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REGINALDO PRANDI
afro-brasileiro:
etnia,
I
ntre os anos de 1525 e
1851, mais de cinco mi-
e
mudou muito, em três séculos, em fântis, achântis e outros não significa-
d
depois cabral
função dos cambiantes interesses das
potências envolvidas, suas disputas,
guerras e tratados (Oliveira, 1999).
II
III
superioridade demográfica, entre os bantos
no Brasil, dos africanos provenientes do
Congo e de Angola, onde estas línguas são
faladas. De fato, reminiscências culturais Nos primeiros séculos do tráfico, che-
desses grupos são conhecidas entre nós como garam ao Brasil preferencialmente africa-
congo, angola e cabinda, hoje usando-se ge- nos bantos, seguidos mais tarde pelos
nericamente o termo angola para todos os sudaneses, cujo tráfico se acentuou a partir
bantos, sobretudo quando se trata da desig- da queda do império de Oió, destruído pe-
nação de religião afro-brasileira de origem los fons do Daomé e depois dominados
banto ou de outra modalidade cultural, como pelos haussás. Sem proteção militar, as di-
a capoeira, luta marcial afro-brasileira. ferentes populações iorubás passaram a ser
IV
cisava, recebendo pagamento em dinheiro,
destinado ao senhor do escravo, no todo ou
em grande parte. Eram os “escravos de
ganho”, aos quais se juntavam os negros Como vimos, os termos “banto” e
libertos nas ocupações de carregadores, “sudanês” são referências muito gerais, en-
pequenos mercadores, barqueiros de cabo- globando cada uma destas classificações
tagem, produtores de víveres, artesãos de dezenas de diferentes etnias ou nações afri-
todas as artes, amas e empregados domés- canas. Durante todo o tráfico, por interesse
ticos, além de serviços de enfermagem, comercial, preservou-se alguma informa-
encarregados de serviços públicos, etc. ção sobre a origem étnica do africano, mas,
V
“confrarias” ou “cabildos”, com seus reis,
rainhas, damas de honra, suas orquestras.
Os cabildos de Cuba reuniam as nações
O escravo recebia freqüentemente não ganga, lucumi, carabali, congo, etc.
a designação de sua verdadeira etnia, mas No Brasil, a organização dos negros em
a do porto de embarque. Por exemplo, nações verificava-se em diferentes institui-
chamava-se indistintamente mina a todos ções. No exército os soldados negros for-
aqueles que passavam pelo forte de Mina, mavam quatro batalhões: minas, ardras,
fossem achântis, jejes ou iorubás. Catalo- angolas e crioulos. Na Bahia, por exemplo,
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ções se desligaram das etnias que eram
suas portadoras, para viverem uma vida
própria, podendo mesmo atrair para o seu
Com o fim da escravidão, parece que a seio não somente mulatos e mestiços de
população negra, na tentativa de se inte- índios, mas ainda europeus” (Bastide,
grar na sociedade brasileira, não como afri- 1974, p. 15).
canos, mas como brasileiros, teria se desin- Quando, já na segunda metade do sécu-
teressado de suas próprias origens, deixan- lo XX, o próprio candomblé deixou de ser
do-as definitivamente para trás, esqueci- uma religião dos grupos negros para se
das, como mais adiante aconteceria, depois transformar numa religião universal, isto
de algumas gerações, com o imigrante eu- é, aberta a todos, independentemente de
ropeu também desejoso de se tornar brasi- origens raciais, sociais e geográficas, o
leiro, como se o passado fosse um entrave desligamento da cultura de sua fonte étni-
a uma nova vida, uma memória ruim, lem- ca, a que se refere Bastide, fenômeno que
brança desnecessária. O Brasil já era então Bastide não conheceu, terá se completado
um país de brancos e negros, não se sabe definitivamente (Prandi, 1991).
bem de onde vindos, que são apenas brasi-
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leiros, como os mulatos, que representam
bem essa mistura.
Até o final do século XIX, a identifica-
ção através da nação, ainda que esta fosse A cultura africana que assim vai se di-
uma construção brasileira, estava presente luindo na formação da cultura nacional cor-
nos documentos que se referem a negros, responde a um vastíssimo elenco de itens
como testamentos, escrituras e relações que abrangem a língua, a culinária, a músi-
oficiais. Mas, como enfatiza Bastide, com ca e artes diversas, além de valores sociais,
o fim do tráfico e depois da própria escra- representações míticas e concepções reli-
VIII
na grande maioria a origem das palavras
aponta para as línguas quimbundo,
umbundo e quicongo, enfim as línguas das
nações angola e congo, especialmente Por volta da metade do século XIX, com
angola, que parece representar para o Bra- a presença de escravos, negros libertos e
sil uma espécie de África síntese. Bem seus descendentes nas grandes cidades,
menor é a participação dos sudaneses no quando a população negra conheceu maio-
vocabulário do brasileiro. Suas palavras res possibilidades de integração entre si,
incorporadas ao português e já dicio- com maior liberdade de movimento e mai-
narizadas são particularmente ligadas ao or capacidade de organização, uma vez que
cotidiano do candomblé, seu panteão, as- mesmo o escravo já não estava preso ao
pectos cerimoniais e comidas votivas, como domicílio do senhor, podendo agregar-se
ebó (oferenda), axexê (rito mortuário), bori em residências coletivas concentradas em
(sacrifício à cabeça), as comidas acarajé, bairros urbanos onde estava seu mercado
acaçá, efó, abará, palavras que são em sua de trabalho, vivendo com seus iguais, quan-
maioria iorubás. do tradições e línguas estavam vivas em
Com a formação da sociedade de clas- razão de chegada recente, criou-se no Bra-
ses, cada vez mais as organizações de corte sil o que talvez seja a reconstituição cultu-
estamental e étnico foram perdendo o sen- ral mais bem acabada do negro no Brasil,
tido e aspectos das culturas africanas fo- capaz de preservar-se até os dias de hoje: a
ram igualmente sendo mais e mais absorvi- religião afro-brasileira.
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contemporânea em busca de fontes supos-
tamente mais originais que aquelas preser-
vadas no Brasil pelos descendentes dos
Ultrapassada a primeira metade do sécu- escravos, originando-se um movimento que
lo XX, a possibilidade de se escolher o can- chamei de africanização do candomblé, que
domblé como religião deixa de ser prerroga- nada mais expressa que a valorização das
tiva do negro, abrindo-se a religião afro-bra- fontes africanas exatamente no momento
sileira para todos os brasileiros de todas as em que ao candomblé adere uma camada
origens étnicas e raciais. A sociedade bran- de brancos escolarizados (Prandi, 1991;
ca, que já no início do século criara uma 1996), isto é, quando se faz universal, cons-
versão mais branqueada do candomblé, a tituindo-se numa cultura para todos.
umbanda, capturou então, num outro movi- Se aspectos de origem africana compu-
mento de inclusão, aquela que durante um nham a cultura brasileira nas mais diversas
século tinha sido a religião dos negros. Já áreas, com o movimento dos anos 60 e 70
estávamos na sociedade de massa e o can- ocorreu todo um redimensionamento da he-
domblé seria o grande reservatório da cultu- rança negra, com o qual aquilo que antes
ra brasileira mais próxima da África. era tratado como exótico, diferente, primi-
É no final dos anos 60 e começo dos 70 tivo, passou a ser incorporado como habi-
que se inicia junto às classes médias a recu- tual, próximo, contemporâneo. A própria
X
passaram a ser reconhecidos como as au-
tênticas divindades africanas, sobretudo
com o surgimento da umbanda, que os dis-
A valorização da cultura negra no Brasil seminou por todo o país, os voduns fica-
ocorreu juntamente com a formação dos mo- ram limitados a uns poucos templos de
vimentos de minorias, entre os quais o mo- Salvador e cidades do Recôncavo e com-
vimento negro, nas suas mais diferentes pletamente escondidos do resto do país
manifestações, avivando-se para os afro- nos templos do Maranhão. Os inquices
descendentes a questão da origem e da iden- bantos desde longa data haviam sido subs-
tidade. Depois de séculos de integração, tituídos pelos orixás e encantados cabo-
miscigenação e branqueamento (físico e clos. Como se tudo que é negro remetesse
cultural), setores das populações negras e aos povos nagôs, como se todos os deuses
mulatas questionam e são questionados so- africanos fossem orixás.
bre sua condição africana e afro-descenden- O ensaísta e poeta norte-americano
te. Enquanto intelectuais e artistas não iden- Steven White, analisando a poesia produ-
tificados com uma causa negra procuram, zida nos últimos quinze anos por poetas
de modo geral, incorporar e dissolver a Áfri- brasileiros negros, como Estevão Maya-
ca brasileira numa arte e num discurso de Maya, Oliveira Silveira, Edimilson de
corte universal, surgem aqueles interessa- Almeida Pereira, Ricardo Aleixo e Lepe
dos exatamente em delinear a origem negra Correia, entre outros, mostra exatamente
como origem sua, fazendo da criação artís- como a procura de uma identidade negra,
tica documentos da própria identidade. africana, de origem, acaba remetendo à
Mas o negro, obrigado a incorporar-se necessidade de se reinventar um passado
numa cultura nacional, européia, branca e através da própria religião, que é a fonte
cristã, sem o que não era possível sobrevi- brasileira por excelência da memória das
ver – e o sincretismo católico das religiões origens africanas (White, 1999). O proces-
afro-brasileiras é a demonstração emble- so de elaboração desse passado mítico vai
mática dessa obrigatoriedade de ser brasi- beber nas próprias tradições correntes que
leiro e por conseguinte católico, mesmo brotam das instituições religiosas negras
quando se é africano e se cultuam os orixás, mais presentes no cenário cultural do país,
voduns e inquices –, pois bem, o negro e a identidade define-se a partir de uma
esqueceu sua origem. Já não é capaz de origem idealizada, que o poeta adota como
saber de onde vieram seus ancestrais, se sendo a sua. A reconstituição do passado
eram dessa ou daquela tribo ou cidade, que que orienta a construção da identidade se
língua falavam, nem mesmo sabe se eram faz assim a partir da cultura brasileira e não
bantos ou sudaneses. da verdadeira e perdida origem étnica, fa-
A superioridade numérica dos negros miliar e, em última instância, racial.
nagôs na Salvador do século XIX transfor- Mesmo quando o negro se expressa para
mou sua língua, o iorubá, numa língua co- afirmar a sua negritude, a sua condição
BIBLIOGRAFIA