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DISCURSO AOS

TRABALHADORES
DOS DIREITOS CIVIS
DO MISSISSÍPPI
1 de janeiro de 1965

Conteúdo exclusivo - Série Discursos Malcolm X


Textos contidos na coletânea “
Há uma revolução mundial em andamento:
discursos de Malcolm X”, LavraPalavra, 2020.

Edição Gabriel Landi Fazzio


Tradução Luisa Gabriela da Silva Santana, Maria
Luisa Lima Teixeira e Vinicius Souza Fernandes da Silva
Curadoria de conteúdo Professor e historiador Lindener Pareto
Revisão Giovana Aranda Silva e Brunna Leite Santos
Capa Luka Farias
Diagramação Luka Farias
Foto da capa Foto de Unseen Histories na Unsplash
DISCURSO AOS TRABALHADORES DOS DIREITOS CIVIS DO MISSISSÍPPI

Excerto1 do discurso proferido em 1 de


janeiro de 1965 em Nova Iorque.

Fui abordado – acho que estávamos nas


Nações Unidas – e conheci a sra. Walker, cerca de duas
ou três semanas atrás, e ela disse que um grupo de
estudantes vinha de McComb, Mississípi, e queria saber
se eu poderia me encontrar e falar com vocês. Eu disse
a ela francamente que seria a maior honra que eu já
havia experimentado. Como nunca estive no estado do
Mississípi – não por culpa minha, acho que não –, mas
tem sido meu grande desejo ir para lá ou conhecer
alguém de lá.

Para não tomar muito do seu tempo, gosta-


ria de destacar um pequeno incidente em que estive
envolvido há pouco tempo, que lhes dará uma ideia do
motivo de eu dizer o seguinte.

Eu estava viajando de avião de Argel para


Genebra cerca de quatro semanas atrás com
outros dois americanos. Ambos eram brancos, um era
homem, a outra era mulher. E depois de voarmos juntos
por cerca de quarenta minutos, a senhora se virou para
mim e me perguntou – ela olhou para minha pasta

1 O áudio original do discurso possuía falhas técnicas, o que tornou inviável


a transcrição integral das perguntas e respostas. Por esse motivo, optamos
por suprimir alguns trechos bastante confusos.

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e viu as iniciais M e X, e disse: “Gostaria de fazer uma


pergunta. Que tipo de sobrenome você poderia ter que
começa com X?”

Então eu disse a ela: “E: isso aí: X.”

Ela ficou quieta por um tempo. Por cerca de dez


minutos, ela ficou quieta. Ela não havia estado nada
quieta até então, sabe. E então, finalmente, ela se virou
e disse: “Bem, qual é o seu primeiro nome?”

Eu disse: “Malcolm”.

Ela ficou quieta por mais dez minutos. Então ela


se virou e disse: “Bem, você não é Malcolm X?”

Mas o motivo pelo qual ela fez essa pergunta foi:


ela havia visto na imprensa, e pelas coisas que ouvira
e lera, ela estava esperando algo diferente ou alguém
diferente.

A razão de eu dedicar um tempo para lhes


dizer isso é: uma das primeiras coisas que acho que os
jovens, especialmente nos dias de hoje, devem apren-
der a fazer é ver por si mesmos, ouvir por si mesmos
e pensar por si mesmos., para então poderem tomar
decisões inteligentes por si mesmos. Mas se vocês têm
o hábito de aceitar o que ouvem os outros dizerem

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sobre alguém, ou de seguir o que os outros pensam


sobre alguém, em vez de procurar e descobrir por si
mesmos e ver por si mesmos, estarão caminhando
para o oeste quando pensam estar indo para o leste,
e caminhando para o leste quando pensam que estão
indo para o oeste. Portanto, esta geração, especial-
mente do nosso povo, tem um peso sobre si mesma,
mais do que em qualquer outro momento da história. A
coisa mais importante que podemos aprender a fazer
hoje é: pensar por nós mesmos.

É bom manter os ouvidos bem abertos e ouvir o


que todo mundo tem a dizer. Mas, quando você toma
uma decisão, precisa pesar tudo o que ouviu por conta
própria e colocar no devido lugar, e então tomar uma
decisão por si mesmo. Você nunca vai se arrepender.
Mas se você tem o hábito de adotar aquilo que outra
pessoa diz sobre algo sem verificar por si mesmo, verá
que outras pessoas o farão odiar seus próprios amigos
e amar seus inimigos. Essa é uma das coisas que nosso
povo está começando a aprender hoje – que é muito
importante pensar sobre as situações por si mesmo.
Se vocês não fizerem isso, sempre serão manobrados,
na realidade; nunca lutarão com seus inimigos, mas se
encontrarão lutando contra si mesmos.

Eu acho que nosso povo é o melhor exemplo


disso neste país. Porque muitos de nós querem ser não

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violentos. Falamos aos gritos, sabe... sobre não violên-


cia. Aqui no Harlem, onde provavelmente existem mais
negros concentrados do que em qualquer outro lugar
do mundo, alguns dizem que conversam de forma não
violenta também. E quando eles param de falar sobre o
quão não violentos são, descobrimos que eles não são
não violentos uns com os outros. No Hospital do Har-
lem, você pode ir até lá na sexta à noite, que – hoje é o
quê? Sexta-feira? Sim – você pode ir até o Hospital do
Harlem, onde há mais pacientes negros em um hospital
do que em qualquer hospital do mundo – porque há
uma concentração do nosso povo aqui – e encontrar
pessoas negras que afirmam serem não violentas. Mas
você os vê entrando lá cortados, alvejados e arreben-
tados, por terem sido violentos uns com os outros.

Então, minha experiência tem sido que, em mui-


tos casos, onde você encontra negros sempre falando
sobre não violência, eles não são não violentos um com
o outro e não estão amando um ao outro, ou sendo
pacientes ou perdoando um ao outro. Geralmente,
quando dizem que são não violentos, significa que
são não violentos com outra pessoa. Eu acho que você
entende o que quero dizer. Eles são não violentos com
o inimigo. Uma pessoa pode vir à sua casa e, se ela é
branca e quer fazer algum tipo de brutalidade com
você, você é não violento. Ou ela pode colocar uma
corda em volta do seu pescoço, você é não violento.

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Ou ela pode vir pegar seu pai e colocar uma corda em


volta do pescoço dele, você é não violento. Mas agora,
se outro negro simplesmente pisa no seu pé, você bri-
gará com ele em um minuto. O que mostra que há uma
inconsistência aí.

Então, eu mesmo adotaria a não violência se


fosse consistente, se fosse inteligente, se todo mundo
fosse não violento, e se nós fôssemos não violentos o
tempo todo. Eu diria que tudo bem, vamos seguir em
frente, todos seremos não violentos. Mas eu não con-
cordo – e estou apenas dizendo a vocês como penso
– não concordo com nenhum tipo de não violência,
a menos que todo mundo seja não violento. Se eles
tornarem a Ku Klux Klan não violenta, eu não serei vio-
lento. Se eles tornarem o Conselho dos Cidadãos Bran-
cos2 não violento, eu serei não violento. Mas, enquanto
haja alguém que não seja não violento, não quero que
ninguém venha falar comigo sobre qualquer tipo de
conversa não violenta. Não acho justo dizer ao nosso
povo para que seja não violento, a menos que alguém
esteja por aí fazendo a Klan, o Conselho dos Cidadãos
e esses outros grupos também a serem não violentos.

Agora, não estou criticando aqui aqueles que


são não violentos. Acho que todo mundo deveria fazer

2 O Conselho dos Cidadãos era uma rede associada de organizações


supremacistas brancas dos Estados Unidos, concentradas especialmente
no sul do país.

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da maneira que achar melhor, e parabenizo qualquer


um que seja não violento diante de todo esse tipo de
ação que presenciei nessa parte do mundo. Mas não
creio que em 1965 você encontre a próxima geração
de nosso povo, especialmente aqueles que estão pen-
sando um pouco, disposta a acompanhar qualquer
forma de não violência, a menos que a não violência
seja praticada o tempo todo.

Se os líderes do movimento não violento podem


entrar na comunidade branca e ensinar a não violên-
cia, tudo bem. Eu concordaria com isso. Mas enquanto
eu os vejo ensinando não violência apenas na comu-
nidade negra, não podemos concordar com isso. Acre-
ditamos na igualdade, e igualdade significa que você
deve colocar aqui a mesma coisa que você coloca ali.
E se apenas os negros serão os não violentos, então
não é justo. Nós baixamos nossa guarda. De fato, nós
nos desarmamos e nos tornamos indefesos.

Agora, para tentar entender melhor nossa pró-


pria posição, acho que vocês precisam saber algo
sobre o movimento muçulmano negro, que deve-
ria ser um movimento religioso neste país, e que era
extremamente militante e discursivamente militante. O
movimento muçulmano negro deveria ser um grupo
religioso. E porque deveria ser um grupo religioso, nunca
se envolveu em questões cívicas, alegava. E por não

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se envolver em assuntos cívicos, o que fez, por ser mili-


tante, atraiu os negros ou afroamericanos mais militan-
tes neste país. O movimento muçulmano negro atraiu
os negros mais insatisfeitos, impacientes e militantes do
país.

Mas quando os atraiu, o próprio movimento,


por nunca se envolver na luta real que os negros
estão enfrentando neste país, em certo sentido foi
manobrado em uma espécie de vácuo político e cívico.
Era militante, por vocação, mas nunca entrou na bata-
lha em si.

E embora professasse ser um grupo religioso,


as pessoas da parte do mundo cuja religião ele havia
adotado não os reconheciam ou os aceitavam como
um grupo religioso. Portanto, também estava em um
vácuo religioso. Ele estava no vácuo religiosamente,
por se dizer um grupo religioso e por ter adotado uma
religião que os rejeitava ou não os aceitava. Então, reli-
giosamente, estava no vácuo. O governo federal tentou
classificá-lo como um grupo político, a fim de mano-
brá-lo para uma posição em que pudesse rotulá-lo de
sedicioso, para que pudesse esmagá-lo por temer suas
características intransigentes e militantes. Portanto, por
esse motivo, embora tenha sido rotulado de grupo polí-
tico e nunca tenha participado da política, estava em
um vácuo político. Então o grupo, o próprio movimento

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muçulmano negro, se desenvolveu em uma espécie de


híbrido, um híbrido religioso, um híbrido político, uma
organização do tipo híbrido.

Pondo em movimento todo esse povo negro


muito militante e, então, não tendo um programa que
lhes permitisse participar ativamente da luta, isso criou
muita insatisfação entre seus membros. Polarizou-se
em duas facções diferentes – uma facção que era
militante em discurso, e outra facção que queria
alguma ação, ação militante, ação intransigente. Final-
mente, a insatisfação se transformou em uma divisão,
a divisão se transformou em uma ruptura e muitos de
seus membros foram embora. Os que partiram forma-
ram a assim chamada Mesquita Muçulmana Incorpo-
rada, que é autenticamente uma organização religiosa
afiliada e reconhecida por todos os chefes religiosos
oficiais do mundo muçulmano. Ela foi chamada de
Mesquita Muçulmana Incorporada, cujos escritórios
estão aqui.

Mas esse grupo, sendo afroamericano ou


negroamericano, percebeu que, embora estivésse-
mos praticando a religião do Islã, ainda havia um pro-
blema que nosso povo teria que enfrentar neste país
que não tinha nada a ver com religião e ia além da reli-
gião. Uma organização religiosa não poderia enfrentar
esse problema em conformidade com a magnitude e

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complexidade do problema em si. Portanto, os mem-


bros desse grupo, depois de analisarem o problema,
viram a necessidade de formar outro grupo que não
tivesse nada a ver com religião. E esse grupo é assim
chamado e hoje é conhecido como Organização da
Unidade Afro-Americana.

A Organização da Unidade Afro-Americana é


um grupo não religioso de negros que acredita que
os problemas que nosso povo enfrenta nesse país
precisam ser reanalisados e uma nova abordagem
precisa ser desenvolvida para tentar encontrar uma
solução. Estudando o problema, lembramos que antes
de 1939, neste país, todo o nosso povo no norte, sul,
leste e oeste, não importa quanta educação tivésse-
mos, era segregado. Estávamos segregados no norte,
assim como estávamos no sul. E mesmo agora, hoje, há
tanta segregação no norte quanto no sul. Há algumas
segregações piores aqui na cidade de Nova Iorque do
que em McComb, Mississípi; mas aqui em cima eles são
sutis, capciosos e traiçoeiros, e fazem você pensar que
conseguiu, quando ainda nem começou.

Antes de 1939, nosso povo ocupava uma posição


ou condição muito servil. A maioria de nós éramos gar-
çons, carregadores, mensageiros, zeladores e faxineiros,
garçonetes e coisas desse tipo. Até que a guerra foi
declarada na Alemanha por Hitler, e os Estados Unidos

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se viram diante de uma escassez de mão de obra em


relação às suas fábricas e seu exército; foi só então que
o homem negro neste país foi autorizado a dar alguns
passos à frente. Nunca como consequência de algum
tipo de esclarecimento moral ou de consciência moral
por parte do Tio Sam. Tio Sam só deixou o negro dar
um passo adiante quando ele mesmo estava contra
a parede.

Em Michigan, onde fui criado na época, lembro


que o melhor emprego para negros na cidade era ser
garçom no clube de campo. E naqueles dias, se você
tivesse um emprego servindo mesa no clube de
campo, você tinha se dado bem. Ou se você tivesse
um emprego em um prédio público.3 Ter um emprego
em um prédio público não significava que você era
escriturário ou algo assim – você ocupava a posi-
ção de engraxate lá. Só por estar lá, onde você pode-
ria estar perto de todos esses grandes políticos, isso
fazia de você um negro importante. Você usava
sapatos brilhantes, era um negro importante porque
estava perto de pessoas brancas importantes e podia
aproximar-se e falar com elas. E, muitas vezes, naqueles
dias, você seria escolhido para ser a voz da comuni-
dade negra.

3 Em inglês, Malcolm se refere a um emprego na State House (literalmente,


“Casa do Estado”). O termo é utilizado para se referir tanto às edificações
das Assembleias Legislativas estaduais quanto as dos poderes executivos
estaduais.

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Também nessa época, em 1939 ou 1940, 1941,


eles não estavam recrutando negros no exército ou na
marinha. Um negro não poderia se juntar à marinha em
1940 ou 1941, neste paıís. Ele não poderia participar. Eles
não incorporariam um homem negro na marinha. Eles
o levariam, se quisessem, e o tornariam um cozinheiro.
Mas ele não podia simplesmente ir e se juntar à mari-
nha. E ele não podia simplesmente ir – não acho que
ele poderia apenas se juntar ao exército. Eles não o
estavam recrutando quando a guerra começou.

Isso é o que eles pensavam de vocês e de mim


naquele tempo. Por um lado, eles não confiavam em
nós. Eles temiam que, se nos colocassem no exército
e nos treinassem em como usar rifles e outras coisas,
poderíamos atirar em alguns alvos que eles não haviam
escolhido. E nós teríamos feito isso mesmo. Qualquer
homem que pense sabe em que alvo atirar. E se um
homem não sabe, se ele tem que ter outra pessoa que
escolha seu alvo, então ele não está pensando por si
mesmo – estão pensando por eles.

Então foi somente quando os líderes negros


– naqueles dias eles tinham o mesmo tipo de líderes
negros que temos hoje – quando os líderes negros
viram todos os companheiros brancos sendo convoca-
dos e levados para o exército e morrendo no campo de
batalha, e nenhum negro estavam morrendo porque

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DISCURSO AOS TRABALHADORES DOS DIREITOS CIVIS DO MISSISSÍPPI

não estavam sendo convocados, os lıíderes negros vie-


ram e disseram: “Temos que morrer também. Também
queremos ser convocados, e exigimos que você nos
leve até lá e nos deixe morrer pelo nosso país também.”
Foi o que os líderes negros disseram em 1940, eu me
lembro. A. Philip Randolph4 foi um dos principais negros
a dizer isso naquela época, e ele é um dos Seis Gran-
des5 agora; e é por isso que ele é um dos Seis Grandes
agora.

Eles começaram a recrutar soldados negros


então, e então começaram a deixar os negros entrarem
na marinha – mas não até Hitler, Tojo6 e as potências
estrangeiras serem fortes o suficiente para pressionar
este país, de modo que ele estava contra a parede
e precisava de nós. Ao mesmo tempo, eles nos per-
mitiram trabalhar em fábricas. Até aquele momento,
não podíamos trabalhar nas fábricas. Estou falando do
norte e do sul. E quando eles nos deixaram trabalhar
nas fábricas, no começo, quando nos deixavam entrar,
só podíamos ser faxineiros. Depois de um ano ou mais,

4 Asa Philip Randolph (1889 - 1979) foi um ativista negro do movimento


operário, liderança destacada do movimento pelos direitos civis.
5 Malcolm chamava ironicamente de The Big Six os presidentes ou
cofundadores de algumas das organizações do movimento por direitos
civis: A. Philip Randolph, Martin Luther King Jr., Ray Wilkins, James Farmer,
Whitney Young e John Lewis.
6 Hideki Tojo (1884 - 1948) foi um general e político japonês. Tojo foi
comandante do exército do Kuangtong, na Manchúria, em 1937, e liderou o
governo do Japão durante a Segunda Guerra Mundial.

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DISCURSO AOS TRABALHADORES DOS DIREITOS CIVIS DO MISSISSÍPPI

eles nos deixaram trabalhar em máquinas. Tornamo-


-nos maquinistas, adquirimos um pouco de habilidade.
E, à medida que adquirimos um pouco mais de habili-
dade, ganhamos um pouco mais de dinheiro, o que nos
permitiu viver em um bairro um pouco melhor. Quando
passamos a morar em bairros um pouco melhores,
fomos para escolas um pouco melhores, tivemos uma
educação um pouco melhor e podíamos sair e con-
seguir um emprego um pouco melhor. Então o ciclo foi
rompido, em certo grau.

Mas o ciclo não foi interrompido por causa de


algum tipo de senso de responsabilidade moral por
parte do governo. Não, a única vez em que esse ciclo
foi rompido, até certo ponto, foi quando a pressão mun-
dial foi exercida sobre o governo dos Estados Unidos
e eles foram forçados a olhar para o negro – e eles
sequer nos viram como seres humanos, eles apenas
nos colocaram em seu sistema e nos deixaram avançar
um pouco mais porque isso servia aos seus interesses.
Mas eles nunca nos deixaram avançar um pouco mais
porque estavam interessados em nossos interesses ou
em nós como seres humanos. Qualquer um de vocês
que tenha conhecimento de história, sociologia, ciência
política ou do desenvolvimento econômico deste país
e suas relações raciais, tudo que você precisa fazer é
pegar o que estou dizendo e voltar e para fazer algu-
mas pesquisas sobre isso, e você terá que admitir que

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DISCURSO AOS TRABALHADORES DOS DIREITOS CIVIS DO MISSISSÍPPI

isso é verdade.

Foi durante o período em que Hitler e Tojo foram


capazes de fazer guerra contra este país e pressioná-lo
que os negros nesse país avançaram um pouco. No
final da guerra com a Alemanha e o Japão, Josef Stálin
e a Rússia Comunista eram uma ameaça. E durante
esse período, tivemos um pouco mais de avanços.

Agora, o que estou dizendo é: nunca, em nenhum


momento da história de nosso povo neste país, avan-
çamos ou progredimos, de qualquer modo, apenas
com base na boa vontade desse país, ou com base na
atividade interna deste país. Só avançamos neste país
quando ele estava sob pressão de forças acima e além
de seu controle. Porque a consciência moral interna
deste país está falida. Não existe desde que nos trouxe-
ram aqui e nos fizeram escravos. Eles ludibriam a con-
firmação e fazem parecer que têm nossos bons inte-
resses no coração. Mas quando você estuda, toda vez,
não importa quantos passos eles nos levem adiante,
é como se estivéssemos em uma – como se chama
aquela coisa? – em uma esteira rolante. A esteira está
se movendo para trás mais rápido do que somos capa-
zes de avançar nessa direção. Nós nem sequer esta-
mos parados – estamos caminhando para a frente, ao
mesmo tempo em que estamos retrocedendo.

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DISCURSO AOS TRABALHADORES DOS DIREITOS CIVIS DO MISSISSÍPPI

Digo isso porque a Organização da Unidade


Afro-Americana, ao estudar o processo desse chamado
progresso durante os últimos vinte anos, percebeu que
o único momento em que o homem negro neste país
recebe algum tipo de reconhecimento, qualquer tipo de
favorecimento ou mesmo tem sua voz ouvida é quando
a América tem medo da pressão externa ou quando
tem medo de sua imagem no exterior. Pudemos ver que
enquanto nos sentássemos e continuássemos nossa
luta em um nível ou de uma maneira que envolvesse
apenas a boa vontade das forças internas deste país,
continuaríamos retrocedendo, não haveria mudanças
realmente significativas. Portanto, a Organização da
Unidade Afro-Americana viu que era necessário expan-
dir o problema e a luta do homem negro neste país até
que fosse além da jurisdição dos Estados Unidos.

Nos últimos quinze anos, a luta do negro neste


país foi rotulada como uma luta pelos direitos civis e,
como tal, permaneceu completamente sob a jurisdi-
ção dos Estados Unidos. Você e eu não pudemos obter
nenhum tipo de benefício além daquele que viria de
Washington, D.C. O que significava que, para que viesse
de Washington, D.C., todos os deputados e senadores
teriam que concordar com isso.

Mas os deputados e senadores mais podero-


sos eram os do sul. E eles eram os do sul porque estes

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DISCURSO AOS TRABALHADORES DOS DIREITOS CIVIS DO MISSISSÍPPI

eram mais antigos em Washington D.C., e eram os mais


antigos porque nosso povo no sul, de onde eles vieram,
não podia votar. Eles não tinham o direito de votar.

Então, quando vimos que estávamos enfren-


tando internamente uma batalha desesperada, vimos
a necessidade de conseguir aliados em nível mundial
ou do exterior, de todo o mundo. E imediatamente per-
cebemos que, enquanto a luta fosse uma luta pelos
direitos civis, estivesse sob a jurisdição dos Estados Uni-
dos, não teríamos aliados nem apoio reais. Decidimos
que a única maneira de elevar o problema ao nível
em que poderíamos obter apoio mundial era retirá-lo
do rótulo de direitos civis e colocá-lo sob o rótulo dos
direitos humanos.

Não é por acaso que a luta do negro neste


país nos últimos dez ou quinze anos tem sido cha-
mada de luta pelos direitos civis. Porque enquanto
você luta pelos direitos civis, o que você está fazendo
é pedir a esses segregacionistas racistas que contro-
lam Washington, D.C. – e eles controlam Washington,
eles controlam o governo federal através desses comi-
tês – enquanto esta for uma luta pelos direitos civis,
você estará demandando isso em um nível no qual seu
suposto benfeitor é, na verdade, alguém da pior parte
deste país. Você só pode avançar na medida em que
eles permitam.

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DISCURSO AOS TRABALHADORES DOS DIREITOS CIVIS DO MISSISSÍPPI

Mas quando você se envolve em uma luta por


direitos humanos, isso está completamente fora da
jurisdição do governo dos Estados Unidos. Você leva
para as Nações Unidas. E qualquer problema que seja
levado às Nações Unidas, os Estados Unidos não têm
nada a dizer. Porque na ONU os EUA têm apenas um
voto, e na ONU o maior bloco de votos é africano; o
continente africano tem o maior bloco de votos em
comparação com qualquer continente do mundo. E o
continente africano, juntamente com o bloco asiático
e o árabe, compreende mais de dois terços das forças
da ONU, e elas são as nações escuras. Esse é o único
tribunal ao qual você pode ir hoje e ter seu próprio povo,
as pessoas que se parecem com você, do seu lado – as
Nações Unidas.

Isso poderia ter sido feito quinze anos atrás. Isso


poderia ter sido feito dezenove anos atrás. Mas eles
nos enganaram. Eles puseram as mãos sobre nossos
líderes e os usaram para nos levar de volta aos tribu-
nais, sabendo que eles controlam seus tribunais. Por-
tanto, os líderes parecem estar nos liderando contra
um inimigo, mas quando você analisa a luta em que
estivemos envolvidos nos últimos quinze anos, o bem
ou o progresso que fizemos é realmente vergonhoso.
Deveríamos ter vergonha de usar a palavra “progresso”
no contexto de nossa luta.

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DISCURSO AOS TRABALHADORES DOS DIREITOS CIVIS DO MISSISSÍPPI

Portanto, houve um movimento – e concluirei


em breve – houve um movimento para manter o negro
pensando que ele estava avançando no campo dos
direitos civis neste país, apenas com o propósito de
distraí-lo e impedindo-o de saber que, se ele se fami-
liarizasse com a estrutura das Nações Unidas e a polí-
tica das Nações Unidas, o objetivo e o propósito das
Nações Unidas, ele poderia elevar seu problema na
direção desse organismo mundial. E ele teria o bastão
mais forte do mundo, que ele poderia usar contra os
racistas no Mississípi.

Mas um dos argumentos contra permitir


que vocês e eu façamos isso sempre foi que nosso
problema é um problema interno dos Estados Unidos.
E, como tal, não devemos pensar em colocá-lo em um
nível em que mais alguém possa vir e mexer nos assun-
tos internos dos Estados Unidos. Mas você está dando
uma folga para o Tio Sam. O Tio Sam está com as mãos
no Congo, em Cuba, na América do Sul, em Saigon.7
Tio Sam tem suas mãos ensanguentadas em todos
os continentes e sobre os assuntos de todos os outros
nesta terra. Mas, ao mesmo tempo, quando se trata de
tomar medidas enérgicas neste país em relação aos
nossos direitos, ele sempre diz a vocês e a mim: “Bem,
esses são direitos estaduais”. Ou ele arranjará algum
tipo de álibi não convencional, que não é um álibi de
boa fé – não porque seja um álibi, mas para justificar

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DISCURSO AOS TRABALHADORES DOS DIREITOS CIVIS DO MISSISSÍPPI

sua inatividade no que diz respeito aos seus e aos meus


direitos.

Tivemos sucesso quando percebemos que


tínhamos que levar isso às Nações Unidas. Sabíamos
que tínhamos que obter apoio, tínhamos que obter
apoio mundial, e que a parte do mundo na qual é mais
lógica buscar apoio é entre pessoas que se parecem
com vocês e comigo.

Tive a sorte de poder fazer uma viagem pelo


continente africano durante o verão – Oriente Médio
e África. Fui ao Egito, depois à Arábia, Kuwait, Líbano
e depois ao Sudão, Etiópia, Quênia, Tanganica, Zan-
zibar, Nigéria, Gana, Guiné, Libéria e Argélia. Descobri
enquanto viajava pelo continente africano – eu já havia
detectado isso em maio – que alguém plantou as
sementes da divisão neste continente para fazer com
que os africanos não mostrassem uma preocupação
genuína com o nosso problema, assim como eles plan-
tam sementes nas suas e na minha mente para que
não nos preocupemos com o problema africano. Eles
tentam fazer você e eu pensarmos que estamos sepa-
rados e que os dois problemas estão separados.

Quando voltei e viajei para esses países, tive a

7 Antiga capital do Vietnã do Sul, hoje denominada Cidade de Ho Chi Minh


em homenagem ao líder revolucionário vietnamita homônimo.

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DISCURSO AOS TRABALHADORES DOS DIREITOS CIVIS DO MISSISSÍPPI

sorte de passar uma hora e meia com Nasser no Egito,


que é um país do norte da África; e três horas com o
presidente Nyerere8 em Tanganica, que agora se tor-
nou a Tanzânia, que é um país do leste africano; e com
o primeiro-ministro Obote, Milton Obote,9 em Uganda,
que também é um país da África Oriental; e com Jomo
Kenyatta no Quênia, que é outro país da África Oriental;
e com o presidente Azikiwe10 na Nigéria, o presidente
Nkrumah11 em Gana e o presidente Sékou Touré12 na
Guiné.

Descobri que em cada um desses países afri-


canos o chefe de Estado está genuinamente preocu-
pado com o problema do negro neste país, mas muitos
deles pensavam que se abrissem a boca e expres-
sassem preocupação, seriam insultados pelos líderes
negros americanos. Porque um chefe de estado da
Ásia expressou seu apoio à luta pelos direitos civis e

8 Julius Kambarage Nyerere (1922 – 1999) foi um político tanzaniano,


presidente de Tanganyika desde a independência deste território, em 1962, e,
posteriormente, da Tanzânia – até se retirar da política em 1985, mesmo ano
que foi agraciado com o Prêmio Lênin da Paz soviético.
9 Apollo Milton Obote (1924 – 2005) foi presidente e primeiro-ministro de
Uganda entre 1966 e 1971.
10 Nnamdi Azikiwe (1904 - 1996) foi o primeiro presidente da Nigéria
independente (1963 - 1966) e uma figura nacionalista proeminente.
11 Kwame Nkrumah (1909 – 1972) foi um revolucionário marxista, um dos
fundadores do Pan-Africanismo Revolucionário, estando à frente do governo
independente de Gana de 1957 a 1966, quando sofreu um golpe orquestrado
pelo imperialismo britânico.
12 Ahmed Sékou Touré (1922 – 1984) foi uma liderança política nacionalista
e anticolonial, presidente da República da Guiné de 1958 a 1984 e chefe da
Reunião Democrática Africana.

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DISCURSO AOS TRABALHADORES DOS DIREITOS CIVIS DO MISSISSÍPPI

alguns dos Seis Grandes tiveram a audácia de dar um


tapa na cara dele e dizer que não estavam interessa-
dos nesse tipo de ajuda – o que, na minha opinião, é
uma estupidez. Então os líderes africanos só precisa-
vam se convencer de que, se assumissem uma posição
aberta no nível governamental e mostrassem interesse
pelo problema dos negros neste país, eles não seriam
rejeitados.

E hoje vocês descobrirão nas Nações Unidas –


e não é por acaso – que toda vez que a questão do
Congo ou qualquer coisa no continente africano esti-
ver sendo debatida no Conselho de Segurança, eles
associarão isso ao que está acontecendo com vocês
e comigo no Mississípi e no Alabama e nesses outros
lugares. Na minha opinião, a maior conquista que foi
obtida na luta do homem negro na América em 1964 na
direção de algum tipo de progresso real foi a conexão
bem-sucedida de nosso problema com o problema
africano, ou a transformação do nosso problema em
um problema mundial. Porque agora, sempre que algo
acontece com vocês no Mississípi, não é o caso de ape-
nas alguém no Alabama ficar indignado, ou alguém em
Nova Iorque ficar indignado. O que quer que aconteça
no Mississípi hoje, com a atenção das nações africa-
nas atraídas para o Mississípi em nível governamen-
tal, então as mesmas repercussões que você vê em
todo o mundo quando uma potência imperialista ou

21
DISCURSO AOS TRABALHADORES DOS DIREITOS CIVIS DO MISSISSÍPPI

estrangeira interfere em alguma parte da África, você


vê as repercussões, você vê as embaixadas sendo
bombardeadas, queimadas e destruídas. Hoje em dia,
quando algo acontecer com os negros no Mississípi,
você verá a mesma repercussão em todo o mundo.

Queria apontar isso para vocês, porque é impor-


tante que vocês saibam que quando estão no Missis-
sípi, vocês não estão sozinhos. Mas, enquanto vocês
pensarem que estão sozinhos, vocês assumirão uma
posição como se vocês fossem uma minoria ou como
se estivessem em desvantagem, e esse tipo de posi-
ção nunca permitirá que vocês ganhem uma batalha.
Vocês têm que saber que têm tanto poder do seu lado
quanto a Ku Klux Klan tem do lado deles. E quando vocês
souberem que têm tanto poder do seu lado quanto a
Klan tem do lado deles, vocês vão falar com esse Klan
o mesmo tipo de linguagem que ele usa com vocês.

Vou dizer mais uma coisa e depois concluo.

Quando digo o mesmo tipo de linguagem, devo


explicar o que quero dizer. Veja, você nunca pode ter
boas relações com alguém com quem você não possa
se comunicar. Você nunca pode ter boas relações com
alguém que não o entende. Tem que haver um enten-
dimento. A compreensão é obtida por meio do diálogo.
O diálogo é comunicação de ideias. Isso só pode ser

22
DISCURSO AOS TRABALHADORES DOS DIREITOS CIVIS DO MISSISSÍPPI

feito em um idioma, um idioma comum. Você nunca


pode falar francês com alguém que fala apenas ale-
mão e pensar que estará se comunicando. Nenhum
deles – eles não entenderão o ponto. Você tem que
ser capaz de falar a língua de um homem para fazê-lo
compreender.

Agora, vocês já viveram no Mississípi por tempo


suficiente para saber qual é a língua da Ku Klux Klan. Eles
conhecem apenas um idioma. Se vocês vierem com
outro idioma, não se comunicarão. Vocês devem ser
capazes de falar o mesmo idioma que eles falam, seja
no Mississípi, Nova Iorque, Alabama ou Califórnia, ou em
qualquer outro lugar. Quando vocês se desenvolvem
ou amadurecem a ponto de poder falar a língua de
outro homem no nível dele, esse homem o entende. Só
então ele entende. Vocês não podem falar sobre paz
com uma pessoa que não sabe o que paz significa.
Vocês não podem falar de amor com uma pessoa que
não sabe o que o amor significa. E vocês não podem
falar sobre qualquer forma de não violência com uma
pessoa que não acredita na não violência. Ora, vocês
estão perdendo seu tempo.

Então eu acho que em 1965 – quer vocês gos-


tem, ou eu goste, ou nós gostemos, ou eles gostem,
ou não – vocês verão que há uma geração de negros
nascidos neste país que tornaram-se maduros a ponto

23
DISCURSO AOS TRABALHADORES DOS DIREITOS CIVIS DO MISSISSÍPPI

de sentirem que não tem mais sentido a solicitação


para que adotem uma abordagem mais pacífica do
que aquela que qualquer outra pessoa adota, a menos
que todos adotem uma abordagem pacífica.

Então nós, aqui na Organização da Unidade


Afro-Americana, estamos lutando no Mississípi 1.000%.
Estamos nos esforçando para registrar nosso pessoal
no Mississípi para votar 1.000%. Mas não concordamos
com ninguém que nos diga para ajudar sem violência.
Achamos que se o governo diz que os negros têm o
direito de votar, e então quando os negros saem para
votar algum tipo de Ku Klux Klan vai colocá-los no rio,
e o governo não faz nada a respeito, é hora de nos
organizarmos e nos unirmos, nos equiparmos e nos
qualificarmos para nos proteger. E uma vez que você
possa se proteger, não precisará se preocupar em ser
ferido. É isso aí.

Agora, então, teremos alguns minutos para


vocês fazerem perguntas sobre tudo o que foi dito e
tudo o que não foi dito.

Pergunta: Você poderia dizer algo sobre o Par-


tido Democrático da Liberdade?

Malcolm X: Sim. Nós apoiamos o Partido


Democrático da Liberdade. Estamos preparando uma

24
DISCURSO AOS TRABALHADORES DOS DIREITOS CIVIS DO MISSISSÍPPI

declaração em apoio. Tivemos um comício no domingo


passado – não, há uma semana atrás, no domingo
à noite – para o qual convidamos a sra. Hamer. Ela
falou e explicou a posição do Partido Democrático da
Liberdade do Mississípi, e nós o apoiamos. Para dar um
exemplo do motivo pelo qual o apoiamos: ele tem tanto
efeito na cidade de Nova Iorque quanto no Mississípi.

Mas, da mesma forma, devo salientar que aque-


les que estão privando vocês de seus direitos no Missis-
sípi não estão todos no Mississípi. Tem esses democra-
tas de Nova Iorque que são igualmente responsáveis. O
prefeito desta cidade é um democrata. O senador, você
já ouviu falar dele, Robert Kennedy,13 ele é um demo-
crata. O presidente do país é democrata. O vice-presi-
dente é democrata. Agora, não venha me falar sobre
um democrata no Mississípi que está lhe privando de
seus direitos, quando o poder do Partido Democrata
está em Washington, D.C., e em Nova Iorque, e em Chi-
cago, e algumas dessas cidades do norte.

Na cidade de Nova Iorque, os negros já podem


votar. Quando vocês divulgarem na cidade de Nova
Iorque a posição do Partido Democrático da Liberdade
do Mississípi, por que foi necessário formar esse partido

13 Robert Francis Kennedy (1925 – 1968), apelidado de Bobby e também de


RFK, foi procurador-geral dos Estados Unidos de 1961 até 1964. Era um dos
irmãos mais novos do presidente Jonh F. Kennedy, assassinado em 1964.

25
DISCURSO AOS TRABALHADORES DOS DIREITOS CIVIS DO MISSISSÍPPI

e o que esse partido está tentando fazer para desti-


tuir esses representantes ilegais do Mississípi, então os
negros de Nova Iorque saberão do que se trata. Que-
remos saber qual é a posição de Wagner, já que ele é
um dos líderes mais poderosos e influentes do Partido
Democrata nos Estados Unidos. E queremos saber a
posição do senador Robert Kennedy, já que ele também
é um dos líderes mais poderosos e influentes do Partido
Democrata nos Estados Unidos. E nós temos um negro
que é assistente do prefeito nesta cidade. Queremos
saber como ele se posiciona. Além disso, peçam a Lyn-
don B. Johnson e Hubert Humphrey, que prega adorar
os negros, que informe como ele se posiciona, antes de
4 de janeiro.

Quando vocês conseguirem esse tipo de ação


de alguns desses democratas do norte, vocês terão
alguma ação no Mississípi. Vocês não precisam se
preocupar com aquele homem no Mississípi. O poder do
Partido Democrata são essas pessoas aqui, que detêm
todo o poder no norte. Então, estamos com vocês, mas
queremos ir até o fim.

Veja, como muçulmano, eu não envolvo minha


religião na minha política, porque elas entram em con-
flito. Elas não conflitam, mas quando você entra em
algo sendo um muçulmano, há muitos negros que
são cristãos, que não têm mente aberta o suficiente,

26
DISCURSO AOS TRABALHADORES DOS DIREITOS CIVIS DO MISSISSÍPPI

então você entra em uma discussão religiosa, e isso


não compensa.

Portanto, não entrei nessa luta como muçul-


mano, na medida em que entrei como membro da
Organização da Unidade Afro-Americana. E a posi-
ção que a Organização da Unidade Afro-Americana
assume é que entramos nela sem transigir.

Você transige quando está errado. Você não


precisa transigir quando está certo. Porque você está
certo. Eles não estão te dando nada. Isso é seu. Se você
nasceu neste país, ninguém está te fazendo nenhum
favor quando permitem que você vote ou que se
registre. Eles estão apenas reconhecendo você como
ser humano e reconhecendo seu direito como ser
humano de exercer seu direito como cidadão. Então
eles não estão te fazendo nenhum favor.

Enquanto vocês abordarem isso como se


alguém tivesse feito um favor, ou como se estivesse
lidando com um amigo, vocês nunca poderão lutar
essa luta. Porque quando eles lidam com vocês, eles
não estão lidando com vocês como se estivessem
lidando com um amigo. Eles olham para vocês como se
vocês fossem um inimigo. Agora vocês têm que olhar
para eles como se eles fossem inimigos. E depois que
vocês souberem com o que estão lidando, poderão

27
DISCURSO AOS TRABALHADORES DOS DIREITOS CIVIS DO MISSISSÍPPI

lidar com isso. Mas vocês não podem lidar com eles
com amor. Ora, cara, se eles tivessem qualquer amor,
se houvesse amor neles, vocês não teriam nenhuma
luta no Mississípi. Não há amor lá. Vocês têm que perce-
ber que não há amor ali, e então não estarão à procura
disso, e irão em frente e lutarão contra eles.

Quando vocês vão votar ou se registrar e


alguém fica no seu caminho, vocês devem respondê-
-lo da mesma maneira que eles respondem a vocês.
Quando vocês responderem dessa maneira, vocês
conseguirão um pequeno diálogo. E se vocês não tive-
rem um número suficiente lá para fazer isso, nós iremos
até lá e ajudaremos vocês a fazê-lo. Porque estamos
cansados dessa velha enrolação com a qual nosso
povo é tratado neste país.

Durante muito tempo, eles me acusaram de


não me envolver em política. Eles deveriam ter ficado
felizes por eu não ter me envolvido na política, porque
qualquer coisa em que eu me envolva, eu me envolvo
completamente. Agora, se eles disserem que não par-
ticipamos da luta no Mississípi, organizaremos irmãos
aqui em Nova Iorque que sabem como lidar com esse
tipo de coisa, e eles entrarão no Mississipi como Jesus
entrou em Jerusalém.

Isso não significa que somos contra os brancos,

28
DISCURSO AOS TRABALHADORES DOS DIREITOS CIVIS DO MISSISSÍPPI

mas, com certeza, somos contra a Ku Klux Klan e os


Conselhos dos Cidadãos Brancos. Qualquer coisa que
pareça estar contra nós, somos contra.

Desculpe-me por levantar minha voz, mas esse


negócio, sabe, me deixa transtornado. Sequer estar
envolvido em uma discussão dessas em um país que
deveria ser uma democracia. Imagine que, em um país
que deveria ser uma democracia, deveria ser a favor
da liberdade e todo esse tipo de coisa que eles dizem
quando querem convocar você e colocá-lo no exército
e enviá-lo a Saigon para lutar por eles. E então você
tem que se virar e discutir a noite toda como obter o
direito de se registrar e votar sem ser assassinado. Ora,
essa é a meia-verdade governamental mais hipócrita
que já foi inventada desde que o mundo era o mundo.
Sim, senhora.

Pergunta: A pergunta que tenho é: o que a Uni-


dade Afro-Americana faz?

Malcolm X: Primeiro: afroamericano significa


nós.

Pergunta: Eu sei o que isso significa, eu só quero


saber: O que ela faz?

Malcolm X: Como assim?

29
DISCURSO AOS TRABALHADORES DOS DIREITOS CIVIS DO MISSISSÍPPI

Pergunta: Que tipos de luta, o que faz?

Malcolm X: Bem, primeiro, ela foi estruturada


com base na OUA. A OUA é a Organização da Uni-
dade Africana. E a razão pela qual estruturamos nossa
organização segundo a deles foi que eles tiveram
problemas no continente africano semelhantes aos
nossos. O que significa que havia muitos países inde-
pendentes que estavam tão divididos uns contra os
outros que não podiam unir esforços e resolver qual-
quer um dos seus problemas. Assim, alguns dos políti-
cos africanos mais maduros foram capazes de traba-
lhar nos bastidores e obter um entendimento comum,
a partir do qual se materializou a Organização da Uni-
dade Africana, cujo objetivo era fazer com que todos
os líderes africanos vissem a necessidade de diminuir
a importância de suas áreas de desacordo e enfati-
zar suas áreas de acordo, onde eles tinham interesses
comuns.

Isso levou à formação da Organização da Uni-


dade Africana, e hoje eles trabalham juntos em unidade
e harmonia, embora existam diversas filosofias, diversas
personalidades. Todas essas diferenças existem; ainda
assim, eles podem se unir para um objetivo comum.
Então, estudando seus problemas e vendo que eram
semelhantes aos nossos, formamos os nossos segundo
a letra e o espírito daquela OUA, só que com uma OUAA.

30
DISCURSO AOS TRABALHADORES DOS DIREITOS CIVIS DO MISSISSÍPPI

Nosso primeiro objetivo é – nosso primeiro passo


foi encontrar uma área de acordo entre os afroame-
ricanos. Descobrimos que há os nacionalistas, há os
grupos de direitos civis, há todos esses elementos diver-
sos na comunidade negra. Alguns desejam separa-
ção, outros desejam integração; alguns querem isso,
outros querem aquilo. Então, como encontrar algo em
que todos concordem? Você não verá os nacionalistas
concordando com os direitos civis, porque eles acham
que é uma farsa. Você não verá os nacionalistas con-
cordando com a integração, porque eles acham que
é uma farsa. Eles não viram nenhum lugar onde isso
já tenha se materializado. É apenas uma palavra, algo
que é jogado, chutado.

Portanto, tínhamos de encontrar algo com o qual


os nacionalistas e os integracionistas concordassem.
E descobrimos que todos eles concordariam com a
necessidade de nosso povo neste país ser respeitado
e reconhecido como seres humanos. Então, em vez
de lançar nossa luta no nível dos direitos civis, o que
causaria muita discussão, nós a lançamos no nível dos
direitos humanos. E sabemos que qualquer pessoa que
seja a favor dos direitos civis precisa ser a favor dos
direitos humanos, seja você um integracionista, um
separatista ou o que for; você ainda terá que ser a favor
dos direitos humanos.

31
DISCURSO AOS TRABALHADORES DOS DIREITOS CIVIS DO MISSISSÍPPI

Então, nossa primeira plataforma foi que


reconhecemos o direito do homem negro no hemisfé-
rio ocidental de exercer seus direitos como ser humano.
Direitos com os quais nasceu, direitos que nenhum
governo tem o poder de dar a ele. Deus faz de você um
ser humano, e Deus é quem dá seus direitos humanos,
não um governo, ou alguns senadores, ou um juiz, ou
alguns representantes. E então esta é a nossa posição.
Somos seres humanos, e nossa luta é para que cada
homem, mulher e criança negras deste país seja res-
peitado e reconhecido como ser humano.

Nosso método é: qualquer meio necessário. Esse


é o nosso lema. Não estamos restritos a isso, ou con-
finados àquilo. Nós nos reservamos o direito de usar
quaisquer meios necessários à proteção da nossa
humanidade, ou para fazer com que o mundo nos veja
e respeite como seres humanos. Quaisquer os meios
necessários.

Quando digo isso, não quero dizer nada ilegal.


O governo... você está sendo tratado criminalmente. O
criminoso é aquele que é ilegal. Quem é responsável
por essas condições criminosas, ele é um criminoso,
ele é ilegal. E o que quer que você tenha que fazer para
impedir que esse crime seja cometido contra você, na
minha opinião, não te torna ilegal.

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DISCURSO AOS TRABALHADORES DOS DIREITOS CIVIS DO MISSISSÍPPI

Então esse é o nosso primeiro passo em nível


internacional. E politicamente, concebemos e apoia-
mos qualquer programa que vise dar ao homem negro
neste país a oportunidade de participar como cida-
dão, um cidadão livre, neste sistema político e nesta
sociedade. Nos envolveremos em programas próprios,
ou nos programas de qualquer outra pessoa, desde
que não envolva nenhum tipo de transigência em sua
abordagem para conseguir que nosso povo neste país
tenha o direito de se registrar e votar em qualquer dire-
ção que deseje.

[...]

Pergunta: [Inaudível, pergunta sobre “o motim


que houve aqui”].

Malcolm X: No Harlem?

Pergunta: Sim.

Malcolm X: Não foi um motim. Aquilo foi um


pogrom.14 Você sabe o que é um pogrom? Como você
fala isso? Progrom. Um pogrom, é o que isso foi. Pogrom.
Aquilo não foi um motim, foi um pogrom. Aquilo era a
brutalidade acumulada da polícia contra as pessoas
da área. Foi uma armação.

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DISCURSO AOS TRABALHADORES DOS DIREITOS CIVIS DO MISSISSÍPPI

Pergunta: Posso perguntar a você, o que real-


mente foi alcançado por esse assim chamado motim?

Malcolm X: Não foi um motim. Em maio, houve


um boato de que a polícia de Nova Iorque, durante
o verão, tentaria provocar problemas, para que eles
pudessem intervir e esmagar a organização e o cres-
cimento de grupos militantes que eles temiam, pois
se lhes fosse permitido crescer, chegariam a um
tamanho que eles nunca poderiam controlar.

Se você estudar as características daquele


assim chamado motim, cada ação por parte da polí-
cia no Harlem foi planejada para atrair grupos que eles
sentiam estar equipados e prontos para fazer isso. As
táticas que a polícia usou foram projetadas para atrair
fogo de resposta. Eles estavam atirando em pessoas
desarmadas. Mas eles estavam atirando para conse-
guir fazer alguém lutar, para atirar de volta. A polícia
sabe que há tantas armas no Harlem quanto em Sai-
gon agora. Mas nenhum dos grupos do Harlem que
estavam equipados e qualificados para contra-atacar
se envolveu. Nenhum deles se envolveu.

Mas tudo foi planejado para tentar envolvê-los,

14 “Massacre”. Termo ídiche que se popularizou mundialmente a partir da


onda de agressões e assassinatos cometidos contra judeus na Rússia
czarista, contanto com a conivência (e até o apoio) das autoridades.

34
DISCURSO AOS TRABALHADORES DOS DIREITOS CIVIS DO MISSISSÍPPI

para que pudessem ser esmagados enquanto ainda


estavam em seu estágio embrionário, assim chamado
embrionário. Como você disse, vai além da situação do
Mississípi. Mas todos os nossos problemas são iguais:
cor errada.

[...]

Bem, quero agradecer a todos vocês por dedi-


carem seu tempo para vir ao Harlem e especialmente
aqui. Espero que vocês tenham entendido melhor sobre
nós. Eu expus para vocês tão claramente quanto eu sei
como expôr; não há necessidade de interpretação. E eu
quero que vocês saibam que não estamos de forma
alguma tentando defender qualquer tipo de ação
indiscriminada e pouco inteligente. Mas seguiremos
junto com vocês em qualquer tipo de ação inteligente
em que vocês estejam envolvidos para proteger as
vidas e propriedades de nosso povo neste país. Qual-
quer tipo de ação em que vocês estejam envolvidos e
que tenha como objetivo proteger a vida e a proprie-
dade de nosso povo maltratado neste país, estamos
com você 1.000%. E se vocês não acham que estão qua-
lificados para isso, temos alguns irmãos que podem
chegar discretamente, como eu disse antes, e ajudar a
treiná-los e mostrar-lhes como se preparar para lidar
com essas pessoas com as quais precisamos lidar.

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DISCURSO AOS TRABALHADORES DOS DIREITOS CIVIS DO MISSISSÍPPI

E antes de dispensar vocês, deixe-me ver um


desses... Eu gostaria de ler isso – é breve – antes de
vocês saírem. Diz:

“Aplaudimos os esforços de James Farmer15 e


de outros grupos de direitos civis para obstruir a posse
parlamentar dos cinco representantes ilegais do Mis-
sissípi quando o Congresso se reunir em 4 de janeiro.
Estamos satisfeitos em ver que o sr. Farmer e seus cole-
gas dos direitos civis estão tão sinceramente no apoio
à contestação das eleições que foi iniciada pelo Partido
Democrático da Liberdade do Mississípi. Como presi-
dente da Organização da Unidade Afro-Americana,
quero declarar enfaticamente que apoiamos todos
os esforços intransigentes feitos por todas as pessoas
bem-intencionadas para destituir os representantes
ilegais do estado do Mississípi e de qualquer outra área
onde seja negado ao nosso povo o direito de votar sim-
plesmente porque nasceram com pele escura.

Também insistimos que, uma vez que mais


de 97% dos negros americanos apoiaram Lyndon B.
Johnson, Hubert Humphrey, Robert Kennedy e o Par-
tido Democrata nas recentes eleições, que é o apoio

15 James Leonard Farmer Jr. (1920 - 1999) foi um ativista pelos direitos
civis e líder do Congresso de Igualdade Racial (CORE). Farmer foi um dos
organizadores do Freedom Riders (“Viajantes da Liberdade”), uma onda de
protestos de desobediência civil às leis segregacionistas a fim de permitir
que viajantes negros pudessem sentar em qualquer assento nos ônibus.

36
DISCURSO AOS TRABALHADORES DOS DIREITOS CIVIS DO MISSISSÍPPI

mais esmagador dado por qualquer grupo minoritário


a um partido e seus candidatos, estou desafiando Lyn-
don B. Johnson, Hubert Humphrey e Robert Kennedy, a
declarar exatamente sua posição quanto aos assentos
desses representantes ilegais do Mississípi, antes de 4
de janeiro.” E eles devem se explicar.

“Aplaudimos a iniciativa tomada pelo repre-


sentante de Nova Iorque, William Fitts Ryan,16 na obs-
trução da posse desses congressistas do Mississípi, e
a posição firme tomada a seu lado por Adam Clayton
Powell.17 Visto que o prefeito Wagner estará no Harlem
ainda este ano para obter o apoio político de nosso
povo a fim de permanecer na prefeitura, desafio o pre-
feito Wagner e seu assistente chefe, J. Jones, a tam-
bém deixarem que quase um milhão e meio de negros
americanos na cidade de Nova Iorque saibam qual é
sua posição frente o plano de nomear representantes
ilegais antes de 4 de janeiro.

Eu, por mim, junto com alguns amigos, pla-


nejo estar em Washington no dia 4 de janeiro como

16 William Fitts Ryan (1922 - 1972) foi um advogado e político estadunidense.


Ele foi representante de Nova Iorque na Câmara dos Deputados dos Estados
Unidos e membro do Partido Democrata. Fitts foi alvo na luta pelos direitos
civis, tendo inclusive marchado ao lado de Martin Luther King Jr.

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DISCURSO AOS TRABALHADORES DOS DIREITOS CIVIS DO MISSISSÍPPI

observador. Desejamos testemunhar e registrar a posi-


ção assumida pelos chamados liberais, que buscam o
apoio político de nosso povo na hora das eleições, pois
planejamos ser 100% ativos em todas as áreas políticas
de 1965 em diante.”

Por isso, agradeço e espero vê-los pessoal-


mente no Mississípi, em janeiro.

` Obrigado.

17 Adam Clayton Powell Jr. (1908 - 1972) foi um político estadunidense


defensor dos direitos civis, que representou o bairro do Harlem na Câmara
dos Deputados dos Estados Unidos.

38
www.icl.com.br

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