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OPUS – FILOSOFIA, ARTE E PSICOLOGIA

As raízes míticas da
família e cultura
Jorge Luiz de Oliveira Braga
Teogonia, Cultura e História – O surgimento do deuses – Pág. 2

As raízes míticas da família e cultura


Um dos mais criativos discípulos de Jung, Erich Neumann, deu origem, a
partir de três de suas obras dedicadas ao estudo do desenvolvimento da
consciência humana, a uma maneira singular de integrar a filogênese e a
ontogênese humana que são os livros: “História da origem da consciência”1,
onde é descrito a evolução criativa da consciência humana e sua auto-liberação
das garras do inconsciente partindo das culturas e mitologia do Egito, Babilônia,
Índia e da Grécia Antiga; “A Grande Mãe – Um estudo fenomenológico da
constituição feminina do inconsciente”2 onde é descrito com abundancia de
imagens e argumentos a idéia da natureza feminina do inconsciente valendo-se
de uma verdadeira galeria de história de Arte Antiga e explorando a níveis
inimagináveis o arquétipo da Grande Mãe e as dimensões matriarcais da psique
e, por último, o livro “A Criança- Estrutura e dinâmica da personalidade em
desenvolvimento desde a sua formação”3 obra, que apesar de inacabada, dá uma
forma absolutamente própria ao desenvolvimento da consciência humana a e às
bases matriarcais e patriarcais que já teriam sido apresentados por J. J.
Bachofen4 desde 1861 em sua magna obra e, de certo modo, inapreensíveis aos
olhos do pesquisador comum.
À primeira vista essa singular visão não é compartilhada pelo senso comum
que critica severamente suas premissas na medida em que entendem que o
desenvolvimento da consciência com base nos arquétipos não pode e nem deve
ser ligados à dimensão temporal. Categorizam seu ponto de vista como que uma
tentativa de olhar a dimensão mítica a partir de uma visão estruturalista,
desenvolvimentista e histórica.
Provavelmente a incompreensão e a pouca erudição de alguns possibilitem
a precipitação e uma breve confusão na maneira de olhar para essas questões.
No entanto, o brilhantismo da obra e das idéias não deixa espaço para dúvidas e
possibilita uma viagem ímpar na compreensão das raízes míticas de todo o
comportamento humano significativo.
Apresentamos abaixo um quadro sinóptico das disposições humanas que
entendemos serem as responsáveis pelo comportamento humano. Isso quer dizer
que cada um de nós carrega consigo determinantes instintivos, arquetípicos, ou,
como apresentados em uma outra linguagem “drivers”, que de alguma forma
influem, modelam, estruturam, dão sentido e significado a grande parte dos
comportamentos humanos significativos. O processo de individuação, processo

1
NEUMANN, Erich. História da Origem da Consciência. São Paulo:Cultrix,1990.
2
NEUMANN, Erich. A grande mãe – Um estudo fenomenológico da constituição feminina do inconsciente.São
Paulo:Cultrix, 1995
3
NEUMANN, Erich. A Criança Estrutura e dinâmica da personalidade em desenvolvimento desde a sua
formação.São Paulo:Cultrix, 1991
4
BACHOFEN, J. J. Mith, religion and mother right. New York: Princeton, 1991.

Mito e Mitologia – Jorge Luiz de O. Braga – V 3.1


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de vida caracterizado pela busca do si-mesmo, parece incluir severos


determinantes que sugerem algumas obrigações humanas bem definidas que são:
• Preservar e manter a vida, (o instinto de preservação da vida da espécie)
• Criar, transformar e manter a cultura (instinto gregário do homem)
• Buscar a complementação do Eu no encontro com o outro, a alteridade
• Buscar a complementação de si-mesmo na busca de sua própria
individualidade, singularidade e transcendência.
Apesar da consciência de que a origem da vida é o próprio Caos primordial,
o núcleo das forças em potencial criativo sem forma, vamos nos apoiar na idéia
de que a origem da vida se dá a partir da natureza feminina, da terra, de Geia, o
elemento primordial oriundo do Caos que, sozinha, gera todos os seres e,
alimentando-os, depois recebe, em si, seu germe fecundado. Assim sendo,
podemos estudar a fenomenologia mítica que vai desde Geia, como primeiro
elemento oriundo do Caos primordial até a instauração do mundo dos deuses e
dos homens com a entronação de Zeus e o afastamento de Crono.
O que poderemos observar é que o drama iniciático comum desde “illo
tempore” é o temor do pai como relação ao filho e a conseqüente tentativa de
devoração de um pelo outro. A esse drama, Puer x Senex é que queremos
destacar como o principal elemento responsável pela renovação do Espírito
Humano, do ", o responsável pela formação e manutenção da cultura.
Do feminino da Grande Mãe, berço dos deuses e dos homens, vemos nascer
o caminho da humanidade, do Caos ao Kosmos, um caminho em direção à
totalidade que se desenvolve pela gradativa encarnação do homem em seu
próprio mundo cada vez mais se sentindo responsável pela ecologia e eco-
espiritualidade que pode integrar as diferenças culturais, familiares e
individuais.

Do feminino à totalidade

Preservar a
Natureza Humana Matriarcal
Vida
Criar Cultura Espírito Humano Patriarcal
Encontrar o Busca da
outro complementação
Alteridade
Encontrar o
Si-mesmo
Busca da Alma Transcendência

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Processo de individuação

Arquétipos e Inconsciente
Humanidade
Coletivo
Padrões culturais ligados e
Cultura
sujeitos ao Zeitgeist
Padrões familiares sujeitos à
Família
história do Estado e Nação
História pessoal e
Indivíduo
singularidade pessoal

As Gerações Divinas – de Caos a Crono


A abordagem escolhida é baseada nas descrições apresentadas por Hesíodo
em sua inspirada Teogonia de onde destacaremos os pontos relevantes para o
nosso estudo que, entre outros, consiste na compreensão da Mitologia como uma
rede complexa de afinidades e relacionamentos que serve como base viva das
expressões mais íntimas do espírito humano.
ΘΕΟΓΟΝΙΑ — a Teogonia, "o nascimento dos deuses", se compõe de
1022 versos hexâmetros e detalha a origem e genealogia dos deuses gregos.
Tradicionalmente atribuído a Hesíodo, a data de composição é tão imprecisa
quanto a data em que o poeta deve ter vivido. A idéia em si não é original, pois
já havia sido desenvolvida pelos egípcios (séc. -XXIV), pelos babilônios (-
2000/-1500) e pelos hititas (-1400/-1200) muitos anos antes. Hesíodo, no
entanto, foi o primeiro a sistematizar os antigos mitos da criação e a organizar os
mitos gregos numa seqüência lógica.

O Argumento
Não há nenhuma intenção dramática ou enredo, e sim um plano expositivo.
Hesíodo descreve a criação do mundo e a seguir relaciona, cronologicamente,
cada uma das gerações divinas. O argumento gira em torno de três temas
básicos:
1. a criação do mundo;
2. genealogia das gerações divinas;
3. a ascensão de Zeus ao poder.

Segundo a cronologia hesiódica, os deuses olímpicos seriam os da 3ª


geração, e eram governados por Zeus, cuja história se desenvolve em boa parte
do poema. Hesíodo, no entanto, vai além da simples enumeração e habilmente
entremeia a árida sucessão de deuses e deusas com raros, curtos mas
elucidativos trechos dos antigos mitos.

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Resumo do poema
O poema tem 1022 versos e ocupa 39 páginas da edição de Evelyn-White
(1920), na qual se baseia este resumo. O narrador é o próprio poeta.
Após uma invocação às Musas, Hesíodo relata como as deusas inspiraram
seu canto ao cuidar de ovelhas perto do Monte Hélicon (1-35); a origem das
Musas, filhas de Zeus, é também contada (36-115).
Segue-se a origem dos primeiros deuses, que personificavam os elementos
primordiais do Universo (116-153): Caos, o vazio primitivo; Gaia, a terra;
Tártaros, a escuridão primeva; Eros, a atração amorosa. Os descendentes
imediatos são também relacionados: Hemêra, o dia; Nix, a noite; Urano, o céu;
Ponto, a água primordial. Os mais notáveis descendentes de Uranos e Gaia
foram os titãs, como Crono, Oceano, a água doce, Jápetos e o gigantesco Ceos;
as titânides, como Têmis, a lei, e Mnemósine, a memória; os ciclopes, que
tinham um único olho; e os hecatônquiros, gigantes com cem braços e cinqüenta
cabeças.
Depois, o poeta descreve como Crono assumiu o poder (154-200) e
inadvertidamente deu origem a Afrodite, deusa do amor sensual; relaciona os
descendentes de Nix, entre eles Tânato, a morte, Hipno, o sono, e Oneiro, o
sonho (211-232); os descendentes de Ponto (233-336), entre eles Nereu, o mais
antigo deus do mar e pai das nereidas e Fórcis, progenitor de monstros como as
Górgonas, Equidna, com tronco de mulher e cauda de serpente, e a Esfinge; os
descendentes de Oceanos (337-403), entre eles os rios e fontes, as ninfas da terra
firme, os ventos, Métis, a sabedoria, e Hélio, o sol; os descendentes de Ceos
(404-452), especialmente Hécate, a dádiva.
A história de Zeus, filho de Crono, e como conseguiu destronar o pai é
contada nos versos 453-506. A lenda de Prometeu, filho de Jápeto, e a criação
da primeira mulher são relatadas nos versos 507-616. Nos versos 617-721 é
descrita a titanomaquia, luta entre Zeus e os titãs pelo domínio do mundo.
Auxiliado entre outros por seus irmãos Hades e Posídon, pelos ciclopes e pelos
hecatônquiros, Zeus vence os titãs e prende-os no Tártaros, descrito juntamente
com o mundo subterrâneo nos versos 722-819. Vencidos os titãs, Zeus teve
ainda de enfrentar e vencer o monstruoso Tífon, filho de Gaia e Tártaro (820-
880), mas logo depois consegue se tornar o soberano supremo dos deuses.
Algumas de suas aventuras com deusas e mortais são descritas nos versos 881-
964, e notável é a lenda da filha de Zeus e Métis, Atena, que ao nascer saiu da
cabeça de Zeus. Nos versos 965-1020 são descritos os amores entre deusas e
mortais. Os dois últimos versos, 1021-1022, contêm uma nova invocação às
Musas e ligam a Teogonia a um poema autônomo perdido, o Catálogo das
Mulheres, do qual restam apenas alguns fragmentos.

Fontes
Numerosos manuscritos completos e diversos fragmentos significantes de
papiros chegaram até nós. Os mais antigos manuscritos são o Rylands 54, de

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Manchester (séc. -I/I), o Laurentianus xxxii 16, da Biblioteca Laurenciana de


Florença (séc. XIII); o Vaticanus 915, da Biblioteca do Vaticano (séc. XIV); e o
Parisinus 2883, da Biblioteca Nacional de Paris (séc. XV).

Edições
A edição princeps da Teogonia é a aldina, de 1495. As principais edicões
modernas são as de Gaisford (1814/1820), Koechly e Kinkel (1870), a de Rzach
(1902), a de Evelyn-White (1914) e a de Mazon (1928). A mais moderna e a
mais utilizada atualmente é a de Solmsen (1966). Aqui, foi utilizada a edição
revisada de Evelyn-White (o.c.).
A primeira tradução completa da Teogonia para o português é a de Torrano
(1981), recentemente reeditada (Iluminuras, 1991), seguida posteriormente pela
de Jabouille (1999).

De Caos a Crono

Se vamos examinar a genealogia das gerações divinas cabe destacar a


presença de Eros, a força universal presente já desde os primieros movimentos
da criação. Eros, força universal, energia, um demônio, é gerado ao mesmo
tempo em que Geia e Tártaro, segundo conta Hesíodo. E é a partir desse
nascimento que se iniciam os movimentos de geração dos demais elementos. De
CAOS surgem então : GÉIA, ÉREBO, NIX e TÁRTARO.

CAOS
____________________|_____________________
GÉIA ÉREBO EROS NIX TÁRTARO

Érebo: as trevas infernais


Nix: A deusa das trevas da noite
Tártaro: Local abaixo do Hades
Eros : Força Universal, energia
Geia : Magna Matter

GÉIA
_________________________
URANO PONTOS MONTES

URANO : A personificação do céu, elemento fecundador de Geia que a cobria


sendo concebida como esférica, porém achatada. A presença de URANO
(Céu) define e delimita o espaço já que ÉTER e AR se interpõem entre
URANO e GÉIA. Abaixo de GÈIA está HADES e TÁRTARO
configurando assim o palco para o desenvolvimento de toda a tragédia.

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PONTOS : O mar como sinal da vida e fonte inesgotável de fertilidade e o local


dos nascimentos, transformações e renascimentos.

MONTES : O lugar de encontro entre o céu e a terra e das iniciações, teofanias


e hierofanias. Residência dos deuses e o local do encontro com o sagrado.

GÉIA ~ URANO
_______________________|_____________________
Titãs Titânidas Ciclopes Hecatonquiros

GÉIA ~ URANO realizam o primeiro hierosgasmos, o casamento sagrado que


transmite e perpetua a vida. O casamento instituído e vivido como culto
parece corresponder às projeções das ações vividas miticamente pelos
deuses. Da união de GÉIA e ÚRANO surgem seus filhos que são, seguindo
a vontade de ÚRANO, devolvidos ao ventre materno tendo em vista que o
pai temia que os filhos o destronasse. Após copular incessantemente com
GÉIA, URANO tem seus testículos cortados pelo filho caçula, CRONO,
que a mando da mãe castra e mata o pai com uma foice que lhe é dada pela
própria mãe exausta da interminável procriação. Do sangue de ÚRANO que
cai em GÉIA surgem as ERÍNEAS, GIGANTES e NINFAS MELÍADES e
do sangue que cai no mar e que se ajunta com as espumas nasce
AFRODITE.

CRONO ~ RÉIA
__________________________|_____________________
HÉSTIA HERA DEMÉTER HADES POSÍDON ZEUS

CRONO ~ RÉIA realizam mais um hierosgasmos, o casamento sagrado que


transmite e perpetua a vida. CRONO, um Titã se casa com sua irmã RÉIA,
uma titânida, dando continuidade à geração da vida. Da união de CRONO e
RÉIA surgem seis divindades, (numero que lembra os seis titãs e titânidas)
sendo três desses masculinos: ZEUS, HADES E POSÍDON (divindades
que presidem os espaços externos, infernos, mar e a terra) e três femininos :
HESTIA, HERA e DEMETER (que zelam pelo fogo interior, pela
instituição do casamento como esposa e pela fertilidade da terra).
CRONO, o também caçula, assim que assumiu o trono e temendo que os
filhos o destronassem, passa a engolir os filhos assim que nascem. Sua mãe
RÈIA refugiou-se na ilha de Creta e secretamente deu à luz o futuro pai dos
deuses e dos homens que o entrega aos Curetes e as Ninfas. Zeus, passa a
ser alimentado pela cabra Amaltéia e RÈIA entrega uma pedra ao marido
que a engole pensando ter feito com o menino recém-nascido.

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Depois de atingir a maturidade Zeus retorna para a luta final contra o pai e
obtém de PRUDÊNCIA um remédio que faz com que CRONO vomite
todos os seus filhos. ZEUS vence então todas as lutas e liberta os
prisioneiros da tirania de CRONO assumindo o lugar de PAI de todos os
homens e dos deuses.

A entronação de Zeus
A entronação de ZEUS como o senhor dos deuses e dos homens aliada à
vitória sobre a tirania de CRONO encerra o triunfo da ordenação mandálica do
kosmo sobre o caos criando as condições e possibilidade de estabelecimento de
uma nova ordem e um novo tempo. ZEUS inaugura um novo eon5 e constitui,
junto a POSIDON e HADES, a trindade divina que regerá as relações entre os
deuses e os homens.
Os conflitos Pai x Filho, ou seja Puer x Senex foram, na verdade,
representações simbólicas da dinâmica de aprimoramento do espírito humano,
ou seja, iniciações que tiveram por objetivo a renovação da vida e atualização do
Zeitgeist de uma época. A sutileza fundamental foi a participação do elemento
matriarcal representado por GÉIA e RÉIA que, a seu modo, participaram de
forma indireta em todas as ações realizadas pelos filhos caçulas, uma autêntica
imagem do puer. Ao contrário do mito de Édipo, onde a mãe Jocasta participa
passivamente do assassinato do filho permitindo a Laio que extermine o filho
recém-nascido, as mães desses heróis lhes forneceu as condições de
possibilidade de viver o rito iniciático da renovação do poder patriarcal.
ZEUS desposou METIS (Sabedoria, Prudência), mas quando estava grávida
foi avisado que essa teria uma filha e depois um filho que o destronaria como
fez com CRONO. O deus a engoliu a conselho de GEIA e de onde nasceu
ATENÁ das meninges do deus. A incorporação do elemento feminino faz de
ZEUS um elemento dotado de uma múltipla natureza que parece sugerir as
condições de alteridade.
A entronação de ZEUS cria não só os espaços definidos pela trindade como
o livre trânsito entre homens e deuses o que nos sugere um livre transito entre as
dimensões arquetípicas e culturais. Podemos até concluir que o caminho
arquetípico rumo à consciência, objetivamente, tem sua base na dimensão
matriarcal para, a partir do espírito humano, criar cultura e instituir-se como uma
criação essencialmente humana. Assim sendo mesmo sendo o mundo fenomenal
uma sombra ou réplica do mundo dos deuses será através da instituição que o
homem poderá criar seus mitos, ritos e símbolos culturais para poder conviver o
sagrado e o profano.

5
Eon significa época, era ou mesmo dinastia.

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