Chama-se dupla articulação, na hipótese funcionalista de A. Martinet, a
organização específica da linguagem humana, segundo a qual todo enunciado se articula em dois planos. No primeiro plano, ou primeira articulação, o enunciado se articula linearmente em unidades dotadas de sentido (unidades significativas: frases, sintagmas, palavras etc.); as menores dessas unidades denominam-se monemas (ou morfemas): a frase “a criança dormirá” se articula em cinco monemas {a – criança – dorm – ir – á}, cada um dos quais podendo ser substituído, no mesmo contexto, por outros monemas no eixo paradigmático, e podendo ainda ser, num contexto diferente, combinado com outros monemas no eixo sintagmático. No segundo plano, ou segunda articulação, cada monema se articula por sua vez, em seu significante, em unidades desprovidas de sentido (unidades distintivas); as menores delas são os fonemas, em número limitado para cada língua. O monema dorm- é formado de quatro fonemas, cada um dos quais pode ser substituído por outros, no mesmo contexto, ou pode combinar-se com outros para formar um monema diferente. O significado também pode ser decomposto, porém não linearmente, em unidades de sentido, ou semas: criança = [humano] + [bem jovem]. A dupla articulação evita uma sobrecarga da memória e permite uma economia de esforço na emissão e na percepção da mensagem; sem a dupla articulação, seria preciso recorrer a um som diferente para designar cada elemento da realidade, cada nova experiência. Assim, a partir de algumas dezenas de fonemas, cujas possibilidades de combinação estão longe de se esgotar, é possível formar alguns milhares de monemas, cujas variadas ordenações veiculam a infinidade de mensagens linguísticas de uma determinada língua. Para A. Martinet, a dupla articulação se apresenta como uma característica da linguagem humana, que por esse meio se diferencia fundamentalmente das demais produções vocais não-linguísticas e dos demais sistemas de comunicação, tais como os códigos e quase-linguagens (linguagem gestual, linguagem musical, linguagem dos animais etc.). Pode-se decompor uma mensagem musical naquelas unidades mínimas destituídas de sentido que são as notas, mas não existe um plano intermediário, correspondente à primeira articulação, em que as notas se organizariam em sequências providas de sentido e passíveis de aparecer, com o mesmo sentido, num outro trecho musical. Inversamente, em certos códigos (código telegráfico, código dos sinais de trânsito), existe um sistema de signos total ou parcialmente arbitrários, cada um dos quais corresponde a um tipo peculiar de experiência, mas estes correspondem a necessidades particulares muito limitadas e a situações definidas, previamente conhecidas pelo receptor e pelo emissor da mensagem. Assim, para além da variedade de articulações das línguas na maneira de combinar os monemas para constituir os enunciados, e na gama de escolhas de que dispõem os indivíduos das diversas comunidades lingüísticas, a dupla articulação se mostra como um universal da linguagem.
Jean Dubois et alii – Dictionnaire de linguistique. Paris: Larousse, 1973, s. v. “Articulation (double)” A DUPLA ARTICULAÇÃO DAS LÍNGUAS
As línguas são duplamente articuladas. Articulado quer dizer, neste caso,
“dividido em partes”. A dupla articulação das línguas aparece com nitidez quando nos propomos a dividir em elementos menores aquilo que é dado, de início, sob a forma de um fluxo mais ou menos contínuo de sons ou de letras. Chegamos, então, a identificar sucessivamente dois tipos de unidades: a) unidades de dupla face, que comportam ao mesmo tempo uma forma audível ou visível e um sentido: na seqüência ceci est un livre, reconhecem-se quatro dessas unidades: ceci, est, un e livre. São as unidades da primeira articulação, muitas vezes chamadas morfemas (e que não se confundem com as palavras); b) unidades de uma única face, estritamente formais e desprovidas de sentido: as letras, tais como c, e, i,. etc., ou os sons, tais como /s/, /e/, /i/, etc. Essas unidades da segunda articulação possuem uma função distintiva: em si próprias destituídas de significação (que sentido atribuir a s ou a e?), elas permitem distinguir entre si as unidades significativas da primeira articulação. Por exemplo, o l (/l/) inicial distingue livre de givre e de vivre. Na sua função lingüística de distinção das unidades da primeira articulação, as unidades da segunda articulação recebem o nome de fonemas (na manifestação oral) ou de grafemas (na manifestação escrita). Todo falante sabe intuitivamente que é quase impossível (embora teoricamente concebível) estabelecer um inventário exaustivo das palavras e dos morfemas de uma língua: os mais volumosos dicionários estão sempre a reboque dos acontecimentos, que podem criar, a qualquer momento, uma nova unidade significativa. Para nos convencermos disso, basta ler uma publicação técnica, ou folhear as páginas publicitárias das revistas. Em compensação, é fácil verificar, perante as 26 letras do alfabeto latino (utilizado pelas línguas românicas), que as unidades da segunda articulação existem em número limitado. É bem verdade que as letras do alfabeto não correspondem, no caso do francês, nem aos fonemas (são 36 no sistema completo), nem mesmo aos grafemas (para os quais se pode hesitar entre duas definições e, por conseguinte, entre dois inventários). Como quer que seja, todas as línguas conhecidas apresentam o traço comum de possuir um inventário limitado de unidades da segunda articulação; para os fonemas, entre uma quinzena (15 no iatmul da Nova Guiné?) e uma centena (116 no khung da África do Sul?). Na maioria das vezes, entre cerca de vinte e cerca de cinqüenta. [...] A dupla articulação é um traço específico das línguas. Elas se distinguem, assim, dos sistemas que, mesmo sendo estratificados como elas, comportam apenas uma articulação, análoga à primeira (por exemplo, as placas do código de trânsito) ou à segunda (por exemplo, as sirenes usadas como sinais). Tais como as conhecemos hoje em dia, as linguagens animais parecem comportar somente a primeira articulação. M. Arrivé et alii –La grammaire d’aujourd’hui. Paris: Flammarion, 1986, s. v. “Langue” A DUPLA ARTICULAÇÃO
As unidades que se combinam numa sequência verbal não se situam todas no
mesmo nível. A linguagem humana assenta-se naquilo que o linguista francês André Martinet (1908 – 1999) denominou dupla articulação, ou seja, ela está constituída de dois tipos de unidades, destacadas em dois níveis distintos. As unidades da primeira articulação (substantivos, verbos, preposições, etc.) são signos: possuem um significante (a sequência sonora de que se constituem) e um significado (uma significação). Classificam-se em categorias, classes, que se combinam para formar grupos de palavras, os quais, por sua vez, constituem enunciados. Por exemplo, o sintagma adjetival "muito bonito" contém duas unidades da primeira articulação, uma pertencente à categoria dos advérbios e outra pertencente à categoria dos adjetivos. Essas unidades da primeira articulação, na verdade, são de diversos tipos: palavras como "azul", "casa", "dorme"...; unidades gramaticais como "o", "com", "que"...; e até mesmo unidades que são somente partes de palavras, tais como os prefixos ("ante-", "pro-"...), os sufixos ("-aria", "-agem"...), as terminações dos verbos ("dorm-ia", "dorm-iu"...). As unidades da segunda articulação (chamadas de fonemas) consistem apenas em significantes. Os elementos t, m ou u, por exemplo, não têm qualquer sentido em si mesmos. O que eles têm, fundamentalmente, é um valor distintivo: o fonema s permite distinguir, por exemplo, "som" de "tom", ou "saca" de "maca". No interior de uma mesma língua, os fonemas devem, portanto, ser suficientemente distintos uns dos outros, de modo que se reduzam os riscos de confusão entre as palavras. Cada língua só explora um número limitado de fonemas. Assim, o francês utiliza uma série de vogais anteriores labializadas (que se pronunciam projetando os lábios para a frente), presentes, por exemplo, em "dur", "nœud" ou "seul", mas essas vogais não existem em espanhol nem em italiano, que no entanto são também línguas derivadas do latim. A dupla articulação constitui um considerável fator de economia, uma vez que basta combinar um número bastante limitado de unidades de segunda articulação (algumas dezenas) para construir um número ilimitado de unidades de primeira articulação, as quais possuem um significante e um significado. Dominique Maingueneau – Aborder la linguistique. Nouvelle édition. Paris: Seuil, 2009, pp. 33-34.