Você está na página 1de 55

BONDIOLI, Anna. A dimensão lúdica na criança de 0 a 3 anos na creche.

IN: BONDIOLI,
Anna e MANTOVANI, Susanna. Manual de educação infantil: de 0 a 3 anos. Porto Alegre:
Artes Médicas, 9ª edição, 1998. p.212-227.

Página 212

A Dimensão Lúdica na Criança de 0 a 3 Anos e na Creche


Anna Bondioli

Após a reavaliação do jogo como modalidade fundamental de aquisição e


organização da experiência das crianças pequenas, encontrável em cada
contexto cultural e até no mundo animal, derivou-se a idéia de que haja
uma relação entre jogo e possibilidades evolutivas. A partir daí foi
delineando-se uma pedagogia do jogo que se casava bem com uma
concepção de maturação do crescimento, do tipo: "deixem as crianças
brincarem e certamente seu desenvolvimento motor, lingüístico, intelectual
e social melhorarão", Em recente entrevista, Garvey desmente essa
convicção radicalizada, sustentando que se é verdade que as pesquisas
confirmam o binômio jogo/saúde psicofísica da criança, elas ainda não
conseguiram estabelecer a função e o papel do jogo no desenvolvimento
infantil (Mayer, 1985). Tal constatação parece-nos salientar que o jogo pode
ser considerado, com razão, um aspecto normal do desenvolvimento
optimal, mas que ainda há muito o que se estudar, aprofundar e
experimentar acerca das condições que fazem do jogo um instrumento
evolutivo e, com maior razão, um espaço privilegiado da educação pré
escolar. Existe pois o risco de querer considerar jogo cada manifestação
infantil ou, ao contrário, de pensar que se pode transformar em jogo cada
situação de experiência das crianças pequenas.
Uma segunda idéia atravessou o debate relativo à formulação de uma
"pedagogia do jogo" nas instituições para a primeira infância, a que
considera os objetos, os materiais, os brinquedos em primeiro plano, na
organização das atividades lúdicas, visto que a curiosidade infantil, em
relação ao mundo externo, parece um fenômeno tão geral e precoce que faz
pensar ser ela inata e que não necessita de condições particulares para que
se manifeste. Algumas pesquisas contribuíram bastante para desmentir
essas concepções de caráter tanto psicanalítico quanto interativo-cognitivista
que, mesmo partindo de premissas diferentes, evidenciaram como a relação
com os objetos, e o desejo de exploração que constitui a sua motivação, não
seja um impulso primário, mas que se constitua a partir de situações sociais
compartilhadas com o adulto que funciona como medium (meio) em relação
às coisas e aos eventos do mundo físico. Tais pesquisas mostram que existe
uma outra criança, antecedente à piagetiana,

Página 213
descobridora e construtora da realidade, e que o jogo apresenta, desde o
início, uma forte qualidade social.
Isso também fez repensar ou, pelo menos, conter dentro de limites mais
restritos a idéia piagetiana do egocentrismo infantil que vê a criança em
idade pré-escolar interagir com os coetâneos por períodos de tempo
prolongados de maneira completamente solipsística e não social. Uma
linha de pesquisa, que está amplamente apresentada em um outro ensaio
desta parte da antologia (cf. Musatti, neste volume), corrige essa
hipótese, evidenciando as conotações peculiares das trocas entre crianças
em situações de jogo.
Dessas breves considerações surge a necessidade de delinear uma
seqüência evolutiva do jogo de zero a três anos que esclareça, para cada
etapa considerada, o entrelaçamento entre criança, objetos, pessoas no
jogo, e evidencie a inter-relação entre aspectos cognitivos, afetivos e
sociais. A partir dessa progressão, apresentada na primeira parte deste
trabalho, serão discutidos alguns traços de uma "pedagogia do jogo" na
creche, setting (ambiente) educacional absolutamente particular que se
caracteriza pela presença de várias crianças aproximadamente da mesma
idade e de figuras de referência diversas das parentais, com uma
preparação pedagógica que deveria permitir a organização e
administração de maneira consciente das situações de jogo oferecidas às
crianças. Mas, para que essa possibilidade se traduza em realidade, é
necessário iniciar a discussão - pelo menos no que diz respeito às
atividades lúdicas, que é o tema que aqui nos compete - sobre as
modalidades com as quais objetos e pessoas do setting creche são
colocados para fazê-los interagir no jogo. Portanto, analisaremos algumas
pesquisas no campo da avaliação de experiências de jogo na creche e,
sem nos determos nas também importantes questões relativas à escolha
dos materiais, aos tipos de atividades e à organização temporal da vida
cotidiana na creche, identificaremos como problema principal o
comportamento e o papel do adulto nas situações lúdicas. Já na família,
primeira agência de socialização infantil, o espaço de jogo deveria ser
estudado e potencializado. Ainda com maior razão, na creche, que se
caracterizou, durante todos estes anos, pela busca de estratégias e
modelos pedagógicos na medida da criança. Em particular, a interação
adulto/criança e adulto/grupo de crianças constitui um elemento
fundamental para caracterizar qualitativamente a creche como espaço
educacional sobretudo em relação ao jogo, que é um dos mais difundidos
e espontâneos comportamentos infantis. A espontaneidade de tal
comportamento não deve, porém, fazer com que se esqueça que o espaço
do jogo é, desde o início, um espaço que se constrói, uma experiência que
se adquire enquanto compartilhada, que se enriquece através da
incorporação de modelos "culturais" participados.
1. A CONSTRUÇÃO DO ESPAÇO DE JOGO ENTRE ADULTO E CRIANÇA:
O OBJETO DE TRANSIÇÃO

Enquanto Piaget está atento em estudar o modo com o qual a criança


chega, de um estado de indiferenciação inicial, a distinguir a si mesma do
mundo externo, compreendido sobretudo no seu aspecto físico, a discriminar
entre meios (as próprias ações) e fins (efeitos produzidos pelas ações sobre
os objetos), a especificar-se como objeto entre objetos no espaço, o
interesse dos psicanalistas infantis está voltando, em primeiro lugar, à
questão de como um recém-nascido, partindo de uma total indiferenciação,
constrói progressivamente, através das trocas que realiza

Página 214

com o ambiente - compreendido não somente em sentido físico, mas


também e sobretudo social - o sentido da sua própria identidade pessoal.
Este percurso é descrito por Winicott (1971) como a passagem de um
estado de fusão total com o ambiente (a mãe) àquele onde a criança
começa a ter consciência da própria individualidade (uma pessoa entre
tantas pessoas, uma pessoa diferente de todas as outras); de um estado de
não-integração primária, na qual aquele que posteriormente se tornará um
Eu é um conjunto de sensações fragmentárias e desconexas, a um estado
de integração caracterizado pela percepção de possuir um "dentro" e um
"fora"; de um estado de não-personalização a um estado de personalização,
caracterizado pela conquista da unidade psicossomática de um estado de
dependência absoluta a uma situação de independência. Esse percurso, se
bem realizado, leva à construção do Eu que confere ao indivíduo o sentido
de ser real. É no jogo recíproco entre mãe e criança que, de forma
totalmente paradoxal, a criança encontra o Eu através da descoberta do
outro (a mãe), experimentando a frustração conseqüente à perda da
sensação inicial de fusão.
Tal frustração é compensada por um sentimento de onipotência que dá à
criança a impressão de ter ela mesma criado o objeto de que tinha
necessidade. Quando o recém-nascido sente fome, pode vencer essa
sensação desagradável imaginando de maneira mágica e onipotente o
objeto que saciará a sua fome: o seio materno.
Se a mãe, em tempo razoável, satisfizer o impulso da criança, ela
contribuirá para que se crie na criança a ilusão de ter ela mesma criado o
objeto. "Quando a adaptação da mãe às necessidades da criança é
suficientemente boa, ela fornece à criança a ilusão de que exista uma
realidade externa que corresponde à capacidade da criança de criar
(ibidem, p.39). Este espaço da ilusão - e o sentimento de onipotência que
provoca na criança - constitui a base da experiência lúdica.
Paradoxalmente, é justamente essa ilusão inicial que, fornecendo um
grande reforço do Eu embrionário infantil, permite suportar mais tarde a
desilusão, isto é, a descoberta da mãe como um ser fora da criança, como
não-Eu, como objeto separado. O objeto de transição (um pedaço de lençol,
a franja de um cobertor e, mais adiante, um bichinho de pelúcia, um
brinquedo) - e o seu uso por parte da criança - assinala, justamente para a
criança, a passagem de um estado de fusão com a mãe a um estado no
qual, vendo-a como algo separado, pode entrar em relação com ela. O
brinquedo de transição é de fato, para a criança, ao mesmo tempo, eu e
não eu; é um objeto possuído, mas que parece gozar de vida própria. O seu
valor lúdico é simbólico: substitui algo (a ausência da mãe), está no lugar
da mãe, mas ao mesmo tempo não é a mãe, é um objeto independente
dela. Se os cuidados maternos são suficientemente bons e dão segurança à
criança, o objeto de transição pode tornar-se mais importante do que a
própria mãe (a criança leva-o sempre consigo, o quer na cama, o procura
ativamente se lhe for subtraído) e contribui, assim, para o nascimento de
uma independência afetiva e para o interesse em relação ao mundo
externo.
O instaurar-se da relação com o objeto, realizada através da área de jogo
que une a mãe à criança, permite ao pequeno brincar sozinho, seguro de
que a pessoa que ama "esteja disponível e continue a sê-lo mesmo quando
é lembrada depois de ter sido esquecida" (Ibidem, p.93).
Outros estudos também de caráter psicanalítico, em particular os de Spitz
e de Klein, tiveram o mérito de evidenciar que o impulso epistemofílico
deriva de uma relação mãe/criança exitosa salientando a importância dos
cuidados maternos

Páginas 215

e a qualidade da interação adulto/criança nos primeiros meses de vida


[Nota: 1]. O fato de que tais cuidados não fossem somente físicos mas que
tivessem qualidades afetivo-emocionais era fortemente evidenciado nos
autores mencionados; muito menos a descrição detalhada dessas
habilidades complexas que as mães parecem possuir de maneira
completamente natural. As pesquisas relativas aos "cuidados maternos"
são, por outro lado, extremamente interessantes para quem, não como
mãe, mas como educadora, tem relação com crianças pequenas, pois,
demonstrando a possibilidade de estudo e de análise, mostram que são
competências sob certos aspectos reproduzíveis, adquiríveis, melhoráveis
também por quem interage com as crianças pequenas em contexto extra
familiar.

2. O ADULTO COMO BRINQUEDO


A criança de poucos meses permanece a maior parte do tempo no berço,
quase sempre deitada, o que não lhe permite uma ampla visão do mundo
circunstante. Nessas condições, o que mais desperta interesse na criança,
quando se encontra acordada, parece ser o rosto humano pelas suas
características de mobilidade e expressividade que o diversificam e o
destacam em relação aos outros objetos do ambiente (cf. Fantz, 1958, 1961,
1966). Assim como a mímica facial, os gestos e os movimentos do adulto
que também atraem a atenção do bebê, em virtude da intencionalidade
comunicativa que apresentam. Isso depende do fato de que, quando os
adultos interagem com as crianças, o seu comportamento é fortemente
influenciado por aquilo que a criança fez, faz ou irá fazer.
Do ponto de vista da criança, o adulto é um objeto interessante enquanto é
capaz de responder de maneira ativa, adaptável e contingente em relação às
ações e às expectativas infantis. Ainda do ponto de vista da criança, incapaz
de governar e controlar os eventos do mundo externo, pela sua limitada
possibilidade de movimento e de preensão, o adulto assume o papel de
primeiro brinquedo, de primeiro "objeto" que ela pode tentar dominar e
colocar sob seu próprio controle. Do ponto de vista do adulto, a eficácia do
seu comportamento em relação à criança está estritamente ligada àqueles
dotes e competências que Schaffer chama de "sensibilidade" e "prontidão" e
àquela responsividade, que consiste na capacidade de adaptar de maneira
flexível e sincronizada os próprios gestos e o próprio comportamento ao
comportamento da criança. Se o adulto é o primeiro brinquedo, o único
objeto com o qual a criança pode experimentar o seu próprio poder, então as
primeiras brincadeiras são constituídas por situações felizes compartilhadas
por adulto e criança.
Em situações favoráveis, ou seja, quando as crianças estão acordadas e
mantidas comodamente em posição ereta, estas participam, já desde as
primeiras semanas depois do nascimento, de trocas diádicas caracterizadas
pela alternância dos turnos. Quando a mãe fala "frente a frente", nos jogos
com a criança, ela demonstra uma

Página 216

notável capacidade de entrar de maneira apropriada na conversação, usando


uma linguagem gestual e expressiva, constituída por sorrisos, pelo franzir
das sobrancelhas, vocalizações, borbulhas. Parece que o comportamento
espontâneo das crianças seja temporariamente organizado por mecanismos
endógenos caracterizados por uma seqüência on – off (por exemplo: sorriso-
pausa; vocalização-pausa) e que a mãe se adapte a este ritmo natural
intervindo na interação durante as pausas. Constituem-se o que Schaffer
chama pseudodiálogos que, mesmo não sendo verdadeiras conversações -
devido à falta de uniformidade na capacidade dos dois parceiros-,
caracterizam-se pelo perfeito sincronismo dos dois participantes (Schaffer,
1971, 1977 a).
Dois parecem ser os aspectos peculiares destas trocas entre mãe e criança:
- aquilo que inicialmente para a criança possui somente significado
expressivo (sorriso, mímica facial, vocalização) pelo fato de ser interpretado
pela mãe como sendo carregado de valores comunicativos, torna-se
precocemente meio efetivo de comunicação (Spitz, 1958);
- a partir do momento em que a criança é envolvida cotidianamente em
seqüências rituais análogas, ela se torna sempre mais capaz de assumir um
papel ativo na troca e de produzir ações apropriadas, para manter a
seqüência de atividade recíproca.
O valor lúdico desses rituais (conversações frente a frente, gestos e
palavras trocados nos momentos da higiene, da refeição, do banho, antes de
dormir) consiste no alto grau de previsibilidade para a criança, que os torna
tranqüilizadores, juntamente com a sensação de poder assumir neles um
papel ativo, de guia e controle do comportamento materno. Segundo Newson
(1974), através desses jogos de reciprocidade constrói-se, entre adulto e
criança, um sistema de expectativas recíprocas e um patrimônio de
significados compartilhados. Salientam, sobretudo, a qualidade e a coerência
dos cuidados prestados à criança e a importância dos hábitos, ao comunicar-
se com uma determinada criança, o que torna única e irrepetível a história
social.
Como observamos anteriormente, o aspecto mais relevante da capacidade
interativa materna parece depender da sua tendência em atribuir significado
e intencionalidade à expressão infantil. Esse precoce "efeito pigmalião", que
de fato desenvolve a capacidade comunicativa da criança, a torna também
capaz de previsão, lhe induz expectativas, a torna capaz de reconhecer uma
cadeia de ações como evento, caracterizado por um início, um meio e um
fim. O jogo, nesse período, configura-se como organização ritual de troca
que se desenvolve em uma situação previsível com um final "dramático".
Jogos típicos entre adulto e criança são os que terminam com um tombo
fingido, com as cócegas, com um súbito aumento do tom de voz. São
happening, como os chamam os Newson (1979), isto é, breves seqüências
de ações, detectadas pela criança como unidade coerente que possui um
êxito satisfatório. O êxito "dramático", a "cuminância" do happening, se
torna excitante e chama a atenção da criança; a sua previsibilidade (o fato
de que a seqüência de ações é compartilhada e conhecida) torna o êxito final
tranqüilizador.
A produção de esquemas de referência, de expectativas e regras
compartilhadas que caracterizam esses primeiros jogos evidenciam
sobretudo a sua qualidade social. Estes assumem particular relevância em
relação à origem do interesse da criança para o mundo dos objetos. Algumas
pesquisas (Collis & Schaffer, 1975) mostram que durante o primeiro ano de
vida as mães tendem a controlar e a acompanhar o interesse da criança para
com o mundo circunstante, sincronizando os próprios olhares com os
Página 217

da criança e estruturando sua experiência através da seleção, assinalada


pela ênfase gestual e vocal daqueles aspectos do ambiente ou daquelas
ações infantis que o adulto considera relevantes. Esse papel de mediação do
adulto em relação ao mundo circunstante é assinalado pelos Newson
naqueles jogos interativos que tomam a forma de triálogos. A mãe amplia o
próprio diálogo com a criança até incluir o brinquedinho, alternando de
maneira rítmica a voz, o gesto (por exemplo, balançar um chocalho) e a
intervenção da criança (por exemplo, vocalização, olhar) de maneira a
deslocar a atenção da criança do próprio rosto ou das próprias mãos ao
objeto. Através dessa função mediadora do adulto, o diálogo mãe-criança
transforma-se em conversação a três, na qual o brinquedo é dotado daquele
mesmo caráter de "prontidão de resposta" que caracteriza o parceiro
humano. A partir desses jogos "a três", a mãe tende a sair
progressivamente, logo que a criança demonstra ser capaz de apreciar e
utilizar o brinquedinho sem a sua ajuda (J. e E. Newson, 1979).

3. O CORPO COMO BRINQUEDO: DA BOCA PARA A MÃO

“Em princípio o jogo é para a criança uma atividade que produz prazer
erótico e envolve a boca, os dedos, a visão e toda a superfície do corpo. Esse
jogo desenvolve-se sobre o próprio corpo da criança (jogo auto-erótico) ou
sobre o da mãe (normalmente em relação à alimentação) sem uma clara
distinção entre os dois corpos e sem nenhuma ordem ou preferência, sob
este aspecto” (A. Freud, 1965). O brincar com o próprio corpo, de acordo
com a interpretação analítica, constitui a fase inicial da atividade lúdica, em
particular a sucção a vácuo, e é reforçada por todas aquelas situações
prazerosas dos rituais cotidianos (a troca de fraldas, a nutrição, o banho) nas
quais a criança é acariciada, tocada, manipulada. Até mesmo as observações
de Piaget (1936, 1937) convergem ao considerar esses tipos de atividades
lúdicas como primárias. A reação circular primária (repetição de uma nova
adaptação casual), durante o segundo estágio da inteligência sensório-
motora, prolonga-se em jogos que envolvem a língua (brincar com a língua e
sugá-la) e a coordenação da mão e da sucção (sugar a mão e os dedos,
sucção antecipatória). O exercício do reflexo da sucção generaliza-se através
da repetição funcional lúdica, nas situações mais variadas e novas: o mundo
é algo a ser sugado. Novas combinações corporais, junto ao esquema da
sucção, são experimentadas pela criança e inseridas em esquemas lúdicos.
Ao juntar as mãos, a criança sente uma nova sensação tátil somada a uma
inédita visão das duas mãos no interior do campo visivo. O exercício
funcional dos movimentos das mãos e dos dedos produz novas e
significativas coordenações, entre as quais a da visão e da preensão que
consente à criança segurar um objeto e explorá-lo através da visão
(primeiramente, só se a mão e o objeto estão contemporaneamente
presentes no campo visivo, depois somente na presença do objeto).
Logo que a criança for capaz de sentar de maneira apropriada (isto envolve
uma considerável ampliação do raio da visão), embora o prazer da sucção
permaneça por muito tempo preponderante, e cada objeto, logo que
segurado, é levado para a boca, ela é induzida progressivamente a prestar
atenção às suas próprias mãos e a observar as diferentes perspectivas que
os objetos assumem quando segurados e vistos por ângulos diferentes. A
mudança de interesse da boca para a mão, que permite um melhor domínio
da realidade exterior, marca a passagem da fase na qual o interesse da
criança refere-se prevalentemente às pessoas e aos objetos, somente
enquanto utilizados no diálogo entre mãe e filho, à fase na qual a criança
começa a prestar

Página 218

atenção a tudo aquilo que está ao alcance de suas mãos, a tudo aquilo que é
possível fazer com as mãos.

4. A DESCOBERTA DO OBJETO

É a partir do terceiro estágio (4-8 meses) que a criança começa a


demonstrar atenção em relação aos objetos e ao que se pode fazer com eles.
O jogo, como a reação circular secundária, estende-se do próprio corpo aos
objetos alcançáveis (a criança procura repetir uma ação realizada
casualmente como: bater, golpear, balançar). É uma experiência habitual,
para crianças um pouco maiores, ver a transformação da situação da
refeição em uma ocasião de experimentação desenfreada e incontrolável, do
ponto de vista do adulto. A criança, se lhe for permitido, esmiuça o alimento
em pedacinhos, mistura os vários ingredientes, esmaga e faz papa com a
palma das mãos e com os dedos, derrama a água contida no copo e observa
com atenção as misturas realizadas. Contemporaneamente, os talheres são
apanhados, lançados, e batidos repetidamente. Se o adulto permitir,
instauram-se aqueles típicos jogos sociais do "dar e pegar", "lançar e fazer
com que juntem", que a criança seria capaz de repetir infinitamente. O jogo
da curiosidade torna-se prevalente: há uma incessante experimentação das
propriedades dos materiais, dos objetos e das ações apropriadas [Nota: 2].
Por esse motivo, a criança parece estar, para um observador menos atento,
em uma fase mais destrutiva que construtiva: esforçando-se para penetrar
nos mistérios das coisas, os objetos são sacudidos, dobrados, furados,
rasgados. Até os 8-12 meses os objetos ainda não são percebidos como
permanentemente estáveis, mas em estreita relação com o exercício dos
esquemas de ação.[Nota: 3] A descoberta da permanência do objeto e a do
uso do objeto como instrumento são aquisições que caminham no mesmo
ritmo, juntamente com uma outra série de jogos que são centrais para a
criança aproximadamente no final do primeiro ano de idade: os jogos do tipo
"esconder e achar", que consistem em fazer desaparecer e aparecer objetos.
Fazem também parte dessa categoria as atividades do "colocar dentro" e do
"tirar para fora" e os jogos sociais como o do esconde-esconde, que Bruner
descreve como um dos mais difundidos entre adulto e criança (Bruner &
Sherwood, 1976). As observações de cunho psicanalítico também concordam
com as que se referem ao desenvolvimento cognitivo, ao confirmar o
centralismo dessas situações lúdicas, colocando em evidência o significado
emocional-afetivo. Conhece-se muito bem a descrição realizada por Freud
(1920) da brincadeira de uma criança de 18 meses que ele observou
pessoalmente. O jogo do pequeno Ernst, que os adultos da família
consideravam uma criança remissa e

Página 219

obediente até mesmo nos momentos em que a mãe não estava presente,
consistia em jogar longe todos os objetos que encontrava pela frente,
divertindo-se em pedir aos familiares que os pegassem. Uma variante mais
complexa do jogo era a de utilizar um carretel preso a um barbante e lançá-
lo alternadamente para fora do alcance da sua visão pronunciando a palavra
"fort" (longe, embora), para depois trazê-lo novamente para perto de si,
exclamando: "da" (êi-lo!). Uma terceira variação do jogo consistia em fazer
aparecer e desaparecer a sua própria imagem diante do espelho. Freud
interpreta o jogo como uma dramática representação simbólica da perda da
mãe e do seu reaparecimento, o que permite transformar de uma situação
desagradável enfrentada em outra que a própria criança domina e controla.
Erikson (1950), retomando a interpretação de Freud, coloca em evidência o
dispositivo através do qual a criança, no jogo, exercita tal controle. Quando
lança os objetos para longe de si, o pequeno Ernst identifica-se com a mãe
frustrante (identificação com o agressor) e, contemporaneamente, dá a ela
um significado para a sua agressividade ("jogo-te fora, porque tu me
abandonas"). Esta introjeção do objeto conduz ao controle da imagem
materna ("se tu fores embora, voltarás, como volta o carretel quando o faço
desaparecer, ou como volta a minha imagem no espelho, depois que me
diverti fazendo-a desaparecer").
A brincadeira do "esconder e achar", nos seus aspectos cognitivos e
afetivos, mostra a evolução do relacionamento com o objeto, o realizado
reconhecimento do não-eu, que é ao mesmo tempo realidade física,
objetivamente percebida, e realidade emocional; evidencia, além disso, como
a descoberta do mundo dos objetos e qualquer forma de conhecimento
aconteça em função da qualidade do relacionamento que a criança
estabelece com as figuras adultas das quais depende, e salienta a estreita
ligação entre a inteligência e a afetividade. Mostra enfim que atividades
infantis aparentemente situáveis em uma relação solitária entre criança e
objetos são dotadas de qualidades sociais e de valores comunicativos.

5. DA APROPRIADA À IMPRÓPRIA UTILIZAÇÃO DOS OBJETOS: O


FAZ-DE-CONTA

Garvey (1977, p. 56) diz: "as crianças pequenas estão sempre procurando
descobrir o que as coisas são, como funcionam e o que se pode fazer com
elas... A criança, diante de um objeto não familiar, tende a estabelecer uma
cadeia que, passando da exploração à familiarização, chega à compreensão;
uma seqüência muitas vezes repetida que leva a uma visão mais madura das
características (forma, estrutura, dimensão) do mundo físico". Existe,
portanto, uma evolução progressiva que pode ser esquematicamente
resumida da seguinte maneira:
- aproximadamente aos 9 meses, a criança segura o objeto mais próximo, o
leva para a boca, o inspeciona e o movimenta utilizando somente poucos
modelos de ação;
- em torno dos 12 meses a exploração precede qualquer outro tipo de ação;
o objeto não possui ainda uma permanência própria, mas existe em função
das ações que a criança realiza sobre ele;
- em torno dos 15 meses aparecem classificações significativas dos objetos:
a criança junta objetos que correspondem a atividades similares da vida
cotidiana. Os objetos começam a ser usados de acordo com os seus
significados afetivos ou convencionais (o uso da escova para pentear-se, o
uso da colher para comer, etc.);

Página 220

- entre os 15 e os 21 meses, há uma transformação: a criança realiza ações


sobre objetos imaginários ou então dá um significado incomum a um objeto
conhecido. São as primeiras formas do jogo simbólico, a ação do "fazer – de
- conta", o uso não-literal dos objetos.

A passagem do uso convencional para o não-convencional situa-se no final


do período sensório-motor, durante o qual a criança pode adquirir um
conhecimento suficiente dos objetos usuais, para integrá-los às atividades
quotidianas. É a partir desse conhecimento que os esquemas de ação são
transformados em atos significativos. Alguns dos pesquisadores do Cresas
(Lézine et al., 1982) observam que as primeiras formas do jogo simbólico
são caracterizadas por ações realizadas sobre os brinquedos (bonecas,
ursinhos), que assumem o papel de co – atores (ou atores coadjuvantes)
nas brincadeiras (por exemplo, a criança dá de comer para a boneca ou a
penteia). Seguem-se imitações de situações mais complexas que envolvem
ou mais ações em seqüência (por exemplo, amamentar a boneca, limpar a
sua boca, levá-la para dormir) ou mais brinquedos (por exemplo, a criança
dá comida para o urso, depois para a boneca e, enfim para um bichinho de
pelúcia). Uma etapa posterior é constituída pela atribuição de
comportamentos ativos aos brinquedos, aos quais são entregues pratos e
colheres para que comam ou são colocados em frente ao espelho, ao
penteá-los. Mais tarde observa-se a representação por meio de substitutos
simbólicos ou de objetos imaginários (por exemplo, pedacinhos de papel no
prato da boneca representam a comida, ou a criança imita a ação de
recolher alguma coisa do chão para oferecer ao seu urso). Somente pelos
dois anos e meio de idade é que o jogo simbólico torna-se mais elaborado e
a criança é capaz de construir cenários imaginários no qual dramatiza
seqüências de ação sempre mais longas.
Na perspectiva piagetina (Piaget, 1945), o jogo simbólico mostra o início
da função representativa que permite evocar e antecipar a realidade. Ela
torna possível imaginar seqüências de ações e avaliar sua concatenação e
seus efeitos, antes de executa-las de fato. A criança pode então pensar no
objeto mesmo quando este não está presente fisicamente e pode evocá-lo
através de um símbolo, que por analogia remete objeto representado. A
interiorização de esquemas de ação adquiridos e sua representação mental
revelam-se também na "imitação diferenciada", ou seja, na capacidade de
reproduzir um modelo não imediatamente presente. Nas formas simbólicas
da atividade lúdica, resulta portanto difícil isolar os componentes imitativos
do jogo dos componentes propriamente lúdicos, caracterizados, segundo
Piaget, pela assimilação dos objetos às exigências do Eu infantil. Não só
isso, no jogo simbólico, coisas e significados aparecem, paradoxalmente,
distintos e indistintos. Por isso Vygotsky (1966) observa a natureza
transicional do jogo, imediatamente entre as constrições puramente
situacionais da primeira infância e o pensamento, completamente
desvinculado das situações reais. No jogo, as coisas, de uma posição de
predomínio, assumem uma posição subordinada. Na estrutura significado/
objeto criada no jogo é o significado, ou seja, é a idéia que domina e
determina o comportamento da criança.
O jogo do faz – de – conta, até mesmo nas suas formas embrionárias,
possui idades emocionais e afetivas que foram salientadas principalmente
pela literatura psicanalítica. Observa-se que a criança não reproduz
somente variações deformando a experiência real em função dos seus
próprios desejos ou para

Página 221

acalmar suas próprias angústias. Os dois mecanismos da projeção e da


identificação [Nota: 4], mediante os quais se estabelecem relações dinâmicas
entre o Eu da criança e a realidade, produzem justamente aquelas variações
e aquelas mesmas que levam a definir o pensamento infantil como mágico e
animista. As interpretações simbólicas, no sentido forte do jogo infantil,
mostram como a criança, em torno dos dois anos de idade, não esteja
somente empenhada no conhecimento e na descoberta do mundo dos
objetos, mas procure controlar e elaborar, através dos meios de que dispõe,
o seu mundo interior, constituído de sentimentos, afetos e medos que ainda
não é capaz de reconhecer e identificar. Desse ponto de vista, o jogo do faz-
de-conta é uma maneira de exercitar e testar o próprio Eu, seja atribuindo
algumas de suas partes a outros (brinquedos, colegas), seja imaginando ser
um outro, experimentando, assim, diversas possibilidades de ser.

6. A QUALIDADE DO JOGO

Nas páginas anteriores, traçamos uma progressão evolutiva na qual a


partir de situações de jogo entre adulto e criança, passando através da
exploração e da descoberta do objeto, alcança-se o início do jogo do "faz-
de-conta" e a conquista de um comportamento "não literal" em relação à
realidade exterior. Dessa progressão, na qual somente alguns aspectos do
comportamento lúdico foram examinados – os jogos com a linguagem e as
relações entre coetâneos no jogo são amplamente tratados em outros
ensaios desta parte da antologia (cf. Albanese & Antoniotti; Musatti, neste
volume) -, é de qualquer forma possível evidenciar algumas características
do jogo infantil, para tornar mais claro o seu aproveitamento no sentido
educacional:

- o jogo é uma atividade automotivada (que pode ser compartilhada, mas


não imposta) na qual as ações são tão mais produtivas quanto mais
desvinculadas de tarefas específicas (prevalece o interesse pelo "processo"
sobre o interesse pelo "produto"), que acontece em um tempo definido pela
liberdade das pressões funcionais (depois que as necessidades primárias
foram satisfeitas). É então essa possibilidade de livre experimentação em
situação protegida que distingue o jogo do não-jogo;
- desde o início, o jogo possui uma qualidade social de alegre troca entre
adulto e criança na qual, através de adaptações recíprocas, descobrem-se
significados compartilhados. Essa qualidade social se mantém também mais
adiante, seja quando a criança amplia a sua atenção ao mundo dos objetos
(exploração do ambiente, a partir daquela "base segura" constituída pela
figura adulta interiorizada), seja quando começa a compartilhar a sua própria
brincadeira com outras crianças;
- aspectos cognitivos e afetivos estão estritamente entrelaçados no jogo,
apesar de as pesquisas a esse propósito terem privilegiado ora um aspecto,
ora o outro. Isso significa que o exercício da inteligência, a descoberta das
propriedades dos objetos, a aquisição das primeiras e embrionárias formas
lógicas são favorecidos se o jogo acontece em um clima de tranqüilidade,
que permite à criança tentar, e experimentar,

Página 222

proceder através de tentativas e de erros, sem medo de "errar" ou de ser


punida em conseqüência de suas ações. Significa que, também no jogo, não
é somente a criança que tenta acomodar-se à realidade, colhendo as
propriedades e as características, mas que, ao fazer isso, reveste o mundo
externo com algo de si, a fim de torná-lo mais familiar e compreensível: a
conquista da realidade e a descoberta de si são processos que se
entrelaçam;
- o jogo é um fenômeno que, mesmo manifestando-se precocemente e
naturalmente, sofre notáveis variações (de duração, intensidade, articulação)
não somente em função da idade, mas também do contexto no qual se
realiza. A presença ou não do adulto, a presença ou não de outras crianças,
a idade do grupo de jogo, o grau de familiaridade com os colegas, a
presença ou não de materiais e de suas características são todos aspectos
que influenciam e orientam a qualidade do jogo.

Falar em qualidade do jogo não significa exclusivamente enunciar as


características peculiares que o diferenciam de outros "espaços" da
experiência infantil, mas significa descrever potencialidades educacionais que
ele pode oferecer nos diferentes contextos onde se realiza (a casa, a rua, o
quintal, as instituições para a infância, a escola). Em cada um desses
territórios, o terreno de jogo não só se especifica em função dos espaços
limítrofes que o delimitam (os lugares dos adultos, do trabalho, do ritual, da
instituição, só para citar alguns exemplos) e o conotam diversamente como
transgressão, recreação, passatempo, mas se qualifica também, em relação
à intencionalidade educacional a ele atribuída: inferior, tratando-se de
pedagogia espontânea; mais pronunciada quando as finalidades são
declaradas e sistematicamente perseguidas.

7. O JOGO NA CRECHE

Muito se falou e foi feito em relação à estruturação física da creche como


ambiente de jogo. A preparação de ângulos dotados de material adaptado
(brinquedos e material não-estruturado) para o jogo da família, do mercado,
da manipulação, dos disfarces, o equipamento dos espaços mais amplos,
com estruturas para o jogo motor, a decoração dos locais com materiais e
brinquedos típicos, tais como os tapetes, o espelho, o triciclo, os fantoches,
as bonecas, a caixa de areia ao ar livre, já são elementos do ambiente
adquiridos pela maior parte das creches, contribuindo a torná-las lugares
agradáveis, coloridos, atraentes para os pequenos que ali passam o dia. O
jogo na creche, deste ponto de vista, se enriquece com muitos elementos em
relação àquilo que uma criança da mesma idade pode realizar em casa, onde
o ambiente restrito e monopolizado pelos adultos juntamente com as
proibições dos pais, referentes ao desenvolvimento de atividades
desordenadas ou de atividades que sujam, limita muito as possibilidades
motoras e de livre exploração por parte das crianças. Na creche, a criança
tem a possibilidade de brincar com materiais e brinquedos de diferentes
dimensões muito maiores do que aqueles que os espaços domésticos
permitem, enriquecendo assim a sua habilidade motora e as suas
experiências com materiais e objetos diversos. Além disso, como já foi
muitas vezes observado, a creche oferece a possibilidade de interagir com os
coetâneos e isso também pode constituir um enriquecimento em relação às
situações domésticas onde, no melhor dos casos, a criança pode ter a
ocasião de brincar com um irmão um pouco maior. Enfim, na creche um set
(uma equipe) de adultos está ao completo dispor das crianças, não somente

Página 223

para garantir a sua segurança e os cuidados necessários, mas também para


organizar e preparar as ocasiões lúdicas.
Todos esses elementos, que fazem da creche um espaço de jogo
potencialmente rico e estimulante, não parecem ser suficientes, por si sós,
para garantir que uma criança de zero a três anos seja capaz de desfrutá-lo
positivamente.
Em primeiro lugar, para a inibição ou diminuição das atitudes lúdicas
podem contribuir seja a falta de elaboração da angústia pela separação da
figura materna devido à percepção de um clima não suficientemente
tranqüilizador, seja a introdução no grupo de jogo sem mediações, o que
pode assumir conotações "traumáticas" e pode favorecer formas demasiado
prolongadas de jogo solitário. Além disto, o interesse pelas atividades pode
ser desestimulado por sua monotonia e pelo uso habitual de materiais e
objetos: quando o jogo se torna repetitivo e estereotipado podem surgir
momentos até prolongados de tédio com as típicas manifestações de
comportamentos autísticos, freqüentemente observáveis (sugar o polegar,
auto manipular-se). Enfim, até mesmo a passagem demasiado brusca de
atividades reguladas e estruturadas para situações lúdicas pode contribuir
para transformar estas últimas ocasiões de desabafo incontrolável e, às
vezes, destrutivo.
A direção do jogo infantil é pois urna competência muito complexa e
articulada que certamente deveria ser mais estudada. A única pesquisa sobre
o assunto (Callari Galli, 1982, 1983), relativa à situação italiana, denuncia
sobretudo a rigidez e a dificuldade das educadoras em interagir de modo
"lúdico" com as crianças e em programar ocasiões de jogo variadas e
motivadoras. As observações feitas não são generalizáveis, visto que
consideram somente algumas creches, em uma particular situação territorial.
Trata-se, porém, de uma interação entre o adulto e a criança e da
organização do setting (conjunto) educacional que aparecem de forma
bastante difundida.
Nas creches observadas, salienta-se em particular a predominância de
ocasiões lúdicas conduzidas por regras convencionais, ditadas pelo adulto, e
pela quase total ausência de jogos de livre movimentação e de fantasia. A
esse desequilíbrio correspondem a utilização quase exclusiva de brinquedos
estruturados, que objetivam a aquisição de habilidades cognitivas
específicas, e a escassa presença de materiais para jogos "sensoriais e
afetivos". Essa escolha está enfim relacionada a um típico comportamento do
adulto que intervém no jogo exclusivamente para guiar e controlar o uso que
as crianças fazem dos objetos (distribuição das tarefas e explicações do
funcionamento correto dos materiais), sem participar nem da criação nem do
desenvolvimento da atividade lúdica.
Dessas observações surge a hipótese de que a focalização do material de
jogo, unida à distância emocional assumida pelo adulto, que funciona
exclusivamente como garantia da ordem e da correção, seja funcional para
um processo de socialização entendido como interiorização de normas
propedêuticas de comportamento para a assunção de papéis pré-constituídos
e, contemporaneamente, incida negativamente sobre o desenvolvimento dos
processos da comunicação.
Essas observações são confirmadas, indiretamente, por outros estudos que
objetivam a descrição das representações sociais das educadoras (imagens
das finalidades da creche) e a identificação de tipologias de estilos
educacionais (Becchi & Bondioli, 1983; Emiliani & Molinari, 1985). À imagem
da creche como "primeira escola" corresponde um comportamento de
aproveitamento sistemático de ocasiões de aprendizagem que se configuram
mais corno atividades guiadas e reguladas pelo adulto do que como
verdadeiras situações lúdicas. Por outro lado, a imagem de creche
assistencial, voltada a compensar eventuais carências afetivas,

Página 224

não desenvolve uma pedagogia do jogo mais coerente, pois o adulto, mesmo
dando mais espaço ao jogo livre, não intervém nele com propostas e
estímulos adequados.
As dificuldades encontradas ao produzir uma adequada direção do jogo
infantil na creche parecem, então, fortemente ligadas a "ideologias
educacionais" enraizadas e muito pouco submetidas a discussão e
verificação. A primeira dessas "ideologias" considera o jogo como um espaço
no qual a criança pode exercitar habilidades cognitivas, sempre mais
complexas, de modo totalmente livre e espontâneo. Isso implica para o
adulto assumir a tarefa de organizar o espaço com materiais apropriados,
sendo porém moderado na intervenção da seqüência lúdica, devido ao temor
de introduzir nela elementos estranhos, de sobrepor de forma demasiado
direcionada as próprias idéias às idéias das crianças, de destruir a
criatividade infantil. A adesão a teorias psicanalíticas (em suas versões
simplificadas e de divulgação) conduz às mesmas conclusões que vêem no
jogo, sobretudo no jogo de faz-de-conta, uma ocasião catártica de
elaboração de angústias, uma forma de autoterapia que a intervenção do
adulto acabaria por inibir ou bloquear. Até mesmo a convicção da
precocidade das trocas sociais entre crianças, levando a superestimar o
papel dos colegas, acaba considerando o jogo como um espaço
exclusivamente infantil, do qual o adulto se auto – exclui por focalizar a sua
própria intervenção em situações mais regradas, como as conversações, as
atividades guiadas, os momentos de rotina.
Junto a essa ideologia do laissez faire (deixar fazer) encontramos
concepções educacionais muito mais direcionadas que vêem no jogo uma
ocasião que não deve ser desperdiçada para objetivos de aprendizagem, e
que deve portanto ser regulada e guiada pelo adulto, para não tornar-se
ineficiente e dispersiva. O adulto aproveita sistematicamente o terreno de
jogo transformando as atividades em situações didáticas (ensinamento de
noções e regras de comportamento). Esta segunda estratégia é sustentada
pela convicção de que a criança da creche seja essencialmente egocêntrica,
tanto do ponto de vista cognitivo quanto social, e que o adulto pode ajudar
na superação dessa fase, colocando-se como porta-voz da realidade (em
relação ao animismo da criança) e das convenções sociais (em relação à
incapacidade infantil de colocar-se no lugar do outro, do ponto de vista do
outro).
Se nos detivemos sobre esses modelos "negativos" de direção do jogo
infantil, propositalmente esquematizados e oferecidos por contraposição, foi
para ressaltar outras possíveis formas de intervenção do adulto no jogo que
parecem eficazes para finalidades educativas e mais alinhadas com as
qualidades que caracterizam a experiência lúdica. Com base nas pesquisas
disponíveis, que não são muito numerosas, tentaremos mostrar que uma
adequada direção do jogo infantil passa pelo conjunto das mediações que o
adulto pode oferecer a cada criança, referentes às suas necessidades e
àquilo que ela já sabe fazer, em relação ao mundo dos objetos e às outras
crianças. Ela é, pois, determinada pela qualidade das estratégias e dos
dispositivos colocados em prática pelo adulto, a fim de facilitar e enriquecer,
no sentido social e/ou cognitivo, a experiência lúdica de cada criança. São
muitos os "registros" a serem ativados, e a habilidade da educadora consiste
justamente em lidar com esses diferentes registros em função da idade, das
competências da criança e das intenções a que se propõe. Apresentaremos
portanto algumas dessas modalidades, levando em consideração as
pesquisas disponíveis, conscientes de que se trata de uma hipótese de
trabalho que deveria ser aprofundada e verificada.
Página 225

7.1. O comportamento não – direcionado com os bebês

Como interagir de forma lúdica com os bebês que parecem sobretudo


necessitados de cuidados físicos, incapazes e inconsistentes na atenção,
indecifráveis nas suas manifestações expressivas? A literatura relativa ao
mothering nos oferece uma série de exemplos retirados da observação da
díade mãe-criança que evidenciam como o instaurar-se das primeiras formas
de comunicação entre adulto e criança depende de uma série de
competências que podem ser adquiridas e melhoradas, as quais podem
resumir-se em:

- capacidade de responder aos primeiros sinais infantis (choro, vocalizações,


mímicas faciais) e de atribuir a estes um significado, inserindo-os no diálogo
a dois;
- atenção aos retrocessos da criança durante a interação que conduz a
variações do próprio comportamento, de modo a torná-lo contingente e
complementar em relação ao comportamento da criança;
- disponibilidade na criação de situações de prazer nas quais as crianças
possam exercitar formas de controle e incentivar aquilo que Schaeffer (1977
a) chama de "motivação ao efeito";
- habilidade ao dirigir a atenção da criança sobre elementos do mundo
externo, reforçando os primeiros comportamentos de tipo exploratório;
- coerência ao introduzir ritmos e regularidade nas atividades
compartilhadas, para torná-las compreensíveis e previsíveis para a criança, e
permitir-lhe a sua participação ativa.

Todas essas habilidades que, como já vimos nos primeiros parágrafos, se


manifestam nos primeiros jogos "cara a cara" entre a criança e o adulto
disponível podem ser consideradas aspectos de um comportamento não-
direcionado, que não pretende ensinar alguma coisa à criança, mas exprime
atenção por todas as manifestações do comportamento infantil e tende a
confirmá-las, recuperando-as, estendendo-as, dando-lhes assim significado e
organização.
Esse comportamento parece ser eficaz não somente na condução e na
orientação da comunicação entre o adulto e o bebê, mas também na
facilitação das suas primeiras manipulações e explorações (Mantovani,
1982a). Neste caso, as dificuldades são maiores, visto que, para uma criança
entre os 12 e 14 meses, o adulto é o pólo privilegiado da atenção. Trata-se,
então, de mudar o foco de interesse do pequenino em direção à exploração e
à manipulação dos objetos. A pesquisa citada anteriormente salienta a
eficácia de um estilo interativo que alterna momentos de confirmação
"passiva" (intervenção do adulto apta a permitir as ações da criança,
retirando obstáculos ou oferecendo objetos distantes) com momentos de
confirmação "ativa", quando a criança mostra claramente que deseja a
atenção e a aprovação do adulto.

7.2. A observação participativa

Depois dos 15 meses, as crianças não só voltam em maior grau a própria


atenção ao mundo dos objetos que os empenham em manipulações cada vez
mais refinadas, mas são capazes de interagir positivamente em um pequeno
grupo de coetâneos conhecidos. Algumas pesquisas (Musatti, 1984) relativas
às precoces interações sociais mostram como os pequeninos de 12 a 18
meses, em situações de exploração, com pequenos ou

Página 226

grandes objetos, sejam capazes de criar-se problemas e de resolvê-los em


conjunto, utilizando duas estratégias de interação: a imitação organizadora,
que consiste no aproveitamento de alguma parte da atividade de um outro,
enriquecendo assim o seu próprio jogo com novas idéias, e a assunção de
um papel complementar, ou seja, a adaptação intencional das próprias ações
ao projeto de jogo do colega.
Nesses casos, o adulto que observa atentamente o andamento da
atividade das crianças sem intervir diretamente, manifestando atenção e
interesse pelas realizações das crianças, respondendo aos seus pedidos
através da mímica do rosto e com uma atitude de disponibilidade que não
impede a sua aproximação, parece agir como uma presença
tranqüilizadora. Observou-se como essa presença tranqüilizadora da
educadora favoreça os comportamentos de autonomia e de exploração no
jogo (Stambak et al., 1983). Além disso, evidenciou-se que as crianças são
capazes de regular o envolvimento do adulto de forma diferente
dependendo das situações, formulando pedidos de autorização e de
aprovação em situações insólitas ou associadas a precedentes proibições
(jogos com água, pintura), de auxílio e informação, quando não são
capazes de resolverem por conta própria uma tarefa, e de atenção quando,
durante a atividade de manipulação e construção, mostram ou oferecem
ao adulto as próprias realizações (Bonica, 1983). Essas pesquisas,
realizadas nas creches, confirmam e estendem os resultados de outros
estudos (Ainsworth & Bell 1970) que enfrentaram a relação entre apego e
exploração, na díade mãe - criança, e mostram como até mesmo uma
figura de referência diferente da figura materna pode fornecer aquela
"base segura" que permite comportamentos de exploração, de descoberta
e de curiosidade em relação aos objetos e às novas situações.
Uma variação dessa modalidade não direcionada de relacionamento entre
adulto e grupo de crianças pode ser definida como jogo paralelo. O adulto
utiliza o mesmo material da criança sem entrar diretamente no jogo. O
adulto, neste segundo caso, além de garantir uma presença
tranqüilizadora, necessária para motivar comportamentos lúdicos, pode
cumprir uma função desinibidora em relação àquelas crianças que
demonstram dificuldade ou medo ao enfrentar materiais pouco conhecidos
e situações inéditas.

7.3. Dentro do jogo: o adulto como co-ator

Um dos pontos mais assimilados pela pedagogia da creche é que a


intervenção do adulto deva ser a mais "interna" possível à experiência
infantil, deva evitar fraturas demasiado profundas entre o adulto e criança,
sem por isso perder a função de estímulo e de guia. A capacidade do adulto
de entrar no jogo infantil como um companheiro que deixa a criança livre na
escolha dos temas, na distribuição dos papéis, no controle do andamento e,
ao mesmo tempo, participa desenvolvendo um papel ativo de co-ator foi
pouco estudada.
Ponzo (1983) sugere que essa capacidade depende da possibilidade que o
adulto possui muito mais do que a criança - mas que nem sempre desfruta -
de brincar com o seu próprio papel. Para entrar no jogo "na medida da
criança, o adulto é obrigado a abandonar o papel de 'adulto que brinca com a
criança' e fazer de conta que é uma criança da mesma idade daquela com
quem está brincando". Para conseguir isso, é preciso produzir aquela
"potencial regressão ao serviço do Eu “da qual Kris (1952) fala referindo-se
à criatividade artística e ao humorismo, que consiste em uma parcial e
temporária restauração dos processos ideativos de tipo primário (analogia,
simbolismo,

Página 227

mudança, condensação). Instaurar-se-ia, então, entre o adulto que brinca


"como se fosse criança" e a própria criança, uma dialética mágica e lógica
que enriqueceria a experiência lúdica de ambos. O jogo, que é regido pela
ambigüidade (entre realidade e magia, entre símbolo e coisa representada),
resultaria potencializado pois o adulto saberia, de maneira controlada,
introduzir no jogo, sem alterar a qualidade, elementos novos e variados.
Para que isso aconteça é necessário que o adulto preste muita atenção na
progressão evolutiva da criança com quem brinca, que saiba reconhecer não
somente as atividades lúdicas imediatamente satisfatórias para a criança,
mas que saiba intuir quando a criança está pronta para um salto de
qualidade, intervindo com propostas de jogo inéditas ou mais complexas. A
cada vez, o adulto deveria ser um companheiro dócil, capaz de adaptar-se
aos papéis e às situações propostas pela criança, e um aliado capaz de
inventar jogos novos. Em todo caso, as retroações que a criança fornece com
o seu comportamento trazem para o adulto informações sobre a sua
capacidade de estar dentro do jogo sem prevaricar.
A cumplicidade que se cria entre adulto e criança que brincam juntos não
possui somente o efeito de oferecer à criança uma gama de possibilidades
lúdicas posteriores, em relação àquela que poderia experimentar sozinha ou
com os colegas, mas também permite ao adulto a redescoberta de aspectos
de sua infância esquecida. A redescoberta, a compreensão, o reconciliar-se
com a própria infância talvez seja um dos aspectos do profissionalismo dos
educadores mais descuidado, menos estudado que, no controle do jogo,
possui um papel central, pois sem a identificação da realidade infantil torna-
se difícil, se não impossível, permitir, facilitar, potencializar também nas
crianças aquele relacionamento satisfatório e criativo com o mundo que é
ativado pela dimensão lúdica.

Glossário de Notas

Nota 1 – Página 215. Spitz confirma que a constituição da relação com o


objeto, evidenciada pelo segundo organizador que leva ao reconhecimento
da mãe como objeto não só fisicamente mas também afetivamente diferente
de si, produz na criança um rápido desenvolvimento do interesse pelo
circustante, tanto físico, quanto social. Cf. Spitz (1958). Também para Klein,
a criança que brinca é a criança que elaborou a separação da mãe cuja
realidade é guardada no seu mundo interior. A introjeção do bom objeto
interior, reduzindo os atos agressivos e libídicos em relação à mãe, permite
que a criança se volte aos objetos do mundo exterior e inicie a sua
progressiva exploração e conhecimento. Cf. Klein (1950).
Nota 2 – Página 218. De acordo com Bruner (1972), o jogo representa a
oportunidade para tentar novas combinações comportamentais que não
poderiam ser experimentadas sob pressão funcional. Essa experimentação
realiza-se através de um modelo muito próximo à estrutura da predicação,
uma das mais universais da linguagem, que implica a distinção entre topic
(sujeito) ecomment (predicado). No jogo, a qualidade combinatória
manifesta-se de acordo com o duplo esquema que diferencia uma função e
os seus argumentos. Ou seja, assim como é possível atribuir a um sujeito
um certo número de predicados que lhe convêm, do mesmo modo um objeto
pode ser adaptado a um certo número possível de ações e uma ação pode
ser realizada sobre um certo número de objetos apropriados.
Nota 3 – Página 218. Segundo Piaget, no primeiro e no segundo estágio da
inteligência sensorial, o desaparecimento do objeto não gera, por parte da
criança, nenhum comportamento de busca. Durante o terceiro estágio, o
objeto é reconhecido até mesmo quando somente uma parte do mesmo é
visível. A seguir, quarto estágio, o objeto é encontrado, afastando o
obstáculo que o esconde e, enfim, no quinto estágio, a criança é capaz de
remover um número maior de obstáculos a fim de alcançar o objeto.
Nota 4 – Página 221. A projeção é um dispositivo através do qual se atribui,
de maneira inconsciente, um desejo ou impulso próprio a alguma outra
pessoa ou a algum objeto do mundo exterior (por exemplo, o brinquedo). A
identificação é o processo pelo qual nos tornamos parecidos com alguma
coisa ou com alguém. A identificação com o agressor, de modo particular,
permite que a criança, no jogo da fantasia, atribua a si própria as
características das pessoas que ela considera ameaçadoras, transformando-
se de agredido em agressor (cf. A. Freud 1936).
Educar e cuidar: por onde anda a
educa~ão infantil?
Ana Beatriz Cerism*
RESUMO:Este texto foi elaborado com o intuito de apresentar um pano-
rama amplo a respeito da Educação Infantil na conjuntura nacional. Está
estruturado em três momentos: inicialmente situo o contexto em que se
encontra a educação infantil, a partir das deliberações legais feitas pela
Constituição de 1988 e da LDB de 1996 e das concepções acerca do
caráter que creches e pré-escolas devem assumir como instituições
educativas no atual contexto histórico. Em seguida, aponto os desafios
que, do meu ponto de vista, estão colocados para os educadores da
área e, por último, apresento os avanços e retrocessos alcançados em
relação à produção e ao encaminhamento de propostas de políticas
para a educação infantil no Brasil.
Palavra chave: 1. Creches-Brasil 2. Educação de crianças-Brasil
ABSTRACT: This paper was prepared with the goal of presenting a broad
perspective about Preschool Education in the national contexto It has
three parts: the first presents the context in which preschool education is
found, based on the legal environment established by the Constitution of
1988 and the LDB of 1996 and of the concepts conceming what day-
care and preschools should assume as educational institutions in the
current national contexto The second identifies the challenges that, from
my point of view, are facing educators in the field. Finally the paper
presents the advances and setbacks concerning the production and
advancement of policy proposais for preschool education in Brazil.
Key word: 1.Child care centers - Brazil; 2. Educatión of children-Brazil
Este artigo foi escrito com o intuito de fornecer um panorama mais
geral a respeito da Educação fufantil hoje no Brasil. O texto está estruturado
em três momentos: inicialmente situo a conjuntura em que se encontra a
educação infantil, a partir das deliberações legais feitas pela Constituição
de 1988 e da LDB de 1996 e das concepções acerca do caráter que
creches e pré-escolas devem assumir como instituições educativas no

* Coordenadora do NEEOA6 e professora doutora do CEDI UFSC

PERSPECTNA. RoriInópolis, 'i. 17, n. Especial, p. 11 - 21, jul./dez. 1999


12· Ana Beatriz Cerima
atual contexto histórico. Em seguida, aponto os desafios que, do meu
ponto de vista, estão colocados para os educadores da área e, 'por último,
apresento os avanços e retrocessos alcançados a partir da produção e do
encaminhamento de propostas de políticas públicas para a educação in-
fantil no Brasil.

l-Começo de conversa:
Entendo que a especificidade do atual momento histórico está a
exigir um esforço coletivo de todos aqueles que estão direta ou indireta-
mente envolvidos com a educação infantil em especial e com educação
pública em geral, no sentido de tentar compreender a atual conjuntura
para que possamos nos instrumentalizar para enfrentar os desafios e dile-
mas que já estão colocados e os que estão por vir.
Um possível começo de conversa pode ser tentar responder a uma
pergunta: Afinal, por que os educadores afirmam que as instituições de
educação infantil têm por finalidade educar e cuidar de forma indissociável
e complementar as crianças pequenas?
A compreensão de que as instituições de educação infantil têm como
função educar e cuidar de forma indissociável e complementar as crian-
ças de Oa 6 anos é relativamente recente. Para que se possa avançar na
compreensão do uso destes dois termos -educar e cuidar - é preciso lem-
brar, mesmo que brevemente, a forma como creches e pré-escolas surgi-
ram e se consolidaram no Brasil. Durante as últimas décadas, foi possível
constatar duas formas de caracterização dos diferentes tipos de trabalhos
realizados em creches e em pré-escolas: por um lado, havia as instituições
que realizavam um trabalho denominado "assistencialista" e, por outro,
as que realizavam um trabalho denominado "educativo".
Nesta "falsa divisão" ficava implícita a idéia de que haveria uma
forma de trabalho mais ligada às atividades de assistência à criança pe-
quena, as quais era dado um caráter não- educativo, uma vez que traziam
para as creches e pré-escolas as práticas sociais do modelo familiar elou
hospitalar e, as outras, que trabalhavam numa suposta perspectiva
educativa, em geral trazendo para as creches e pré-escolas o modelo de
trabalho escolar das escolas de ensino fundamental.
Vale ressaltar que estou falando no passado, mas não necessaria-
mente do passado, uma vez que sabemos o quanto essas concepções de
Educar ecuidar: por onde anda aeducapo infantil? • 13
trabalho permanecem presentes ainda hoje não só nas concepções de
trabalho de muitos educadores, como em muitas propostas de trabalho
nas instituições, muitas vezes superadas no discurso, mas visíveis nas
práticas desenvolvidas no cotidiano das instituições.
Após um longo período, foi possível a partir de diversas pesquisas2
e estudos reavaliar este quadro e constatar que esta dicotomia era falsa,
porque gostando ou não, aceitando ou não, todas as instituições tinham
um caráter educativo: as primeiras, com uma proposta de educacão
assistencial voltada para a educação das crianças pobres e as outras, com
uma proposta de educação escolarizante voltada para as crianças menos
pobres. Simplificando um pouco, poderíamos dizer que tínhamos, de um
lado, uma importação do modelo hospitalar/familiar e, de outro, urna
importação do modelo da escola de ensino fundamental. Nesta
dicotomização, as atividades ligadas ao corpo, à higiene, alimentação,
sono das crianças eram desvalorizadas e diferenciadas das atividades con-
sideradas pedagógicas, estas sim entendidas como sérias e merecedoras
de atenção e valor.
Só que as creches e pré-escolas não são as casas das crianças, não
são hospitais e nem devem ser escolas de ensino fundamental, mesmo
que atualmente tenham o dever de partilhar com as famílias a responsa-
bilidade pela educação das crianças menores de sete anos.
A análise e debate em tomo desses tipos de instituições tomou possível
constatar que esta dicotornização entre educar e assistir as crianças devia ser
superada e avançar em direção a uma proposta menos discriminadora, que
viesse atender às especificidades que o trabalho com crianças de Oa 6 anos
exige na atual conjuntura social, sem que houvesse uma hierarquização do
trabalho a ser realizado, seja pela faixa etária (O a 3 anos ou 3 a 6 anos), ou
ainda pelo tempo de atendimento na instituição (parcial ou integral), seja pelo
nome dado à instituição (creches ou pré-escolas).
Vale ressaltar que o avanço acerca da necessidade dessas institui-
ções de caráter educativo - distinto do espaço escolar, familiar e hospita-
lar- não foi natural, mas historicamente construído uma vez que ocorreu
a partir de vários movimentos em tomo da criança, do adolescente e da
mulher por parte de diferentes segmentos da sociedade civil organizada e
de representantes de órgãos públicos devido às grandes transformações
sofridas pela sociedade em geral e pela família em especial nos centros
urbanos, com a entrada das mulheres no mercado de trabalho.
14· AIII 8e1triz C.rillrl
Para que se possa compreender esta concepção de trabalho para as
instituições de educação infantil é necessário recorrer tanto à Constituição
Brasileira de 1988, como à Lei de Diretrizes e Bases n. 9394/96. Estas
duas leis tiveram um importante impacto na Educação Infantil e podem
contribuir na compreensão de onde surgiu esta concepção de que às insti-
tuições de educação infantil cabe a tarefa de trabalhar de forma indissociável
e complementar a educação e o cuidado das crianças pequenas.
A Constituição de 1988 reconheceu como direito da criança pe-
quena o acesso à educação em creches e pré-escolas. Esta lei coloca a
criança no lugar de sujeito de direitos em vez de tratá-la, como ocorria
nas leis anteriores a esta, como objeto de tutela. Mesmo sabendo que
entre a proclamação de direitos na forma da lei e a consolidação da mes-
ma em práticas sociais adequadas existe um grande hiato, esta lei consti-
tui um marco decisivo para o longo caminho a ser percorrido na busca de
uma possível definição do caráter que as instituições de educação infantil
devem assumir, sem que reproduzam as práticas desenvolvidas no seio
das famílias, nos hospitais ou nas escolas de ensino fundamental.
Esta definição constitucional, no entanto, constitui apenas o primei-
ro passo em direção às demais leis que devem dar suporte a esta lei
maior. A partir da segunda metade da década de 80 até a década de 90,
houve um intenso trabalho que culminou na definição do Estatuto da
Criança e do Adolescente, nas discussões a respeito da Lei de Diretrizes e
Bases, que apesar de ter sido aprovada apenas no ano de 1996, passou
por longas e amplas discussões e debates pelos diferentes segmentos da
sociedade, além de uma longa e tumultuada tramitação no Congresso.
Esta nova LDB, também pela primeira vez, colocou a educação
infantil como primeira etapa da educação bàsica, vindo a mesma a cons-
tituir um nível de ensino. A defesa da inclusão das instituições de Educa-
ção Infantil no capítulo da educação, por parte de pesquisadores, repre-
sentantes dos órgãos públicos e de movimentos sociais preocupados com
a educação da criança pequena, baseava-se na idéia de que era funda-
mental tirar as creches e pré-escolas de seu vínculo com as Secretarias
de Assistência Social ou da Saúde e lutar para que fizessem parte das
Secretarias de Educação. Mesmo considerando que em Florianópolis as
instituições de educação infantil sempre tenham estado ligadas à Secreta-
ria de Educação, esta não tem sido a situação da maioria das creches e
pré-escolas dos demais municípios brasileiros.
Educar ecuidar: por onde anda a educa~o infantil? • 15
Esta compreensão se devia à constatação de que trazer essas insti-
tuições para a área da educação seria uma forma de avançar na busca de
um trabalho com um caráter educativo-pedagógic0 3 adequado às
especificidades das crianças de O a 6 anos, além de possibilitar que as
profissionais que com elas trabalham venham a ter garantidas uma for-
mação tanto inicial quanto em serviço e uma valorização em termos de
seleção, contratação, estatuto, piso salarial, beneficios, entre outros.
No entanto, a inclusão das creches e pré-escolas no ensino básico
implica riscos, porque mesmo havendo clareza de que as instituições de
educação infantil - tenham elas a denominação que tiverem - não devem
ser depósitos de crianças, substitutas matemos ou hospitais, também há
clareza de que as creches e pré-escolas não devem reproduzir as práticas
sociais que têm sido desenvolvidas nas escolas de ensino fundamental.
Este é o quadro que hoje se coloca para todas as profissionais da área e
tem como eixo fundamental a busca da definição da especificidade do
trabalho pedagógico a ser realizado nas instituições de educação infantil,
ou seja, a construção de uma Pedagogia da Educação Infantil que rompa
com a Pedagogia Escolar tal como tem sido desenvolvida nas escolas de
ensino fundamental.

11- Desafios colocados:


Todas estas decisões legais trouxeram consigo muitas conseqüências
e desafios para a área da educação infantil. Vou levantar dentre os inúmeros
desafios, os três que considero fundamentais a serem enfrentados:
- Primeiro desafio: como transformar as instituições de educação
infantil em um nível de ensino, sem que elas reproduzam ou tragam para
si as práticas desenvolvidas no ensino fundamental?
A preocupação com este aspecto pode ser vislumbrada na própria
redação do texto final da LDB em que está escrito que a educação básica
consiste em três níveis de ensino: a educação infantil, o ensino funda-
mental e o ensino médio. Falar em educação e não em ensino foi a forma
encontrada para não reforçar a concepção instrucionall escolarizante pre-
sente nos demais níveis de ensino e indicar urna proposta de trabalho
com crianças cuja especificidade requer uma prevalência do educativo
sobre o instrucional, ou seja, mais do que nível de ensino, estas institui-
ções devem realizar um trabalho contemplando e priorizando os proces-
16· Anl 881triz Cerislrl
sos educativos que envolvem as crianças como sujeitos da e na cultura
com suas especificidades etárias, de gênero, de raça, de classe social.
Para enfrentar este desafio é preciso ter claro que o trabalho junto
às crianças em creches e pré-escolas não se reduz ao ensino de conteúdos
ou disciplinas, ou de conteúdos escolares que reduzem e fragmentam o
conhecimento, mas implica trabalhar com as crianças pequenas em dife-
rentes contextos educativos, envolvendo todos os processos de constitui-
ção da criança em suas dimensões intelectuais, sociais, emocionais, ex-
pressivas, culturais, interacionais.
Portanto, as instituições de educação infantil devem buscar delinear
as suas especificidades, sem perder de vista que o trabalho a ser realizado
com as crianças deve assumir um caráter de intencionalidade e de siste-
matização, sem cair na reprodução das práticas famíliares, hospitalares
ou escolares.
- Segundo desafio: educar e cuidar
Se é dever do Estado e opção da família assegurar a educação da
criança a partir do seu nascimento, em complementaridade com o papel e
as ações da família nessa função, as instituições de educação infantil têm
uma especificidade que as toma diferentes da família e da escola e que
devem, devido à especificidade da faixa etária de suas crianças, desenvol-
ver atividades ligadas ao cuidado e à educação dessas crianças.
A insistência em manter os termos educar e cuidar, como já foi
indicado anteriormente, relaciona-se ao percurso histórico das creches e
pré-escolas no Brasil. A análise do histórico dessas instituições e as rela-
ções que estas têm estabelecido tanto com as famílias, quanto com as
escolas permite perceber que quando se defendeu, e ainda hoje se defen-
de, uma função pedagógica para as mesmas foi na direção da valorização
das atividades ligadas ao ensino de alguma coisa, à transmissão de
conhecimentos, muitas vezes reproduzindo ou antecipando as práticas
condenadas pelas próprias escolas de ensino fundamental em que são
valorizadas as atividades dirigidas, consideradas como pedagógicas. Essa
interpretação reducionista do pedagógico, acabou por trazer para as cre-
ches e pré-escolas uma desvalorização das atividades ligadas ao cuidado
das crianças pequenas. Essa dicotomização entre as atividades com um
perfil mais escolar e as atividades de cuidado, revelam que ainda não está
clara uma concepção de criança como sujeito de direitos, que necessita
ser educada e cuidada, uma vez que ela depende dos adultos para sobre-
Educar ecuidar: por onde anda a educa~ão infantil? • 17
viver e também pelo fato de permanecer muitas vezes de 10 a 12 horas
diárias na instituição de educação infantil.
Esta dicotomização que, como já vimos anteriormente, vem de lon-
ga data, está tão arraigada nas práticas desenvolvidas nas instituições que
foi preciso recorrer ao uso de uma terminologia que ajudasse a sinalizar
que havia um avanço na compreensão do lugar, do valor e do estatus que
estas atividades de cuidado às crianças precisam assumir nas instituições
de educação infantil.
Foi nesse sentido que se recorreu 4 ao termo utilizado em inglês -
educare - que significa educação e cuidado ao mesmo tempo. Como não
temos estas duas palavras em uma só em português, foi feita uma opção
pela utilização dos termos educar e cuidar.
Conseguir concretizar esta concepção em práticas educativas ainda
constitui um desafio para os educadores da área. Este desafio está acima
de tudo estreitamente ligado às relações creche- famílias, que precisam
ser enfrentadas urgentemente no sentido de explicitar qual o papel que
estas duas instituições devem ter no atual contexto histórico, a fim de que
as professoras de educação infantil e as famílias - pais e mães das crian-
ças - possam assumir suas responsabilidades com maior clareza dos seus
papéis que, mesmo sendo complementares um em relação ao outro, são
diferentes e devem continuar sendo.
-Terceiro desafio: profissionais
Os dois primeiros desafios trazem como conseqüência pensarmos
nas profissionais de educação infantil. Muitas são as situações em que
estas se encontram: dependendo do segmento a que pertencem - munici-
pal, estadual, federal, privado, etc. Variam mais ainda de região para
região em nosso país.
A nova LDB definiu que uma vez fazendo parte do capítulo da
educação todas as profissionais que atuam em creches e pré-escolas dire-
tamente com as crianças deverão ser consideradas professoras leigas ou
não. Ou seja, há uma compreensão de que devido ao caráter educacional
que estas instituições devem ter, as professoras devem ser formadas pelo
menos em curso superior, com uma formação condizente com a
especificidade desta etapa da educação.
Esta deliberação trouxe para os sistemas de ensino a tarefa de provi-
denciar uma formação específica emergencial para as profissionais que já
trabalham em instituições de Oa 6 anos sem possuir a formação exigida.
18· Ana Beatriz Cerisua
Diante desta situação em que muitas educadoras se encontram, foi
deliberado um prazo de até 10 anos - a partir da data da promulgação da
LDB novembro de 1996 - para que todas as profissionais envolvidas neste
nível de ensino atendam a exigência feita, com o auxílio das instituições.
Da mesma forma, esta exigência trouxe para as agências formado-
ras, entre elas as universidades e os cursos de magistério a tarefa de
repensar sua proposta curricular no sentido de atender às especificidades
que urna professora de educação infantil deve ter em relação às professo-
ras de la a 4a ou de sa a ga. Além disso, os sistemas municipais de ensino
têm sido estimulados a criar cursos supletivos a fim de atender à deman-
da de cada município, devendo estes ser considerados em caráter
emergencial-provisório, com a clareza de que a formação das profissio-
nais desta área deve ocorrer de forma regular, sistemática e formal tão
logo a situação se estabilize.

111- Dos desafios aos avanços e retrocessos


É preciso salientar que muito do caminho realizado até aqui tem
sido possível graças à grande contribuição que a Coordenação de Educa-
ção Infantil (COEDI), ligada à Secretaria de Educação Fundamental do
MEC vem desenvolvendo desde 1993, tendo a professora Angela Maria
Rabelo Ferreira Barreto na coordenação dos trabalhos.
Grande parte desta contribuição pode ser conhecida a partir dos
"cadernos" publicados pela COEDI, quais sejam:
-Educação Infantil no Brasil: situação atual- 1994;
-Política nacional de educação infantil- 1994;
-Critérios para um atendimento, em creches, que respeite os direi-
tos fundamentais das crianças-1995;
-Por uma política de formação do profissional de educação in
fantil - 1994;
- Propostas Pedagógicas e Currículo em Educação Infantil - 1996
Todos estes materiais foram produzidos a partir do debate com edu-
cadores e pesquisadores da área, no sentido de caminhar na definição de
urna Política Nacional de Educação Infantil que atendesse às delibera-
ções legais e, ao mesmo tempo, estabelecesse diretrizes pedagógicas para
uma política de recursos humanos visando a melhoria da qualidade do
trabalho junto às crianças de Oa 6 anos em instituições educativas.
Educar e cuidar: por onde anda a educa~ão infantil? • 19
Neste sentido, têm sido divulgadas as produções mais atuais e em
nível de excelência a fim de subsidiar o trabalho nas instituições em que
são indicados Critérios para um atendimento, em creches, que respeite os
Direitos Fundamentais das Crianças, análises de Propostas Pedagógicas
existentes para creches e pré-escolas, política para formação dos profissi-
onais de educação infantil, entre outros.
A produção apresentada no período de 1993 a 1997 pela COEDI
revela o quanto esteve, nestes últimos cinco anos, afinada com a busca
de uma educação pública infantil de qualidade em parceria com pesquisa-
dores e educadores da área.
No entanto, mesmo considerando que os encaminhamentos dados pela
COEDI signífiquem um avanço importante na definição de uma política naci-
onal para educação infantil, é preciso lembrar que em 1997 e 1998 foram
divulgados dois documentos que podem significar uma ameaça ao que vem
sendo proposto como política para a educação infantil. O primeiro - Proposta
para o Plano Nacional de Educação - do INEP (ainda em tramitação no
Congresso e tendo já uma contraproposta da Sociedade Civil, também tramI-
tando no Congresso, que busca recuperar os avanços já assegurados em lei)
representa um retrocesso em relação às propostas dos anos 70 pelo tratamen-
to dado às creches e pré-escolas. Pelas suas proposições, a creche é reduzida
a uma função educacional- assistencialista e o profissional indicado para nela
atuar é a de um agente educativo, sem que seja indicada uma necessidade de
formação específica qualquer. Quanto à pré-escola, mesmo considerada ne-
cessária, deve ter um profissional fonnado em nivel de 2° grau, podendo
existir o agente educativo para auxiliá-lo.
O segundo documento que pode ameaçar os avanços produzidos na área
daeducação infantil nestes últimos anos, diz respeito ao Referencial Curricular
Nacional para Educação Infantil produzido pela SEF/COEDI, sem que se
possa perceber uma articulação afinada com a produção até então coordenada
pela COEDI. Este documento pode signíficar um retrocesso para a educação
infantil no Brasil, pois não só apresenta uma proposta escolarizante para as
crianças de 4 a 6 anos, como estende esta proposta para as crianças de O a 3
anos. Apesar dos esforços que muitos pesquisadores e educadores têm feito
contra a concepção que norteou a versão preliminar do Referencial Curricular
para Educação Infuntil, este estará disponível para as profissionais de educação
infantil ainda no ano de 1999. Vale ressaltar que, mesmo que pareceristas das
mais diferentes regiões do Brasil que atuam na área da educação infantil em
20· Ana Beatriz Ceriura
Universidades ou em Secretarias de Educação tenham enviado pareceres acer-
ca desse documento, o RCNEJ5 apresenta uma proposta de trabalho que rom-
pe com o esforço que tem sido realizado no sentido de construir uma Pedago-
gia para a Educação Infantil que respeite as especificidades do trabalho com
crianças menores de 7 anos que freqüentam creches e pré-escolas.
Por tudo que foi apontado anteriormente, é possível constatar o
quanto o atual momento histórico está a exigir que todos os envolvidos
com a área da educação infantil, independente de suas funções, assumam
a tarefa de contribuir para a construção de uma educação infantil que
respeite os direitos fundamentais das crianças pequenas brasileiras.

Notas
2 Sobre isso ver KUHLMANN IR., Moises. Infância e Educação
Infantil: uma abordagem histórica. Porto Alegre: Editora Media
ção,1998.
3 Termo cunhado por Maria Lúcia Machado In:Educação infantil e
currículo: a especificidade do projeto educacional-pedagógico para
creches e pré-escolas. São Paulo, 1996. (mimeo)
4 Sobre isso ver ROSEMBERG, F. , Educação Infantil nos Estados
Unidos IN: Creches e Pré-escolas no Hemisfério Norte, p. 62-
1994 e CAMPOS, M.M. Educar e Cuidar: questões sobre o perfil
do profissional de educação infantil, IN: Por uma política de forma-
ção do profissional de educação infantil, 1994.
5 Sobre este tema ver CERISARA, Ana Beatriz. A produção acadê-
mica na área da educação infantil a partir da análise dos pareceres
sobre o Referencial Curricular Nacional da Educação Infantil: pri-
meiras aproximações. IN: Educação infantil pós-LDB: rumos e de-
safios. Editora Autores Associados, 1999.

Referências bibliográficas:
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil 1988. Brasília
Centro Gráfico do Senado Federal, 1988.
BRASIL, Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria da Educação
FunJam:ntID.&tilosdeqfertadaeducaçãopré--escolar. Brasília:MEC, 1989.
Educar ecuidar: por onde anda aeducação infantil? • 21
BRASIL, Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileiran 9.493/1996.
BRASIL, Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria da Educação
Fundamental. Coordenação Geral de Educação Infantil. Política de
EducaçãoInfantil-Proposta. Brasília: MEC, 1993.
_ _ Por uma política de Formação do Profissional de Educação
Infantil. Brasília: MEC, 1994a.
_ _ Educação infantil: situação atual. Brasília: MEC, 1994b.
_ _ Anais do I Simpósio Nacional de Educação Infantil. Brasília:
MEC, 1994c.
_ _ Critérios para um Atendimento em Creches que Respeite os
Direitos Fundamentais das Crianças. Brasília: MEC, 1995.
_ _ Propostas pedagógicas e currículo em educação infantil. Brasília
: MEC, 1996.
CAMPOS, Maria Malta. Educar e Cuidar: questões sobre o perfil do
profissional de Educação Infantil. IN: BRASIL. Ministério da Educa-
ção e do Desporto. Secretaria de Educação Fundamental. Coordenação
de Educação Infantil. Por uma política de formação do profissional de
educação infantil. Brasília_: MEC, p. 32 - 42, 1994a.
CERISARA, Ana Beatriz. A produção acadêmica na área da educação
infantil a partir da análise de pareceres sobre o Referencial Nacional
da Educação Infantil: primeiras aproximações. IN: Educação
infantil pós-LDB: rumos e desafios~ Editora Autores Associados /
UFSC / UFSCAR / UNICAMP: Campinas, 1999.
KULHMANN Jr. Moysés Infância e Educação Infantil: uma aborda-
gem histórica. Porto Alegre: Editora Mediação, 1998
MACHADO, Maria Lúcia. Educação Infantil e currículo: a
especificidade do projeto educacional pedagógico para creches e
pré-escolas. São Paulo, 1996(mimeo).
ROSEMBERG, F. Educação Infantil nos Estados Unidos, IN: Creches
e Pré-Escolas no Hemisfério Norte. Cortez Editora e FCC :
São Paulo, 1994.
Acta Scientiarum
http://www.uem.br/acta
ISSN printed: 1806-2636
ISSN on-line: 1807-8672
Doi: 10.4025/actascieduc.v34i2.17497

História da Educação no Brasil: a escola pública no processo de


democratização da sociedade
Marisa Bittar1* e Mariluce Bittar2
1
Departamento de Educação, Centro de Educação e Ciências Humanas, Universidade Federal de São Carlos, Via Washington Luis, km 235,
13565-905, São Carlos, São Paulo, Brasil. 2Programa de Pós-graduação em Educação, Universidade Católica Dom Bosco, Campo Grande, Mato
Grosso do Sul, Brasil. *Autor para correspondência. E-mail: bittar@ufscar.br

RESUMO. Analisam-se neste artigo aspectos da história da Educação no Brasil relacionados à consolidação
da escola pública e às políticas educacionais. O período demarcado inicia-se com a década de 30 do século
XX, época em que a organização e implantação de um sistema escolar público no País tornou-se condição
sine qua non para o seu desenvolvimento socioeconômico, e se estende aos anos 2000 com a consolidação da
democracia e do Estado de Direito no Brasil. Foram utilizadas fontes documentais elaboradas por órgãos
governamentais e entidades científicas bem como a bibliografia produzida por pesquisadores da área. Os
dados mostram que ao longo do período houve expansão em todos os graus de ensino, contudo, continuam
persistindo traços de elitismo e exclusão. Além disso, verifica-se contraste entre a qualidade da Pós-
Graduação e a da escola pública, que não tem cumprido a sua função essencial. Tais conclusões evidenciam
a necessidade de resolução desses problemas a fim de que se avance na própria democracia no País.
Palavras-chave: história da educação brasileira, escola pública, democracia.

History of Education in Brazil: the public school in the process of democratization of society
ABSTRACT. This paper analyzes aspects of the history of education in Brazil related to the consolidation
of public schools and educational policies. The period marked begins with the 1930s, a time when the
organization and implementation of a public school system in the country has become a condition for the
socio-economic development, and extends to the 2000s with the consolidation of democracy and the rule
of law in Brazil. It is based on documentary sources developed by governmental and scientific
organizations and the literature produced by researchers. The data show that over the period there was an
increase in all levels of education, however, continues to persist traces of elitism and exclusion. Moreover,
there is contrast between the quality of graduate and public school, which has failed its essential function.
These findings highlight the need to solve these problems in order to advance democracy in the country.
Keywords: history of brazilian education, public school, democracy.

Introdução de educação no País exigiu um forte sistema de


pesquisa e pós-graduação, construído ao longo das
Analisam-se, neste artigo1, aspectos da história da
últimas quatro décadas, que o elevou a uma posição
Educação no Brasil e a consolidação da escola
de referência na América Latina, projetando-o no
pública, bem como os vínculos com a política
cenário mundial.
educacional, no período de 1930, quando a
Com a finalidade de relacionar a construção da
necessidade de organização e de implantação de um
escola pública ao processo político do século XX,
sistema público educacional no País tornou-se
condição sine qua non para o seu desenvolvimento marcado por ditaduras, e o seu papel na
socioeconômico, até os anos 2000, período em que democratização da sociedade brasileira, utilizou-se
se consolida a democracia e o Estado de Direito no um amplo leque de fontes documentais, desde as
Brasil. Nesse percurso histórico, discute-se também elaboradas por órgãos governamentais às produzidas
de que forma a consolidação de um sistema público por entidades científicas da área, como também a
bibliografia elaborada pela pesquisa em Educação
1
Parte das considerações elaboradas neste artigo resulta da pesquisa Brasileira nessas últimas décadas.
internacional desenvolvida por pesquisadores do Brasil, Argentina, Chile, México,
Paraguai e Uruguai, denominada Red Academica Conocimiento y Política
O texto está organizado em três partes: na
Educativa en America Latina. O capítulo intitulado ‘Producción de Conocimiento primeira, analisam-se as disputas ideológicas das
y Política Educativa en América Latina – la experiencia brasilera’, elaborado por
Mariluce Bittar, Marisa Bittar e Marília Morosini, integra o livro Investigación décadas de 30 a 60 do século XX e as reformas
educativa y política en América Latina, organizado por Palamidessi, Gorostiaga e
Suasnäbar, 2012. educacionais que marcaram o período; na segunda,
Acta Scientiarum. Education Maringá, v. 34, n. 2, p. 157-168, July-Dec., 2012
158 Bittar e Bittar

examina-se a expansão da escola pública no período Essa disputa ideológica atravessou décadas e
da Ditadura Militar (1964-1985); na terceira, os anos reformas educacionais sem que o poder público
da redemocratização e as políticas educacionais de brasileiro edificasse um sistema nacional de escolas
caráter neoliberal. públicas para todos.
De fato, durante o período de 1930 a 1964,
As reformas educacionais brasileiras no contexto ocorreram várias reformas educacionais no Brasil
das disputas ideológicas durante as décadas de 30 a sem que fosse resolvido o secular problema do
60 do século XX analfabetismo e da garantia de pelo menos quatro
Nas décadas compreendidas entre 1930 e 1960, o anos de escolaridade para todas as crianças, fato que
Brasil passou por mudanças estruturais que evidencia a forma como o Estado Nacional conduziu
incidiram diretamente sobre a construção de um a política educacional da época. Para se compreender
sistema nacional de educação pública. No plano esse aspecto das políticas públicas no Brasil, é
estrutural, o País passava por uma transição necessário evocar a Revolução de 19302, que passou
caracterizada pela aceleração do modo capitalista de a edificar o Estado burguês adotando medidas
produção, o que ocasionou transformações centralizadoras que garantissem a unidade nacional e
superestruturais, notadamente no aparelho escolar. a sua presença em setores estratégicos, como na
Em termos políticos, o período está compreendido supremacia sobre o próprio território. Foi nesse
entre dois processos vinculados à transição de um contexto que logo após a ascensão de Getúlio Vargas
modelo econômico agrário-exportador para ao poder, em 1930, criou-se o Ministério da
industrial-urbano: a Revolução de 1930 e o golpe de Educação e Saúde Pública, chefiado por Francisco
Estado de 1964. Campos, que implantou a Reforma de 1931,
No período de 1930 a 1964, rivalizaram-se dois precedida por um pedido de Vargas aos educadores
projetos de nação para o Brasil. O nacional- reunidos na IV Conferência da Associação Brasileira
populista, cuja gênese reportava-se a Getúlio Vargas de Educação (ABE) para que fornecessem ao
e que agregou setores progressistas da sociedade governo ‘o sentido pedagógico da revolução’.
brasileira, defendia a industrialização do País à base A Reforma Francisco Campos, como ficou conhecida,
do esforço nacional, sem comprometer a sua teve como diferencial a criação, pelo menos em lei, de
soberania. Por ter nascido reconhecendo que a um Sistema Nacional de Educação, além de ter criado
questão social não era caso de polícia, mas de o Conselho Nacional de Educação, órgão consultivo
política, o projeto getulista contou com apoio dos máximo para assessorar o Ministério da Educação. O
trabalhadores. Por sua vez, o projeto das oligarquias texto da Reforma determinou que o ensino
tradicionais, ligadas ao setor agrário exportador, secundário ficasse organizado em dois ciclos: o
previa o desenvolvimento econômico subordinado à fundamental, de cinco anos, e o complementar, de
liderança dos Estados Unidos da América e dois anos. Dessa forma, o ensino secundário
representava setores da elite política desalojada do compreendia a escolarização imediatamente
poder em 1930, especialmente os ligados à economia posterior aos quatro anos do ensino primário e tinha
cafeeira paulista. A polarização ganhou fortes cores caráter altamente seletivo.
ideológicas oriundas do ambiente político A seletividade do ensino secundário e a
internacional, dominado pela disputa entre dois dicotomia entre ensino profissional e secundário
blocos, o capitalista e o socialista, de tal forma que a ficaram mantidas, favorecendo os filhos da elite. O
política nacional da época esteve marcada pelos primeiro ciclo, de cinco anos, tornou-se obrigatório
binômios esquerda x direita, conservadores x para ingresso no ensino superior; o segundo, de dois
progressistas. anos, em determinadas escolas. O ingresso ao
A educação, por exemplo, foi palco de superior devia guardar correspondência obrigatória
manifestações ideológicas acirradas, pois, desde com o ensino médio, o que também dificultava o
1932, interesses opostos vinham disputando espaço acesso ao ensino superior. A Reforma deixou
no cenário nacional: de um lado, a Igreja Católica e
setores conservadores pretendendo manter a 2
Em 1930, Getúlio Vargas liderou a revolução que pôs fim ao domínio da
oligarquia agrária representada por Minas Gerais e São Paulo e que governou o
hegemonia que mantinham historicamente na Brasil na primeira fase republicana (1889-1930). Dissidente da oligarquia
tradicional, Vargas partiu do Estado do Rio Grande do Sul e se pôs à frente do
condução da política nacional de educação; de outro, movimento tenentista que convulsionou o Brasil na década de 20, tendo
setores liberais, progressistas e até mesmo de desfecho vitorioso em 1930. Iniciou-se desde então a ‘era’ de Getúlio Vargas no
Brasil: a) de 1930 a 1934, governo provisório; b) de 1934 a 1937, governo eleito
esquerda, aderindo ao ideário da Escola Nova, pela Constituinte; c) de 1937 a 1945, “ditadura do Estado Novo”; e) de 1951 a
1954, eleito pelo voto direto. Vargas instituiu o populismo e iniciou a etapa da
propunham uma escola pública para todas as industrialização no Brasil, a qual, por sua vez, impulsionou a urbanização, e esta,
crianças e adolescentes dos sete aos 15 anos de idade. a pressão por educação. Em agosto de 1954, mergulhado em grave crise política
que almejava sua deposição, Getúlio Vargas cometeu suicídio.

Acta Scientiarum. Education Maringá, v. 34, n. 2, p. 157-168, July-Dec., 2012


Educação Brasileira: de 1930 aos anos 2000 159

marginalizados o ensino primário, o Curso Normal uma conciliação de interesses no contexto dos
(formação de professores para atuar no primário) e conflitos político-ideológicos da época. No que diz
os vários ramos do ensino profissional, salvo o respeito ao debate educacional e à elaboração da
comercial. Constituição, esses conflitos ficaram explícitos entre
Aspecto inovador da Reforma Francisco Campos os renovadores (liberais partidários dos princípios da
foi ter empreendido a reforma do ensino superior, Escola Nova) e os defensores da educação privada,
prevista no Estatuto das Universidades Brasileiras no caso, representada pela Igreja Católica.
(BRASIL, 1931), que dispunha sobre a organização Com o golpe de Estado que instituiu a ditadura
do ensino superior e adotava o ‘regime de Vargas (1937-1945), uma nova Constituição, a de
universitário’, o qual previa a criação de 1937, foi adotada no Brasil, a qual, no aspecto da
universidades, organizadas de forma que pudessem educação, transformou em ação supletiva o que
criar ciência e transmiti-la, além de servir: antes era dever do Estado.
a) à pesquisa científica e à cultura desinteressada; b) à Durante a ditadura de oito anos, o governo
formação do professorado para as escolas primárias, editou uma das reformas mais duradouras do
secundárias, profissionais e superiores; c) à formação Sistema Educacional Brasileiro, as chamadas Leis
de profissionais em todas as profissões de base Orgânicas do Ensino, mais conhecidas como
científica; d) à vulgarização ou popularização Reforma Capanema (1942-1946). Esse conjunto das
científica literária e artística, por todos os meios de Leis Orgânicas do Ensino, editadas de 1942 a 1946,
extensão universitária (RIBEIRO, 1986, p. 102). estabeleceram o ensino técnico-profissional
A influência do movimento conhecido como (industrial, comercial, agrícola); mantiveram o
Escola Nova nessa Reforma é perceptível, pois caráter elitista do ensino secundário e incorporaram
incorporou uma reivindicação exposta no Manifesto um sistema paralelo oficial (Serviço Nacional de
dos Pioneiros da Educação Nova, de 19323, sobre a Aprendizagem Industrial (Senai) e o Serviço
criação de universidades, previstas como etapa da Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac)).
A Reforma Capanema incorporou também
escolaridade que acolhesse ‘os melhores’, isto é,
algumas reivindicações contidas no Manifesto de
aqueles dentre os que tivessem cursado a escola dos
1932, a saber: a) gratuidade e obrigatoriedade do
sete aos 15 anos e que demonstrassem talento para o
ensino primário; b) planejamento educacional
curso universitário. No âmbito da Reforma, mais
(Estados, territórios e Distrito Federal deveriam
especificamente no que preconizava o Estatuto das
organizar seus sistemas de ensino); c) recursos para
Universidades Brasileiras, foi organizada a o ensino primário (Fundo Nacional do Ensino
Universidade do Rio de Janeiro; em 1934, foi criada Primário) estipulando a contribuição dos Estados,
a Universidade de São Paulo (USP), com a Distrito Federal e dos municípios; d) referências à
participação de Fernando de Azevedo. carreira, remuneração, formação e normas para
Antes das mudanças que viriam a ocorrer em preenchimento de cargos do magistério e na
1937 foi promulgada a Constituição Brasileira de administração.
1934. Nela, o direito à educação, com o corolário da Durante os oito anos do ‘Estado Novo’, termo
gratuidade e da obrigatoriedade tomou forma legal, com o qual Vargas intitulou a sua ditadura, foram
além de ter declarado gratuito o ensino primário de criadas várias entidades e órgãos tanto na esfera da
quatro anos. A Carta de 1934 consagrou o princípio sociedade civil, quanto no âmbito da sociedade
do direito à educação, que deveria ser ministrada política em função de lutas específicas vinculadas às
‘pela família’ e ‘pelos poderes públicos’ e o princípio universidades, à área da educação, ou mesmo ao
da obrigatoriedade, incluindo entre as normas que movimento estudantil. Foi o caso da União Nacional
deviam ser obedecidas na elaboração do Plano de Estudantes (UNE), fundada em 1937, que
Nacional de Educação, o ensino primário gratuito e combateu a ditadura. Ao longo dos seus mais de
de frequência obrigatória, extensiva aos adultos, e a setenta anos de história, a UNE marcou presença na
tendência à gratuidade do ensino ulterior ao vida política, social e cultural do Brasil, como: a)
primário. Além disso, essa Constituição representou contra a Ditadura de Vargas (1937-1945) e a Ditadura
Militar (1964-1985); b) no movimento das ‘Diretas
3
Trata-se do texto conhecido como Manifesto de 1932, cujo título original é A Já’, no início dos anos 1980; c) na campanha do
reconstrução educacional no Brasil: ao povo e ao governo. Redigido por
Fernando de Azevedo, constituiu-se em um dos mais importantes documentos impeachment do presidente Fernando Collor de
da educação brasileira e representou a influência dos ideais da Escola Nova no
Brasil, polarizando com os ideais da escola tradicional e os interesses da Igreja
Mello, em 1992. Durante a década de 90, “[...] foi um
Católica. Foi assinado por 26 intelectuais liberais brasileiros, dentre os quais, o dos principais focos de resistência às privatizações e ao
mais importante para a área da educação foi Anísio Teixeira, e influenciou
largamente as ideias pedagógicas no Brasil. Em 2012, o Manifesto está neoliberalismo que marcou a Era FHC” (UNE,
completando 80 anos de existência e muitas das reivindicações ali contidas
permanecem atuais. 2012), ou seja, o período de 1995-2002.
Acta Scientiarum. Education Maringá, v. 34, n. 2, p. 157-168, July-Dec., 2012
160 Bittar e Bittar

Em janeiro de 1937, mesmo ano de criação da Progresso da Ciência (SBPC), entidade científica
UNE, fundou-se o Instituto Nacional de Pedagogia integrada por pesquisadores de todas as áreas de
(INEP)4, que, atualmente, figura como um dos mais conhecimento, sobretudo físicos e engenheiros.
importantes órgãos de disseminação de informações Iniciou-se, desde então, a organização das primeiras
educacionais e trabalha por meio da constituição de reuniões anuais e a publicação da Revista Ciência e
Comissões de Especialistas designados entre os Cultura, ‘porta-voz da SBPC’. A Sociedade teve
pesquisadores da comunidade acadêmica, para papel importante ao longo desses mais de sessenta
contribuírem com a formulação das políticas anos de existência, especialmente no período de luta
educacionais e de implementação dos processos de contra a ditadura militar, reunindo uma diversidade
avaliação em todos os níveis educacionais. Com a de pesquisadores e associações científicas,
criação do INEP, iniciaram-se no País as bases para a destacando-se nas discussões sobre as políticas
o desenvolvimento de atividades de pesquisa e de científicas do País.
investigação na área da educação, mais tarde Os anos 1950 marcaram a criação de várias
implementadas pelos Centros Regionais de agências de fomento à pesquisa e à ciência
Pesquisa. brasileiras; iniciava-se, em 1951, um novo governo
Terminada a ditadura Vargas, fato que coincidiu de Getúlio Vargas, dessa vez eleito pelo povo. De
com o final da Segunda Guerra Mundial, o Brasil acordo com a sua plataforma nacionalista, a
editou a sua quarta Constituição republicana (1946), construção de uma nação desenvolvida e
que consagrou os direitos e garantias individuais e independente exigia uma política científica e de
assegurou a liberdade de pensamento. Demons- pesquisa para o País. Assim, no primeiro ano do
trando tendência progressista e aproximando-se da novo mandato, criou-se o Conselho Nacional de
Constituição de 1934 e dos princípios ‘do Manifesto Desenvolvimento Científico e Tecnológico
de 1932’, essa Constituição reafirmou o direito de (CNPq), vinculado ao Ministério de Ciência e
todos à educação, obrigatoriedade e gratuidade do Tecnologia, com a função de fomentar o
ensino primário. Esses princípios progressistas, no desenvolvimento científico e tecnológico no País.
entanto, não garantiram a universalização sequer da No mesmo ano, teve origem a Coordenação de
escola primária para todas as crianças brasileiras, ou Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
seja, a sequência de reformas que vimos, (Capes)5, que atualmente desenvolve atividades
especialmente nos seus aspectos mais democráticos, relacionadas: à
pouco saía do papel. Aliás, um traço recorrente das
[...] avaliação da pós-graduação stricto sensu; ao acesso
políticas educacionais brasileiras: incorporação de e divulgação da produção científica; ao investimento
princípios democráticos que não chegam a ser postos na formação de recursos humanos de alto nível no
em prática. A Constituição de 1946, por outro lado, País e no exterior; à promoção da cooperação
previu, pela primeira vez, a elaboração de uma lei internacional (CAPES, 2012).
específica para a educação brasileira: a Lei de
No governo de Juscelino Kubitschek (1956-
Diretrizes e Bases da Educação (LDB), que viria a
1960), o País entrou de forma mais intensa na fase
ser aprovada apenas em 1961.
do nacional-desenvolvimentismo. Sob a influência
Antes, porém, no ano de 1948, no transcorrer do
dessa ideologia, foi criado o Instituto Superior de
governo Eurico Gaspar Dutra (1946-1950) e no
Estudos Brasileiros (ISEB), vinculado ao Ministério
contexto de manifestações nacionalistas e
da Educação e Cultura (MEC), reunindo “[...]
democráticas, foi criada a Sociedade Brasileira para o
intelectuais de distintas orientações teóricas e
ideológicas” (TOLEDO, 2005, p. 11)6, com o
4
O INEP passou por várias transformações, desde a sua criação. No início,
constituiu-se como o primeiro órgão do governo federal a estabelecer-se como
“[...] fonte primária de documentação e investigação, com atividades de 5
intercâmbio e assistência técnica”. Em 1944, criou a Revista Brasileira de No início, a Capes tinha como objetivo “[...] atender às necessidades dos
Estudos Pedagógicos (RBEP). Em 1952, sob a presidência de Anísio Teixeira, empreendimentos públicos e privados que visam ao desenvolvimento do País”.
priorizou o trabalho de pesquisa, “[…] como um meio de fundar em bases Além disso, a “[...] industrialização pesada e a complexidade da administração
científicas a reconstrução educacional do Brasil”. Nessa época, foram criados o pública trouxeram à tona a necessidade urgente de formação de especialistas e
Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE) e os Centros Regionais de pesquisadores nos mais diversos ramos de atividade: de cientistas qualificados
Pesquisa, que funcionaram como importantes centros de estudos e pesquisas em Física, Matemática e Química a técnicos em finanças e pesquisadores
educacionais em algumas regiões brasileiras, adquirindo projeção nacional e sociais”. A Capes passou por diversas mudanças, chegando a ser extinta no
internacional. Em 1981, lançou a Revista Em Aberto, para assessorar governo Fernando Collor de Mello, em 1990. Em 1992, ela se tornou Fundação
internamente o MEC, mas posteriormente passou a atender às necessidades de Pública e, em 1995, primeiro ano do governo de Fernando Henrique Cardoso,
“[...] professores e especialistas fora da estrutura do MEC”. Em 1985, retirou-se fortaleceu-se como “[...] instituição responsável pelo acompanhamento e
da função de fomento para retomar seu papel básico de suporte às decisões do avaliação dos cursos de pós-graduação stricto sensu brasileiros. Naquele ano, o
MEC. No governo de Fernando Collor de Mello (1990-1992), o INEP quase foi sistema de pós-graduação ultrapassou a marca dos mil cursos de Mestrado e
extinto, mas após essa fase, ainda no início dos anos 1990, “[...] atuou como dos 600 de Doutorado, envolvendo mais de 60 mil alunos” (CAPES, 2012, p. 3).
6
financiador de trabalhos acadêmicos voltados para a educação”. Após 1995, Para Caio Navarro de Toledo, o Instituto foi criado para servir de instrumento
tornou-se responsável pelos levantamentos estatísticos e pelas informações para uma ação eficaz no processo político do País. Reuniu intelectuais de
educacionais que efetivamente orientassem “[…] a formulação de políticas distintas convicções ideológicas, incluindo o marxismo, que acreditavam ser
educacionais do Ministério da Educação”. No governo de Luiz Inácio Lula da possível, por meio do debate e do confronto de ideias, formular um projeto
Silva, passou a denominar-se Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas ideológico comum para o Brasil. Em um contexto de polarização ideológica, o
Educacionais Anísio Teixeira (INEP, 2012, p. 5). nacional-desenvolvimentismo foi concebido como uma ideologia-síntese capaz

Acta Scientiarum. Education Maringá, v. 34, n. 2, p. 157-168, July-Dec., 2012


Educação Brasileira: de 1930 aos anos 2000 161

objetivo de formular um projeto nacional para o No que se refere à estrutura do ensino, a Lei
País. O Instituto ficou conhecido por: manteve a herança da Reforma Capanema: pré-
primário; primário; médio, subdividido em dois
[…] oferecer cursos a oficiais das Forças Armadas,
empresários, sindicalistas, parlamentares, ciclos (técnico e secundário); superior. Daí afirmar-
funcionários públicos, burocratas e técnicos se que a Reforma Capanema teve caráter duradouro
governamentais, docentes universitários e do ensino que as outras reformas não tiveram.
médio, profissionais liberais, religiosos, estudantes, Depois de uma profusão de debates e com
etc. Distinguindo-se de uma instituição acadêmica instituições ativas na área da educação como a UNE,
foi, precipuamente, um centro de formação política INEP e SBPC, o Brasil chegou à década de 60 do
e ideológica, de orientação democrática e reformista século XX com quase 40% de analfabetismo, o que
(TOLEDO, 2005, p. 11).
evidencia a ineficiência das reformas, o seu caráter
Na última fase do ISEB, seus integrantes retórico e a omissão do Estado no cumprimento
procederam a uma revisão crítica das teses nacionais- efetivo das leis que ele próprio editara. Os números
desenvolvimentistas. De acordo com Caio Navarro expressam que pouco havia mudado: em 1940, a taxa
de Toledo, nessa revisão constatou-se que o, de analfabetismo no Brasil era de 56,0%; em 1950,
era de 50,5% e, em 1960, 39,35% (RIBEIRO, 1986).
[...] país cresceu economicamente – com a consolidação
Em uma sociedade com quase a metade de sua
do capitalismo industrial – mas não resolveu em
profundidade suas graves e históricas desigualdades população analfabeta, quem eram os alunos e quem
sociais e regionais (TOLEDO, 2005, p. 11). eram os professores? Os primeiros eram os que
conseguiam superar todos os obstáculos para chegar
No contexto político entre esquerda e direita, até à escola, uma vez que o Brasil era
nacionalistas versus entreguistas, no início dos anos predominantemente rural e escolas nas fazendas
1960, após 13 anos de conflitos ideológicos e de lutas eram raras. Esse era o mais forte obstáculo à
pela educação pública brasileira, foi aprovada a escolarização8. Urbanização e escolarização,
primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei portanto, são dois fenômenos que precisam ser
n. 4.024, de 1961)7, que incorporou os princípios do considerados conjuntamente na história do Brasil.
direito à educação, da obrigatoriedade escolar e da Diante da alta taxa de analfabetismo (39,35%) no
extensão da escolaridade obrigatória nos seguintes Brasil na década de 60, teve início a experiência de
termos: “A educação é direito de todos e será dada educação popular, dentre as quais se destacou o
no lar e na escola” (Artigo 2º); “O direito à educação método de alfabetização de adultos de Paulo Freire.
é assegurado pela obrigação do poder público e pela Com o apoio da União Nacional dos Estudantes
liberdade de iniciativa particular de ministrarem o (UNE) e de uma parte da Igreja Católica que aderiu
ensino em todos os graus, na forma da lei” (Artigo à Teologia da Libertação, o educador pernambucano
3º) (ROMANELLI, 1986, p. 176). começou a alfabetizar segundo a sua máxima: “[...]
O retrocesso dessa Lei em relação à Constituição educação como prática da liberdade” (FREIRE,
de 1946 foi ter estabelecido casos de isenção pelos 1978, p. 1). Coerente com essa teoria e com a sua
quais o Estado não era obrigado a garantir matrícula: compreensão do Brasil, Paulo Freire preconizava
que, ao enorme contingente que nunca pisara o chão
a) comprovado estado de pobreza do pai ou
de uma escola, não bastaria apenas alfabetizar com
responsável; b) insuficiência de escolas; c) matrícula
encerrada; d) doença ou anomalia grave da criança
métodos convencionais. Ao contrário, no processo
(ROMANELLI, 1986, p. 174). da alfabetização, ao mesmo tempo em que se deveria
fornecer aos adultos desescolarizados o instrumental
de levar o país – através da ação estatal (planejamento e intervenção
da escrita, seria necessário fornecer-lhes também as
econômica) e de uma ampla frente classista – à superação do atraso econômico- ferramentas para interpretar o mundo, ou melhor,
social e da alienação cultural (TOLEDO, 2005).
7
A primeira LDB do País tramitou no Congresso Nacional de 1948 a 1961. Na para ler o mundo. Contudo, a sua inovadora atuação,
primeira fase, de 1948 a 1958, o projeto apresentado pelo Ministro da Educação,
Clemente Mariani, foi alvo da polêmica centrada no aspecto da centralização ou
que no futuro seria reconhecida mundialmente, foi
da descentralização da Política Nacional de Educação. Nessa época, o deputado interrompida em abril de 1964.
federal Gustavo Capanema, do Partido Social Democrático (PSD), ex-Ministro da
Educação, acusava o projeto de ser centralizador. Com hegemonia Essas características da educação brasileira,
conservadora no Congresso Nacional, em 1958 o deputado Carlos Lacerda, da
União Democrática Nacional (UDN), apresentou um substitutivo ao anteprojeto, herdeira de três séculos de escravidão e com as suas
deslocando o foco da discussão para a ‘liberdade de ensino’, rejeitando a
centralização e propondo que o Estado outorgasse igualdade de condições às
escolas de elite, trazem à mente as palavras de
escolas oficiais e particulares (ROMANELLI, 1986). Segundo alegava, o Estado
pretendia o monopólio sobre o ensino. Esses debates no Congresso Nacional
8
suscitaram, em 1959, o início da Campanha em Defesa da Escola Pública, Foi depois de 1930 que a demanda por escolarização começou a crescer no
liderada por Florestan Fernandes e Fernando de Azevedo, com centro na Brasil, como consequência do projeto econômico implantado pelo governo de
Universidade de São Paulo (USP). A Campanha insurgiu-se contra o substitutivo Getúlio Vargas, pautado na industrialização. Antes disso, vivendo a maioria da
de Carlos Lacerda. Ainda em 1959, foi publicado um Manifesto em favor da população na área rural, em um país recém-liberto da escravidão sem qualquer
escola pública, redigido por Fernando de Azevedo, que tratava do aspecto social política indenizatória ou compensatória, além de manter a estrutura agrária de
da educação e dos deveres do Estado democrático. produção, a necessidade de escolas era pouco percebida.

Acta Scientiarum. Education Maringá, v. 34, n. 2, p. 157-168, July-Dec., 2012


162 Bittar e Bittar

Manacorda (1989, p. 41), para quem, desde que a universidade ao modelo econômico preconizado
sociedade se dividiu em dominantes e dominados, pelo regime, instituindo os departamentos, a
“[...] para as classes excluídas e oprimidas [...], matrícula por crédito e não mais em disciplinas, a
nenhuma escola”. extinção da cátedra, etc. Inspirada no princípio de
organização da universidade norte-americana, essa
A expansão da escola pública brasileira durante o Reforma, realizada em contexto de repressão
regime militar (1964-1985) política, de um lado, instituiu o modelo da eficiência
A política educacional da ditadura militar, e produtividade e, de outro, o controle sobre as
instituída em 1964, por meio de um golpe de atividades acadêmicas. A repressão se abateu
Estado9, provocou mudanças estruturais na história principalmente sobre o movimento estudantil
da escola pública brasileira. Para alguns, um fato organizado pela UNE, proibido de qualquer
paradoxal, pois, como se explica que exatamente manifestação de caráter político. Foram atingidos
durante um regime autoritário que prendeu, também os professores universitários e intelectuais
torturou e matou seus opositores, a escola pública que atuavam por uma reforma democrática da
tenha se expandido? A resposta deve ser buscada na universidade, que na época era acessível apenas a
própria base produtiva do modelo econômico uma pequena parcela da sociedade brasileira.
instaurado pelos governos militares. A consolidação A relação da Reforma Universitária com a escola
da sociedade urbano-industrial durante o regime pública encontra-se na conexão estabelecida entre os
militar transformou a escola pública brasileira cursos para formar professores e a facilitação da
porque na lógica que presidia o regime era expansão do ensino superior privado. Nesses cursos,
necessário um mínimo de escolaridade para que o muitos dos quais noturnos, começaram a ser
País ingressasse na fase do “Brasil potência”, titulados os novos professores para a escola pública
conforme veiculavam slogans da ditadura. Sem brasileira. Outra consequência da política
escolas isto não seria possível. Entretanto, a expansão educacional da ditadura militar consistiu na
quantitativa não veio aliada a uma escola cujo padrão formação de uma nova categoria docente que veio a
intelectual fosse aceitável. Pelo contrário: a expansão substituir aquela que até então era formada nas
se fez acompanhada pelo rebaixamento da qualidade poucas instituições universitárias ou nos Cursos
de ensino, segundo a maioria dos estudiosos. É Normais. Desse novo contexto, nasceu uma
imperioso constatar, porém, que a expansão, em si categoria massiva que, pela condição de vida e de
mesma, foi um dado de qualidade, pois se qualidade trabalho a que seria submetida, logo iria se organizar
e quantidade são duas categorias filosóficas que não em sindicatos, um fenômeno típico do novo
se separam, o fato de as camadas populares professorado e inteiramente distinto do perfil dos
adentrarem pela primeira vez em grande quantidade professores brasileiros até a década de 60.
na escola pública brasileira constituiu-se em um dos Tendo feito a Reforma ‘antes que outros a
elementos qualitativos dessa escola. Em outras fizessem’, expressão que indicava o temor dos
palavras: se no passado a escola pública brasileira era militares quanto à força do movimento estudantil da
tida como de excelente qualidade, não se pode época, a ditadura militar editou também a reforma
esquecer que essa qualidade implicava na exclusão da do ensino fundamental conhecida como Lei n.
maioria. 5.692, de 1971, transformando o antigo curso
A ditadura militar, ancorada no pensamento primário, de quatro anos, e o ginásio, também de
tecnocrático e autoritário que acentuou o papel da quatro anos, em oito anos de escolaridade
escola como aparelho ideológico de Estado, editou obrigatória mantida pelo Estado, isto é, o ensino de
um rol de medidas consubstanciadas, basicamente, primeiro grau que duplicou os anos de escolaridade
em duas reformas educacionais que mudaram a face obrigatória.
da educação brasileira. A primeira delas foi a Com essa reforma, o regime militar pretendeu
Reforma Universitária10, de 1968, que adequou a conferir um novo caráter ao segundo grau de ensino.
Com o propósito de lhe conferir caráter terminal e de
9
Esse golpe destituiu, em 31 de março de 1964, o governo do presidente eleito
diminuir a demanda sobre o ensino superior, a reforma
João Goulart, filiado politicamente ao nacional-populismo. Durante o período imprimiu-lhe o carimbo de ‘profissionalizante’, ou seja,
decorrido após 1930, as forças políticas predominantes no Brasil se dividiram
entre os que apoiavam o projeto político-econômico nacional-populista, como acabava-se com o ensino médio de caráter formativo,
trabalhadores e setores da classe média, e os conservadores, como
latifundiários e oligarquias tradicionais. Quando a conjuntura internacional se
polarizou em consequência da Guerra Fria, no período após 1945, essas forças porque o movimento estudantil estava mobilizado exigindo a democratização da
à direita, alegando que o Brasil caminhava para o comunismo, tramaram o golpe universidade brasileira desde o pré-64 e o governo militar pretendia calar a sua
de Estado que acabou sendo desfechado pelo Exército, colocando fim ao voz. No entanto, embora realizada pelo Estado autoritário, acabou incorporando
nacional-populismo e subordinando o País à política norte-americana. algumas reivindicações do período anterior à ditadura. Essa Reforma mudou a
10
A Reforma Universitária (Lei n. 5.540/1968) foi consequência do trabalho de face do ensino superior no Brasil, instituindo a indissociabilidade entre ensino,
um grupo de especialistas, atendendo a uma determinação do general Arthur da pesquisa e a pós-graduação no âmbito universitário, além de ter aberto caminho
Costa e Silva, então presidente do Brasil, e foi realizada em curto prazo. Isso para a expansão do ensino privado.

Acta Scientiarum. Education Maringá, v. 34, n. 2, p. 157-168, July-Dec., 2012


Educação Brasileira: de 1930 aos anos 2000 163

com base humanística, para fornecer ‘uma profissão’ alfabetização, dentre as quais a do Movimento
aos jovens que não pudessem ingressar na Brasileiro de Alfabetização (Mobral), um verdadeiro
universidade. fracasso. O pior, porém, foi o fato de que os
Quanto ao ensino de primeiro grau de oito anos, governos que sucederam a ditadura também não
a expansão física das escolas foi uma característica resolveram esse problema. Além disso, por não ter
dos 21 anos de ditadura. Mas que escola era essa? cumprido a universalização da escola básica, tarefa
Sem dúvida, a das crianças das camadas populares; a realizada pela maioria dos países ocidentais na
escola em que funcionava o turno intermediário, passagem do século XIX para o XX, o Brasil
com pouco mais de três horas de permanência na ingressou no século XXI com essa vergonhosa
sala de aula, mal aparelhada, mal mobiliada, sem herança11.
biblioteca, precariamente construída, aquela em que Em termos de políticas de desenvolvimento
os professores recebiam salários cada vez mais científico e tecnológico, é importante registrar a
incompatíveis com a sua jornada de trabalho e com a criação, no início da década de 60, da Fundação de
sua titulação. A escola na qual era obrigatória a Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo
Educação Moral e Cívica, disciplina de caráter (Fapesp)12, a primeira de uma série de fundações
doutrinário, que além de justificar a existência dos estaduais de apoio à pesquisa que foram sendo
governos militares, veiculava ideias preconceituosas criadas nos Estados brasileiros, com o objetivo de
fomentar a pesquisa científica e tecnológica no País,
sobre a formação histórica brasileira, e na qual o
bem como a criação dos programas de pós-
ensino da Língua Portuguesa, da História, da
graduação stricto sensu. No final dos anos 1960,
Geografia e das Artes ficou desvalorizado.
observa-se também o crescimento das Reuniões
Quanto à expansão quantitativa de matrículas nas
Anuais da SBPC e os embates de cientistas e
escolas públicas, alguns dados mostram o que
intelectuais contrários à ditadura. Nos anos 1970, a
ocorreu após a Reforma de 1971. Em 1950, apenas
SBPC incorporou cientistas das áreas das Ciências
36,2% das crianças de 7 a 14 anos de idade tinham
Humanas e Sociais e na segunda metade da década
acesso à escola. Em 1989, os dados indicavam
de 1980, participou ativamente da transição
27.557.492 matrículas no ensino de primeiro grau
democrática, transformando-se em um “[...] fórum
público ante 3.442.934 no privado. Em 1990, eram
de discussão de políticas públicas para o país”
88% (GOLDEMBERG, 1993). O Censo Escolar de
(SBPC, 2012, p. 2).
1991-2002 registrou 35.150.362 de matrículas no
No campo da pesquisa em Ciências Humanas e
ensino de primeiro grau, e desse montante apenas
Sociais, foram criadas, em 1976 e 1977,
3.234.777 estavam na rede privada (CENSO respectivamente, a Associação Nacional de Pós-
ESCOLAR, 2003). O ensino de segundo grau, por Graduação e Pesquisa em Educação (Anped)13 e a
sua vez, em 1960, registrava 1.177.427 alunos Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa
matriculados (ROMANELLI, 1986). Em 2002, o em Ciências Sociais (Anpocs), que desempenharam
Censo Escolar (2003) indicava 8.710.584 de alunos papel importante no enfrentamento à ditadura
matriculados nesse nível de ensino, dos quais 1.122. militar, bem como na organização dos Programas de
970 na rede privada. Apesar desses avanços Pós-Graduação em Educação e em Ciências Sociais,
quantitativos, a disparidade de matrículas entre um reunindo pesquisadores de todo o Brasil e sendo
grau e outro persistia e um grave problema não foi fundamentais no processo de redemocratização da
equacionado: o analfabetismo. Dados da Pesquisa sociedade brasileira e da consolidação da pesquisa no
Nacional por Amostragem de Domicílios (PNAD), País.
de 2003, evidenciaram que, No final da década de 80, no contexto da
[...] 10,6% dos brasileiros com dez anos ou mais de Assembleia Nacional Constituinte, após intenso
idade declararam-se incapazes de ler e escrever. Esse
número vem caindo ano a ano, independentemente 11
A situação do professorado brasileiro se deteriorou fortemente desde o arrocho
de qualquer campanha, pelo simples fato de que a salarial imposto pelo regime e depois foi seguido de empobrecimento crescente
após o fim da ditadura. Na década de 90, a crise se aprofundou, pois “[...] uma
maioria dos analfabetos no Brasil são idosos. Aos 14 parte dos professores públicos aderiu a planos neoliberais de demissão
anos, o analfabetismo no Brasil se limita a 2% da voluntária, além de levas que abandonaram em massa a profissão pela
impossibilidade de subsistirem do seu próprio trabalho” (FERREIRA JÚNIOR.;
faixa etária, e o total cai naturalmente à medida que BITTAR, 2006, p. 80).
12
vão minguando as gerações mais antigas Outras Fundações de Pesquisa de maior expressão nacional são a Fundação
de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (Fapergs), de 1964; a
(SCHWARTZMAN, 2005, p. 41). Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj), criada
em 1980, e a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais
Os dados indicam que o método de alfabetização (Fapemig), criada em 1985.
13
A Anped (2012) organiza-se por meio de 24 Grupos de Trabalho (GTs) fixos e
de adultos criado por Paulo Freire foi interrompido comporta em sua estrutura o Fórum Nacional de Coordenadores de Programas
de Pós-Graduação em Educação. Além disso, mantém um periódico
pela ditadura, que instituiu caríssimas campanhas de internacional, a Revista Brasileira de Educação (RBE).

Acta Scientiarum. Education Maringá, v. 34, n. 2, p. 157-168, July-Dec., 2012


164 Bittar e Bittar

processo de discussão e organização dos mais ensino médio, investimento muito abaixo do valor
variados segmentos da sociedade política e da investido por muitos países desenvolvidos e em
sociedade civil, o Brasil promulgou a sua nova desenvolvimento (WREFORD, 2003, p. 17)14.
Constituição (1988). Denominada de ‘Constituição c) a dedicação, o “[...] talento dos indivíduos que
Cidadã’, a nova Carta Magna brasileira define em conheci nas redes municipal e estadual, em todos os
seu artigo 208 que o dever do Estado com a níveis, e nos sindicatos. “Conheci pessoas que
educação será efetivado mediante a garantia de enfrentam grandes desafios no compromisso de
‘ensino fundamental obrigatório e gratuito’, melhorar o sistema”( WREFORD, 2003, p. 6). Ela
considerado ‘direito público subjetivo’. A efetivação concluiu o seu relatório anotando:
desse direito, um avanço em termos de políticas
As crianças e jovens que conheci nesta vasta, violenta
públicas educacionais, proporcionou mudanças
e caótica periferia são acolhedores, inteligentes e
importantes na educação pública brasileira, a seguir
generosos. São um recurso de que o Brasil precisa
analisadas. cuidar. Eles merecem melhores oportunidades
(WREFORD, 2003, p. 17).
A redemocratização e as políticas educacionais de
caráter neoliberal Muito do que está registrado nesse Relatório é
herança da política educacional da ditadura militar.
Conforme análises anteriores, o período dos Mas não só, pois na década de 90, especialmente
governos militares empreendeu a expansão desde os dois governos de Fernando Henrique
quantitativa da escola que, por sua vez, não veio Cardoso (PSDB, 1995-1998 e 1999-2002), com a
acompanhada das condições indispensáveis para adoção de medidas neoliberais no âmbito do
propiciar a aprendizagem aos alunos e para cumprir, capitalismo globalizado, a escola pública brasileira
portanto, a sua função essencial. Terminada a continuou se expandindo quantitativamente, mas a
ditadura militar, os governos que se seguiram não ineficiência do ensino tem sido constatada pelas
cumpriram essa tarefa de interesse nacional. Uma
avaliações de desempenho adotadas pelo Estado
ideia da situação pode ser obtida observando-se
desde então.
trechos do Relatório intitulado Um ensino que tem
Quanto à transição política que marcou o fim da
muito a aprender, elaborado por Jane Wreford, da
ditadura militar no Brasil, ela manteve traços mais
Comissão de Auditoria da Inglaterra, que, a pedido
do Instituto Fernand Braudel, passou um mês conservadores do que de mudança. A eleição de um
visitando escolas públicas paulistas na Grande São presidente de direita, Fernando Collor de Mello
Paulo, em 2002. (PRN, 1990-1992), depois de vinte e um anos de
Além de registrar problemas sobre a didática dos ditadura e de lutas democráticas que forjaram
professores, a falta de foco individual no aluno lideranças progressistas e de esquerda no cenário
devido à alta carga horária de trabalho, bem como o nacional brasileiro, evidencia que a transição para a
grande número de faltas, a rotatividade e os baixos democracia transcorreu de forma conservadora,
salários, Jane Wreford acrescentou que nas duas mantendo traços estruturais da formação histórica
aulas de Geografia a que assistiu, não havia sequer brasileira. O fato é mais significativo ainda porque o
mapas à disposição. As bibliotecas, com uma única derrotado nessas primeiras eleições diretas para
exceção, estavam trancadas. Embora Física, Química presidente (1989) foi Luiz Inácio Lula da Silva, cujo
e Biologia fossem disciplinas do currículo, os partido (PT) estava em franca ascensão junto aos
laboratórios eram raros. Nas salas de aula do ensino movimentos populares. Por seu lado, envolvido em
fundamental, exceto uma, não havia livros de escândalo de corrupção, Fernando Collor de Mello
leituras para diferentes graus de habilidade, nem não terminou o mandato.
mesmo simples livros de histórias. Os dois governos de Fernando Henrique
Quanto aos pontos positivos, ela realçou: a) a Cardoso adotaram medidas que expandiram as
merenda, “[...] um grande sucesso, gratuita e matrículas na escola pública15, mas diminuíram o
apetitosa, preparada na hora, com ingredientes
frescos e de alta qualidade” (WREFORD, 2003, p. 14
Em abril de 2002, segundo dados da Secretaria de Estado da Educação de
5), tornando as refeições “[...] melhores do que na São Paulo, citados no Relatório de Jane Wreford, as despesas anuais por aluno,
maioria das escolas britânicas”( WREFORD, 2003, em todo o sistema, eram de 500 dólares. Os Estados do Nordeste gastavam
menos que 150 dólares por aluno.
p. 5); b) o apoio financeiro, que aumentou “[...] nos 15
A universalização da escola pública brasileira recebeu impulso no governo de
Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), especialmente no ensino fundamental
últimos 15 anos” (WREFORD, 2003, p. 4), embora que, em 2004, apresentava 94,4% de Taxa de Escolarização Líquida. Esse
registrando o pouco que se gasta por aluno: porcentual se deve em grande parte à Constituição Brasileira de 1988 e à atual
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), n. 9.394/1996, que
instituiu dois níveis de ensino: a) Educação Básica, formada pela Educação
O Brasil gasta apenas 14% do PIB per capita para cada Infantil (zero a seis anos), Ensino Fundamental (7 a 14 anos) e Ensino Médio (15
aluno da escola fundamental e 16% por aluno do a 17 anos); b) Educação Superior. Para Oliveira (2007, p. 674), a LDB contribuiu
para essa universalização, “[...] ao explicitar a possibilidade de adoção de

Acta Scientiarum. Education Maringá, v. 34, n. 2, p. 157-168, July-Dec., 2012


Educação Brasileira: de 1930 aos anos 2000 165

papel do Estado na educação superior ocasionando ensino que o País ostenta a menor taxa de
estagnação das universidades públicas além de Escolarização Líquida, isto é, apenas 13% dos jovens
aposentadorias precoces de professores que as de 18 a 24 anos frequentavam um curso superior em
deixaram para atuar nas universidades privadas, fato 2007 (IPEA, 2008). Esse sistema revela também que,
que prejudicou, principalmente, as universidades apesar de a Constituição Brasileira de 1988 exigir
públicas federais. Uma das principais medidas que as universidades sejam pautadas na
educacionais de seu governo foi desencadear o indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão,
processo de elaboração da nova Lei de Diretrizes e apenas 8% das IES que compõem o sistema são
Bases da Educação (LDB), prevista na Constituição caracterizadas como tal, ou seja, 92% do Sistema de
Brasileira de 1988. Para Bittar, Oliveira e Morosini Educação Superior no Brasil é constituída por
(2008), a aprovação dessa Lei, após oito anos de Faculdades, Centros Universitários, Escolas Isoladas,
intensos debates no Congresso Nacional: entre outros tipos de instituições, que não são
obrigadas a desenvolver políticas de pesquisa e de
[...] constituiu-se em um marco histórico pós-graduação stricto sensu. Resta, portanto, aos 8%
importante na educação brasileira, uma vez que esta caracterizados como ‘universidades’, o oferecimento
lei reestruturou a educação escolar, reformulando os
da pesquisa e da pós-graduação; isto significa que a
diferentes níveis e modalidades da educação. [...]
possibilidade do desenvolvimento da ciência, da
desencadeou um processo de implementação de
reformas, políticas e ações educacionais [...] em vez tecnologia e do avanço do conhecimento não se
de frear o processo expansionista privado e redefinir estende a todo o sistema.
os rumos da educação superior, contribuiu para que No que diz respeito ao período conhecido como
acontecesse exatamente o contrário: ampliou e ‘era FHC’, a SBPC (2012, p. 3) entendeu que houve
instituiu um sistema diversificado e diferenciado, “[...] uma tentativa de desmonte do sistema de ciência e
por meio, sobretudo, dos mecanismos de acesso, da tecnologia e da pós-graduação”, mediante as políticas
organização acadêmica e dos cursos ofertados. Nesse de privatização, flexibilização e desresponsabilização
contexto, criou os chamados cursos seqüenciais e os
implementadas pelo Estado, em consonância com as
centros universitários; instituiu a figura das
universidades especializadas por campo do saber; orientações emanadas dos organismos multilaterais.
implantou Centros de Educação Tecnológica; Esse processo de expansão e privatização
substituiu o vestibular por processos seletivos; orientado pela lógica de que ao Estado caberia
acabou com os currículos mínimos e flexibilizou os regular o sistema, instituiu-se um sistema complexo
currículos; criou os cursos de tecnologia e os de avaliação de todos os níveis de ensino
institutos superiores de educação, entre outras aumentando o seu controle com a intenção de
alterações (BITTAR; OLIVEIRA; MOROSINI, melhorar a qualidade da educação oferecida, o que,
2008, p. 10-11).
entretanto, não aconteceu. A política de avaliação
Um dos efeitos das reformas educacionais sistemática que passou a ser praticada pelo
instituídas no governo de Fernando Henrique Ministério da Educação, por meio do INEP,
Cardoso foi a intensificação do processo de possibilitou o conhecimento de dados dos Censos da
privatização da educação superior brasileira. Iniciada Educação Básica e da Educação Superior e a
nos anos da ditadura militar, especialmente após a constatação de que os níveis de aprendizagem no
Reforma Universitária de 1968, a expansão desse País, na Educação Básica, eram muito baixos,
nível de ensino colocou o Brasil como um dos países necessitando de políticas públicas mais eficazes para
com maior índice de privatização na educação enfrentá-los. Quanto à Educação Superior, a
superior, na América Latina e no mundo. O Censo constatação centrava-se na extrema desigualdade de
da Educação Superior relativo ao ano de 2008 acesso e permanência, na exclusão de milhões de
registra que do total de 2.252 Instituições de jovens desse nível de ensino, em especial negros e
Educação Superior (IES), somente 236 estão indígenas, na privatização, e no ensino de baixa
vinculadas ao setor público, enquanto 2.016 ao setor qualidade, entre outros.
privado, ou seja, 90% do total. Com relação às Depois da instituição das reformas neoliberais na
matrículas, do total de 5.080.056 alunos, 1.273.965 década de 90, o ex-ministro da Administração Federal e
estão frequentando as IES públicas, o que representa Reforma do Estado do primeiro governo de Fernando
25%; enquanto 75%, ou 3.806.091, estão
matriculados em IES privadas16. É nesse nível de Em termos de números significa que essas dez universidades detinham, em
2008, 686.638 matrículas de graduação. As duas públicas (Universidade de São
Paulo (USP) e Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquista Filho (Unesp)
mecanismos como os ciclos, a aceleração de estudos, a recuperação paralela e registravam apenas 82.482 matrículas, inferior à primeira (Universidade Paulista
a reclassificação, entre outras medidas [...]”. (UNIP) que, isoladamente, mantinha 166.601 matrículas de graduação. Das oito
16
Para se ter uma ideia da privatização da educação superior no Brasil, deve-se universidades privadas, apenas uma caracteriza-se como
verificar os dados divulgados pelo Censo da Educação Superior, relativo ao ano ‘comunitária/confessional/filantrópica’, a Pontifícia Universidade Católica de
de 2008, os quais mostram que das dez maiores universidades brasileiras, em Minas Gerais (PUC-MG), com 34.017 alunos. As outras são universidades de
relação ao número de matrículas, oito eram privadas e apenas duas públicas. caráter empresarial, com finalidade lucrativa (BRASIL, 2009).

Acta Scientiarum. Education Maringá, v. 34, n. 2, p. 157-168, July-Dec., 2012


166 Bittar e Bittar

Henrique Cardoso surpreendentemente constatou impacto socioeducacional foi ampliar o Fundo de


que, Desenvolvimento e Manutenção do Ensino
[...] a estratégia que foi imposta ao Brasil no final dos Fundamental e de Valorização do Magistério
anos 1980, começo dos 1990, não funcionou. Falo da (Fundef), criado no governo de Fernando Henrique
estratégia de aceitação de uma ortodoxia Cardoso e que destinava recursos aos oito anos do
convencional, com o rótulo de modernidade ensino fundamental, para Fundo de
neoliberal, e a ideia de que se fizéssemos as reformas Desenvolvimento e Manutenção da Educação Básica
haveria a felicidade geral da Nação (BRESSER- e de Valorização do Magistério (Fundeb), que
PEREIRA, 2006, p. 3).
abrange a Educação Infantil, o Ensino Fundamental
Sobre a ‘ortodoxia convencional’, afirmou que é, e o Ensino Médio. Ao comparar as diferenças entre o
Fundef e o Fundeb, José Marcelino Pinto (2007,
[...] o conjunto de diagnósticos, propostas e pressões
que os países mais ricos fazem sobre os países em p. 888) afirma que a “[...] principal conclusão a que
desenvolvimento não para nos ajudar, mas para se chega [...] é que o Fundeb resgatou o conceito de
neutralizar nossa capacidade competitiva (BRESSER- educação básica como um direito”. Além de o
PEREIRA, 2006, p. 3). Estado investir mais em educação básica com o
Indagado sobre a razão de o Brasil estar objetivo de melhorar a sua qualidade, o governo
estagnado desde 1980, ele respondeu indicando duas Lula também investiu mais na educação superior
razões, uma de ordem política, outra econômica: pública, especialmente no que diz respeito ao acesso,
entendido como estratégia de inclusão de camadas
A resposta política: porque o Brasil perdeu a idéia de com menor poder aquisitivo, a esse nível de ensino.
nação. E perdeu como? Perdeu ao longo da crise dos
Nesse sentido, foram criadas 14 universidades
anos 80, no acordo feito nas Diretas-Já, no fracasso
do Plano Cruzado, na quase hiperinflação e, claro, públicas federais, em diversas regiões brasileiras, e
no fortalecimento da hegemonia americana ao longo foi implantado, em 2007, o Programa de Apoio a
desse período. E a outra resposta: erramos ao fazer Planos de Reestruturação e Expansão das
rigorosamente o que nos disseram que era para ser Universidades Federais (Reuni)18. Para possibilitar e
feito (BRESSER-PEREIRA, 2006, p. 3). ampliar o acesso e a permanência de jovens com
A análise do ex-Ministro surpreende porque menor poder aquisitivo à educação superior nas IES
durante o seu governo os que formulavam a mesma privadas, implantou-se, em 2004, o Programa
crítica eram rotulados de retrógrados. Quanto ao Universidade Para Todos (ProUni) (PROUNI,
resultado dessas políticas na área educacional, pode 2012), com bolsas integrais ou parciais oferecidas
ser medido por meio de alguns dados oficias: a) a pelas IES privadas, além de prever cotas a jovens
média brasileira no Índice de Desenvolvimento da negros ou indígenas. Esse conjunto de medidas
Educação Básica (IDEB)17 está abaixo de quatro mudou o perfil da educação superior no País.
numa escala de um a dez; b) 55% das crianças da 4ª
série não possuem o domínio da leitura; c) em 2004, Conclusão
a taxa de reprovação no ensino fundamental era de
13%; d) hoje, um estudante que termine o ensino Do panorama histórico aqui traçado, a conclusão
médio sabe quase o mesmo que um aluno da 8ª série a que se pode chegar é a de que foi mais fácil
sabia em 1995; e) a média de gasto por aluno expandir o sistema do que fazê-lo cumprir sua
brasileiro no ensino fundamental é de US$ 500 função de promover aprendizagem às crianças e aos
(quinhentos dólares) por ano; entre os países da jovens brasileiros. Nesse início do século XXI, é
Organização para a Cooperação e Desenvolvimento possível afirmar que o Brasil tem escolas, mas o
Econômico (OCDE), a média é de US$ 4.800 problema é que elas são precárias. Outra conclusão
(DOSSIÊ ESTADO, 2007). Diante desses números, deste estudo é quanto ao contraste entre a pesquisa
é de se indagar: que qualidade tem a democracia
em Educação que o País conseguiu desenvolver e a
brasileira?
Em 2003, Luiz Inácio Lula da Silva assumiu a qualidade da escola pública. A discrepância também
presidência da República, após disputar e ser é visível no fato de que, a despeito do crescimento
derrotado em três campanhas eleitorais, uma para econômico verificado desde os governos de Luiz
Fernando Collor de Mello e duas para Fernando
Henrique Cardoso. Uma de suas medidas de maior
18
De acordo com o site do MEC, o Reuni tem como “[...] principal objetivo ampliar
o acesso e a permanência na educação superior”. O Programa foi instituído pelo
Decreto n. 6.096, de 24 de abril de 2007, no âmbito das ações que integram o
Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), constituindo-se numa “[...] série
17
O Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) foi criado pelo INEP, de medidas para retomar o crescimento do ensino superior público, criando
em 2007, no governo de Luiz Inácio Lula da Silva. Ele reúne, “[...] num só condições para que as universidades públicas federais promovam a expansão
indicador, dois conceitos igualmente importantes para a qualidade da educação: física, acadêmica e pedagógica da rede federal de educação superior” (REUNI,
fluxo escolar e médias de desempenho nas avaliações” (IDEB, 2012, p.2). 2012, p. 7).

Acta Scientiarum. Education Maringá, v. 34, n. 2, p. 157-168, July-Dec., 2012


Educação Brasileira: de 1930 aos anos 2000 167

Inácio Lula da Silva, o Brasil inicia o século XXI com BRASIL. INEP-Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
9,6% de analfabetismo adulto, o que abrange 14,533 Educacionais Anísio Teixeira. Resumo Técnico: Censo
da Educação Superior Brasileira 2008. Dados Preliminares.
milhões de brasileiros que não sabem ler nem
Brasília: MEC/INEP, 2009. Disponível em: <http://www.
escrever (ANALFABETISMO, 2010). Assim, apesar inep.gov.br>. Acesso em: 30 maio 2010.
de reformas e lutas em prol da educação, ainda BRESSER-PEREIRA, L. C. É a competição, estúpido.... O
temos tarefas que deveriam ter sido cumpridas no Estado de S. Paulo. São Paulo, 26 nov. 2006. Caderno
século XIX e, por isso, não haveria maior Aliás, p. J3. (Entrevista).
homenagem que o País pudesse prestar a Paulo CAPES-Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Freire do que ter construído um sistema escolar Nível Superior. Disponível em: <http://www.capes.gov.
br/sobre-a-capes/historia-e-missao>. Acesso em: 30 abr.
público, de qualidade e que proporcionasse as
2012.
mesmas oportunidades a todas as crianças e jovens
CENSO ESCOLAR. Revista Brasileira de Estudos
brasileiros. A democracia brasileira continuará Pedagógicos, v. 81, n. 199, p. 525-568, 2003.
carente de conteúdo social enquanto esse desafio não DOSSIÊ ESTADO: Qualidade da Educação. O Estado
for cumprido. Uma população letrada e uma escola de S. Paulo. São Paulo, 29 abr. 2007. Caderno H, p. 2-19.
básica que cumpra a sua função de proporcionar (Edição Especial).
aprendizagem e formação crítica são requisitos FERREIRA JÚNIOR, A.; BITTAR, M. Proletarização
indispensáveis para a participação na vida nacional, e sindicalismo de professores na ditadura militar
estabelecendo a relação entre educação e política na (1964-1985). São Paulo: Pulsar, 2006.
sua forma mais plena, tal como preconizado FREIRE, P. Educação como prática da liberdade. 8.
ed. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1978.
historicamente pela filosofia grega: a educação para
GOLDEMBERG, J. O repensar da educação no Brasil.
atuação na polis, que deveria romper o sentido
Revista Estudos Avançados, v. 7, p. 65-137, 1993.
meramente individual, visando o bem comum, isto
IDEB-Índice de Desenvolvimento da Educação Básica.
é, da cidade, o que hoje pode ser entendido como Disponível em: <http://portalideb.inep.gov.br/>. Acesso
um projeto democrático de Nação. em: 19 fev. 2012.
INEP-Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Referências Educacionais Anísio Teixeira. Disponível em: <http://
www.inep.gov.br/institucional/historia.htm>. Acesso em:
ANALFABETISMO cai, mas ritmo ainda é lento. O
30 abr. 2012.
Estado de S. Paulo. São Paulo, 9 set. 2010, p. H4.
(Especial). IPEA-Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada. 2008.
Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/. Acesso em:
ANPEd-Associação Nacional de Pós-Graduação e
15 abr. 2012.
Pesquisa em Educação. Disponível em: <http://www.
MANACORDA, M. A. História da educação: da
anped.org.br/>. Acesso em: 3 maio 2012.
Antiguidade aos nossos dias. Tradução Gaetano Lo
AZEVEDO, F. et al. Manifesto dos Pioneiros da Educação Mônaco. São Paulo: Cortez; Autores Associados, 1989.
Nova. In: Manifesto dos pioneiros da Educação Nova
OLIVEIRA, R. P. Da universalização do Ensino
(1932) e dos Educadores (1959). Recife: Fundação
Fundamental ao desafio da qualidade: uma análise
Joaquim Nabuco; Massangana, 2010. p. 33-68. Disponível
histórica. Educação e Sociedade. v. 28, n. 100,
em: <http://www.dominiopublico. gov.br/download/
p. 661-690, 2007. Disponível em: <http://www.cedes.
texto/me4707.pdf>. Acesso em: 17 out. 2012.
unicamp.br>. Acesso em: 30 maio 2012.
BITTAR, M.; OLIVEIRA, J. F.; MOROSINI, M. PINTO, J. M. A política recente de fundos para o
Apresentação. In: BITTAR, M.; OLIVEIRA, J. F.; financiamento da educação e seus efeitos no pacto federativo.
MOROSINI, M. (Org.). Educação Superior no Brasil. Educação e Sociedade, v. 28, n. 100, p. 877-897, 2007.
10 anos pós-LDB. Brasília: INEP, 2008. p. 9-13.
PROUNI-Programa Universidade Para Todos.
BITTAR, M.; BITTAR, M.; MOROSINI, M. Disponível em: <http://prouniportal.mec.gov.br/>.
Producción de Conocimiento y Política Educativa en Acesso em: 30 maio 2012.
América Latina – la experiencia brasilera. In:
REUNI-Reestruturação e Expansão das Universidades
PALAMIDESSI, M.; GOROSTIAGA, J.; SUASNÁBAR,
Federais. Disponível em: <http://www.reuni.mec.gov.br/>.
C. (Org.). Investigación educativa y política en
Acesso em: 30 maio 2012.
América Latina. Buenos Aires: Novedades Educativas,
2012. p. 79-112. RIBEIRO, M. L. S. História da Educação Brasileira: a
organização escolar. 6. ed. São Paulo: Moraes, 1986.
BRASIL. Decreto nº 19.851, de 11 de abril de 1931.
Institui o Estatuto das Universidades Brasileiras que ROMANELLI, O. O. História da Educação no Brasil
dispõe sobre a organização do ensino superior no (1930/1973). 8. ed. Petrópolis: Vozes, 1986.
Brasil e adota o regime universitário. Disponível em: SBPC-Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.
<http://www.pedagogiaemfoco.pro.br>. Acesso em: 25 Disponível em: <http://www.sbpcnet.org.br>. Acesso
jan. 2012. em: 30 mar. 2012.
Acta Scientiarum. Education Maringá, v. 34, n. 2, p. 157-168, July-Dec., 2012
168 Bittar e Bittar

SCHWARTZMAN, S. Os desafios da educação no Brasil. WREFORD, J. Um ensino que tem muito a aprender. O
In: SCHWARTZMAN, S.; BROCK, C. (Org.). Os Estado de S.Paulo. São Paulo, 13 abr. 2003. p. A16-17.
desafios da educação no Brasil. Tradução Ricardo
Silveira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005. p. 9-51.
TOLEDO, C. N. 50 anos de fundação do ISEB. Jornal da Received on June 6, 2012.
UNICAMP. Campinas: Unicamp, 2005. Disponível em: Accepted on June 22, 2012.
<http://www.unicamp.br/unicamp/unicamp_hoje/jornalPDF
/ju296pg11.pdf>. Acesso em: 20 maio 2012.
License information: This is an open-access article distributed under the terms of the
UNE-União Nacional dos Estudantes. Disponível em: Creative Commons Attribution License, which permits unrestricted use, distribution,
<http://www.une.org.br>. Acesso em: 30 abr. 2012. and reproduction in any medium, provided the original work is properly cited.

Acta Scientiarum. Education Maringá, v. 34, n. 2, p. 157-168, July-Dec., 2012


SOBRE A NATUREZA E ESPECIFICIDADE DA EDUCAÇÃO * Dizer, pois, que a educação é um fenômeno próprio dos seres humanos
significa afirmar que ela é, ao mesmo tempo, urna exigência de e para o
processo de trabalho, bem como é, ela própria, um processo de trabalho.
Dermeval Saviani **
Assim, o processo de produção da existência humana implica, primei­
ramente, a garantia da sua subsistência material com a conseqüente pro­
Sabe-se que a educação é um fenômeno próprio dos seres humanos.
dução, em escalas cada vez mais amplas e complexas, de bens materiais;
Assim sendo, a compreensão da natureza da educação passa pela com­
tal processo nós podemos traduzir na rubrica “trabalho material”. En­
preensão da natureza humana. Ora, o que diferencia os homens dos de­
tretanto, para traduzir materialmente, o homem necessita antecipar em
mais fenômenos, o que o diferencia dos demais seres vivos, o que o di­
idéias os objetivos da ação, o que significa que ele representa mental­
ferencia dos outros animais? A resposta a essas questões também já é
mente os objetivos reais. Essa representação inclui o aspecto de conhe­
conhecida. Com efeito, sabe-se que, diferentemente dos outros animais,
cimento das propriedades do mundo real (ciência), de valorização (éti­
que se adaptam à realidade natural tendo a sua existência garantida na
ca) e de simbolização (arte). Tais aspectos, na medida em que são obje­
turalmente, o homem necessita produzir continuamente sua própria
tos de preocupação explicita e direta, abrem a perspectiva de uma outra
existência. Para tanto, em lugar de se adaptar à natureza, ele tem que
categoria de produção que pode ser traduzida pela rubrica “trabalho
adaptar a natureza a si, isto é, transformá-la. E isto é feito pelo traba­
não-material". Trata-se aqui da produção de conhecimentos, idéias, con­
lho. Portanto, o que diferencia o homem dos outros animais é o traba­
ceitos, valores, símbolos, atitudes, habilidades. Obviamente, a educação
lho. E o trabalho se instaura a partir do momento em que seu agente an­
se situa nessa categoria do trabalho não-material, importa, porém, dis­
tecipa mentalmente a finalidade da ação. Conseqüentemente, o trabalho
tinguir, na produção não-material, duas modalidades. A primeira refere-
não é qualquer tipo da atividade, mas uma ação adequada a finalidades.
se àquelas atividades em que o produto se separa do produtor como no
É, pois, uma ação intencional.
caso dos livros e objetos artísticos. Há, pois, nesse caso, um intervalo
Para sobreviver o homem necessita extrair da natureza ativa e intencional­ entre a produção e o consumo, possibilitado pela autonomia entre o
produto e o ato de produção, A segunda diz respeito às atividades em
mente os meios de sua subsistência. Ao fazer isso ele inicia o processo
que o produto não se separa do ato de produção. Nesse caso, não ocorre
de transformação da natureza, criando um mundo humano (o mundo
o intervalo antes observado; o ato de produção e o ato de consumo se
da cultura).
imbricam. É nessa segunda modalidade do trabalho não-material que se
situa a educação. Podemos, pois, afirmar que a natureza da educação se
* Comunicação apresentada na Mesa-Redonda sobre a "Natureza e Especificida­ esclarece a partir daí. Exemplificando: se a educação não se reduz ao
de da Educação", realizada pelo INEP, em Brasília, no dia 5 de julho de 1984. ensino, é certo, entretanto, que ensino é educação e, como tal, participa
da natureza própria do fenômeno educativo. Assim, a atividade de ensi­
** Coordenador do Curso de Pós-graduação em Educação da Pontifícia Univer­
sidade Católica de São Paulo (PUC/SP), professor da Universidade Estadual no, a aula, por exemplo, é alguma coisa que supõe, ao mesmo tempo, a
de Campinas (UNICAMP) e consultor do Comite de Pesquisa do Conselho presença do professor e a presença do aluno. Ou seja, o ato de dar aula é
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). inseparável da produção desse ato e de seu consumo. A aula é, pois, pro­

Em aberto, Brasília, ano 3, n. 22, jul./ago. 1984. 1


duzida e consumida ao mesmo tempo (produzida pelo professor e con­ constituir num critério útil para a seleção dos conteúdos do trabalho pe­
sumida pelos alunos). dagógico.

Compreendida a natureza da educação nós podemos avançar em direção Quanto ao segundo aspecto (a descoberta das formas adequadas de de­
à compreensão de sua especificidade Com efeito, se a educação, perten­ senvolvimento do trabalho pedagógico), trata-se da organização dos
cendo ao âmbito do trabalho não-material, tem a ver com conhecimen­ meios (conteúdos, espaço, tempo e procedimentos) através dos quais,
tos, idéias, conceitos, valores, símbolos, hábitos, atitudes, habilidades, progressivamente, cada indivíduo singular realize, na forma da segunda
tais elementos, entretanto, não lhe interessam em si mesmos, como algo natureza, a humanidade produzida historicamente.
exterior ao homem.
Considerando, como já foi dito, que se a educação não se reduz ao ensi­
Nessa forma, isto é, considerados em si mesmos, como algo exterior ao
no e este, sendo um aspecto da educação, participa da natureza própria
homem, esses elementos constituem o objeto de preocupação das cha­
do fenômeno educativo, creio ser possível ilustrar as considerações ge­
madas ciências humanas, ou seja, daquilo que Dilthey denomina de
rais acima apresentadas com o caso da educação escolar. Este exemplo
"ciências do espírito" por oposição às "ciências da natureza". Diferen­
me parece legítimo porque a própria institucionalização do pedagógico
temente, do ponto de vista da educação, ou seja, da perspectiva da pe­
através da escola é um indício da especificidade da educação, uma vez
dagogia entendida como ciência da educação, esses elementos interes­
que, se a educação não fosse dotada de identidade própria seria impos­
sam enquanto é necessário que os homens os assimilem, tendo em vista a
sível a sua institucionalização. Nesse sentido, a escola configura-se numa
constituição de algo como uma segunda natureza. Portanto, o que não
situação privilegiada, a partir da qual podemos detectar a dimensão pe­
é garantido pela natureza tem que ser produzido historicamente pelos
dagógica que subsiste imbricada no interior da prática social global.
homens; e aí se incluem os próprios homens. Podemos, pois, dizer que a
natureza humana não é dada ao homem, mas é por ele produzida sobre
Peço, pois, licença para reapresentar aqui as considerações que fiz no
a base da natureza biofísica. Conseqüentemente, o trabalho educativo ano passado, em Olinda, por ocasião do III Encontro Nacional do Pro­
é o ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singu­
grama Alfa (ENPA). Ali, ao tratar do papel da escola básica, parti do
lar, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo con­
seguinte: a escola é uma instituição cujo papel consiste na socialização
junto dos homens. Assim, o objeto da educação diz respeito, de um la­
do saber sistematizado.
do, à identificação dos elementos culturais que precisam ser assimilados
pelos indivíduos da espécie humana para que eles se formem humanos
e, de outro lado e concomitantemente, à descoberta das formas mais Vejam bem: eu disse saber sistematizado; não se trata, pois, de qualquer
adequadas para atingir esse objetivo. tipo de saber. Portanto, a escola diz respeito ao conhecimento elabora­
do e não ao conhecimento espontâneo; ao saber sistematizado e não ao
Quanto ao primeiro aspecto (a identificação dos elementos culturais saber fragmentado; à cultura erudita e não à cultura popular.
que precisam ser assimilados), trata-se de distinguir entre o essencial e o
acidental, o principal e o secundário, o fundamental e o acessório. Aqui Em suma, a escola tem a ver com o problema da ciência. Com efeito,
me parece de grande importância, em pedagogia, a noção de "clássico". ciência é exatamente o saber metódico, sistematizado. A esse respeito é
O "clássico" não se confunde com o tradicional e também não se opõe, ilustrativo o modo como os gregos consideravam essa questão. Em gre­
necessariamente, ao moderno e muito menos ao atual. O clássico é aqui­ go, temos três palavras referidas ao fenômeno do conhecimento: doxa
lo que se firmou como fundamental, como essencial. Pode, pois, se (δόξα), sofia (σοφία) e episteme (ἐπιστήμη). Doxa significa opinião,

2
isto é, o saber próprio do senso comum, o conhecimento espontâneo li­ Vejamos o problema já a partir da própria noção de currículo. De uns
gado diretamente à experiência cotidiana, um claro-escuro, misto de tempos para cá se disseminou a idéia de que currículo é o conjunto das
verdade e de erro. Sofia é a sabedoria fundada numa longa experiência atividades desenvolvidas pela escola. Portanto, currículo se diferencia de
de vida. É nesse sentido que se diz que os velhos são sábios e que os jo­ programa ou de elenco de disciplinas; segundo essa acepção, currículo é
vens devem ouvir seus conselhos. Finalmente, episteme significa ciência, tudo o que a escola faz; assim, não faria sentido falar em atividades ex­
isto é, o conhecimento metódico e sistematizado. Conseqüentemente, se tracurriculares. Recentemente, fui levado a corrigir essa definição acres­
do ponto de vista da sofia um velho é sempre mais sábio do que um jo­ centando-lhe o adjetivo "nucleares". Com essa retificação a definição,
vem, do ponto de vista da episteme um jovem pode ser mais sábio do provisoriamente, passaria a ser a seguinte: currículo é o conjunto das
que um velho. atividades nucleares desenvolvidas pela escola. E por que isto? Porque,
se tudo o que acontece na escola é currículo, se se apaga a diferença en­
Ora, a opinião, o conhecimento que produz palpites, não justifica a tre curricular e extracurricular, então tudo acaba adquirindo o mesmo
existência da escola. Do mesmo modo, a sabedoria baseada na experiên­ peso; e abre-se o caminho para toda sorte de tergiversações, inversões e
cia de vida dispensa e até mesmo desdenha a experiência escolar, o que, confusões que terminam por descaracterizar o trabalho escolar. Com
inclusive, chegou a se cristalizar em ditos populares como: "mais vale a isso, facilmente, o secundário pode tomar o lugar daquilo que é princi­
prática do que a gramática" e "as crianças aprendem apesar da escola". pal, deslocando-se, em conseqüência, para o âmbito do acessório aque­
É a exigência de apropriação do conhecimento sistematizado por parte las atividades que constituem a razão de ser da escola. Não é demais
das novas gerações que torna necessária a existência da escola. lembrar que esse fenômeno pode ser facilmente observado no dia-a-dia
das escolas. Dou apenas um exemplo: o ano letivo começa na segunda
A escola existe, pois, para propiciar a aquisição dos instrumentos que quinzena de fevereiro e já em março temos a semana da revolução; em
possibilitam o acesso ao saber elaborado (ciência), bem como o próprio seguida, a semana santa, depois, a semana das mães, as festas juninas, a
acesso aos rudimentos desse saber. As atividades da escola básica devem semana do soldado, semana do folclore, semana da pátria, jogos da pri­
se organizar a partir dessa questão. Se chamarmos isso de currículo, po­ mavera, semana da criança, semana do índio, etc., semana da asa... e
deremos então afirmar que é a partir do saber sistematizado que se es­ nesse momento já estamos em novembro. O ano letivo se encerra e esta­
trutura o currículo da escola elementar. Ora, o saber sistematizado, a mos diante da seguinte constatação: fez-se de tudo na escola; encon­
cultura erudita, é uma cultura letrada. Daí que a primeira exigência para trou-se tempo para toda espécie de comemoração, mas muito pouco
o acesso a esse tipo de saber é aprender a ler e escrever. Além disso, é tempo foi destinado ao processo de transmissão-assimilação de conheci­
preciso também aprender a linguagem dos números, a linguagem da na­ mentos sistematizados. Isto quer dizer que se perdeu de vista a atividade
tureza e a linguagem da sociedade. Está aí o conteúdo fundamental da nuclear da escola, isto é, a transmissão dos instrumentos de acesso ao
escola elementar: ler, escrever, contar, os rudimentos das ciências natu­ saber elaborado.
rais e das ciências sociais (história e geografia humanas).

A essa altura vocês podem estar afirmando: mais isso é o óbvio. Exata­ É preciso, pois, ficar claro que as atividades distintivas das semanas, aci­
mente, é o óbvio. E como é freqüente acontecer com tudo o que é ma enumeradas, são secundárias e não essenciais à escola. Enquanto
óbvio, ele acaba sendo esquecido ou ocultando, na sua aparente simpli­ tais, são extracurriculares e só têm sentido na medida em que possam
cidade, problemas que escapam à nossa atenção. E esse esquecimento, enriquecer as atividades curriculares, isto é, aquelas próprias da escola,
essa ocultação, acabam por neutralizar os efeitos da escola no processo não devendo em hipótese alguma prejudicá-las ou substituí-las. Das con­
de democratização. siderações feitas, resulta importante manter a diferenciação entre ativi­

Em aberto, Brasília, ano 3, n. 22, jul./ago. 1984. 3


dades curriculares e extracurriculares, já que esta é uma maneira de não Às vezes me dá a impressão de que, passados mais de cinqüenta anos,
perdermos de vista a distinção entre o que é principal e o que é secundá­ continuamos ainda na fase romântica. Não entramos na fase clássica, E
rio. o que é fase clássica? É a fase em que ocorreu uma depuração, superan
do-se os elementos próprios da conjuntura polêmica a recuperando-se
Essa questão tem desdobramentos ainda de outras ordens. Assim, por aquilo que tem caráter permanente, isto é, que resistiu aos embates do
exemplo, em nome desse conceito ampliado de currículo a escola se tor­ tempo. Clássico, em verdade, é o que resistiu ao tempo. É nesse sentido
nou um mercado de trabalho disputadíssimo pelos mais diferentes tipos que se fala na cultura greco-romana como sendo clássica, que Descartes
de profissionais (nutricionistas, dentistas, fonoaudiólogos, psicólogos, é um clássico da filosofia, Dostoievski é um clássico da literatura univer­
artistas, assistentes sociais, etc.) e uma nova inversão se opera. De agên­ sal, Machado de Assis um clássico da literatura brasileira, etc.
cia destinada a atender o interesse da população em ter acesso ao saber
sistematizado, a escola se torna uma agência a serviço de interesses cor­
porativistas ou clientelistas. E se neutraliza, mais uma vez, agora por um Ora, clássico na escola é a transmissão-assimilação do saber sistematiza­
do. Este é o fim a atingir. É aí que cabe encontrar a fonte natural para
outro caminho, o seu papel no processo de democratização.
elaborar os métodos e as formas de organização do conjunto das ativi­
dades da escola, isto é, do currículo. E aqui nós podemos recuperar o
conceito abrangente de currículo (organização do conjunto das ativida­
A esta altura é necessário comentar ainda uma possível objeção: até que des nucleares distribuídas no espaço e tempo escolares). Um currículo
ponto essa concepção que estou expondo não configura uma proposta é, pois, uma escola funcionando, quer dizer, uma escola desempenhan­
pedagógica tradicional? Quer-se com isso voltar à velha escola já tão do a função que lhe é própria.
exaustivamente criticada? E onde fica a criatividade, a iniciativa dos alu­
nos, o ensino ativo? Tal objeção é inevitável àqueles educadores que fo­
ram de algum modo influenciados pelo movimento da Escola Nova. E Vê-se, assim, que para existir a escola não basta a existência do saber
nós sabemos que tal movimento, a nível de ideário, teve grande penetra­ sistematizado. É necessário viabilizar as condições de sua transmissão
ção em nosso país. e assimilação, isso implica dosá-lo e seqüenciá-lo de modo que a criança
passe gradativamente do seu não-domínio ao seu domínio. Ora, o saber
dosado e sequenciado para efeitos de sua transmissão-assimilação no es­
Para encaminhar a resposta á objeção acima formulada, parece-me útil paço escolar, ao longo de um tempo determinado, é o que nós conven­
recordar aqui uma passagem de Gramsci, escrita na mesma época em
cionamos chamar de "saber escolar".
que no Brasil se lançava o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova
(1932). Escreveu ele: "Deve-se distinguir entre escola criadora e escola
ativa, mesmo na forma dada pelo método Dalton. Toda escola unitária Tendo claro que é o fim a atingir que determina os métodos e processos
é escola ativa, se bem que seja necessário limitar as ideologias libertárias de ensino-aprendizagem, compreende-se o equívoco da Escola Nova em
neste campo (...). Ainda se está na fase romântica da escola ativa, na relação ao problema da atividade e da criatividade. Com efeito, a crítica
qual os elementos de luta contra a escola mecânica e jesuítica se dilata­ ao ensino tradicional era justa, na medida em que esse ensino perdeu de
ram morbidamente por causa do contraste e da polêmica; é necessário vista os fins, tornando mecânicos e vazios de sentido os conteúdos que
entrar na fase 'clássica', racional, encontrando nos fins a atingir a fonte transmitia. A partir dai, a Escola Nova tendeu a considerar toda trans­
natural pare elaborar os métodos e as formas" (Gramsci, A. Os intelec­ missão de conteúdo como mecânica e todo mecanismo como anticria­
tuais e a organização da cultura, p. 124). tivo, assim como todo automatismo como negação da liberdade.

4
Entretanto, é preciso entender que o automatismo é condição da liber­ necessário dominar os mecanismos próprios da linguagem escrita. Tam­
dade e que não é possível ser criativo sem dominar determinados meca­ bém aqui é preciso fixar certos automatismos, incorporá-los, isto é,
nismos. Isto ocorre com o aprendizado nos mais diferentes níveis e com torná-los parte de nosso próprio corpo, de nosso organismo, integrá-los
o exercício de atividades também as mais diferentes. Assim, por exem­ em nosso próprio ser. Dominadas as formas básicas, a leitura e a escrita
plo, para se aprender a dirigir automóvel é preciso repetir constante­ podem fluir com segurança e desenvoltura. Na medida em que vai se
mente os mesmos atos até se familiarizar com eles. Depois já não será libertando dos aspectos mecânicos, o alfabetizando pode, progressiva­
necessária a repetição constante. De quando em quando, praticam-se mente, ir concentrando cada vez mais sua atenção no conteúdo, isto é,
esses atos com desenvoltura, com facilidade. Entretanto, no processo de no significado daquilo que é lido ou escrito. Note-se que libertar-se,
aprendizagem, tais atos, aparentemente simples, exigiram razoável con­ aqui, não tem o sentido de livrar-se, quer dizer, abandonar, deixar de
centração e esforço até que fossem fixados e passassem a ser exercidos, lado os ditos aspectos mecânicos. A libertação só se dá porque tais as­
por assim dizer, automaticamente. Por exemplo, para se mudar a mar­ pectos foram apropriados, dominados e internalizados, passando, em
cha com o carro em movimento é necessário acionar a alavanca com a conseqüência, a operar no interior de nossa própria estrutura orgânica,
mão direita sem se descuidar do volante, que será controlado com a Poder-se-ia dizer que o que ocorre, nesse caso, é uma superação no sen­
mão esquerda, ao mesmo tempo que se pressiona a embreagem com o tido dialético da palavra. Os aspectos mecânicos foram negados por in­
pé esquerdo e, concomitantemente, se retira o pé direito do acelerador. corporação e não por exclusão. Foram superados porque negados en­
A concentração da atenção exigida para realizar a sincronia desses movi­ quanto elementos externos e afirmados como elementos internos.
mentos absorve todas as energias. Por isso o aprendiz não é livre ao diri­
gir. No limite, eu diria mesmo que ele é escravo dos atos que tem que O processo acima descrito indica que só se aprende, de fato, quando se
praticar. Ele não os domina, mas, ao contrário, é dominado por eles, A adquire um habitus, isto é, uma disposição permanente, ou, dito de ou­
liberdade só será atingida quando os atos forem dominados. E isto ocor­ tra forma, quando o objeto de aprendizagem se converte numa espécie
re no momento em que os mecanismos forem fixados. Portanto, por pa­ de segunda natureza. E isso exige tempo e esforços por vezes ingentes.
radoxal que pareça, é exatamente quando se atinge o nível em que os A expressão "segunda natureza" me parece sugestiva justamente porque
atos são praticados automaticamente que se ganha condições de se exer­ nós, que sabemos ler e escrever, tendemos a considerar esses atos como
cer, com liberdade, a atividade que compreende os referidos atos, En- naturais. Nós os praticamos com tamanha naturalidade que sequer con­
tão, a atenção se liberta, não sendo mais necessário tematizar cada ato. seguimos nos imaginar desprovidos dessas características. Temos mesmo
Nesse momento é possível não apenas dirigir livremente, mas também dificuldade em nos recordar do período em que éramos analfabetos. As
ser criativo no exercício dessa atividade. E só se chega a esse ponto coisas se passam como se se tratasse de uma habilidade natural e espon­
quando o processo de aprendizagem, enquanto tal, se completou. Por tânea. E no entanto trata-se de uma habilidade adquirida e, frise-se, não
isso, é possível afirmar que o aprendiz, no exercício daquela atividade de modo espontâneo. A essa habilidade só se pode chegar por um pro­
que é o objeto de aprendizagem, nunca é livre. Quando ele for capaz de cesso deliberado e sistemático. Por aí se pode perceber porque o melhor
exercê-la livremente, nesse exato momento ele deixou de ser aprendiz. escritor não será, apenas por este fato, o melhor alfabetizador. Um gran­
As considerações supra podem ser aplicadas em outros domínios, como de escritor atingiu tal domínio da língua que terá dificuldade em com­
por exemplo, aprender a tocar um instrumento musicai, etc. preender os percalços de um alfabetizando diante de obstáculos que,
para ele, inexistem ou, quando muito, não passam de brincadeira de
Ora, esse fenômeno está presente também no processo de aprendizagem criança. Para que ele se converta num bom alfabetizador será necessá­
através do qual se dá a assimilação do saber sistematizado, como o ilus­ rio aliar, ao domínio da língua, o domínio do processo pedagógico in­
tra, de modo eloqüente, o exemplo da alfabetização. Também aqui é dispensável para se passar da condição de analfabeto à condição de alfa­

Em aberto, Brasília, ano 3. n. 22. jul./ago. 1984. 5


betizado. Com efeito, sendo um processo deliberado e sistemático, ele lita a apropriação de novas formas através das quais se pode expressar
deverá ser organizado. O currículo deverá traduzir essa organização dis­ os próprios conteúdos do saber popular. Cabe, pois, não perder de vista
pondo o tempo, os agentes e os instrumentos necessários para que os o caráter derivado da cultura erudita por referência à cultura popular,
esforços do alfabetizando sejam coroados de êxito. cuja primazia não é destronada. Sendo uma determinação que se acres­
centa, a restrição do acesso à cultura erudita conferirá, àqueles que dela
se apropriam, uma situação de privilégio, uma vez que o aspecto popu­
Adquirir um habitus significa criar uma situação irreversível. Para isso, lar não lhes é estranho. A recíproca, porém, não é verdadeira: os mem­
porém, é preciso insistência e persistência; faz-se mister repetir muitas bros da população marginalizados da cultura letrada tenderão a encará-
la como uma potência estranha que os desarma e domina.
vezes determinados atos até que eles se fixem. Não é, pois, por acaso
que a duração da escola primária é fixada em todos os países em pelo
O que foi dito acima a respeito da escola, em que sobressai o aspecto re­
menos quatro anos. Isso indica que esse tempo é o mínimo indispensá­
vel. Pode-se chegar a conseguir decifrar a escrita, a reconhecer os códi­ lativo ao conhecimento elaborado (ciência), parece-me ser válido tam­
gos em um ano, assim como com algumas lições práticas será possível bém para outras modalidades de prática pedagógica, voltadas precípua-
mente para outros aspectos, tais como o desenvolvimento da valoriza­
dirigir um automóvel. Mas do mesmo modo que a interrupção, o aban­
ção e simbolização.
dono do volante antes que se complete a aprendizagem determinará
uma reversão, também isso ocorre com o aprendizado da leitura. Inver­
samente, completado o processo, adquirido o habitus, atingida a segun­ Em conclusão: a compreensão da natureza da educação enquanto um
trabalho não-material cujo produto não se separa do ato de produção
da natureza, a interrupção da atividade, ainda que por longo tempo, não
acarreta a reversão. Conseqüentemente, se é possível supor, na escola nos permite situar a especificidade da educação como referida aos co­
nhecimentos, idéias, conceitos, valores, atitudes, hábitos, símbolos sob
básica, que a identificação e reconhecimento dos mecanismos elemen­
o aspecto de elementos necessários á formação da humanidade em cada
tares possa se dar no primeiro ano, a fixação desses mecanismos supõe
indivíduo singular, na forma de uma segunda natureza, que se produz,
uma continuidade que se estende por pelo menos mais três anos. É im­
deliberada e intencionalmente, através de relações pedagógicas histori­
portante assinalar que essa continuidade se dará através do conjunto do
camente determinadas que se travam entre os homens.
currículo da escola elementar. A criança passará a estudar Ciências Natu­
rais, História, Geografia, Aritmética através da linguagem escrita, isto é,
lendo e escrevendo de modo sistemático. Dá-se, assim, o seu ingresso A partir daí se abre também a perspectiva da especificidade dos estudos
no universo letrado. Em suma, pela mediação da escola, dá-se a passa­ pedagógicos (ciência da educação) que, diferentemente das ciências da
gem do saber espontâneo ao saber sistematizado, da cultura popular à natureza (preocupadas com a identificação dos fenômenos naturais) e
cultura erudita. Cumpre assinalar, também aqui, que se trata de um mo­ das ciências humanas (preocupadas com a identificação dos fenômenos
vimento dialético, isto é, a ação escolar permite que se acrescentem no­ culturais), preocupa-se com a identificação dos elementos naturais e
vas determinações que enriquecem as anteriores e estas, portanto, de culturais necessários à constituição da humanidade em cada ser humano
forma alguma são excluídas. Assim, o acesso à cultura erudita possibi­ e à descoberta das formas adequadas ao atingimento desse objetivo.

Você também pode gostar