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Vencendo a Quarentena com Inovação

O coronavírus faz parte de uma vasta família de vírus que causam infecções respi-
ratórias. Em 1937, os primeiros vírus humanos foram isolados, mas só em 1965 o termo
coronavírus foi descrito, em decorrência da imagem vista em microscópio que lembrava
uma coroa.

Depois de enfrentarmos a síndrome causada pelo SARS (Severe Acute Respiratory Syn-
drome) e pelo MERS (Middle East Respiratory Syndrome), chegou o momento da doença cau-
sada pelo COVID-19, descoberto em 31/12/19 após casos registrados na China.

De um surto localizado a doença tomou proporção mundial por seu alto nível de con-
tágio e por vivermos em um mundo globalizado. A pandemia exigiu uma grande capacida-
de de adaptação e acarretou problemas jurídicos inéditos.

Tendo em vista as novas demandas de uma sociedade abalada pelo COVID-19, ela-
boramos a série Vencendo a Quarentena com Inovação. Nela, nossos coordenadores,
professores e convidados especiais discutem tudo o que você precisa saber para viver
nessa nova realidade. São debates que abrangem desde o gerenciamento de emoções até
os limites constitucionais das medidas tomadas.
Daniel Dias
A análise a seguir foi escrita pelo Daniel Dias,
Professor de Direito Civil da FGV/Rio, Doutor
em Direito Civil (USP/Ludwig-Maximilians) e
Visiting Researcher (Harvard).
@dpndias

O professor além de produzir esse material exclusivo, também participou da nossa


live sobre o tema “Coronavírus e o direito dos contratos: efeitos na relações de con-
sumo, questões trabalhistas e previdenciárias.”

Quer conferir a entrevista? Ouça o podcast!

Boa leitura!
Em tempos de pandemia do coronavírus (COVID-19), tem-se visto,
com crescente frequência, situações em que os fornecedores de produ-
tos e serviços estão impossibilitados de cumprir com suas obrigações
contratuais. Casos em que o fornecedor, mesmo que envidasse todos
os esforços ao seu alcance, não conseguiria fornecer o serviço ou pro-
I N T R O D U Ç ÃO duto contratado.

Esse é o caso, por exemplo, de fornecedor que não consegue en-


tregar o produto final vendido ao consumidor, porque o seu fornece-
dor chinês não entregou os insumos necessários para a elaboração do
produto final. Ou então o caso de empresa aérea que não consegue
transportar os consumidores de determinados voos, porque o país de
destino fechou as suas fronteiras para estrangeiros. Esse é ainda o caso
de produtora de eventos que não pode realizar grande show progra-
mado há meses, em face de norma estatal promulgada recentemente
que proíbe a realização de eventos que gerem a aglomeração de mais
de 500 pessoas.

Mas o que acontece nesses e noutros casos? Quais são os direi-


tos (e eventuais deveres) dos consumidores? E quais são os deveres (e
eventuais direitos) dos fornecedores? O que diz o Código de Defesa do
Consumidor (CDC)?
A lacunosa
regulamentação
do CDC
Em uma leitura atenta do
CDC, nota-se que esses casos
não são bem regulados. A prin-
cipal norma sobre descumpri-
mento das obrigações é o art.
35, o qual prevê os direitos do
consumidor apenas em caso
de “o fornecedor de produtos
ou serviços recusar cumpri-
mento à oferta, apresentação
ou publicidade”.

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Nessa hipótese, é facultado ao consu- consumidor em juízo”, prevê que, “na ação
midor, entre outras medidas, “exigir o cum- que tenha objeto o cumprimento da obri-
primento forçado da obrigação”, ou “acei- gação de fazer ou não fazer”, será admissí-
tar outro produto ou prestação de serviço vel “a conversão da obrigação em perdas e
equivalente” (art. 35, inc. I e II, CDC). danos”, “se por elas optar o autor ou se im-
possível a tutela específica ou a obtenção
Acontece que as situações de impossi- do resultado prático correspondente.” (art.
bilidade não configuram hipótese de “recu- 84, § 1.º, CDC).
sa do fornecedor” ao cumprimento. Nesses
casos, o fornecedor não está se recusando a Essa previsão está sujeita a críticas e
cumprir suas obrigações contratuais. Muito questionamentos. Em primeiro lugar, é es-
pelo contrário. Ele quer fazê-lo. Ele apenas tranho a sua localização em título sobre di-
não consegue, como no referido exemplo reito processual. A questão aqui é, sobretu-
de vendedor que não recebeu os insumos do, de direito material.
necessários do seu fornecedor chinês. Ou
não pode, como no referido caso de proi- O problema não é se é possível ou não
bição de eventos que aglomerem pessoas. ao juiz garantir a tutela específica, ou seja,
se há ou não meios para o juiz constranger
O CDC, por outro lado, mais para o seu o réu a cumprir a obrigação, ou garantir por
final, acaba fazendo menção à figura da im- outra via a satisfação do interesse credor.
possibilidade. No título sobre “defesa do

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A questão é, antes de mais, de direito
material: se o devedor consegue ou não
cumprir a sua obrigação e, consequente-
mente, quais são os direitos do credor em
cada um desses cenários. Isso tudo se passa
normalmente antes e independentemente
de uma ação judicial.

Além disso, em face desse dispositivo,


surgem questões relevantes: por que uma
previsão como essa, de impossibilidade de
cumprimento da obrigação e conversão da
obrigação em perdas e danos, refere-se
apenas às obrigações de fazer e de não fa-
zer e não também às obrigações de dar?

E a previsão de impossibilidade confi-


gura-se apenas no caso de impossibilidade
objetiva ou também subjetiva? Apenas de
impossibilidade definitiva ou também tem-
porária? De impossibilidade superveniente
ou também originária?

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Um possível argumento para a falta de
regulamento para o caso de obrigações de
dar, é o fato de o mercado de consumo ser
formado, na sua grande maioria, por obri-
gações de dar coisa incerta.

Isto é, por obrigações genéricas, cujo


objeto é determinado pelo gênero e pela
quantidade (art. 243, CC). Por exemplo, a
compra e venda de um iPhone (coisa incer-
ta), em vez da compra e venda do Abaporu,
de Tarsila do Amaral (coisa certa).

E, em relação às obrigações genéricas,


vigora tradicionalmente o princípio de que
“o gênero nunca perece”. Então, como an-
tes da concentração o devedor não pode
alegar a perda ou deterioração da coisa
(art. 246, CC) e, consequentemente, não se-
ria possível ao devedor alegar impossibili-

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dade de cumprimento, o legislador poderia coisa certa, liberado por impossibilidade ju-
ter ficado com a impressão de seria desne- rídica superveniente.”1
cessário e inútil regular a impossibilidade
de cumprimento nos casos de obrigação de E quanto aos efeitos, o CDC não prevê
dar. a extinção da obrigação, mas a sua conver-
são em perdas e danos. Trata-se então de
Mas, se é que esse foi o caso, a percep- impossibilidade por culpa do devedor?
ção não se sustenta. Entre outros motivos,
porque a destruição da coisa pode se dar Esse questionamento impõe-se, pois
depois da sua concentração, de modo que tradicionalmente entende-se que, em caso
o regramento a ser aplicado é o das obriga- de impossibilidade não culposa, o devedor
ções de dar coisa certa, no qual a impossi- não responde por perdas e danos. Esse é
bilidade de cumprimento por perda da coi- o caso clássico da impossibilidade por caso
sa é tradicionalmente conhecida (ver, por fortuito ou de força maior (art. 393, CC).
exemplo, art. 234, CC).

Além disso, apesar de excepcional, é


possível que o gênero pereça, como na hi-
pótese de expropriação de todas as coisas 1 Francisco Medina. Compra e venda de coisa incerta no
do gênero pelo Estado. Nesse caso, “o de- direito civil brasileiro: uma análise do dever do
vendedor no código civil de 2002. Tese de doutorado –
vedor de coisa incerta é, assim como o de USP, 2018, p. 513.

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Por fim, vale questionar acerca do con- diálogo da complementaridade e subsidia-
teúdo dessas perdas e danos. Trata-se de riedade2, ou pela interpretação sistemática
indenização pelo interesse positivo ou pelo entre as normas do CDC e do CC3.
negativo? O CDC, infelizmente, não respon-
de a nenhuma dessas questões.

É possível, portanto, concluir que a regu-


lamentação do CDC é lacunosa em relação
aos casos de impossibilidade de cumpri-
mento. Como, então, resolver esses casos?

O CDC não contém dispositivo análogo


ao art. 8.º, 1.º, da Consolidação das Leis do
Trabalho (CLT), o qual prevê que “o direito
comum será fonte subsidiária do direito do
trabalho”. 2 Bruno Miragem. Curso de direito do consumidor. São
Paulo: RT, 2016, p. 80.
3 Jan Peter Schmidt. Zivilrechtskodifikation in Brasilien.
Nada obstante, a solução de aplicar o Tübingen: Mohr Siebeck, 2009, p. 290 e 292,
CC às relações de consumo é justificada por para quem o diálogo das fontes, da forma como ele é
entendido no Brasil, apenas oculta a habitual
diversas vias: seja pela ideia de “diálogo das interpretação sistemática e teleológica em caso envol-
fontes”, mais especificamente pela via do vendo a existência de várias fontes legais.

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A pandemia de coronavírus tem gerado um número crescente de
casos de impossibilidade de cumprimento das obrigações por parte do
C O N C LU S ÃO fornecedor. O CDC, por sua vez, apresenta regulamento extremamente
lacunoso e mal localizado para lidar com esses casos: dispõe apenas
de lacônica regra, em título voltado à tutela processual do consumidor,
sobre impossibilidade das obrigações de fazer e de não fazer.

Entre outras possíveis críticas, deve-se censurar a falta de uma re-


gulação mais pormenorizada e que, sobretudo, abarcasse as obriga-
ções de dar.

A solução para esse problema é a aplicação do regramento sobre


impossibilidade de cumprimento das obrigações presente no CC, na-
quilo que for compatível com o sistema do CDC. Essa solução encontra
respaldo na teoria do diálogo das fontes, ou na interpretação sistemá-
tica das referidas leis.
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