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In the Counterflow of Water Resources: Water and Environment in


Contemporary Brazil [Na Contracorrente dos Recursos Hidricos: Água e
Ambiente no Brasil Contemporâneo]

Book · January 2013

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1 author:

Antonio Augusto Rossotto Ioris


Cardiff University
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Forest dependent poor at the agricultural frontier: the complexity of poverty and the promise of sustainable forest ecosystems in Amazonia View project

The Value Base of Water Governance in the Upper Paraguay River Basin, Mato Grosso, Brazil. View project

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“Água cantante soluçante esse gemente
marulho triste, quantas tristes cismas traz...
E fica incerta, ao ouvir-te a voz, a dor da gente,
se vais cantando por ansiar o que há na frente,
ou soluçando pelo que deixaste atrás...

Água cantante água estuante é singular


a semelhança em que te iguala à minha sorte:
vais para a frente e nunca mais hás de voltar
vens da montanha e vais correndo para o mar
venho da vida e vou correndo para a morte.

Água cantante, ai, como tu esta alma embrenho


nas incertezas de caminhos que não sei...
E na incostância em que me agito só obtenho
esta ânsia imensa de deixar o que já tenho
depois a dor de não ter mais o que deixei!”

Menotti del Picchia, Juca Mulato (1917)


Prefácio
Este livro é o resultado de um longo questionamento pessoal,
experiências com formulação de políticas públicas e pesquisas
acadêmicas relacionadas à regulação do uso e conservação de recursos
hídricos no Brasil. O tema principal é a implementação do novo marco
regulatório brasileiro a partir do começo da década de 1990, o qual seguiu
fielmente o modelo internacional de reformas institucionais influenciadas
por conceitos como governança, sustentabilidade e valor econômico dos
recursos hídricos. O autor teve a oportunidade única de presenciar de
perto os primeiros anos de vigência da Lei 9433/1997 através de seu
trabalho no Ministério do Meio Ambiente em Brasília e, posteriormente,
por meio de investigações realizadas em diversas bacias hidrográficas,
assim como seu envolvimento na orientação de alunos de pós-graduação.
Os capítulos que se seguem irão examinar, em especial, a
fundamentação conceitual da legislação brasileira contemporânea – tanto
federal, quanto estadual, assim como atividades no âmbito de bacias e
regiões hidrográficas – e as persistentes falhas das políticas públicas
decorrentes da nova lei. Apesar de mudanças de discurso e de um forte
apelo pelo engajamento da população, a água passou cada vez mais a ser
tratada como fator econômico – basta verificar que a mesma é
normalmente tratada recurso hídrico e menos como substância vital –,
submetido a uma velada e crescentemente privatização, afetada por
grandes obras de engenharia, pela descarga de poluentes e pela utilização
além dos limites ecológicos e hidrológicos de rios, aquíferos e
ecossistemas.
Nossa análise começa com o reconhecimento que a água,
essencial para a ecologia, economia e relações sociais, é também uma
substância fundamentalmente política. A dimensão política da água
emerge tanto em relação a grandes obras e programas de
desenvolvimento, quanto em eventos diários e domésticos. A água é
intrínseca e permanentemente política, objeto de disputas e acordos, fonte
de satisfação, mas também de sofrimentos (por exemplo, quando da
ocorrência de enchentes, secas e contaminações).
Dessa forma, para se entender os problemas e avanços em termos
de gestão de recursos hídricos, fazem-se necessários conceitos e
metodologias não somente de ecologia política, mas também de uma
hidrologia crítica, politizada e que não se limite ao positivismo da
manipulação fria e alienada de dados numéricos. O debate em torno dos
problemas de gestão tem ocupado um espaço cada vez maior no Brasil e
no mundo, mas muito mais é preciso para se compreender a totalidade
dos problemas e reagir de forma coordenada e efetiva.
Os capítulos deste livro servem como contribuição a esse
importante debate. Os mesmos foram inicialmente publicados e
divulgados nos seguintes periódicos e eventos científicos (notar que os
textos originais foram ligeiramente modificados e ajustados para a
presente publicação):
Capítulo 1 discute o panorama das reformas institucionais e a
afirmação cada vez mais direta do valor monetário e da comodificação da
água. O texto veio a público na Revista Terra Livre (Ioris, A.A.R. 2005.
Água, Cobrança e Commodity: A Geografia dos Recursos Hídricos no
Brasil. Terra Livre, 25, 121-137).
Capítulo 2 amplia o debate sobre o novo marco regulatório com
um estudo detalhado da implementação da legislação contemporânea na
Bacia do Paraíba do Sul, que representa a experiência mais sofisticada em
território brasileiro, mas nem por isso menos controvertida. (Ioris, A.A.R.
2008. Os Limites Políticos de uma Reforma Incompleta: A Implementação
da Lei dos Recursos Hídricos na Bacia do Paraíba do Sul. Revista Brasileira
de Estudos Urbanos e Regionais, 10(1), 61-85).
Capítulo 3 inclui uma discussão sobre as especificidades e
riquezas da Região Amazônica, tomando como base a importância central
da água para a vida e geografia. (Ioris, A.A.R. 2007. Amazônia, Água e
Vida. Proposta, 114, 16-24).
Capitulo quatro traz para o debate as importantes questões de
produção agrícola e geração de energia. A discussão se concentra na
busca de segurança alimentar e energética, que são temas tão politizados
como a gestão de recursos hídricos. (Ioris, A.A.R. 2011. Segurança
Alimentar e Segurança Energética: Algumas Questões de Ecologia
Política. Cadernos do Desenvolvimento, 6(8), 355-375.
Capítulo 5° oferece uma avaliação dos problemas de água na
Baixada Fluminense, uma área ironicamente com muitos rios e ricos
ecosistemas aquáticos. O texto é resultado de pesquisas conduzidas em
parceria com Maria Angélica M. Costa, professora da UFFRJ, então nossa
aluna de doutorado. (Costa, M.A.M. and Ioris, A.A.R. 2011. A Distância
entre Teoria e Prática: Barreiras para um Regime de Gestão de Águas
Participativo na Baixada Fluminense-RJ. XIV Encontro da Associação
Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional –
ANPUR. 23-27 maio, Rio de Janeiro).
Capítulo 6° retoma a discussão iniciado no primeiro capítulo
através de conceitos de economia política aplicados à gestão da água. O
texto foi originalmente incluído em um livro que se propôs a avaliar
questões setoriais da complexidade ambiental brasileira. (Ioris, A.A.R.
2010. Da Foz às Nascentes: Análise Histórica e Apropriação Econômica
dos Recursos Hídricos no Brasil. In: Capitalismo Globalizado e Recursos
Territoriais. Lamparina: Rio de Janeiro. pp. 211-255).
Capítulo 7 contém três artigos publicados na grande imprensa
durante o mesmo período de pesquisas acadêmicas relatadas nos outros
capítulos. A intenção foi levar a discussão para além da academia e
chamar o público em geral para o debate. A Quem Servirá a Transposição do
Rio São Francisco? Saiu no Correio Braziliense em 19 de fevereiro de 2000;
Água, Sede e Poder foi publicado no jornal Valor Econômico em 22 de
março de 2007; e Meio Ambiente: O Primo Pobre da Crise Econômica? foi
publicado no mesmo Valor Econômico em 16 de janeiro de 2009.
Finalmente, Capítulo 8 é uma reflexão mais pessoal sobre nossa
experiência como gerente de projetos no Ministério do Meio Ambiente,
divulgada em 2002 no II Simpósio de Recursos Hídricos do Centro-Oeste
organizado pela Associação Brasileira de Recursos Hídricos (Usuário ou
Cidadão? Reflexões Livres sobre a Experiência de Gestão de Recursos
Hídricos no Brasil Campo Grande, julho de 2002).
Esse livro é dedicado a todos que colaboraram para que o autor
aprendesse e refletisse sobre gestão de recursos hídricos no país, caros
colegas na academia, em órgãos governamentais e movimentos da
sociedade civil. Difícil nomeá-los a todos, mas fica aqui uma enorme
gratidão e uma convocação a levar adiante a análise crítica e buscarmos
juntos que a gestão de recursos hídricos seja mais responsável, justa e
consequente.

Edimburgo, Escócia, setembro de 2013.


Índice

Prefácio..................................................................................................................i

Capítulo 1 - Água, Cobrança e Commodity: A Geografia dos Recursos


Hídricos no Brasil................................................................................................1

Capítulo 2 - Os Limites Políticos de Uma Reforma Incompleta: A


Implementação da Lei dos Recursos Hídricos na Bacia do Paraíba do
Sul.........................................................................................................................21

Capítulo 3 - Amazônia, Água e Vida..............................................................55

Capítulo 4 - Segurança Alimentar e Segurança Energética: Algumas


Questões de Ecologia Política..........................................................................68

Capítulo 5 - A Distância entre Teoria e Prática: Barreiras para um Regime


de Gestão de Águas Participativo na Baixada Fluminense, Rio de
Janeiro..................................................................................................................86

Capítulo 6 - Da Foz às Nascentes: Análise Histórica e Apropriação


Econômica dos Recursos Hídricos no Brasil................................................110

Capítulo 7 - Levando o Debate para a Grande Mídia.................................143

Capítulo 8 - Usuário ou Cidadão? Reflexões Pessoais sobre a Experiência


de Gestão de Recursos Hídricos no Brasil....................................................155

Anexo - Resumos em Inglês [Abstracts in English]....................................173


1

Capítulo 1

Água, Cobrança e Commodity:


A Geografia dos Recursos Hídricos no Brasil.
Durante toda a história brasileira a atividade econômica levou a
progressivo estranhamento entre sociedade e meio ambiente, ao mesmo
tempo em que cristalizou uma situação de grave injustiça social. A
industrialização da economia foi responsável por consolidar um modelo
de produção que se beneficia da exploração dos recursos hídricos e da
exclusão social como ferramentas de acumulação de capital. Crescentes
níveis de escassez hídrica e desiguais oportunidades de acesso à água são
sintomas desse antagonismo entre sociedade e meio ambiente. Mudanças
institucionais recentes vêm promovendo uma nova epistemologia de
gestão de águas e enfatizando o espaço hidrológico como unidade de
intervenção. O principal instrumento de gestão passa a ser a cobrança
pelo uso da água, o que atende aos interesses de uma aliança estratégica
entre forças de mercado e ambientalistas conservadores. A cobrança tem
apenas reproduzido a mesma lógica anterior de mercantilização da água,
responsável pelas distorções socioambientais do processo de
desenvolvimento econômico. Passado e presente demonstram que os
problemas de recursos hídricos têm origem na contradição básica entre as
relações de produção capitalista e as condições naturais de produção.
Esse capítulo busca desvendar os problemas subjacentes da
gestão de recursos hídricos no Brasil à luz de um enfoque histórico-
geográfico. À primeira vista, pode parecer exagerada a afirmação de que
um país como o Brasil, com vastos rios e aquíferos, necessite reavaliar
suas práticas de uso e conservação da água. Não é demais lembrar que os
rios brasileiros correspondem a 12,54% da vazão hidrológica do Planeta
(WRI, 2003), o que poderia, em princípio, sugerir uma condição de
irrestrita abundância. Contudo, as próximas páginas irão demonstrar
como fatores político-econômicos têm sido responsáveis por crescentes
níveis de escassez hídrica e desiguais oportunidades de acesso à água
entre grupos sociais. Ao longo do Século XX, consolidou-se um modelo
de produção industrial que se beneficia da exploração dos recursos
hídricos e da exclusão social como ferramentas de acumulação de capital.
Isso faz com que os problemas de recursos hídricos se caracterizem
profunda e indissociavelmente como questões socioambientais, tendo
origem na contradição básica entre as relações de produção capitalista e
as condições naturais de produção.
O ponto de partida para se entender a problemática da água no
Brasil é precisamente a análise da produção e reprodução econômica
implantadas em uma situação de capitalismo industrial periférico e
2

submetidas a aceleradas taxas de urbanização. O controle dos recursos


hídricos foi e continua sendo um dos pilares da industrialização brasileira
na medida em que responde a monumentais demandas por água e
energia elétrica. A história registra o esforço épico empregado na
construção de grandes barragens e redes de distribuição, o qual envolveu
um exército de cientistas, engenheiros, burocratas e operários. Sob a
ideologia do ‘desenvolvimentismo’ (i.e. vencer rapidamente séculos de
atraso econômico sem modificar as bases de uma sociedade desigual),
financiamentos externos tiveram um papel importante para tornar o setor
de recursos hídricos em componente essencial da infraestrutura e, assim,
detentor de alto valor de mercado. Essa transformação da geografia da
água ocorreu na escala local das bacias hidrográficas, mas refletiu
influências nacionais e mundiais, como a transferência de tecnologias,
equipamentos e racionalidades de gestão.
O vetor determinante desse vigoroso processo de modificação do
ambiente aquático foi o tratamento dos recursos socionaturais como
mercadorias passíveis de apropriação privada. O controle da geografia da
água, sob a liderança de governos autoritários, foi altamente funcional
para a expansão econômica e, em última análise, para a acumulação de
capital. Por outro lado, a apropriação dos recursos hídricos
inexoravelmente levou a conflitos entre setores de usuários e unidades
espaciais, ao mesmo tempo em que negligenciou os impactos negativos
decorrentes, tais como destruição de habitats, interrupção do fluxo de
sedimentos, modificação do regime sazonal de vazões, expulsão de
populações tradicionais, etc.
A última década foi cenário de significativa expansão legal e
institucional em busca da atualização dos procedimentos de gestão de
recursos hídricos no Brasil. Enquanto no passado a ênfase recaía sobre a
expansão da infraestrutura hídrica, os atuais métodos de gestão, mais
uma vez provenientes dos países capitalistas centrais, exigem a
flexibilização da atuação do Estado, notadamente através de privatização
de empresas governamentais, terceirização de serviços públicos e adoção
de instrumentos econômicos de regulação ambiental.
Para facilitar a introdução das reformas, vem sendo extensamente
promovida uma nova ‘epistemologia dos recursos hídricos’, através da
reformulação da linguagem de gestão e da redefinição dos espaços de
representação. Um dos princípios desta nova epistemologia é o
reconhecimento do ‘valor econômico’ da água, apresentado como
benéfico a toda a sociedade. Uma consequência fundamental da nova
epistemologia é a mistificação do progressivo distanciamento entre o
discurso formal do novo marco regulatório (‘valorizar e conservar a
água’) e seus reais beneficiários (‘permitir a acumulação privada do valor
econômico da água’).
3

Apesar de intensa mobilização dos atores envolvidos, o sistema


oficial de gestão ambiental tem produzido respostas incapazes de atender
à complexidade socionatural das questões da água em função de uma
subordinação explícita a prioridades econômicas e exigências
tecnocráticas. Isto sugere que a racionalidade subjacente do século
passado vem sendo agora reproduzida na experiência presente, não
obstante a tentativa de articular uma epistemologia supostamente
inovadora. Há, assim, uma velada dissimulação daquilo que é
aparentemente novo, mas genuinamente velho na gestão brasileira das
águas, o que demonstra como os problemas socioambientais estão
enraizados no sistema político e econômico dominante. Alternativas
efetivas para a superação de tais problemas requerem mudanças
estruturais nos padrões de produção e consumo, as quais precisam estar
alinhadas com uma profunda reconfiguração do sistema político
representativo, do papel do Estado e da divisão internacional do trabalho.

A Dialética Socioambiental das Águas

Antes de analisar o caso brasileiro, é importante esclarecer as


bases teóricas da abordagem aqui proposta. A geografia da água se baseia
no reconhecimento de que há uma permanente e dialética interação entre
a atividade humana e meio ambiente. A água é essencial a incontáveis
processos naturais e, ao mesmo tempo, é parte integral das relações
sociais. Não é possível dissociar a circulação das águas da interferência
humana, nem ignorar as circunstâncias hidrológicas de comunidades e
civilizações. Há, portanto, uma relação de interdependência entre
sociedade e recursos hídricos, criando um ciclo que, ao invés de ser
puramente hidrológico, é fundamentalmente ‘hidrossocial’.
Conforme Swyngedouw (2004), natureza e sociedade se
transformam em uma nova categoria socionatural que é o resultado de
transformações em configurações preexistentes que são em si mesmas
naturais e sociais. Desse modo, o mundo descreve um processo de
metabolismo perpétuo no qual processos sociais e naturais se combinam
na produção de socionatureza [socionature], o qual nunca termina, mas é
altamente politizado, contestado e contestável. A própria paisagem da
água [water landscape ou waterscape] demonstra esse caráter dialético entre
o social e o natural, uma vez que o espaço hidrográfico é produto da
circulação e manipulação de água pela socionatureza. A gestão dos
recursos hídricos é um processo de intervenção e redirecionamento dessa
dialética entre sociedade e natureza que envolve a transformação do ciclo
‘hidrossocial’ para a satisfação de demandas humanas e preservação
ambiental.
Ainda que presente em outros modos de produção, esse
estranhamento entre sociedade e natureza passou a ocorrer em escala
4

global com a expansão do capitalismo industrial e imposição de novos


padrões de produção e consumo, o que é reflexo dos preceitos iluministas
de emancipação humana e autorrealização, que fundaram o argumento
filosófico para o avanço do capitalismo (Harvey, 1996). Problemas
advindos da gestão, tais como poluição e escassez de água, demonstram
natureza e sociedade como externas uma à outra, ou seja, como se a
relação socionatural estivesse ocorrendo em dois campos separados. A
atividade capitalista impõe que, ao invés de manter condições de
sustentação social e biológica, as potencialidades socionaturais passem a
servir de substrato para a acumulação de capital e alienação entre
sociedade e natureza, fazendo com que as interações prévias (pré-
capitalistas) entre sociedade e ambiente passem a ser consideradas como
um obstáculo ao desenvolvimento, uma vez que ‘não exploram
devidamente’ o potencial econômico, por exemplo, de rios, aquíferos e
águas costeiras.
Evidentemente que os problemas ambientais são sempre
determinados por situações materiais específicas e pelo contexto
sociocultural local. Contudo, as questões ambientais do mundo moderno
têm origem na contradição básica entre as relações de produção e as
condições naturais de produção, dado que o sistema capitalista demanda
recursos naturais além dos limites sustentáveis para produzir
mercadorias dissociadas de valor de uso e comercializadas com o único
propósito de gerar lucro (O’Connor, 1998). Nesse sentido, conforme
descrito por Marx (1976), o mecanismo fundamental para o avanço da
atividade capitalista é a comodificação [commodification] de recursos e
processos, que passam a ser tratados como mercadoria [commodity] e são
submetidos à lógica do mercado para alocação, uso e gestão.
No caso específico da apropriação da natureza, Castree (2003)
identifica comodificação em diversos processos, tais como privatização
(controle privado dos recursos naturais), alienação (separação entre a
natureza sendo vendida e os antigos controladores), individualização
(separação entre recurso e seu contexto), abstração (homogeneização dos
recursos naturais) e ‘valoração’ (atribuir valor aos recursos naturais). A
comodificação da natureza é determinada por circunstâncias locais e não
ocorre automaticamente, mas através de lutas políticas e conflitos
institucionais em diferentes escalas, significando uma “resposta (política)
do capital à degradação ecológica quando esta se torna uma barreira à
acumulação de capital” (Benton, 1996: 192).
Nas últimas duas décadas, em especial, a comodificação da
natureza tem sido influenciada pelos princípios neoclássicos (i.e.
neoliberais) de eficiência de mercado e empreendedorismo. O
neoliberalismo vem forçando uma gradativa transformação de um
modelo de desenvolvimento capitaneado pelo Estado, típico do período
pós-guerra, para um novo modo de regulação que promove
5

desnacionalização, inovação técnica, subordinação das políticas sociais a


prioridades econômicas, assim como novas formas de participação e
organização (Jessop, 2002). As pressões do neoliberalismo têm induzido a
uma reforma exógena do Estado e à adoção de mecanismos sofisticados
de regulação, os quais têm impactado na organização social e redefinido
o espaço da democracia.
Sob inspiração neoliberal, tem sido propalada a ideia de que o
investimento privado no setor de abastecimento e saneamento é
indispensável para melhorar o acesso e o nível de serviços (Al-Hmoud e
Edwards, 2005). Segundo Bakker (2002), no setor de águas, esse processo
teve início não no mercado, mas foi proposto pelo Estado através de um
processo de ‘re-regulação’ ao invés de ‘de-regulação’, o qual não modifica
as bases históricas de exploração de recursos e exclusão social, mas gera
novas oportunidades econômicas embutidas na premissa de que o
mercado é mais eficiente que os governos no provimento de serviços
básicos relacionados à água. A autora ainda afirma que:

“A perspectiva de escassez de água, falta de recursos públicos e a tese da


falência do Estado emergiram na última década do Século XX como
poderosas justificativas para a expansão da esfera dos mercados como
uma instituição social para a alocação de recursos hídricos.” (Bakker,
2002: 772).

Em muitos casos, a tensão entre mercado e preservação ambiental


tem resultado em um híbrido de abordagens e racionalidade que
combinam preocupações de sustentabilidade ambiental com posturas
neoliberais (Raco, 2005). Contudo, a contradição fundamental da
economia de mercado não desaparece com a mera inclusão de
sustentabilidade nos princípios de gestão. Pelo contrário, a abordagem
neoliberal aplicada à gestão de recursos hídricos predominantemente
induz a uma transformação do centro de poder sobre o valor, uso, acesso
e controle da água, antes detidos pelas populações locais e agora
transferidos para estruturas externas (Johnston, 2003) e acabe reduzindo
as possibilidades de reaproximação entre natureza e sociedade.
Em oposição a tais transformações, populações tradicionais e
grupos de contestação têm crescentemente denunciado a injusta
distribuição de resultados, mas persistentes e generalizados impactos da
reforma neoliberal. Harvey (2005) também denuncia que a privatização
de empresas públicas é comparável à ‘acumulação capitalista primitiva’
por despojo, fraude e roubo (i.e. privatização como um processo de
‘acumulação por expropriação’ do patrimônio coletivo). Os críticos
propõem mudanças estruturais em diferentes escalas (do local ao global),
encontrando justificativa no conceito de justiça ambiental (i.e. remoção
dos mecanismos que afetam assimetricamente as condições de vida e o
acesso à natureza de diferentes grupos sociais) (Dunion, 2003).
6

A oposição às políticas hegemônicas defende que o acesso à água


seja eqüitativo e justo para todos os grupos sociais, bem como garanta
uma continuação indefinida das propriedades ambientais (Trottier, 2004).
Ao invés de subordinar o acesso à água a transações de mercado, serviços
públicos deveriam ser geridos por programas que valorizassem a
participação ativa e consciente dos atores locais (Sen, 1999). Nesse
sentido, é extremamente relevante a reação contra a mega-transposição
de águas do Rio São Francisco, no Nordeste brasileiro, o qual é visto
como um projeto que dissimula o problema agrário do semiárido e que
serve a interesses de construtores e políticos tradicionais. A busca de
alternativas ao modelo dominante de gestão de águas advoga, assim,
uma transformação no uso do ambiente que é parte de mudanças mais
gerais nas relações de poder e na prática da democracia.

Desenvolvimento Econômico e Recursos Hídricos no Brasil 1

Desde o começo de sua história, no Século XVI, até as primeiras


décadas do século passado, a divisão internacional de trabalho atribuiu
ao Brasil a função de fornecedor de matérias primas e, mas tarde,
consumidor de mercadorias dos países capitalistas centrais. A exportação
de açúcar, ouro e café, entre outras mercadorias, foi responsável por
sucessivos ciclos de acumulação seguidos por períodos de estagnação e
desorganização social. A base agrícola e extrativista da economia
brasileira começa a se transformar substancialmente a partir de 1930, por
meio de uma industrialização facilitada pelo Estado. O projeto
‘desenvolvimentista’ brasileiro teve o objetivo fundamental de promover
um crescimento econômico o quanto possível autônomo, fundado na
criação de um mercado interno de importância, capaz de mitigar e
eventualmente superar a condição de completa dependência que
caracteriza um país cuja economia estava fundada unicamente na
exportação de bens primários. A principal estratégia para tanto foi a
chamada ‘substituição de importações’, em que as áreas consideradas
estratégicas eram estimuladas e protegidas da competição de produtos
importados por meio de barreiras tarifárias. A liderança governamental
serviu aos setores hegemônicos para superar a estrutura agrícola e ceder
espaços cada vez mais favoráveis à circulação e acumulação privada de
capital. Como observa Faoro (1977), o desenvolvimento econômico e o
controle político no Brasil historicamente se basearam no
‘patrimonialismo’, definido por uma ordem burocrática que compreende
dimensões públicas e privadas, combinando elementos de paternalismo,
repressão, hierarquia e autoritarismo.

1O argumento desta seção sobre desenvolvimento econômico e recursos hídricos


será aprofundado no Capítulo 6.
7

Ao longo do processo de expansão industrial no Brasil, a


economia gradualmente incorporou elementos da geografia da água com
o propósito de facilitar a criação e acumulação de capital. Em outras
palavras, o processo de desenvolvimento econômico significou uma
crescente comodificação da água, seja através de capitais investidos em
infraestrutura hídrica, seja por meio da provisão de água e energia
elétrica às atividades produtivas. Essa transformação da geografia da
água para atender aos imperativos do crescimento econômico acabou por
modificar não somente as características físicas, químicas e biológicas dos
recursos hídricos, mas produziu uma hierarquia de oportunidades sociais
que reflete a estratificação da sociedade brasileira entre proprietários e
despossuídos.
Os benefícios da expansão hídrica foram apropriados pelas
parcelas mais avantajadas da sociedade, mas as consequências negativas
do desenvolvimento afetaram especialmente as populações mais pobres,
como comunidades expulsas dos locais destinados à construção de
reservatórios (muitas vezes reassentadas em periferias urbanas
ironicamente sujeitas a enchentes). Desse modo, a industrialização
capitalista gerou uma comodificação dos recursos hídricos responsável
pela geração de conflitos sociais e ambientais crescentes. Isso demonstra
como os problemas sociais e ambientais do desenvolvimento e gestão de águas
são, na verdade, problemas do próprio desenvolvimento brasileiro.
As contradições do modelo de industrialização levaram a que, na
década de 1980, o Estado tivesse exaurido sua capacidade de liderança e
intervenção, sendo cada vez mais constrangido por descontrole do déficit
público, escalada inflacionária, desorganização da produção e crise de
hegemonia política. Como em muitos outros países, a resposta a tais
questões foi uma redefinição do Estado traduzida por flexibilização fiscal
e macroeconômica. Contudo, tais mudanças têm representado apenas
magros resultados em termos de crescimento do produto nacional a
expensas de instabilidade, deterioração das condições de trabalho e
perpetuação de injustiças (CEPAL, 2000), uma vez que não alteram a
lógica fundamental de exploração socionatural. Velhas e novas
estratégias governamentais seguem apoiando a comodificação da
natureza e levado, invariavelmente, à produção de resultados injustos e
insustentáveis. Para os propósitos deste texto, o desenvolvimento hídrico
no Século XX no Brasil é esquematicamente descrito em três fases
principais:

1) Pré-industrialização (1900-1930): nas primeiras décadas do século, a


economia brasileira contava com uma base fundamentalmente agrícola e
dependente de café, borracha e cacau como principais produtos de
exportação. A abolição da escravidão e, especialmente, a chegada de
imigrantes italianos, japoneses e alemães, entre outros povos, passaram a
8

contribuir para a emergência de um restrito mercado interno e


progressiva urbanização. Nesse período, a população chegava a 17,5
milhões de pessoas, 80% ainda vivendo na zona rural. O serviço público
de abastecimento de água era circunscrito às áreas mais aquinhoadas dos
maiores centros urbanos. Grande parte do abastecimento era controlada
por empresas particulares, muitas estrangeiras. Havia apenas algumas
poucas empresas de geração e distribuição de energia, com destaque para
Light no Rio de Janeiro e AMFORP em São Paulo (Kelman et al., 1999). A
irrigação agrícola se restringia à produção meridional de arroz, a primeira
cultura a ser produzida de modo industrial. A região Nordeste era
castigada por crônica insegurança hídrica em razão da inadequada
organização socioeconômica frente ao ambiente semiárido. Barragens de
acumulação começaram a ser construídas ainda no final do século
anterior e, em 1919, é criada uma agência (DNOCS) com o propósito
específico de minimizar os efeitos das secas recorrentes, embora tenha
obtido resultados extremamente limitados.

2) Industrialização (1930-1980s): com a revolução populista de 1930, a


oligarquia agrária passa a dar lugar uma emergente burguesia comercial
e industrial, a qual, todavia, mantém um estilo de governo autoritário e
centralizador. Entre períodos de democracia nominal e ditadura formal
(civil e militar), houve um processo de rápida industrialização,
responsável por uma taxa anual de crescimento da economia de 7% entre
1945-1980 (OECD, 2001). Parte integrante desse processo, a expansão da
infraestrutura hídrica incluiu pesados investimentos e uma
reconfiguração da estrutura administrativa. Na década de 1950, quase
toda a geração privada de energia foi nacionalizada e o setor expandiu de
modo expressivo, com a potência instalada aumentando de 615 MW para
44,900 MW entre 1930 e 1990 (ANEEL, 1999). No setor de abastecimento
de água, em 1934 é introduzido um sistema centralizado de planejamento
e uma agência coordenadora (DNOS) foi criada em 1940 para
subvencionar companhias públicas locais. Em 1971, foi lançado o plano
nacional de saneamento (PLANASA), mas já no começo da década de
1980 o mesmo enfrentava sérios problemas para manter tarifas ajustadas
à inflação, receber pagamento de investimentos contratados e manter a
capacidade de expansão de serviços.
A área de irrigação cresceu a uma taxa de 30% por década, desde
1950, e se expandiu do Sul para outras regiões do país, especialmente
para o Sudeste e Nordeste (Rodriguez, 2000). Irrigação foi um dos pilares
da Revolução Verde, que fez do Brasil um dos principais exportadores do
agronegócio mundial, ainda que tenha sido responsável por impactos
ambientais e crescentes conflitos pelo uso de água. No semiárido, apesar
de diversos projetos e da criação da CODEVASF (1948) e SUDENE (1959),
a escassez de água continuou a afetar largas parcelas da população
9

regional. Segundo Hall (1978), o problema da seca se relaciona à estrutura


agrária nordestina, onde a terra historicamente se concentra nas mãos de
uma oligarquia política, deixando a maioria da população vulnerável
mesmo às menores vicissitudes climáticas.
Esse quadro de desigualdade hídrica continua até os dias atuais,
uma vez que os reservatórios de água ainda se concentram em terras de
grandes proprietários, deixando ao redor de 92% das famílias de
agricultores sem acesso à irrigação (IBGE, 1996, citado em Lemos e
Oliveira, 2005). Não é por outra razão que em períodos de seca, as ações
emergenciais sempre são controladas pela oligarquia agrária. Em razão
de corrupção e descontrole, um relatório confidencial do Banco Mundial
chegou a afirmar que apenas 4% da iniciativa de combate à seca chegam
às mãos das pessoas atingidas (mencionado em Calvert e Reader, 1998).
Apesar de notórios desmandos, políticos geralmente preferem lançar
novos programas, ao invés de apurar responsabilidades (Ioris, 2001).

3) Flexibilização Econômica (a partir de 1990): em consequência de uma


crescente desorganização da produção causada pela perda de hegemonia
política, o governo passa a adotar medidas de impacto para fortalecer a
moeda e controlar a pressão inflacionária. Fazendo eco a exigências de
organismos internacionais, criaram-se condições mais favoráveis para
atrair investidores estrangeiros, em particular para a privatização de
bancos e empresas públicas. Diferentes estratégias de privatização são
adotadas no setor hidroelétrico, como a venda de parcela minoritária de
ações (e.g. empresas COPEL e CEMIG), venda de parcela majoritária de
ações e transferência do controle da empresa (e.g. ESCELSA e COELBA),
ou divisão em empresas menores e venda a investidores privados (e.g.
CESP). O setor hidroelétrico sozinho foi responsável por negócios de 23,5
bilhões de dólares, o que representou um terço do programa federal de
desestatização (valores de 1999), ainda que, para favorecer os
investidores, o governo passassse a oferecer empréstimos de bancos
oficiais (15 bilhões de dólares entre 1995-2001). Como benefício adicional,
o governo passou a aceitar cláusulas contratuais que protegem as
empresas privatizadas contra oscilações de câmbio, além de permitir o
reajuste de tarifas de eletricidade acima da inflação e tolerar a eliminação
de subsídio a famílias de baixíssima renda (Bello, 2005).
Os serviços de água e esgoto constituem, até hoje, um dos setores
públicos com maior demanda por investimentos, uma vez que, segundo a
página eletrônica do Ministério das Cidades, quase a metade da
população não é ainda atendida por sistemas de esgotos e um quarto
ainda carece de serviços de distribuição de água potável; nas áreas rurais,
mais de 80% das moradias não é servida por redes gerais de
abastecimento de água e quase 60% dos esgotos de todo o país são
lançados, sem tratamento, diretamente nos mananciais de água. Para
10

reverter esse quadro, criado por anos de negligência e má administração,


estima-se que seriam necessários investimentos de 0,45% do PIB ou R$ 6
bilhões por ano por duas décadas (IPEA, 2004). Com tais valores
envolvidos, há um declarado interesse de investidores privados em
participar da reestruturação do setor (algumas das principais
multinacionais já se instalaram no país, como Lyonnaise des Eaux,
Générale des Eaux e Thames Water), uma vez que existem 318 empresas
estaduais e municipais de abastecimento e saneamento, mas apenas 3%
foram privatizadas até o momento (segundo Serôa da Motta, 2004).
O setor é objeto de um exaltado debate político no congresso
nacional, com idas e vindas de diversos projetos de lei, mas ainda sem
acordo que permita a aprovação de um novo marco legal. Uma das
questões mais controvertidas a respeito da privatização do saneamento é
a nítida estratificação social da prestação de serviços consolidada ao
longo da história. Isso significa que grupos de maior renda são mais bem
servidos, em especial em termos de coleta e tratamento de efluentes
(Serôa da Motta e Rezende, 1999). A menos que a nova legislação crie
rigorosos mecanismos sociais compensatórios, é de se esperar que a
privatização do setor de abastecimento de água e saneamento agrave a
desigualdade entre grupos da população, uma vez que os investidores
naturalmente preferem adquirir empresas que servem às populações de
maior renda, por duas razões básicas: esses grupos têm uma maior
demanda por serviços e, mais importante, são as zonas onde, no passado,
a maioria dos investimentos foi feita e já conta com uma infraestrutura
instalada.
As próximas páginas irão discutir como as consequências desse
processo de desenvolvimento hídrico vêm sendo tratadas pelo Estado e
pelo mercado brasileiros através de uma nova estrutura administrativa e
supostos instrumentos inovadores de gestão.

Uma Nova Epistemologia da Água?

Conforme descrito acima, o controle e a manipulação dos


recursos hídricos foram elementos fundamentais da industrialização e
urbanização no Brasil. Um esforço nacional comandado pelo Estado foi
responsável pela construção de grandes barragens, regularização de rios e
controle do regime hidrológico. Gradualmente, em razão de impactos e
desperdício, as contradições da expansão hídrica transformaram uma
situação de relativa abundância em relativa escassez. Com recursos
progressivamente mais escassos e o agravamento da degradação
ambiental em todas as regiões brasileiras, os custos de produção passam a
crescer proporcionalmente. Ao mesmo tempo, o poder público passou a
ser pressionado pelas classes médias, as quais começaram a sentir
diretamente o efeito dos impactos ambientais que historicamente apenas
11

afetavam as parcelas mais pobres da população. Paralelamente, há uma


busca por novas alternativas de acumulação de capital que possam se
beneficiar de mudanças nos processos de apropriação e consumo dos
recursos socionaturais.
Em consequência, a ênfase da gestão de recursos hídricos começa
a se distanciar da simples expansão da oferta para estratégias baseadas no
controle da demanda e na recuperação ambiental. Uma estrutura
específica de regulação é introduzida na década de 1990, culminando com
a aprovação da lei de recursos hídricos em 1997. A nova lei determina,
entre outras inovações, que a água tem valor econômico e que a cobrança
pela água serve para indicar aos usuários o seu valor real. O processo de
implementação do marco regulatório, fazendo uso extensivo da mídia e
do valor simbólico da água, tem contribuído para estabelecer uma nova
‘epistemologia dos recursos hídricos’, através da reformulação da
linguagem de gestão e da redefinição dos espaços de representação
popular (privilegiando a bacia hidrográfica com unidade de intervenção).
Para implementar a nova legislação, foi criado um Sistema Nacional de
Gerenciamento de Recursos Hídricos (SINGREH), incluindo o Conselho
Nacional de Recursos, o Ministério do Meio Ambiente (MMA), o Instituto
Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis
(IBAMA) e, desde 2001, a Agência Nacional de Águas (ANA). Em cada
estado da federação há uma estrutura equivalente para regular a gestão
de rios sob domínio estadual (essa dupla dominialidade dos corpos
hídricos, federal e estadual, é responsável por recorrentes conflitos nas
bacias hidrográficas onde o rio principal está sob responsabilidade da
União, mas os afluentes são rios estaduais).
Apesar de uma nova estrutura institucional envolvendo dezenas
de agências e milhares de técnicos, tem sido possível verificar mudanças
apenas marginais no tratamento das questões de recursos hídricos, haja
vista que o mesmo continua a concentrar esforços no controle técnico-
econômico do uso da água, ao invés de produzir respostas de longo prazo
para os problemas sociais e ambientais, criados pelo próprio
desenvolvimento econômico. Em outras palavras, o antigo paradigma de
desenvolvimento hídrico foi transferido para o presente de modo não
dialético e sem avaliação crítica.
Mesmo existindo canais aparentemente democráticos de
representação, a estrutura de gestão de recursos hídricos é dominada por
uma ‘aliança estratégica’ entre interesses de mercado e grupos
ambientalistas. Essa aliança tem conseguido preservar e ampliar os
privilégios socioeconômicos historicamente estabelecidos no setor hídrico
pela negação sistemática da vinculação entre melhoria na gestão de águas
e mudanças político-econômicas mais amplas. A tentativa de dissociar a
agenda de recursos hídricos das relações estruturais de poder demonstra
que a reforma em curso não busca responder a problemas ambientais e
12

sociais, mas constitui um mecanismo de apoio a novas formas de


minimização de conflitos e acumulação de capital.
O exemplo mais nítido da perpetuação da moda do passado na
nova roupagem da gestão foi a adoção de instrumentos de mercado (ou
simuladores de mercado) para o controle dos recursos hídricos, em
especial o instrumento de cobrança pelo uso da água. Segundo a legislação
aprovada em 1997, a captação de água e o lançamento de efluentes estão
sujeitos à outorga prévia junto ao órgão regulador (federal ou estadual) e
devem pagar uma taxa anual proporcional aos custos sociais criados
pelas externalidades econômicas. Formalmente, a cobrança tenta remover
ineficiências relacionadas ao ‘antigo paradigma de gestão’, o qual
conduzia ao desperdício, uma vez que a água estava disponível
gratuitamente aos usuários (Kelman, 2000). Tal justificativa se baseia no
princípio econômico neoclássico de que incentivos de mercado
promovem uma eficiente alocação e uso de recursos (Winpenny, 1994), de
modo que, dependendo do preço pago pelos usuários, se estabelece um
nível racional e sustentável de utilização (Garrido, 2005). Ao mesmo
tempo, a cobrança é defendida como alternativa mais eficiente do que a
tradicional arrecadação de impostos para financiar ações de regulação e
recuperação ambiental.
Apesar da fundamentação legal e teórica, a implementação da
cobrança foi inicialmente lenta no Brasil, principalmente em razão de
complexas disputas técnicas e políticas dentro e fora do governo. A
controvérsia existe desde o ano 2000, quando a mesma lei que criou a
Agência Nacional de Águas estabeleceu que a geração hidroelétrica fosse
o primeiro setor sujeito à cobrança, contribuindo com o 0,75% do valor da
eletricidade gerada como pagamento pelo uso água (equivalente a 58,9
milhões de reais em 2002, segundo CTCOB, 2003). Entretanto, naquele
momento diversas questões vieram a impedir a utilização dos recursos
para as finalidades a que se destinavam. Um primeiro obstáculo era a
exigência de constituição de comitê e agência de bacia para a
operacionalização dos valores arrecadados. Um segundo obstáculo foi o a
inesperada classificação tributária da cobrança como imposto ordinário, o
que a deixa sujeita ao costumeiro decreto presidencial de
contingenciamento [‘contingency’] da execução do orçamento público
(até novembro 2005, somente soluções temporárias foram obtidas para
minimizar os cortes orçamentários e buscavam-se ainda alternativas para
reduzir o impacto do contingenciamento). Uma terceira fonte de
controvérsia era a persistente resistência de alguns setores de usuários em
aceitar a expansão da cobrança para além da geração de energia
hidroelétrica. Devido a esse contexto desfavorável, nos primeiros anos o
instrumento da cobrança se encontrava em uma situação de impasse,
colocando em risco a credibilidade de toda a nova estrutura
13

governamental de gestão de águas (cf. entrevista do autor com


superintendentes da ANA em 2003).
Depois de um longo processo de avanços e recuos, um novo
patamar de consenso permitiu que, em março de 2005, o Conselho
Nacional de Recursos Hídricos aprovasse duas históricas Resoluções
(respectivamente, a Resolução No 48 que estabelece critérios gerais para a
cobrança pelo uso dos recursos hídricos, e a Resolução No 49 que
estabelece as prioridades para aplicação dos recursos provenientes da
cobrança pelo uso de recursos hídricos). Essa decisão do Conselho definiu
os detalhes operacionais da cobrança, a qual passa a ser aplicada à
captação da água e descarga de efluentes em todos os rios sob
responsabilidade da União. Como pôde ser visto nos jornais do período, a
imprensa nacional e internacional imediatamente congratulou o governo
pela ‘coragem’ de introduzir a cobrança pelo uso da água em todo o
território nacional.
A primeira unidade a adotar as novas determinações foi a bacia
hidrográfica do Paraíba do Sul, a qual conta com um processo avançado
de mobilização para fazer frente a uma herança de degradação ambiental
deixada pela produção de café, industrialização, geração hidroelétrica e
abastecimento urbano (ver mais no próximo capítulo). Nesta bacia, a
metodologia de cobrança inclui três variáveis: volume captado,
percentagem efetivamente consumida e volume requerido para diluição
de efluentes, o que resulta em valores médios de R$ 0,08/m 3 para
captação e mais R$ 0,02 por m3 consumido (Braga et al., 2005).
É preciso se perguntar como foi possível avançar de uma situação
de impasse em 2001 para a aprovação final da cobrança em 2005. Na
realidade, a resistência política foi removida tão logo ficou claro, para a
maioria dos agentes produtivos, que a cobrança pelo uso da água, além
de não ameaçar a rentabilidade econômica, pode ser altamente
instrumental, já que permite a recuperação do passivo ambiental e cria
oportunidades inéditas de negócio (i.e. acumulação de capital). Foi
percebido pelos interesses de mercado que a degradação ambiental,
herança do modelo de desenvolvimento nas décadas anteriores, é fator
limitante para as atividades econômicas, uma vez que passa a
comprometer a qualidade e disponibilidade de água.
Nesse sentido, a cobrança é um instrumento que divide a conta
da recuperação com toda a população, já que os usuários de energia
elétrica e serviços de abastecimento deverão arcar com a maior parcela a
ser arrecadada. Por exemplo, no Paraíba do Sul, em 2004, o setor de
saneamento gerou 4,1 milhões de reais, contra apenas 2,2 milhões das
indústrias, segundo dados da ANA e estima-se que chegue a 7 milhões
em 2005, segundo mencionado nas atas do Conselho Nacional de
Recursos Hídricos. Desse modo, ao invés de cobrar daqueles que
diretamente foram responsáveis pela degradação do ambiente aquático
14

(indústria e agricultura, em particular), o ônus é distribuído com toda a


sociedade.
Para convencer a população de que a cobrança é um instrumento
vantajoso para toda a sociedade, organizou-se uma sofisticada ‘política de
mistificação’ que promove a ideia que todos são igualmente responsáveis
pela degradação do meio ambiente, mas encobre o fato de que os
benefícios do desenvolvimento hídrico foram desproporcionalmente
apropriados por diferentes grupos sociais. Essa mistificação impede o
questionamento sobre as causas dos problemas relacionados ao uso e
conservação de água, omitindo que a sociedade apresenta desigualdades
socioeconômicas e, com uma cobrança universal pelo uso da água, cria-se
um canal de perpetuação de injustiças. A suposta eficiência da gestão
promovida pela cobrança ignora diferenças geográficas entre áreas
(bacias) degradadas e localidades que se beneficiam com energia elétrica
ou abastecimento de água. Com a subordinação das políticas ambientais
às forças de mercado, somente bacias hidrográficas com maior expressão
econômica terão condições de arrecadar recursos para recuperação
ambiental, abandonando as bacias em regiões mais desprovidas. Além
disso, a política de mistificação cria condições favoráveis para uma
comodificação ainda mais explicita através da criação de mercados de
água (como proposto no projeto de Lei 6969/2002, o qual propõe a
institucionalização de um ‘mercado especial’ de autorizações de uso da
água para induzir ‘racionalidade’).
Uma outra faceta da comodificação promovida pela cobrança é o
incentivo ao envolvimento de agentes privados nacionais e internacionais
em transações econômicas relacionadas ao uso da água em função de que,
uma vez deixando explícito o valor econômico dos recursos hídricos,
outros mecanismos de mercado podem operar mais facilmente. Tal
incentivo é evidente no setor de abastecimento e saneamento público, o
qual, como mencionado acima, apresenta uma imensa necessidade de
investimento, haja vista a deterioração do nível de serviço pelo
envelhecimento da rede de distribuição e crescente expansão urbana.
Como os investimentos nesse setor são normalmente pouco atraentes
para a acumulação capitalista, em razão da necessidade de imobilização
de vastas somas de capitais na construção e operação da infraestrutura, o
governo vem acenando com o aporte das receitas da cobrança pelo uso da
água na expansão da infraestrutura, no estímulo à formação de parcerias
público-privadas (Frondizi, 2004).
Mais precisamente: a cobrança pelo uso da água pode ser
revertida em investimento nas empresas de água e esgoto, tornando-as
mais atraentes aos investidores privados, já que, desse modo, precisam
mobilizar menos capital na recuperação das empresas. Esse sinergismo é
ainda mais evidente no Projeto de Lei 5296/2005, o qual propõe que os
“recursos de outorga onerosa do direito de (...) cobrança pelo uso de
15

recursos hídricos” poderão constituir fundo especial com a finalidade de


custear os serviços públicos de saneamento básico ou poderão ser
utilizados como fonte ou garantia em operações de crédito para
financiamento de investimentos.
Um exemplo concreto da conexão entre a cobrança pelo uso da
água e novas oportunidades de negócio é dado pelo Programa de
Despoluição de Bacias Hidrográficas (PRODES). Esse programa foi
lançado em 2001 pela ANA e cria um fundo de investimentos para a
bacia, o qual é materializado em contrato assinado entre ANA e o
provedor de serviços de saneamento (público ou privado). O contrato
garante o pagamento pelo tratamento de esgoto, criando condições para
que o provedor realize investimentos na expansão da infraestrutura. As
normas da ANA requerem que, para se tornar elegível aos recursos do
PRODES, em primeiro lugar a bacia deve implementar um sistema de
cobrança. No Paraíba do Sul, o contrato estabelece que a cobrança pelo
uso da água contribui com 25% e o PRODES contribui com 75% dos
investimentos em tratamento de esgoto (Pereira, 2003). Isso abre novas
oportunidades para o envolvimento do setor privado, com possibilidades
mais vantajosas para a privatização de empresas públicas. É sintomático
que uma consultoria paga pela ANA para apoiar a implementação da
cobrança no Paraíba do Sul faz referência direta ao benefício da cobrança
para a privatização dos serviços municipais de saneamento:

[Como] “os municípios - e também os estados - encontram-se com baixa


capacidade de endividamento e pouca ou nenhuma condição de atender
às contrapartidas exigidas pelos organismos financiadores tradicionais,
o aporte de capital privado, principalmente no setor de saneamento
básico, será, com certeza, importante alternativa a ser considerada. (...)
Para que a participação do setor privado seja viável é, contudo,
necessária a prática de tarifas realistas, associada a garantias legais que
reduzam os riscos políticos dos investimentos.” (Fundação Coppetec,
2002: IV-2).

Fazendo uso da cobrança, o poder público tem mais um


instrumento de arrecadação, além dos impostos ordinários, para dividir a
conta da reestruturação dos serviços públicos e recuperação ambiental
com toda a população, mesmo aqueles que no passado nunca tiveram
acesso a serviços públicos de água e esgoto. Com o apoio explícito do
governo, através de programas como PRODES, a operação dos serviços
públicos se torna mais atraente e menos arriscada a investidores
privados. A interação entre sociedade e natureza relacionada à água
passa, assim, a ser mais uma vez dominada por modelos importados dos
países do capitalismo pós-industrial, trazidos ao Brasil de forma mecânica
e com o propósito de abrir novos canais de comodificação e acumulação
16

de capital. Contudo, a questão crucial para aqueles que dependem dos


serviços públicos de saneamento é que nem os atuais investimentos, nem
as iniciativas do passado são conduzidos de modo a atender a maioria da
população (Budds e McGranahan, 2003), uma vez que se mantém
inalterada a mesma lógica de exclusão social que favorece os interesses
daqueles que controlam as relações de produção.
Por todas essas razões, a cobrança pelo uso da água é uma
solução mistificadora que responde a um falso problema, ou seja, a
geração de recursos para manter um modelo autoritário e excludente de
desenvolvimento hídrico. A cobrança pela captação de água e lançamento
de efluentes termina reforçando a comodificação da natureza e aprofunda
a inserção do ambiente aquático na circulação de capital, o que é
diretamente associado a poderosos mecanismos de controle político que
historicamente dominaram o desenvolvimento socioeconômico no Brasil.

Conclusão

Os problemas relacionados ao uso e conservação da água no


Brasil são consequência direta de um modelo econômico excludente de
produção industrial implantado por um Estado autoritário. A
incorporação da geografia da água ao processo de produção capitalista,
largamente financiada por organismos internacionais, foi responsável por
uma progressiva comodificação do meio ambiente aquático, o que
resultou em complexas contradições sociais e ambientais, particularmente
em uma crescente assimetria entre benefícios econômicos e impactos
decorrentes da degradação do meio ambiente.
Com uma expansão urbano-industrial irrefreada, os níveis de
degradação ambiental passaram a restringir a própria expansão
econômica e forçaram respostas institucionais diversas, culminando com
a promulgação da legislação de águas em 1997 e institucionalização de
um sistema nacional de gestão (SINGERH). A nova lei define a água com
valor econômico e determina que seu uso deve ser cobrado. Apesar do
discurso oficial de sustentabilidade ambiental, a prática da cobrança pela
captação de água e lançamento de efluentes termina por reproduzir as
mesmas contradições do período anterior e nada mais faz do que criar
novas oportunidades de comodificação da natureza, haja vista que a
racionalidade econômica continua garantindo o avanço de forças de
mercado sobre os recursos socionaturais.
A nascente ‘democracia da água’ que vem sendo promovida nos
últimos anos como vetor de mobilização popular no contexto das bacias
hidrográficas tem alterado a percepção social das questões hídricas e vem
consolidando uma diferenciada epistemologia de gestão. A
implementação desse novo tratamento dos recursos hídricos é dominada
por uma aliança estratégica entre agentes econômicos e grupos
17

ambientalistas conservadores, a qual tem produzido uma sofisticada


mistificação da funcionalidade dos novos instrumentos de gestão para os
interesses de mercado. Encoberta pelo véu da mistificação, a reforma do
setor de recursos hídricos, em particular a introdução da cobrança, não
apenas cria condições para a exploração dos recursos socionaturais, como
também divide a conta da recuperação ambiental com a sociedade como
um todo, ao invés de responsabilizar diretamente os causadores da
degradação. Desse modo, a cobrança pelo uso da água representa uma
solução restrita e temporária para a questão ambiental, deixando sem
resposta as contradições entre interesses econômicos e justiça ambiental
que sempre caracterizaram o sistema produtivo no país. Parafraseando a
conhecida expressão da novela de Tomasi di Lampedusa (1958: 21), na
gestão de recursos hídricos no Brasil “tudo tem que mudar para que nada
realmente mude”.
A conclusão fundamental é que os problemas hídricos no Brasil
são resultantes de processos discriminatórios na relação entre sociedade e
natureza, decorrentes da contradição entre relações e condições de
produção. A abordagem proposta na nova lei de águas apenas reforça um
processo de comodificação da natureza que beneficiou e continua a
beneficiar uma pequena minoria da população. Injustiça ambiental e
práticas autoritárias de gestão continuam a ser a característica marcante
da ação do poder público e dos principais agentes econômicos.
Segundo uma perspectiva histórico-geográfica, respostas efetivas
aos problemas da água dependem do reconhecimento das
responsabilidades pelos impactos socionaturais que se projetaram do
passado para o presente. As questões da água se configuram, assim, como
elementos importantes da democratização do Estado e da revisão de
padrões de produção e consumo. Somente com uma gestão ambiental
independente das forças de mercado será possível começar a estabelecer
novas bases para a construção de uma relação mais justa e menos
contraditória entre sociedade e o resto da natureza.

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WRI (World Resources Institute). 2003. World Resources 2002-2004:
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World Bank e World Resources Institute: Washington, D.C.
21

Capítulo 2

Os Limites Políticos de uma Reforma Incompleta:


A Implementação da Lei dos Recursos Hídricos na
Bacia do Paraíba do Sul.

Conforme discutido no capítulo anterior, na última década, o uso e a


conservação dos recursos hídricos no Brasil têm sido objeto de um amplo
processo de reformas e reorganização institucional. A experiência da
Bacia Hidrográfica do Rio Paraíba do Sul será o objeto central do Capítulo
2 e servirá como um exemplo paradigmático das reformas institucionais
em andamento no país. Fazendo uso de métodos qualitativos de
pesquisa, foram analisados os objetivos e as deficiências da nova
decisória. O estudo identificou, como limitante fundamental, a afirmação
de uma racionalidade tecnoburocrática, empregada tanto na avaliação de
problemas, quanto na formulação de respostas. A expressão mais
evidente é a importância estratégica atribuída à cobrança pelo uso da
água, uma ferramenta de gestão altamente controvertida e que tem
levado a uma polarização de posições políticas. Em larga medida, as
reformas institucionais no Paraíba do Sul têm sido limitadas em si
mesmas, uma vez que a nova estrutura ainda impede a incorporação das
demandas da maioria da população local e a resolução efetiva de
questões ambientais historicamente estabelecidas.

O Contexto das Reformas Institucionais

A modernidade brasileira teve como características fundamentais


não somente a alteração da estrutura produtiva e das relações
intersociais, como também a acentuada apropriação dos recursos naturais
e o comprometimento da estabilidade ecológica em todos os cantos do
país. O processo de modernização, desencadeado especialmente a partir
de 1930, produziu uma profunda complexidade socioeconômica,
expansão agroindustrial e reorganização política, mas sem que tenha
havido cuidado para se evitar o aprofundamento da degradação
ambiental, legado da exploração agrária colonial, e o surgimento de
novos conflitos relacionados ao uso do meio ambiente. Ao mesmo tempo,
a modernidade manteve e ampliou a estreita conexão entre destruição do
meio natural e desigualdades sociais que historicamente permeou a
construção do Brasil como nação. A origem e o significado da
problemática ambiental devem ser, portanto, entendidos como parte
integrante de um processo de desenvolvimento socioeconômico
essencialmente limitado e contraditório. Seguindo a terminologia
sugerida por Habermas, a modernidade brasileira foi e continua sendo
22

um ‘projeto incompleto’, caracterizado por resultados econômicos


efêmeros, desigualmente distribuídos e à custa de uma devastação
ambiental generalizada.
Entre as diversas contradições ambientais da história recente do
desenvolvimento nacional, no que se inclui a poluição atmosférica, a
degradação do solo e a dependência do automóvel privado, as questões
de acesso, uso e conservação de recursos hídricos certamente ocupam
uma posição de destaque. Cabe relembrar que a manipulação dos
estoques hidrológicos nunca deixou de ter um papel estratégico na
industrialização e urbanização que se desenrolou ao longo do Século XX
no Brasil. Através de investimentos vultosos, alguns dos maiores projetos
mundiais de engenharia hidráulica foram construídos no país,
normalmente financiados por agências multilaterais, com o objetivo de
gerar eletricidade e abastecer cidades, indústrias e perímetros de irrigação
(Ioris, 2007). A fase crucial de expansão hidráulica coincidiu com as duas
décadas de autoritarismo militar, quando foram executados projetos
como Itaipu, Balbina, Itaparica e Tucuruí, entre muitas outras obras de
infraestrutura com orçamento bilionário e justificativa discutível. Se, por
um lado, tais obras de infraestrutura representaram uma fonte de
prestígio e poder para gerações de políticos e engenheiros, por outro, a
dramática transformação das bacias hidrográficas esteve notoriamente
associada a escândalos de corrupção e à desestruturação de comunidades
tradicionais.2
O período terminal da ditadura militar deu vazão a uma
percepção mais apurada a respeito das consequências negativas de
investimentos em infraestrutura hidráulica e da falta de uma gestão mais
consequente. O país que experimentava um lento retorno à democracia
tinha também que buscar soluções para uma realidade de rios
degradados, poluição fluvial e subterrânea e redução da biodiversidade
aquática, ao mesmo tempo em que grande parte da população continuava
sofrendo com a falta de abastecimento de água e esgotamento sanitário,
além de haver cerca de um milhão de pessoas desalojadas em função da
construção das grandes barragens.3 No início da década de 1990, o tempo
estava propício para novos arranjos institucionais que pudessem trazer

2 Por exemplo, um escândalo que surgiu durante a condução da nossa pesquisa


envolveu a aprovação da Barragem de Pratagy, orçada em US$ 60 milhões,
através da influência exercida pelo presidente do senado Renan Calheiros (O
Globo, 28 de maio de 2007).
3 De acordo com o Movimento dos Atingidos por Barragens, mais de 200.000

famílias foram desalojadas nas últimas décadas (ver mais detalhes em


www.mabnacional.org.br).
23

resposta a antigos e recentes problemas de uso e conservação da água. 4


Após anos de debate, descrito em Barth (1999), o processo de reformas
culminou com a sanção, em janeiro de 1997, da Lei da Política Nacional
de Recursos Hídricos (Lei 9433). Como uma contribuição à reflexão sobre
a primeira década da nova legislação brasileira de recursos hídricos, o
presente estudo pretende discutir a dimensão as reformas institucionais
em andamento no Brasil à luz do contexto regulatório internacional e com
um foco na gestão da Bacia Hidrográfica do Rio Paraíba do Sul (BHRPS),
localizada na região sudeste do país.5
Em função da evidente continuidade de problemas em quase
todas as bacias brasileiras, os quais são devidamente reconhecidos pelo
próprio Ministério do Meio Ambiente – como no caso do Plano Nacional
de Recursos Hídricos publicado em 2006 – nosso objetivo fundamental é
questionar até que ponto a busca de uma melhor gestão de recursos
hídricos no país não tem sido contida em si mesma. Ou seja, indagar se os
escassos resultados obtidos com a implementação das novas bases
institucionais não são, primeiramente, decorrência dos próprios limites
da reforma em curso. À guisa de introdução, pode ser mencionado que,
tendo em conta os dados coletados na bacia e a análise de fontes
secundárias de informação, dois processos fundamentais parecem
caracterizar toda a experiência do Paraíba do Sul. Em primeiro lugar, as
agências públicas e as organizações privadas envolvidas na gestão de
recursos hídricos fazem uso cada vez maior de conceitos amealhados à
literatura acadêmica contemporânea, mas sem necessariamente
considerar as especificidades históricas e geográficas locais. Em segundo
lugar, as reformas têm claramente seguido pressões dos setores com
maior força política, em especial os grandes grupos industriais e a
burocracia do governo central. Apesar de um discurso de inclusão social,
o processo de gestão reflete de forma marcante o balanço desigual de
poder entre, por um lado, os setores hegemônicos e, por outro, um
universo social disperso, composto por pequenos usuários de água, os
quais enfrentam múltiplas dificuldades para defender suas demandas
frente a uma estrutura administrativa seletiva e operacionalmente

4 Instituição é aqui entendida, no sentido sociológico, como “sistemas de regras


estabelecidas e preponderantes que estruturam interações sociais” (Hodgson,
2006: 2).
5 Gestão de recursos hídricos envolve um conjunto de medidas tomadas por

órgãos governamentais e não governamentais no sentido de avaliar, dispor, usar e


conservar reservas de água, processos hidrológicos e o próprio espaço da bacia
hidrográfica. Regulação de uso da água inclui instrumentos legais,
recomendações e incentivos utilizados por agências públicas para influenciar o
comportamento individual e as instituições sociais. Na doutrina jurídica e
administrativa contemporânea, os processos de gestão e regulação de uso da água
passaram a ser diretamente relacionados ao emergente discurso de ‘governança
ambiental’ e ‘gestão integrada’ (ver discussão abaixo).
24

fechada. Na prática, os pleitos e as opiniões dos pequenos usuários de


água e da população em geral têm sido significativamente ignorados,
conquanto se tente mistificar o impacto do envolvimento popular nas
decisões que afetam a bacia hidrográfica.
Para se perceber o alcance e os limites das novas bases
institucionais de gestão de recursos hídricos, é preciso considerar a
correspondência existente entre problemas ambientais, desenvolvimento
socioeconômico e disputas políticas dentro e fora do aparato estatal.
Como será demonstrado abaixo, as oportunidades de participação
pública na BHRPS têm sucumbido a um longo legado de conflitos e
barreiras políticas que dificultam o atendimento de demandas sociais e
ambientais mais amplas. Em grande medida, as falhas das reformas
institucionais em andamento podem ser atribuídas a uma racionalidade
tecnoburocrática que vem sendo internacionalmente aplicada à avaliação
de problemas e formulação de respostas. Estratégias tecnoburocráticas
incluem a sistematização de conhecimentos científicos e gerenciais
aplicados à gestão de recursos hídricos com o objetivo de produzir
resultados circunstanciais, ao mesmo tempo em que mantém inalteradas
as configurações políticas e sociais preexistentes (cf. Ioris, 2008). O caráter
conservador da tecnoburocracia, na bacia em estudo e no país como um
todo, pode ser diretamente relacionado às contradições das políticas
públicas atuais. Como em outras partes do mundo, desde a década de
1990 a intervenção estatal na gestão de recursos hídricos no Brasil tem
favorecido e atraído investimentos privados (como em empresas de
hidroeletricidade e no abastecimento de água), a expensas da diminuição
de sua função anterior (também problemática, diga-se de passagem) de
principal investidor e maior usuário de água.
A pressão (neo)liberalizante sobre o Estado tem como
característica básica a busca de novas formas de acumulação de capital,
ao mesmo tempo que atenta, de modo centralizado e cientificista, à
mitigação dos impactos ambientais mais prementes (ver McCarthy e
Prudham, 2004). A influência do neoliberalismo fica demonstrada pelo
argumento que, se no passado a expansão da infraestrutura hídrica
promovida pelo Estado era um requerimento básico do crescimento
econômico, a gestão ambiental contemporânea não deve agora
representar obstáculos às novas oportunidades abertas pela globalização
dos mercados. Surgem assim estratégicas inovadoras de acumulação de
capital através do uso e gestão do meio ambiente, tais como nos processos
de privatização, mercantilização, des-regulação e re-regulação, assim
como na utilização da sociedade civil e ONGs para compensar as falhas
da ação governamental (Castree, 2008). A consolidação de novas
oportunidades de acumulação de capital é assim apresentada como algo
desejável à sociedade como um todo, mesmo à custa de graves conflitos e
da produção de novas formas de degradação ambiental (Heynen e
25

Robbins, 2005). A máxima do ‘crescimento econômico a qualquer preço’ –


que serviu como pedra angular da industrialização e modernidade
brasileira (cf. Guimarães, 1991) – continua a influenciar o uso e a gestão
de recursos hídricos nos quatro cantos do país, mesmo que dissimulada
em sustentabilidade e participação popular, como se verá no caso do
Paraíba do Sul.

Ideias de Integração e Governança

Para se estudar as reformas institucionais no setor de recursos


hídricos é, antes de tudo, importante compreender que a bacia
hidrográfica é um espaço socionatural (ou socioambiental) complexo e
em permanente transformação (Swyngedouw, 2004; ver também Massey,
2005). Aquilo que mapas, hidrogramas e modelos de computador
conseguem capturar são apenas momentos, ou fragmentos, de um
sistema estruturado, aberto e dinâmico: mesmo os fatores que
aparentemente demonstram ser estáticos, como os divisores de água, a
rede fluvial e o regime hidrológico, são regularmente transgredidos em
razão, por exemplo, de sucessões ecológicas, alterações geomorfológicas,
migrações demográficas ou transferência e represamento de água. Desse
modo, a bacia hidrográfica nada mais é do que a soma das várias
dimensões do espaço geográfico, o qual é simultaneamente fixo, relativo e
relacional (cf. Harvey, 1973), que tem como elemento integrador a
contínua circulação de água. A água existe como um elemento vital da
profunda e perene inter-relação entre sociedade e natureza, descrita por
Marx (1976: 637) como uma “interação metabólica entre homem e terra”
(importante perceber que metabolismo [Stoffwechsel] tem aqui um sentido
ao mesmo tempo especificamente ecológico e amplamente social). Longe
de apresentar qualquer neutralidade política, esse metabolismo entre
sociedade e natureza incorpora diferenças e conflitos entre grupos sociais,
uma vez que o acesso à natureza e os impactos da sua transformação são
sentidos de forma diferenciada pelos vários segmentos da sociedade.
Contestações em torno do uso e da conservação dos recursos e do espaço
da bacia hidrográfica não emergem de forma abstrata, mas dependem de
circunstâncias históricas e geográficas específicas. Pode-se afirmar que,
em grande medida, a inaptidão das respostas oficiais aos problemas de
gestão de recursos hídricos se deve à dificuldade de compreender essa
dinâmica, complexa e politizada ontologia da água e da bacia
hidrográfica.
Nas últimas décadas, um grande número de reuniões
internacionais e declarações multilaterais têm contribuído para fazer da
problemática da água um assunto de grande interesse público, ainda que
mantendo uma visão excessivamente setorial e fragmentada. Desde a
Conferência de Mar del Plata em 1977, passando pelos encontros de
26

Dublin em 1992 e Quioto em 2003, governos e programas de cooperação


têm discutido como reduzir o nível de impactos ambientais e melhorar os
serviços públicos de água e saneamento (cf. UNDP, 2006). Tendo por base
a crescente pressão de agências de desenvolvimento (e.g. o Banco
Mundial tem sido um dos principais núcleos de formulação de políticas
públicas de recursos hídricos), a maioria dos países, onde se inclui o
Brasil, foi levado a iniciar uma reforma institucional baseada na gestão de
água por bacia hidrográfica (coordenada por um comitê de
representantes setoriais) e no emprego de instrumentos flexíveis de
regulação ambiental (notadamente, taxas e incentivos econômicos).6 A
contribuição acadêmica para esse debate internacional vem-se
desdobrando por diversas disciplinas, da economia à hidrologia, e pode
ser claramente identificada pela formulação de novas metodologias, tais
como gestão sustentável (Kay, 2000), gestão da demanda (Brooks, 2006),
subsidiariedade [assegurar uma tomada de decisões tão próxima quanto
possível do cidadão] (Moss, 2004) e gestão adaptativa (Pahl-Wostl, 2007).
De todo modo, é provavelmente o termo ‘gestão integrada dos recursos
hídricos’ (IWRM para a sigla em inglês, acrônimo de integrated water
resources management) o que melhor simboliza o novo ‘paradigma’ de uso
e conservação em expansão (Mitchell, 2005). Estudos recentes sobre a
experiência brasileira demonstram que “a institucionalização de novas
normas tem refletido diretamente a influência [no país] do conceito de
gestão integrada de recursos hídricos” (Conca, 2006: 309). IWRM tem sido
definida como um processo que promove um desenvolvimento
coordenado e uma gestão de água, solo e outros recursos relacionados de
forma a maximizar os resultados econômicos e o bem estar social de
forma justa e sem comprometer a sustentabilidade de ecossistemas vitais
(GWP, 2000).
Apesar da proliferação de publicações sobre a necessidade da
integração da gestão, a maioria das políticas públicas de recursos
hídricos, no Brasil e no mundo, continua restrita a ajustes administrativos
dissociados das dinâmicas sociais e ambientais concretas. Ao se invocar o
objetivo de integração de forma tecnocrática, há uma tendência de
reduzir a complexidade e as demandas socionaturais a simples equações
matemáticas (e.g. Gatirana et al., 2008). Foi já observado que a postura
arraigada de gestores e hidrólogos normalmente continua a considerar as
questões políticas e sociais como ‘desvios’ dos objetivos genuínos de
gestão de recursos hídricos (McCulloch e Ioris, 2007). De acordo com
Mollinga (2001), as reformas institucionais em curso despertam grande
interesse entre gestores públicos devido ao fato de que facilmente se
prestam a soluções estandardizadas e que se aplicam igualmente a

6Mais detalhes em www.ana.gov.br. Existem atualmente mais de 140 comitês de


bacia e 10.000 profissionais envolvidos no Sistema Nacional de Gestão de
Recursos Hídricos (SINGREH).
27

diferentes situações. Em especial, a influência do conceito de gestão


integrada, em que pese uma mudança de discurso, leva à compreensão
dos problemas de recursos hídricos como mera decorrência da má
utilização de técnicas administrativas e, principalmente, da
subvalorização econômica da água. Devido a esse pensamento
reducionista, a maioria das políticas públicas insiste em considerar a água
apenas como reserva de valor, mas não como um elemento básico de
numerosos processos socioambientais e que operam em diferentes
dimensões. Consequência direta desse raciocínio é o pagamento pelos
serviços ambientais, o mais recente ‘ovo de Colombo’ dos economistas
ligados aos recursos hídricos (ver Silvano et al., 2005, para um exemplo
recente no Brasil). Ignora-se, assim, que intervenções nos sistemas
hidrológicos tendem tradicionalmente a gerar custos, benefícios e riscos
que são distribuídos de modo desigual nas escalas espaciais e temporais e
percebidos de forma diferenciada pelos diversos grupos sociais (Molle,
2007).
Assim como se busca uma gestão de recursos hídricos mais
integrada, muitas das políticas ambientais contemporâneas advogam
uma melhoria de ‘governança’, tida como a remoção de barreiras que
existem entre sociedade, Estado e mercado (Lemos e Agrawal, 2006). A
construção de uma nova governança deve passar por uma mudança
paradigmática da gestão ambiental, baseada em um envolvimento mais
amplo da sociedade na formulação e implementação de políticas públicas
(Judge et al., 1995). Governança ambiental é também entendida como a
criação, reafirmação ou mudança de instituições com o objetivo de se
resolver conflitos relacionados aos recursos naturais com suficiente
sensibilidade social (cf. Paavola, 2007). No setor de recursos hídricos, o
conceito de governança é muitas vezes tomado como autoevidente, sem a
necessidade de uma definição precisa (e.g. Abers, 2007), mas geralmente
relacionado a um tratamento dos problemas de gestão de água que
prescinde da força coercitiva do Estado (Laban, 2007). A ‘crise’ da água é
tida como principalmente uma ‘crise’ de governança (GWP, 2000), a qual
pode ser definida como a “capacidade de um sistema social de mobilizar
energias, de forma coerente, para o desenvolvimento sustentável dos
recursos hídricos” (Rogers, 2002: 1). O último autor acrescenta que o
conceito inclui uma habilidade de desenhar políticas públicas “que sejam
socialmente aceitáveis, que tenham como propósito o desenvolvimento e
uso sustentável de recursos hídricos, e que tornem sua implementação
efetiva pelos diferentes atores/interessados envolvidos no processo”.
Como pode ser facilmente percebido, existe uma clara associação entre
governança e gestão integrada de recursos hídricos, demonstrada pela
crescente procura por novas capacidades de geração e implementação de
políticas e projetos (Rahaman e Varis, 2005). O sucesso da gestão
integrada de recursos hídricos passa, assim, pela promoção de uma
28

efetiva governança, a qual decorre do estabelecimento de consensos entre


atores sociais e da concepção de sistemas de gestão com maior
capacidade de perceber a complexidade dos problemas de recursos
hídricos (CEPAL, 2006).
Apesar de representar um avanço em relação às posturas antigas
e mais tradicionais (i.e. baseadas em infraestrutura e na imposição de
regras rígidas), governança hídrica não deixa de ser um conceito tão vago
e contraditório quanto o é gestão integrada. Conforme descrito por Castro
(2007), para alguns, governança é apenas um instrumento, um meio para
se atingir certos fins, uma ferramenta administrativa e técnica que pode
ser utilizada em diferentes contextos. Para outros, trata-se de um debate
entre alternativas que estão em conflito, no qual a definição de fins e
meios deve ser buscada no campo político e democrático. É importante
ressaltar que a noção de governança surge no contexto histórico da
expansão neoliberal, quando o Estado passa a ser sistematicamente
atacado por interesses privados fortalecidos por uma economia cada vez
mais globalizada e que favorece o surgimento de formas ‘plurais’ de ação,
como por exemplo, a formação de parcerias público-privadas e a
substituição da sociedade civil por ONGs (Castro, 2007). O deslocamento
de uma atuação centrada em ‘governo’ para outra baseada em
‘governança’ inevitavelmente envolve uma gama de interesses
geográficos e econômicos diversos (Page e Kaika, 2003), mas muitos dos
que advogam essa transição subestimam o conjunto de forças
governamentais e de mercado que produzem a destituição de recursos, a
degradação ambiental e a redução das oportunidades de sobrevivência
das comunidades locais (Leff, 2003; Heynen e Robbins, 2005).
Apesar das evidentes limitações dos conceitos que atualmente
dominam o debate no setor de recursos hídricos, notadamente ‘gestão
integrada’ e ‘governança ambiental’, são ainda muito restritas as análises
política das reformas contemporâneas de recursos hídricos. Por exemplo,
são poucos os autores que reconhecem a situação de falta de água como
um processo socialmente fabricado e que reflete a interação entre grupos
sociais e entre sociedade e o Estado (Mehta, 2007). Da mesma forma,
grande parte do debate sobre a nova agenda de recursos hídricos
continua silenciada em relação à racionalização ideológica das políticas
públicas, assim como ignora os mecanismos de controle relacionados ao
‘biopoder’ do Estado moderno (cf. Foucault, 1984). Permanece, assim,
uma barreira conceitual que impede a percepção dos processos de
exclusão urbana e rural, assim como uma extensa ignorância quanto às
relações entre fluxos de água e circulação de capital (Swyngedouw, 2004).
Mesmo aqueles que tentam relacionar as reformas institucionais em curso
com pressões econômicas e a ideologia neoliberal muitas vezes são
incapazes de compreender que a transformação da água em bem
econômico (e mesmo em mercadoria) envolve arranjos sociais,
29

econômicos, materiais e discursivos complexos (Köhler, 2005). Continua


tímida a reflexão sobre as complexidades geográficas e políticas das
reformas contemporâneas de recursos hídricos, ou, na linguagem de
Sneddon e Fox (2006), falta ainda uma ‘hidropolítica crítica’ que conecte
elementos de geografia política e socionatureza.
A análise hidropolítica é crucial para se compreender a evolução
e as tendências dos problemas de gestão de água em países como o Brasil,
onde as desigualdades sociais e econômicas deixam marcas indeléveis no
meio ambiente.7 Existe e se mantém uma clara politização do uso e
conservação da água, como no caso recente de construção de grandes
barragens na Amazônia (e.g. na Bacia do Rio Madeira) e pelo início do
projeto de transposição do Rio São Francisco para bacias mais ao norte.
Os conflitos sobre recursos naturais estão ainda ligados a sistemas
políticos e econômicos estabelecidos ainda na época colonial brasileira
(Bryant, 1998), enquanto mudanças ambientais não são apenas o
resultado do processo de desenvolvimento, mas o resultado de dinâmicas
políticas e de conflitos de valores (Marsden, 1997). Importante ressaltar
que essa dimensão política é continuamente negada pelo discurso oficial,
especialmente no que diz respeito às desigualdades no acesso a serviços
públicos ou pela exclusão de grupos marginalizados do processo de
tomada de decisão (Zhouri e Oliveira, 2005; a respeito da continuidade
autoritária relacionada à construção de barragens, ver Ribeiro et al., 2005).
As próximas seções deste texto deverão examinar alguns aspectos
de hidropolítica na experiência na Bacia do Rio Paraíba do Sul,
verdadeiro ‘microcosmos’ das reformas institucionais em andamento no
país. A análise seguirá uma abordagem de ‘economia política
institucional’, conforme proposta por Bridge e Jonas (2002), para avaliar a
consolidação de um sistema de regulação de recursos naturais através de
‘geografias específicas de confrontação’ [specific geographies of struggle]. A
discussão atentará também à articulação entre diferentes dinâmicas e
políticas espaciais (cf. Swyngedouw, 2000), notadamente entre os estados
que compartilham a bacia e a atuação do governo federal. No caso do
Paraíba do Sul, a descrição de conflitos e dinâmicas geográficas é

7 Por outro lado, as pressões econômicas sobre os recursos hídricos no Brasil não
se restringem ao período neoliberal recente, mas estiveram profundamente
associadas ao processo de modernização socioeconômica mencionadoa acima. A
nova fase de regulação de uso da água, que é o objeto principal dessa presente
discussão, apenas aprofunda e redireciona mecanismos anteriormente
estabelecidos de apropriação privada de recursos comuns e geração de impactos
negativos sobre largas parcelas da população. Um exemplo nesse sentido é a
degradação da Bacia do Rio São Francisco, a qual passou por um processo de
desenvolvimento hídrico (em um momento prévio à fase neoliberal) assentado no
latifúndio, na construção de grandes barragens e na irrigação de frutíferas voltada
ao mercado exterior.
30

fundamental para se entender como a mediação de problemas através


(principalmente) da expressão do valor monetário da água tem limitado o
alcance das reformas institucionais.

A Experiência da Bacia Hidrográfica do Rio Paraíba do Sul

Ainda que o Brasil seja um país com imensos rios, alguns com
mais água que nações ou subcontinentes inteiros, em termos hidrológicos
o Paraíba do Sul figura como um rio de porte mediano: a vazão média de
longo período na altura da foz foi estimada em 1.118,40 m 3/s (tomando-
se em conta as séries históricas de 199 estações fluviométricas e obtida
através de estudos de regionalização, cf. Coppetec, 2006: VII-1), o que é
significativamente menor do que os valores equivalentes para as grandes
bacias hidrográficas brasileiras.8 Mesmo assim, a BHRPS tem sido palco
de alguns dos mais relevantes desdobramentos e contradições da história
uso e de gestão de recursos hídricos no país. Devido à sua localização
estratégica, a BHRPS vem ocupando, há mais de 300 anos, uma
importância econômica e política fundamental. A exploração da bacia
teve início já no Século XVII com as primeiras incursões ao interior do
território para explorar minerais e aprisionamento de indígenas. No
Século XVIII, o Paraíba do Sul constituía o principal meio de comunicação
entre a costa e os sítios de ouro em Minas Gerais.9 Com a introdução de
café em 1770, vastas áreas de terra foram desmatadas para abrir espaço
para fazendas cafeicultoras. São desse período as construções imponentes
dos famosos ‘barões do café’ que dominavam a economia do império; a
aristocracia local era constituída por 32 senhores com títulos
nobiliárquicos, incluindo barões, viscondes e mesmo dois condes (para a
lista complete, ver Müller, 1969). Em poucas décadas, porém, as altas
taxas de erosão do solo começaram a comprometer a produtividade
agrícola e o centro da cafeicultura se deslocou para outros estados. Um
novo ciclo econômico se iniciou ao redor do final do Século XIX, com a
emergência da indústria têxtil e alimentícia, facilitada pela proximidade
dos centros consumidores de São Paulo e Rio de Janeiro. O Vale do
Paraíba foi uma das primeiras zonas a se industrializar no país, tendo
como um importante marco histórico a fundação da Companhia

8 A Bacia Hidrográfica do Rio Paraíba do Sul contém 55.500 km2 entre os estados
de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Mais de 5,4 milhões de pessoas
vivem nos 180 municípios com território parcial ou totalmente contido na bacia; a
calha do rio principal tem uma extensão de 1.100 km (Coppetec, 2006).
9 Cabe mencionar que, além do papel econômico e geopolítico, a bacia contém o

maior centro da religiosidade nacional a Basílica de Nossa Senhora Aparecida,


cuja imagem foi encontrada por pescadores nas águas do Paraíba do Sul em 1717.
Tal fato enfatiza ainda mais o valor simbólico do Paraíba do Sul para outras
bacias hidrográficas brasileiras.
31

Siderúrgica Nacional, a primeira grande instalação de siderurgia do


Brasil, na década de 1940.
Atualmente existe na bacia um parque industrial complexo, que
contém mais de 6.000 unidades fabris e responde por aproximadamente
11% do PIB nacional. Neste contexto, a água é utilizada intensivamente
por cidades, indústrias e agricultura, exercendo grande pressão sobre
estoques relativamente restritos de recursos hídricos. Importante destacar
que 2/3 da vazão no trecho médio do rio são desviados para o Rio
Guandu com o propósito principal de abastecer de água 80% da
população na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. 10 Existem ainda
mais de 120 estações hidroelétricas em operação na bacia, entre pequenas,
médias e grandes geradoras. A variedade de interesses e atividades em
torno da água na BHRPS, que justificaria um cuidado muito maior com a
proteção e conservação da bacia, produziu um grave quadro de
degradação e desequilíbrios ambientais severos. Na verdade, a história da
bacia pode ser resumida a ciclos econômicos descontínuos, crescimento
desigual e persistente degradação ambiental (Aquino e Farias, 1998). A
grave condição ecológica é particularmente evidente na seção média do
rio, justamente onde a maioria da hidroeletricidade e das indústrias está
localizada (Araújo et al., 2003). Além da poluição industrial, a descarga
de efluentes urbanos representa uma fonte significativa de impactos
ambientais, especialmente tendo-se em conta que apenas 17,6% do esgoto
recebem alguma forma de tratamento. Como em tantas outras partes do
país, ao mesmo tempo em que a água serve primeiramente às prioridades
do crescimento econômico, os impactos ambientais e a falta de serviços
públicos afetam especialmente populações de baixa renda e áreas
semiurbanizadas.11

Reformas Institucionais de Gestão e a Centralidade do Instrumento da Cobrança

O reconhecimento da extensa degradação do Rio Paraíba do Sul e


de muitos de seus afluentes não é recente, mas tem sido objeto de
repetidas, mas inócuas, respostas governamentais. A primeira tentativa

10 Essa transferência entre bacias hidrográficas, que serve também à geração de


energia hidroelétrica, tem um resultado profundamente ambivalente. Por um
lado, aumenta a disponibilidade de água para o Rio de Janeiro, uma região
superpovoada, com alta demanda hídrica, mas com mananciais bastante
degradados. Por outro lado, os volumes transferidos desde o Paraíba do Sul
passam imediatamente a serem subordinados às desigualdades sociais e espaciais
da região metropolitana. Ou seja, apesar da aparente eficiência técnica na
operação de transposição de bacias, o resultado final é a produção de situações de
escassez tanto na área doadora, quanto na ponta receptora, uma vez que sua
distribuição segue padrões tradicionais e elitistas de abastecimento público.
11 Para maiores detalhes da condição ambiental da bacia, ver Coppetec (2002,

2006).
32

de sistematizar o uso da água na bacia aconteceu em 1939 na seção de


montante, no Estado de São Paulo, denominada Serviço de
Melhoramentos do Vale do Paraíba. Somente em 1968 o governo federal
tomou a iniciativa de estabelecer um órgão com o propósito de conter a
degradação da bacia chamado Comissão do Vale do Paraíba do Sul
(COVAP). A comissão foi substituída em 1979 pelo Comitê Executivo de
Estudos Integrados da Bacia Hidrográfica do Rio Paraíba do Sul
(CEEIVAP), o qual congregava apenas representantes de órgãos
governamentais e tinha o mandato de formulação de planos de
recuperação ambiental. Como pode ser visto pelas datas, COVAP e
CEEIVAP foram estabelecidas durante o período de ditadura militar e
sua composição excluía a participação da população local e dos usuários
de água. Enquanto que o governo federal e as administrações estaduais
demonstravam-se incapazes de responder aos problemas, na década de
1980 a bacia passou a ser conhecida internacionalmente por sua condição
ambiental. Somente quando os níveis de poluição passaram a
comprometer a própria atividade econômica, somado ao criticismo
internacional, que reformas institucionais mais efetivas passaram a ser
consideradas. Um novo comitê de bacia, chamado Comitê para
Integração do Rio Paraíba do Sul (CEIVAP) foi instalado no final da
década de 1990, segundo os preceitos da nova legislação nacional (Lei
9433/1997). A composição do CEIVAP inclui 24 representantes dos
usuários de água, 21 representantes dos três níveis de administração
pública e 15 membros da sociedade civil organizada.12 Desde seu
estabelecimento, o novo comitê recebeu apoio financeiro e político do
governo federal e passou a se caracterizar em uma ‘vitrine’ do novo
modelo de gestão de recursos hídricos no Brasil (Braga et al., 2005).
Tendo em conta a relevância simbólica e material da experiência
local, especialmente o fato de ter sido a primeira bacia sob
responsabilidade federal a adotar os novos instrumentos regulatórios, o
Paraíba do Sul serve como excelente estudo de caso sobre a primeira
década da nova lei brasileira de recursos hídricos. Nosso trabalho de
investigação seguiu as recomendações de Watts e Pett (2004) de que o
exame das relações entre eventos, estruturas e mecanismos, através de
um senso estratificado da realidade, permite a explicação de processos
por meio da reconstrução de teorias e conceitos preestabelecidos. 13 Ainda

12 Apesar de nominalmente dedicada à sociedade civil, sua participação no


CEIVAP tem sido sistematicamente abusada pela nomeação de representantes de
federações de negócios, conselhos profissionais e consórcios de municípios como
se fossem genuínos representantes da população em geral (Projeto Marca d’Água,
2003).
13 Mais especificamente, a pesquisa foi desenhada seguindo os objetivos e

conceitos de ‘realismo crítico’ (Sayer, 1992) segundo o qual método inclui não
somente o componente empírico, mas também teorização a respeito das relações
33

nos primeiros estágios dos levantamentos de campo, foi possível perceber


que as atividades do CEIVAP têm se caracterizado por uma agenda
repleta de reuniões e cerimônias, muitas vezes, com a participação de
ministros e altas autoridades, e que a bacia tem atraído uma crescente
atenção de círculos acadêmicos e ocupado as manchetes da grande mídia.
Uma investigação mais minuciosa permitiu identificar que, por detrás
dessa constante publicidade a respeito dos desdobramentos das
atividades do comitê, grande parte do esforço tem se restringido a uma
única questão: a implementação da cobrança pelo uso da água (conforme
previsto no Artigo 19 da Lei 9433).14 Mesmo o conteúdo dos planos e
documentos produzidos pelo comitê (CEIVAP) tem se concentrado em
torno do cálculo e da aplicação da cobrança. Por causa dessa ‘hipertrofia’
do papel dedicado à cobrança, ainda no início nossos trabalhos de campo

sociais e da produção do conhecimento. A estratégia metodológica básica foi a


busca de uma ‘síntese’ da realidade concreta, que compreende estruturas,
mecanismos e eventos. Foram examinadas tanto as bases qualitativas das relações
sociais, bem como a dimensão material e a interação com o meio natural. Os
trabalhos de campo (entre março e maio de 2007) envolveram 20 entrevistas
confidenciais (semi-estruturadas) com usuários de água, servidores públicos e
membros do comitê da bacia, seguidas de discussões complementares por e-mail
nos meses subsequentes; foram produzidas detalhadas análises de políticas
públicas e participou-se de diversas reuniões abertas e encontros de mobilização.
A metodologia de seleção das entrevistas teve por base as recomendações de
Cloke et al. (2004) no sentido de envolver informantes com conhecimento,
experiência e disposição de participar. Foram escolhidos representantes de
diferentes setores de usuários de água distribuídos entre os três estados da
federação que compartilham a bacia (RJ, SP e MG). Os contatos preliminares
foram feitos em função da análise de documentos oficiais e sugestões de outros
participantes envolvidos no início da pesquisa. O conteúdo das entrevistas foi
analisado de forma a salientar pontos de convergência e divergência entre as
posições de diferentes grupos, mas também em relação à metas de políticas
públicas e planos aprovados pelo comitê da bacia. A interpretação dos resultados
se situa no campo da ‘ecologia política’, ou seja, o entendimento que política é
inevitavelmente ecológica, ao mesmo tempo que ecologia é intrinsecamente
política (Robbins, 2004).
14 Trata-se aqui da cobrança pela captação de água de manaciais e pela descarga

de efluentes. As taxas de serviço água e esgoto tradicionamente cobradas desde o


Século XIX no Brasil dizem respeito aos custos de tratamento e distribuição de
água e coleta e tratamento de efluentes, mas não incluem o chamado ‘custo
ambiental’, que é justamente o propósito da nova legislação. Ou seja, a Lei 9433
estabelece o pressuposto legal (que havia sido vagamente mencionado, mas
nunca implementado, no Código de Águas de 1934) de que os mananciais de
água têm um valor econômico per se e, por essa razão, deve haver uma taxa
correspondente a ser paga ao Estado, após aprovação pelo respetivo comitê de
bacia hidrográfica. O Artigo 19 da lei determina ainda que a cobrança pelo uso de
recursos hídricos deve incentivar o uso racional e financiar programas e
intervenções.
34

foram redirecionados e passaram a considerar de modo mais específico as


controvérsias a respeito da cobrança pelo uso da água na BHRPS. A
decisão de redirecionar o foco da pesquisa foi mais tarde justificada
quando nas diversas entrevistas quase todos os informantes desejaram
espontaneamente dedicar a maior parte do tempo discorrendo sobre
como a cobrança vem afetando a gestão de recursos hídricos. Dessa
forma, a implantação da cobrança passou a ser a principal referência a
respeito do nível de participação pública e da efetividade do novo
modelo institucional de gestão de recursos hídricos. Como vai ser
discutido abaixo, a centralidade da cobrança pelo uso da água – um dos
pilares do modelo de governança hídrica em implementação – gera uma
evidente situação de ambiguidade institucional, uma vez que reduz o
foco nas soluções dos problemas para dedicar especial atenção a
processos administrativos altamente conflituosos. A adoção da cobrança
pelo uso da água contribui para aumentar a percepção das questões
socioambientais, mas sem necessariamente criar uma ‘totalidade’ que
inclua a multiplicidade de atores e interesses. Para ser consistente com os
critérios metodológicos sugeridos por Watts e Pett (2004), foi necessário
examinar não apenas os resultados finais das diversas esferas de decisão
voltadas à aplicação da cobrança, mas também compreender o processo
de negociação e o jogo de interesses envolvido, particularmente porque a
aprovação da cobrança pelo uso da água na BHRPS seguiu uma longa e
tortuosa jornada de disputas setoriais e articulações políticas. Embates
similares têm ocorrido em instâncias do sistema nacional de gestão, como
no Conselho Nacional de Recursos Hídricos, mas a experiência do
Paraíba do Sul contém particularidades geográficas e históricas da maior
relevância. A prioridade dedicada à cobrança passou a ser mais evidente
a partir do ano 2000, quando ficou evidente para a maioria dos membros
do CEIVAP que era necessário reduzir a dependência em relação ao
apoio financeiro proporcionado pelo governo federal (conforme
detalhado por Gruben et al., 2002, e Tedeschi, 2003). Entre 2000 e 2002, as
opiniões contra e a favor da cobrança dividiram o comitê em dois polos
de opiniões antagônicas. A favor da imediata adoção da cobrança
estavam os representantes do governo federal (cujo interesse principal
não era diminuir seus gastos com o comitê, mas fazer avançar a
implementação da nova lei de recursos hídricos), executivos do próprio
comitê, acadêmicos e a maioria das ONGs ambientalistas. Contra a
cobrança posicionaram-se os representantes do setor industrial, agrícola e
de hidroeletricidade. Um pequeno número de participantes mantinha-se
indeciso sobre a melhor alternativa. Durante essa fase de debates, as
reuniões do CEIVAP passaram a se constituir em um ‘campo de batalha’,
onde os representantes dos setores econômicos, indústria em particular,
exprimiam sua inconformidade e questionavam a oportunidade de se
adotar a cobrança naquele momento. De acordo com alguns dos nossos
35

entrevistados, esse acalorado debate, ao invés de aprofundar a


democracia interna no comitê, resultou em mútuo cepticismo e
gradualmente reduziu o papel de liderança que o comitê deveria estar
ocupando na resolução dos problemas de gestão de recursos hídricos. A
controvérsia apenas aumentava as incertezas sobre como a futura
arrecadação dos valores advindos da cobrança seria revertida em
benefício da bacia; ao mesmo tempo, não havia nenhuma definição a
respeito de como taxar os usos não consutivos de água (i.e. usos com a
característica de não consumo da água, como a geração hidroelétrica) e
como lidar com a transferência de água da bacia do Paraíba do Sul para o
Rio Guandu.
Durante essa fase inicial, importantes representantes do setor
industrial mantiveram uma postura reticente em relação à formação da
Agência Nacional de Águas (ANA) em 2001, uma vez que a mesma não
estava prevista na legislação original de 1997. A disputa entre regulador
(i.e. ANA) e aqueles a serem regulados (e.g. indústria) somente cresceu
quando a Agência, já no início das operações, percebeu que a
implementação da cobrança na BHRPS representaria um passo altamente
estratégico para sua justificativa política e administrativa (cf.
comunicação pessoal de superintendente da ANA ao autor).
Considerando o jogo de disputas durante esse período inicial do CEIVAP,
uma das nossas entrevistas com representantes dos usuários de água
colheu a seguinte observação:

Pergunta: “... levando-se em conta que a ANA foi criada anos depois de
o CEIVAP ter sido instituído, como o senhor avalia a contribuição da
agência para o processo de reorganização da gestão na bacia?”

Resposta: “Não havia necessidade de se criar a ANA quando o sistema


nacional de recursos foi estabelecido (…); o problema é que as pessoas
veem a ANA como um braço do governo e [por essa razão] apenas um
coletor de taxas (...); no geral, a ANA tem alargado os conflitos na bacia
do Paraíba e muito além.” (membro do CEIVAP, maio 2007).

A controvérsia em torno da implantação da cobrança teve uma


curiosa mudança de rumo quando em 2002 o setor industrial inverteu sua
oposição contrária à cobrança e passou a abertamente concordar que se
pagasse uma taxa proporcional ao uso da água. 15 À primeira vista,
parecia que os industrialistas passaram a concordar com o argumento dos
demais membros do comitê e aceitaram a ideia que a cobrança
representaria um ‘avanço’ no tratamento dos problemas ambientais ao
responsabilizar diretamente aqueles usuários que causam impactos

15Contudo, a CSN, o maior usuário de água, contestou depois o instrument da


cobrança na justiça.
36

ambientais. Contudo, com o tempo ficou claro que a real razão para a
mudança de postura foi muito mais uma decisão estratégica do que uma
tomada repentina de consciência ambiental: na verdade, uma vez que a
introdução da cobrança estava prevista em lei e era inevitável, dada a
pressão da ANA e de outros grupos com representação no comitê, a
indústria preferiu adotar uma posição pró-ativa e garantir tarifas
reduzidas, além de capitalizar politicamente. Para o público externo
criou-se a impressão de que as indústrias na BHRPS estariam
contribuindo efetivamente para a resolução dos (graves) problemas que
ela mesma ajudou a causar, mas de fato houve apenas um movimento de
aceitação de valores de cobrança relativamente baixos e com o benefício
de se consolidar politicamente sua imagem. Como historiado por
Formiga-Johnsson et al. (2007), ao concordar voluntariamente com a
cobrança, o setor industrial esvaziou qualquer tentativa de se ter um
marco regulatório mais efetivo. A grande ironia nesse processo, indicado
por diversos de nossos entrevistados, foi que as ONGs ambientais
passaram a ingenuamente apoiar essa chicana política do setor industrial,
inclusive desistindo de tentar aumentar o valor da cobrança para encerrar
de pronto a polêmica. Desse modo, o processo de aprovação da cobrança
nada mais fez do que submergir o CEIVAP no velho jogo político que
deformou as agências que o precederam: o invés de mecanismos
realmente participativos e que levassem em conta o interesse da maioria
da população, a tomada de decisões continuava a ser controlada pelos
grupos com maior poder político-econômico, ainda que dissimulada em
um processo de consulta democrática. O resultado não poderia ser mais
previsível e, apenas alguns anos mais tarde, nossas entrevistas
detectaram um clima predominantemente apático entre muitos membros
do comitê e moradores da bacia em relação à contribuição efetiva da
cobrança. Como observado por um entrevistado:

Pergunta: “Em que condição o senhor participa das reuniões do


CEIVAP?”

Resposta: “Nunca fui membro oficial mesmo, mas ia lá como curioso,


como interessado em saber mais sobre o processo todo de melhoria do
rio. Mas agora não vou mais, não.”

Pergunta: “E por que não? Por que o senhor deixou de


participar?”

Resposta: “As reuniões no comitê [CEIVAP] são na maioria das vezes


uma perda de tempo; aqueles que deveriam ser mais críticos dos
problemas da bacia, como as ONGs, ficam quietas, porque querem
mesmo é obter dinheiro [através do comitê] e não devem contradizer as
vozes que mandam, com o a ANA e a CSN (…) Outro problema grave é
37

que a ANA tem uma visão puramente ‘hidrológica’ em relação aos


problemas de recursos hídricos.” (ativista ambiental e observador das
reuniões do CEIVAP, maio 2007).

Na prática, ao invés de reforçar um processo de mobilização


popular que emergia na bacia desde a década de 1980, a organização do
novo comitê rapidamente tomou um caminho formalista e burocrático em
relação aos problemas sociais e ambientais. Hoje o CEIVAP parece, antes
de tudo, uma agência paragovernamental e não um fórum de
representação da diversidade de vozes que compõem o tecido popular da
bacia. A controvérsia em torno da cobrança teve ainda o efeito de
praticamente monopolizar as atividades do comitê e marginalizar a
consideração dos problemas sociais e ambientais concretos. Tal situação
pode ser facilmente detectada ao se analisar as atas das reuniões do
CEIVAP entre 2000 e 2007, onde fica claro que à medida que algum
membro do comitê propunha que, por exemplo, questões relacionadas à
poluição do rio, educação ambiental ou conflitos entre usuários de
montante e jusante fossem incluídas na agenda, essa voz ‘inconveniente’
era prontamente abafada pelo próprio desenrolar da reunião. Por
exemplo, em 12 de feveriro de 2004, um participante propôs que se
discutisse qual seria a justa distribuição de água entre os estados de São
Paulo e Rio de Janeiro, mas a questão não simplesmente avançou.
Igualmente, em outubro de 2006, outro participante queixou-se a respeito
da grave degradação nos trechos inferiores do rio, mas não despertou o
interesse do comitê. Provavelmente o melhor exemplo da incapacidade
do CEIVAP de administrar os problemas e conflitos na bacia esteja
relacionado à aprovação da usina hidroelétrica de Itaocara, uma unidade
com potencial de geração de 195 MW e que está associada a um
reservatório com 76 km2 de área superficial. Em 23 de agosto de 2005,
membros do comitê defenderam a aprovação sumária da nova barragem,
mas foram então questionados por uma representante de ONG. Uma
nova discussão sobre o mesmo assunto aconteceu em 16 de setembro de
2005 em uma reunião a que surpreendentemente compareceram apenas
os representantes dos empreendedores, mas não a população local que
seria desalojada com a construção da nova barragem (cf. Vainer et al.,
2004).16 Esse simples exemplo demonstra como o comitê, que deveria ser
uma arena de franco debate e de decisões democráticas, passou a
funcionar como um órgão com as portas fechadas aos grupos mais
vulneráveis da população. A controvérsia relacionada à barragem de

16O aproveitamento hidroelétrico de Itaocara está sendo construído pela empresa


Light, uma companhia que foi originalmente privada, posteriormente
nacionalizada, privatizada e passa agora por um crescente controle do Estado (O
Globo, 18 de maio de 2007). Isso demonstra a não linearidade dos processos de
comodificação e de-comodificação da água.
38

Itaocara talvez seja o caso mais ilustrativo, mas seguramente não foi o
único momento em que o papel do comitê como fórum legítimo e
paritário de representação tenha sido aviltado (há menção a situações
análogas nas próprias atas do comitê). Exemplos dessa natureza levam à
conclusão que, apesar da retórica de participação e descentralização
adotada pelo CEIVAP em suas publicações, o comitê de bacia tem de fato
apenas um tênue compromisso com a maioria da população local e com o
universo maior de pequenos usuários de água.
Apesar de ter sido objeto de menções honrosas, como quando
obteve em 2004 o prêmio ‘Melhores Práticas’ do Programa Habitat das
Nações Unidas, a incapacidade de lidar com a degradação ambiental e a
falta de democracia interna vêm marcando a experiência do CEIVAP
desde seu estabelecimento. Como referido por vários de nossos
entrevistados, existe mesmo uma perplexidade com os resultados tão
modestos atingidos até o momento. Algumas frases mencionadas durante
as entrevista ilustram essa percepção entre aqueles envolvidos no
processo:

“A complexidade do novo modelo de gestão [de recursos hídricos] foi


subestimada quando a lei [9433/1997] foi aprovada; [por causa dessa
complexidade] na prática, as decisões continuam sendo tomadas a
portas fechadas e com mínimo envolvimento do público.” (engenheira e
membro do CEIVAP, abril 2007).

“A distorção do novo sistema [de gestão de recursos hídricos] é


evidente; existe mobilização apenas onde tem cobrança. Essa tem sido a
prática oficial, mas o problema é que isso deixa tudo na dependência da
cobrança.” (professor e observador do CEIVAP, abril 2007).

“Os conflitos pela água são evidentes, mas são silenciosos, pouco
notados [no Paraíba do Sul]; (…) o que falta no processo todo é
participação pública real, envolvimento do povo pra valer.” (morado da
bacia e autointitulado ‘curioso’ em relação ao CEIVAP, maio 2007).

“Existe hoje uma grande falta de transparência na aprovação de


documentos e dos planos por parte do CEIVAP; total falta de
transparência.” (advogada e membro do CEIVAP, abril 2007).

Pode-se ressaltar que, apesar desse criticismo aberto, a maioria


dos nossos entrevistados entende que os problemas do comitê são
temporários e que, no longo prazo, as atividades tendem a melhorar. Para
muitos, não houve uma avaliação adequada da complexidade do trabalho
de gestão da bacia quando o CEIVAP foi organizado em 1996, em
particular a dificuldade de se conciliar a responsabilidade pelo rio
principal e alguns afluentes por parte do governo federal e a competência
39

dos três governos estaduais pela maioria dos afluentes. 17 Essa posição
cautelosa é também ecoada pelos autores que entendem que o sistema
regulatório é ainda muito jovem e deve possivelmente melhorar
(Machado, 2006). Contudo, uma análise mais cuidadosa dos objetivos,
procedimentos e resultados obtidos pelo comitê sugere que a manutenção
da degradação ambiental e a falta de inclusão social significativa são
demonstrações da inadequação estrutural do comitê e do modelo
regulatório em implantação, que sistematicamente cede a soluções de
caráter tecnoburocrático. Essa conclusão em relação aos problemas que
persistem na bacia pode ser demonstrada pela ‘agenda única’ dedicada à
implantação da cobrança. Tomando-se em conta o contexto de reformas
institucionais e a discrepância entre construção retórica e mudanças
efetivas, fica claro que a principal deformação causada pela concentração
de esforços em torno da cobrança se relaciona à neutralização da
participação popular. A ‘burocratização’ do envolvimento popular custa
nada para aqueles que detém poder econômico, mas serve para reduzir
tensões sociais e diminuir os cursos de transação relacionados ao novo
modelo de gestão ambiental (Low e Gleeson, 1999). No caso específico, o
CEIVAP tem basicamente imposto um modelo de gestão (inspirado na
literatura internacional, conforme mencionado acima) a uma população
desorganizada e incapaz de se envolver criativamente nas suas instâncias
formais. Mas se o novo comitê tem sido instrumental para a homologação
do novo modelo global de gestão de recursos hídricos (em especial, o
conceito de IWRM), o mesmo tem sido incapaz de lidar com a
complexidade dos problemas socioambientais na bacia e de acomodar, de
forma equitativa e sustentável, as múltiplas subjetividades e
desigualdades sociais. Como observado por (Brannstrom, 2004), o
objetivo central, ainda que não oficial, das reformas institucionais no
Brasil parece se restringir tão somente à implementação da cobrança pelo
uso da água.

A Democracia Interna no Comitê da Bacia Hidrográfica

Para entender como funciona a democracia interna no comitê da


bacia hidrográfica, é importante perceber o desequilíbrio de poder entre
os setores envolvidos. Esquematicamente, é possível separar os membros
do CEIVAP em pelo menos três ‘esferas concêntricas’ de influência. A
esfera central é ocupada pelos grupos com maior capacidade de interferir
na tomada de decisão, a começar pela Agência Nacional de Águas.
Muitos dos seus servidores estiveram envolvidos na formulação da nova

17Segundo a Constituição de 1988, os corpos d’água têm duas formas de


dominialidade: 1) pertencem à União os rios que cortam mais de um estado ou
são compartilhados com outros países; e 2) pertencem aos estados os rios contidos
nos seus territórios e as águas subterrâneas.
40

legislação e participam agora da sua implementação (Cabe observar que a


maioria dos diretores da Agência provém do Rio de Janeiro e de São
Paulo e, muitas vezes, tem razões pessoais para estarem envolvidos na
experiência do Paraíba do Sul). Como órgão central do novo modelo de
gestão de recursos hídricos no Brasil, a ANA tem tido um papel
dominante na reforma do setor, mas tem também sido em si mesma um
‘locus’ de disputas políticas. Ao invés de um perfil técnico ou meramente
regulador, desde sua criação a indicação de diretores e superintendentes
tem seguido um longo processo de negociação política entre os partidos e
grupos que apoiam o governo (tanto no governo FHC, quanto Lula).
Existe, portanto, uma persistente, e perversa, ‘simbiose’ entre interesses
paroquiais e a definição das prioridades nacionais de gestão de recursos
hídricos. Ainda na esfera central de poder situam-se também os
representantes do setor industrial e do agronegócio. Mesmo com uma
minoria de cadeiras, esses grupos têm conseguido manipular importantes
decisões do comitê, como a recente organização da agência de bacia
(chamada AGEVAP, o braço executivo do comitê), conforme detalhado
por Sousa Jr. (2004). A principal questão enfatizada pelo setor industrial é
o risco de que a arrecadação dos recursos da cobrança serem desviados
pelo governo para outros propósitos (com, em verdade, veio a acontecer
no início do processo; ver abaixo). As indústrias têm, portanto,
sistematicamente exigido garantias de que a arrecadação seja
permanentemente tratada como uma taxa ambiental e não como um
imposto.
No segundo nível de hierarquia do comitê – aqui descrito como
uma segunda ‘esfera de poder’– encontra-se um grupo mais heterogêneo
de participantes, o que inclui a representação das prefeituras municipais e
governos estaduais, ambientalistas, empresas de abastecimento de água e
saneamento e representações profissionais (como a influente Associação
Brasileira de Recursos Hídricos). Essa ‘esfera de poder’ tem tido uma
capacidade de influência mais discreta nas atividades do comitê do que
os grupos que constituem a o grupo decisório central (embora essa
classificação seja meramente esquemática e haja frequentemente situações
em que o papel de certos grupos nessa categoria se destaque acima da
média). Até mesmo o atendimento de reuniões do comitê tem se revelado
mais difícil para esses setores intermediários, uma vez que as despesas de
deslocamento devem ser pagas pelos próprios participantes e não são
reembolsadas pelo comitê. Por outro lado, há evidências que muitos
grupos insistem em participar das atividades do comitê devido a terem
interesse em obter alguma forma de compensação financeira. Diversas
pessoas entrevistadas durante nossa pesquisa teceram duras críticas, por
exemplo, a respeito do envolvimento de certas ONGs e acadêmicos que
parecem buscar o comitê apenas para assegurar contratos de consultoria
ou de prestação de serviços. De fato, na última década muitos acadêmicos
41

(e mesmo funcionários públicos) estiveram repetidas vezes envolvidos


em consultorias relacionadas à organização do CEIVAP e, em especial, à
introdução da cobrança. Em certo sentido, o processo se caracteriza como
a ‘profecia que se autorrealiza’, haja vista que os consultores
desenvolvem as bases teóricas e operacionais dos mecanismos de
cobrança que são utilizados para o pagamento de seus próprios serviços
de consultoria.
A terceira ‘esfera de poder’ entre os grupos sociais envolvidos ou
interessados nas atividades do comitê tem uma posição marginalizada e
é, na maioria das vezes, ignorada pelos membros nas outras duas esferas
centrais. Esse conjunto de atores sociais marginalizados inclui pequenos
usuários de água independentes (urbanos e rurais), pequenos
agricultores, pescadores, pequenas atividades produtivas, e a população
em geral. Pela falta de mandato formal, muitos enfrentam grandes
barreiras para participar e acompanhar a evolução das atividades do
CEIVAP (podendo normalmente participar das reuniões apenas como
ouvintes). Ainda assim, os membros efetivos do comitê geralmente
reagem contra as críticas e questionamentos feitos pela população como
uma demonstração da ‘falta de compreensão a respeito da relevância do
novo modelo de gestão de recursos hídricos’, mesmo quando a crítica é
feita por moradores diretamente afetados pelas decisões do comitê (como
no caso da barragem de Itaocara). A esse respeito, Valêncio e Martins
(2004) descrevem a exclusão dos grupos menos organizados da
população das bacias hidrográficas no Brasil como ‘a naturalização da
exclusão’, o que está diretamente relacionado com a ‘política do
esquecimento’ teorizada por Bakker (1999). A constante tentativa de
participar e ser ouvido pelos outros grupos que comandam as atividades
do comitê demonstra claramente a dimensão política do processo de
gestão de recursos hídricos no Paraíba do Sul. Como descrito por Žižek
(1998), em referência a Rancière (1995), a disputa política não se restringe
ao debate racional entre múltiplos interesses, mas está também associado
à conquista da oportunidade de ser reconhecido pelos demais como uma
voz legítima. Algumas pessoas entrevistadas protestaram até mesmo da
linguagem técnica e legalista utilizada nas reuniões do comitê, o que
indica a formação de um campo cognitivo (no sentido proposto por
Bourdieu) que sistematicamente exclui aqueles com alguma dificuldade
de entender detalhes do marco regulatório, com sua enorme lista siglas,
acrônimos, convenções e termos legais. Como foi expresso por uma
pessoa nessa terceira esfera de poder sobre a operação do CEIVAP:

“A nova estrutura de recursos hídricos, a nova lei [9433], ficam muito


distantes das necessidades dos moradores e dos movimentos sociais.”
(ativista do movimento social, abril 2007).
42

As três ‘esferas de poder’ esquematicamente descritas acima


obviamente existiam antes de o comitê ser instalado, mas o ponto crucial
a ser notado é que as assimetrias sociais foram reforçadas pela
implantação tecnocrática e turbulenta da cobrança pelo uso da água na
bacia. Em tese, o novo sistema de regulação deveria criar sinergias entre o
Estado e a sociedade, bem como favorecer a cooperação entre grupos
sociais, mas na verdade o que passou a acontecer foi um distanciamento
ainda maior entre as três ‘esferas de poder’. 18 Na prática, persistem
graves problemas ambientais, juntamente com a dificuldade estrutural de
aperfeiçoar a gestão da bacia. O problema crucial tem sido a afirmação de
uma ideologia tecnoburocrática como base do novo modelo de gestão, a
qual é diretamente influenciada pelo ambiente de reformas do Estado
brasileiro e pela hegemonia de políticas conservadoras no país e no
mundo. As contradições e limitações do novo ‘pacote’ de gestão de
recursos hídricos não podem ser entendidas em si mesmas, mas como
expressão fidedigna de uma concepção de uma sociedade de consumo
que é intrinsecamente problemática e insustentável. O restrito espaço de
debates e interação proporcionado pelo CEIVAP está relacionado à visão
convencional da bacia hidrográfica como uma arena propícia para a
aplicação de tecnologias e capitais empregados no uso de recursos
naturais, ao invés de ser um espaço formado por múltiplas trajetórias e
interações sociais (Massey, 2005). A compreensão da bacia hidrográfica
como um espaço socionatural em constante formação é o primeiro passo
para se chegar a mudanças profundas, o que Massey (2005)
magistralmente denomina o ‘espaço do [ato] político’.

Qual o Valor da Cobrança pelo Uso da Água?

Como discutido acima, a introdução da cobrança pelo uso da


água no Paraíba do Sul tem ocupado grande parte das atividades do
CEIVAP, uma vez que representa a principal ferramenta de políticas
ambientais na bacia. Tal situação não é de modo algum excepcional, mas
em todos os países que passam por reformas institucionais semelhantes, a
cobrança inevitavelmente atrai grande controvérsia (o exemplo da
Escócia e da Irlanda do Norte são paradigmáticos) e passa a ‘contaminar’
os esforços em outras áreas. As disputas políticas em torno da adoção da
cobrança revestem-se de uma complexidade adicional, entre os possíveis
instrumentos regulatórios, em razão da necessidade de haver um regime
institucional que defina claramente a propriedade sobre os recursos
hídricos (ou de delegação da propriedade do Estado para os usuários,
como no caso do Brasil, através da outorga de direito de uso). Devido a

18Sob crescentes críticas, em 2006 o CEIVAP contratou uma consultoria para


desenvolver um ‘plano estratégico’ para a implementação dos instrumentos
regulatórios, em especial voltado aos afluentes do Rio Paraíba do Sul.
43

essa exigência fundamental para o sucesso da cobrança, a discussão sobre


os direitos de propriedade e a preparação de bases operacionais para a
introdução da cobrança normalmente tornam-se a prioridade central das
reformas de recursos hídricos, mesmo que isso reduza o interesse pela
degradação socioambiental da bacia, pela democratização efetiva das
decisões e pela adoção de medidas compensatórias para as desigualdades
sociais e espaciais. No caso do Paraíba do Sul, a preponderância da
cobrança foi definida exogenamente pelo governo federal ao decidir que
a bacia seria um laboratório do novo modelo regulatório e, desse modo, o
trabalho principal do comitê seria remover quaisquer os obstáculos à
implantação da cobrança. Como brevemente mencionado acima, houve
um debate acirrado e marcado por oportunismo político no âmbito do
comitê, que resultou em uma decisão favorável e, a partir de 2003,
passou-se a cobrar pelo uso da água bruta.19 No papel, o instrumento da
cobrança se justifica como a melhor opção para se mitigar o passivo
ambiental, induzir o uso racional e realocar recursos hídricos de acordo
com a eficiência econômica (Garrido, 2004). Na prática, porém, até o
momento produziram-se somente pequenos investimentos na
regeneração de margens dos rios e sistemas isolados de saneamento.
Para se avaliar objetivamente os resultados da cobrança na
BHRPS, far-se-á aqui uso dos critérios propostos pela OCDE (1991) para
instrumentos econômicos de gestão ambiental, quais sejam: eficiência
ambiental, equidade, aceitabilidade, viabilidade administrativa e
eficiência econômica. Em termos do primeiro critério – eficiência
ambiental – é indiscutível que o mecanismo da cobrança tem sido
grandemente incapaz de restaurar a condição ambiental da bacia. Em
termos concretos, os impactos negativos da falta de tratamento de esgotos
urbanos e efluentes industriais, extração de areia e captação de água
continuam praticamente inalterados. Entre 2003 e 2006, foi arrecadado
um total de R$ 25,4 milhões (dados fornecidos pelo comitê),
consideravelmente menos do que a necessidade estimada para recuperar
a bacia: R$ 360 milhões por ano em investimentos ou R$ 4,6 bilhões até
2025 (Coppetec, 2006). Em 2006, quatorze municípios foram
contemplados com recursos oriundos da cobrança em um total de R$ 7,1
milhões, basicamente aplicados em projetos localizados e com limitada
potencial de recuperação ambiental. Mesmo esses modestos

19A metodologia de cálculo previa que todos os usos acima de certos limites (i.e.
usos consuntivos acima de 1 litro por segundo e hidroeletricidade com potencial
acima de 1 MW) devem pagar uma taxa mensal, calculada de acordo com a
quantidade de água utilizada, a percentagem de uso e a qualidade do efluente
final. Há uma taxa padrão (R$ 0,02/m3) para indústrias, abastecimento público e
mineração, e descontos significativos para agricultura e aqüicultura. Durante o
período dessa pesquisa, a metodologia da cobrança estava sendo revista (algo
considerado inconveniente e desnecessário para alguns de nossos entrevistados).
44

investimentos têm sido selecionados em função de interesses político-


partidários e pressão de empreiteiros sobre os prefeitos locais
(principalmente pelo fato de serem recursos a fundo perdido). Uma
seleção nem sempre transparente contribui para minar o diálogo entre os
membros do comitê, além de aumentar o nível de desconfiança do
público em relação aos reais propósitos do novo modelo de gestão.
Considerando o segundo critério da OCDE – equidade – existem
pelo menos dois fatores principais que comprometem o sucesso da
cobrança. Em primeiro lugar, empresas comerciais e companhias de
abastecimento de água transferem os valores pagos ao comitê
diretamente a seus clientes, o que significa que os custos ambientais são
meramente incorporados nos preços dos serviços e produtos sem que
haja a possibilidade de se chegar à justa redistribuição de
responsabilidades, mas apenas reforçando a situação dos grupos
privilegiados (como observado por Enzensberger, 1996). Em segundo
lugar, não existe qualquer previsão de compensação pela degradação
ambiental causada nas últimas décadas e que gerou ganhos econômicos
apropriados de modo desigual pelos grupos dominantes. Mais
especificamente, muitas indústrias vêm fazendo uso de recursos hídricos
e degradando o rio por muitos anos, mas tem valores de cobrança pelo
uso da água igual a empresas mais recentemente instaladas na bacia. Isso
significa uma desigual alocação de responsabilidades pela condição da
bacia e constitui uma forma de ‘subsídio’ na forma de ganhos obtidos no
passado, mas gratuitamente mantidos no presente.
Passando-se para o terceiro critério – aceitabilidade – existe ainda
grande ceticismo e falta de informação entre grande parte da bacia a
respeito da cobrança. Mesmo economistas diretamente envolvidos na
fundamentação teórica da cobrança reconhecem que a situação fica muito
aquém do desejado (cf. Azevedo e Baltar, 2005). Entre os setores de
usuários de água, os industrialistas têm mantido a posição mais
oportunista e variável. Inicialmente, a representação do setor industrial
no comitê, constituído pelas federações de São Paulo (FIESP), Rio de
Janeiro (FIRJAN) e Minas Gerais (FIEMG), mostrou-se irredutível na sua
desconfiança em relação à cobrança, mesmo que concordasse a respeito
da grave condição ambiental da bacia (FIRJAN, 2002). Como descrito
acima, em 2002 o setor decidiu aceitar o inevitável e concordou que a
cobrança fosse implementada, essencialmente com o propósito de
capitalizar politicamente e melhorar sua imagem de ‘responsabilidade
corporativa’. Mesmo assim, existe ainda uma minoria de industrialistas
que mantém sua contrariedade com terem de passarem a pagar pelo uso
da água (Féres et al., 2005). Essa reação se repete em outros setores de
usuários e, considerando-se o ano de 2004, mais de 50% se recusou a
pagar ou atrasou o pagamento (Soares, 2005). De acordo com dados do
45

CEIVAP, a receita obtida pela cobrança se mantém constante desde 2003,


o que sugere que a aceitabilidade não tem melhorado.
Em relação ao quarto critério – viabilidade administrativa – a
experiência na BHRPS tem sido problemática. Em grande medida, a bacia
tem pagado um alto preço por ter sido a primeira a adotar o instrumento
da cobrança após a aprovação da nova lei em 1997. Em sua fase inicial,
quando a bacia ainda não contava com uma agência executiva (agora em
operação e denominada AGEVAP), a receita era administrada
diretamente pela ANA. Pelo fato de ser um órgão público, nos últimos
anos a Agência teve a execução de seu orçamento sistematicamente
restringido pela área financeira do governo (basicamente, com o
propósito de assegurar superávit financeiro). Nesse contexto, nos
primeiros meses, a arrecadação dos valores da cobrança na bacia foi
indistintamente considerada como uma forma de imposto e, portanto,
passível de ser contingenciada. Esse desvio do propósito e da
configuração jurídico da cobrança suscitou forte reação no setor de
recursos hídricos e, em 2004, uma nova legislação foi aprovada no sentido
de se evitar que o problema continuasse, uma vez que a nova agência de
bacia (AGEVAP) ficou encarregada de coletar e administrar a cobrança.
Até certo ponto, a nova lei provê alguma proteção contra a voracidade da
área financeira. Contudo, persiste a questão da dualidade de
competências entre governo federal e estadual (ver nota número 15). Na
prática, isso significa que a BHRPS tem não um, mas quatro mecanismos
de cobrança, com metodologias de cálculo distintas para o mesmo
manancial hídrico, o que representa um desafio permanente para a gestão
e administração da bacia.20 Embora não seja excludente do ponto de vista
legal e de sua esfera competente, a dificuldade de integração entre
estados e a união significa um dos pontos críticos de todo o modelo de
governança em implementação, uma particularidade brasileira que torna
ainda mais difícil se atingir o objetivo de uma gestão integrada.
Provavelmente, a falha principal do instrumento da cobrança na
BHRPS esteja relacionada ao quinto critério de avaliação, eficiência
econômica. Em termos da economia neoclássica, fonte direta de
inspiração do novo marco regulatório, ganhos de eficiência estão
relacionados à alocação de recursos de acordo com a utilidade marginal e
buscando baixos custos de transação [transaction costs]. Mesmo com esse
claro objetivo econômico, até o momento a cobrança na bacia tem pouco
influenciado qualquer situação de realocação de água entre usuários,
tampouco tem evitado a expansão indiscriminada do uso da água.
Mesmo que algumas indústrias locais tenham recentemente investido em
tratamento de efluentes, isso se deveu muito mais a decisões tomadas

20 Alémdas disputas entre estados, existem na BHRPS uma associação de usuários


de água, quatro comitês de sub-bacias, sete consórcios de municípios, além de um
verdadeiro ‘consórcio rival’ na seção paulista da bacia (i.e. CBH-PS).
46

anteriormente e não ao incentivo da cobrança. Em uma pesquisa com 488


indústrias na bacia, Féres et al. (2005) concluíram que a cobrança, pelo
menos na sua fase inicial, não se configurou como um incentivo eficaz
para reduzir o nível dos efluentes. A pesquisa mostrou que as empresas
que investiram na redução da poluição o fizeram com o intuito de evitar
má publicidade durante o processo de organização do comitê de bacia.
Um de nossos entrevistados também expressou sua concordância com
essa conclusão:

“O principal benefício da cobrança é melhorar a imagem das empresas


multinacionais, porque elas usam a informação de que estão pagando
pela água, de que estão observando o princípio do poluidor-pagador,
como forma de ganhar certificação internacional (…).”

O mesmo entrevistado ainda acrescentou:

“A melhoria inicial da condição do rio é relativamente fácil, sem muito


problema, mas a questão é como manter o ritmo de despoluição e
garantir mais melhoria da qualidade da água” (acadêmico e ex-membro
do CEIVAP, abril 2007).

Nossos resultados a respeito da cobrança na BHRPS,


especialmente tendo em conta os cinco critérios analisados acima,
coincidem com as observações de Molle e Berkoff (2007) a respeito da
necessidade de compatibilizar esse instrumento de regulação com
reformas políticas mais profundas e que permitam um aprofundamento
democrático e divisão de responsabilidades. Segundo Liodakis (2000), o
conceito de ‘externalidades ambientais’ contribui para o entendimento da
degradação ambiental, mas a tentativa de internalizar tais externalidades
(como pela aplicação de taxas ambientais semelhantes à cobrança) apenas
torna óbvias as falhas de mercado e demonstra a inadequação das
políticas convencionais de gestão do meio ambiente. Como antes
observada por Kapp (1970), a dificuldade maior para a adoção de
instrumentos de gestão ambiental baseados em regras de mercado é que
um valor monetário passa a ser atribuído a um recurso que totalmente
dissociado do mercado (e.g. água). A consequência perversa desse
processo de mistificação de valores é o fato que os usuários de água
passam a ser tratados de acordo com sua capacidade de pagamento,
erodindo as diferenças sociais historicamente estabelecidas e, desse
modo, acobertando as responsabilidades pela degradação e recuperação
dos mananciais hídricos. Através da cobrança pelo uso da água, o novo
marco regulatório passou a legitimar atividades que há décadas são
responsáveis pela degradação da bacia, uma vez que o pagamento ao
comitê se transforma em uma desculpa oficial para que não se questione a
localização, operação e escala de tais atividades. De fato, industrialistas e
47

irrigantes têm feito uso político da sua contribuição financeira ao comitê


como argumento em favor de outras compensações fiscais e como
garantia de uma aplicação branda da nova legislação ambiental. Por tais
razões, não é possível concordar com Formiga-Johnsson et al. (2007) –
antes de qualquer coisa, autores que tem prestado consultoria para o
desenho do novo modelo de gestão (para mais detalhes da estreita
relação entre acadêmicos e CEIVAP, ver Gruben et al., 2002) – quando
afirmam que a introdução da cobrança na BHRPS tem sido um sucesso
em termos de inclusão e eficiência técnica. Muito pelo contrário, a
oportunidade de realmente se avançar na solução dos graves problemas
da bacia tem sido perdida em função de uma insistência ideológica pela
adoção de instrumentos econômicos de gestão de recursos hídricos.
Apesar de toda a controvérsia, a cobrança tem sido pouco mais do que
um pequeno contratempo para os grandes usuários de água, ao mesmo
tempo em que significa o esvaziamento de ações na direção da
sustentabilidade e justiça ambiental.

Conclusão: Reconhecer os Limites das Reformas Institucionais

A discussão acima buscou demonstrar como as reformas


institucionais no setor de recursos hídricos têm sido marcadas pela
afirmação de uma racionalidade tecnoburocrática, a qual vem apenas
produzido respostas inadequadas aos problemas de gestão das bacias
hidrográficas com alto nível de conflitos e degradação ambiental. É
preciso reconhecer os limites metodológicos da pesquisa aqui relatada,
especialmente pelo fato de se basear em um estudo de caso voltado a
apenas uma única bacia, fazendo uso somente de métodos qualitativos de
análise e cobrindo um momento histórico determinado. Não resta dúvida
que se trata, portanto, de uma simplificação de uma realidade nacional
muito maior, cheia de particularidades locais, incoerências
administrativas e conflitos multifacetados. Mesmo assim, a experiência
do Paraíba do Sul, dado o seu pioneirismo e complexidade, serve como
amostra significativa dos limites e possibilidades do novo modelo
institucional em implantação no país. No caso específico, os
desdobramentos da última década representam apenas o capítulo mais
recente de uma longa história de transformações socioambientais e
desenvolvimento desigual. Os resultados de mais de 300 anos de intensa
atividade agrícola, urbana e industrial continuam sendo rios e solos em
sério estado de degradação, ao passo que saneamento básico e
salubridade adequada ainda são fatores inacessíveis a significativas
parcelas da população. A faceta conservadora e excludente de gestão de
recursos hídricos continua indiscutivelmente tão evidente no presente
como no passado, uma vez que o novo arranjo institucional – incluindo
aqui o novo comitê de bacia e a cobrança pelo uso da água – mantém
largamente inalteradas as bases desiguais de tomada de decisão e
48

alocação de recursos hídricos. Se no passado a conservação ambiental


esteve praticamente ausente quando grandes obras de engenharia foram
construídas para atender a uma industrialização acelerada, o meio
ambiente passou a receber maior atenção, porém sem que se discuta
como os impactos ambientais afetam de modo diferenciado a diferentes
grupos sociais, nem tampouco como o balanço desigual de poder
condiciona a tomada de decisões a respeito da recuperação das condições
ecológicas. A advocacia de conceitos como ‘governança ambiental’ e
‘gestão integrada’ vem sendo feita de modo centralizado e atendendo aos
interesses dos atores sociais mais influentes, o que demonstra como tais
conceitos fazem com que se mantenham inalteradas as bases de uso e
gestão da bacia, ainda que o discurso aponte exatamente na direção
contrária. Ou seja, as reformas institucionais caminharam na direção dos
objetivos de governança e integração previstos na doutrina internacional,
mas houve pouca melhoria em termos de problemática socioambiental.
Em outras palavras, a introdução das novas instituições de gestão
(previstas na Lei 9433) pode ser avaliada como razoavelmente bem
sucedida, no que diz respeito a mudanças formais, mas constitui uma
reforma limitada, haja vista que sua faceta tecnoburocrática tem
comprometido o próprio entendimento dos problemas e a incorporação
das demandas da maioria da população local.
Apesar do evidente descompasso entre os objetivos e os
resultados efetivos, é sintomático que existam ainda poucas avaliações
críticas da experiência do Paraíba do Sul ou de outras bacias brasileiras.
Tal fato contribui para manter a ilusão de que o processo caminha na
direção correta, enquanto que a água continua sendo objeto de interesses
e acirradas disputas. O aspecto central a ser ressaltado é o fato de o novo
modelo institucional de recursos hídricos refletir uma visão utilitarista da
relação entre sociedade e natureza, basicamente em favor de políticas
públicas que garantam, cada vez mais, a apropriação privada dos
recursos naturais, mesmo que às custas da estabilidade ecológica de
longo prazo. Para as políticas oficiais contemporâneas, a gestão de
recursos hídricos deve se inserir na agenda de ‘modernização ecológica’,
segundo os objetivos ambientais de uma ‘sociedade de mercado’.
Exemplos nesse sentido são o envolvimento cada vez maior de empresas
privadas na gestão de serviços públicos de água e energia hidroelétrica,
assim como os programas da ANA ligados à compra de esgoto tratado
(PRODES) e à ‘produção de água’, onde ações conservacionistas são
pagas em dinheiro. Como descrito por Smith (2007), a modernização
ecológica torna a própria conservação ambiental em mecanismo de
acumulação de capital. Através da ocupação do cerne da gestão de
recursos hídricos pela lógica de acumulação, os usuários de água são
progressivamente reduzidos a uma condição de ‘sócios’ do crescente
‘negócio da água’ (negócio no sentido amplo de criação de um contexto
49

favorável a transações, e não envolvendo necessariamente a compra e


venda de água), ao invés de serem tratados como ‘cidadãos’ com
capacidade de contribuir ativamente e sem a necessidade de serem
cooptados (ou corrompidos) por meio de incentivos monetários.
É justamente nessa tendência de crescente expressão do valor
econômico dos recursos hídricos que a introdução da cobrança pelo uso
da água tem tido um papel estratégico de consolidação de uma
racionalidade economicista à relação entre sociedade e natureza. Ao
explicitar um valor monetário de um recurso natural de uso comum (na
terminologia de economia política, sobrepor o valor de troca ao valor de
uso e ao valor em si da água), a cobrança contamina todas as relações em
torno da distribuição, uso e conservação dos recursos hídricos. Ou seja,
em razão da cobrança, tanto os impactos ambientais, quanto a
importância socionatural da água passam a ser pensados somente em
termos monetários, eliminado outras possíveis visões alternativas de
mundo. Evidentemente que é preciso não tender para uma análise
maniqueísta, mas perceber que, apesar das deficiências encontradas na
implementação da Lei 9433, o processo de instalação de comitês tem
também levado a avanços, especialmente por ampliar o debate a respeito
dos problemas de gestão de recursos hídricos. Nesse sentido, como já
indicado por Acselrad (1995), as contradições relacionadas aos
instrumentos econômicos de gestão ambiental devem ser criativamente
apropriadas pelos movimentos organizados e forças de resistência como
uma oportunidade política para se questionar as experiências locais e os
pressupostos do pensamento ambiental contemporâneo. Mas, antes de
mais nada, é preciso compreender, na academia e fora dela, que a
materialidade dos problemas ambientais e sociais associados aos recursos
hídricos têm causas e repercussões políticas inexpugnáveis. Como
observado por Latour (2004: 58), a importância histórica da crise
ambiental atual decorre da impossibilidade de se continuar a imaginar o
ato político dissociado do mundo natural que serve de base à política.
Por todas essas razões, o novo marco regulatório de gestão de
recursos hídricos no Brasil, como em muitos outros países, significa em
grande medida uma reforma circunstancial e restrita – enfim, incompleta
em si mesma – porque interna e subordinada ao mesmo modelo
econômico e político que foi historicamente responsável pela degradação
ambiental e pela consolidação de privilégios. Ao invés de favorecer a
recuperação do dano causado, políticas ambientais baseadas na lógica de
mercado (simbolizadas, mais do que nada, pelo princípio neoclássico do
‘poluidor-pagador’, o qual dissocia o ato poluidor de responsabilidade
pela degradação e pelos ganhos acumulados ao longo de anos) são
intrinsecamente limitadas pelo fato de ignorarem a importância das
assimetrias sociais e injustiças ambientais. É impossível se esperar ganhos
em termos de sustentabilidade ambiental sem que ao mesmo tempo se
50

aprofundem as condições democráticas e se reduzam as desigualdades


socioeconômicas. Como bem observado por Middleton e O’Keefe (2001:
16), “a não ser que a análise de desenvolvimento comece não com os
sintomas, instabilidade ambiental e econômica, mas com a causa, injustiça
social, nenhuma forma de desenvolvimento pode ser sustentável”.

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Capítulo 3

Amazônia, Água e Vida

As características e as dimensões da Bacia Amazônica foram sempre uma


fonte inigualável de vida e de história. Em 1542, Francisco de Orellana, o
primeiro explorador europeu que se aventurou das nascentes à foz,
batizou o rio principal com a mitologia de suas mulheres guerreiras: Rio
Grande das Amazonas. Desde então, quanto mais se sabe sobre as águas,
maior é o deslumbramento. Com mais de mil afluentes irrompendo dos
dois hemisférios da Terra, o grande rio lança ao mar 15,5% de toda a
vazão do planeta. A média anual chega a 209.000 m 3/s, sendo que 64%
dessa vazão tem origem dentro das fronteiras brasileiras. Os afluentes
descem das serras e dos planaltos para invadir uma imensa planície com
altitudes que não ultrapassam 200 metros acima do nível do mar. As
baixas latitudes garantem um fluxo constante de energia solar ao longo
de todo o ano, o que alimenta um poderoso ciclo hidrológico. Altas taxas
de energia e umidade oferecem condições incomparáveis para o
desenvolvimento de ecossistemas exuberantes. A principal formação
vegetal, chamada de floresta ombrófila densa, cobre solos geralmente
intemperizados e pobres em minerais, valendo-se da reciclagem de
nutrientes e da abundância de água para sua sobrevivência.
A interação entre regime hidrológico e comunidades biológicas é
tão estreita que, ao longo do tempo, o próprio desenvolvimento da
floresta passou a influenciar o clima. Estima-se que a média de
precipitação seja de 2.400 mm/ano, mas que, desse total, 1.382 mm/ano
voltem para a atmosfera na forma de evapotranspiração. A floresta,
portanto, não é somente consequência do clima, mas as condições
climáticas dependem, em grande medida, da cobertura florestal. Isso
significa que, apesar da grande quantidade, não existe sobra de água na
Amazônia, uma vez que a manutenção do ecossistema depende da água
disponível. Da mesma forma, a evolução da natureza amazônica contou
também com a ação de grupos sociais que, criativa e gradativamente,
alteraram a composição das florestas, campos e várzeas, da mesma forma
que modificaram os mananciais de superfície como paranás, igarapés,
lagos, além dos próprios rios. O universo que resulta desse ‘metabolismo’
permanente entre sociedade e natureza tem a água com um elemento
vital e integrador. A paisagem socionatural da Amazônia não é externa à
atividade social, mas foi intensamente vivenciada pelos ancestrais e
deixada às atuais gerações como a encarnação de sua experiência
temporal, com um verdadeiro monumento da continuidade da vida.
56

Apesar de ser a “Pátria das Águas” (conforme denominação do


poeta Thiago de Melo), as pressões do desenvolvimento econômico têm
cada vez mais comprometido a base ecológica e social da Amazônia. Os
problemas de uso e conservação das águas são parte de uma destruição
que atende a interesses políticos e econômicos de curto prazo. A
característica básica do modelo de ‘desenvolvimento’ imposto à
Amazônia é a expulsão da floresta para ceder lugar à agricultura, à
exploração hidrelétrica e à mineração (discutidas a seguir). A remoção da
floresta invariavelmente leva à degradação dos cursos de água, ao mesmo
tempo em que a construção de barragens ao longo dos rios tem impactos
negativos sobre a natureza e as populações locais. A ‘investida’ contra a
Amazônia é apenas a etapa avançada de um regime econômico anti-
humano e antiambiental, enfim, antiecológico, o qual, no restante do país,
consolidou desigualdades sociais profundas, demonstradas na crescente
miséria das periferias urbanas e na crônica pobreza do campo. A
diferença entre a destruição da Amazônia e o que acontece nas outras
regiões é, por um lado, a velocidade com que os ecossistemas são
convertidos em lucros transitórios e, por outro, a enormidade das chagas
socionaturais deixadas pelo ‘progresso’.

Crescimento Econômico e Degradação Ambiental

Se entendermos a exploração das Américas como cinco séculos de


um grande experimento da história humana, podemos afirmar que a
Amazônia, nas últimas cinco décadas, representou o principal
‘laboratório de testes’ da tecnocracia brasileira. As aberrações
tecnocráticas começaram ainda nos primeiros anos da ditadura militar,
quando uma região que compreende 54,4% do território brasileiro e
encerra 78% da reserva de água doce nacional foi julgada culpada pela
sua geografia e condenada a passar por um processo de domesticação
chamado ‘desenvolvimento’. Ao invés de preservar os ecossistemas e os
recursos naturais, que são a base fundamental da riqueza regional, o
‘desenvolvimento’ foi promovido como um ataque frontal à estabilidade
natural e às populações locais. Atuando por meio de planejamento
centralizado e corrupção sistêmica, os militares liberaram forças que, logo
em seguida, fugiram ao seu controle... e “a Amazônia começou seu
apocalipse”. A incorporação da região ao modelo econômico hegemônico
foi um processo profundamente ideológico, formulado pelo governo
brasileiro e estimulado por organizações financeiras internacionais. Entre
as várias atividades que passaram a receber incentivos governamentais
diretos ou indiretos, a história demonstra que a agricultura predatória e
de curto prazo (chamada de ‘agricultura moderna’) tem o maior poder de
devastação. A abertura de fazendas na Amazônia foi estimulada não
somente por benesses fiscais, mas por uma legislação que
57

equivocadamente considera a remoção da vegetação como


melhoramento’ da propriedade.
Incentivada pelas políticas governamentais inconsequentes e por
ganhos econômicos imediatistas, a expansão agrícola na Amazônia
produziu um dos maiores processos de privatização de terra da história
da humanidade, o que não é apenas uma tragédia social pela perda de
recursos de uso comum e proletarização das populações locais, mas se
configura também em uma tragédia ecológica de proporções planetárias.
Novas fazendas começaram a ser abertas a partir de 1966, especialmente
ao longo das rodovias Belém-Brasília, da malfadada Transamazônica, da
BR-364 (Cuiabá–Porto Velho, onde mais de 160.000 agricultores foram
atraídos a cada ano durante a década de 1980) e da BR-163 (Cuiabá–
Santarém, em processo de pavimentação, o que ameaça acelerar ainda
mais a ocupação agrícola). A partir da década de 1990, contando com
novas tecnologias agronômicas, os fazendeiros passam a depender cada
vez menos de incentivos diretos do governo para expandir a produção de
grãos e de carne na Amazônia. Uma melhor infraestrutura de transporte,
o que inclui a navegação fluvial, especialmente a partir do porto de
Santarém, passou também a viabilizar a exploração de áreas ainda mais
remotas.
Como o objetivo é obter lucro o mais rápido possível, a
agricultura se expande através do corte brutal da floresta, seguido do uso
do fogo para ‘limpeza’ das glebas. Árvores centenárias, que serviam de
habitat para uma inumerável quantidade de plantas, insetos, aves e
outros animais, são desprezadas e queimadas como se fossem palitos de
fósforo. Com a remoção da floresta, em poucos anos o solo perde a
fertilidade natural e fica exposto a processos erosivos significativos. Da
mesma forma, o desmatamento produz alterações marcantes no ciclo
hidrológico, uma vez que a floresta servia como proteção do solo durante
a estação chuvosa e reserva de água para a estação seca. Sem a floresta, as
vazões aumentam durante o período chuvoso e se reduzem durante o
período seco. Ao longo dos anos, com menores concentrações de vapor na
atmosfera, há a tendência de diminuição progressiva da precipitação
anual. É importante reconhecer que o cálculo do balanço hídrico da
Amazônia não é um exercício trivial para os modelos hidrológicos hoje
disponíveis, sendo particularmente difícil de se demonstrar a correlação
entre o desmatamento, variações na precipitação e na vazão dos rios.
Apesar de tais dificuldades técnicas, existem indícios claros de alterações
no ciclo das águas em bacias hidrográficas severamente desmatadas na
parte sul da Amazônia. Novas pesquisas deverão confirmar e aprofundar
o entendimento da relação entre desmatamento e variabilidade
hidrológica.
A maior parte do desmatamento se concentra nos estados do
Pará, Mato Grosso e Rondônia, onde grandes e médias fazendas
58

respondem por aproximadamente 70% da floresta removida. O restante


do desmatamento é causado por pequenos produtores que geralmente
chegam à Amazônia depois de serem expulsos do sertão nordestino ou
dos latifúndios do centro-sul. A perversidade do modelo
macroeconômico brasileiro faz com que exista uma relação estreita entre
aceleração da economia e desmatamento na Amazônia. Entre os anos
1989 e 1994 houve um declínio na taxa de desmatamento em razão
basicamente da crise pós-Plano Cruzado. Com a estabilidade monetária
oferecida pelo Plano Real, o ano de 1995 atingiu o maior pico de
desmatamento da história amazônica. Em agosto de 2007, o Ministério do
Meio Ambiente anunciou uma desaceleração do desmatamento de 25%
entre 2005 e 2006, o que infelizmente indica que a agressão continua
apenas a taxas circunstancialmente menores. Os produtores de carne têm
aproveitado o crescimento do mercado interno e a crescente demanda por
proteína animal nos países que passam a se incorporar ao mercado
globalizado para expandir a produção pecuária na Amazônia (o consumo
de carne per capita no Brasil é de 38-40 kg/ano, mas é um setor com uma
alta elasticidade de renda; isso significa que, se houver um aumento
anual no PIB de 2%, o consumo aumentará em 1 kg/habitante por ano).
Curiosamente, os pecuaristas, responsáveis pela maioria do
desmatamento vêm incorporando elementos do discurso ambientalista
como justificativa para a atividade pecuária na Amazônia. Cada vez mais
se enfatiza o papel do chamado ‘boi verde’, ou seja, a produção de gado
em pastagens extensivas com um manejo zootécnico mínimo,
suplementação mineral e controle sanitário. Na verdade, tais práticas
constituem o padrão tecnológico atualmente adotado na maioria das
fazendas. Apenas se acrescentam as expressões ‘boi verde’ ou ‘carne
orgânica’ para diferenciar a produção pecuária brasileira, basicamente a
pasto, da produção intensiva praticada em outros países (teoricamente,
mais sujeitas a doenças causadas pela produção intensiva e confinada,
como a ‘doença da vaca louca’). Apesar da aparente ‘conversão’ dos
pecuaristas às causas ecológicas, a produção pecuária causa sérios
impactos ao solo, à flora e fauna e, principalmente, aos recursos hídricos.
A falácia do ‘boi verde’ demonstra como somente com um aumento de
eficiência e modernização produtiva não há como resolver os problemas
de gestão de águas, uma vez que se ignoram as questões políticas e
sociais que levam à degradação ambiental.
O segundo processo de apropriação e degradação das águas
amazônicas a serviço do ‘desenvolvimento’ é a construção de barragens
para geração de energia hidrelétrica. Tendo em conta as particularidades
da região, em especial as extensas planícies, construir barragens seria
uma iniciativa altamente temerária. Mas quando se soma a isso um
processo político autoritário, conhecimento científico limitado, interesses
financeiros e corrupção generalizada, tem-se uma receita prefeita de
59

desastre... Assim tem sido a experiência de geração de energia


hidrelétrica na Amazônia. Os primeiros projetos foram Coaracy Nunes,
no Amapá, e Curuá-Una, no Pará, mas o pior exemplo de incompetência
foi Balbina, uma usina que abastece Manaus com baixíssima eficiência de
geração em relação à área alagada (0,11 MW/km2 em 4.438 km2
alagados). Já os maiores impactos ocorreram em Tucuruí, onde 2.430 km 2
de floresta foram alagados e mais de 33.000 pessoas (além da população
indígena) tiveram que ser reassentadas. A barragem de Tucuruí inundou
parte de três áreas indígenas (Parakanã, Pucuruí e Montanha), o que foi
somado ao impacto das linhas de transmissão e da mudança do percurso
da rodovia Transamazônica para acompanhar a margem ocidental do
reservatório. Como em tantos outros casos na história brasileira, os
grupos indígenas perderam suas terras ancestrais e passaram a sentir na
pele a arrogância e o descaso das políticas de ‘desenvolvimento’. O lago
artificial de Tucuruí levou à extinção de diversas espécies biológicas e à
proliferação de doenças de veiculação hídrica. Nos primeiros anos, o lago
apresentou péssima qualidade da água em razão da decomposição
anaeróbica da vegetação e do uso criminoso de herbicidas, somados à
estratificação térmica e química da água. Muitos desses problemas ainda
continuam sem solução.
Apesar dos erros do passado, a ameaça de exploração hidrelétrica
da Amazônia nunca esteve tão em pauta como agora, já que a região
alegadamente detém cerca de 50% do potencial elétrico nacional. O Plano
2010 da Eletrobrás lista 297 locais aptos para a instalação de novas usinas
no país, sendo que 79 das obras se localizam na Amazônia. As duas
principais áreas de expansão estão localizadas no Rio Madeira e
formadores do Tapajós, e nos Rios Xingu e Tocantins. Na Bacia do
Madeira, depois de uma longa disputa política, as usinas de Jirau e Santo
Antônio receberam licença prévia de instalação em julho de 2007,
aceitando o alagamento de 529 km2 (ver abaixo). Na Bacia do Xingu,
apesar de ter sido aprovada pelo Congresso Nacional em 2005, continua a
polêmica em relação à Barragem de Belo Monte. Desde 1989, a população
de Altamira e os indígenas mantêm uma resistência organizada e
bastante influenciada pela traumática experiência com Tucuruí. Em razão
dos protestos, o desenho inicial foi alterado e a área a ser alagada
diminuiu de 6.000 km2 para 400 km2. Contudo, persiste a grande
desconfiança de que o projeto total envolveria outras barragens a
montante de Belo Monte. Existe a suspeita que esse projeto
megalomaníaco, o terceiro maior do planeta, teria o objetivo de não
somente gerar energia elétrica, mas também facilitar a atração de mais
agricultores para a Amazônia Oriental. Outras atividades estariam sendo
planejadas em função de Belo Monte, como um acordo com investidores
chineses para instalar uma usina de alumínio na região de Barcarena
(Pará). Fica mais uma vez demonstrado como o aproveitamento das
60

águas da Amazônia torna-se cada vez mais integrado às desigualdades e


distorções da globalização econômica.
Além da agricultura e das hidrelétricas, a mineração e o garimpo
são intervenções que também causam impactos consideráveis sobre as
águas da Amazônia. O maior projeto de mineração, Carajás, consumiu
US$ 62 bilhões para permitir a extração de ferro, ouro, níquel, cobre,
manganês e bauxita, mas as repercussões ambientais incluem também a
exploração florestal e agrícola, fazendo com que as repercussões de
Carajás se estendam por mais de 10% do território nacional. Da mesma
forma, a mineração de bauxita no Rio Trombetas tem sido responsável
pela deterioração da qualidade da água em função da lavagem de
efluentes tóxicos. Há também denúncias de que a exploração de petróleo
em Urucu e Juruá vem lançando rejeitos oleosos nos rios e causando
poluição pelo rompimento de tubulações. O garimpo existe na Amazônia
desde o Século XVII, mas aumentou exponencialmente a partir da
promoção das políticas desenvolvimentistas nos anos 1970. Tanto o
garimpo de fundo de rio, quanto o garimpo nos barrancos dos igarapés
causam intensa sedimentação e, consequentemente, aumento da turbidez
da água e impactos sobre comunidades aquáticas. Além de sedimentos,
entre 100 e130 toneladas de mercúrio metálico são anualmente utilizadas
para extração artesanal de ouro e depois lançadas no ar e nos rios da
Amazônia. A contaminação causada pelo garimpo se soma ao mercúrio
do solo liberado pelo desmatamento. No ambiente, mercúrio metálico
torna-se metilmercúrio, uma substância extremamente tóxica e que se
acumula na cadeia alimentar. Como o consumo de peixes é a principal
fonte de proteína para a população regional, existem indícios
preocupantes de contaminação humana por mercúrio, especialmente pelo
consumo de espécies carnívoras, como piranha e tucunaré.
Outro problema cada vez mais agudo é a crescente urbanização
da Região Amazônica sem as mínimas condições de abastecimento de
água e esgotamento sanitário. Em termos comparativos, a região tem uma
densidade demográfica relativamente baixa (5 habitantes/km 2), mas isso
não diminui o impacto ambiental causado pelas aglomerações urbanas (a
população total da Amazônia chegou a 22,5 milhões em 2004, sendo que
aproximadamente 73% estão concentrados em centros urbanos). Segundo
dados oficiais, o abastecimento de água serve 63% dos amazônidas e,
mais grave, o serviço de esgoto está disponível a apenas 9% dos
habitantes. Isso significa que quase todo o efluente de esgoto é lançado
sem tratamento e diretamente no meio ambiente. O caso mais grave é
Manaus, uma cidade que em poucos anos cresceu 15 vezes e hoje
comporta 1,5 milhão de habitantes, muito em razão dos subsídios que
movimentam a Zona Franca. O ritmo desenfreado de crescimento,
somado à ausência de planejamento urbano, tem levado a uma ocupação
crescente de margens de igarapés. Os moradores não têm alternativa
61

senão o lançamento de esgoto nas águas próximas de suas residências,


que ficam cada vez mais contaminadas por metais e coliformes fecais. Por
outro lado, são inúmeros os bairros da cidade de Manaus que não têm
água encanada ou onde a água chega aos domicílios de forma irregular e
com péssima qualidade. Não pode haver prova mais contundente da
patologia do crescimento econômico do que haver escassez de água no
coração da Amazônia... À qualidade precária do serviço público, somam-
se interesses políticos e financeiros que jogaram a cidade na aventura da
privatização em 2000. Os trabalhos da Comissão Parlamentar de
Inquérito instalada na Câmara dos Vereadores em 2005 mostraram como
a privatização negou os direitos essenciais dos moradores de baixa renda,
ao mesmo tempo em que o grupo privado (Suez) realizou aumentos
absurdos de tarifas e não cumpriu nenhuma das metas do contrato de
concessão.
Como se não bastassem os impactos negativos da agricultura,
navegação, barragens, mineração, garimpo e explosão urbana, existe uma
ameaça ainda maior e mais devastadora sobre as águas da Amazônia: as
mudanças climáticas globais. Hoje quase não restam mais dúvidas que o
planeta vem se aquecendo devido ao acúmulo de ‘gases de efeito estufa’
na atmosfera. A principal fonte desses gases é a economia perdulária dos
países industrializados, ao que se somam contribuições do
desmatamento, das queimadas e dos reservatórios hidrelétricos. Os
cientistas preveem que as mudanças climáticas produzirão menor
precipitação e diminuição da vazão dos rios da Amazônia. O
aquecimento planetário deve também intensificar os efeitos do El Niño,
fenômeno que é periodicamente responsável por secas na região. O ano
de 2005 serviu como prenúncio desse futuro incerto e arriscado, quando
uma grave seca afetou 914 comunidades e produziu cenas grotescas de
gado morrendo de sede e barcos encalhados no leito dos rios. O mais
sombrio é que, com o aquecimento crescente da Terra, a floresta passa a
liberar mais e acumular menos carbono. Isso potencializa o efeito estufa e
acelera ainda mais o aquecimento. Se o processo continuar no atual ritmo,
no meio do Século XXI a floresta estará irremediavelmente perdida e será
substituída por uma vegetação semelhante ao cerrado. Outra
consequência será a redução de chuvas em outras partes da América do
Sul, em particular no sudeste brasileiro, o que obviamente levará à
substancial diminuição de todo o potencial agrícola e hidrelétrico
nacional. Há, portanto, uma interligação complexa e assustadora entre a
degradação ambiental da Amazônia e a produção de sérios impactos
sobre a vida e a economia de todo o continente.
62

Os Limites das Políticas Públicas para as Águas da Amazônia

O avanço da economia brasileira sobre as águas e os outros


recursos ecológicos da Amazônia dependeu da ação autoritária do
Estado, necessária para a subordinação de populações e ecossistemas à
lógica da acumulação rápida e fácil de capital. Segundo a doutrina oficial,
as novas atividades ‘produtivas’ precisam atuar sem barreiras ambientais
ou sociais que tragam dificuldades para a viabilidade dos negócios.
Contudo, o projeto de ‘integração nacional’ das últimas décadas nada
mais fez do que deslocar a Região Amazônica de uma condição periférica
para outra igualmente dependente, tendo em conta que, apesar de toda a
degradação causada pelo ‘desenvolvimento’, a economia regional
corresponde a apenas 3,7% do PIB brasileiro (dados do ano de 2003). O
baixo percentual se explica pela subvalorização e superexploração da
natureza promovida pelo modelo econômico predominante. O ganho de
curto prazo e a aniquilação da natureza são justificados pelos
economistas em função de taxas de desconto e outros artifícios analíticos.
Contudo, a realidade nua e crua escapa aos modelos econômicos e aos
escritórios de planejamento. Na verdade, o crescimento econômico
regional reproduz sistemas de controle político e discriminação social
estabelecidos no país ainda no período colonial. O processo avassalador
de destruição da Amazônia somente se explica pelo binômio de
insustentabilidade e injustiça ambiental, uma vez que a mesma
degradação que permite o enriquecimento de alguns poucos remove
direitos da maioria da população. É fácil perceber que as questões de
acesso e uso dos recursos ecológicos da Amazônia têm relação com
disputas por terra e água nas outras regiões do país que forçam a
imigração em massa para a região. Mas, ao invés de resolver a pobreza
dos que lá chegam, a economia perversamente se alimenta dos baixos
salários e da manipulação das populações locais. O resultado final do
‘desenvolvimento’ é a inscrição dessas profundas desigualdades sociais
na paisagem socionatural da Amazônia.
Quando se constata a grandeza da destruição e as ameaças
futuras sobre as águas da Amazônia, cabe perguntar qual tem sido a
resposta oficial e quais as medidas adotadas para resolver os problemas e
reduzir os conflitos criados pelo ‘desenvolvimento’. O setor de recursos
hídricos no Brasil é aclamado por muitos por contar, há mais de uma
década, com uma legislação dita avançada – a Lei 9433, também
mencionada em outros capítulos deste livro – que estabeleceu novos
procedimentos de gestão por bacia hidrográfica. Em razão da nova lei,
existe hoje uma extensa estrutura administrativa voltada a políticas
públicas de recursos hídricos, incluindo o Conselho Nacional de Recursos
Hídricos (CNRH), a Agência Nacional de Águas (ANA) e órgãos
equivalentes nos estados. Entre os novos instrumentos de gestão estão a
63

emissão de outorga (licença) e a cobrança pelo uso da água, porém sua


implementação nos rios da Bacia Amazônica é praticamente nula. O
próprio governo reconhece que o os órgãos oficiais têm tido uma atuação
incipiente na Amazônia e que, provavelmente, a região precisaria de uma
configuração institucional específica para atender às suas características
hidrológicas. Além de ser um modelo que não oferece respostas efetivas
à degradação e aos conflitos pelos recursos hídricos na região, o novo
sistema de regulação reproduz a tradicional concentração de poder
decisório nas regiões sul e sudeste.
Apesar de identificar os graves problemas da região, o sistema
oficial de gestão permite que a água continue sendo motivo de divisão,
lucro, e incertezas. A implantação da nova Lei dos Recursos Hídricos tem
produzido pouco mais do que uma mera mudança de estilo, uma vez que
substituiu a coação explícita dos militares por um autoritarismo
‘moderno’ e dissimulado. Isso se demonstra pelo fato de que as instâncias
de representação criadas pela lei (conselhos e comitês de bacia)
formalmente significam um espaço de debate democrático e a resolução
de conflitos. Na prática, apesar da aparência de descentralização e
preocupação ecológica, a estrutura continua sendo controlada pelos
mesmos setores oligárquicos que sempre comandaram o
‘desenvolvimento’ (tecnocracia estatal, grandes proprietários, industriais
e políticos tradicionais). Um exemplo da continuidade ideológica é o fato
de o sistema oficial ter recentemente reafirmado que a universalização do
acesso à água no país somente poderá ser atingida com um crescimento
econômico acelerado e que não poupe as reservas da Amazônia. Em
termos concretos, isso significa a perpetuação da mesma lógica de
exploração dos recursos naturais e acumulação de capital que há décadas
vem produzindo impactos sociais e ambientais severos. A mesma posição
ideológica pode ser vista no Plano Amazônia Sustentável (PAS),
publicado em 2006 e que tem o aval do Ministério do Meio Ambiente. O
plano corretamente reconhece os erros cometidos pelo governo no
passado, mas se limita a oferecer uma longa lista de investimentos em
usinas hidrelétricas, estradas e exploração mineral. Atrás de um discurso
de sustentabilidade, o PAS demonstra ser apenas uma versão requentada
do velho modelo de crescimento econômico excludente. Outra prova da
manutenção dos vícios do passado é a implantação de 97 ‘projetos de
desenvolvimento sustentável’ (PDS) a partir de 2006, os quais
teoricamente promoveriam um uso racional da floresta por pequenos
produtores. Contudo, os assentados se sentem desassistidos pelo INCRA
e rapidamente vendem seus direitos de exploração madeireira às grandes
empresas do setor.
A prova mais cabal da manutenção da racionalidade econômica e
do desprezo pelo futuro da Amazônia brasileira foi recentemente dada
pela coação dos órgãos ambientais a aprovarem as duas hidrelétricas no
64

Rio Madeira (Jirau e Santo Antônio). O Estudo de Impacto Ambiental


(EIA) apresentado pelos empreendedores (Furnas Centrais Elétricas e
Odebrecht) fez uma avaliação tendenciosa dos prováveis impactos,
buscando encobrir a degradação ambiental causada pelo projeto com os
benefícios econômicos indiretos. Trata-se do velho argumento de que a
natureza pode ser livremente substituída pela criação de (alguns)
empregos e geração de (algum) imposto. A análise do IBAMA, assinada
por uma equipe de oito técnicos, competentemente identificou os
impactos ambientais que foram minimizados ou ignorados na preparação
do EIA, especialmente problemas de assoreamento dos rios, alteração da
dinâmica de sedimentos e extinção de espécies de peixes, fauna e flora.
Apesar de o parecer claramente condenar o projeto, a pressão dentro e
fora do governo pela sua aprovação revelou a face mais atrasada das
lideranças políticas e econômicas nacionais. O desprezo pelos órgãos de
fiscalização deixou a nítida impressão de que toda a estrutura de proteção
do meio ambiente, incluindo o IBAMA, o CNRH e a ANA, tem uma
função, na maioria das vezes, decorativa frente aos interesses econômicos
e à política patrimonialista do governo.
Existe ainda uma nova e mais dissimulada ameaça sobre a
natureza e as populações da Amazônia: o pagamento por serviços
ambientais, o que inclui ações com a manutenção da biodiversidade, o
sequestro de carbono e a preservação do ciclo hidrológico. A ideia é
converter esses serviços em valores monetários, que seriam pagos pelos
beneficiários ou por empresas que queiram compensar seus impactos
ambientais com a compra de tais serviços na Amazônia. Dois projetos de
lei foram recentemente apresentados no Congresso Nacional (PL
792/2007 e PLS 142/2007), buscando incorporar os serviços ambientais ao
texto da Lei 9433. O pagamento por serviços ambientais é uma solução
engenhosa, que atrai ambientalistas e acadêmicos, mas na verdade
significa uma alternativa conservadora e enganosa. Em primeiro lugar, a
implantação de pagamentos por serviços ambientais requer uma
complexa estrutura de certificação, o que evidentemente estaria muito
aquém de grande parte das populações locais. Além disso, há o problema
ético de colocar preço e realizar transações comerciais envolvendo seres
vivos e processos ecológicos. Delegar ao mercado as respostas para
problemas fundamentalmente produzidos pela hipertrofia do próprio
mercado é acreditar que o veneno, em maior dose, pode salvar o
moribundo. Em terceiro lugar, traz risco aos outros ‘serviços’ ambientais
que ficarem fora do sistema de pagamentos, fincando sujeitos a uma
degradação ainda maior. A proposta de pagamento por serviços
ambientais simplesmente ignora que a conservação dos recursos
ecológicos envolve questões normativas e decisões políticas externas à
quantificação monetária e ao raciocínio puramente econômico.
65

A Sabedoria e a Contribuição das Populações Ribeirinhas

Em consequência da extensa degradação ambiental e da contínua


expansão econômica, as ameaças sobre os sistemas hídricos da Região
Amazônica crescem a cada dia, seja na forma de novas barragens,
estradas, fazendas, garimpos e madeireiras, ou em razão de mudanças no
padrão climático. O que torna a situação ainda mais trágica é saber que a
degradação por que passa a Amazônia é grave, mas não é exclusiva. Pelo
contrário, a ocupação da região nas últimas décadas reproduziu o mesmo
modelo de ‘desenvolvimento’ econômico e político que devastou, e
continua devastando, os ecossistemas litorâneos, a mata atlântica, o
cerrado e a caatinga. Na verdade, a histórica recente da Amazônia apenas
reafirma os velhos fundamentos da crise brasileira, o que pode ser
descrito por um quadro agudo de desigualdade social e depredação da
base ecológica. Uma das provas mais irrefutáveis desse binômio
‘degradação-desigualdade’ é o desprezo e abandono sistemático por que
têm passado as populações ribeirinhas da Amazônia, as quais incluem
uma multiplicidade de comunidades tradicionais formadas por séculos
de miscigenação entre grupos indígenas e diferentes levas de imigrantes.
As transformações decorrentes da incorporação da região à economia
globalizada têm levado não somente ao abandono das populações
tradicionais, mas à própria destruição dos seus mecanismos de
sobrevivência. Aumentam, por exemplo, as situações de conflito entre
pescadores comerciais e comunidades ribeirinhas pelo acesso aos
estoques de pesca. Existem disputas semelhantes em torno da posse da
terra e do acesso aos recursos florestais. O resultado tem sido uma
redução das atividades produtivas tradicionais e a migração forçada para
áreas urbanas.
Levantamentos antropológicos conduzidos nos últimos anos têm
apresentado evidências incontestáveis de que essas populações detêm um
vasto cabedal de tecnologias e procedimentos que são adaptados às
diferentes condições socioecológicas da região. Ao longo de gerações, a
convivência continuada com o regime das águas fez com que as
populações tradicionais absorvessem e reinventassem o conhecimento de
seus ancestrais indígenas, além de criativamente incorporarem novas
técnicas trazidas pelos grupos de imigração mais recente. É importante
lembrar que, desde os primeiros exploradores europeus, houve repetidos
relatos da presença de largos assentamentos e povoações ao longo dos
rios da Amazônia, o que prova como é possível manter significativos
contingentes populacionais sem destruir as águas e a biodiversidade
regional. A sabedoria dos ribeirinhos fica evidenciada através de suas
múltiplas estratégias de produção econômica e utilização dos recursos
ecológicos. O sustento das famílias e a economia doméstica incluem uma
sucessão de atividades que têm relação direta com os ciclos naturais,
66

como pesca, caça, coleta, lavoura e pecuária de pequena escala. O regime


de propriedade coletiva dos recursos ecológicos, combinado com a
propriedade familiar nas proximidades das residências, é também um
fator fundamental para a sobrevivência das comunidades ribeirinhas. Em
vez de uma exploração de curto prazo, os grupos tradicionais praticam
uma agricultura adaptada aos solos e integrada à biodiversidade
amazônica. Isso se demonstra pelo fato de que convivem
inteligentemente com a dinâmica das águas, fazendo uso intensivo de
várzeas no período da vazante e se deslocando para as terras altas (terra
firme) durante a época de cheias (essa forma de cultivo dinâmico dos
solos foi totalmente ignorada nos programas de colonização na Amazônia
nas últimas décadas, uma vez que as glebas eram normalmente restritas a
áreas de terra firme). Desse modo, as cheias dos rios trazem sedimentos
que fertilizam as várzeas e garantem as próximas colheitas. Ao mesmo
tempo, a interação da terra com o rio mantém a biodiversidade aquática e
a qualidade das águas.
Portanto, se houvesse realmente interesse por parte dos
administradores públicos de praticar uma gestão efetiva e responsável
das águas da Amazônia, uma das medidas mais urgentes seria o
reconhecimento do papel e da contribuição das comunidades ribeirinhas.
As populações tradicionais foram capazes de compreender a importância
vital da sazonalidade hidrológica para a sobrevivência e organização
social. Como herdeiros dos conhecimentos acumulados pelos seus
antepassados, as populações ribeirinhas possuem uma profunda
identidade com os rios, os solos e a biodiversidade amazônica. Através de
uma intensa interação entre sociedade e natureza, as populações
tradicionais aprenderam a respeitar os ciclos naturais e preservar a
ecologia dos rios. Contudo, apesar de serem populações que
historicamente conviveram de forma sustentável com a natureza regional,
para os tecnocratas do ‘desenvolvimento’ esses são apenas setores
marginalizados da sociedade e que poderão, num futuro incerto, ter algo
a ganhar se os atuais mecanismos de exploração da Amazônia forem
ampliados ainda mais. A postura centralizada e arrogante da burocracia
oficial não consegue perceber que as políticas públicas e a gestão de
águas, em particular, é que teriam muito a aprender com a valorização
social e econômica das populações ribeirinhas. Enquanto não houver esse
reconhecimento oficial, o infortúnio das populações ribeirinhas frente ao
processo avassalador de crescimento econômico continuará sendo uma
prova emblemática da dupla crise ambiental e social da Amazônia.

Contestação em uma Hierarquia de Escalas

A complexidade da gestão de recursos hídricos na Região


Amazônica, brevemente discutidas nas páginas acima, demonstra como a
67

busca de soluções depende, antes de mais nada, da inversão das


prioridades do desenvolvimento regional. Em lugar de respostas
pontuais e fragmentadas, como previsto nas atuais políticas públicas para
as águas amazônicas, as estratégias de gestão se relacionam com novas
bases de produção econômica, padrões tecnológicos e redistribuição de
oportunidades sociais. A construção de uma nova agenda de recursos
hídricos para a Amazônia faz parte de uma resistência mundial contra o
receituário ideológico imposto pelos organismos internacionais (o que
inclui, entre outras medidas, a privatização de empresas públicas, a
construção de grandes obras de infraestrutura e a ampliação das pressões
do mercado sobre o meio ambiente). Ao mesmo tempo em que é preciso
consolidar uma oposição política em escala nacional e internacional, a
gestão sustentável das águas da Bacia Amazônica passa também por
iniciativas tomadas no âmbito local, que incluam e valorizem os grupos
sociais historicamente excluídos.
As alternativas ao modelo dominante de exploração
socioambiental devem, portanto, ser organizadas em uma ‘hierarquia de
escalas’, onde a ação localizada qualifica e justifica reação política mais
geral. A oposição ao modelo tecnocrático de ‘desenvolvimento’ passa
pelo entendimento claro de que a ação política se estende por diferentes
escalas geográficas, através das quais a busca de sustentabilidade e justiça
se traduz em uma experiência histórica concreta. Nesse sentido, as
populações ribeirinhas e outros grupos tradicionais têm ainda muito que
ensinar aos políticos, gestores públicos e outros usuários de águas.
Porém, ao invés de se romantizar ou idealizar o conhecimento das
comunidades tradicionais, sua valorização requer, primeiramente, que as
necessidades básicas de sobrevivência sejam atendidas e que os direitos
fundamentais sejam respeitados. Afinal, a manutenção dos estoques
superficiais e subterrâneos de água faz parte da mesma luta por
dignidade e melhores condições de vida na Amazônia e no restante do
país.
68

Capítulo 4

Segurança Alimentar e Segurança Energética:


Algumas Questões de Ecologia Política.
“Mas por ver que o mundo é assim mesmo, que as mentiras são
muitas e as verdades nenhumas, ou alguma, sim, deverá andar
por aí, mas em mudança contínua, não só não nos dá tempo
para pensarmos nela enquanto verdade possível, como ainda
teremos primeiro de averiguar se não se tratará de uma mentira
‘provável’.”
José Saramago, A Caverna

A Globalização Energético-Alimentar

Este capítulo trata de duas questões diretamente relacionadas à


problemática dos recursos hídricos: energia e produção de alimentos. É
fácil perceber que o desenvolvimento de fontes seguras de bioenergia e a
garantia de um contínuo abastecimento alimentar são temas cada vez
mais relevantes no mundo contemporâneo. Da mesma forma, o
equacionamento entre produção de alimentos e de agrocombustíveis
representa um sério desafio para a grande maioria dos governos
nacionais e agências multilaterais de cooperação. O enfrentamento da
problemática energético-alimentar não se limita apenas aos seus aspectos
mais específicos, mas apresenta relação direta com outras agendas
econômicas e interações multissetoriais, os quais se estendem do nível
local ao contexto nacional e internacional. Dadas as múltiplas limitações
em termos de áreas agricultáveis, recursos financeiros e mão de obra,
assim como a necessidade de assegurar conservação ambiental e justiça
social, o aumento da disponibilidade de alimentos e biocombustíveis
requer crescentes ganhos de produtividade e uma maior integração de
cultivos, de áreas produtivas e de cadeias socioeconômicas.
Normalmente, a resposta governamental a tais questões tem
enfatizado a necessidade de não apenas manter e expandir a produção
energético-alimentar, mas estabelecer metas para que produza de forma
mais efetiva e eficiente. Inovação, ciência e tecnologia são evidentemente
temas centrais nos dias de hoje, em particular quanto a estratégias de
desenvolvimento e de inserção em um mundo agrícola globalizado.
Contudo, a produção agroenergética deve ser entendida como parte de
um contexto socioeconômico e político mais amplo, o qual se ramifica por
temáticas históricas e geopolíticas complexas, ainda que nem sempre
adequadamente consideradas. Nesse sentido, a presente análise oferece
69

uma modesta contribuição ao debate sobre oportunidades e contradições


na busca de uma maior segurança energético-alimentar.
Se a escassez de alimentos foi sempre um problema recorrente na
história da humanidade, o uso de biocombustíveis constitui matéria mais
recente e vinculada aos notoriamente limitados estoques de combustíveis
fósseis tradicionais (petróleo, gás e carvão). Mais importante é o fato de
os biocombustíveis serem vistos como uma alternativa que não contribui
para a liberação de gases de efeito estufa, apontados como causadores do
aquecimento global e das mudanças climáticas de origem antropogênica.
Desde a formalização da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre
Mudança do Clima, em 1992, até a 15ª Conferência das Partes em
Copenhague, no ano de 2009, organizou-se um grande debate
internacional sobre os riscos climáticos e ecológicos, o qual tem envolvido
governantes, cientistas, setores produtivos e a população em geral.
Porém, não é nenhuma novidade afirmar que o processo de
implementação da Convenção-Quadro tem repercutido de modo
contundente, a assimetria de poder que permeia as redes mundiais.
Mesmo o discreto avanço conquistado na reunião de Quioto em 1997 –
onde foram definidas metas de redução de emissão de gases de efeito
estufa para os países industrializados – revelou-se, ao final, uma vitória
apenas pírrica, uma vez que tais nações vêm utilizando todos os
mecanismos diplomáticos disponíveis para adiar e fraudar seus
compromissos.
Infelizmente, apesar de o discurso oficial da maioria dos
governos nacionais ter incorporado novos conceitos, tais como
sustentabilidade, adaptação e participação social, grande parte das
políticas públicas ao redor do planeta continuam sendo determinados
pela pressão hegemônica de crescimento econômico a todo custo. A
própria definição de desenvolvimento, em que pese argumentos em
contrário, reforça padrões de produção, distribuição e consumo que
inexoravelmente levam à superexploração social e ambiental, assim como
a uma maximização de riscos e incertezas. Cabe ressaltar que as
contradições e frustrações criadas no âmbito da diplomacia ambiental e
das políticas públicas não estão imunes de escrutínio e criticismo; por
exemplo, a Declaração Popular do Klimaforum afirma de modo
contundente a conexão entre “débito” climático, degradação ambiental e
“dívida” social, o que inclui temas como erosão do solo agrícola,
introdução de organismos geneticamente modificados, expansão da
monocultura e controle da produção por grandes corporações voltadas a
atender tendências de superconsumo nos países do norte. A mesma
Declaração defende que a transição para uma agricultura mais justa e
ecológica está necessariamente relacionada à soberania alimentar e
70

democratização de acesso responsável a recursos e processos ambientais. 1


A alternativa dos biocombustíveis e o aumento da oferta de alimentos
devem ser entendidos como capítulos centrais das múltiplas
controvérsias e dilemas que permeiam a contemporaneidade planetária.

Panorama Geral da Produção Agroenergética no Brasil

Não é nenhum exagero mencionar que o Brasil é um dos


principais países do mercado global de biocombustíveis, além de ser
grande produtor (mas também importador) mundial de alimentos. A
combinação de abundantes solos, água e sol, assim como mão de obra,
tecnologia, políticas publicas e capital nacional e internacional, criaram
condições propícias para a expansão e consolidação da produção
sucroalcooleira e de biodiesel em todas as regiões brasileiras. No texto do
Anuário Estatístico de Agroenergia de 2009, “... o Brasil tem muito a
contribuir, pois possui uma matriz energética com 46% de fontes
renováveis, num mundo que só utiliza 15%. Isso faz com que o país
possua uma posição de destaque no cenário mundial, principalmente por
sua forte estratégia em agroenergia” (MAPA, 2009: 5). Diversos outros
trabalhos apontam que a produção de álcool fica ainda mais viável e
comercialmente atraente sempre que o preço do petróleo passar do
patamar de US$ 50 a 70 por barril (de acordo com os atuais padrões
tecnológicos).
Em termos internacionais, uma defesa importante do papel dos
biocombustíveis no mundo de hoje tem sido feita pelo professor Ignacy
Sachs, como em palestra proferida na França em junho de 2005 (citado em
Garcez e Vianna, 2009), quando argumentou que existe um crescente
interesse pelos biocombustíveis nos dias de hoje em função de preços do
petróleo bastante voláteis, das incertezas geopolíticas nas áreas
produtoras de petróleo e da necessidade de se enfrentar o efeito estufa.
Mesmo em seu livro de memórias, Sachs afirma que “soou a hora dos
biocombustíveis” e o Brasil passa a ter um papel fundamental na arena
internacional por ter condições favoráveis para vender etanol e biodiesel
a preços competitivos e a níveis rentáveis (Sachs, 2009: 336). Sachs
atualiza, assim, sua teorização anterior sobre ecodesenvolvimento e
sustentabilidade, através agora de uma ênfase no trinômio
biodiversidade-biomassa-biotecnologia.
Se fizermos uma viagem no tempo, vamos ver que a indústria
nacional do etanol – evidentemente, a cana-de-açúcar continua sendo a
mais importante e representativa cultura agroenergética no Brasil –
evoluiu de acordo com as variações no preço internacional dos
combustíveis e conforme os altos e baixos das políticas governamentais.

1 Publicada na íntegra na revista Capitalism Nature Socialism, 21(1), 28-36, 2010.


71

Tendo se iniciado na década de 1930, particularmente com formação do


Instituto do Açúcar e do Álcool (IAA), a ação do Estado tem sido um
misto de controlador e incentivador da produção sucroalcooleira. Desde
então, as intervenções estatais em relação à produção canavieira têm
seguido as prioridades e agendas de cada governo, mas que
inevitavelmente refletem, de modo particular, as pressões dos grandes
proprietários de terra interessados na manutenção da monocultura.
Exemplo memorável das bases políticas e do jogo de interesses é
a reunião ocorrida no Palácio Rio Negro, em 06 de janeiro de 1959,
descrita por Celso Furtado em sua magistral análise dos desencontros
daquele período histórico. Quando indagado pelo Presidente Juscelino,
Furtado ponderou que o Nordeste era a maior mancha de miséria do
hemisfério ocidental e que a “ação do governo federal deveria privilegiar
a produção de alimentos, tanto no semiárido como nas terras úmidas
litorâneas, hoje monopolizadas pela cana-de-açúcar”, porém o obstáculo
maior era o problema perene da oligarquia agrária regional que há
séculos comandava a sociedade nordestina (Furtado, 1989: 44). Um dos
resultados desse encontro, como se sabe, foi a criação da
Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE), que ficou
encarregada, mas falhou, de promover um padrão de crescimento mais
equitativo e sustentável para aquela região.
Nos anos seguintes, os produtores nacionais de cana-de-açúcar se
beneficiaram por algum tempo da alta dos preços internacionais na
década de 1960, especialmente devido à Revolução Cubana, da criação da
Copersucar em São Paulo e do estabelecimento do Proálcool em 1975 (ver
um retrospecto em Hira e Oliveira, 2009). Cabe lembrar que houve uma
resistência inicial ao álcool como combustível por parte dos usineiros,
mas em seguida, com o suporte da Petrobrás, passou-se a uma verdadeira
lua de mel entre 1979 e 1985 (e.g. já em 73% dos carros vendidos eram
movidos a álcool em 1980). Houve um período de crise na produção e
comercialização entre 1985 e 2002, o qual observou a baixa dos preços do
petróleo e a crise da dívida externa. Paradoxalmente, o Brasil tornara-se o
maior importador de etanol entre 1989 e 1996, com somente 1.000 carros a
álcool vendidos em 1997. Finalmente, no governo do Presidente Lula,
houve uma retomada da indústria de biocombustíveis, desde 2003,
devido ao apoio fiscal, taxas sobre a gasolina e novas tecnologias
agronômicas. Em comparação, o biodiesel tem uma história muito mais
recente (praticamente desde 2004) e uma importância ainda muito menor
do que o álcool, mas há paralelos importantes em termos do binômio
incentivo estatal e oscilações de mercado. No caso particular do biodiesel,
existe também a possibilidade de conciliar a produção de energia com a
produção de alimentos em áreas de agricultura familiar, como no
Nordeste, por meio de um consórcio de culturas como mamona, feijão e
milho (Ribeiro, 2008).
72

Tendo brevemente considerado a história e as oscilações da


produção de biocombustíveis no país, podemos passar, dialeticamente, a
um questionamento sobre a justificativa e os resultados da expansão
bioenergética. É possível separar, esquematicamente, a restrição aos
biocombustíveis entre críticas mais gerais (ou pontuais) e críticas
estruturais (ou de fundo, consideradas a seguir). Em relação aos
problemas mais pontuais ou tecnológicos, há quem diga que a produção
de biomassa utiliza uma grande quantidade de combustíveis fósseis e
que, ao final, o ganho energético não seria significativo (esse parece ser o
caso com álcool produzido a partir do milho nos EUA, que é uma
atividade que mais consome do que libera energia, mas não ocorre o
mesmo com a cana brasileira).
Estudiosos como Giampietro e Mayumi (2009) afirmam que os
biocombustíveis, apesar de tratados hoje como uma panaceia, são pouco
mais do que uma ilusão, em função dos impactos sobre a biodiversidade,
da grande apropriação de biomassa e da elevada demanda por água para
sua produção. Outros pesquisadores afirmam que, em vez de se colher
biomassa para a produção de combustíveis, seria melhor utilizar os solos
para acumular carbono e, desse modo, diretamente minimizar o efeito
estufa. Gomez et al. (2008) fazem referência à preocupante ocupação de
áreas naturais e zonas agrícolas tradicionais para o cultivo da matéria
prima dos biocombustíveis, o que leva geralmente à perda de
biodiversidade e diminuição de bens e serviço ambientais (inclusive, em
muitos casos, com elevação, ainda que temporária, das emissões de gases
de efeito estufa).
No caso brasileiro, tais questionamentos têm sido contestados por
autores como Goldemberg e Guardabassi (2009), os quais discordam, por
exemplo, de que os biocombustíveis contribuam para acelerar o
desmatamento da Amazônia. Apesar de aceitam que a área de
desmatamento continua bastante alta (10.000 km2/ano), Goldemberg e
Guardabassi (2009) argumentam que a causa principal está no aumento
da produção pecuária e não na expansão de cultivos energético-
alimentares. Cabe observar que esta problemática parece ser mais
complicada do que simplesmente a localização da área canavieira, já que
o gado pode estar sendo deslocado para a Amazônia para dar espaço à
lavoura em áreas de cerrado, o qual já tem mais da metade de sua área
desmatada e é um bioma hoje muito ameaçado (especialmente na parte
norte que ainda mantém boa percentagem de vegetação original).
Respostas semelhantes contestam que o aumento da área de
biocombustíveis reduz a produção de alimentos; o professor Goldemberg
admite que essa crítica pode ter procedência, mas lembra que os
mercados agrícolas são muito mais dinâmicos e que as causas da falta de
alimentos são muitas. Em relação às questões acima, provavelmente
existe ainda uma margem grande para que se demonstrem os reais
73

benefícios e a dimensão dos impactos ambientais associados à produção


de biocombustíveis. Existem outros problemas indiretos, como doenças
respiratórias em crianças e idosos no interior de São Paulo afetados pela
produção de cana (como descritos por Uriarte et al., 2009). Passaremos,
agora, à análise de quatro aspectos mais estruturais consoante a
contribuição da produção bioenergético e alimentar ao mundo
globalizado, mas profundamente desigual.

Quatro Questões de Ecologia Política: Uma Contribuição ao Debate

Como mencionado acima, foge do nosso propósito discorrer aqui


sobre temas mais técnicos ou tentar uma análise detalhada das estatísticas
de produção de agrocombustíveis. Nossa intenção é dedicar a presente
discussão a algumas questões estratégicas ou estruturais da economia
bioenergética que, se bem compreendidas, devem servir para uma
consideração mais equilibrada dos limites das políticas públicas atuais. A
justificativa para esse tratamento crítico da expansão energético-alimentar
baseia-se no fato de que, mesmo que o meio ambiente e a mudança do
clima passam a ocupar cada vez mais espaço na grande imprensa e no
discurso de governos e corporações, a maior parte dos textos disponíveis
trata apenas de procedimentos tecnológicos e melhorias operacionais.
Interessa-nos, principalmente, situar as questões de segurança
energético-alimentar no contexto mais amplo da globalização dos
mercados e das sociedades nacionais. A globalização acontece através de
processos marcadamente políticos que envolvem a reconfiguração e
mudança de escala de diversas formas de territorialidade (Brenner, 1999).
Porém, existe um espaço limitado, mesmo no âmbito acadêmico, para
enfrentar as questões energético-alimentares por um viés de ecologia
política crítica, que enfoque as contradições entre o indivíduo e a
coletividade traduzidas na relação com o meio-ambiente (conforme
teorizado por Lipietz, 2003). A seguir listaremos, mesmo que de modo
bastante simplificado, algumas questões centrais da ecologia política dos
biocombustíveis e sua implicação para a segurança alimentar.
Primeiro, as controvérsias e os condicionantes de políticas de
gestão ambiental, que seguem de perto as tendências da globalização
desigual e injusta, constituem o pano de fundo para se entender a
problemática da bioenergia e da segurança alimentar. Tais temas têm se
tornado cada vez mais complexas, passando a exigir um enfoque
multidisciplinar, a requerer que os profissionais sejam capazes de
conectar a escala global com os problemas locais e regionais. Por
exemplo, a disponibilidade de nutrientes alimentares e o balanço
nutricional apresentam importantes variações geográficas entre regiões
brasileiras, com uma forte associação, em que pese a existência de
74

múltiplos fatores intervenientes, entre os rendimentos e a disponibilidade


alimentar nos domicílios (Enes e Silva, 2009).
Porém, ao atrelar a produção agroenergética às prioridades de
mercado, a própria agenda ambiental fica cada vez mais sujeita a
interesses de curto prazo e flutuações nas transações entre corporações
privadas. Ou seja, uma expansão da disponibilidade energético-alimentar
traduz a própria ambivalência das relações entre capital, políticas
públicas e conservação ambiental: ao se atingirem maiores níveis de
produção e produtividade agroenergética, surgem novas necessidades de
investimentos e realização de lucros, assim como vantagens políticas para
os administradores responsáveis pela promoção de tais mercadorias.
A tendência de irracionalidade da via capitalista de
desenvolvimento econômico (ou seja, baseado na dupla exploração social
e natural) geralmente leva a uma esquizofrenia entre a tomada de
conhecimento sobre os riscos climáticos e a impotência institucionalizada.
Em particular, as mudanças climáticas de origem antropogênica estão
historicamente ligadas à expansão e consolidação de uma determinada
forma de economia agroindustrial, a qual, como sabemos, promove a
intensificação do uso de combustíveis fósseis e um crescimento
exponencial da utilização de recursos naturais. Aqui não precisamos
revisitar os cálculos científicos, nem os famosos gráficos que mostram o
aumento dos níveis de gases de efeito estufa a partir de 1750 (i.e.
aproximadamente, o início da Revolução Industrial), tampouco toda a
demonstração do problema climático já feita por gente como o vice-
presidente Al Gore em Uma Verdade Inconveniente (edição brasileira de
2006).
O que nos interessa ressaltar, mais especificamente, é que esse
tipo particular de estrutura produtiva – essa que tem levado à aceleração
das mudanças do clima – tem sua gênese também ligada à produção de
diferenças e injustiças profundas. É preciso registrar que a problemática
de mudanças climáticas é uma das mais dramáticas provas de que a
sociedade estabelecida nos últimos dois séculos tem aprofundado as
desigualdades entre grupos sociais e áreas geográficas da qual passa a
depender (i.e. como teorizado pelos geógrafos, o capitalismo cria e se vale
da manutenção de um desenvolvimento progressivo, mas desigual).
Existe aqui uma disparidade evidente, ou mais do que evidente, entre a
produção de problemas globais e generalizados, mas que decorrem de
vantagens específicas, amealhadas por uma parcela da globalidade. Em
última instância, a ação humana sobre o clima é a demonstração mais
contundente hoje de um processo de injustiça ambiental, ou seja,
desigualdades sociais se projetando na relação entre sociedade e
natureza, criando assimetrias no acesso e no uso de recursos naturais,
assim como na distribuição dos impactos negativos.
75

Não deve ser ignorado que, se o padrão de desigualdade


caracteriza a origem e as consequências das mudanças climáticas, as
formas de resposta formuladas até o momento têm também reproduzido
um padrão de assimetria e verticalização. A estratégia básica dos
negociadores internacionais insiste que os países devem continuar sua
trajetória de produção e consumo, apenas de forma um pouco menos
impactante. A resposta convencional para manter o mundo mais ou
menos inalterado, tratando de forma superficial a catástrofe climática que
se avizinha, está incluída nessas duas palavras mágicas: adaptação e
mitigação do forno global acendido pelos países industrializados. Os
países do Sul devem ajudar a limpar a poluição produzida no Norte, que
se valeu da colonização e exploração do resto do mundo, mas sem se
desviar de uma crescente subordinação à globalização dos mercados e
segundo o firme controle político e ideológico das economias centrais.
Tida como uma das principais economias emergentes, do Brasil se espera
que continue mantendo a mesma linha de aumento de produção,
generalização do consumo e do desperdício, apenas que isso aconteça em
níveis um pouco menos perdulários. Ora, como pode ser rapidamente
verificado, mitigação e adaptação não são e nunca foram termos neutros,
mas pelo contrário são conceitos que se alimentam de uma história
concreta de diferenças e desigualdades, a qual continua sendo
continuamente reforçada. Em outras palavras, mitigação e adaptação
pressupõem, acima de tudo, que a geopolítica do carbono seja mantida
inalterada.
Segundo, as energias renováveis estão diretamente ligadas à
agenda contemporânea de desenvolvimento dito limpo ou sustentável.
Sabemos que existe hoje um grande entusiasmo com as chamadas
“tecnologias verdes”, que são defendidas segundo a perspectiva da
modernização ecológica. A complexa relação entre modernização
ecológica e conservação do meio ambiente – na prática, uma verdadeira
mistura de renovação e continuidade – tem servido como linha mestra
para muitas políticas ambientais, que incluem uma vasta gama de
técnicas, incentivos econômicos, tarifas verdes, selos e certificados,
comércio de licenças ambientais. As soluções que seguem a linha da
modernidade ecológica facilitam ainda o surgimento de novas vertentes
para a acumulação de capital baseadas produtos ou serviços relacionados
à própria conservação ambiental. Como, por exemplo, o Protocolo Verde,
lançado em 1995, que é um dispositivo que busca implementar
mecanismos financeiros que complementam e, ao mesmo tempo, criam
sinergias com a legislação ambiental existente (Alimonda e Leão, 2005).
São todas alternativas que se baseiam, antes de mais nada, no
conceito de escassez de recursos, o qual é obviamente também o princípio
norteador da ciência econômica. Essa centralidade da noção de escassez
para a introdução do novo marco regulatório e institucional não é mera
76

coincidência, mas permite que qualquer lógica de viés ainda mais


explicitamente econômico seja sobreposta aos procedimentos de gestão
ambiental anteriormente adotados. Fundamental notar que tais soluções
economicistas têm tido um espaço privilegiado em um contexto de
globalização dos mercados desde o final do século passado.
Uma das mais importantes facetas da globalização econômica
tem sido a transformação da gestão ambiental de mera fonte de matérias
primas e energia em um campo aberto para novas formas de circulação
de capital (Smith, 2007). A apropriação e a conservação de recursos
naturais e ecossistemas preponderantemente segundo prioridades de
acumulação privada de capital repercutem desigualdades e injustiças
sociais historicamente estabelecidas. Tal conclusão é facilmente
demonstrada na medida em que alguns grupos e localidades têm acesso e
uso privilegiado à natureza, ao mesmo tempo em que sofrem menos os
efeitos negativos de impactos e degradação ambiental. Esse padrão
desigual de acesso à natureza está relacionado à própria exploração do
mundo natural pela sociedade humana.
Ou seja, as bases do desenvolvimento ocidental – a alma mater da
globalização contemporânea – estão assentadas nessa múltipla exploração
entre grupos sociais (i.e. classes, raças, gêneros e gerações) que se projeta
na degradação ambiental. A insustentabilidade ambiental nada mais é do
que um capítulo específico de um procedimento injusto e autofágico de
crescimento econômico e mesmo de relacionamentos interpessoais. Em
particular, a demanda por segurança alimentar e por fontes seguras de
energia faz parte de uma problemática muito mais ampla de
democratização de vantagens socioeconômicas e de riscos
socioambientais. Da mesma forma, a falta de alimentos e de energia não é
uma questão dissociada de tendências mais gerais de degradação
ambiental e exclusão social. Conforme argumentado por Porto e Milanez
(2009) “o modelo de desenvolvimento brasileiro, fortemente baseado na
produção de commodities rurais e metálicas para o mercado internacional
globalizado, pode ser considerado ambientalmente insustentável e
socialmente injusto”. Os últimos autores ressaltam que, cada vez mais, a
produção de agrocombustíveis caminha nesta mesma direção de
insustentabilidade e ampla injustiça.
Em termos conceituais, as estratégias da modernização ecológica
– foco central das respostas oficiais, que surgem voltadas a soluções de
mercado e ganhos privados obtidos através de conservação ambiental –
partem da premissa de que a atividade econômica gera riscos e causa
degradação, mas que os mesmos podem e devem ser contidos por meio
de novas práticas e tecnologias. Em outras palavras, a modernização
ecológica serviria como estabilizador (ou regulador, na linguagem
econômica) dos impactos negativos da expansão econômica capitalista.
Exemplo maior de esforços nessa direção foi o recente discurso do
77

presidente Hu Jintao, na Assembleia Geral das Nações Unidas em 2009,


quando afirmou que a China, hoje o maior emissor de carbono do
planeta, concorda em cooperar para a resolução dos problemas de
mudanças climáticas, mas apenas por meio de uma modernização
ecológica de sua economia – basicamente, da obtenção de níveis mais
altos de eficiência – sem desviar os fundamentos políticos, econômicos e
sociais do modelo produtivo. A posição filosófica mais associada a esse
tipo de tratamento dos resultados negativos da atividade produtiva é o
trabalho de Ulrich Beck (1992), que define o mundo contemporâneo como
a sociedade do risco, risco esse que pode ser controlado (mas não
totalmente revertido) desde que fazendo uso de técnicas adequadas. A
consequência é que o potencial transformador das políticias ambientais
tem sido contido por uma insistência tecnocrática na internalização de
custos e otimização do uso de recursos naturais, ao passo que as
responsabilidades pelos erros cometidos e pelas injustiças produzidas são
sistematicamente deixadas de lado; a prioridade de afirmação de uma
racionalidade econômica para a resolução de uma longa sequencia de
impactos e distorções tem levado à consolidação de uma abordagem
socioambiental cada vez mais insustentável e excludente (Ioris, 2010).
Como pode ser facilmente percebido, as medidas de
modernização ecológica, como de resto toda ortodoxia ambiental
hegemônica, aceita que uma significativa quantidade de impactos e de
degradação é inevitável, o que nos remete aos economistas utilitaristas do
Século XIX. Além disso, a advocacia da modernização ecológica
geralmente ignora que as pessoas e os grupos sociais vivem em um
contexto econômico e político específico, de que há desigualdades e
diferenças concretas que inevitavelmente afetam a adoção ou não de
determinadas tecnologias. Por exemplo, escassez e abundância de
recursos não são conceitos absolutos, mas somente fazem sentido em uma
situação social e cultural determinada. Portanto, é extremamente
questionável se a modernização ecológica pode de fato contribuir para
responder às falhas de um modelo de sociedade baseado na dupla
exploração humana e ambiental. Também é preciso compreender que
existem resistências à própria modernização ecológica em muitos ramos
da economia, em particular no setor agrícola. Nos últimos anos,
consolidou-se uma verdadeira dualidade no agronegócio, na medida em
que tanto se anunciam restrições a atividades em uma dada área
geográfica, quanto se estimulam as mesmas atividades em regiões onde a
oposição seja mais débil.
A franca expansão do agronegócio no norte de Mato Grosso
talvez seja o melhor exemplo de tecnologias tidas como obsoletas, pelo
seu alto nível de impacto ambiental, mas ainda perfeitamente viáveis em
uma economia cada vez mais globalizada e com baixa preocupação ética
a respeito da forma como as commodities são produzidas. A modernização
78

da agricultura brasileira, legado da chamada Revolução Verde, não


apenas introduziu um padrão de produção menos autossuficiente e mais
dependente de insumos externos, mas resultou em significativos
impactos ambientais e sobre comunidades de pequenos agricultores,
particularmente aqueles com precária propriedade fundiária (Gutberlet,
1999).
Terceiro e relacionado com os últimos pontos, cabe agora
perguntar quais são os compromissos de fundo do Estado brasileiro ao
incentivar a adoção de energias renováveis. Em nome de que interesses
ou relações de poder atuam as principais agências estatais? As estatísticas
indicam que houve um crescimento de 1,9 milhão de hectares com cana
em 1975 para 8,9 milhões de hectares em 2007, mas não mostram quais
foram os ganhadores e perdedores nesse processo de expansão. Apesar
da suposta “virtude política” por detrás das motivações do Estado, como
definido por Montesquieu, as intervenções governamentais estão muito
mais relacionadas ao que Gramsci descreveu como uma combinação
entre hegemonia política e o comando sobre o Estado e o sistema jurídico
por parte de certos grupos sociais. Não se pode, portanto, compreender a
ação estatal isolada de confrontos entre membros da sociedade e áreas
geográficas. Como enfatizado por Bob Jessop (2002), o Estado é uma
relação social, ou seja, não é monolítico, nem totalmente racional, mas
tem uma grande porosidade, pois apresenta contradições internas e está
submetido a múltiplas influências.
Nos últimos 20 anos, o Estado nacional brasileiro passou por um
processo de ajustes, partindo de uma lógica de intervenção direta na
produção para uma situação onde há mais espaço para empreendedores
privados. Exemplo disso é o avanço nos últimos meses de oportunidades
de participação em empresas privadas de água e saneamento (inclusive
com apoio do BNDES), assim como a solidez e a pujança do chamado
agronegócio brasileiro. Um lado curioso da liberalização da economia no
nosso continente é que isso tem acontecido juntamente com novas e
antigas formas de populismo. No caso do Brasil, o populismo de viés
neoliberalizante do presidente Lula se alimenta, mas também modifica as
práticas populistas inauguradas por Vargas e JK. Esse processo recente de
ajuste do aparato estatal, apesar de um discurso de transparência e
inclusão social, tem tido uma trajetória tortuosa e uma execução
problemática, uma vez que, por um lado, garante renda mínima a uma
maior proporção da sociedade, mas ao mesmo tempo intensifica as
pressões sobre o meio ambiente, por exemplo, em razão das grandes
obras hidráulicas, das rodovias transcontinentais e da crescente
contribuição de setores primários na pauta de exportações brasileiras.
Pode-se destacar que, em 2009, depois de 31 anos, o Brasil
exportou mais commodities do que produtos manufaturados: de janeiro a
agosto, as vendas externas de produtos básicos somaram 42,8%, acima
79

dos 42,5% dos manufaturados. Além disso, diversos estudos da CEPAL


mostram que a liberalização econômica da década de 1990 aumentou a
contribuição de indústrias ambientalmente sensíveis no total das
exportações nacionais, incluindo a produção química, siderurgia e
mineração e indústria papeleira, ao mesmo tempo em que diminuiu o
nível de especialização tecnológica. Ou seja, exporta-se hoje uma maior
percentagem de mercadorias que causam poluição e degradação, mas que
requerem menos tecnologia. Isso significa uma pior qualidade das
exportações, o que, no nosso caso concreto, traz um grande ponto de
interrogação: em que medida os biocombustíveis, produzidos em grandes
unidades agroindustriais, dependem não apenas de incentivos e
subsídios, mas da leniência dos reguladores ambientais acossados pelas
pressões liberalizantes.
Existe o perigo de que, sem um controle efetivo, particularmente
em áreas de fronteira agrícola, podem-se generalizar os impactos
socioambientais, mesmo que em nome da redução do aquecimento
global. À tolerância com formas difusas de degradação ambiental, soma-
se uma aceitação tácita de impactos sociais, como mão de obra temporária
e desalojamento de populações tradicionais. Pesquisas publicadas este
ano demonstram como a produção de biodiesel no Piauí, apesar de
incrementar a economia local, tem criado o efeito de enclave em que os
benefícios ajudam a poucos, mas os efeitos negativos e impactos culturais
são bem mais extensos (Santos e Rathmann, 2009). Clancy (2008) deixa
claro que os biocombustíveis, como alternativa técnica, não são por si só
nem a favor, nem contra a diminuição de pobreza, mas sua contribuição
depende do contexto político e das estruturas institucionais. Podemos
perguntar, por exemplo, como fica a agricultura familiar – a qual faz
parte do programa de biodiesel – quando a Petrobrás descobre novas e
extensas reservas de petróleo?
Quarto e último, por causa da racionalidade economicista da
modernização ecológica e dos comprometimentos políticos do Estado
nacional, é difícil esperar algo realmente inovador quando se apostam
todas as fichas das políticas agroenergéticas em ações setoriais ou
tecnológicas, sem que se enfrentem os problemas de fundo de uma
sociedade global baseada no consumo crescente e desigual. Em termos de
inovação agronômica, a cana-de-açúcar segue provavelmente sendo a
melhor alternativa como biocombustível (mas não deixa de ser irônico
que o Brasil tenha iniciado sua história cultivando cana para exportar
para Europa, isso durante o mercantilismo escravocrata do Século XVI,
mas 450 anos mais tarde o etanol da cana seja ainda apresentado ao
mundo como uma grande novidade tecnológica). Prova das insuficiências
do que se obteve até agora no campo da bioenergia é que o avanço
produzido pelos tratados internacionais é quase desprezível, quando
comparado com o aumento das emissões de carbono devido ao crescente
80

comércio internacional. Em outras palavras, busca-se reduzir as emissões,


mas sem enfrentar o problema mais central da produção e consumo de
mercadorias e serviços responsáveis pelas mesmas emissões.
Da mesma forma, o Banco Mundial continua apoiando 25 vezes
mais projetos que contribuem para aumentar as emissões de carbono do
que projetos ligados a energias renováveis. Portanto, se não situarmos os
biocombustíveis em processos mais amplos e profundos de
transformação econômica, da reconquista popular dos fundos públicos e
das políticas de desenvolvimento, de mudanças nos padrões de consumo
e no fluxo de capital, nunca será possível evitar as tendências mais gerais
de manutenção de impactos, riscos e crises recorrentes. Se refletirmos um
pouco sobre o que aconteceu em 2008, podemos verificar que as causas da
crise financeira nada mais foram do que uma aposta cega em um lucro de
curtíssimo prazo. Isso deveria servir de alerta para as limitações de
respostas convencionais aos problemas associados ao risco de mudanças
do clima.
Uma visão apenas setorial ou tecnocrática geralmente leva a
falsas expectativas e soluções paliativas. Por exemplo, as vantagens em
termos de redução de gases de efeito estufa obtidos com a substituição de
combustíveis fósseis por biocombustíveis, como o etanol da cana-de-
açúcar, podem ser facilmente ultrapassadas pela expansão do transporte
motorizado (Mello et al., 2009). Há estudos que demonstram que mesmo
que todo o milho e soja do mundo sejam empregados como
biocombustível somente se chegaria a 12% da demanda global de
gasolina e 6% do diesel (Hill et al., 2006). Ou seja, o problema de fato não
é a forma de combustível, mas a dependência do carro particular, o
crescimento acelerado e excludente de grandes áreas urbanas e o
consumo de mercadorias com alto valor de mercado, mas com um
questionável valor concreto. É também duvidosa a viabilidade de longo
prazo de projetos de expansão de biocombustíveis ligados a subsídios e
ao oportunismo do mercado internacional de petróleo.
Sem uma postura geopolítica mais firme, o Brasil, como de resto
o Peru e a Bolívia, tendem a se tornar algo parecido com uma colônia
energética (considerando não somente biocombustíveis, mas petróleo,
carvão, energia eólica, etc.). Como comparação, podemos tomar a região
de Aberdeen, centro da área produtora de petróleo do Reino Unido, um
verdadeiro protetorado energético onde 20% da população trabalham na
indústria petroleira e que brevemente ficarão sem emprego, porque se
trata de uma produção que tem seus dias contados. Mas o debate público
e acadêmico tem grande dificuldade, também por lá, de incorporar essas
questões mais centrais. Com os biocombustíveis, apesar de ser uma fonte
renovável de energia, pode suceder algo parecido, se não houver uma
atenção maior tanto com os impactos socioambientais criados localmente
e com as contradições socioeconômicas mais gerais.
81

Falta perceber que é justamente essa tendência econômica


perversa, com ou sem mitigação das mudanças climáticas, que serve de
barreira à formulação de soluções efetivas à dupla degradação ambiental
e humana. Porém as opiniões dominantes veiculadas na mídia e em
grande parte da academia não aceitam que os países do Sul busquem
outras alternativas, mas esses devem se submeter e aceitar o bônus e o
ônus dos mercados globalizados. Aqui está a falácia fundamental,
porque, na verdade, a dependência se dá exatamente ao contrário: é a
expansão capitalista que não pode se manter sem uma constante
incorporação da esfera não capitalista. O capital não pode prescindir do
seu antípoda, qual seja, do mundo não capitalista. Esta é uma observação
feita por Rosa Luxemburgo (1951) há quase um século atrás, mas que
segue bastante relevante para se compreender que a vitalidade do
capitalismo requer a apropriação de áreas e atividades que estão ainda
além do circuito de acumulação. Mas essa expansão das relações de
produção capitalista acontece com um alto custo socioambiental e cria
sempre novas fontes de risco.
No nosso caso, sem uma visão crítica dos propósitos e da
distribuição de benefícios, alternativas tecnológicas como a produção de
biocombustíveis podem rapidamente se restringir a apenas outra
engenhosa fonte de acumulação de capital, com a vantagem marginal de
que evita que se aumente ainda mais o nível de emissão de carbono. Mas
em termos concretos, deixa-se assim mantida a mesma estrutura
produtiva, as mesmas relações interpessoais, os mesmos padrões de
consumo e de transporte. Além disso, incorporam-se as vicissitudes
agrícolas – uma longa lista de riscos, conflitos e incertezas – à geração e
consumo de energia automotiva. Portanto, a questão central é até que
ponto a produção de biocombustíveis, sem uma apropriação política pelo
conjunto da sociedade, não vem apenas reforçar e legitimar toda a
realidade socioeconômica profundamente insustentável e desigual?

Conclusões e Perspectivas

Como conclusão, é evidente que não adianta apenas criticar, mas


é necessário apontar alternativas de curto e longo prazo. É preciso
reconhecer que soluções, como os biocombustíveis, podem ter um papel
fundamental para se avançar na busca respostas às mudanças climáticas,
mas desde que adotadas como parte de uma estratégia político-
econômica que confronte a lógica de crescimento a qualquer preço e o
foco nos sintomas e não na doença. O problema é que, se fizermos as
perguntas erradas, não vamos nunca chegar às respostas certas. A
posição brasileira, nos fóruns de negociação de mudanças climáticas, será
tanto mais forte e respeitável quanto mais igualitário e criativo for o
processo de desenvolvimento nacional. Para isso é preciso fazer “o dever
82

de casa”, não somente ter uma produção de biocombustíveis que seja


social e ambientalmente consequente, mas que essa seja também ligada à
conservação dos biomas e à reversão de tecnologias agronômicas que
fazem uso intensivo de fertilizantes e agroquímicos. Tais ações são
importantes e necessárias para controlar não somente os processos que
causam impactos ao ambiente, mas também aos grupos sociais mais
vulneráveis. O futuro da bioenergia e da segurança necessita estar, dessa
forma, ligado a uma profunda rearticulação do perfil da agricultura
nacional, incluindo um enfrentamento efetivo da crônica questão agrária,
das poucas oportunidades sociais que existem no meio rural e do não
menos inconveniente imperativo de preservação ambiental.2
Em grande medida, a dificuldade em considerar os problemas
energético-alimentares em termos de desenvolvimento nacional e
globalização tem representados uma importante barreira para se entender
as reais potencialidades agroenergéticas. De certa forma, níveis mais
elevados de produtos agrícolas no Brasil correspondem às metas de
diminuição de desnutrição e energias renováveis, que são legítimas
aspirações em um país ainda com pobreza endêmica e comprometido em
ajudar a minimizar as mudanças climáticas. Contudo, o agronegócio
brasileiro é um componente central de um complexo mecanismo de
crescimento econômico e democratização conservadora crescentemente
sob influência de ideias neoliberais. Como enfatizado por Lara e López
(2007: 21), o neoliberalismo tem se mantido “o paradigma dominante [na
América Latina], apesar de estar em crises, e constitui o mais óbvio sinal
do avanço contraditório de um capitalismo globalizado”. O processo de
expansão e intensificação dos mercados globais tem não somente
redefinido o panorama geográfico, mas aprofundado impactos negativos
em áreas sociais, políticas e ambientais. A globalização dos mercados,
como etapa mais recente da expansão capitalista, ao mesmo tempo em
que estimula respostas inovadoras, como no caso de novas técnicas
agroenergéticas, também reinforça tendências de exploração sociais e
ambientais centrais ao processo capitalista de produção de valor e
acumulação de capital.
Importante observar que, ao mesmo tempo, crescem as vozes de
alerta que denunciam os riscos de conflitos e impactos negativos
relacionados à aposta inconsequente em biocombustíveis, tal como o
protesto dos movimentos sociais reunidos em São Paulo no ano de 2008

2 Um exemplo emblemático foi a declaração da então Ministra Dilma Roussef


(conforme noticiado na imprensa nacional em 15 de outubro de 2009) que
desautorizou metas de emissão de carbono que venham a prejudicar os níveis de
crescimento econômico pretendidos. Quando isso acontece, não é somente a
intenção brasileira de exercer uma liderança em Copenhague que sofre, mas fica
claro que o pensamento dominante ainde percebe a preservação do meio
ambiente como empecilho.
83

durante o primeiro seminário internacional Agrocombustíveis como


Obstáculo à Construção da Soberania Alimentar e Energética, que
afirmaram:

“Discordamos radicalmente da estratégia de promoção dos


agrocombustíveis: entendemos que estes não são vetores de
desenvolvimento, nem tampouco de sustentabilidade. Esta estratégia
representa um obstáculo à necessária mudança estrutural nos sistema
de produção e consumo, de agricultura e de matriz energética, que
responda efetivamente aos desafios das mudanças climáticas.”

Podemos terminar relembrando a geógrafa britânica Doreen


Massey, para quem o espaço geográfico incorpora, de maneira dinâmica,
a dimensão relacional e a dimensão política. Segundo essa perspectiva
(Massey, 2005), o mundo é formado por sistemas abertos que interagem
continuamente e que abrem, como resultado dessa interação, as
possibilidades para a ação transformadora. Portanto, o espaço geográfico
e as relações socionaturais são, antes de mais nada, oportunidades para
que a sociedade encontre, de forma democrática e mais igualitárias, bases
sólidas e viáveis de organização. Porém sem uma compreensão ecológica
da política e um entendimento político da ecologia, vamos apenas manter
diferenças e injustiças sociais que são continuamente projetadas sobre a
relação entre sociedade e natureza, a serviço de uma acumulação seletiva
de capital. Se ignorarmos as bases históricas e civilizacionais dos
problemas de mudanças climáticas, como de resto da agricultura e da
degradação ambiental, restará apenas a insistência em soluções isoladas e
insatisfatórias.

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86

Capítulo 5

A Distância entre Teoria e Prática:


Barreiras para um Regime de Gestão de Águas
Participativo na Baixada Fluminense, Rio de
Janeiro.

Este capítulo aborda aspectos relacionados à participação popular na


gestão política, ênfase em assuntos ligados à gestão de águas na Baixada
Fluminense (RJ). Discutiu-se a existência e consequências de uma
sobreposição de projetos políticos iniciados na década de 1990, sendo um
democratizante/participativo e o outro neoliberal. As observações de
Dagnino (2004) sobre os deslocamentos de sentido atribuído aos termos
participação, sociedade civil e cidadania foram incorporadas na discussão
sobre ao gerenciamento de recursos hídricos na Baixada Fluminense. Foi
visto que a insustentabilidade da gestão de águas é, portanto, não apenas
relacionadas com o mau estado dos sistemas hidrológicos e a
precariedade dos serviços públicos na Baixada, mas está profundamente
enraizado nos padrões de uso e conservação da água em um contexto de
forte desigualdade de poder entre comunidades e os formuladores de
políticas. Os resultados empíricos demonstram que os problemas de
gestão de água estão intimamente relacionados à falta de oportunidades
da população local em influenciar o processo de tomadas de decisão e à
fragilidade dos mecanismos oficiais criados até o momento para envolver
os diferentes grupos sociais ou áreas geográficas (ver mais em Ioris e
Costa, 2009). Nesse contexto, a influência de grupos mais organizados e
com maior poder político continua a prevalecer na tomada de decisões,
tanto em questões pontuais, quanto em termos da direção estratégica de
planos e projetos.

Introdução

Descentralização e participação são metas que vêm adquirindo


um espaço cada vez mais importante na arena político-administrativa
brasileira nas últimas décadas, principalmente a partir da Constituição de
1988. No início do Século XXI, os canais de participação popular na
gestão pública têm configurado também trilhas alternativas e novas
experiências de políticas locais que, ao menos no plano teórico, incluem
diversas possibilidades de inovação na esfera da atuação do Estado.
Potencializam-se pelo Brasil inúmeros mecanismos de participação na
formulação de políticas públicas e na tomada de decisões administrativas
87

(Avritzer e Pereira, 2005; Dagnino, 2002; Machado, 2003; Tatagiba, 2002).


Os formatos de gestão participativa mais conhecidos são os Conselhos
que atuam em diversas áreas - tais como Educação, Cultura, Meio
Ambiente, Política Urbana e de Saúde, os Comitês de Bacia Hidrográfica,
o Orçamento Participativo e outras formas consultivas e deliberativas que
buscam aproximar a população dos processos de gestão pública. Os
principais benefícios esperados seriam a contribuição de diferentes
setores da sociedade civil na definição de prioridades de alocação de
recursos e o exercício de um papel mais efetivo de controle e fiscalização
do Estado, agindo assim como um fator educacional e de promoção da
cidadania. Entretanto, apesar das supostas vantagens do envolvimento
direto da população na ação conjunta com o Estado, o que se tem
observado na prática são experiências participativas ainda limitadas e
que deixam de produzir formas mais efetivas de participação e busca de
soluções coletivas1 (Tatagiba, 2002).
Em consonância com este contexto político (dito descentralizado
e participativo), a lei da Política Nacional de Recursos Hídricos (PNRH),
promulgada em 1997, trouxe como principais orientações: a bacia
hidrográfica como unidade territorial prioritária para a gestão, e a gestão
participativa, em Comitês de Bacia Hidrográfica (CBH), com
representantes da sociedade civil, Estado e usuários de água 2. Os
princípios e instrumentos deste novo modo de gerenciar os recursos
hídricos seguem pressupostos que, à primeira vista, almejam formas de
gestão mais democrática da água baseadas em uma redefinição territorial
das políticas públicas. Da mesma forma que em outras áreas onde se
busca aprofundar a participação popular, a experiência prática de
implementação do novo marco regulatório está permeada por conflitos
de interesses e disputas de poder que, em grande medida, tem
comprometido a qualidade da gestão. Como resultado concreto,
raramente se visualiza procedimentos efetivamente democráticos nas
decisões de um processo “participativo” (Abers et al., 2007). Mesmo com
o avanço legal recente, continuam existindo sérias barreiras para a
universalização dos serviços e recuperação ambiental de bacias

1 Em seus estudos, Tatagiba (2002) utilizou como referentes empíricos um


conjunto de estudos voltados à análise dos conselhos de saúde, de assistência
social e de defesa dos direitos da criança e do adolescente. Estes conselhos,
mesmo não sendo específicos para gerir a água, mostram dificuldades
semelhantes aos inúmeros comitês de bacia brasileiros.
2 A implantação da nova Política Nacional de Recursos Hídricos tem ainda se

beneficiado de avanços institucionais em áreas correlatas, como por exemplo, a


instituição da Lei Nacional do Saneamento Básico (Lei 11.445/2007), o Estatuto
das Cidades (Lei 10.257/2001) e mesmo da legislação sobre as parcerias público-
privadas (as chamadas PPP) definidas na Lei 11.079/2004, esta última
considerada pelo atual governo federal como uma importante alternativa de
atração de capital privado para a execução de obras públicas.
88

hidrográficas, particularmente os conflitos entre entidades públicas de


diferentes níveis de governo, a crônica pobreza de largas parcelas da
população urbana e rural e a degradação e conflitos ambientais (Britto e
Silva, 2006).3
O que se pretende aqui é realizar uma reflexão sobre os sentidos
da participação social na gestão de águas na Baixada Fluminense 4,
principalmente durante as décadas de 1990 e 2000, cujos principais
projetos vigentes na área de saneamento foram: 1) “Programa Baixada
Viva” (iniciado em 1995, contudo, em 1999 este mesmo projeto passou a
se chamar “Programa Nova Baixada”), e 2) Projeto Iguaçu, lançado em
2007 com recursos do Programa de Aceleração do Crescimento 5 (PAC). A
região em estudo é uma área densamente povoada, comumente associada
com violência, privação dos direitos sociais básicos e ao comportamento
peculiar de seus mais famosos políticos (Barreto, 2006). Essa imagem
estereotipada, constantemente reforçada pelos meios de comunicação de
massa, certamente esconde a verdadeira extensão de uma complexa teia
de interações entre grupos sociais, seu território e os processos ecológicos.
A visão simplista dos problemas socioambientais da Baixada também
encobre responsabilidades desiguais e impactos distribuídos de forma
assimétrica entre grupos e localidades. Neste estudo, consideramos que
as questões relacionadas com a água são componentes de trajetórias
histórico-geográficas e socionaturais mais amplas, em uma relação direta
com a realidade concreta dos problemas políticos e sociais que afetam o
uso e a conservação dos recursos hídricos (Ioris, 2010).
Buscando facilitar o entendimento das características da gestão
de recursos hídricos na Baixada e desvendar as distintas visões e atuação
dos atores em um determinado campo de ação, foram utilizados técnicas
e métodos qualitativos em função da subjetividade implícita nos conflitos

3 Um exemplo destas disputas pode ser visualizada nos estudos de Valêncio e


Martins (2004) que analisam o papel exercido pelos pescadores artesanais na bacia
do Médio São Francisco e pelos pequenos agricultores na bacia do Alto
Parapanema no contexto da gestão formal das águas. Este estudo ilustra como
estes dois grupos pouco podem fazer frente às forças políticas dominantes.
4 Geograficamente a Baixada Fluminense é uma região localizada
aproximadamente ao nível do mar que se estende paralelamente à costa em
corredor entre a Serra do Mar e o oceano. Tendo como limites o município de
Itaguaí do lado oeste e a divisa com o estado do Espírito Santo do lado leste. Esse
grande território é subdivido em áreas menores de acordo com as suas
peculiaridades fisiográficas (Geiger e Santos, 1955).
5 O “PAC” refere-se ao Programa de Aceleração do Crescimento do governo

federal que prevê investimentos em infraestrutua aliado a medidas econômicas.


Tem por objetivo estimular os setores produtivos levar benefícios sociais para
todas as regiões do país.
89

e decisões políticas que se relacionam ao problema da água 6. A


interpretação dos resultados se situa no campo da ‘ecologia política’, ou
seja, no entendimento que a política é inevitavelmente ecológica, ao
mesmo tempo em que a ecologia é intrinsecamente política.

O Contexto Socioambiental

A difícil transição para um regime de gestão de águas


participativo, proposta pelo novo marco institucional, pode ser
demonstrada com a análise da história recente da bacia hidrográfica do
Rio Iguaçu7, o principal sistema hidrológico e que ocupa grande parte o
território da Baixada Fluminense. Esta bacia foi selecionada pelo fato de
apresentar um quadro histórico altamente problemático de degradação
de recursos hídricos e deficiência nos serviços de saneamento básico, ao
mesmo tempo em que conta com uma sucessão de iniciativas e
investimentos públicos que criam (e recriam) novos espaços de
participação popular. Ao mesmo tempo, em 2005 foi criado o Comitê da
Bacia Hidrográfica da Baía de Guanabara e Sistemas Lagunares (CBH

6 Os trabalhos de campo envolveram entrevistas confidenciais (semi-estruturadas)


com usuários de água, lideranças comunitárias, população diretamente atingida
pelas obras do PAC, representantes do Estado e membros do CBH Guanabara. O
conteúdo das entrevistas foi analisado de forma a salientar pontos de
convergência e divergência entre as posições de diferentes grupos, além da
tentativa de entender as relações de poder estabelecidas nos discursos dos grupos
dominados e dos dominantes (Scott, 2000). A metodologia inclui também a
participação em reuniões do CBH Guanabara e suas Câmaras Técnicas, encontros
de ONGs da Baixada e outros eventos referentes às atividades do PAC valendo-
se, nestes momentos, de técnicas de observação participante. Foi dada atenção
especial para a atuação das organizações responsáveis pela regulação e
gerenciamento da água, o INEA, o órgão gestor estadual e a CEDAE, empresa
responsável pelos serviços de água e esgoto. Para a análise dos Programas Nova
Baixada e Baixada Viva, utilizaram-se dados secundários, principalmente os da
pesquisa de Macedo et al. (2007).
7 Na Baixada Fluminense, desde o início da época colonial (Séculos XVI ao XVIII),

solos aluviais locais foram explorados para cultivar cana-de-açúcar e culturas de


subsistência. A rede fluvial se conectava à Baía de Guanabara e de lá para a
cidade do Rio de Janeiro, o que facilitava a comercialização dos produtos locais e
servia como um corredor de transporte para o ouro e o café trazidos do interior. A
exploração da Baixada, como uma área de passagem, foi posteriormente reforçada
com a construção da primeira rede ferroviária brasileira no Século XIX e da
Rodovia São Paulo-Rio de Janeiro no Século XX. A disponibilidade de terras
urbanas baratas e a existência de transporte público atraíram um grande fluxo de
imigrantes que chegaram (principalmente das regiões Norte e Nordeste) em
busca de empregos e oportunidades na área metropolitana do Rio de Janeiro.
90

Guanabara), e a área foi incluída entre as metas do Programa de


Aceleração do Crescimento (PAC)8, em 2007.
Após décadas com altas taxas de imigração (que chegaram a 10%
ao ano nas décadas de 1950 e 1960), a população total dos oito 9
municípios que formam a Baixada ultrapassou no ano de 2008 a marca de
3,7 milhões de habitantes. A chegada de grandes contingentes de
migrantes para uma área com quase nenhuma infraestrutua pública
marcou profundamente a história e a geografia da Baixada e sua inserção
nos fluxos materiais e políticos da região metropolitana (Geiger and
Santos, 1955). Os residentes recém-chegados eram obrigados a ocupar
qualquer pedaço de terra disponível em uma área úmida (ou pantanosa)
sob influência de marés. A dramática e acelerada transformação de uma
zona rural úmida em uma periferia densamente povoada modificava a
situação anterior de disponibilidade de água para o consumo humano em
uma situação de risco e de escassez.
Sobre os problemas de abastecimento de água na Baixada
Fluminense, estudos do IBGE e inúmeras matérias veiculadas na mídia
sobre saneamento básico na região, apontam uma situação de problemas
crônicos e relacionados tanto ao excesso de água (as enchentes
esporádicas), quanto à sua escassez (abastecimento de água irregular em
diversos bairros), além dos altos níveis de poluição dos corpos hídricos. O
fato de grande parte da água para abastecimento ter origem na bacia do
Rio Guandu10 torna ainda mais delicada a condição de vulnerabilidade

8 Além de investimentos do Programa de Aceleração do Crescimento em


‘Saneamento e Urbanização de Favelas’ (que inclui execução de obras pelas
prefeituras, pela INEA e pela CEDAE), podem ser ainda destacadas outras
iniciativas na RMRJ tais como o COMPERJ - Complexo Petroquímico do Rio de
Janeiro, que será construído em uma área de 45 milhões de metros quadrados
localizada no município de Itaboraí e o Arco Metropolitano do Rio de Janeiro, que
irá integrar a Baixada Fluminense ao porto de Itaguaí. Mesmo não sendo este o
foco da pesquisa, tanto o COMPERJ, quanto o Arco Metropolitano terão
significativas repercussões em termos de demanda por água, produção de
resíduos e alteração de uso do solo na região.
9 São considerados os municípios da Baixada Fluminense: Queimados, Japeri,

Nova Iguaçu, Duque de Caxias, São João de Meriti, Mesquita, Nilópolis e Belfort
Roxo. Segundo dados da Pesquisa Municipal do IBGE de 2008, a população total
destes municípios é de 3.737.083 habitantes.
10 O principal sistema de abastecimento de água do Rio de Janeiro é oriundo, em

grande parte, do Sistema Guandu (este manancial de água é abastecido, em


grande parte, por uma transposição de água do Rio Paraíba do Sul), que se
localiza geograficamente próximo à Baixada. Muitas vezes o fato do deslocamento
de água ter que ser feito, obrigatoriamente, cruzando territórios da Baixada, é
vista pelos empresários e pelo setor governamental como um problema, já que a
população lança mão, muitas vezes, de artimanhas ilegais para ter acesso a água.
Verifica-se assim que a população local encontra-se geograficamente próxima dos
mananciais de água, mas não se beneficia desta situação. Apesar da grande
91

socioambiental e potencializa o surgimento de conflitos entre localidades


e grupos de usuários. Porém, não se pode afirmar que os problemas
persistem por falta de investimentos ou de projetos dedicados a melhorar
a drenagem e o serviço de saneamento. O poder público desenvolve ações
contra as enchentes desde o Século XIX11, assim como projetos e
programas de saneamento – acredita-se que mais de um bilhão de dólares
já foram gastos em saneamento na região (Porto, 2003). Dentre os
principais projetos efetuados na Baixada destacam-se o Projeto Especial
de Saneamento Básico da Baixada Fluminense e São Gonçalo (década de
1980), Reconstrução Rio, Programa Nova Baixada (posteriormente
chamado de Baixada Viva) e Programa de Despoluição da Baía de
Guanabara (entre final de 1980 até 2008), e desde 2007, o Projeto Iguaçu,
com recursos do Programa de Aceleração do Crescimento (obras a cargo
do governo estadual e prefeituras). A conjunção de tais iniciativas mostra
como os problemas e conflitos em torno da gestão da água se mantêm e
se agravam com a chegada de novos moradores e com a deterioração e
falta de manutenção da infraestrutura de saneamento básico existente. A
combinação de irracionalidade técnica de muitos projetos com
intervenções pontuais e centralizadoras, associado à falta de controle
social, consolidou uma situação de baixa eficiência, desperdício de
recursos públicos e informalidade generalizada, como sinteticamente
descrito por líder comunitário:

“O resultado é que hoje existem sistemas de saneamento na Baixada


fragmentado: estações de tratamento que não tem esgoto para tratar e
reservatórios de água que não tem água dentro.” (representante
sociedade civil no CBH Guanabara, julho 2008).

Em que pese o fato de os problemas de saneamento e gestão de


recursos hídricos na Baixada serem extensivamente conhecidos (em
especial, a poluição dos rios, as enchentes e os serviços de água e
esgotamento sanitário precário), o debate retomou visibilidade em função
do anúncio recente da retomada de investimentos públicos. A iniciativa

concentração populacional e do significativo parque industrial, as reservas de


água são limitadas e insuficientes para o abastecimento de determinadas áreas.
Lançando mão dos pressupostos teóricos de Bourdieu, pode-se afirmar que a
posição privilegiada que os moradores da Baixada ocupam no espaço físico, não
foi suficiente para competir com aqueles que detém posição privilegiada no
espaço social. Isto porque, mesmo estando próximo geograficamente do principal
sistema de abastecimento, não é garantia de que a água chegará na sua casa.
Enquanto que, nos bairros da zona sul da cidade do RJ (área mais “nobre”),
chamados de “fim de linha” pela CEDAE, distantes geograficamente do Guandu,
dificilmente falta água.
11 As primeiras obras de drenagem e dragagem dos rios da Baixada se deram em

1844, com a Comissão de Estudos e Saneamento da Baixada.


92

de realizar investimentos públicos nas principais bacias hidrográficas,


através de vários projetos e subprojetos do PAC, recolocou a Baixada
Fluminense no centro do debate nacional sobre a reforma do setor de
saneamento e sobre gestão de recursos hídricos em geral. Dentre esses, o
projeto PAC coordenado pelo Instituto Estadual do Ambiente (INEA),
conhecido popularmente como PAC-INEA, inclui a atualização de parte
das metas do Plano Diretor de Controle de Inundações da Bacia do
Iguaçu-Sarapuí (chamado de Projeto Iguaçu) 12, desenvolvido durante a
implantação do ‘Programa Reconstrução Rio’ no ano de 1996. Passados
mais de dez anos da concepção desse plano, não ocorreram mais
investimentos de vulto na Baixada em termos de drenagem urbana e
recuperação de cursos de água, sendo que poucas ações previstas no
Projeto Iguaçu foram implantadas. Nesse período, agravaram-se o
assoreamento por resíduos sólidos e sedimentos e as condições de
ocupação das margens das áreas de nascentes - o número de famílias a
serem reassentadas, por exemplo, aumentou 2,5 vezes, segundo
informações dos técnicos do INEA, em relação à avaliação contida no
plano original de 1996.
Informações obtidas no site do INEA apontam que o controle de
inundações na Baixada Fluminense demanda investimentos da ordem de
R$ 1 bilhão em valores atuais. Dentro dos limites de recursos
disponibilizados no âmbito do PAC I (2007-2010), foi concebida a
primeira fase do Projeto Iguaçu, com investimentos de cerca de R$ 482
milhões (R$ 230 milhões da União e R$ 252 milhões do Governo do
Estado do Rio de Janeiro). Para o PAC 2 (continuação do Projeto Iguaçu),
ainda de acordo com o INEA, já estão assegurados R$ 384 milhões
oriundos do Ministério das Cidades.

Os Sentidos da Participação Política na Baixada Fluminense

Feita esta breve contextualização sobre área em estudo, bem


como ao projeto que é desenvolvido atualmente, convém entrarmos no
assunto que mais interessa neste momento, quer seja ele, os sentidos
atribuídos à participação popular na gestão pública (da água,
principalmente) na Baixada Fluminense. Lançaremos mão, a princípio,
dos argumentos de Dagnino (2004) no sentido de facilitar a interpretação
dos dados empíricos levantados em nossa pesquisa.
Para esta autora, o processo de maior descentralização e abertura
à participação popular nas políticas públicas, discutido na introdução

12 Esta atualização foi feita pelo laboratório de hidrologia da COPPE/UFRJ e


ainda não foi finalizada. Segundo informações obtidas com um funcionário deste
laboratório (em 09 de março de 2009), enquanto a COPPE atualiza o projeto
Iguaçu, concomitantemente prepara a formatação de um novo projeto, o “PAC-2
da INEA”, para pleitear novos recursos financeiros junto ao governo federal.
93

deste trabalho, não foi fruto apenas das manifestações da década de 1970,
haja vista o momento político vivenciado no fim do Século XX trazendo à
tona dois projetos políticos antagônicos. O primeiro projeto refere-se ao
processo de alargamento da democracia, iniciado formalmente na
Constituição de 1988. O segundo, dirige-se ao projeto neoliberal de
Estado mínimo, surgido no Brasil a partir de 1989, como parte da
estratégia de implementação do ajuste neoliberal – que se isenta
progressivamente de suas responsabilidades sociais e as transfere para a
sociedade civil. Sendo assim, devido à sobreposição destes dois projetos
políticos – diferentes e antagônicos, a década de 1990 é marcada por uma
“confluência perversa”, pois ambos os projetos demandam a existência de
uma sociedade civil ativa e propositiva.
Para Dagnino (2004), o que há de específico nesse processo, no
Brasil, é que ele se defronta com um projeto político democratizando,
amadurecido desde o período de resistência ao regime militar, fundado
na ampliação da cidadania e na participação da sociedade civil. Na
Baixada Fluminense, por exemplo, o período da ditadura funcionou como
um catalisador de fomento para que os movimentos sociais se
articulassem, pois a região foi um local adequado para a atuação política
por atrair pouca atenção das autoridades, em comparação com os grandes
centros, e por concentrar os segmentos sociais mais desfavorecidos. Nesta
época, chegaram ou retornaram à região diversos ativistas políticos e
foram formados os principais movimentos sociais da história da Baixada
(Macedo et al., 2007). A segunda metade da década de 1970, por exemplo,
foi um período marcado por grandes manifestações, cujas principais
bandeiras foram por melhores condições de saúde, moradia e
saneamento. Em sentido mais abrangente, os movimentos lutavam contra
os abusos expressivos do poder do Estado e a favor da democracia. Com
o enfraquecimento do regime militar, a anistia concebida aos exilados
políticos (em 1979) e a “abertura política”, iniciou-se um período de
legalização dos grupos de ‘Amigos de Bairro’, que aos poucos se
transformaram em ‘Associação de Moradores’ (Macedo et al., 2007).
A “transição democrática” brasileira teve o seu fortalecimento na
década de 1990, período este que apresentou um estreitamento na relação
entre o Estado e a sociedade civil, ambos comprometidos com o projeto
político participativo. Neste momento, observa-se que os movimentos
sociais deixam de lado o confronto aberto da década anterior por uma
aposta na possibilidade de uma atuação compartilhada com o Estado, a
chamada “inserção institucional” destes movimentos (Dagnino, 2004). Em
sua pesquisa sobre participação popular na Baixada, Macedo et al. (2007)
identificou certo saudosismo da população com relação à força dos
movimentos populares da década de 70 e 80, já que, ao longo da década
de 1990, uma série de condições sociais contribuiu para o
enfraquecimento da participação comunitária na região, tais como: 1) a
94

criação dos Conselhos Municipais, que possuem uma atuação mais


focalizada e que não dão tanta visibilidade aos problemas quanto os
movimentos sociais de massa; 2) o surgimento e a proliferação das ONGs,
que tomaram boa parte do espaço que pertencia às associações e, 3) a
consolidação do modelo econômico neoliberal, que intensificou o
desemprego e agravou as condições de trabalho.
Em nossos trabalhos de campo, durante algumas entrevistas,
percebemos que as associações e federações de moradores da Baixada
Fluminense, por exemplo, possuem atualmente uma atuação mais
modesta em relação à que possuíam até a década de 1990. Foi recorrente a
afirmação de que as mesmas se encontram bem esvaziadas, com funções
meramente burocráticas, e que o centro das discussões hoje em dia está
nas federações de associações de moradores 13 (mesmo sabendo que estas
últimas também passam por dificuldades). O papel das associações de
bairros se resume a resolver problemas, questões burocráticas.
Outro argumento utilizado para justificar a retração dos
movimentos sociais na região é a existência de disputas no âmbito da
política partidária e sua forte ligação com alguns arranjos de participação
política. Isto porque, é fato comum, na Baixada Fluminense, as lideranças
comunitárias pleitearem vagas de vereadores de suas cidades. A crítica,
nestes casos, é feita quando o movimento social é usado como um mero
trampolim político e deixado de lado depois das eleições, ou quando se
exige que os militantes trabalhem durante a campanha do candidato. Em
uma entrevista:

“Eu não ando com a associação porque é tudo muito política, aí eu não
gosto. (...) A gente entra aí quando chega esta época agora (véspera de
eleição) tem que trabalhar junto com eles para eleger um político.”
(moradora de Belford Roxo, julho 2008).

Em contraponto, existe o argumento que política partidária é


fundamental para o avanço do processo participativo e democrático de
transformação:

“Eu particularmente acredito que só com a evolução da relação da


sociedade com a política partidária é que nós vamos buscar o grande
referencial. Hoje eu tenho uma concepção de que vários segmentos

13Os maiores municípios da Baixada Fluminense contam com uma federação de


associação de moradores própria. As federações mais antigas da região são o
MAB (Movimento dos Amigos de Bairro) em Nova Iguaçu, o MUB (Movimento
União de Bairros) em Duque de Caxias e a ABM (Amigos de Bairro de Meriti) em
São João de Meriti, fundadas no início da década de 1980. As associações mais
recentes são a FAMESQ, em Mesquita, a FEMANQ, em Queimados e a FEMAB,
em Belford Roxo (Macedo et al. , 2007).
95

ajudam a sociedade: os segmentos religiosos ajudam, a ONG ajuda, a


associação de moradores ajuda, as escolas ajudam, as cidades com seus
trabalhadores ajudam, mas só quem transforma é a sigla partidária.
Então não adianta você ir para o templo rezar se você não contribuir na
escolha de um representante partidário. A reza ajuda, mas você vai ter
que ir lá e disputar, organizar, defender e ajudar a eleger alguém que
esteja mais próximo da concepção de coletividade que você acredita.”
(dirigente partidário, julho 2008).

Como resultado desta atuação político partidária das associações,


os movimentos sociais acabaram ficando com uma base popular limitada,
o que reduziu a sua atuação, ao mesmo tempo em que muitas lideranças
foram cooptadas pela oferta de cargos públicos. Existe hoje na Baixada
muitos candidatos a cargos políticos diversos que são provenientes dos
movimentos sociais, mas cuja representatividade é questionável. Outra
característica é a política clientelista praticada pelos vereadores na
Baixada, aonde a “moeda de troca” para o voto vai desde a construção e
manutenção de centro comunitário nos bairros, passando por doação de
caixões para velórios, até a água. Esta situação também potencializa o
descrédito da população com relação às associações de bairro:

“Ultimamente quando você fala na associação de moradores o cara


vincula logo a partido político e aí não participa, rejeita a participar
porque não consegue separar. (...) Outra construção que houve foi que
os políticos locais são políticos clientelistas, eles fazem centros sociais,
centros comunitários e deixam de fazer políticas públicas para fazer
serviços pontuais dentro da comunidade. Você não consegue mobilizar a
comunidade para ir para a rua pressionar. Não vamos brigar por serviço
público de saúde, mais educação, saneamento básico porque tem o
vereador que logo atende.” (professor ex-militante, Belford Roxo, julho
2008).

“As pessoas não sabem de onde vem a água, mas sabem o nome do
vereador que leva a água. (...) A mobilização em prol da água já foi forte,
mas hoje em dia é mais cômodo fazer um ‘gato’ do que lutar pelo
direito.” (representante movimento social Duque de Caxias, julho
2008).

Se por um lado há um esvaziamento das associações, federações


de moradores e do antigo Comitê Político de Saneamento, por outro é
crescente a proliferação de inúmeros conselhos, e outros formatos de
gestão participativa, em diversas áreas, nos municípios da Baixada. Um
dos problemas dos conselhos, apontados por Macedo et al. (2007), é que
muitas entidades que participam destes espaços são dependentes de
órgãos governamentais, o que compromete o processo de tomada de
96

decisões, uma vez que essas entidades tendem a votar segundo os


interesses do Estado e não da população. No entanto, em nossas
pesquisas, identificamos que um dos principais obstáculos se traduz na
limitada atuação política destes arranjos participativos, fato este que
colabora para o descrédito e desmotivação dos participantes e contribui
para que a população lance mão de estratégias informais 14 para conviver
com os problemas envolvendo saneamento básico precário. A população
prefere contatar um vereador e comprometer seu voto na próxima eleição
do que participar de intermináveis reuniões e protestos para reivindicar
direitos.
Os inúmeros conselhos só existem porque precisam existir para
cumprir formalidades, mas ninguém dá a menor bola pra gente. O PAC
caiu pronto na nossa cabeça enquanto ainda estávamos discutindo o
Plano Diretor. (Depoimento oral, representante do MUB, Encontro de

14 A seguir, relataremos algumas estratégias observadas em nossos trabalhos de


campo, para garantir o abastecimento de água em casa.
a) Ruas em que há necessidade de bombas elétricas para captar água em um cano
distante. A bomba fornece a pressão necessária para poder distribuir a água nas
casas. Neste caso, o manuseio, a aquisição e a manutenção das bombas são feitos
pelos próprios moradores.
b) Compra conjunta de carros pipa para dividir entre vizinhos. O preço de um
carro-pipa sofre variações em função da demanda, época do ano (no verão é mais
caro) e do local onde será entregue.
c) Solidariedade entre vizinhos, muito comum quando há poço ou cisterna em
uma casa e o morador doa água quando alguém precisa. Como a água não é de
boa qualidade, normalmente adiciona-se cloro nela para a sujeira decantar, e só
depois de algumas horas o líquido é utilizado.
d) Desvios (popularmente conhecido como “gato”) de água. Em bairros de Duque
de Caxias, por exemplo, há profissionais especializados em realizar o serviço de
“desvio de água” do cano de grandes empresas, principalmente da Refinaria de
Duque de Caxias (REDUC).
f) No município de Mesquita os funcionários da Secretaria do Meio Ambiente
informaram que em uma parte da cidade a milícia controla os mananciais de água
e vende o recurso para os moradores interessados.
d) É possível contatar um vereador para que este utilize dos seus contatos na
CEDAE para a empresa realizar manobras na regularização (ainda que
temporária) do serviço de água ou então o vereador consegue um carro-pipa para
abastecer o seu “curral eleitoral”.
Cabe mencionar a falta de transparência e dificuldade de diálogo na relação entre
CEDAE e consumidores residenciais na Baixada. Muitos moradores, mesmo
pagando a conta de água (um valor por estimativa), não recebem água na sua
casa. A CEDAE só atende reclamações (isto não significa que ela solucione os
problemas) daqueles moradores que estão com suas contas de água em dia. Os
demais não podem nem sequer fazer um queixa de cano estourado, falta de água
ou qualquer outro problema.
97

Conselheiros da Cidade da Baixada Fluminense, agosto de 2008). Em


outras entrevistas:

“Eu participo de dois Conselhos Municipais na cidade, o de Habitação


que há mais de um ano não tem reunião e o de Saúde, onde não se
discute nada com a profundidade devida. E se você tenta acompanhar,
fiscalizar e tal, você já recebe um recado para diminuir a marcha. (...) E
ainda a violência impera e você tem dificuldade. Você que trabalha na
legalidade, é aquele trabalho devagarzinho, vai puxando, vai
organizando, porque se você demonstrar que está ameaçando, já era. E
não tem jeito não, ‘vai para vala legal’.” (militante de Belford Roxo,
julho 2008).

“Eu tenho vergonha de dizer que já participei de inúmeras reuniões


como esta. Isto daqui é só “blá, blá, blá...”, não delibera nada; amanhã
com certeza eu terei vários vizinhos batendo na porta da Associação de
Moradores querendo respostas, pois eles foram avisados que eu
participaria da reunião de hoje, e eu nunca tenho nada de concreto para
dizer a eles.” (presidente Associação de Moradores, reunião Comitê
Local de Acompanhamento da bacia do Sarapuí, Duque de Caxias,
novembro 2009).

Já que se está discutindo espaços legítimos para a gestão política


participativa, convém, neste momento, realizar uma análise sobre o
arranjo destinado à gestão participativa de águas, os Comitês de Bacia
Hidrográfica (CBHs) 15. O próprio CBH Guanabara passa por sérias

15Os CBHs, originados no âmbito da Lei 9433, foram criados com o intuito de
implementar, na prática, a gestão das águas de forma participativa e
descentralizada, pois eles são a base do Sistema de Gerenciamento das Águas e o
lócus dos debates das questões referentes às águas da bacia. Cabe-lhes também a
importante e difícil tarefa de implementar a cobrança pelo uso da água. Eles são
órgãos colegiados com atribuições normativas, deliberativas e consultivas a serem
exercidas na bacia hidrográfica de sua jurisdição. As principais atribuições dadas
a estes organismos são: I - arbitrar, em primeira instância, conflitos relacionados à
Bacia Hidrográfica; II - aprovar o Plano de Recursos Hídricos da Bacia, bem como,
acompanhar a sua execução; III - analisar e aprovar pedidos de outorga de direito
de uso da água e; IV - estabelecer mecanismos de cobrança pelo uso da água e
sugerir valores. Para que sejam participativos, a lei das águas assegura que a
composição destes colegiados privilegie os representantes: I - da União (caso o rio
principal atravesse mais de um estado da federação); II - dos Estados e do Distrito
Federal cujos territórios se situem, ainda que parcialmente, em suas respectivas
áreas de atuação; III - dos municípios situados, no todo ou em parte, em sua área
de atuação; IV - dos usuários das águas de sua área de atuação e V - das entidades
civis de recursos hídricos com atuação comprovada na bacia. O número de
representantes de cada setor mencionado acima, bem como os critérios para sua
indicação, serão estabelecidos nos regimentos internos dos comitês, limitada a
98

dificuldades de engrenar um ritmo de atividades e não tem conseguido


obter reconhecimento como um órgão gestor de águas. Ele foi
formalizado em 2005, por meio do Decreto 38.260, assinado pela ex-
governadora Rosinha Garotinho, englobando toda a região hidrográfica
da Baía de Guanabara (lado leste e oeste) e mais os sistemas lagunares de
Jacarepaguá e de Maricá. O Comitê tem demonstrado crônicas
dificuldades para se tornar o órgão gestor de recursos hídricos, como
afirmou um entrevistado: “(...) A proposta inicial era que seríamos um
comitê com oito municípios do lado leste da Baía e ganhamos um comitê
com dezessete cidades, isto é inviável” (entrevista, representante diretoria
do CBH Guanabara, julho de 2008). Se os oito municípios da Baixada
Fluminense, região oeste da Baía de Guanabara, por si só já possuem
dificuldades de diálogo e interação política (Carneiro, 2008) a ideia de um
comitê de bacia agregando dezessete municípios, que fazem parte de uma
bacia hidrográfica ampla e desconexa, é um indício de que possivelmente
não será tarefa fácil fazer este comitê engrenar.
A diversos desentendimentos internos quanto ao seu papel,
agenda e composição, somam-se a distância existente entre o Comitê e os
grupos de usuários – bem como entre as prefeituras municipais – e a falta
de disposição dos membros para participar das reuniões. Além disso,
nossas entrevistas apontaram um nítido ceticismo de alguns membros do
Conselho Estadual de Recursos Hídricos (CERH) 16 em relação ao futuro
do Comitê da Baía de Guanabara. Em parte, as fraquezas do sistema de
gestão no Rio de Janeiro se devem à forma como a lei estadual foi
aprovada, o que resultou em um sistema débil e confuso, em particular
quanto à finalidade e aos valores da cobrança pelo uso da água (sobre
esse assunto, ver mais em Machado, 2006).
Os problemas do CBH podem ser comparados com as
dificuldades de se avançar em termos de gestão participativa nos
programas anteriores, quando foram criados comitês participativos para
cumprir formalidades burocráticas para o recebimento de fundos
internacionais para a execução de projetos. Para Dagnino (2004) um
exemplo da sobreposição perversa dos dois projetos políticos
(participativo e neoliberal) pode ser mais bem visualizada em projetos
financiados por instituições internacionais (produtos da política

representação dos poderes executivos da União, Estados, Distrito Federal e


Municípios à metade do total de membros.
16 O Conselho é um órgão colegiado, integrante do Sistema Estadual de

Gerenciamento de Recursos Hídricos (SEGRHI), com atribuições normativas,


consultivas e deliberativas. As finalidades e objetivos do CERHI são voltados à
valorização dos corpos d’água de domínio estadual. Dentre eles, estabelecer
parâmetros para a outorga e cobrança de direito de uso da água, além de
promover a articulação, integração e coordenação do planejamento estadual de
recursos hídricos entre as autoridades nacional e regional e os usuários.
99

neoliberal) onde estes exigem a formatação de arranjos participativos


como contrapartida. Sobre isto, o Programa Nova Baixada (PNB) é um
bom exemplo, já que o financiador principal – o Banco Interamericano de
Desenvolvimento (BID) – exigiu que a participação social ocorresse por
meio dos Comitês Gestores de Bairro. Estes Comitês, embora tenham sido
criados como uma proposta de ampliação da democracia e participação
dos moradores da Baixada na gestão do PNB, se apresentaram como
limitantes do processo de participação construídos historicamente na
Baixada Fluminense. Isto porque eles reduziram as discussões do
movimento social ao andamento da obra em si, deixando de lado
discussões mais amplas sobre políticas públicas. Além do mais, estes
proporcionaram o esvaziamento das associações de bairros e federações
no momento em que os seus dirigentes passaram a se dedicar ao trabalho
nos Comitês (de forma remunerada, fato este que envolveu muitas
contradições) e muitos deles, após esta experiência, ingressaram na
carreira pública deixando a militância em segundo plano (Macedo et al.,
2007).
Neste sentido, Dagnino (2004) alerta que um dos riscos
visualizado na “confluência perversa” é o fato dos movimentos sociais, as
ONGs e outros indivíduos que de uma maneira ou de outra vivenciam a
experiência desses espaços de gestão participativa, fixarem todo o seu
potencial (de agregar e mobilizar pessoas em prol de causas mais
abrangentes) na criação e funcionamento destas instâncias de gestão
compartilhada e depois perceberem que acabaram servindo a objetivos
que lhes são antagônicos. Ou seja, persiste a possibilidade da sociedade
civil, com o passar do tempo, acabar questionando se não teria sido mais
vantajoso adotar outra estratégia, que priorizasse a organização e
mobilização da sociedade, ao invés de atuar em conjunto com o Estado. A
dedicação e a necessidade de qualificação técnica mínima para participar
em conselhos gestores, por exemplo, tem exigido um considerável
investimento de tempo que acaba sendo roubado do tempo dedicado à
manutenção dos vínculos sociais com as bases representadas.
Neste contexto, a sociedade civil é constantemente convocada a
participar de reuniões e audiências públicas, mas o processo é largamente
apropriado pelos setores mais organizados, com interesses particulares e
condições técnicas e financeiras mais apropriadas para atuarem nestes
espaços de embate político. Em uma reunião realizada pela APEDEMA 17
em meados de 2008, houve duras críticas quanto à presença de militantes
do movimento ambiental participando de audiências públicas
interessados apenas nos recursos financeiros destinados pelas empresas
para medida compensatória. Enfocaram ainda a necessidade do

17A Assembleia Permanente de Entidades em Defesa do Meio Ambiente do


Estado do Rio de Janeiro (APEDEMA) é um coletivo que congrega atualmente 107
grupos ecológicos atuantes no Estado do Rio de Janeiro.
100

movimento social se preparar previamente, estudando a concepção dos


projetos18. Para tanto, o ideal (que está distante da realidade e rotina
destes atores) seria que os grupos se reunissem previamente (no mínimo
três vezes) para discutirem os argumentos de defesa das suas ideias.

Os Deslocamentos de Sentido nas Noções de Sociedade Civil,


Participação e Cidadania.

Outro importante argumento utilizado por Dagnino (2004) para


confirmar a existência da “confluência perversa” é o processo de
despolitização e dos deslocamentos de sentido que vêm sendo impostos
às noções de sociedade civil, participação e cidadania, com o objetivo de
contribuir com as políticas neoliberais. Tais termos são enfocados devido
ao papel que estas noções designaram na consolidação do projeto
participativo e por serem canais de mediação entre os campos ético e
político. Apresentam então, entre si, além de coincidências no nível do
discurso, referências comuns que quando examinadas com cuidado,
escondem diferenças fundamentais.
Com relação ao significado da expressão sociedade civil 19,
verifica-se que o termo está cada vez mais vinculado às Organizações
Não Governamentais (ONGs). Há uma tendência mundial de
“onguização” dos movimentos sociais. O crescimento acelerado e o novo
papel desempenhado pelas ONGs, a emergência do chamado Terceiro
Setor e das Fundações Empresariais e a marginalização dos movimentos
sociais evidenciam esse processo de redefinição. Para Dagnino (2004), as
relações entre Estado e ONGs exemplificam a confluência perversa
mencionada anteriormente. Dotadas de competência técnica em assuntos

18 As preocupações do movimento social são com relação a degradação ambiental


que os novos empreendimentos irão gerar na Baixada (ex. COMPERJ e Arco
Metropolitano), a capacidade de atração de novos moradores para a região e os
potenciais conflitos por água para atender tanto o setor industrial quanto o
consumo humano em um contexto onde já existe escassez do recurso.
19 Sabendo da dificuldade de conceituação do termo, adotaremos, neste trabalho,

o conceito de sociedade civil de Pinto (2006) por designá-la segundo parâmetros


bem abrangentes. Para a autora, “a sociedade civil é, em si, a forma de
organização da própria sociedade, na qual cada indivíduo encontra sua pertença
como cidadão de direito” (Pinto, 2006: 652). Assim, quanto à dificuldade de
designar a categoria sociedade civil, muitas vezes o conceito de sociedade civil é
usado indiscriminadamente em textos acadêmicos e principalmente em
pronunciamentos políticos em contraposição ao Estado. Isto se dá porque a sua
constituição não é uniforme pois o conceito abrange desde grupos, instituições e
pessoas com graus diferentes de organização, de comprometimento público e de
capacidade de intervenção para se relacionar com o Estado e com o mercado, até a
sociedade civil definida como um arco de entidades que abrangem desde clubes
de mães até instituições globais como a Anistia Internacional.
101

específicos, são vistas como parceiras ideais pelo Estado para a


transferência de suas responsabilidades, já que, dependendo do projeto,
os governos locais buscam parceiros confiáveis e temem a politização da
interlocução com os movimentos sociais. Porém, a perversidade se dá no
momento em que as ONGs atuam para representar os interesses de quem
as contratam (Estado, Agências Internacionais e outras) esquecendo-se,
talvez oportunamente, dos interesses da sociedade civil a qual se
intitulam representantes. Neste contexto, coloca-se em dúvida a
representatividade que a sociedade civil exerce nos espaços de
participação (Dagnino, 2004).
Tais observações têm relevância para compreendermos as
limitações do projeto PAC-INEA, onde são as ONGs que atuam fazendo o
trabalho social de forma terceirizada. A Companhia Estadual de
Habitação do Rio de Janeiro (CEHAB), dentro do Programa de
Reassentamento20, contratou ONGs para realizar o cadastramento dos

20 Muitas são as reuniões organizadas pela INEA referentes ao Projeto Iguaçu.


Uma das iniciativas mais polêmicas e que, por decorrência, provocou uma reação
e um maior envolvimento popular, está relacionado ao “Programa de
Reassentamento”, um dos subprojetos do PAC-INEA que prevê a remoção de
mais de duas mil famílias que vivem à beira dos cursos d’água a serem dragados
como parte das obras do PAC. O argumento principal para a retirada destas
famílias é de ordem operacional, uma vez que se faz necessária a remoção das
casas na beira do rio para que os equipamentos que fazem a dragagem do fundo
rio possam ter acesso ao curso d’água. Caso se iniciasse o trabalho sem evacuar a
área, há o risco destas cederem e desmoronarem durante o processo de
desassoreamento do rio. Os anúncios e principais reuniões e audiências públicas
para a divulgação do PAC-INEA coincidiram com a época dos nossos trabalhos
de campo e proporcionou-nos uma oportunidade única para comparar as práticas
atuais com os projetos hídricos no passado. No segundo semestre de 2008,
acompanhamos audiências publicas em Belford Roxo e em São João de Meriti
onde foi possível perceber forte insatisfação da maioria da população a ser
removida para os conjuntos habitacionais e poucas respostas concretas para as
suas dúvidas e questionamentos. A falta de respostas não parece preocupar os
responsáveis das reuniões, pelo contrário, nas reuniões não é difícil escutá-los
dizendo que "na ditadura, as pessoas foram retiradas, sem qualquer consulta, mas
agora é diferente" (funcionário INEA, reunião em São João de Meriti, novembro
de 2008). Alheio aos crescentes questionamentos e à insatisfação dos moradores
ribeirinhos e lideranças comunitárias que sofrem com a falta de informação e
incertezas de um projeto imposto “de cima para baixo”, o discurso do governador
Sérgio Cabral é: “este é um importante trabalho na Baixada, que tem o objetivo de
salvar as pessoas que vivem ao longo do rio e sofrem com as inundações" (Rio de
Janeiro, 2008). O governador alegou que 2,5 milhões de pessoas serão
beneficiados com o PAC-INEA – ou seja, a totalidade da população que vive na
bacia do Iguaçu – número este comprovadamente exagerado (confirmada em
entrevista realizada com o coordenador do projeto PAC-INEA, 07 de julho de
2008), dado que as intervenções são restritas a determinados trechos do rio.
102

moradores ribeirinhos. Já o INEA contratou a ONG FASE para a execução


do Projeto Socioambiental. Quando questionado aos gestores do PAC-
INEA sobre esta opção, a resposta usualmente dada foi que não há
quadro de pessoal suficiente na estrutura dos órgãos do estado para
realizar todo o trabalho, sendo necessário recorrer às ONGs
especializadas. Nos trabalhos de campo, foi possível observar a
insatisfação da população com relação ao trabalho desempenhado por
estas organizações, já que, na maioria das vezes, os seus funcionários não
dispõem de informações suficientes para dar respostas concretas às suas
dúvidas21. Além do mais, a população demonstra irritação ao ver o
discurso que estas organizações utilizam para convencer a população a
atuar em parceria com o INEA. Disfarçados por um discurso de
cidadania, incorporam a ideologia dominante e se valem da participação
de membros da população para atender a seus interesses individuais.

“Não engolimos o INEA, pois são os mesmos técnicos que participaram


do Programa Nova Baixada, e que fizeram inúmeras promessas, que
querem agora que a gente participe, apoie o PAC-INEA. (...) A FASE
está ganhando muito dinheiro para nos convencer a trabalhar em
parceria com a INEA e utilizam técnicas elaboradas de persuasão para
isto. Mas nós não somos estúpidos, decidimos que só iremos apoiar
depois de ver o projeto técnico pronto.” (representante associação de
bairro Lote XV, opinião manifestada durante reunião CBH Guanabara,
dezembro 2008).

Duros questionamentos foram feitos em uma reunião do CBH


Guanabara quanto à escolha de uma organização de âmbito nacional sem
licitação ou qualquer outro tipo de concorrência para conduzir o projeto
socioambiental no PAC-INEA (contrato orçado em um milhão e duzentos
e cinquenta mil reais) que incluí, inclusive, a formatação de novos
Comitês Locais de Acompanhamento das obras de saneamento. Esta
insatisfação pode ser exemplificada na fala abaixo:

“Para mim isto não está claro e eu já botei a minha posição contrária
pelo fato da FASE ainda estar como a “rainha da cocada preta”, quando
na verdade o que queremos é potencializar as ações da comunidade, ou

21 Principalmente durante o cadastramento das famílias ribeirinhas que serão


reassentadas. A população se queixa que as assistentes sociais da ONG não
dispõem de informações satisfatórias sobre o processo e que é necessário esperar
pelas reuniões - que a INEA e CEHAB organizam - para tirar as suas dúvidas.
Ressalta-se ainda o fato de que muitas dos problemas que vão surgindo ainda
estão sob análise, há dificuldades na elaboração dos contratos de licitação das
obras, incertezas quanto a chegada dos recursos do PAC, o apoio necessário das
prefeituras e até mesmo a concepção técnica do Projeto Iguaçu está em fase de
atualização pela COPPE.
103

seja, das ONGs locais, das associações de bairros e das federações.”


(representante sociedade civil no CBH Guanabara, julho 2008).

Quando observamos a atuação dos representantes da sociedade


civil no CBH Guanabara, notou-se que esta tendência de “onguização”
também se confirmou. Isto porque para se candidatar a uma vaga na
cadeira do colegiado, é necessário apresentar um estatuto da entidade
que o interessado representa22. Sendo assim, grupos pouco articulados
politicamente ou representantes de comunidades locais não podem nem
sequer concorrer a uma vaga de representante da sociedade civil no
Comitê. Isto significa um retrocesso, já que as experiências de
mobilização anteriores poderiam auxiliar no fortalecimento destes novos
arranjos.
Para Dagnino (2004) a noção de participação também vem
assumindo um ressignificado. O princípio básico usado parece ser a
adoção de uma perspectiva privatista e individualista, capaz de substituir
e redefinir o significado coletivo da participação social. O mesmo vem
sendo imposto ao sentido do termo cidadania que vêm reduzindo o
significado coletivo de direito a ter direitos, anteriormente usado, para
uma noção individualista.
Em seus estudos sobre a participação na Baixada, Macedo et al.
(2007) identificou o predomínio dentro de alguns conselhos uma
mentalidade bem individualista, em que as pessoas participam visando,
muitas vezes, à melhoria do seu bairro, da sua entidade ou até mesmo em
benefício próprio, não lutando em prol do coletivo. Esta situação foi
observada nos discursos da população que participa das reuniões sobre o
programa de Reassentamento da CEHAB. O público presente é composto
por pessoas que terão suas casas (provavelmente) demolidas e aqueles
que se manifestam para fazer perguntas e ou criticar o andamento das
ações têm normalmente como queixa uma demanda individualizada: a
minha casa, a minha igreja, o meu comércio, as melhorias feitas na minha
moradia. Outra observação cabível são as frequentes queixas dos atuais
militantes sobre a falta de interesse da juventude em se envolver com as
questões políticas.

“Um dos nossos objetivos hoje é fazer com que surjam novos militantes
nesta área de meio ambiente. Nós temos aqui o Conselho de Meio, que
está meio parado, precisamos reativar isto. E aqui na região tem um

22 Em contrapartida, existe também o argumento de Urbinati (2006) de que a


seleção de candidatos isolados, sem um partido ou filiação, não pode ser
considerada um ideal de representação democrática. Para ela, se a eleição fosse de
fato uma seleção entre candidatos isolados ao invés de nomes de grupos políticos,
a representação iria desaparecer por que cada candidato concorreria por si só e se
tornaria um representante do seu próprio interesse.
104

bocado de professor, ambientalista, engajado na temática, mas cada um


por si. É preciso que haja muitos jovens envolvidos e unidos.”
(liderança comunitária São João de Meriti, agosto 2008).

Vale ressaltar que no contexto da política pública de gestão de


recursos hídricos, podem ainda se estabelecer vários tipos de
participação. Sobre este assunto, estudos como os de Machado (2003) e
Cardoso (1983) questionam as diferentes interpretações que o termo
participação adquire e os diferentes papéis assumidos pelos atores que
participam da PNRH. Cardoso (1983) designa estes atores como meros
figurantes, coadjuvantes e não protagonistas de destaque. Houve nas
últimas reuniões do CBH Guanabara, sérios questionamentos dos
membros representantes da sociedade civil sobre qual era o papel do
Comitê no Sistema Estadual de Meio Ambiente, tendo como principal
argumento o fato do colegiado não ter sido nem sequer consultado sobre
o PAC-INEA23 e ainda relembraram a resposta dada pelo atual presidente
da INEA sobre este assunto: "Não é só porque o comitê existe que a INEA
vai se curvar a ele" (presidente da INEA, reunião CBH Guanabara em
24/04/2008). Neste caso, observa-se que o CBH Guanabara possui pouca
visibilidade e poder, bem como demanda um papel de protagonista na
gestão de águas.
Militantes denunciam ainda o fato de o INEA preparar os
panfletos das audiências públicas das obras do PAC–INEA colocando o
nome de ‘reunião’, ao invés de ‘audiência pública’, com o intuito de
“minimizar” a importância das discussões 24. Trazendo novamente os

23 Os gestores do processo argumentam que o PAC foi um programa do governo


federal que exigia que os projetos fossem apresentados com certa pressa e, uma
vez que o Projeto Iguaçu estava disponível, o mesmo foi apresentado ao governo
federal sem que houvesse tempo hábil para ser discutido com a população.
24 De fato, em um desses encontros (realizado em Belford Roxo em 16 de julho de

2008 com as famílias a serem reassentadas), o tempo que deveria ter sido
destinado a explicações e debates se resumiu a apresentação do projeto em um
PowerPoint padrão, posteriormente usados em outros encontros, exaltando as
benfeitorias a serem feitas e a parcela de culpa da população na degradação
ambiental. A reunião começou com quase duas horas de atraso e não houve
tempo suficiente para questionamentos pois as respostas esperadas pela
população ainda estavam sob análise. Contraditoriamente, o discurso da INEA é:
“a participação popular tem importância enorme neste processo”. Na reunião do
Trio de Ouro (São João de Meriti) em 08 de novembro de 2008, após mais de uma
hora de apresentação projetada em power point, a comunidade não teve paciência
para assistir o discurso de todos os membros da mesa – que parabenizavam a
população por serem contempladas com um projeto tão benéfico - e gritaram
irritados: “Já vimos esta apresentação. Estamos cansados de ouvir, viemos aqui
para falar”. Rapidamente, a mesa providenciou microfones e organizou uma fila
para que cada um pudesse expressar as suas demandas. O desfecho dessa reunião
105

argumentos de Dagnino (2004) sobre o deslocamento de sentido do termo


participação, alerta-se ainda que nos espaços abertos à participação de
setores da sociedade civil para discussão e formulação de políticas
públicas, a função principal, que é compartilhar o poder de decisão
quanto à formulação destas, é muitas vezes, restrita à implementação de
políticas e à execução de deveres que antes eram de responsabilidade do
Estado. Neste caso, o significado político crucial da participação é
radicalmente redefinido e reduzido à gestão administrativa (Dagnino,
2004)25.
É nesta conjuntura apresentada – cenário político neoliberal
versus descentralização político administrativa e participação da
sociedade civil nas políticas públicas – que emergem novos modelos de
gestão participativa.

Considerações Finais

Os problemas de gestão da água na Baixada Fluminense não são


incomuns em áreas metropolitanas periféricas que vivenciaram um
rápido crescimento demográfico e limitados investimentos em
infraestrutura. No entanto, as circunstâncias particularmente difíceis da
Baixada são refletidas em uma combinação de marginalização social,
abandono dos sistemas fluviais e à falta de medidas regulamentares
adequadas. A limitada integração entre as autoridades públicas e entre as
áreas espaciais (principalmente entre as prefeituras), associadas a uma
crescente necessidade de fundos adicionais para manter e prover de
infraestrutura básica as cidades e à fragilidade do planejamento urbano e
ambiental resultam em tendências de insustentabilidade na gestão de
água. Essa gama de problemas não é simplesmente um sinal de
incompetência ou falta de empenho por parte dos funcionários públicos e
engenheiros do INEA, mas é uma indicação de fortes distorções criadas
por décadas de autoritarismo, populismo, inadequadas políticas urbanas
e desprezo com relação ao diário sofrimento da população local.

– extremamente tumultuada - foi que a INEA organizaria visitas de campo nas


três ruas abrangidas pelo projeto e faria reuniões separadas para cada rua.
25 A título ilustrativo relataremos a situação discutida em Macedo et al. (2007)

sobre o enfraquecimento das associações na época do Governo Sarney devido a


função dada a elas na distribuição dos tickets de leite. Houve uma
descaracterização destas entidades que passaram a desempenhar um trabalho de
controle que na verdade cabia ao próprio governo. Assim, muitos líderes, ao se
envolverem nessa atividade tiveram muito do seu tempo tomado, deixando em
segundo plano seu trabalho reivindicatório. Ademais, embora as associações
tenham crescido a partir dessa atividade, esse crescimento ocorreu sob o signo da
dependência em relação ao Estado. De fato, quando o programa foi encerrado,
reduziu muito a participação das pessoas na associação pois não havia mais
motivação (moeda de troca) para frequentá-las.
106

A insustentabilidade da gestão de águas é, portanto, não apenas


relacionadas com o mau estado dos sistemas hidrológicos e a
precariedade dos serviços públicos na Baixada, mas está profundamente
enraizado nos padrões de uso e conservação da água em um contexto de
forte desigualdade de poder entre comunidades e os formuladores de
políticas. Os resultados empíricos demonstram que os problemas de
gestão de água estão intimamente relacionados à falta de oportunidades
da população local em influenciar o processo de tomadas de decisão e à
fragilidade dos mecanismos oficiais, criados até o momento, para
envolver os diferentes grupos sociais ou áreas geográficas. Nesse
contexto, a influência de grupos mais organizados e com maior poder
político continua a prevalecer na tomada de decisões, tanto em questões
pontuais, quanto em termos da direção estratégica de planos e projetos.
Os inúmeros projetos de saneamento na Baixada não foram
suficientes para solucionar os problemas e tiveram como um dos pontos
fracos a ausência de discussão com a população – principalmente em sua
fase inicial de elaboração – e de consideração das intervenções anteriores.
Todos os programas se deram de forma esporádica e desconectada,
devido principalmente à ausência de um diagnóstico satisfatório sobre a
situação atual do saneamento na região. É apenas nesses momentos que
os problemas relacionados com a água na Baixada são formalmente
considerados pelos órgãos públicos. Isso é evidente na apatia dos
organismos oficiais, em especial no tratamento dispensado pela CEDAE
aos seus clientes residenciais e sua incapacidade sistemática em melhorar
o desempenho. Muitos moradores mencionaram que por diversas vezes
se organizaram em protestos e contrataram ônibus para levar as pessoas à
sede da CEDAE no Rio de Janeiro. Em uma ocasião, eles receberam como
recomendação dos funcionários para: “orar para chover, que é o melhor
que vocês podem fazer...” (entrevista com os residentes em Duque de
Caxias, julho de 2008). As intervenções do PAC na Bacia do Rio Iguaçu
repetem os mesmos erros de projetos do passado, principalmente no que
diz respeito à participação popular. Não houve consulta às comunidades
antes de a SERLA (atual INEA) pleitear os recursos junto ao governo
federal, com isto o projeto foi apresentado pronto para a população,
sendo um dos motivos pelos quais vem recebendo severas críticas.
O CBH Guanabara, que deveria ser um espaço deliberativo e
participativo legítimo para o engajamento das demandas da sociedade
civil, vem tentando conquistar o seu espaço político no Sistema Estadual
de Gestão de Recursos Hídricos, porém passa por sérias dificuldades. Ele
foi criado por decreto governamental e em frontal desacordo com o a
mobilização que começou a surgir em diferentes bacias hidrográficas da
Região Metropolitana. Acompanhamos em suas reuniões, que sempre
começam com muito atraso, a dificuldade para alcançar o quorum
mínimo necessário para deliberações. Além do mais, normalmente
107

acontece inúmeras discussões pontuais – principalmente com relação à


legitimidade e efetividade do Comitê – sem que se consiga chegar a
qualquer solução. É frequente os próprios membros participantes ficarem
perdidos nestes encontros e saírem com dúvidas em relação ao que foi
discutido, tamanha é a desordem quanto ao cumprimento da pauta e a
descrença quanto à atuação política do órgão. Nos últimos meses de 2010,
houve uma mobilização para uma nova eleição para membros deste
colegiado, isto depois de meses em que este fórum permaneceu
estagnado. Ao mesmo tempo, outras organizações que historicamente
serviriam para expressar a opinião pública, tais como associações de
bairro e o Comitê Político de Saneamento, têm sido cada vez mais
ignorados pelas autoridades públicas e mesmo junto às comunidades
locais. Neste caso, percebe-se que apesar da consolidação de canais
formais de participação pública, barreiras fundamentais permanecem e
continuam a minar a democracia na gestão de águas na Baixada
Fluminense. Sendo assim, é possível afirmar que, os “arranjos de gestão
política participativa”, existentes na Baixada, não são, necessariamente,
“arranjos de gestão democrática”; ou seja, “participação” não é sinônimo
de “democracia”.
A presente discussão buscou demonstrar como as reformas
institucionais no setor de recursos hídricos na região metropolitana do
Rio de Janeiro têm sido marcadas pela afirmação de uma racionalidade
burocrática e na manipulação de recursos públicos, o que têm apenas
produzido respostas inadequadas aos problemas de degradação
ambiental e conflitos sociais. Torna-se preciso reconhecer os limites
metodológicos da pesquisa aqui relatada, especialmente pelo fato de se
basear em um estudo de caso voltado a apenas parte da Baixada (lado
oeste da Baía de Guanabara), fazendo uso somente de métodos
qualitativos de análise e cobrindo um momento histórico determinado.
Não resta dúvida que se trata, portanto, de uma simplificação de uma
realidade nacional muito maior, cheia de particularidades locais,
incoerências administrativas e conflitos multifacetados. Ainda assim, os
resultados demonstram que os projetos das últimas décadas representam
apenas o capítulo mais recente de uma longa história de transformações
socioambientais e desenvolvimento desigual. Os resultados de mais de
400 anos de intensa atividade agrícola, urbana e industrial continuam
sendo rios e solos em sério estado de degradação; ao passo que
saneamento básico e salubridade adequada ainda são fatores inacessíveis
a significativas parcelas da população.
A faceta conservadora e excludente de gestão de recursos
hídricos continua evidente no presente, assim como no passado, uma vez
que os novos instrumentos de gestão – incluindo aqui o comitê de bacia, a
cobrança pelo uso da água e os diversos projetos de recuperação de
cursos de água e controle de cheias – mantém largamente inalteradas as
108

bases desiguais de tomada de decisão e alocação de recursos financeiros.


Se no passado, a conservação ambiental esteve praticamente ausente
quando grandes obras de engenharia foram construídas para atender a
uma industrialização acelerada, é fato que neste início de Século XXI o
meio ambiente passou a receber maior atenção - embora ainda não se
discuta como os impactos ambientais afetam de modo diferenciado os
diversos grupos sociais, nem tampouco como o balanço desigual de
poder condiciona a tomada de decisões a respeito da recuperação das
condições ecológicas. Ou seja, as reformas institucionais caminharam na
direção dos objetivos de governança e integração previstos na doutrina
internacional, mas houve pouca melhoria em termos de problemática
socioambiental.

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110

Capítulo 6

Da Foz às Nascentes:
Análise Histórica e Apropriação Econômica dos
Recursos Hídricos no Brasil.
“Senhor vê, o senhor sabe. Sertão é o penal,
criminal. Sertão é onde homem tem de ter a
dura nuca e mão quadrada. Mas, onde é
bobice a qualquer resposta, é aí que a
pergunta se pergunta.”
João Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas

“How can you own water really? It’s always


flowing in a stream, never the same, which in
the stream of life we trace. Because life is a
stream.”
James Joyce, Ulysses

Abundância e disponibilidade de água são algumas das características


historicamente mais associadas ao Brasil. Essa condição já chamava a
atenção dos primeiros viajantes europeus, como no relato de Caminha:
“Águas são muitas; infinitas. Em tal maneira é graciosa [a terra] que,
querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo; por causa das águas que tem!”.
Mesmo o hino nacional, em sua primeira estrofe, faz alusão às “margens
plácidas” do Riacho Ipiranga. Mais adiante, ao gigantismo da “própria
natureza”. A percepção da água como expressão da riqueza nacional não
se restringiu, contudo, a construções poéticas e relatos épicos, mas
marcou a evolução socioeconômica ao longo dos cinco séculos de história.
O fato de contar com água em profusão influenciou a colonização
do território, a formação cultural e, de resto, a própria relação entre
sociedade e natureza. A utilização de rios, aquíferos, lagoas e manguezais
na produção de mercadorias e na organização da atividade produtiva
gradualmente transformou o elemento natural água em um recurso
dotado de valor econômico. Mas a intensa exploração dos estoques de
água provocou extensa degradação ambiental, decorrente, por exemplo,
de uma descarga diária de 82% dos esgotos sem tratamento, ou uma
excessiva demanda por água em bacias do Atlântico Nordeste, do Leste e
do Paraná (MMA, 2006).1 Os serviços públicos de água e saneamento

1 A Região Hidrográfica do Atlântico Nordeste Oriental contém as bacias em


estado mais crítico com uma relação entre demanda e disponibilidade hídrica
acima de 40%; também é problemático o balanço hídrico de afluentes do rio São
111

atendem atualmente 91,3% e 57,4% das residências urbanas, mas continua


a haver importantes desigualdades regionais, sociais e mesmo raciais
(Ipea, 2008). Tendo em conta esse contexto social e ambiental, este
capítulo problematiza as causas e tendências das questões de uso e de
conservação dos recursos hídricos no Brasil, à luz das pressões e dos
limites do desenvolvimento econômico.
O ponto de partida para nossa análise é o reconhecimento de que
a experiência recente de reformas institucionais no Brasil está restrita, até
agora, a um pequeno exército de burocratas e tecnocratas, que se esforça
diariamente para fazer reluzir o chamado novo modelo brasileiro de
gestão. O processo reformador tem seguramente avançado em termos de
procedimentos regulatórios e reordenamento administrativo, mas a nova
estrutura de recursos hídricos, organizada a partir do final da década
passada, permanece de olhos fechados a injustiças ambientais e à
hierarquização de oportunidades de acesso à água historicamente
estabelecidas. Existe também uma clara hesitação entre os atuais
estudiosos para reconhecer as questões de recursos hídricos como
componentes de trajetórias histórico-geográficas e socionaturais mais
amplas. Tal relutância, demonstrada pelo predomínio de uma linguagem
hidrológica e economicista, vem constrangendo a formulação de soluções
efetivas a problemas essencialmente sociológicos e civilizacionais.
Trombeteia-se que os problemas de degradação de recursos hídricos
seriam decorrentes, basicamente, da falta de meios técnicos ou
financeiros, o que muitas vezes dependeria de tecnologias e sistemas de
gestão importados. Não se estabelece, porém, uma relação direta com a
realidade concreta dos problemas políticos e sociais que afetam o uso e a
conservação de recursos hídricos. Desse modo, o tratamento
convencional continua centrado nos sintomas, ao invés de diagnosticar a
extensão da doença, deixando sem resposta as questões fundamentais.
Nosso método de trabalho deverá, portanto, situar as questões da
água como resultado de desigualdades políticas em termos de acesso a
recursos e distribuição de impactos ambientais (Mollinga, 2008). Essa
perspectiva encontra acolhida na área interdisciplinar da ecologia
política, a qual busca “repensar a política desde uma nova visão das
relações da natureza, da cultura e da tecnologia”, dentro de “um novo
projeto libertário para abolir toda relação hierárquica e toda forma de
dominação” (Leff, 2003: 38). A ecologia política dos recursos hídricos trata
das contradições socionaturais relacionadas ao uso e à conservação da
água sob a esfera de influência direta ou indireta dos processos de
circulação e acumulação de capital, bem como das alternativas para sua
superação em contextos históricos e culturais específicos. Uma análise

Francisco e algumas bacias do Atlântico Leste (ANA, 2004). Informações sobre a


situação ecológica e socioeconômica das bacias hidrográficas brasileiras podem
ser também encontradas em MMA (2006).
112

consequente dos problemas de gestão de recursos hídricos deve


identificar responsabilidades coletivas, mas profundamente
diferenciadas, entre os grupos sociais que interagem em um dado
território. Uma família que mora em área inundável e sem saneamento
básico na periferia de um grande centro urbano tem uma relação muito
diferente com o ciclo hidrológico do que outra que reside em área
urbanizada e com serviços públicos bem conservados. Nesse sentido, é
falaciosa qualquer equivalência de tratamento entre indivíduos e classes
sociais desiguais, como fica implícito na nova legislação brasileira de
recursos hídricos, obviamente inspirada nos ideais rousseaunianos de
liberdades universais. Como alertado por Marx e Engels (1974), a
concepção liberal de sociedade civil nada mais é do que o resultado da
consolidação da propriedade privada e da desintegração de regimes
coletivistas de produção. Tal observação, como veremos, tem
repercussões extremamente atuais, quando se verifica que muitas
políticas públicas contemporâneas aprofundam a reificação e privatização
de recursos que são, antes de tudo, bens essencialmente coletivos.

Água, Economia e Desenvolvimento

A história econômica do Brasil está inserida no largo experimento


de exploração de recursos e produção de mercadorias, segundo as
exigências do regime capitalista transposto e adaptado para o Novo
Mundo. Mesmo no início do período colonial, notadamente com a
produção de açúcar e o emprego de mão de obra escrava, a base da
economia brasileira já era essencialmente capitalista, como todos os
fatores de produção e com o fluxo de renda sujeitos à expressão
monetária (Furtado, 2007). Essa condição preponderantemente capitalista
veio a influenciar, em menor ou maior grau, toda a formação social e, em
particular, a evolução do uso da água no Brasil. Devemos lembrar que
capital, de acordo com Marx, não é um simples estoque de riqueza
acumulada, mas constitui uma relação social histórica e politicamente
determinada. A regra mais fundamental do sistema capitalista é a de que
o capital deve gerar mais capital, o que acontece através do investimento
do lucro obtido com a produção e circulação de mercadorias. Marx partiu
do princípio de que capital é “valor em movimento”, e a acumulação de
capital é o processo pelo qual ocorre multiplicação de valor por meio da
exploração e alienação do trabalho empregado na produção de
mercadorias (Smith, 2007). É justamente essa generalização da existência
das mercadorias que faz a organização capitalista tornar-se socialmente
necessária (Marx, 1976). Para identificar a função que o meio natural,
incluindo os estoques de água, desempenha na economia capitalista, é
necessário compreender os conflitos de interesse em torno da composição
da mercadoria e as transferências de valor a ela relacionadas. Como
observado por Harvey (2006), não foi à toa que Marx iniciou o primeiro
113

volume de sua obra mais importante, O Capital, com uma investigação


cuidadosa sobre a constituição e as propriedades das mercadorias
(commodities).
Em vez de diminuir em importância, uma vez que pressionada
pelo avanço do capitalismo industrial, a exploração dos recursos naturais
segue mantendo papel essencial como garantidor das condições de
produção (Marx, 1998). Especialmente por essa razão, para o regime
capitalista, os valores intrínsecos da natureza devem ser considerados
não em si mesmos, mas em relação às necessidades de circulação de
capital. A terra (i.e. natureza)2 é um repositório de valores intrínsecos (i.e.
matérias-primas, propriedades ecológicas ou forças na natureza, como o
potencial hidrelétrico) que são conectados ao processo produtivo através
do trabalho humano e passam a demonstrar valor de uso a ser aplicado
na expressão do valor de troca (Kovel, 2002).3 Por exemplo, o valor
hidrológico (valor intrínseco) da água passa a manifestar um valor
produtivo (valor de uso) ao servir como matéria-prima para a
agroindústria (meio de produção) e como veículo para diluição de
efluentes (condição de produção). O produto dessa atividade produtiva,
a mercadoria final, encerra uma duplicidade de valor de uso e valor de
troca, o que permite a apropriação final de lucro por parte daquele que a
controla, mesmo que sem a devida remuneração dos trabalhos que
tomaram parte na produção da mercadoria.4
Ao tratar os recursos naturais, a água em particular, como mais
uma forma de mercadoria (ainda que fictícia, porque não produzida para
ser transacionada através de mecanismos de mercado; cf. Polanyi, 2001), o
regime capitalista imprime sobre a natureza uma lógica reducionista,
uma vez que essencialmente baseada na acumulação ilimitada de capital.
Essa faculdade inerentemente expansionista do capitalismo conduz a
uma dupla contradição, não somente o confronto entre trabalhadores e as
relações de trabalho, mas também uma discordância mais ampla entre as
forças de produção e as próprias condições de produção (O’Connor,
1998). Ou seja, com o avanço das relações de produção capitalista, o
metabolismo entre sociedade e natureza passa por uma ruptura (metabolic

2 Castro (2006: 7) observa que, para Marx, “a terra, em termos econômicos, inclui
água”.
3 A noção de valor intrínseco, como um valor original relacionado à apropriação

primária do mundo que cada pessoa realiza independentemente de uso e


benefício direto, é um dos pontos centrais do argumento ecossocialista de Joel
Kovel (2002: 194-7). O autor apresenta, assim, uma atualização da análise de
Marx, que no texto de O capital trata fundamentalmente dos valores de uso e de
troca das mercadorias (embora em outros textos, mesmo sem formular o conceito
de valor intrínseco, Marx dedicou especial atenção aos problemas de conservação
dos recursos naturais; ver Foster, 2000).
4 Como pode ser percebido nesse simples exemplo, segundo a teoria marxista

valor é fundamentalmente uma expressão da relação de classes (Harvey, 2006).


114

rift) em função da crescente mercantilização (commodification) dos


recursos e processos da natureza (Foster, 2000). Isso significa dizer que os
impactos ambientais estão inscritos no próprio DNA do regime
capitalista, pois, ao precisar expandir-se para não perecer, arrasta consigo
um manto pesado de degradação. A inescapável contradição entre o
capitalismo e sua base natural descreve claramente a trajetória de uso dos
recursos hídricos no Brasil, como se verá em detalhe mais adiante.
Nossa análise do regime de acumulação precisa considerar não
somente o aspecto trans-histórico e mais geral do capitalismo, mas
também especificidades ecológicas que são variáveis no tempo e no
espaço. Ainda durante a fase de colonização, os rios foram
estrategicamente utilizados como via principal de acesso ao interior, em
um processo que, na busca de riquezas minerais e mão de obra escrava,
gradativamente distendeu a fronteira colonial. O controle sobre as
reservas hídricas teve influência sobre a disposição dos primeiros núcleos
urbanos, engenhos, fazendas e fortificações militares (ANA, 2007). Com a
chegada das indústrias e da crescente urbanização, a partir do final do
Século XIX, a geração hidrelétrica e o abastecimento público passaram a
demandar volumes cada vez maiores, apesar de ser a agricultura irrigada
o setor responsável pelo maior percentual de água utilizada. Seja na fase
predominantemente agrícola, seja no período marcadamente industrial,
em que pesem diferenças tecnológicas, espaciais e históricas, a água
sempre serviu como matéria-prima essencial e elemento básico do
processo produtivo. O desenvolvimento brasileiro, porém, ao aumentar o
volume absoluto de recursos naturais requeridos — ao mesmo tempo que
os destrói e despreza as populações mais diretamente associadas —
consolida um ritmo crescente de insustentabilidade. Não por
coincidência, as bacias hidrográficas com maior frequência de conflitos e
degradação ambiental são justamente aquelas que foram mais
intensamente transformadas por barragens, captações e lançamentos de
efluentes ligados à produção industrial, aglomerações urbanas ou
irrigação.
O paradoxo da insustentabilidade, que caracteriza o processo de
crescimento econômico e exploração de recursos hídricos no Brasil,
corresponde a um dos dilemas centrais do capitalismo, qual seja, a
formação de crises recorrentes. Tais crises, segundo os neomarxistas, têm
não somente uma importância econômica e social, mas também uma
dimensão ambiental e ética de igual relevância. Por outro lado, as forças e
os agentes capitalistas demonstram uma impressionante capacidade de
superação dessas mesmas crises. No que concerne ao meio ambiente,
existe hoje uma tentativa (denominada “capitalismo verde” ou
“modernização ecológica”) de fazer com que a natureza deixe de ser
apenas objeto de extração de valor de uso e se torne diretamente
detentora de valor de troca, sem a necessidade de extração e consumo de
recursos naturais. Isso significa, na linha do raciocínio de Polanyi, a
115

produção de novas “mercadorias fictícias”, ainda que agora associadas à


conservação ambiental, como no caso da venda de serviços ecológicos
através de mecanismos de mercado (e.g. mercado de carbono, pagamento
pela manutenção da biodiversidade, ecoturismo etc.). Esse tipo de
mercadoria ambiental permite que a gestão e a recuperação da natureza
se tornem estratégias diretas de acumulação de capital; são mercadorias
simultaneamente escavadas (em termos de valor de troca) de relações
socionaturais preexistentes e, como parte de sua produção, são
reinseridas ou permanecem latentes em uma natureza socializada (Smith,
2007).
A expansão capitalista sobre a natureza não se dá de modo linear
ou ininterrupto, mas reflete conjunturas históricas e institucionais
específicas. Da mesma forma, as transformações ecológicas relacionadas à
produção e à acumulação capitalista refletem dinâmicas geográficas em
permanente mutação.5 Essa incorporação do espaço na lógica de
acumulação capitalista acontece através de um fluxo de pressões que
simultaneamente induzem à equalização e à diferenciação, em uma
complexa dialética de aproximação e antagonismo entre o local e o global.
O território passa a ser uma arena de oposição entre a sociedade civil, que
pluraliza e diversifica, e a organização dos mercados, que ao mesmo
tempo singulariza e uniformiza (Santos, 2002).
Como descritas por Bowles (2004), as forças de mercado
desempenham mais do que um papel alocativo, exercem também uma
função disciplinadora, que se efetiva através do uso assimétrico de poder
embutido nas relações e instituições sociais. 6 Quanto aos serviços
públicos, por exemplo, existe uma relação estreita entre circulação de
capital, circulação de água e fluxos de poder político, o que é ainda mais
evidente nos precários sistemas distribuição das grandes cidades dos
países em desenvolvimento (Swyngedouw, 2004). Ekers e Loftus (2008)
argumentam ainda que as técnicas de poder estão imbricadas tanto na
experiência diária da população com problemas de abastecimento de
água, quanto estão relacionadas ao controle político do aparelho estatal.
Por outro lado, as populações e os indivíduos envolvidos não se
submetem inteiramente ao poder dominador, mas reagem crítica e
criativamente de acordo com suas possibilidades (Hickey e Mohan, 2004).
Tendo em conta os conceitos brevemente apresentados, pode-se
afirmar que as questões atuais de uso e conservação dos recursos hídricos
resultam do funcionamento e das disputas internas da relação sociedade-
natureza na esfera de influência das instituições capitalistas. Tal

5 Segundo Massey (2005), o espaço é a dimensão de múltiplas trajetórias sociais,


uma simultaneidade de relações sociais dinâmicas e heterogêneas.
6 A preponderância de determinado grupo social sobre outro ocorre pelo exercício

da hegemonia, mantida por meio de relações de consentimento e coerção, as quais


são consolidadas em instituições revestidas como expressão do senso comum
(Gramsci, 1971).
116

constatação não deve, porém, alimentar conclusões mecanicistas quanto à


problemática de uso e de conservação dos recursos hídricos. Se, por um
lado, é importante reconhecer a exploração de recursos naturais como
uma das características centrais do desenvolvimento nacional; por outro,
devem-se evitar formulações simplistas sobre a geração de injustiças
sociais e impactos ambientais associados ao crescimento da economia. As
duas próximas sessões deste texto tentarão estabelecer um paralelo entre
a “fase desenvolvimentista” (no sentido keynesiano de desenvolvimento,
em que o uso da água serviu basicamente como matéria-prima e fonte
indireta de acumulação) e a “fase neoliberal” contemporânea, na acepção
dada por John Williamson e seu Consenso de Washington (para a qual a
água continuou a ser empregada como insumo fundamental da atividade
produtiva, mas a própria gestão torna-se também objeto de transações
comerciais e fonte direta de acumulação). Para traçar um panorama
histórico completo, as contradições e consequências socionaturais de cada
fase serão apenas esquematicamente apresentadas com o propósito de
demonstrar uma linha de continuidade, apesar de especificidades
históricas e geográficas, na forma como a água vem sendo incorporada na
economia. Serão mencionados de modo especial os três principais setores
de usuários — irrigação, hidreletricidade e abastecimento público — com
exemplos coletados às principais regiões hidrográficas brasileiras.

Fase Desenvolvimentista: A Água como Mecanismo Indireto de


Acumulação

O desenvolvimento do país através da exploração de seus


recursos naturais representa um dos mais arraigados elementos da
história nacional. A exploração de recursos alegadamente abundantes
com o propósito de fomentar o crescimento econômico foi uma das
premissas centrais de políticas públicas voltadas à água e aos rios
brasileiros (Conca, 2006). No período colonial, a prática de amealhar a
natureza, como de resto as populações nativas, a serviço da produção de
riqueza privada, correspondia à postura expansionista e mercantil da
civilização renascentista, inspirada em uma ética baconiana e apoiada por
avanços científicos em diversas áreas. Em contraste com as paisagens
europeias, o Novo Mundo era ilusoriamente descrito como uma terra de
farturas e primaveras sem fim. Era a própria visão do paraíso
solenemente à espera de ser conquistado (Holanda, 2000). 7 A organização
política e social da colônia, zona principal de acumulação do império
português a partir do Século XVII, estruturava-se sobre uma dupla
exploração da natureza e da mão de obra escrava. No dizer de Prado
Júnior,

7Entre muitas lendas que floresceram durante o descobrimento e a conquista,


podem ser mencionadas a do Rio Dourado, local de grandes riquezas, e a lagoa
mítica, situada nas cabeceiras dos rios mais caudalosos (Holanda, 2000).
117

“outro objetivo não houve que utilizar os recursos naturais do seu


território para a produção extensiva e precipitada de um pequeno
número de gêneros altamente remunerados no mercado internacional.
Nunca se desviou de tal rumo, fixado desde o primeiro momento da
conquista; e parece que não havia tempo a perder, nem sobravam
atenções para empresas mais assentes, estáveis, ponderadas. […] Só se
enxergava uma perspectiva: a remuneração farta do capital que a
Europa aqui empatara. […] É o que se exigiu de negro e de índio que se
incumbiriam da tarefa.” (1977: 273).

Conforme demonstrado por Pádua (2002), a destruição ambiental


não passou sem notícia, pois houve cronistas brasileiros que, já nos
Séculos XVIII e XIX, perceberam os efeitos negativos da exploração
desenfreada dos recursos naturais. Porém, em sua maioria, fizeram-no de
acordo com uma visão cientificista, típica de sua época, advogando
melhores técnicas como solução aos crescentes problemas e desdenhando
a necessidade de mudanças sociais e políticas mais profundas. Ainda
assim, alguns poucos intelectuais, como Baltasar Lisboa e José Bonifácio,
foram capazes de identificar a causa dos impactos ambientais em uma
estrutura socioeconômica baseada no latifúndio e na escravidão. Mas
essas eram vozes minoritárias em meio a um contexto no qual
predominavam o ímpeto devastador e, em alguma medida, as tentativas
tímidas do Estado colonial de conter a devastação para lhe garantir
reservas estratégicas para o futuro — como no caso das cartas régias que
determinavam que a navegação fluvial e a expansão da agricultura não
afetassem os estoques de madeira reservados para os “Cortes Reais” e
para “proveito da Fazenda e Marinha Reais” (Pádua, 2002: 58).
Após a independência do Brasil e o declínio da atividade
mineradora e açucareira, a produção de café consolidou-se como
principal atividade exportadora, especialmente, no Segundo Reinado. No
início, no vale do Paraíba do Sul e, após a rápida degradação de seus
solos, expandiu-se para o oeste de São Paulo e mais além. Foi nesse
período que se inaugurou uma das primeiras indústrias nacionais, o
Estaleiro Mauá, em 1865, pioneiro na América Latina e ligado à
navegação de cabotagem. Na mesma década, o país esteve envolvido no
maior confronto militar de sua história — a Guerra do Paraguai — que
foi, em larga medida, uma disputa hidropolítica em torno do controle da
navegação na Bacia do Prata. Enquanto no Sul e no Sudeste — por conta
da urbanização e do início da industrialização — a água era fator de
desenvolvimento, no Nordeste as secas sucessivas eram motivo de
escândalo, particularmente, no período 1877-80, quando coincidiram com
uma severa ocorrência do El Niño. Em vez de ser apenas a manifestação
de fenômenos atmosféricos ocasionais, a seca nordestina era, antes de
tudo, resultado da convergência de pressões do imperialismo britânico,
118

da incompetência do Estado brasileiro e da crise ecológica (Davis, 2004),


fatores que serviram como catalisadores de diversas situações de
convulsão social, entre as quais Canudos foi apenas a mais dramática
ocorrência.
Ao final do Século XIX, a competição entre novas e antigas
estruturas político-econômicas, bem como a emergência de interesses
regionais e setoriais díspares desencadearam a revolta republicana,
incialmente protagonizada pelo setor militar, mas de feição
crescentemente oligárquica. Contrastando com o dos outros países da
América espanhola, que passaram por transformações repentinas, o
processo de modernização nacional foi lento e gradual. Segundo Holanda
(1995), o divisor de águas talvez tenha sido a abolição da escravatura em
1888 e a consequente diminuição da hegemonia rural e agrária. Na
transição para o Século XX, apenas os principais núcleos urbanos eram
servidos por poucas empresas públicas de abastecimento de água,
normalmente privadas e de capital inglês, que atendiam praticamente as
zonas habitadas pelos moradores mais aquinhoados (Heller, 2006). As
primeiras hidrelétricas foram instaladas nas duas últimas décadas do
Século XIX e, seguindo a Constituição de 1891, as concessões para
prestação de serviços de eletricidade passaram a ser outorgadas pelas
prefeituras, enquanto os governos estaduais exerciam o poder concedente
para o aproveitamento e a utilização das quedas-d’água.
A onda modernizadora teve seu momento decisivo na chamada
Revolução de 1930, resultado de uma aliança tácita, de certo modo
contraditória, mas que se justificava perfeitamente dentro do sistema
oligárquico regional, entre fazendeiros do café, banqueiros e
industrialistas. Através de diversos procedimentos bancários e
comerciais, houve uma transferência de capitais acumulados pela
cafeicultura para a nascente indústria nacional. Pressionado pela queda
do preço do café e por uma severa depreciação cambial, o governo Vargas
adotou uma política heterodoxa (anticíclica) agressiva e que foi suficiente
para consolidar uma industrialização baseada na substituição de
importações (Furtado, 2007). O governo central, protagonista do processo
modernizador, passou a promover uma importante reorganização da
estrutura técnica, operacional e gerencial dos órgãos públicos no sentido
de atender às novas demandas econômicas e sociais. Na maioria das
vezes, as tecnologias empregadas consistiam em adaptações superficiais
de procedimentos previamente desenvolvidos nos países capitalistas
centrais.
Ainda no início da fase industrialista, foi aprovado o Código de
Águas de 1934, o qual serviu como alicerce jurídico para os investimentos
públicos e privados levados a efeito nas cinco décadas seguintes. O
Código, que veio a substituir o Alvará Real de 1808 (o qual garantia o
direito de uso das águas pela pré-ocupação das mesmas), disciplinava,
entre diversos outros dispositivos, as autorizações para uso de águas de
119

uso comum, questões relativas à desobstrução dos cursos hídricos,


manutenção das margens dos rios e salubridade das águas. Foi atribuída
à União competência exclusiva, como poder concedente, para o
aproveitamento hidrelétrico destinado ao fornecimento de energia à
população.
Com a crescente industrialização, a demanda por energia elétrica
passou a aumentar exponencialmente, requerendo novas e maiores
barragens que permitissem explorar o potencial hidrelétrico.
Principalmente em decorrência de intervenções diretas do governo
central, foram construídas diversas unidades geradoras, inicialmente, ao
longo da serra do Mar na região Sudeste. Após um interregno devido à
Segunda Guerra Mundial, na década de 1950, foram retomados os
investimentos públicos em hidreletricidade, os quais eram, em grande
medida, financiados por empréstimos externos através do Estado
nacional. Até o final daquela década, toda a geração de energia elétrica
fora nacionalizada e os operadores estrangeiros praticamente removidos
do setor. Diversas empresas estaduais foram criadas para administrar a
expansão da geração elétrica, como Cemig (1952) e Copel (1955), assim
como empresas sob controle do governo federal, Chesf (1948) e Furnas
(1957), além da criação da Eletrobrás (1961) como órgão coordenador e
principal agente financiador. Entre 1930 e 1960, a potência hidrelétrica
instalada passou de 615,2 MW para 3.642,0 MW (ANEEL, 1999), mas com
o esgotamento dos locais mais próximos dos grandes centros, outras
bacias hidrográficas tiveram de ser consideradas, especialmente em
direção ao Sul e ao Nordeste. As novas barragens passaram a servir não
somente para hidreletricidade, mas também para controle de cheias e à
irrigação (Barbosa e Braga, 2003).
As transformações socioeconômicas decorrentes de políticas de
fomento à industrialização alteraram as dinâmicas populacionais entre
campo e cidade, particularmente, com a criação de polos de
desenvolvimento e atração migratória no Sudeste. Os censos
demográficos mostram que a população passou de 41 milhões em 1940
para 70 milhões em 1960. Além disso, a migração teve um papel
fundamental na expansão de áreas metropolitanas, que foi,
posteriormente, seguida por um período de redução da taxa de
crescimento em razão da queda da fecundidade, diminuição sistemática
dos movimentos migratórios e, mais recentemente, transferências
populacionais a partir do município central em direção às áreas vizinhas.
O processo de crescimento e a rápida transformação dos espaços
urbanos — decorrentes do dinamismo geográfico do capital —
representaram um imenso desafio para o aparelhamento dos serviços de
abastecimento de água, saneamento básico e drenagem pluvial. Na
década de 1940, criaram-se agências, como a Fundação Nacional de Saúde
e o Departamento Nacional de Obras e Saneamento (DNOS), assim como
foram reformuladas outras já em operação, como o Departamento
120

Nacional de Obras Contras as Secas (DNOCS). Após a edição do Código


de Águas, as empresas antes concessionadas a estrangeiros foram
gradativamente retomadas pelos municípios. Mas, se o serviço de água
passou a ser administrado diretamente pelo poder público municipal, a
capacidade de investimento, a eficiência e a área de cobertura
mantiveram níveis muito aquém dos desejáveis. Nas décadas de 1950-60
houve certa preocupação com a autossustentação tarifária das empresas
públicas, o que representou um pequeno aporte de recursos financeiros
adicionais (Heller, 2006).
A irrigação agrícola de caráter comercial teve início no Sul do
país com a lavoura de arroz, que aproveitou as condições favoráveis de
preço decorrentes da Primeira Guerra Mundial para expandir seus
mercados, beneficiando-se inclusive de importações uruguaias e
argentinas. Apesar do restabelecimento das condições anteriores à guerra,
a politização dos produtores (e.g. criação do Sindicato dos Arrozeiros no
Rio Grande do Sul em 1926) assegurou a sustentação das taxas de
crescimento da área irrigada naquele estado. Mesmo assim, até o início da
década de 1950, havia apenas 400 mil hectares irrigados no país, mas
desde então políticas nacionais de incentivo fizeram com que a área de
irrigação crescesse a uma taxa de 30% por década e se expandisse para
outras regiões do país, especialmente para o Sudeste e Nordeste. O
governo federal passou a estimular a importação de sistemas de irrigação
por aspersão, isentando-os do pagamento de impostos e oferecendo
tarifas cambiais atraentes. A partir de 1955, iniciou-se a fabricação de
equipamentos para irrigação no próprio país, na esteira do esforço de
industrialização nacional. Apesar disso, no Semiárido, apesar de diversos
projetos e da criação da Codevasf (atualmente Companhia de
Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba, inicialmente
denominada Comissão do Vale do São Francisco) em 1948 e da
Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) em 1959, a
falta de água continuava a afetar largas parcelas da população regional de
modo semelhante ao que ocorria desde o século anterior.
Os vetores de desenvolvimento desencadeados desde a década
de 1930, baseados, essencialmente, em investimentos públicos,
substituição de importações, expansão do mercado interno e rígido
controle nas mãos do governo federal, fatores que formavam um todo
coerente, ainda que não monolítico, a serviço de um projeto político com
interesses de classe específicos — cuja expressão maior foi o Plano de
Metas de Juscelino Kubitschek, o qual buscava a ganhos de eficiência
econômica e interconexão com o mercado capitalista internacional —,
receberam grande impulso após a instalação do regime ditatorial em 1º de
abril de 1964.
O contexto geopolítico da Guerra Fria, associado à abundância de
petrodólares na banca mundial, proporcionou condições favoráveis para
investimentos maciços em obras de infraestrutura, financiadas por
121

organismos multilaterais, no que ficou conhecido como o período do


“milagre brasileiro”. As grandes obras não somente produziam empregos
e circulação temporária de capital, mas serviam de instrumentos
legitimadores do regime autoritário. Durante a ditadura, os diversos
ramos do aparelho estatal responsáveis pelo setor de recursos hídricos
foram reorganizados com o propósito de facilitar a implementação de
obras e projetos de “desenvolvimento”. A Secretaria Nacional de Meio
Ambiente (Sema) foi criada em 1973 como resposta à opinião pública
internacional e voltada basicamente ao controle de poluição, mas não à
gestão ambiental propriamente dita.
Entre as décadas de 1960 e 1980, acelerou-se o ritmo de
construção de hidrelétricas, com uma taxa média anual de 16% de
crescimento da potência instalada — comparada com 6% entre as décadas
de 1930 e 1950 (ANEEL, 1999). Nessa fase, houve uma progressiva
interligação elétrica entre as regiões geográficas (sistema Norte-Nordeste
e Centro-Oeste-Sul-Sudeste) e a inauguração de obras gigantes como
Tucuruí, Paulo Afonso III e IV e, claro, Itaipu (até recentemente, a maior
unidade em operação no mundo). A geração espalhou-se por outras
regiões do país, notadamente nas bacias dos rios Grande e Paranaíba,
graças ao aprimoramento de tecnologias de transmissão de energia
elétrica em grandes blocos e distâncias (ANEEL, 2002).8
Para reverter as notórias deficiências de abastecimento e
saneamento básico, o governo militar lançou, em 1971, um plano nacional
(Planasa), o qual induziu as administrações municipais a concederem às
empresas estaduais a operação dos serviços através de contratos de 25 ou
30 anos de duração (muitos dos quais começaram a expirar
recentemente). Houve um crescimento significativo do abastecimento de
água entre 1970 e 1990 (de 60% para 86% dos domicílios urbanos), mas
menos expressivo em termos de esgotamento sanitário (de 22% para 42%
dos domicílios urbanos em termos de rede de coleta), conforme dados
dos censos demográficos. O modelo de expansão logo demonstrou
inadequações tecnológicas e insustentabilidade financeira, acrescido de
dificuldades para manter tarifas ajustadas à inflação e receber pagamento
pelos investimentos contratados (Heller, 2006).
Nesse mesmo período, a irrigação agrícola foi um dos pilares da
Revolução Verde que fez do Brasil um dos principais exportadores do
agronegócio mundial, ainda que tenha sido também responsável por
crescentes impactos ambientais e conflitos pelo uso de água. Somada a
uma irrigação de perfil empresarial no Centro-Oeste e no Sudeste,
alimentada com subsídio governamental, a área de irrigação aumentou
de forma acelerada no Nordeste, primeiro com projetos públicos na

8 Aproximadamente 83% do abastecimento elétrico atual é baseado no


aproveitamento do potencial hidrelétrico, embora tenha havido pequena
diminuição a partir de 1999 com o aumento do uso de gás natural (ANEEL, 2002).
122

década de 1970 (e.g. polos regionais como Jaíba e Petrolina no São


Francisco, vale do Assu e vale do Jaguaribe) e investimentos privados
com apoio público na segunda metade da década de 1980. A partir de
1982, com o lançamento de programas federais de estímulo à expansão
das áreas irrigadas (Profir e Provárzeas), houve significativa expansão
das áreas irrigadas nas diversas regiões do país, notadamente nos
cerrados e na região Nordeste. Em 1986 houve a criação do Ministério
Extraordinário para Assuntos de Irrigação, responsável pelos programas
de desenvolvimento das áreas irrigadas no Nordeste (Proine) e no
restante do país (Proni). Na década de 1990, com a retração de
investimentos do governo federal, o setor de irrigação passou por um
período de estagnação e falta de direção estratégica, que somente nos
últimos anos começou a ser equacionado.
Em retrospecto, pode-se afirmar que o impulso industrializador,
a partir de 1930, foi também marcado por evidentes contradições
socioambientais, no que diz respeito a uma exploração hídrica baseada
em técnicas mal adaptadas às condições nacionais, dependente de
financiamento externo e voltada fundamentalmente ao atendimento de
demandas de uma parcela minoritária da sociedade. O patrimonialismo,
institucionalizado desde o período colonial e que continuava a dominar a
economia e a política do país, favorecendo aqueles que controlavam e
eram suportados pelo braço do Estado, fez com que os recursos hídricos
passassem a ser estrategicamente utilizados na promoção de um
desenvolvimento excludente e de alto custo social (na forma de impactos
ambientais generalizados).9 A ausência de uma regulação ambiental
efetiva serviu como chamariz para atrair investimentos estrangeiros, em
especial, de indústrias altamente poluentes, o que ficou consagrado na
célebre frase do ministro Reis Velloso em 1972: “Nós temos ainda muito
que poluir, eles [os países industrializados] não mais” (ap. Guimarães,
1991: 130). Com um Legislativo submisso ou praticamente ausente e um
limitado espaço para o debate público (nos anos de autoritarismo), as
decisões e avaliações permaneciam sob controle dos mesmos organismos
que planejavam programas e intervenções, dando margem à corrupção
de pequena e grande escala (sobre corrupção, ver Transparency
International, 2008).
Como descrito em avaliações oficiais (MMA, 2006), grande parte
dos atuais problemas de gestão de recursos hídricos decorre dos
equívocos cometidos durante essa fase desenvolvimentista. Uma das
bacias mais sujeitadas às demandas do desenvolvimento foi justamente o
vale do Paraíba do Sul, berço da industrialização (particularmente com a
fundação da Companhia Siderúrgica Nacional em 1941) e região hoje
responsável por 10% do PIB nacional, mas que apresenta uma qualidade

9Para Kapp (1971), o capitalismo deve ser considerado uma economia de custos
sociais não pagos.
123

da água bastante comprometida, ao passo que dois terços da vazão média


são desviados para abastecer a Região Metropolitana do Rio de Janeiro
(Ioris, 2008). Na região Nordeste, em vez de enfrentar o problema da seca,
os investimentos realizados levaram a uma concentração ainda maior de
terra e de oportunidades, enquanto a maioria da população permaneceu
vulnerável até mesmo às menores vicissitudes climáticas (Hall, 1978). Por
exemplo, no submédio do vale do São Francisco, distorções institucionais
e ganhos localizados produziram um quadro de conflitos, degradação e
crescente vulnerabilidade (Ioris, 2001). As tentativas de promoção de
irrigação por meio da reforma agrária no São Francisco foram tímidas e
malconduzidas, sucumbindo a um processo mais amplo de exploração; o
que é mais significativo, os agricultores ribeirinhos continuam tão pobres
quanto antes, mas as situações de miséria e indigência que antes eram
excepcionais tornaram-se rotineiras.
A fronteira agrícola avançou pelo Centro-Oeste e pela Amazônia
Oriental, mas invariavelmente esteve associada a problemas de erosão de
solo e contaminação de rios por agroquímicos. Apesar de esquecidos
quando se trata de conservação ambiental, os rios eram lembrados em
projetos de navegação para reduzir o valor do transporte de mercadorias,
como no caso dos rios Madeira, Araguaia e Paraguai. Em particular, a
conversão de áreas de cerrado em largas fazendas de soja e cana alterou
significativamente a hidrologia e ecologia dos rios que formam a planície
do Pantanal, cujo espaço regional foi transformado com subsídios
governamentais e a atração de imigrantes sulistas.
Considerada como a grande fronteira hídrica do
desenvolvimento, detentora de metade do potencial hidrelétrico nacional,
mesmo a Amazônia não passou incólume à expansão das grandes
barragens. Os impactos mais severos foram associados a Tucuruí, onde,
segundo o relatório final da Comissão Mundial de Barragens (publicado
em 2000), 2.850 quilômetros quadrados de floresta foram alagados e mais
de 15 mil pessoas tiveram de ser reassentadas (o número de reassentados
continua sendo motivo de discussão e o mesmo relatório menciona
estudos que calcularam entre 25 mil e 35 mil pessoas). Além de
hidrelétricas, a mineração e o garimpo são intervenções que também
causam impactos consideráveis sobre as águas e as comunidades da
Amazônia. O maior projeto de mineração, Carajás, diretamente conectado
com Tucuruí, teve repercussões sobre mais de 10% do território nacional
na forma de desmatamento, degradação do solo e alteração do regime
hídrico (Ioris, 2007a).
Dado que o fluxo hidrológico não observa divisas nacionais, as
pressões socioambientais do desenvolvimento brasileiro fizeram-se sentir
também nos países vizinhos. Apesar de manter fronteira com dez nações,
o Brasil sempre teve uma posição favorável na hidropolítica da América
do Sul, uma vez que se situa a montante na Bacia do Prata, onde a maior
parte da população e da economia do continente está localizada
124

(conquanto que na Bacia Amazônica os países a jusante do Brasil têm sua


atividade econômica restrita à zona costeira e, portanto, sem iniciativas
de exploração hidráulica que venham a prejudicar os interesses
brasileiros naquela região).
Itaipu representou um dos maiores projetos da megalomania
militar binacional, o qual, apesar de gerar recursos à pequena economia
paraguaia, acirrou o nível interno de corrupção e produziu um influxo
desorganizado de migrantes brasileiros em território paraguaio. A
postura do Brasil em relação ao Paraguai não foi exceção, tendo em conta
que os primeiros esforços diplomáticos no sentido de uma cooperação no
Prata, como a Declaração de Montevidéu de 1933, foram substituídos na
década de 1960 por uma crescente aplicação da chamada Doutrina
Harmon, a qual preconiza que cada país tem direitos exclusivos sobre os
recursos hídricos de seu território, sem a necessidade de consulta prévia
com outros países vizinhos (Elhance, 1999). A dificuldade de estabelecer
uma cooperação voltada aos recursos hídricos transfronteiriços, seja na
implantação do Tratado de Cooperação da Amazônia, como na gestão do
Aquífero Guarani ou da Bacia do Prata, sugere a permanência ainda de
elementos dessa doutrina na diplomacia brasileira. Tanto no governo
Cardoso quanto no governo Lula, as políticas externas continuam a ser
estruturadas de acordo com os interesses da elite nacional, o que se dá
através de uma cooptação da luta de classes e dos movimentos sociais,
sem mudanças sensíveis, dentro e fora do país, nas relações de poder
(Flynn, 2007).

Fase Neoliberal: A Água Como Mecanismo Direto e Indireto de


Acumulação

O modelo econômico desenvolvimentista implantado ao redor do


mundo na primeira metade do Século XX — centrado na ação
empresarial do Estado, segundo o ideário keynesiano — passou a ser
objeto de concentrado criticismo desde o início dos anos 1970, não
exatamente por parte daqueles que mais sofreram com as contradições
socionaturais do desenvolvimento, mas pelos setores que identificaram
na ação estatal a causa principal de taxas declinantes de rentabilidade do
capital. A crítica neoliberal, inspirada em economistas como Friedrich A.
Hayek e Milton Friedman, ganhou ainda mais vitalidade com as
oscilações do preço do petróleo, da taxa de juros e da crescente
dificuldade de financiamento do deficit público. Entre os diversos axiomas
ideológicos neoliberais, podemos citar a concepção de que a prosperidade
dos países industrializados decorre da adoção irrestrita do livre mercado
e, por conseguinte, caberia aos países em desenvolvimento seguir o
mesmo exemplo (Chang e Grabel, 2004).
Tendo como símbolo político a queda do Muro de Berlim (cuja
causa principal esteve associada às insuficiências socioeconômicas e
125

democráticas dos países de linha soviética, e não ao sucesso econômico


do Ocidente), houve um progressivo redirecionamento da atividade
mundial, caracterizado pela diminuição do papel empresarial do Estado,
a interconexão dos mercados e a contenção do movimento social
organizado. Do aparelho estatal, esperavam-se maiores incentivos e
facilidades aos agentes econômicos privados, no que se incluiu a
privatização de empresas consideradas obsoletas, como no caso da
Inglaterra, onde a totalidade do patrimônio e da operação das
companhias regionais de água e esgoto foi transferida à iniciativa
privada.10 Foi justamente no Reino Unido onde, em razão de
circunstâncias políticas e econômicas específicas, floresceu umas das
linhagens mais apuradas do pensamento neoliberal, o tatcherismo.
Apesar de seu discurso edênico, as reformas adotadas a partir de 1979
tiveram um pesado custo social, como o desemprego de dezenas de
milhares de mineiros britânicos que, três décadas mais tarde, ainda não
conseguiram uma nova colocação profissional.
A economia brasileira, considerada hoje uma das princesas entre
as chamadas nações emergentes, não esteve imune às pressões neoliberais
e passou, como muitas outras, por um processo de estabilização
monetária, elevação das taxas de juros, reforma do mercado de trabalho,
deslocamento dos investimentos públicos e agressiva atração de capital
financeiro internacional (Mollo e Saad-Filho, 2006). Mas o receituário
neoliberal à denominada crise do Estado brasileiro — na verdade, uma
crise do próprio processo de inovação e acumulação — teve de ser
implementado gradualmente e conforme as peculiaridades da conjuntura
política nacional.11 A precária legitimidade do governo Sarney, somada à
aventura traumática do governo Collor e à condição tampão do governo
Franco, fez com que o país amargurasse quase uma década de incertezas
econômicas, descontinuidade administrativa e crescente frustração social.
Trilhou-se um longo e sinuoso período de transição do regime ditatorial
para a estabilidade governamental, somente atingida em 1995, no
governo Cardoso, eleito em função dos resultados proporcionados pelo
Plano Real, de inspiração claramente neoliberal.
Para compreender o significado do momento histórico
deflagrado pelas reformas neoliberais em relação ao uso e à conservação
dos recursos hídricos, é imprescindível perceber a origem e os
beneficiários das mudanças institucionais implantadas na década de 1990,
as quais prosseguiram quase sem interrupção durante o governo Lula.
Como em qualquer processo de ajuste, houve ganhadores e perdedores

10 Como parte do processo de privatização, o governo arcou com um prejuízo de


mais de 1,3 bilhão de libras e ofereceu incentivos fiscais de mais de 7,7 bilhões
(valores da década de 1980), conforme Bakker (2003).
11 Talvez exista aqui um paralelo com a referência feita por Holanda (1995),

mencionada anteriormente, quanto ao fato de a modernização brasileira ter uma


faceta própria e um ritmo mais gradual do que os países vizinhos.
126

dentro da própria elite econômica, como também entre os trabalhadores.


Na verdade, a implantação do receituário neoliberal no Brasil vem sendo
marcada por uma grande complexidade em termos de disputas dentro
das classes sociais e de ajustes no bloco de poder (Boito, 2007). Por um
lado, além do entusiasmo da classe média com o projeto neoliberal, a
promoção de políticas compensatórias (com o Bolsa Família) tem servido
para neutralizar politicamente a classe trabalhadora. Por outro, os setores
produtivos que foram excluídos no primeiro momento do Plano Real
passaram a se beneficiar mais diretamente após a desvalorização da
moeda, em 1999, e com os estímulos oferecidos às cadeias exportadoras,
notadamente ao agronegócio. Essa retomada do fomento à agricultura,
semelhante aos incentivos oferecidos pela ditadura militar para ampliar a
“fronteira agrícola”, obviamente tem aumentado a procura por novas
áreas e a pressão sobre os recursos hídricos.
Além de vantagens fragmentadas e de cunho populista, existe
uma incessante construção discursiva a respeito da primazia do
neoliberalismo, orquestrada diariamente pelos meios de comunicação de
massa e legitimada por instituições acadêmicas comprometidas com a
reforma do modelo de desenvolvimento econômico. Tenta-se convencer a
opinião pública de que a democracia formal hoje em vigor no Brasil —
baseada em eleições periódicas a cada dois anos, mas através das quais
não se materializa qualquer renovação efetiva de poder — é irmã siamesa
da liberalização econômica e da globalização dos mercados. Encobre-se,
assim, uma realidade na qual as desigualdades sociais se mantêm (como
pequenas oscilações momentâneas, que não contradizem as tendências de
longo prazo), e os impactos ambientais se multiplicam (também com
melhorias apenas pontuais).
Essa aporia obviamente não pode ser solucionada dentro dos
limites do pensamento convencional, que, organicamente associado à
atual estrutura econômica, recomenda ainda doses maiores de liberalismo
como o único caminho para resolver os problemas ligados a carências
sociais e à degradação ambiental. Em que pese uma retórica de
democracia e responsabilidade social, as reformas neoliberais buscam
fundamentalmente atender às necessidades de grupos e setores
hegemônicos. O novo paradigma serve para remover barreiras e
ineficiências que surgiram das próprias contradições de uma economia
periférica, tecnologicamente subordinada e altamente dependente dos
recursos naturais. Persiste, assim, um quadro de injustiça ambiental
generalizado, uma vez que os impactos ambientais que afetam a
viabilidade da atividade produtiva foram também sentidos pelo restante
da sociedade,12 mesmo que historicamente a maioria da sociedade civil

12Na terminologia dos economistas ambientais, trata-se de uma externalidade


econômica, embora o termo não traduza a dimensão social e ética da degradação
ambiental.
127

tenha tido participação apenas discreta nos resultados do


desenvolvimento (ou seja, com a degradação do meio ambiente, as
injustiças econômicas passam a ser igualmente injustiças sociais).
A resposta neoliberal, além de não alterar os alicerces de longo
prazo da exploração conjunta de sociedade e natureza, oportuniza ainda
o surgimento de novas alternativas para a acumulação de capital, como o
Protocolo Verde, lançado em 1995, um dispositivo que buscou
“implementar mecanismos financeiros que complementassem e, ao
mesmo tempo, criassem sinergias com a legislação ambiental existente”
(Alimonda e Leão, 2005: 21). Por outra parte, o avanço neoliberal sobre a
natureza não pode ser visto como um fenômeno linear ou uniforme, mas
como um processo em franco andamento e altamente sujeito a
contestação e ajustes (Castree, 2008). No Brasil, a expansão neoliberal
nunca serviu de empecilho para que os ramos mais tradicionais da
economia pudessem continuar sem inflexões significativas (como no caso
da expansão industrial em estados que agressivamente oferecem
incentivos fiscais e regulatórios). Nos últimos anos, consolidou-se uma
verdadeira dualidade entre as políticas públicas e a atuação das agências
governamentais, na medida em que tanto se apregoam restrições a
determinadas atividades em uma dada área geográfica, quanto se
estimulam as mesmas atividades em regiões onde a resistência política
seja menor. A franca expansão do agronegócio em Mato Grosso talvez
seja o melhor exemplo de tecnologias tidas como obsoletas (quanto a seu
alto nível de impacto ambiental), mas ainda perfeitamente viáveis em um
mundo assimétrico e cada vez mais globalizado. Esse dualismo
institucionalizado encontra guarida em publicações oficiais que tanto
denunciam os impactos negativos do crescimento econômico, quanto
exortam os agentes produtivos tradicionais (e.g. agricultura) a
aumentarem a rentabilidade e reforçarem as vantagens comparativas já
consolidadas (MMA, 2006). Necessita ser esclarecido como os recursos
hídricos passaram a fazer parte desse processo dual (i.e. ao mesmo tempo
liberal e controlador) da agenda econômica contemporânea.
A complexa relação entre neoliberalismo e meio ambiente — na
prática, uma verdadeira mistura de renovação e continuidade — tem
servido como a linha mestra das reformas institucionais voltadas ao uso e
à conservação de recursos hídricos no Brasil. Em 1995, na esteira da
reforma do Estado (Soares, 2005), o mesmo governo do Plano Real incluiu
na estrutura ministerial a pasta de Meio Ambiente e Recursos Hídricos.13
Os primeiros anos da Secretaria de Recursos Hídricos, criada na estrutura
do novo ministério, foram dedicados à negociação em torno do redesenho
da base jurídica. Os primórdios do novo arcabouço legal surgiram ainda
na década de 1980, quando um grupo de técnicos e servidores públicos,

13 O nome oficial do novo ministério, sucessor da Sema do período militar, passou


a ser Ministério do Meio Ambiente, dos Recursos Hídricos e da Amazônia Legal.
128

inicialmente em São Paulo, e em reuniões da Associação Brasileira de


Recursos Hídricos, começou a pressionar por mudanças (para uma das
primeiras versões da nova estrutura administrativa, ver Dnaee, 1986).
Após vários anos de tramitação e diferentes anteprojetos, a Lei da
Política Nacional de Recursos Hídricos (lei 9433) foi promulgada em 1997
como sucessora do Código de Águas.14 A nova doutrina (Rebouças et al.,
1999) incorporou diversos preceitos da metodologia internacional de
gestão integrada cada vez mais preconizada por agências multilaterais de
fomento (Conca, 2006). Os eixos da nova lei versam sobre a necessidade
de autorizar previamente a utilização da água (através do instrumento da
outorga), o pagamento de taxas equivalentes ao impacto ambiental
causado pelo uso (i.e. princípio do poluidor-pagador ou usuário-
pagador) e a constituição de comitês de bacias hidrográficas (os
chamados “parlamentos da água”). Em sua primeira década de vigência,
mais de 140 comitês foram organizados e cerca de 10 mil profissionais
passaram a trabalhar na implementação do Sistema Nacional de Gestão
de Recursos Hídricos (SINGREH), proclamado por seus próprios gestores
como entre os “melhores do mundo” (Braga et al., 2008).
A justificativa moral e política para a nova configuração
institucional baseia-se principalmente no conceito de escassez de recursos
(tal conceito, obviamente, é também o princípio norteador da própria
ciência econômica e, em particular, da economia ambiental). Como
instrumento de legitimação junto à opinião pública, as novas políticas
fazem referências simbólicas à escassez de água no Nordeste (na verdade,
um problema agrário, muito mais do que hidrológico), a conflitos no
Oriente Médio (decorrente de racismo, geopolítica e dominação
econômica) ou à poluição dos rios (muito mais um problema de
urbanização caótica). Essa centralidade da noção de escassez para a
introdução do novo marco regulatório de recursos hídricos não é mera
coincidência, mas permite que toda uma racionalidade de viés ainda mais
explicitamente capitalista seja sobreposta aos procedimentos de uso e
conservação.15 Porém, escassez e abundância não são conceitos absolutos,
mas somente fazem sentido em um contexto social e cultural específico,
muitas vezes organizado de forma a permitir o funcionamento de
mercados (Harvey, 1973). Assim, a proclamada escassez de recursos
hídricos no Brasil contemporâneo é o resultado de um processo de
exploração do meio ambiente a serviço de um desenvolvimento desigual
implantado ao longo de sua história socioeconômica.
Seria preciso um espaço editorial quase infinito para listar todas
as publicações, comunicações em congressos e dissertações que, sem o

14 Em termos de regulação de serviços, o Código de Águas foi sucedido pela Lei


de Concessões de 1995.
15 Trata-se aqui da transição do recurso hídrico como mero repositório de “valor

de uso” para detentor, em si mesmo, de “valor de troca” (ver discussão anterior).


Sobre a racionalidade capitalista, ver Lukács (1971).
129

devido cuidado analítico, celebram as ditas vantagens da nova legislação


brasileira, mas o fazem em contraste com uma realidade de arraigados
problemas socioambientais. Embora tenha sido apresentada como um
marco de cidadania e conquista popular, a lei 9433 nada mais é do que
uma tentativa de respostas circunstanciais a problemas acumulados ao
longo de décadas em razão das contradições da própria atividade
produtiva. Pelo menos quatro áreas demonstram a afiliação das reformas
institucionais no setor de recursos hídricos com os ajustes político-
administrativos mais gerais em andamento no país. Primeiramente, cabe
reconhecer que o novo modelo produziu uma ampla burocratização da
percepção dos problemas e um cientificismo artificial na formulação de
respostas. Para uma questão poder ser reconhecida pelo sistema oficial, é
antes necessária sua transcrição em termos hidrológicos e tecnocráticos, o
que serve como excelente caldo de cultura para a proliferação de
consultorias e a ação de lobistas (para a relação entre gestão integrada e
corrupção, ver Transparency International, 2008). Da mesma forma, o
processo de implantação dos comitês e instrumentos de gestão depende
quase sempre de apoio financeiro e aprovação política por parte do órgão
hegemônico do sistema, a Agência Nacional de Águas (ANA).
Formalmente, os comitês estabeleceram uma arena democrática e
descentralizadora, mas na prática têm constituído mecanismos rígidos,
hierarquizados e que servem aos grupos com maior força política
(Valêncio e Martins, 2004). A subordinação a interesses dominantes
ocorre não somente no SINGREH, mas o próprio sistema ocupa posição
subalterna na estrutura de governança. As decisões mais estratégicas e
com maior impacto sobre os recursos hídricos continuam nas mãos de
outras instâncias políticas, notadamente a equipe econômica do governo,
como aconteceu no caso da transposição do rio São Francisco em 2005 e
das novas hidrelétricas no rio Madeira em 2007. A tendência de impor ao
SINGREH as prioridades do crescimento econômico é demonstrada pela
implantação do Plano 2010 da Eletrobrás, que prevê 297 locais para a
instalação de novas usinas no país, como renovadas oportunidades para
os operadores privados (ver a seguir), sendo que 79 das obras previstas se
localizam na Amazônia, especialmente ao longo do Rio Madeira, em
formadores do Tapajós e nos Rios Xingu e Tocantins.
As consequências negativas das hidrelétricas são tipicamente
enquadradas na metodologia utilitarista de análise de custo-benefício
(ANEEL, 2002). Ou seja, basta quantificar ganhos e perdas (por meio de
técnicas de valoração ambiental) para supostamente definir o nível mais
adequado de compensação de impactos socioambientais. O preocupante é
que tais procedimentos de análise são apresentados como científicos e
objetivos, mas servem na verdade para ignorar as diferenças políticas e
sociais que influenciam a aprovação dos novos projetos. O meio ambiente
fica sujeito a uma posição definida a priori por aqueles encarregados da
avaliação de projetos, no sentido de que o
130

“jogo político de interesses ocorre no âmbito de um paradigma de


adequação destinado a viabilizar o projeto técnico, incorporando-lhe
algumas “externalidades” ambientais e sociais na forma de medidas
mitigadoras e compensatórias, desde que essas, obviamente, não
inviabilizem o projeto do ponto de vista econômico-orçamentário.”
(Zhouri et al., 2005: 97).

Outrossim, a cobrança pelo uso da água, um dos principais


instrumentos do novo modelo regulatório, ao invés de se tornar um
incentivador da conservação ambiental e da realocação de recursos, vem
operando como ratificadora do processo mais geral de comodificação da
natureza (Ioris, 2007b). A cobrança tem servido para ampliar a
racionalidade ligada ao fetichismo das mercadorias, que resulta de uma
reificação das relações sociais e socionaturais, imposta justamente pela
condição de classe (Lukács, 1971). Isso é demonstrado ao se constatar que
a maioria dos novos comitês de bacias hidrográficas teve suas atividades
dominadas pela controvérsia em torno da introdução da cobrança, como
no caso do Ceivap no rio Paraíba do Sul (Formiga-Johnsson et al., 2007),
em uma queda de braço entre os setores econômicos e funcionários do
governo que pouco diz respeito aos interesses dos outros membros do
comitê. Além disso, em vez de servir para recuperar a condição dos
corpos-d’água, os valores arrecadados com a cobrança no Paraíba do Sul,
uma das mais paradigmáticas experiências no país, tem servido a projetos
isolados, sem maior repercussão ambiental, mas ainda assim objetos de
disputa acirrada entre prefeitos, ONGs e empreiteiros. Colateralmente, a
cobrança opera como legitimador de atividades historicamente
responsáveis pela produção de impactos ambientais na bacia
hidrográfica, as quais encontram nesse instrumento uma justificativa
política para evitar um controle mais rigoroso por parte dos reguladores
ambientais (Ioris, 2008).16 Ao mesmo tempo, as empresas utilizam o
pagamento da cobrança pelo uso da água no Paraíba do Sul como
propaganda para melhorar sua imagem pública de responsabilidade
ambiental (Féres et al., 2005). A transformação simbólica e material da
água em mercadoria detentora de valor monetário em si mesma é
facilitada pela associação da cobrança a outros instrumentos de
financiamento, como no caso do Programa de Despoluição de Bacias
Hidrográficas (Prodes), da ANA, e o Pacto pelo Saneamento, no Rio de
Janeiro.
Além de reformas na estrutura regulatória e valoração monetária
dos recursos hídricos, a privatização de empresas públicas de água e

16A utilização da taxas de recursos hídricos como ferramenta legitimadora de


práticas estabelecidas não constitui nenhuma novidade; por exemplo, Trawick
(2003) relata o caso peruano onde os atores econômicos dominantes aceitaram a
introdução da cobrança para garantir o abastecimento de água a grande fazendas.
131

energia elétrica também representou um importante passo da escalada


neoliberal sobre as águas no Brasil.17 O programa de desestatização
brasileiro — tendo em conta todos os setores da atividade estatal —
encontra-se entre os maiores do mundo, com uma transferência, desde a
década de 1990, de aproximadamente de US$ 100 bilhões de ativos de
empresas públicas a operadores privados, seja na forma de venda
completa ou de contratos de concessão. 18 Ao redor de 40% da geração
hidrelétrica e grande parte da distribuição foram privatizados,
totalizando um pagamento de US$ 23,5 bilhões (metade desse valor
financiado pelo banco estatal BNDES).
A privatização no setor hidrelétrico foi facilitada pela redução
prévia de investimentos públicos (i.e. com menos investimentos, a
qualidade do serviço se deteriorou e a oposição à privatização reduziu),
por cláusulas contratuais que protegeram os operadores contra flutuações
cambiais, por reajustes de tarifas acima da inflação e pela remoção de
subsídios a famílias de baixa renda (Pistonesi, 2005, ap. Solanes e
Jouravlev, 2006). Desde 2003, o governo Lula interrompeu a agenda
formal de privatizações, mas ao mesmo tempo aprovou no Congresso
Nacional a lei 10.079/2004, que regulamenta a formação de parceria
público-privada (PPP), mecanismo que se tornou a nova face da
privatização na América Latina (Isto É, 11 de janeiro de 2006). Em parceria
com o Banco Mundial, agências de desenvolvimento regional passaram
até a considerar a formação de PPPs como uma estratégia dinamizadora
da irrigação no Semiárido (Codevasf, 2006). A experiência internacional,
porém, demonstra que as expectativas com adoção de PPPs nos serviços
públicos de água têm sido largamente frustradas, devido tanto à
vulnerabilidade quanto a choques macroeconômicos e oportunismo
político (Braadbaart, 2005).
Em contraste com o que se passou no setor elétrico, a privatização
do abastecimento de água e saneamento foi mais modesta,
particularmente em função de pendências legais e da resistência
organizada por entidades públicas e representações de consumidores.
Além de ser um setor menos diretamente ligado à atividade econômica
do que irrigação e hidreletricidade (para uma discussão do contexto
mundial, ver Holland, 2005), no Brasil existe uma dualidade
administrativa: enquanto a competência constitucional reside nos
municípios, na maioria dos casos o poder estadual é de fato quem opera o

17 Segundo Heynen e Robbins (2005), a neoliberalização da natureza ocorre por


meio da imposição de uma estrutura de governança, da valoração monetária de
processos ecológicos, da apropriação de recursos comuns (commons) e da
privatização de recursos ou serviços públicos.
18 A privatização pode ser comparada à acumulação primitiva do começo do

capitalismo e que Harvey (2003) define como “acumulação por desapossamento”


(accumulation by dispossession).
132

serviço19. O resultado foi uma privatização até o momento de apenas 3%


do serviço brasileiro de água e esgoto, o que corresponde ao atendimento
de 5% da população nacional (Britto e Silva, 2006). 20 A grande
oportunidade vislumbrada pelos operadores privados esteve relacionada
à extinção dos contratos entre prefeituras e as empresas estaduais,
formalizados no âmbito do Planasa. Dado o contexto neoliberal dos anos
1990, diversos prefeitos e alguns governadores agiram no sentido de não
renovar os contratos, mas conceder os serviços a interessados privados,
muitos controlados por empresas estrangeiras. Como no caso da
hidreletricidade, a privatização foi também favorecida pela redução de
investimentos públicos: entre 1995 e 1998, apenas R$ 1,8 bilhão de fundos
do FGTS foi investido, ao passo que R$ 7,4 bilhões foram recebidos como
pagamentos por empréstimos anteriores, o que significou um saldo de R$
5,7 bilhões retidos nos cofres do governo federal (Oliveira Filho, 2006).
De maneira geral, a privatização dos serviços de água no Brasil
esteve diretamente associada a diversos conflitos entre operadores,
reguladores públicos e usuários. Nas cidades onde houve privatização
dos serviços, o processo pecou por uma notória falta de transparência e
frequentes aumentos nas tarifas cobradas (como no caso de Limeira, em
São Paulo, onde a taxa de conexão aumentou de 65% a 176% do salário
mínimo depois da concessão dos serviços; cf. Vargas, 2005). Como
abordado por Swyngedouw (2005), a transição de um modelo de controle
da água centrado no Estado para uma operação privada significa um
verdadeiro pacto faustiano voltado à consolidação de um estalinismo de
mercado e que leva à exclusão de modos alternativos de atendimento das
demandas socionaturais.
Finalmente, cabe mencionar procedimentos menos óbvios de
comodificação dos recursos hídricos, por exemplo, a identificação de uma
pretensa vocação da economia brasileira como exportadora de água
virtual, ou seja, a água necessária para produção de grãos e mercadorias.
Defendido como um mecanismo de equalização hidrológica por
intermédio do mercado internacional, o conceito de água virtual apenas
transfere desequilíbrios e carências socionaturais, que são politicamente
criados, para a arena mercantil, sem qualquer resolução dos problemas de
fundo (Ioris, 2004). Da mesma forma, há um crescente entusiasmo pelo
pagamento de serviços ambientais, no que se incluem a proteção contra
erosão do solo e a manutenção do suprimento de água, baseado no
princípio de que todos que se beneficiam de um mesmo ecossistema
devem estar preparados para fazer pagamentos diretos àqueles que de

19 Essedesajuste é reproduzido no próprio setor de gestão de recursos hídricos, no


qual o poder outorgante e regulator compete à União e aos estados, conquanto os
municípios têm papel apenas periférico.
20 A legislação de saneamento aprovada em 2007 (lei 11.445) , ao mesmo tempo

que defende o direito básico a um serviço condizente, também incentiva a


formação de PPPs (Alves, 2008).
133

alguma forma mantêm a estrutura física e ecológica do meio natural


(Kosoy et al., 2007). Por exemplo, a manutenção de uma área vegetada a
montante passaria a ser objeto de pagamento pelos usuários de água a
jusante, que se beneficiam da floresta como garantia da vazão
hidrológica.
Para que o pagamento se torne realidade, é preciso estimar o
valor monetário desse serviço ambiental (empregando técnicas de
valoração ambiental e análise de custo-benefício). Apesar das
dificuldades e inconsistências para realizar tais estimativas, existem
experiências concretas em andamento no país, como o Programa
Produtor de Água da ANA, introduzido no município de Extrema (SP)
para compensar os proprietários de terra em uma bacia hidrográfica onde
há captação de água para a cidade de São Paulo. A aparente vantagem do
pagamento pelos serviços ambientais foi também prontamente percebida
pelos legisladores através de dois projetos de lei que tratam da matéria
(142/2007 no Senado e 792/2007 na Câmara, ambos em tramitação
parlamentar em maio de 2010).
À primeira vista, há a impressão de que a certificação e o
pagamento de serviços ambientais podem tornar os atores sociais mais
conscientes do valor ecológico dos ecossistemas (Silvano et al., 2005).
Contudo, onde o procedimento foi adotado os resultados de longo prazo
demonstram que o sucesso é limitado ou nulo. Em primeiro lugar, é
bastante difícil identificar o provedor do serviço e relacioná-lo aos
supostos beneficiários (Wunder, 2007), o que acarreta altos custos de
transação e mesmo situações nas quais a pobreza chegou a aumentar
depois de adotado esse sistema (Kerr et al., 2007). Segundo, o pagamento
somente funciona em situações nas quais a ameaça de degradação ou
problema ambiental é muito alta, já que o pagador exige uma prova de
que estão sendo beneficiados pelo comportamento dos provedores; essa
dificuldade pode levar a uma fabricação artificial de riscos ambientais, o
que somente tumultuaria a gestão mais geral da bacia hidrográfica.
Terceiro, nos poucos casos em que foi testado, o valor do pagamento não
decorreu de negociações entre atores econômicos, mas foi definido pelo
interesse de algumas firmas e pela influência da regulação ambiental
(Robertson, 2007). Por último, e mais importante, o pagamento pelos
serviços ambientais está baseado na hipótese de que as populações locais
são incapazes de perceber a importância de conservar os recursos comuns
e que apenas tomariam uma atitude responsável se recebessem uma
forma de incentivo, ou propina, em dinheiro — tal parece ser o
argumento de Vosti e colaboradores (2003) quanto à proteção da Bacia
Amazônica. Ignora-se, assim, a longa interação dos grupos sociais com
seu ambiente mais imediato, ao mesmo tempo em que se desprezam
pressões econômicas e políticas mais amplas. A adoção do pagamento
pelos serviços ambientais, ao instituir a propriedade privada sobre
134

processos ecológicos dissociados da esfera do mercado, agudiza a fonte


central das contradições econômicas do regime capitalista.
Obviamente, os atores sociais não assistem passivamente aos
processos de comodificação e privatização promovidos pela onda
neoliberal. Pelo contrário, é possível identificar reações e protestos em
diferentes níveis, como no âmbito dos movimentos sociais organizados. O
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e mais
especificamente o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) têm
enfrentado de forma crítica e contundente o predomínio de uma
ideologia economicista aplicada à gestão de recursos hídricos,
relacionando os problemas técnicos e ambientais a uma luta mais ampla
contra injustiças urbanas e rurais. A internet, por exemplo, passou a ser
uma ferramenta importante de comunicação e mobilização, facilitando a
troca de experiências entre organizações locais e parceiros nacionais e
internacionais.
Conforme Burity (2008), a globalização tanto aprofunda uma
situação de naturalização das desigualdades como possibilita reações
vinculadas a aspectos culturais e territoriais da vida social. Ou seja, a
complexidade da globalização, ao passo que aumenta as pressões de
mercado, também favorece a emergência de novas formas de protesto
organizado. Portanto, devem-se evitar posturas maniqueístas em relação
ao debate sobre as reformas de gestão de recursos hídricos, como se esse
não tivessem nada a contribuir para a resolução de problemas locais.
Mesmo assim, dada a conexão geográfica das pressões econômicas e dos
processos de dominação política, repostas mais efetivas às questões da
água dependem de um entendimento das causas históricas da exploração
social e da degradação hidrológica que ocorrem no nível local, mas
também de um diálogo criativo com experiências congêneres em outras
partes do mundo.
Uma localidade onde se faz particularmente necessária a
aproximação crítica entre os problemas locais de recursos hídricos e as
tendências excludentes do desenvolvimento é a Baixada Fluminense, na
Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Apesar de diversos projetos de
infraestrutura hídrica nos últimos 25 anos, os crônicos problemas de
gestão de recursos hídricos atingiram níveis alarmantes. Mesmo sem uma
avaliação objetiva pelo poder público do insucesso dos diversos projetos
anteriores, novas intervenções de saneamento básico e recuperação dos
cursos de água foram previstas no âmbito do Programa de Aceleração do
Crescimento (PAC) em 2007. O discurso oficial vangloria-se da adoção de
medidas inovadoras que tornam a população protagonista das decisões
relacionadas aos novos projetos. Porém, em pesquisa de campo
conduzida em 2008, pudemos verificar que o relacionamento do poder
público com as comunidades locais mantém, em larga medida, uma
rigidez de procedimentos e manifesta verticalização de oportunidades
(Ioris e Costa, 2009). O foco dos trabalhos permanece restrito a detalhes
135

técnicos, enquanto o diálogo com a população local — mesmo nos casos


onde as obras de infraestrutura hídrica implicarão a perda da residência
familiar — foi delegado a assistentes sociais subcontratados por ONGs,
que por sua vez foram contratadas por empreiteiras que prestam serviço
ao governo.
Enquanto isso, o da Baía de Guanabara e dos Sistemas Lagunares
de Maricá e Jacarepaguá, imposto pelo Decreto 38.260/2005, em
desacordo com a mobilização popular que surgia na zona oeste da baía
de Guanabara, demonstra imensas dificuldades para influenciar qualquer
iniciativa prevista pelo Estado.21 Mesmo projetos de grande impacto
hidrológico e ambiental, como o novo polo petroquímico (Comperj) e o
Arco Rodoviário Metropolitano, têm passado à margem das ações do
comitê. Por sua parte, as prefeituras permanecem avessas a desenvolver
parcerias que levem em conta o espaço compartilhado das bacias
hidrográficas. O resultado final é que a Baixada Fluminense,
originalmente caracterizada pela qualidade de seus rios, continua sendo
uma área onde a falta de água, e a poluição e as inundações recorrentes
definem a relação entre a sociedade e seus recursos hídricos.

Conclusões

Pode parecer quase axiomática a afirmação de que o uso


intensivo dos recursos hídricos desempenhou papel fundamental na
urbanização e no desenvolvimento agroindustrial brasileiro. Menos
evidentes, porém, são as causas fulcrais e os desdobramentos sociais dos
múltiplos problemas hoje existentes em grande parte das bacias
hidrográficas nacionais. Por trás de uma construção simbólica e
ideológica, o discurso hegemônico desconhece que a problemática
contemporânea de recursos hídricos resulta da apropriação de recursos
comuns a serviço de um desenvolvimento desigual e excludente. As
raízes essencialmente políticas de tais questões têm sido sistematicamente
minimizadas em razão de políticas públicas historicamente voltadas a
temas técnico-econômicos e à implementação de uma estrutura
hierarquizada de gestão. A retórica oficial tem empobrecido a qualidade
do debate ao descrever os problemas de degradação ambiental como
meras consequências da falta de investimentos tecnológicos ou fruto de
um comportamento individual (atomístico) irresponsável. O chamado
novo modelo institucional, introduzido pela Lei 9433 e influenciado pela
doxa internacional de gestão integrada de bacias, alardeia a necessidade

21 No caso da Baía de Guanabara, havia uma mobilização espontânea pela


formação de comitês locais nas zonas leste e oeste. Porém, por motivos político-
administrativos, o governo estadual determinou, de modo autoritário, a
constituição de um único comitê, responsável por praticamente toda a área
metropolitana do Rio de Janeiro, mas que possui pouca legitimidade política e
escassa representatividade.
136

de compatibilizar a demanda com a oferta de água, mas assim deixa de


reconhecer a influência de diferenças sociais e espaciais na composição da
demanda e na formação da oferta.
Metaforicamente, a evolução das políticas de recursos hídricos no
Brasil pode ser comparada ao fluxo de sedimentos em um sistema
hidrológico, conforme descrito pelos geomorfologistas. Existe um
equilíbrio dinâmico e instável, em que fases de metaestabilidade são
seguidas de momentos de rápida mudança (tecnicamente descrito como o
jerky conveyor belt dos sedimentos). Analogamente, em meio a uma
tendência de apropriação dos recursos hídricos para geração de lucro
privado (tal qual uma metaestabilidade), surgem momentos de mudança
associados à introdução de novos textos legais, em especial o código de
1934 e a lei de 1997, que causam uma alteração momentânea sem que a
tendência de longo prazo se altere.
Como descrito nas páginas anteriores, houve diferenças históricas
evidentes no uso dos recursos hídricos entre as fases predominantemente
agrícola, industrial e neoliberal, mas da mesma forma persiste uma linha
de continuidade com a permanente conversão de atributos hidrológicos
em fonte de acumulação privada e desigual. Há um sem-fim de exemplos
que demonstra como esse vetor dominante de exploração dos recursos
hídricos se mantém intacto no alvorecer do Século XXI, como na
argumentação de Alegria (2008), na qual a fartura de água é mencionada
como uma das mais importantes vantagens comparativas da maior
economia emergente da América do Sul (mesmo ignorando que grande
parte dessas reservas está na Amazônia), o que torna o país uma
verdadeira potência azul (blue power).
Daí a necessidade de construir uma análise crítica capaz de
interpretar os problemas de gestão dentro de um contexto de
desigualdades políticas e socioeconômicas. As questões de recursos
hídricos decorrem (ou são produzidas, como sugere o título deste texto)
de determinada postura civilizacional em relação à natureza e aos grupos
sociais marginalizados. O uso dos recursos hídricos seja como matéria-
prima ou como potencial hidrelétrico e meio de transporte esteve a
serviço de um processo de acumulação econômica verticalizado e
excludente. Donde se deduz que as distorções no uso desses recursos
estão na verdade inseridas no próprio conceito de desenvolvimento e,
através da recente reforma institucional, reafirmadas em tentativas sub-
reptícias de tornar aceitáveis e até lucrativos os impactos desse mesmo
desenvolvimento. Não há como compreender a origem e as tendências
dos problemas socioambientais sem estabelecer uma relação
epistemológica e ontológica entre passado, presente e futuro, assim como
entre demandas locais, interações dentro da bacia hidrográfica e os efeitos
de processos nacionais e internacionais. Pensar em uma gestão
sustentável de recursos hídricos requer uma visão politizada das causas e
137

consequências de procedimentos e tecnologias, um entendimento das


nuanças da correlação de forças entre grupos sociais antagônicos.
Há aqui repercussões fundamentais para o trabalho acadêmico,
que deve empregar um ferramental investigativo adequado para decifrar
a materialidade e o simbolismo das questões da água e sua relação com o
desenvolvimento nacional. Propõe-se uma pesquisa não apenas
descritiva, ou isolada em si mesma, mas capaz de compreender o uso e a
conservação dos recursos hídricos como partes de um processo que
reflete particularidades locais, sociais e culturais. É importante não perder
de vista que a história dos recursos hídricos é construída, dia a dia, por
pessoas e grupos sociais que têm uma relação autônoma e criativa com
seu mundo, que expressa interesses e reagem de várias maneiras e por
diversos canais de protesto. A percepção dos problemas e a formulação
de soluções às questões da água passam pela aparente contradição entre,
de um lado, a liberdade individual e a imprevisibilidade da ação humana
e, de outro, a determinação e a previsibilidade da ação coletiva. 22 A
reação política aos problemas, sempre que possível, aproveita e expande
as oportunidades que surgem dentro do próprio sistema oficial de gestão,
como com o estabelecimento da Década da Água, no Brasil e no mundo,
entre 2005 e 2015. O caminho de uma pesquisa acadêmica comprometida
com a construção democrática é buscar, entre as pressões do crescimento
econômico e da abertura de novas estratégias de acumulação de capital
por meio da modernização ecológica, a “terceira margem” do rio,
parafraseando Guimarães Rosa, que parece absurda e inatingível, mas
que está bem perto, ainda que no meio da correnteza.

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143

Capítulo 7

Levando o Debate para a Grande Mídia

A Quem Serve a Transposição do Rio São Francisco?

Repetidas vezes surgem opiniões dos defensores da transposição


do Rio São Francisco como a solução mágica para a seca nordestina. Tais
argumentos carecem, porém, de uma análise mais profunda entre quem
ganha e quem perde com a transposição. É preciso que se diga,
inicialmente, que defender e agir pelas mais elevadas causas sociais
deveria ser sempre a motivação de todos os atos políticos. Mas,
infelizmente, muitas vezes se percebe que há outras razões muito menos
nobres conduzindo os governantes a colocar suas assinaturas em
contratos que favorecem interesses de grupos, ao invés da coletividade.
Assim, soluções milagrosas que são propostas ao povo brasileiro, ou que
se executam mesmo sem sua concordância, nada mais significam que
“mudar pra tudo continuar como era antes”.
Discordo em essência e em forma da transposição como a solução
redentora para o problema da seca no Nordeste. Não cabe aqui neste
espaço jornalístico fazer citações técnicas ou acadêmicas, mas abundam
estudos demonstrando que este tipo de "obra hidráulica-mamute"
significa, numa avaliação criteriosa, pouca eficiência econômica,
desperdício de recursos financeiros e esforços humanos, marginal ou
nulos benefícios sociais e terríveis impactos ambientais (a propósito, os
Estudos de Impacto Ambiental já realizados sobre a transposição foram
executados sob forte pressão política e suas conclusões são muito
questionáveis). Não é difícil verificar casos de ineficiência e
favorecimentos eleitoreiris nos perímetros de irrigação pública já em
operação no Nordeste para se assustar com essa realidade. Desde que
Dom Pedro II decidiu "resolver o drama da seca até a última joia da
coroa" os resultados de mais de 100 anos de obras e barragens no
semiárido nordestino são meramente pífios.
A grave questão da seca no Nordeste tem muitas causas, mas
certamente falta de água não é a maior, nem a mais importante. Chove, e
muito, na região, ainda que de modo irregular e concentrado. Há locais
no mundo onde com mutíssimo menos água, mas sem necessariamente se
fazer uso de soluções faraônicas, é praticada uma agricultura de sucesso.
O problema da seca consiste basicamente na inadequação das práticas
humanas à natureza e ao clima. Para se chegar a uma economia
sustentável no semiárido, é necessário, então, que se entenda e se conviva
com o meio ambiente, e não o contrário, tentando mudar a geografia por
decreto. Já existem e inclusive são praticadas no próprio Nordeste (mas
sem a prioridade que mereceriam) muitas técnicas eficientes e melhor
144

adaptadas para a utilização racional dos recursos hídricos, como


barragens subterrâneas, irrigação localizada, cultivares de plantas mais
adaptadas, práticas agrícolas de conservação de solo e umidade, coleta de
água da chuva, reuso da água, entre várias outras, que custam muito
menos e têm muito melhor oportunidade de serem assimiladas e
compreendidas pelas populações locais. À medida que se entenda e
assimile o real valor econômico da água, ganhos em eficiência serão a
chave do sucesso. Hoje se pesquisa intensamente a adoção da chamada
“irrigação deficitária,” ou seja, fornecer menor lâmina de água às plantas
e diminuir a produção final, porém com aumento na eficiência de uso da
água por unidade de colheita. Outros países com renda per capita muito
mais baixa que o Nordeste brasileiro estão implementando
financiamentos do tipo "microcrédito" para investimentos em construções
hidráulicas comunitárias, o que demonstra ter uma eficiência econômica
muito superior à dos consideráveis gastos em obras tradicionais.
Mas o que realmente pode contribuir para se enfrentar a tragédia
da seca é uma mudança na estrutura de poder e na forma de governar.
Porque quem realmente sofre com as sistemáticas secas nordestinas (que
sempre encontram os governos federal e local "desavisados") são os
grupos sociais mais desprotegidos, dependentes de uma agricultura de
subsistência, e sem nenhuma reserva de capital para atravessar a estação
adversa. Nestas fases de comoção e improvisação, a elite nordestina
chega inclusive a acumular mais do que em tempos de maior
precipitação. Enfim, a seca é um bom negócio para quem manda. Porém,
é so observar com atenção para ver que a mesma oligarquia que se
beneficia dos disputados fundos de emergência durante as secas defende
agora os orçamentos da transposição. Mesmo a aparente contradição
entre os quatro Estados do sul (Bahia, Minas Gerais, Sergipe e Alagoas)
com os quatro Estados do norte (Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do
Norte e Ceará) nada mais é do que um desentendimento circunstancial. A
disputa é por quem leva mais na gastança de recursos públicos, usando
como apelo trágico pessoas sofrendo com a seca. Temos hoje este absurdo
de uma "indústria das secas globalizada," mas ainda valendo-se de
argumentos que a própria Confederação do Equador em 1824 propunha,
quando queria abastecer o Rio Jaguaribe de águas desviadas do São
Francisco. Enfim, as verdadeiras causas dos dramas do Nordeste e que
resultam nessa "seca geopolítica" são muito conhecidas: o latifúndio e as
disputas oligárquicas.
Podemos observar exemplos de outros locais onde já foram feitas
semelhantes transferências interbacias hidrográficas. O caso mais clássico
vem dos Estados Unidos, onde o Bureau of Reclamation e o Army Corps
of Engineers passaram todo o Século 20 esbanjando recursos dos
contribuíntes para prover água subsidiada a uma agricultura de luxo, e
mais das vezes construíndo obras para simplesmente atender a uma
competência entre as duas agências. Cometeram todos os pecados que a
145

engenharia lhes permitia, dizimaram tribos indígenas e populações de


salmão, e trouxeram sistemáticos prejuízos aos mexicanos. O delírio
hidráulico do Oeste Americano só tem paralelo com os reinos orientais da
história antiga, que pereceram e foram sepulados por problemas
insolúveis até os dias de hoje, como desertificação, salinização e fome.
Agora, para escândalo de lobistas e empreiteiros de plantão em
Washington e em Brasília, muitas barragens e áreas de irrigação estão
sendo abandonadas no Oeste Americano, onde a oposição aos
megaprojetos é cada vez mais forte. É uma história impressionante, mas
pedagógica.
Equívocos comparáveis tiveram e têm os programas de
desenvolvimento hidráulico do Egito, Líbia, Índia, Rússia, Usbequistão,
China, Zâmbia, Zimbabue, Malásia, Paquistão, África do Sul, Lesoto, para
citar somente alguns, com casos de corrupção, comunidades locais
penalizadas, desastrosas práticas agrícolas, poluição e degradação dos
corpos hídricos. Sempre tecnocratas que fingem desconhecer os
problemas sociais e ambientais relacionados com obras hidráulicas.
Olhemos o que foram os dramas sociais causados pela construção da
barragem de Itaparica, no próprio Rio São Francisco, que levou o Banco
Mundial a se arrepender amargamente e considerar esta obra entre os
grandes equívocos de financiamento do banco no mundo (há outro
estudo do Banco Mundial que adverte que a cada 1.000 dólares
destinados ao combate da seca no Nordeste, somente 40 chegam às mãos
das pessoas flageladas!). No Brasil, como um todo, a CPI das Obras
Públicas em 1995 identificou 2.214 obras inacabadas e abandonadas,
significando prejuízos superiores a 15 bilhões de dólares.
Já há indícios mais do que suficientes para se concluir que não só
a humanidade muda, mas também o clima caminha para um
aquecimento global em função, principalmente, do consumo de
combustíveis fósseis. As consequências são difíceis de prever, mas as
enchentes que aconteceram na Venezuela no final de 1999 podem ser uma
indicação do que virá a acontecer em poucas décadas. Neste contexto, a
solução de transpor as águas de um rio tão particular como o São
Francisco resultará em impactos ambientais e sociais nunca antes vistos,
mas pode se tornar inócua frente a novos padrões climáticos.
Em conclusão, é preciso que se modifique o modo de se fazer
políticas públicas no setor de recursos hídricos. Na complexidade e
inconstância do mundo e dos mercados mundiais, não se pode deixar de
ouvir o que pensam as pessoas que sofrem com a falta de água, serão o
alvo dos projetos ou serão castigadas por construções mal concebidas.
Descentralizar decisões pode não ser fácil, mas tem a sábia vantagem de
partilhar acertos e erros. O Brasil tem uma responsabilidade mundial
muito grande por contar com 12% das águas doces disponívies no
planeta, ainda que cada vez mais disputadas. Esta transposição,
gigantesca, faminta por energia para mover seu bombeamento, polêmica,
146

mas sem justificativa palpável, está completament na contramão do


gerenciamento moderno e eficiente de recursos hídricos. Difícil ver o
desenvolvimento sustentável e os usos múltiplos dos recursos hídricos
serem conseguidos sem mudanças mais amplas e profundas do que o
desvio de um rio. - Ou depois, quando se derem conta de que esta
transposição não resolveu o problema da seca, vão querer trazer água da
Amazônia, à semelhança de outros planos mirabolantes de transposição
do Alasca para Los Angeles ou do Mekong e Ganges para Pequim?

Água, Sede e Poder.

22 de Março: Dia Mundial da Água. Uma data


internacionalmente dedicada a se comemorar o valor da água e discutir
os problemas relacionados ao uso e conservação dos recursos hídricos. É
interessante notar que nos últimos anos o debate sobre a água tem
ocupado muito mais espaço do que apenas a data oficial de
comemoração. A água passou a ser um tema popular e de grande apelo
emocional. Chama a atenção o número de relatórios, conferências e
campanhas voltadas à problemática da água. Além do poder público, das
agências internacionais e organizações civis, a imprensa tem contribuído
quase que diariamente com manchetes e reportagens de grande impacto.
Tornou-se praticamente lugar comum denunciar a degradação de rios,
lagos e aquíferos. À primeira vista, tem-se a impressão de que já existe
suficiente conscientização para a necessidade de tratar melhor nossos
recursos hídricos. Contudo, o leitor mais atencioso provavelmente deve
estar ainda se perguntando: afinal, a situação da água tem melhorado ou
piorado no Brasil? Temos algo a celebrar ou as dramáticas cenas de seca,
enchentes, poluição e insalubridade vão continuar a inundar as telas da
minha televisão e do meu computador? Como a maioria das questões
ambientais, as respostas a tais perguntas são complexas e sujeitas a uma
boa dose de controvérsia. O que segue é apenas uma visão pessoal e um
convite ao debate.
Em primeiro lugar, não pode ser negado que a sociedade ganha
com a crescente discussão e tomada de consciência sobre os problemas da
água. Mesmo que muitas das campanhas de mobilização façam mais
alarde do que oferecer uma análise séria, pelo menos se criam condições
para gradualmente discutir o assunto de modo mais aprofundado. Na
verdade, é preciso dar um passo adiante e apontar as causas políticas e
econômicas dos ainda graves problemas de gestão de água.
Especialmente no Brasil, país que tem as maiores vazões hidrológicas do
mundo, torna-se fundamental entender que abundância e escassez de
água são conceitos puramente sociológicos, já que as diferentes
comunidades ecológicas são sistemas inteiramente adaptados à
quantidade de água disponível em cada situação. Ou seja, a Amazônia
147

conta com muito maior disponibilidade de água do que o Sul e o


Nordeste, mas a sustentabilidade dos ecossistemas depende dos níveis de
precipitação e evaporação típicos de cada região. O que se chama de
excesso ou falta de água nada mais é do que resultado da degradação
ambiental ou consequência da injusta alocação de recursos entre os
diversos grupos sociais. Os problemas de gestão de água são temas
essencialmente políticos, já que nem todos se beneficiam ou são atingidos
da mesma maneira. Diferenças sociais são refletidas na relação da
sociedade com o meio ambiente através do que se denomina na
bibliografia internacional de um ‘ambiente politizado’. Ou seja, as
relações desiguais de poder entre diferentes setores da população se
manifestam claramente na paisagem e na forma como o meio ambiente se
modifica.
Assim como na história dos países industrializados, a
modernização econômica do Brasil dependeu e depende, em boa medida,
do controle dos recursos hídricos, em especial no que diz respeito à
construção de grandes barragens para geração de energia, irrigação e
abastecimento urbano. Desde meados do Século 20, a febre da
industrialização vendeu a imagem de que obras e barragens eram
necessárias e beneficiariam a todos. Desse modo, quanto mais obras e
mais engenharia, melhor! A capacidade hidroelétrica no Brasil cresceu de
370 MW em 1920 para cerca de 60.000 MW no final da década de 1990. A
área de irrigação, que era 400.000 hectares em 1950, passa de três milhões
nos dias de hoje. Contudo, apesar do discurso oficial, a maior parte dos
resultados desse esforço hidráulico ficou concentrada nas mãos de uma
pequena parcela da sociedade (empreiteiros, políticos, burocratas,
empresários e classes médias em grandes centros urbanos). Ao mesmo
tempo, a infraestrutura hidráulica foi implantada de modo autoritário e
produziu impactos socioambientais consideráveis: êxodo rural,
desalojamento de populações indígenas, destruição de ecossistemas,
alteração do regime hidrológico, e assim por diante.
Porém, o que a maioria das comemorações do Dia da Água não
menciona é que, enquanto que a elite política e econômica sempre faturou
com grandes obras, aos mais pobres coube sempre o osso mais duro da
geografia nacional. Encoberto agora sob o véu de um aparente consenso a
respeito da importância da água para todos, continua intacto o pesado
jogo de xadrez entre, de um lado, forças de mercado e racionalidade
tecnocrática, e, do outro lado do tabuleiro, resistências sociais e
ecológicas. Não é por acaso que as populações de menor renda têm até
hoje os piores serviços de água e esgoto (quando têm!), convivem de
perto com lixo e insalubridade, e sentem diretamente os impactos da
insegurança hídrica, seja na forma de inundações ou períodos de seca. No
semiárido, a irrigação continua ocupando a imaginação dos políticos e se
expande à custa de muito subsídio, proselitismo e desmando. O resultado
dessa irrigação demagógica sempre foi medíocre, já que a seca nordestina
148

continua atingindo a maioria da população que nunca teve e não tem


acesso à terra, já que o problema da seca no Nordeste é, na verdade, um
problema de falta de terra e de oportunidades sociopolíticas. A sábia
atitude do bispo Cappio, ao levantar dúvidas sobre as motivações da
malfadada transposição do São Francisco, veio enfatizar de modo
contundente como a questão da água está estreitamente relacionada à
cidadania e autonomia das populações locais. Aliás, o São Francisco
continua sendo um exemplo nítido de um ‘ambiente politizado’, o que se
reflete hoje mesmo na composição do ministério e nas brigas entre
caciques regionais (o mais recente capítulo envolve Geddel Lima, Bahia, e
Ciro Gomes, Ceará).
Neste ano de 2007, o Dia da Água tem um simbolismo especial no
Brasil, porque também se celebra a primeira década da nova legislação
dos Recursos Hídricos (Lei 9433). Essa lei tem sido aplaudida por definir
novos mecanismos de regulação ambiental, como emissão de outorga
(que é um tipo de licença) para alocar água entre os usuários, cobrança
pela captação de água, representação setorial e gestão por bacia
hidrográfica. Por causa da nova lei, o Brasil conta hoje com uma extensa
estrutura administrativa voltada a políticas públicas de recursos hídricos,
incluindo o Conselho Nacional de Recursos Hídricos, o órgão regulador
federal (ANA) e equivalentes agências estaduais, bem como comitês de
bacia e consórcios intermunicipais. Muito papel, muita passagem de
avião e muito ‘latim’ foram gastos nos últimos anos para fazer funcionar
esta parafernália de gestão de recursos hídricos... Porém, apesar da
aparente modernização da legislação, resultados concretos em termos de
conservação ambiental e maior justiça social são poucos e frustrantes. Por
detrás de um sofisticado vocabulário de apelo ambientalista, a água
continua sendo motivo de divisão, lucro, e incerteza. Poder-se-ia incluir
aqui intermináveis estatísticas pra demonstrar a severidade da poluição
industrial e agrícola, erosão de solo e destruição de margens dos rios,
falta de saneamento básico, limitada segurança hídrica, planejamento
viciado e sujeito a pressões paroquiais, etc. Mas para não cansar o leitor,
sugerimos que sejam consultadas as publicações oficiais do Ministério do
Meio Ambiente e das Nações Unidas para verificar que a situação geral
de recursos hídricos tem avançado muito pouco.
Pelo contrário, ao invés de contribuir para reduzir conflitos e
recuperar o meio ambiente, a forma como a nova legislação vem sendo
implementada no Brasil nada mais faz do tratar a água como mercadoria.
A prioridade está em criar condições legais e objetivas para fomentar
transações comerciais relacionadas à água. A reforma do setor de
recursos hídricos, concebida e negociada no primeiro governo Cardoso,
teve marca indelével da expansão neoliberal sobre o uso do meio
ambiente e os recursos naturais. O ‘novo’ modelo de gestão brasileiro foi
inspirado na conferência de Dublin de 1992, a qual estabeleceu no direito
internacional que a água tem valor econômico. Os princípios de Dublin
149

têm servido de guia ao Brasil e ao mundo para transformar a água em


mais uma área na nervosa disputa entre enriquecimento privado e
demandas socioambientais básicas. Ou seja, a água precisa deixar de ser
um bem comum para tornar-se em si mesma objeto de quantificação
monetária e fonte de acumulação privada. Uma das maiores fontes de
controvérsia e conflito é a cobrança pela captação de água de mananciais,
o que em tese obriga os usuários a pagarem pelo uso de recursos naturais,
mas na prática apenas permite que o controle de acesso à água continue
favorecendo a quem sempre se beneficiou. Desse modo, com a
subserviência do governo ao ‘estalinismo de mercado’, novas formas de
enriquecimento avançam por todos os lados sobre a sociedade e a
natureza neste país. O resultado é que, como em muitas outras áreas da
política brasileira, quando se produz mudança, é pra ‘nada realmente
mudar’ (parafraseando Tomasi di Lampedusa).
Claro que empresas comerciais têm uma contribuição
fundamental quando se pensa em uma gestão de água democrática e
sustentável. Por exemplo, empresas de tecnologia e gerenciamento
dispõem de uma posição privilegiada para atingir maiores níveis de
eficiência e implantar novos sistemas de controle. Contudo, o benefício
privado tem sido muito maior do que o ganho do resto da coletividade,
como no caso de privatização de empresas públicas ou licitações
fraudulentas. Esta submissão passiva às prioridades de mercado foi
justamente o pecado original dos problemas de poluição e falta de água.
Mercantilizar a água é insistir no mesmo problema, ao invés de buscar
uma solução que, de fato, atenda à maioria da sociedade e ao meio
ambiente. Atribuir preço monetário à água não garante seu uso eficiente,
nem sua conservação, mas apenas facilita que sejam adotadas transações
econômicas que passam a servir, mais uma vez, à acumulação de capital.
Fica claro que por baixo de uma cortina ilusória de participação pública, o
Estado corrupto e corruptor vem servindo de alavanca para
indiretamente privatizar a água e excluir o interesse da maioria.
A prova mais evidente da ligação entre a reforma na gestão do
uso da água e a acumulação privada está na recente reforma dos serviços
públicos, quando se criaram novas condições para contratos de
engenharia e para a terceirização de serviços públicos a operadores
comerciais através de parcerias público-privadas (PPPs). Também a nova
Lei do Saneamento, sancionada em janeiro deste ano, cria condições para
atrair investimento privado e, mais uma vez, favorecer o enriquecimento
de alguns poucos. Nem é preciso lembrar que os números do setor de
saneamento são impressionantes, já que se estima a necessidade de
investimentos anuais ao redor de 0,5% do PIB durante muitas décadas
(isso significa mais de R$ 220 bilhões de dinheiro novo e, obviamente,
desperta muita cobiça). Uma questão crucial que ficou ainda sem solução
na nova lei é a disputada titularidade dos serviços entre estados e
150

municípios. Esta incerteza deve continuar gerando tensões e pode


favorecer mais privatizações ‘pela porta dos fundos’.
Como demonstra a experiência em diversos países e em partes do
Brasil (e.g. Porto Alegre), não é necessário privatizar o saneamento para
se obterem ganhos de eficiência e mitigar os impactos ambientais. Ao
contrário, o fundamental é a busca de critérios democráticos e
transparência no trato da coisa pública que permitam o atendimento às
demandas da sociedade, ao invés de decisões seqüestradas por iniciativas
bissextas e sem compromisso de longo prazo com a população e o meio
ambiente. Cabe destacar o polêmico exemplo inglês de privatização
radical do serviço de água e esgoto em 1989, onde, mesmo com uma
regulação rigorosa, as empresas privatizadas logo descobriram maneiras
de dilatar os lucros, obviamente cobrando caro da população. Quando o
jogo político mudou depois das eleições de 1997, os investidores passam a
tentar devolver algumas empresas ao governo, esperneando e
chantageando para manter a torrente de lucros dos primeiros anos pós-
privatização. Na seca do ano passado no Sul da Inglaterra, era comum
ver consumidores se recusando a poupar água e acusando os polpudos
lucros nas novas empresas pela falta melhores serviços. Ou seja, a
privatização tem levado a comportamento rebelde e falta de
compromisso com a conservação de água por parte daqueles
consumidores que se sentem lesados pelos lucros dos provedores
privados.
O debate neste Dia da Água deve servir para se compreender que
exclusão social e degradação ambiental são tão somente duas faces da
mesma moeda. É um equívoco mortal pensar que mecanismos inspirados
no mercado, como a cobrança pela água e a privatização de serviços
básicos, podem oferecer resposta justa aos desequilíbrios criados entre
atividade econômica e meio ambiente. Transformar a água em mero
instrumento econômico cria apenas novas fontes de desequilíbrio social e
não resolve os problemas ambientais, já que a recuperação da degradação
ecológica será paga pela população em geral e não pelos responsáveis
diretos. É interessante lembrar que José Bonifácio de Andrada e Silva
alertava para o risco de destruirmos os recursos hídricos a ponto de, em
menos de dois séculos, termos verdadeiros desertos como na Líbia...
Vemos que 200 anos já se passaram e, a menos que se busquem mudanças
efetivas na forma como a água é usada e como as oportunidades sociais
são distribuídas, vamos ter o gosto amargo de ver cumprida a profecia do
Patriarca.
A discussão sobre as questões da água precisa ir muito além de
campanhas superficiais e frases de impacto. O que falta ainda é perceber
que gestão ambiental requer muito mais do que atitudes pontuais e
isoladas, as quais apenas mantêm um modelo produtivo que
inexoravelmente leva à degradação humana e ecológica. Pelo contrário,
soluções efetivas passam pela democratização do Estado e pela inversão
151

das prioridades políticas e econômicas que, historicamente, fizeram do


nosso país um dos mais desiguais e mais negligentes no trato do meio
ambiente.

Meio Ambiente: O Primo Pobre da Crise Econômica?

Mesmo um país tão escolado em crises e atropelos econômicos


como o Brasil não convive facilmente com a perspectiva de esfriamento
da atividade produtiva que se avizinha. Tudo leva a crer que os próximos
anos serão marcados por taxas menores de produção, menor oferta de
empregos, estagnação comercial e acirramento de conflitos. Mas as crises
econômicas, uma vez devidamente respeitado o sofrimento alheio,
podem suscitar oportunidades para se buscar alternativas que tornem a
economia menos vulnerável no futuro. Com um pouco de sangue frio,
podemos observar em retrospecto que a atual crise econômica, que
começou por castigar bancos e mercados nos países mais industrializados
desde meados deste ano, tem uma explicação simples, mas requererá
soluções complexas. Nada poderia ser mais previsível do que o colapso
dos processos de acumulação que se consolidaram desde o final da
década passada, em grande medida baseados na especulação imobiliária,
no oportunismo financeiro e em artificialidades cambiais. Há muito que
se previa o furo da bolha e, pelo menos entre os mais lúcidos
comentaristas, a questão era apenas saber quando e onde o castelo de
cartas iria começar a ruir.
Para quem se lembra daquele jogo “banco imobiliário”, a
analogia é perfeita: o mercado de imóveis movia-se sempre em círculos,
ao sabor dos dados, comprando imóveis de plástico e apostando contra a
fraqueza dos demais. Todos tentavam obter ganhos máximos no menor
intervalo de tempo possível (no Reino Unido, o mercado de imóveis foi
uma grande festa com uma subida média de preços de 241% entre 1994 e
2008). Ao mesmo tempo, muitas pessoas foram levadas a colocar todo o
dinheiro que podiam em mercados da carochinha, como Islândia, Jersey e
Ilha de Man. Enquanto o desvario do lucro fácil tomou conta das
transações imobiliárias e do mercado financeiro (ao ponto de a Escócia ter
chegado a uma dependência elevadíssima da atividade bancária para a
formação do seu PIB), deslocou-se a produção de bens e mercadorias para
os rumos do nascente, China e Índia em particular. A farra se baseava não
somente na apropriação do suor asiático, mas na manutenção de preço
baixos de matérias primas e recursos naturais (inclusive petróleo). O
equilíbrio do sistema era tão tênue e frágil, que deu no que deu. E tudo
isso parece ser apenas o começo de um longo e penoso processo de
reacomodação. Como bem descrito pelos economistas do Século XIX, há
uma tendência inescapável no capitalismo de alternar fases de bonança
152

com períodos de desvalorização do capital, necessária para que se


restabeleçam as bases de acumulação (temporariamente?) perdidas.
Se o diagnóstico da crise depende apenas de um pouco de bom
senso e de conhecimentos rudimentares de história e economia política, a
questão crucial é localizar rapidamente a porta de saída. Contudo, como
se diz no vernáculo dos botequins, aqui é que mora o perigo. Existe o
grave risco de se considerar a crise econômica apenas como uma questão
de erro de dosagem, ou seja, um superaquecimento circunstancial do
mercado imobiliário e dos ganhos na bolsa de ações. Mas é preciso que se
perceba a dimensão histórica, e quiçá pedagógica da crise, uma vez que
as chuvas e trovoadas que se aproximam refletem distorções e
desarranjos muito mais profundos. Herdamos do Século XX, em que pese
avanços impressionantes na comunicação e transmissão de ideias, uma
globalização dos mercados que tem servido para democratizar
bugigangas e inutilidades várias. Como descrito décadas atrás por J. K.
Galbraith (no seu livro The Affluent Society), o atual sistema de produção
induz a uma demanda por mercadorias que é essencialmente perdulária e
irresponsável. Ao ponto de a grande função do emprego hoje ser a
manutenção do crescimento econômico por meio do fluxo de consumo,
mesmo que sejam artigos de necessidade e valor duvidosos. Ou seja, não
mais a produção, mas o consumo tornou-se a principal força motriz da
economia globalizada. Daí a necessidade de salvaguarda do crédito e de
redução dos juros, para que se consuma, compulsivamente, cegamente,
patologicamente. Comprar e jogar fora, o mais rápido e ostensivamente
possível. O condicionamento é tal que, ao se restringirem as compras,
muitos passam imediatamente a um estado depressivo (não é à toa que as
igrejas britânicas, ao acolher os filhos guachos do consumismo,
começaram a registrar uma assistência crescente nas últimas semanas).
Mas não adianta agora chorar o leite, as ações e os cartões de
crédito derramados. Não basta que se critique a gênese da crise se não
forem identificados caminhos novos, se não se aprender com os erros de
uma cegueira coletiva (qualquer semelhança com o livro do Saramago,
não é mera coincidência). Se não se repensar a lógica dos mercados, não
adianta nada querer fazer apenas ajustes na velocidade: iremos, sempre e
novamente, para o precipício. Contudo, é sintomático que muitos ainda
busquem insistir no erro, desnudar um santo pra vestir outro. E o
primeiro ataque é sempre sobre o meio ambiente! Clamam os falsos
profetas: que se abram as portas da legislação ambiental, porque é preciso
voltar a produzir e consumir, não importando em que termos se produzia
e consumia antes da crise. Podemos ver que no Reino Unido, por
exemplo, os empresários já começaram a fazer uso da comoção geral para
reivindicar vantagens fiscais e condescendência regulatória. Há uma
renovada expectativa que indústrias pesadas ou loteamentos em áreas de
preservação sejam agora finalmente aprovados. Da mesma forma,
durante o encontro sobre mudanças climáticas na Polônia, em dezembro
153

de 2008, o governo alemão, em nome da maior economia europeia,


buscou evitar metas de redução de carbono que venham a afetar suas
indústrias e a geração de energia a partir de carvão.
Havemos de manter os olhos e ouvidos muito atentos,
especialmente quando começar aquela valha ladainha: “produção versus
meio ambiente”, “emprego versus impostos”, “fiscalização ambiental
versus apoio eleitoral”… aquele cantochão manjado: “aprovem meu
projeto de investimento (com dinheiro público, naturalmente) que
ninguém vai se importar que se destrua uma pontinha de mato ou se
polua um trechinho de rio”. Com esse argumento de que é bom degradar
para que a economia cresça, que o Brasil é grande e não vai fazer falta,
que mata em pé e terra de índio são desperdícios, levaram-nos o pau-
brasil, as araucárias, a caatinga, o cerrado e agora vai nas costas do ladrão
o Pantanal e já boa parte da Amazônia. Ora, cara-pálida, se nos anos de
vacas gordas, não se pensou em socializar os ganhos fáceis, por que agora
deveria se aceitar a destruição de um patrimônio natural que pertence a
todos? Por que motivo, agora que a maré refluiu, deveríamos concordar
com o sequestro dos fragmentos de meio ambiente que ainda sobram?
Para desconforto de muitos ambientalistas, cabe enfatizar que a
questão central aqui não é ética ou sentimental, mas profundamente
política. Quando se tenta convencer que vale a pena trocar água, solo e
ecossistemas por crescimento econômico (que não é decidido e tampouco
beneficia a maior parte da população), estamos lidando com
demonstrações concretas de desigualdades de poder. Vejamos o São
Francisco: cada vez mais degradado por culpa da lavoura exportadora,
das cidades sem saneamento e das hidroelétricas sedentas, mas aqueles
que vivem perto do rio e sofrem mais de perto sua agonia não têm muito
que celebrar em termos de melhoria de vida. O problema ambiental, com
todas suas facetas materiais e simbólicas, nunca deixa de ser uma
combinação de injustiça social, covardia administrativa e inversão de
prioridades econômicas. Essa previsível chantagem sobre o meio
ambiente é tão antiga quanto as crises, com a grande diferença de que a
natureza não se recupera quando a crise passa.
Se em um momento como agora existe a ameaça de avançarem
sobre o meio ambiente em troca de promessas econômicas vagas, há
também o risco de vermos, como já estamos, economistas e empresários
que tentam nos convencer que o momento pode servir para que se
promovam as ditas mercadorias ambientais, como créditos de carbono e
pagamento por serviços ecológicos. Conforme teorizado pelo geógrafo
escocês N. Smith, a transformação da conservação ambiental em
mecanismo de acumulação representa a mais nova fronteira do
capitalismo mundial. Mas os defensores dessa chamada “modernização
ecológica” desprezam o fato de que conservação ambiental e adoção de
tecnologias responsáveis deveriam ser uma exigência inegociável da
atividade produtiva e não uma prática que, para ser adotada, requer uma
154

compensação monetária. Insiste-se, assim, na mesma racionalidade da


acumulação fácil e “naturalização” do valor do dinheiro, a qual foi a
causa desta e de outras crises, para mitigar os efeitos negativos que a
própria acumulação causou. Além disso, não faz sentido que se paguem
agricultores para manterem água, solo e biodiversidade se não forem
eliminados as exigências tecnológicas e alfandegárias que distorcem todo
o mercado agrícola nos quatro cantos do mundo.
Enfim, não cabe lamentar as consequências nefandas da crise se
nada for feito para eliminar o risco de que a fatura seja paga por aqueles
que menos se aproveitaram da festa. A natureza também não pode se
tornar refém de remendos a um modelo econômico comprovadamente
inviável, baseado na demência consumista e na degradação ambiental
progressiva. Se não nos perguntarmos como a crise econômica começou,
corre-se sempre o risco de voltarmos, geração após geração, ao muro das
lamentações, apenas com menos meio ambiente para ser rifado no futuro.
O Brasil, com os recursos naturais que tem, pode perder muito se aceitar
que se curvem sociedade e governo às exigências de uma atividade
mercadológica disfuncional e injusta. Sem nos atentarmos para a relação
direta entre crise econômica, exclusão social e exploração ecológica, nada
de positivo poderá emergir da atual experiência. Claro que não se esperar
que esse debate venha a ocorrer espontaneamente. É preciso levantar a
voz e dizer que desvario econômico e pilhagem ambiental não podem
mais seguir de mãos dadas.
155

Capítulo 8

Usuário ou Cidadão?
Reflexões Pessoais sobre a Experiência de Gestão
de Recursos Hídricos no Brasil.

Tendo em conta o que se discutiu ao longo deste livro, o presente capítulo


oferece uma análise mais pessoal e provocadora sobre as tendências e
perspectivas da gestão de recursos hídricos no Brasil. Certamente, um dos
grandes desafios neste início de século, para uma gestão efetiva e
sustentável de recursos hídricos, é considerar o contexto social e político
que condiciona as ações do Estado e as possibilidades de sucesso de
qualquer política pública. O país tem perdido tempo e dinheiro
discutindo como se chegar a um modelo ideal de gestão de águas, sem
atentar que é necessário se ter uma abordagem mais estratégica e menos
retórica (ou ainda, menos jurídico-institucional) que garanta padrões
mínimos de quantidade e qualidade de água para amplas parcelas da
população, aumentando o potencial de utilização dos recursos e
diminuindo a vulnerabilidade quanto à escassez ou a excessos. Cabe aos
gestores de recursos hídricos potencializarem e acelerarem um processo
de ganhos em eficiência, que já foi parcialmente iniciado nos últimos
anos. O texto examina ainda as limitações dos esforços de gestão, os
desperdícios em ações que pouco contribuem para atender às demandas
existentes e, finalmente, ideias sobre a busca de soluções. Deve-se atuar
de modo criativo, evitando repetir fórmulas prontas, superando o
irracionalismo de órgãos públicos e o imobilismo da sociedade civil.
Usuários de recursos hídricos são, essencialmente, cidadãos de uma bacia
hidrográfica no pleno uso de seus direitos.

As Razões da Presente Reflexão

Trago aqui um modesto texto, parte de uma investigação mais


abrangente sobre sustentabilidade e recursos hídricos. Este
esclarecimento deve servir apenas como apresentação e não como
desculpa, já que, o que realmente importa, serão os argumentos que o
próprio texto encerra. Apenas quero, inicialmente, contextualizar o que
vai ser dito adiante, porque seguramente desagradará a alguns e poderá
ser, simplesmente, rejeitado por outros. Devo ainda ressaltar que a
maioria de meus textos tem um caráter científico e são pretensamente
destinados a discutir questões técnicas da gestão de águas (aqui tomada,
por comodidade, como sinônimo de gestão de recursos hídricos, ainda
que não sejam termos exatamente equivalentes). Assim sendo, aqueles
outros trabalhos têm um foco narrativo impessoal e suposta isenção
quanto às opiniões mais subjacentes do autor. Contudo, o presente
156

capítulo, em particular, precisou ser escrito em primeira pessoa, recheado


de subjetividade, pois trata de minhas observações pessoais sobre a
experiência que venho acumulando ao longo dos anos, eivada, também,
de algumas frustrações que quero compartilhar com o leitor.
Não pretendo que este pálido e limitado documento discuta
matérias que estão todo dia na imprensa, como por exemplo:
“privatização ou serviço público”, “cobrar ou não cobrar pelo uso da
água”, “gestão por bacia ou por fração de bacia hidrográfica”, e coisas do
gênero. Quero, sim, escrever despretensiosamente sobre tópicos que me
têm produzido desconforto na minha prática diária de gestor e
funcionário público. Não serão aqui citados nomes de pessoas,
ministérios ou organizações públicas ou privadas, porque não cabe e não
é tampouco necessário. Muito facilmente o leitor verá do que estou
falando e certamente identificará as críticas com sua experiência mais
próxima, haja vista que, creio, a situação se repete em todos os estados da
federação. Já que o contexto e a problemática de recursos hídricos são
semelhantes por toda parte, a crítica é ampla e indistinta.
O que se buscam aqui, basicamente, é argumentar que o país tem
perdido tempo e dinheiro discutindo como se chegar a um modelo ideal
de gestão de águas, sem atentar que é mais necessário, ou mais
inteligente, definir, primeiro, uma estratégia articulada de ações para se
alcançar resultados concretos e efetivos. Tal estratégia de ação deve,
obrigatoriamente, levar em conta processos socioeconômicos que
inexoravelmente moldam nossa capacidade de produzir respostas
satisfatórias. O que se pode esperar de uma abordagem mais estratégica e
menos retórica (ou ainda, menos jurídico-institucional) é a garantia de
padrões mínimos de quantidade e qualidade de água para amplas
parcelas da população, aumentando o potencial de utilização dos
recursos e diminuindo a vulnerabilidade quanto à escassez ou a excessos.
Em outras palavras: o que cabe aos nossos gestores de recursos
hídricos, no presente momento histórico, é justamente potencializar e
acelerar um processo de ganhos em eficiência (i.e. eficiência por unidade
de recurso ou por unidade de energia necessária para sua utilização), que
se encontra desfraldado e em franca expansão no país, mas que carece de
uma ênfase mais focada nos possíveis benefícios que podem ser
esperados de uma ação pública responsável. O que se quer aqui
demonstrar, em última análise, é que o maior entrave para uma gestão ser
efetiva e eficiente é justamente o divórcio das ações do Estado em relação
às demandas legítimas da sociedade, por mais complexas e contraditórias
que tais demandas porventura sejam (algo que somente o
aprofundamento da radicalização democrática pode resolver, desde que
apoiado em boa assessoria científica).
Na falta de tal capacidade de entendimento e liderança, os
responsáveis pelo tema têm levado a um desgaste e até mesmo a um
"apequenamento" da gestão dos recursos hídricos, acarretando um claro
157

descompasso de resultados em relação às manifestas necessidades da


coletividade. Eis o problema: o tempo urge, as soluções são complexas e
não se tem, afinal, garantia de que chegaremos aos resultados esperados.
Mais sério que isso, há uma polifonia de vozes e interesses centrados em
questões secundárias, enquanto que o meio ambiente e a população
brasileira esperam de nós, pretensos técnicos, uma demonstração de
nossa capacidade de propor mudanças. Essa provável frustração advém
de um entendimento caolho do problema, de uma postura maniqueísta
que aparta técnicos de usuários e que não constrói um mínimo de
consenso para a formulação de respostas. Não há solução simples, por
melhores que sejam os modelos e os computadores, para questões
delicadas, como transposição de bacias, hidrovias, novas hidroelétricas e
expansão do saneamento urbano. São matérias exigentes e que, por não
comportarem simplificações esquemáticas, demonstram o primarismo de
nosso mecanismo de tomada de decisão. Tanto mais primário, quanto
menos se compreende a dinâmica social e histórica a ele relacionada.
Como últimas palavras desta introdução, quero garantir que não
sou daqueles que acham que tudo está errado no mundo e não há solução
visível. Refletindo sobre os requisitos de uma boa prática de gestão de
recursos hídricos, penso, sinceramente, que a democracia e a liberdade
são nossos valores maiores, e apenas porque as temos hoje é que nos é
permitido debater sobre todas essas questões. Como nos ensinou
Sócrates, nos tempos da Grécia clássica, a causa dominante do mal é a
ignorância, já que o conhecimento é o bem. Desse modo, minha crítica
quer contribuir, de algum modo, para o avanço da gestão de recursos
hídricos no país. Deve, portanto, “tocar na ferida“.

Barreiras para se Chegar a uma Gestão Efetiva e Justa de Recursos


Hídricos

Não pode ser negado que, especialmente nas últimas duas


décadas, houve uma sensível mobilização por parte da comunidade
técnico-científica e de setores da sociedade brasileira organizada para que
se produzissem avanços em termos de gestão de recursos hídricos.
Muitos colegas têm esse mérito, que não podemos deixar de reconhecer.
Sentem-se reflexos palpáveis disso nas atividades do parlamento e na
reestruturação do discurso coletivo. Postula-se, pelo menos em termos
legislativos e formais, não mais uma gestão meramente focada na
“expansão da oferta de recursos hídricos” ou no “crescimento econômico
em bacias hidrográficas”, mas sim uma “gestão integrada de bacias” ou
uma “gestão ambiental” que considere os recursos hídricos como parte
do bioma e exija uma utilização responsável da natureza, o que se traduz
por uma “gestão de demanda”.
Nos anos 1980, havia já alguma discussão sobre essa matéria,
tanto que em 1986 o antigo DNAE publicou o relatório de um Grupo de
158

Trabalho (instituído pela Portaria MME 661/1986), o qual resumiu,


mesmo naquela oportunidade, muitas das ideias que seriam depois
incorporadas na Lei 9433. Outro exemplo desse crescente debate foi o
encontro da ABRH de 1987 que produziu a “Declaração de Salvador”,
defendendo a necessidade de modernização das instituições de recursos
hídricos. Também a promulgação da Lei Estadual 7663/1991, de São
Paulo, demonstra que estamos há mais de uma década com legislações
razoavelmente avançadas ou em processo de aprimoramento.
Afinal, se tem sido dito e repetido à exaustão que a gestão deve
ser “integrada”, “sustentável”, “participativa”, “holística”, “de demanda,
ao invés de uma gestão de oferta”, “que considere a água com seu valor
econômico”, etc. etc., por que estamos marcando passo há tantos anos? Se
existe uma lei que coloca o Brasil como uma das vanguardas no setor
(Biswas, 1998), se existem “leis-filhotes” em quase todos os estados, se os
congressos técnicos sobre gestão de águas são tantos que não há semanas
suficientes no calendário inteiro de um ano para abrigá-los a todos, por
que estamos ainda discutindo qual o primeiro ou o segundo passo a
serem dados?
Por que tanta indecisão? Tantas boas ideias e tão pouca
concórdia? Tanta retórica, mas pouco resultado? Daí chegar-se à
conclusão de que os problemas a serem enfrentados são mais graves e
profundos do que inicialmente se poderia prever entre os pioneiros na
matéria há 15 anos atrás. E também me faz crer que há um sentimento de
ilusão coletiva, ou fascinação por algo que, em tese, é perfeito, mas na
prática nunca se vai alcançar.
Vejamos, pois, quais são os grandes problemas que estão
emperrando o avanço concreto para a tal gestão moderna de recursos
hídricos no Brasil:

A Tradição de um Estado Oligárquico e “Privatizado”

Não cabe neste pequeno espaço nenhuma análise sociológica do


Estado brasileiro, mas é bom se ter em conta que muito das razões que
nos fazem ver desperdiçado um manancial de boas intenções quanto à
gestão de recursos hídricos resultam da forma como a República foi
fundada. Neste país, o Estado e suas manifestações sempre estiveram a
serviço de uma elite que governa e se beneficia das decisões
administrativas e da tradição jurídica brasileira. A manutenção de um
Estado corrupto, corruptível e clientelista põe em dúvida a sinceridade
das políticas públicas, bem como reduz sua capacidade de promover as
transformações necessárias para uma gestão de recursos hídricos
descentralizada, eficiente e justa.
Eis a razão por que vemos tanto alarde com comitês de bacia e
campanhas de mobilização de usuários, mas onde facilmente transparece
o fato de que muitas lideranças políticas buscam apenas um sonoro
159

“amém” para decisões que, como sempre, partem das elites e a elas
somente interessam. Moldura nova, prática velha. Discurso inovador
defendendo uma gestão de águas sustentável, mas que é propagado por
grupos políticos desinteressados em abrir espaço para parcelas maiores
da população. Apesar do discurso, as decisões têm sempre uma direção
predominantemente “de cima para baixo”, mesmo que afetem o modo de
vida tradicional das comunidades locais.
Por isso, ainda que nos “manuais” vejamos novos apelos para
uma maior participação social, identificamos a todo dia rançosas práticas
políticas inexoravelmente levando ao acirramento das disputas, ainda
que sob uma retórica de “proteção ambiental" ou de "instrumentos
modernos de gestão de água”. Desse modo, boas ideias terminam por
reforçar e até mesmo legitimar a exclusão social e a degradação do meio
ambiente, sempre que os usuários e os técnicos são manipulados para
aprovar temas de interesse da elite.
Já havia tratado desse assunto em minha breve análise do Sub-
Médio do Rio São Francisco, quando apontava que a escassez de recursos
hídricos e os decorrentes conflitos ali gerados têm relações muito mais
abrangentes com questões políticas e socioeconômicas do que meramente
técnicas e tecnológicas. Naquela região, o problema da seca decorre da
forma como a economia nordestina se estruturou, particularmente por ter
deixado o latifúndio como algo aceitável e até inatacável, donde advêm
muitas das causas de falta de água e falta de oportunidades no campo.
Ou seja, a limitada possibilidade de acesso à posse da terra implica em
menores oportunidades para se contar com fontes de água seguras e
garantidas, o que deixa as camadas pobres da população nordestina mais
vulneráveis às intempéries climáticas que as outras categorias sociais
melhor providas de recursos e poder político (Ioris, 2001).

Uma Burocracia Sem Fim

Diferentemente do que nós críticos dizemos, uma gestão


extremamente burocratizada é muito mais confortável e segura, desde
que o verdadeiro objetivo a ser alcançado não seja a solução dos
problemas, mas a manutenção de cargos e a perpetuação de instituições.
Evidentemente, não se trata de propugnar por uma gestão anárquica, sem
comando, sem registro e sem mecanismos de controle. Contudo, o que
comumente vemos são despesas sem fim dedicadas a marcar reuniões
(que muitas vezes apenas servem para marcar as próximas reuniões), a
fazer viagens demoradas, a escrever e corrigir documentos inócuos, a
mandar técnicos inscreverem-se em mais e mais congressos, a patrocinar
fóruns e canais de integração entre instituições (que deveriam ter nascido
já integradas), mas sempre se chegando à mesma conclusão de que se
necessita de mais dados, de mais reuniões e de mais investimento em
burocracia.
160

Se observarmos ainda com mais cuidado as distorções existentes


por este país afora, veremos claramente imperando uma ditadura das
consultorias: para se dar qualquer passo na execução de um projeto,
primeiro deve ser contratado “sua excelência, o consultor”, essa figura
mítica e, muitas vezes, mascarada. Em muitos casos, são chamados para
consultores os ex-funcionários ou ex-chefes daquele mesmo órgão
público, haja vista que, como não houve formação de novos quadros, nem
transferência de conhecimentos, aqueles que se afastam da atividade
terminam por acumular um patrimônio de informações, que, através de
consultorias, facilmente se transforma em vantagem monetária e sonante
(porém, de uso único e privado dos próprios consultores). Estamos,
portanto, muito distantes do ideal “sistema estatal weberiano”, ou seja,
um governo que se fundamentasse em hierarquia, regras impessoais,
metodologias claras e separação entre vida pública e privada,
submetendo, assim, a burocracia estatal ao controle político da sociedade.
Por isso tudo, muito mais razoável seria podermos contar com
um quadro permanente e regular de funcionários, justificando cargos de
comando em mérito técnico e compromisso político com os interesses
maiores do país. Deveríamos chegar à tão defendida transparência do
serviço público, para que os usuários pudessem exercer
acompanhamento detalhado de como a burocracia age. Não podemos
mais nos enganar com uma participação pública meramente
“instrumental” e “homologatória”, como geralmente acontece
especialmente em projetos de financiamento externo. Se quisermos uma
boa prática gestora de águas, deveremos ter disponíveis os meios legais e
legítimos para controle de excessos ou ineficiências do funcionalismo
público.

O Adiamento das Transformações Necessárias

Considerando os dois itens acima (i.e. uma apropriação elitista do


Estado e um monstro burocrático), não é difícil se verificar que, apesar de
campanhas bonitas, páginas coloridas na Internet e muito alarido, não ser
observaram, na história dos últimos anos, transformações reais na prática
de gerir a coisa pública, considerando aqui o bem público água. O que
tem sido visto é uma forma de gestão de recursos hídricos que dá espaço
a disputas mesquinhas e desairosas, e que tem repetido visões
ultrapassadas de como os cidadãos podem se relacionar com o Estado.
É uma tradição presente ao longo dos séculos de construção
desse país: uma minoria que decide e se beneficia dos diferentes estratos
do governo, dando apenas uma aparente impressão de que os serviços
públicos atendem ao conjunto da sociedade. Na verdade, a maioria da
população é alienada tanto dos seus reais problemas, quanto das
possibilidades de mudanças radicais que, finalmente, tragam a superação
da tradição excludente. Sintoma disso tudo é o fato, notório para todos,
161

de que muitas das decisões governamentais são tomadas por meio de


“intermediação” (propina) ou “troca de favores” (vantagens políticas),
prática corrente em contratos com empresas prestadoras de serviço,
concessões a grupos econômicos ou em nomeações de representantes
para cargos e comissões.
Na última década, o desenvolvimento econômico veio embalado
em um apelo pela “modernização” do país. Contudo, o que se viu foi a
opção pelo caminho habitual de manter a inclusão social garantida a
pequenas parcelas da população, nada mais significando que uma
“modernização da riqueza”. Esse processo excludente e seletivo é o que
Buarque (1991) denomina de uma “modernidade arcaica”, produtora e
reprodutora de miséria. Reais transformações na maneira de encarar e
gerir os recursos hídricos somente podem ser esperadas como produto de
uma oxigenação obtida por meio de mudanças radicais na organização do
Estado e da sociedade brasileira.
Como afirma Furtado (1997), é necessária uma visão global da
sociedade, colocando as necessidades humanas como foco central e não
apenas deixando as leis de mercado pairarem acima de tudo e de todos.
Porque os problemas sociais e ambientais dos países periféricos, que é o
caso do Brasil, são originados do processo de dependência, na forma do
contraste "desenvolvimento-subdesenvolvimento", o que termina por
levar a uma desestruturação social. As consequências desse processo são
a exclusão dos benefícios do desenvolvimento para a maioria, o
agravamento dos conflitos, maior pressão sobre recursos não renováveis
e a degradação do meio físico.

A Técnica pela Técnica

Muitos de nós, envolvidos de alguma forma com a gestão e


conservação de recursos hídricos no Brasil, estudamos com mestres que
eram discípulos da escola Positivista francesa. Segundo essa doutrina,
que tanta influência teve na primeira metade do Século XX no Brasil, os
processos naturais podiam ser apenas descritos, mas não explicados.
Entre outras ideias, o Positivismo tem sua base num idealismo e numa
tendência unificadora, pelo qual uma elite intelectual teria autoridade
moral para guiar toda a humanidade.
Mesmo no caso de outros colegas que não tiveram uma relação
tão direta com os herdeiros do Positivismo, deverá ser possível identificar
resquícios de um Racionalismo cartesiano em suas mentes. O
Racionalismo argumenta que o funcionamento dos sistemas pode ser
conhecido a priori, e que aumentado o estoque de dados científicos
estaremos cada vez mais perto da verdade, não havendo limites para a
mente humana e sua capacidade de investigação. Isso significa uma visão
otimista e ingênua de que o conhecimento perfeito do mundo pode ser
atingido.
162

Quero dar mostras da influência tanto do Positivismo, quanto do


Racionalismo, ao constatar que, na maioria das vezes, as respostas para os
problemas e as demandas de recursos hídricos se baseiam, meramente,
em obras de engenharia, canais de drenagem, hidrovias, aterros,
barragens, perímetros de irrigação, espigões de contenção do avanço do
mar, e daí por diante. Há um fascínio e uma ilusão de que a técnica tudo
pode e tudo resolve. É o que se denomina de “solução hidráulica”, ou
seja, para se ter mais água, temos que ter mais e mais tubulações e
barragens (em outras palavras “se falta água, contratemos mais
engenheiros e mais empreiteiras”). Da mesma corrente vem a
recomendação de que enchentes se resolvem com diques e bombeamento,
comportas e pontes mais altas.
Tal solução não passa de uma simplificação monodimensional
dos problemas, e denota uma arrogância própria dos engenheiros, crias
do Renascimento e da física newtoniana. Como filosofou Habermas (1968:
47), os processos produtivos estabelecem as bases nas quais a origem e a
função do conhecimento podem ser interpretadas. A ciência humana,
assim, surge sob categoria de conhecimento para exercer controle.
Conhecimento esse que torna possível o controle dos processos naturais,
mas que permite, também e desse modo, o controle dos processos sociais.
Ao final desse mecanismo, o conhecimento, que era reflexivo, passa a ser
conhecimento produtivo, de modo que as ciências naturais se
transformam em exercício de poder através do controle técnico.

A Aceitação Práticas Socioambientais Degradantes

Em termos gerais, o meio ambiente deixa ao dispor da


humanidade três formas de apropriação de seus benefícios (i.e. o que se
chama de “capital natural”): os recursos naturais (renováveis e não
renováveis), os serviços naturais e a capacidade assimilativa de poluição.
Contudo, sempre foi amplamente aceitável em nossa sociedade um
comportamento francamente ofensivo à natureza, como desmatar,
garimpar, introduzir pastagens e pescar até a exaustão, entre uma longa
lista de agressões. O comportamento habitual é se usar da natureza sem
considerar que existem limites intrínsecos à sua estrutura constituinte,
ainda que por nós desconhecidos.
Durante cinco séculos, o crescimento econômico do país sempre
se baseou na apropriação desenfreada do capital natural aqui encontrado.
Foi dessa maneira que se utilizaram as matas, minerais, solos e águas.
Avançou-se, egoisticamente, sobre bens que deveriam ser compreendidos
como patrimônio de toda a humanidade e de todas as gerações de
brasileiros. O fenômeno de perceber o ser humano como distante e acima
da natureza foi agravado com a industrialização do país, que expandiu
seus impactos sobre todos os biomas e ecossistemas, diminuindo
sensivelmente a biodiversidade e degradando os corpos hídricos
163

superficiais, subterrâneos e costeiros. Mas a lição não foi aprendida e


continuamos deixando consequências negativas de nosso modelo
presente de desenvolvimento para quem vier depois.
A sociedade brasileira herdou esta faceta destruidora de sua
tradição ocidental e judaico-cristã, a qual geralmente se inspira numa
interpretação despótica da origem dos homens [seres humanos] como
mestres e senhores da natureza, que receberam tal atribuição ontológica
das mãos do Criador (Callicott, 1994: 15). Exemplos desse distanciamento
e desse dualismo homem-natureza podem ser vistos a cada dia, por
exemplo, quando se jogam garrafas plásticas nos rios, quando se remove
a cobertura vegetal do solo e se permite a formação de horríveis erosões,
quando se tolera o lançamento de esgoto in natura nos corpos de água, ou
quando se estimula a expansão desenfreada de assentamentos humanos
que cada vez mais demandam energia, transporte, comida e água.

Os Esforços Desperdiçados

A seção anterior trouxe uma síntese dos problemas basilares da


nossa capenga gestão de recursos hídricos. Obviamente, os itens ali
listados não esgotam a reflexão proposta, mas pelo menos permitem uma
certa sistematização de como a questão pode ser entendida. Por causa
daqueles cinco condicionantes básicos, nossos gestores têm demonstrado
uma arraigada debilidade para implementar políticas verdadeiramente
públicas de recursos hídricos, bem como exigir que os cidadãos assumam
as responsabilidades de seus atos individuais.
Muito mais que uma eventual falta ou excesso de água, o que
temos é a ausência de uma gestão efetiva dos recursos naturais, algo que
tomasse em conjunto programas, projetos e ações, todos decididos de
forma genuinamente participativa. Em sua maioria, até o momento, as
intervenções em termos de utilização de recursos hídricos, notadamente a
grande geração hidroelétrica e a irrigação mal pensada, serviram apenas
marginalmente aos objetivos de se promover um desenvolvimento
econômico integral (i.e. que harmonize o tripé “mercadoria-homem-meio
ambiente”), gerando escasso progresso humano e sério passivo
ambiental. Os empreendimentos hidráulicos do passado muito mais
atenderam aos interesses oportunistas de políticos e empreiteiros, além
de suprir energia hidroelétrica a uma urbanização desordenada, fonte de
tantos outros problemas.
Sem questionar esse quadro sociopolítico, a gestão torna-se uma
lista pródiga de desperdícios. Ou seja, nossos esforços, como técnicos e
usuários, passam a ser investidos em aspectos menores do problema de
gestão de recursos hídricos: em vez de se enfrentar, ou pelo menos
compreender, as reais dificuldades para uma prática eficiente,
consequente e sustentável, repetimos os erros e desmandos de outros que
vieram antes de nós. Isso decorre do fato de que o propósito da prática
164

corrente de gestão não é a satisfação das demandas e o equacionamento


de questões multifacetadas, mas a preservação de privilégios e a
alimentação de estruturas burocráticas.
A seguir, estão brevemente tratadas quatro dessas distorções,
consequências diretas dos problemas listados na seção anterior e
apresentadas na forma de esforços desperdiçados:

O Esforço Desperdiçado em Crer que a Gestão de bacias Deve ser Sempre Igual

O conceito de bacia hidrográfica é fascinante. Traz uma ideia de


cumplicidade e comprometimento com um processo que é fisicamente
descrito, qual seja, que a água da bacia hidrográfica tem uma dinâmica
comum, correndo num mesmo fluxo e deixando as ações de algumas
pessoas dependentes das ações de outras. Até aqui estamos falando de
hidrologia e física. Contudo, por mais que o conceito seja atraente, não há
na natureza uma regra fixa que exija que todo e qualquer problema em
algum ponto da bacia hidrográfica tenha relação com toda a bacia. O que
se está aqui afirmando é que as dinâmicas da natureza são mais
complexas e menos sujeitas aos modelos humanos que querem descrever
todas as bacias com um comportamento igual. Cada bacia é um caso
específico de socio-hidrologia e requer uma gestão adequada.
É recomendável que se façam análises e coletas de dados levando
em conta o contexto da bacia hidrográfica. Nada impede que esse seja o
pano de fundo da gestão de recursos hídricos. Porém, a bacia hidrográfica
não deve ser idealizada como uma entidade absoluta, pois é também tão
artificial quanto qualquer outra, haja vista que, em última análise,
somente a biosfera e a hidrosfera compõem um todo indissociável. Não se
pode negar que a lei brasileira inova ao valorizar a bacia como unidade
de gestão. Entretanto, em locais onde os problemas são pontuais ou muito
particulares, ou mesmo quando o nível de mobilização das populações
está muito distante de uma gestão que venha a considerar a totalidade da
bacia, a proposta de se considerar a bacia como unidade de gestão leva a
um desperdício de esforços. O desperdício está em se colocar ênfase numa
ideia por demais abstrata e distante da realidade local, defender um
modelo legal e administrativo que não trará resultados a curto e médio
prazo para demandas que exigem enfrentamento imediato. Porque, em se
adiando a gestão para satisfazer ao modelo da lei, cria-se uma
artificialidade no trato dos recursos hídricos, já que se estará tentando
trazer respostas iguais a problemas diferentes.

O Esforço Desperdiçado de Instrumentos Fixos de Gestão

A política brasileira de recursos hídricos, definida em lei, traz os


instrumentos oficiais disponíveis para a gestão. Ainda que tais
instrumentos sejam claramente uma conquista do setor, são por demais
165

ambiciosos para a grande maioria das situações atualmente encontradas


em nossas bacias hidrográficas, pelo menos no presente estágio de
organização dos atores sociais. Representam também um desafio ainda
demasiado distante para que os poderes públicos municipais e estaduais
possam colaborar criativamente.
Felizmente, há outras alternativas para se construir uma gestão
de recursos hídricos, mesmo que os seis instrumentos da lei federal
estejam aquém das possibilidades reais do momento, ou, ainda, desde
que a situação concreta requeira respostas diferenciadas e adaptadas a
demandas muito particulares. Para dar um exemplo palpável disso, cito
uma experiência efetiva de gestão de um pequeno rio (o qual é de 5 a ou 6a
ordem, e onde, pela Lei 9433/97, não poderia ser estabelecido um comitê
formal de bacia). Nesta pequena bacia hidrográfica, a população local,
juntamente com a prefeitura, o juiz e o promotor da comarca, puderam
produzir sensíveis avanços de regulação e controle de poluentes e
puderam promover campanhas de recuperação de áreas degradadas,
inclusive adequando as práticas agrícolas ali utilizadas. Nesse exemplo,
recente e trazido de Goiás, não entrou nenhum dos instrumentos clássicos
da política, mas foi reduzida a contaminação do rio que abastece a cidade,
foram negociadas quais práticas agrícolas seriam toleradas a montante e
jusante da captação do município, tudo com a participação de
agricultores, da população urbana e dos representantes locais do Estado.
Nessa direção, Dourojeanni e Jouravlev (2001) afirmam que há
uma crise crescente de governabilidade na gestão de águas, o que tem
implicado em uma deterioração progressiva da qualidade dos recursos
hídricos na América do Sul. Paradoxalmente, os conflitos em torno das
águas têm se agravado, mas a capacidade de trazer soluções, que antes
era historicamente maior, tem diminuído, haja vista uma falta de métodos
para se desenhar estratégias de solução que vinculem a organização e o
pensamento individual e coletivo das sociedades de nossos países. O
desafio, para aqueles dois autores, é se encontrar fórmulas criativas de
legislação e organização capazes de prevenir e solucionar os conflitos
pelo uso da água e a ocorrência de fenômenos naturais extremos.
O Esforço Desperdiçado por mais Dados e mais Consultorias

Foi citado acima que a burocracia, quando opera sem um controle


das forças democráticas, alimenta-se de consultorias e relatórios,
conquanto tantas vezes produzidos somente para ocupar algum espaço
na prateleira ou nos currículos pessoais. Outras vezes, a intenção de
contratar tais serviços de consultoria pode ser até justificável, mas, logo
que muda o administrador, deixam de ter qualquer continuidade.
Também acontece que os consultores podem produzir algo realmente
proveitoso, mas não se utilizam esses produtos obtidos em razão da falta
de estratégias claras de gestão. Em qualquer dessas situações, foram
utilizados recursos públicos escassos, arrecadados da sociedade através
166

de impostos e taxas, mas desperdiçados apenas para a condução de


consultorias inócuas.
Pior ocorre quando nem justificativa existe para contratar os
“doutos” consultores, apenas dissimulando uma demanda que nem
existe, somente para empregar alguém ou devolver alguma “gentileza
escusa”. Geralmente, nesses casos, são também pouco aceitáveis os
valores contratados para tais consultorias. Impera aqui uma “ética
invertida e perversa" ao não se contestar a capacidade ou a produção dos
consultores, como se tal conferência não pudesse nunca ser feita. Essa
máfia dos consultores transgride a razão e a boa prática administrativa.
Muito mais sensato seria o Estado contar com um corpo técnico
permanente e de bom nível, que pudesse atender a demandas legítimas
de dados e informações, e que fosse objeto de rigoroso controle dos
órgãos de auditoria e dos mecanismos representativos da sociedade civil.

O Esforço Desperdiçado por se Forjar Problemas Onde Não Há

Enfim, quais são os problemas de gestão de recursos hídricos no


Brasil? A existência de conflitos em torno da qualidade e quantidade das
águas? A falta de dados? A incompleta implementação dos instrumentos
de gestão? Ainda não termos comitês de bacia, nem estruturas atuando
na cobrança?
Sinceramente, acho que não. Esses não são os problemas, mas
apenas reflexos de causas sociais mais profundas e bastante enraizadas.
Ou pode alguém conceber que a qualidade da universidade e da escola
brasileira não tem nenhuma relação com o problema dos recursos
hídricos? Ou tampouco o tem nosso padrão hegemônico de consumo, ou
o nível de nossa produção técnico-científica? Não tem qualquer relação a
forma como os políticos se comprometem em atender às demandas de
seus eleitores?
O grande esforço desperdiçado é se quererem criar problemas
onde não há, minimizando as reais dificuldades da gestão. Há nesta terra
um vigor exagerado por demonstrar a validade de paradigmas
importados, sendo o exemplo mais evidente a necessidade de se provar e
convencer a todos sobre o valor econômico e monetário da água,
copiando tendência dominante defendida pelo Banco Mundial e diversos
centros universitários. Querem fazer-nos crer que tal tendência de tornar
a água mercadoria a tudo justifica, desde a privatização dos serviços de
abastecimento de água e tratamento de esgoto, passando pela
terceirização desenfreada da geração de energia elétrica e terminando no
risco de se usar o poder econômico para controlar o acesso à água.
Devido a uma condição subordinada a modelos externos decorrem
produzidas misérias humanas e ambientais.
Muito mais do que aceitar modelos estabelecidos, a inteligência
brasileira deveria tentar entender como o equilíbrio dinâmico dos
167

ecossistemas e do ciclo hidrológico condiciona nossa possibilidade de


usar e alterar as características intrínsecas dos corpos hídricos. Também
não se pode achar que a gestão de recursos hídricos esteja dissociada da
vida e da história dos cidadãos que habitam uma determinada bacia
hidrográfica. Um usuário de recursos hídricos é antes de tudo um
cidadão, com uma atividade política, econômica e cultural. É bom alertar
aos gestores de recursos hídricos que somos Homo sapiens sapiens e não
Homo aquaticus stricto sensu (e esperamos que, menos ainda, Homo homini
lupus).
Em síntese, as duas dimensões fundamentais do desperdício de
esforços em termos de recursos hídricos no Brasil são:

primeiro, técnicos e políticos quererem implementar modelos


alienígenas de gestão sem cuidar de ajustá-los à realidade brasileira;

segundo, tentar fazer gestão de recursos hídricos separadamente de


outras políticas públicas que direta ou indiretamente a afetam.

A Busca de uma Gestão de Recursos Hídricos mais Satisfatória

Foram acima sugeridos os principais dilemas e desafios da gestão


de águas no atual momento histórico do país, encarados dentro do
contexto maior da gestão pública e tendo como premissa que o Estado
deve existir para estar a serviço de toda a sociedade e não apenas de
grupos privilegiados. A conclusão direta a que se chega é que, muito mais
do que falta de dados hidrológicos, de laboratórios e de modelos de
computador, o que representa o grande passo a ser dado, nessa transição
para um sistema eficiente de gestão de recursos hídricos, é justamente a
construção de uma cidadania que leve em conta o pleno direito à água,
aqui incluindo os usos humanos e as demandas ambientais.
O entendimento de que a água serve de intermediário em muitas
relações humanas, integrando comunidades ou permitindo o surgimento
de conflitos, é fundamental para se chegar à definição de como a gestão
de um bem coletivo deve atender a interesses privados e públicos. Nesse
sentido, a solução para os crescentes impasses em torno da água parece
ser mais relacionada a uma transformação institucional, com suficiente
grau de radicalização, e à busca de novos patamares de comportamento
individual. Devem também ser superados os pressupostos políticos e
administrativos que explicam como os recursos naturais vêm sendo
tratados na tradição brasileira de excluir a maioria da sociedade dos
benefícios diretos e indiretos da atividade econômica. Assim, a gestão de
recursos hídricos tem um caráter essencialmente reformador e inovador,
tanto do aparelho de governo, quanto das relações interpessoais.
168

Vejamos a seguir três linhas fundamentais de como se avançar na


gestão de recursos hídricos conforme esse prisma de heurística e
renovação :

Transformação e Democratização da Coisa Pública

Ainda que sejamos, nessa profissão de gerir os recursos hídricos,


em grande maioria, técnicos de engenharia ou de outras ciências a ela
relacionadas, os quais preferem geralmente cuidar mais de números e
modelos matemáticos, não podemos nos iludir: a questão dos recursos
hídricos passa pela superação de um modelo de sociedade e de um
modelo de economia que hoje são hegemônicos. Gestão das águas é um
capítulo da reforma do Estado brasileiro, da inserção do país na economia
mundial e também da superação das desigualdades sociais.
Uma boa gestão de águas, além de estar relacionada a todo um
aparato técnico específico, tanto de hidrogeologia, quanto de climatologia
e ecologia, está também intrinsecamente relacionada à “boa escola” e ao
“bom voto”. Ou seja, está relacionada ao aprofundamento da cidadania e
à democratização das decisões sobre assuntos públicos.
Cabe aqui um breve parêntesis para observar que, em particular,
o acesso à água, tanto no campo, quanto na zona urbana, tem relação com
a reorganização da estrutura agrária do país, “ponto nevrálgico da
economia brasileira” e responsável principal pelo baixo nível e padrão
econômico da população brasileira (Prado Junior, 1979: 334), por ser o
latifúndio responsável pela marginalização de populações rurais e a
consequente formação de favelas nas periferias urbanas.

Embate Democrático e “Bom Senso” para Enfrentar Conflitos

O debate nacional em torno dos recursos hídricos tem sido


repetitivo e pouco inovador. Podemos comprovar a existência de livros e
congressos repetindo o que outros já repetiram. Creio, mesmo, que os
envolvidos no problema vêm sofrendo com alguns vícios e distorções de
raciocínio, tais como: “pensamento de grupo” (ou seja, todos repetem,
sem maior reflexão, as ideias de alguns iluminados, até que essas ideias
passam a ser uma verdade única), “racionalização do desejo” (há um
desejo coletivo que o mundo se ajuste às suas vontades pessoais), “medo
de parecer um ignorante na questão das águas” (todos seguem as
opiniões hegemônicas da academia ou do governo, com medo de
formular opiniões que possam aparentar desconhecimento do assunto) e
“receio de enfrentar um debate aberto com a sociedade civil” (os técnicos
e cientistas tendem a se esconder atrás de uma linguagem hermética e de
uma aura de profundos conhecedores dos problemas para evitar ter que
justificar suas incertezas e erros perante as pressões da sociedade, ainda
169

que esta sociedade tenha demandas concretas e sofra com a relutância


dos especialistas).
Em meio a tal distorção, as soluções dependem de que se amplie
a discussão sobre quais são as prioridades das comunidades locais, bem
como sobre as exigências da sociedade nacional. Para tanto, devem-se
valer de todos os meios de participação existentes, dentro e fora do
Estado. Nesse sentido, alguns dos preceitos da política de recursos
hídricos podem ser de grande auxílio, especialmente os comitês de bacia
e os conselhos ad hoc de recursos hídricos. Contudo, tais esferas de debate
não têm recebido a devida importância ou as devidas atribuições
simplesmente porque participar, criticar e contribuir não é uma prática
incentivada, e tampouco a sociedade em geral tem uma experiência
continuada de participação nas decisões coletivas.
Muitos avanços seriam obtidos apenas com uma disputa legítima
entre os interessados, que permitisse o afloramento do contraditório e o
reconhecimento de dúvidas técnicas existentes. Sirkis (1999) afirma que
gestão das águas é eminentemente ambiental, necessariamente
multidisciplinar e obrigatoriamente participativa. E que uma boa gestão
ambiental depende de governabilidade (circunstâncias gerais políticas,
socioeconômicas, culturais e psicossociais em que a administração
pública é exercida) e de boa governança (maior ou menor eficiência da
máquina administrativa pública). Neste particular, é interessante notar
que, para a gestão de águas, muitas das soluções poderiam ser
antecipadas mesmo sem um conhecimento preciso e acabado dos
problemas. Por exemplo, um estímulo ao envolvimento social para que
reduzisse o consumo de água pode ter resultados muito mais efetivos, a
curto prazo, do que gastos elevados em telemetria e sensoriamento
remoto.
Daí a necessidade de o gestor público ter muito “bom-senso”,
embasando suas decisões tanto em fatores técnicos, quanto em aspectos
culturais e políticos. Buzzi (2000: 202) esclarece que o bom-senso não é
“uma faculdade particular, nem uma espécie de instinto, nem uma
ciência, mas a concordância prática, o acordo espontâneo ou a síntese de
que entendemos, imaginamos, sentimos e desejamos”. Como nos ensinou
Erasmo de Rotterdam, “melhor ser um louco empreendedor que um
sábio tímido e hesitante”, já que “o bom-senso resulta da experiência”.

Uma Atitude Séria e Prudente Frente ao Futuro

De acordo com Rotmans et al. (2000), o problema hoje de se


planejar para um desenvolvimento que seja sustentável é muito mais
complexo do que os problemas da gestão pública do passado. Agora nos
é requerido que se considere o curto e o longo prazo, aquilo que é
objetivo e o que é subjetivo, quantitativo e qualitativo, certeza e incerteza,
além de se considerar os sinais discretos de mudança do mundo. Para
170

tanto, recomenda-se que a questão do uso e gestão da água deve ser


enfrentada sob a forma de um metaproblema, conforme proposto por
Reid (1995). Ou seja, uma junção (cluster) de problemas, vistos em
conjunto e encaminhados de forma articulada. Desse modo, não há como
se encaminhar soluções para a gestão das águas olhando somente um
aspecto da questão, mas deve ser uma resposta coletiva, forjada na
análise e síntese das diferentes tensões que se formam. Por exemplo,
qualidade das águas está relacionada ao padrão tecnológico da indústria
e da agricultura e ao modelo de crescimento urbano. Outro exemplo são
desavenças formadas quando políticas públicas promovem incentivos
conflitantes para setores econômicos que competem entre si pela mesma
água, como irrigação e geração hidroelétrica.
Em particular no que diz respeito à questão dos recursos hídricos,
como parte da gestão ambiental, é fundamental que os gestores tenham
uma atitude de precaução em relação aos problemas que decisões erradas
tomadas hoje podem acarretar para as populações futuras que
dependerão dos mesmos recursos finitos. Trata-se de gerir os capitais
ambientais com uma responsabilidade dupla: as presentes e as futuras
gerações. O´Riordan e Vosey (1998) falam que a "transição para a
sustentabilidade" requer uma visão dinâmica, flexível e capaz de
influenciar a tomada de decisões, sempre acompanhada de
procedimentos participativos. Para esses autores, no centro da questão da
sustentabilidade estão a autorregeneração da economia, política e
sociedade.
Essa soma de desafios não é simples, mas entremeada de
incertezas. Contudo, no dia a dia o papel do gestor é entender que sua
função é muito mais justificada, por um lado, como um facilitador em
ganhos de eficiência no uso da água, e, por outro lado, um indivíduo que
influencie as prioridades de outras áreas (e.g. economia, segurança,
transportes, produção primária, mineração, etc.) para que a questão dos
recursos hídricos tenha importância permanente na formulação de
políticas públicas.

Conclusões

Este capítulo final buscou examinar as causas que têm limitado a


gestão de recursos hídricos no país, os desperdícios de esforços em ações
que pouco contribuem para atender às demandas existentes e, finalmente,
ideias sobre como se buscar soluções concretas. Os obstáculos ao avanço
da gestão parecem ter uma natureza binária "pública-e-privada": parte é
fruto de distorções do setor governamental, parte é oriunda de atitudes
individuais. Ainda muito haveria a ser discutido, mas, em linhas gerais,
pretendeu-se demonstrar como a questão de recursos hídricos deve ser
inserida num contexto maior de disputas políticas e econômicas, além
daquelas técnicas e científicas comumente aceitas.
171

A conclusão principal é que, para se virar a página da retórica e


se chegar a avanços concretos na distribuição da riqueza coletiva
proporcionada pelos recursos hídricos, torna-se cada vez mais necessário
o comprometimento de autoridades e instituições com os mecanismos
por meio dos quais amplos setores da sociedade agem e se manifestam.
Para tanto, o ponto crucial é atuar de modo criativo, evitando repetir
fórmulas prontas e alienígenas, partindo para estratégias de ação lúcidas
e flexíveis. Devem ser superados o irracionalismo dos órgãos públicos e o
imobilismo da sociedade civil, mas também deve ser eliminado o
desânimo, que é produto da constatação de brutal destruição ambiental
em marcha, bem como de ser vencida a histeria de técnicos que acham
que sozinhos terão resposta aos problemas complexos que envolvem o
tema.
Finalmente, o momento hoje requer de nós uma capacidade de
reorganização para fazer frente aos dilemas das próximas décadas. Como
o título anunciava na primeira página, os usuários de recursos hídricos
são, antes de qualquer coisa, cidadãos de uma bacia hidrográfica no pleno
uso de seus direitos. Direito à vida com qualidade, ao desenvolvimento
econômico e à manutenção do equilíbrio do meio ambiente, para o quê a
disponibilidade garantida de água é elemento fundamental.

Bibliografia

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Sirkis, A. 1999. Ecologia Urbana e Poder Local. Fundação Movimento
ONDAZUL: Rio de Janeiro.
173

Anexo

Resumos em Inglês
[Abstracts in English]

Chapter 1 - Water, Charges and Commodity: The Geography of Water


in Brazil

Throughout the Brazilian history, but particularly in the last century,


economic activity has led to a progressive divergence between social and
environmental needs. The country industrialisation was responsible for
consolidating a mode of production that repeatedly creates social and
environmental injustices. Examples of that antagonism between society
and nature are the escalating levels of water scarcity and uneven access to
water resources. Recent legal and institutional changes have promoted a
now epistemology of water management, while emphasises the
hydrological space as the unit of intervention. One of the new
management instruments is water use charges, what have been promoted
by a strategic alliance between market forces and conservative
environmentalist movements. Water charges ultimately reproduce the
previous rationale of water management, which in the past crated most of
the socio-environmental distortions. Past and present demonstrate that
water resource problems in Brazil fundamentally originate from the basic
contradiction between the capitalist relations of production and the
natural conditions of production.

Chapter 2 - The Political Limits of an Incomplete Reform: The


Implementation of the Water Resources Legislation in the Paraíba do
Sul River Basin

In the last decade, the use and conservation of water resources in Brazil
have been the object of an ample process of reforms and institutional
reorganisation. The experience of the Paraíba do Sul River Basin was
selected as a paradigmatic example of the institutional reforms ongoing
in the country. Through qualitative research methods, the aims and the
deficiencies of the new decision-making structure were analysed. The
study identified, as the crucial shortcoming, the affirmation of a
technobureaucratic rationality, which is applied both to the assessment of
problems and the formulation of responses. The most evident expression
is the strategic relevance attributed to water use charges, a highly
controversial management instrument that is leading to a polarisation of
political positions. The reforms in the Paraíba do Sul have been largely
174

limited in themselves, given that the new institutional structure still


prevents the incorporation of the demands of the majority of the local
population and the proper solution to environmental questions
historically established.

Chapter 3 – Amazon, Water and Life

The characteristics of the Amazon region depend, to large extent, on the


extraordinary availability and flow of water. Even so, economic
development pressures have seriously compromised the regional water
resources due to agriculture expansion, dam construction and
environmental commodification. Improvements in water management
are directly related to new basis of economic production, technological
standards and redistribution of social opportunities.

Chapter 4 – Food Security and Energy Security: Some Political Ecology


Questions

The development of secure sources of bioenergy and continuous food


supply are increasingly relevant in the contemporary world. The balance
between food production and biofuels represents a serious challenge for
the vast majority of national governments. Given the limitations in terms
of arable land, financial resources and labour, as well as the need to
ensure environmental conservation, the availability of food and biofuels
have required increased productivity and greater integration of crops,
productive areas and economic chains. Normally, government's response
to these issues has emphasised the need to not only maintain and expand
the production of energy and food, but set goals in order to produce more
efficiently. Innovation, science and technology are clearly central themes,
particularly as development strategies and integration in a globalised
world of agriculture. However, agroenergy must be understood as part of
a socioeconomic and political context, which spreads throughout
historical issues and geopolitical complex, though not always
adquadamente considered by governments and the agribusiness sector.
Addressing the problem of energy-food relates directly to other economic
agendas and multisectoral interactions, which are extended from the local
to national and international scales of interaction. In this sense, the
present analysis provides a contribution to the debate on opportunities
and contradictions in the pursuit of greater energy and food security.
175

Chapter 5 – The Distance between Theory and Practice: Barriers for a


Participatory Water Management in the Baixada Fluminense, Rio de
Janeiro

The search for water sustainability requires not only a combination of


technical and managerial responses, but also firm action against
socioeconomic injustices and political inequalities. The recognition of the
politicised nature of water problems deserves particular attention in areas
marred by long-term trends of environmental degradation and social
exclusion. A case study of the Baixada Fluminense, an urbanised wetland
in the Metropolitan Area of Rio de Janeiro, illustrates the challenge to
reverse unsustainable practices in situations where water problems have
been politically and electorally exploited. The research made use of an
interdisciplinary approach to assess past and present initiatives that have
attempted, but systematically failed, to restore river ecology and improve
water services. The empirical results have important implications for
water policy making and urban planning.

Chapter 6 – From the Mouth to the Headwaters: Historical Analysis and


Economic Appropriation of Water Resources in Brazil

The management of water resources is related not only to practices and


technologies directly associated with distribution, use and conservation,
but also involves issues of national development and political
representation. The Brazilian experience, from the colonial period to the
recent economic liberalisation demonstrates this historical-geographical
complexity. During the developmental stage, characterised by import
substitution, large hydraulic engineering been implemented as the basis
of urban expansion and agro-industrial. The high environmental cost and
weaknesses of these initiatives have demanded stricter regulation to
mitigate environmental impacts and social conflicts. However, the new
legal framework introduced in 1997, despite discoursive and regulatory
advances, largely reproduced the same elitist and technocratic rationality
of the past. Effective alternatives to problems of water resources
management processes require more democratic and equitable changes
that are part of broader social transformations.

Chapter 7 – Bringing the Debate to the Mass Media

This chapter has three articles on water management problems published


in main Brazilian newspapers and discuss the interbasin transfer from the
São Francisco River to other parts of the northeast, the problematic and
controversial celebration of the World Water Day and the environmental
consequences of the financial crisis since 2008.
176

Chapter 8 – User or Citizenship: Personal Reflection on the Water


Management Experience in Brazil

The consideration of the socio-political context represents nowadays the


major challenge for achieving effective and sustainable water resources
management. Such context frames both governmental responses and the
likely success of public policies. Brazil has lost time and money on a
diffuse discussion about the ideal management model, without placing
enough emphasis on a more strategic and less rhetorical approach. The
main goal of this strategic approach should be to guarantee reasonable
standards of water quality and quantity to the population, to improve the
potential use of resources and to reduce vulnerability to scarcities and
floods. Water managers in this country should speed up an ongoing
process of gains in efficiency, what has been partially initiated in the last
few years. The present text also explores management hindrances,
identifies actions wasted with non-essential issues and, eventually, brings
up some ideas about how to cope with the complex demands. To do so, it
is necessary a very creative involvement of stakeholders, avoiding the
repetition of predetermined formulations and surmounting certain
irrationality of public institutions and the immobility of the civil society.
Overall, water users are, in essence, citizens of the river basin where they
live.

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