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8 – BEM-VINDE À QUEERTOPIA 1

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BEM-VINDE À QUEERTOPIA

SEJA O UNICÓRNIO QUE VOCÊ DESEJA VER NO MUNDO

Mic1 arrastou os pés enquanto fazia seu caminho da sala de espera para meu
escritório, de cabeça baixa, concentrando-se no telefone. Tara e Jackson, a mãe e o
pai de Mic, seguiam atrás.

Depois que todos se sentaram e Mic guardou seu telefone, Mic suspirou e me
disse: "Lembra quando conversamos sobre o que aconteceria se o unicórnio de gênero
viesse e fizesse todas as regras estúpidas e outras coisas de gênero irem embora?"

“Sim, me lembro.”, eu disse. "O que você está pensando sobre isso?"

“Bem, eu só estava pensando que seria legal se isso acontecesse. Quero dizer, a
mudança de gênero. Não o unicórnio, necessariamente.”

“Sim, seria legal.”, eu disse.

Mic recentemente estava se sentindo mais confiante e apoiade em sua


queerness. Junto com outres alunes de sua escola, Mic coliderou um workshop sobre
identidades de gênero não binárias em uma conferência de jovens queer. Mic me
disse: “Eu fiz a diretora ler livros sobre o que é não binário. Agora ela entendeu.” Mas
hoje, Mic parecia mais triste do que há algum tempo.

“Mic”, eu disse, “você parece superchateade. Você pode me contar um pouco


sobre o que está acontecendo?”

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Com a ajuda de Tara e Jackson, Mic contou a história de uma experiência


dolorosa na escola, na qual algunes alunes fizeram comentários transfóbicos e
intencionalmente erraram o gênero de Mic. Mic explicou que os alunos faziam questão
de dizer à classe que “o presidente Trump não acha que está tudo bem com pessoas
trans”. Isso ocorreu durante uma discussão em sala de aula sobre eventos atuais
centrados nas chamadas “contas de banheiro2”.

“É como se eu estivesse me saindo muito bem”, disse Mic, “mas comecei a


pensar em quantas pessoas estão contra nós. Quero dizer, tentar impedir as pessoas
de ir ao banheiro é simplesmente maldoso e transfóbico.”

Eu perguntei: “Pensar nas pessoas que são contra você fez com que você se
esquecesse das pessoas que são a seu favor?”

"Na verdade não. Quer dizer, eu sei que as pessoas me apoiam... Estou
pensando em outras crianças trans ou não binárias que não têm ninguém que as apoie.
Isso me deixa muito triste. E eu também estou brave, porque não está certo.”

Eu vi as lágrimas brotarem dos olhos de Tara. Jackson colocou o braço em volta


de Mic, que se apoiou nele.

Eu também fui tocada. “Mic, isso é uma coisa nova para você, pensar em outras
crianças trans e não binárias, ou você tem pensado nelas há algum tempo?”

“Meio que ambos, mas principalmente é algo novo. Eu sinto que, desde que eu
assumi e sou capaz de ser eu mesme, e já que as pessoas me apoiam, eu deveria
ajudar os outros.” Agora as lágrimas brotaram dos olhos de Mic também.

“Então, você está dizendo que, agora que se sente apoiade, quer ajudar outras
crianças trans a se sentirem apoiadas também?”

Mic acenou com a cabeça enquanto as lágrimas rolavam por seu rosto.

“Você tem alguma ideia sobre o que deseja fazer para ajudar?”

“Essa é a coisa... Parece impossível, e é por isso que estou deprimide com isso.
Quero defender os outros, mas...” As palavras de Mic se transformaram em uma
nuvem de incerteza.

Eu argumentei: “Estou me perguntando quem te inspirou, ou te ensinou que


defender os outros é a coisa certa a fazer?”

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Mic riu, enxugou o rosto e disse: “Hum... você já conhece meus pais?”

Todos nós rimos. Tara era uma organizadora trabalhista e Jackson era um
defensor público. Mic me contou em conversas anteriores histórias sobre “como eles
nunca param de falar sobre ter que pensar além de nós mesmos e falar abertamente
se algo não estiver certo”.

“Sabe, Mic”, disse Tara, “pode ser verdade que papai e eu ensinamos você a
defender os outros, mas você tem um grande coração. Essa é a sua maneira de sentir
muito pelos outros.” Jackson acenou com a cabeça em concordância enquanto dava
um aperto em Mic.

Mic acenou com a cabeça. “Eu sei, mas de que serve um grande coração se eu
não posso fazer nada além de gritar com es valentães? Isso não muda nada.” Em
seguida, elu voltou a sua história da discussão em classe. Mic disse que falaram em
resposta ao comentário de que o presidente Trump não acha que as pessoas trans
estão OK. “Eu disse a eles: ‘Trump perdeu o voto popular, então a maioria das pessoas
não acha que ele é OK’!” Mic disse que foi bom falar abertamente na hora. Mas elu se
perguntou que benefício real isso fez. Elu disse que não tinha nenhuma ideia sobre o
que mais fazer a respeito dos problemas das crianças trans.

Perguntei a Mic se poderia fazer algumas perguntas aos pais dele. Elu concordou.

Perguntei a Jackson e Tara ‒ duas pessoas com experiência como organizadores


e ativistas ‒ que ideias eles tinham sobre como manter a esperança e agir diante da
injustiça sistêmica. Tivemos uma conversa um tanto filosófica sobre se ater a seus
princípios e fazer a coisa certa ‒ mesmo que isso não pareça mudar as coisas ‒
porque diz algo sobre o que é importante para você. Em seguida, perguntei a eles
sobre exemplos específicos de como agir de acordo com seus princípios.

“Bem, você sabe,” disse Tara, “nós dissemos a Mic que há um evento neste fim
de semana para mostrar apoio às pessoas trans. Jackson e eu estamos planejando
ir...”

Mic interrompeu: “Eu sei, eu sei... mas o que isso vai MUDAR?”

Eu perguntei: “Você está falando do evento que vai acontecer nesse domingo na
Lake Street? Sim, estou indo com uma turma de pessoas.”

Os olhos de Mic se arregalaram. “Você vai?”

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“Sim, está na minha agenda. E eu tenho um grupo de amigos com quem eu vou.
Mic, você tem alguma preocupação com a ação, como razões para não ser uma boa
ideia?”

“Não sei... acho que realmente não tenho uma razão muito boa para não...”
Percebi que Mic estava pensando.

Jackson disse a Mic: “Eu sei que você está se sentindo muito brave e é como se
ficar em pé na rua com placas em Minneapolis não ajudasse crianças trans na Carolina
do Norte a ir ao banheiro... Acho que você não quer fazer qualquer coisa que seja
apenas um símbolo, algo sem sentido.” Mic acenou com a cabeça.

“Sua mãe e eu respeitamos isso”, disse Jackson. “Se não tem significado para
você, tudo bem; nós nunca faríamos você ir. Foi apenas uma ideia, alguma coisa que
está acontecendo da qual podemos participar.”

Mic olhou para mim e perguntou: “Por que é que você vai?”

A ação que iria acontecer envolveria pessoas perfiladas nas calçadas ao longo de
ambos os lados de uma das ruas mais movimentadas e longas de Minneapolis. A
maioria de nós carregaria cartazes de apoio a pessoas trans. Acenaríamos para os
carros e tentaríamos fazer as pessoas acenarem de volta e buzinarem em
solidariedade (ou pelo menos em aprovação). Eu disse a Mic que essa seria uma forma
de as pessoas trans e simpatizantes ocuparem espaço, exercitarem sua voz coletiva e
de não permitir que os “inimigos” as silenciem ou as obriguem a ficar escondidas em
casa. Então eu pedi a elu que imaginasse pessoas amontoadas nas calçadas ao longo
de oito quilômetros de uma rua movimentada, segurando cartazes com mensagens de
apoio, muitas delas usando roupas com as cores do arco-íris, e criando uma vibração
homo e transsexual muito bem-vinda.

Mic riu. “Você faz parecer que o unicórnio de gênero estará lá, e que tudo será
perfeito.”

“Ha!”, eu disse. “Então, quando você pensa sobre isso, você fica pensando sobre
a queertopia que você imaginou que o unicórnio traria?”

"Sim! Tipo, todo mundo pode ser quem é sem ser julgado. E então, quando outras
pessoas vissem isso, mesmo nas redes sociais, ou uma criança trans na Carolina do
Norte, ou em qualquer outro lugar, visse as fotos, elas poderiam não se sentir tão

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sozinhas, sabendo que tem gente as defendendo em Minneapolis. Então, talvez elas
façam algo e outras pessoas vejam isso, e façam algo, e isso continua...”

Antes que eu pudesse responder, Mic se sentou erete na beira do sofá. “Ei!”, elu
exclamou, “Acho que NÓS somos o unicórnio!”

A AUDÁCIA DA ESTRANHEZA

Em face do atual ressurgimento global do nacionalismo branco e da escalada da


violência contra povos marginalizados, o desafio ‒ e a importância ‒ de falar sobre a
resistência queer vai além da sala de terapia. Exige mais de nós do que apenas tornar
nossa prática queer ao diagnosticar discursos e fazer perguntas baseadas em
respostas.

Resistir à marginalização e à opressão de pessoas queer e trans e suas famílias


requer nossa atenção constante e participação no mundo a nosso redor. A ética queer
exige que nos tornemos parte da estrutura das comunidades com as quais
trabalhamos. Na verdade, a prática da terapia narrativa baseada na teoria queer nos
convida a incorporar uma visão de mundo particular, e não apenas aprender um
conjunto de técnicas. Quando saímos de nossos consultórios de terapia, não paramos
de fazer perguntas; não paramos de interrogar as relações de poder; e não paramos de
desconstruir discursos. Temos que tomar uma posição. Precisamos assumir o jogo.
Nós temos que ser o unicórnio.

Isso significa trabalhar em direção à mudança transformacional, isto é, à mudança que


subverte e transforma as regras, as estruturas e as suposições existentes que
dominam os sistemas e as visões do mundo. A mudança transformacional também é
conhecida como mudança de segunda ordem.

Mudança de primeira ordem ‒ isto é, mudança não transformacional ‒ oferece


modificações ou ajustes dentro de um contexto particular. Por exemplo, quando uma
escola estabelece “espaços seguros” e identifica “funcionários seguros” para alunes
queer e trans, mas não trabalha para expor e desmantelar a cultura da homofobia,
heteronormatividade, transfobia e cisnormatividade que torna esses espaços
necessários ‒ essa é uma mudança de primeira ordem. A mudança de primeira ordem
oferece band-aid para ferimentos a bala: pode estancar o sangramento e diminuir a
infecção, mas não muda a cultura do tiroteio. Mudança de primeira ordem envolve

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novas respostas que, no entanto, mantêm (ou permitem) o mesmo sistema ao qual
respondemos.

A mudança transformacional ou de segunda ordem envolve a audácia de esperar


além do que sabemos e acreditamos e de ver além do que é... do que poderia ser.
Assim, no exemplo acima, em vez de perguntar como as escolas podem proteger os
alunes queer e trans dos riscos de homofobia etc., devemos perguntar: Como podemos
criar comunidades de ensino seguras e acolhedoras que veem e ouvem todos os
alunes, trabalhando para transformar a homofobia e a transfobia em coisas do
passado? Isso significa que também fazemos perguntas que movem nossa atenção (e
ação) dos indivíduos e relacionamentos para os contextos discursivos que os moldam.

Abaixo estão mais alguns exemplos:

• Em vez de perguntar Como apoiamos os pais de jovens queer quando suas crianças
se assumem, podemos indagar Como criar um mundo onde os pais entendam que
todas as orientações sexuais e identidades de gênero são dimensões emergentes e
fluidas das experiências das pessoas, eliminando assim a necessidade de “se
assumir”.

• Em vez de perguntar como podemos aumentar a capacidade dos terapeutas


especializados em trans de escrever cartas para confirmação de gênero, podemos
perguntar como não precisar medicar, examinar patologicamente e diagnosticar o
gênero para que as pessoas trans tenham autoridade para solicitar e consentir os
cuidados que desejam, sem obter autorizações de terapeutas ou médicos; como
oferecer e garantir cuidados de saúde para todos.

• Em vez de perguntar que práticas terapêuticas podemos usar para ajudar as


pessoas queer e trans que estão lutando contra o suicídio a ficarem seguras,
podemos questionar que discursos e instituições opressores devemos desmantelar
para que nenhuma pessoa queer ou trans ‒ ou qualquer outra pessoa ‒ sinta que
sua vida precisa acabar por causa deles.

Essas perguntas, e suas possíveis respostas, refletem o que o pedagogo crítico


Jeffrey Duncan-Andrade (2009) chama de esperança audaciosa. Isso se opõe à
esperança falsa3, que tem como premissa o individualismo. A esperança audaciosa
exige que imaginemos além dos limites do que pensamos ser possível ‒ mas que no

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entanto é necessário ‒ para sermos verdadeiramente livres. De acordo com Duncan-


Andrade, a esperança audaciosa “exige que nos reconectemos com o coletivo lutando
lado a lado, compartilhando as vitórias e a dor” (p. 190).

Reconectar-se ao coletivo exige que apaguemos muitas das linhas que traçamos
entre nós e os outros. Duncan-Andrade insiste que não existe o que Delpit (1995)
chama de “as crianças de outras pessoas”. Ao trabalhar com nosses pacientes de
terapia, podemos apagar muitas dessas linhas tornando queer (queering) as noções
convencionais de terapia, de terapeutas e de seus relacionamentos com os pacientes.

Queering requer audácia. Neste caso, é a audácia de recusar a desumanização


do distanciamento e das práticas terapêuticas centradas na técnica. É também a
ousadia de cocriar com as pessoas que nos consultam um sentimento profundo de
pertencimento.

Queering também requer ação. Como outros educadores críticos libertadores


antes dele (por exemplo, Freire, 1970, 1992; Hooks, 1994, 2003), Duncan-Andrade é
claro ao afirmar que a esperança requer ação para ser significativa.

Acrescento que esperança, como queer, é melhor como verbo. Esperar leva a
fazer e fazer inspira e sustenta a esperança. Esperar é uma práxis, uma ação concreta.

Pense em Mic: elu estava se sentindo um tanto sem esperança, até que viu a
audácia (e queerness) da ação comunitária planejada. Assim que Mic viu a ação como
significativa, sua esperança foi revigorada; e, quando Mic se reconectou com a
esperança, elu se sentiu inspirade a agir. Fazendo e esperando, esperando e
fazendo…

Mic entrou na práxis de esperança (esperar) porque: (1) elu viu uma conexão entre elu
e jovens trans da Carolina do Norte (conexão com o coletivo); (2) elu ecoou a
queerness audaciosa e a audácia queer da resposta da comunidade, e (3) elu viu além
do que era para o que era possível.

Isso pode parecer uma esperança de utopia (ou queertopia, como Mic e eu a
chamamos em nossas conversas). No entanto, queerness é mais do que apenas
audaciosa. Munoz (2009) afirma que queerness é utópica e que “há algo de estranho
no utópico” (p. 170). Invocando a poética social da possibilidade, Munoz nos diz que
“queerness é aquela coisa que nos faz sentir que este mundo não é suficiente, que na
verdade algo está faltando” (p. 1).

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Não é isso que a esperança é ‒ imaginar e buscar algo diferente do que nos é
oferecido? Para pessoas queer e trans ‒ bem como para todas as pessoas
marginalizadas e oprimidas ‒ imaginar, esperar e trabalhar por “algo que falta” muitas
vezes é literalmente uma questão de vida ou morte.

Esta não é uma proposição ou/ou. Não estou sugerindo que não trabalhemos
mais com os pais quando suas crianças nascerem, ou que paremos de preparar mais
terapeutas para apoiar as pessoas trans na busca por cuidados de gênero. Enquanto
essas forem necessidades, devemos atendê-las. Eu estou, entretanto, defendendo que
nos recusemos a ficar satisfeitos apenas em atender essas necessidades, e que
façamos perguntas diferentes a fim de tornar possíveis caminhos novos e únicos.

Precisamos nos perguntar: O que nós fazemos é o suficiente se isso


simplesmente mantém o status quo? Ou seja, é bom o suficiente se ajudarmos as
pessoas queer e trans a se sentirem mais felizes em um mundo onde o preconceito e a
violência contra as pessoas queer e trans são comuns? É bom o suficiente treinar mais
terapeutas para escrever cartas para pessoas trans a fim de obterem os serviços
médicos de que precisam, enquanto se mantém o sistema de “controle de porteira”, e
as seguradoras cada vez mais tomam as decisões? A teoria queer, a terapia narrativa
e a ética relacional me ensinam que não é.

Levar a sério esses ensinamentos significa que persistentemente e de modo


queer esperamos com audácia; que imaginamos além do que nos é dito ser possível; e
que trabalhamos para desmantelar ativamente os discursos e sistemas que tentam
desesperadamente manter as coisas iguais. E essa é a parte crítica: ter esperanças
audaciosas e queering não são meras abstrações aspiracionais; Munoz (2009) insiste
que “queerness... não é simplesmente um ser, mas um fazer para e em direção ao
futuro.” Queerness rejeita o aqui e o agora e exige a “possibilidade concreta de outro
mundo” (p. 1). Este é o cerne do projeto de esperança audaciosa e de queerness: você
tem que acreditar nele para torná-lo algo que você possa ver, e você tem que construir
histórias que queira viver.

A ESTRADA PARA A QUEERTOPIA É PAVIMENTADA DE IDEIAS PERIGOSAS

O projeto de contar histórias de resistência queer deu uma guinada dramática


após as eleições de 2016. No mesmo dia após Donald Trump ser declarado vencedor

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da corrida presidencial, muito mais medo, desesperança e desespero palpáveis


invadiram meu escritório junto com minhes pacientes. Nos primeiros meses depois da
eleição, eu normalmente tinha que fazer das minhas tripas coração para descobrir onde
o medo, a desesperança e o desespero que eu estava sentindo começavam e
terminavam, e onde o medo, a desesperança e o desespero que dominavam minhes
pacientes começavam. Com bastante frequência, essa minha “estripação” revelava um
círculo concêntrico. Enquanto escrevo este capítulo, cerca de três anos e meio após
aquela fatídica noite de novembro, não diria que as respostas de minhes pacientes se
acalmaram ou diminuíram. Eu diria, entretanto, que as pessoas agora também estão
com raiva ‒ bem enfurecidas ‒ com relação às agressões a sua dignidade e, às vezes,
a sua vida. Juntos, estamos alavancando e honrando essa raiva como uma declaração
de dignidade. Estamos protestando contra as injustiças solidificadas em um sistema
projetado para oprimir.

Falar sobre a resistência queer exige que tenhamos uma visão clara de que
estamos construindo histórias de resistência. Isso envolve ter consciência do clima
político local, estadual e federal, e das leis que impactam as pessoas queer e trans em
diversas áreas, incluindo:

• Emprego;
• Bem-estar infantil;
• Habitação;
• Adoção;
• Terapia de conversão;
• Bullying escolar;
• Atletas estudantes trans;
• Crimes de ódio;
• Marcação de gênero em documentos de identificação;
• Acomodações públicas;
• Educação;
• Assistência médica para transgêneros;
• Menos consentimento ao tratamento.

Dependendo de sua jurisdição local, pessoas queer e trans podem experimentar


vários graus de discriminação legal4. É nossa responsabilidade, como terapeutas,

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conhecer não apenas as leis em nossas localidades, mas também saber para onde
encaminhar as pessoas para obterem apoio legal e defesa. Também devemos ver além
de nossa prática e trabalhar para transformar a paisagem social e política.

Esta é uma questão ética. Se entendermos que os problemas estão localizados


no mundo social do discurso e que as narrativas pessoais das pessoas são
influenciadas por esse mundo, devemos estar atentos ao que acontece nesse nível.

Como vimos, tornar nossa prática queering envolve romper com as ideias
convencionais de profissionalismo e com os limites da prática. Dada a atual urgência
das situações de nossos pacientes, este não é o momento para ser limitado por
convenções. Precisamos trafegar por ideias perigosas.

Ideias perigosas. Estas são as pedras que pavimentam o caminho para a


Queertopia. Ideias perigosas são ao mesmo tempo mapa e bússola apontando para um
novo território queer ‒ e se tornando queer. Ideias perigosas são a essência da noção
de Mic de que as pessoas nas ruas de Minneapolis podem mudar as condições para as
pessoas trans na Carolina do Norte. Esse caminho de ideias perigosas nos leva para
longe da paisagem moldada e definida pelos discursos normativos predominantes que
discutimos neste livro, para o mundo da imaginação de Mic (e de tantos outros).

Espero que ao ler “Precisamos trafegar em ideias perigosas”, sua primeira


pergunta seja, “Perigosas para quem?”. A resposta é, “Perigosas para o status quo;
para os discursos e as instituições que são perigosos para as pessoas queer e trans; e
para quem se beneficia desses discursos.”

Imaginar além do que sabemos, questionar certezas tidas como verdadeiras e


esperar com ousadia exige que corramos riscos que nos tirem de nossa zona de
conforto ‒ e que podem exigir sacrifícios pessoais. Planeje fazer isso!

Precisamos de ideias perigosas para criar e sustentar a Queertopia. A terapia


narrativa baseada em teorias queer é uma dessas ideias perigosas. Ela oferece a
possibilidade de mudança transformacional. Ela abre uma trilha salpicada de
esperança audaciosa em direção a histórias recém-imaginadas ‒ bem como histórias
queer recuperadas. Essas histórias não se centram no futuro indivídual, mas no “futuro
coletivo” (Tilsen & Nylund, 2010).

Você pode não correr riscos, ou pode trabalhar para tornar o mundo seguro. Que
caminho você vai tomar?

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Notas

1 Mic é a pessoa jovem não binária de 13 anos que você conheceu na Introdução.

2 “Conta do banheiro” (bathroom bill) é o termo comumente usado para se referir à legislação sobre o
acesso a banheiros públicos com base no gênero. Alguns estados dos EUA propuseram projetos de
lei para proibir as pessoas trans de usar o banheiro que esteja de acordo com sua identidade de
gênero.

3 Duncan-Andrade (2009) articula três tipos de esperança falsa: esperança piegas, esperança mítica e
esperança adiada. Como alternativa, ele oferece três tipos de esperança crítica: esperança material,
esperança Socrática e esperança audaciosa.

4 Para obter uma lista abrangente e atualizada de leis por estado, acesse os mapas de questões da
Campanha de Direitos Humanos: https://www.hrc.org/ state-maps.

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