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De africano a

REGINALDO PRANDI

afro-brasileiro:
etnia,
I
ntre os anos de 1525 e
1851, mais de cinco mi-

E lhões de africanos foram


trazidos para o Brasil na
condição de escravos,
identidade,
religião
não estando incluídos
neste número, que é uma aproxima-
ção, aqueles que morreram ainda em
solo africano, vitimados pela violên-
cia da caça escravista, nem os que pe-
receram na travessia oceânica. Não se
sabe quantos foram trazidos desde que
o tráfico se tornou ilegal. Ao longo de
mais de três séculos, enquanto a pró-
pria nação brasileira se formava e to- obra escrava: não havia a possibilida-
mava corpo, os africanos foram trazi- de do progresso material sem que mais
dos das mais diferentes partes do con- negros fossem importados, pois o tra-
tinente africano abaixo do Saara balho era essencialmente africano e
(Conrad, 1985, pp. 34-43). Não se tra- afro-descendente.
tava de um povo, mas de uma multi- Os escravos provinham de onde
plicidade de etnias, nações, línguas, fosse mais fácil capturá-los e mais
culturas. No Brasil foram sendo intro- rendoso embarcá-los. O infame comér-
duzidos nas diferentes capitanias e cio dependia, na África, das próprias
províncias, num fluxo que correspon- condições locais das populações nati-
de ponto por ponto à própria história vas, regulado por suas guerras, ódios
da economia brasileira. A prosperida- intertribais, domínios imperiais
de econômica estava relacionada a uma (Johnson, 1921). O tráfico era rendosa
intensificação da demanda de mão-de- atividade econômica para portugueses,

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brasileiros e traficantes de outras na- Etiópia ao Chade e do sul do Egito a REGINALDO PRANDI
é professor do
ções, mas era igualmente vantajoso Uganda mais o norte da Tanzânia. Ao Departamento de
Sociologia da USP e autor
para os africanos que caçavam e ven- norte representam a subdivisão do gru- de, entre outros,
diam africanos. A África já praticava po sudanês oriental (que compreende Herdeiras do Axé:
Sociologia das Religiões
o cativeiro muito antes da descoberta os núbios, nilóticos e báris) e abaixo o Afro-brasileiras (Hucitec).

da América e a Europa já importava grupo sudanês central, formado por


escravos africanos antes da descober- inúmeros grupos lingüísticos e cultu-
ta do Novo Mundo, mas foi o tráfico rais que compuseram diversas etnias
para cá do Atlântico que transformou que abasteceram de escravos o Brasil,
a caça de escravo na mais rendosa ati- sobretudo os localizados na região do
vidade para o próprio africano, num Golfo da Guiné e que, no Brasil, co-
mercado de escambo que dava a ele nhecemos pelos nomes genéricos de
cobiçadas mercadorias do Novo Mun- nagôs ou iorubás (mas que compreen-
do, especialmente o tabaco. dem vários povos de língua e cultura
A origem dos africanos trazidos iorubá, entre os quais os oyó, ijexá,
para o Brasil dependia também, e es- ketu, ijebu, egbá, ifé, oxogbô, etc.), os
pecialmente, de acordos e tratados fon-jejes (que agregam os fon-jejes-
realizados entre Portugal, Brasil e daomeanos e os mahi, entre outros),
potências européias, sobretudo a In- os haussás, famosos, mesmo na Bahia,
glaterra. A África, também como ce- por sua civilização islamizada, mais
leiro de mão-de-obra, era evidente- outros grupos que tiveram importân-
mente loteada entre os países coloni- cia menor na formação de nossa cultu-
ais-escravistas, e a origem do tráfico ra, como os grúncis, tapas, mandingos,

e
mudou muito, em três séculos, em fântis, achântis e outros não significa-

d
depois cabral
função dos cambiantes interesses das
potências envolvidas, suas disputas,
guerras e tratados (Oliveira, 1999).

II

Os povos da África Negra são classi-


ficados, grosso modo, em dois grandes
grupos lingüísticos: sudaneses e bantos.
Os sudaneses constituem os povos
situados nas regiões que hoje vão da

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tivos para nossa história. Freqüentemente Grupos falantes da mesma língua podi-
tais grupos foram chamados simplesmente am formar na África muitas variantes cul-
de minas. turais, às vezes com dialetos próprios e
Os bantos, povos da África Meridional, particularidades culturais. Entre os iorubás,
estão representados por povos que falam por exemplo, além de falarem variantes
entre 700 e duas mil línguas e dialetos apa- dialetais, diferentes cidades e aldeias
rentados, estendendo-se para o sul, logo cultuavam divindades específicas, manti-
abaixo dos limites sudaneses, compreenden- nham costumes cerimoniais próprios, ti-
do as terras que vão do Atlântico ao Índico nham músicas distintas e assim por diante.
até o cabo da Boa Esperança. O termo Até o século XVIII, cada grupo iorubá era
“banto” foi criado em 1862 pelo filólogo identificado pela sua cidade, não havendo
alemão Willelm Bleek e significa “o povo”, um nome para designá-los em conjunto.
não existindo propriamente uma unidade Cada cidade era politicamente autônoma,
banto na África. A principais línguas deste cada uma governada por seu obá, ou rei,
tronco são: o ajauá, falado em terras conti- mas uma delas dominava outras, formando
das hoje em Moçambique, Malauí e uma sociedade mais ampla, defendida pelo
Zimbábue; o ganguela, na fronteira leste de poder imperial da cidade dominante. Em-
Angola e oeste de Zâmbia; cuanhama, no bora a economia fosse baseada na agricul-
Sudoeste africano contido em Angola e tura, caça e pesca, a população habitava as
Namíbia; o iaco-cuango-casai, no Zaire; cidades, das quais Ifé, a cidade sagrada, era
macua, em Moçambique; quicongo, no considerada o berço dos iorubás e da hu-
Congo, Cabinda e Angola; quimbundo, em manidade toda. Entre os iorubás o último
Angola (acima do Rio Cuanza e ao redor de grande império foi o da cidade de Oió, a
Luanda); quinguana, no Zaire; quioco, no que estavam submetidas a maioria das de-
nordeste de Angola; ronga, em Moçambique mais cidades. Destas cidades, duas ocupam
e Zimbábue; suaíle, na Tanzânia, Zanzibar papel especial na memória da cultura reli-
e Moçambique; suto, na África do Sul; tonga, giosa que se reproduziu no Brasil: Oió, a
em Moçambique e Zimbábue; xona, em cidade de Xangô, e Ketu, cidade de Oxóssi,
Moçambique, Zimbábue e Botsuana; além de Abeokutá, centro de culto a
umbundo, em Angola, abaixo do Rio Cuanza Iemanjá, e Ilexá, a capital da subetnia ijexá,
e na região de Benguela (Lopes, 1998). Todas de onde são provenientes os cultos a Oxum
estas denominações datam de meados do e Logun-Edé. As inúmeras variantes cultu-
século passado para cá, resultado sobretudo rais locais, tanto no caso dos bantos como
do trabalho de lingüistas e etnólogos, ten- dos iorubás ou nagôs, não sobreviveram
dendo as etnias a serem reconhecidas pela como unidades autônomas e muitas foram
designação da língua. Em anos recentes, es- totalmente perdidas no Brasil. Diferenças
tudos lingüísticos demonstraram a sobrevi- específicas foram apagadas, amalgaman-
vência no Brasil de elementos originários do-se em grupos genéricos conhecidos
principalmente do quicongo, quimbundo e como jejes, nagôs, angola, etc.
umbundo, o que nos dá uma boa pista da

III
superioridade demográfica, entre os bantos
no Brasil, dos africanos provenientes do
Congo e de Angola, onde estas línguas são
faladas. De fato, reminiscências culturais Nos primeiros séculos do tráfico, che-
desses grupos são conhecidas entre nós como garam ao Brasil preferencialmente africa-
congo, angola e cabinda, hoje usando-se ge- nos bantos, seguidos mais tarde pelos
nericamente o termo angola para todos os sudaneses, cujo tráfico se acentuou a partir
bantos, sobretudo quando se trata da desig- da queda do império de Oió, destruído pe-
nação de religião afro-brasileira de origem los fons do Daomé e depois dominados
banto ou de outra modalidade cultural, como pelos haussás. Sem proteção militar, as di-
a capoeira, luta marcial afro-brasileira. ferentes populações iorubás passaram a ser

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presas fáceis do mercado local de escravos Faziam também parte desta força de traba-
mantido por vizinhos de outras etnias. lho urbana os “emancipados”, africanos
Como a economia brasileira colonial e de- trazidos pelo tráfico ilegal, libertados pelo
pois imperial vai se alterando ao longo dos governo e por ele empregados (Conrad,
séculos, a demanda por escravos também 1985, pp.171-86). Com a nova forma de
vai mudando geográfica e economicamen- uso da mão escrava, novas maneiras de viver
te. Assim, até a metade do século XVIII, do cativo ganharam corpo, já não sendo
grande parte da população negra importa- necessário seu convívio na propriedade do
da destina-se aos engenhos de açúcar de senhor, nem tendo que se manter a senzala.
Pernambuco e da Bahia, mas, com a desco- A escravidão se urbaniza, o escravo ganhou
berta do ouro em Minas, no século XVIII, maior liberdade de movimentos, ampliou
há um deslocamento do tráfico para as suas relações sociais e desenvolveu novas
Minas Gerais, correspondendo ao chama- formas de sociabilidade.
do Ciclo do Ouro. Sabe-se que o grosso da atividade agrí-
Ao longo da história agrícola colonial, cola e mineradora, implantada havia mais
o crescimento das atividades agrícolas tempo e espalhada por todo o interior rural,
correspondeu sempre a um maior afluxo de foi garantida por escravos de origem banto,
escravos. Foram a mão-de-obra dos cam- enquanto as atividades urbanas, mais recen-
pos de fumo e cacau da Bahia e Sergipe, tes e concentradas nas grandes capitais da
além da cana-de-açúcar; no Rio de Janeiro costa, estariam mais estreitamente relacio-
foram destinados aos plantios de cana e mais nadas aos sudaneses, devido basicamente às
tarde de café; em Pernambuco, Alagoas e mudanças de fluxo da origem do tráfico na
Paraíba eram indispensáveis aos cultivos África nos diferentes momentos históricos
de cana e algodão; no Maranhão e Pará tra- que marcam esta ou aquela atividade econô-
balharam no algodão; em São Paulo, na cana mica no Brasil. De fato, a importação de
e café. Em Minas, além da mineração, tra- escravos bantos não foi substituída pela de
balharam, mais tarde, nas plantações de sudaneses e continuou seu fluxo, embora os
café, também cultivado no Espírito Santo. provenientes dos portos da chamada Costa
Também estavam presentes na agricultura dos Escravos ou Golfo da Guiné viessem a
do Rio Grande do Sul e na mineração de ser mais concentrados nas cidades, sobretu-
Goiás e Mato Grosso. Em todos os lugares do na Bahia. No Rio de Janeiro, por exem-
foram os responsáveis também pelos ser- plo, a predominância demográfica de escra-
viços domésticos, organizados no comple- vos bantos sempre se manteve, devido em
xo casa-grande e senzala. À medida que grande parte às particularidades dos acor-
cresciam as cidades, sobretudo as litorâ- dos e tratados do tráfico, o que, por exem-
neas, já na virada para o século XIX, de- plo, permitiu aos traficantes portugueses dos
senvolveu-se um mercado de serviços ur- últimos tempos comercializar exclusivamen-
banos desempenhado pelos africanos es- te com o Rio de Janeiro os negros que só
cravos e baseado numa nova forma de es- podiam trazer da costa meridional africana
poliação, em que os escravos ofereciam suas (Rodrigues, 1976).
habilidades profissionais a quem delas pre-

IV
cisava, recebendo pagamento em dinheiro,
destinado ao senhor do escravo, no todo ou
em grande parte. Eram os “escravos de
ganho”, aos quais se juntavam os negros Como vimos, os termos “banto” e
libertos nas ocupações de carregadores, “sudanês” são referências muito gerais, en-
pequenos mercadores, barqueiros de cabo- globando cada uma destas classificações
tagem, produtores de víveres, artesãos de dezenas de diferentes etnias ou nações afri-
todas as artes, amas e empregados domés- canas. Durante todo o tráfico, por interesse
ticos, além de serviços de enfermagem, comercial, preservou-se alguma informa-
encarregados de serviços públicos, etc. ção sobre a origem étnica do africano, mas,

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na documentação oficial, a identidade da gues, em Os Africanos no Brasil, nos conta
origem podia simplesmente estar referida daqueles que ele pode conhecer pessoal-
ao porto de embarque. Embora cada porto mente ou de ouvir falar, remanescentes das
concentrasse preferencialmente as presas nações iorubás, chamados nagôs no Brasil,
das vizinhanças, a necessidade de manter que reuniam as etnias de Ilorin, Ijexá,
portos de embarque afastados, para driblar Abeokutá (egbás), Lagos, Ketu e Ibadan e
a vigilância quando o tráfico começou a Ifé, sendo que os provenientes da região
ficar ilegal, primeiro em certos segmentos central da iorubalândia (Oyó, Ilorin, Ijaxá)
da costa africana, mais tarde em todo o li- eram quase todos malês ou muçulmanos.
toral, fez com que partidas de escravos al- Nina Rodrigues também fala dos jejes, tra-
cançassem os portos depois de percorrer a zidos tanto do Daomé como de cidades do
pé, pelo interior, longos trajetos. Isso com- litoral, e do reino dos mahis, localizado ao
plicava a identificação do escravo, pois sua norte do país dos jejes daomeanos; mais os
origem através do porto de embarque po- haussás, os tapas, os grúncis e outros. Vi-
dia não mais corresponder a sua origem viam agrupados com os seus, preservando
verdadeira. Uma vez em terras brasileiras, línguas e costumes, embora falassem todos
a própria política oficial da Coroa, em cer- a língua nagô ou iorubá, língua geral de
tos períodos, propiciava o apagamento das comunicação dos africanos de todas as ori-
origens culturais, não estimulando, com o gens que viviam em Salvador pelo menos
receio da sublevação, o agrupamento de no século XIX.
escravos de mesmas origens, embora em Nas grandes cidades, onde predomina-
outras épocas buscasse agregá-los para vam os africanos de importação mais re-
melhor os controlar. Também, como a car- cente, especialmente tratando-se de escra-
ga era vendida freqüentemente em merca- vos de ganho que viviam aglomerados em
do aberto peça por peça, era fácil a desagre- habitações coletivas, havia tendência dos
gação e a dispersão dos grupos que eventu- negros, fossem eles libertos ou escravos,
almente poderiam ter uma mesma origem, de se agregarem em função de suas etnias
não sendo possível para o africano manter ou nações, vivendo com seus parentes, agre-
língua e cultura originais, obrigado a viver gados e também seus escravos, estes em geral
numa miscelânea lingüística e cultural que, da mesma nação do senhor negro. O estudo
além de tudo, estava submetida pela cultu- “Viver e Morrer no Meio dos Seus” de Maria
ra brasileira em formação, de língua e cos- Inês de Oliveira, sobre Salvador no século
tumes de tradição portuguesa. XIX, mostra exatamente isso.
No caso do tráfico dirigido à Bahia, Entre os africanos nascidos no Brasil há
Pierre Verger estabelece quatro períodos: mais tempo, entretanto, já poucos falavam
1o) o ciclo da Guiné durante a segunda sua língua e mantinham costumes originais.
metade do século XVI; 2o) o ciclo de Ango- No interior e nas cidades para onde a im-
la e do Congo no século XVII; 3o) o ciclo da portação de africanos era mais antiga, me-
Costa da Mina durante os três primeiros nos vestígios culturais permaneciam
quartos do século XVIII; 4o) o ciclo da baía intocados. Os casamentos entre nações, a
de Benin entre 1770 e 1850, estando inclu- miscigenação com o branco e com o índio,
ído aí o período do tráfico clandestino. A a adoção da cultura nacional promoveram
chegada dos daomeanos, chamados jejes com intensidade o apagamento das dife-
no Brasil, deu-se durante os dois últimos rentes culturas africanas. Quanto mais dis-
períodos, enquanto a dos nagô-iorubás cor- tante no tempo estamos, mais intenso terá
responde sobretudo ao último (Verger, sido o processo de absorção do africano à
1987, p. 10). A chegada relativamente tar- cultura brasileira em formação, menos
dia na Bahia urbana de etnias sudanesas marcas culturais específicas terão sobrado.
permitiu que, no final do século XIX, ve- Já nos períodos derradeiros da escravi-
lhos africanos ainda pudessem ser reconhe- dão, novos movimentos populacionais con-
cidos por sua etnia ou nação. Nina Rodri- tribuíram para a dispersão cultural. O fim

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do tráfico africano, por volta de 1850, co- gando-se o nome de todos os grupos africa-
incidiu com uma nova etapa de desenvol- nos encontrados nos inventários da escra-
vimento da economia. A pujança das plan- vidão, como fizeram, por exemplo, Beltrán
tações de café nas províncias de São Paulo, para o México e Escalante para a Colôm-
Rio de Janeiro, Minas Gerais e Espírito bia, pode-se verificar que não há quase
Santo continuava a demandar mão-de-obra nenhuma tribo africana que não tenha for-
escrava. Na impossibilidade da importa- necido seu contingente ao Novo Mundo,
ção africana, então totalmente inviabilizada embora esses negros não tenham deixado,
pelas pressões diplomáticas e vigilância na maioria das vezes, qualquer traço de suas
naval da Inglaterra, estabeleceu-se durante culturas nativas (Bastide, 1974, p. 12). Ini-
os trinta anos que levam à Abolição, em cialmente, no Brasil, os escravos urbanos e
1888, um muito rendoso mercado interno os negros livres eram divididos em nações
de escravos, vendidos pelas províncias cuja e o governo colonial permitia e incentivava
economia declinava e comprados pelos que eles tivessem seus próprios reis e seus
novos ricos plantadores de café do Centro- governadores, política que visava evitar a
Sul. Calcula-se em 300 mil o número de união generalizada dos negros e a possibi-
escravos assim transferidos de um lugar a lidade da sublevação, segundo a velha fór-
outro. Perderam população escrava todas mula que ensina dividir para reinar, políti-
as províncias do Nordeste, do Norte e do ca que, segundo Bastide, se mostrou muito
Sul (Conrad, 1985, pp. 212, 217). Como útil para os governantes, pois cada conspi-
caso extremo, o Ceará, assolado pela seca, ração foi denunciada de antemão aos se-
viu-se obrigado a se desfazer de quase toda nhores pelos escravos de outras etnias.
a escravaria, pois restava aos senhores ven- Especialmente entre os artesãos e outros
der os escravos para comprar comida para trabalhadores urbanos, os negros reuniam-
si e suas famílias, vindo a se tornar o mais se em associações de compatriotas com o
branco dos estados brasileiros, não só raci- fim de celebrar festivamente suas tradições,
almente, mas também culturalmente: no dissimulando, sob máscara católica, suas
âmbito das religiões, emblematicamente, é crenças religiosas.
o estado mais católico e menos afro-brasi- Houve por toda a América notáveis
leiro do país. exemplos dessas organizações ou “nações”
Esse rearranjo geográfico implicou, admiravelmente bem organizadas, desde os
evidentemente, num novo emaranhado de Estados Unidos, onde os negros elegiam,
origens, identidades e culturas, contribuin- no norte do país, seus governadores, até a
do para a formação de um amálgama cultu- Argentina. No Rio da Prata eram quatro as
ral de caráter, digamos, nacional, em que o “nações”: tonga, mandinga, ardra e congo,
negro vai ficando cada vez mais distante da as mais importantes subdividindo-se em
África e mais perto do Brasil. Ao que tudo “províncias”. Assim, em Montevidéu, a
indica, a população negra transplantada nação congo subdividia-se em seis provín-
nesta etapa da escravidão era aquela ocu- cias: gunga, guarda, angola, munjolo,
pada na agricultura e menos ligada às ocu- basundi e boma. No Peru havia os angolas,
pações urbanas. caravelis, moçambiques, congos, chalas e
Terra-Nova, com suas casas chamadas de

V
“confrarias” ou “cabildos”, com seus reis,
rainhas, damas de honra, suas orquestras.
Os cabildos de Cuba reuniam as nações
O escravo recebia freqüentemente não ganga, lucumi, carabali, congo, etc.
a designação de sua verdadeira etnia, mas No Brasil, a organização dos negros em
a do porto de embarque. Por exemplo, nações verificava-se em diferentes institui-
chamava-se indistintamente mina a todos ções. No exército os soldados negros for-
aqueles que passavam pelo forte de Mina, mavam quatro batalhões: minas, ardras,
fossem achântis, jejes ou iorubás. Catalo- angolas e crioulos. Na Bahia, por exemplo,

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a confraria negra católica de Nossa Senho- vidão, as referências às nações dos africa-
ra do Rosário era formada apenas pelos nos, enquanto referências de origem étni-
angolas, enquanto os iorubás reuniam-se cas, perderam sua importância e caíram em
numa igreja da Cidade Baixa. “Enfim, or- desuso, passando todos os negros a serem
ganizavam-se em associações de lazer, de classificados simplesmente como negros,
ajuda mútua, mantendo casas nos subúr- africanos ou de origem africana. As mistu-
bios, onde se escondiam as cerimônias re- ras étnicas se generalizaram em todas as
ligiosas propriamente africanas e onde se partes da América, formando-se o tipo “ne-
preparavam as revoltas” (Bastide, 1974, p. gro”, que apagou todas as origens. Por outro
13). São muitos os exemplos, por todo o lado as nações, como tradições culturais,
país, das associações de nações de escra- foram preservadas na forma de candomblé
vos, como a Irmandade do Senhor dos no Brasil, santeria em Cuba e vodus no
Martírios, fundada em Cachoeira, no Haiti, cada grupo religioso compreenden-
Recôncavo, pelos jejes em 1765 (Oliveira, do variantes rituais autodesignadas pelos
1999, p. 70). nomes de antigas etnias africanas. Assim,
Mas isso tudo no Brasil foi de impor- na Bahia, temos os candomblés nagôs ou
tância relativa, pouco afetando a vida do iorubás (ketu ou queto, ijexá e efã), os bantos
escravo. As organizações de nação tinham (angola, congo e cabinda), os ewe-fons
um caráter mais religioso e de ajuda mútua, (jejes ou jejes-mahis). Em Pernambuco, os
sobretudo tratando-se do negro livre, aban- xangôs de nação nagô-egbá e os de nação
donado à própria sorte, não contando, em angola. No Maranhão, o tambor-de-mina
caso de doença e morte, nem mesmo com das nações mina-jeje e mina-nagô. No Rio
o amparo do senhor. Mas nem incluíam a Grande do Sul o batuque oió-ijexá, tam-
todos e nem se encontravam por toda a parte. bém chamado de batuque de nação. “Isto
quer dizer”, diz Bastide, “que as civiliza-

VI
ções se desligaram das etnias que eram
suas portadoras, para viverem uma vida
própria, podendo mesmo atrair para o seu
Com o fim da escravidão, parece que a seio não somente mulatos e mestiços de
população negra, na tentativa de se inte- índios, mas ainda europeus” (Bastide,
grar na sociedade brasileira, não como afri- 1974, p. 15).
canos, mas como brasileiros, teria se desin- Quando, já na segunda metade do sécu-
teressado de suas próprias origens, deixan- lo XX, o próprio candomblé deixou de ser
do-as definitivamente para trás, esqueci- uma religião dos grupos negros para se
das, como mais adiante aconteceria, depois transformar numa religião universal, isto
de algumas gerações, com o imigrante eu- é, aberta a todos, independentemente de
ropeu também desejoso de se tornar brasi- origens raciais, sociais e geográficas, o
leiro, como se o passado fosse um entrave desligamento da cultura de sua fonte étni-
a uma nova vida, uma memória ruim, lem- ca, a que se refere Bastide, fenômeno que
brança desnecessária. O Brasil já era então Bastide não conheceu, terá se completado
um país de brancos e negros, não se sabe definitivamente (Prandi, 1991).
bem de onde vindos, que são apenas brasi-

VII
leiros, como os mulatos, que representam
bem essa mistura.
Até o final do século XIX, a identifica-
ção através da nação, ainda que esta fosse A cultura africana que assim vai se di-
uma construção brasileira, estava presente luindo na formação da cultura nacional cor-
nos documentos que se referem a negros, responde a um vastíssimo elenco de itens
como testamentos, escrituras e relações que abrangem a língua, a culinária, a músi-
oficiais. Mas, como enfatiza Bastide, com ca e artes diversas, além de valores sociais,
o fim do tráfico e depois da própria escra- representações míticas e concepções reli-

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giosas. Mas, fora do campo religioso, ne- dos pela cultura nacional, que é branca e
nhuma das instituições culturais africanas européia. Embora em muitos aspectos, so-
logrou sobreviver. Ao contrário, cada con- bretudo no campo das artes, possamos iden-
tribuição é o resultado de um longo e lento tificar no final do século XIX e no início do
processo de diluição e apagamento étnico século XX manifestações culturais carac-
a tal ponto que, diante de um determinado teristicamente negras, sua sobrevivência
traço cultural, embora podendo reconhe- dependia de sua capacidade de ser absorvi-
cer uma origem africana genérica, ainda da pela cultura branca. É o caso exemplar
assim é difícil, quando não impossível, da música popular brasileira, em que os
identificar o povo ou nação de que provém. ritmos e estruturas melódicas de origem
Tudo é simplesmente África, perdidas as africana sobreviveram na medida em que
diferenças e especificidades. Mais que isso, passaram a interessar os compositores bran-
os próprios afro-descendentes, por não cos ou consumidores da cultura branca.
conhecerem sua própria origem, nem sa- Assim, o lundu negro abria caminho para o
bendo se seus antepassados eram bantos ou choro branco; a música dos candomblés dos
sudaneses, também não podem identificar negros pobres fornecia a matriz para o sam-
as origens dos aspectos culturais, como se ba nacional das classes médias. Em outras
a cultura brasileira como um todo, ao se palavras, a preservação daquilo que é afri-
apropriar deles, tivesse apagado as fontes. cano requeria apagar ou disfarçar exatamente
Estudos de filólogos têm permitido, a origem e a marca negra, num processo de
contudo, identificar as fontes do vasto ar- branqueamento que atingiu todas as áreas,
senal de étimos africanos que compõem a do qual a umbanda é o exemplo emblemáti-
língua portuguesa no Brasil. Em seu recen- co, e que somente foi limitadamente rever-
temente publicado Dicionário Banto do tido a partir dos anos 60, quando a diferença,
Brasil (1998), Nei Lopes arrola cerca de o pluralismo cultural e a valorização das
oito mil vocábulos de origem banto incor- origens étnicas passaram a constituir a ori-
porados à língua portuguesa falada no Bra- entação dos produtores e consumidores cul-
sil. São provenientes dos mais diferentes turais, num movimento de âmbito cultural
grupos bantos, como se cada etnia desejas- que foi bastante expressivo no Brasil.
se perpetuar-se na língua do novo país, mas

VIII
na grande maioria a origem das palavras
aponta para as línguas quimbundo,
umbundo e quicongo, enfim as línguas das
nações angola e congo, especialmente Por volta da metade do século XIX, com
angola, que parece representar para o Bra- a presença de escravos, negros libertos e
sil uma espécie de África síntese. Bem seus descendentes nas grandes cidades,
menor é a participação dos sudaneses no quando a população negra conheceu maio-
vocabulário do brasileiro. Suas palavras res possibilidades de integração entre si,
incorporadas ao português e já dicio- com maior liberdade de movimento e mai-
narizadas são particularmente ligadas ao or capacidade de organização, uma vez que
cotidiano do candomblé, seu panteão, as- mesmo o escravo já não estava preso ao
pectos cerimoniais e comidas votivas, como domicílio do senhor, podendo agregar-se
ebó (oferenda), axexê (rito mortuário), bori em residências coletivas concentradas em
(sacrifício à cabeça), as comidas acarajé, bairros urbanos onde estava seu mercado
acaçá, efó, abará, palavras que são em sua de trabalho, vivendo com seus iguais, quan-
maioria iorubás. do tradições e línguas estavam vivas em
Com a formação da sociedade de clas- razão de chegada recente, criou-se no Bra-
ses, cada vez mais as organizações de corte sil o que talvez seja a reconstituição cultu-
estamental e étnico foram perdendo o sen- ral mais bem acabada do negro no Brasil,
tido e aspectos das culturas africanas fo- capaz de preservar-se até os dias de hoje: a
ram igualmente sendo mais e mais absorvi- religião afro-brasileira.

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formaçãodo
Nas diferentes grandes cidades do sécu-
lo XIX surgiram grupos que recriavam no
Brasil cultos religiosos que reproduziam não
somente a religião africana, mas também
outros aspectos da sua cultura na África. Os
criadores dessas religiões foram negros da
nação nagô ou iorubá, especialmente os de
tradição de Oyó, Lagos, Ketu, Ijexá e Egbá,
e os das nações jeje, sobretudo os mahis e os
daomeanos. Floresceram na Bahia, Pernam-
buco, Alagoas, Maranhão, Rio Grande do
Sul e, secundariamente, no Rio de Janeiro.
Embora tenha também surgido e se mantido
uma religião equivalente por iniciativa de
negros bantos, a modalidade banto lembra
muito mais uma adaptação das religiões
sudanesas do que propriamente cultos da
África Meridional, tanto em relação ao
panteão de divindades como em função das
cerimônias e processos iniciáticos.
A religião negra, que na Bahia se cha-
mou candomblé, em Pernambuco e
Alagoas, xangô, no Maranhão, tambor-de-
mina, e no Rio Grande do Sul, batuque, foi
organizada em grupos de “nações”, ou “na-
ções de candomblé” (Lima, 1984), e em
brasi
cada uma delas a nação africana que a iden-
tifica é responsável pela maioria dos seus
l
elementos, embora haja grande troca de
elementos entre elas, resultado dos conta-
tos entre nações no Brasil e mesmo anteri-
ormente na África. Na Bahia surgiram os
candomblés ketu e ijexá e mais recente-
mente o efã, todos de origem acentuada-
depois cabral
mente nagô ou iorubá, além de um can-
de
domblé de culto aos ancestrais, o candom-
blé de egungum. Também da Bahia é o can-
domblé jeje ou jeje-mahi, enquanto no
Maranhão o tambor denominado mina-jeje
dependeu mais de tradições dos jejes
daomeanos, ali também se criando uma de-
nominação mina-nagô. Em Pernambuco
sobreviveu a recriação da nação egbá, tam-
bém chamada nagô, e no Rio Grande do
Sul, as nações iorubanas oyó e ijexá. Em
Alagoas criou-se um culto de nação xambá,
igualmente nagô, hoje praticamente extinta.
Na Bahia, como em outros lugares, tivemos
a formação dos candomblés bantos, com três
referências básicas: candomblé angola,
congo e cabinda, mas apenas as dimensões

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da língua ritual e da música parecem ser sua deste mundo e do mundo paralelo dos deu-
marca de identidade, pois seus deuses são os ses e espíritos. Também se cultuam os orixás
orixás dos nagôs e seus ritos seguem os dos que protegem a cidade, em geral orixás da
candomblés nagôs e jejes. família do rei, os orixás do mercado, centro
Como disse antes, a religião negra que econômico e de sociabilidade da cidade, e
se refez na Bahia e outros lugares é uma outros que podem ser adotados por livre
reconstituição não apenas da religião afri- escolha por cada um. O chefe da família é
cana, mas de muitos outros aspectos cultu- o chefe do culto do orixá principal, inician-
rais da África original. Tomemos o can- do-se entre membros da família os sacer-
domblé ketu, que inclusive serve de mode- dotes que devem receber a divindade em
lo para os demais. Primeiro, refez-se no transe ritual durante as grandes celebrações
plano da religião a comunidade africana festivas. O mesmo se dá com respeito aos
perdida na Diáspora, criando-se através do orixás secundários, os das esposas. O culto
grupo religioso relações de hierarquia, su- ao orixá da adivinhação, chamado Orunmilá
bordinação e lealdade baseadas nos padrões ou Ifá, é praticado fora do âmbito da famí-
familiares e de parentesco existentes na lia, por uma confraria de sacerdotes cha-
África, fazendo-se da família-de-santo, a mados babalaôs, encarregados de, através
comunidade de culto, uma espécie de mini- de práticas divinatórias, ler e interpretar o
atura simbólica da família iorubá. futuro das pessoas, conhecer o desígnio dos
Os iorubás tradicionais são poligínicos, deuses, prescrever os sacrifícios propi-
com família extensa habitando residências ciatórios aos orixás. A adivinhação do
coletivas formadas de quartos e apartamen- babalaô é praticada através da interpreta-
tos contíguos, os compounds, cultuando ção de um enorme acervo de mitos (seus
deuses, os orixás, que são particulares para instrumentos divinatórios selecionam os
cada família, cidade e região (Fadipe, 1970). mitos a serem interpretados em cada con-
O chefe mora com sua mulher principal e sulta oracular), mitos que ele aprende du-
os filhos dela nos aposentos principais e as rante a iniciação e que explicam para o
demais esposas moram com seus filhos, iorubá seu mundo, a vida, a morte, a ação
habitando cada uma quartos separados. As dos deuses e tudo o mais que existe, e que
áreas comuns são reservadas para cozinha, fornecem e inspiram os valores e normas
lazer, trabalho artesanal e armazenamento. da sociedade iorubana. Uma outra socieda-
A família cultua o orixá do chefe masculi- de que envolve toda a cidade, às vezes mais
no, divindade ancestral que ele herda de uma, é a que se dedica ao culto dos an-
patrilinearmente, e que é o orixá principal cestrais fundadores da cidade, os egunguns,
de todos o filhos. Cada esposa cultua tam- culto estritamente masculino, responsável
bém o orixá da família de seu pai, que é o pela administração da justiça no plano das
segundo orixá de seus filhos. Assim, os relações comunitárias. A esta organização
irmãos devem culto ao orixá do pai, que é religiosa de culto aos fundadores e heróis
o mesmo para todos, e ao orixá da mãe, que humanos contrapõe-se uma outra, a socie-
pode ser diferente de acordo com a herança dade Geledé, que celebra os ancestrais fe-
materna. Como os iorubás crêem descen- mininos, as grandes mães. A religião do
der de seus orixás, a origem de cada indiví- dia-a-dia, de todo modo, é a religião fami-
duo não é necessariamente a mesma. Um liar, não se separando religião e família na
compound é assim uma reunião de diferen- vida cotidiana.
tes cultos, cada um com suas cerimônias, O candomblé, criação brasileira,
mitos e tabus. Há um deus geral e deuses estruturou-se como esta família iorubá. O
particulares louvados nas casas das diver- grupo de culto é dirigido por um chefe,
sas esposas. A família também tem como masculino ou feminino, com autoridade
culto comum a devoção a Exu, orixá máxima, e o orixá do fundador do grupo é
trickster que estabelece a comunicação o orixá comum daquela comunidade, para
entre os diferentes planos e personagens o qual é levantado o templo principal. Tem-

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plos secundários, denominados casas ou encarregadas de administrar o provimento
quartos-de-santo, são construídos para cada material da corte do rei inspiraram as ialodês
um dos orixás ou famílias de orixás louva- dos candomblés. A mulher encarregada de
dos pelo grupo. A hierarquia copia a da zelar pelo culto a Xangô no palácio do rei
família iorubá, devendo os membros mais de Oyó, e por isso mesmo chamada Ekeji
jovens respeito e submissão aos mais ve- Orixá, que significa a segunda pessoa do
lhos, aos pés dos quais se prostram em cum- orixá, foi certamente o modelo do cargo
primento, como fazem os filhos iorubanos das equédis, que são as mulheres que não
para com os mais velhos e como faz todo entram em transe e que vestem e dançam
iorubá em respeito às autoridades. Supõe- com os orixás incorporados em suas sacer-
se que os mais jovens devem aprender com dotisas e sacerdotes.
os mais velhos, transmitindo-se o conheci- O candomblé que assim se formou no
mento religioso pela palavra não-escrita. A Brasil foi mais que a reconstituição da re-
hierarquia agora é regulada não pela idade, ligião. Não sendo a religião africana sepa-
mas pelo tempo de iniciação, já que a inclu- rada na sociedade, para que ela fizesse sen-
são na família (religiosa) faz-se por livre tido, muitos aspectos da sociedade tiveram
adesão e não por nascimento. As mulheres que ser reconstituídos, pelo menos simbo-
mais velhas, isto é, iniciadas há mais tempo licamente, uma vez que no Brasil as estru-
(e no Brasil o sétimo ano de iniciação ga- turas familiares e societárias africanas es-
nhou o estatuto de ano que marca a tavam completamente ausentes, substituí-
senioridade) chamam-se entre si de egbômi, das, mesmo no caso do escravo, pelos pa-
que em iorubá significa “minha irmã mais drões ibero-brasileiros. Isso evidentemen-
velha” e que nada mais é que o tratamento te implicou muitas acomodações. Com a
que as esposas mais antigas, e por conse- destruição no Brasil da família africana,
guinte mais importantes, do chefe usam perdendo-se para sempre as linhagens e as
entre si. A recém-iniciada é chamada iaô, estruturas de parentesco, a identidade sa-
ou jovem esposa, noiva, que é como as grada não pôde mais ser baseada na idéia
esposas mais velhas chamam as mais no- de que cada ser humano descende de uma
vas. Claro que, com o passar do tempo, essas divindade através de uma linhagem bioló-
designações reservadas às mulheres passa- gica. Esta herança, baseada na família de
ram também a ser usadas para os iniciados sangue, foi substituída por uma concepção
masculinos. Além das práticas iniciáticas, mítica das linhagens. Continuou-se a crer
como a raspagem da cabeça que marca o que cada indivíduo descende de um orixá,
ingresso das meninas na puberdade, o uso que é considerado seu pai e a quem deve
de escarificações indicativas de origem tri- culto, mas isto independe da família bioló-
bal e familiar (os aberês do candomblé), gica e o orixá de cada um só pode ser reve-
costumes do cotidiano familiar africano lado através do oráculo, que no Brasil pas-
foram igualmente incorporados à religião sou a ser prerrogativa dos chefes de culto,
no Brasil como fundamento sagrado que as mães e os pais-de-santo, que tomaram
não deve ser mudado: dormir em esteira, para si todo o poder de adivinhação, o que
comer com a mão, prostrar-se para cumpri- provocou o desaparecimento da figura do
mentar os mais velhos, manter-se de cabe- babalaô, já que este se tornou um sacerdote
ça baixa na frente de autoridades, dançar supérfluo. Mas se manteve a idéia de um
descalço, etc. segundo orixá regendo o indivíduo, o ad-
Do governo das cidades o candomblé junto ou juntó, que na África era o da mãe
copiou postos de mando na religião. O con- biológica e que aqui é identificado também
selho do rei de Oyó, cidade de Xangô, ins- através do oráculo.
pirou a criação do conselho dos obás ou Toda esta reconstrução, com as inevitá-
mogbás em terreiros deste orixá. O general veis adaptações, recriou no Brasil uma
balogun tranformou-se em cargo de alta África simbólica, que foi, durante pelo
hierarquia no culto a Ogum. As mulheres menos um século, a mais completa referên-

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cia cultural para o negro brasileiro. Como peração das nossas raízes culturais, reflexo
instituição agora da sociedade brasileira, de um movimento cultural muito mais
funcionou como uma espécie de ilha à qual amplo, que, nos Estados Unidos e na Euro-
o negro podia recolher-se periodicamente, pa, e daí para o Brasil, questionava as ver-
num refúgio idílico capaz de atenuar, quem dades da civilização ocidental, o conheci-
sabe, as agruras da vida cotidiana na soci- mento universitário tradicional, a superio-
edade inclusive branca. Mas, na medida em ridade dos padrões burgueses vigentes, os
que o tráfico cessou, a escravidão chegou valores estéticos europeus, voltando-se para
ao final e se iniciou o lento e inconcluso as culturas tradicionais, sobretudo as do
processo de integração do negro na socie- Oriente, e buscando novos sentidos nas
dade de classes então em formação, o can- velhas subjetividades, em esquecidos va-
domblé como reunião de negros originá- lores e escondidas formas de expressões.
rios e descendentes de determinadas etnias No Brasil verificou-se um grande retorno à
ou nações africanas deixou de fazer senti- Bahia, com a redescoberta de seus ritmos,
do. A adesão dos negros às diferentes na- seus sabores culinários e toda a cultura dos
ções de candomblé deixou de ser orientada candomblés. As artes brasileiras em geral
por sua origem de nação e passou a se cons- (música, cinema, teatro, dança, literatura,
tituir numa escolha pessoal, pesando na artes plásticas) ganham novas referências,
decisão as simpatias pelo chefe do grupo, o o turismo das classes médias do Sudeste
conhecimento e amizade dos adeptos, etc. elegeu novo fluxo em direção a Salvador e
De todo modo, o corte não é mais étnico. demais pontos do Nordeste (Prandi, 1991).
Assim como o negro esqueceu sua origem O candomblé se esparramou muito rapida-
e a língua de seus pais e avós, o candomblé mente por todo o país, deixando de ser uma
também esqueceu o significado das pala- religião exclusiva de negros, a música
vras e a sintaxe das suas línguas sagradas. baiana de inspiração negra fez-se consumo
Embora os cânticos e rezas tenham sido nacional, a comida baiana, nada mais que
preservados nas línguas originais, modifi- comida votiva dos terreiros, foi para todas
cadas e corrompidas, evidentemente, a cada a mesas, e assim por diante.
geração, as diversas línguas do candomblé Para tal anseio em beber nas raízes, a
deixaram de ser línguas de comunicação, Bahia acabou por não bastar. Numa segun-
para serem línguas rituais intraduzíveis. da etapa, os brasileiros, agora de todas as
origens, voltaram-se em direção à África

IX
contemporânea em busca de fontes supos-
tamente mais originais que aquelas preser-
vadas no Brasil pelos descendentes dos
Ultrapassada a primeira metade do sécu- escravos, originando-se um movimento que
lo XX, a possibilidade de se escolher o can- chamei de africanização do candomblé, que
domblé como religião deixa de ser prerroga- nada mais expressa que a valorização das
tiva do negro, abrindo-se a religião afro-bra- fontes africanas exatamente no momento
sileira para todos os brasileiros de todas as em que ao candomblé adere uma camada
origens étnicas e raciais. A sociedade bran- de brancos escolarizados (Prandi, 1991;
ca, que já no início do século criara uma 1996), isto é, quando se faz universal, cons-
versão mais branqueada do candomblé, a tituindo-se numa cultura para todos.
umbanda, capturou então, num outro movi- Se aspectos de origem africana compu-
mento de inclusão, aquela que durante um nham a cultura brasileira nas mais diversas
século tinha sido a religião dos negros. Já áreas, com o movimento dos anos 60 e 70
estávamos na sociedade de massa e o can- ocorreu todo um redimensionamento da he-
domblé seria o grande reservatório da cultu- rança negra, com o qual aquilo que antes
ra brasileira mais próxima da África. era tratado como exótico, diferente, primi-
É no final dos anos 60 e começo dos 70 tivo, passou a ser incorporado como habi-
que se inicia junto às classes médias a recu- tual, próximo, contemporâneo. A própria

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música popular incorpora ao velho e suces- mum dos negros escravos e libertos das mais
sivamente branqueado samba novas bati- diferentes origens étnicas que conviviam
das, mais próximas da percussão dos ter- na cidade. Quando os diferentes grupos
reiros de candomblé. As escolas de samba organizaram sua religião na Bahia, foram
do carnaval não se cansam de fazer desfilar candomblés nagôs, com muitas contribui-
os orixás na avenida. A televisão, na notí- ções rituais dos jejes, que melhor conse-
cia e na ficção, não consegue deixar de lado guiram se impor como modelo de culto,
referências constantes aos deuses dos ter- de tal modo que os seus deuses, os orixás,
reiros, ao jogo de búzios, aos falsos e au- acabaram ganhando um destaque, primei-
tênticos pais e mães-de-santo. A cultura de ro local e depois nacional, capaz de
uma minoria agora já é consumo de todos. embaciar a presença dos voduns dos jejes
e inquices dos bantos. Enquanto os orixás

X
passaram a ser reconhecidos como as au-
tênticas divindades africanas, sobretudo
com o surgimento da umbanda, que os dis-
A valorização da cultura negra no Brasil seminou por todo o país, os voduns fica-
ocorreu juntamente com a formação dos mo- ram limitados a uns poucos templos de
vimentos de minorias, entre os quais o mo- Salvador e cidades do Recôncavo e com-
vimento negro, nas suas mais diferentes pletamente escondidos do resto do país
manifestações, avivando-se para os afro- nos templos do Maranhão. Os inquices
descendentes a questão da origem e da iden- bantos desde longa data haviam sido subs-
tidade. Depois de séculos de integração, tituídos pelos orixás e encantados cabo-
miscigenação e branqueamento (físico e clos. Como se tudo que é negro remetesse
cultural), setores das populações negras e aos povos nagôs, como se todos os deuses
mulatas questionam e são questionados so- africanos fossem orixás.
bre sua condição africana e afro-descenden- O ensaísta e poeta norte-americano
te. Enquanto intelectuais e artistas não iden- Steven White, analisando a poesia produ-
tificados com uma causa negra procuram, zida nos últimos quinze anos por poetas
de modo geral, incorporar e dissolver a Áfri- brasileiros negros, como Estevão Maya-
ca brasileira numa arte e num discurso de Maya, Oliveira Silveira, Edimilson de
corte universal, surgem aqueles interessa- Almeida Pereira, Ricardo Aleixo e Lepe
dos exatamente em delinear a origem negra Correia, entre outros, mostra exatamente
como origem sua, fazendo da criação artís- como a procura de uma identidade negra,
tica documentos da própria identidade. africana, de origem, acaba remetendo à
Mas o negro, obrigado a incorporar-se necessidade de se reinventar um passado
numa cultura nacional, européia, branca e através da própria religião, que é a fonte
cristã, sem o que não era possível sobrevi- brasileira por excelência da memória das
ver – e o sincretismo católico das religiões origens africanas (White, 1999). O proces-
afro-brasileiras é a demonstração emble- so de elaboração desse passado mítico vai
mática dessa obrigatoriedade de ser brasi- beber nas próprias tradições correntes que
leiro e por conseguinte católico, mesmo brotam das instituições religiosas negras
quando se é africano e se cultuam os orixás, mais presentes no cenário cultural do país,
voduns e inquices –, pois bem, o negro e a identidade define-se a partir de uma
esqueceu sua origem. Já não é capaz de origem idealizada, que o poeta adota como
saber de onde vieram seus ancestrais, se sendo a sua. A reconstituição do passado
eram dessa ou daquela tribo ou cidade, que que orienta a construção da identidade se
língua falavam, nem mesmo sabe se eram faz assim a partir da cultura brasileira e não
bantos ou sudaneses. da verdadeira e perdida origem étnica, fa-
A superioridade numérica dos negros miliar e, em última instância, racial.
nagôs na Salvador do século XIX transfor- Mesmo quando o negro se expressa para
mou sua língua, o iorubá, numa língua co- afirmar a sua negritude, a sua condição

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africana, não resta a ele fazê-lo senão como contemporâneo e a velha África, assim
brasileiro. Ainda que o passado ancestral como a antiga Europa e as perdidas civili-
perdido seja a África pluriétnica, zações indígenas, situa-se a nossa própria
multicultural, o passado recuperável é aque- história, que nos impede ou auxilia no re-
le que o Brasil logrou incorporar na cons- encontro do nosso ponto de partida, nos
trução de uma nova civilização, passado meandros da civilização que ela mesma
que só pode ser reinventado. Entre o Brasil engendrou.

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