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o TRABALHO DA CITAÇÃO

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r ti! 1979,Éditions du S euil I
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t'@1996,da tradução brasileira,Editora UFMG

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'. 2007 - la reimpressão
original: La seconde main ou le travail de la ci(ation

Este livro ou parte dele não pode ser reproduzido por qualquer meio sem
autorização escrita do Editor. f NOTA AO LEITOR
Compagnon, Antoine
C736t O trabalho da citação I Antoine Compagnon ; tradução de
Cleonice P. B. Mourão. - Belo Horizonte: Editora UFMG, 1996.
1 7 6 p.

Tradução de: La seconde main ou le travail de la citation


(Textos selecionados)
1. Literatura I. Mourão, Cleonice P. B. II. Título

CDD:801 Este volume é uma edição reduzida de La seconde


CDU: 82.01
main ou le travail de la citation, de Antoine Compagnon,
publicada pelas Éditions du Seuil, em 1979. Para a
Ficha catalográfica elaborada pela Divisão de Planejamento e Divulgação da seleção dos 39 tópicos traduzidos das seis seqüências que
Biblioteca Universitária da UFMG
ISBN: 85-85266-11-2
compõem a obra, optou-se por fragmentos que tratam da
escrita como exercício da intertextualidade.

COLABORAÇAO NA TRADUÇAO DA SEQÜ�NClA I:


Luciana Lobato Burros
Eliane Mourão
PROJETO GRÁFICO E CAPA Cássio Ribeiro
EDITORAÇAO DE TEXTO Ana Maria de Moraes
REVISAO E NORMALIZAÇAO Lflian de Oliveira
FORMATAÇAO Robson Miranda
PRO DUÇAO GRÁFICA Warren M. Santos

Editora UFMG
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Primeiro, ninguém pensa que as obras e os cantos
poderiam ser criados do nada. Eles estão sempre
ali, no presente imóvel da memória. Quem se
interessaria por uma palavra nova, não transmitida?
O que importa não é dizer, mas redizer e, nesse
rédito, dizer a cada vez, ainda, uma primeira vez.

Maurice Blanchot
CONVERSAÇÃO INFINITA SUMÁRIO

O que há de terrível em nós e sobre a terra e no


céu talvez seja o que ainda não foi dito. Só
estaremos tranqüilos quando tudo estiver dito, uma
vez por todas, então, enfIm, faremos silêncio e não
TESOURA E COLA 9
mais teremos medo de nos calar. E assim será.
ABLAÇÃO 13
Céline GRIFO 17
VIAGEM AO FIM DA NOITE
ACOMODAÇÃO 20

SOLICITAÇÃO 24

A LEITURA EM AÇÃO 27
Copiar como antigamente. 30
O HOMEM DA TESOURA
Gustave Flaubert UMA CANONIZAÇÃO METONíMICA 33
BOUVARDE PÉCUCHET
ENXERTO 37

REESCRITA 41

O TRABALHO DA CITAÇÃO 44

A FORÇA DO TRABALHO 47

O SUJEITO DA CITAÇÃO 49

CULPA DE GUILLAUME 52

EMBREAGEM A FRiCÇÃO 56

MOBILIZAÇÃO 58

.�
UM FATO DE lÍNGUA UNIVERSAL? 61

FORMA E FUNÇÃO 65

O SIMULACRO 69

MOSTRAR 75

UMA "BOA" CITAÇÃO? 79

O CORPO MARA VILHOSO DO DISCURSO 81

"VOX": A POSSESSÃO 84

UMA REGULAÇÃO INTERNA DO DISCURSO 90

A REGULAÇÃO CLÁSSICA DA ESCRITA


OU O TEXTO COMO HOMEOSTASE 96

A PERIGRAFIA 1 04

O INTITULADO E O TITULAR 1 06

A BI(BLI)OGRAFIA 1 12

DIAGRAMA OU IMAGEM 1 15

NA FACHADA 1 18

1
O POSTO AVANÇADO 1 20

O FOSSO ASSEPTIZANTE 1 24

O COMEÇO DO LIVRO E O FIM DA ESCRITA 1 28

A VOCAÇÃO DA ESCRITA 1 35

I
POSSE, APROPRIAÇÃO, PROPRIEDÂDE 139
A CITAÇÃO ACABADA 1 50

UMA ECONOMIA DA ESCRITURA 1 53

FESTIVIDADES 1 56

ESPAÇOS DE ESCRITA 1 60

NOTAS
REFERÊNCIAS
1 67

1 73
1
"J

TESOURA E COLA

Criança, tenho uma tesoura, pequena tesoura de


pontas arredondadas, para evitar que me machuque; as
crianças são muito desastradas até que atinjam a idade da
razão, quando aprendem o alfabeto. Com minha tesoura
nas mãos, recorto papel, tecido, não importa o que,
talvez minhas roupas. Às vezes, se sou bem comportado,
oferecem-me um j ogo de imagens para recortar. São
grandes folhas reunidas em um livreto, e sobre cada
uma delas estão dispostos, em desordem, barcos, aviões,
carros, animais, homens, mulheres e crianças. Tudo o
que é necessário para reproduzir o mundo. Não sei ler as
instruções, mas tenho-as no sangue, a paixão do recorte,
da seleção e da combinação. Meu gesto desejaria ser
minucioso; ponho-me a seguir o contorno das figuras,
um traço negro em volta do corpo. Mas o recorte é de
todos os jogos aquele que mais me deixa nervoso: serro
os punhos, bato o pé, rolo pelo chão. Sapateio de raiva
quando as coisas me opõem resistência, quando se recusam
a submeter-se à minha vontade, rebeldes que são a se
deixarem representar em meu recorte, em meu modelo
de universo. Ultrapasso sempre de alguns milímetros o
limite, corto as pontas de papel, que se dobram sobre os
ombros ou que deslizam pelas fendas do corpo, a fim de
que a roupa se mantenha sobre a silhueta de papelão nu.
Fico louco. Mas como poderia conseguir, se somente minha
mãe dispõe, para seus trabalhos de costura, de longas
tesouras pontiagudas que me permitiriam esquadriar,
sem mutilar as finas lingüetas? É preciso consertar os
estragos, colar novamente as extremidades que faltam.
Mas não tenho sequer fita adesiva. Invejo esses dois
grandes privilégios das pessoas adultas, a verdadeira
tesoura, pontiaguda, e a verdadeira cola, que cola tudo,
até o ferro. Sou fascinado como o último índio Ishi pelos
atributos que definiam, para ele, o homem branco: o
fósforo e a cola.! Quanto a mim, tenho somente um
pequeno pote de onde me vem o odor de xarope de cevada,
uma espátula leve para espalhar a pasta que tem a cor, a
consistência, o cheiro e o gosto dessa sobremesa servida nos
restaurantes chineses de Paris,. sob a denominação apócrifa
de "delícia das ilhas': Colar novamente não recupera jamais
a autenticidade: descubro o defeito que conheço, não
consigo me impedir de vê-lo, só a ele. Mas me acostumo
pouco a pouco com o mais ou menos; subverto a regra,
desfiguro � mundo: uma roupa feminina sobre um corpo
masculino, e vice-versa. Compondo monstros, acabo por
aceitar a fatalidade do fracasso e da imperfeição. Nada se
cria. Eu parodio o jogo recortando novos elementos em
papel comum que vou pintando sem levar em conta o bom
senso. Isso não se parece mais com coisa alguma; não me
reconheço, a mim. Mas eu amo essa "coisa algumà'.

10
Recorte e colagem são o modelo do jogo infantil, uma
forma um pouco mais elaborada que a brincadeira com
o carretel, em cujil alternância de presença e de ausência
Freud via a origem do signo; uma forma primitiva do jogo
da porrinha - papel, tesoura, calhau - e mais poderosa se
nada, no fundo, resiste à minha cola. Construo um mundo
à minha imagem, um mundo onde me pertenço, e é um
mundo de papel.
Imagino que, quando bem velho - se eu ficar bem
velho -, reencontrarei o puro prazer do recorte: voltarei à
infância. Todas as manhãs, receberei o jornal, que recortarei
linha por linha, em longas tiras de papel que colarei umas às
outras e enrolarei como uma fita de máquina de escrever.
Meu dia estará cheio: não lerei mais, não escreverei mais,
não saberei mais nem escrever nem ler, mas estarei ligado
ainda ao papel, à tesoura e à cola.
Recorte e colagem são as experiências fundamentais
com o papel, das quais a leitura e a escrita não são senão
formas derivadas, transitórias, efêmeras. Entre a infância
e a senilidade, que terei feito? Terei aprendido a ler e a
escrever. Leio e escrevo. Não paro de' ler e escrever. E por
quê? Não seria pela única razão inconfessável de que, no
momento, n�9 posso me dedicar inteiramente ao jogo de
papel que satisfaria o meu desejo? A leitura e a escrita são
substitutos desse jogo. Sinto saudade dos livros antigos,
do tempo em que era preciso abri-los previamente com o
corta-papel: ''A dobra virgem do livro, além disso, pronta
para um sacrifício que fez sangrar o corte vermelho dos
tomos antigos; a introdução de uma arma, ou corta-papel,
para estabelecer a tomada de posse:'2 Gosto do segundo
tempo da escrita, quando recorto, junto e recomponho.
Antes ler, depois escrever: momentos de puro prazer

1 1
preservado. Será que eu não preferiria recortar as páginas
e colá-las num outro lugar, em desordem, misturando
de qualquer jeito? Será que o sentido do que leio, do que
escrevo tem uma real importância para mim? Ou não seria
antes uma outra coisa que procuro e que me é, às vezes,
proporcionada por acaso, por estas atividades: a alegria
da bricolagem, o prazer nostálgico do jogo de criança? É
por isso que se deve conservar a lembrança dessa prática
original do papel, anterior à linguagem, mas que o acesso
à linguagem não suprime de todo, para seguir seu traço
sempre presente, na leitura, na escrita, no texto, cuja
definição menos restritiva (a que eu adoto) seria: o texto
é a prática do papel. Dois dentre os grandes escritores
deste século comprovariam essa definição: Joyce e Proust.
O primeiro apresentava a tesoura e a cola, scissors and
paste, como objetos emblemáticos da escrita;3 o segundo,
pregando aqui e ali seus pedaços de papel, comparava de
bom grado seu trabalho ao do costureiro que constrói um
vestido, mais do que ao do arquiteto ou do construtor de
catedrais. E no texto, como prática complexa do papel, a
citação realiza, de maneira privilegiada, uma sobrevivência
que satisfaz à minha paixão pelo gesto arcaico do recortar­
colar.

12
ABLAÇÃO

Quando cito, extraio, mutilo, desenraízo. Há um objeto


primeiro, colocado diante de mim, um texto que li, que leio;
e o curso de minha leitura se interrompe numa frase. Volto
atrás: re-leio. A frase relida torna-se fórmula autônoma
dentro do texto. A releitura a desliga do que lhe é anterior
e do que lhe é posterior. O fragmento escolhido converte-se
ele mesmo em texto, não mais fragmento de texto, membro
de frase ou de discurso, mas trecho escolhido, membro
amputado; ainda não o enxerto, mas já órgão recortado e
posto em reserva. Porque minha leitura não é monótona
nem unificadora; ela faz explodir o texto, desmonta-o,
dispersa -o. É por isso que, mesmo quando não sublinho
alguma frase nem a transcrevo na minha caderneta, minha
leitura já procede de um ato de citação que desagrega o
texto e o destaca do contexto.
Não seria isso simplesmente reconhecer que, em um
livro, há algumas frases que leio e outras que não leio,
vatiando a proporção entre as duas, segundo os livros,
segundo os dias? Mas as frases que leio, aquelas que me

13
prendem e que afIxo no meu mostruário, com certeza eu
as cito.
Quintiliano valia-se disso para explicar as vantagens da
leitura sobre a audição: ''A leitura é livre e não é obrigada a
acompanhar o orador. Pode-se voltar a cada instante sobre
os próprios passos, seja para examinar uma passagem mais
atentamente, seja para melhor memorizá-la:'4 Voltar sobre
os próprios passos, memorizar (repetere, para Quintiliano),
é decompor o texto, alterar sua organização. E Quintiliano,
para aproximar esse gesto necessário da leitura a ser
apreendida, recorre a uma outra metáfora, diferente da
cirúrgica, mas ainda uma metáfora corporal ou orgânica,
não mais a do texto como corpo a retalhar, mas a do leitor
como o agente da manducação que antecede toda digestão,
toda assimilação:

Assim como se mastiga por muito tempo os alimentos


para digeri-los mais facilmente, da mesma maneira o que
lemos, longe de entrar totalmente cru em nosso espírito,
não deve ser transmitido à memória e à imitação senão
depois de ter sido mastigado e triturado.5

A leitura repousa em uma operação inicial de depredação


e de apropriação de um objeto que o prepara para a
lembrança e para a imitação, ou seja, para a citação.
(Repetição, memória, imitação: uma constelação semântica
em que conviria delimitar o lugar da citação.) Mas o teor
de�sa operação preliminar não pode ser avaliado senão
através de metáforas. Quintiliano não se recusava a isso:
suá Instituição Oratória é cheia de imagens que traduzem
ao vivo o gestual sutil do discurso. A aproximação
metafórica, de certo modo impressionista, marca (como

14
uma fotografia aérea) os campos .de uma investigação
ulteriQr e menos superficial (a fotografia aérea servirá para
estabelecer um mapa geográfico, para promover pesquisas
geológicas ou geotérmicas). Já um discurso imediatamente
metalingüístico desconheceria, sem esperança de volta,
os fatos de linguagem mais tênues que a retórica antiga
- uma arte, isto é, uma ciência e uma técnica, mas também
uma prática - deveria explicar. Somente uma análise
fenomenológica do nosso próprio exercício da linguagem
descobre e retém esses fatos mais finos, apega-se a eles e
deseja interpretá-los.
Algumas séries metafóricas atravessarão, portanto,
essas páginas, séries díspares e às vezes divergentes: uma
cirúrgica, outra financeira ou económica, porque a citação
põe em circulação um objeto, e esse objeto tem um valor.
Uma outra metáfora ainda, da costura, falará de corte, de
montagem, de alinhavo e de chuleio. E ainda todas estas:
topográfica, estratégica, militar, teológica, anatómica, que
não têm outra ambição senão a de fazer aflorar hipóteses,
traçar um itinerário para uma série de questões a se
aprofundar ao longo do trabalho. E os desvios lógico,
lingüístico, histórico, psicológico não serão, também,
menos metafóricos que os outros.
Ora, o que são elas, essas metáforas heurísticas que, do
mesmo modo, não levarão a lugar nenhum (pelo menos
a paisagem terá sido descrita)? Evidentemente: citações.
Todas seriam justificáveis como tais por referências aos
Essais (Ensaios), de Montaigne. Da mesma forma, toda
citação é ainda - em si mesma ou por acréscimo? - uma
metáfora. Toda definição da metáfora conviria tambem
à citação; a de Fontanier, por exemplo: '�presentar uma
idéia sob o signo de uma outra idéia mais surpreendente

15
ou mais conhecida, que, aliás, não se liga à primeira por
nenhum outro laço a não ser o de uma certa conformidade
ou analogia:'6

16
GRIFO

Ler, com um lápis na mão, como recomendava Erasmo,


em De Duplici Copia, assim como todo ensinamento da
Renascença, contornar algo do texto com um forte traço
vermelho ou negro é traçar o modelo do recorte. O grifo
assinala uma etapa na leitura, é um gesto recorrente que
marca, que sobrecarrega o texto com o meu próprio traço.
Introduzo-me entre as linhas munido de uma cunha, de
um pé de cabra ou de um estilete que produz rachaduras
na página; dilacero as fibras do papel, mancho e degrado
um objeto: faço-o meu. É por isso que na biblioteca toda
essa gesticulação íntima me é proibida.
O livro que eu maltratei lembra esses objetos transicionais
de que fala o psicanalista inglês Winnicott,7 uma ponta de
cobertor, um urso de pelúcia que a criança chupa antes de
adormecer. Não me desprendo dele, eu o amo. Pois o livro
lido não é um objeto realmente distinto de mim mesmo,
com o qual teria uma verdadeira relação de objeto: ele é eu
e não-eu, uma not-me possession. Não é assim que se pode
compreender o estatuto do livro de cabeceira, o livro por

17
excelência - a menos que ele não passe de um mito -,
esse volume, sempre o mesmo, do qual leio uma página
cada noite ao me deitar e junto ao qual eu durmo? Mas
todos os livros de que me cerco,são, em um grau menor,
not-me possessions, um corredor entre mim e o mundo,
uma zona protegida, um espaço reservado. Não me separo
deles de boa vontade, gostaria de tê-los sempre comigo.
Quando passeio, levo muitos deles em meus bolsos ou
em minha bagagem. E é também como um pretexto para
não emprestá-los (a discrição, o pudor) que os sublinho,
que os rabisco ternamente. O grifo é o menos contestável
dos ex-libris.
Esse gesto reproduz um sublinhar anterior, aquele
grifo que a pena efetua sobre a página manuscrita, a
fim de assinalar para o tipógrafo aquilo que ele deverá
colocar em itálico. O quirógrafo e o tipógrafo são dois
personagens distintos, duas razões sociais que acenam uma
para a outra através de um grifo interposto ou de qualquer
outra convenção. O escritor cochicha ao outro, em aparte:
''Aqui você usará caracteres diferentes." E o grifo assume
a função de um conector, de uma marca da enunciação
no enunciado, através da qual o autor dá a entender a
algum leitor alguma coisa além da significação e que lhe é
irredutível, alguma coisa que remete à sua própria leitura
de seu próprio texto, e mesmo à sua própria audição no
momento de uma leitura em voz alta. O grifo corresponde
a uma entoação, a um acento, a uma outra pontuação que
ultrapassa o código comum. Daí a exigência de um sinal
especial que possa torná-la inteligível.
Quando se publicam as notas de leitura de um autor
célebre - aliás, por que publicá-las senão na hipótese de
que se trata de um primeiro estado de sua própria escrita?

18
$4

- é preciso recorrer a artifícios tipográficos complicados


para distinguir os patamares múltiplos e sucessivos da
enunciação. A leitura de Hegel por Lenin torna-se um texto
novo. Figuram sobre a página impressa: o texto primeiro,
o de Hegel, com seus itálicos, que são antigos grifos; os
sobrescritos de Lenin, seus grifos reconstituídos, apesar
das convenções, pelos grifos tipográficos; e suas rubricas
ou suas notas marginais impressas com o auxílio de um
terceiro tipo de letra. Lendo, eu acrescento ainda. Pode­
se imaginar que a cadeia não se interromperá: como na
Patrologia, de Migne.8
O grifo na leitura é a prova preliminar da citação
(e da escrita),' uma localização visual, material, que
institui o direito do meu olhar sobre o texto. Tal como
um reconhecimento militar, o grifo coloca marcas,
localizadores sobrecarregados de sentido, ou de valor; ele
superpõe ao texto uma nova pontuação, feita ao ritmo da
minha leitura: são os pontilhados sobre os quais mais tarde
farei recortes. Toda citação é primeiro uma leitura - assim
como toda leitura, enquanto grifo, é citação -, mesmo
quando a considero no sentido mais trivial: já li outrora a
citação que faço, antes (seria exato?) de ela ser citação.

19
ACOMODAÇÃO

Existem pessoas que são pagas para ler - e mal pagas,


segundo se diz. São os "leitores" das editoras. Uma vez
por semana, eles vão ao seu patrão esvaziar sua sacola e
voltam com a sacola cheia de manuscritos recentemente
datilografados. Essas pessoas são profissionais da leitura:
ela é, para as mesmas, uma atividade social, um trabalho
remunerado. Essas pessoas têm prazos, produzem notas
de leitura. Ora, para tal exercício não há método, o ensino
não prepara para isso, pelo menos na França. Nos Estados
Unidos da América cada aluno recebe, periodicamente,
durante toda a sua vida escolar, um reading list no qual
escolhe alguns volumes de cuja leitura prestará contas, não
como um erudito ou como um crítico, mas como um leitor
inocénte (na França não se acredita mais na inocência de
nenhuma leitura). Admite-se até que o aluno produza uma
sentença decisiva contra Shakespeare ou Dickens.
O que se pretende em uma nota de leitura? Sem dúvida,
provar alguma coisa, isto é, que o manuscrito merece ou
não ser lido por mais de um leitor que assim deseje e

20
que pague por isso, em vez de ser pago. Como fazer tal
demonstração? Pelo levantamento estatístico de algumas
amostras do manuscrito: um capítulo, uma página, uma
linha. É ainda a técnica do grifo, que, com certo treino,
aprende-sC\ a fazer rapidamente. Gide, descobrindo o
manuscrito de Em Busca do Tempo Perdido, que chegara
ao editor pelo correio, destacou dele uma frase e a utilizou
contra Proust.
"Há algumas frases a destacar em seu manuscrito:'
A destacar, quer dizer, a citar, a recitar: elas suportam a
prova da citação. Essas frases são citações que o leitor faz
no texto, são as paradas, as reticências ou os obstáculos de
sua leitura. Se esses tropeços forem demasiadamente raros
ou aesagradáveis, o manuscrito será julgado inaceitável.
O texto contemporâneo - e este é o mais inegável dos
seus sucessos - torna impraticável tal modo de leitura: é
pegar ou largar. Pois a frase que se sublinha é quase sempre
a que se desejaria modificar ou suprimir - modificá-la
por pouco que seja para apropriar-se dela -, mas o
texto contemporâneo é o que ele é: nenhuma mudança é
concebível. É iJ.llp ossÍvel citá-lo.
Ora, quais são as frases a serem destacadas em um
manuscrito? Seria divertido e muito plausível que fossem
justamente suas citações, confessadas ou encobertas, suas
alusões, que orientam o leitor para um autor sob cujo
signo se quer colocar o aprendiz. O leitor acomodar­
se-ia em alguns lugares conhecidos e reconhecidos, em
número suficiente para incluir o manuscrito em uma
grande tipologia intuitiva das competências de leitura: o
requisit de leituras prévias, necessárias para abordar um
livro-dado, seria o índice desse livro, seu lugar na tipologia.
Pouco importa que o aprendiz não se reconheça no lugar

21
em que foi acomodado: entregando-se à leitura, ele aceita
todas as citações que lhe queiram impor, sejam elas
provenientes ou não de sua própria leitura, de sua própria
competência. Além do mais, uma competência pode muito
bem depender da atmosfera da época.
A única liberdade que o texto çoncede ao leitor é a
da acomodação:' que ele acomode o texto e que nele se
acomode, sendo as duas coisas muitas vezes contraditórias.
O leitor deverá encontrar o lugar de onde o texto lhe seja
legível, aceitável. Não se pode exigir dele que esse lugar
lhe seja inteiramente desconhecido no momento em que
abre o livro: um livro que não me oferecesse nenhum
ponto de acomodação, que subvertesse todos os meus
hábitos de leitura, que não exigisse nenhuma competência
especial, mas as ultrapassasse todas, esse livro ser-me-ia
completamente inacessível e eu haveria de rejeitá-lo.
A citação é um elemento privilegiado da acomodação,
pois ela é um lugar de reconhecimento, uma marca de
leitura. É sem dúvida a razão pela qual nenhum texto,
por mais subversivo que seja, renuncia a uma forma de
citação. A subversão desloca as competências, confunde
sua tipologia, mas não as suprime em princípio, o que
significaria privar-se de toda leitura.
Dentre as numerosas definições em torno da citação,
proporemos esta: a citação é um lugar de acomodação
previamente situado no texto.. Ela o integra em um
conjunto ou em uma rede de textos, em uma tipologia das
competências requeridas para a leitura; ela é reconhecida
e não compreendida, ou reconhecida antes de ser
compreendida. Nesse sentido, seu papel é inicialmente
fático, de acordo com a definição de Jakobson: "Estabelecer,
prolongar ou interromper a comunicação, [ ... ] verificar se o

22
circuito funciona:'9 Ela marca um encontro, 10 convida para
a leitura, soÜcita, provoca como uma piscadela: é sempre a
perspectiva do olho que se acomoda, do olho que se supõe
na linha de fuga da perspectiva. Haverá muito a dizer sobre
. a citação como olho, tal como a qualificam, entre outros,
Quintiliano e São Jerônimo.

23
SOLICITAÇÃO

Quando leio, o que faz com que me interrompa, com


que pare diante de determinada frase e n ão de outra?
O que esse tropeço desperta em mim? Ele põe em
movimento todo o processo da citação. Mas o que antes
despertou esse tropeço? Bem anterior à citação, mais
profunda e mais obscura, foi a solicitação: um pequeno
choque perfeitamente arbitrário, totalmente contingente
e imaginário. Louis Massignon assim o descrevia:

Quão singular o ascendente súbito da frase que nos choca


numa volta de leitura; já não é então o peso de uma ex­
periência coletiva que nos faz ceder (como é o caso dos
provérbios), é, dentro da nossa mais íntima preferência,
a intervenção docemente persuasiva de uma outra per­
sonalidade, despertando fraternização.11

A solicitação é uma comoção total e indiferenciada do leitor,


um encantamento que precede, compreende e oculta a
atribuição para si mesma de uma causa. A sonoridade
de uma gutural, o eco de uma vogal, um ritmo adaptado
à minha respiração ou aos meus reflexos - nunca deixo
de sublinhar os alexandrinos perdidos em uma obra de
filosofia - ou, mais banalmente ainda e se possível, o
tempo morto para apagar um cigarro, uma buzinada sob
minha janela, uma cãibra no dedo do pé: todos acidentes
que não dependem do próprio texto, mas que me solicitam
da mesma forma. A solicitação é essencialmente fortuita.
A prova é que o mesmo livro pode cair-me das mãos hoje
e arrebatar-me amanhã.
O que me solicita não é o livro, nem eu mesmo, mas
um encontro casual, uma passante, assim como acontece
com o ser que vejo todos os dias e do qual (imagem
fugidia e inatingível), de repente, venho a enamorar-me e
pelo qual, graças talvez a uma perspectiva, a uma simples
circunstância particular e imprevisível, me apaixonarei
loucamente.
É quando, então, a excitação intervém: ela vai em
busca, no texto, do alicerce (o ground, o solo, a base) da
solicitação. Mas a solicitação talvez tivesse uma outra
causa. A excitação faz o texto sair de si mesmo, diferencia-o,
destaca-o, trabalha para expulsar dele um elemento que
poderá, provavelmente, ser considerado como causa,
acidental, da solicitação. Entretanto, a excitação nunca
remonta à origem, jamais reencontra o abalo original e
intratável. Eu posso me excitar com um texto, sublinhá-lo,
riscá-lo, recortá-lo, rasgá-lo e cobri-lo de injúrias, o abalo
inicial me é inacessível, porque está, ao mesmo tempo,
dentro do texto e fora dele, na configuração imaginária
da leitura da qual, com todo o meu corpo, sou uma parte
recebedora e o último referente. A solicitação se ocupa
de meu desejo, e o objeto assinalado que eu expulso do

25
texto a fim de conservá-lo como memória de uma paixão
(a da solicitação), esse objeto não passa de um resíduo,
um dejeto, um logro, um fetiche e um simulacro que se
somam ao· meu estoque de cores. Meu litterarum penus,
como diziam os antigos, ou meu "Fundo literário': segundo
a expressão retomada por Mallarmé, não é senão uma
reunião de lutos excitados, de nostalgias solicitantes.
O que seria uma leitura da solicitação? Ela limitar-se-ia
ao namoro, deixaria de excitar, de retalhar o texto. Seria,
sem dúvida, uma interpretação, assim como a única leitura
concebível da enunciação. A solicitação é o correspondente,
em leitura, da enunciação: um acomodamento, uma
conciliação do enunciado. E as marcas da solicitação no
texto são as excitações, os grifos e os desmembramentos:
sinais sempre aproximativos e insatisfatórios, mas
presunções de uma verdade que foi, instantaneamente, a da
minha leitura. É por isso que eu resisto a emprestar meus
livros, pois eles trazem os traços indiscretos das minhas
excursões (e incursões) através deles, de minhas aventuras
cheias de desejo e de amor, datadas e localizadas, como se
o entregar-se à leitura nas suas glosas excitadas proviesse
de exibicionismo acrescido de cegueira. A solicitação,
ainda da mesma forma que a enunciação, só tem valor (de
reconhecimento) no tempo da leitura, mas esse tempo, essa
duração é, na maioria das vezes, mal conhecida. A leitura,
como a escrita, paralisa o tempo, fecha-o sobre si mesmo:
tal é o axioma ilusório que desconhece a solicitação.

26
A LEITU RA EM AÇÃO

Sejam as quatro figuras distintas da leitura: ablação,


grifo, acomodação e solicitação. Como elas se organizam?
Representam fases, sucedem-se? Não necessariamente:
sendo todas possíveis, uma pode realizar-se sem as outras.
Todavia, há entre elas uma gradação latente, uma ordem
teórica, inversa daquela em que foram descritas e que,
partindo da mutilação, penetrava até o intratável da paixão
pela leitura, onde se perdia. Elas partem do objeto total que
é para mim o texto que me encanta na solicitação, passam
pela acomodação num lugar reconhecido de satisfação, pelo
grifo que aprisiona esse lugar, e alcançam o objeto parcial
que destaco do texto na ablação. Trata-se, através desses
quatro momentos, de uma aproximação cada vez mais frna,
de um quadriculado estratégico. Mas esse não tem nada a
ver com a significação. A significação (se não o sentido) é a
quinta roda dessa carruagem, a roda sobressalente que irei
proqlrar se minha leitura for trabalho perdido. Eu recorro
ao sentido como a um último recurso, agarro-me a ele
por não poder encontrar a paixão, na ilusão desesperada

27
de que um esforço sobre a significação prender-me-ia ao
texto que, pela solicitação, não me prendeu. A solicitação
faz parte do sentido, do valor que atribuo ao texto: ela é um
componente autêntico dele, produzido pelo ato de leitura.
'
E o livro ao qual me prendo somente pela significação é
um castigo, ele me cai das mãos.
A solicitação é, pois, para a leitura, uma figura
iniciatória: sem ela, se ainda há leitura, em todo caso não
há prazer; sem ela, há uma leitura da significação e não
da paixão; uma leitura em que as operações posteriores
realizar-se-ão algumas vezes, mas supletivamente, pois
carecerão de fundo: serão acomodações, grifos e ablações
'
maquinais e gratuitos.
Ao contrário, o trabalho de leitura pode parar no
momento da solicitação, sem ir além do elã inicial. O
trabalho que se faz em seguida deve, com efeito, de
uma certa maneira, anulá-la e resignar-se a perdê-la.
Permanecer na solicitação é recusar o luto, desejar o êxtase
e suspender seu fim. A pura leitura da solicitação seria uma
leitura mística, uma contemplação, uma gnose - lectio e
meditatio são sinônimos nas regras monásticas da idade
média -, uma leitura da paixão infinita, indefinida e
insensata, visto que o sentido dependeria da excitação que
sobrevive ao encantamento.
Após a solicitação, os passos seguintes, acomodação,
grifo e ablação, reúnem-se em um bloco mais compacto:
a excitação, que ultrapassa a solicitação, que destaca o
sentido. Para dar continuidade à metáfora do amor, é a
cristalização que se ocupa do primeiro arrebatamento,
o que não quer dizer que seja menos imaginária: ela
decompõe a imagem sedutora, mas para recompô-la

28
imediatamente, ajustá-la, adequá-la, condensá-la numa
representação ou num simulacro; ela se acomoda em um
detalhe da cena, limita esse detalhe e depois o apreende.
Apreendido ao vivo o fragmento, o membro do discurso
sutilizado, a excitação tem o poder de renovar ad libitum
seu aparecimento, quando o desejar, e o fragmento retorna
intacto, apesar das manipulaçõés. Esse retorno, que pode
se repetir perpetuamente, sem diminuição de poder, como
um talismã, é justamente o que se entende em geral como
citação. Mas a citação já se processava na solicitação e
na excitação: ela está no princípio de toda leitura, pelo
menos daquela que, impotente, prende-se exclusivamente
à significação. A citação tenta reproduzir na escrita uma
paixão da leitura, reencontrar a fulguração instantânea da
solicitação, pois é a leitura, solicitadora e excitante, que
produz a citação. A citação repete, faz com que a leitura
ressoe na escrita: é que, na verdade, leitura e escrita são a
mesma coisa, a prática do texto que é prática do papel. A
citação é a forma original de todas as práticas do papel, o
recortar-colar, e é um jogo de criança.

29
o HOMEM DA TESOURA

Tenho uma biblioteca unicamente para meu uso e não


a apresento como exemplo. Movimento-me muito du­
rante o dia, e à noite gosto de descansar perto dos meus
livros. É meu refúgio, uma toca diante da qual apaguei
todas as pegadas - ali estou em casa. Há livros de todos
os tipos, mas se você fosse abri-los ficaria surpreso. São
todos incompletos, alguns não contêm mais que duas ou
três folhas. Acho que se deve fazer comodamente o que
se faz todos os dias; então leio com a tesoura nas mãos,
desculpem-me, e corto tudo o que me desagrada. Faço
assim leituras que não me ofendem jamais. De Loups (Lo­
bos), conservei dez páginas, um pouco menos do que de
Voyage au Bout de la Nuit (Viagem ao Fim da Noite). De
Corneille, conservei todo o Polyeucte e uma parte do Cid.
De meu Racine, não suprimi quase nada. De Baudelaire,
conservei duzentos versos e de Mugo um pouco menos.
De La Bruyere, o capítulo "Coeur" (Coração); de Saint­
Evremond, a conversa do pai Canaye com o marechal de
Hocquincourt. De Madame de Sévigné, as cartas sobre

30
o processo de Fouquet; de Proust, o jantar em casa da
duquesa de Guermantes; "Le Matin de Paris" (Manhã de
Paris), na Prisonniere (A Prisioneira)Y

Assim respondia um guarda-florestal à pesquisa de


uma revista literária junto a seus leitores. "Eu leio com a
tesoura na mãos, desculpem-me, e eu corto tudo o que
me desagrada:' Confissão terrível, intolerável: declarar
cruamente e escrever preto no branco a retalhação a que
cada um se entrega na intimidade de seu gabinete, omitir
as formas a esse ponto. Que selvageria de homem da
floresta!
O anátema não se fez esperar, ele foi lançado por um
eminente crítico parisiense:

Admite-se muito bem que um intelectual tenha preferên­


cias definidas e escolha certos escritores entre outros, ou
mesmo que constitua uma antologia para seu uso. Mas
não podemos compreender esse homem que fabrica para
si mesmo uma biblioteca com despojos.13

E Céline retoma, com menos pretensão, sem dúvida:

Eis-nos aqui todos nós, grandes mortos e minúsculos


viventes, despidos peio terrível guarda-florestal. Ele não
nos perdoa muito na nossa magnífica vestimenta (con­
quistada com tantos sofrimentos!). Um pequeno nada!
Ah! o verídico! [ ... ] O homem da floresta não brinca. [. .]
.

Não se trata mais de brincadeiras, o homem da tesoura


vai cortar tudo o que me resta. 14

De que se tornara culpado o guarda-florestal para que


sua carta fizesse tanto barulho na capital? Que diferença

31
haveria entre sua biblioteca e uma antologia, um manual
escolar? Ele se desembaraçara do dejeto, criara a verd�de
da leitura como excitação e dilaceração, apregoava essa
verdade bruta e a praticava nos livros. "O verídico': como
diz Céline. Pois isso não se diz, não se faz. Ler com um
lápis na mão, recopiar na caderneta de anotações, isso é
muito bom. Mas recortar e sobretudo jogar fora os restos,
lançá-los ao lixo, que inconveniência! Ora, no fundo,
substancialmente, é a mesma coisa. O essencial da leitura é
o que eu recorto, o que eu ex-cito; sua verdade é o que me
compraz, o que me solicita. Mas como fazê-los coincidir? A
citação é a ilusão de uma coincidência entre a solicitação e
a excitação, ilusão levada ao extremo pelo guarda-florestal,
sintoma da leitura como citação. Era preciso fazê-lo calar,
pois.o homem da tesoura é o único verdadeiro leitor. Valéry
confessava: "Leio com uma rapidez superficial, pronto a
agarrar minha presa:' É verdade que logo acrescentava:
"Tento escrever de tal forma que, se eu me lesse, não
poderia ler como eu leio:' ls Sem dúvida, ele também não
teria gostado que bancássemos o homem da tesoura nos
seus livros.

32
UMA CANONIZAÇÃO METONíMICA

Bendita citação! Ela tem o privilégio, entre todas as


palavras do léxico, de designar ao mesmo tempo duas
operações - uma, de extirpação, outra, de enxerto - e
ainda o objeto dessas duas operações - o objeto extirpado
e o objeto enxertado - como se ele permanecesse o mesmo
em diferentes estados. Conheceríamos em outra parte,
em qualquer outro campo da atividade humana, uma
reconciliação semelhante, em uma única e mesma palavra,
dos incompatíveis fundamentais que são a disjunção e a
conjunção, a mutilação e o enxerto, o menos e o mais, o
exportado e o importado, o recorte e a colagem? Há uma
dialética toda-poderosa da citação, uma das vigorosas
mecânicas do deslocamento, ainda mais forte que a
cirurgia.
Mas é típico dos atos de escrita, ou de linguagem,
autorizar a confusão dos contrários ou dos contraditórios,
'
dissolver as fronteiras em uma transação metonímica.
Assim, a oposição maior que se dissipa no vocabulário da
arte de escrever é aquela entre o vazio e o pleno, o conteúdo

33
e o continente, o potencial e o atual. Encontraríamos
muitos exemplos de um tal deslocamento que aliena o
sentido das práticas linguageiras.
A palavra, que na antiga retórica designava uma casa
vazia, um lugar (comum), apropria-se, na idade média, de
uma idéia de conteúdo que para os gregos e os latinos só a
preenchia de maneira virtual. A tópica transforma-se em
típica, em reservatório de tipos. Suas formas vazias, topoi
koinoi, saturam-se de sentido, se ftxam e se convertem em
estereótipos: a máxima sententia e suas metamorfoses, o
que nós chamamos de lugar comum e que é exatamente o
contrário do que os antigos entendiam por essa expressão.
Ora, o que são os estereótipos e os clichês senão justamente
citações?
Da mesma forma, o parágrafo era inicialmente, como a
etimologia o atesta, um sinal colocado ao lado, na margem,
que servia para separar os blocos, os cheios da escrita
(como a a linea). Entre os gregos, era o único sinal de
pontuação; ele marcava o ftm de uma passagem importante
com um travessão na margem da linha em questão. A
primeira referência ao parágrafo encontra-se na Retórica,
de Aristóteles, a propósito do ritmo.16 Ora, o parágrafo
designa hoje o próprio bloco, conteúdo, intercalado entre
dois parágrafos, no sentido antigo da palavra.
O exergo, que é espaço fora da obra, o lugar para se
colocar ou não alguma coisa, uma epígrafe, por exemplo,
designa hoje em dia, segundo um barbarismo irrevogável,
essa própria coisa, com a conseqüência paradoxal de se
dizer que um texto "tem ou não um exergo", ainda que não
se compreenda como deixaria de haver um fora da obra.
Isso signiftcaria pretender - o que corresponde ao ideal do
livro cercado, fechado sobre si mesmo - que o texto não

34
tem lado de fora. Um grau de liberdade da escrita perde-se
na confusão entre o exergo e a epígrafe se seu território
exterior mais próximo já está sempre virtualmente
preenchido: o exergo torna-se uma rubrica obrigatória
do discurso, como se a sua ausência soasse oco. Ora, uma
epígrafe é uma citação - a citação por excelência17 -,
um tapa-buraco ou um encaixe, como a "entradà' de uma
r�feição são legumes variados, os varia que não cabem
em nenhuma categoria taxonômica, motivo pelo qual são
apresentados imediatamente, para levantar a hipoteca.
O egressio ou o ekphrasis da antiga retórica assumia sua
mobilidade, sua estranheza, sua "atopià'.
A escrita tem horror ao vazio: o vazio é o lugar do
morto, da falta; e não se põem mais epígrafes senão nos
monumentos funerários. Mas a prática da escrita oferece
esta imensa vantagem sobre as outras, sobre todas as outras,
inclusive a da cirurgia, a vantagem de bastar-lhe, para
conjurar o horror e preencher o vazio, modificar seu léxico.
O transporte metonímico, que afeta todo o vocabulário
da arte de escrever e altera o sentido das palavras que
designavam o vazio, apresenta-se como uma evolução
natural. Imaginemos em que resultaria tal evolução num
outro domínio, se fossem suprimidas da língua todas as
palavras que remetem à falta. Não haveria mais lugar para
a falta? Não haveria mais um lugar de angústia? É claro que
não: tais interdições não mudariam nada; a vertigem da
página branca, do parágrafo ou do exergo vazio subsiste
apesar de todos os artifícios de escrita que tentam enegrecer
a página, preencher os espaços a priori. Entre esses
artifícios, a citação aparece em primeiro lugar.
O amálgama, na citação, de duas manipulações e
do objeto manipulado tem por efeito tornar natural

35
um procedimento inteiramente cultural. Ele subsume
as manipulações sob o objeto, mascara-as atrás de si.
Em seu emprego habitual, a citação'não é nem o ato da
extirpação, nem o do enxerto, mas somente a coisa, como
se as manipulações não existissem, como se a citação não
supusesse uma passagem ao ato. Na medida em que se
ignora o ato, é a pessoa do citador que é ignorada, o sujeito
da citação como transportador, negociante, cirurgião ou
carniceiro. A coisa circula sozinha, viaja de texto para
texto sem sujar as mãos: nela, o logos e o ergon se fundem,
escondem a energeia, a produção e o ato. A citação é sempre
o verbo de um deus, ou uma dessas palavras aladas que,
movidas por uma energia de que dispõem em si mesmas
desde Homero, vão e vêm sem se manter no universo do
discurso, sem transporte nem transportador, sem recorte
nem colagem. Aceitar a citação como natural é pretender
que ela caminhe por si mesma, como um automóvel.
Ela é um órgão mutilado, mas já seria um corpo limpo,
vivo e suficiente: o animalzinho unicelular a partir do qual
se explica toda a criação; tem um coração e membros,
um sujeito e um predicado. E é para alimentar essa
representação que a citação é exemplarmente uma frase:
a menor unidade de linguagem autônoma e fechada sobre
si mesma. A frase vive: podemos transplantá-la; o que não
significa matá-la mas somente intimá-la. Aliás, e melhor
ainda, ela se movimenta sozinha, vagueia, e não posso
.
mais detê-la.
Desaparece assim o sentido primeiro da citação, o
de uma movimentação provocada por contato: sentido
sempre atual, mas que, como ao guarda-florestal, vale a
pena ignorar ou reduzir ao silêncio. A citação é contato,
fricção, corpo a corpo; ela é o ato que põe a mão na massa
- na massa de papel.

36
ENXERTO

A citação é um corpo estranho em meu texto, porque


ela não me pertence, porque me aproprio dela. Também
a sua assimilação, assim como o enxerto de um órgão,
comporta um risco de rejeição contra o qual preciso me
prevenir e cuja superação é motivo de júbilo. O enxerto
pega, a óperação é um sucesso: conheço a alegria do artesão
consciencioso ao se separar de um produto acabado que
não traz o traço de seu trabalho, de suas intervenções
empíricas. Embora com um compromisso diferente, é o
mesmo prazer do cirurgião ao inscrever seu saber e sua
técnica no corpo do paciente: seu talento é apreciado
segundo a exatidão de seu trabalho" a beleza da cicatriz com
que assina e autentica sua obra. A citação é uma cirurgia
estética em que sou ao mesmo tempo o esteta, o cirurgião e
o paciente: pinço trechos escolhidos que serão ornamentos,
no sentido forte que a antiga retórica e a arquitetura dão
a essa palavra, enxerto-os no corpo de meu texto (como
as papeletas de Proust). A armação deve desaparecer sob

37
p
o produto final, e a própria cicatriz (as as as) será um
adorno a mais.
Mas o enxerto de uma citação seria uma operação muito
diferente do resto da escrita? "Confrontar, agrupar, unir
entre si elementos distintos, como por um obscuro apetite
de justaposição ou de combinação":18 tal é, para Michel
Leiris, "uma necessidade difundidà' em sua existênciá, e
o princípio de sua escrita autobiográfica como "puzzle de
fatos': Ele associa declaradamente esse método ao jogo do
recorte e da colagem:

Quando me sentia inapto a extrair de minha própria substância


o que quer que fosse que merecesse ser colocado sobre o papel,
copiava voluntariamente textos. Colava artigos ou ilustrações
recortadas de periódicos nas páginas virgens de cadernos ou
de blocos.19

Ele insiste ainda "na mecânica desses gestos em que é difícil


não encontrar prazer, mesmo quando não se espera deles
nenhuma espécie de resultado prático: cortar a tesouradas,
aparar, pincelar, ajustar bem no esquadro uma superfície
sobre outrà:20
Quando me ponho a escrever, disponho de um certo
número de unidades dispersas, materializadas (em fichas,
por exemplo) ou não. Talvez o estatuto dessas unidades não
tenha uma diferença essencial, que elas sejam citações ou
não, nem que alterem muita coisa na escrita. Aliás, estaria
eu em condições de me recordar, de enunciar a origem
das unidades que não são citações? Não seria possível
que elas também o fossem? O trabalho da escrita é uma
reescrita já que se trata de converter elementos separados
e descontínuos em um todo contínuo e coerente, de

38
juntá-los, de compreendê-los (de tomá-los juntos), isto é, de
lê� los: não é sempre assim? Reescrever, reproduzir um texto
a partir de suas iscas, é organizá-las ou associá-las, fazer as
ligações ou as transições que se impõem entre os elementos
postos em presença um do outro: toda escrita é c;olagem e
glosa, citação e comentário. Efetivamente, as ligações são
mais difíceis no caso das citações, pois é necessário não
alterar nada e inseri-las assim como elas são. Entretanto,
seria essa uma diferença? Antes, trata-se do ordinário da
escrita. Aliás, nada permite dizer que eu modificaria de
bom grado uma de minhas notas, mesmo não sendo ela
a citação de uma outra. Ao contrário, eu faria tudo, até
suprimiria uma citação, para conservar como me agrada
uma ficha pessoal: sou muito apegado a ela.
El Hacedor, tal é o título de uma pequena narrativa
introdutória que dá nome a uma obra de Borges. A
tradução por L'Auteur (O Autor) é imprecisa.21 Roger
Caillois lembra, em uma observação, as opções que teve
de abandonar, embora elas fossem mais fiéis à etimologia:
fazedor, fabricante, fabricador, artesão, operário. El
Hacedor, derivado de hacer, fazer, é sinónimo do poietés
do grego. Le Bricoleur teria sido mais conveniente, teria
traduzido melhor o espírito da escrita, segundo Borges:
o autor é um bricoleur mais do que um engenheiro, de
acordo com a oposição que traça Claude Lévi-Strauss em
La Pensée Sa1Jvage (O Pensamento Selvagem). E Mallarmé,
por sua vez, dizia: "Comparado ao engenheiro, eu me torno,
imediatamente, secundário:'22 Bricoleur, o autor trabalha
com o que encontra, monta com alfinetes, ajusta; é uma
costureirinha. Como Robinson perdido em sua ilha, ele
tenta tomar posse dela, reconstruindo-a com os despojos
de um naufrágio ou de uma cultura.

39
De modo ainda mais radical, Aragon pretende compor
seus livros não em torno de uma rede de fragmentos
ou de citações, mas a partir de um único vestígio, uma
única frase, o incipit. Segundp declara em Je N'ai Jamais
Appris à Écrire ou Les Incipit (Nunca Aprendi a Escrever
ou Os Incipit), ele nunca escreveu seus romances, mas
os leu; diante do desenvolvimento do texto, ele era tão
ignorante quanto qualquer outro, e, nesse processo de
desdobramento sem marcas premeditadas, a primeira
frase, sobretudo, teve um papel decisivo e impulsionador.
Foi o que ocorreu com La Mise à Mort (Condenado à
Morte). "A frase inicial [ . . ], eu me lemQro de tê-la lido,
.

uma única vez, naquela hora em que nãos� dorme mais


e não se está certo de estar acordado e acho mesmo que
foi ela que me tirou da cama:'23 Ou ainda, com o capítulo
intitulado "CEdipe': desse mesmo romance, de que Aragon
relata a gênese: "Eu decalquei exatamente de uma frase de
Jean de Bueil o que ia ser a primeira frase de 'CEdipe': foi
o menor tempo gasto para se conceber:'24 Se o texto não é,
como o de Leiris, justaposição e combinação de retalhos
ou de fichas, se como o de Aragon, ele pretende ser uma
aventura, nem por isso deixa de ser, como o incipit, um
desencadeador de todo o livro, apresentando-se sob a
forma de uma citação, uma frase lida em um estado de
sonolência ou em um outro livro.

40
REESCRITA

Escrever, pois, é sempre reescrever, não difere de citar.


A citação, graças à confusão metonímica a que preside, é
leitura e escrita, une o ato de leitura ao de escrita. Ler ou
escrever é realizar um ato de citação. A citação representa
a prática primeira do texto, o fundamento da leitura e da
escrita: citar é repetir o gesto arcaico do recortar-colar, a
experiência original do papel, antes que ele seja a superfície
de inscrição da letra, o suporte do texto manuscrito ou
impresso, uma forma da significação e da comunicação
lingüística.
A substância da leitura (solicitação e excitação) é a
citação; a substância da escrita (reescrita) é ainda a citação.
Toda prática do texto é sempre citação, e é por isso que
não é possível nenhuma definição da citação. Ela pertence
à origem, é uma rememoração da origem, age e reage em
qualquer tipo de atividade com o papel. Mas se o modelo da
citação está na origem - arcaica (o jogo de criança) e atual
(o incipit)- da escrita, ele está também, por isso mesmo,

41
em seu horizonte: o texto ideal, utópico, aquele com que
sonhou Flaubert, seria uma citação. A utilização de uma
citação como epígrafe substitui esse ideal, deformando-o.
E na impossibilidade de realizar o ideal, o livro se contenta
em ser a reescrita de uma citação inaugural que por si só
seria suficiente.
Se o modelo da citação, do texto, todo ele reescrito,
assusta, fascina ainda mais. Ele toca no limite em que a
escritura se perde em si mesma, na cópia. Reescrever, sim.
"Mas copiar", diz Aragon, "isso é mal visto, observem que
todo mundo copia, mas há aqueles que são espertos, que
trocam os nomes, por exemplo, ou que dão um jeito de se
apropriar de livros esgotados': 25 E Françoise, cheia de bom
senso, prevenia o narrador de Em Busca do Tempo Perdido,
recriminava-o por dar as dicas de seus artigos antes de
tê-los escrito: "Todas essas pessoas aí são copistas. Você
precisa desconfiar mais:'26
A obra de Borges representa, sem dúvida, a exploração
mais aguda do campo da reescrita, sua extenuação. Pois
se a escrita é sempre uma reescrita, mecanismos sutis de
regulação, variáveis segundo as épocas, trabalham para que
ela não seja simplesmente uma cópia, mas uma tradução,
uma citação. É com esses mecanismos que Borges organiza
a violação. "Pierre Menard, Autor do Quijote': um dos
contos reunidos sob o título de Fictions (Ficções), realiza
o ideal do texto e pretende que ele se distinga da cópia.
Pierre Menard

não queria compor um outro Quichotte - o que é fácil- mas


o Quijote. Inútil acrescentar que ele nunca imaginou uma
transcrição mecânica do original, não se propunha copiá-lo.
Sua admirável ambição era reproduzir algumas páginas que

42
coincidissem - palavra por palavra .e linha por linha - com
as de Miguel de Cervantes.27

Esse é o ponto limite para o qual tenderia uma escrita que,


enquanto reescrita, se concebesse até o fim como devir do
ato de citação. Oportunamente, será necessário retomar
essa idéia.
Mas, por ora, se impõe uma questão: quais são os
textos que, ao escrever, eu desejaria reescrever? Aqueles
que Roland Barthes chamava de "escriptíveis" quando
perguntava: "Que textos eu aceitaria escrever (reescrever),
desejar, levar adiante como uma força nesse mundo que é
o meu? O que a avaliação encontra é este valor: o que pode
ser hoje escrito (reescrito) - o escriptível."28 Há sempre
um livro com o qual desejo que minha escrita mantenha
uma relação privilegiada, "relação" em seu duplo sentido,
o da narrativa (da recitação) e o da ligação (da afinidade
eletiva). Isso não quer dizer que eu teria gostado de escrever
esse livro, que o invejo, que o recopiaria de bom grado ou o
retomaria por minha conta, como modelo, que o imitaria,
que o atualizaria ou citaria por extenso se pudesse; isso
também não demonstraria o meu amor por esse livro. Não,
o texto que é para mim "escriptível" é aquele cuja postura
de enunciação me convém (o que cita como eu). É por isso
que esse texto não é nunca o mesmo livro, é por isso que o
Quijote, de Menard, é também um outro Quixote.

43
o TRABALHO DA CITAÇÃO

Se a citação está na base de toda prática com o papel,


se se atribui a ela seu sentido pleno (de operações e de
objetos), se se considera tudo o que ela põe em movimento
na leitura e na escrita - para manter esta distinção prática,
senão pertinente, tendo a citação mostrado justamente a
sua impertinência -, não é mais possível falar da citação
por si mesma, mas somente de seu trabalho, do trabalho
da citação. A noção de trabalho é rica: é a potência em
ação, o poder simbólico ou mágico da palavra, é o carmen
ou a oração (os religiosos das ordens contemplativas
dizem que seu trabalho é a oração); é o "labor': segundo o
termo favorito de Mallarmé para designar seus trabalhos
lingüísticos, ou o labor intus, o trabalho que se faz por
dentro, de acordo com a etimologia que propunha Évrard
l'Allemand para o labirinto.29 E o labirinto é, no texto, uma
rede de citações em ação. Tudo isso parece um enigma: o
que eu trabalho e me trabalha ao mesmo tempo? O texto,
a citação.

44
Trabalho a citação como uma matéria que existe dentro
de mim; e, ocupando-me, ela me trabalha; não que eu esteja
cheio de citações ou seja atormentado por elas, mas elas
me perturbam e me provocam, deslocam uma força, pelo
menos a do meu punho, colocam em jogo uma energia
- são as definições do trabalho em física ou do trabalho
físico. Da citação, mascataria e tecelagem, sou a mão-de­
obra. É de toda a ambivalência da citação, mascarada por
uma canonização metonímica, que está carregada essa
noção de trabalho: a ambivalência do genitivo, em que a
citação é matéria e sujeito, em que eu sou.ativo e passivo,
ocupado com e pela citação como uma mulher pronta para
dar à luz. Os ingleses chamam alguns textos de working
papers; a expressão, infelizmente, não tem eqüivalente em
francês, pois ela evidencia a cumplicidade do transitivo e
do intransitivo no trabalho - seria melhor dizer "na ação
de trabalhar': O working paper é o trabalho em processo,
o texto se construindo (uma duração que o livro gostaria
de ignorar). É o papel em trabalho; é preciso imaginá-lo
crescendo como uma massa.
Céline acentuava, freqüentemente, o trabalho que seus
livros exigiani dele, trabalho imenso, prodigioso, doloroso,
que se fazia em horas, em dias e noites, em milhares de
páginas, trabalho cujo destino era ser negado pelo livro
feito, perder-se dentro dele.

Freqüentemente as pessoas vêm me ver e me dizem: "Parece


que você escreve com muita facilidade:' Mas não! Não escrevo
facilmente! Só com muita dificuldade! Além disso escrever me
cansa. É preciso fazer muito finamente, muito delicadamente.
Fazem-se umas 80 000 páginas para obterem-se 800 páginas
de manuscrito, em qlle o trabalho é apagado. Não o vemos. O
leitor não deve perceber esse trabalho.30

45
A reescrita é uma realização, não somente no sentido
musical de uma tradução. O trabalho da citação, apesar
de sua ambivalência ou por causa dela, é uma produção
de texto, working paper. A leitura e a escrita, porque
dependem da citação e a fazem trabalhar, produzem texto,
no seu sentido mais material: volumes. A modalidade de
existência da citação é o trabalho. Ou ainda, se a citação é
contingente e acidental, o trabalho da citação é necessário,
ele é o próprio texto.
A citação trabalha o texto, o texto trabalha a citação.
Aqui surge o sentido, de que ainda não se tratou. Isso não
significa que o texto se distinga das outras práticas com
o papel que não teriam sentido: o jogo do recorte e da
colagem faz sentido, e não é indiferente para o sentido que
eu coloque um vestido sobre uma silhueta masculina ou
feminina. Mas era preciso começar a falar da citação sem
se deter no sentido: o sentido vem por acréscimo, ele é o
suplemento do trabalho; era preciso distingui-lo do ato
e da produção para não ignorar estes últimos, para não
confundir o sentido da citação (do enunciado) com o ato
de citar (a enunciação). Porque a mola do trabalho não é
uma paixão pelo sentido, mas pelo fenômeno, pelo working
ou o playing, pelo manejo da citação. A leitura (solicitação
e excitação) e a escrita (reescrita) não trabalham com o
sentido: são manobras e manipulações, recortes e colagens.
E se, ao final da manobra, reconhece-se nela um sentido,
tanto melhor, ou tanto pior, mas já é outro problema. "O
leitor não deve perceber o trabalho": a paixão, o desejo e
o prazer.

46
A FORÇA DO TRABALHO

A citação não tem sentido em si, porque ela só se


realiza em um trabalho, que a desloca e que a faz agir.
A noção essencial é a de seu trabalho, de seu working, o
fenômeno. Buscar imediatamente o sentido da citação
(ou de qualquer outra coisa) é seguir um movimento que
Nietzsche qualificava de "reativo" porque desconhece a ação,
julga-a segundo sua função e não como fenômeno. Ora,
para Nietzsche não há sentido fora de uma correlação com
o fenômeno. Isso se aplica maravilhosamente à citação: ela
não tem sentido fora da força que a move, que se apodera
dela, a explora e a incorpora. O sentido da citação depende
do campo das forças atuantes: ele é essencialmente variável,
como escreveu Gilles Deleuze sobre o sentido, segundo
Nietzsche, "sempre uma pluralidade de sentidos, uma
constelação, um complexo de sucessões mas também de
coexistências': 31
Contra a lingüística "reativà' - que toma por objeto a
linguagem em sua relação com o sentido, com a função, e

47
assim ignora o fenômeno, a força e o trabalho da citação,
o poder da linguagem - convém, segundo 11m programa
"ativo': avaliar a relação entre o fenômeno e o sentido; o
fenômeno como uma atividade real, e o sentido segundo
o concebe Deleuze: "Uma palavra quer dizer alguma coisa
na medida em que aquele que a diz quer alguma coisa
dizendo-a:'32 A questão "O que ele quer?" parece ser a
única que convém à citação: ela supõe, na verdade, que
uma outra pessoa se apodere da palavra e a aplique a outra
coisa, porque deseja dizer alguma coisa diferente. O mesmo
objeto, a mesma palavra muda de sentido segundo a força
que se apropria dela: ela tem tanto sentido quantas são as
forças suscetíveis de se apoderar dela. O sentido da citação
seria, pois, a relação instantânea da coisa com a força real
que a impulsiona.
Uma vez admitido o fenômeno que existe sob o sentido,
é preciso, conseqüentemente, sem dissociar nem ignorar
as forças que ambos põem em jogo, pesquisar o sentido do
fenômeno nas forças que o produzem como um trabalho.
Eis o objetivo de uma lingüística que se desejaria "ativâ':
ora, outra abordagem da citação, que não faça referência
às forças que a realizam, às forças arcaicas do recortar­
colar, por exemplo, seria simplesmente insensata. O texto,
fenômeno ou trabalho da citação, é o produto da força pelo
deslocamento.

48
--- -

o SUJ EITO DA CITAÇÃO

A força que impulsiona a coisa, que a cita, remete


sempre, de alguma maneira, a um sujeito. Mas isso é apenas
afastar um pouco a dificuldade: qual é o sujeito da citação,
aquele que quer dizer alguma coisa e que quer alguma
coisa citando? Seria ele identificável a uma instância já
conhecida, sujeito do enunciado, da enunciação etc.?
Eis o que escrevia Condillac no verbete "Redire" de seu
Dicionário de Sinônimos:

REDIZER. V
Repetir, rebater. Redizemos e repetimos aquilo que di­
zemos várias vezes. Mas parece-me que redizemos as
coisas porque é necessário redizê-Ias aos outros, e que
as repetimos por esquecimento ou porque é necessário
repeti-las para estarmos certos de conhecê-las. Freqüen­
temente, sou obrigado a redizer-lhes as mesmas coisas,
e é por isso que me repito nas obras que produzo para
vocês. Os réditos de que vocês necessitam fazem-me cair
em repetições.33

49
o jogo é complicado e, entretanto, não se trata ainda da
citação. Segundo Condillac, parece que forças diferentes
trabalham no rédito e na repetição, Seria preciso, pois,
distinguir, na enunciação, um sujeito do rédito e um
sujeito da repetição. A enunciação é ambígua; seu sentido
é indeterminável, pois ele não cessa de girar no campo das,
forças que são aptas a manobrá-lo. Isso se deve à incerteza
em que se encontra o leitor ou o ouvinte quanto à posição
do sujeito da enunciação em relação ao enunciado. Mas não
seria também por que a noção de sujeito da enunciação é
vasta demais, vaga demais? Seria bom reduzi-la, descobrir
a variedade das figuras e das personagens, ou melhor, a
das posturas de que ela se compõe. Seria necessário, pelo
menos, distinguir o sujeito do prefácio (o que rediz: "Eis
o que eu quis dizer"), o suj eito da publicação (aquele que
assina o texto e que se expõe na vitrine), e o sujeito da
citação, irredutível, inqualificável; ele se anuncia em voz
alta: "Cito" e "Fim da citação".
Citando, fazendo com que um extratexto interfira na
escrita, introduzindo um parceiro simbólico, tento escapar,
na medida do possível, ao fantasma e ao imaginário. O
sujeito da citação é uma personagem equívoca que tem ao
mesmo tempo algo de Narciso e de Pilatos. É um delator,
um vendido - aponta o dedo publicamente para outros
discursos e para outros sujeitos -, mas sua denúncia, sua
convocação são também um chamado e uma solicitação:
um pedido de reconhecimento. De fato, o sujeito da
citação é o je de Montaigne. Nem fenomenológico,
nem autobiográfico, nem metalingüístico, ele designa o
repetidor ou o relator, o porta-voz sem fé nem lei. De
nada adianta replicar-lhe: "Quem o diz o faz:' Isso já não
o impressiona há muito tempo; a denegação é sua força,

50
como se ele não cessasse de repetir a cada citação: "Os
autores desenvolvem livremente uma opinião com que
somente eles se comprometem:' De certa forma, não há
sujeito da citação senão em um regime democrático da
escrita.

51
,
1

CULPA DE GUILLAU ME

Existe um sinal tipográfico da citação, um indicador que


eqüivale a "Eu cito": as aspas, que o impressor Guillaume
teria inventado no século XVII para enquadrar, isolar um
discurso apresentado em estilo direto ou uma citação.
Anteriormente, apenas a repetição do nome próprio do
autor citado, sob a forma de uma oração intercalada, "diz
fulano': preenchia essa função. O que as aspas dizem é
que a palavra é dada a um outro, que o autor renuncia à
enunciação em benefício de um outro: as aspas designam
uma re-enunciação, ou uma renúncia a um direito de autor.
Elas operam uma sutil divisão entre sujeitos e assinalam o
lugar em que a silhueta do sujeito da citação se mostra em
retirada, como uma sombra chinesa.
A expansão contemporânea do uso das aspas segue a
mesma lógica, quando elas conferem ao que delimitam
uma acentuação ou uma atenuação, em todo caso
uma valorização da enunciação, que tem poder de
distanciamento. As aspas, quando não remetem mais a um

52
sujeito preciso, tornam-se uma espécie de piscar de olhos,
de dissimulação ou de fenda pela qual o autor se deixa ver
como se não fosse enganado pelo enunciado que ele mesmo
reproduz, mas sem ter que dizer de onde o toma. As aspas
ainda sugerem: "Não sou eu quem o diz:' Mas também
não dizem quem o diz ou o disse, um outro, um "diz-se':
a opinião, o próprio autor, talvez um leitor: o que alguém
teria podido dizer. São pequenos diques contra as tolices
que instauram uma hesitação, um grau de liberdade no
texto, por onde o autor foge, e o leitor o segue, em busca
de paternidade.
O uso parece distinguir as aspas do itálico (o que é
contrário à sua origem comum) quanto ao desvio que
significam na enunciação. Com as aspas marca-se o
que é comum, aquilo a que o autor renuncia porque lhe
parece tolo demais. Com o itálico, marca-se o paradoxal,
o que está à margem da opinião comum, uma insistência
ou supervalorização do autor, uma reivindicação · da
enunciação. O itálico eqüivaleria a "Eu sublinho" ou "Sou
eu mesmo quem o diz': Ele deve ser traduzido; é nesse
tipo gráfico que se imprimem também os empréstimos
de uma língua estrangeira. Aqui, estrangeira à língua
materna é minha própria língua. Escrevo em itálico meu
léxico íntimo, um dicionário poliglota ou idioletal, minha
enciclopédia pessoal. Assim, estou mais presente no
itálico que em qualquer outro lugar: o itálico é narcisista;
desejaria, sem dúvida, que o leitor recortasse meu texto
seguindo seu traçado. Em compensação, tento uma esquiva
com as aspas, peço ao leitor que me conceda o benefício
da dúvida. Digo-lhe: ''Apanhe isso como você quiser, mas
com pinças, não sou eu que devo ser apanhado" ou "Não
gostaria de o dizer, mas, de qualquer modo, não posso agir

53
(de outra formà: Na enunciação, as diversas instâncias do
! Sujeito se produzem e se organizam de maneira complexa.
O que as aspas e itálicos mudam nisso? Essas construções,
! essas precauções proteger-me-iam?
Roland Barthes recomendava a criação de uma ciência
dos graus de discurso, que ele chamava de bathmologi�4 e
que teria por objeto os escalonamentos de linguagem, os
desníveis de sentido segundo as trapaças da enunciação:
as aspas, as aspas de aspas, ad libitum. Ao prazer: aspas e
itálicos são prazeres do texto, guloseimas ou lembranças.
Se há uma paixão na escrita e na leitura (a solicitação),
ela suprime os níveis da enunciação, aceita a tolice sem
remorsos e sem segundas intenções. Aliás, aspas e itálicos
não pertencem ao primeiro impulso da escrita. Relendo­
me, e para não me indignar comigo mesmo nem me rasgar
(como me censurar, isto é, me anular?), adoto uma atitude
intermediária, superponho ao texto da solicitação uma
armação de re(de)nunciações parciais, tento circunscrever
a enunciação e seus níveis em territórios ou em paradas
\
indicadoras: são, como numa partitura musical, as
indicações de ritmo, os vetores de interpretação que o
compositor propõe ao executante.
Mas a enunciação está disseminada em todo o texto.
Cada palavra inscreve-se em um nível diferente, convoca
a presença de um sujeito inédito; cada palavra deveria
ser enquadrada por um sinal próprio. A bathmologie
seria inútil se se consagrasse aos poucos indicadores
reconhecidos. Quando a enunciação escapa, quando os
níveis se desorganizam, quando as forças que envolvem
as p alavras lutam abértamente, então se impõe uma
interpretação. Certos textos reduzem os níveis e assumem
a integridade de sua enunciação; eles se apresentam sem

54
destaques, sem aspas nem itálicos. Seus sujeitos são
indiferenciados; seu polimorfismo não é ordenado. Toda a
gradação da enunciação deve ser descoberta na leitura, na
solicitação. Ora, não é sempre assim? No texto trapaceiro
cheio de aspas, começo por tirá-las todas, a fim de colocá­
las onde tenho vontade. Toda leitura recusa ou desloca
aquela que se dissimula na escrita, e não são as aspas que
impedem esse gesto.

55
EMBREAGEM A FRi CÇÃO

No prefácio da edição de bolso de Essai sur les


Anciennes Littératures Germaniques (Ensaio sobre as
Antigas Literaturas Germânicas), de Jorge Luis Borges (e
de M. E. Vasquez, cujo sobrenome não aparece na capa do
volume, mas na folha de rosto do livro, precedido apenas
das iniciais de seus prenomes), encontra-se a lista das
obras do autor (no caso, Borges, estando excluído o seu
parceiro) disponíveis em tradução francesa.35 Uma gralha
desastrada modificou o título na primeira linha da lista:
Frictions (Fricções), Edições Gallimard. Como não se
alegrar com uma sorte dessas, que vem atribuir a Borges
um escrito apócrifo, um a mais em sua história? Frictions
seria o livro- dos livros, que falta na biblioteca de Babel,36
a teoria geral do livro como citação.
O que são, de fato, essas fricções textuais senão os
atritos de duas peças de uma máquina de escrever? Uma
fita se desenrola, levando uma outra, a que ela transmite
movimento através de um contato sem deslizamento. A

56
segunda fita mobiliza, por sua vez, uma outra, e assim por
diante, até pôr em movimento todos os livros, que, por
meio da fricção, repetem o primeiro. Mas como foi lançado
o primeiro livro, a partir de que energia ele se comunica
com todos os outros? Esse é o mistério nas letras, a que a
escritura de Deus trouxe algumas vezes uma resposta.
A fricção é uma espécie da citação, e a máquina de
escrever (não somente a de Borges), uma embreagem a
fricção em eterno movimento.

57
MOBILIZAÇÃO

Quanto ao texto, o s entido e o fenômeno são


inseparáveis; e a citação constitui um pólo estratégico,
o lugar onde se cruzam, ou o seu ponto de tangência:
exatamente o lugar em que é impossível ignorar a estreita
correlação entre o sentido e o fenômeno, e em que, todavia,
eles não se confundem. São inseparáveis, mas também
irredutíveis. Fenômeno, o texto é um trabalho da citação,
uma sobrevivência ou, antes, uma manifestação do gesto
arcaico do recortar-colar (a caneta reúne as propriedades
da tesoura e da cola); sentido, ele é uma rede de forças
que trabalham e deslocam. É por isso .que o trabalho é a
referência capital: ele compreende a força e o deslocamento,
o sentido e o fenômeno. A citação, uma manipulação que
é em si mesma uma força e um deslocamento, é o espaço
privilegiado do trabalho do texto; ela lança, ela relança a
dinâmica do sentido e do fenômeno.
Isso pode ser facilmente entendido: a citação é um
operador trivial de intertextualidade. Ela apela para a

58
competência do leitor, estimula a máquina da leitura, que
deve produzir um trabalho, já que, numa citação, se fazem
presentes dois textos cuja relação não é de equivalência
nem de redundância. Mas esse trabalho depende de um
fenômeno imanente ao sentido conduzindo a leitura,
porque há um desvio, ativação de sentido: um furo, uma
diferença de potencial, um curto-circuito. O fenômeno é
a diferença, o sentido é a sua resolução.
Mas todo esse jogo (a ativação e a paralisação, a fuga
e o enxerto), esse ir e vir, tem pouco a ver com o sentido
(próprio) da citação: uma citação desprovida de sentido
ou, melhor, de significação, teria quase o mesmo efeito de
arrebatamento ou de mobilização. Na ativação de sentido
produzida no texto pela citação, não é o sentido da citação
que age e reage, mas a citação em si mesma, o fenômeno.
Existe um poder da citação independente do sentido, pois
se a citação abre um potencial sem dúvida semântico, ou
linguageiro, ela abre, antes, um potencial: ela é manobra da .
linguagem pela linguagem, une o gesto à palavra e, como
gesto, ultrapassa o sentido.
Os gregos distinguiam dynamis, a força em potencial,
e ergon, a força em ação. Sócrates chamava de dynamis
o entusiasmo, a inspiração divina do rapsodo lon:37 o
deus o incitava. Assim também é a citação: uma dynamis,
cujo texto é o ergon, o trabalho ou a ação, a passagem ao
ato. Aliás, é por ser uma dynamis que, às vezes, a citação
confunde o logos com o ergon, o dizer com o fazer. Seu
princípio transcende os dois.
Que a substância da citação, para além dos acidentes
do sentido e do fenômeno, é uma dynamis, um poder,
a etimologia o confirma. Citare, em latim, é pôr em

59
movimento, fazer passar do repouso à ação. O sentido
do verbo ordena-se assim: inicialmente, fazer vir a si,
chamar (daí a concepção jurídica de intimação), depois,
excitar, provocar, enfim, no vocabulário militar, liberar
uma menção. Em todo caso, uma força está em jogo, a que
coloca em movimento. No vocabulário da corrida, diz-se
que o torero "cita" o touro: provoca seu ataque à distância,
atiça-o agitando um embuste diante de seus olhos. Esse
é, certamente, o emprego que permanece mais fiel ao
sentido primeiro e essencial da citação. Toda citação no
discurso procede ainda desse princípio e conserva seu peso
etimológico: é um embuste e uma força motriz, seu sentido
está no acidente ou no choque. Analisando-a como um fato
de linguagem, é preciso contar com sua força e zelar para
não neutralizá-la, pois essa força fenomenal, esse poder
mobilizador, é a citação tal como é em si mesma, antes de
ser para alguma coisa.

60
U M FATO DE LíNGUA UNIVERSAL?

Citar - pode-se imaginar uma prática de linguagem


mais arcaica que essa? Ela é o bê-á-bá do bárbaro quando
ele repete os gregos; é o "mamãe" do infans quando ele
clama por amor. Um ato de fala elementar e primitivo
originaria todas as espécies culturais, ideológicas e retóricas
de repetição; seria um ato anterior ao discurso, mas já
encerrado no discurso, o da criança que tenta reproduzir
os sons proferidos diante dela por um outro que não é
ainda seu interlocutor; seria também o gesto essencial de
toda aprendizagem, não somente a da linguagem. "Imitar
é natural aos homens': dizia Aristóteles, "e se manifesta
desde a infância (o homem difere dos outros animais por
sua aptidão para imitar, e é através dela que adquire seus
primeiros conhecimentos)':38 Imitar asseguraria o domínio
da língua, e citar, o do discurso: Proust não dizia que todo
escritor começa pelo pastiche? A citação teria existido
sempre, desde o nascimento da linguagem até a sociedade
de lazer. Quem contestaria sua universalidade?

61
Ela é duvidosa, entretanto; s� se acredita no testemunho
de Botzarro utilizado como epígrafe.39 Mas não é preciso
procurar na narrativa de uma viagem ao país das maravilhas
aquilo que poderia perturbar nossa feliz consciência da
perenidade dos fatos de discúrso.
Não há, nem em grego, nem em latim, nenhuma
palavra que possua o sentido exato da citação (como
prática discursiva específica) tal como o entendemos no
francês e como o traduzimos, sem rodeios, para o inglês
ou para o alemão. Sem inferir da ausência da palavra a
ausência da prática, o que faltava na antigüidade era, em
todo caso, uma categoria que permitisse pensar, enunciar
tal prática como unificada de maneira institucional. A
citàção, entidade discursiva, noção à qual certas práticas
do discurso se submetem, não teve senão um aparecimento
tardio na história da língua, pelo menos na do Ocidente,
marcada pelo pensamento grego.
Essa constatação conduz a uma série de questões
- por que, quando, como a citação tornou-se uma prática
institucional? - mas as coloca obliquamente. Com efeito,
como abordar o estudo de um fato de linguagem que, sendo
talvez universal, mantém práticas sociais fragmentadas,
variáveis e particulares ou é por elas mantido?
Desde então, falar da citação através das eras (da vida,
do mundo), incluí-la como objeto de estudo entre as
práticas de linguagem consideradas de caráter universal
- caráter que, embora possa ser o seu, não é verificado
� é estar em uma posição a que se contrapõe qualquer
pesquisa histórica que mal tenha começado. A proposição:
"Na antigüidade não há citação': cujo pretexto é a ausência
da palavra, não tem nada de uma constatação inocente e

62
indiscutível; ela cede, mais uma vez, à opinião segundo a
qual cada época teria uma éitação ou sua negação, podendo
mesmo não haver nem uma, nem outra. Denuncia-se esse
raciocínio que projeta em um outro horizonte, geográfico
ou histórico, uma categoria atual, e que avalia uma outra
(alhures e passada) à base do mesmo (aqui e agora).
Mas não é menos comum reproduzi-lo quando se trata
particularmente das práticas de linguagem que, pelo fato
de serem instituídas, são todas datadas e localizadas. O
aparelho formal que se constrói para apreendê-las dá
a ilusão de que se escapa do particular para atingir o
universal. Mas a unidade modelo que ele descobre é fictícia,
pois repousa nas categorias precárias e contingentes que
são as nossas hoje; por conseguinte, ela não chegaria a
adquirir o valor de um modelo teórico.
Talvez, por essas razões, seja preciso convencer-se da
impossibilidade de uma ciência do discurso, senão da
língua: não há no discurso, enquanto oposto à língua,
nada de necessário nem de universal. A maior ambição
que se poderia ter em relação à abordagem dos fatos do
discurso seria elaborar não uma teoria, mas uma arte, na
antiga acepção da palavra, a ars dos latinos, que traduz a
techné dos gregos, uma ciência da praxe. Construir uma
arte da enunciação e não uma teoria do enunciado era o
projeto dos antigos retóricos que, no entanto, da idade
média até a idade clássica, foi sendo abandonado pouco a
pouco.40 A unidade da retórica� da inventio até a actio e a
memória, dispersou-se em uma nova divisão do método:
no século XVI, a retórica propriamente dita, com Omer
Talon, por exemplo, não conserva mais como objeto senão
a elocutio (oratio), enquanto a inventio e a dispositio (ratio)
ligam-se à dialética. Da retórica como arte, retomaram-se

63
os procedimentos particulares de uso da palavra, listados
nos vademecum, catálogos de truques e espertezas, nos
inumeráveis manuais do século XVII sobre "a eloqüência
do púlpito e do foro': sobre as conversas na corte ao alcance
de todos e também das moças. Hoje, desenvolveu-se um
vasto terreno de preparação para o exercício do discurso;
nas empresas, nas administrações, os seminários de
comunicação, a dinâmica de grupo, a expressão oral e
outros sucedâneos se integram facilmente à formação
permanente ou dela constituem o essencial, embora sejam
considerados com desprezo pelos que pretendem estudar a
ciência do discurso. A herança da antiga retórica encontra­
se dividida entre a análise do discurso, segundo o modelo
da lingüística estrutural, e as técnicas da comunicação
submetidas a uma performance social. A arte do discurso
toma duas direções predominantes que, longe de se
completarem, se ignoram ou se desprezam: uma, militante,
julga a outra, a especulativa, parasitária; esta responde à
primeira chamando-a serva do poder, julgando-a muito
distante da verdade científica cujo monopólio reivindica
para si mesma. Pode-se desejar deslocar essas direções
do discurso, a fim de reconsiderá-lo relativamente à arte
- praxis mais que poiésis, segundo a insistência aristotélica
- numa abordagem ativa que tomasse o ato do discurso
como um ato, que fizesse dele um ato.
Mas a questão continua: como tratar um ato discursivo
caracterizado pela solidariedade entre uma estrutura
mental e um fato de linguagem, talvez universais, e uma
prática institucional, seguramente condicional nas suas
modalidades diversas?

64
FORMA E FUNÇÃO

O s formalistas russos, em particular Tynianov,41


insistiram na necessidade de uma distinção entre a forma
e a função de todo elemento discursivo, a fim de livrar
os estudos literários de sua tendência a racionalizar o
universal com base em categorias particulares, a deslocar os
critérios próprios a um sistema para apreciar os fenômenos
dependentes de um outro sistema. Em um dado sistema,
uma certa forma cumpre uma certa função; mas, em
outro sistema (outro lugar, outra data), a mesma forma
pode corresponder a outras funções, ou não - o que não
significa que ela seja proibida -, e a mesma função pode
corresponder a outras formas, ou não. Há então, quanto
à evolução dos elementos discursivos, uma autonomia
relativa da forma e da função.
É preciso aplicar a distinção entre forma e função à
citação, que, na verdade - forma e função espontaneamente
confundidas -, é uma categoria própria do sistema
cultural ocidental dos tempos modernos, uma noção

65
histórica e ideológica inserida em uma certa configuração
social. Não se trata nem de desconhecer, nem de excluir
a existência possível de outras modalidades da repetição
em outros sistemas culturais:. a ladainha ou a prece, por
exemplo. Mas a precaução metodológica é indispensável:
sem ela, as pequenas diferenças - a citação nunca é senão
uma pequena diferença - desapareceriam sob o engano
de um retorno eterno do idêntico, a citação sobrevivendo
a si mesma desde a origem do discurso.
Evitei até aqui falar de funções da citação no discurso:
as diversas tentativas de definição da citação e a pequena
tipologia proposta para seus valores de repetição baseiam­
se em critérios formais e não funcionais. Tynianov chamava
de ''junção construtiva de um elemento da obra como
sistema sua possibilidade de entrar em correlação com os
outros elementos do mesmo sistema e, portanto, com o
sistema inteiro':42 A função de uma citação garante a relação
da citação, t em S2 com um outro elemento de S2 ou com
S2 em seu conjunto, ao passo que a forma de uma citação
apresenta-se como uma relação entre os dois sistemas
onde t figura: SI e S2 . Podemos descrever todas as formas
possíveis, catalogar todas elas, elaborar um modelo que
as determine: esse é o objetivo de um estudo formal; mas
as funções, estas são essencialmente variáveis segundo.os
sistemas, estabelecem-se em um regime de discurso que
decide seu destino: são práticas efêmeras e empíricas para
as quais não há catálogo exaustivo possível.
Veja-se o verbete "citação" do Petit Robert: "Passagem
citada de um autor, de um personagem célebre (geralmente
para ilustrar ou apoiar o que se enuncia)." Logo em
seguida à definição formal, ele sugere, certamente entre
parênteses, como que para se eximir de responsabilidade,

66
uma avaliação funcional que, embora não pretenda a
completude - é tomada como geral, não como universal
-, privilegia duas funções, certamente as que predominam
hoje: o ornamento e a autoridade, em detrimento de todas
as outras. Ora, esse desejo de precisão não é necessário,
sem dúvida nem mesmo legítimo, em um dicionário de
língua do qual não esperamos senão uma definição formal.
Caberia a uma enciclopédia enumerar as funções da citação
e estudar, na história, a relação evolutiva entre a função e
o elemento formal, sua interação.
O elemento formal da citação pode satisfazer a um vasto
inventário de funções. Eis algumas que Stefan Morawski
julga fundamentais:43 função de erudição, invocação de
autoridade, função de amplificação, função ornamental.
Mas o que fazer, na prática, com um tal repertório que
não é nem exaustivo nem homogêneo? As duas primeiras
funções, de fato, são externas ou intertextuais, as duas
outras, internas ou textuais; ou, nos termos da antiga
retórica, as duas primeiras funções nascem da inventio, as
duas últimas, da elocutio. A importância de um catálogo
de funções é restrita: como passar do catálogo para uma
classificação?
Em compensação, se se descarta deliberadamente o
estudo funcional, e se se adota uma definição formal da
citação como ato de discurso (um enunciado repetido e
uma enunciação repetente), como mecanismo simples
e positivo que liga dois textos ou dois sistemas, tem-se
à disposição o índice de seus valores de repetição, que
são os interpretantes das relações elementares e binárias
entre os dois sistemas. Então, uma função da citação é
um interpretante da relação multipolar SI (AI, TI) - S2
(A2, T2 ), um baricentro dos valores simples de repetição,

67
cada uma tendo seu coeficiente próprio; e as grandes
funções históricas da citação que são tradicionalmente
listadas coincidem com o domínio destes ou daqueles
valores simples de repetição sobre outros: uma função é
uma hierarquia específica dos valores de repetição, todos
simultaneamente existentes. A função é um valor em que
uma época investiu; uma intensidade ou uma combinação
particular, historicamente condensada de valores próprios;
uma instituição cuj a conseqüência é que toda citação,
em um certo universo de discurso em que sua função é
suspensa, vê seu suplemento, suas possibilidades de sentido
limitadas, talvez abolidas, como se ela não pudesse ter ao
mesmo tempo senão uma e apenas uma única função. A
função é o que estabiliza a dinâmica da citação e a reconduz
ao equilíbrio.

68
o SIMULACRO

o lugar do produto obtido pela mimésis é o do "terceiro


descendente partindo-se do rei, quer dizer, da verdade:'44
diz Platão, no livro X d'A República, onde analisa não mais
o valor psicológico da mimésis, mas seu valor ontológico,
e reforça a condenação moral através de uma apreciação
metafísica. Primeiramente, a da verdade ou da realidade:
há a forma única ou a idéia de cada coisa (a idéia de cama
ou de mesa, a mesa ou a cama em si), cujo criador é Deus;
em segundo lugar, há o objeto de uso que o operário ou
o artesão produz segundo o modelo único, e que é cópia
da realidade; em terceiro lugar, enfim, a imagem obtida
pelo pintor ou pelo poeta e que é cópia da cópia, pois é
imitação do objeto do artesão e não da idéia. "Três tipos
de cama. Uma que é a forma natural e da qual podemos
dizer, creio, que Deus é o autor [ . . ] depois uma segunda,
.

a do marceneiro [ ... ] e uma terceira, a do pintor:'45


Na cadeia que vai da idéia (eidos) à cópia (eidolon) e
à cópia da cópia (phantasma), e à medida que se afasta

69
da verdade, a semelhança ou a fidelidade ao modelo
se perverte: a cópia da cópia é uma cópia degradada.
Em outras palavras, não há, entre a cópia e a cópia da
cópia, uma diferença de natureza, mas apenas de grau,
uma diferença mensurável pelo grau de afastamento da
verdade.
Platão dará em O Sofista, uma descrição diferente do
funcionamento da mimésis. Ela é apresentada aí como a
arte de produzir - em particular no discurso: é o caso
do sofista - "absolutamente todas as coisas': logo, de
produzir imagens (eidolon). "Do homem que, através de
uma arte única, se crê capaz'de produzir tudo, sabemos, em
suma, que ele não fabricará senão imitações e homónimos
das realidades:'46 E essa técnica se encontra na pintura e
na linguagem. Mas Platão distingue logo dois tipos de
imagens e divide a mimética em duas: por um lado, a arte de
produzir cópias (eikon), as "boas" imagens que respeitam
as proporções, que são dotadas de semelhança com a idéia;
por outro, a arte de produzir simulacros (phantasma), as
más imagens que simulam a cópia, que fabricam ilusão,
que são desprovidas de semelhança com a idéia porque
são produzidas sem passar pela idéia.
Essa divisão da arte que fabrica imagens em duas
classes, a arte da cópia e a arte do simulacro, não aparece
em A República. Tal como acaba de ser enunciada, poder­
se-ia pensar que ela estabelece uma nova maneira de
distinguir entre a cama do marceneiro e a do pintor, sendo
esta uma má imagem, um simulacro-fantasma, e aquela
uma boa imagem, uma cópia-ícone. Essa conclusão seria
falsa. · Retomando, no fim d'O Sofista, a especificação das
artes de produção, Platão as divide, inicialmente, em dois
tipos: a produção divina e a produção humana; depois,

70
divide ainda cada um desses dois tipos em dois: a produção
das realidades e a produção de imagens. Do lado divino,
as realidades produzidas correspondem à criação, e as
imagens são as sombras, os reflexos, os sonhos. Do outro
lado, o homem "através da arte do pedreiro [ . . . ] cria a casa
real e, através da do pintor, uma outra casa, espécie de
sonho apresentado pela mão do homem de olhos abertos':47
A produção humana se compõe, pois, de realidades e
de imagens, estas últimas se dividindo, por sua vez, em
cópias e simulacros. É preciso tirar daí duas conclusões.
Por um lado, que os objetos manufaturados não são mais
apresentados como cópias, mas como realidades, o que está
de acordo com o fato, retomado por Aristóteles, de Platão,
no final de sua vida, não acreditar mais que houvesse idéias
às quais os objetos manufaturados correspondessem. De
outro lado, encontra-se o que é decorrente da constatação
precedente: os objetos pintados não são mais apresentados
como cópias de cópias, mas como imagens opostas às
realidades. Assim se explica a produção de imagens de um
modo mais preciso e satisfatório do que em A República.
Realmente, por que o quadro seria cópia da cópia; por que
o pintor imitaria a cama do artesão e não a idéia de cama?
A resposta era a seguinte: o pintor imita o objeto do artesão
e não a forma única, porque representa a aparência e não
a realidade, usando, por exemplo, da perspectiva. Não há
senão um ponto de vista quanto à forma ou à idéia; ora,
o pintor representa segundo uma variedade de pontos de
vista: não é, pois, a idéia em si mesma que ele imita, mas
apenas a sua cópia. A cadeia de produção idéia-cópia-cópia
da cópia é substituída, em O Sofista, por uma arborescência:
há uma diferença de natureza entre o objeto manufaturado
(a realidade) e o objeto pintado (a imagem); há uma outra

71
diferença de natureza entre as imagens, entre as cópias,
e os simulacros. Como afirma Gilles Deleuze, não é o
afastamento da realidade que perverte a semelhança do
simulacro com a idéia e sua fidelidade ao modelo, mas
sua natureza, sua essência por assim dizer, dado que o
simulacro não é cópia de absolutamente nada, é cópia do
não-ser.

Se tomamos o simulacro como uma cópia, um ícone infini­


tamente degradado, uma semelhança infinitamente relaxada,
estamos passando ao largo do essencial: a diferença de natureza
entre o simulacro e a cópia, o aspecto segundo o qual eles com­
põem as duas metades de uma divisão.48

Parece que estamos assim em condição de ir ao fundo


do julgamento que Platão fazia, no livro III d'A República,
sobre os discursos direto e indireto. Tratava-se para ele
de, opondo-os, procedendo à divisão, definindo-os como
duas espécies da narrativa ou da diégésis, escolher um ou
outro. "A finalidade da divisãd', escreve ainda Deleuze,
"não é em absoluto dividir um gênero em espécies, porém,
mais profundamente, selecionar linhagens: distinguir
pretendentes, distinguir o puro do impuro, o autêntico do
inautêntico':49 Platão, no caso, escolhia o discurso indireto,
rejeitava o discurso direto. Ora, confrontando essa posição
com o estudo ontológico da mimésis no livro X, era difícil
compreender sua coerência. Com efeito, como integrar o
discurso indireto ao objeto do artesão, ambos valorizados; e
o discurso direto ao objeto pintado, ambos desvalorizados?
Para isso seria necessário que o discurso direto pudesse
ser considerado cópia do discurso indireto, como o objeto
pintado é cópia do objeto manufaturado. CompreendeF
se-ia muito melhor o contrário. Haveria, entre eles, mais

72
que uma ligação descendente, uma diferença de natureza,
análoga à que Platão, em O Sofista, estabelece entre o
simulacro e a cópia. No mesmo nível de especificação
das artes de produção, o discurso indireto seria a "boà'
imagem, a cópia-ícone, e o discurso direto, a "má" imagem,
o simulacro-fantasma. Eles seriam duas subespécies da
produção de imagens ou da mimésis, em contradição com
o que diz Platão no livro III d'A República, onde só se refere
ao discurso direto, mas conforme a Poética, de Aristóteles.
Em outros termos, enquanto que em A República a mimésis
parecia sempre ser banida, em O Sofista ela só é condenável
na medida em que produz uma má imagem. Todavia,
quando Platão aceita uma boa imagem, ele se preserva de
dar algum exemplo, de colocar seja o que for em um lugar
positivo, assim como em A República ele não tinha nada
para colocar no lugar reservado à narrativa pura e simples:
em ambos os casos, só lhe interessa o termo negativo
onde encurralar o poeta ou o sofista. "Quanto ao resto':
diz ele, "permitamo-nos essa preguiça, negligenciemo-lo,
deixando a outros o cuidado de trazê-lo de volta à unidade
e de lhe atribuir um nome conveniente': 50 Somos nós,
conseqüentemente, que preenchemos o enquadramento
da boa imagem, da cópia, com o discurso indireto.
Em resumo, a repetição (o discurso direto ou a citação)
seria condenável menos por realçar a mimésis que por ser
um simulacro, imagem má: ela é animada pela malícia, é
geradora de não-ser e indutora de falsidade; assemelha-se
aos procedimentos sofistas que usam e abusam do poder
mágico do logos para produzir a ilusão e a trapaça, o
discurso sem denotação.
Mas isso supõe que haja alguém sobre quem se possa
exercer esse poder. Alguém a quem dar a ilusão de que

73
aquilo que ele vê ou ouve é (verdade): não há simulacro em
si sem o outro, o interlocutor, pois que ele existe em função
deste, como observou Xavier Audouard.51 O Sócrates de
Platão é um simulacro para seu parceiro, assim como o
diálogo e a citação para o leitor. É preciso insistir: é o
outro, o usuário e o enganado, que faz o simulacro, que
é responsável por ele. Só há simulacro consentido, o que
não restringe o seu poder, mas determina os caminhos de
sua aplicação.

74
MOSTRAR

A concepção platônica da mimésis é comandada por


uma analogia: a da pintura e a da poesia. Com a mimésis,
o discurso é pensado em termos visuais: cópia (eidolon) e
cópia da cópia (phantasma) em A República, cópia (eikon)
e simulacro (phantasma) em O Sofista. Platão deve essa
analogia, para ele essencial, ao poeta Simonide de Céos
que, segundo as palavras de Marcel Detiénne, "marcaria
o momento em que o homem grego descobre a imagem.
Ele seria o primeiro testemunho da teoria da imagem [ .. . ]
o primeiro testemunho da doutrina da mimésis"s2 Foi
Simonide, segundo Plutarco, que inicialmente formulou
o célebre ut pintura poesis: "Simonide chamou a pintura
de poesia silenciosa e a poesia de pintura que fala, pois a
pintura pinta as ações enquanto elas acontecem, as palavras
as descrevem uma vez terminadas."53 Antes de Horácio,
Platão e Aristóteles aceitaram essa idéia. "O poetà: escreve
Aristóteles na Poética, "é imitador tanto como o pintor e
qualquer outro artista que cria imagens':S4

75
Através de uma reflexão sobre a pintura e a escultura,
Simonide teria assim chegado à compreensão de sua
própria atividade, ao mesmo tempo como um ofício e
como uma arte de ilusão. Fazendo-se pagar pelos seus
poemas, concebendo a poesia como um engano e um
artifício, Simonide foi o precursor dos retóricos e dos
sofistas. Ora, essas duas inovações capitais inferem-se de
uma afirmação sua: ''A fala é a imagem [eikon] das ações:'55
Eikon: esse é o termo que Platão retomará para enunciar
sua concepção da mimésis e sua teoria das idéias. Tal é a
extrema importância da ruptura consumada por Simonide,
importância há muito tempo avaliada, como o atesta a
lenda que envolve o personagem: Simonide não teria sido
somente o primeiro a praticar a poesia por dinheiro, mas
teria ainda inventado a arte da memória, a mnemotécnica,
assim como aperfeiçoado a escrita.56
Simonide marca uma ruptura cultural decisiva e atua
no pensamento de Platão. Para simplificar grosso modo:
antes de Simonide, o paradigma do discurso era oral,
acústico; com Simonide, torna-se gráfico, visual. O olho
substitui a orelha, a visão substitui a audição como órgão
e como sentido privilegiado da percepção do discurso.
A escrita é isolada da fala. Daí, sem dúvida, atribuir-se a
Simonide um melhoramento da escrita: ele teria inventado
lett:as, permitindo uma melhor notação escrita, ou seja,
teria desenhado um alfabeto fonético melhor. Ora, uma
tal representação da linguagem separa a voz da escrita,
privilegia a visão em relação à audição. Daí, também, o mito
de Theuth, no Pedro, que considera como ilusões a escrita
e a memória artificial, os dois domínios em que Simonide
teria igualmente aplicado sua concepção de linguagem
como imagem da realidade. Enfim, a compreensão que

76
tem Simonide do trabalho poético rompe com a tradição
da inspiração, essencialmente oral, cujo eco se encontra
no Ion de Platão.
Ora, em um universo arcaico, onde o modelo do
discurso é oral, inspirado, a repetição como tal não
é concebível sem um fim eficaz ou mágico. Assim se
explicaria a prudência do indígena obtida por Botzarro:
"Não se pode servir de cada palavra senão uma só vez:'
Cada palavra é viva, ativa, poderosa; é uma força natural
presente em sua unidade efêmera. Ela não sobrevive à
sua enunciação extemporânea e única, não repetível. A
roda de preces57 multiplica o encanto sem reproduzi-lo,
sem repetir o processo de sua produção.58 Inversamente,
quando o modelo do discurso torna-se visual, gráfico,
secular e técnico, na poética de Simonide e na retórica
dos sofistas, inaugura-se a possibilidade da repetição do
já dito. Seu poder se modifica: não é mais a influência
mágica ou a eficácia imediata da fala inspirada, é o poder
leigo da mimésis, da citação que repete, produz e reproduz
o discurso do outro.
Sócrates e Platão lutam contra a escrita, contra a
memória, contra a mimésis e a retórica; tentam revalorizar
a fala em relação à escrita, desvalorizar a visão. Mas eles
combatem na retaguarda. A prova é que o próprio Platão não
tem outro recurso senão exprimir-se em categorias visuais.
Em O Sofista, a arte sofista é qualificada de enganadora,
produtora de simulacros, a exemplo da esquiagrafia, a
decoração do teatro em perspectiva que, de longe, dá a
ilusão da realidade.59 Platão diz sobre o sofista: "Seguro de
sua técnica de pintor, ele poderá, exibindo de longe seus
desenhos aos mais inocentes dentre os rapazes, dar-lhes
a ilusão de poder criar a realidade verdadeira de tudo o

77
que quiser:'60 Assim, é o olho que a fala sofista engana, ou,
se ela engana o ouvido e a alma, é porque estes são olhos:
o simulacro no discurso é visão enganadora, e por isso é
freqüentemente comparado a wn olho. A repetição do já
dito dá a ver, ela é uma imagem indecomponível e isso é o
que faz dela um simulacro.

78
UMA "BOA" CITAÇÃO?

Se a repetição das palavras do outro é uma arte de


produzir o simulacro, cuja denotação é incerta, seria preciso
concluir, com Platão, que a citação é necessariamente uma
má imagem (do pensamento)? Ou é ainda concebível que
haja, às vezes, uma boa citação, uma cópia fiel, uma citação
que possa ter valor de argumento em um discurso e cujo
poder não se baseie na ilusão, na intimidação, numa espécie
de complacência do ouvinte, simétrica à enunciação,
o que para Platão hão é afinal outra coisa senão uma
complacência do locutor com o enunciado? Na verdade,
a sensação intervém na enunciação e, juntando-se à
opinião, produz nesta um desvio: do julgamento da verdade
(conformidade com o real, com o que é) à imaginação.
A opinião é um julgamento sobre o pensamento, uma
afirmação ou uma negação que pÕe fim ao pensamento
como diálogo interior da alma consigo mesma; uma
avaliação, pois, do enunciado; enquanto a imaginação,
misturando a opinião e a sensação, é uma apreciação tanto
da enunciação quanto do enunciado.61

79
Uma boa citação seria uma citação em que o discurso,
emissão oral, não interviria e alojar-se-ia no pensamento.
Seria uma citação de pensamento.
Ora, haveria uma boa citação,. repetição de pensamento
e não de discurso? Ela manteria com a idéia, com o sentido,
uma relação de analogia, seria uma cópia, e sua pretensão
à verdade seria legítima.
Parece que a hipótese de uma tal citação não é aceitável:
toda citação é simulacro, todo simulacro é engano. A
citação é sempre questão de discurso, de enunciação; não
há citação que engaje apenas o enunciado, que se libere
dos sujeitos da enunciação e que não tenha intenção de
persuadir. Isto se verifica pela maneira como Platão, em
Gorgias, refuta o valor dialético da citação na sua forma
típica, o testemunho jurídico:

Ali, um orador acredita refutar seu adversário quando pode


apresentar em favor de sua tese testemunhas numerosas e
consideráveis, enquanto o outro tem apenas uma ou nenhuma.
Mas esse gênero de demonstração é sem valor para descobrir
a verdade, pois pode acontecer que um inocente sucumba sob
testemunhos numerosos e autorizados.62

Sócrates opõe à quantidade de testemunhos, a única


opinião de seu interlocutor, sua concordância através do
diálogo, com a tese que ele sustenta. "Eis então dois tipos
de provas, a primeira na quaL tu acreditas tanto quanto
noutras, e a segunda que é a minha:'63 Nenhuma citação
tem valor de prova, mas somente o julgamento de um
único ao final de um diálogo, um julgamento interior
sobre. a verdade de uma proposição. Mas sabe-se à custa
de que esforços obtém-se essa cumplicidade, e Platão não
hesita em citar Homero e os demais, de uma maneira muito
semelhante à nossa.

80
o CORPO MARAVI LHOSO DO DISCURSO

Para dar idéia de um modelo de eloqüência, Quintiliano


utiliza, de maneira repetitiva e quase sistemática, a
metáfora da beleza corporal. As coisas, os argumentos
são os "nervos" do discurso, e as palavras, os ornamentos
são a roupagem. Ora, em um corpo são, fortificado pelo
exercício, o vigor e a beleza andam juntos, pois a verdadeira
beleza é a expressão viril da força. É preciso que seja
também assim no discurso: o cuidado com a frase, como
a toalete do corpo, leva a preferir os ornamentos viris
às afetações femininas, a clareza e a concisão à afetação
verbal; é preciso que as palavras, como uma pele, colem-se
às coisas.64
Sobre esse corpo do discurso sustentado pela elocutio
(a palavra em ação), que espécie de elegância representa
a sententia? Quintiliano responde: Ego vero haec lumina
orationis, velut oculos quosdam esse eloquentiae credo.65 As
sententiae, traços luminosos do discurso, são os próprios
olhos da eloqüência. O que dizer, senão que é uma imagem

81
banal da citação, pedra preciosa incrustada no discurso e
brilhando com todos os seus reflexos? Ou, como uma luz,
ela também pode ser um olho?
Lumen, o traço luminoso é, na língua da retórica, só
ornamento, só figura. Mas nem toda figura é um olho:
somente a sententia, pois ela não apenas ilumina, como
pontua o discurso, desvenda o orador. Lumen e oculus,
porque simulacrum e acies: somente um olho p ode
enganar outro olho, somente um darão, uma ponta, uma
pupila, um olhar penetrante. O todo da citação se faz no
olhar. É um rasgão, uma fresta por onde investigar, onde
encontrar, sustentar o olhar daquele que fala e, talvez,
fazer-lhe baixar os olhos. Lumen, o brilho do olho, a luz
do olhar é, ao mesmo tempo, a força e a fragilidade do
discurso, seu componente histérico, aquele cujo reflexo
depende do ponto de vista. Basta se deslocar, um nada,
um pequenino ângulo, para que a sedução se torne letra
morta, para que a luminosidade se embace. Basta olhar,
escutar contra a luz.
Daí um novo problema e muito importante: as
sententiae, de brilho tão fugaz, resistem à leitura? Seria
preciso eliminá-las da fala que não é viva voz, quer dizer,
da escrita? Quintiliano levanta a objeção: "Para mim': diz
ele, "considero que falar bem e escrever bem são uma única
e me�ma coisa, e que a oração escrita é o monumento da
oração faladâ:66 Isso resulta em desativar os foguetes e os
fogos de artifício que se esgotam em sua fulguração.
Multiplicar as sententiae, cobrir seu discurso de olhos,
de perspectivas diversas e divergentes é se defender contra
o olhar do outro, mas é também expor-se: fazer de seu
discurso um monstro, Argos, que vigia todas as saídas.

82
Sed neque oculus esse toto corpore velim, ne caetera membra
officium suum perdant. 67 Não é preciso que o discurso
seja coberto de olhos; isso levaria ao risco de ter os outros
membros de seu corpo mutilados: o corpo maravilhoso do
discurso deve seguir os cânones da anatomia humana, fiel
às proporções do corpo do orador.

83
"YOX": A POSSESSÃO

Parodiando uma divisão tradicional da retórica, e


presente em Quintiliano, entre figuras de palavras e
figuras de pensamentos - figurae verborum et figurae
sententiarum: estas consistindo em uma concepção do
espírito (in cogitatione concipienda) e aquelas em uma
enunciação (in enuntianda)68 - haveria duas espécies da
citação: a repetição de pensamentos, repetitio sententiarum,
e a repetição de palavras, repetitio verborum. Talvez se deva
a essa distinção, fundamental para a retórica, e à dinâmica
entre a palavra e a coisa, o fato de não haver, entre os
antigos, uma entidade discursiva específica, que seria a
citação, e que compreenderia as duas formas da repetição,
de coisas e de palavras.
Um tal dispositivo tem como conseqüência sutil,
em . certos casos (aqueles em que, precisamente, opera
a dinâmica da palavra e da coisa) , quando as próprias
palavras são efetivamente repetidas, e quando se trata de
uma citação no sentido contemporâneo, fazer valer ainda
esta última como uma forma da repetição de pensamento.
A partir de Cícero, o objeto da retórica está mais do lado
das palavras que das coisas, de verba que de res, mas esse

84
privilégio da elocutio em detrimento da inventio, quando,
por exemplo, ela recupera a gnômé com o nome de
sententia, acompanha-se, sobretudo em Quintiliano, de
uma incessante desvalorização de verba, em particular na
oposição que desqualifica as figurae verborum
' em relação
às figurae rerum.
É difícil avaliar o alcance da astuciosa distinção entre
citação de pensamento e citação de discurso, que teria
funcionado para os antigos - isomorfo, por exemplo, da
oposição entre anamnésis e mimésis em Platão - porque
ela escapa às nossas categorias. Entretanto, parece que a
mesma distinção encontra-se no que os gregos chamavam
o tópico: o que é de fato seu lugar comum? O termo é
ambíguo para nós, hoje, repleto de história.69 Ele não o era
para Aristóteles. O lugar comum não era um estereótipo,
um trecho preparado, uma logografia, uma citação, como
se tornou na idade média nas coletâneas de exempla
destinadas à homilia, mas uma categoria que reunia os
meios da argumentação comuns a todos os gêneros. Na
Retórica, de Aristóteles, esses lugares são três, nem mais
nem menos. Eles tratam "do possível e do impossível, da
questão de saber se uma coisa foi ou não foi, será ou não
será, e também da grandeza e da pequenez dos fatos".7o
Assim, próximos da citação que seriam mais tarde, os
lugares não são citações de discurso, mas citações de
pensamentos, de compartimentos lÓgicos diante dos
quais fazer desfilar a causa, a fim de resgatar o que lhe é
próprio.
Mas há uma oposição antiga que legitima, de maneira
mais apropriada ainda, a hipótese de uma distinção entre
uma repeti tio verbo rum e uma repetitio sententiarum,
tanto ela lhe parece homóloga. É o que faz a Rhetorica ad

85
Herennium quando divide a memória em uma memoria
verborum e uma memoria rerum.71 Trata-se da memória
artificial e de seu exercício, segundo o princípio, mais uma
vez, de um tópico. A fim de memorizar um discurso, convém
que o orador represente uma arquitetura estruturada em
lugares (Zoei) onde ele dispõe imagens lformae, notae ou,
notadamente, simulacra). Cícero, segundo uma analogia
que evoca o Pedro, de Platão, comenta da seguinte forma
o método no capítulo sobre a memória, De Oratore:

Para exercer esta faculdade do cérebro [a memória], deve-se,


segundo o conselho de Simonide, escolher em pensamento
lugares distintos, formar as imagens das coisas que se quer
reter, depois organizar essas imagens nos diversos lugares.
Então, a ordem dos lugares conserva a ordem das coisas; as
imagens lembram as próprias coisas. Os lugares são os tabletes
de cera sobre os quais se escreve; as imagens são as letras que
neles se traçam.72

As imagens da memória que dependem ainda, como tudo


o que se relaciona à mimésis e à repetição, de uma analogia
pictural, são simulacros, porque seu efeito repousa numa
perspectiva bem-sucedida: "Represente': diz Cícero, "uma
idéia inteira através da imagem de uma única palavra,
faça tudo isto como um pintor hábil marca as relações de
distância pela diferença de proporções dos objetos':73
Pronunciando o discurso, o orador percorre os lugares
e recupera suas imagens. Ora, estas são de duas espécies,
para as coisas e para as palavras. Cícero continua: ''A
memória das coisas é a memória própria do orador [ ... ],
a m�mória das palavras, que nos é menos necessária,
distingue-se por uma maior variedade de imagens:'74

86
Ou seja, é menos econômico reter as palavras do que
as idéias de um discurso, pois isto demanda muito mais
lugares e imagens. Assim se explica a reserva de Cícero
quanto à memoria verborum: Quintiliano não verá nisso
mais que um exercício pedagógico destinado a reforçar a
outra memória, a das coisas. Memoria verborum e figurae
verborum são jogos de crianças. Seu valor é menor que o
da memoria rerum e das figurae rerum ou sententiarum.
Quanto à repetitio, sua qualidade atém-se aos mesmos
argumentos.
A citação de pensamento, a repetitio sententiarum, é,
evidentemente, a boa sententia: fica próxima das coisas,
toca o sentido e os sentidos, sobrevive à sua enunciação,
pois é antes de tudo conceituaI. Em face dela, há uma
figura desagradável, a da repetição cansativa, a das
palavras: ela se chama vox e é a única que coincide com
o nosso emprego atual da citação: segundo este, não cabe
reproduzir o pensamento, mas redizer as palavras que uma
vez já expressaram a coisa. A sententia, em suma, fornece o
significado, enquanto a vox faz ressoar o significante. Não
é indiferente que a repetitio verborum se chame VOX:75 é o
som (musical), a fala, a língua, a dicção. Em nenhum de
seus empregos, a palavra interfere no nível do pensamento.
Cícero designa, por vezes, sob esse termo, certos aspectos
da actio. A actio é a quarta parte da retórica, hypocrisis em
grego, a última antes da memória, e comporta, ela mesma,
segundo Cícero, dois registros, vox e motus, a dicção e o
gesto do orador quando, tal como um ator, ele encena o
discurso. Pela dicção, o orador representa, desempenha
o papel do discurso e do pensamento, das palavras e
das coisas. Como escreve Roland Barthes, a vox é uma
teatralização, "ela remete a uma dramaturgia da fala (quer
'
dizer, a_uma histeria e a um ritual)':76

87
Se se considera que a retórica, da inventio à actio, é
um trajeto que vai das coisas às palavras, do pensamento
ao enunciado e à enunciação, do sentido aos sentidos, a
sententia percorreu todo o circuito; a inventio e a elocutio
autenticaram-na antes que a actio lhe desse a marca do
produto final. Ela passou sucessivamente por todos os
estágios da produção do discurso como técnica realizada;
é por isso que ela tem uma consistência, não é um artifício.
A vox, ao contrário, é como se ela se unisse ao discurso no
último momento, e, sem ter conhecido o lento trabalho, o
longo amadurecimento que o fez nascer do nada, pouco
a pouco tomasse corpo em proporções harmoniosas. É
preciso pensar a vox como uma improvisação, como uma
passagem ao ato, um arrebatamento peloflumen verborum:
ela é um ornamento, um simulacro, a máscara da comédia
com a qual se fantasia o orador, quando, como condenava
Platão, "ele torna sua elocução o mais semelhante possível
à da personagem cujo discurso ele anuncià:77 Com a vox, o
orador dá a voz, ele se doa, empresta seu corpo, seu órgão
a uma ressonância. Fazendo assim, ele possui seu público.
Mas a vox também o possui: quando ele fala, ela fala através
de sua boca, como um vampiro, como um demônio, como
um deus.
O orador que vocaliza perde o controle de si mesmo e
do discurso, ele é inspirado por um poder que o transcende
(o do já-dito); é possuído como o profeta, o adivinho ou o
poeta da Grécia arcaica. Platão dizia dos poetas líricos: "Um
apega-se a uma musa, outro a uma outra, ,e nós chamamos
isso ser possuído, porque é alguma coisa como uma
possessão, visto que o poeta pertence à musa:'78 O rapsodo,
por sua vez, aquele que amplifica e interpreta os versos do
poeta, é um possuído do poeta. A fala mágico-religiosa não

88
é a de um homem, pois ela lhe é ditada sem que ele possa
escolher entre falar em seu nome ou em nome de um outro.
Essa alternativa supõe uma mediação da relação entre o
sujeito falante e sua fala (mediante as noções de autor ou
de àssinatura, por exemplo) ausente do pensamento mítico
em que o locutor permanece anônimo.
Também a vox, essa repetição denegrida, a irmã
bastarda da sententia, aparece como uma sobrevivência, na
retórica, da fala inspirada: a causa instrumental é a mesma
(o corpo místico do orador); a causa principal deslocou-se
do sagrado para o profano. A citação é uma musa leiga,
uma posses,são profana.

89
UMA REGULAÇÃO I NTERNA DO DISCURSO

Entre Aristóteles e Quintiliano as diferenças são


sensíveis quanto às funções, aos valores que eles conferem
às formas da repetição interdiscursiva. Elas podem assim
se resumir: para Aristóteles a gnômé é antes de tudo um
elemento da inventio; para Quintiliano, a sententia é antes
de tudo um elemento da elocutio. Quintiliano, aliás, não
dissimula o desacordo, justifica-o de maneira empírica
fazendo notar, várias vezes, o contraste entre a fraca
presença da sententia entre os antigos, e seu grande sucesso
entre os contemporâneos.
Entretanto, apesar desse deslocamento que transporta
as espécies da citação da inventio à elocutio (e até mesmo
à adio para vox), o parentesco permanece essencial entre
essas concepções em Aristóteles e Quintiliano. Certamente,
a citação não aparece mais, na Institution Oratoire, na
hipóstase original, arquetípica e lógica, do símbolo puro;
ela não se define mais, funcionalmente, como premissa do
entimema. Mas, de toda forma, depois de ter postulado

90
a existência teórica desse valor, Aristóteles explicaVa todos os
outros, indiciais ou icônicos que, na prática, acompanham-na
necessariamente: o símbolo, como. não dispensa uma
enunciação, tem efeitos inevitáveis de pathos e de éthos.
Por isso mesmo ele não é somente um modelo abstrato,
sem existência na prática do discurso. Ao contrário, o
símbolo puro, idealidade da citação - a idealidade não
tem nada de abstração -, funda e autoriza seus outros
valores. Se a citação oferece essa legitimidade simbólica,
está garantido que ela não é inteiramente simulacro, lugar
de um reconhecimento imaginário: tudo é permitido se a
gnômé ou a sententia é, antes de tudo, também ou ainda
símbolo.
Na Institution Oratoire, Quintiliano tenta reconduzir
um dispositivo análogo para o controle da repetição no
-
discurso. A validade da sententia não depende mais de
sua referência, de sua articulação com a gnômé como
símbolo puro, mas o critério de separação entre boa (isto
é, admissível) e má sententia torna-se mais ou menos
o mesmo. As sententia são boas se elas se dirigem às
coisas, rem contineant,79 e não às palavras. Que ela seja
auctoritas ou ornatus, a boa sententia não é uma fórmula
ftxa que se repetiria palavra por palavra, de discurso em
discurso. É por isso que na categoria da sententia como
na da gnômé encontram-se poucas citações explícitas ou
referentes a um autor, mas muitos provérbios, chistes (o
que seria, sem dúvida, a melhor tradução de sententia),
quer dizer, pensamentos que não se estancam num
enunciado contingente e todavia controlador. Na ausência
de fetichismo do discurso e das palavras como objetos de
uma circulação econômica, o valor da citação que prevalece
em Quintiliano é ainda essencialmenté simbólico.

91
Este tipo de homologação da repetição no discurso,
através de seu alicerce racional ou simbólico, representa
por assim dizer um controle interno: é um princípio de
coerência do discurso, de conformidade entre a coisa
e a palavra, entre o pensamento e sua expressão. Ele se
opõe a dois outros tipos de controle da repetição, entre os
quais ele é recolhido na cronologia: controles de alguma
forma externos, em que a regulação se faz por meio de
uma instância externa, extra ou transtextual. Por um lado,
a repressão que Platão, sem sucesso, pretendeu impor
à mimésis, proibindo sua autoridade, numa tentativa
de acertar contas, para sempre, com a repetição. Por
outro, um sistema em que a repetição é valorizada, não
mais porque satisfaz ao símbolo como a sua imanência
ou a sua idealidade, mas porque ela se submete a . uma
transcendência, porque reconhece sua dívida existencial
com relação a uma tradição ou a um ideal do texto: será o
discurso da teologia. Entre o platonismo, que procurava
se desembaraçar da palavra arcaica e mágico-religiosa,
e o cristianismo, marcado pelo retorno, colorido de
neoplatonismo, da crença numa palavra eficaz, quer dizer,
entre duas concepções metafísicas da linguagem como
transcendente ao real, a antiga retórica foi o tempo de uma
codificação do discurso na sua imanência, na sua coerência
interna. A linguagem sendo incapaz de dizer ou de revelar
a verdade, a antiga retórica teve uma ambição limitada.
Ela foi uma simbologia da conformidade do texto consigo
mesmo ou de sua receptibilidade própria.
• É possível citar várias causas históricas para a necessidade
de.Um controle interno do discurso na antigüidade, através
de uma idealidade (oposto ao controle externo através de
um ideal). Esta, inicialmente, trivial: quando um orador

92
toma a palavra, quando repete uma . gnômé ou uma
sententia, ele não dispõe de textos e de referências que lhe
permitiriam fazê-lo palavra por palavra, e seus ouvintes
menos ainda. Mais tarde, Aulu-Gelle reClamará das poucas
obras que ele possui ou que encontra em bibliotecas, e
organizará um fichário de suas leituras para remediar a
falta de livros. A fraca difusão do texto e seu caráter oral
comandrun a regra de sua autonomia suficiente em relação
ao já dito. A ética e a lógica que ordenam, regularizam a
repetição das palavras do outro no discurso, percebem
essa exigência:' o texto novo T2 deve ser bastante destacado,
independente do texto anterior que ele cita, TI, e de seu
autor, AI. O valor (o princípio) simbólico da repetição é
exigido; a fim de que ela postule, contenha, in praesentia,
a lei ou a razão segundo a qual ela se mantém.
Uma segunda explicação, complementar a menos que
seja conseqüente, dessa ética do texto, caracterizada pela
exigência de sua autonomia, empresta à concepção antiga
da propriedade literária uma concepção menos rígida, sem
noção do direito de autor, nem jurídico nem mesmo moral.
A imitação, desde Aristóteles, na Grécia e em Roma, é mais
uma relação entre obras que uma imitação da natureza.80
Oratio publicata res libera est, diz o adágio que governa os
comportamentos da escrita. A coisa dita, escrita, publicada,
chega logo ao domínio público: é uma coisa, res, e não
uma palavra, verbum, de autor. Todo mundo pode imitá­
la sem que seja preciso homenagear um sujeito, pagar-lhe
tributo. Horácio, na Art Poétique, definiu assim o trabalho
do poeta:

Você transformará uma matéria de domínio público em


propriedade particular se você não se demorar fazendo o

93
percurso banal e ao alcance de todos; se você não teimar
em reconstituir, tradutor fiel demais, palavra por palavra;
se você não se lançar, pela imitação, num quadro estreito
de onde a timidez ou a economia da obra lhe impedirão
de sair.sl

Esse programa é fiel, enquanto aplicação poética, às


estratégias que a retórica aconselha para a repetição, para
a enunciação da gnômé ou da sententia.
Em um: tal conjunto de condições e de práticas sociais
do discurso (a fraca difusão da obra, a predominância do
oral sobre o escrito, a ausência de propriedade literária
etc.), a repetição situa-se, como parâmetro e como
direção, num lugar nodal. Naquilo que dizem Aristóteles e
Quintiliano, de um ponto de vista lógico ou ético, quando
buscam organizar seu funcionamento, é preciso ver,
com efeito, bem mais que a regulamentação de um traço
discursivo periférico, marginal para o sistema retórico. A
repetição era para Platão o que havia de pior na linguagem
(a mimésis, o simulacro), a fonte de todos os males, ilusão,
farsa, erro. Desde então, através de uma certa alteração do
platonismo, a retórica não a rejeita, mas utiliza-a para seus
fins; ela se torna não exatamente o que haveria de melhor
no discurso, mas um dispositivo central, a própria condição
de sua possibilidade. A gnômé e a sententia atravessam
toda a construção retórica em sua espessura, da inventio à
actio e à memória. Nenhuma outra categoria, talvez, tenha
lugar tão flutuante, ou intervenha de forma tão ampla.
É por isso que destruir, controlar, moderar a repetição
representa um tal empenho: isso diz respeito ao discurso
na'sua integridade. Se ela é "boà' (receptível, admissível), o
discurso também o é. Um discurso, em suma, é julgado pela

94
prova de controle das repetições que ele opera. A validade
de um discurso é a de suas repetições. Então, preservar a
repetição como o fez Aristóteles é, certamente, elaborar as
técnicas positivas de seu emprego e os mecanismos de sua
sobrevivência, mas é primeiro e sobretudo reconhecer que
ela forma, com o dispositivo que a executa, um subsistema
da retórica que funciona como sua instância de regulação,
de regulação interna, isto é, sem a intervenção de um
princípio transcendente ao discurso como critério de sua
homologação.

95
A .REGULAÇÃO CLÁSSICA DA ESCRITA
OU O TEXTO CO MO HOMEOSTASE

A passagem da escrita medieval à escrita clássica, do


controle exercido pela tradição ao controle exercido pelo
sujeito (o cogito legislando a cena da escrita), da citação
como índice à citação como ícone, pode ser descrita em
duas etapas.
Em um primeiro tempo, o corpus, que compreendia
até então apenas a Bíblia e sua sucessão teológica - texto
primeiro a partir do qual todo uso da palavra adotava a
forma do comentário -, estendeu-se aog autores pagãos
gregos e latinos, da antigüidade, e a tudo o que já fora
dito e escrito, mas sem que se apagasse a noção de texto
primeiro.
• Essa ruptura remonta a um tempo longínquo, a
Abelardo e Santo Tomás, que ultrapassaram a patrística e
seu comentário ao redescobrirem Aristóteles. Uma ruptura
tão franca não se deu nem mesmo entre a escolástica e o
Renascimento.
Encontra-se, aliás, em Abelardo, a reivindicação
prematura de uma singularidade individual que contesta a

96
concepção medieval do homem, do escritor como simples
elemento de uma série ou de uma linhagem, e anuncia o
sujeito da idade clássica. Abelardo se lamentava mais da
censura exercida sobre seus escritos que da mutilação, da
diminutio de seu corpo; não hesitava em aproximar os
dois tormentos:

Compatada ao ultraje presente [seus livros foram conde­


nados e queimados], a traição de outrora parecia pouca
coisa e eu deplorava menos a mutilação do meu corpo que
a desonra a meu nome. [ ... ] Os ataques dirigidos à minha
reputação torturavam-me muito mais violentamente que
a mutilação do meu corpo.82

Nunca lhe foi perdoada tamanha pretensão, tamanha falta


de humildade.
Esse primeiro tempo de transição, a ampliação do corpus,
representa, sobretudo, uma transformação quantitativa,
mesmo que as proporções tenham sido consideráveis e que
ela tenha provocado algumas modificações subsidiárias
(pelo menos essas lhe foram contemporâneas): substituição
do comentário propriamente dito, o discurso teologal
do tipo patrístico, pela quaestio e pela disputatio. Esse
momento não estabelecia contradição insuperável quanto
à regulação do discurso segundo, que, lectio ou quaestio,
permanecia ligado ao primeiro e sob o controle da tradição
mantida pela Igreja e, recentemente, pela Universidade.
O segundo momento afetou a própria escrita e não
apenas, de maneira quantitativa, sua matéria ou seu
suporte; ele agiu sobre seu sistema de controle e só interveio
depois do início do século XVII, no processo instaurado
contra os Essais e contra outras "parrésias" ou abusos

97
de discursos análogos, contra a moda da citação. Entre
Abelardo e Pascal, entre Tomás de Aquino e Port-Royal,
entre os gêneros comentário e crítica no sentido estrito,
houve muito espaço para outras formas transitórias de
escrita, das quais os Essais serIam àpenas uma, mas talvez
a mais audaciosa e temível. Se a contenção dessas formas
não se verificou mais cedo, a partir da ampliação do
corpus, é porque seus efeitos só se tornaram insustentáveis
e incontroláveis quando de sua propagação maciça pela
imprensa. Petrarca já havia lançado um movimento de
retorno aos antigos e, fazendo-se autor e comentarista
rigoroso, exigia a exatidão da citação. Mas foi somente
a imprensa, porque contribuiu para dissipar a noção de
texto primeiro a copiar e a recopiar - Ramus e Montaigne
questionavam-na mesmo antes de uma maior divulgação do
livro - e porque iniciou, segundo seu modelo, uma grande
mobilização textual, foi ela que suscitou a necessidade de
um novo princípio da regulação do discurso, interno a seu
processo de iniciação. É verdade que Montaigne imaginou,
por um momento, que a imprensa se substituiria à Igreja e
à Universidade, para exercer um poder externo de controle:
"Queira Deus, desejava [mas pode-se acreditar nele?] , que
esta sentença fosse afixada à porta das butiques de nossos
Editores, para proibir a entrada de tantos versificadores,
verum/Nil securius est maio Poeta".83 Mas não foi assim, a
repressão não veio dos editores.
O que exige que a escrita se submeta a um controle, e
que um novo sistema substitua aquele que se enfraqueceu
ou se tornou obsoleto? Todo controle não é uma forma de
censura? Talvez não, e a regulação inaugurada pela idade
clássica é mais sutil que a precedente porque exerce uma
censura prévia. Ao texto primeiro e à tradição, enquanto

98
estatutos de instância de controle externo do discurso
- eles agiam pela denúncia, pela repressão, pela exclusão
da heterodoxia -, ela substitui uma regulação integrada
semelhante a uma autocensura, ou melhor, e sem outras
conotações, a uma autogestão pelo sujeito preexistente.
Cabe a ele se controlar, a fim de controlar seu discurso, de
saber conter sua língua, a fim de dominar um discurso. Pois
a fmalidade do controle é justamente a de definir e fazer
respeitar um critério de receptibilidade do texto, segundo
o qual apreciá-lo, julgar se convém ou não acrescentá-lo
ao conjunto já existente. Na idade média o critério era
a sua conformidade com o texto primeiro mantido pela
tradição, era a sua inclusão no texto primeiro que o
continha como uma causa lógica. Quando esse critério
se arruina, devido ao enfraquecimento das noções de
texto primeiro e de tradição, não há outro recurso senão
codificar mais severamente ainda (proibir ou subjugar)
a escrita e a utilização do já dito, o ponto cego sobre o
qual recaiu e recai ainda a arbitragem, ou instituir um
novo modelo de relação entre o sujeito e o objeto, entre o
autor e o livro, modelo que, integrando de algum modo
as condições de receptibilidade do texto, fornecesse por si
mesmo o princípio de sua regulação, como um homeostato.
Malebranche não acreditava muito na primeira solução:
"Há crimes': diz ele, "que os homens não punem [ .. ] Assim,
.

nada leva a crer que os homens erijam, algum dia, um


tribunal para examinar e para condenar todos os livros
que não fazem senão corromper a razão". Isso não é, aliás,
desejável. Enquanto o regime político permanece ainda um
poder monárquico centralizado e repressivo, seria preciso
que as letras fossem uma república livre, na qual cada um
interioriza suas condições de funcionamento:

99
É mesmo muito desejável, a fim de que se possa livrar-se do
erro, que haja mais liberdade na república das letras que em
outras, onde a novidade é sempre muito perigosa, pois seria
confirmar nossos erros, se quiséssemos tirar a liberdade das
pessoas estudiosas e condenar sem discernimento todas as
novidades.84

À censura que trabalha com critérios externos da verdade,


e que Descartes reprovava à escolástica, Malebranche que,
no entanto, não é suspeito de progressismo, prefere um
gerenciamento eficaz da escrita e não lamenta muito
o liberalismo de seu tempo (é bem verdade, mas isso
é uma outra história, que uma censura permanece, no
nível da concessão de privilégios aos editores: Diderot
e os enciclopedistas tiveram essa experiência). Entre a
censura e a técnica (gerenciamento) há a mesma oposição
observada entre Platão, que queria interditar a mimésis, e
Aristóteles, que a subjugava, fazendo dela uma ferramenta
ou um instrumento, de virtudes positivas, das artes retórica
e poética, com a diferença essencial de que a regulação
aristotélica do discurso e da repetição (do discurso porque
da repetição) consistia em exigir um fundamento simbólico
formal, lógico (imanente ao texto e sem referência ao
sujeito) da repetição no enunciado, ao passo que a
regulação clássica atuará na relação de enunciação. Não é
mais a repetição, a gnômé, que deve estar em situação, em
seu lugar numa tópica, mas o sujeito (da enunciação, da
repetição) que deve se situar, tomar posição frente à sua
citação, a seu texto e a todo o já dito. Isso não impede que
os sistemas retórico e clássico de controle tenham algo
em comum - que os separa dos sistemas platônico e
teologal -, constituam-se por si mesmos máquinas de
escrever ou de produzir discurso. O discurso teologal

1 00
se escrevia malgrado o texto primeiro e a tradição, que
ameaçavam sempre indispô-lo ou invalidá-lo. O princípio
de regulação interna, ao contrário, leva a identificar a
própria máquina com seu dispositivo de controle não
porque ele faça sua especificidade histórica, mas porque
detém uma eficácia positiva, porque tem um rendimento
próprio. O princípio de controle é o motor nessa questão;
é uma dinâmica que conduz o texto.
Enquanto a escrita medieval, que fosse lectio ou quaéstio,
remetia os desvios, as diferenças, as contradições ao texto
primeiro - procurava reduzi-los interpretando-os - e se
curvava a um modelo de repetição e de identidade na sua
relação com o texto, o autor da idade clássica é/sensível ao
controle das diferenças. Na escrita, como o dizia Espinosa
a respeito da religião, cada um é dono de si mesmo e não
depende de ninguém. "Pede-se': escreve Michel Foucault,
"que o autor responda pela unidade do texto que se põe
sob seu nome':85 O autor se substitui à auctoritas como
garantia da escrita; ele é cúmplice do texto, coincide com
ele e responde por ele como por todas as suas ações, e não
somente perante Deus. Seu nome na capa testemunha
o engajamento de sua pessoa, único fator comum e
único referente, em última instância, da variedade das
enunciações pelas quais ele se reconhece responsável.
Responsabilidade a pegar ou largar. Pegá-la é assumir a
postura de sujeito, com os riscos que isso comporta, é se
autorizar por si mesmo para a escrita, e não por obediência
a algum ideal do texto. Como diz ainda Foucault: "O
indivíduo que se põe a escrever um texto em cujo horizonte
ronda uma obra possível assume por conta própria a função
de autor:'86 Largá-la é calar-se irremediavelmente. A escrita
só é possível quando um sujeito, livre, a sustenta, ela e suas

1 01
conseqüências. Um livro só traz conseqüências porque se
refere a um sujeito que o fabricou.
Retomando num quadro os traços distintivos dos
três modelos da escrita - medieval (o comentário),
transitório (os Essais), clássico (a crítica) -, a partir dos
dois parâmetros interligados que os determinam - o lugar
do sujeito e o valor da citação - assim como do tipo de
regulação que esses parâmetros instituem, obtém-se o
seguinte:

Mo e o
da escrita Comentário Os Essais Crítica
Valor índice: Emblema: ícone:
da citação Auctoritas � alegação
SI-T2 e/ou
empréstimo -7 "citação"
SI-S2 SI-Az
Lugar do sujeito Ausência Presença/ausência Presença
codificada jogo de codificada
esconde-esconde
Princípio de Externo Nulo Interno
regulação

. Parece ainda que Essais escapam a qualquer sistema


e talvez seja por isso, como observava Pascal, que ele é
tão citado. Não há outra coisa a fazer senão repeti-los.
Montaigne não assume a postura de autor, aquele que fecha
o iexto, que o acaba e o define; os Essais não se subsumem
sob seu nome nem sob a suposta unidade de sua pessoa;
eles não cessam de promover a própria disparidade; são

1 02
acontecimentos fortuitos e dispersos, sem construção
nem elaboração secundária, fragilmente sustentados por
alinhavos: primeiros esboços ou suplementos que põem
o sujeito fora de si e o texto fora dos eixos. Enquadrá-lo,
imobilizá-lo, isso Jogo se fez, e por muito tempo.

1 03
A PERIGRAFIA

A propriedadl;! maior do texto homeostático ou de


regulação interna, e o caráter manifesto pelo qual ele se
reconhece ao primeiro olhar, é sua compacidade, corolário
da unidade e da coesão exigidas dele, sob o domínio de
um autor. O impulso, a grande mobilidade da escrita do
século XVI, exemplares em Montaigne, são doravante
reprimidos. O texto torna-se corpo, recolhe-se, fecha-se
sobre si mesmo, como uma cidade fortificada por Vauban,
sem subúrbio nem arrabalde. É um volume fechado,
circunscrito em limites estáveis que impedem os excessos;
é um espaço em equilíbrio, encerrado em fronteiras rígidas
e instâncias de enunciação bem destacadas.
Sua periferia, o que não está nem dentro nem fora,
compreende toda uma série de elementos que o envolvem,
como a moldura fecha o quadro com um título, com
uma assinatura, com uma dedicatória. São outras tantas
entradas no corpo do livro: elas desenham uma perigrafia,
que o autor deve vigiar e onde ele deve se observar,

1 04
porque é primeiramente nos arredores do texto que
se trama sua receptibilidade. Ele é qualificado por sua
compacidade, por seu fechamento sobre si mesmo, isto
é, também por sua autonomia. Sua aparência é essencial.
Tal como vitrinas de exposição, testemunhos ou amostras,
seus transbordamentos valorizam-no: notas, índices,
bibliografia, mas também prefácio, prólogo, introdução,
conclusão, apêndices, anexos. São as rubricas de uma
dispositio nova que permitem julgar o volume sem o
ter lido, sem ter entrado nele. Se elas estão presentes, se
respeitam as convenções, não é preciso prolongar o exame,
o texto é seguramente receptível.
A perigrafia é uma zona intermediária entre o fora do
texto e o texto. É preciso passar por ela para se chegar ao
texto. Ela escapa, ainda que pouco, à imanência do texto,
não que lhe seja transcendente (não é uma perigrafia
suplementar) , mas segue-o, situa-o no intertexto,'
testemunha o controle que o autor exerce sobre ele. É
uma cenografia que coloca o texto em perspectiva, cujo
centro é o autor.
Assim como imobilizou o emblema errante no ícone,
é ainda a idade clássica que codificou a perigrafia, a partir
de elementos díspares, inventados . ou encontrados pela
imprensa. O texto rodeado de sua perigrafia se opõe ao
texto móvel da tipografia com o qual reveza, amortecendo
o andamento. Ele alinha os desvios. Exibe em sua franja
seus títulos para reconhecimento. Sua função capital, como
a das citações icónicas, é qualificar em relação à biblioteca e
ao já dito. Aparelho instituído, a perigrafia anda junto com
as citações, e seus componentes são, ainda, ícones.

1 05
o INTITU LADO E O TITULAR

A porta de entrada de um livro é seu título, encimado


com o nome do autor, como se fosse um troféu. Esse
dispositivo parece natural, não se imagina um livro de
outra forma. Trata-se, entretanto, de invenção recente. O
título propriamente dito, específico e não-genérico, data
do século XVI.
Na Grécia antiga, não era necessário que uma obra
tivesse um título. Não era atribuído a este senão o valor
flutuante de um acessório destinado ao reconhecimento,
para o qual o incipit servia muito bem, e mais rapidamente.
A função primeira do título é a de referência. Ele evoca
todo um texto por um signo que o compreende, sem que
este seja sobrecarregado de alguma outra propriedade. O
enunciado do título, não como titulador, mas simplesmente
intitulante, corresponde exclusivamente à citação do
texto em sua extensão; é por isso que o incipit, seguido de
reticências, é mais apropriado formalmente, visto que não é
de forma alguma destacado do conjunto, de forma alguma

1 06
periférico; visto que aponta o texto em desenvolvimento,
em processo.
Foi em Roma que um título ligou-se definitivamente
à obra, sem que isso presumisse uma originalidade nem
do título, nem da obra. O título romano particulariza a
obra sem individualizar o autor, ele é um elemento de
classificação. Dois problemas lhe são inerentes: o de sua
produção, uma assinatura, e o de sua reprodução, uma
citação. Historicamente, o segundo se coloca em primeiro
lugar: é a esse problema que responde o título romano,
cujo papel se limita à denotação do texto. Uma maneira
de formação mais sistemática que o incipit se impôs,
segundo duas modalidades funcionais, dedicatória ou
analítica: Cato ou De senectute. Isso significa que o título
não é pensado na sua unicidade e que ele se multiplica em
tantas perífrases denotativas quantas são as funções que
deve cumprir.
Os diálogos de Platão, tais como foram batizados pela
tradição, possuem dois títulos, ou um título e um subtítulo:
Gorgias ou Sur la Rhétorique, Réfutatif(Gorgias ou Sobre a
Retórica, Refutatório). Todos os dois denotam o texto, mas
com sentidos diferentes, o segundo significando seu objeto.
Um título, quando é solitário, suporta estes dois aspectos,
denotação e sentido, Bedeutung und Sinn ele é um nome
próprio puro, cuja denotação é um objeto determinado, o
texto ou o livro.
A ambivalência do título - ele denota e tem um sentido
- corresponde às duas ordens de questões que ele coloca:
uma que concerne à técnica de sua reprodução, outra à
lógica de sua produção, as duas sendo ligadas, inconcebíveis
uma sem a outra, como o sentido e a denotação. Por não

1 07
as ter resolvido, os cânones medievais estão cheios de
erros. Acontece freqüentemente de um mesmo texto ser
listado várias vezes na bibliografia de um autor, sob títulos
diferentes: Gorgias ou Sur la Rhétorique, Réfutatif.
O ponto técnico é relativo à inserção do título no texto
que o cita, mas revela logo uma opção lógica. Em latim,
o título se declinava, o que confirma o primado de seu
valor funcional. Aulu-Gelle, diz-se, foi um dos primeiros
a objetivá-Io, recorrendo a inserções que lhe permitiam
justapô-lo a seu próprio discurso sem o decompor: Cicero
in libro, quem ou eumque... conscripsit ou conscripsit, dicit...
Cícero não é mais o autor de Cato ou De senectute, mas
do mesmo objeto denotado por esses dois signos, do texto
assim intitulado. Trata-se de uma modificação de porte,
que antecipa a tipografia. Ela considera o título uma
categoria ou uma entidade discursiva própria, que não se
identifica inteiramente com o texto, é uma inscrição em
acréscimo, um intitulado relativamente autônomo, que
convém tratar como um objeto, uma espécie de fetiche, que
não tem mais nada a ver com o incipit. E o próprio título
da obra de Aulu-Gelle, que não tem a menor relação com
seu objeto, ilustra a mesma diferença na concepção.
Essa transformação relaciona-se, sem dúvida, com o
desenvolvimento da cópia, cujas oficinas atingiram, nos
primeiros séculos do cristianismo, dimensões industriais.
A imprensa renovará, de maneira ainda mais aguda, a
mesma interrogação sobre a natureza do título e do livro.
Ela coloca de uma só vez em circulação uma multidão
de. exemplares idênticos (o que nunca foi o caso dos
manuscritos) do mesmo texto. Além disso, ela torna
obsoleto o modelo de um processo linear e contínuo na
produção dos manuscritos, um originando o outro e assim

1 08
por diante. As cópias unem-se em uma corrente, mas os
volumes impressos se dispersarão imediatamente, como
uma árvore cortada da raiz, da origem, do manuscrito,
cujos traços eles não conservam mais. Qual é então o
livro, o objeto único que o título denotaria? Seria um
exemplar, não importa qual, o conjunto dos exemplares,
ou outra coisa da qual eles todos participariam pela sua
identidade, e apesar de sua disseminação? O referente do
título funcional, "intitulante", era o texto original, no início
da cadeia das cópias. Mas se a cadeia se quebra, qual será
o referente do título?
Montaigne se questionava sobre isso, e a variedade
de seus títulos testemunha suas hesitações. Os títulos de
seus capítulos são díspares, exceto no livro III, seguindo
à maneira antiga ("De .. :' ou "Sobre .. :') ou com o auxílio
de sentenças ("Que filosofar é aprender a morrer", I, 20);
eles são ou simbólicos (analíticos, neutros e impessoais), .
portanto inadequados à matéria, ou, sem dúvida,
emblemáticos (artificiais, arbitrários, mas fundamentados).
O título do livro de Montaigne lhe é totalmente pessoal e
não depende de nenhum gênero, de nenhuma tradição, ele
designa um método e não um objeto.
É que a tipografia rejeita o intitulado simbólico
(analítico) ou indiciaI (dedicatória, epônimo). Quando
o livro é por natureza múltiplo, serial, sua identidade ou
sua individualidade se desloca e se reduz: ela se cristaliza
em sua perigrafia. O nome do autor e o título são o
denominador comum de todos os exemplares idênticos
espalhados pelo mundo. O referente do título não é mais
o objeto que, como leitor, eu detenho, pois esse objeto na
sua materialidade não é mais pensável como transformação
de uma genealogia ou de uma linhagem que eu poderia

1 09
percorrer recuando até sua origem; o referente é aquilo
onde se subsumem todos os objetos semelhantes; não a
idéia do texto nem um modelo ou uma origem mítica,
mas sua enunciação, representada pela perigrafia, pelo
autor. O autor é o denotatum da perigrafia, do título e da
citação, na medida em que estes têm valor prioritário de
signos icÔnicos. Muitos títulos, aliás, são citações. O título
intitula menos o texto que titula o autor: Aristóteles é autor
titulado do Organon, como se é fornecedor da corte.
Tal era a lebre que levantava Ramus, contestando que
Aristóteles tenha sido o autor de seus livros titulados,
como Georges IV perguntava se Scott era o autor de
Waverley, isto é, se um único homem escreveu Waverley
e se Scott era esse homem.87 Mas o importante aqui é
menos saber se "Scott" e "o autor de Waverley" têm o
mesmo denotatum com sentidos diferentes (ou Aristóteles
e seus livros titulados), que admitir (logicamente) e aceitar
(moralmente) - recrimina-se Montaigne por não tê-lo
feito - que Waverley denote doravante Scott, e Essais,
Montaigne. Não é senão, na medida em que é reconhecido,
que o título denota o autor, que Ramus e Georges IV podem
colocar seus enigmas, e Proust utilizar-se da perífrase
denotativa de forma tão natural e trivial:

o autor de Le Détour (O Desvio) e de Le Marche (O


Mercado) - isto é, M. Henri Bernstein - acaba de
fazer representar pelos atores do Gymnase um drama,
ou melhor, uma mistura de tragédia e de vaudeville, que
não é talvez seu Athalie ou seu Andromaque, seu I.:Amour
Veille (O Amor Vigilante) ou seu Les Sentiers de la Vertu
(As Veredas da Virtude), mas ainda é alguma coisa como
seu Nicomede.88

1 10
o título intitulante e o título titulador distinguem-se,
pois, pelo seu referente: o texto para aquele, o autor para
este, e desde a idade clássica. É por isso que a congruência
entre o título e a matéria, que atormentava Montaigne,
não tem mais uma tal importância. O nome do autor e o
título, na capa do livro, procuram antes situar este último
no espaç'Ü social da leitura, colocá-lo corretamente numa
tipologia dos leitores, porque meu primeiro contato com
um livro passa por esses dois signos. Eles são também, por
isso, o lugar privilegiado de um investimento fantasmático:
sonhar em escrever livros (ou com livros a escrever) é
inicialmente sonhar com títulos. Eu me suportaria, me
amaria, me veria bem como "o autor de .. :: nesse ícone
que circularia com meu rosto? Donde ainda, se se passa
ao ato - mas isso não é necessário -, a proliferação das
rubricas que satisfazem pequenos prazeres narcÍsicos.
Valéry falava dos autores sem livros, os de todas as obras­
primas desconhecidas: seriam os sonhadores de títulos,
aqueles cujos livros não vão mais longe. Mas se o título é
o que titula, eles não teriam outro autor que não fosse o
título. E precisa mais?

1 11
r
!
!

A BI (BLI)OGRAFIA

Quando me cai nas mãos um livro cujo título me


agradou, mas sobre o qual ignoro tudo, não é o índice
nem o adenda que consulto primeiro. Não me interesso
pelo texto em si mesmo, nem pelo seu resumo, nem pela
sua organização. É por isso que raramente abro uma
página ao acaso. Gostaria de saber se o livro seria capaz
de me agradar, se não cairia logo de minhas mãos, se
simplesmente o leria. Observo o c1ichê de má qualidade
que se encontra, às vezes, na capa; leio a biografia do autor:
"Nascido em... , a... Após os estudos secundários .. :' Mas é
só excepcionalmente que entre esses elementos encontro
alguma coisa que me incite à leitura, isto é, alguma coisa
na qual me reconheça. Mais que a fotografia, mais que a
biografia, é a bibliografia que me informa e que é capaz de
despertar meu desejo. Percorro-a como um atlas geográfico
ou um prospecto de agência de viagem, atento ao eco que
faz vibrar em mim o nome de um lugar por onde passei.
Será a ocasião de uma reminiscência (lemos sempre
com nossas lembranças; cada livro desloca-as um pouco,

1 12
acrescenta novas outras: elas são necessárias para aí nos
reconhecermos, constituem a nossa competência de leitor).
A bibliografia que me faz sentir em território conhecido é a
promessa de um reencontro, e entro por completo no livro,
como em minha casa, a fim de confirmar a intuição de
uma intimidade. Leitor ingênuo, avalio meu lugar no texto,
o conforto e o prazer que ele me reserva, pela afinidade
que experimento com sua paisagem anunciada. Se ela não
esboça a minha, sei que o livro me será inacessível ou que
me exigiria esforço demais, abandono-o, sem me aventurar
em terra incógnita. Mais que qualquer exórdio ou captatio
benevolentiae, a bibliografia me prende quando encontro
meu lugar junto ao autor: temos as mesmas leituras,
pertencemos ao mesmo mundo.
Ora, o que é uma bibliografia senão o modelo de
uma autobiografia, um scrap-book, uma coletânea de
lembranças, um bilhete de trem, tíquetes de museu,
programas de espetáculo, cartões de convite, flores secas:
inventário dos ícones do autor. Não quero mais nada: suas
glosas sobre si mesmo e sobre o mundo me entediam.
E como se confecciona uma bibliografia? Ela é o
catálogo dos textos lidos pelo autor enquanto o projeto
atual de escrita o cond�z, logo, necessariamente limitada e
incompleta. Até onde ir na recensão de suas leituras? Deve­
se acrescentar os jornais, os romances policiais? Como
distinguir aquilo que foi útil, aquilo que surgiu ao acaso? E
por que não os filmes? E as conversas? E as velhas leituras, as
da infância, que me fazem ainda sonhar? Uma bibliografia
verídica, sincera e exaustiva é tão impossível quanto uma
confissão verdadeira. Há na bibliografia um problema
patente que leva o autor a precauções quando a qualifica
de "sumárià: como se se desculpasse da falta de alguma

113
coisa. Seria necessário interrompê-la, como à confissão
de seus pecados, pela invocação de uma circunstância
atenuante para o esquecimento, e esquece-se aquilo que
se quer. É por isso que o mais simples, para resolver o
problema, e oferecer, mesmo assim, um repertório ao leitor
potencial, é seduzi-lo com uma "lista de obras citadas"; e é
nisso que consiste, muitas vezes, a bibliografia, declarada
ou não como tal. Então, tudo se torna simples: citações
e bibliografia se remetem mutuamente: as primeiras
atestam que a outra foi realmente percorrida; e a segunda
mostra que, afinal, foi composta como um inventário da
primeira.

1 14
DIAGRAMA OU IMAGEM

/ A identificação do caráter citacional da bibliografia


permite precisar o que é o valor icônico de uma citação
e da perigrafia em geral. Peirce distinguia, com efeito,
duas espécies de ícone, a imagem e o diagrama, segundo
o representamen imita propriedades elementares do objeto,
ou reproduz relações entre elementos do objeto. Assim,
uma fotografia é uma imagem; um plano, um desenho
é um diagrama. Seria igualmente o valor dominante da
bibliografia, levantamento topográfico das excursões
do autor. Uma citação diagramática expõe no texto
um indicativo para a homologação do autor, para o
reconhecimento do (pelo) leitor. Seu valor consiste em
mostrar, em atender, em interpretar o autor, a partir da sua
posição central mas relegada à perigrafia, único lugar em
que ela é admitida. Na relação icônica SI-A2, a dominante
diagramática reside na relação TI-A2, entre o texto citado
e o autor citante, cada citação diagramática abrindo uma
perspectiva parcial sobre o autor como um aglomerado
de figuras.

1 15
f-

Quanto à relação AI-A2, entre o autor citado e o


autor citante, ela guarda sobretudo um valor de imagem;
não exibe uma similitude de configuração entre SI e
A2 , mas uma" proporcionalidade de qualidade; ela se dá
imediatamente como global. A relação de oposição entre o
diagrama e a imagem é do mesmo tipo, pois, da relação que
aquele que pede emprestado mantém seja com o objeto da
troca, seja com quem lhe empresta um objeto. Tal distinção,
por mais arbitrária que seja, impõe-se, entretanto, a fim de
dar conta dos efeitos de sentido claramente diferenciados
da citação icônica, segundo a prevalência da relação AI-A2
ou TI-A2.
Entendidas como agregadas, as relações TI-A2 - a
questão das fontes ou das referências de um autor é um de
seus aspectos - compõem um panorama, uma rede, um
tecido de referências e cruzamentos: é um diagrama, ou
seja, a mesma relação mantida entre Robinson Crusoé em
sua ilha e as terras submetidas a uma regra que reproduz a
ordem capitalista. Índice é a pegada dos pés de Robinson
impressél no chão, mas ícones e diagramas são os campos
de milho, a barca e todos os signos cujo objeto é o próprio
Robinson, signos que reproduzem as relações elementares
que compõem e constituem Robinson. A conquista
topográfica da ilha, seu mapeamento é re-produção,
re-inscrição, re-escrita, re-petição de princípio, como a
bibliografia é diagrama do autor, e o índice (o quadro de
Ramus), diagrama da obra.
Quanto à imagem, valor de repetição da relação AI-A2,
ela é inteira, sem que seja necessário reuriir todas para se ter
tim retrato do autor. Quer dizer que ela é identificatória e
que traz infalivelmente a contrapartida do reconhecimento,
que é a dívida. Será, por exemplo, uma piscadela cúmplice
ou um cumprimento a um colega, a um amigo, uma

1 1 6
fórmula de polidez lembrando que há convivência entre
nós; ou, mais seriamente, a reivindicação de uma filiação e
um pedido de reconhecimento: "Sou feito à sua imagem:'
Estes volumes que recolhem toda uma série de artigos,
"Reunidos em homenagem a AI", produzem também
imagens. Aqui, a relação AI-A2 pode ser distendida (não
é exigido que A2 trate exclusivamente de AI, que não é
mais um exemplum ou uma auctoritas a ser elogiada);
convém, entretanto, que a relação seja postulada como
tal, ainda que na forma de um epitáfio, que testemunha
uma fidelidade.
Imagem e diagrama se diferenciam segundo o modelo
da relação que exibem entre o representamen e o objeto,
partilha de uma propriedade ou similitude de uma
relação. Parece que o par formado por eles é isomorfo
ao da analogia e da homologia. Os relata da imagem são
análogos ou proporcionais, imitativos; logo, a imagem
dá a ilusão de uma relação genérica ou genealógica,
natural, ela aspira a uma naturalidade secundária do signo
(uma segunda natureza), como o emblema. Os relata do
diagrama são, ao contrário, homólogos, ou similares,
homotéticos; a homologia não funda uma filiação ou uma
legitimidade inata, mas o reconhecimento contratual de
uma similaridade factual e adquirida.

1 1 7
NA FACHADA

Uma fotografia é um exemplo, o próprio exemplo


da imagem: é um ícone porque está em relação de
similaridade factual com seu objeto; e é uma imagem
porque compartilha com esse objeto as qualidades que lhe
são próprias. A fotografia que figura, às vezes, na sobrecapa
do livro tem sua origem em retratos-miniatura do autor,
estampas ou gravuras, que, desde o início da imprensa,
apareceram no frontispício do volume, antes da página
do título ou face a ela, como na fachada de um edifício ou
na vitrina de uma butique. O frontispício (nome, título,
retrato etc.) substituiu, no século XVI, o colofão (excipit
e suscriptio, trazendo o nome do copista), como ficha de
identidade do livro.
Por que associar e colocar um diante do outro, uma
imagem do autor e o texto, senão para sublinhar sua relação,
não mais de congruência ideal, como entre Montaigne e
os Essais, mas de dependência e de sujeição? O homem
em carne e osso, ou melhor, em filigrana, sustenta o livro,

1 18
suporta-o e a ele se submete: "Isto sou eu, isto é meu': diz
de algum modo o frontispício.
Toda citação, de maneira análoga, é também uma
imagem: um instantâneo, um ponto de vista sobre o sujeito
da enunciação, uma cópia ao natural. É uma visão do autor
e um detalhe de sua biografia. A constelação das citações
compõe um quadro que eqüivale ao frontispício.
A imagem, seu nome o indica, é mais imaginária (mais
complacente, mais narcisista, mais alienada) e o diagrama,
mais simbólico (mais instituído, mais sedutor, mais
interrogador). Se se quisesse organizar os quatro grandes
valores de repetição da citação, do mais imaginário ao mais
simbólico, sua ordem seria esta: a imagem, o diagrama,
o índice e, finalmente, o símbolo (colocando-se à parte
o emblema, inteiramente imaginário). Então, a imagem,
a fotografia mas também a epígrafe ou o título, todo o
frontispício seria, na leitura, insubstituível. Ela é inteira,
uma única peça a pegar ou largar - é preciso aceitá-la
como tal, ou rejeitá-la toda -, ao passo que o diagrama, a
bibliografia ou o índice permitiriam mais liberdade, mais
jogo e mais autonomia. Não é necessário que o diagrama
seja objeto de uma crença ou de um amor louco, porque
ele busca mais deleitar que se deleitar.

1 19
o POSTO AVANÇADO

A epígrafe é a citação por excelência, a quintessência


da citação, a que está gravada na pedra para a eternidade,
no frontão dos arcos do triunfo ou no pedestal das
estátuas. (Imitando as epígrafes latinas é que os tipógrafos
desenharam o caráter romano.) Na borda do livro, a epígrafe
é um sinal de valor complexo. É um símbolo (relação do
texto com um outro texto, relação lógica, homológica),
um índice (relação do texto com um autor antigo, que
desempenha o papel de protetor, é a figura do doador,
no canto do quadro). Mas ela é, sobretudo, um ícone,
no sentido de uma entrada privilegiada na enunciação.
É um diagrama, dada a sua simetria com a bibliografia
de que é precursora (um índice e uma imagem). Porém,
mais ainda, ela é uma imagem, uma insígnia ou uma
decoração ostensiva no peito do autor. E, sem dúvida, em
nenhum outro lugar está tão a descoberto quanto nesse
posto avançado do livro, onde nada em volta a protege. A
epígrafe é ainda uma condensação do prefácio cuja fórmula
foi definitivamente dada por Descartes. O autor mostra as

1 20
cartas. Sozinha no meio da página, a epígrafe representa o
livro - apresenta-se como seu senso ou seu contrasenso -,
infere-o, resume-o. Mas, antes de tudo, ela é um grito, uma
palavra inicial, um limpar de garganta antes de começar
realmente a falar, um prelúdio ou uma confissão de fé: eis
aqui a única proposição que manterei como premissa, não
preciso de mais nada para me lançar. Base sobre a qual
repousa o livro, a epígrafe é uma extremidade, uma rampa,
um trampolim, no extremo oposto do primeiro texto,
plataforma sobre a qual o comentário ergue seus pilares.
Tão decisiva, tão solene, tão exorbitante é sua tarefa
que a epígrafe torna-se, muitas vezes, objeto de uma
deturpação que a parodia ou deixa ambíguo o caminho
para sua compreensão, para se avaliar sua distância
em relação ao texto, ou melhor, à sua enunciação. No
mesmo nível da enunciação (debruçada sobre o texto),
no "primeiro degrau': a epígrafe seria sempre ingênua,
impudica, verdadeira demais, simplesmente tola, porque
a tolice se instala sempre na identificação entre os sujeitos
da enunciação e os do enunciado. Ter medo da tolice,
de passar por tolo, é temer estar compro missado com
uma palavra única; é preciso se defender, graduando as
instâncias da enunciação: "Não me faça dizer o que eu não
disse': ou seja, "o que eu não quis dizer': A fim de evitar uma
eventual identificação entre ele mesmo e a epígrafe, o autor
renega-a, demitindo-a de seu posto: ela não se cola mais
à própria pele, flutua, parece deslocada, inconveniente.
Mas todo esse jogo não faz mais que confirmar sua função
principal, a de tatuagem.
Flaubert fez preceder o Dictionnaire des Idées Reçues
(Dicionário dos Lugares-Comuns) de duas citações:

121
Vox populi, vox Dei.
Sabedoria das nações.
Pode-se apostar que toda idéia pública, toda convenção
dada é uma tolice, porque foi conveniente ao maior
número.
Chamfoit, Maximes (Máximas).

Seus valores intrigam porque parecem contraditórios.


A primeira citação toma como postulado fundamental
a exegese bíblica: a voz, a palavra divina, a verdade da
origem foram transmitidas pelos profetas e estão contidas
na escritura. Mas se a voz do povo é (aposto, cópula) a voz
de Deus, escutá-la é também ter acesso à verdade. Essa
proposição é uma locução proferida pela sabedoria das
nações que, como as páginas rosas do Petit Larousse, falam
latim. Ora, "Sabedoria das nações" poderia ser outra coisa
além do sujeito lógico da citação, vox populi? A sabedoria
é privilégio dos deuses: o Logos divino era Sophia, ao
passo que os homens, como dizia Sócrates, no Pedro, só
tiveram com a sabedoria uma relação de amizade. Se a
voz do povo é a voz de Deus, ela é sabedoria. Assim, essa
primeira citação é uma tautologia, pois palavra e autor aí se
confundem: a voz do povo é voz de Deus, logo sabedoria;
ou a voz do povo é sabedoria, logo voz de Deus. Tudo isso
se eqüivale e não revela nada mais que seu único referente:
(�Sabedoria das nações':
Mas a segunda citação acrescenta um predicado diferente
à voz do povo: a tolice; segundo Chamfort, predicado não
menos desencarnado e impessoal - enquanto expressão
de máximas, ou seja, de epígrafes - que a sabedoria das
nações. O conjunto se arma assim na seguinte equação:

1 22
Vox populi = Vox Dei = Sabedoria = Tolice

Deus é um tolo, seria a única conclusão lógica que


suprimiria a contradição.
E Flaubert? Ele escapole sutilmente, anulando ao
mesmo tempo o povo, Deus, a sabedoria e a tolice. Ele é
inatacável. Fazendo o jogo da epígrafe, dá sua alfinetada.

1 23
o FOSSO ASSEPTIZANTE

Assim como uma cidade (mais urbana que celeste: uma


pessoa moral), o texto é cercado por todos os lados. Ao
pé da muralha, U-!ll fosso reduplica e acentua a fronteira;
ele é sinalizado com postes e marcos; barreiras policiais
vigiam as entradas: são as referências exibidas, as notas
de rodapé - joot-notes, em inglês. A todo instante elas
trazem à lembrança aquilo sobre o que o texto se apóia,
muletas ou estacas, aduelas: o texto é uma ponte lançada
no vazio, do que tem horror; ele teme a queda. Entre seus
pilares, que são a epígrafe e a bibliografia, ele se apóia
com todas as suas forças (Montaigne falava da linguagem
boute-dehors, isto é, sem sustentação), graças a uma série
de relês contínuos, a uma rede de nós ou de juntas que o
tornam impermeável; sem notas, ele seria inundado: sua
substância, sua propriedade escapariam.
Ainda não é tudo. Se as notas são essencialmente
peças de defesa (referências eruditas, acertos de conta,
demarcações sutis, denegações acessórias, recuos

1 24
encobertos), elas têm também um papel estético: livram
o texto de suas sobrecargas. Pequeno corpo compacto, em
caixa baixa, lançam à fossa comum os autores mortos e os
vivos que elas executam ao citá-los. O texto se enraíza num
ossuário, e o desinfeta com epitáfios.
A evocação da nota e a nota de pé de página bastam
para estabelecer vários níveis de linguagem, ou melhor,
constatam a necessária hierarquia entre os sujeitos da
enunciação, tornando-a manifesta, tangível, material: o
texto excede suas notas (o que significa que as domina);
em relação a estas, o texto é uma metalinguagem, ou,
etimologicamente, um epílogo. Se, de um lado, a citação e
-sua referência são logicamente eqüivalentes, substituíveis,
pois (elas têm a mesma denotação, quando não o mesmo
sentido), por outro, o simples fato de imprimir as duas e
ainda mais em lugares e dimensões diferentes, no corpo
ou no pé de página, em caráter grande ou pequeno,
perverte a lógica (a própria citação seria denotada por suas,
referências) e engaja uma moral. Onde quer que apareça
uma citação, substituí-la por suas referências não alteraria
em nada o valor de verdade do texto que a contém. Não
há nenhum motivo lógico para se inserir num texto a
palavra de uma citação, mais que suas referências, nem para
relegar estas últimas ao pé de página. A situação inversa
não seria nem mais nem menos insensata. Assim também,
da equivalência entre a citação e sua referência, deduz-se
que um texto pode muito bem, de um ponto de vista
i estritamente lógico, é claro, deixar de oferecer referências
de suas citações, referências que não acrescentam nada, ao
contrário, quanto à verdade do enunciado.
Ora, a nota de pé de página, tautológica, logicamente
redundante e supérflua, é uma tal exigência do discurso,

1 25
n

que subtrair-se a seu ritual significa uma transgressão


inadmissível, na maior parte das instituições da escrita,
como se isso ameaçasse seus princípios. A ausência de
notas e de referências é insustentável numa tese, num
livro ou mesmo num jornal;89 ela é inconciliável com a
pretensão de um reconhecimento social, pois o direito ao
reconhecimento consiste em saber exatamente qual a sua
parte na escrita, em reconhecer, ele mesmo, sua dívida.
A nota pleonástica se impõe, pois, não por razões
lógicas, mas éticas, ideológicas. O julgamento de uma
citação, contrariamente ao julgamento de uma proposição
inédita, não recai sobre seu sentido nem sobre seu valor de
verdade, mas sobre sua autenticidade. É authenticus aquilo
cuja proveniência é incontestável, mas também aquele que
age por si mesmo, aquele que se dá a morte. O denotatum
de uma citação não é um valor de verdade (a qualidade
de um enunciado, ser verdadeiro ou não-verdadeiro),
mas uma prova de fidelidade, de veracidade, de exatidão,
de sinceridade (a qualidade de uma enunciação, de uma
repetição, ser autêntica ou controvertida, fidedigna ou
apócrifa): valores que não dizem respeito à lógica, são
muito mais virtudes de um sujeito. A citação, prova de
sua referência ao apoio, autentica um indivíduo pela sua
enunciação, consagra-o como autor. O autor só é tal,
só é autêntico, se as citações que faz são, elas também,
autênticas, e isso explica porque a nota é uma peça tão
importante na instituição da escrita.
Montaigne omitia a nota, não indicava as referências
de suas citações, alegações ou empréstimos. E é preciso
se perguntar se não havia ali muito mais rigor quanto ao
sentido. Sem nota, o julgamento não se desvia da verdade
(do enunciado) para a autenticidade (da enunciação). Ele

1 26
atua sobre o sentido e sobre a verdade, tanto do enunciado
quanto da enunciação. Donde o elogio que faz Montaigne
da maquiagem.
A nota pertence à perigrafia duplamente: o desfile das
notas une a epígrafe à bibliografia, cada nota particular
concerne ao autor na sua totalidade, na sua integridade.
A própria perigrafia, cada citação acompanhada de sua
referência, prova um controle da escrita: a nota, a perigrafia
designam o autor na sua autenticidade, o que faz dele um
autor, agente da regulação, regulador da escrita. O próprio
autor é, em última instância, o denotatum da citação, da
nota e da perigrafia. E - é necessário datar? - foi no
século XVII que a palavra "notà' surgiu para substituir
"escólid' ou "apostilà: uma adição ou uma observação
feita na margem. A nota não supõe, não permite nenhum
retorno, nenhum remorso, nenhuma repetição: com ela,
tudo está dito. Ela proíbe o recurso: é o selo ou o carimbo
que garante a autenticidade do texto, seu acabamento; é
a assinatura do autor que controla o título - o seu, o do
livro.

1 27
o COMEÇO DO LIVRO E O FIM DA ESCRITA

Hegel abria assim o prefácio da Fenomenologia do


Espírito:

No prefácio que precede sua obra, um autor explica habitual­


mente o fim a que se propõe, a ocasião que o levou a escrever e
as relações que, em sua opinião, a obra mantém com os tratados
precedentes ou contemporâneos sobre o mesmo assunto.90

Em seguida condenava esse uso, que julgava inadequado à


pesquisa filosófica e sem valor como modo de exposição da
verdade: a declaração de intenção é apenas uma verificação
empírica, uma confirmação ilusória. Entretanto, ao
reprovar assim o gênero introdutório, Hegel prefaciava
seu livro. Como fugir disso?
Segundo a retórica antiga, o discurso se abria
canonicamente, dirigindo-se de maneira concisa ao leitor
ou ao ouvinte, a captatio benevolentiae, afirmando, assim,
seu propósito, ou seja, colocar o outro em condições
favoráveis, torná-lo indulgente (Quintiliano acrescentava:

1 28
atento e dócil). A captatio benevolentiae agia entre dois
agentes (dois lugares estruturais em relação ao discurso); ela
distribuía os papéis antes que os sujeitos desaparecessem.
As epístolas dedicatórias da idade média e do início da
imprensa tinham função análoga: definiam uma situação
(afetiva, institucional) de escrita e de leitura.
Nada de semelhante hoje em dia. Não quer dizer que
não se deva mais esperar benevolência, mas o modo
de incitá-la mudou. Descartes fixa a forma e o valor
(clássicos, duráveis, do prefácio, a que Hegel contestava,
depois de Voltaire que afirmava: "O seu livro deve falar
por si mesmo, se ele chegar a ser lido pela multidão:'91
Diferentemente da captatio benevolentiae ou da epístola
dedicatória, que asseguravam uma ligação imediata
entre dois agentes, sem interferir no discurso posterior,
o prefácio cartesiano supõe a existência do texto. O texto
intervém a priori nas relações que têm como cena o próprio
texto, antecipando-as. Numa carta ao abade Picot, tradutor
dos Principes de la Philosophie (Princípios da Filosofia),
em francês, Descartes julga - porque o título da obra lhe
parece suscetível de desencorajar os leitores - que "seria
bom ajuntar-lhe um prefácio que declarasse aos leitores o
assunto do livro, o projeto que teve o autor ao escrevê-lo e
que utilidade se pode esperar dele".92 Cabe ao abade Picot,
tradutor, intérprete, acrescentar esses esclarecimentos,
"embora, escreve Descartes, fosse eu que devesse escrever
esse prefácio, porque devo saber essas coisas mais que
ninguém':93 Mas ele pretende indicar, em sua carta, apenas
alguns pontos que seriam pertinentes num prefácio. "Deixo
a seu critério apresentar ao público a parte que julgar
conveniente:'94 Ora, é a própria carta, e toda ela, que será
publicada à frente dos Principes de la Philosophie: "Carta

1 29
do autor ao tradutor do livro e que pode servir de prefácio:'
Por uma série de razões, essa carta é o modelo do gênero
introdutório e, ao mesmo tempo, certidão de nascimento
do prefácio moderno:95
- Entre o título e o texto, o prefácio se define pela
relação que estabelece entre o título "desencorajador" e o
"assunto do livro': mais atraente, espera-se. O prefácio não
é, senão secundariamente, uma relação entre o autor e o
texto (o "projeto") ou entre o leitor e o texto (a "utilidade'),
jamais entre o leitor e o autor, separados pelo livro que
já está ali. É como se o prefácio atenuasse esse divórcio
irremediável, confirmando, ao mesmo tempo, a exclusão
dos sujeitos prescrita pelo volume impresso. Que a primeira
função do prefácio seja unir dois objetos (o título e o texto),
e não mais dois sujeitos (duas posições diante de um
objeto virtual), isso se deve evidentemente à objetivação
do volume e do título, que evoluiu com a imprensa, e à
representação dos sujeitos na perigrafia. Quando o título
da obra é simplesmente Commentatio, Quaestio, Summa ou
Dialectica, entre ele e o texto uma ponte se faz necessária,
e o leitor caminhará por ela.
- O prefácio não se dirige a qualquer leitor (ao leitor
"inocente"); ou melhor, se ele cai em suas mãos, é para
renegá-lo - não o convida, não o solicita -, através de uma
deturpação que divulga ao público uma carta destinada a
um único leitor, singular e avisado, que já leu o livro (até
mesmo o traduziu; ele não é nada inocente). Sua leitura
foi uma produção ou uma realização, isto é, uma leitura
modelo. Todo prefácio supõe assim um leitor modelo ou
um tradutor fictício; esse é um traço característico da cena
imaginária do prefácio: escrevo-o para alguém que já me
leu atentamente (e compreendeu-me).

1 30
o prefácio propõe um método de leitura (e não uma
atração para o leitor): "uma palavra de advertência quanto
à maneira de ler este livro:96 percorrê-lo uma vez, primeiro
como um romance, sem se deter nas dificuldades, a fim de
saber, de modo geral, de que assunto se trata, retomá-lo
uma segunda, uma terceira vez, para reduzir as passagens
difíceis, para compreender a seqüência das razões. A
finalidade da primeira leitura é reconhecer, a das seguintes,
a de compreender.
O prefácio é escrito no condicional: eis o que eu
gostaria de dizer, anuncia Descartes, se chegasse a redigir
um prefácio; mas "não posso obter nada de mim mesmo a
não ser que deixarei aqui um resumo dos principais pontos
que me parecem dever ser tratados':97 É esse resumo, esse
rascunho, esse esboço ou esse simulacro de prefácio, esse
prefácio que não é prefácio, que fará o papel de prefácio.
Descartes não explica as razões de seu fracasso: trata-se de
uma lei do gênero. "À. guisa de conclusão': assim terminam
tantos textos, segundo uma fórmula banal. Ou seja, apesar
das aparências, isso não é uma conclusão, não é possível
pôr um termo, um ponto final, deve-se continuar. ''A guisa
de prefácio": esta é a fórmula de Descartes "que pode servir
aqui': se for o caso, como provavelmente qualquer outra.
Mas isso é evidente. O condicional é inerente ao gênero,
pois o único verdadeiro prefácio, do qual derivam todos
os outros, seria a reescrita do livro. O prefácio, segundo
os termos de Descartes, é um gênero impossível. Isso diz
respeito à sua última característica, capital.
O prefácio é retrospectivo. É por isso que,
intercedendo pelo título, antecipa o livro; é por isso
que se dirige a um leitor imaginário que já o leu; é por
isso que propõe um método de leitura e se escreve no

1 31
--

condicional. O condicional de Descartes é ambíguo: eis


o que gostaria de dizer, num verdadeiro prefácio, ou no
livro; eis o que não tenho certeza de ter dito ou de ter feito
compreender; eis o que diria, se pudesse refazer o livro.
Mas o livro está terminado, 'apesar das conclusões em
suspenso, e é impossível "ajuntar-lhe" alguma coisa, senão
um prefácio. Curioso acréscimo que precede! O prefácio
substitui a apostila e a glosa medievais, ou o "emblema
supernumerário" de Montaigne: enquanto introdução, ele
é exatamente o contrário de um acréscimo e o interdita.
É paradoxal que o prefácio, que se lê primeiro quando
se abre um livro, e que fala por antecedência, tenha sido
escrito, sempre, talvez, por último, como um da capo que
vibraria primeiro, um eco mais vivo que o som. Estranho
destino do livro: ele avança, afinal de contas, pelo começo,
inverte o sentido do caminho; assim os prefácios das edições
sucessivas. Por que manter o paradoxo? Por que tentar o
impossível? É que, apesar de tudo, é preciso terminar. Mais
que a conclusão, o prefácio é um acabamento (não uma
finalidade) da escrita, é um buril. Ele é a última palavra e
a seguinte, um traço recorrente. Desenlace de uma história
e liberação de um fantasma, ambos da escrita, ele marca a
entrada do livro em um universo diferente, o da alienação,
da publícação, da circulação: ele é despossessão, luto,
separação. Enfim, o prefácio é a prova de realidade do livro,
uma prova ilusória - não escrevo senão um simulacro de
prefácio - mas suficiente.
É porque ele é tudo isso que o prefácio representa
um momento necessário e inevitável da escrita (um
acontecimento histórico: só o prefácio do livro pode
ser datado e localizado: a morte ) . A morte, "dita
antecipadamente': é o gesto grave pelo qual consinto em

1 32
morrer. Eu me dou a morte na primeira página, está findo
o sujeito que fui, enquanto escrevi isso que você vai ler.
a benefício é imenso. Executando-me, anulo o tempo da
escrita; imobilizo-o ou reverto-o, fechando o livro sobre si
mesmo, uma vez que ele começa pelo fim. Não pode deixar
de haver prefácio, nem que seja sua crítica (a de Hegel) ou
sua paródia, nem que seja um prefácio de uso particular
(o de Descartes), um prefácio para mim. É necessário
haver um, porque é necessário dar um fim à escrita, um
fim acidental ou conjuntural, e não essencial ou estrutural.
Esse fim sem transcendências é sempre simulado, esse
encerramento é o prefácio.
A última palavra colocada no início é também uma
consolação, uma revanche (o melhor que guardo para o
fim): ela compensa a primeira que foi tão penosa. Faltou-me
a primeira palavra, mas terei a última: ela pontifica em
lugar soberano, porque decide o destino. É por isso que,
apesar do luto que ela carrega, há um júbilo do prefácio,
como numa pirueta que me repõe os pés na terra: faço uma
bela retirada, acenando com o chapéu. Trata-se ainda do
andamento recorrente do texto: a primeira palavra só é uma
angústia (uma vertigem) ex ante. Expost, desejaria colocar
isso antes, e ainda isso, a não acabar nunca, como se cada
palavra tivesse um lugar melhor no início, como se, movido
pelo desejo, todo o texto se cristalizasse, se precipitasse
para trás. Donde a necessidade da data do prefácio para
estancar, sobretudo, essa fuga para trás. Senão, tem-se a
Obra-prima desconhecida.
Hegel condenava o prefácio como uma racionalização
supérflua e enganadora da verdade expressa no texto. Mas
não é, ao contrário, o livro que ergue a racionalização de
uma verdade desconhecida, e não é o prefácio que, às

1 33
vezes, abate essa construção e atinge a verdade da escrita,
quando ele não é apenas um estágio suplementar, um
frontão coroando um edifício? Mas tratar-se-ia da mesma
verdade que, segundo Hegel, só encontra no conceito, fora
do prefácio, o elemento de sua existência? A verdade que
o prefácio, como interpretação� como destruição do livro,
pode produzir posteriormente é a origem: como escrevi
alguns de meus livros, o que gostaria de dizer, insistia
Descartes. Quanto ao livro, é preciso distinguir a origem
e o começo. O começo é o fim: conceito que duplica
abusivamente um prefácio. Hegel se questiona sempre
sobre o começo: no prefácio da Lógipa, qual deve ser o
começo da ciência? Depois, na introdução, qual deve ser
o começo da lógica? Descartes também hesita quanto ao
começo: é preciso adotar um modo de expressão analítico
ou sintétko? Mas a origem é outra coisa: uma imagem, a
outra face, a face oculta do livro, Descartes fechado num
quarto aquecido, num dia de outono, em VIm.
Ora, essa origem é, também ela, um acidente (como
a interrupção, o prefácio): falsa origem, sem dúvida (ele
só tem valor retrospectivo), mas mesmo assim origem;
ponto de partida numa repetição e que só o prefácio pode
suspender.
"Seu prefácio': escreve Voltaire, "é uma prece aos mortos,
mas ele não os ressuscitará!':98 Não deseja ressuscitá-los.
É ele que condena à morte todos os sujeitos da escrita,
petrificando-os na perigrafia. Os ícones são imagens
mortuárias. O prefácio conjura a morte, quandd confunde
a origem e o começo.

1 34
A VOCAÇÃO DA ESCRITA

Toda enunciação produz simultaneamente um


enunciado e um sujeito. Não há um sujeito anterior à
enunciação ou à escrita e, em seguida, uma enunciação,
como se fosse um atributo ou uma modalidade existencial
desse sujeito; mas a enunciação é constitutiva do sujeito,
o sujeito advém na enunciação. Admitindo-se isso (a
refutação de uma concepção metafísica do sujeito, cogito
cartesiano ou Ego transcendantal husserliano), nada impede
que, posteriormente à enunciação, a relação entre sujeito
e enunciado caia, necessariamente, numa simbologia - a
retórica antiga foi uma delas, a tradição igualmente - que
a sobredetermina e lhe confere um caráter institucional.
A forma evidente dessa relação imposta é a identificação
do sujeito do enunciado com o sujeito da enunciação,
na pessoa do autor, intérprete ou gerenciador das suas
diferenças; e os ícones são outras tantas provas de que essa
conversão se realizou. É preciso medir as conseqüências, na
própria enunciação e por um efeito retroativo, da exigência
de uma identificação entre o autor e o sujeito da escrita.

1 35
Ainda que essa identificação seja uma ilusão e um engano,
que dependa de um reconhecimento imaginári099 é ela,
entretanto, que funciona como princípio da regulação de
toda escrita, integrando os critérios de sua receptibilidade.
A força e a especificidade da regulação homeostática da
escrita consistem exatamente nisso: ela integra a fantasia.
É a fantasia suscitada pelo próprio princípio de controle
que fornece a energia da escrita. Toda escrita é assim
uma realização da fantasia suscitada pela simbologia de
sua circulação econômica. Semelhante intervenção do
imaginário não espanta, pois que, afinal de contas, não
é senão nessa instância que se erguem todos os projetos
de reconhecimento, e o que se chama habitualmente de
vocação é o melhor exemplo disso: é uma fantasia, assim
como todo projeto de escrita se trama em torno de uma
fantasia que é, também ela, um projeto, a antecipação
do texto acabado (até mesmo impresso e circulando),
dotado de um leitor, de um autor, que são personagens
contingentes e intercambiáveis, como toda fantasia regida
pelo verbo no passado: ter sido espancado, ter se tornado
bombeiro, cosmonauta ou médico, ter escrito e ter sido,
finalmente, lido.
Freud, certa vez, mostrou muito claramente a função
da fantasia como princípio de regulação da enunciação,
como certeza prévia de sua validade:

Se, pois, eu me coloco novamente durante as conferências que


se seguirão, no meio de um auditório, só o faço por um jogo de
imaginação: talvez essa fantasia me ajude, ao aprofundar a minha
questão, a não me esquecer de levar em conta o leitor.100

1 36
A fantasia da escrita põe em cena um leitor, pelo menos
um que é minha criatura. Assim, mesmo que o processo
da escrita - atualização do projeto, reescrita da fantasia
- produza ao mesmo tempo o texto e o sujeito de sua
enunciação, resta à criatura imaginária (leitor, autor,
ideal do eu) sancionar a criação apondo sua assinatura
como um nihil obstat que, posteriormente, libera a escrita
de seu cativeiro imaginário. Esse é o papel do prefácio
cartesiano.
Eis, pois, algumas das razões pelas quais não se deve
confundir o autor e o sujeito da enunciação. Na fantasia,
pretexto que projeta o livro como produto acabado, o
autor (leitor imaginário) é o sujeito, o eu ideal onde esse
se satisfaz ou o ideal do eu onde ele deseja satisfazer; ao
passo que, no final, ele reúne a multiplicidade dos sujeitos
da enunciação e, variando talvez a cada frase, às vezes
mais, assegura a unidades desses sujeitos fragmentados.
Esse autor é então o personagem cujo nome está na capa
do livro.
Quando a citação engaja o autor na relação estabelecida
por ela, é certamente deste último que se trata: consolidação
recursiva de um imaginário da escrita; a citação o ratifica,
o autoriza, confere-lhe a qualidade de autoridade que só
a posteriori será sua.
A perigrafia do livro, uma vez que ela o envolve como
um quadro vivo, é naturalmente o objeto privilegiado
da fantasia. O livro imaginário tem uma silhueta, um
contorno: um nome de autor, um título, uma epígrafe etc.
Ele é apenas silhueta: seu corpo (a massa de seus caracteres)
permanece vaporoso, cinza, indistinto. A escrita, partindo
da fantasia, preenche a perigrafia, destaca o corpo do texto.

1 37
É admirável que a perigrafia seja ao mesmo tempo o núcleo
da fantasia da escrita e o critério de uma qualificação
simbólica, graças a um vínculo, próprio da homeostase,
do sistema de produção com o dispositivo de controle. A
perigrafia, instituição positiva, incita à fantasia e à escrita
que será tanto mais perceptível quanto mais permanecer
fiel à fantasia. Não há como se desembaraçar desta para
escrever, não há como subjugá-la. É ela, ao contrário, que
dirige a escrita e captura o sujeito. A homeostase apresenta
esta superioridade sobre todos os outros princípios de
controle do discurso: governa pelo imaginário e pelos
ícones, obriga a falar e a escrever. Em resumo, se há
alguma coisa de universal no livro, seria justamente sua
perigrafia, ao mesmo tempo sua fixação imaginária e seu
calibre simbólico.
Kant via no julgamento estético o princípio da
comunicação intersubjetiva e de todas as relações sociais,
sendo o gosto o modelo da universalidade humana. É
difícil compreender porque a arte, o gosto, mais que a
linguagem ou o trabalho, por exemplo, é que exercem
essa função primeira na organização social. Mas a
referência à homeostase talvez permita explicá-lo, se ela
faz coincidir o imaginário e o simbólico da escrita, se a
fantasia da escrita já é, ela mesma, universal, se, realizando
a fantasia, a escrita não faz outra coisa senão reproduzir o
próprio critério de sua receptibilidade. Não haveria livros
fracassados (ilegíveis ou inaceitáveis), sendo esse conceito
contraditório em si, como também o de mau gosto para
Kant (aliás, tanto quanto de bom gosto), mas somente
livros inacabados, projetos abortados, cuja fantasia foi
insuficiente, desarticulada, mal delimitada pela perigrafia:
é o caso dos Essais, na opinião de Malebranche.

1 38
PO SSE, APROPRIAÇÃO, PROPRIEDADE

A perigrafia - norma, ou melhor, modelo positivo


de uma prática de escrita que se impõe desde o século
XVII, a tal ponto que qualquer liberdade com relação a
ela desqualifica um livro e seu autor - imobiliza o texto,
fecha-o e resiste ao discurso que tem seu primeiro sentido
na errância e no nomadismo. "Meu estilo e meu espírito':
escrevia Montaigne, "vão juntos na mesma vagabundagem"
(III, 9, 973c).
"O primeiro que, cercando um terreno, lembrou-se de
dizer: isso é meu:' Eis aí, segundo Rousseau, a origem da
propriedade. Com efeito, na perigrafia, é da edificação da
propriedade intelectual, literária, artística, estética, que
se trata. A perigrafia faz da paisagem textual um campo
cultivado; põe fim ao debate, ao delírio quanto à utilização
do já dito; resolve uma vez por todas os litígios de usufruto,
pois regulariza, no duplo sentido de dar as regras e tornar
regular, o funcionamento da máquina de escrever ou de
discorrer.

1 39
Todos esses pontos litigiosos obcecavam Montaigne,
constituíam, por assim dizer, seu sintoma. Uma vez que
não se pensa mais a escrita procedendo de uma linhagem
ou de uma tradição, mas de um sujeito singular, o que no
livro é próprio a ele mesmo e o que é próprio ao autor?
Como diz Montaigne, "cada homem traz em si de
forma completa a humana condição" (III, 2, 782b). Isso
não significa que ele seja apenas um avatar ou um caso
particular dessa humana condição; muito ao contrário,
como Montaigne logo justificará, ele é em si um "ser
universal, enquanto Michel de Montaigne, não enquanto
gramático, ou poeta, ou jurisconsulto" (Ibidem, 782c). E é
enquanto tal, unicamente em seu nome, que ele deve usar
a palavra.
Mas se se retira do livro as alegações, os empréstimos,
as citações, as paráfras es, as alusões, o que resta de
propriamente seu?

o filósofo Chrysippus ajuntava a seus livros não apenas pas­


sagens, mas obras inteiras de outros autores e em um deles a
Medéia, de Eurípedes; e Apollodorus dizia que quem subtraísse
o que houvesse ali de estrangeiro, o seu papel ficaria em branco.
Epicuro, inversamente, nos trezentos volumes que deixou, não
havia semeado uma só alegação estrangeira (r, 26, 145c) .

. A questão recai sobre o resíduo que identifica,


que individualiza cada texto na sua uni( ci)dade, logo,
sobre o nome próprio, categoria lógica (o que denota
um objeto determinado) tanto quanto denominativo
societário ou chamamento controlado. A propriedade
é fundamentalmente uma questão de discurso, de
reconhecimento; ela se opõe ao confisco ou à posse: "A

1 40
posse (Besitz) torna-se propriedade (Eigentum) e toma
um caráter de direito na medida em que todos os outros
reconhecem que a coisa que faço minha é minha:'lol
Os verbetes que Condillac consagra à propriedade,
no momento mesmo em que se elabora uma reflexão
ftlosófica, jurídica, econômica sobre seu estatuto, são muito
significativos:

Propriedade, s.f.
de próprio. Qualidade própria a alguma coisa e que a distingue.
Essa palavra foi primeiro utilizada para os corpos, daí estendeu­
se a tudo, v. Modificação.
Diz-se que um escritor tem a propriedade dos termos quando
emprega aqueles que são mais próprios para expressar suas
idéias, que as distinguem e as caracterizam melhor. Propriedade,
posse, ver este último. '02

Mas que a propriedade tenha sua origem e sua


especificidade no discurso não impede que, nesse domínio,
muito mais que em qualquer outro, ela permaneça uma
perpétua questão, uma causa intratável.
Sêneca a havia abordado na carta XXXIII a Ludutis,
carta que atravessa em filigrana o capítulo dos Essais,
"Sobre a Educação das Crianças" (I, 26), onde Montaigne
retoma a questão.
Apesar do pedido de seu correspondente, Sêneca se
recusava a semear citações nas suas cartas, vocês nostrorum
procerum. 1 03 A vox é possessão demoníaca, I 04 perda de
identidade e renúncia de si mesmo, mania oufuror, loucura
ou desordem, uma vez que ela não depende mais de um
entusiasmo sagrado nem de uma inspiração divina. Sêneca
a condena: Non est ergo quod exigas excerpta et repetita. [000]

1 41
turpe est enim [ ... ] ex commentario sapere. 1 05 Essas vozes,
vocês, estão aí para quem quiser, publicae sunt. 106 Contra
a posse e contra a loucura, Sêneca se compromete com
a independência, com a assimilação, com a apropriação:
Scire est et sua facere quaeque nec ad exemplar pendere et
totiens respicere ad magistrum. 1 07 Montaigne guardou a
lição e seguiu-a literalmente. Longas passagens desse texto
de Sêneca são retomadas no capítulo "Sobre a Educação
das Crianças': sem que isso seja indicado. Para se defender
da posse que é uma alienação, a apropriação seria o único
remédio, a maquiagem de uma mercadoria roubada. "Entre
tantos empréstimos': reivindicava Montaigne, "sinto-me à
vontade para roubar alguns, disfarçando-os e deformando­
os para um novo serviço" .108
Apropriar-se seria menos tomar que se retomar, menos
tomar posse de outrem que de si. Os Essais são uma busca
do sujeito no desfile dos objetos que o retêm tanto ou mais
do que eles são retidos.
Mas Àrnauld, Nicole, Malebranche ignorarão a diferença
que fazia Montaigne, depois de Sêneca, entre a posse e a
apropriação, quando a apropriação o liberava da posse na
sua ambivalência. O século XVII reprovará as duas, como
se fossem uma única, ou, mais exatamente, condenará
particularmente a apropriação, forma viciada da posse.
Montaigne é possuído porque ele é habitado, obcecado
por suas leituras como por um demônio. Ele imagina falar
em seu próprio nome, quando não faz mais que emprestar
sua voz ao discurso do outro: alucinação, duplicação de si
e ignorância vão juntas com o narcisismo. Malebranche
propõe mesmo uma explicação fisiológica para o delírio
dos "comentadores': cujo modelo é Montaigne, e chama-o
"imaginação forte" :

142
Tudo isso acontece porque as marcas que os objetos de suas
preocupações imprimiram nas fibras de seu cérebro são tão pro­
fundas que permanecem sempre entreabertas, e que os espíritos
animais, passando por elas constantemente, conservam-nas
sempre, não permitindo que se fechem; de modo que a alma
sendo constrangida a ter sempre os pensamentos ligados a essas
marcas, torna -se como que escrava, e está sempre perturbada e
inquieta, mesmo quando, conhecendo sua desordem, ela quer
remediá-la. 109

Nas pessoas dotadas de imaginação forte, sua história, suas


leituras se gravam na superfície do cérebro, são marcas
ou feridas jamais cicatrizadas, e contra a recorrência das
quais no discurso, no corpo, nada pode se opor. Haveria
melhor definição de sintoma, aquilo cuja repetição não
poderia nunca ser bloqueada? Assim seriam as citações
de Montaigne.
À posse, que tem como variante a apropriação, o lado
angustiado (mas não controlado), o século XVII opõe o
verdadeiro controle de si e do discurso: a propriedade que
substituiu ao mesmo tempo a posse e a apropriação e que
as inviabiliza. A noção de direito autoral ou de propriedade
intelectual surge ao longo do século XVII. Seu advento
fundamenta-se na crítica às imaginações fortes que ela
pretende cercear. A partir de Locke, ela se justifica, como
toda propriedade, pelo trabalho investido: a propriedade
depende, juntamente com a família, do direito natural.
Com Kant ela se determina como direito da personalidade,
de que fazem parte a criação estética ou intelectual.
Mas seja qual for se1,1 fundamento teórico ou fllosófico,
natural ou moral, 110 a categoria de propriedade intelectual
substitui um novo distinguo àquele que valia para Sêneca

1 43
e Montaigne, entre a posse (pela vox, pelas palavras) e a
apropriação (da sententia, do pensamento).
A nova distinção separa, no seio da propriedade, o
uso e a reprodução. Ela supõe uma economia da leitura e
da escrita, inscreve-se numa problemática da produção e
do consumo do texto. Grosso modo, a diferença é aquela
entre o exemplar e o texto, entre o livro como bem de
consumo e como meio de produção (e assim é legítima
a hipótese segundo a qual essa diferença seria induzida
pela tipografia).
A questão (a aporia inseparável de toda escrita)
deslocou-se, mas não deixou de ser questão: Ela não é mais
como em Montaigne: o que é, o que faz propriamente o
meu texto? O que é propriamente meu no texto? A questão
recai de início - um início que abre a questão em seu
conjunto - sobre o que é a propriedade do comprador de
um exemplar do livro. Que propriedade, que atualização da
livre escolha representa e sanciona a compra, a detenção, a
posse de um livro? Qual o sentido desse gesto que executo,
sem medir sua gravidade: a troca de um volume por
dinheiro? Hegel responderá:

Pelo fato mesmo de o aquisidor de um tal produto dispor de seu


inteiro uso e de seu valor por meio de um exemplar isolado, ele
é completamente proprietário e proprietário livre desse produto,
como de uma coisa particular, ainda que o autor do escrito ou
o inventor do dispositivo técnico continuem proprietários do
procedimento universal que permite multiplicar tais produtos,
porque ele não alienou imediatamente esse procedimento, mas
pode conservá-lo como uma possibilidade de expressão que
lhe é própria.I I I

1 44
Mas isso não é assim tão evidente, e Hegel se vê
logo obrigado a acrescentar: "É preciso se perguntar
previamente se uma tal separação entre a propriedade
da coisa e a possibilidade que ela confere de reproduzi-la
é conceitualmente aceitável, se ela não suprime a livre
propriedade:' Nada, conseqüentemente, fica resolvido pela
aplicação da noção de propriedade à escrita. Das duas uma:
ou o comprador dispõe do completo uso do livro (logo, o
direito de reproduzi-lo, de demarcá-lo, de copiá-lo ), ou esse
uso tem um limite. E nos dois casos é toda a propriedade, sua
essência, que está em causa. Antecipando o desenvolvimento
lógico da obra, Hegel deve, para sair momentaneamente
da dificuldade, introduzir aqui o termo "capital": o livro é
não somente uma posse, mas também um capital.
No primeiro capítulo dos Príncipes de la Philosophíe
du Droit (Princípios da Filosofia do Direito), que trata
da propriedade e que faz dela a primeira forma que a
liberdade se dá como existência, seja a existência que a
pessoa, enquanto vontade livre, dá à sua liberdade, seja
ainda aquilo que assegura a existência efetiva e objetiva da
pessoa, sem o que ela e sua vontade permaneceriam simples
conceitos, Hegel foi levado a corrigir constantemente
suas definições e suas proposições, a fim de dar conta da
propriedade intelectual. Afinal de contas, esses addenda
talvez desmontem toda a argumentação.
O livro é, pois, também um capital. Mas o problema
subsiste. O ensino e a propagação das ciências "são apenas
a repetição de idéias que não são novas, mas que já foram
expressas e que se recebe de forà: 112 Em que medida essa
repetição confere direito de propriedade àquele que a opera?
"Em que medidà: perguntava Hegel, "quando se.trata de
uma obra literária, essa repetição torna-se plágio?"1 13 Essa

1 45
questão põe em dificuldade o direito, positivo ou abstrato,
e a filosofia. "É o que não pode ser determinado segundo
uma regra precisa, nem pode ser fIXado juridicamente ou
legalmente. Assim, o plágio �everia ser uma questão de
honra, e a honra deveria evitá-Io:'1 14
A honra é a única responsável pela validade da escrita,
termo estranho e absolutamente insólito na perspectiva do
direito natural, cuja construção é uma tentativa de HegeJ
ou, pelo menos, termo cuja presença aqui, no início desse
empreendimento, é radicalmente prematura e mostra que é
impossível estender à escrita a noção de propriedade, como
se pudesse haver outra evocação que não fosse metafórica
em matéria de propriedade. Proust escrevia a um de seus
amigos, Albert Flament, na ocasião do lançamento de
um livro deste: "Cada detalhe é levado a um ponto aonde
qualquer outro não poderia levá-lo e o senhor se apropria
dele de um modo incontestável, como um direito de
propriedade:'115 Proust não se enganava, é a metáfora ou
a fantasia da propriedade que a perigrafia envolve.
Devem-se retomar ainda, para especificar a questão, as
noções de posse, de apropriação e de propriedade textuais,
segundo uma outra perspectiva, como três modelos - mas
não apenas históricos ou genealógicos - da relação entre
u;m sujeito e um objeto, entre o sujeito da enunciação e o
enunciado. Essas relações seriam assim caracterizadas:
- A relação de posse, essencialmente ambivalente, tem
lugar no imaginário, no nível de uma fantasia de fusão,
sem que o sujeito participe do dentro e do fora do que é
próprio de si (seu corpo, sua língua) e do outro (o corpo
estranho, o discurso).

1 46
- A relação da apropriação, que faz seu sem distinção,
é uma etapa intermediária, em que o sujeito parte em
busca de si mesmo, como de um outro, à procura de sua
identidade entre os objetos que o circundam. "Quem toca
um, toca o outrd: 116 dizia Montaigne de si mesmo e de
seu livro. Não é mais tanto da indiferença entre o dentro
e o fora que se trata, mas da confusão entre mim e o que
não sou eu. Isso supõe o esboço de' um sujeito e, apesar da
ausência de fechamento, uma margem entre mim e o texto.
Sêneca recomendava a Lucilius: Aliquid inter te intersit et
librum.117 Deixe espaço entre você e o livro, é esse espaço
que lhe permite fazê-lo seu.
Quanto à propriedade, ela resolve tudo fazendo o
autor aceder à maturidade, assumindo a separação entre o
autor (instituição ou pessoa moral, consolidação recursiva
da variedade dos sujeitos) e o livro (também ele instituição
e pessoa moral, mercadoria, unidade de enunciados de
origens diversas, mas retomados e compreendidos na
perigrafia, onde o autor se delega e que o representa). É
uma relação inteiramente simbólica, atingindo a ficção do
pseudônimo, do manuscrito encontrado, ou do espelho
deslocado ao longo do caminho, e a lei - "de uma maneira':
diz Hegel, "sem dúvida determinada, mas muito limitada"
- a protege.
No entanto, qual é o objeto da propriedade literária?
Enquanto a posse e a apropriação são certamente engodos,
pelo menos a seus objetos não falta realidade. Não é o caso
da propriedade cujo objeto, ao contrário, é imaginário,
problemático. Relação entre um sujeito e um objeto, a
propriedade é tão suspeita quanto a posse, igualmente
ilusória. Na posse, o engodo recai sobre a relação e sobre o
sujeito - o sujeito é falado pela vox -, mas na propriedade,

1 47
o próprio objeto é uma miragem. A posse pretende deter,
ligar alguma coisa, aquilo de que ela se apropriaria, o que
ela teria trabalhado, marcado; a lei lhe reconhece direitos.
Mas se a perigrafia, na verdade, não comportasse nada ou
o vazio, o que Hegel não chegou a circunscrever...
Posse e propriedade desconhecem igualmente a falta:
a primeira é um engodo da apreensão imaginária de um
objeto bem real (minha alma habitada pelo demônio),
a segunda é uma miragem da detenção simbólica (na
perigrafia) de um objeto imaginário, a escrita.
Permanece, pois, mais perto da verdade da escrita, a
apropriação: o que copia uma frase, o que desmascara um
sujeito, o que zomba tanto do sujeito quanto do objeto. Isso
não é meu, isso não sou eu, falo em nome de alguém; isso
é meu sintoma, e o sintoma é sempre o discurso do outro,
o real. Não há nada mais real que o roubo - ausente das
considerações hegelianas sobre a propriedade, a não ser
na forma do plágio -, o roubo da escrita que abala toda
propriedade no seu fundamento.
Do Latim, língua morta que certamente mais nos fala,
uma frase poderia servir de emblema aos Essais, extraída
do adendo do exemplar de Bordeaux, no capítulo "Sobre
a Educação das Crianças": "Quem segue um outro não
segue nada. Ele não encontra nada, nem mesmo procura
nftda. Non sumus sub rege; sibi quisque se vindicet. Que pelo
menos ele saiba que sabe:'118 A primeira frase copia Sêneca:
qui alium sequitur, nihil invenit, immo nec quaeritY9 A
segunda cita-o: sibi quisque se vindicet,1 20 cada um tem
apoio em si mesmo, sibi iam innitatur, 1 2 1 diz ainda Sêneca.
Não somos súditos de um rei, não estamos subjugados, que
cada um abandone o estatuto de intérprete, que cada um

1 48
fale, não em seu nome, mas em nome de alguém, fale de
outro modo o discurso do outro. Que cada um se autorize
a si mesmo: esse é o emblema da apropriação.
Mas a propriedade logo se abateu sobre a apropriação
e regulou-a. Eis como se traduzia Sêneca no ano III da
República, em 1796, enquanto a lei sobre a propriedade
literária data apenas de 1793: "Não temos donos, somos
todos proprietários:'122 Até se admite que o monarca tenha
caído em esquecimento, mas introduzir aqui a propriedade
é um contra-senso radical, quando Sêneca e Montaigne
entendiam isso como a própria abolição da propriedade
da escrita, ou, mais exatamente, denunciavam seu engodo.
Cada pequeno proprietário de texto se cerca de um muro,
de uma perigrafia. O texto é circundado, o autor é o dono
de si e de seu território. Mas não se passa nada mais fora
dos muros?

1 49
A CITAÇÃO ACABADA

Voltemos à hipótese que serviu de ponto de partida para


este trabalho: uma citação estabelece uma correspondência
entre dois sistemas semióticos, SI citado e S2 citante, cada
um composto de dois elementos, um sujeito (Al ou A2 ) e
um texto ( TI ou T2). Daí decorrem quatro relações entre
elementos extraídos cada um de um dos dois sistemas:
TI- T2, AI -T2, TI-A2 e A I -A2 . Toda citação engendra esses
quatro pares simples e virtuais; cabe à leitura, à interpre­
tação, enquanto negociação das diferenças, fazer com que
eles existam, que eles se realizem, revestindo ou não cada
relação potencial de um valor efetivo: o de símbolo, de
índice, de diagrama ou de imagem, que designam os quatro
valores correspondentes às quatro relações simples. Esses
valores compõem uma tipologia formal da citação, com
quatro casas, cuja predominância de uma sobre as outras
é reconhecida pela leitura.
Verificar essa tipologia condicional consistiu em
confrontá-l� com práticas da citação. Três sondagens

1 50
sucessivas detectaram diversos valores privilegiados
historicamente: os de símbolo, na retórica antiga, de
índice, para o comentário medieval e, no texto da idade
clássica, o de ícone, valor no qual se subsumem os tipos
do diagrama e da imagem, duas figurações convergentes
do sujeito cartesiano.
A tipologia previa formalmente quatro valores da
citação; algumas sondagens os exumaram. A atitude formal
e a atitude empírica, todas as duas igualmente arbitrárias
e aproximativas, legitimar-se-iam mutuamente. Cada
uma seria a prova da outra e, juntas, seriam verdadeiras,
exaustivas.
E então? O jogo acabou, o círculo se fechou. Nada mais
a fazer. Há em tudo e para tudo quatro casas na tipologia
da citação e elas estão preenchidas. O sistema da citação
está completo, acabado, desde a idade clássica: a citação,
segundo Port-Royal, satura esse sistema, esgota suas pos­
sibilidades e nada mais, desde então, poderá advir, exceto
um retorno ao passado, uma revalorização da gnômé ou,
mais facilmente, a auctoritas, tal como se vê, tal como se
faz. Toda citação se localiza adequadamente numa das
casas previstas, e a máquina da escrita vai rodando, sem
nunca ratear. Ela dispõe, juntamente com a citação, de uma
regulação ou de um controle homeostático, necessário e
suficiente, da repetição, do já dito, portanto, da escrita em
geral. Só posso me submeter ou me demitir.
Mas seria realmente tudo? Acabaria o questionamento?
Nada mais a ser dito ou rédito? Tão-somente sonhar
com uma citação rebelde, que fugiria como areia por
entre os dedos, que resistiria à classificação, uma citação
inqualificável, um grão de areia na máquina? Além disso,

151
supondo-se que ela seja, a tal citação, viciada, fugiria ela
à regra, ou seria simplesmente a exceção que a confirma,
sua prova por absurdo?
A tipologia admitia, entretanto, a possibilidade de
. uma citação que estabelecesse uma relação global entre
os dois sistemas 51 e 52, sem que se pudesse reconhecer
relata simples, num e noutro sistema, autor ou texto. Na
transição do índice para o ícone, o emblema ou empréstimo
de Montaigne constituiu um primeiro exemplo. A seguir,
propomos outros.

1 52
UMA ECONOMIA DA ESCRITU RA

Enquanto a enunciação é um processo de apropriação


da língua, a citação é um processo de apropriação do dis­
curso, do Fundo literário, como dizia Mallarmé.1 23 Ora, se
a língua é de domínio público e não pertence a ninguém,
o discurso surge da propriedade privada. Não foi sempre
assim - na antigüidade, o discurso era publica materies,
do mesmo modo que a língua -, mas pelo menos o que
afirma Hegel nos Principias da Filosofia do Direito e que
funda o regime jurídico da propriedade literária, desde o
século XVIII. A frase que eu digo ou escrevo me pertence,
ela é minha. Por isso é necessário que a circulação das frases
no mercado seja fiscalizada. A citação, segundo seu valor
dominante de ícone, desde o século XVII, é uma operação
económica estruturada pelas regras do intercâmbio.
Em que consistiria uma revolução no sistema da
citação? Cada um de nós seria livre para apropriar-se
do discurso do outro, para demarcar todos os livros, à
maneira do herói de Borges e de Casares, César Paladion,
que praticava "a ampliação de unidades':

1 53
Antes e depois do nosso Paladion, a unidade literária que os
autores retomavam do fundo comum era a palavra ou, no má­
ximo, a frase completa. Os manuscritos bizantinos e medievais
mal conseguem ampliar o campo estético, recopiando versos
inteiros.124

Paladion fez muito mais: publicou com seu nome livros


inteiros, Émile, Egmont, les Thébéennes etc. Por ocasião de
sua morte, estava preparando um Évangile selon Saint Luc
(Evangelho Segundo S. Lucas). Mas Paladion publicava
com seu nome. Para reapresentá-lo, escolhia um livro intei­
ro, em vez de uma citação parcial. Decidiu "escavar as pro­
fundezas de sua alma e publicar livros que o exprimissem,
sem sobrecarregar o impressionante corpus bibliográfico já
existente, nem cair na vaidade de escrever uma única linha
por si mesmo':1 25 Na perigrafia de uma obra de Paladion,
apenas o nome do autor foi substituído, mas ele constitui
justamente a peça essencial, o último referente do signo,
da citação ou do livro como ícone. O método se inscreve
ainda sob o signo do ícone e não abole a perigrafia.
Uma revolução suporia muito mais a supressão da
propriedade privada em matéria de escrita. Não só todos
os livros eqüivaleriam a um só, mas igualmente todos os
autores. Nossa hipótese de partida, a correspondência
estabelecida por uma citação, entre dois sistemas semió­
ticos, não seria pertinente, e a tipologia que ela acarreta,
ultrapassada. Não haveria mais citação. Paladion não teria
nome e não poderia ser acusado de plágio. A apropriação
privativa do texto substituir-se-ia uma atualização anónima
e indivisa, o comunismo intelectual, que teve seu advento
invocado por Freud, uma utopia cujo slogan, escandido
pelas massas, constitui apenas um irrisório sucedâneo. A

1 54
única idéia que temos de uma tal enunciação coletiva é,
na verdade, a recitação dos monges, no livro dos salmos,
ou a dos chineses, no livro vermelho, formas extremas
da citação. Em vez de a propriedade coletiva suprimir a
citação, seria, talvez, totalmente o contrário e, da escrita,
só a citação sobreviveria. O discurso é o último refúgio da
propriedade, talvez por ser a origem dela, e seria preciso
mais de uma revolução cultural para abalar sua economia,
pois ela é estável, com uma regulação homeostática: a
citação corrige suas perdas de equilíbrio, suas fraquezas
momentâneas, suas pequenas oscilações.

1 55
FESTIVI DADES

Existe uma velha tradição lúdica da citação. Na


Grécia antiga, a competição de citações era um jogo de
sociedade, cuja descrição detalhada foi dada por Atenéia
no Deipnosophistai:

Um dizia um verso, o outro deveria dar a seqüência. Citava­


se uma máxima e dever-se-ia dar a réplica conservando-se
o mesmo pensamento tirado de um outro poeta. Ou, então,
exigiam-se versos com um certo número de sílabas. [ . . ] O ven­
.

cedor ganhava uma coroa; aquele que errava, era contemplado


com uma pitada de salmoura no vinho e deveria engolir tudo
de uma só vez.126

A esse jogo da citação e da recitação se ligam a rapsódia


e os concursos de rapsodos, evocados por Platão no Ion:
essas exibições valem também como proeza, prova ou
performance.
Em Les Hain-Tenys, Poésie de Dispute, Jean Paulhan
descreve uma atividade, análoga a essa, da tribo dos

1 56
Merinas, em Madagascar,127 e esse caráter lúdico ou mesmo
esportivo da citação e da recitação certamente não está
ausente da disputatio à qual se exercia a universidade da
idade média. Por se tratar de uma competição, uma disputa
de oratória, o jogo não prejudica muito o sistema que ele
não menospreza. É o vencido que ele ridiculariza, e não
a citação. O jogo é um desafio, lançado menos ao código
que a um de seus usuários.
Mas todos esses divertimentos se situam num estado da
citação anterior (antigo ou medieval) ou estranho àquele
que será instituído de forma permanente na idade clássica.
Se o fundamento desse último modelo é icônico, se ele
implica profundamente o sujeito da enunciação, todo tipo
de virtuosidade ou de gratuidade não estaria rigorosamente
proibido? Se a seriedade é realmente a primeira qualidade
a ser exigida de um autor, a frivolidade não a suprimiria
obrigatoriamente? Não há, pois, desvio lúdico possível da
citação acabada.
Witold Gómbrowicz, no romance Trans-Atlantique,
narra uma disputa de oratória, opondo o narrador,
representante da Polônia, ao próprio Borges, delegado
pela Argentina, para o combate. Mas a regra do jogo
modificou-se, a partir da idade média, e Borges trapaceia
com ela, ou, melhor, ele a leva até as últimas conseqüências:
em vez de replicar às proposições de seu adversário com
citações, ele as denuncia como citações. "Acaba de ser
dito aqui que a manteiga é manteiga demais... Uma idéia
certamente interessante... interessante, sim, essa idéia...
Pena que ela não seja nova: Sartorius formulou-a em suas
Bucólicas:' 1 28 Ao que Gombrowicz retruca: "O que me
importa o que disse Sartorius, se sou Eu quem Palo!" O
problema é que toda frase já teve uma ocorrência anterior,

1 57
e Borges, levando até as últimas conseqüências a lógica da
citação icônica, adotando uma posição de denúncia de toda
repetição, terá a última palavra:

Acaba de ser proferida a fraSe seguinte: Que me importa Sartorius


se sou eu quem falo. A idéia não é má, de maneira alguma é má,
poder-se-ia mesmo servi-la com molho bechamel; o Chato é que
a Senhorita de Lespinasse já disse algo parecido em uma de suas
Cartas. 129

Com sua competência, com seu direito à palavra, abalado,


Gombrowicz só tem como recurso praguejar, «Merda,
merda, merda!" Mas não há nada menos original e
ele ainda cai na armadilha: «Uma idéia que merece
consideração... Coberta de creme fresco e levada ao forno
com champignons, seria, na verdade, excelente. Mas, que
pena, ela já foi dita por Cambronne:' 1 3o
Refutar o discurso do outro, com o pretexto da citação,
é privar o outro de seus ícones, desqualificá-lo e reduzi-lo
ao silêncio. Quem tem a última palavra é aquele que tem
referências. Aí está a estratégia constante de Borges, quando
esgota as possibilidades do sistema clássico da escrita, da
perigrafia e da citação, até colocá-lo em contradição.
Borges é inatacável, quando destrói seu adversário, quando
o obriga a calar-se, exasperando-o com a obsessão do "tudo
Já foi dito': ''A certeza de que tudo está escrito, diz Borges
em algum lugar, nos anula ou faz de nós fantasmas': 13l
E Gombrowicz foge: "Eu ficarei quieto! Minha língua
paralisada! Ah, canalha, ele me fizera tão bem engoli -la,
que todas as Palavras me escapavam: então, nada era mais
meu, meus bens não eram mais meus, mas puro furto.
Roubado!"

1 58
Também não é para tanto: lon. de Éfeso. pressionado
por Sócrates e pelas mesmas razões, prosseguira em seu
canto. É isso que a citação acabada proíbe.

1 59
ESPAÇOS DE ESCRITA

Seria possível um dia, apesar do sintoma, acabar


com a analogia do livro e do universo, com um modelo,
uma metáfora espacial da escrita e do conhecimento? A
perversão, pelo contrário, o exagera: "O universo (que
alguns chamam de Biblioteca) se compõe de um número
indefinido, e talvez infinito, de galerias hexagonais [ ... ] :' 1 32
É a biblioteca de Babel, na qual Borges se compraz. "Os
mesmos volumes se repetem sempre na mesma desordem
- que, repetida, tornar-se-ia uma ordem: a Ordem:' 1 33 E a
ordem é fundamentalmente geométrica. Quanto à escrita
serial, ela também não abole a referência a um universo,
mas a relativiza. Como diz Pierre Boulez, a respeito da
niúsica serial:

o universo da música, hoje, é um universo relativo; com isso


quero dizer: um universo onde as relações estruturais não são
definidas de uma vez por todas, segundo critérios absolutos; elas
se organizam, pelo contrário, segundo esquemas variáveis. 134

1 60
Dizer que o espaço da escrita é relativo, variável ou em
expansão, significa dizer que suas referências ou suas
definições estão em movimento - e não apenas as
variações que, como uma trajetória, se modelam em
torno dessas definições -, de uma obra à outra, mas
ainda na própria obra. O conceito de espaço, no entanto,
permanece.
O livro é um volume - Mallarmé, significativamente,
preferia essa palavra para designar o monte de folhas -,
ele é, essencialmente, e qualquer que seja sua dimensão, um
espaço. Toda escrita é a ocupação de um espaço que não
se reduz a um suporte - flumen, codex, página - linear,
plano ou espacial. (O texto serial, diferentemente do outro,
não se dá, para começar, esse espaço virtual, essa superfície
de jogo.) O espaço da escrita é, antes de tudo, uma situação
a investir, um lugar de trabalho disponível: a biblioteca,
a ordem do discurso, a letra. A letra é o espaço mínimo,
inevitável, de toda escrita; ela é também o sintoma em sua
mobilidade. Para Mallarmé, ela é um milagre

no sentido profundo segundo o qual as palavras, originalmente,


se reduzem ao emprego, dotado de infinidade até consagrar
uma língua, das aproximadamente vinte letras - seu devir,
tudo entra aí para, ora jorrar, princípio - aproximando-se de
um rito a composição tipográfica.135

Da mesma forma, é de todas as combinações possíveis dos


vinte e poucos caracteres que se compõe a biblioteca de
Babel, total, imensa, mas numerável. Seria porque a escrita,
expansão da letra, é o domínio do numerável, que ela nunca
escaparia totalmente a um modelo espacial?

1 61
Mas a ocupação desse espaço, a habitação da letra toma,
historicamente, formas diversas. Na retórica antiga ou na
versão medieval, o termo que define a relação da escrita
com o espaço é o de tópica, o texto se pratica a partir de uma
tópica, de um lugar comum que não pertence a ninguém
e que se projeta, tal qual uma treliça, sobre o discurso, ou
que se perfila atrás dele. A tópica é um domínio público
indiviso, uma estrutura móvel e habitável por quem quiser,
orador ou ouvinte, escritor ou leitor: todos os agentes,
todos os depositários da letra a compartilham. A citação
tópica, símbolo ou índice, gnômé ou auctoritas, remete ao
texto, como objeto, ao outro, texto ou autor, como ponto
contíguo no espaço. O texto citante e o sistema citado T2 e
TI ou T2 e AI estão separados, mas cada um tem seu lugar
na grade; uma aresta, tópica ou típica, os reúne.
Com a idade clássica, e para interromper a grande
mobilidade tipográfica da letra - mecânica ou dinâmica,
como o emblema, e não relativista ou enérgica, como
o sintoma -, para refrear os deslocamentos, quando
eles proliferavam, uma ruptura se produziu, fazendo
com que a citação passasse de um valor dominante de
contigüidade para um valor dominante de similaridade,
o do ícone. A noção espacial de referência torna-se,
então, a topografia: o texto clássico, circundado por uma
perigrafia, demarcado por ícones, é o mapeamento, o
recorte, a representação fina e detalhada de um lugar ou
de um terreno escolhido. Os lógicos de Port-Royal davam
como exemplo e protótipo do signo o mapa geográfico,
o ícone mais seguro e mais manifesto. O autor é um
desbravador, um conquistador - Robinson que
submete para si a terra incógnita de sua ilha -, ele faz o
mapa e se apropria da terra. O cadastro é o que representa

1 62
melhor a propriedade individual, e as citações icônicas são,
no texto da topografia, marcas da propriedade ou - como
para Robinson, as poucas ferramentas de que ele dispõe, no
início, para reproduzir o macrocosmo - os instrumentos
da apropriação: é por isso que as citações icônicas remetem
menos ao livro como objeto do que àquele que o submete,
que se impõe ao espaço potencial. O autor citante é
aquele que põe ordem nos sistemas citados, que concebe
seus cadastros e, retrospectivamente, se identifica com a
imagem dessa ordem.
O sintoma, a citação do texto serial, abala o modelo
espacial da escrita, tópica ou topográfica, mas sem o
abolir inteiramente. A maculatura, ou a superfície suja
de inscrição, não é um plano, uma face do volume, mas
um agenciamento de espaços, de estratos, de planos,
uma geologia complexa. Não é mais uma topografia
- a própria reescrita dos desnivelamentos do terreno
numa folha branca - que a escrita executa, mas uma
topologia, uma variação de formas para a qual não há
mais sujeito, como o topógrafo, nem objetos, como os
topoi. "O livro", escrevia Mallarmé, "expansão total da
letra, deve tirar dela, diretamente, uma mobilidade e,
espaçoso, por correspondência, instituir um jogo, não se
sabe, que confirme a ficção".136 Tal programa, aquele que
Un coup de dês (Um lance de dados) realiza, condensa de
tal modo todos os traços da escrita, que ela pretende ser
topológica: a letra, única unidade de partida, barulho,
quase som; caractere ou espaço, é uma coisa só; o livro,
em movimento no espaço, universo em expansão. E, da
letra ao livro, nenhum objeto, nenhum sujeito. Em outro
lugar, e, por assim dizer, como suplemento do programa,
do mesmo modo que o livro "deve instituir" um jogo com

1 63
a letra, sua expansão total (uma topologia), o escritor
"deve se instituir': do livro, seu espirituoso histrião. Para a
topologia, é esse o sujeito. Aquele que está em condições
de escrevê-lo move-se incessantemente em relação a um
universo em incessante variação. Às vezes, ele o encontra.
Quando ele adere ao sintoma, quando anuncia o sentido
magnético, ele se torna, momentaneamente, um ponto de
aderência da topologia.
A escrita da tópica e a da topografia eram pensamentos
do tempo: o tempo era a única variável, segundo a qual
se deslocava a referência do discurso. Um princípio de
controle da escrita, qualquer que ele seja, tem como efeito
reter o tempo, pará -lo, isto é, representá-lo, por exemplo, na
tradição, sob a forma de uma sucessão de estados estáveis
e estáticos, de sentido único. A folha na qual escrevo, eu a
suponho imóvel durante o tempo da escrita e até, se eu a
acho móvel, devo presumir minha imobilidade em relação
a ela. O tempo da escrita, o tempo da leitura, essas durações
incalculáveis e sempre desconhecidas, são não-lugares para
o livro, não-durações para o tempo, como se o tempo e
o trabalho, a dinâmica do escrever, fossem, para o livro,
heterogêneos ou forcluídos. O livro pretende estar fora do
tempo, o que não quer dizer que ele seja intemporal, mas
que ele pretende abolir a duração de sua escrita ou de sua
leitura ou, melhor, que seu tempo seja reversível, circular.
Nesse sentido, a escrita, tópica ou topográfica, representa
uma verdadeira heresia, a dos monotones ou dos annulares
que, na novela de Borges, Os Teólogos, Jean de la Pannonie
refutou gloriosamente. Ela anula propriamente a duração
e se fecha sobre si mesma, até não ser senão um ponto no
espaço, um ponto geométrico.

1 64
Já a heresia dos histriões é outra coisa; heresia daqueles
que foram também chamados de simulacros. Aurélien
denunciou Jean de la Pannonie por causa disso: uma citação
tópica. Segundo os histriões, o tempo é irreversível; não sofre
repetições, isto é, não sofre fechamentos. Nenhuma duração
é anulável, nem a da escrita. Tal é o labor do espirituoso
histrião cuja chegada Mallarmé anuncia: um simulacro
herético. "Paz, sendo': o livro rompe com a leitura e com a
escrita, pois aceita a duração (a expansão da letra), integra a
dimensão do tempo, de um tempo irreversível, onde nada se
repete. Na escrita topológica, a folha e a pena, a maculatura
e o espirituoso histrião estão ambos em movimento, em
trajetórias diferentes, em órbitas que não convergem nem
divergem, mas que, por vezes, fortuitamente, se encontram
ou se cruzam, "choque sucessivo sideralmente de uma conta
total em formação":137 é o acidente que faz carne e verbo, é
o sintoma, a alternância do som e do silêncio, a densidade
intermitente da letra. O histrião se afasta da maculatura,
depois, no seu jogo aleatório, ele a encontra um instante
- poderia igualmente nunca encontrá-la. Num universo
essencialmente móvel, a citação, a repetição, o ciclo não é
mais aquilo que põe o texto em movimento; daí as falhas,
os acoplamentos, as ressonâncias. A citação é a marca de
um acoplamento entre a maculatura e o histrião, uma
aceleração instantânea do movimento, quando as trajetórias
separadas entram em ressonância. Mas, por mais que eu
copie, que me aplique com todo meu zelo, se minha folha
mexe, como num trem, num avião, numa nave espacial,
não tenho mais referências, não consigo mais me situar.
Plaubert havia reconhecido isso, imaginando a utopia
definitiva do romance inacabado: por mais que eu copie,
se sou um histrião herético, além de espirituoso, incorporal
e engraçado, nunca será como a outra vez.

1 65
NOTAS

1 Ver KROEBER. Ishi, le testament du dernier indien sauvage.


2 MALLARMÉ. Quant au livre, p. 381.
3 JOYCE. Ulysses, p. 108; Ulysse, p. 1 15. (Trad. fr.).
4 QUINTILIANO. Institution oratoire, X, 1, 19. Edições utilizadas:
Institutionis oratoriae libriXIl. Leipzig: Teubner, 1889-1891, v. 2; trad.
L. Baudct. Paris: Firmin-Didot, 1842; trad. J. Cousin. Paris: Les Belles
Lettres, 1975, liv. I; 1976, liv. II-III; 1976, liv. IV-V.
5 Idem.
6 FONTANIER. Lesfigures du discours, p. 99.
7 WINNICOTT. Jeu et réalité.
8 Entende-se por patrologia o conhecimento da vida e dos escritos dos

padres católicos. A patrologia do abade francês Jacques Paul Migne


( 1800-1875) é a mais completa de que se tem notícia.
9 JAKOBSON. Essais de linguistique générale, p. 217.
10
Marcar um encontro é o primeiro sentido de citar em espanhol.
11
MASSIGNON. Parole donnée, p. 436.
12
LE BULLETIN DES LETTRES, v. 14, p. 10- 1 1 , 25 jan. 1933. O fato é
relatado nos Cahiers Céline, n. l, p. 52-54, 1976.
13 ZAVIE. Ü!xemple à ne pus suivre. Vintransigeant, 4 mars 1933. Cahiers
Céline, n. I, p. 53.
14 CÉLINE. Postface au Voyage au bout de la nuit. Qu'on s'explique ...
Candide, n. 470, p. 3,16 mars 1933. Cahiers Céline, n. I, p. 54-55.
15 VALÉRY. Cahiers, t. I, p. 249, 1973.
16 ARISTÓTELES. Retórica, III, 8, 1409 a 21. Edição utilizada: Trad. M.
Dufour e A. Wartelle. Paris: Les Belles Lettres, 1960-1973. 3 v.
17 Ver infra, item "O posto avançado': p. 79.
18 LEIRIS. Biffures, p. 277.
19 Ibidem, p. 275.
20 Ibidem, p. 276.
21 BORGES. Làuteur et autres textes.
22 MALLARMÉ. Quant au livre, p. 378.
23 ARAGON. Texto extraído de La mise à mort, p. 509.
24 Ibidem, p. 462. Jean de Buei! é o autor de JouvenceI, ao qual ele fez
muitas referências em La mise à mort como a um tipo de protótipo
do romance.
25 Ibidem, p. 455.
26 PROUST. A la recherche du temps perdu, t. III, p. 1034.
27 BORGES. Fictions, p. 67.
28 BARTHES. S/Z, p. 10.
29 Citado por ZUMTHOR. Le carrefour des rhétoriqueurs, em Poétique,
n. 27, p. 320.
30 CÉLINE. Cahiers Céline, n. 2, p. 188.
31 DELEUZE. Nietzsche et la philosophie, p. 4.
32 Ibidem, p. 84.
33 CONDILLAC. Dictionnaíre des synonymes, t. III, p. 480.
34. BARTHES. Roland Barthes, p. 7l.
35. BORGES; VASQUEZ. Essai sur les anciennes littératures germaniques.
36 Ver BORGES. La bibliotheque de Babel, em Fictions.
37.PLATÃO. Ion, 533d.
38 ARISTÓTELES. Poética, 4, 1448b 5.
39 Voyages de Botzarro, xv, citado por PAULHAN. Lesfleurs de Tarbes, p. 13.

1 68
40 CíCERO lançara o movimento, deslocando a retórica de uma arte da
persuasão para uma arte do ornamento. Ver E orateur, XIX, 61, onde
a elocutio é concebida como o poder supremo da fala.
41 TYNIANOV. De levolution littéraire, p. 120-137.
42 lbidem, p. 123.
43 MORAWSKI. The basic functions of quotation, p. 690-705.
44 PLATÃO. A República, X, 597d
45 lbidem, 597b.
46 PLATÃO. O sofista, 234b.
47 lbidem, 266c.
48 DELEUZE. Logique du setis, p. 297. Sobre o simulacro, ver também
Différence et répétition, p. 9 1 et seq.
49 lbidem, p. 293.
50 PLATÃO. O sofista, 267a.
51 AUDOUARD. Les Cahiers pour l'Analyse, 3, p. 57.
52 DETIÉNNE. Les maltres de vérité dans la Grece archai'que, p. 109, n. 18.
53 PLUTARCO. De gloria atheniensum, 3.
54 ARISTÓTELES. Poética, 25, 1460b 7.
55 SIMONIDE. fr. 190 B, Poetae lyrici graeci, t. III.
56 Ver YATES. Eart de la mémoire, chapo I e II.
57 Instrumento da religião budista (N. do T.).
58 Ver LORD. The singer of Tales.
59 SCHUHL. Platon et lart de son temps, p. 9.
60 PLATÃO. O sofista, 234b.
61 lbidem, 263 e-264b.
62 PLATÃO. Gorgias, 471 e-472a.
63 lbidem, 472c.
64 QUINTILIANO. Proemium. lnstitution oratoire, VIII, 18-22.
65 lbidem, 5, 34.
66 lbidem, XII, 10, 5 1 .
67 lbidem, VIII, 5 , 34.
68 lbidem, IX, 1 , 16.
69 Ver supra, no texto "Uma canonização metonímica", p. 25.

1 69
�-

70 ARISTÓTELES. Retórica, II, 19, 1393 a 20.


71 Rhetorica ad herennium, III, 16-26. E sobre as teorias da memória artificial
na antigüidade, ver YATES. llirt de la mémoire, cap. I, p. 13-38.
n CíCERO. De l'orateur, II, 86, 354. A tradição antiga atribuía em geral
a invenção da memória artificial ao poeta Simonide de Céos. Ver
QUINTILIANO. Institution oratoire, XII, 2, 17-22.
73 Ibidem, II, 87, 358.
74 Ibidem, II, 88, 359.
75 Aliás, Santo Agostinho chamará de vox o significante, por oposição
ao significatus.
76 BARTHES. Communications, n. 16, p. 197.
77 PLATÃO. A República, III, 393b.
78 PLATÃO. Ion, 536a.
79 QUINTILIANO. Institution oratoire, XII, 10, 48.
80 Ver GUILLEMIN. L'imitation dans les littératures antiques; Le public
et la vie littéraire à Rome.
81 HORÁCIO. Art poétique, p. 131-134. Ver DOCK. Études sur le droit
dauteur.
82 HÉLOISE, ABÉLARD. Lettres, p. 61, 82.
83 MONTAIGNE. Essais, II, 17, 618a. Rien de plus suffisant que le mauvais
poete. Martial, XII, LXIII, 13.
84 MALEBRANCHE. Recherche de la vérité, t. II, p. 68.
85 FOUCAULT. wrdre du discours, p. 29.
86 Ibidem, p. 30.
87 RUSSEL. Mind.
88 PROUST. Pastiches et mélanges, p. 29.
89 Michel Butor aprendeu isso às próprias custas: na sua defesa de tese o
júri censurou-o pela falta de notas e de referências. "Suprimindo-os':
respondeu ele, "forço o leitor a reler os textos de apoio: Mas sua defesa
não surtiu efeito: sua perigrafia fracassou, ele foi desqualificado. Ver
PIATIER. Le Monde, p. 18, 1 5 fév. 1973.
90 �GEL. La phénoménologie de l'esprit, p. 5.
91 VOLTAIRE. Verbete '�utores': Dictionnairephilosophique, p. 498, t XVII.
92 DESCARTES. Oeuvres philosophiques, p. 769, t. III.

1 70
93 Idem.
94 Idem.
95 A atribuição é importante se o autor, exemplarmente no prefácio, é
o referente da perigrafia, e se o autor, encarregado do controle da
escrita, não é outro senão o cogito. A invenção cartesiana do prefácio
tem aqui um valor de confirmação.
96 DESCARTES. Oeuvres philosophiques, p. 777, t. IlI.
97 Ibidem, p. 769.
98 VOLTAIRE. Verbete "Autores", Dictionnaire philosophique, p. 498,
t. XVII.
99 Além do mais, isso não é seguro, e o fato de o autor retomar ou
compreender a variedade dos sujeitos da enunciação disseminados
no livro, essa conversão é o que talvez se deva chamar propriamente
de sublimação.
100
FREUD. Nouvelles conférences sur la psychanalyse, p. 7.
101
HEGEL. Propédeutique philosophique, p. 46.
102
CONDILLAC. Dictionnaire des synonymes, p. 465, t. III.
103
SÉNEQUE. Lettres à Lucilius, IV, 33, l .
104
Ver supra, n o texto "Vox, a possessão", p . 57.
105
SÉNEQUE. Lettres à Lucilius, IV, 33, 3, 7. Não peça extratos nem
citações, é vergonhoso extrair seu saber de "comentário':
106
Ibidem, IV, 33, 2.
107
Ibidem, IV, 33, 8. Saber é fazer sua cada coisa sem depender de um
modelo nem se voltar constantemente para um mestre.
10
8 MONTAIGNE. Essais, III, 12, 1034c. E a edição de 1588 precisava:
"Como aqueles que roubam cavalos, eu lhe tinjo a crina e a cauda e,
às vezes, faço-os caolhos:'
109
MALEBRANCHE. Recherche de la vérité, p. 302, t. I.
110
Para Locke, a propriedade intelectual depende da moral natural; para
Kant, nem da razão pura nem da razão prática, mas da faculdade
de julgar, que assegura a ligação entre elas, articula uma à outra e
permite a liberdade.
111
HEGEL. Principes de la philosophie du droit, p. 12l.
1 12
Ibidem, p. 122.
ll3
HEGEL. Principes de la philosophie du droit, p. 122.

171
1 14
Idem.
1 15
PROUST. Correspondance, p. 223, t. rI.
116
MONTArGNE. Essais, III, 2, 783b.
1 I7
SÉNEQUE. Lettres à Lucilius;rv, 33, 9.
1 18
MONTArGNE. Essais, r, 26, 1 50c.
1 19
SÉNEQUE. Lettres à Lucilius, IV, 33, 10.
120
Ibidem, IV, 33, 4.
12 1
Ibidem, IV, 33, 7.
122
SÉNEQUE. Oeuvres de Séneque le philosophe, p. 170, t. I.
123
MALLARMÉ. La musique et les lettres, p. 637.
124
BORGES; CASARES. Hommage à César Paladion, p. 18.
125
Ibidem, p. 19.
126
ATHÉNÉE. Deipnosophistai, X, 457. Citado por CURTIUS. La litté-
rature européenne et le Moyen Age latin, p. 7l.
127
PAULHAN. Les Hain-Tenys, poésie de dispute.
12 8
GOMBROWrCZ. Trans-Atlantique, p. 69.
129
Ibidem, p. 70.
130
Ibidem, p. 7l.
131
BORGES. Fictions, p. 100.
132
Ibidem, p. 9l.
133 Ibidem, p. 101.
134
BOULEZ. Penser la musique aujourd' hui, p. 35.
135
MALLARMÉ. Quant au livre, p. 380.
136
Idem.
137
MALLARMÉ. Un coups de dés, p. 477.

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