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PALAVRAS DE INDEPENDÊNCIA DA
ÁFRICA II:
NKRUMAH, OLYMPIO, KEITA E
KAUNDA

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Sumário

Apresentação .................................................................................................... 3
Kwame Nkrumah: Discurso de Independência de Gana (1957) ....................... 8
Kwame Nkrumah: Discurso na OUA (1963) ................................................ 11
Sylvanus Olympio: Discurso de Independência do Togo (1960) ..................... 41
Sylvanus Olympio: entrevista no programa Meet The Press da NBC (1962)
.................................................................................................................... 43
Modibo Keita: Discurso do 1º de maio (1967) ................................................ 53
Kenneth Kaunda: Entrevista com o Presidente da Zâmbia (1973) ................. 70
Anexos ............................................................................................................. 99
Agostinho Neto: Proclamação da Independência de Angola (1975) ........ 100
Thomas Sankara: Discurso sobre a dívida externa (1987) ........................ 116
Jonas Savimbi: Quem trouxe a guerra em Angola? (1992) ....................... 125
O Imbróglio Angolano: Carlos Moore ....................................................... 128

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Apresentação

Nesta seleção de discursos acontece a continuidade do


estudo relacionado ao período da retomada da
Independência na África, ou em outras palavras, as lutas
anticoloniais pela independência dos países do continente
africano na segunda metade do século XX.
Por que estudar a história africana a partir destas
palavras?
Podemos elencar diversos motivos, tais quais:
valorização da oralidade, ter contato com projetos
africanos da geração de independência, compreender os
entraves e dilemas entre soberania nacional e
continentalismo, assim como captar a essência da luta que
estes líderes estavam travando e os caminhos escolhidos,
além de constatar que o problema da independência era
apenas a barreira inicial...
É importante exercitar, também, a noção de que tais
projetos não foram tirados repentinamente das mentes
desses líderes. Para muitos o processo de luta, negociação
e organização, foi longo, além do mais, a presença do povo
nessas batalhas foi vital, com isso se tem a ciência de que
aqui se abstrai muita luta, muitas insurreições, e tantas
outras palavras e ações de homens e mulheres da África.

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E, desse modo, vale ainda pontuar que todo projeto ou
governo que visasse uma ruptura mais radical das
potencias imperialistas foi derrubado, seja através de
Golpes de Estado ou através de assassinatos das
lideranças!
Na primeira seleção tivemos Nnandi Azikive trazendo
sua posição contra o imperialismo britânico na Nigéria.
Sekou Touré, já após a independência da Guiné-Conakry,
levantando a importante questão cultural africana como
imbricada em qualquer etapa de luta política. Julius
Nyerere, presidente da Tanzânia, explanou o dilema dos
pan-africanistas e os obstáculos políticos para alcançar a
unidade. E Samora Machel proclamando a independência
de Moçambique após anos de luta armada pela libertação
moçambicana da colônia portuguesa.
Nesta edição o ponto de partida já se dá nos discursos
de independência, começando então com um dos maiores
lideres pan-africanos, Kwame Nkrumah, primeiro com seu
grito de soberania (1957) e depois com seu icônico
pronunciamento na OUA em 1963, clamando pela
necessidade de unidade em todo o continente africano,
uma federação.
Adiante, temos Sylvanus Olympio, primeiro presidente
de Togo, e após sua proclamação de independência,

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poderemos perceber um dos entraves e atritos geopolíticos
na África a partir de sua entrevista à NBC. Parte do dilema
dito por Nyerere acontece de fato, além das consequências
da tal partilha inescrupulosa da África na Conferência de
Berlin, que nesse caso particular dividiu o Povo Ewe entre
Gana e Togo.
Olympio evidencia que faz parte de um grupo,
Monróvia, que de certa forma se contrapõe com o grupo
Casablanca de Kwame Nkrumah, Modibo Keita, Sekou
Touré, etc. Dois grupos de países africanos independentes,
que se uniram para construir a OUA, mas que possuíam
posições conflituosas acerca da unidade africana. Em
suma, o grupo de Monróvia que possuía uma ligação com
o imperialismo era majoritário na Organização e assim
projetos como o de Nkrumah não teve prosseguimento.
Nessa entrevista é interessante notar a forma como os
entrevistadores desejam posicionar Sylnavus em meio a
Guerra Fria. Ele adota o não alinhamento ou neutralidade,
mas aponta – nas entrelinhas - uma intervenção implícita
do poderio colonial em sua política.
Depois de três anos como presidente, Olympio foi
assassinado em sua casa após uma emboscada militar.
Pode ser considerado o primeiro Golpe de Estado de um
país que havia reconquistado a independência. O sargento

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Etienne Gnassingbe Eyadéma foi fundamental na
derrubada de Olympio e com o apoio da França por trás do
golpe.
Passamos então para Modibo Keita, primeiro
presidente da Republica do Mali, que já em 1967, sete
anos depois da soberania, fez seu discurso para os
trabalhadores no dia 1º de Maio. Um ano antes que sofrer
um Golpe de Estado.
Em 19 de novembro de 1968, o general Moussa Traorè
derrubou Keita, que foi enviado para a prisão em Kidal,
Mali, e lá permaneceu preso até sua morte em 16 de maio
de 1977.
Como pan-africanista, ele desenvolveu a União dos
Estados da África Ocidental com o Kwame Nkrumah e
Sèkou Tourè, primeiro presidente da Guiné. Sendo,
também, importante na formação da OUA.
Em seguida temos a entrevista do primeiro presidente
da Zâmbia, Kenneth Kaunda. Uma entrevista de 1973 em
que se tratou, em síntese, dos problemas com a Rodésia de
Smith e também sobre a politica do Humanismo de
Kaunda na Zâmbia.
Todos os discursos traduzidos por Carlos R. Rocha
(Fuca), exceto os anexos. Que são: Agostinho Neto

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(Angola), Thomas Sankara (Burkina Faso), Jonas Savimbi
e Carlos Moore.

Dúvidas, sugestões, correções no blog:


https://insurreicaocgpp.blogspot.com/
Fuca, Insurreição CGPP. 2020

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Kwame Nkrumah: Discurso de Independência
de Gana (1957)

Finalmente, a batalha acabou! E assim Gana, o amado


país de vocês, está livre para sempre.
E mais uma vez quero aproveitar a oportunidade para
agradecer às lideranças e ao povo deste país, aos jovens,
aos agricultores, às mulheres que tão nobremente lutaram
e venceram esta batalha.
Também quero agradecer aos valentes ex-militares que
cooperaram bastante comigo nessa poderosa tarefa de
libertar nosso país do domínio estrangeiro e do
imperialismo.
E como eu falei... deixei bem claro que a partir de
agora, hoje, devemos mudar nossas atitudes, nossas
mentes, devemos compreender que, a partir de agora, não
somos mais um povo colonial, mas um povo livre e
independente.
Pontuei também que isso implica trabalho duro. O de
remodelar o destino de Gana. Estou dependendo das
milhões de pessoas deste país, dos chefes e do povo, para
me ajudar a redirecionar o destino deste país. E estamos
preparados para torná-lo um país que será respeitado por
todas as nações do mundo.

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Sabemos que teremos um começo difícil, mas
novamente, confio no apoio de todos, e com trabalho duro.
Posso perceber que vocês estão aqui aos milhões e
meu último aviso é que vocês devem permanecer firmes e
juntos a nós, para que possamos provar ao mundo que,
quando o povo africano tem uma chance, consegue
mostrar ao mundo que ele é alguém.
Nós nos despertamos. Não vamos dormir mais. Hoje, a
partir de agora, há um novo africano no mundo! Esse novo
africano está pronto para lutar em suas próprias batalhas
e mostrar que, afinal, o povo preto é capaz de gerenciar
seus próprios assuntos.
Vamos demonstrar ao mundo e às outras nações que
estamos preparados para estabelecer nossa própria
instituição. Nossa própria identidade africana.
Da mesma forma que eu disse na assembleia alguns
minutos atrás, afirmei que vamos criar nossa própria
personalidade e identidade africana.
Mas hoje, peço a todos vocês que, neste grande dia,
lembremos todos que nada no mundo pode ser feito a
menos que se tenha o comando e o apoio de Deus.
Nossa independência não tem sentido, a menos que
esteja ligada à libertação total da África.

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Vamos agora companheiros ganenses, vamos agora
pedir as bênçãos de Deus e por apenas alguns segundos
em seus milhares e milhões... Quero pedir a vocês que
façam uma pausa por um minuto e deem graças a Deus
todo-poderoso por ter nos levado através de nossas
dificuldades, prisões, privações e sofrimentos por ter
proporcionado o fim de nossos problemas hoje.
Gana é livre para sempre e aqui vou pedir à banda que
toque o hino nacional de Gana.

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Kwame Nkrumah: Discurso na OUA (1963)

O discurso icônico de Kwame Nkrumah, presidente da


independência de Gana, na cerimônia inaugural da
Conferência da OUA em Addis Abeba, Etiópia, em 1963.

Excelências, colegas, irmãos e amigos.


No primeiro encontro de Chefes de Estado africanos,
ao qual tive a honra de ser anfitrião, havia apenas
representantes de oito Estados independentes. Hoje, cinco
anos depois, nos encontramos com representantes de
nada menos do que trinta e dois Estados, os convidados de
Sua Majestade Imperial, Haile Selassie, o primeiro, e o
Governo e o povo da Etiópia. À Sua Majestade Imperial,
desejo expressar, em nome do Governo e do povo de Gana,
meu profundo agradecimento pela recepção cordial e
hospitalidade generosa.
O aumento de nosso número neste curto espaço de
tempo é um testemunho aberto da onda indomável e
irresistível de nossos povos pela independência. É também
um sinal da velocidade revolucionária dos eventos
mundiais na segunda metade deste século. Na tarefa que
temos diante de unificar nosso continente, devemos entrar
nesse ritmo ou ficaremos para trás. Essa tarefa não pode

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ser deixada para outra época além da nossa. Ficar para
trás neste momento sem precedentes de ações e eventos
em nosso tempo será cair no fracasso e na nossa própria
ruína.
Um continente inteiro nos impôs um mandato para
estabelecer os alicerces de nossa União nesta Conferência.
É nossa responsabilidade executar este mandato, criando
aqui e agora a fórmula sobre a qual a superestrutura
necessária pode ser erguida.
Neste continente, não se demorou muito para
descobrir que a luta contra o colonialismo não termina
com a conquista da independência nacional. A
independência é apenas o prelúdio de uma luta nova e
mais envolvida pelo direito de conduzir nossos próprios
assuntos econômicos e sociais; construir nossa sociedade
de acordo com nossas aspirações, sem impedimentos dos
controles humilhantes e esmagadores das interferências
neocolonialistas.
Desde o início, somos ameaçados pela frustração, onde
a mudança rápida é imperativa; e pela instabilidade, onde
o esforço continuado e a ordem são indispensáveis.
Nenhuma ação esporádica ou resolução piedosa pode
resolver nossos problemas atuais. Nada será útil, exceto a
ação conjunta de uma África unida. Já alcançamos o

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estágio em que devemos nos unir para não cairmos na
mesma condição que fez da América Latina a presa
relutante e aflita do imperialismo, após um século e meio
de independência política.
Como continente, emergimos para a independência em
uma era diferente, com o imperialismo cada vez mais forte,
mais cruel e experiente, e mais perigoso em suas
associações internacionais. Nosso avanço econômico exige
o fim da dominação colonialista e neocolonialista na
África.
Assim como entendemos que a formação de nossos
destinos nacionais exigia de cada um de nós nossa
independência política e direcionando toda a nossa força a
essa conquista, no entanto, devemos reconhecer que nossa
independência econômica reside em nossa união africana
e requer a mesma concentração da conquista política.
A unidade do nosso continente, não menos que a
independência de cada país, será adiada, ou até perdida,
se nos associarmos com o colonialismo. A unidade
africana é, acima de tudo, um reino político que só pode
ser conquistado por meios políticos. O desenvolvimento
social e econômico da África virá apenas dentro do reino
político, e não o contrário. Os Estados Unidos da América,
a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, foram as

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decisões políticas dos povos revolucionários antes de se
tornarem realidades potentes de poder social e riqueza
material.
Como, exceto por nossos esforços conjuntos, as partes
mais ricas e ainda escravizadas de nosso continente serão
libertadas da ocupação colonial e ficarão disponíveis para
nós no desenvolvimento total de nosso continente? Cada
passo na descolonização do nosso continente trouxe maior
resistência nas áreas em que tropas coloniais estão
disponíveis a favor do colonialismo.
Esse é o grande desígnio dos interesses imperialistas
que sustentam o colonialismo e o neocolonialismo, e
estaríamos nos enganando da maneira mais cruel se
considerássemos suas ações individuais separadas e não
relacionadas. Quando Portugal viola a fronteira do
Senegal, quando Verwoed alocou um sétimo do orçamento
da África do Sul para forças armadas e policiais, quando a
França constrói como parte de sua política de defesa uma
força intervencionista que pode intervir, mais
especialmente na África francófona, quando Welensky fala
da Rodésia do Sul se juntando à África do Sul, tudo faz
parte de um padrão cuidadosamente calculado,
trabalhando para um único fim: a escravização contínua

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de nossos irmãos ainda dependentes e um ataque à
independência de nossos Estados soberanos da África.
Temos alguma outra arma contra esse projeto além da
nossa unidade? Nossa unidade não é essencial para
proteger nossa própria liberdade, assim como conquistar a
liberdade para nossos irmãos oprimidos, os combatentes
pela liberdade?
Não é somente a unidade que pode nos fundir em uma
força efetiva capaz de criar nosso próprio progresso e fazer
nossa valiosa contribuição para a paz mundial? Que
Estado africano independente reivindicará que sua
estrutura financeira e instituições bancárias serão
totalmente aproveitadas para o seu desenvolvimento
nacional? Quem afirmará que seus recursos materiais e
energias humanas estão disponíveis para suas próprias
aspirações nacionais? Quem negará uma medida
substancial de decepção e desilusão em seu
desenvolvimento agrícola e urbano?
Na África independente, já estamos reexperimentando
a instabilidade e frustração que existiam sob o domínio
colonial. Estamos aprendendo rapidamente que a
independência política não é suficiente para nos livrar das
consequências do domínio colonial. O movimento das
massas do povo da África pela liberdade desse tipo de

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domínio não foi apenas uma revolta contra as condições
que ele impôs.
Nosso povo nos apoiou em nossa luta pela
independência porque acreditava que os governos
africanos poderiam curar os males do passado de uma
maneira que nunca poderia ser realizada sob o domínio
colonial. Se, portanto, agora que somos independentes,
permitimos que existam as mesmas condições que
existiam nos dias coloniais, todo o ressentimento que
derrubou o colonialismo será mobilizado contra nós.
Os recursos estão lá. Cabe a nós reuni-los no serviço
ativo de nosso povo. A menos que façamos isso com
nossos esforços combinados, dentro da estrutura de nosso
planejamento combinado, não progrediremos no ritmo
exigido pelos acontecimentos de hoje e na disposição de
nosso povo. Os sintomas de nossos problemas crescerão e
os próprios problemas se tornarão crônicos. Será tarde
demais para a Unidade Pan-Africana nos garantir
estabilidade e tranquilidade em nossos trabalhos para um
continente de justiça social e bem-estar material. A menos
que estabeleçamos a Unidade Africana agora, nós, que
estamos sentados aqui hoje, seremos as vítimas e mártires
do neocolonialismo.

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Temos diversas evidências de que os imperialistas não
se afastaram de nossos assuntos. Há momentos, como no
Congo, em que sua interferência se manifesta. Mas
geralmente é encoberta por muitas agências, que se
intrometem em nossos assuntos domésticos, e fomentam
dissensões dentro de nossas fronteiras criando uma
atmosfera de tensão e instabilidade política. Enquanto não
acabarmos com as causas profundas do
descontentamento, prestamos ajuda a essas forças
neocolonialistas e nos tornaremos nossos próprios
executores. Não podemos ignorar os ensinamentos da
história.
Nosso continente é provavelmente o mais rico do
mundo em minerais e materiais primários industriais e
agrícolas. Somente no Congo, as firmas ocidentais
exportaram cobre, borracha, algodão e outros bens no
valor de 2, 773 bilhões de dólares em dez anos, entre 1945
e 1955, e da África do Sul, as empresas de mineração de
ouro ocidentais obtiveram lucro, nos quatro anos, entre
1947 e 1951, de 814 bilhões de dólares.
Nosso continente certamente excede todos os outros
em potencial de energia hidrelétrica, que alguns
especialistas avaliam sendo 42% do total do mundo. Que

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necessidade existe para continuarmos abastecendo
(hewers) as áreas industrializadas do mundo?
Dizem, é claro, que não temos capital, habilidade
industrial, comunicação ou mercado interno, e que nem
sequer podemos concordar entre nós sobre a melhor forma
de utilizar nossos recursos.
No entanto, todas as bolsas de valores do mundo estão
preocupadas com os minérios de ouro, diamantes, urânio,
platina, cobre e ferro da África. Nosso capital flui em
correntes para irrigar todo o sistema da economia
ocidental. Acredita-se que 52% do ouro em Fort Knox
neste momento, onde os EUA armazenam seu ouro,
tenham se originado em nossas Costas. A África fornece
mais de 60% do ouro do mundo. Grande parte do urânio
para energia nuclear, de cobre para eletrônica, de titânio
para projéteis supersônicos, de ferro e aço para indústrias
pesadas, de outros minerais e matérias-primas para
indústrias leves - o poder econômico básico das potências
estrangeiras - vem do nosso continente.
Especialistas estimaram que somente a bacia do
Congo pode produzir alimentos suficientes para satisfazer
as necessidades de quase metade da população de todo o
mundo.

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Durante séculos, a África tem sido a vaca leiteira do
mundo ocidental. Foi o nosso continente que ajudou o
mundo ocidental a construir sua riqueza acumulada.
É verdade que agora estamos rejeitando o jugo do
colonialismo o mais rápido possível, mas nosso sucesso
nessa direção é igualado por um intenso esforço por parte
do imperialismo de continuar a exploração de nossos
recursos, criando divisões entre nós.
Quando as colônias do continente americano
procuraram se libertar do imperialismo no século XVIII,
não havia ameaça de neocolonialismo no sentido em que o
conhecemos hoje. Os Estados americanos estavam,
portanto, livres para formar e moldar a unidade mais
adequada às suas necessidades e estruturar uma
constituição para manter sua unidade sem qualquer forma
de interferência de fontes externas. Contudo, estamos
lidando com intervenções externas, então precisamos nos
juntar na unidade africana que, por si só, pode nos salvar
das garras do neocolonialismo.
Nós temos os recursos. Foi o colonialismo em primeiro
lugar que nos impediu de acumular o capital efetivo; mas
nós mesmos falhamos em fazer pleno uso de nosso poder
na independência e mobilizar nossos recursos para decolar
num desenvolvimento econômico e social completo e mais

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eficaz. Estamos muito ocupados cuidando de nossos
Estados separados para entender completamente a
necessidade básica de nossa união, enraizada em um
objetivo comum, em um planejamento comum e em um
esforço comum. Uma união que ignora essas necessidades
fundamentais não passa de uma vergonha. É apenas
unindo nossa capacidade produtiva e a produção
resultante que podemos acumular capital. E assim que
começarmos, o impulso aumentará. Com o capital
controlado por nossos próprios bancos, atrelado ao nosso
verdadeiro desenvolvimento industrial e agrícola, faremos
o nosso avanço. Acumularemos máquinas e
estabeleceremos siderúrgicas, fundições e fábricas de
ferro; vincularemos os vários Estados do nosso continente
com comunicações; surpreenderemos o mundo com nossa
energia hidrelétrica; drenaremos brejos e pântanos,
limparemos áreas infestadas, alimentaremos os
subnutridos e livraremos nosso povo de parasitas e
doenças. Está dentro da possibilidade da ciência e da
tecnologia fazer até o Saara florescer em um vasto campo
com vegetação verdejante para desenvolvimentos agrícolas
e industriais. Utilizaremos o rádio, a televisão e os grandes
jornais impressos para elevar nosso povo dos retrocessos
sombrios do analfabetismo.

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Uma década atrás, essas seriam palavras visionárias,
as fantasias de um sonhador ocioso. Mas esta é a era em
que a ciência transcendeu os limites do mundo material e
a tecnologia invadiu os silêncios da natureza. Tempo e
espaço foram reduzidos a abstrações sem importância.
Máquinas gigantes fazem estradas, limpam florestas,
escavam barragens; caminhões e aviões gigantes
distribuem mercadorias; enormes laboratórios fabricam
remédios; pesquisas geológicas complexas são feitas;
poderosas centrais elétricas são construídas; colossais
fábricas erguidas - tudo a uma velocidade incrível. O
mundo não está mais se movendo pelos caminhos do mato
ou pelos camelos e burros.
Não podemos nos dar ao luxo de acompanhar nossas
necessidades, nosso desenvolvimento, nossa segurança ao
andar de camelos e burros. Não podemos nos dar ao luxo
de não derrubar os arbustos de atitudes obsoletas que
obstruem nossa estrada para o caminho moderno da
conquista recente e mais ampla da independência
econômica e para elevar a vida de nosso povo ao mais alto
nível.
Mesmo para outros continentes sem recursos da
África, esta é a era que vê o fim das necessidades
humanas. Para nós, é uma simples questão de apreender

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com certeza nossa herança usando o poder político da
unidade. Tudo o que precisamos fazer é desenvolver com a
nossa força unida os enormes recursos do nosso
continente. Uma África unida fornecerá um campo estável
de investimento estrangeiro, o que ajudará enquanto não
se comportar de maneira adversa aos nossos interesses
africanos. Pois esse investimento agregaria suas empresas
ao desenvolvimento da economia nacional, ao emprego e
ao treinamento de nosso povo e será bem-vindo à África.
Ao lidar com uma África unida, os investidores não
precisarão mais pesar com preocupação os riscos de
negociar com os governos de um período que pode não
existir no período seguinte. Em vez de negociar com tantos
Estados separados ao mesmo tempo, eles estarão lidando
com um governo unido que segue uma política continental
harmonizada.
Qual é a alternativa para isso? Se vacilarmos nesta
fase, e deixarmos o tempo passar para o neocolonialismo
consolidar sua posição neste continente, qual será o
destino de nosso povo que depositou sua confiança em
nós? Qual será o destino dos nossos combatentes pela
liberdade? Qual será o destino de outros territórios
africanos que ainda não estão livres?

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A menos que possamos estabelecer grandes complexos
industriais na África - o que só podemos fazer com a África
unida - devemos ter nosso campesinato à mercê dos
mercados estrangeiros e enfrentar a mesma inquietação
que derrubou os colonialistas? Que utilidade para o
agricultor tem educação e mecanização, que utilidade tem
mesmo o capital para o desenvolvimento; a menos que
possamos garantir para ele um preço justo e um mercado
pronto? O que os camponeses, trabalhadores e
agricultores ganharam com a independência política, a não
ser que possamos garantir a eles um retorno justo pelo
seu trabalho e um padrão de vida mais alto?
A menos que possamos estabelecer grandes complexos
industriais na África, o que o trabalhador urbano, e todos
aqueles camponeses em terras superlotadas, têm ganhado
com a independência política? Se eles permanecerem
desempregados ou em ocupação não qualificada, o que
lhes valerá as melhores instalações para educação,
treinamento técnico, energia e ambição que a
independência nos permite proporcionar?
Quase não existe Estado Africano sem problemas de
fronteira com seus vizinhos adjacentes. Seria inútil
enumerá-los aqui, porque eles já são familiares a todos
nós. Mas deixe-me sugerir a Vossa Excelência que este

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resquício fatal do colonialismo nos levará à guerra um
contra o outro à medida que nosso desenvolvimento
industrial não planejado e descoordenado se expande,
assim como aconteceu na Europa. A menos que
consigamos deter o perigo através da compreensão mútua
sobre questões fundamentais e através da Unidade
Africana, que tornarão obsoletas e supérfluas as fronteiras
existentes, teremos lutado em vão pela independência.
Somente a Unidade Africana pode curar essa ferida
inflamada de disputas de fronteiras entre nossos vários
Estados. Excelências, o remédio para esses males está
pronto em nossas mãos. Encara-nos de frente em todas as
barreiras alfandegárias, grita para nós cada coração
africano. Ao criar uma verdadeira união política de todos
os Estados independentes da África, podemos enfrentar,
esperançosamente, todas as emergências, todos os
inimigos e todas as complexidades. Isso não é porque
somos uma raça de super-homem, mas porque emergimos
na era da ciência e tecnologia em que pobreza, ignorância
e doença não são mais os mestres, mas os inimigos da
humanidade. Surgimos na era do planejamento
socializado, quando a produção e a distribuição não são
governadas pelo caos, pela ganância e pelo interesse
próprio, mas pelas necessidades sociais. Juntamente com

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o resto da humanidade, despertamos dos sonhos utópicos
para buscar projetos práticos de progresso e justiça social.
Acima de tudo, emergimos em um momento em que
uma massa de terra continental como a África, com sua
população próxima de trezentos milhões, é necessária para
a capitalização econômica e rentabilidade dos métodos e
técnicas produtivas modernas. Nenhum de nós,
trabalhando isoladamente ou individualmente, pode
alcançar com êxito o desenvolvimento pleno. Certamente,
nessas circunstâncias, não será possível prestar
assistência adequada aos Estados irmãos que tentam, nas
condições mais difíceis, melhorar suas estruturas
econômicas e sociais. Somente uma África unida que
funcione sob um governo da União pode mobilizar
vigorosamente os recursos materiais e morais de nossos
países separados e aplicá-los de maneira eficiente e
energética para trazer uma rápida mudança nas condições
de nosso povo.
Se não abordarmos os problemas na África com uma
frente comum e um propósito comum, ficaremos
discutindo entre nós até sermos colonizados novamente e
nos tornarmos portagens de um colonialismo muito maior
do que sofremos até então.

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Devemos nos unir. Sem necessariamente sacrificar
nossas soberanias, grandes ou pequenas, podemos, aqui e
agora, forjar uma união política baseada na Defesa,
Negócios Estrangeiros e Diplomacia, uma Cidadania
comum, uma moeda africana, uma Zona Monetária
Africana e um Banco Central Africano. Devemos nos unir
para alcançar a libertação total do nosso continente.
Precisamos de um sistema de Defesa comum com um Alto
Comando Africano para garantir a estabilidade e a
segurança da África.
Fomos encarregados dessa tarefa sagrada por nosso
próprio povo, e não podemos trair sua confiança ao falhar
com eles. Iremos zombar das esperanças de nosso povo se
mostrarmos a menor hesitação ou atraso ao abordar
realisticamente esta questão da Unidade Africana.
O fornecimento de armas ou outra ajuda militar aos
opressores coloniais na África deve ser considerado não
apenas como auxílio à derrota dos combatentes da
liberdade que lutam pela independência africana, mas
como um ato de agressão contra toda a África. Como
podemos enfrentar essa agressão, exceto pelo peso total de
nossa força unida?
Muitos de nós transformamos o não-alinhamento em
um artigo de fé neste continente. Não temos desejo nem

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intenção de sermos atraídos pela Guerra Fria. Mas com a
atual fraqueza e insegurança de nossos Estados no
contexto da política mundial, a busca por bases de
influência traz a Guerra Fria para a África com seu perigo
de guerra nuclear. A África deve ser declarada uma zona
livre de armas nucleares e das exigências da Guerra Fria.
Mas não podemos tornar essa demanda obrigatória, a
menos que a sustentemos com uma posição de força que
pode ser encontrada apenas em nossa unidade.
Em vez disso, muitos Estados africanos independentes
estão envolvidos em pactos militares com as antigas
potências coloniais. A estabilidade e a segurança que esses
dispositivos procuram estabelecer são ilusórias, pois as
potências metropolitanas aproveitam a oportunidade para
apoiar seus controles neocolonialistas por envolvimento
militar direto. Vimos como os neocolonialistas usam suas
bases para entrincheirar-se e atacar Estados
independentes vizinhos. Tais bases são centros de tensão e
potenciais pontos dos perigos de conflitos militares. Eles
ameaçam a segurança não apenas do país em que estão
localizados, mas também dos países vizinhos. Como
podemos esperar tornar a África uma zona livre de armas
nucleares e independente da pressão da Guerra Fria com
esse envolvimento militar em nosso continente? Apenas

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contrabalanceando uma força de defesa comum com uma
política de defesa comum baseada no nosso desejo de uma
África livre da ordem estrangeira ou da presença militar e
nuclear. Isso exigirá um Alto Comando Africano
abrangente, especialmente se os pactos militares com os
imperialistas forem renunciados. É a única maneira de
romper esses vínculos diretos entre o colonialismo do
passado e o neocolonialismo que nos interrompe hoje.
Não queremos nem visualizamos um Alto Comando
Africano nos termos da política de poder que agora
governa grande parte do mundo, mas como um
instrumento essencial e indispensável para garantir a
estabilidade e a segurança em África.
Precisamos de um planejamento econômico unificado
para a África. Até que o poder econômico da África esteja
em nossas mãos, as massas não podem ter nenhuma
preocupação real e nenhum interesse real em
salvaguardar nossa segurança, em garantir a estabilidade
de nossos regimes e em dobrar suas forças para o
cumprimento de nossos fins. Com nossos recursos,
energias e talentos juntos, temos os meios, assim que
demonstrarmos vontade, de transformar as estruturas
econômicas de nossos Estados individuais da pobreza para
a riqueza, da desigualdade para a satisfação das

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necessidades populares. Somente de forma continental
poderemos planejar a utilização adequada de todos os
nossos recursos para o pleno desenvolvimento de nosso
continente.
De que outra forma manteremos nosso próprio capital
para o nosso desenvolvimento? De que outra forma vamos
estabelecer um mercado interno para nossas próprias
indústrias? Pertencendo a diferentes zonas econômicas,
como quebraremos as barreiras cambiais e comerciais
entre os Estados africanos, e como os economicamente
mais fortes entre nós poderão ajudar os Estados mais
fracos e menos desenvolvidos?
É importante lembrar que o financiamento
independente e o desenvolvimento independente não
podem ocorrer sem uma moeda independente. Um sistema
monetário apoiado pelos recursos de um Estado
estrangeiro está ipso facto sujeito aos acordos comerciais e
financeiros desse país estrangeiro.
De modo que temos tantas barreiras alfandegárias e
cambiais como resultado de estarmos sujeitos aos
diferentes sistemas monetários de potências estrangeiras,
isso serviu para aumentar a diferença entre nós na África.
Como, por exemplo, comunidades e famílias relacionadas
podem negociar e apoiar-se mutuamente, se se encontram

29
divididas por fronteiras nacionais e restrições de moeda? A
única alternativa aberta a eles nessas circunstâncias é
usar moeda contrabandeada e enriquecer criminosos e
trapaceiros nacionais e internacionais que atacam nossas
dificuldades financeiras e econômicas.
Atualmente, nenhum Estado africano independente
tem a chance de seguir um curso independente de
desenvolvimento econômico, e muitos de nós que tentamos
fazer isso estamos quase arruinados ou tivemos que voltar
ao rebanho dos antigos governantes coloniais. Esta
posição não será alterada, a menos que tenhamos uma
política unificada trabalhando no nível continental. O
primeiro passo para nossa economia coesa seria uma zona
monetária unificada, com, inicialmente, uma paridade
comum acordada para nossas moedas. Para facilitar esse
arranjo, Gana mudaria para um sistema decimal. Quando
descobrimos que o arranjo de uma paridade comum fixa
está funcionando com êxito, parece não haver razão para
não instituir uma moeda comum e um único banco de
emissão. Com uma moeda comum de um banco de
emissão comum, poderemos caminhar com nossos
próprios pés porque esse arranjo seria totalmente
respaldado pelos produtos nacionais combinados dos
Estados que compõem a união. Afinal, o poder de compra

30
do dinheiro depende da produtividade e da exploração
produtiva dos recursos naturais, humanos e físicos da
nação.
Enquanto asseguramos nossa estabilidade por um
sistema de defesa comum, e nossa economia está sendo
orientada além do controle estrangeiro por uma moeda
comum, Zona Monetária e Banco Central de Emissão,
podemos apurar os recursos de nosso continente.
Podemos começar a verificar se, na realidade, somos os
mais ricos, ou não, como fomos ensinados a acreditar, os
mais pobres entre os continentes. Podemos determinar se
possuímos o maior potencial em energia hidrelétrica e se
podemos aproveitá-lo e outras fontes de energia para
nossas próprias indústrias. Podemos continuar planejando
nossa industrialização em escala continental e
construindo um mercado comum para quase trezentos
milhões de pessoas.
O planejamento continental comum para o
desenvolvimento industrial e agrícola da África é uma
necessidade vital.
Tantas bênçãos devem fluir de nossa unidade; tantos
desastres devem seguir nossa contínua desunião, que
nosso fracasso em nos unir hoje não será atribuído no

31
futuro apenas ao discurso falho e à falta de coragem, mas
por nossa capitulação diante das forças do imperialismo.
A hora da história que nos trouxe a esta assembleia é
uma hora revolucionária. É a hora da decisão. Pela
primeira vez, o imperialismo econômico que nos ameaça é
desafiado pela vontade irresistível de nosso povo.
As massas do povo da África estão clamando por
união. O povo da África pede uma quebra das fronteiras
que os mantem separados. Eles exigem o fim das disputas
fronteiriças entre os Estados africanos irmãos - disputas
que surgem das barreiras artificiais que nos dividiram. Foi
o propósito do colonialismo que nos deixou com o
irredentismo fronteiriço que rejeitou nossa fusão étnica e
cultural.
Nosso povo clama por unidade para que não percam
seu patrimônio no serviço perpétuo do neocolonialismo.
Em seu fervoroso esforço pela unidade, eles entendem que
apenas essa realização dará pleno significado à sua
liberdade e à nossa independência africana.
É essa determinação popular que deve nos levar a uma
União de Estados Africanos Independentes. Em atraso, há
perigo para o nosso bem-estar, para a nossa própria
existência como Estados livres. Sugeriu-se que nossa
abordagem de unidade fosse gradual, que fosse feita por

32
partes. Este ponto de vista concebe a África como uma
entidade estática com problemas "congelados" que podem
ser eliminados um a um e quando tudo tiver sido
resolvido, podemos nos reunir e dizer: “Agora está tudo
bem. Vamos nos unir”. Essa visão não leva em
consideração o impacto das pressões externas. Também
não toma conhecimento do perigo de que o atraso possa
aprofundar nossos isolamentos e exclusividade; que pode
ampliar nossas diferenças e nos separar cada vez mais na
rede do neocolonialismo, para que nossa união se torne
apenas uma esperança enfraquecida, e o grande projeto da
redenção completa da África se perca, talvez, para sempre.
Expressa-se também que nossas dificuldades
poderiam ser resolvidas simplesmente por uma maior
colaboração por meio de associação cooperativa em nossas
relações interterritoriais. Essa maneira de encarar nossos
problemas nega uma concepção adequada de suas inter-
relações e mutualidades. Nega a confiança num futuro
para o progresso africano, na independência africana. Trai
um senso de solução apenas na dependência contínua de
fontes externas por meio de acordos bilaterais para formas
econômicas e outras formas de ajuda.
O fato é que, embora estivéssemos cooperando e nos
associando uns aos outros em vários campos de

33
empreendimentos comuns, mesmo antes dos tempos
coloniais, isso não nos deu a identidade continental e a
força política e econômica que nos ajudariam a lidar
efetivamente com os problemas complicados que hoje
enfrentamos na África. No que diz respeito à ajuda
externa, a África Unida estaria em uma posição mais
favorável para atrair assistência de fontes estrangeiras. Há
a vantagem muito mais convincente que esse acordo
oferece, pois a ajuda virá de qualquer lugar para a África,
porque nosso poder de barganha se tornaria infinitamente
maior. Não dependeremos mais da ajuda de fontes
restritas. Teremos o mundo para escolher.
O que estamos procurando na África? Estamos
procurando acordos, concebidas à luz do exemplo das
Nações Unidas (ONU)? Um tipo de organismo como a ONU
cujas decisões são formuladas com base em resoluções
que, em nossa experiência, às vezes foram ignoradas pelos
Estados membros? Onde os agrupamentos são formados e
as pressões se desenvolvem de acordo com o interesse do
grupo em questão? Ou pretende-se que a África se
transforme em uma organização perdida dos Estados,
segundo o modelo da organização dos Estados americanos,
em que os Estados mais fracos dentro dele podem estar à
mercê dos mais fortes ou mais poderosos, política ou

34
economicamente, ou à mercê de algumas nações ou
grupos externos de nações poderosas? É este o tipo de
associação que queremos para nós mesmos na África
Unida da qual todos falamos com tanto sentimento e
emoção?
Excelências, permita-me perguntar: este é o tipo de
estrutura que desejamos para a nossa África Unida? E
arranjos que no futuro poderiam permitir Gana ou Nigéria
ou Sudão, Libéria, Egito ou Etiópia, por exemplo, usar a
pressão que a influência política ou econômica superior
dá, para ditar o fluxo e a direção do comércio de, digamos,
Burundi ou Togo ou Niassalândia (Malawi) ou
Moçambique?
Todos nós queremos uma África unida, unida não
apenas em nosso conceito que a unidade pode denotar,
mas unidos em nosso desejo comum de avançar juntos e
lidar com todos os problemas que podem ser mais bem
resolvidos apenas em uma base continental.
Quando o primeiro Congresso dos Estados Unidos se
reuniu há muitos anos na Filadélfia, um dos delegados fez
a primeira tarefa de unidade, declarando que eles haviam
se encontrado em um "estado de natureza", em outras
palavras, eles não estavam na Filadélfia como sendo da
Virginia ou da Pensilvânia, mas simplesmente como

35
americanos. Essa referência a si mesmos como americanos
era naqueles dias uma experiência nova e estranha.
Posso me atrever a afirmar igualmente nesta ocasião,
Excelências, que nos encontramos aqui hoje não como
ganenses, guineenses, egípcios, argelinos, marroquinos,
malianos, liberianos, congoleses ou nigerianos, mas como
africanos. Os africanos uniram-se em nossa decisão de
permanecer aqui até chegarmos a um acordo sobre os
princípios básicos de um novo pacto de unidade entre nós,
o que garante para nós e para o futuro um novo arranjo do
governo continental.
Se conseguirmos estabelecer um novo conjunto de
princípios como base de uma nova Carta ou Estatuto para
o estabelecimento de uma Unidade Continental da África e
a criação de progresso social e político para nosso povo,
então, a meu ver, esta Conferência deve marcar o fim de
nossos vários agrupamentos e blocos regionais. Mas se
fracassarmos e deixarmos escapar essa grande e histórica
oportunidade, devemos dar lugar a uma maior dissensão e
divisão entre nós, pela qual o povo da África nunca nos
perdoará. As forças e movimentos populares e
progressistas na África nos condenarão. Estou certo,
portanto, de que não devemos falhar com eles.

36
Já falei longamente, Excelências, porque é necessário
que todos nós expliquemos não apenas um ao outro
presente aqui, mas também ao nosso povo que nos confiou
o destino da África. Portanto, não devemos deixar este
local até que tenhamos criado ferramentas eficazes para
alcançar a Unidade Africana. Para esse fim, proponho
agora para sua consideração o seguinte:
Como primeiro passo, Excelências, uma Declaração de
Princípios que nos una e à qual todos devemos ser fiéis e
leais, e a definição dos fundamentos da unidade deve ser
estabelecida. E também deve haver uma declaração formal
de que todos os Estados Africanos Independentes aqui e
agora concordam com o estabelecimento de uma União de
Estados Africanos.
Como um segundo e urgente passo para a realização
da unificação da África, um Comitê de Ministros das
Relações Exteriores de toda a África será criado agora, e
que antes de sairmos desta conferência, um dia deve ser
fixado para que eles se encontrem.
Este Comitê deve estabelecer, em nome dos Chefes de
nossos Governos, um corpo permanente de funcionários e
especialistas para elaborar um mecanismo para o Governo
da União da África. Este corpo de funcionários e
especialistas deve ser composto por dois cérebros de cada

37
Estado Africano Independente. As várias cartas dos
agrupamentos existentes e outros documentos relevantes
também podem ser apresentados aos funcionários e
especialistas. Um praesidium (comitê) constituído pelo
Chefe dos Governos dos Estados Africanos Independentes
deve ser chamado a cumprir e adotar uma Constituição e
outras recomendações que lancem o Governo da União da
África.
Também devemos decidir sobre a alocação em que esse
corpo de funcionários e especialistas funcionará como a
nova sede ou capital do governo da União. Algum lugar
central na África pode ser a sugestão mais justa em
Bangui, na República Centro Africana, ou em Leopoldville,
no Congo. Meus colegas podem ter outras propostas. O
Comitê de Ministros das Relações Exteriores, funcionários
e especialistas devem ter poderes para estabelecer:
1. Uma Comissão para formular uma Constituição
para um Governo da União dos Estados Africanos;
2. Uma Comissão para elaborar um plano em todo o
continente para um programa econômico e industrial
unificado ou comum para a África; este plano deve incluir
propostas para a criação de:
• Um mercado comum para a África
• uma moeda africana

38
• Zona Monetária Africana
• Banco Central Africano, e
• Sistema de Comunicação Continental;
3. Uma comissão para elaborar detalhes de uma
política externa e diplomacia comuns;
4. Uma Comissão para elaborar planos para um
Sistema Comum de Defesa;
5. Uma Comissão para fazer propostas para a
Cidadania Africana Comum.
Essas comissões reportarão ao Comitê de Ministros
das Relações Exteriores que, por sua vez, deverá submeter
ao Praesidium, dentro de seis meses após esta
Conferência, suas recomendações. A reunião do
Praesidium em conferência na sede da União considerará e
aprovará as recomendações do Comitê de Ministros das
Relações Exteriores.
A fim de fornecer fundos imediatamente para o
trabalho dos funcionários permanentes e especialistas da
sede da União, sugiro que um Conselho especial seja
criado agora para trabalhar um orçamento para isso.
Excelências, com estas etapas, eu afirmo, estaremos
irrevogavelmente comprometidos com o caminho que nos
levará a um governo da União da África. Somente uma
África unida com direção política central pode fornecer

39
material eficaz e apoio moral aos nossos combatentes da
liberdade no sul da Rodésia, Angola, Moçambique,
sudoeste da África, Bechuanalândia (Botsuana),
Suazilândia, Basutolândia (Lesoto), Guiné Portuguesa, etc.
e, é claro, na África do Sul.”
Fonte: https://face2faceafrica.com/article/read-kwame-nkrumahs-
iconic-1963-speech-on-african-unity

40
Sylvanus Olympio: Discurso de Independência
do Togo (1960)

“A noite pode ser longa, mas o dia chega”.

O grande dia que tanto desejamos finalmente chegou.


Nosso país, Togo, que, desde 1884, tem sido
sucessivamente protetorado alemão, condomínio franco-
britânico, território sob tutela da França, recupera neste
dia de 27 de abril de 1960 sua liberdade de outrora.
A partir deste momento e para sempre, livre de toda
subjugação, de todo obstáculo, mestre do seu destino,
Togo, meu país, você está finalmente livre, livre para ser
você mesmo, seguir suas ideias e inclinações, fazer
escolhas de acordo com sua razão e seus sentimentos,
decidir de acordo com sua própria vontade, finalmente
livre, com dignidade recuperada, para demonstrar e
afirmar sua personalidade.
Nossa alegria é profunda, imensa. Tão profunda que
não pode deixar de ser grande também.
Chegou o dia, mas a noite foi longa. Tantos anos até
que pudéssemos ser entendidos, tantas esperanças para
que pudéssemos permanecer firmes ao longo de todo esse
caminho repleto de decepções, tanta vontade de finalmente

41
chegar esta hora que não poderíamos viver com
tranquilidade, mas o jovem Togo está aí, orgulhoso de sua
força, impaciente para entrar na arena.
Ele carrega na testa o orgulho de um povo livre e seu
coração ardente se enche de entusiasmo pela tarefa,
certamente dura, mas muito emocionante, que lhe é
oferecida.
Que sua alegria se manifeste! Que em todo o país
nenhum outro sentimento faça parte dos nossos corações,
para que esse momento único na vida de uma nação
permaneça puro na memória daqueles que a viverão.
Um momento histórico também. Neste local, neste dia,
nesta hora, em nome do povo togolês, proclamo
solenemente a independência do Togo, nossa terra natal.
E agora, togoleses, vamos, como o hino nacional nos
convida, vamos construir o país juntos.

42
Sylvanus Olympio: entrevista no programa Meet The
Press da NBC (1962)

“Nosso convidado de hoje é Sylvanus Olympio, o


presidente da República do Togo. A menor nação africana
independente. O Presidente está neste país (EUA) em uma
visita oficial ao Presidente Kennedy, quem o chamou de
uma figura excepcional, não só na África como no cenário
mundial. Agora, a primeira pergunta é de Lawrence,
membro permanente do programa Meet the Press.”

Lawrence: Senhor presidente, acredito que você veio a


este país pela primeira vez em 1947. Você notou alguma
mudança significativa aqui neste 15 anos?
Sylvanus: Bem, minha primeira visita aos Estados
Unidos foi em conexão com o Conselho da ONU. Então, em
1947, vi mais ao redor da ONU do que os Estados Unidos
como um país. Se houve alguma mudança significativa
entre 1947 e durante minha atual visita, eu diria que a
ONU adquiriu um novo prédio agora, o que não havia em
1947. E também que a maioria das pessoas que eu
conhecia na época não está mais lá.
Lawrence: Você acha que as expectativas que você
teve na ONU, em 1947, foram cumpridas?

43
Sylvanus: Eu definitivamente acho que sim. E a meu
ver as Nações Unidas crescerão em estatura ou
importância com o passar do tempo.
Lawrence: Senhor Presidente, como você
provavelmente sabe, há duas coisas que mais preocupam
o povo americano em relação à África: uma é o
neutralismo e a outra é o comunismo. Eu gostaria de
perguntar um pouco sobre o neutralismo. Em um artigo
que você escreveu sobre assuntos externos em outubro de
1961, você disse o seguinte: “Não podemos nos permitir
envolver na Guerra Fria com todas as suas
consequências”. E uma vez que as questões da Guerra Fria
são morais, além de econômicas e políticas, você pode nos
dizer como pode evitar se envolver em questões da Guerra
Fria?
Sylvanus: Bem, a República do Togo, por exemplo, é o
menor país da África Ocidental. E todos os novos Estados
independentes da África Ocidental estão agora muito
ocupados com o desenvolvimento econômico de cada país.
E, geralmente, acredita-se que devemos dedicar toda a
nossa energia e tempo a questões econômicas, em vez de
nos envolver com o que se poderia chamar de problemas
mundiais como uma Guerra Fria, bombas atômicas,
desarmamento, etc.

44
Isso é conhecido em alguns setores como neutralismo.
Não sei se essa é a palavra certa, mas gostaria de
comparar isso com a política adotada pelos EUA no início
de sua história. Agora estou me referindo à política
isolacionista na época em que os EUA pensavam que a
melhor coisa a se fazer era concentrar todas as suas
energias aos assuntos internos, em vez de se envolver nos
assuntos europeus e mundiais. Então, eu diria que nosso
neutralismo é mais ou menos o mesmo tipo de coisa.
Lawrence: E a pergunta que eu fiz sobre questões
morais. Você acabou de se tornar independente e livre.
Agora, a batalha que o Ocidente insiste é uma batalha com
os comunistas na questão da independência e da
liberdade. Você pode ser neutro em uma questão como
essa? E você é neutro?
Sylvanus: Certamente não podemos ser neutros e é
uma questão de liberdade individual e nacional. Somos
nacionalistas e acreditamos que a liberdade para países
que ainda são independentes é tão vital que não pode
haver compromisso com esse tipo de princípio; portanto,
se é a questão de ser neutro em relação à liberdade, posso
dizer que certamente somos a favor da liberdade individual
das nações.

45
Lawrence: Deixe-me fazer esta pergunta. Você acha
importante que as nações emergentes da África não se
tornem comunistas?
Sylvanus: Eu sei que vocês na América são defensivos
demais ao comunismo. Na África Ocidental não acho que o
perigo do comunismo seja tão grande quanto vocês
imaginam. Imagine que os europeus estão em nosso país
há mais de cem anos. Eu não acho que eles mudaram
radicalmente nossas próprias tradições em nossas
perspectivas. E simplesmente não vejo como os
comunistas com essa doutrina, seu modo de vida, chegam
à África Ocidental em poucos anos, mudem nossa
concepção básica de vida, nossas tradições básicas.
Isso será realmente muito difícil, e é verdade que os
jovens intelectuais acabam falando sobre socialismo e
comunismo e assim por diante. Mas acho que você precisa
olhar para a maioria das pessoas da África Ocidental que
têm suas próprias tradições. Tem seu próprio modo de
vida. Tem alguma concepção de vida e não acho que os
comunistas causem muita marca nisso. Por muitos e
muitos anos não.
***
Lerner: Senhor presidente, embora você não pareça
estar preocupado com o comunismo, tenho certeza que

46
sim com a independência nacional. Seu vizinho Gana, seu
Chefe de Estado Kwame Nkrumah, está desejando
reintegrar todos os povos e tornar seu país uma espécie de
sétima região de Gana. Esse é um tipo de expansionismo
que nos interessa muito, e eu pergunto o que você propôs
para enfrentar esse tipo de ameaça?
Sylvanus: Acho que a melhor medida a adotar, e é isso
que estamos fazendo na África Ocidental agora, é ter uma
maior cooperação entre os Estados Africanos. Como você
sabe, nosso país pertence ao que geralmente é chamado de
grupo Monróvia. Os princípios nos quais esse grupo
específico se baseia é: nenhuma interferência nos assuntos
internos de qualquer outro país, respeito pela soberania e
integridade de cada Estado pertencente a esse grupo. Eu
acho que essa será a melhor resposta para as intenções ou
aspirações de Nkrumah.
Lerner: Isso significa que, se houver um ataque, acho
que seu exército não é um exército maciço no Togo,
consistindo talvez de várias centenas de soldados. Se
houvesse um ataque, você esperaria que esses outros
membros do grupo Monróvia o ajudassem ou talvez eu
note quantas vezes seus representantes votaram na União
Soviética na ONU em comparação aos Estados Unidos.

47
Você acharia que a União Soviética talvez lhe desse
alguma proteção ou a ONU?
Sylvanus: Não temos nenhum compromisso específico
com a União Soviética, mas estou certo de que meus
amigos do Grupo Monróvia nos dariam pelo menos um
apoio moral, se não material. E você sabe que neste
mundo de hoje o apoio moral tem um peso e isso deve até
impedir uma agressão em um lugar pequeno como a África
Ocidental.
Cook: Senhor Presidente, acho que você foi o primeiro
peticionário perante o Conselho da ONU em 1947 e,
naquela época, você disse que tinha dois ideais para o seu
país. Um era vê-lo se tornar uma república independente e
o outro era unir todos os povos. Agora, minha pergunta é a
seguinte: não há uma contradição fundamental entre a
independência de um país e a unificação de uma raça que
agora vive parcialmente num país e parcialmente em outro
país que tem sua própria soberania?
Sylvanus: Não vejo nenhuma contradição, se você tem
seguido nossa história, durante o regime colonial não
apresentamos uma clara demanda por independência e,
no início, apenas apontamos as dificuldades que esses
limites arbitrários criaram entre nós e Gana. E servimos
ao mesmo tempo para resolver algumas dessas

48
dificuldades, por exemplo, acabar com as barreiras
alfandegárias para harmonizar a tributação e também
para facilitar o movimento de pessoas e propriedades em
grande medida e, portanto, ser independente de qualquer
forma.
A República de Togo é independente e, como o Gana
também é um Estado independente africano, deve ser
muito mais fácil alcançar esses fins. Isto é: abolir as
barreiras alfandegárias, facilitar o movimento de pessoas e
propriedades e, assim, facilitar a vida das pessoas. Você vê
no antigo regime, no regime colonial as pessoas que
moram em Gana continham, por assim dizer, ideias
britânicas e nós, morando em Togolândia, deveríamos ser
pessoas assimiladas pela França, tudo isso desapareceu
agora. Somos apenas cidadãos africanos puros, de Estados
independentes e a colaboração deve ser muito mais fácil.
Cook: Senhor Presidente, você mencionou
anteriormente que deseja concentrar todas as suas
energias no desenvolvimento econômico, e eu me pergunto
com essas soberanias multiplicadoras de Estados cada vez
menores na África. Como esses estados menores podem
sobreviver e desfrutar de economias separadas quando o
movimento da tecnologia moderna está em direção à
centralização e a unidades maiores?

49
Sylvanus: Essa é uma das razões pelas quais estamos
tentando esses agrupamentos na África agora e, como você
sabe, essas coisas não são muito fáceis e estamos
tentando começar com o que deve ser mais fácil de realizar
no menor tempo possível e, gradualmente, passamos a
problemas cada vez mais difíceis, mas estamos muito
animados com o fato de que os territórios africanos
precisam se agrupar para fazer grandes coisas, para que
tenham grandes desenvolvimentos nas várias partes.
Clay: Senhor Presidente, você falou dos países
africanos se agruparem sem rodeios. Qual é a sua objeção
ao Togo, que afinal é um país tão pequeno sendo
incorporado a um Estado maior como Gana?
Sylvanus: Bem, a objeção que temos é que não
queremos ser dominados novamente por outro país depois
de tantos anos de dominação francesa. Gostaríamos de ter
nossa própria vida, mesmo que tenhamos dificuldades
econômicas. Contudo, devo acrescentar que, o Togo desde
os tempos alemães sempre foi um país que carregou seu
próprio trabalho, seu próprio fardo, sem nenhuma
subvenção do país metropolitano. E muitas pessoas
pensam que o Togo, por ser pequeno, não pode equilibrar
seu orçamento, não pode ter dinheiro suficiente para fazer
as coisas mais comuns. Isso está errado. No passado,

50
fizemos muitas coisas, construímos ferrovias, construímos
muros, construímos hospitais com nosso dinheiro e, claro,
com um pequeno empréstimo do país metropolitano, mas
antes da última guerra não havia subsídio do país
metropolitano.
Clay: Senhor presidente, você ainda está sob pressão
de Gana pela incorporação da uma parte das vias aéreas
do Togo e acha que pode aguentar?
Sylvanus: Não é bem uma parte do Togo que Gana
gostaria de integrar, seria toda a República do Togo, tendo
atingido um terço. Que era um mandato britânico do Togo.
Gana considera que a conclusão lógica de um acordo é
incorporar a parte restante de Togo. O que, obviamente,
objetamos e, em seguida, você concorda comigo que, com
as condições atuais em Gana, ninguém entraria de bom
grado nesse país a menos que por guerra ou forçado por
guerra.
Clay: Você disse que a maioria das fronteiras que hoje
existem na África são artificiais e impostas pelos países
coloniais. Por que, então, existe um grande desejo entre
todos esses países recém-independentes de reivindicar
essas fronteiras?
Sylvanus: Bem, é muito fácil entender. Imagine, você é
um membro da mesma família e, como acontece em nosso

51
país, todos receberam lotes de terra para cultivar. Depois
de ter trabalhado naquela terra por um longo tempo, você
começa a se identificar com sua propriedade, é exatamente
a mesma coisa com nós da África, em um regime em
particular, por muitos anos, começamos a pensar que é a
nossa terra na África Ocidental.
Lawrence: Senhor presidente, em novembro passado,
na ONU, seu país, seu delegado votou pela resolução de
testes nucleares pedindo uma moratória sem inspeção ou
controle, agora que é o grande problema em Genebra hoje,
os russos favorecem essa moratória. Qual a posição de
Togo hoje?
Sylvanus: Acreditamos sinceramente que eles
deveriam abolir todos os testes de bombas atômicas, mas
somos realistas e práticos o suficiente para saber que não
podemos permitir ou não podemos apoiar alguns países
que continuam fazendo testes enquanto solicitam que
outros não o façam. A melhor solução é que todos os testes
de bomba atômica sejam abolidos. É do interesse de todos,
mas, embora alguns países se recusem a seguir um
conselho tão sábio, é muito difícil insistir que outros
países não o façam. Só podemos esperar que com um
aumento da pressão das pequenas nações na ONU,
concordem em parar!

52
Modibo Keita: Discurso do 1º de maio (1967)

A seguir, a tradução de um discurso de Modibo Keita,


Presidente do Mali, contido na rubrica geral de
um artigo intitulado "Trabalhadores malianos
comemoram com entusiasmo o primeiro de maio de 1967"
no órgão de língua francesa da União Sudanesa-RDA.
L'Sssor Hebdomadaire (The Weekly Progress), Bamako, Vol
9, No 405, 2 May 1967, pp 4, 5.

Como em todos os anos, a liderança nacional do


partido e do governo se junta através de mim nas
festividades do primeiro de maio, que é um grande dia
para os trabalhadores.
Este dia se comemora uma importante vitória na luta,
muitas vezes mortal, da classe trabalhadora internacional
em alcançar maior bem-estar em um sistema de produção
do qual essa classe é o fator determinante. É tanto uma
luta econômica quanto política, porque a classe
trabalhadora compreendeu muito cedo que para se libertar
da exploração depende de certas pré-condições políticas,
cuja realização envolve todo o sistema social.
Em setembro de 1960, através de nossa escolha de
soberania total e completa, que por si só foi um ato de

53
verdadeira revolução, também escolhemos livremente o
caminho socialista para o desenvolvimento após uma
análise objetiva das condições reais de nosso país.
Já dissemos que nosso país, em razão de sua posição
no continente, longe dos portos e isolado dos mercados
mundiais, não ofereceu incentivo ao investimento privado
sob o regime colonial.
Em condições como essa, deve ficar claro para
qualquer pessoa que a maior despesa e o maior esforço no
desenvolvimento de nosso país devam obrigatoriamente
deixar ao Estado.
Além disso, era impensável, devido às condições sob as
quais nossa batalha pela independência nacional foi
travada, uma batalha cujo sucesso dependia em grande
parte do espírito indomável de luta das massas, sob a
liderança dos trabalhadores informados das cidades, que
nosso Partido deveria seguir um caminho diferente para o
desenvolvimento, cujo único objetivo seria colocar a
riqueza principal da nação à disposição de toda a
comunidade nacional.
Encaramos qualquer outra escolha simplesmente
como traição, que teria enganado as massas de nosso povo
em uma vitória que nunca poderia ter sido conquistada
sem sua participação decisiva.

54
E assim, hoje, como sempre, a liderança nacional do
Partido continua acreditando que apenas o socialismo, que
significa a nacionalização dos principais meios de
produção e planejamento, é a maneira razoável e justa
capaz de tirar nosso país de seu estado de
subdesenvolvimento.
Mas não é fácil construir o socialismo, como já
descobrimos.
Ontem, na fase inicial da batalha que tivemos que
lutar, e na qual a grande maioria dos trabalhadores
desempenhou um papel vital, o problema era ganhar
nossa liberdade, destruir um sistema. Hoje, porém, o
problema é construir um Estado, uma nova nação,
recusando-se a aceitar os padrões simples de submissão,
ou seja, procurar encontrar o caminho próprio e original, o
caminho certo para nós, o caminho que melhor se adapte
às condições objetivas de nosso país.
O jogo é extremamente difícil e extremamente delicado.
Gostaria de lembrar aqui a todos os trabalhadores que,
assim como antes, quando estávamos lutando contra a
opressão colonial, é seu trabalho dar o exemplo de devoção
e altruísmo nesta nova fase da nossa luta, que podemos e
devemos vencer, desde que não esqueçamos as condições
para o sucesso em uma batalha política.

55
Antes de tudo, e aqui estou falando para todos os
quadros do Partido, nunca devemos esquecer que a
primeira condição para vencer uma batalha política é o
apoio total das massas ou lealdade da maioria, se não de
todo o nosso povo, por nossa política, por nossos objetivos
e pelos meios que escolhemos para alcançá-los.
Agora, temos vinte anos de experiência para mostrar
que o povo do Mali nunca nos negou seu apoio e
confiança.
Nosso trabalho, então, e o que nunca devemos
esquecer ou negligenciar, é procurar e encontrar
novamente o caminho das massas, permanecer
solidamente juntos e explicar-lhes repetidamente nossos
problemas e as soluções escolhidas pelo Partido como um
todo. Esse deve ser o ponto principal de nossa atividade na
situação atual. Se não arcamos com isso, outros que não
têm as mesmas razões que a nossa, de se aproximar às
políticas do nosso Partido, assumirão o nosso lugar - e,
obviamente, eles farão isso à maneira deles.
Devemos estar cientes de outro fato fundamental:
desde 1960, os problemas de construção econômica que o
país enfrenta se tornam cada vez mais difíceis, cada vez
mais complicados. Como consequência disso, nosso
Partido precisa crescer e seus quadros devem ampliar seus

56
conhecimentos para assumir novas responsabilidades. É
óbvio que, para explicar, convencer e mobilizar o povo,
precisamos primeiro nos conhecer e entender os modos de
liderança de um Estado. E isso, por sua vez, é um trabalho
que está rapidamente se tornando cada vez mais difícil e
complexo.
Já sabemos que, à medida que avançamos na
aplicação de nossa política de desenvolvimento socialista,
todo tipo de dificuldade é encontrada, o que deixa as
massas mais desconcertadas com os problemas
econômicos. Sob tais condições, devemos estar prontos
para os questionamentos que irão nos fazer, porque não
importa para onde se vai, o povo precisa entender, se
quisermos avançar.
Os quadros políticos e sindicais devem fornecer as
respostas a essas perguntas, que nunca devem ser
consideradas como suspeitas a priori.
A única maneira de os quadros serem capazes de
assumir essa tarefa delicada é continuar com seus estudos
intelectuais e ideológicos, para compreender cada vez mais
claramente os problemas complexos de nossa construção
nacional em um mundo dividido, cada vez mais
conturbado e inquieto.

57
Devemos estimular e incentivar o diálogo no Partido e
em todas as nossas organizações democráticas e
populares. No entanto, é óbvio que nós, líderes políticos e
administrativos que formam os quadros, não ficaremos
tentados a encorajar o diálogo, mesmo que ele seja o sopro
de vida para partidos únicos, se não temos respostas a
oferecer e se estamos confusos diante dos problemas
políticos e econômicos que nos pressionam por todos os
lados.
Isso nos dá uma compreensão da perigosa tentação de
substituir o método de persuasão e explicação, o único
adequado às nossas políticas, por restrições, matando
assim o espírito da livre discussão, ficaria claro que isso
não teria proveito em um governo como o nosso.
Portanto, é dever dos trabalhadores mobilizar dentro
de suas organizações trabalhistas para torná-las
movimentos ativos, cientes do fato de que são os principais
seguimentos interessados, pois são as pessoas que mais se
beneficiam com o advento triunfante de uma economia
socialista.
Eles também devem entender que cabe a eles o ônus
da vigilância, para garantir que os princípios democráticos
estabelecidos por nosso Partido sejam aplicados
adequadamente.

58
Os trabalhadores também devem redobrar seus
esforços no trabalho cotidiano e despertar para o fato de
que nunca construiremos nosso país com preguiça,
desordem e irresponsabilidade.
Em suma, é essencial que, ao fazermos nossas
declarações públicas, elas devem corresponder às nossas
ações cotidianas, os quadros trabalhistas e políticos em
todos os lugares fornecem um exemplo de altruísmo,
honestidade e devoção aos ideais daquele socialismo que
prometemos construir.
Desde aquele dia, sete anos atrás, quando aderimos à
soberania, que significa responsabilidade, a liderança
nacional nunca traiu sua confiança nos trabalhadores e
em seus líderes.
Em nossos serviços públicos, em todas as empresas e
empresas estatais, grupos políticos e comitês sindicais
foram criados.
A liderança nacional do Partido e do Governo apontou
repetidamente o papel adequado dos órgãos desses
trabalhadores em nossos serviços públicos, nossas
corporações e empresas estatais, que são a base material
da economia socialista que estamos construindo.
O estatuto geral que rege as empresas nacionais
atribui às organizações de trabalhadores certas

59
responsabilidades reais na administração: enquanto os
órgãos do Partido e da União recebem o trabalho de
motivação e controle em todos os órgãos do Estado.
Além disso, o Partido e o Governo nunca hesitaram em
confiar as mais altas responsabilidades aos quadros
treinados na luta sindical.
Mas devemos admitir que algumas fraquezas notáveis
vieram à tona. Frequentemente, as Associações de
Trabalhadores da Administração, que representam uma
conquista social da maior importância, se tornaram
estrelas, por assim dizer, e alguns líderes se separam dos
outros trabalhadores que eles representam.
Os comitês do Partido e do sindicato, que deveriam
promover uma concorrência saudável entre os
trabalhadores, que deveriam criar novas relações de
cooperação em nossas corporações e empresas estatais,
nem sempre tiveram êxito em suas tarefas.
Além do mais, devemos repetir que a luta contra a
fraude e a especulação não chegou a um fim vitorioso,
porque os trabalhadores, apesar de sua maioria, não
conseguiram assumir esta tarefa vital na construção de
nossa economia.
Os trabalhadores ainda precisam entender que aqueles
que pilharam a riqueza nacional, aqueles que, por suas

60
práticas fraudulentas, põem em risco nosso governo
socialista e suas realizações altamente importantes, devem
ser rastreados impiedosamente e entregues aos órgãos
policiais do Estado.
Em muitos casos, os trabalhadores simplesmente não
tinham consciência política e ainda não conseguiram se
livrar de certos complexos que os fazem sentir que isso
seria como caguetar, e não uma demonstração de coragem
cívica.
No entanto, devemos compreender que o inimigo mais
danoso em nosso governo é a fraude e a especulação em
nossa produção essencial.
Todo membro ativo da União Sudanesa das Repúblicas
Democráticas Africanas, e principalmente os
trabalhadores, devem entender que a luta contra práticas
especulativas, uma fonte de inflação e de altos custos de
vida, não é simplesmente o trabalho dos serviços
especializados do Estado. A extensão do crime contra a
nação é tão grande que exige a ajuda de todos os membros
ativos para que ele chegue ao fim, com todo o rigor
necessário.
Camaradas trabalhadores, Mali tem seus detratores
juramentados que veem apenas nossos problemas, as
falhas inerentes a qualquer empreendimento humano, que

61
fecham os olhos para nossas realizações e nossos
sucessos, embora estes estejam lá para todos verem.
E, portanto, nunca podemos voltar com muita
frequência para observar as realizações do nosso Partido
durante os breves sete anos desde que conquistamos
nossa independência de volta.
Todos os membros ativos de nosso Partido e de nossas
organizações democráticas e populares devem estar
profundamente cientes do alcance e do significado dessas
realizações, para estarmos mais bem armados contra os
inimigos do nosso governo, cuja propaganda insidiosa deve
ser combatida com os fatos que existem, palpáveis e
inegáveis. Devo poupar uma enumeração dessas
realizações aqui.
Obviamente, tudo isso não poderia ter sido feito sem
alguns erros, alguns graves, ou sem falhas, algumas
amargas.
Mas somos um partido com um longo histórico de
lutas feitas de reveses e sucessos, e por isso nunca
tivemos medo de encarar nossos erros de frente, e realizar
nossa própria autocrítica, condição indispensável para
nossos futuros saltos de progresso, e lembrar em todas as
circunstâncias que nosso país não pôde ser construído
com calma.

62
Essa política sempre exigiu um grande esforço de
austeridade de todas as pessoas; ainda exige sacrifícios
que o Estado deve distribuir de maneira justa entre o
povo, de acordo com a capacidade de cada um de
contribuir.
Aqui, novamente, os trabalhadores, a maioria dos
quais são pessoas privilegiadas em comparação com os
camponeses, devem dar o exemplo de altruísmo, e devem
se livrar de uma vez por todas da ideia ultrapassada de
direitos finalmente conquistados.
Em nossa situação atual, não pode haver interesse
adquirido, direito adquirido na perpetuidade, desde que
nossa principal preocupação seja economizar para que
possamos investir e lançar as bases para o avanço
econômico de nosso país.
Em suma, deve ficar claro a todos os trabalhadores
que os salários em qualquer Estado moderno só pode ser
uma função do volume total de produção, que se resume
finalmente às possibilidades econômicas da nação.
Todos nós, em nossos escritórios, nossas lojas e
nossos campos, devemos perceber que é sendo diligente
em nosso trabalho, e aumentando nossa produtividade,
que aumentaremos nossa renda nacional, e, assim,
permitir ao Estado pagar mais aos trabalhadores e elevar

63
seus padrões de vida, que é a aspiração natural de
qualquer estado socialista.
Desde 1966, alguns grandes investimentos foram
feitos, com a ajuda de auxilio externo e os enormes
sacrifícios que fizemos. Atualmente, o Estado do Mali
possui uma quantidade muito considerável de capital, cuja
administração adequada deve permitir que nossa
economia gere o impulso e a expansão necessários para
resolver nossos problemas financeiros.
A consecução desses objetivos pressupõe uma redução
no custo de produção e uma alta taxa de retorno em todos
os setores da economia, graças à competência e
consciência que os trabalhadores demonstram ao motivar
as unidades em que atuam. O principal motor do
desenvolvimento econômico é o homem tecnicamente
qualificado e politicamente consciente, que deve sempre
procurar ampliar seu conhecimento técnico e sua
formação cultural geral.
O grau de consciência política pode ser medido por
certas atitudes que podem ser vistas todos os dias no
comportamento do trabalhador em serviço: o respeito pelo
bem geral e pelo bem público, a lealdade à empresa,
demonstrada não apenas pela pontualidade, mas também

64
por seu trabalho duro e constante durante o horário de
trabalho.
Neste momento, a República do Mali precisa de
motoristas que mantenham seus veículos adequadamente
e tenham sempre o cuidado de poupar as despesas do
Estado que devem sair de nossas reservas de moeda.
Precisamos de trabalhadores que evitem todo desperdício
de material e toda deterioração de material em nossas
fábricas. Precisamos almoxarifes que vigiem atentamente
os estoques confiados a eles.
Se não conseguirmos mais homens como esses em
nossas fábricas e nossos serviços, nossa experiência será
irrevogavelmente comprometida pela mediocridade e
descuido dos homens que devem conduzi-la. Todo
trabalhador deve entender que seu destino está ligado
organicamente ao de todos os setores da economia.
Falando novamente sobre uma concorrência saudável,
um bom método acaba de ser colocado em prática no
estabelecimento do título de "trabalhador de vanguarda",
como recompensa para os trabalhadores que
desinteressadamente fazem seus trabalhos, tornando-os
um exemplo para seus companheiros. Por outro lado,
devemos erradicar o efeito nocivo dos trabalhadores
incompetentes e descuidados. Repito que os responsáveis

65
por nossos serviços públicos e empresas não devem
hesitar em tomar as mais severas sanções contra esses
homens.
Camaradas, sempre dissemos que a independência,
para nós, não é um fim em si, mas apenas um meio de
libertar nosso país da penúria econômica.
Aqueles que tiveram a coragem política de dizer não à
escravidão e assumir sua independência diante de
ameaças e intimidações não podem vacilar em coragem
quando chega a hora de enfrentar todas as consequências
do ato. Ao lutar por nossa soberania, nossa ambição era e
é sair da armadilha do subdesenvolvimento – e poder
explorar adequadamente a grande riqueza de nosso vasto e
belo país.
Essa ainda é a mesma batalha. Eu já disse muitas
vezes que estamos destinados a ter sucesso, destinados a
vencer a batalha pelo futuro do nosso país, e também
porque não há dúvida de que o resto da África achará
impossível permanecer indiferente à experiência do Mali.
Mais uma vez, a ação dos trabalhadores em seus
sindicatos, nos órgãos do Partido e de outras organizações
populares, desempenhará um papel preponderante, se não
determinante, no sucesso desse poderoso trabalho de
renovação nacional.

66
Irrevogavelmente, votamos em favor do socialismo,
porque acreditamos que esse é o caminho do
desenvolvimento que responde às verdadeiras
necessidades e interesses de nossa nação.
O capitalismo, apesar dos prodigiosos avanços que fez
para a humanidade nas áreas da ciência e das técnicas,
não conseguiu resolver o problema social. Falhou em
abolir a pobreza entre as grandes massas populares e
ainda mantém a grande maioria das pessoas rigidamente
excluídas das riquezas e do prazer de aprender.
Foi dito que "as civilizações morrem por causa de sua
estreiteza". Quanto a nós, finalmente escolhemos um
regime econômico baseado na propriedade coletiva das
grandes riquezas de nosso país, para que nenhuma
minoria monopolize os frutos do trabalho da sociedade, e
para que uma divisão justa do produto do trabalho possa
estar subjacente à nossa organização social.
É assim que nos apresentamos diante de todos os
nossos parceiros, que devem nos aceitar como somos.
A contabilidade da ação do nosso Partido está lá e é
positiva, e claramente visível para todos aqueles que não
são impedidos pelo ódio e pela má fé de vê-la.
Foi antes de tudo nossa soberania inquestionável que
nos deu liberdade, a joia mais brilhante de um povo.

67
São nossas conquistas nos domínios econômico e
social que são a admiração de todos que vêm visitar nosso
país sem ideias pré-concebidas.
Mas o trabalho ainda não está concluído, e o caminho
a seguir é longo e difícil.
A liderança nacional do Partido está convencida de que
a tarefa de renovação nacional à qual nos comprometemos
não está além dos poderes de nosso povo, que escolheram
irrevogavelmente a liberdade e um caminho de
desenvolvimento que levará a uma sociedade mais justa e
equitativa.
Depende do grau de conscientização dos
trabalhadores, sua mobilização contínua para proteger as
realizações de nossa revolução, e a pureza da orientação
de nosso Partido, se nossas ambições e aspirações em
direção a um maior bem-estar na justiça social serão
realizadas em breve.
O empreendimento, camaradas trabalhadores, é difícil,
mas é também inspirador. Contudo, a evidência não é
suficiente para mostrar que a dificuldade nunca afastou o
povo maliano que se apresenta com alternativas heroicas
quando se depara com questões que envolvem sua
liberdade?

68
Agora digo: tenham coragem e com a garantia de que o
sucesso está no fim do caminho, desde que todos ajudem
a preservar a unidade política que nós trouxemos em
nosso país, eu terminarei com o grito, viva o Sindicato
Nacional dos Trabalhadores do Mali. Viva a solidariedade
internacional dos trabalhadores em todos os continentes.
Viva a União Sudanesa das Repúblicas Democráticas
Africanas!

69
Kenneth Kaunda: Entrevista com o Presidente
da Zâmbia (1973)

À medida que a tensão aumenta no sul da África, o


primeiro-ministro da Zâmbia, Kenneth Kaunda, conversa
com o Novo Internacionalista sobre o bloqueio da Rodésia; a
crise racial no continente; e os principais problemas
enfrentados pela própria Zâmbia.
Entrevista por David Martin.

David Martin: Smith, da Rodésia, impôs um


bloqueio econômico à Zâmbia. Que efeitos isso terá na
economia do seu país?
Kaunda: Bem, vou começar dizendo ao contrário,
pois, em minha opinião, se o Sr. Smith soubesse o que
isso significaria para a economia, ele não o faria. Para nós,
nossa política tem sido muito clara: diversificar nossas
fontes de importações e exportações distanciando dos
rebeldes do sul racialista para a África independente no
norte. Desse modo, estamos tratando esse bloqueio como
uma oportunidade de ouro. Fomos colocados em uma
posição em que estamos mostrando que somos mais fortes
do que jamais imaginamos. Portanto, embora tenhamos
que fazer alguns esforços, pouco dano será causado à

70
nossa economia, desde que, obviamente, todos possamos
trabalhar duro.
D.M.: O Sr. Smith decidiu isentar o cobre do
bloqueio. Você respondeu recusando-se a aceitar esta
concessão. Esta foi uma decisão política inevitável ou você
estava ciente do fato de que existiam alternativas?
Kaunda: Para começar, sabíamos que o Sr. Smith
estava fazendo o jogo político, além de um jogo econômico.
Político no sentido de que ele queria mostrar ao governo
britânico que não iria mexer com a economia, pois isso
traria mais a ira do governo britânico. E segundo, ele
estava jogando um jogo econômico no que diz respeito a
seus próprios seguidores na Rodésia: porque eles sabem
tão bem quanto nós que não podem operar ferrovias da
Rodésia sem o nosso cobre; e pedir-nos para subsidiar sua
ferrovia e ao mesmo tempo recusar-se a transportar
nossas importações é pedir muito a qualquer ser humano.
Nós pensamos sobre isso e decidimos que não jogaríamos
o jogo dele e, inevitavelmente, jogamos do nosso jeito. Eu
acho que é um desastre econômico para a Rodésia.
D.M.: É bastante claro que a Rodésia sofrerá mais a
longo prazo do que a Zâmbia. Mas corta suas rotas
comerciais do sul. Das cerca de 1.000.000 toneladas de
importações, cerca de 700.000 toneladas vieram de sua

71
fronteira sul com a Rodésia. Você acha que existem rotas
comerciais alternativas viáveis no momento? Em caso
afirmativo, quais são elas?
Kaunda: Não tenho dúvidas de que encontraremos
alternativas adequadas e já estivemos em contato com
vários países africanos irmãos - Malawi, Tanzânia, Quênia
e Zaire. Todos eles responderam favoravelmente e agora é
uma questão de elaborar os detalhes. Os ministros
visitarão todos esses países para alinhar os detalhes.
Então, apesar de tudo, estou muito satisfeito que, embora
possamos ter dificuldades iniciais, estamos em uma
posição muito forte. Serão encontradas rotas alternativas e
eu gostaria de me concentrar nas rotas que terão alguma
permanência e não naquelas apenas emergenciais.
D.M.: A ferrovia da Tanzânia na Zâmbia deve chegar
a Kapiri Mposhi até março de 1974. Dado esse fato e sua
decisão de boicotar a Rodésia no que diz respeito às
exportações de cobre, estou correto ao supor que você
decidiu, de uma vez por todas, interromper as
comunicações da Zâmbia com o sul?
Kaunda: Eles teriam que trabalhar muito para que
voltássemos. No momento, não sei o que eles podem fazer
para nos levar de volta para lá. Como você sabe, o
comércio com a África do Sul aumentou após a UDI

72
[Declaração Unilateral de Independência da Rodésia-
(Rodésia do Sul)]. Tínhamos que encontrar fontes
alternativas e, como membros leais das Nações Unidas
(ONU), tivemos que forçar apesar das dificuldades. Mas, é
claro, isso significava que tínhamos que aumentar o
comércio com a África do Sul enquanto deslocássemos da
Rodésia. Isso significa um problema agora para nós,
porque teremos que trabalhar muito para encontrar fontes
alternativas à África do Sul, mas, devido ao trabalho duro
e à cooperação de nossos amigos, poderemos encontrar
essas fontes alternativas. Permita-me acrescentar que
prefiro descobrir o que nossos amigos podem produzir,
dentro de seus próprios países, antes de começarmos a
obter fontes alternativas.
D.M.: Eu realmente quis dizer, em vez de romper o
comércio, que pode levar mais tempo, romper totalmente
com as rotas através do sul da África. Se necessário, os
bens sul-africanos poderiam ser trazidos através de Dar es
Salaam, Lobito e Nacala.
Kaunda: Penso que em termos de comércio sul-
africano virá por via aérea, ou possivelmente pela baía do
Lobito, em Angola, ou Nacala, em Moçambique, se os
portugueses continuarem restringindo. Mas em termos de

73
ferrovias da Rodésia, espero que seja a última vez que as
utilizemos.
D.M.: Os tanzanianos deixariam você levar
mercadorias da África do Sul através de Dar es Salaam se
você precisasse, mas você não pediria que fizessem isso?
Kaunda: Eu preferiria não. Eu não gostaria de
constrangê-los. Eu procuro acreditar que o comércio atual
que temos com a África do Sul é de natureza temporária.
Eu gostaria de encontrar outras fontes alternativas. A
situação do sul da África está se tornando cada vez mais
explosiva e seria estupidez da nossa parte confiar nas
fontes comerciais desses países.
D.M.: O Sr. Smith disse que queria uma garantia
sua de que você não apoiaria mais os movimentos de
libertação do Zimbábue. Qual a sua resposta para isso?
Kaunda: Nós, na Zâmbia, sempre dissemos que, se o
Sr. Smith quer nossa cooperação que vá ao povo da
Rodésia como um todo com base no voto e, se ele for eleito,
então ficaremos felizes em recebê-lo aqui na Zâmbia,
porque para nós sua cor é imaterial. Contudo, o sistema
que ele está usando lá que está errado e nunca podemos
nos encontrar cooperando com esse tipo de sistema. Nós
não podemos. É uma questão de princípio profundamente
enraizado.

74
Eu coloquei de outra maneira. Já disse, se
encontrássemos uma pequena minoria negra oprimindo a
maioria branca em qualquer lugar do mundo, apoiaríamos
a maioria branca contra a minoria negra. Portanto, o Sr.
Smith me pediu para me livrar dos representantes dos
combatentes da liberdade que têm escritórios em Lusaka…
onde mais eles encontrarão a oportunidade de falar e
informar o resto do mundo sobre a opressão que ocorre na
Rodésia? É tudo o que estamos fazendo e se ele pensa que
pode nos intimidar para parar de apoiar o que é
espiritualmente, moralmente, politicamente e
economicamente justificável. Ele está falando com a
pessoa errada. Não podemos parar.
D.M.: Algumas pessoas acreditam que tudo o que o
Sr. Smith conseguiu foi empurrá-lo para uma decisão que
você poderia ter tomado há algum tempo atrás ou teria
tomado em um futuro muito próximo. Você acha que isso
é verdade?
Kaunda: Eu diria que ele nos deu uma oportunidade
de ouro, uma verdadeira oportunidade de ouro, porque é
embaraçoso para nós ter que lidar com o senhor Smith.
Não há dúvida sobre isso. Temos que usar o coque de seu
país. Infelizmente, temos a hidrelétrica (Kariba Power), um
projeto conjunto que herdamos dos dias federais. Existe, é

75
fato, e não há nada que possamos fazer sobre isso. Mas
em todas as áreas em que podemos nos permitir, não
queremos ter nada a ver com o regime de Smith. Eles
estão em rebelião contra a coroa britânica. Eles estão em
rebelião contra a humanidade e tudo o que é sensato e
com princípios. Não gostamos de lidar com eles e foi nossa
posição geográfica que nos fez lidar com eles no passado.
Mas eles tomaram uma decisão para nós, por isso demos
sorte. Chegou um pouco antes do que teríamos feito, mas
é muito bem-vindo.
D.M.: Observando as lojas aqui em Lusaka, notei
uma quantidade incrível de artigos de luxo - o tipo de coisa
que você não encontraria na Tanzânia. Você acha que um
efeito desse bloqueio será que a Zâmbia será muito mais
inflexível no futuro em relação às importações?
Kaunda: Sempre acreditei que tivemos aqui o que
gosto de chamar de começo falso. Baseamos nossas
necessidades como nação nas necessidades de uma
pequena população de expatriados. É certo que eles
estavam no controle aqui. A coisa toda tinha sido feita de
tal maneira que, quando assumimos o controle,
adquirimos esses gostos e valores estrangeiros. Temos
insistido constantemente nesse ponto, mas não foi fácil
mudar os gostos de nosso povo. Existe o perigo aqui de

76
que isso possa se tornar uma característica permanente de
nossas vidas. Isso não seria muito compatível com o
humanismo e o humanismo lida com o homem e é o
homem sem distinção. E, portanto, estamos nos
enganando se pensarmos literalmente que imitando
hábitos e gostos de expatriados estamos sendo civilizados.
É uma maneira muito estúpida de ver as coisas e receio
que o que você encontrou em nossas lojas aqui seja o peso
que um pequeno grupo bem organizado pode ter sobre o
povo. Para mim, começa a cheirar a desastre.
D.M.: Surgindo do bloqueio da Rodésia, você
acredita que há algo que o governo britânico poderia ou
deveria fazer?
Kaunda: Eu sempre disse que a coisa certa para o
governo britânico quando a UDI [Declaração Unilateral de
Independência da Rodésia] foi declarada era mover tropas
e isso teria evitado derramamento de sangue. Receio ter
sido mal compreendido - as pessoas pensavam que eu
estava com sede de sangue e queria ver derramamento de
sangue na Rodésia. Na verdade, eu disse que é melhor um
governo legítimo assumir o controle e usar uma pequena
camarilha de rebeldes, pois estabelece sua autoridade e
desenvolve a Rodésia em direção a uma sociedade não
racial, em vez de permitir que se desenvolva uma situação

77
em que os africanos rodesianos se tornem tão irritados que
começarão a se comportar igual os Mau Mau.
Receio que possamos estar testemunhando agora o
início de um confronto racial no sul da África, não apenas
na Rodésia. Se o governo britânico tivesse tomado medidas
para conter essa rebelião, poderíamos ter contido esse
pequeno grupo de pessoas - violentas. Mas o que acho que
agora estamos testemunhando aqui é o começo de um
holocausto racial. Não sei o que o governo britânico pode
fazer agora, mas espero o que disse tantas vezes - se eles
não responderem ao chamado de suas responsabilidades,
eles receberão grande parte da culpa, porque, na minha
opinião, estamos realmente caminhando para um desastre
no sul da África.
Se você me fizer essa pergunta em termos do que
eles podem fazer no que diz respeito à Zâmbia eu lhe direi
que quaisquer dificuldades econômicas que soframos aqui
podem ser colocadas diretamente sobre os ombros do
governo britânico e eles têm o dever de responder. Quando
estivermos prontos, espero que apresentemos detalhes de
nossos custos e o governo britânico deve arcar com esse
custo para a economia da Zâmbia.
D.M.: O primeiro-ministro da Suécia, Palme,
examinou o Zambeze no ano passado e observou que era

78
uma barreira da decência humana. Ao mesmo tempo,
considerou-se que a Zâmbia precisava de rotas ao sul, isso
inibia os movimentos de libertação, por exemplo, a
FRELIMO, e a possibilidade de explodir a linha ferroviária
de Biera. Ao mesmo tempo, teme-se que o Zambeze seja a
linha de frente de uma possível guerra racial. Você acha
que esse bloqueio e seu desligamento aproximaram ainda
mais esse potencial confronto?
Kaunda: Não há dúvida de que a situação é
explosiva. Tem sido construída ao longo de um período e
se explodirá ou não, depende inteiramente dos caprichos
dos colonos de Angola, Moçambique, Rodésia, Namíbia e
África do Sul. Nós não somos agressivos. Não queremos
destruir nada. Não queríamos construir exércitos aqui que
invadissem esses países. Nossas pequenas forças de
segurança são para defender a Zâmbia. Não pretendemos
mudar nossa política. Mas se alguém vir nos atacar aqui,
então posso garantir que muitas pessoas estão prontas
para sacrificar suas vidas em defesa do que é o desejo de
toda pessoa - liberdade, paz e justiça. A explosão ou não
da situação depende, portanto, do que os colonos farão.
Não tomaremos medidas agressivas. São eles que estão
agindo de forma agressiva contra nós.

79
D.M.: Uma das coisas que gostaria que você
descrevesse é a base da política externa da Zâmbia - as
diretrizes pelas quais você opera.
Kaunda: É baseado nos mesmos princípios nos
quais baseamos nossas políticas domésticas. Nossa
política externa é baseada na apreciação de que a pessoa
de Deus é importante, sem distinção de sexo, status,
credo, religião, cor ou raça. O ser humano é importante.
Kaunda deve aceitar enquanto ser humano que as coisas
que ele deseja para si também são desejadas por outras
pessoas para elas mesmas.
Elas querem amor pela pessoa humana - eu quero
ser amado e, portanto, tenho certeza de que outras
pessoas querem ser amadas - elas querem paz, liberdade e
justiça.
Tenho certeza de que outras pessoas querem as
mesmas coisas e, portanto, gostamos de dizer que, na
medida do possível, humanamente devemos fazer com
outras nações e pessoas o que gostaríamos que elas
fizessem conosco. Você pode ver de onde tudo isso vem -
não é um ensinamento novo. É algo da Bíblia, dos
ensinamentos de Jesus Cristo. Isso é simples, mas difícil.
Você percebe o porquê, quando algo acontece, nossa
primeira pergunta não é quem já fez isso, mas se isso é

80
certo, é honesto, é justo. Se a resposta for não, não
importa quem tenha feito isso, nós o condenaremos, assim
como a ação tomada. Desde que nos tornamos
independentes, e mesmo antes, condenamos a presença
americana no sudeste da Ásia. Condenamos todas essas
medidas tomadas pelos americanos contra pessoas
inocentes. Acho que os americanos acreditavam que
éramos quase patologicamente contra eles até os russos
invadirem a Tchecoslováquia. Nós éramos uma das poucas
nações pequenas que disseram, e insistiram até agora, que
essa era a invasão em um país independente. Os russos
não tinham o direito de estar lá e dissemos isso sem medo.
Esta é a base da nossa política externa: se não podemos
ter amigos permanentes - muito bem. Mas não queremos
ter inimigos permanentes. O que queremos é ajudar a
construir pontes entre nações, continentes e pessoas.
Acreditamos que essa é a tarefa de qualquer nação, grande
ou pequena.
D.M.: Eu acho que é justo dizer que existe uma
tendência na África de projetar os aspectos mais evidentes
da política externa para países fora do continente. Por
exemplo, durante a recente decisão racial de expulsar
asiáticos de Uganda, apenas você e o Presidente Nyerere se
manifestaram contra. Hoje, muitas pessoas estão sendo

81
assassinadas em Uganda. No Burundi, pelo menos 50.000
pessoas foram abatidas no ano passado e, novamente,
ninguém falou. Você não acha que, para sua própria
credibilidade, a África deve começar a se manifestar e agir
com mais firmeza nas coisas que acontecem dentro de sua
própria área?
Kaunda: Temos alguns problemas em questões
como essa. A primeira é a falta de fontes oficiais de
informação. Em geral, as pessoas que nos fornecem
informações sobre questões desse tipo são pessoas cujos
motivos suspeitamos e, portanto, quando não temos
representantes próprios, como em Burundi ou Uganda,
temos poucas informações acuradas. No caso do Burundi,
não tínhamos informações. Tudo o que sabíamos era que
havia uma revolta. Em Uganda, condenamos a abordagem
racial porque pudemos ver claramente o que estava
acontecendo. Mas quando ouvimos dizer que o Chefe de
Justiça em Uganda foi tirado de seu posto, fomos
informados de que alguns soldados rebeldes o levaram. É
claro que ninguém pode acreditar nisso, mas há confusão
sobre o que está acontecendo. Torna muito difícil
encontrar uma base sólida sobre a qual fazer julgamentos.
Mas onde temos algo claro, não hesitaremos em dizer o
que pensamos.

82
D.M.: Seu documento 'Humanismo na Zâmbia' é
aceito como orientação política na Zâmbia da mesma
maneira que a 'Declaração de Arusha' na Tanzânia. Você
poderia explicar as razões pelas quais escreveu o
documento, incluindo o momento e os pontos principais?
Kaunda: Primeiro de tudo o tempo. Tivemos que
introduzi-lo em 1967 por várias razões. Penso que o mais
importante é que, se tivéssemos produzido esse tipo de
humanismo antes da Independência, a Independência da
Zâmbia talvez não tivesse visto a luz do dia. Ainda hoje as
pessoas confundem humanismo com comunismo. O que
teria acontecido se tivéssemos introduzido isso antes da
Independência? Portanto, o momento foi em 1967, como
em muitas outras coisas, foi um fator importante. Nós o
apresentamos depois que tivemos tempo de atuar e as
pessoas sabiam quem nós éramos. Não se esqueça
também de que, quando nos tornamos independentes,
instituições importantes como o exército, a polícia, a força
aérea, a igreja, os negócios e a indústria, a agricultura,
eram todas controladas por expatriados.
O ponto central da filosofia é o humano em tudo o
que fazemos. Não queremos colocar nada acima do
humano. Acreditamos que quando você pensa em termos
de ideologia sem um humano, não há ideologia. Não há

83
riqueza sem o humano. Então a pessoa é o fator chave em
tudo o que fazemos. Em toda a criação de Deus,
acreditamos que o ser humano é central. A partir daí, todo
tipo de política é elaborado. Se são políticas econômicas,
não queremos a exploração do homem pelo homem.
Estamos caminhando para uma situação em que todas as
formas de exploração do homem pelo homem são
removidas. É uma longa jornada, mas começamos.
Políticas externas, políticas sociais e outras são ditadas a
partir desse ponto. Estamos começando com educação
gratuita, serviços de saúde gratuitos. Ainda não significa
que todos tenham a chance de ir à escola, mas se
tivéssemos adiado mais a decisão, teríamos nos metido em
mais problemas. Essa questão de classe teria surgido.
Todas as nossas políticas vêm da importância do homem
na sociedade.
D.M.: Por que o humanismo em oposição ao
socialismo?
Kaunda: Bem, isso tem a ver com algumas das
coisas que ocorreram na história. Acreditamos que o
humanismo é mais abrangente que o socialismo. O
socialismo, na minha opinião, é principalmente uma
maneira de organizar sua economia e sociedade como um
todo. Você quer principalmente colocar os meios de

84
distribuição e produção nas mãos do povo. Mas não
transmite o mesmo significado que o humanismo. Às vezes
vemos países socialistas que colocam a ideologia acima do
homem. Acreditamos que isso está errado e o conceito
deve ser trazido à tona - esse conceito da importância do
homem. A única maneira de fazê-lo foi nomeando nossa
filosofia como humanismo. O socialismo parece ser mais
limitado na compreensão e apreciação da importância do
homem.
D.M.: A mais recente das medidas contínuas desde
1967 é uma ética de liderança impedindo os líderes de
fazer certas coisas. Por que se tornou necessário neste
momento? É porque os líderes estão se favorecendo?
Kaunda: Deveríamos ter feito isso em 1970. Criamos
um comitê sobre a questão do código de liderança. Mas
por causa das divisões no partido, no governo e na
Assembleia Nacional, bem como no país como um todo,
tive que adiar isso. Agora acredito que é a hora certa,
porque a liderança do partido está mais unida após a
saída de certos elementos do partido. Agora é um partido
muito mais feliz, mais forte e mais unido. Todas as
qualidades que se gostaria de ver na liderança agora estão
surgindo novamente como estavam na Independência. Não
há dúvida de que alguém sentiu líderes se favorecendo

85
cada vez mais. Não é simplesmente culpa deles. Essas
pessoas haviam desistido de tudo o que tinham na vida
antes da independência. Enquanto alguns estavam
trabalhando para o governo colonial, essas pessoas
estavam ocupadas lutando pela independência. Elas
tiveram problemas porque não apenas foram obrigadas a
cuidar de suas famílias e famílias extensas, mas também
de seus amigos. Isso significava que a própria segurança
delas era uma preocupação para elas.
D.M.: Acredito que a ética impedirá que os líderes
sejam donos de empresas, fazendas acima de 25 acres e
casas para alugar.
Quando entrará em vigor?
Kaunda: Dentro de cinco anos, ninguém poderá ter
casas para alugar no país. Estou trabalhando em um
documento que abordará toda a questão e o código entrará
em vigor muito antes de cinco anos se esgotarem.
D.M.: Terá uma qualificação para a eleição
parlamentar ainda este ano que você já cumpriu o código?
Kaunda: Sim, será um fator muito importante para
determinar quem se tornará um deputado.
D.M.: Você tem um problema que é sentido em
outros lugares no continente de um grupo de elite dos

86
centros urbanos e universidades que se colocam acima do
homem comum?
Kaunda: Essa é uma das coisas que me deixa muito
triste. A ideia de que um homem que ontem foi oprimido
não pode ter a coragem moral e espiritual de enfrentar a
tentação. Isso me confunde e às vezes me entristece. Devo
admitir, isso me irrita. Essa abordagem elitista da vida é
um câncer que deve ser combatido. Receio que aqui na
Zâmbia algumas pessoas nem sequer acomodam seus
próprios pais em seus próprios lares porque não os
consideram como material humano adequado para se
viver. Outros gostariam de ter escolas, hospitais etc
separados para eles e para seus filhos. Eles acham que
são uma classe separada. Isso é um pecado - para essas
pessoas oprimidas se voltarem contra seus semelhantes,
quererem estabelecer outro regime opressivo. Vamos lutar
e o código de liderança é uma maneira.
D.M.: Na maioria dos países africanos, a chamada
elite buscou manter seus altos salários e seus diferenciais,
aumentando em vez de diminuir a diferença entre os
camponeses. Entre 50% e 75% da renda monetizada
termina nos bolsos da elite. Aqui na Zâmbia, os salários
dos trabalhadores das minas aumentaram 50%, de 1964 a
1968, enquanto, ao mesmo tempo, a capacidade de ganho

87
do camponês rural aumentou apenas 4%. Que medidas
você está tomando para deter essa tendência?
Kaunda: Essa é uma pergunta muito difícil (e, a
propósito, os trabalhadores das minas estão negociando
por mais este ano). Não há dúvida de que muito foi feito
nas áreas rurais. Mas as 'duas nações em uma' são um
problema real. Nós devemos atuar por vários ângulos. O
primeiro é a educação política. O que humanismo significa
para um trabalhador? Um verdadeiro humanista não
ficará feliz em ver que em sua sociedade existem classes
superiores e inferiores. Um verdadeiro humanista não deve
permitir que esse desenvolvimento continue
indefinidamente. Ele deve, individual e coletivamente, fazer
algo para superar essa lacuna entre as áreas rurais e
urbanas. Essa é uma maneira. A segunda maneira, é
claro, é ser severo - não severo, mas tomando as medidas
necessárias. Um passo foi em 1969, quando impus um
congelamento salarial aos trabalhadores. Mas também
impus um congelamento nos preços. Para que não fosse
um caminho de mão única. Isso existiu por um ano antes
de subir. Receio que o que existe entre as nações ricas e as
pobres também exista entre as áreas ricas e pobres na
Zâmbia. Por isso eu disse que somos duas nações em
uma. Devemos esperar até que a política seja assentada

88
nos próximos dois anos sobre esse assunto. Estamos
muito preocupados com esse problema e temos
economistas trabalhando para que, quando chegar a hora
de tomar uma decisão, a decisão certa seja tomada.
D.M.: A política tanzaniana de 'ujaama' parece ser a
mais lógica a surgir na década desde a independência,
enfatizando o reagrupamento de pessoas para que os
serviços possam ser canalizados para eles e seus esforços
na economia. A Zâmbia tem alguma política semelhante?
Kaunda: Nós temos. Chamamos de reagrupamento
de vilarejos. É mais ou menos a mesma abordagem. Mas
queremos também manter a base das aldeias e não
destruir seus valores e tradição através dessa mudança.
Fazemos isso desde 1965. Algumas experiências foram
bem-sucedidas e outras não. Agora temos uma política
bastante clara sobre onde estamos indo.
D.M.: Todos os países africanos da Independência
herdaram um sistema educacional que levava pouco em
conta o fato de que mais de 90% das crianças que
ingressavam nas escolas primárias estavam destinadas a
retornar à terra. O objetivo do sistema era um diploma
universitário. Que mudanças você fez na estrutura
educacional que herdou e que chances você acha que
ainda são necessárias?

89
Kaunda: Herdamos um sistema voltado para
trabalhos de colarinho branco e o resultado tem sido
aterrorizante. Trabalhar com as mãos é algo que foi
menosprezado. Agora estamos enfatizando a importância
do trabalho manual. Isso se baseia na primeira produção
agrícola e, em segundo lugar, na produção industrial.
Estamos enfatizando a necessidade de quase todas as
escolas primárias terem algum tipo de atividade agrícola.
Eles estão produzindo vegetais, milho, algodão ou
cuidando de porcos ou gado. Tudo isso foi feito para dar o
tipo certo de orientação para os pequenos em nossas
escolas. E enfatizamos o treinamento em educação
técnica.
D.M.: Foi um dos grandes problemas que outros
países encontraram com relação à atitude dos pais. Eles
também estão sendo educados politicamente?
Kaunda: Temos um departamento de orientação
nacional. Isso está sob o vice-presidente e ele tem nas
áreas urbanas funcionários que não fazem nada além de
educação política. As atitudes estão mudando, mas levará
muito tempo.
D.M.: O cobre fornece cerca de 90% de seus ganhos
com exportação. Os preços estão caindo. É possível algum

90
tipo de organização como a OPEP para os produtores de
petróleo?
Kaunda: Temos o CIPEC, mas receio que não
tenhamos conseguido muito. Mas estamos sob
considerável influência estrangeira, pois quem veio a
desenvolver as indústrias de cobre inicialmente não fomos
nós. Mas nossa posição está se fortalecendo.
D.M.: Obviamente, o cobre tem sido muito
importante para você no desenvolvimento do país e tem
muito mais dinheiro do que a maioria dos outros líderes
africanos da independência. Mas igualmente tem sido uma
maldição criar uma má distribuição de riqueza na
sociedade com muita acumulação de riqueza ao redor das
minas e possível negligência da atividade rural?
Kaunda: Não há dúvida: o cobre nos deu um começo
desigual - um começo falso. É um começo falso que a
maioria das pessoas não se beneficie do emprego. Dá
também uma falsa sensação de segurança; você precisa
apenas olhar as cidades para ver que pouco se pensa nas
áreas rurais. Mas a liderança não os esqueceu e o cobre
nos permitiu construir boas estradas para eles. Essas
estradas são importantes e agora estamos construindo
estradas distritais para conectar essas áreas. Assim,
embora em certo sentido se possa dizer que o cobre tenha

91
sido uma maldição por nos dar uma falsa sensação de
segurança e riqueza, também nos deu uma boa base para
construir a infraestrutura de que precisamos no país -
além de escolas, hospitais, clínicas etc. A maioria dos
distritos da área rural agora tem uma escola secundária e
um hospital. Assim, enquanto, por um lado, o cobre tem
sido uma maldição, por outro, tem sido uma bênção.

D.M.: Acredito que, nos anos sessenta, você foi


citado em várias ocasiões como dizendo que não faria da
Zâmbia um Estado de Partido Único, a menos que fosse a
vontade do povo através das urnas. Agora, durante a
última parte de 1972, você decidiu fazê-lo em um
momento em que as divisões étnicas e políticas apareciam
publicamente mais marcadas do que antes. Por que você
mudou neste momento e por que proibiu outros partidos
políticos?
Kaunda: Acho que segui minhas declarações
anteriores à risca, porque essa foi a vontade do povo. Eles
fizeram isso através das urnas. Você pode dizer que outros
partidos tinham alguma influência. Mas se você olhar para
toda a estrutura de votação de 1964 a 1972, quando
tivemos eleições anteriores, você verá quanto apoio o UNIP
teve como partido. Você pode ver as eleições

92
parlamentares, presidenciais e municipais; tudo isso apoia
o ponto de vista que estou mencionando. Eu estava
atendendo à demanda que as pessoas expressaram através
das urnas. Tivemos que legislar mais cedo ou mais tarde,
interpretando o que as pessoas haviam dito através das
urnas e colocando isso em lei. Esses números estão lá e
você não pode argumentar contra eles. E não se pode dizer
que fabricamos os números, pois a comissão eleitoral está
sob o Chefe de Justiça e, como você sabe, temos
independência do judiciário.
Quanto à proibição de partidos políticos e à detenção
de alguns líderes - é preciso voltar a 1964. Desde o início,
crescemos com dois partidos (UNIP e ANC). Antes da
independência havia muito atrito; muita violência entre as
duas partes. Isso foi muito sério. Terminamos a luta pela
independência, mas o atrito permaneceu. Você pode olhar
para os registros do Supremo Tribunal e ver esses casos de
assassinato político. Eu não fiz nada até cerca de três ou
quatro anos atrás, quando houve um surto de violência, e
quando surgiu um terceiro partido liderado pelo Sr.
Mundea. Ele havia sido expulso do governo após
irregularidades no Ministério do Comércio e Indústria,
onde era Ministro. Ele e outro ministro foram expulsos e
então formaram outro partido. Tornou-se muito violento e

93
acabou matando alguns dos apoiadores da UNIP no
Cinturão de Cobre. A vida humana estava em perigo, por
isso bani o partido. Eu detive os líderes e por algum tempo
houve paz. Eu os soltei depois de seis meses. Chegou
então o momento em que o Congresso Nacional Africano
(ANC) iniciou uma violenta campanha em Livingstone,
nossa capital turística. Seis membros do UNIP foram
mortos... eles estavam usando facões (pangas), cortando o
pescoço das pessoas. Eu bani o ANC só em Livingstone e
houve paz. Então, em um distrito a oeste de Lusaka, eu
estava em uma excursão oficial e membros do ANC
cortaram árvores nas estradas para servir como
barricadas. Eles queimaram lojas de alimentos
pertencentes a apoiadores da UNIP e outras coisas. Eu os
avisei que, se isso continuasse, eu proibiria o partido
naquela área e como não pararam, então eu os bani. Como
resultado, a paz foi restaurada nessa área. Todas essas
foram lições que eu estava aprendendo.
Eu aliviei a proibição e os problemas começaram
novamente. Eleição após eleição. E houve um apoio
crescente ao UNIP. O ex-vice-presidente, Kapwepwe,
deixou-nos em agosto de 1971 e dei a ele e seus colegas
seis meses para nos dizer o que eles fariam pelo país. Eu
pensei que talvez tivéssemos errado, então deixei que eles

94
nos dissessem onde erramos. No momento em que tomei
medidas contra eles, eles não fizeram nada disso. Não há
registros que eles possam mostrar ou divulgar um panfleto
para mostrar o que eles fariam pelo país que era diferente
do que estávamos dizendo. Então a violência voltou a
aumentar no Cinturão de Cobre. Nosso pessoal do partido
me chamou lá. Em um sábado, eles disseram que se você
não proibir essas pessoas, alguns de nós serão mortos. No
domingo, uma das pessoas do nosso partido foi espancada
até ficar inconsciente. Várias casas de líderes partidários e
nossos escritórios foram incendiados com gasolina. Então
detive os líderes da UPP e novamente houve paz no país.
Recentemente, eu os soltei novamente e na semana
passada houve bombardeios de gasolina novamente no
Cinturão de Cobre. Agora, o que devo aprender com isso?
Até o líder mais democrático se encontraria em uma
situação impossível quando as pessoas deliberadamente
usam métodos violentos para alcançar seus objetivos.
Agora não é só isso. Neste momento, nossas forças
de segurança, após explosões de minas em nossa fronteira
no último final de semana que mataram três de nosso
povo, prenderam cinco homens que admitiram ter sido
organizados pelo ANC para ajudar os homens de Smith na
Zâmbia. É traição, é traição. É o tipo de política que vamos

95
adotar na África - ajudando os homens de Smith?
Primeiro, eles disparam contra uma ilha e assusta nosso
povo lá. Então eles cruzam e, juntamente com essas
pessoas, colocam minas na Zâmbia e matam pessoas.
Acontece que a primeira vítima dessas minas era sobrinho
de uma das pessoas que ajudaram a colocá-las. Foi assim
que conseguimos segui-los. Chipangu, ex-prefeito de
Livingstone da UNIP, foi demitido por motivos
disciplinares. Ele se juntou ao ANC. E depois há um
magistrado e um funcionário do banco. Todos eles têm
lidado com sul-africanos e rodesianos. Não posso dizer
mais nada.
Nós já os pegamos. Onze deles haviam recrutado
homens na Zâmbia para serem treinados na Namíbia pelos
sul-africanos em operações militares. Tudo isso está vindo
à luz. Espero que haja casos judiciais. E devo sugerir aqui
que espero encontrar uma maneira de fazer justiça de tal
maneira que essas pessoas sejam vistas pelo que são;
companheiros traidores que são capazes de vender seu
próprio país aos nossos inimigos. Onze deles estão sob
custódia. Também detive mais oito pessoas, que estavam
se organizando em Mungu. Então, quando coisas assim
estão acontecendo - e não é adivinhação - essas pessoas
estavam recrutando zambianos para serem treinados por

96
nossos inimigos para vir e minar nossa autoridade, para
destruir zambianos. Não podemos permitir isso. Nós temos
uma responsabilidade.
Essas pessoas falharam em produzir políticas
alternativas para este país. A alternativa para eles é ir e
ser treinados pelos portugueses, rodesianos e sul-
africanos, para matar seus semelhantes. Kapwepwe é
encontrado com dois rifles que ele não pode explicar, um
semiautomático. Essas outras três pessoas que mencionei
são encontradas com revólveres. Hoje (16 de janeiro),
revistamos certas áreas aqui em Lusaka e um rodesiano
africano foi encontrado com um rifle .176, um revólver e
várias centenas de cartuchos de munição.
Essas coisas são um ponteiro. Por que essas pessoas
estão andando com armas? Que oposição eles estão
fornecendo? Na minha opinião, eles não têm o direito de
reivindicar a liderança neste país. Aqui não lhes darei a
oportunidade de destruir vidas inocentes da Zâmbia.
Então aqui está você - minas rodesianas em solo da
Zâmbia, revólveres, rifles, todas essas coisas. Há
evidências. Eles terão que explicar nos tribunais. Mas
como é que um homem que era vice-presidente da Zâmbia,
ou Nkumbula que era ministro, se afundam tanto assim?
Antes eles negavam, mas agora foram pegos em flagrante

97
com armas. O que eles têm a dizer sobre isso? Este não é o
tipo de oposição que podemos tolerar na Zâmbia. Existe
liberdade de expressão, de reunião e de associação. O
judiciário e a igreja são independentes. Eles devem ser um
espelho para nos dizer quando erramos. Aceitamos
críticas, mas não oposição – esse tipo de oposição na
África é destruição.

Fonte:https://newint.org/features/1973/03/01/interview-president-
kaunda

98
Anexos

99
Agostinho Neto: Proclamação da Independência de
Angola (1975)

A 11 de novembro de 1975, a bordo de um barco de


guerra português, o alto-comissário transferia
simbolicamente a soberania para o povo angolano.
Simultaneamente, a independência era proclamada
solenemente em dois locais: em Luanda, pelo MPLA, sob o
título de República Popular de Angola, e em Nova Lisboa
(Huambo), pela aliança FNLA-UNITA, sob o título de
República Democrática de Angola.
Fonte:http://www.agostinhoneto.org/index.php?option=com_cont
ent&id=997:discurso-do-presidente-agostinho-neto-na-proclamacao-
da-independencia-de-angola

Em nome do Povo angolano, o Comité Central do


Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA),
proclama solenemente perante a África e o Mundo a
Independência de Angola.
Nesta hora o Povo angolano e o Comité Central do
MPLA observam um minuto de silêncio e determinam que
vivam para sempre os heróis tombados pela Independência
da Pátria.

100
Correspondendo aos anseios mais sentidos do Povo, o
MPLA declara o nosso País constituído em República
Popular de Angola.
Durante o período compreendido entre o encontro do
Alvor e esta Proclamação, só o MPLA não violou os acordos
assinados.
Aos lacaios internos do imperialismo que há muito os
deixamos de reconhecer como movimentos de libertação.
Quanto a Portugal, o desrespeito aos acordos de Alvor
é manifesto, entre outros, no fato de sempre ter silenciado
a invasão de que o nosso País é vítima por parte de
exércitos regulares e de forças mercenárias. Esta invasão,
já conhecida e divulgada em todo o mundo, nem sequer
mereceu comentários por parte das autoridades
portuguesas que, de fato, não exerceram a soberania a não
ser nas áreas libertadas pelo MPLA. Por outro lado, o
nosso Movimento enfrenta no terreno várias forças
reacionárias que integram uma espécie de brigada
internacional fascista contra o Povo angolano. E nessa
aliança incluem-se forças reacionárias portuguesas que
participam na invasão do Sul do País, que o governo
português não só não combateu como legitimou
tacitamente pelo silêncio e passividade.

101
Não obstante as organizações fantoches conluiadas
com exércitos invasores terem de há muito sido
denunciadas pelo Povo angolano e por todas as forças
progressistas do mundo, o governo português teimou em
considerá-Ias como movimento de libertação, tentando
empurrar o MPLA para soluções que significariam uma
alta traição ao Povo angolano.
Mais uma vez deixamos aqui expresso que a nossa luta
não foi nem nunca será contra o povo português. Pelo
contrário, a partir de agora, poderemos cimentar ligações
fraternas entre dois povos que têm de comum laços
históricos, linguísticos e o mesmo objetivo: a liberdade.
Em Dezembro de 1956, no Manifesto da sua fundação,
o MPLA vincava já a sua determinação inquebrantável de
luta por todos os meios para a independência completa de
Angola afirmando – “o colonialismo não cairá sem luta. É
por isso que o Povo angolano só se poderá libertar pela
guerra revolucionária. E esta apenas será vitoriosa com a
realidade de uma frente de unidade de todas as forças
anti-imperialistas de Angola que não esteja ligada à cor, à
situação social, a credos religiosos e tendências
individuais; será vitoriosa graças à formação de um vasto
MOVIMENTO POPULAR DE LIBERTAÇÃO DE ANCOLA”.

102
Força galvanizadora e de vanguarda do nosso Povo, o
MPLA inicia heroicamente na madrugada de 4 de Fevereiro
de 1961 a insurreição geral armada do Povo angolano
contra a dominação colonial portuguesa.
O longo caminho percorrido representa a história
heroica de um Povo que sob a orientação unitária e correta
da sua vanguarda, contando unicamente com as próprias
forças, decidiu combater pelo direito de ser livre e
independente.
Apesar da brutalidade da opressão e do terror imposto
pelo colonialismo para asfixiar a nossa luta, o Povo
angolano, guiado pela sua vanguarda revolucionária,
afirmou de uma maneira irrefutável a sua personalidade
africana e revolucionária.
Tendo como princípio a unidade de todas as camadas
sociais angolanas em torno da linha política e da
formulação clara dos seus objetivos, definido corretamente
os aliados, amigos e inimigos, o Povo angolano, sob a
direção do MPLA, venceu finalmente o regime colonial
português.
Derrotado o colonialismo, reconhecido o nosso direito
à independência que se materializa neste momento
histórico, está realizado o programa mínimo do MPLA.
Assim nasce a jovem REPÚBLICA POPULAR DE ANGOLA,

103
expressão da vontade popular e fruto do sacrifício
grandioso dos combatentes da libertação nacional.
Porém, a nossa luta não termina aqui. O objetivo é a
independência completa do nosso País, a construção de
uma sociedade justa e de um Homem Novo.
A luta que ainda travamos contra os lacaios do
imperialismo que nesta ocasião se não nomeiam para não
denegrir este momento singular da nossa história, integra-
se no objetivo de expulsar os invasores estrangeiros, os
mesmos que pretendem a neocolonização da nossa terra.
Constitui deste modo preocupação fundamental do
novo Estado libertar totalmente o nosso País e todo o
nosso Povo da opressão estrangeira.
Realizando concretamente as aspirações das largas
massas populares, a República Popular de Angola, sob a
orientação do MPLA, caminha progressivamente para um
Estado de Democracia Popular. Tendo por núcleo a aliança
dos operários e camponeses, todas as camadas patrióticas
estarão unidas contra o imperialismo e seus agentes.
Os órgãos do Estado da República Popular de Angola
guiar-se-ão pelas diretrizes superiores do MPLA mantendo-
se assegurada a primazia das estruturas do Movimento
sobre as do Estado.

104
E o próprio Movimento não poderá ser nunca um
organismo petrificado. Dotado de grande vitalidade e
profundamente ligado à dinâmica da revolução, ir-se-á
modificando quantitativamente e qualitativamente até ao
grande salto que o transformará em partido no seio de
uma larga frente revolucionária.
Com a proclamação da República Popular de Angola as
FORÇAS ARMADAS POPULARES DE LIBERTAÇÃO DE
ANGOLA (FAPLA) são institucionalizadas em exército
nacional.
As FAPLA, braço armado do Povo, sob a firme direção
do MPLA constituem um exército popular que tem por
objetivo a defesa dos interesses das camadas mais
exploradas do nosso Povo.
Preparadas na dura luta de libertação nacional contra
o colonialismo português e armadas de teoria
revolucionária, continuam a ser um instrumento
fundamental da luta anti-imperialista.
As FAPLA, como força, libertadora da República
Popular de Angola, caberá defender a integridade
territorial do País e, na qualidade de exército popular,
participar ao lado do Povo na produção para a grandiosa
tarefa da RECONSTRUÇÃO NACIONAL.

105
Angola é um País subdesenvolvido. Devemos ter uma
profunda consciência do significado e consequências deste
fato.
Os índices tradicionalmente usados para definir o
subdesenvolvimento são plenamente confirmados em
Angola. Eles dão a imagem da profunda miséria do Povo
angolano. Mas dizer que o nosso Pais é subdesenvolvido
não basta, é necessário acrescentar imediatamente que
Angola é um País explorado pelo imperialismo; que gravita
na órbita do imperialismo.
Estas duas componentes conjugadas - o
subdesenvolvimento a dependência - explicam por que
razão a economia de Angola tão profundamente distorcida,
com um setor dito “tradicional”, ao lado de setores de
ponta, e regiões retardatárias cercando os chamados
“polos de desenvolvimento”. Mas eles explicam também
toda a crueza da injustiça das relações sociais.
Pondo ponto final ao colonialismo e barrando
decididamente caminho ao neocolonialismo, o MPLA
afirma, neste momento solene o seu propósito firme de
mudar radicalmente as atuais estruturas definindo desde
já que o objetivo da reconstrução econômica será a
satisfação das necessidades do Povo.

106
Longo caminho teremos de percorrer. Teremos de pôr a
funcionar em pleno a máquina econômica e
administrativa, combater parasitismo de todo o tipo,
acabar progressivamente com as distorções entre os
setores da economia, entre as regiões do País, edificar um
Estado de Justiça Social. A economia será planificada para
servir o homem angolano e nunca o imperialismo
devorador. Ela será permanentemente orientada para uma
economia autocentrada, isto, é realmente angolana.
A luta pela Independência econômica será
consequentemente uma constante da nossa estratégia.
Assim; coerente com as linhas traçadas; a República
Popular de Angola lançar-se-á cada vez mais em projetos
de industrialização das nossas próprias matérias-primas e
mesmo em projetos de indústria pesada.
No entanto, tendo em conta o fato de Angola ser um
País em que a maioria da população é camponesa, o MPLA
decide considerar a agricultura como a base; e a indústria
como fator decisivo do nosso progresso.
O Estado angolano terá assim a capacidade de resolver
com justiça o grave problema das terras e promoverá a
criação de cooperativas e empresas estatais no interesse
das massas camponesas.

107
As atividades privadas, mesmo as estrangeiras, desde
que úteis à economia da Nação e aos interesses do Povo,
serão em seu nome protegidas e encorajadas, tal como
estabelece o Programa Maior do nosso Movimento.
A República Popular de Angola estará aberta a todo o
mundo para as suas relações econômicas. Aceitará a
cooperação internacional com o pressuposto indiscutível
de que a chamada “ajuda externa” não deve ser
condicionada ou condicionante. A longa história do MPLA
demonstra à evidência que como força dirigente da
República Popular de Angola jamais trairá o sagrado
princípio da Independência Nacional.
As nossas relações internacionais serão sempre
definidas pelo princípio da reciprocidade de vantagens.
A República Popular de Angola tratará com especial
atenção as relações com Portugal e, porque deseja que elas
sejam duradoiras, estabelecê-las-á numa base nova
despida de qualquer vestígio colonial.
O atual contencioso com Portugal será tratado com
serenidade para que não envenene as nossas relações
futuras.
É evidente que numa primeira fase a nossa economia
se ressentirá com a falta de quadros. Para responder a
esta carência será elaborado um plano expedito de

108
formação de quadros nacionais, ao mesmo tempo em que
se apelará para a cooperação internacional nesse domínio.
As nossas escolas, a todos os níveis, deverão sofrer uma
remodelação radical para que possam de fato servir o Povo
e a reconstrução económica.
O imperialismo não desarma.
Vencido o colonialismo, pretende agora impor-nos novo
regime de exploração e opressão utilizando os seus lacaios
internos, na vã tentativa de destruir as conquistas já
alcançadas pelo Povo.
A determinação revolucionária do nosso Povo de
combater a exploração do homem pelo homem, a
contradição antagónica que nos separa dos inimigos
impõe-nos uma nova guerra Libertadora que assume a
forma de Resistência Popular Generalizada e que será
prosseguida até à vitória final.
Neste contexto reveste-se de preponderante
importância a produção como frente de combate e
condição basilar e vital para o avanço da nossa resistência.
E para dar unidade de ação a todo o esforço produtivo do
nosso Povo, para tirar o máximo rendimento do trabalho
das massas, para que seja efetivamente garantido o apoio
às gloriosas FAPLA, a República Popular de Angola tomará

109
todas as medidas necessárias para enfrentar a situação
decorrente da invasão do nosso País.
A República Popular de Angola reitera solenemente a
decisão de lutar pela integridade territorial de Angola
opondo-se a toda e qualquer tentativa de
desmembramento do País.
A República Popular de Angola considera tarefa
prioritária, vital e inalienável a expulsão dos exércitos
zairense e sul-africano, e dos fascistas portugueses, assim
como as dos fantoches angolanos e mercenários de várias
origens, que constituem as forças conjugadas do
imperialismo na agressão ao nosso País.
A nossa luta anti-imperialista, sob a forma de
resistência, é a expressão de uma irredutível contradição
de classe, que opõe os interesses do nosso Povo aos do
imperialismo internacional. Porém, as contradições
existentes no seio do Povo, entre as várias classes e grupos
sociais anti-imperialistas, pertencem à categoria de
contradições secundárias, e como tal devem ser resolvidas.
A República Popular de Angola propõe-se dinamizar e
apoiar a instauração do Poder Popular à escala nacional.
As massas trabalhadoras exercerão assim o poder a todos
os escalões, única garantia da formação do homem novo e
do triunfo da nossa revolução.

110
A República Popular de Angola considera como um
dever patriótico inalienável e de honra a assistência
privilegiada e a proteção especial aos órfãos de guerra, aos
diminuídos e mutilados de guerra pelos sacrifícios
consentidos na luta de libertação nacional.
Envidará ainda todos os esforços, no sentido da
reintegração completa na sociedade de todas as vítimas da
guerra de libertação nacional.
A República Popular de Angola reafirmará o propósito
inabalável de conduzir um combate vigoroso contra o
analfabetismo em todo o País, promover e difundir uma
educação livre, enraizada na cultura do Povo angolano.
O Estado realizará todos os esforços para instituir à
escala nacional uma assistência médica e sanitária
eficiente, dirigida fundamentalmente às massas
camponesas até agora privadas desse direito pelo
colonialismo.
Preocupação dominante do novo Estado será também
a abolição de todas as discriminações de sexo, idade,
origem étnica ou racial e religiosa, e a instituição rigorosa
do justo princípio: - “a trabalho igual, salário igual”.
A República Popular de Angola, sob a orientação justa
do MPLA, estimulará o processo da emancipação da
mulher angolana, direito conquistado através da sua

111
participação na luta de libertação nacional e na produção
para a resistência generalizada do nosso Povo.
A República Popular de Angola afirma-se um Estado
laico com separação completa da Igreja do Estado,
respeitando todas as religiões e protegendo as igrejas,
lugares e objetos de culto e instituições legalmente
reconhecidas.
A República Popular de Angola, ciente da sua
importância e das responsabilidades que lhe cabem no
contexto da África Austral e do mundo, reitera a sua
solidariedade para com todos os povos oprimidos do
mundo, em especial os povos do Zimbabwe e da Namíbia
contra a dominação racista.
O Povo de Angola, sob a orientação da sua vanguarda
revolucionária o MPLA, exprime a sua solidariedade
militante para com o povo da África do Sul na sua luta
contra o regime racista que o oprime.
Reafirma a sua solidariedade combatente e militante
com os povos de Moçambique, Guiné-Bissau e Cabo Verde,
São Tomé e Príncipe e com as suas vanguardas
revolucionárias, FRELIMO, PAIGC e MLSTP, companheiros
das horas difíceis da nossa luta comum.

112
Reafirma a sua solidariedade militante e combatente
com o povo de Timor dirigido pela sua vanguarda
revolucionária a FRETILIN.
Reafirma a sua solidariedade com o povo palestino na
sua justa luta pelos seus direitos nacionais contra o
sionismo.
Alcançada a Independência Nacional, o MPLA e o Povo
angolano agradecem comovidos a ajuda prestada por todos
os povos e países amigos à nossa luta heroica de libertação
nacional.
O nosso agradecimento dirige-se a todos os povos e
países africanos que estiveram do nosso lado, aos países
socialistas, às forças revolucionárias portuguesas, às
organizações progressistas e governos de países ocidentais
que souberam compreender e apoiar a luta do Povo
angolano. A República Popular de Angola, soberana,
manterá relações diplomáticas com todos os países do
mundo, na base dos princípios de respeito mútuo, da
soberania nacional, não ingerência, de respeito pela
integridade territorial, não agressão, igualdade e
reciprocidade de vantagens, e da coexistência pacífica.
A República Popular de Angola, Estado africano, livre e
independente, exprime a sua adesão aos princípios da
Carta da Unidade Africana e da Carta das Nações Unidas.

113
A política externa da República Popular de Angola,
baseada nos princípios de total independência, seguidos
desde sempre pelo MPLA será de não alinhamento.
A República Popular de Angola saberá respeitar os
compromissos internacionais que assumir, assim como
respeitará as vias internacionais que utilizam o seu
território.
A República Popular de Angola, País empenhado na
luta anti-imperialista, terá por aliados naturais os países
africanos, os países socialistas e todas as forças
progressistas do Mundo.
Compatriotas, Camaradas!
No momento em que o Povo angolano se cobre de
glória pela vitória do sacrifício dos seus melhores filhos,
saudamos na República Popular de Angola o nosso
primeiro Estado, a libertação da nossa querida Pátria.
De Cabinda ao Cunene, unidos pelo sentimento
comum de Pátria, cimentado pelo sangue vertido pela
liberdade, honramos os heróis tombados na longa
resistência de cinco séculos e seremos dignos do seu
exemplo.
Respeitamos as características de cada região, de cada
núcleo populacional do nosso País, porque todos de igual

114
modo oferecemos à Pátria o sacrifício que ela exige para
que viva.
A bandeira que hoje flutua é o símbolo da liberdade,
fruto do sangue, do ardor e das lágrimas, e do abnegado
amor do Povo angolano.
Unidos de Cabinda ao Cunene, prosseguiremos com
vigor a Resistência Popular Generalizada e construiremos
o nosso ESTADO DEMOCRÁTICO E POPULAR.
HONRA AO POVO ANGOLANO
GLÓRIA ETERNA AOS NOSSOS HERÓIS
A LUTA CONTINUA! A VITÓRIA É CERTA!

115
Thomas Sankara: Discurso sobre a dívida externa
(1987)

O discurso foi pronunciado três meses antes de sua


morte, revelando o caráter violento do imperialismo e como
este teme a libertação das nações exploradas que buscam
romper com a dependência econômica externa (nova forma
de colonialismo, o neocolonialismo).
Fala de Thomas Sankara de Burkina Faso.
[Tradução feita por André Luiz]

Fonte: http://conosaba.blogspot.com/2019/08/discurso-de-tomas-
sankara-sobre-divida.html

Nós acreditamos que a dívida deve ser analisada pelo


ponto de vista de suas origens. A origem da dívida vem de
nossas origens coloniais. Aqueles que nos emprestam
dinheiro são aqueles que nos colonizaram anteriormente.
São aqueles que costumavam administrar nossos Estados
e economias. Colonizadores são aqueles que endividaram a
África lá atrás, seus irmãos e primos que eram os
credores. Não tínhamos qualquer ligação com esse crédito,
então não podemos pagar por ele.
Dívida é Neocolonialismo, no qual os colonizadores
transformam-se em "assistentes técnicos", devíamos

116
chamá-los de "assassinos técnicos"! Eles se apresentam
com financiamento, com apoio financeiro... como se o
apoio deles pudesse criar desenvolvimento. Nós fomos
aconselhados a irmos a estes credores... nos foram
propostas belas armações financeiras e fomos endividados
por 50... 60 anos e até mais. O que significa que fomos
levados a comprometer nosso povo por 50 anos e além!
Da forma que vemos: isto é imperialismo moderado,
uma maneira inteligente de reconquista da África, mirando
subjugar seu crescimento e desenvolvimento atrás de
regras estrangeiras. Ou seja, cada um de nós se torna um
escravo financeiro, que é chamarmos verdadeiros escravos
daqueles que foram traiçoeiros o bastante para colocar
dinheiro em nosso país com a obrigação de devolvermos.
Nos é dito para que devolvamos, mas esta não é uma
questão moral... não é sobre essa tão falada honra de
devolução ou não.
Senhor Presidente, nós ouvimos e aplaudimos a
Primeira Ministra da Noruega quando ela falou aqui, ela é
europeia, mas admitiu que a dívida inteira não pode ser
paga. A dívida não pode ser paga, primeiro porque se não
pagarmos os credores não morrerão essa é uma certeza,
mas se pagarmos com certeza morreremos e essa também
é uma certeza. Aqueles que nos atraem para nos

117
endividarmos têm apostado, como em um cassino, tão
quanto tivessem lucro, não havia debate... mas agora que
sofrem perdas, eles demandam pagamento e nós falamos
de crise econômica. Não, Senhor Presidente, eles jogaram e
perderam, essas são as regras do jogo e a vida continua!
Nós não podemos devolver nada, não temos os meios para
tanto; não podemos devolver, porque não somos os
responsáveis por essa dívida. Não podemos pagar, mas os
outros nos devem mais que qualquer riqueza da terra pode
devolver que é a dívida de sangue. Nosso sangue foi
derramado.
Ouvimos sobre o Plano Marshall que reconstruiu a
Economia Europeia, mas nunca ouvimos sobre o Plano
Africano que permitiu que a Europa lutasse contra as
hordas de Hitler quando sua economia estava em risco.
Quem salvou a Europa? A África. Raramente isso é
mencionado, a tal ponto que não podemos ser cúmplices
desse silêncio sem agradecimento. Se os outros não podem
atender às nossas preces, pelo menos podemos dizer que
nossos pais foram corajosos e que nossas tropas salvaram
a Europa e libertaram o mundo do Nazismo.
A dívida é também resultado de confrontamento.
Quando ouvimos falar sobre crise, ninguém fala que essa
crise não veio repentinamente. A crise sempre esteve lá e

118
cada vez fica pior a cada vez que as massas populares se
tornam conscientes de seus direitos contra seus
exploradores. Estamos em crise hoje porque as massas
não querem que as riquezas fiquem concentradas nas
mãos de poucos indivíduos. Estamos em crise porque
algumas pessoas estão mandando somas enormes de
dinheiro para contas em bancos estrangeiros que seriam o
bastante para desenvolver a África! Estamos em crise
porque encaramos essa prosperidade privada que nós não
podemos nomear, as massas populares não querem viver
em guetos ou favelas. Estamos em crise porque em todo
lugar as pessoas se recusam a serem como Soweto
encarando Joanesburgo.
Há uma revolta e seu aumento aborrece aqueles com
poder financeiro. E nos é pedido que sejamos cúmplices
desse "balanço", balanço esse que favorece aqueles com
poder financeiro, balançando contra as massas populares.
E não! Não podemos ser cúmplices. Não! Não podemos
continuar com aqueles que sugam o sangue de nosso povo
e vive à custa do suor de nossa gente. Não podemos
continuar com eles e seus métodos assassinos.
Senhor Presidente, ouvimos falar de "Clubes" - Clube
de Roma, Clube de Paris, Clube de todo lugar. Ouvimos
falar de Clube dos Cinco, dos Sete, dos Dez... e talvez até

119
dos Cem. E o que mais? É normal que nós também
tenhamos nosso próprio clube e nosso próprio grupo.
Façamos Addis Abeba se tornar de agora em diante o
centro do que será respirar novos ares... um Clube de
Addis Abeba. É nosso dever criar uma Addis Abeba
unificada contra a dívida e essa é a única forma de
garantir que a recusa do pagamento não será considerada
um movimento agressivo de nossa parte, mas um
movimento fraternal que dirá a verdade.
Ademais, as massas populares da Europa não são
opostas às populares da África. Aqueles que querem a
exploração da África são aqueles que exploram a Europa
também, temos um inimigo em comum. Então, nosso
Clube de Addis Abeba terá que explicar para cada um que
a dívida não deverá ser paga e que ao dizermos isso não
somos imorais, não somos indignos ou não mantemos
nossa palavra. Nós acreditamos que nós temos a mesma
moralidade que os outros, não é a mesma moralidade
entre os ricos e os pobres.
A Bíblia e O Corão podem servir exploradores e
explorados da mesma maneira, se podem ser usados em
favor dos dois lados... deveriam haver duas versões
diferentes da Bíblia e do Corão. Não podemos aceitar ouvir
sobre dignidade e sobre mérito daqueles que pagam e

120
desconfiam daqueles que não. Pelo contrário, devemos
reconhecer hoje que é verdade que os maiores ladrões são
os mais ricos. Quando um homem pobre rouba, ele é
apenas um ladrão, é sobre sobrevivência e necessidade.
Quando um rico rouba, é por autoridade fiscal e direitos
aduaneiros; são eles quem exploram o povo.
Senhor Presidente, minha proposta não é provocar
nem me exibir. Só quero dizer aquilo que cada um de nós
pensa e deseja, quem aqui não deseja que a dívida seja
simplesmente cancelada? Aqueles que não podem entrar
em seu jatinhos, ir direto ao Banco Mundial e pagar! Eu
não iria querer que as pessoas pensassem que a proposta
de Burkina Faso vem de uma juventude sem maturidade
ou experiência. Eu não iria querer que as pessoas
pensassem nem que apenas revolucionários falam desta
forma.
Eu quero que cada um perceba que isso é mera
objetividade e obrigação. E posso tomar como exemplo
outros que disseram para não pagar, revolucionários tanto
quanto não revolucionários, jovens tanto quanto velhos... e
eu mencionaria como exemplo Fidel Castro que disse ‘não’
ao pagamento, e ele não é da minha idade, mesmo que ele
seja revolucionário.

121
Mencionaria também Fançois Mitterrand que disse que
os países Africanos, países pobres não poderiam pagar.
Mencionaria a Madame Primeira Ministra... não sei sua
idade, e eu acho falta de educação pergunta-la agora, mas
é um exemplo. Mencionaria o Presidente Felix Houphouet-
Boigny, ele não é da minha idade também, mas assumiu
oficial e publicamente, para seu país pelo menos, Costa do
Marfim não pode pagar. E agora a Costa do Marfim está
entre os mais ricos países africanos falantes do Francês...
e esse é também o motivo do por que tem que
naturalmente pagar mais contribuições aqui.
Senhor Presidente, essa não é uma provocação, eu
adoraria que vocês sabiamente nos aconselhassem
soluções. Eu desejo que essa conferência adote como
necessidade dizer que nós não podemos pagar essa dívida.
Não com intenções de guerra, mas para prevenir que nós
sejamos individualmente assassinados.
Se Burkina Faso se levantar sozinha contra o
pagamento, eu não estarei aqui para a próxima
conferência! Mas com o suporte de todos, que eu preciso,
podemos evitar o pagamento. Com isso nós devolveríamos
nossos pequenos recursos ao nosso próprio
desenvolvimento...

122
E eu gostaria de terminar dizendo que a cada vez que
um país africano compra uma arma essa ação é contra um
país africano, não contra um europeu, ou um país
asiático... é contra um africano. E como consequência,
devemos tomar vantagem do problema da dívida para
resolver o problema das armas. Eu sou militar e eu
carrego uma arma, mas Senhor Presidente, eu quero que
nós nos desarmemos. Porque eu carrego a única arma que
tenho e outros escondem as armas que têm.
Meus queridos irmãos, com o suporte de todos,
traremos paz à nossa casa. Usaremos essa enorme
capacidade para desenvolver a África porque nosso solo e
subsolo são ricos. Temos força de trabalho o bastante e
um mercado amplo de Norte a Sul, de Leste a Oeste.
Temos capacidade intelectual para criar ou pelo menos
utilizar a tecnologia e a ciência para o que acharmos
necessário. Senhor Presidente, vamos estabelecer a Addis
Abeba unificada contra a dívida. Façamos de Addis Abeba
o comprometimento de limitar o armamento entre os
países fracos e pobres.
Façamos um mercado africano, um mercado de
Áfricas. Produzido na África, consumido na África, para a
transformação da África.

123
Vamos produzir o que precisamos e consumir o que
produzimos ao invés de importar. Burkina Faso veio aqui
representando sua indústria de algodão: produzida em
Burkina Faso, fiada em Burkina Faso, trançada em
Burkina Faso para vestir Burquinenses.
Nossa delegação e eu estamos vestindo por nossos
tecelões, nossos camponeses, não há um único fio vindo
da Europa ou da América. Eu não faria um desfile de
moda... mas eu diria que devemos aceitar viver "africano",
a única forma de viver livre e de maneira digna.
Eu agradeço você, Presidente.
A nação ou morte, nós superaremos.

124
Jonas Savimbi: Quem trouxe a guerra em Angola?
(1992)

Em campanha pela presidência da República de


Angola, Jonas Savimbi, o líder da União Nacional para a
Independência Total de Angola (UNITA), discursa para seus
seguidores em 1992.
https://www.youtube.com/watch?v=AcxRskxhtis

Se nós formos analisar o motivo de cada um, o MPLA


diz que a UNITA quer lutar só pelo poder. Negativo! Nós
lutamos pela liberdade! Quem é que trouxe a guerra para
Angola?
“O MPLA”
Em 1975, éramos três movimentos, o FNLA, o MPLA e
a UNITA, que tinham assinado com o governo português o
acordo de Alvor em 1975, para realizarmos as eleições de
outubro, não era isso?
“ERA”
Não houve eleições por quê? Porque o MPLA primeiro
atacou a UNITA no pica pau e depois atacou o FNLA e nos
expulsou de Luanda. Foi ou não foi?
“Foi!”
Quem foi o culpado da guerra em Angola?

125
“O MPLA”
Quem foi o culpado da destruição em Angola?
“MPLA”
Como é que o MPLA pretende hoje a dizer que quer
mais um mandato do povo, pra fazer o que?
(...) Ainda continua a fazer a guerra em Cabinda. O
MPLA nunca soube negociar. O MPLA, além da arrogância,
de pensar que eles são os únicos que deviam governar o
país, que os outros povos não prestam pra nada. O MPLA
é incompetente pra governar, incapaz de entender e não
consegue ver a pulsação dessa Angola profunda.
(...) Eu ouvi Eduardo Santos dizer em Lubango que nós
queremos a ditadura. Eu quero perguntar: Quem começou
a guerra?
“Foi o MPLA”
Quem trouxe os cubanos?
“Foi o MPLA”
Quem é que trouxe a ditadura comunista pra Angola?
“Foi o MPLA”
Então quem é o ditador?
“O MPLA”
É o Eduardo Santos. Quem é o ditador?
“É o Eduardo Santos”
Mas quem é que expulsou os cubanos de Angola?

126
“A UNITA”
Quem é que lutou contra os cubanos e os russos em
Angola?
“Foi a UNITA”
Então, os que trouxeram a democracia pra Angola
podem ser ditadores?
“Não”
O MPLA destruiu esse país, os dirigentes do MPLA,
incluindo Eduardo Santos, roubaram o dinheiro, o
diamante e o dinheiro do petróleo. Sim ou não?
“Sim”
Agora, vocês vão dar mais seu voto ao Eduardo
Santos? Para continuar a roubar...

127
O Imbróglio Angolano: Carlos Moore

O grandes desastres africanos que mais me afetaram,


pessoalmente, foram o assassinato de Patrício Lumumba e
as guerras de Ruanda em 1992; a guerra civil de
praticamente duas décadas de Angola. Nunca imaginei que
veria perdas humanas nessa escala de milhões de pessoas,
na África. Acho que Angola me traumatizou,
particularmente, pois eu estive a ponto de me integrar nessa
luta, no inicio dos anos sessenta. Com efeito, eu estive
ligado pela amizade de três dos dirigentes Angolanos:
Viriato da Cruz, Mário de Andrade e Jonas Savimbi. Irei
falar primeiro de Savimbi, pois foi o primeiro que eu
conhecera, em 1964, quando morava no Cairo, Egito. (...)
(A África que Incomoda)

(...) - Depois de chegar ao Egito conhece Jonas


Savimbi. Como era este político em 1964?
Conheci-o através de Abdel Azziz Iss-Hak, conselheiro
para os assuntos africanos de Gamal Nasser [Presidente
do Egito entre 1954 e 1970]. Nessa altura, Savimbi era
espetacular. Um homem brilhante, com um pensamento
claro, muito progressista. Com ele as conversas eram
teóricas e de muito alto nível. Tal como Viriato da Cruz e

128
Mário de Andrade, que conheci mais tarde, Savimbi via
África dentro de uma dinâmica internacional. Era pró-
guevarista, pró-castrista, marxista mas maoista. Tivemos
fortes discussões, até que acordamos em não tocar mais
no “assunto Cuba”, porque nunca chegaríamos
a consenso.
Como encarava ele os outros movimentos de
libertação de Angola?
Savimbi via Holden Roberto como um político ditatorial
que obedecia aos interesses ocidentais.
Não obstante, compreendia que a base da União dos
Povos de Angola (UPA) era formada por verdadeiros
nacionalistas. Por outro lado, pensava que o MPLA era
dirigido por políticos dogmáticos que estavam
comprometidos com os interesses soviéticos, embora
falasse com respeito de Viriato da Cruz, Mário de Andrade,
Agostinho Neto, entre outros.
Nunca falaram na possibilidade de um acordo com
o MPLA?
Savimbi acreditava, sim, que era possível uma aliança,
porque o MPLA era progressista. Até hoje estou convicto
que poderia ter havido um acordo inteligente de partilha
do poder político em Angola entre os dois partidos, e que
não excluísse a FNLA. Houve erros graves de todos os

129
lados. A pessoalização do poder, a egomania e os
sectarismos ideológicos impuseram-se, o que deu
oportunidade aos soviéticos, americanos, cubanos e sul-
africanos para fazerem o seu próprio jogo.
Como é que Savimbi se movimentava no Cairo,
nessa altura?
Ele tinha um forte apoio de Nasser, que o admirava
bastante, e que, por outro lado, odiava Holden Roberto.
Entre 1964 e 1965, Savimbi e Viriato da Cruz, ambos
maoistas, estabeleceram contatos entre si. Estavam a
tratar, penso, de destruir a força política de Holden
Roberto. Recorde-se que Savimbi tinha sido ministro das
Relações Exteriores do Governo Revolucionário Angolano
no Exílio e que Viriato da Cruz integrou a UPA/FNLA
quando saiu do MPLA (um erro político, como lhe disse
várias vezes).
O que lhe respondia?
Nunca disse nada. Quando não queria responder, ele
tinha uma maneira de olhar para ti em silêncio… Penso
que não queria admitir que tinha errado.
Voltemos a Savimbi. Cairo, 1964.
Para além de Nasser, Savimbi tinha também um
grande apoio da esquerda trostskista europeia e do Baath
do Iraque e da Síria, liderados por Michel Aflak. O primeiro

130
treino militar dos elementos que ele controlava, e que na
altura constituíam o PARA – Partido Africano
Revolucionário de Angola (a UNITA viria depois) foi feito no
Iraque. Entretanto, no Cairo, Nasser concedera ao PARA
um espaço para a sua missão, que ficou sob a
responsabilidade de Florentino Duarte, um jovem vindo da
Suíça. Savimbi pediu-me para o ajudar a montar o
escritório, sob a condição de eu não revelar a ninguém que
era cubano, porque ele não podia ter relações com
dissidentes do regime de Fidel. Redigi, por exemplo, o
primeiro boletim de Savimbi publicado no Cairo, o
“Kwacha Angola”.
Durante quanto tempo trabalhou com Savimbi?
Ao longo de 1964. Nasser tinha apelado ao governo
tunisino para dar passaportes aos homens de Savimbi, e
eu também ganhei um. Passei a ser angolano e a chamar-
me Carlos Silan-Kango. Eu tinha 21 anos e queria ir para
a luta. Sabendo disso, Savimbi prometeu-me que seis
meses depois me enviaria com um grupo para receber
treino militar na China, e que depois seguiria para Angola.
Ele não estava muito contente com o tipo de treino que o
primeiro grupo recebera no Iraque. Achava que tinha sido
muito “convencional”. Tinha muita confiança nos métodos
da guerrilha chinesa, e queria implementá-los em Angola.

131
Savimbi dizia que a fraqueza do MPLA residia no fato dos
seus dirigentes não serem capazes de combater no meio do
povo e morrer com ele. Era um homem muito prático.
Lembro-me de me ter dito para estudar o máximo possível
sobre as etnias angolanas. Prometeu-me até trazer um
dicionário de umbundo feito pelos missionários.
Mas acabou por não ir nem para a China nem
para Angola.
Fiquei quase um ano no Cairo com identidade
angolana à espera de ser chamado. Como nada acontecia,
disse então ao Savimbi que não estava disposto a
continuar. Reagiu muito mal, mas ainda me perguntou se
estaria disposto a partir para a China assim que possível.
Respondi que sim. Segui então para Paris. Trocámos duas
cartas, e a um dado momento, Stella Makunga, da
Zâmbia, um elemento da sua confiança, foi ter comigo a
França. Através dela Savimbi pediu-me ajuda para
recrutar médicos e enfermeiros afro-americanos e negros
dispostos a ir para a China. Depois disso escreveu-me
uma última carta, que marcou a nossa distância. Em 1966
encontrei-o em Paris. Não o vi mais.
Por que esse distanciamento?
Savimbi tinha uma personalidade centralizadora. E
como era tão brilhante, não havia ninguém à volta dele,

132
nas estruturas políticas, que servisse de contrapeso. O
nosso diferendo começou quando lhe disse que as
questões tinham de ser discutidas.
Quando Viriato da Cruz chegou a Paris, comia na
sua casa, o único sítio onde tinha a certeza que não
seria envenenado…
Ele chegou a Paris em princípios de 66, com
identidade falsa. Conhecia-o apenas das conversas que
tinha tido com Savimbi, que o considerava um “pensador
notável”. Viriato era, naquele momento, uma molécula
solta e estava a ser perseguido pela PIDE. Nunca dormia
no mesmo lugar. Foi Mário Clington quem me apresentou.
A partir de então, começou a ir todas as noites a minha
casa para jantar. Era o único sítio onde comia, tal era o
receio de ser envenenado. O Mário trazia-o às 21 horas de
táxi. Entrava, comia e ficávamos a falar até a uma, duas
horas da manhã e logo ia embora. Contou-me da morte de
Matias Miguéis e José Miguel, ele estava numa situação
muito difícil. A dada altura, os chineses arranjaram-lhe
um passaporte e ele foi para a China. A partir daí
começamos a contatar só por cartas.
Conseguia-se perceber, através da correspondência
que trocaram, o apertar do cerco dos chineses?

133
No início ele falava da China com muito entusiasmo,
mas a dada altura uma amiga minha, que era o contato de
Viriato em Paris, Monique Chajmowiez [autora do livro
“Viriato da Cruz: Cartas de Pequim”], começou a enviar-me
mensagens encriptadas. Percebi que havia um problema
sério. Mas foram os haitianos que regressavam a Paris,
vindos de Pequim, que me contaram que os chineses
tinham posto o Viriato em isolamento total, sujeito a uma
perseguição feroz e a uma grande pressão psicológica. As
últimas cartas que ele me enviou eram incompreensíveis.
Eram ideias desligadas, o que não era nada próprio dele,
que tinha uma escrita muito clara. Até que um dia Mário
Clington me ligou a dizer que Viriato tinha morrido.
Como interpreta este desfecho?
Os chineses recuperaram-no para que fizesse o jogo
deles, mas o que Viriato queria era recriar o movimento
revolucionário em Angola. Primeiro tentou fazê-lo com
Savimbi; depois pegou a boleia da China, pensando que lá
teria uma base. Mas os chineses já tinham decidido que
iam apoiar Savimbi e não queriam ninguém que chocasse
com essa estratégia. Viriato tinha uma grande capacidade
crítica e um pensamento independente. Foi isso que,
eventualmente, o levou a suspeitar das verdadeiras
intenções da política chinesa em África e a confrontar-se

134
com os dirigentes chineses, que começaram a questionar a
sua fidelidade. A China foi implacável com ele.
“Cuba veio para África com o complexo de Tarzan”
Acusa Cuba de imperialismo em relação à
África. Por quê?
Há que terminar com a mitologia mentirosa que
apresenta a ação de Cuba em África como uma ação de
puro altruísmo, e que pinta os “bons dirigentes brancos
cubanos” que dirigiam as guerras a partir de Havana como
os salvadores dos africanos. A verdade é que Cuba tinha
interesses estratégicos bem definidos em África.
Quais?
Os dirigentes cubanos começaram a construir a sua
política para África a partir de 1965, depois da crise dos
mísseis, quando Cuba ficou altamente dependente da
União Soviética. Para reverter o quadro, Fidel Castro
queria estabelecer em África uma série de Estados
vassalos, para fazer com que a URSS dependesse de Cuba
para aceder aos recursos africanos. Ao mesmo tempo,
Fidel queria também impedir a entrada em cena da China,
que estava a apostar forte em divisões dentro dos
movimentos de libertação africanos. Provo todas estas
ideias no livro “Castro, os Negros e África”. Uma obra que o
regime cubano tentou descredibilizar, dizendo que eu era

135
“instrumento da CIA”. Difundiram até o rumor que eu
tinha sido um “assessor” de Holden Roberto e seu
“intérprete” durante as viagens que ele fez aos Estados
Unidos. Logo eu, que nunca vi Holden Roberto na vida, a
não ser na televisão! Continuo a desafiar o governo cubano
a apresentar provas que confirmem essas calúnias.
Che Guevara esteve em África em 1965 numa
missão exploratória. Como viu ele a situação?
Che concluiu que em África os regimes revolucionários
eram fracos e que poderiam (pensava ele) facilmente ficar
dependentes de Cuba, que tinha uma força militar forte.
Ele queria utilizar tropas negras cubanas no Congo-
Kinshasa, onde montaria um comando-geral que
coordenasse as lutas independentistas. Quando voltou a
Cuba, Che falou também com um grande entusiasmo de
Jonas Savimbi. A tal ponto de afirmar numa reunião:
“Sobre os ombros de Savimbi navega a revolução africana”.
Mas Savimbi, que tal como Che era maoista, não fazia
parte dos planos da política soviética, nem dos de Cuba,
que tinha já relações com o MPLA.
Angola foi só mais uma intervenção cubana?
Cuba não sabia que Savimbi lhe ia dar um argumento
magnífico para intervir em Angola – a aliança ao regime do
apartheid. Porque na verdade, esta intervenção já estava

136
preparada há muito tempo, e tinha como objetivo colocar o
MPLA no poder.
No ano passado, o Ministério da Cultura angolano
terá dado ordem para retirar o documentário “Cuba,
Uma odisseia Africana” do cartaz do Festival
Internacional de Cinema de Luanda…
A visão que esse documentário passa é absurda, mas
retrata o discurso oficial. Em Cuba começaram a dizer que
os angolanos não combateram. Depois da batalha do Kuito
Kwanavale, Fidel Castro fez um discurso em que dizia:
“estamos dispostos a ficar em Angola 10, 20, 25 anos, se
necessário”. O que é isto?
Mas não ficaram.
Porque Cuba não percebeu as complexidades, nem de
Angola, nem do continente africano. Vieram com o
“complexo de Tarzan” e encontraram uma resistência
difícil e dura. Determinante foi também a obstrução dos
chineses e a desintegração do seu aliado soviético. Por
outro lado, em Angola, dentro do MPLA, começou a haver
receio desse controlo excessivo. Porque os cubanos não
vieram só aqui para combater. Eles levaram para Cuba
todos os recursos naturais que puderam. Quando
regressei a Havana (fui autorizado a voltar em 1997)

137
antigos militares relataram-me, a chorar, a pilhagem geral
e as maldades que tinham cometido aqui.
Por exemplo?
O uso de napalm aldeias inteiras. Milhares de cubanos
enlouqueceram nessa guerra. Ninguém fala nisto.
Como encaravam Viriato da Cruz e Mário de
Andrade, com quem conviveu no exílio, esta
intervenção cubana em Angola?
Eles não acreditavam que Cuba estava a “salvar”
África, como dizia a propaganda castrista. Viam uma
contradição entre essa “paixão” pelos africanos e a
existência de um forte racismo em Cuba, que excluía do
poder a maioria negra. Eles estavam contra a satelização
dos movimentos africanos em relação a que país fosse.

Perfil
“Sou fundamentalmente um militante anti-racista e
anti qualquer forma de dominação. Passei entre 30 e 35
anos da minha vida a apoiar movimentos de libertação
africanos e negros. Em nenhum momento entrei em
conluio com forças de direita, mas também não acredito de
forma nenhuma na esquerda, muito menos na esquerda
marxista, que é uma ideologia mentirosa. Sou um
pensador livre, já não há um regime capaz de me

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intimidar. A dignidade humana é o meu sonho e não o
entrego nas mãos de nenhum tirano ou de nenhum
partido. Um intelectual tem de assumir um compromisso
de verdade (e não do poder) com a sociedade. Pertenço a
África. Saímos daqui acorrentados e ainda
continuamos prisioneiros.”

Carlos Moore nasceu a 4 de Novembro de 1942 em


Camaguey, Cuba. Etnólogo, cientista político e jornalista, é
Doutor em Ciências Humanas e Doutor em Etnologia pela
Universidade de Paris-7. Com uma longa carreira
académica nas Caraíbas e nos Estados Unidos, Carlos
Moore foi, em 1982 e 1983, consultor pessoal para
assuntos latino-americanos do Secretário-Geral da OUA,
Edem Kodjo. Tem várias obras publicadas, entre as quais
“Pichón” (autobiografia), “Castro, The Blacks and Africa”,
ou “This Bitch of a Life” (biografia de Fela Kuti, que vai ser
adaptada pela Broadway). Vive em Salvador da
Bahía, Brasil.

Fonte: BUALA por Pedro Cardoso


https://www.buala.org/pt/cara-a-cara/nao-entrego-a-ninguem-o-
sonho-da-dignidade-humana-entrevista-a-carlos-moore

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