timentos públicos e privados. timento das empresas e governos
ção para alguns fatores: o cresci- Em primeiro lugar, houve uma quanto para aquisição de imóveis
mento do número de jovens negros expansão das transferências de pelas famílias.

66
O BRASIL EM QUEDA LIVRE

Do ponto de vista das regras fis- europeus e nos Estados Unidos,


cais, houve uma mudança impor- essa atuação anticíclica afetou o
tante com a aprovação da Lei de resultado fiscal e, em 2014, o resul-
Responsabilidade Fiscal (LRF) em tado primário, que já vinha decli-
2000. Essa lei fez parte da reforma nando, apresentou o primeiro défi-
administrativa do governo FHC e cit fiscal desde o ano 2000.
tinha por objetivo principal imple- Diante desse contexto, abriu-se
mentar um ajuste fiscal estrutural, espaço para a oposição às políticas
com uma clara reorientação para que estavam sendo adotadas. Em
o ‘equilíbrio fiscal’ baseado em 2013, o conflito distributivo entre
instrumentos legais e punições e capital e trabalho se intensificou,
sanções em caso de descumpri- diante do aumento de poder de
mento das regras. Essa mudança barganha dos trabalhadores. Em
era decorrente das ideais do novo um contexto de desemprego em
consenso neoliberal de que a polí- um patamar baixo historicamente,
tica fiscal deveria ser conduzida mais de 90% das negociações sala-
por regras rígidas, sem espaço para para o pagamento de juros (despe- riais acompanhadas pelo DIEESE
decisão discricionária dos gover- sas financeiras), houve aumento das conseguiram reajustes acima da
nos e voltada exclusivamente à sus- despesas primárias com investi- inflação. Essa pressão sobre a valo-
tentabilidade da dívida pública. mentos e transferências de renda às rização de capital na esfera pro-
Ainda assim, a LRF jamais limi- famílias, que estimularam o consu- dutiva ficou ainda mais acirrada
tou o tamanho do Estado brasi- mo e investimento privado. Como com a queda nas taxas de juros no
leiro, pois permitia a expansão resultado dessa resposta privada, Brasil, que atingiram, no início de
dos gastos com orçamento equi- conhecida como efeitos multiplica- 2013, o menor patamar real desde a
librado. Desde a década de 1940, dor (consumo) e acelerador (investi- estabilização inflacionária de 1995.
sabe-se que, havendo capacidade mento privado), houve aumento da Portanto, seja na ótica produtiva
ociosa, um aumento da despesa arrecadação tributária, ampliando ou na financeira, houve uma perda
acompanhado por aumento igual a capacidade de manter a expansão relativa de rentabilidade do capital:
da receita (orçamento equilibrado), dos gastos primários. a combinação de salários altos e
o crescimento econômico aumenta No entanto, desde a crise inter- juros baixos é explosiva em termos
e esse efeito será tão maior quan- nacional de 2008, houve uma per- do conflito distributivo. O econo-
to maior for a indução ao investi- da na arrecadação proveniente de mista Michal Kalecki argumentou,
mento privado. Foi exatamente o impostos, e os efeitos negativos de em 1943, que a manutenção do ple-
que ocorreu no Brasil. Entre 2004 e uma regra fiscal pró-cíclica, basea- no emprego por meio de despesa
2012, houve aumento das despesas da na meta de resultado primá- governamental dificilmente ocor-
públicas, que ampliaram o cresci- rio, tornaram-se explícitos. Afinal, reria em uma economia capitalista
mento econômico e a geração de com a desaceleração da arrecada- devido a questões políticas.
emprego formal, o que garantiu que ção, o conflito distributivo dentro É comum que se forme um pode-
a arrecadação crescesse acima das do orçamento foi acirrado. Inicial- roso bloco de grandes empresários
despesas. Esse é o chamado círculo mente, o governo procurou garantir e rentistas, que encontraria mais
virtuoso: mesmo mantendo a meta uma atuação anticíclica, mantendo de um economista para declarar
de superávit primário elevada, ou o crescimento das despesas pri- que a situação das finanças públi-
seja, mesmo o governo utilizando márias, mesmo diante da queda da cas é claramente enferma e é pre-
parte dos recursos arrecadados receita. Todavia, como nos países ciso resgatar a “austeridade fiscal”.

67
ESTHER DWECK

A manutenção do pleno empre- o início de uma reinterpretação


go amplia os lucros, mas aumenta das leis fiscais de forma a crimi-
o poder de barganha dos trabalha- nalizar práticas que vinham sendo
dores e a possibilidade de demissão adotadas por diversos governos.
deixaria de ter seu efeito discipli-
nador. Não interessa aos maiores
empresários do Brasil ter que nego- CRISE DO CAPITAL, CRISE DA
ciar de forma mais equilibrada com DEMOCRACIA LIBERAL
seus empregados. A crise que se iniciou em 2015 no
Como destacou Eli Diniz, em 1978, Brasil é decorrente de uma com-
“há, por parte da elite brasileira uma aumentos de salários ao crescimen- binação de elementos econômicos
resistência a medidas para evitar to da produtividade do trabalho”. A e políticos, em suas dimensões
o custo social de vantagens des- discussão tomou tal proporção, que estrutural e conjuntural. Do ponto
proporcionalmente distribuídas”. em abril de 2013, a apresentadora de de vista dos elementos econômicos
Naquela época, a autora ressaltava TV, Ana Maria Braga, apareceu com conjunturais, o Brasil já vinha apre-
os vínculos existentes entre a fra- um colar de tomates, ilustrando de sentando sinais de desaceleração
ção industrial e os setores agrários forma caricata um discurso pro- desde 2012, devido a fatores inter-
dominantes de forma a garantir o pagado quase diariamente de que nos e externos, no entanto, é em
atendimento às suas demandas. A era preciso aumentar as taxas de 2015 que o país entra efetivamente
ampliação das frações de bloco de juros no Brasil. Coincidentemente, em crise. Entre os elementos eco-
poder, frente a financeirização do na mesma semana, o Banco Central nômicos conjunturais, destacam-se
capital, não parece ter abalado a voltou a aumentar as taxas de juros, a crise que começou em 2014, com
aliança entre as elites brasileiras um movimento que só parou em os desdobramentos da operação
de forma a coibir medidas que per- 2016, quando a economia brasileira Lava-jato, paralisando os setores
mitiriam mitigar o custo social de já se encontrava em grave recessão. de petróleo e gás e de construção
“vantagens desproporcionalmente O debate sobre a condução da civil que eram responsáveis pela
distribuídas”. política fiscal ficou ainda mais dinâmica da economia brasileira.
No início de 2013, a pressão infla- acirrado durante a campanha A inflação também passa a ser um
cionária, causada por um choque presidencial de 2014. O ápice foi a problema, decorrente de reajuste
de oferta de diversos produtos mudança na forma de criminaliza- em preços administrados, como
agrícolas diante de intempéries cli- ção da política fiscal, o que levou, energia elétrica e gasolina, dos efei-
máticas e do efeito da composição posteriormente, à criminalização tos da seca no Sudeste e da desva-
de atividades e serviços, fez com de diversas políticas econômicas lorização cambial. Esse quadro foi
que o tema da inflação voltasse ao adotadas por sucessivos governos agravado já no governo Dilma por
debate nacional. Alguns economis- até aquele momento. Como exem- uma política econômica contracio-
tas passaram a adotar um discurso plo, logo após a eleição, o candidato nista de aumento dos juros, retra-
de que era necessário aumentar o derrotado, Aécio Neves, fez um dis- ção do crédito nos bancos públicos,
desemprego para controlar a infla- curso de que o Congresso não apro- redução dos estímulos fiscais e cor-
ção. Ilan Goldfajn, que era o econo- varia a mudança na meta fiscal te acentuado dos gastos, em espe-
mista-chefe do banco Itaú, chegou proposta pelo governo Dilma. Essa cial, dos investimentos públicos.
a dizer que “Na atual conjuntura visão foi importante para caracte- O cenário pós-crise internacio-
talvez seja necessário desaquecer rizar um crime de responsabilida- nal de 2008 também foi marca-
temporariamente [...] o mercado de de e levar ao processo de impeach- do pelo agravamento de diversos
trabalho para permitir adequar os ment. O discurso de Aécio marcou desafios estruturais característi-

68
Há indubita- O BRASIL EM QUEDA LIVRE

velmente um
discurso
falacioso de
combate a
cos da economia brasileira. O exces-
so de capacidade produtiva mun- privilégios fim do Pacto Social distributivo de
1988 que estava em jogo. A Agenda
dial e a desaceleração do comércio acerca da Brasil, proposta por Renan Calhei-
nos demais países acirraram a con-
corrência internacional. Ao mesmo Reforma da ros ainda no início de 2015, desdo-
brou-se no documento “Uma Ponte
tempo, a perda de densidade e com- Previdência, para o Futuro” que trazia diversos
plexidade industrial e a especializa-
ção regressiva da pauta exportado- mas o que se dos elementos que posteriormente
seriam adotados nos governos de
ra brasileira a tornou cada vez mais está propondo Michel Temer e Jair Bolsonaro.
dependente de produtos primários.
A partir de meados de 2014, há uma de fato é o Ainda que 2015 tenha sido o ano
da virada em termos de política
forte queda dos preços das commo- desmonte do econômica, nada se compara ao
dities agrícolas e minerais, e volta-
mos ao cenário mais tradicional de regime solidário desmonte institucional que pas-
sou a ser promovido com a posse
preços de commodities crescendo a
uma taxa inferior ao dos produtos
e participativo. de Michel Temer. Após um mês do
afastamento da presidenta Dilma,
industriais de ponta. Finalmente, os em junho de 2016, em meio ao pro-
desafios externos se intensificaram cesso do impeachment, o governo
com Estados Unidos e China mais Temer enviou um projeto que sim-
preocupados com questões inter- bolizou a base da guinada neolibe-
nas, aumentando o protecionismo ral, a chamada PEC 241. Com a apro-
(ou melhor, o tecnonacionalismo) vação da Emenda Constitucional
e alterando a dinâmica das cadeias 95/2016 (EC 95/2016), desmonta-se
produtivas mundiais. as bases presentes na Constituição
No entanto, os desafios políticos de 1988 para o, ainda que insufi-
também tiveram um papel decisivo ciente, projeto de Estado de bem-
e ajudam a explicar melhor o qua- -estar social, pois se trata de um
dro atual. Conjunturalmente, 2015 teto declinante de gastos públicos
foi marcado pela acentuação da ins- federais, que impõe uma redução
tabilidade política conduzida pelo permanente dos gastos sociais de
Presidente da Câmara, Eduardo forma a cumprir o teto.
Cunha. O objetivo do Congresso era A EC 95/2016 vai muito além de
inviabilizar qualquer ação do Poder uma Reforma Fiscal. Ela impõe
Executivo, mesmo que o governo um desmonte do Estado Brasileiro,
já tivesse reorientado a condução pois leva a uma queda dos gastos
da política econômica na direção federais primários totais em ter-
esperada pelo mercado financeiro. mos do PIB e em termos per capita.
A tensão distributiva, cada vez Isso significa o acirramento dos
mais acirrada com a desaceleração conflitos dentro do já debilitado
econômica, era o que de fato mobi- orçamento, o que faz a propos-
lizava as elites brasileiras, e con- ta da Reforma da Previdência se
tribuía ativamente para o quadro tornar central para evitar quedas
de instabilidade política. Estava nas demais áreas. Ao impor limi-
cada vez mais evidente que era o tes constitucionais à política fis-

69
ESTHER DWECK

cal, a EC 95/2016 elimina o principal tre de 2014 e o 3º trimestre de 2018.


mecanismo de melhoria da condi- Para os negros, nesse mesmo perío-
ção de vida da população e ainda do, o desemprego passou de pouco
impede a atuação anticíclica dian- acima de 8% para 14,6%. Entre as
te de uma crise econômica sem mulheres, passou de 7,7% para 13,6%.
precedentes. Portanto, como se sabe, as mais afe-
A partir dessa reforma, começa tadas são as mulheres negras.
uma agenda política a fim de eli- Há indubitavelmente um dis-
minar qualquer espaço para que a curso falacioso de combate a pri-
alternância de poder permita que vilégios acerca da Reforma da
se possa utilizar os instrumentos Previdência, mas o que se está
existentes de forma distinta da propondo de fato é o desmonte do
que se aceita numa lógica neolibe- transferências sociais, um aumen- regime solidário e participativo.
ral. O que está em curso é o fim da to da desigualdade e da pobreza e Muitas das alterações propostas
superposição institucional, com o milhões de novos desempregados. para a previdência são elemen-
objetivo de implantar uma estrutu- Para uma parcela grande da tos claros de desmonte do regime
ra estatal tipicamente neoliberal. A população brasileira, uma parte atual, como o aumento do tempo
agenda, portanto, vai além do ajus- expressiva do bem-estar não é mínimo de contribuição de quin-
te fiscal permanente imposto pela comprada ou ofertada no mercado, ze para vinte anos; a alteração na
EC 95/2016. Inclui um programa de mas provida pelo Estado. Sendo regra para o benefício do segura-
desmonte e privatização das esta- assim, a capacidade que o Estado do especial rural de quinze anos
tais e de bancos públicos, desmonte tem de ampliar a oferta pública de de trabalho como agricultor, com
das instituições públicas de ensino bens e serviços, como alimentação contribuição sobre produção, para
e pesquisa, desmonte dos fundos escolar, educação, saúde, sanea- vinte anos de contribuição sobre
públicos para financiamento do mento, água, transporte e mora- produção, como valor mínimo de
investimento (como o FAT e o FGTS), dia, e a capacidade de manter as seiscentos reais; aumento da idade
fim do regime solidário de segurida- políticas de transferência de ren- de 65 para 70 anos para benefício
de, abertura comercial e financeira da, interfere de forma decisiva nas de um salário mínimo do BPC , pago
unilateral do Brasil, fim das políti- condições de vida dessas pessoas. a idosos com renda familiar per
cas de conteúdo local e aprofunda- A “redução” do Estado impacta capita inferior a ¼ de salário míni-
mento da reforma trabalhista ini- principalmente mulheres e negros. mo; e a proposta de migração para
ciada com Temer, de forma a tornar Houve aumento da mortalidade um regime de capitalização, gran-
o trabalho formal igual ao informal. infantil e materna, interrupção no de barganha do setor financeiro.
processo de democratização do Em 2015, de acordo com nota do
PILHAGEM NEOLIBERAL ensino superior e abandono dos DIEESE , 60% das aposentadorias
A agenda apresentada pelos últimos programas de habitação popular. por idade concedidas foram para
governos não é uma agenda de refor- Em termos de desemprego, sabe- trabalhadores que não chegaram
mas. Trata-se de uma agenda de des- mos que o mercado de trabalho não aos vinte anos de contribuição.
monte institucional de cunho neo- é uniforme, mulheres e negros são Essa mudança deve atingir prin-
liberal. As consequências já podem afetados de forma muito desigual. cipalmente os mais pobres que,
ser vistas a partir de diversos indi- Marilane Teixeira explica no livro em geral, contribuem por menos
cadores e vão se agravar. De 2015 até Economia para poucos (2018) que o tempo, pois costumam estar mais
agora, houve uma precarização dos desemprego médio aumentou de sujeitos ao trabalho informal. Vale
serviços públicos, uma redução das 6,6% para 12% entre o 4º trimes- ressaltar que vinte anos equivalem

70
O BRASIL EM QUEDA LIVRE

a 240 meses de contribuição. Em dariedade e sem redistribuição de


2017, o número médio de contribui- renda – cada vez mais para poucos.
ções dos trabalhadores brasileiros Ao desmontar os instrumentos
foi de apenas 9,3 meses por ano. de desenvolvimento produtivo e
Isso significa que os vinte anos na tecnológico, como a rede de ciência
realidade são 26 anos, para média, e tecnologia, os bancos públicos e
sobretudo para os trabalhadores as empresas estatais, se destrói a
mais sujeitos à grande rotatividade capacidade de montar uma nova
do mercado de trabalho brasileiro. estratégia de desenvolvimento. Ao
No caso do segurado especial destruir o que existe em termos
rural, a regra praticamente invia- de um estado de bem-estar social
biliza a obtenção do benefício. por meio do desmonte da legisla-
Conforme apresentam Valadares e objetivos são, em primeiro lugar, ção trabalhista, do financiamento
Galiza, na nota técnica 25/2016 do impedir a atuação do Estado na dos serviços públicos e dos siste-
IPEA , é um desmonte do sistema garantia da geração de emprego e mas de transferência de renda, se
contributivo diferenciado, baseado atenuação do ciclo econômico; em destrói não apenas um importante
na realidade da atividade agrícola, segundo lugar, impedir a mediação elemento de crescimento econô-
sujeita à sazonalidade e a intempé- realizada pelo Estado na relação mico, como também se impossibi-
ries climáticas, que tinha por base entre trabalhadores e empresários; lita um processo de inclusão social
uma contribuição sobre o quan- e, finalmente, acabar com a capa- em um país já tão desigual.
to e quando produzem. Os auto- cidade de reduzir desigualdades Frente a esse desmonte, não há
res destacam como a previdência econômicas, raciais e de gênero. democracia que sobreviva. A solu-
rural colaborou para o aumento Diante desse cenário, ao impedir ção que está sendo apresentada é
das taxas de permanência no cam- uma atuação anticíclica por parte justamente a do Estado policiales-
po e o crescimento da renda das do governo, assim como ocorreu co. Na verdade, o Estado autoritá-
famílias, condições fundamentais na Europa a partir de 2010, a eco- rio é condição necessária para se
à reprodução social da agricultu- nomia permanece estagnada. No ter um estado mínimo nos direitos
ra familiar. Além disso, colaborou Brasil, o governo federal ampliou sociais. O atual governo ultracon-
para aumento do acesso à educa- os cortes no orçamento federal servador é uma indicação clara de
ção e para segurança alimentar de e impôs novos cortes aos níveis para onde caminha esse projeto.
todo o país, dado que grande parte subnacionais. Esses cortes orça- Por meio da corrosão progressi-
da produção de alimentos vem da mentários só agravam a situação va dos direitos sociais, da própria
agricultura familiar. Finalmente, econômica, social e fiscal. A prio- ideia de cidadania social, cami-
com relação ao BPC, o cálculo do ridade da política econômica está nha-se para uma ampla contes-
DIEESE aponta perda de 40% duran- com as elites brasileiras, não com a tação dos fundamentos da cida-
te os dez anos que irá demorar para maioria da população. dania. Naturaliza-se a violência
os idosos mais pobres terem aces- Ao contrário do governo Dilma de Estado e de indivíduos contra
so ao benefício do salário mínimo, em 2015, não se trata apenas de outros cidadãos em direção à ver-
comparado à regra atual. uma política econômica equivoca- dadeira barbárie.
da, influenciada pela lógica de con- Há alternativas, mas para que
ATÉ ONDE VAI A BARBÁRIE? ciliação. O caos político e econômi- possam ser colocadas em prática
As políticas de permanente auste- co desde o golpe possui uma lógica em uma nova eleição, é preciso
ridade fazem parte desse pacote clara: trata-se da consolidação de impedir o desmonte institucional
de desmonte institucional cujos um novo projeto de país – sem soli- completo.

71
Armas
da crítica

Conhecereis a verdade
e a verdade vos libertará
– é o que dizem por aí
ARMAS DA CRÍTICA
BALA NA AGULHA POR JAMES HERMÍNIO
Do problema
à alternativa

Quando a extrema direita toma as instituições, três


palavras sempre caem na boca do povo e da esquerda,
por bem ou por mal. Aos que se assustam, qualquer
coisa é ditadura. Se a direita avança, deve ser fascismo.
E se ela faz isso, é por medo do comunismo.

¶ EXISTEM MOMENTOS histó- como A ditadura é assim (1977), de


ricos em que há debate político Equipo Plantel. O livro foi publi-
contínuo. As pessoas discutem cado pela primeira vez na Espa-
ora futebol, ora política. No bar, nha, poucos anos depois da morte
alguns falam do dia no trabalho, do ditador Francisco Franco. Seu
outros, daquela notícia que che- público principal é infantil, mas
gou via WhatsApp: é verdadeira? como a conjuntura política pode ser
É preciso determinar se ela pas- cruel quanto ao acúmulo histórico,
sa ou não por uma camada que não deixa de ser uma obra interes-
vai além da presença do debate sante para adultos que vivem em
político. Determinar se o debate uma democracia um tanto imatura,
também é politizado; ou seja, se como é o caso do Brasil.
os termos e significados em ques- O texto de Plantel é direto e
tão correspondem à realidade ou didático, permite a assimilação dos
se são fantasias forjadas através acontecimentos mais comuns sob
de manipulação ou até mesmo de governos ditatoriais. O autor enten-
deseducação. de não ser necessário “poupar” as
Não por acaso, os mesmos ideó- crianças – e hoje, na era das redes
logos que alegam a presença de um sociais, sabemos bem como crian-
marxismo cultural nos programas ças são capazes de acessar conteú-
televisivos são aqueles que ten- dos políticos com apenas um clique.
tam barrar o acesso ao aprendiza- As ilustrações chegam para facili-
do crítico e histórico nas escolas. tar um pouco, e Mikel Casal faz um
Aqui entra a importância de livros bom trabalho. Nada como a imagem

75
BALA NA AGULHA DO PROBLEMA À ALTERNATIVA

de uma superfície aparentemente possam pintá-lo como uma outra o estrangulamento da condição da
pacata e agradável construída em faceta ou como algo inevitável. classe trabalhadora.
cima de caveiras para que crianças Talvez alguém se pergunte por Logo no começo do livro, a auto-
e adultos pratiquem o simples ato que devemos ensinar às crianças ra delimita um aspecto essencial:
de questionar a normalidade. o que é ditadura. Crianças também o fascismo não é uma mera mani-
Em outro momento, quando são sujeitos políticos. Elas têm festação de terror burguês. Estabe-
Plantel diz que a “ditadura é como direito ao bem-estar do corpo e à lecer essa diferenciação é funda-
um ditado”, no qual “alguém diz o preservação dos corpos políticos mental para evitar a banalização
que é para fazer, e todo mundo faz”, democráticos – de fato, um se rela- do que é considerado fascista, de
Casal desenha uma sala de aula em ciona com o outro. modo a não reconhecer quando
que um ditador é como um profes- O ser e o direito da criança estão uma ameaça concreta se aproxima.
sor que dita a frase da lousa (“devo em jogo no Brasil. Ao mesmo tem- Essa forma de organização política
obedecer”). Pronto: uma ditadura po que o pânico moral acerca de não deixa de ser capitalista, mas
não é mais algo abstrato para uma instalações de arte que envolvem se apropria de um “programa revo-
criança, ela é exemplificada numa homens nus e crianças na plateia lucionário fraudulento”, que atrai
imagem comum de seu cotidiano. ajudaram a eleger presidente e diversos trabalhadores, e faz “uso
A pedagogia da pergunta se faz deputados, o conservadorismo violento e brutal do terror”, contra-
presente no livro, oferecendo mais também se encarrega de barrar riando o próprio direito burguês,
contraste ainda à imagem do pro- políticas públicas de educação em benefício da burguesia.
fessor ditatorial. A própria criança sexual que foram desenhadas para O fascismo não é um aconteci-
consegue expressar suas ideias ao alertar e proteger crianças de vio- mento transcendental. Não se esta-
responder, por exemplo, se é pos- lências como a pedofilia. Esse tipo belece como a suposta vontade de
sível viver feliz numa ditadura. A de atuação tem sido classificado Deus manifestada na eleição de um
ditadura é como um ditado e o livro como parte do repertório fascista presidente. Suas causas podem ser
instiga o oposto. (ou protofascista, como também é traçadas no desenvolvimento his-
Ao fim da obra, há um texto mui- pontuado). tórico de uma sociedade que tem
to informativo do sociólogo Ruy Caso seja fascismo, é preciso der- a economia desintegrada e o Esta-
Braga, intitulado “Para saber mais: rotá-lo. Caso não seja ainda, é pre- do em dissolução. O fascismo pode
viver sem liberdade”, que intro- ciso evitar que se concretize. Parte crescer com uma base de membros
duz leitores de todas as idades às da tarefa de compreender e traçar da classe trabalhadora, mas uma
origens romanas do conceito de estratégias para vencer o fascismo política antifascista e revolucioná-
ditadura e reflete sobre o apelo que foi cumprida pela teórica marxista ria não pode encarar tal fenômeno
essa forma de governo exerce sobre alemã Clara Zetkin. Em Como nas- com fatalismo. É fundamental com-
algumas pessoas nos dias de hoje. ce e morre o fascismo (1923), Zet- preender os interesses e necessi-
Os efeitos nefastos de uma ditadu- kin produz reflexões de relevân- dades da classe trabalhadora para
ra não são segredo, mas em toda cia imediata para o Brasil e tantos formular um programa político
sociedade há grupos que gostariam outros países no mundo marcados alternativo que supere em projeto as
de estabelecer tal regime, desde que pela ascensão da extrema direita e promessas de dirigentes fascistas.

76
77
BALA NA AGULHA

Isso é possível pela compreen- ao contrário do credo popular e entretenimento é um dos papéis
são do que é essencial na cons- anticomunista , comedores de da arte. Melhor ainda quando nos
tituição de um regime fascista, criancinhas ou invasores de resi- alerta para o que está no centro de
independente do país. Os casos da dências pessoais de classe média. O todos os conflitos que temos tes-
Itália e da Alemanha são expos- comunismo não é nada disso, mas temunhado na sociedade em que
tos como um alerta à classe tra- é muitas outras coisas. Por isso é vivemos.
balhadora ao redor do mundo – e tão importante imaginar e concre- Em Manifesto comunista em
no decorrer dos anos. Preocupa- tizar meios diversos para levar à quadrinhos (2018), do cartunista
da com a práxis revolucionária, compreensão do sistema que deve inglês Martin Rowson, a cons-
Zetkin apresenta o diagnóstico superar o capitalismo. ciência de classe sobre a realidade
sem descuidar do remédio, que Se você fosse um trabalhador pode surgir ou ser reforçada de
pode ser violentamente amargo, a estadunidense sem um tostão forma lúdica. A teoria marxista
depender da demora para a toma- furado durante a crise capitalis- é apresentada em uma narrativa
da de providências. ta de 1929, teria nas histórias em visual dinâmica e precisa. De fato,
Como nasce e morre o fascismo quadrinhos uma fonte barata de a execução gráfica aponta que a
faz parte do legado de quem viveu diversão e fuga do cotidiano hostil proposta revolucionária de Marx
um dos mais turbulentos momen- aos proletários. No Brasil de 2019, e Engels pode se manifestar em
tos da história. Se devidamente temos a oportunidade de encon- diferentes idiomas e linguagens.
lido, pode nos ajudar a corrigir os trar nas páginas de uma graphic As ideias comunistas pertencem
rumos e impedir que a situação novel uma fonte de emancipa- à classe trabalhadora e cabe aos
piore. É também o legado de uma ção das tarefas diárias, mas não seus agitadores e propagandistas
comunista. Comunistas não são, qualquer fonte. Combinar teoria encontrar maneiras de apresentar

78
DO PROBLEMA À ALTERNATIVA

e comunicar o comunismo que o rigor esperado diante da grandio-


transcendam os limites do debate sa relevância da obra.
erudito ou acadêmico. Vale mencionar que apesar da
Ao longo de todo o livro, as sugestão do título em português,
ideias de historicidade, movi- em quadrinhos, o autor não se vale
mento e contradição estão pre- de múltiplos quadros por página
sentes nos traços que mostram o ao longo de toda a brochura. Há
desenvolvimento de uma “guerra uma razão para isso. A apresenta-
ininterrupta” entre dominação e ção possibilita uma visão ampla A DITADURA É ASSIM Equipo Plantel /
servidão. As imagens comunicam da História, sem se descuidar dos ilustrador: Mikel Casal / tradução: Thaisa
Burani / R$39,00 / Boitempo Editorial
aquilo que a análise do materia- detalhes, que são uma recompensa
lismo histórico também conecta: gratificante para quem se propu-
desde a primeira caracterização, na ser a uma leitura atenta da arte de
Antiguidade Clássica, até os dias de Rowson. Porém, em outro momen-
hoje, em que insistem, equivocada- to, quando um satírico Marx apre-
mente, em dizer que o socialismo senta a comédia farsesca do capi-
morreu. O socialismo, na verdade, talismo no Kapitalist Comedy Club,
sempre volta como um espectro a divisão em quadrinhos favorece
que assombra e encanta muita gen- a dinâmica do debate entre Marx
te. Marx e Engels são ilustrados e os capitalistas na plateia. Se esta-
discursando diante das situações belece uma espécie de toma lá, dá
apresentadas nas páginas da bro- cá, em que cada contestação des-
chura, representando aquilo que de camba em uma reação.
fato foram: teóricos extremamente O Manifesto comunista em qua- COMO NASCE E MORRE O FASCISMO
envolvidos com a prática, afetados drinhos é uma excelente leitura Clara Zetkin / tradução: Eli Moraes /
R$30,00 / Autonomia Literária
pelos acontecimentos do mundo. para quem pretende se familia-
A introdução de Rowson trabalha rizar com o pensamento marxis-
com as contradições e suas sínte- ta, por manter o que há de essen-
ses como toda análise marxista cial na obra original e acrescentar
deve fazer. O processo de escrita do uma sofisticada técnica narrativa.
Manifesto comunista (1848) ocorreu Entretanto, os leitores já iniciados
em um contexto turbulento, porém na literatura marxista também
jovem e inspirador. Por isso é tão podem apreciar por conta das
importante relacionar o teor do releituras simbólicas e comple-
Manifesto com o desenvolvimento mentares da obra. A graphic novel
de seus autores, Marx e Engels, da oferece a oportunidade de resgatar
adolescência à maturidade. Com significados banalizados e detur-
rebeldia e sagacidade, Rowson pados com uma boa dose de encan-
colabora com o trabalho de Marx to revolucionário, mesmo com o MANIFESTO COMUNISTA EM QUADRINHOS
Karl Marx, Friedrich Engels e Martin
e Engels, mas não se submete cega- duro passar dos anos. Ternura não
Rowson / tradução: Rogério de
mente. Mais uma vez, interage com vai faltar. Campos / R$69,90 / Editora Veneta

79
ARMAS DA CRÍTICA
ANOTAÇÕES POR SAMUEL SILVA BORGES

Pânico moral
acima de tudo

A política criminal do MBL é um


conjunto de estudos fracos e de alegações
Desarmamento seria um comple-
ideológicas – e isso é proposital to fracasso, pois teria desarmado
os cidadãos de bem, tornando-os
indefesos à criminalidade muito
bem armada. O armamento do cida-
dão de bem teria um efeito intimi-
dador sobre a criminalidade, sendo
¶ O MOVIMENTO BRASIL LIVRE expoente de uma guerra cultural então uma medida eficaz contra a
(MBL) entra na categoria dos novos no Brasil, que contribuiu para a violência. O direito às armas é tra-
movimentos da direita brasileira. O campanha vitoriosa de Jair Bol- tado como um “direito natural” vin-
grupo se destaca não somente por sonaro – a quem ofereceram um culado ao direito de autodefesa.
defender um projeto privatista e “apoio crítico”. Desde então, o movi- A política armamentista do gru-
fundamentalista de mercado, como mento, incluindo seus parlamen- po ignora os efeitos negativos que
também por fazê-lo através de uma tares eleitos, atua de forma con- a proliferação do estoque e da cir-
militância anti esquerda fundada vergente nas suas pautas centrais: culação de armas em uma socie-
em ataques e polêmicas. Não sur- a agenda de Paulo Guedes para a dade causam. O Instituto Sou da
preende, então, que o MBL tenha economia e a de Sérgio Moro para a Paz, ONG que há mais de quinze
sido um dos líderes na campanha política criminal no Brasil. anos trabalha para a redução da
pelo impeachment da presidenta violência no Brasil, aponta que o
Dilma Rousseff. Outros momen- MAIS ARMAS, MENOS LIVROS Estatuto do Desarmamento foi um
tos emblemáticos do movimento Apesar do tal apoio crítico, o MBL fator importante para reverter o
foram a mobilização contra a “arte e o bolsonarismo possuem pon- crescimento acelerado das mortes
imoral” da exposição Queermuseu; tos diretamente relacionados. A por arma de fogo no país. Segundo
sua denúncia de uma “ideologia liberação da posse e do porte de dados do Mapa da Violência de 2015,
de gênero” representada pela luta armas é apenas uma das bandei- entre 1993 e 2003, a taxa de mortes
por direitos das mulheres e LGBTs; ras em comum. Kim Kataguiri, tal- por armas de fogo por 100 mil habi-
e a cruzada contra o “vitimismo” vez a liderança de maior destaque tantes crescia aproximadamente
do movimento negro na defesa do movimento, se orgulha de ter 6,9% ao ano. Tal tendência passou
das cotas raciais. O MBL também como referência Benedito Barbosa. a ser revertida a partir de 2004, o
enxerga “doutrinação marxista” Barbosa é um aclamado “especia- crescimento caiu para 0,3% ao ano.
por todos os cantos, e o Escola Sem lista” em segurança pública e polí- Já outra pesquisa realizada em
Partido é o carro-chefe da atuação tica armamentista que, por sua vez, 2000 pela Secretaria de Segurança
de seus militantes. tem como referência explícita o Pública do Estado de São Paulo e
Juntas, essas pautas foram o sufi- modelo estadunidense. Seus argu- o Instituto Brasileiro de Ciências
ciente para torná-los um grande mentos são simples: o Estatuto do Criminais (IBCCRIM) apontou que

81
ANOTAÇÕES

a existência de armas em residên- UM PACOTE PRISIONAL mil), e sua taxa por 100 mil habitan-
cias contribui para mortes durante A trapalhada no uso de dados para tes cresceu 477% (de 61,1 para 352,8).
atentados ao patrimônio. justificar políticas aparentemente A política prisional brasileira é
Não é como se o MBL desse de lógicas também se repete no que- um desastre no combate ao crime.
ombros para uma argumentação sito do encarceramento. Roberto Bruno Paes Manso e Camila Nunes
baseada em evidências. O movi- Motta, militante do MBL e um dos Dias, autores de A guerra: a ascen-
mento apresenta, sim, indicativos principais assessores do governa- são do PCC e o mundo do crime no
em seus discursos, mas estes não dor carioca Wilson Witzel, se anco- Brasil (2018), defendem que o mode-
são coerentes com a produção aca- rou no trabalho de um economista lo de encarceramento em massa
dêmica sobre os temas. Em vez de estadunidense para defender que no Brasil, com superlotação média
enxergarem nisso uma contradi- mais prisões reduzem a criminali- de cerca de 200% e com condições
ção, buscam desqualificar conclu- dade. O economista Steven Levitt degradantes no cárcere, está na
sões científicas como sendo fruto argumenta em um artigo de 1996 base do fortalecimento de facções
de centros universitários afetados que há uma relação de causa e efei- como o PCC e o Comando Vermelho
por uma “infiltração gramscia- to entre maiores taxas de encar- (CV). Os grupos criminosos se apro-
na”, voltada a solapar as bases do ceramento e menores taxas de veitam desse estado de coisas para
conhecimento baseado na tradi- criminalidade registradas – o que aliciar novos detentos, gerir o caos
ção “judaico-cristã”, como prega sustentaria a alegada eficácia pri- penitenciário e manter um lucrati-
constantemente o polemista Ola- sional na redução do crime. Contu- vo negócio em torno de drogas arbi-
vo de Carvalho. O próprio Benedi- do, na revisão e desenvolvimento trariamente criminalizadas. O mer-
to Barbosa defende em seu livro de suas teses, em outro artigo de cado de drogas opera em uma lógica
Mentiram para mim sobre o desar- 2004, Levitt admite que sua hipó- que promove massacres entre fac-
mamento (Vide, 2015), que o desar- tese é incapaz de explicar a corre- ções rivais disputando hegemonia,
mamentismo é uma ideologia de lação inversa em outro período de esta é uma das principais razões do
dominação estatal sobre os indi- análise. O conjunto de evidências aumento no índice de homicídios
víduos, fruto de uma conspiração em que o MBL se ampara é tão frá- no Nordeste nos últimos anos.
internacional da esquerda. Quan- gil que até mesmo Levitt reduziu Além da intensificação da tragédia
do utilizam referências científi- as incongruências de suas conclu- e da violência que a multiplicação de
cas, elas são escolhidas a dedo de sões como parte de um “enigma”. armas trará para todos nós, a políti-
acordo com o propósito. É o caso da Entre os criminólogos e soció- ca policial do MBL e do ministro Sér-
citação do economista John Lott Jr., logos da violência, o consenso é o gio Moro é digna de um filme de hor-
cuja longa trajetória na apologia de inverso do propagado pelo MBL : a ror. Como se não bastasse a altíssima
leis armamentistas frouxas o tor- taxa de encarceramento não possui letalidade policial no país, sobretudo
nou o braço ideológico da National nenhuma relação de causalidade em estados em permanente “guerra
Rifle Association (NRA) nos Esta- com a redução da taxa de criminali- às drogas”, como o Rio de Janeiro, a
dos Unidos, organização sempre a dade encontrada. ideologia punitiva do senso comum
postos para fazer o lobby antirres- Há, inclusive, casos empíricos distorce até mesmo a realidade das
tricionário. Lott Jr. é alvo de críti- atestando todo tipo de relação: ações policiais. O discurso padrão
cas pelo Fórum Brasileiro de Segu- positiva, negativa e neutra. De é que policiais estariam morrendo
rança Pública e seus pesquisadores, acordo com o Departamento Peni- porque não podem se defender ade-
cujas análises apontam uma corre- tenciário Nacional, de 1990 a 2016, quadamente. O problema está nos
lação positiva entre menos armas e a população carcerária brasileira defensores de direitos humanos que
menos crimes com armas de fogo. aumentou 707% (de 90 mil para 726 perseguem policiais implacavelmen-

82
Entre os PÂNICO MORAL ACIMA DE TUDO

criminólogos
e sociólogos
da violência,
te e exigem punições injustas para o consenso lentos de homens contra mulheres
corporações inteiras. é o inverso do e de empresários contra trabalhado-
Por isso, a aliança MBL-Moro pro-
move pacotes anticrime com a pre- propagado pelo res e o meio ambiente. Seu objetivo
é esconder a todo custo que as prin-
sunção automática de inocência MBL: a taxa de cipais vítimas da violência urbana
para policiais que matam em servi-
ço. A polícia brasileira já goza de encarceramento não pertencem à classe média bran-
ca amedrontada, mas consistem em
um acobertamento estrutural por não possui jovens negros da periferia presos em
meio dos “autos de resistência”.
Nesse tema, a pesquisa do delegado relação de um ciclo vicioso de marginalização e
vulnerabilidade social.
Orlando Zaccone é de interesse causalidade Quando Kim Kataguiri publicou
porque analisa cerca de 300 pedi-
dos de arquivamento desses autos com a redução um vídeo no YouTube em que fala
de Karl Marx como se ele ainda
por parte dos promotores do da taxa de estivesse vivo durante o século 20,
Ministério Público. Segundo ele, o
discurso dos promotores toma criminalidade. é difícil não rir ou debochar dos
erros da direita que promove inten-
partido a favor dos policiais envol- samente o pânico moral contra um
vidos e coloca o holofote nas carac- suposto marxismo cultural. Só não
terísticas do local do evento, sobre- O MBL investe na narrativa sim- se pode ignorar que por mais que
tudo os territórios das favelas, e plória de enfrentar o crime pela for- pareçam despreparadas, as táticas
nos antecedentes criminais da víti- ça bruta porque isso funciona como do MBL e seus aliados vêm dando
ma; ou seja, “investigam-se os mor- discurso eleitoral. Já depois das elei- certo uma após a outra, com conse-
tos, e não as mortes”. Essa impuni- ções, a materialização do discurso quências irreparáveis para a socie-
dade padrão pode ser intensificada em política criminal é ineficaz na dade. É preciso afirmar que eles
ainda mais por uma política crimi- proposta de redução da insegurança distorcem fatos e mentem sobre a
nal desenhada sem qualquer preo- pública e gera uma espiral de violên- esquerda, mas isso não quer dizer
cupação com evidência concreta. cia que acomete tanto a força poli- que não tenham um projeto. O que
cial quanto a população civil. Esses pode parecer mero descaso ou falta
EFICÁCIA DE DANOS atores rebatem defensores de direi- de capacidade de gestão só ocorre
A coalizão de novos atores da direita tos humanos acusando a esquerda porque o efeito dessa situação é exa-
que vem mandando no Brasil advo- de manipulação ideológica “grams- tamente o desejado. O permanen-
ga uma concepção de segurança cista”, porém é a sua própria distor- te fracasso em atingir os objetivos
pública bélica, que prioriza o enfren- ção ideológica das razões e das cir- declarados é proposital, pois repro-
tamento militarizado no controle cunstâncias da criminalidade que duz as condições para continuar
do crime e expõe a força policial a coloca a sociedade em risco. A defe- intensificando o programa puniti-
grave risco de morte – a verdadeira sa do hiperencarceramento como vista, militarista e armamentista
razão por trás da alta taxa de mor- melhor resposta à violência serve como a solução que um dia vingará.
talidade policial. O mesmo ocorre para ocultar sua função real de cri- Enquanto isso, se promove um con-
em relação ao “cidadão de bem” que, minalização racista da pobreza. O trole funcional para perpetuar as
ao portar armas e visar a autodefe- foco em crimes patrimoniais e o dominações estruturantes da socie-
sa, acaba por se tornar mais vulne- pequeno varejo de drogas promove a dade brasileira. Sua política crimi-
rável à letalidade criminal do que supremacia da propriedade privada, nal é fraca e é por isso que, para os
se estivesse desarmado. enquanto menospreza crimes vio- propósitos da direita, é tão forte.

83
POR DANIELA MUSSI
E ALVARO BIANCHI ILUSTRAÇÃO LEOPOLDO MÉNDEZ

Os
inimigos
de
Gramsci
Há décadas, os conservadores
apresentam ANTONIO GRAMSCI
como símbolo de uma grande
ameaça. Eles não estão errados.

NO MUNDO
Em meados dos anos 1980, o intelectual conservador inglês Roger Scru-
ton fundou a revista The Salisbury Review, na qual publicou uma série
de artigos sobre intelectuais “de esquerda” do século 20. György Lukács,
Louis Althusser, Herbert Marcuse e Antonio Gramsci foram abordados
em sequência na coletânea intitulada Tolos, fraudes, alucinados: pensa-
dores da esquerda (1984). Scruton julgava haver uma guerra ideológica
em curso. Para ele, o conceito marxista de hegemonia podia ser definido
como uma ferramenta da “ideologia do domínio de classe” dos marxistas,
responsáveis por inculcar – ou “legitimar” – uma ideia de autoridade. Por
esse motivo, “nenhum pensador político na conjuntura europeia e norte-
-americana moderna pode ignorar as mudanças impostas à nossa vida
intelectual pelos escritores e ativistas da esquerda”, os propagadores da
“hegemonia”.
Ao discutir a esquerda emergente na Europa a partir da segunda meta-
de dos anos 1960, Scruton considerava estar diante de um consenso iné-
dito que ameaçava os “costumes, as instituições, a política dos Estados
ocidentais” e renovava a “teoria e a prática do comunismo”. Alertava,
assim, para o problema do “retorno do jacobinismo”, sintetizado agora
“emocionalmente” sob uma nova forma, não mais como disputa partidá-
ria pela condução das massas, mas como conjuração que “secretamente

85
OS INIMIGOS DE GRAMSCI

alcançará o objetivo comum” sem uma lide- meio dela, impulsionar transformações políticas e econômicas
rança definida de maneira estável. de longo prazo.
A principal referência política de Scru- Ainda no início dos anos 1980, o francês Alain De Benoist,
ton eram os levantes estudantis de 1968 na outro intelectual conservador, também dedicou-se ao pensa-
Europa e nos Estados Unidos. Em sua opi- mento de Gramsci. Diferente de Scruton, contudo, De Benoist
nião, essas manifestações junto com a nova assumiu uma atitude positiva diante da experiência dos movi-
edição dos Cadernos do cárcere, em 1975, e a mentos e protestos emergentes nos anos 1960, que percebera
difusão notável de escritos do autor em cur- como uma “novidade” na política ocidental. Assim, ele esfor-
sos universitários e organizações de esquer- çou-se em pensar nas possibilidades de criação de uma Nova
da levaram ao renascimento da influência Direita, que fosse uma antítese direta da renovação atravessada
de Gramsci. Este renascia como teórico polí- pelas esquerdas na Europa, e, para tal, apropriou-se de ideias
tico, crítico cultural, filósofo e cânone revo- gramscianas.
lucionário entre os círculos intelectuais e Já em janeiro de 1969, De Benoist fundou o Grupo de Pesqui-
políticos ávidos por uma “orientação moral sa e Estudos por uma Civilização Europeia (Grece), que visa-
e intelectual”. va a preparação político-cultural a partir do engajamento de
Gramsci teria elaborado, desse modo, uma intelectuais nacionalistas. Em 1981, o Grece realizou seu 16º
nefasta teoria da imposição da legitimidade Congresso com o tema “Por um gramscismo de direita”. Essa
do intelectual de esquerda sobre o homem proposta unificava o ativismo da “nova direita” em torno da
comum, uma estratégia na qual a liderança criação de organizações políticas conservadoras com uma
partidária clássica perdia espaço diante das abordagem cultural, algo inexistente nas experiências conser-
transformações “graduais” operadas pelos vadoras da época, mesmo entre representantes do nascente
especialistas na condução das massas. neoliberalismo.
Na visão de Scruton, as ideias gramscia- Para De Benoist, a principal contribuição de Gramsci seria
nas permitiam aos ativistas pós-1968 enxer- ajudar para o ideário conservador a recolocar as ideias conser-
garem a si mesmos como “intelectuais” e vadoras “no lugar”. Les idées à l’endroit foi justamente o títu-
“legisladores”. O que Gramsci chamava de lo do livro, publicado em 1979, no qual De Benoist reclamou a
“revolução passiva” – o processo de mudan- necessidade de uma direita que tivesse algo a dizer sobre inte-
ças graduais que desbloqueariam imper- lectuais como Gramsci. Uma direita capaz de superar a forma
ceptivelmente o surgimento de uma nova de “leninismo” espontâneo com a qual atuavam, a disputa ime-
ordem social – não passava de uma versão diata pelo poder político, e caminhar no sentido de um ativis-
esquerdista da boa e velha circulação das mo “gramsciano”, ou seja, um ativismo interessado nos efeitos
elites. Assim, a originalidade do pensamen- do “poder cultural” e “metapolítico” na correlação de forças
to gramsciano era perceber a existência de políticas. Esse interesse “cultural” era, segundo De Benoist, o
uma “nova hegemonia”, ao propor o domínio que diferenciava as Novas Esquerdas dos anos 1960 e 1970 das
de classe como fruto do encontro de “duas direitas que até então buscam se renovar sem sucesso; era pre-
forças”, os intelectuais de esquerda e as ciso confrontar as adversárias no terreno delas.
“massas”. Gramsci teria elaborado a verda- A Nova Direita francesa, por sua vez, nascida mais de polê-
deira teoria do fascismo, ou seja, a estratégia micas jornalísticas que de engajamentos intelectuais e inicia-
política de conformação de uma “unidade tivas sérias, deveria reencontrar uma estratégia para criticar
ideal” capaz de manipular a cultura e, por o igualitarismo socialista. A oportunidade para tal estaria nos

86
POR DANIELA MUSSI
E ALVARO BIANCHI

Gramsci teria
elaborado,
desse modo,
uma nefasta
teoria da
imposição da flancos da Nova Esquerda, particularmente na sua tendência

legitimidade a menosprezar e negar a política na sociedade de massas. Esse

do intelectual
flanco – o elitismo não deliberado das organizações novo-es-
querdistas – permitiria retomar o velho argumento do conser-

de esquerda vadorismo reativo das “maiorias silenciosas” e convertê-lo em

sobre o homem
“aceitação trágica do mundo”. Em outras palavras, permitiria
que as novas direitas elaborassem uma atitude política elitis-

comum, uma ta, mas não negativa e, justamente por isso, se apresentassem

estratégia na
como alternativa às esquerdas. As novas direitas, continuava
De Benoist, deveriam aproveitar o valor político de seu argu-

qual a liderança mento “massivista” para retomar o papel do conservadorismo

partidária
como explicação do mundo e das coisas. A atitude social crítica
que, nas novas esquerdas, encontrava seu limite na negação do

clássica “fascismo” e do “totalitarismo”, para as novas direitas, deveria

perdia espaço
ser tomada como ponto de partida, como “aceitação trágica”.
A América Latina também viveu uma reação conservadora

diante das ao pensamento de Gramsci a partir dos anos 1980. Em 1984, o

transformações
número inaugural da revista católica argentina Gladius discu-
tiu a “penetração marxista na América Latina” e, mais especi-

“graduais” ficamente, o papel da educação no pensamento revolucioná-

operadas pelos
rio gramsciano. Na sua apresentação, a revista de orientação
tomista anunciou a existência de uma “guerra contracultural”

especialistas em curso na Argentina, representada pela falta de “respeito à

na condução
vida, ao amor, à pátria, à família, ao matrimônio [...], à distinção
entre os sexos e mesmo à condição humana de ser livre e inte-

das massas. ligente”. O papel de Gramsci nessa ofensiva era o de recuperar o


valor das ideias e do pensamento, ao afirmar a mudança social
como uma mudança no espírito humano.
Gramsci teria compreendido que uma revolução comunista
como a de 1917 na Rússia jamais ocorreria na Itália e teria ela-
borado “grandes teses” sobre como essa transformação poderia
se dar por outro caminho. A filosofia da práxis, nesse sentido,
seria uma tentativa de pensar a “resolução pacífica das contra-
dições existentes na história e na sociedade”, ou seja, a ante-
cipação por meio de consensos na superestrutura das trans-
formações estruturais necessárias para vencer a burguesia. Daí
o interesse especial de Gramsci pelos intelectuais, seu esforço
por convencê-los de que não é possível “saber sem compreen-
der, sem sentir e estar apaixonado”, ou seja, de que não é pos-
sível pensar sem aproximar-se do povo, “entendê-lo historica-

87
OS INIMIGOS DE GRAMSCI

Para os
conservadores
estadunidenses,
a única barreira
entre a
mente e relacionar dialeticamente as suas necessidades a uma hegemonia
concepção superior do mundo”. A conexão sentimental seria o
gramsciana e
as consciências
cerne da relação entre intelectuais e povo, o antídoto contra a
burocratização e o formalismo.
Para tal, Gramsci teria formulado uma nova concepção de
das pessoas
seria a
elites intelectuais, fruto da fusão entre a especialidade do ofí-
cio e a atividade política. Competindo entre si, elas atuariam
como vanguarda da revolução comunista, ou seja, como promo-
“alma cristã”.
Destruí-la era
toras de uma revolução cultural. A formação dessas elites não
seria improvisada ou descontínua, mas resultado de um plano
de “reforma intelectual e moral” intimamente associado a um
seu principal
objetivo.
plano de “reformas econômicas”. Gramsci, nesse sentido, teria
“continuado a via aberta por Lênin”.
Na América Latina, afirmavam os católicos da Gladius, a
maior expressão da política gramsciana era a capacidade de
penetração ideológica, uma forma de luta muito mais perigosa
do que as tentativas de confronto armado revolucionário dos
anos 1960 e 1970. No terreno ideológico, continuavam, existia
o risco da “mimetização” e “infiltração” do pensamento revo-
lucionário, o que seria realizado por meio das “ambiguidades”
e “elipses” do discurso, do poder de atração deste sobre cer-
tas “mentalidades ávidas”. A luta ideológica revolucionária no
continente se desdobrava principalmente em duas direções.
Em primeiro lugar, no papel do terceiro-mundismo e do “indi-
genismo” como concepções histórico-culturais “de agitação
antibrancas”, ou seja, “que renegam de maneira expressa o des-
cobrimento e o sentido cristão-católico, mariano-missional e
greco-romano da Conquista, Civilização e Evangelização des-
sas terras [latino-americanas]”. Em segundo lugar, a luta ideoló-
gica se daria com a política de direitos humanos que era apre-
sentada e exercida como “constante preservação, justificação e
apoio ao avanço do comunismo”. Em outras palavras, a “ideo-
logização” aqui se referia ao fato de que a defesa dos direitos
humanos promovida por “grupos de solidariedade”, entidades,
associações e organismos internacionais, levaria à crítica e
mesmo à defesa da criminalização das atitudes repressivas de
ditaduras militares no continente. Era uma poderosa “ideolo-
gia dos direitos humanos”, portanto, que servia na prática para
“justificar ou tolerar agentes da subversão”. Ou uma política
“ideológica”, que, no caso da Argentina, assumia uma conota-

88
POR DANIELA MUSSI
E ALVARO BIANCHI

ção mítica no movimento forte e expansivo Latina nos anos 1990, o relatório de L. Francis Bouchey, Roger
das Mães da Praça de Maio. Fontaine, David C. Jordan e Gordon Sumner apresentava como
Nos Estados Unidos, os conservadores uma das principais consequências dessa influência o fortale-
não demonstraram a mesma sofistica- cimento de uma ideologia “estatista” e favorável à Teologia da
ção dos ingleses, franceses ou mesmo dos Libertação em praticamente todos os países latino-americanos.
católicos argentinos e desenvolveram uma O relatório do Comitê Santa Fé circulou amplamente nos
visão de mundo estranha e conspiratória, meios militares da América Latina. Em um notório contexto
na qual não apenas os agentes da conspira- de enfraquecimento da argumentação conservadora a respei-
ção seriam conhecidos, como também seus to de uma suposta ofensiva soviética e terrorista na região, a
propósitos. Em 1988, no segundo relatório subversão comunista adquiria outros contornos: por um lado,
do Comitê Santa Fé – um think tank con- como difusão do tráfico de drogas; por outro, como expansão
servador elaborado durante o governo de da influência de intelectuais de esquerda inspirados pelas ideias
Ronald Reagan com foco na América Latina de Gramsci, em especial por meio de uma reinterpretação de
–, a influência das ideias de Gramsci sobre o valores éticos e religiosos. O acompanhamento sistemático das
continente foi mencionada explicitamente. transições democráticas no continente – influenciando a “cultu-
Intitulado Uma estratégia para a América ra política” dos novos regimes – seria a única maneira de enfren-

89
OS INIMIGOS DE GRAMSCI

tar tais ameaças e garantir a manutenção de através das instituições da sociedade, incluindo o governo, o
uma estrutura de Estado permanente (no judiciário, os militares, as escolas e a mídia”. A conclusão de
meio militar e judicial). Rahen era a de que o “multiculturalismo pode ser visto como
Para a opinião pública estadunidense, a um meio de romper o controle da hegemonia cultural tradicio-
denúncia dessa conspiração gramsciana à nal na sociedade americana”.
luz do dia assumiu tons estridentes no iní- Para os conservadores estadunidenses, a única barreira
cio dos anos 1990, com o radialista Rush entre a hegemonia gramsciana e as consciências das pessoas
H. Limbaugh, autor do best-seller The way seria a “alma cristã”. Destruí-la era seu principal objetivo.
things ought to be (1992). De acordo com Essa aproximação entre um discurso político conservador
Limbaugh, Gramsci preconizara a neces- e um discurso religioso de tons fundamentalistas marcaria
sidade de uma “longa marcha dentro das os ataques a Gramsci no contexto estadunidense. As amea-
instituições” antes que “socialismo e rela- ças à cultura Ocidental denunciada pelos conservadores eram
tivismo sejam vitoriosos”. O objetivo do interpretadas, também, como uma ameaça ao cristianismo.
pensador era “mudar o modo como toda a
sociedade pensa sobre seus problemas Para O GRAMSCI QUE FEZ OLAVO
começar, você tem que subverter e minar a A demonização de Gramsci desembarcou no por aqui alguns
crença em Deus”. anos depois. O artífice desse movimento foi o escritor Olavo
O radialista acreditava que embora o “obs- de Carvalho, que transpôs para o Brasil, às vezes de modo lite-
curo comunista italiano” fosse um desco- ral, os argumentos de Lind e Limbaugh. Já no primeiro livro de
nhecido, os think tanks da esquerda “louva- sua trilogia, A nova era e a revolução cultural (1994), Carvalho
riam” seu altar. A partir dos anos 2000, essas tratava Gramsci como a imaginação diabólica que interpreta-
teorias conspirativas foram reunidas sob a va e dava sentido ao mal. O texto desse volume tem as marcas
bandeira do “marxismo cultural”, o qual, nas da pressa. O próprio autor já havia admitido conhecer pou-
palavras de um especialista em assuntos co o assunto. A erudição superficial cedia lugar ao argumento
militares, o conservador William S. Lind, fácil, aos exemplos da política contemporânea, à prosa rude
teria traduzido o marxismo “de termos eco- e, por vezes, sexista. Os erros biográficos e os anacronismos
nômicos para culturais”. Nessa operação, a se amontoam, e eram até divertidos, como a referência a uma
“teoria da hegemonia cultural” de Gramsci suposta “filha” de Gramsci, pai de dois meninos.
defendia que a criação de um “novo homem Carvalho afirmou ter começado a falar publicamente sobre
comunista” deveria ocorrer antes que “qual- o “gramscismo petista” em 1987. O ano coincide com o 5º
quer revolução política fosse possível”. Para Encontro Nacional do Partido dos Trabalhadores (PT), primeiro
tal, seria necessário concentrar “os esforços no qual houve algum debate sobre a estratégia do partido. Os
dos intelectuais nos campos da educação e documentos do partido falavam de hegemonia, de sociedade
da cultura”. civil, de blocos políticos. Os significantes eram gramscianos,
A ideia de uma “longa marcha”, na qual mas os significados não. Pouco importa. Carvalho concordava
ecoava a lembrança da façanha histórica de com uma esquerda convencida de que a realização da hegemo-
Mao Tsé-Tung na China, parece recorrente. nia implicava uma “grande marcha da esquerda para dentro do
Segundo Raymond V. Raehn, colaborador aparelho de Estado”. Aqui estava a ameaça que punha em risco
de Lind na crítica ao “politicamente corre- o mundo como conhecido até então. O mal poderia encarnar
to”, “Gramsci vislumbrou uma longa marcha neste ou naquele, mas residiria em uma força que está além de

90
POR DANIELA MUSSI
E ALVARO BIANCHI

Assim, diante
de tal ameaça,
a única maneira
de enfrentar
o avanço do
gramscismo todos e que a todos dominaria: “não é só o PT que segue Grams-

seria por meio ci; todos os homens de esquerda neste país o fazem há uma

da conformação
década, sem se dar conta”.
Carvalho insistiu nessa tese. Não é que o “número dos adep-

de um “novo tos conscientes e declarados do gramscismo” fosse grande. Pelo

centrão”,
contrário. Mas o “gramscismo não é um partido político, não
precisa de militantes inscritos e eleitores fiéis”. Ele é um “um

recuperando, conjunto de atitudes mentais” presentes em indivíduos que

reorganizando
provavelmente nunca ouviram falar daquele “maldito corcun-
da” e que colaboram com uma estratégia política “sem ter dis-

e devolvendo so a menor consciência”. Gramsci seria, finalmente, a famosa

o devido
estrutura sem sujeitos.
A ameaçadora estratégia que atrai os incautos e os põe a fazer

protagonismo aquilo que não sabem é a hegemonia. Na versão peculiar de Car-

às forças
valho, a hegemonia é a aparente negação da política: “nada de
política, nada de pregação revolucionária”. A hegemonia atua-

“reprimidas” ria em um nível pré-político, com o propósito de “operar um

no processo
giro de 180 graus na cosmovisão do senso comum, mudar os
sentimentos morais, as reações de base e o senso das propor-

da transição ções”. Isso é o que seria imperdoável em Gramsci e o tornaria

democrática
o inimigo número um da direita conservadora: estabelecer as
concepções de mundo como um campo em disputa, colocando

brasileira. em risco os valores da civilização cristã-ocidental.


No início dos anos 2000, no contexto de emergência do PT
como alternativa eleitoral de esquerda a sucessivos governos de
orientação neoliberal agressiva, a ameaça “gramscista” reapare-
ceu no ambiente cultural dos intelectuais conservadores brasi-
leiros e chegou aos meios militares. A revolução gramscista no
ocidente (2002) foi o título dado pelo general Sérgio Coutinho
ao livro que reapresentava os perigos da circulação das ideias
de Gramsci no Brasil. Para o autor, o pensamento gramsciano
brasileiro, nascido das tentativas terroristas fracassadas de
impedir o avanço da “revolução de 1964”, buscava agora uma
“via pacífica” para o poder, inspirado na experiência euroco-
munista. Nessa interpretação, a estratégia “gramscita” teria
começado a ser organizada pelo Partido Comunista Brasileiro
(PCB) já nos anos 1970 como plano para uma transição tempo-
rariamente não violenta para a democracia – um “interlúdio
democrático-burguês”. Em seguida, as minorias comunistas
ativas nesse processo teriam atuado na disputa ideológica do

91
OS INIMIGOS DE GRAMSCI

92
POR DANIELA MUSSI
E ALVARO BIANCHI

processo constituinte nos anos 1980, acuan- antigramscianos parece exigir um exame detido do papel que
do as “maiorias democráticas” e preparando as ideias gramscianas cumprem na gramática do pensamento
o terreno para a tomada do poder. político das chamadas novas direitas. No final do século 20,
Na interpretação do general, o floresci- as ideias de Gramsci foram escolhidas como ponto de partida
mento da influência das ideias gramscianas para a exploração e apresentação de um novo terreno do confli-
em diversos partidos brasileiros de esquer- to político, não mais marcado pela divisão do mundo em dois
da e centro-esquerda desde então e a emer- polos nítidos. A luta de classes, afirmavam unanimemente os
gência eleitoral do PT durante os anos 1990 intelectuais conservadores, se deslocava para a esfera pouco
significavam o coroamento do gramscismo distinguível da “cultura”, da “rede de valores”, das ideologias.
como estratégia política. A ameaça grams- Apesar disso, muitas foram as maneiras de encarar esse ini-
cista se expressava na difusão rápida da migo comum da “civilização europeia”, dos valores católicos
ideia de um “novo socialismo” como ele- e da tradição militarista na América Latina, ou das “liberda-
mento desencadeador de uma “guerra psi- des” seculares da nação norte-americana. Para alguns, Grams-
cológica” com vistas a enfraquecer, esvaziar ci representava um conjunto de ideias a ser desmascarado e
e constranger instituições capitalistas, as repudiado em seus fundamentos; para outros, seu arcabouço
forças armadas e a Igreja. Para isso, aliás, os teórico precisava ser absorvido e transcrito em chave neocon-
partidos, não atuavam apenas como diver- servadora; para outros ainda, seria preciso vigiar as experiên-
sos “aparelhos de hegemonia [que] adquirem cias políticas e culturais das novas democracias que desvela-
função estatal”, tal como as Organizações vam nas mesmas formas renovadas de subversão comunista
Não Governamentais (ONGs) e movimentos inspiradas por Gramsci. Todos os intelectuais antigramscia-
sociais. Assim, diante de tal ameaça, a única nos, contudo, acreditavam que o pensador e dirigente sardo
maneira de enfrentar o avanço do gramscis- representava, antes de mais nada, a continuidade de uma
mo seria por meio da conformação de um ameaça profunda.
“novo centrão”, recuperando, reorganizando As ideias de Gramsci, mesmo sob os escombros da já esquá-
e devolvendo o devido protagonismo às for- lida experiência “oriental”, continuaram a inspirar e nortear
ças “reprimidas” no processo da transição desejos revolucionários. Seus escritos e cartas carcerários,
democrática brasileira. em especial, haviam deixado a marca indelével da resistência
metódica e paciente em um século que emanava um aroma
CONSERVADORISMO UNIFICADO pestilento de triunfalismo e barbárie. Gramsci ensina, afinal, a
No final dos anos 2010, a reconstrução da pensar e agir nas piores condições, materiais e subjetivas, e por
trajetória das ideias de Gramsci entre inte- isso suas ideias e conceitos são capazes de se converter em lín-
lectuais conservadores ao redor do globo gua franca da resistência dos grupos subalternos em vários paí-
ganha uma importância particular. Nos ses do mundo. A reconstrução do pensamento antigramsciano,
meios acadêmicos e na pesquisa especia- em suas diversas vertentes, pode revelar reflexos distorcidos
lizada, essas interpretações não possuem dessa língua, como modulações antagonistas dos esforços para
um valor intrínseco e, talvez por isso, não impedir a derrota definitiva da utopia socialista. Ironicamente,
tenham chamado atenção. No ambiente portanto, o pensamento de Gramsci faz parte do espólio dispo-
político, contudo, a emergência de lideran- nível aos arqueólogos de um passado de lutas sociais radicais e
ças e – novos e não tão novos – polemistas do reencontro deste com novas antíteses vigorosas.

93
Casa
Grande

Exemplo de falácia
da direita vai aqui
CASA GRANDE
GIRONDINOS POR JONES MANOEL

O anticomunismo
que a esquerda gosta

Enquanto a direita
promove delírios sobre
uma conspiração
¶ ANNIE LACROIX-RIZ, Roger Keeran, Thomas Kenny e Robert
marxista, parte da Thurston são exemplos de intelectuais que nos últimos anos lan-
çaram obras fundamentais sobre a história do movimento comu-
esquerda continua
nista – principalmente na União Soviética – e tiveram seus livros
rendida à versão traduzidos ou resenhados em países como a Bulgária, Rússia, Irã,
Turquia, Grécia, Portugal, França, Cuba, Itália, Estados Unidos,
histórica da classe
Venezuela, China e Espanha. Lacroix-Riz é autora de A escolha
dominante da derrota: as elites francesas na década de 1930 (2006); Keeran
e Kenny publicaram O socialismo traído: por trás do colapso da
União Soviética (2004). Thurston responde pelo indispensável
Vida cotidiana e terror na Rússia de Stálin 1934-1941 (1996). Infe-
lizmente nenhuma dessas obras foi publicada no Brasil.
Há vários outros exemplos de ensaios com relevância inter-
nacional, porém ausentes da discussão brasileira. Nos últimos
trinta anos, desenvolveu-se uma ampla corrente historiográfica
e política de reavaliação da história do movimento comunista,
que busca repensar consensos, apresentar novas interpretações
e destruir vários mitos construídos durante a Guerra Fria. Dessa
ampla corrente intelectual e política, chegaram ao Brasil apenas
algumas obras da historiadora estadunidense Wendy Goldman e
do filósofo italiano Domenico Losurdo.
Inclusive, pode-se afirmar que esses autores não possuem
qualquer influência na universidade e na militância de esquer-
da brasileira. O número de laboratórios de pesquisa e grupos de
estudo dedicados à história do movimento comunista registrado
nos bancos de dados de diversas entidades de pós-graduação
(Capes, CNPq etc.) não chega a três dezenas. No corpo acadêmico
brasileiro, conta-se nos dedos o número de especialistas que tem
como problema de pesquisa as experiências socialistas e seus
desdobramentos.
Enquanto isso, na centro-esquerda partidária, composta
por PT, PCdoB , PDT e PSB , com exceção do PCdoB , não há mais

96
Um espaço vazio, na política, nunca
está realmente vazio. Essa lacuna
cria oportunidade para uma Esse balanço histórico foi tão

ideologia liberal e anticomunista forte que tomou a dimensão de uma

atravessar o quase-deserto de
verdade autoevidente. Há mais de
trinta anos, é impossível se afirmar

ideias e pesquisas e apresentar um marxista, para fora e para dentro


da esquerda, sem a obrigatoriedade
balanço histórico do século 20 que de proferir palavras envergonhadas

reflete a ótica dos vencedores. sobre os “erros” do passado. A mea


culpa é o que permite se assumir
uma posição de respeitabilidade.
Nessa mea culpa mecânica, no
entanto, mora um senso comum
nenhuma preocupação sistemáti- UM ROMANCE liberal e anticomunista que é
ca de pesquisa ou debate sobre a ANTICOMUNISTA bastante útil para dois espectros
história das experiências socialis- A partir da Guerra Fria, os intelec- políticos aparentemente antagôni-
tas. Já entre PCB, PSTU, PCO, PCR e tuais anticomunistas ocidentais cos, mas ao mesmo tempo comple-
PSOL , que são partidos no campo foram responsáveis por manejar a mentares. Conservadores, liberais
radical com orientação socialista construção de uma visão de con- e afins, como apologistas diretos
– clara ou difusa –, essa preocupa- flito entre a democracia liberal e o da ordem, reproduzem esse balan-
ção ainda existe. Entretanto, ela totalitarismo. Essa produção ideo- ço ideológico do século 20 para blo-
não é massiva nem tem influência lógica alega que o século passado quear quaisquer reflexões e iniciati-
pública para pautar o debate sobre foi marcado por uma divisão entre vas políticas socialistas. A esquerda,
o tema. O PSOL é o partido mais valores liberais e valores comu- que em tese se contrapõe à ordem,
estruturado desse campo e além nistas, ou seja, uma dicotomia; em encontra nos liberais, sociais-demo-
de uma ou outra intervenção pon- outras palavras, uma luta entre o cratas e desenvolvimentistas uma
tual, não se notam esforços unifi- bem e o mal. O liberalismo garantia posição passível de ser caracteriza-
cados e ampliados nesse sentido. liberdades individuais, democra- da como apologia indireta à ordem
Esse cenário impõe a conclusão cia política e um padrão de vida e capitalista. O resultado é a reprodu-
incontestável de que existe nas consumo superior ao do “comu- ção desse senso comum para se legi-
ciências sociais e na cultura políti- nismo”, enquanto as experiências timar como única esquerda possível:
ca brasileira não só uma profunda socialistas, mesmo reconhecidas uma esquerda responsável e moder-
ignorância, bem como um espaço como uma tentativa de construir na, uma esquerda atualizada para o
vazio quando o tema é o movimen- a igualdade socioeconômica, aca- século 21. Isso só contribui, de fac-
to comunista e suas experiências bavam com liberdades indivi- to, para bloquear a possibilidade e a
no século passado. Contudo, um duais, democracia política, e eram construção de um horizonte político
espaço vazio, na política, nunca responsáveis por criar economias socialista. Os dois grupos, em última
está realmente vazio. Essa lacuna ineficientes e com miséria, atraso instância, atuam como intelectuais
cria oportunidade para uma ideo- e desabastecimento. Estas últimas da ordem.
logia liberal e anticomunista atra- eram aproximadas do nazifascis- A classe dominante global siste-
vessar o quase-deserto de ideias e mo, o maior exemplo de horror do maticamente iguala nazismo e
pesquisas e apresentar um balanço passado recente da humanidade. A “comunismo” soviético. O ponto
histórico do século 20 que reflete a interpretação liberal do totalitaris- mais sofisticado dessa operação é o
ótica dos vencedores. mo não só engloba, como iguala, o livro de Hannah Arendt As origens
nazifascismo ao “comunismo”. do totalitarismo (1951). Por meio do

97
GIRONDINOS

argumento de totalitarismo, é pos-


sível, sem quaisquer problemas,
realizar uma série de comparações
formalistas e falsas entre os supos-
tos extremos – com o nazismo sen-
do o auge da extrema direita e
comunismo o auge da extrema-es-
querda – a fim de legitimar uma
“terceira via”. Da categoria mais
refinada de totalitarismo até a vul-
garização do viral na internet
conhecido como “teoria da ferradu-
ra”. A ideia de que os “extremos” são
todos iguais e se encontram, está
apenas a um passo de nós.
O Brasil dos últimos tempos é A despeito dos possíveis méri- Marchas da Família com Deus Pela
farto de exemplos dessa atitude tos acadêmicos e jornalísticos dos Liberdade? E por qual razão compa-
em meios de comunicação voltados exemplos citados, é certo que todos rar Bolsonaro e seus vassalos com
para o campo da esquerda. O libe- se baseiam no balanço dominan- Hugo Chávez e Lênin e não com o
ralismo presente dentro do guar- te para fazer “análises” formalis- Patria y Libertad e o ditador chile-
da-chuva do progressismo permite tas e, portanto, necessariamente no Augusto Pinochet? E mais, qual
que esse discurso ganhe alcance e forçadas e simplistas com vistas a a necessidade de analogias pouco
legitimidade acima dos pontos crí- equiparar supostos “extremos”. O consistentes para o entendimento
ticos da “extrema-esquerda” e dos questionamento a esse tipo de com- de um fenômeno histórico?
seus “radicalismos”. Nesse escopo, paração absurda é recebido com
é possível encontrar frequente- o argumento de que é necessário A MORTE DA AUTOCRÍTICA
mente intelectuais comparando os fazer a devida “autocrítica” e repu- Quando as constantes cobranças
métodos do bolsonarismo e aque- diar os “erros do passado”. Nisso, a por “autocrítica” e por “reconhecer”
les da Revolução Cultural chinesa. autocrítica, importante elemento os erros do passado exigem adesão
A Coreia do Norte não fica de fora, na dialética marxista e fundamen- direta ao balanço dominante, elas
sendo caracterizada como o Brasil tal na avaliação estratégica e orga- geram o efeito contrário: impedem
que o bolsonarismo quer, exceto nizacional, é reduzida, na prática, a um balanço crítico da história do
que à direita, em matérias de revis- aceitar o balanço histórico da ideo- movimento comunista no século
tas de esquerda. A era inaugurada logia dominante. 20. O dirigente comunista italiano
pela eleição de Jair Bolsonaro no Um observador atento irá se per- Palmiro Togliatti, ao deparar com o
ano passado é bastante frutífera guntar: por que comparar o bolso- discurso soviético no XX Congres-
para o gênero de crítica antico- narismo com a Revolução Cultural so do Partido Comunista da União
munista realizado pela esquer- e não com o macarthismo? Qual o Soviética, em 1956, afirmou que
da progressista e gera até mesmo sentido de tentar assimilar a defe- antes todos os méritos e qualida-
comparações entre a concepção sa reacionária da família feita pela des eram atribuídos a Stálin, agora
conservadora de família do bol- extrema direita com o “stalinismo” todos os erros e brutalidades eram
sonarismo e de Olavo de Carvalho – seja lá o que for tomado por sta- também atribuídos ao dirigente
com uma suposta concepção con- linismo pelo locutor – e não com a soviético – em um movimento do
servadora do stalinismo. tradição cristã conservadora das culto positivo ao culto negativo de

98
O ANTICOMUNISMO QUE A ESQUERDA GOSTA

Quando as constantes
cobranças por “autocrítica” e
por “reconhecer” os erros do
passado exigem adesão luta política passa pela construção

direta ao balanço dominante,


de um novo balanço histórico, não
só do século 20, como da moderni-

elas geram o efeito contrário: dade burguesa em sua totalidade.


Para combater a ideologia domi-
impedem um balanço crítico nante, é necessário escovar a his-

da história do movimento tória à contrapelo, criticando dura-


mente todos e cada um dos nossos

comunista no século 20. erros, mas valorizando o nosso


legado emancipatório sem cair no
anticomunismo. Criar, a partir de
um esforço intelectual e militante,
uma historiografia dos de baixo
que busca recontar a história da
sua personalidade. Tanto em um ral. Com o fim da União Soviética e modernidade pelo ponto de vista
caso como no outro estamos bem do Movimento Terceiro-Mundista, dos explorados e dos oprimidos.
longe de uma análise marxista. como diria o ideólogo do imperialis- Um esforço que é, também, acadê-
Nesse contexto histórico-político, mo Francis Fukuyama, parecia que mico, mas que vai muito além dos
surgiram marxistas que descarta- tínhamos chegado ao fim da histó- muros da universidade.
vam tanto o investimento historio- ria. A história, porém, não acabou. A O verdadeiro sentido da noção
gráfico quanto o legado do século 20 decadência do Ocidente, fundamen- corrente de “autocrítica” é uma
com as caracterizações do socialis- tado no comando dos Estados Uni- arma da classe dominante para pro-
mo passado como mero capitalismo dos e tendo como principais sócios mover a liquidação da identidade e
de estado. Ao mesmo tempo, muitos a União Europeia e o Japão, provoca história comunista. É também uma
outros assumiram uma postura de um profundo mal-estar nas fileiras forma de aprisionar o comunismo
defesa acrítica do legado do movi- liberais de esquerda e direita. Há no século passado, onde a história
mento comunista. Esse tipo de lou- que se destacar que o mal-estar é teria supostamente se findado.
vação objetificadora, além de equi- potencializado porque o maior pro- A teoria da luta de classes exi-
vocada, impede que o movimento motor dessa decadência, a China, ge o resgate de nossa história. Na
aprenda com suas falhas. Assim, um além de ser um país “oriental”, tem guerra, tem mais chance de vencer
pêndulo se forma entre o idealismo no seu comando um partido que se aquele que for destruindo as prin-
de esquerda que afirma “nunca ter considera comunista. cipais armas do inimigo. Nunca é
existido um socialismo de verdade” A confusão entre a autocrítica demais lembrar que os intelectuais
e uma leitura religiosa do marxismo e o anticomunismo de base libe- da burguesia não têm compromisso
dedicada a tratar como perfeitas ral dentro de amplos setores da em fazer um balanço histórico
as experiências do século passado. esquerda brasileira e mundial não é equilibrado e sério que destaque,
Apenas a crítica radical pode com- apenas um erro teórico. É também por exemplo, as contribuições e os
bater o anticomunismo progressista um reflexo, no sentido lukacsiano, objetivos emancipatórios do comu-
ou conservador. de interesses de classe muito con- nismo. Como diz um belo ditado
O tipo de balanço histórico do cretos. O que se afirma e reafirma africano “Até que os leões tenham
século 20 necessário – e que ganha é uma defesa da ordem com ares seus próprios historiadores, as his-
novo fôlego nos dias atuais – é uma de esquerda ou de direita. O alarga- tórias de caçadas continuarão a
espécie de grito da hegemonia libe- mento de horizontes socialistas na glorificar o caçador”.

99
CASA GRANDE POR ADRIENNE PINE ILUSTRAÇÃO
TERMIDOR TRADUÇÃO EVERTON LOURENÇO RODRIGO CORRÊA

Cruzada
Gospel Ltda.

Com a ajuda das igrejas dos


Estados Unidos, a direita
evangélica conquistou uma
base na América Central.

¶ EM MARÇO DE 2018, o vice-presidente dos Estados O golpe foi um desastre. Rapidamente transformou
Unidos, Mike Pence, teve uma reunião amigável com o a pequena nação centro-americana no narcoestado
presidente de extrema direita de Honduras, Juan Orlan- mais assassino do mundo e abriu as portas para que a
do Hernández. Isso não foi apenas um sinal do avanço direita evangélica tivesse um papel maior na política
da direita em um número crescente de países, mas tam- hondurenha. Menos de um mês depois da remoção de
bém outro capítulo na história muitas vezes obscurecida Zelaya, o general evangélico e chefe das Forças Arma-
da influência evangélica na política latino-americana. das, Romeo Vásquez Velásquez, treinado na Escola das
No ano anterior, Hernández tinha reunido os princi- Américas (School of Americas Watch – SOA), fez um
pais televangelistas de Honduras para um dia de ora- discurso gravado para os fiéis reunidos na Conferên-
ção no palácio presidencial, com o intuito de ajudar a cia do Governo do Reino, em Miami. Ele considerou o
resolver as múltiplas crises do país. Apesar dessas cri- golpe um ato de lei e ordem da vontade de Cristo. A AJS
ses estarem diretamente ligadas à militarização patro- ecoa esse sentimento, definindo seus membros como
cinada pelos Estados Unidos, à reestruturação neoli- “cristãos corajosos dedicados a fazer o sistema de leis
beral e às consequências caóticas do golpe de 2009, e o governo de Honduras funcionar corretamente para
apoiado por Washington, o evento seguiu o modelo levar a justiça aos pobres e inspirar outros cristãos a
dos dias nacionais de oração anteriores, conduzidos praticar a justiça (Miquéias 6:8)”.
por um aliado de Hernández, a ONG evangélica esta- A influência nefasta dos evangélicos estaduniden-
dunidense Associação por uma Sociedade Mais Justa ses na região não é nenhuma novidade – remonta a
(Association for a More Just Society –AJS). décadas. Para esses grupos, esmagar o “comunismo”
A AJS é a representante mais fiel do Departamento de e converter as populações historicamente católicas
Estado dos Estados Unidos em Honduras. Como Pen- da América Central a uma variedade radicalmente
ce, Hillary Clinton (que tem laços com o grupo evan- individualista de cristianismo são objetivos comple-
gélico de extrema direita A Família), e Hernández, a AJS mentares. Em particular nas décadas de 1970 e 1980,
apoiou entusiasticamente o golpe de 28 de junho que enquanto movimentos revolucionários inspirados
derrubou o presidente hondurenho democraticamente pela Teologia da Libertação desafiavam os regimes
eleito, Manuel Zelaya. apoiados por Washington na região, a direita cristã

100
101
TERMIDOR

dos Estados Unidos assumiu a liderança na elabo-


ração e implementação de projetos contrarrevolu-
cionários – entre eles esquadrões da morte patroci-
nados pela CIA – como um elemento central do seu
trabalho missionário.
O grupo de fanáticos preferido de Hillary Clinton, A
Família, organiza desde 1953 o Café da Manhã Nacional
de Oração, no hotel Hilton em Washington; presiden-
tes e congressistas se misturam com aliados religiosos
de todo o mundo, em meio a ovos e suco de laranja. Em
1984, os convidados especiais incluíam o general sal-
vadorenho Carlos Eugenio Vides Casanova e o general
hondurenho Gustavo Álvarez Martínez, ambos asso-
ciados à infame Escola das Américas. Além de celebrar assassinos em massa nos cafés da
Em 2002, um júri da Flórida julgou Vides Casanova manhã de oração, a direita cristã forneceu apoio mate-
responsável pela tortura de civis, incluindo o ampla- rial significativo para os projetos contrarrevolucioná-
mente divulgado estupro e assassinato em 1980 de rios nos anos 1980. Organizações evangélicas como a
quatro mulheres estadunidenses – três freiras cató- Cruzada Gospel, Ltda. (Gospel Crusade, Inc.) e os Times
licas e uma missionária leiga. Depois de uma batalha Cristãos de Socorro de Emergência (Christian Emergen-
legal de dezesseis anos, ele foi finalmente extraditado cy Relief Teams) forneciam apoio econômico e logístico
para El Salvador em 2015; no entanto, até o momen- para as forças dos Contras na Nicarágua, que buscavam
to ele só respondeu pela tortura e/ou assassinato de derrubar o governo revolucionário sandinista. Esses
sete pessoas. Especialistas afirmam que de 60 a 80 mil grupos também receberam ampla ajuda logística de Ollie
civis morreram nas mãos dos militares durante a guer- North, um cristão convertido que notoriamente canali-
ra suja em El Salvador – a grande maioria entre 1980 zava para os Contras os lucros que ganhava empurrando
e 1983, período em que Vides Casanova era chefe da cocaína a comunidades negras e vendendo armas ao Irã,
Guarda Nacional. depois que o Congresso dos Estados Unidos se recusou a
Álvarez Martínez, a quem o presidente norte-ame- alocar fundos para os grupos na Nicarágua.
ricano Ronald Reagan concedeu uma medalha em O magnata evangélico Pat Robertson também era
1983 pelo mérito de “encorajar o sucesso de processos um importante arrecadador de fundos para os Con-
democráticos em Honduras”, era o chefe das Forças tras. Denunciando a “covarde submissão dos nossos
Armadas hondurenhas (1982-84), supervisionando líderes e do Congresso às demandas do comunismo”,
diretamente o Batalhão 3-16 – um esquadrão da morte Robertson viajou para um de seus acampamentos
treinado pela CIA e operando sob as bênçãos do então na Nicarágua a fim de pregar o evangelho e dar seu
embaixador estadunidense John Negroponte. O Bata- apoio. No auge da guerra suja, o Clube 700 de Robert-
lhão 3-16 fez desaparecer ou assassinou pelo menos son transmitia programas de televisão no Canal 4 de
184 hondurenhos durante os anos 1980, a maioria sob El Salvador (filiado ao partido de direita Arena), sub-
o comando de Álvarez. Um mês depois de participar metendo os telespectadores a longas diatribes sobre
do Café da Manhã Nacional de Oração do A família, Jesus e as glórias das ditaduras militares da região.
em Washington, Álvarez foi deposto e mudou-se para Os carniceiros de El Salvador (que no auge da guerra
Miami, onde se tornou um fervoroso cristão evangéli- suja, recebiam mais de um milhão de dólares por dia
co. Reivindicando sua Bíblia como a única proteção de do governo Reagan), gozavam do apoio de inúmeras
que precisava, Álvarez retornou a Honduras em 1989 outras organizações cristãs, incluindo os Ministé-
como um pregador de rua; foi prontamente abatido. rios Paralife. O emissário da Paralife, John Stern, teve

1 02
CRUZADA GOSPEL LTDA.

Além de celebrar
assassinos em massa nos
cafés da manhã de oração,
a direita cristã forneceu
apoio material significativo
para os projetos
contrarrevolucionários nos
anos 1980.

o papel infame de declarar a milhares de soldados crimes contra a humanidade em 2013, embora as acu-
do governo salvadorenho que “matar pelo prazer de sações tenham sido derrubadas três semanas depois,
matar é errado, mas matar porque é necessário lutar após uma intensa campanha de lobby da associação
contra um sistema antiCristo, o comunismo, não é empresarial mais poderosa da Guatemala.
apenas correto, mas um dever de todo cristão”. O ditador – outro ex-aluno da Escola das Américas
Em um artigo de 1988 intitulado “The Contra’s Cha- – era um ministro ordenado da igreja neopentecos-
plains” [Os capelães dos Contras], a socióloga Sarah tal Eureka, Igreja da Palavra, cuja base fica na Califór-
Diamond observou que o presidente da Paralife, dr. nia. Durante sua campanha genocida frijoles y fusiles
Cubie Ward, “orgulha-se de sua estreita relação com (feijões e fuzis) – durante a qual foram assassinados
os militares salvadorenhos e com o presidente José cerca de 86 mil civis guatemaltecos, a maioria de ori-
Napoleón Duarte”, alegando que Duarte estava jantan- gem maia – ele tinha fortes aliados em Robertson e
do com ele na noite de dezembro de 1980, quando qua- Falwell. Ríos Montt também recebeu milhões de dóla-
tro religiosas estadunidenses foram assassinadas por res e um exército de centenas de missionários estadu-
um esquadrão da morte. nidenses do programa Operação Internacional Love
E não vamos nos esquecer do movimento Maio- Lift [Elevação do amor] de Robertson, um “programa
ria Moral, do televangelista de direita Jerry Falwell. de contrainsurgência disfarçado como um esforço de
O senador estadunidense da Carolina do Norte, Jesse socorro”. E como o general hondurenho Álvarez Mar-
Helms, um dos campeões do grupo de Falwell, foi um tínez, Ríos Montt contava com a Igreja da Unificação,
firme defensor de Roberto D’Aubuisson, um graduado do reverendo Sun Myung Moon, entre seus numero-
na Escola das Américas, líder de esquadrão da morte e sos outros patronos evangélicos.
fundador do partido Arena. D’Aubuisson – muito mais A direita evangélica obteve um alto de grau de
radical em seus métodos que Duarte, seu oponente sucesso em seus objetivos de esmagar os sonhos cole-
presidencial em 1984 – foi o mandante do assassinato, tivistas e anti-imperialistas dos centro-americanos;
em março de 1980, do arcebispo Oscar Romero, recen- também ganhou milhões de protestantes converti-
temente beatificado. dos. Mas ela não é onipotente. Embora os converti-
Horrores como esses não podem ser quantificados, dos possam compartilhar uma religião e um discurso
mas talvez o exemplo mais atroz da influência da comum com poderosas organizações missionárias
direita cristã na década de 1980 na América Central dos Estados Unidos e ricos televangelistas nacionalis-
tenha sido sua aliança estreita com o general evan- tas de direita, eles não apoiam cegamente as políticas
gélico e ex-presidente da Guatemala (1982-83) Efraín de direita dos evangélicos da região – suas memórias
Ríos Montt. Ríos Montt foi condenado por genocídio e não são tão curtas assim.

103
CASA GRANDE POR BENJAMIN FOGEL
VERSALHES TRADUÇÃO EVERTON LOURENÇO

Uma aliança
anticomunista

O pânico acerca de um suposto


marxismo cultural no Brasil remete a
ideias e instituições estadunidenses –
além de outras coisas

¶ A direita conservadora brasileira não possui


monopólio regional ou temporal sobre os dis-
cursos e táticas que empregaram para chegar
ao poder. Nesta entrevista por Benjamin Fogel,
o historiador e autor de Securing sex: morality
and repression in the making of cold war Bra-
zil, BENJAMIN A. COWAN aborda as conexões
entre o pensamento de direita no Brasil e nos
Estados Unidos, de suas obsessões conspirató-
rias com o marxismo cultural ao pânico moral
sobre sexualidade e cultura.

104
Benjamin Fogel: Com o ressurgimento da direita no Brasil Constituinte. Ironicamente, mesmo quando
nos últimos anos (a partir de 2013), levando à eleição do ano o regime militar estava de saída, conseguiu
passado e à ascensão de Bolsonaro, às vezes parece que a empoderar os conservadores evangélicos
Guerra Fria nunca terminou no Brasil. Que papel a Guerra Fria (na época uma força política relativamente
desempenha na política da direita contemporânea? nova) e assegurar um legado duradouro de
BENJAMIN A. COWAN: É claro que o Brasil não está sozinho nesse um poderoso anticomunismo que permane-
ressurgimento recente do populismo de direita, se quisermos ce com a gente até hoje. 
nos referir a ele dessa maneira. No entanto, certamente o legado É claro que esse anticomunismo tem
da Guerra Fria assoma de maneira especialmente grande sobre estado muito visível nas acusações de um
os atuais discursos políticos e culturais do Brasil. É difícil suposto socialismo ou comunismo por parte
pensar em algum outro lugar onde a “ameaça do comunismo” – e de gente como Olavo de Carvalho. Mas, tal-
o espectro de ditadura militar que sempre a acompanha – sejam vez de maneira mais insidiosa, esse anti-
invocados com tanta frequência como no Brasil de Bolsonaro. A comunismo tem influenciado gerações de
invocação de “marxismo”, “socialismo” e “comunismo” (muitas formuladores de políticas públicas e de elei-
vezes de maneira indistinta) pelo próprio Bolsonaro e por outros tores comuns, que têm apoiado programas
expoentes da direita é, para dizer o mínimo, impressionante. neoliberais (intencionalmente ou não) e, em
Parte do que está ocorrendo é que certos setores que se sen- alguns casos, se colocado como contrários
tiam difamados pela excelente historiografia que, de maneira a medidas igualitárias mesmo quando um
justa, condenava a ditadura e seus horrores, estão agora sentin- número crescente de brasileiros se opõe à
do-se encorajados a duas coisas: (1) a tentar justificar a ditadura desigualdade em si e a vê como um proble-
(ou pelo menos a encobrir os seus elementos mais repugnantes) ma. Isso de fato ocorreu nos anos do PT no
como uma “vitória” do anticomunismo no Brasil; (2) a adotar as governo – assim como em outros lugares, as
mesmas táticas de protesto popular cuja longa história contri- pessoas viam a desigualdade como um pro-
buiu para o autoritarismo, em primeiro lugar. blema, mas foram levadas a pensar na des-
Sobre o primeiro ponto, os exemplos mais extremos disso regulação e no hipercapitalismo como solu-
são o próprio Bolsonaro, e elementos dentro das forças milita- ções, ao invés de fatores que contribuíram
res e de segurança pública, que viam as pesquisas acadêmicas e para essa situação.
comissões da verdade como “revanchismo”. Já sobre o segundo O que é pânico moral e qual é o seu
fenômeno, um excelente exemplo seria o uso de panelas vazias papel em termos políticos?
para protestar contra a administração de Dilma Rousseff e pedir O pânico moral surgiu como uma ferra-
pela sua expulsão do governo – um óbvio eco dos chamativos menta teórica da sociologia, usada para se
panelaços do período pré-1964. compreender situações em que a popula-
Como você descreveria a coalizão que forma a nova direita? ção vivenciava um frenesi de medo, muitas
Que papel a ditadura desempenhou na sua formação? vezes gerado pela mídia ou por indivíduos e
Embora a nova direita no Brasil continue a se desenvolver e grupos que usam o moralismo para estabe-
esteja talvez em uma fase de transição no momento – dada a lecer normas de conduta na sociedade. Tem
imprevisibilidade de Bolsonaro e suas relações tumultuadas havido uma ampla variedade de aplicações
com, digamos, o MBL e as facções “libertárias” de direita –, histo- dessa ferramenta ao longo dos anos, mas
ricamente ela tem sido constituída por uma união entre conser- certamente as aplicações mais pertinentes
vadorismo moral ou religioso e políticas fiscais e sociais anti-i- no Brasil incluem a ligação estabelecida por
gualitárias, até mesmo antidemocráticas. Poderíamos pensar na anticomunistas entre marxismo e compor-
nova direita brasileira como tendo ganhado impulso nos anos tamentos sexuais ou de gênero fora da nor-
finais da ditadura e, especialmente, no período da Assembleia matividade – algo que tem inspirado esses

1 05
VERSALHES

anticomunistas a perseguir os desvios como parte integrante


de uma conspiração marxista –, além da safra atual de ansie- O pânico moral
dades (insufladas pela mídia brasileira e internacional) sobre surgiu como uma
corrupção e segurança pública. Não que os dois últimos pon-
tos não sejam desafios verdadeiros para o Brasil e os brasileiros ferramenta teórica
– porém o pânico moral esconde as raízes desses problemas e da sociologia,
infla os medos do público, focando em algum bicho-papão ou
bode expiatório, como “o bandido” ou o PT. usada para se
Como podemos compreender o termo “marxismo cultu- compreender
ral” utilizado pela direita no Brasil? Ele foi simplesmente
importado dos Estados Unidos ou possui sua própria his- situações em
tória no país? que a população
Sem dúvida, uma diferença é a extensão com que a ideia do
“marxismo cultural” vem sendo espalhada em fóruns de discus- vivenciava um
são amplamente disponíveis no Brasil. Claramente se trata de frenesi de medo,
um termo muito popular em fóruns de direita nos Estados Uni-
dos, mas enquanto por lá ele nunca saltou para o discurso domi- muitas vezes
nante, no Brasil ele aparece na grande mídia empresarial e, claro, gerado pela mídia
nos livros de Olavo de Carvalho, agora best-sellers. Sobre quem
precedeu quem ao se apropriar do uso (acadêmico) anterior do ou por indivíduos
termo, acho que há alguma pesquisa a ser feita; no entanto, eu e grupos que usam
ficaria surpreso se o termo não tiver surgido nos fóruns brasilei-
ros muito antes do que se costuma pensar – especialmente con- o moralismo
siderando que seu uso atual ecoa exatamente aquilo que Plinio para estabelecer
Corrêa de Oliveira e a Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição,
Família e Propriedade (TFP) vinham chamando de “a Revolução” normas de conduta
(uma conspiração atemporal contra a sociedade cristã, da qual o
comunismo e a liberdade sexual representariam apenas a última
na sociedade.
encarnação, segundo a TFP, seus aliados e descendentes).
Um dos muitos pontos baixos da eleição do ano passado foi
o pânico em torno dos “kits gays” que supostamente seriam
distribuídos pelo governo do PT. Como isso se encaixa na
história mais longa dos surtos de pânico da direita com a
homossexualidade? Parece haver uma paranoia com o sexo
gay e com sua suposta conexão com o marxismo na direita
brasileira – estou pensando aqui em particular na obsessão
anal de Olavo de Carvalho.
Sim, parece difícil bater o martelo sobre esse ser um pânico
moral legítimo – afinal de contas, como as pessoas poderiam
acreditar de verdade na mamadeira de piroca? Porém, certa-
mente há uma ligação aqui com pânicos morais anteriores de
pelo menos duas maneiras: (1) o pânico sobre o comunismo e a
imoralidade ou a dissolução moral tornaram o impossível pos-

106
UMA ALIANÇA ANTICOMUNISTA

sível ao longo de todo o século 20, ou seja, permitiram que as comunista, conhecida como MCI (Movimen-
pessoas acreditassem (ou pelo menos agissem sob a ficção de to Comunista Internacional). Essa linha de
que acreditavam) que as teorias de conspiração mais absurdas pensamento reinava entre os anticomunis-
sobre comunismo e sexualidade de fato eram verdadeiras; (2) tas civis e militares, e se enraizou nas ins-
surtos clássicos de pânico moral quase sempre consideraram tituições de ensino superior do regime, em
os jovens ou as crianças (especialmente os estudantes) como seus fóruns de formulação de políticas públi-
principais pontos de ansiedade ou preocupação. cas e em seus temíveis serviços policiais e de
Dito isso, os anticomunistas moralistas das décadas de 1960, aplicação da lei.
1970 e 1980, embora certamente fossem homofóbicos, não se Seu livro traça a história do anticomu-
concentravam de maneira tão obsessiva na homossexualidade nismo na sala de aula. Varrer o comu-
em si, em detrimento de outras formas de não convenciona- nismo – existente ou não – da educa-
lidade. Parte do que mudou foi o surgimento das políticas de ção pública é uma das prioridades do
identidade – e nesse caso especialmente as identidades LGBTs governo Bolsonaro. Você pode expli-
– como um alvo para a reação. As teorias de Olavo de Carvalho car como a ditadura e seus apoiado-
giram não só em torno da prática da homossexualidade, mas res abordavam a educação pública
em torno da noção da identidade gay como uma conspiração e a suposta ameaça de infiltração da
massiva contra as pessoas não gays e a sociedade em geral. Eu esquerda no sistema escolar?
acrescentaria que o destino do chamado “kit gay” (até onde sei, Com certeza a ideia de escolas infiltradas
um termo criado pelo próprio Bolsonaro) também dependia da pelo inimigo é inteiramente consisten-
ascensão plena do poder evangélico no governo federal. Quan- te com um pânico moral, e tanto os surtos
do a questão da educação anti-homofóbica se tornou uma pro- de pânico moral anticomunista do sécu-
posta, o PT já era muito dependente do poder evangélico para lo 20 quanto os de hoje tornam as escolas
de fato levar isso adiante – uma circunstância menos relevante um local privilegiado para a ansiedade e a
para a história do PT em si do que para o arco da política brasi- violência. Na ditadura de 1964-85, talvez
leira desde os anos 1970. o exemplo mais abrangente de como isso
Uma das coisas que aprendi com o seu livro foi como have- acontecia tenha sido o desenvolvimento e
ria uma conexão íntima entre sexualidade e subversão nos a implementação da disciplina de Educação
termos em que a ditadura percebia seus inimigos internos, Moral e Cívica, concebida para combater,
ou seja, o sexo era tido pela ditadura como uma arma polí- ao mesmo tempo, a infiltração comunista
tica utilizada pela esquerda. Você pode nos explicar isso? e a subversão sexual. Em meu livro, deta-
Com base numa espécie de circuito fechado entre forças milita- lho como os currículos da Educação Moral
res, contrainsurgência e “sabedoria” anticomunista, os contrar- e Cívica pretendiam erradicar o que se pen-
revolucionários no Brasil, bem como em outros lugares, aderi- sava ser a ameaça conjunta formada pelo
ram a uma visão da Guerra Fria como um “guerra total ”, isto é, desvio cultural ou moral entre os jovens e a
uma guerra em que o campo de batalha se estenderia por toda sua suscetibilidade ao comunismo. Embora
parte, especialmente nos reinos da cultura e da sociedade (as o programa tenha sido descontinuado após
infames “batalhas por corações e mentes”, por exemplo).  a redemocratização, sua reimplementação já
Como parte importante disso, os soldados da Guerra Fria de foi sugerida pelo governo Bolsonaro.
ambos os lados do conflito associavam a não conformidade Seu projeto de pesquisa mais recente
sexual e de gênero com as estratégias do inimigo. No Brasil, isso traça a história do internacionalismo
significou que as forças de segurança presumiam que pessoas e reacionário ou anticomunista entre
formas culturais que pareciam desafiar ou não aderir à ortodo- organizações como o Fórum Inter-
xia sexual e de gênero seriam parte de uma grande conspiração nacional de Políticas (IPF, na sigla em

1 07
VERSALHES

inglês), a Tradição, Família e Propriedade (TFP), e a Liga Mun- ça com seus “irmãos cristãos” (evangélicos)
dial Anticomunista ( WACL , na sigla em inglês), a partir do com a seguinte lógica: “É melhor abrir uma
final dos anos 1970 e início dos anos 1980. Um de seus argu- igreja evangélica do que um cabaré”.
mentos mais convincentes é sobre como os conservadores Um dos aspectos mais intrigantes
brasileiros influenciaram a nova direita estadunidense e sobre a ascensão da nova direita no
como os evangélicos brasileiros foram fundamentais para Brasil é como ela se relaciona com
a formação de um bloco político evangélico. Isso vai contra a relativa fraqueza da esquerda .
as suposições populares de que o Brasil tem importado suas Enquanto uma centro-esquerda esta-
políticas e guerras culturais dos Estados Unidos. Pode ela- va no poder, essa direita dificilmente
borar mais sobre isso? representou algum tipo de ameaça
Você vai ter que ler o livro! Ou melhor, é uma história complica- radical à ordem estabelecida. Como
da; mas a maneira mais fácil de entender isso é que os direitis- podemos compreender o enorme
tas brasileiros foram essenciais para criar a nova direita como poder atribuído à esquerda no discur-
um fenômeno transnacional em várias arenas. Eu incluiria não so da direita?
somente os evangélicos conservadores, que fizeram do Brasil Não sou um especialista nas razões pelas
um centro global para o protestantismo e para o cristianismo quais as pessoas votaram da maneira que
de direita (basta olhar para a bancada evangélica e para centros votaram em 2018 nem no porquê de terem
de poder semelhantes no Congresso), mas também os católi- apoiado o impeachment. Dito isso, esse
cos conservadores brasileiros, que lançaram as bases para o que padrão é antigo – há um amplo precedente
hoje se tornou o tradicionalismo católico e a resistência cató- (principalmente em 1964) para a percepção
lica ao Concílio Vaticano II em nível global. Ou seja, os brasi- da ameaça representada por transformações
leiros estiveram presentes no momento de origem das “guer- na ordem estabelecida por parte da esquerda
ras culturais”, tanto no sentido nacional quanto internacional; ultrapassando, de longe, as propostas reais
eles desempenharam papéis centrais em organizações interna- da esquerda existente. O Brasil nunca
cionais que tornaram possível costurar um conjunto de prio- abandonou de verdade a propensão a pensar
ridades de direita que permitiram que as guerras culturais se na esquerda como um fantasma, como um
tornassem parte de nossa paisagem política, primeiro em nível suspeito e talvez um inimigo. Nada poderia
hemisférico e depois global. ter sido mais ameaçador para a direita do
Como os católicos, representados por figuras como Plinio que a imensa popularidade de Lula porque,
Corrêa de Oliveira, e a direita evangélica conseguem unir mesmo que suas políticas nem sequer se
forças contra um inimigo comum, em face do anticatolicis- aproximassem de uma revolução, a pessoa
mo compartilhado pelos evangélicos? dele representava, de maneira simbólica,
Podemos pensar nisso como uma série de escolhas. Em algum os medos de longo prazo do establishment
momento, católicos de extrema direita e evangélicos de direita conservador brasileiro, para não falar da
decidiram que uma aliança entre eles seria mais vantajosa que a direita radical.
desunião. Isso às vezes ia contra a lógica, particularmente quan- Para concluir, parte do seu trabalho
do parte do que unia esses cristãos conservadores era o enfren- registra a militância LGBT durante a
tamento ao próprio ecumenismo. No entanto, talvez a melhor ditadura militar. Você acha que há
forma de caracterizar a maneira como esses acordos foram lições históricas desse período para a
feitos – estabelecendo as bases para o relacionamento entre nossa própria época de guerra cultu-
figurões como um Jair Bolsonaro e um Silas Malafaia – seja citar ral e repressão pelo Estado?
Givaldo Carimbão, um legislador católico que justifica a alian-

1 08
UMA ALIANÇA ANTICOMUNISTA

Acho que devemos tomar cuidado quando revisitamos a his-


tória da militância do final do século 20 em nome dos direi-
tos sexuais, civis e de gênero. É fácil enxergar a política sobre
identidades como um erro, como um conjunto de estratégias
que nos levou às polarizações de hoje, onde as chamadas
“olimpíadas da opressão” não estariam servindo tanto para
alcançarmos justiça social, e sim para elevar a ira da direi-
ta e mesmo do centro. Eu penso que tomar esse cuidado é
importante sobretudo quando consideramos o perigo em que
LGBTs, feministas e outros militantes se colocam, e a coragem
e a visão que foram necessárias para unir as visões de justiça
econômica com visões de igualdade cultural e social. Se puder-
mos reconquistar o senso de solidariedade que os militantes
daquele período tinham, acho que estaremos em uma posição
muito melhor para articular respostas às falácias de um Olavo
de Carvalho, de um Steve Bannon, ou – especialmente – de um
Donald Trump ou de um Jair Bolsonaro.

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110
POR DOUGLAS DE BARROS FOTOGRAFIAS JONATHAS DE ANDRADE

O lugar
da rac, a
no
capital
A luta pela emancipação racial precisa
implodir o espaço algébrico do capitalismo

111
O LUGAR DA RAÇA NO CAPITAL

¶ A configuração do poder na sociedade faz com que o


corpo negro “apareça” nos termos da sua invisibilidade.
Há um lugar-de-fora fundamentado a partir da exclusão.
Uma exclusão também das garantias mínimas ao direito
estipuladas durante os processos de organização da
sociabilidade capitalista. Esse lugar-de-fora, contudo, é
parte indispensável para a manutenção do lugar do poder.

Ao olhar desavisado, estrangeiro, que chega nessas sujeito (1982): “A contradição fundamental, relações de
paragens, é um escândalo! Apesar de ser o país mais produção/forças produtivas, não nos deixa senão dis-
negro fora de África, não há negros na apresentação do posições de lugares, de quantidades e de invariâncias
espetáculo desse monstro continental chamado Brasil. (em si, esta contradição, tendencial, não altera nada). É
O corpo negro tem seu lugar fora das formas de aces- a vertente estrutural das coisas”.
so e cidadania. Lutaremos por esse espaço ou funda- Essa vertente, que estrutura o poder instituído, está
mentaremos outra forma de poder em que as diferen- à disposição dos lugares e dos indivíduos que irão ocu-
ças artificialmente constituídas, e espetacularmente pá-los. A troca dos corpos que farão seu papel no inte-
defendidas, sejam superadas? rior dessa álgebra não altera em nada o próprio conjun-
A luta por acesso não elimina a de transformação, to algébrico do poder, cuja fonte é a exploração radical.
mas uma pode impedir a outra, se o canto da sereia A honestidade impõe com seu brilho sarcástico que
liberal for acatado acriticamente e, em vez de criarmos nos desfaçamos desse meio caminho, desse ardor por
redes de solidariedade, estivermos dispostos a compe- adentrar as esferas dessa álgebra, ainda que milhares
tir pelas migalhas burguesas. de jovens hoje estejam convencidos de que isso é pos-
O corpo negro é a verdade do proletariado, é, enfim, o sível pela propaganda neoliberal. A honestidade é um
corpo proletário. O digno substantivo real dos excluídos, antídoto contra a regressão dos horizontes que se tor-
dos que não têm parte e precisam, por isso, se tomar seu naram opacos e sombrios.
próprio partido. Corpo produtivo invisibilizado e políti- Que nos perdoem a redescoberta de que até agora a
ca antagônica: negro e proletário. História e tomada de filosofia de Hegel e Marx segue sendo o caminho para
consciência. Trata-se de saber como esse conjunto mar- pensar a construção desses espaços profundamente
cha fora do espaço algébrico do poder instituído pelo racializados!
capital e como potencialmente carrega o novo. Enquanto Hegel estava preocupado com o escravo e
Nesse sentido, não há separação entre o componente a servidão, Karl Marx se concentrava nos novos escra-
racial e o de classe que resista a uma análise séria. Já vos modernos – os operários. As filosofias de ambos
sabemos como o capitalismo fundamentou a divisão são as primeiras a nomear esses condenados. Portanto,
de classe, e a que classe o corpo negro pertence. Nas a situação é hoje a mesma de sempre, ou melhor, a mes-
palavras de Alain Badiou em Para uma nova teoria do ma desde que o capital se tornou o capitalismo.

112
DOUGLAS DE BARROS

O ESFORÇO CONTRACORRENTE
Na análise categorial de Marx no primeiro volume de O capital (1867), o
que parece se evidenciar é que o capital coloca retroativamente seus pró-
prios pressupostos, abstraindo as especificidades de sua determinação.
Ainda que de maneira introdutória, precisamos ressaltar que aquilo que
Marx chama de sujeito automático (automatischen Subjekt, no original em
alemão) une em si a subjetividade viva e o automatismo morto como uma
substância incompleta que precisa de um impulso externo aparentemente
efetuado de forma mágica. O resultado desse processo é um movimen-
to em que o capital como estrutura econômica necessita se revolucionar
permanentemente e, para tal, depende da força de trabalho e das contra-
dições que lhe são inerentes. Reconhecer o obstáculo constitui a própria
necessidade de ultrapassá-lo.
A partir desses pressupostos, como podemos pensar a delimitação que
funda o mercado de trabalho? Como, além disso, refletir sobre os dispo-
sitivos ideológicos, o alicerce do sistema de circulação de corpos huma-
nos que são determinados e determinantes para a realização do valor? Em
outras palavras, como analisar um desenvolvimento desigual que se com-
bina com o processo de produção e reprodução social naturalizando as
disparidades ideologicamente criadas e historicamente fundamentadas?
O LUGAR DA RAÇA NO CAPITAL

Ao observar o capital em sua temporalidade, é pos- Pensar sobre o desenvolvimento desigual e combi-
sível perceber que seu funcionamento se dá por fusos nado, na forma e no conteúdo do mercado de trabalho,
temporais distintos. Esses fusos dinamizam seu pro- implica pensar também a particularidade que engen-
cesso de acumulação global. A dependência da peri- dra o todo desse desenvolvimento. Os movimentos de
feria em relação ao centro é uma via de mão dupla. O produção e reprodução do capital, na busca de mais-
centro propulsiona a dependência, por diversos meca- -valor e na constituição do valor, contêm uma relação
nismos que vão desde leis internacionais até a invasão; social fetichista que imprime forma ao movimento de
e a periferia dinamiza sua sujeição ao fornecer para o acumulação.
centro os elementos necessários para a autorreprodu- É preciso compreender esse processo porque ele
ção global do capital. estrutura a divisão social própria ao domínio que o
Essa desigualdade combinada, em escala macro, capital exerce na sociedade. A redução da vida à égide
parece também se reproduzir em escala micro. A da mercadoria implica um mercado estruturado e regu-
demonstração disso se dá com a análise da manuten- lado pela relação entre coisas mortas. É a relação des-
ção do racismo como forma de contenção do exérci- subjetivada, comandada pelo dinheiro, que estrutura as
to de reserva e da dinamização dos locais de trabalho trocas sociais.
enviesados por cor, nacionalidade ou gênero. Quer É evidente que o nível de dominação estrutural da
dizer, da estruturação do que tenho chamado de espa- forma capitalista se dá na totalidade de seu proces-
ço algébrico de circulação dos corpos. so. Isso é verdadeiro tanto para o âmbito da produção
Assim como há a naturalização de uma geografia de quanto para o da circulação. Porém, na produção, o
espaços subalternos, há também a naturalização de que se operou foi uma divisão profunda entre grupos
áreas próprias aos subalternizados na estrutura hie- sociais. Esses grupos foram subsumidos à estrutura
rarquizada do mercado de trabalho dessas zonas de do sistema de produção e reprodução com o desen-
capital periférico. Para tanto, as noções de lugar e de volvimento histórico que definiu lugares na emprega-
identificação são centrais para o controle biopolítico bilidade de atores sociais a partir da racialização do
dos corpos. espaço social.
É possível mostrar tais mecanismos pela interpreta- Isto é muito mais observável nas ex-colônias, que
ção da lógica da empregabilidade atual. Ao analisar o foram fundamentais ao processo de acumulação pri-
desenvolvimento capitalista integrado, deparamos com mitiva. De modo que, quando analisamos o espaço
a superexploração do trabalho, que atua como um corte algébrico da estruturação econômica dinamizada
radical entre os interesses do capital e as necessidades pelas formas capitalistas de produção e reprodução,
mais básicas de reprodução do contingente de trabalha- conseguimos perceber como o lugar-de-fora – próprio
dores. Ora, com isso, as raízes da manutenção da desi- aos indivíduos racializados ou identificados e redu-
gualdade racial não parecem repousar apenas na nossa zidos em seu gênero ou sexualidade – é estruturado
especificidade cultural – ainda que não desprezemos como um elemento de exclusão que se combina com a
sua força – mas na própria dinâmica interna do sistema lógica de circulação da mercadoria e sua realização no
econômico que se sustenta por meio da exclusão. processo de troca.
Se as formas de consciência são produzidas pelas Há um elemento desigual e combinado na própria
relações da divisão do trabalho, também os espaços produção da mercadoria, isto é, na divisão social do
definidos pelo acesso ao trabalho serão fundamenta- trabalho, que relega grupos, historicamente produzi-
dos por diversos dispositivos que garantam o “lugar” dos, a se tornarem trabalhadores de segunda classe. É
dos grupos em concorrência. O negro adquire, dessa claro que se recorre para isso à racialização do espaço
maneira, uma posição acessória que foi fundamenta- social e à delimitação de um lugar evidenciado na dis-
da historicamente com sua exclusão dos processos crepância forjada pela desigualdade.
modernizadores durante o advento da República.

114
DOUGLAS DE BARROS

O corpo negro
tem seu lugar
fora das formas
de acesso A RACIALIZAÇÃO ENTRE O DESIGUAL E COMBINADO
e cidadania. Diante da superexploração aplicada às economias dependentes, como Ruy

Lutaremos por Mauro Marini formulou, cabe então pensar as especificidades racializa-
das desse processo na dinâmica do mercado de trabalho.
esse espaço ou O fetichismo da mercadoria, aquele que subsume a socialização ao seu

fundamentaremos império, é alcançado pelo desenvolvimento do capital. Ao sairmos histo-


ricamente do valor-de-uso, quando os produtos eram feitos para satis-
outra forma de fação das necessidades, e alcançarmos o valor-de-troca, cuja finalidade

poder em que é a obtenção do equivalente geral na forma dinheiro, buscando-se mais


dinheiro, passou-se de uma simples mediação da produção para a obten-
as diferenças ção do mais-valor como um fim universal da sociedade. A vida social é,

artificialmente portanto, sugada para o centro gravitacional do movimento próprio do


dinheiro e, com isso, a também força de trabalho se torna uma merca-
constituídas, e doria. O trabalho (tripallium, no original em latim) por si só já implica a

espetacularmente dominação e a divisão da pessoa. O trabalho-mercadoria é a síntese dessa


dominação e divisão no capitalismo.
defendidas, Sabemos que muito além da obtenção do lucro – como ocorre, por exem-

sejam plo, no comércio, no contrabando, no tráfico ou no empréstimo – a trans-


formação de uma quantia inicial em uma quantia superior só pode ocorrer
superadas? por razões especiais através de uma mercadoria que cria o valor: o trabalho.
Abstraído de qualquer autonomia, o contingente de trabalhadores foi
submetido às formas de desenvolvimento do mercado de trabalho, que,
principalmente nas ex-colônias, utilizou o componente racial como for-
ma de superexploração dessa mão de obra. No Brasil, a obra do sociólogo
Florestan Fernandes se debruça na análise dessa distorção.
O LUGAR DA RAÇA NO CAPITAL

Com esse processo, também é efetivada a divisão trabalho, que engendra o todo na produção da merca-
social do trabalho, que no interior de si utiliza compo- doria, institui os lugares determinados para os grupos
nentes historicamente estruturados para demarcar os sociais, que, sobretudo nas ex-colônias, serão racializa-
lugares dos indivíduos no mercado. Os lugares do negro dos e patriarcais.
e da mulher foram definidos com a marcha violenta da Naturalmente, duas implicações se destacam dessa
acumulação primitiva do capital. Eles podem se realo- leitura. Em primeiro lugar, analisar o capital implica
car na álgebra de reprodução da exploração; no entan- enxergar seu movimento de autorreprodução de si em
to, nunca poderão deixar de ser um lugar no interior si mesmo, significando que é o processo de pôr seus
dessa mesma lógica. É por isso que a questão do gênero próprios pressupostos que obnubila o trabalho. Em
e a questão racial são um contrapoder capaz de implo- segundo lugar, a marcha hegeliana põe no telhado o
dir o espaço algébrico do poder instituído. fetichismo imanente ao processo de produção do capi-
A fundamentação do valor vislumbrada por Marx tal, deixando evidente como as mistificações raciais
descortina as relações sob as quais o capital subsume e de gênero compõem seu processo de dominação no
as condições materiais, fazendo que o trabalho fique interior do “mercado de trabalho”.
subordinado ao seu processo de autovalorização. Com Levantamentos recentes da Pesquisa de Emprego e
um Hegel funcionando nas entrelinhas da interpreta- Desemprego (PED) em parceria com o DIEESE 2018 apon-
ção marxiana, se vê o capital aparentemente criando tam nessa direção. Para começar, a taxa de desempre-
seus próprios pressupostos. “Em consequência”, diz go, desde o início da chamada crise econômica, entre os
Marx ainda em O capital, “a forma simples de valor da negros se elevou de maneira abrupta para 20,8%, isto é,
mercadoria é também a forma-mercadoria elementar 5,2% maior em relação aos não negros. O trabalho como
do produto do trabalho, coincidindo, portanto, o desen- autônomo – sem eufemismo, o “bico” – se elevou de 16,6%
volvimento da forma-mercadoria (impressa pelo traba- para 18,2%. E, além das definições de lugares determi-
lho) com o desenvolvimento da forma valor.” nados na esfera produtiva do trabalho para os negros, é
Nisso, o processo de abstração efetivado no valor possível observar que “os negros receberam, em média,
consiste em reduzir os inumeráveis trabalhos contidos 69,3% do rendimento dos não negros, em 2017, como
na forma-mercadoria e equiparar o trabalho a outra resultado das diferentes formas de inserção ocupacional
forma mercadoria (o dinheiro). Reduz tudo a uma estru- dessas duas populações”. Isso quer dizer que os negros
tura aparente em que se expressa de modo abstrato a estão mais presentes em segmentos de trabalho onde,
manifestação geral do trabalho humano. Por isso Marx tradicionalmente, a remuneração é mais baixa.
faz uma constatação no mínimo instigante e que foi Como pensar, então, os processos de inclusão e a
de certa maneira desprezada: “na circulação do capital tentativa de diminuição dos impactos que a socieda-
esse valor se revela subitamente uma substância que de racializada pelo capital e seu mercado de trabalho
tem um desenvolvimento, um movimento próprio e da promovem? Cumpre salientar que o controle e a racia-
qual a mercadoria e o dinheiro são meras formas”. lização são inerentes à forma de dominação do mundo
O capital em Marx, reproduzindo o ocaso da subjeti- burguês. Isso é corroborado até mesmo por intelec-
vidade hegeliana, aparece como um sujeito automático, tuais distantes do pensamento marxiano, como o fran-
uma unidade dissociativa e contraditória. Ao descobrir cês Michel Foucault, que percebeu como a biopolítica
a fundamentação da categoria valor, a própria noção fomenta corpos incluídos no jogo de exploração.
de trabalho perde sua especificidade e acaba, como em Essa análise se desdobra no seguinte fato: o poder,
Hegel, evanescendo no processo. No entanto, eivada fundamentado pela desigualdade, necessita da criação
de posições desiguais e combinadas, ocultadas pela de lugares, definições e identificações para exercer seu
abstração que o capital executa como resultado de seu controle. É precisamente nesse ponto que, radicalizan-
incremento de valor, a particularidade do processo de do a tese de um ponto de vista periférico e atual, o filó-

116
DOUGLAS DE BARROS

Que nos
perdoem a
redescoberta
de que até sofo camaronês Achille Mbembe desnuda as relações necropolíticas como
agora a filosofia forma de organização neoliberal: “Enquanto categoria política, as popula-

de Hegel e ções são então decompostas entre rebeldes, crianças-soldados, vítimas ou


refugiados, civis incapacitados por mutilação ou simplesmente massacra-
Marx segue dos ao modo dos sacrifícios antigos; enquanto os ‘sobreviventes’, depois

sendo o de um êxodo terrível, são confinados a campos e zonas de exceção”.


A pretensão estrutural do capital busca subsumir em si e tornar idên-
caminho para ticas as formas não completamente assentadas em seu espaço algébrico.

pensar a Há nessa tentativa uma espécie de prescrição para adentrar no templo


do mercado, onde a repetição da mesma exploração, diferenciada apenas
construção pelo corpo que a executa, torna-se a matriz prática e elementar da sua

desses inteligibilidade.
É por isso que uma das maiores preocupações de Mbembe é a Palestina,
espaços pois ela é o exemplo, perfeito e acabado, de que os exploradores podem

profundamente mudar de lugar na relação algébrica do poder, inclusive abandonando sua


topologia – seu lugar-de-fora –; no entanto, ao se manter o poder que ins-
racializados! titui a racialização dos espaços, os que ontem eram oprimidos hoje irão
oprimir os novos corpos racializados.
Como já argumentei no ensaio A noção racial como motor do fascismo, “a
rápida ascensão de um tipo de indivíduo essencialmente limitado e preso
ao modo de sociabilidade da mercadoria, que tenta por todos os meios ele-
var como único sujeito da vida o capital, é a marca distintiva dessa presen-
ça fascista na vida e no cotidiano comum sustentados pela ideia de raça”.
Em outros termos, é possível ao capitalismo incluir parcelas de negros,
ciganos, indígenas, mulheres, homossexuais etc., sendo ainda possível
a construção de outras identificações racializadas e dissociativas que
sofram das mesmas mazelas que sofrem os atuais condenados da terra.
É isso que queremos? Creio que não; portanto, urge deixar esperanças
pueris para trás.
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CURSO aul
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lançou uma plataforma
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primeiro é o “Seminário MARX”,
com aulas sobre os 3 tomos do
“O Capital”, “Racismo, Machismo
e LGBTfobia”, “Imperialismo”,
“Fascismo” e muitos outros temas
com exposições de vários professores,
militantes e dirigentes de todo o Brasil.
CADASTRE-SE NA PLATAFORMA DE CURSOS
E FORMAÇÃO POLÍTICA DA FUNDAÇÃO DO PSOL

LAURO CAMPOS E
MARIELLE FRANCO
www.flcmf.org.br
O fim do
começo

(está próximo)
O FIM DO COMEÇO POR SABRINA FERNANDES
FRENTE POPULAR TRADUÇÃO EVERTON LOURENÇO ILUSTRAÇÃO PRISCILA BARBOSA

Não há luta por


liberdade sem a
luta indígena

A direita brasileira se fundamenta


em um projeto colonial. Lutadoras
indígenas como SÔNIA GUAJAJARA
representam a cara e o conteúdo da
resistência.

¶ Há 519 anos, o território hoje conhecido como Brasil


foi invadido por uma frota portuguesa e colonizado.
Como consequência, muitos dos indígenas que
habitavam a terra morreram de doenças, foram
assassinados ou escravizados. A população indígena
foi reduzida a menos de um milhão e suas terras
foram tomadas e exploradas. Esse roubo não
teve como efeito apenas danos insuperáveis ao
ecossistema nativo, mas também, ao concentrar a
propriedade nas mãos de pouquíssimos, inscreveu a
desigualdade nas fundações do Brasil moderno.

120
FRENTE POPULAR

É por isso que, mais de cinco séculos depois, Sônia Guajajara, so povo e da própria natureza garante nossa
uma mulher indígena Guajajara, da região de Arariboia, no Nor- cultura, nossas tradições, nossos rituais.
deste brasileiro, se destaca na defesa contra ações e discursos A violência tem surgido dos conflitos pelos
que tratam os povos indígenas como entraves para o desenvol- territórios. Os setores do agronegócio, da
vimento do capitalismo no Brasil. Os povos indígenas represen- pecuária, da especulação da terra e imobi-
tam uma pequena parcela da população brasileira, mas sua luta liário; eles querem ter acesso aos territórios
política conquistou força e visibilidade nos últimos anos – o indígenas, levando a muitos conflitos e assas-
que torna difícil negar sua importância para as reivindicações sinatos. E há o racismo, que está conectado
que envolvem classe, imperialismo e capital financeiro. Sua luta com os discursos feitos por personalidades
é urgente, somente em 2016, 118 indígenas foram assassinados. públicas, por políticos conservadores, por
Após a eleição de Jair Bolsonaro, a violência bate à porta com fascistas. Eles têm dito muitas coisas [racis-
ainda mais força. Esses assassinatos costumam estar ligados às tas], ajudando a sociedade a sentir-se com
contínuas tentativas do agronegócio de penetrar nos territórios apoio para ser publicamente agressiva em
indígenas, embora também estejam enraizados no racismo. relação aos outros. Isso tem se intensificado.
Guajajara, que é membro do Partido Socialismo e Liberdade Então você diria que o discurso racis-
(PSOL) desde 2011, foi candidata à vice-presidenta, junto de Gui- ta empregado por personalidades
lherme Boulos, também do PSOL, e membro do Movimento dos públicas e por políticos piorou no
Trabalhadores Sem-Teto (MTST). No entanto, o partido e a cam- período recente?
panha pressionaram por um acordo de “cocandidatura”, em vez Piorou muito. Nós sempre sentimos um cer-
do esquema de presidente/vice-presidente. Dessa forma, bus- to grau de indiferença entre os brasileiros
caram contestar a hierarquia de candidatura tradicional e pro- para com os povos indígenas. Mas era uma
mover uma aliança tríplice e igualitária entre o PSOL , os povos questão de apenas nos ignorar. É uma mino-
indígenas e o MTST. ria da sociedade que sabe da existência de
Especialista em linguística, mãe de três filhos e talvez a líder povos indígenas no nosso país. As pessoas
indígena mais conhecida no país e no exterior, Guajajara faz sabem que originalmente havia povos indí-
parte da coordenação da Articulação dos Povos Indígenas do genas no Brasil, mas não sabem sobre nossa
Brasil (APIB). existência contemporânea.
Nesta entrevista exclusiva para Jacobin Magazine,* ela fala Nos últimos anos, a indiferença e a igno-
sobre o estado das lutas indígenas no país, a política ambiental, rância diminuíram; mas eles também come-
a relação entre organização indígena e a esquerda e o que repre- çaram a nos atacar. Hoje há ataques atra-
sentou sua candidatura presidencial com o PSOL . vés das redes sociais, mas também ataques
SABRINA FERNANDES: Hoje, uma parte central da luta indí- violentos que levam a mortes. No Sul, Vitor
gena no Brasil é sobre o direito aos territórios. No entanto, Kaingang foi decapitado nos braços de sua
você frequentemente coloca esses esforços no contexto mãe. [Em 2018] foi um professor Xocleng em
da luta contra o racismo e como parte de uma luta secular Santa Catarina. Houve um Guarani no Rio de
dos povos indígenas pelo direito de existir. Você pode nos Janeiro, um Tapirapé em Mato Grosso e um
falar mais sobre isso? Tremembé em Fortaleza. Esses quatro assas-
SÔNIA GUA JA JAR A : Sim, nós também estamos lutando contra o sinatos aconteceram todos no primeiro mês
racismo, especialmente o racismo institucional. Nos últimos [de 2018]. Esse racismo tornou-se muito evi-
anos, ele se proliferou e se tornou mais visível. Para nós, se dente, de uma forma muito brutal. Já não é
superarmos essas [barreiras], poderemos finalmente entrar em mais apenas discurso, estão nos matando.
outros espaços também. Se tivermos nossos territórios, teremos Você diria que agora é mais comum
uma vida plena, porque é através do território que você pode que esses agitadores racistas sejam
exercer sua cidadania como indígena. Poder viver junto do nos- confrontados pelas comunidades

122
NÃO HÁ LUTA POR LIBERDADE SEM A LUTA INDÍGENA

indígenas? As comunidades indígenas estão mais Faz diferença. Na imprensa tradicional, nós
organizadas agora, mais capazes de se manifestar con- dizemos as coisas, eles cortam e editam para
tra a estrutura da supremacia branca no Brasil? tirar o que não for do seu interesse ou o que
Nós sempre estivemos por aí e fazendo nossa luta, resistin- poderia prejudicar seus aliados. Às vezes, o
do para proteger os nossos territórios. Nossa luta contra os que dizemos é retirado do contexto e obtém
megaprojetos e o atual modelo de desenvolvimento econô- um significado diferente. Às vezes, o que
mico – por 519 anos nós temos lutado para sobreviver. A luta dizemos para a mídia tradicional acaba sen-
para existir é algo que temos que levar em frente todos os do interpretado contra nós mesmos. É muito
dias, dia após dia. Mas agora estamos nos mobilizando de perigoso, dependendo de quem te entrevistar.
uma maneira mais sistemática; aumentamos nossas mobili- Como você e a APIB têm sido rece-
zações em Brasília e as conectamos a outras lutas regionais. bidos internacionalmente? De que
Se formos fazer uma grande mobilização em Brasília, ao mes- maneira eles reagem às histórias que
mo tempo faremos isso em outros estados. Se chamamos as vocês contam? As reações são dife-
pessoas para impedir alguma medida anti-indígena na capi- rentes das que vocês recebem quan-
tal, nós convocamos e as pessoas vêm. A APIB hoje tem um do tentam ser ouvidos no Brasil?
bom nível de visibilidade e [sua atuação] é muito ampla, além Aqui a nossa capacidade de denunciar as
do nível nacional. coisas e de nos expressar ainda é muito res-
Nós conseguimos atravessar as fronteiras e denunciar o trita, mas hoje estamos ganhando mais visi-
que está acontecendo internacionalmente também. Temos bilidade. Parte dela é visibilidade negativa,
denunciado produtos produzidos em territórios indígenas relacionada à discriminação e ao ódio. Mas
não demarcados, em áreas de conflito, e pedimos o boicote entre os movimentos sociais, está crescen-
internacional desses produtos. Nós temos denunciado o eco- do a compreensão da importância das lutas
cídio, como o que aconteceu no Rio Doce e que está aconte- indígenas – como elas nos impactam, ao
cendo em Bacarena e em Belo Monte. meio ambiente e à vida em geral.
Continuamos a fazer referência a Belo Monte como um Mas ainda é difícil fazer com que as pes-
ataque contra os povos indígenas porque já estamos sofren- soas entendam o que significa ser indígena.
do suas consequências. As consequências são reais e nós as A maioria das pessoas não consegue tradu-
mostramos como exemplos negativos. Acho que isso tem zir isso, elas nos olham como o “outro”. As
impactado as estruturas legais e os setores do agronegócio pessoas abrem algum espaço para o “índio”
que estamos enfrentando. falar, mas na maioria das vezes somos con-
Mesmo que o público nos veja “apenas” como indígenas, vidados para cantar e dançar; como seres
nossa luta não é pequena. Na verdade, nós estamos enfren- exóticos para embelezar o local. Então, sen-
tando o Estado brasileiro, sua negligência, sua negação de timos que mesmo quando os movimentos
direitos. Para isso, temos de enfrentar os proprietários do sociais tentam nos incluir, eles ainda aca-
agronegócio, a elite empresarial, a própria mídia, a imprensa bam expressando certo tipo de preconceito.
tradicional. As redes sociais realmente têm nos ajudado nis- A esquerda esqueceu o povo indíge-
so. Hoje, não precisamos tanto da mídia tradicional para ter o na por algum tempo?
alcance que temos. Tudo isso vai atingir os ouvidos das pes- Esqueceu totalmente. Ela nos isolou. Eles
soas. Essa visibilidade crescente definitivamente está inco- nos chamavam para ir a determinados
modando um pouco mais aqueles que estão no poder. lugares, parecia bom, tirávamos fotos, eles
Existe alguma diferença entre quando as questões indí- podiam dizer que estavam nos apoiando.
genas eram traduzidas por um olhar branco, como na Mas em geral isso era muito isolado. Acho
mídia tradicional, e agora, quando pode ser apresenta- que uma maneira que descobrimos para
da pela sua voz diretamente? romper com essa situação foi nos aproxi-

123
FRENTE POPULAR

marmos, como APIB , de artistas e celebridades. Eles têm um


público diferente, às vezes compartilhado com o nosso, mas é
Mas ainda é
muito mais amplo. Os cantores, atrizes, eles se aproximavam e difícil fazer com
compreendiam a nossa causa: a importância dos territórios, da
floresta, de ecossistemas como o cerrado, como proteger esses
que as pessoas
territórios também protegeria a água. A discussão no nível glo- entendam o
bal sobre as mudanças climáticas também é importante por-
que ela se relaciona com coisas que nós, como povos indígenas,
que significa
temos falado desde o início. ser indígena.
Então, pessoas que normalmente não ouviriam os
A maioria das
pessoas não
povos indígenas de repente se interessam quando o
discurso vem da boca de uma celebridade?
As pessoas não querem nos ouvir, elas não querem entender.
Quando conseguimos que um artista fale, elas dizem “Uau, esse
consegue traduzir
cara disse isso. Ele apoiou isso!” É quase como se isso nos desse isso, elas nos
credibilidade.
olham como
o “outro”.
Isso me lembra da resposta às mobilizações contra a
usina de Belo Monte. Essa usina foi um projeto de lon-
ga data, que passou por diferentes fases sob diferen-
tes nomes, dependendo do governo por trás delas – e,
por todas essas fases, a resistência indígena sempre
esteve lá. Mas a visibilidade da resistência dependia
de outros a abraçarem, não?
Sim, [o projeto de Belo Monte] costumava se chamar Kararaô.
E é curioso que as pessoas se lembrem apenas da luta de Belo
Monte porque houve muitas outras lutas, igualmente impor-
tantes, que não alcançaram o mesmo nível de visibilidade. As
maiores lutas – aquelas que atingiram um alto nível de visibi-
lidade e conquistaram apoio internacional – foram Belo Mon-
te e a Raposa Serra do Sol [reserva indígena que latifundiários
tentam reclamar para si]. Na Raposa Serra do Sol nós vencemos,
nós conseguimos a demarcação do território. Em Belo Monte
nós perdemos, e agora temos Belo Monte atravessada nas nos-
sas gargantas.
Em 1989, sob um governo de direita – eu diria de extrema
direita – , nós conseguimos parar o projeto da usina de Belo
Monte. Desta vez foi sob um governo de esquerda [do Partido
dos Trabalhadores (PT)], mas não conseguimos parar o projeto.
Ele seguiu em frente de qualquer maneira e nós tivemos que
engolir. É muito complicado quando você vê tantas contradi-
ções políticas. Não sabemos dizer quanto barulho precisamos
fazer para que isso surta efeito.

1 24
NÃO HÁ LUTA POR LIBERDADE SEM A LUTA INDÍGENA

Qual foi a lógica por trás do PT para levar em frente um alguns dos nossos problemas cruciais. Eles
projeto como esse? tentam comprar a liderança [indígena] com
No começo, nós tínhamos uma garantia do governo de que coisas pequenas ou até mesmo os enganan-
eles não iriam simplesmente seguir em frente com Belo Monte, do. Então eles vão e divulgam que eles têm
que eles iriam nos consultar. Mas depois [era] “ou vai aconte- apoio indígena para a sua própria agenda.
cer, ou vai acontecer” – não havia outra opção. Era um projeto Isso é ruim porque engana o público sobre
visto como muito importante para o país, para a nação, e eles as posições defendidas pelos povos indíge-
não podiam voltar atrás. Era, de certa forma, “bom, vocês não nas. O movimento indígena tem se dedicado
importam. Sejam lá quais forem as consequências, nós vamos para tentar prevenir esse tipo de cooptação,
seguir em frente”. Foi muito, muito ruim o que acabou aconte- mas não podemos impedir isso em todos os
cendo com a construção da barragem de Belo Monte. lugares, porque todo mundo está precisan-
Por um lado, há a visão desenvolvimentista que move do de tanta coisa, para agora. Precisamos de
projetos como a barragem de Belo Monte e que vê os políticas sociais e de apoio, então as pessoas
povos indígenas como obstáculos no caminho do pro- estão prontas para acreditar em políticos
gresso. Por outro lado, há ambientalistas que valori- que lhes oferecem isso.
zam os povos indígenas pelo seu papel na conserva- Por outro lado, a esquerda agora está per-
ção – mas o apoio deles para por aí. Como vocês se cebendo que precisa nos valorizar mais.
relacionam com esses grupos de ambientalistas? Temos uma nova maneira de participar dos
Há muitos institutos ambientais que dizem que nos apoiam, partidos políticos agora, que vai além de
que estão com a gente, mas que só se importam em preservar apenas sermos membros deles.
um pedaço de floresta para que ele permaneça intacto. Eles A esquerda finalmente está ven-
defendem o meio ambiente, mas às vezes não se importam com do vocês não só como lideranças
quem está lá, as pessoas, os seus direitos sociais. É como se só a indígenas, mas como lideranças
agenda ambiental fosse importante. políticas em geral?
Nos últimos anos, isso tem melhorado e eles estão finalmente Sim. É importante estarmos presentes não
entendendo que, para avançar com a luta ambiental, você não apenas para as foto, mas também para supe-
pode estar desconectado da luta indígena. Você tem de lutar rar nossa sub-representação nos espaços
pelos direitos indígenas – e se você luta pelos direitos indíge- políticos e institucionais. Já é um começo.
nas, um dos resultados, por causa do nosso modo de vida, será a Estamos tentando apresentar mais candi-
preservação ambiental. datos indígenas e convencer os partidos a
Isso também significa que na capital, o incômodo com a gen- apoiá-los. É complicado porque os partidos
te tem crescido. Os representantes dos latifundiários no Con- têm dificuldade em acomodar novas lide-
gresso, o agronegócio, eles estão mais preocupados. Eles perce- ranças – sejam elas indígenas ou não. Mas
beram que nós ganhamos alguma força devido a essa rede de é mais difícil quando elas são indígenas. Há
apoio com os ambientalistas e os artistas. Então eles começa- uma abertura agora, no entanto.
ram a nos atacar mais e a incitar mais violência contra nós. Isso sinaliza uma percepção de
Diante disso, a própria esquerda está se tornando que para avançar com a luta anti-
mais consciente também? Ela está acordando para as capitalista, é preciso trazer dife-
demandas indígenas? Porque, por outro lado, podemos rentes tipos de conhecimento, de
ver que a direita também está tentando atrair alguns diferentes movimentos sociais?
indígenas para si. Sim, e a recente discussão sobre o aqueci-
Os políticos de direita fingem que são gente boa, se aproxi- mento global tem favorecido essa troca. O
mam e cooptam lideranças, prometendo que vão resolver mundo inteiro está buscando soluções e,

125
FRENTE POPULAR

nesse contexto, não tem como negar os povos indígenas. Se ção e à longa história da luta indí-
você comparar o nosso modo de vida com qualquer outro, é gena. É um modo de recuperar a
o nosso que mais preserva, que mais cuida da natureza. É o história das mãos da narrativa
modo de vida que evita as emissões. Portanto, não há como dominante?
ignorar o conhecimento ancestral e o estilo de vida indígena No Brasil, apagaram esse genocídio da his-
tradicional. tória do país. Falam sobre a “descoberta” do
Isso ajudou a levar as pessoas e o próprio partido a entender Brasil por Pedro Álvares Cabral e aí já pulam
que, como povos indígenas, nós não estamos só lutando por para a nossa luta atual pelas demarcações.
nós mesmos, mas que podemos contribuir com muito. O Acor- Os quinhentos anos intermediários são
do de Paris ajudou a promover [essa ideia] de que precisamos absolutamente anulados. Os livros de histó-
valorizar o conhecimento científico, mas também incluir os ria ainda nos tratam como se fôssemos os
conhecimentos tradicionais das primeiras nações e dos povos antigos povos indígenas que Cabral encon-
indígenas. Ainda assim, precisamos lutar para definir como trou, exóticos, andando pelados e usando
esse reconhecimento deve acontecer na prática. Não quere- penas por toda parte. Eles não falam de ver-
mos que esse reconhecimento signifique a mercadorização dos dade sobre as lutas e a resistência.
lugares em que vivemos e que defendemos. E então as pessoas, com base nisso, viram
Por último: um dos temas da sua campanha foi “Brasil, para a gente e perguntam “você é um índio
518 anos depois”, referindo-se ao início da coloniza- de verdade?” – eu ouço isso todos os dias. O
NÃO HÁ LUTA POR LIBERDADE SEM A LUTA INDÍGENA

Falam sobre a que você quer dizer com “de verdade”? Eu sou real, estou aqui.
Mas as pessoas expressam ignorância sobre o que é ser indíge-
“descoberta” do na. Elas acham que, se você está na cidade, se fala português e se

Brasil por Pedro usa celular, então de repente você não pode mais ser indígena.
Ou você está preso na floresta, sem nunca sair de lá, ou você não
Álvares Cabral e é mais um índio.

aí já pulam para a O resto da nossa história – os assassinatos, o genocídio, a vio-


lência sexual contra as mulheres indígenas – as pessoas sim-
nossa luta atual plesmente não pensam sobre isso. Às vezes você até ouve as

pelas demarcações. pessoas dizerem com orgulho que descendem de pessoas indí-
genas porque sua avó foi “pega no laço”. Elas não conectam isso
Os quinhentos com a violência que a avó e a bisavó sofreram – e é a mesma

anos intermediários coisa para os negros no Brasil. É por isso que um dos nossos
objetivos é lutar pela visibilidade, para que eles saibam o que
são absolutamente realmente aconteceu e que a nossa existência hoje é o resultado

anulados. de muita resistência. Então, dizer “518 anos depois” foi poderoso
porque carrega muita história, uma história que não é contada
de verdade.
O FIM DO COMEÇO
FUNDO DO BAÚ POR ISABEL LOUREIRO

Socialismo
ou barbárie

128
Sempre que a
esquerda
esta´ em crise,
ROSA LUXEMBURGO
volta à cena

129
FUNDO DO BAÚ

¶ TODAS AS VEZES QUE a extrema direita ganha força, seja em século 20 estava conectada com o mili-
aliança com a direita tradicional, seja com o militarismo (ou tarismo e a guerra. O entrelaçamento
com ambos), os revolucionários se juntam para compreender o desses fatores é analisado por ela de
fenômeno e traçar um caminho à esquerda. Neste momento, os maneira perspicaz em muitos de seus
olhares se voltam para Rosa Luxemburgo. O que essa revolucio- escritos, sobretudo na sua obra magna
nária e jornalista polonesa – a mais importante teórica marxis- de economia política, A acumulação do
ta da geração depois de Marx – ainda tem a nos dizer? capital (1913). Horrorizada com a vio-
Rosa Luxemburgo nasceu em 1871 em Zamość, pequena cida- lência desencadeada a partir de agos-
de da Polônia ocupada pela Rússia. Começou sua militância ain- to de 1914, Luxemburgo identificava a
da no colégio, em Varsóvia, e emigrou para Zurique em 1889 a barbárie com a guerra mundial. Para
fim de cursar a universidade. Foi aí que Luxemburgo passou a nós do século 21, barbárie é sinônimo
estudar as teorias de Marx. Sua tese de doutorado em econo- de capitalismo mundializado, uma
mia política foi sobre o desenvolvimento industrial da Polônia. guerra de todos contra todos e contra
Desde então, seu envolvimento político foi intenso. Luxembur- tudo: trabalho, natureza, populações
go ajudou a fundar a Social-Democracia do Reino da Polônia tradicionais, antigos modos de vida
(SDKP), rebatizada em 1900 de Social-Democracia do Reino da comunitários. Cem anos depois, uma
Polônia e Lituânia (SDKPiL), à qual esteve ligada a vida inteira. lista interminável compõe a barbárie.
Em 1898, quando se mudou para Berlim, tornou-se militante do
Partido Social-Democrata da Alemanha (SPD), onde fez sua car- PENSADORA DA PRÁXIS
reira como teórica marxista, jornalista e professora da escola Rosa Luxemburgo, assim como todos
que formava quadros do partido. os marxistas de sua época, foi à esco-
Em 1906, ela participou da primeira Revolução Russa. Foi uma la de Karl Kautsky, o teórico mais
experiência fundamental também para desenvolver seu pen- importante da social-democracia
samento, já que reforçou a ideia da importância da autonomia alemã. Mas ela se distingue do mar-
das massas populares nas grandes transformações históricas. xismo determinista de Kautsky e da
Luxemburgo se opôs, em 1914, à Grande Guerra e passou a inte- Segunda Internacional. Luxemburgo
grar o grupo de esquerda radical no SPD, conhecido mais tarde não se submetia ao espírito contido
como Liga Spartakus (Spartakusbund, em alemão). Ela passou na frase de Gueorgui Plekhanov: “a
a guerra na prisão, de onde saiu em novembro de 1918, liberta- vitória do nosso programa é tão cer-
da pela revolução que depôs o imperador, e depois se tornou ta quanto o nascer do sol amanhã”.
cofundadora do Partido Comunista da Alemanha (KPD). Ao contrário, sua fundamentação no
Como muitos revolucionários, seu fim foi trágico. Luxembur- materialismo histórico exigia que
go participou ativamente da Revolução Alemã e foi assassinada a análise considerasse que, sim, os
em 1919, junto com Karl Liebknecht, durante o episódio conhe- homens fazem a história em condi-
cido como “Insurreição de Janeiro”, por membros de milícias ções herdadas do passado, mas são
paramilitares, as Freikorps, precursoras das milícias nazistas. eles que fazem a história. Precisamen-
Apesar da distância temporal, Luxemburgo não é uma figura te por isso, ela se dedicou, com seus
para ser lembrada apenas no passado. Seu pensamento se apli- artigos, discursos e aulas na escola
ca bem a períodos de transição, de crise e de catástrofes, cuja do partido, à formação política dos
maior responsabilidade cabe à voracidade acumulativa do capi- trabalhadores. Os trabalhadores não
talismo, independentemente de máscaras políticas. surgem automaticamente dotados de
Não por acaso, Luxemburgo adotou o lema “socialismo ou bar- consciência de classe, então é preciso
bárie”. Ela percebeu que a mundialização do capital do começo do investir tempo para que despertem

130
SOCIALISMO OU BARBÁRIE

Rosa mostra o
capitalismo como um
câncer que cresce
sem parar e que, para
sobreviver, precisa
extrair valor de todas
as dimensões da vida,
sobretudo do trabalho
e da natureza.
131
FUNDO DO BAÚ

132
SOCIALISMO OU BARBÁRIE

Luxemburgo se para a necessidade de ir além do capitalismo. O verso do Fausto,


de Goethe, “no princípio era a ação”, um dos lemas prediletos
deu conta da de Rosa Luxemburgo, é muitas vezes repetido em seus escritos

mundialização do políticos. Para ela, o “inevitável” colapso do capitalismo não será


automático, mas fruto da ação política.
capital antes de Luxemburgo se opunha à concepção leninista de partido como

muitos outros. vanguarda porque temia acima de tudo a separação entre dirigen-
tes e dirigidos, entre chefes – como dizia ironicamente – e massas.
Ela percebeu a No seu entender, o papel do verdadeiro líder é acabar com a divi-

existência de são entre vanguarda e massa, transformar a massa em líder de si


mesma. Hoje, é possível relacionar sua perspectiva com o “Mandar
uma conexão obedecendo” dos zapatistas. A disciplina arbitrária imposta pelos

intrínseca entre o dirigentes às bases retira a responsabilidade delas e as infantiliza,


num movimento que leva o partido a se transformar num apara-
desenvolvimento to burocrático dominado por uma camarilha de líderes “infalí-

na metrópole e o veis”. Um partido socialista revolucionário, para Luxemburgo, é


o espaço de unificação da maioria na luta contra o capitalismo.
subdesenvolvimento É também uma escola de socialismo, local de formação de traba-

na periferia como lhadores autônomos e críticos. Daí sua discordância em relação


aos bolcheviques por terem dissolvido a Assembleia Constituinte
uma característica durante a Revolução de Outubro de 1917. A dissolução foi de fato

essencial do a eliminação do espaço público, que seria o único antídoto contra


a burocratização do partido e dos sovietes. A história do século
capitalismo. passado lhe deu razão.
O trabalho de Luxemburgo era um alerta constante contra o
dogmatismo. Nesse sentido, escreve: “O marxismo é uma visão de
mundo revolucionária, sempre em luta por novos conhecimentos,
que não detesta nada tanto quanto a cristalização em formas
válidas para sempre e cuja força viva é garantida da melhor
maneira nos choques intelectuais e nas tempestades históricas”.
O seu senso crítico, que a punha a salvo da adesão ao “marxismo
oficial”, reforça essa hipótese. Segundo Luxemburgo, Kautsky, “o
guardião oficial do templo marxista”, operava torções interpreta-
tivas na teoria de Marx a fim de justificar a imobilidade do SPD,
apegado unicamente às disputas parlamentares e ao combate
eleitoral. Já a nossa socialista, dotada de forte independência de
espírito e avessa a todo dogmatismo, não só age no sentido de des-
pertar a energia revolucionária das massas trabalhadoras alemãs,
como também, enquanto estudiosa do legado de Marx, interpreta
O capital como obra aberta e incompleta: “A principal obra de Marx,
assim como toda a sua visão de mundo, não é nenhuma Bíblia com
verdades de última instância, acabadas e válidas para sempre, mas
um manancial inesgotável de sugestões para levar adiante o tra-
balho intelectual, continuar pesquisando e lutando pela verdade”.

133
FUNDO DO BAÚ

MARXISMO CONTRACORRENTE “civilizados” modos de vida mais iguali-


No espírito de completar Marx, Luxemburgo busca resolver um tários e não predadores – um passo na
dos problemas centrais da teoria marxista da acumulação, que direção de uma sociedade pós-capita-
ela considerava incompleta e incorreta. Se fosse bem-sucedida, lista. Apesar de não ter podido desen-
encontraria a chave para a explicação econômica do imperia- volver suas observações – que aponta-
lismo. Para resolver esse problema, ela passa a estudar como se vam para uma concepção de história
dá a expansão capitalista. O resultado está em A acumulação do distinta da do marxismo ortodoxo –,
capital e Introdução à economia política (1925). seu pensamento já alertava para os ris-
Luxemburgo se deu conta da mundialização do capital antes cos de uma fé ingênua no desenvolvi-
de muitos outros. Ela percebeu a existência de uma conexão mento das forças produtivas.
intrínseca entre o desenvolvimento na metrópole e o subde- Se Luxemburgo lançava seu olhar
senvolvimento na periferia como uma característica essencial crítico sobre tudo, inclusive sobre o
do capitalismo. O modo de vida dos povos fora do mercado, marxismo, esse “velho tio artrítico”
colonizados sem dó nem piedade pelo capitalismo, é visto por que temia “dar asas ao pensamento”, é
Luxemburgo como o reverso da acumulação do capital, sem o porque tinha como valor primordial
qual esta não existiria. Sua teoria explica o imperialismo do a liberdade de opinião, resumida na
século 20 e explica a atual privatização acelerada dos serviços famosa frase símbolo de seu pensa-
sociais (habitação, saúde, educação) e da natureza no mundo mento político: “a liberdade é sempre
todo. Contribui para compreender o desenvolvimento capita- a liberdade de quem pensa de modo
lista no Brasil, ou melhor, seu subdesenvolvimento como parte diferente”. Liberdade de opinião, asso-
de um projeto global. Além disso, Rosa Luxemburgo oferece em ciação e reunião são famosas como
sua análise uma base explicativa para o trabalho doméstico não liberdades democráticas oriundas das
pago das mulheres como fonte de acumulação do capital. revoluções burguesas, mas quando
Rosa mostra o capitalismo como um câncer que cresce sem complementadas pela igualdade social,
parar e que, para sobreviver, precisa extrair valor de todas as são também fundamentais para a for-
dimensões da vida, sobretudo do trabalho e da natureza. mação política das massas populares.
Ao expor essas ideias, ela toma partido a favor da especifi- Liberdade de opinião e de crítica
cidade histórica dos países coloniais, e mostra o capitalismo é vital no interior das organizações
como um sistema usurpador que permitiu o enriquecimento das dos trabalhadores, caso contrário não
nações europeias à custa do resto do mundo. Numa carta a seu existe amadurecimento político nem
companheiro Costia Zetkin, de 4 de fevereiro de 1911, ao se referir avanço da esquerda. Sem liberdade
ao início dos descobrimentos e da colonização, escreve: “Agora de expressão, sem pluralismo de opi-
compreendo vividamente aquele tempo em que a velha Europa niões, sobrará apenas a burocracia e
enviou uma infinita torrente de lama, sangue e sujeira da civili- a vontade férrea de um punhado de
zação para as novas terras. Pude também contemplar a essa luz revolucionários substituindo as mas-
as fases sucessivas até a atualidade, e tenho agora uma imagem sas. Arremedo de socialismo, pensava
tão palpável dessa inundação de todas as partes do mundo com a Luxemburgo, para quem socialismo
sujeira da civilização europeia que estou comovida”. e democracia são termos indisso-
Diferentemente de uma visão iluminista do progresso (embo- ciáveis. Sem participação ativa das
ra ela também compartilhasse dessa visão), que encara a violên- massas populares, politicamente for-
cia capitalista como mal “necessário” no caminho em direção ao madas, nos assuntos que lhes dizem
socialismo, Luxemburgo acreditava que as formações sociais não respeito, não é possível construir o
capitalistas, por apresentarem traços de uma vida comunitária socialismo. Essa é a ideia central do
determinada pelos interesses da coletividade, podem ensinar aos seu pensamento político.

134
SOCIALISMO OU BARBÁRIE

Liberdade de ROSA LUXEMBURGO PARA OS DIAS DE HOJE


Se Luxemburgo é lembrada até hoje como uma das figuras mais impor-
opinião e de tantes do socialismo internacional, isso se deve sem dúvida, como men-

crítica é vital no cionado, à abertura de espírito que a levava a rejeitar as separações rígi-
das. Partido e massas, direção e base, trabalhadores organizados e não
interior das organizados, e, como acabamos de ver, desenvolvimento do capitalismo

organizações na metrópole e na periferia, não formam dicotomias estanques e iso-


ladas. Ela se recusava a fazer abstração dos indivíduos vivos, de suas
dos experiências, de sua capacidade de ação.

trabalhadores, Talvez o nome de Rosa Luxemburgo surja com maior frequência na


esquerda no debate sobre a impossibilidade de superar o capitalismo por
caso contrário meio de reformas. Estas sempre serão questionadas pelas classes capitalis-

não existe tas, que estão dispostas a sacrificar as liberdades políticas para defender
sua propriedade. Sem mudanças estruturais, as conquistas democráticas
amadurecimento dos trabalhadores serão eliminadas no momento seguinte. Reforma e revo-

político nem lução constituem termos da mesma equação dialética, na qual as reformas
só fazem sentido no interior de um projeto estratégico revolucionário.
avanço da A obra e a atuação de Luxemburgo formam toda uma gama de valores

esquerda. fundamentais para a esquerda: a rejeição do nacionalismo, porque a ele


vem atrelada a xenofobia e a falta de solidariedade com outros povos; a
solidariedade com os deserdados da terra, os humilhados e ofendidos,
os que foram deixados à margem pelo rolo compressor da modernização
capitalista; a coragem para resistir e não se deixar espezinhar, por mais
que a situação pareça sem saída.
Talvez a atração que ela exerce hoje sobre jovens militantes de esquer-
da se deva ao fato de Rosa Luxemburgo não ser de uma natureza polí-
tica pura, unilateralmente voltada para a militância, mas uma mulher
que desejava ardentemente se tornar um ser humano completo: falava
várias línguas, era boa escritora, amava a literatura e a música, tinha um
talento promissor para as artes plásticas.
Por vocação, Luxemburgo teria se dedicado às ciências naturais, se o
dever de se entregar integralmente à luta pela mudança social não tives-
se falado mais alto. Mas essa vocação é visível nas cartas da prisão, quan-
do, impedida pela censura de falar de política, mostra sua ligação visce-
ral com a natureza, ao descrever minuciosamente plantas ou animais, ou
as nuvens que passam por cima do pátio da prisão. Mais que apenas uma
anedota biográfica, sua correspondência nos dá elementos para pensar-
mos um socialismo que vá além do humanismo, que confira dignidade
a todas as formas de vida e se apoie na ideia da relação fraterna entre os
homens e a natureza. O valor que Luxemburgo confere a todos os seres
vivos é tão parte dela mesma quanto a fé de que a humanidade lutará
com todas as energias para não perecer na barbárie capitalista. Esse é o
maior legado que ela nos deixa e, por isso, enquanto houver capitalismo,
Rosa Luxemburgo será lembrada.

135
O FIM DO COMEÇO POR JAMES HERMÍNIO
MATERIALISMO ESOTÉRICO E RAFAEL LIMONGELLI

Nossos astrólogos virgem Você sabe melhor que


ninguém que não é chatice, mas
a luta é aqui e agora. Use seu
carisma para acender a chama

desbancam o deles
organização. Jamais confundir revolucionária nas massas. Não
disciplina revolucionária com desatente de seus compromis-
opressão dentro da esquerda. sos e mantenha o foco em seus
Seu pragmatismo será neces- projetos.
sário em momentos de gran-
de confusão estratégica. Você capricórnio Você está parti-
é fundamental para todos os cularmente preocupado com
áries O impulso de socar fascis- cas não faltarão. Fortes emoções camaradas, pois carrega tarefas as condições materiais para a
tas e xingar o tio reaça no zap da te farão oscilar entre a euforia e funções por onde passa, mas manutenção da vida cotidiana.
família será especialmente forte de ver a direita ruir e a ira ao ler evite o abuso e concentração As reformas da previdência,
neste quadriênio. A estrela ver- comentários de bolsominions de tarefas. Post-its, cronogra- tributária e trabalhista devem
melha de um governo popular na internet. Só não se esqueça mas e planilhas não são apenas ser derrotadas para evitar a
não rege mais o teu país. Nos que mais da metade é de robôs. bem-vindos nas trincheiras da precarização da existência.
tempos de instabilidade institu- Em meio ao caos político, não se revolta, são cruciais para que Auxilie na disciplina financei-
cional atrelada aos tempos bicu- deixe confundir entre movimen- elas aconteçam. Não deixe o ato ra das organizações militantes
dos em que vivemos, sua fama tos revolucionários e liberais que se dispersar para que se lem- que você participa. Dê atenção
incendiária e alguns ultimatos dizem que não são de esquerda, brem de que era importante ter a atividades físicas (caminhar
virão das organizações em que e nem de direita. estabelecido o trajeto. alguns quilômetros nos atos ou
você está engajado. Regido até mesmo correr da repressão),
pelo fogo, [no capitalismo] você câncer Não é o momento de libra Deixe para trás a indeci- elas são essenciais para reto-
é um pirotécnico. Lembre-se chorar pelas derrotas que temos são no primeiro turno da eleição mar o fôlego. Uma boa alimen-
das lições de Clara Zetkin: “A sofrido. Sua sensibilidade aflo- passada. Há apenas uma esco- tação é importante. Sobretudo
autodefesa é a necessidade do rada é um ótimo contraponto lha possível: união das forças se for orgânica – e do MST.
momento. [...] Combate-se vio- frente à insensibilidade neoli- progressistas. Chegou a hora de
lência com violência. Porém, não beral. Apesar das coisas irem decidir entre reforma e revolu- aquário Você sabe que não é
violência na forma do terrorismo mal, vale a pena investir nas ção. Você não é chicagoboy para de hoje que o conservadoris-
individual – que fracassará cer- próprias emoções. Cuidar de si escolher a primeira opção. Seu mo e a burguesia tentam barrar
tamente. Mas violência como é uma tarefa militante. É preciso charme e carisma são ótimos nossas liberdades e direitos.
poder da luta de classe revolu- lembrar que a nossa potência para agregar camaradas à luta. Esses coxinhas sempre foram
cionária do proletariado”. de vida é maior que a onda da Zele pela estética nas faixas e um pé no saco! Mas agora a
nova direita. Não se deixe iludir nos cartazes dos atos. sinuca de bico está mais estrei-
touro Você está sendo chama- por quem votou no que acredi- ta. No entanto, o momento de
do de preguiçoso pela burgue- tava ser o novo. As mobilizações escorpião O país está viven- alimentar as rebeldias e cons-
sia que quer acabar com seus de resistência oferecem ótimas do uma safadeza e não é do tipo pirar com os camaradas final-
direitos trabalhistas e previden- oportunidades para chorar de que você gostaria. Sua lealdade e mente chegou. Sua verve na
ciários. Negue-se a trabalhar 12 alegria. fidelidade são grandes trunfos no escrita e seu desejo de liber-
horas por dia até os 65 anos de seu meio político. Você tem difi- dade pode contagiar outras
idade. É tempo de lembrar que leão Leoninos, sabemos que culdade em esquecer dos erros pessoas que estão mais parali-
as políticas neoliberais atacam vocês têm um brilho especial, estratégicos dos camaradas, mas sadas pelo cenário sombrio que
aquela que você considera uma mas não se deixem levar pela não deixe o rancor afetar suas tomou conta do país. Ensine o
grande necessidade para viver tentação de defender o verti- relações políticas. É hora de olhar desapego em relação a práticas
bem: sua comida. Está na hora calismo burocrático disfarçado a falência da ordem liberal bur- ultrapassadas.
de lutar contra a fome que ron- de centralismo democrático guesa, fazer a autocrítica e pensar
da os pobres. Você antifascista e nem atrapalhem a fala dos como mudar sem ferrar os com- peixes Quando alguém lhe
convicto, e não se importa se camaradas durante as reuniões panheiros na resistência. chamar de desastrado, mande
te chamam de cabeça dura. É do coletivo. Sua capacida- a pessoa olhar para o governo.
hora de quebrar as estruturas de de liderança será cada vez sagitário Você tem uma ação Você está em outra frequência e
de poder que te sufocam. Lem- mais importante, uma vez que obstinada no mundo, sem- é capaz de passar horas sonhan-
bre-se do exemplo de taurinos outras lideranças capitularam, pre com novas articulações e do com utopias. Mas a conjuntu-
como Marx e Lenin. foram presas a mando de juízes engajamento em movimentos ra te chama para o materialismo
reacionários ou não dão con- para criar novas utopias. A von- histórico dialético. Não desani-
gêmeos Esteja alerta para um ta sozinhas de todas as tarefas tade é de fugir para o Uruguai e me, pois há grandes vitórias no
momento de confusão ideológi- urgentes. Lembre-se: tretas de viver onde é possível fumar um horizonte para quem sabe unir o
ca. Tempos interessantes para os internet rendem likes, mas não baseado sem ser incomodado. sonho de um mundo melhor com
geminianos que não suportam o necessariamente conscientizam Porém, calma lá que o capita- a luta diária. Inspire a sensibili-
tédio e a mesmice: crises políti- a classe trabalhadora. lismo é globalizado. Por isso, dade no seu meio social.

136
capricórnio

o
ári
sag

aqu
itár
io

s
ixe
es pe
co
rp
ião

áries
libra

to
ur
o
e m
v i rg

me
os
o
leã

câncer
O FIM DO COMEÇO
VALOR DE USO SABRINA FERNANDES E GUILHERME ZIGGY

Lenin faria ¶ JÁ NOS DISSERAM que este é o momento mais impróprio para
promover uma revista socialista no Brasil nos últimos vinte anos. Pode

revistas ser que sim. A extrema direita está no poder e abusa da combinação
entre liberalismo e conservadorismo. Uma presidenta de esquerda foi
retirada do cargo por meio de um golpe institucional e outro
ex-presidente de esquerda foi condenado e preso após um processo
judicial viciado e corrupto. A esquerda está fragmentada. Parte dela
clama por moderação e uma minoria acusa tudo que não é espelho de
Propaganda e agitação
“revisionismo”. Enquanto isso, o trabalhador comum acredita que mais
apresentam desafios. armas resolverão seus problemas, que a Amazônia não tem nada a ver
com ele e que os comunistas querem destruir o país. Para completar, há
Nós nos prontificamos.
uma crise econômica e o próprio mercado editorial luta contra suas
dificuldades.
Sejamos francos: é o pior momento para lançar uma revista
socialista. Isso significa que é o melhor e mais necessário momento
para lançar as duas edições especiais que Jacobin Magazine preparou
como Jacobin Brasil.
Não somos apenas uma revista socialista. Nossa revista não tem
medo de rótulos e de debate. Ela não contempla uma linha específica,
mas a base da discussão séria, mesmo quando polêmica. É uma revista
feita a muitas mãos e com bastante rigor.
Esta edição é fruto de muito trabalho. Todos as autoras e os autores
envolvidos apostaram na nossa proposta, mesmo quando não passava
de uma ideia. O trabalho de muita gente comprometida possibilitou
que várias tarefas fossem cumpridas. A confiança dessas pessoas é um
verdadeiro elogio. Nossos parceiros chegaram para garantir a execução
e a finalização de cada etapa. A revista na sua mão é resultado de
solidariedade e coletividade. E muita paciência.
Mas não queremos parar por aí. Queremos publicar mais uma edição
para expandir a razão e a revolta da Jacobin aqui por nossas bandas.
Por isso, precisamos de você. Ao comprar a edição você financia os
custos do esforço passado e futuro e possibilita mais uma experiência.
Afinal, socialista não vive só de ar (que, por enquanto, é uma das
poucas coisas gratuitas sob o capital).
Apoiando Jacobin Brasil, você vira para a situação do mercado
editorial hoje e diz, em tom desafiante, que o debate socialista pode se
impor – até em formato impresso. Por isso, temos a opção de
assinatura do pacote das duas edições. São especiais. São únicas. Foram
feitas com o contexto brasileiro em mente.
Acompanhe também as nossas redes e o nosso site. É lá que outra
parte da equipe bota pra quebrar. Temos muito o que construir e
ninguém vai sair desse buraco sozinho. Diante da sanha individualista
desse sistema, colaboremos!

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