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DISCURSO

PERSPECTIVA DE
LIBERDADE
7 de janeiro de 1965

Conteúdo exclusivo - Série Discursos Malcolm X


Textos contidos na coletânea “
Há uma revolução mundial em andamento:
discursos de Malcolm X”, LavraPalavra, 2020.

Edição Gabriel Landi Fazzio


Tradução Luisa Gabriela da Silva Santana, Maria
Luisa Lima Teixeira e Vinicius Souza Fernandes da Silva
Curadoria de conteúdo Professor e historiador Lindener Pareto
Revisão Giovana Aranda Silva e Brunna Leite Santos
Capa Luka Farias
Diagramação Luka Farias
Foto da capa Foto de Library of Congress na Unsplash
PERSPECTIVA DE LIBERDADE

Discurso proferido em 7 de janeiro de 1965 no Fórum


Sindical Militante, organizado pelo Partido Socialista dos
Trabalhadores.

Sr. Presidente, que é um dos meus irmãos,


senhoras e senhores, irmãos e irmãs: é uma honra para
mim voltar ao Fórum Sindical Militante novamente esta
noite. É a minha terceira vez aqui. Eu estava dizendo ao
meu irmão aqui em cima que provavelmente amanhã
de manhã a imprensa tentará fazer parecer que essa
pequena conversa que estamos tendo aqui esta noite
ocorreu em Pequim ou em outro lugar. Eles tendem
a descolorir as coisas dessa maneira, tendem a ten-
tar fazer com que as pessoas não atribuam a devida
importância ao que ouvem, especialmente quando
ouvem de pessoas que não conseguem controlar, ou,
como meu irmão apontou, pessoas que eles conside-
ram “irresponsáveis”.

É a terceira vez que tive a oportunidade de ser


convidado do Fórum Sindical Militante. Eu sempre sinto
que é uma honra e toda vez que eles abrirem a porta
para mim, eu estarei bem aqui. O jornal O Militante1 é
um dos melhores da cidade de Nova York. Na verdade,
é um dos melhores em qualquer lugar que você vá

1 Jornal publicado nos Estados Unidos pelo trotskista Partido Socialista dos
Trabalhadores (SWP).

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PERSPECTIVA DE LIBERDADE

hoje, porque em todos os lugares que eu vou, o vejo. Eu


o vi até em Paris cerca de um mês atrás; eles o esta-
vam lendo lá. E o vi em algumas partes da África, onde
estive durante o verão. Não sei como chega lá. Mas se
você colocar as coisas certas nele, verá que o que você
coloca nele circula.

Hoje à noite, durante os poucos momentos que


temos, teremos um batepapo, como irmãos, irmãs e
amigos, e provavelmente inimigos também, sobre as
perspectivas de paz, ou as perspectivas de liberdade
em 1965. Como vocês podem observar, eu quase escor-
reguei e disse paz. Na verdade, não se pode separar
a paz da liberdade, porque ninguém pode estar em
paz a menos que ele tenha sua liberdade. Não se pode
separar os dois, e é isso que torna 1965 tão explosivo e
perigoso.

As pessoas deste país que no passado estavam


em paz estavam assim apenas porque não sabiam o
que era liberdade. Eles deixaram que outras pessoas a
definissem para eles, mas hoje, em 1965, você descobre
que aqueles que não tiveram liberdade e não estavam
em posição de definir a liberdade estão começando
a defini-la por si mesmos. E, quando eles se posicio-
nam intelectualmente para definir a liberdade para si
mesmos, eles exergam que não a têm, e isso os torna
menos pacíficos ou menos inclinados à paz.

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PERSPECTIVA DE LIBERDADE

Em 1964, povos oprimidos em todo o mundo, na


África, na Ásia e na América Latina, no Caribe, obtive-
ram algum progresso. A Rodésia do Norte se livrou do
jugo do colonialismo e se tornou a Zâmbia, e foi aceita
nas Nações Unidas, a sociedade dos governos inde-
pendentes. Nyasaland tornou-se Malawi e também foi
aceito na ONU, na família de governos independentes.
Zanzibar fez uma revolução, expulsou os colonialistas e
seus lacaios e depois se uniu a Tanganica no que hoje
é conhecido como República da Tanzânia – realmente
é um progresso.

Também em 1964, o povo oprimido do Vietnã


do Sul, e em toda a região do Sudeste Asiático, teve
êxito em combater os agentes do imperialismo. Todos
os cavalos do rei e todos os homens do rei não lhes
permitiram reunir o Vietnã do Norte ao Sul novamente.
Pequenos agricultores de arroz, camponeses, com uma
espingarda – contra todas as armas de guerra alta-
mente mecanizadas – jatos, napalm, navios de guerra,
tudo o mais, e eles não podem colocar esses agricul-
tores de arroz de volta onde os querem. Alguém está
acordando.

No Congo, as forças da República Popular do


Congo, com sede em Stanleyville, travaram uma guerra
pela liberdade contra Tshombe, agente do imperialismo
ocidental – e por “imperialismo ocidental” eu me retiro

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PERSPECTIVA DE LIBERDADE

àquele que está sediado nos Estados Unidos, no Depar-


tamento de Estado.

Em 1964, esse nosso governo, subsidiando


Tshombe, o assassino de Lumumba, e os mercenários
de Tshombe, contratou assassinos da África do Sul, com
a ajuda da Bélgica, a antiga potência colonial, e lançou
paraquedistas sobre o povo do Congo; usaram cuba-
nos, que haviam treinado para lançar bombas sobre o
povo do Congo com aviões americanos, sem sucesso. A
luta ainda está em andamento, e o homem da América,
Tshombe, ainda está perdendo.

Tudo isso em 1964. Agora, falar assim não signi-


fica que eu seja antiamericano. Eu não sou. Eu não sou
antiamericano, ou não americano. E não estou dizendo
isso para me defender. Porque se eu fosse isso, eu teria
o direito de ser isso, depois do que a América nos fez.
Esse governo deve se sentir com sorte por nosso povo
não ser antiamericano. Deveriam se ajoelhar todas as
manhãs e agradecer a Deus que 22 milhões de negros
não se tornaram antiamericanos. Você nos deu todo o
direito de sê-lo. O mundo inteiro ficaria do nosso lado,
se nos tornássemos antiamericanos. Sabe, isso é algo
para se pensar.

Mas não somos antiamericanos. Somos contra o


que a América está fazendo de errado em outras partes

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PERSPECTIVA DE LIBERDADE

do mundo, assim como aqui. E o que ela fez no Congo


em 1964 está errado. É criminoso, criminoso. E o que ela
fez frente ao público americano, para que o público
americano aceitasse isso, é criminoso. O que ela está
fazendo no Vietnã do Sul é criminoso. Ela está fazendo
com que soldados americanos sejam assassinados
todos os dias, mortos todos os dias, morrerem todos
os dias, sem nenhuma razão. Isto é errado. Agora, você
não deveria ser tão cego pelo patriotismo que não pode
enfrentar a realidade. Errado é errado, não importa
quem faz ou quem diz.

Também em 1964, a China explodiu sua bomba,


o que foi uma revolução2 cientıfica para o povo opri-
mido na China, que sofreu por muito tempo. Fiquei
muito feliz ao saber que o grande povo da China foi
capaz de mostrar seu progresso cientıfico, seu conhe-
cimento avançado da ciência, a ponto de um país que
é tão atrasado quanto o nosso país continua dizendo
que a China é, e tão atrasado em comparação com
o mundo, e tão pobre, poder desenvolver uma bomba
atômica. Ora, eu tive que me maravilhar com isso. Isso
me fez perceber que pessoas pobres podem fazê-lo,
assim como pessoas ricas.

2 Em inglês, breakthrough: termo que designa tanto, cienfficamente, uma


descoberta ou inovação; quanto, militarmente, a ruptura de linhas inimigas.

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PERSPECTIVA DE LIBERDADE

Então, todos esses pequenos avanços foram fei-


tos pelos povos oprimidos em outras partes do mundo
durante 1964. Esses foram ganhos tangíveis, e a razão
pela qual eles foram capazes de obter esses ganhos foi
que perceberam que “poder” era a palavra mágica –
poder contra poder. O poder em defesa da liberdade é
maior que o poder em nome da tirania e da opressão,
porque o poder, o poder real, provém da convicção
que produz ação, ação intransigente. Também produz
insurreição contra a opressão. Esta é a única maneira
de acabar com a opressão: com poder.

O poder nunca dá um passo atrás, apenas


frente a mais poder. O poder não recua diante de um
sorriso, diante de uma ameaça ou diante de algum
tipo de ação amorosa não violenta. Não é da natureza
do poder recuar diante de nada além de um pouco
mais de poder. E é isso que os povos perceberam no
sudeste da Ásia, no Congo, em Cuba, em outras partes
do mundo. O poder reconhece apenas o poder, e todos
que perceberam isso obtiveram ganhos.

Agora, aqui na América é diferente. Quando


você compara nossos avanços em 1964 com avan-
ços feitos por povos de outras partes do mundo, só
então você pode apreciar a grande traição sofrida
pelos negros aqui na América em 1964. A estrutura de
poder inaugurou o ano novo do mesmo modo como

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PERSPECTIVA DE LIBERDADE

eles inauguraram o anterior em Washington. Só que


agora eles chamam – o que é isso? – “A Grande Socie-
dade?”3 O ano passado, 1964, deveria ser o “Ano da Pro-
messa”. Eles inauguraram o ano novo em Washington,
D.C., na prefeitura e em Albany, falando sobre o Ano da
Promessa.

Mas até o final de 1964, tivemos que concordar


que, em vez do Ano da Promessa, em vez das promes-
sas se concretizarem, eles substituíram os dispositivos
para criar uma ilusão de progresso; 1964 foi o ano da
ilusão e do engano. Não recebemos nada além de uma
promessa. Em 1963, um de seus dispositivos para dissi-
par a frustração foi a Marcha sobre Washington.4 Eles
usaram isso para nos fazer pensar que estávamos pro-
gredindo. Imagine, marchar para Washington e não
obter nada com isso.

Em 1963, foi a marcha sobre Washington. Em


1964, o que foi? A Lei dos Direitos Civis. Logo após a apro-
vação da Lei dos Direitos Civis, eles assassinaram um
negro na

3 Nome do programa de combate à pobreza e à desigualdade racial


proposto por Lyndon B. Johnson.
4 A Marcha Sobre Washington por Trabalho e Liberdade, realizada em 28 de
agosto 1963, foi uma manifestação política de enormes proporções, com
destaque para a atuação das organizações pelos direitos civis e a liderança
de Martin Luther King Jr.

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PERSPECTIVA DE LIBERDADE

Geórgia e não fizeram nada sobre isso; assassinaram


dois brancos e um negro no Mississípi e não fizeram
nada a respeito. De modo que a Lei dos Direitos Civis
não produziu nada em relação a nós. Era apenas uma
válvula, uma ventilação, que foi projetada para permitir
que dispersássemos nossas frustrações. Mas a lei em si
não foi concebida para resolver nossos problemas.

Uma vez que vimos o que eles fizeram em 1963 e


o que fizeram em 1964, o que farão agora, em 1965? Se
a marcha em Washington deveria diminuir a explosão,
e a Lei dos Direitos Civis foi concebida para diminuir a
explosão – é só pra isso que ela foi concebida; não foi
concebida para resolver os problemas; foi concebida
para diminuir a explosão. Todo mundo em sã consciên-
cia sabe que deveria ter havido uma explosão. Não se
pode ter todos esses ingredientes, esses ingredientes
explosivos que existem no Harlem e em outros luga-
res onde nosso povo sofre, e não haver uma explosão.
Portanto, esses são dispositivos para diminuir o risco
de explosão, mas não para remover o material que vai
explodir.

O que eles nos darão em 1965? Acabei de ler


onde eles planejavam escolher um membro negro para
o gabinete. Sim, eles têm um novo truque a cada ano.
Eles vão pegar um de seus meninos, negros, e colocá-lo
no gabinete, para que ele possa andar por Washington

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PERSPECTIVA DE LIBERDADE

com um charuto – atear fogo em uma ponta e enganar


na outra.

E como seu problema pessoal imediato foi


resolvido, ele será o único a dizer ao nosso povo: “Veja
quanto progresso estamos fazendo: estou em Washin-
gton, D.C., posso tomar chá na Casa Branca. Eu sou
seu porta-voz, eu sou seu, sabe, seu líder.” Mas isso vai
funcionar? Será que aquele a quem eles colocarão ali
embaixo pisará no fogo e o apagará quando as cha-
mas começarem a subir? Quando o povo tomar as ruas
com seu estado de ânimo explosivo, será que aquele
que eles vão colocar no gabinete será capaz de tran-
sitar em meio a esse povo? Ora, eles o queimarão mais
rápido do que queimarão aqueles que o enviaram.

No plano internacional, em 1964, eles usaram o


recurso de enviar representantes negros bem escolhi-
dos para o continente africano, cuja missão era fazer
os povos naquele continente pensarem que todos os
nossos problemas haviam sido resolvidos. Eles foram
lá como apologistas. Eu vi alguns deles, segui alguns
deles e vi os resultados que alguns deles deixaram por
lá. Sua principal missão era entrar na África, o que é

5 Referência à obra A cabana do Pai Tomás [Uncle Tom’s Cabin], de Harriet


Beecher Stowe, que representa o Tio Tom (Pai Tomás na tradução) como
um homem negro submisso e dócil, subserviente em relação aos brancos.
Optamos por manter a palavra “Tio”, mas adaptar o nome próprio à
tradução brasileira.

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PERSPECTIVA DE LIBERDADE

muito vital para os interesses dos Estados Unidos. Esses


Tomás5 – você não deveria chamá-los de Tomás hoje
em dia; eles vão processá-lo – então esses tios foram
enviados para lá... não incomode o homem. Ele está
fazendo o trabalho dele. Ele vai colocar você na TV, para
que você possa ser investigado. Esses Tomás não vão
para a África porque querem explorar, aprender algo
por si mesmos, ampliar suas perspectivas, ou estabele-
cer comunicações entre o seu povo e o nosso povo por
lá. Eles vão principalmente para representar o governo
dos Estados Unidos. E, quando vão, encobrem as coisas,
contam como estamos indo bem aqui, como a Lei dos
Direitos Civis resolveu tudo e como o Prêmio Nobel da
Paz foi entregue. Ah, sim, é assim que eles falam. Na
verdade, eles conseguem aumentar o abismo entre
afroamericanos e africanos. A imagem que eles deixam
lá do afroamericano é tão desagradável que o africano
acaba não querendo se identificar conosco ou se rela-
cionar conosco.

Somente quando o afroamericano de mente


nacionalista ou de mente negra vai ao exterior, para
o continente africano, e estabelece linhas diretas de
comunicação e permite aos irmãos africanos saber o
que está acontecendo por aqui e saber que nosso povo
não é tão burro a ponto de nos cegarmos para nossa
verdadeira condição e posição nessa estrutura, que
os africanos começam a nos entender, a se identificar

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PERSPECTIVA DE LIBERDADE

conosco e a simpatizar com nossos problemas, a ponto


de estarem dispostos a fazer todos os sacrifícios neces-
sários para ver seus irmãos há muito perdidos terem
algo melhor do que o que recebemos até agora.

Na escala nacional, durante 1964, como acabei


de mencionar, politicamente, o Partido Democrata da
Liberdade do Mississípi teve seu rosto esbofeteado em
Atlantic City, em uma convenção cujo chefe era Lyndon
B. Johnson, ao lado de Hubert Humphrey e sobre a qual
o próprio prefeito Wagner tinha muita influência. Ainda
assim, nenhuma dessas influências foi demonstrada de
maneira alguma quando estavam em jogo as esperan-
ças e aspirações do povo, o povo negro do Mississípi.

Embora no início de 1964 nos tenha sido dito que


nossos direitos políticos seriam ampliados, foi em 1964
que os dois trabalhadores brancos dos direitos civis,
trabalhando com o trabalhador negro dos direitos civis,
foram assassinados. Eles estavam tentando mostrar
ao nosso povo no Mississípi como se tornar um eleitor
registrado. Esse foi o crime deles. Esta foi a razão pela
qual eles foram assassinados.

E a parte mais lamentável desse assassinato é


que as próprias organizações de direitos civis são tão
covardes no que diz respeito a reagir da maneira que
deveriam ter reagido ao assassinato desses três

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PERSPECTIVA DE LIBERDADE

trabalhadores dos direitos civis. Os grupos de direitos


civis venderam esses três irmãos – venderam – ven-
deram eles rio abaixo. Porque eles morreram e o que
foi feito sobre isso? E que voz está se levantando todos
os dias, hoje, em relação ao assassinato desses três
trabalhadores dos direitos civis?

É por isso que digo que, se nos envolvermos no


movimento dos direitos civis e formos ao Mississípi, ou
a qualquer outro lugar, para ajudar nosso povo a se
registrar para votar, pretendemos nos preparar. Não
pretendemos violar a lei, mas quando você está ten-
tando se registrar para votar, está cumprindo a lei. É
quem tenta impedi-lo de se registrar para votar que
está infringindo a lei, e você tem o direito de se prote-
ger por todos os meios necessários. E se o governo não
quiser que grupos de direitos civis sejam equipados, o
governo deve fazer seu trabalho.

Sobre o incidente que ocorreu no Harlem durante


o verão, quando os cidadãos do Harlem foram ata-
cados em um pogrom. Não posso pronunciar, porque
não é minha palavra. Ouvimos falar disso muito antes
que acontecesse. Fomos informados de que havia ele-
mentos na estrutura de poder que incitariam no Harlem
algo que eles pudessem chamar de tumulto, para que
pudessem intervir e se justificar no uso das medidas
necessárias para esmagar os grupos militantes que

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PERSPECTIVA DE LIBERDADE

eram ainda considerados em estágio embrionário.

E, percebendo que havia um plano em anda-


mento para instigar algo no Harlem, para que eles
pudessem intervir e esmagá-lo, havia elementos no
Harlem que estavam preparados e qualificados e equi-
pados para retaliar em situações como essa, mas que
propositalmente não se envolveram. E o verdadeiro
milagre da explosão no Harlem foi o comedimento
exercido pelo povo do Harlem. O milagre de 1964, direi
a você diretamente, o milagre de 1964, durante os inci-
dentes ocorridos no Harlem, foi o comedimento exer-
cido pelo povo do Harlem, qualificado e equipado, e
todo o resto, para proteger-se quando estão sendo
atacados ilegal e imoral e injustamente.

Um ataque ilegal, um ataque injusto e um ata-


que imoral pode ser feito contra vocês por qualquer
pessoa. Só porque uma pessoa está de uniforme não
lhe dá o direito de sair por aí atirando em seu bairro.
Não, isso não está certo, e minha sugestão seria que,
uma vez que o Departamento de Polícia não usa esses
métodos em bairros brancos, eles não deveriam ir ao
Harlem e usá-los em nosso bairro.

Eu não estava aqui. Estou feliz por não estar aqui.


Porque eu estaria morto, eles teriam que me matar.
Prefiro morrer do que deixar alguém passear pela

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PERSPECTIVA DE LIBERDADE

minha casa ou pelo meu bairro atirando, onde meus


filhos estão na linha de fogo. Ou eles morreriam ou eu
morreria. Não é inteligente – e tudo começou quando
um menino foi baleado por um policial e ele foi solto,
da mesma forma como o xerife foi solto no Mississípi
quando matou os três trabalhadores dos direitos civis.

Estou quase terminando. Estou levando meu


tempo hoje à noite porque estou sobrecarregado.
Estou demorando para não me apressar, quero dizer.
Em 1964, ainda tínhamos conosco os locadores de bar-
racos,6 pessoas que são donas das casas, mas que
não moram nelas; geralmente eles moram no Grand
Concourse7 ou em algum lugar. Eles contribuem para
a NAACP8, a CORE9 e todas as organizações de direitos
civis; dão a eles dinheiro para sair por aí e fazer pique-
tes, e eles são os donos das casas nas quais você está
fazendo piquete.

6 Em inglês, slumlords: “senhorio de favela”, termo derivado de landlord


(“senhor de terras”). Referese aos proprietários e locadores de imóveis nos
bairros de infraestrutura precária.
7 O Grand Concourse é uma via de 8,4 quilômetros de extensão no bairro do
Bronx, na cidade de Nova York. É famosa por sua proximidade a Manhatan e
por seus edifcios em estilo art déco, sendo uma região bastante valorizada
e gentrificada.
8 A Associação Nacional para o Progresso das Pessoas de Cor (Nacional
Association for the Advancement of Colored People) foi fundada em 12 de
fevereiro de 1909 em Nova York (sendo presidida então por W. E. B. Du Bois),
visando lutar contra as violações aos direitos da população negra e pela
sua integração na sociedade estadunidense.
9 O Congresso de Igualdade Racial foi uma organização do movimento
pelos direitos civis do povo negro, fundada em 1942.

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PERSPECTIVA DE LIBERDADE

Essas más condições habitacionais que conti-


nuam a existir lá em cima mantêm nosso povo vítima
de problemas de saúde – altas taxas de mortalidade
de bebês e adultos, mais altas no Harlem do que em
qualquer outra parte da cidade. Eles nos prometeram
empregos e nos deram cheques da assistência social;
ainda estamos desempregados, ainda estamos sem
trabalho; a assistência social está cuidando de nós, nos
transformando em mendigos, roubando-nos nossa dig-
nidade, nossa virilidade.

Por isso, pontuo que 1964 não foi um Ano da


Promessa, como foi prometido em janeiro daquele
ano. Sangue fluiu nas ruas do Harlem, da Filadélfia, de
Rochester, em alguns lugares de Nova Jersey e em
outros lugares. Em 1965, ainda mais sangue fluirá. Mais
do que vocês jamais sonharam. Vai fluir no centro e nas
periferias da cidade. Por quê? Por que fluirá? As causas
que o forçaram a fluir em 1964 foram removidas? As
causas que o fizeram fluir em 1963 foram removidas?
As causas ainda estão lá.

Em 1964, 97% dos eleitores americanos negros


apoiavam Lyndon B. Johnson, Hubert Humphrey e o
Partido Democrata. Noventa e sete por cento! Nenhum
grupo minoritário na história do mundo jamais deu
tanto apoio intransigente a um candidato e a um par-
tido. Ninguém, nenhum grupo, jamais se esforçou para

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PERSPECTIVA DE LIBERDADE

apoiar um partido e seu candidato, como fizeram os


negros na América em 1964.

E o primeiro ato do Partido Democrata, Lyndon B.


incluso, em 1965, quando os representantes do estado
do Mississípi que se recusaram a apoiar Johnson che-
garam a Washington, D.C., e os negros do Mississípi
enviaram representantes para contestar a legalidade
da posse dessas pessoas, o que Johnson disse? Nada!
O que Humphrey disse? Nada! O que Robert “Bonitão”10
Kennedy disse? Nada! Nada! Nem uma coisa sequer!
Essas são as pessoas que os negros apoiaram. Esse
é o partido que eles apoiaram. Onde eles estavam
quando o homem negro precisou deles há alguns dias,
em Washington, D.C.? Eles estavam onde sempre estão,
girando os polegares em algum lugar na sala de bilhar
ou na galeria.

O povo negro não será, em 1965, controlado por


esses líderes à moda do Tio Tomás, acredite; eles não
serão mantidos sob controle, não serão mantidos na
plantação por esses capatazes, não serão mantidos
no curral, não serão contidos, em absoluto.

A frustração desses representantes negros do


Mississípi, quando chegaram a Washington, D.C., no

10 Em inglês: Pretty-Boy.

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PERSPECTIVA DE LIBERDADE

outro dia – pensando, sabe, que a Grande Sociedade


os incluiria – apenas para ver a porta se fechar na cara
deles assim – é isso que os faz pensar. É isso que os
faz perceber o que estão enfrentando. É esse tipo de
frustração que produziu o Mau-Mau. Eles chegaram ao
ponto em que viram que é preciso ter poder para falar
com o poder. É preciso poder para fazer com que o
poder te respeite. É preciso loucura quase para lidar
com uma estrutura de poder que é tão corrupta, tão
corrupta.

Então, em 1965, devemos ver muita ação. Como


os métodos antigos não funcionaram, eles serão for-
çados a tentar novos métodos.

17
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