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BEM-VINDE À QUEERTOPIA
Mic1 arrastou os pés enquanto fazia seu caminho da sala de espera para meu
escritório, de cabeça baixa, concentrando-se no telefone. Tara e Jackson, a mãe e o
pai de Mic, seguiam atrás.
Depois que todos se sentaram e Mic guardou seu telefone, Mic suspirou e me
disse: "Lembra quando conversamos sobre o que aconteceria se o unicórnio de gênero
viesse e fizesse todas as regras estúpidas e outras coisas de gênero irem embora?"
“Sim, me lembro.”, eu disse. "O que você está pensando sobre isso?"
“Bem, eu só estava pensando que seria legal se isso acontecesse. Quero dizer, a
mudança de gênero. Não o unicórnio, necessariamente.”
Eu perguntei: “Pensar nas pessoas que são contra você fez com que você se
esquecesse das pessoas que são a seu favor?”
"Na verdade não. Quer dizer, eu sei que as pessoas me apoiam... Estou
pensando em outras crianças trans ou não binárias que não têm ninguém que as apoie.
Isso me deixa muito triste. E eu também estou brave, porque não está certo.”
Eu também fui tocada. “Mic, isso é uma coisa nova para você, pensar em outras
crianças trans e não binárias, ou você tem pensado nelas há algum tempo?”
“Meio que ambos, mas principalmente é algo novo. Eu sinto que, desde que eu
assumi e sou capaz de ser eu mesme, e já que as pessoas me apoiam, eu deveria
ajudar os outros.” Agora as lágrimas brotaram dos olhos de Mic também.
“Então, você está dizendo que, agora que se sente apoiade, quer ajudar outras
crianças trans a se sentirem apoiadas também?”
Mic acenou com a cabeça enquanto as lágrimas rolavam por seu rosto.
“Você tem alguma ideia sobre o que deseja fazer para ajudar?”
“Essa é a coisa... Parece impossível, e é por isso que estou deprimide com isso.
Quero defender os outros, mas...” As palavras de Mic se transformaram em uma
nuvem de incerteza.
Mic riu, enxugou o rosto e disse: “Hum... você já conhece meus pais?”
Todos nós rimos. Tara era uma organizadora trabalhista e Jackson era um
defensor público. Mic me contou em conversas anteriores histórias sobre “como eles
nunca param de falar sobre ter que pensar além de nós mesmos e falar abertamente
se algo não estiver certo”.
“Sabe, Mic”, disse Tara, “pode ser verdade que papai e eu ensinamos você a
defender os outros, mas você tem um grande coração. Essa é a sua maneira de sentir
muito pelos outros.” Jackson acenou com a cabeça em concordância enquanto dava
um aperto em Mic.
Mic acenou com a cabeça. “Eu sei, mas de que serve um grande coração se eu
não posso fazer nada além de gritar com es valentães? Isso não muda nada.” Em
seguida, elu voltou a sua história da discussão em classe. Mic disse que falaram em
resposta ao comentário de que o presidente Trump não acha que as pessoas trans
estão OK. “Eu disse a eles: ‘Trump perdeu o voto popular, então a maioria das pessoas
não acha que ele é OK’!” Mic disse que foi bom falar abertamente na hora. Mas elu se
perguntou que benefício real isso fez. Elu disse que não tinha nenhuma ideia sobre o
que mais fazer a respeito dos problemas das crianças trans.
Perguntei a Mic se poderia fazer algumas perguntas aos pais dele. Elu concordou.
“Bem, você sabe,” disse Tara, “nós dissemos a Mic que há um evento neste fim
de semana para mostrar apoio às pessoas trans. Jackson e eu estamos planejando
ir...”
Mic interrompeu: “Eu sei, eu sei... mas o que isso vai MUDAR?”
Eu perguntei: “Você está falando do evento que vai acontecer nesse domingo na
Lake Street? Sim, estou indo com uma turma de pessoas.”
“Sim, está na minha agenda. E eu tenho um grupo de amigos com quem eu vou.
Mic, você tem alguma preocupação com a ação, como razões para não ser uma boa
ideia?”
“Não sei... acho que realmente não tenho uma razão muito boa para não...”
Percebi que Mic estava pensando.
Jackson disse a Mic: “Eu sei que você está se sentindo muito brave e é como se
ficar em pé na rua com placas em Minneapolis não ajudasse crianças trans na Carolina
do Norte a ir ao banheiro... Acho que você não quer fazer qualquer coisa que seja
apenas um símbolo, algo sem sentido.” Mic acenou com a cabeça.
“Sua mãe e eu respeitamos isso”, disse Jackson. “Se não tem significado para
você, tudo bem; nós nunca faríamos você ir. Foi apenas uma ideia, alguma coisa que
está acontecendo da qual podemos participar.”
Mic olhou para mim e perguntou: “Por que é que você vai?”
A ação que iria acontecer envolveria pessoas perfiladas nas calçadas ao longo de
ambos os lados de uma das ruas mais movimentadas e longas de Minneapolis. A
maioria de nós carregaria cartazes de apoio a pessoas trans. Acenaríamos para os
carros e tentaríamos fazer as pessoas acenarem de volta e buzinarem em
solidariedade (ou pelo menos em aprovação). Eu disse a Mic que essa seria uma forma
de as pessoas trans e simpatizantes ocuparem espaço, exercitarem sua voz coletiva e
de não permitir que os “inimigos” as silenciem ou as obriguem a ficar escondidas em
casa. Então eu pedi a elu que imaginasse pessoas amontoadas nas calçadas ao longo
de oito quilômetros de uma rua movimentada, segurando cartazes com mensagens de
apoio, muitas delas usando roupas com as cores do arco-íris, e criando uma vibração
homo e transsexual muito bem-vinda.
Mic riu. “Você faz parecer que o unicórnio de gênero estará lá, e que tudo será
perfeito.”
“Ha!”, eu disse. “Então, quando você pensa sobre isso, você fica pensando sobre
a queertopia que você imaginou que o unicórnio traria?”
"Sim! Tipo, todo mundo pode ser quem é sem ser julgado. E então, quando outras
pessoas vissem isso, mesmo nas redes sociais, ou uma criança trans na Carolina do
Norte, ou em qualquer outro lugar, visse as fotos, elas poderiam não se sentir tão
sozinhas, sabendo que tem gente as defendendo em Minneapolis. Então, talvez elas
façam algo e outras pessoas vejam isso, e façam algo, e isso continua...”
Antes que eu pudesse responder, Mic se sentou erete na beira do sofá. “Ei!”, elu
exclamou, “Acho que NÓS somos o unicórnio!”
A AUDÁCIA DA ESTRANHEZA
novas respostas que, no entanto, mantêm (ou permitem) o mesmo sistema ao qual
respondemos.
• Em vez de perguntar Como apoiamos os pais de jovens queer quando suas crianças
se assumem, podemos indagar Como criar um mundo onde os pais entendam que
todas as orientações sexuais e identidades de gênero são dimensões emergentes e
fluidas das experiências das pessoas, eliminando assim a necessidade de “se
assumir”.
Reconectar-se ao coletivo exige que apaguemos muitas das linhas que traçamos
entre nós e os outros. Duncan-Andrade insiste que não existe o que Delpit (1995)
chama de “as crianças de outras pessoas”. Ao trabalhar com nosses pacientes de
terapia, podemos apagar muitas dessas linhas tornando queer (queering) as noções
convencionais de terapia, de terapeutas e de seus relacionamentos com os pacientes.
Acrescento que esperança, como queer, é melhor como verbo. Esperar leva a
fazer e fazer inspira e sustenta a esperança. Esperar é uma práxis, uma ação concreta.
Pense em Mic: elu estava se sentindo um tanto sem esperança, até que viu a
audácia (e queerness) da ação comunitária planejada. Assim que Mic viu a ação como
significativa, sua esperança foi revigorada; e, quando Mic se reconectou com a
esperança, elu se sentiu inspirade a agir. Fazendo e esperando, esperando e
fazendo…
Mic entrou na práxis de esperança (esperar) porque: (1) elu viu uma conexão entre elu
e jovens trans da Carolina do Norte (conexão com o coletivo); (2) elu ecoou a
queerness audaciosa e a audácia queer da resposta da comunidade, e (3) elu viu além
do que era para o que era possível.
Isso pode parecer uma esperança de utopia (ou queertopia, como Mic e eu a
chamamos em nossas conversas). No entanto, queerness é mais do que apenas
audaciosa. Munoz (2009) afirma que queerness é utópica e que “há algo de estranho
no utópico” (p. 170). Invocando a poética social da possibilidade, Munoz nos diz que
“queerness é aquela coisa que nos faz sentir que este mundo não é suficiente, que na
verdade algo está faltando” (p. 1).
Não é isso que a esperança é ‒ imaginar e buscar algo diferente do que nos é
oferecido? Para pessoas queer e trans ‒ bem como para todas as pessoas
marginalizadas e oprimidas ‒ imaginar, esperar e trabalhar por “algo que falta” muitas
vezes é literalmente uma questão de vida ou morte.
Esta não é uma proposição ou/ou. Não estou sugerindo que não trabalhemos
mais com os pais quando suas crianças nascerem, ou que paremos de preparar mais
terapeutas para apoiar as pessoas trans na busca por cuidados de gênero. Enquanto
essas forem necessidades, devemos atendê-las. Eu estou, entretanto, defendendo que
nos recusemos a ficar satisfeitos apenas em atender essas necessidades, e que
façamos perguntas diferentes a fim de tornar possíveis caminhos novos e únicos.
Falar sobre a resistência queer exige que tenhamos uma visão clara de que
estamos construindo histórias de resistência. Isso envolve ter consciência do clima
político local, estadual e federal, e das leis que impactam as pessoas queer e trans em
diversas áreas, incluindo:
• Emprego;
• Bem-estar infantil;
• Habitação;
• Adoção;
• Terapia de conversão;
• Bullying escolar;
• Atletas estudantes trans;
• Crimes de ódio;
• Marcação de gênero em documentos de identificação;
• Acomodações públicas;
• Educação;
• Assistência médica para transgêneros;
• Menos consentimento ao tratamento.
conhecer não apenas as leis em nossas localidades, mas também saber para onde
encaminhar as pessoas para obterem apoio legal e defesa. Também devemos ver além
de nossa prática e trabalhar para transformar a paisagem social e política.
Como vimos, tornar nossa prática queering envolve romper com as ideias
convencionais de profissionalismo e com os limites da prática. Dada a atual urgência
das situações de nossos pacientes, este não é o momento para ser limitado por
convenções. Precisamos trafegar por ideias perigosas.
Você pode não correr riscos, ou pode trabalhar para tornar o mundo seguro. Que
caminho você vai tomar?
Notas
1 Mic é a pessoa jovem não binária de 13 anos que você conheceu na Introdução.
2 “Conta do banheiro” (bathroom bill) é o termo comumente usado para se referir à legislação sobre o
acesso a banheiros públicos com base no gênero. Alguns estados dos EUA propuseram projetos de
lei para proibir as pessoas trans de usar o banheiro que esteja de acordo com sua identidade de
gênero.
3 Duncan-Andrade (2009) articula três tipos de esperança falsa: esperança piegas, esperança mítica e
esperança adiada. Como alternativa, ele oferece três tipos de esperança crítica: esperança material,
esperança Socrática e esperança audaciosa.
4 Para obter uma lista abrangente e atualizada de leis por estado, acesse os mapas de questões da
Campanha de Direitos Humanos: https://www.hrc.org/ state-maps.