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Medida e Integração

Manuel Ricou
Departamento de Matemática
Instituto Superior Técnico

Setembro 2005
Prefácio
Rb
Mas antes do mais: o que entendemos por a f (x)dx?
Bernhard Riemann, 1854

A pergunta acima foi formulada por Bernhard Riemann no trabalho em


que definiu o que hoje chamamos o “integral de Riemann”. O objectivo
do presente texto é, sobretudo, o de expor respostas que esta pergunta tem
tido no decurso dos últimos 150 anos, e sugerir, mesmo que parcialmente, o
enorme impacto que as correspondentes investigações tiveram na evolução
da Matemática, durante este mesmo perı́odo.
A compreensão de qualquer área da Matemática é facilitada pelo recon-
hecimento prévio do contexto que a viu nascer. No caso da Teoria da Inte-
gração, esse contexto abrange um perı́odo temporal particularmente longo.
Na realidade, diversos problemas de Geometria e Estática, resolvidos na
Antiguidade Clássica com recurso ao chamado “método de exaustão”, e
envolvendo o cálculo de determinadas áreas, volumes, e centros de massa,
correspondem, na terminologia moderna, ao cálculo de integrais. Por esta
razão, a Teoria da Integração é certamente uma das mais antigas áreas da
Matemática, e beneficia de raı́zes heurı́sticas muito sugestivas, que ajudam
ao seu entendimento.
A Teoria da Integração começou a tomar a sua forma moderna no século
XVII, com os trabalhos de Newton e Leibnitz, e de percursores como Fermat
e Barrow. Data deste perı́odo a surpreendente descoberta que, mais do que
qualquer outra, marca o nascimento do Cálculo Infinitesimal: a integração e
a diferenciação são operações inversas uma da outra, o que ainda hoje des-
crevemos no que dizemos serem os “Teoremas Fundamentais do Cálculo”.
Datam também deste perı́odo as primeiras aplicações do Cálculo a questões
cientı́ficas fundamentais, muito em especial a Teoria da Gravitação Univer-
sal, do próprio Newton, um marco ı́mpar na história do pensamento humano.
Foi apenas nos finais do século XVIII que a sofisticação dos problemas
a estudar se começou a revelar incompatı́vel com a informalidade e falta de
rigor com que até aı́ tinham sido tratadas as noções mais básicas do Cálculo
Infinitesimal. Nos primeiros anos do século XIX, o grande matemático
Cauchy iniciou um cuidadoso exame das ideias mais centrais do Cálculo,
como as de limite, derivada, integral, e continuidade, efectivamente lançando

i
ii Prefácio

as bases da nossa práctica actual. Neste processo, apresentou a primeira


definição satisfatória de integral, se bem que restringindo a sua aplicação a
funções contı́nuas. O desenvolvimento da Teoria da Integração acelerou-se
novamente a partir dos meados do século XIX, em especial a partir da pu-
blicação do trabalho de Riemann que mencionámos, desta vez sob a pressão
de difı́ceis problemas de natureza teórica, suscitados pelas ideias de Fourier
sobre as séries que hoje têm o seu nome. Muito naturalmente, a questão de
saber quais as funções que podem ser representadas por séries de Fourier,
originada por sua vez por questões mais “prácticas” relativas à resolução
das principais equações diferenciais parciais da Fı́sica Matemática, levava
inevitavelmente a uma reapreciação da própria noção de “função”. Reque-
ria também a integração de funções sobre as quais não parecia razoável
impôr condições de continuidade, sob pena de se desvirtuarem alguns dos
principais objectivos das investigações em curso. A pergunta de Riemann
que citámos acima é um reflexo deste tipo de preocupações.
A Teoria da Integração tornou-se desde então um motor importante na
crescente axiomatização e abstracção da Matemática, estas últimas parti-
cularmente evidentes desde os finais do século XIX. A tı́tulo de ilustração,
o clássico Teorema de Riesz-Fischer, demonstrado sob diversas formas no
perı́odo 1907-1910, revelou uma profunda analogia entre, por um lado, sofisti-
cadas construções matemáticas formadas por (classes de equivalência de)
funções somáveis e, por outro, objectos tão “simples” como a recta real,
estudados há mais de 25 séculos. Em certo sentido, este teorema mostra
que as funções somáveis “no sentido de Lebesgue” completam as funções
integráveis “no sentido de Riemann”, precisamente como os números reais
completam os números racionais. Resultados desta natureza foram, e são,
convites abertos à criação e estudo de novas entidades abstractas, que per-
mitem a exploração deste tipo de analogia de forma sistemática, rigorosa, e
muito eficiente do ponto de vista intelectual.
Hoje, a Teoria da Integração é certamente um dos blocos fundamentais
da Matemática, e é especialmente relevante para múltiplas das suas áreas
fundamentais e aplicadas, como a Análise Funcional, o Cálculo de Variações,
as Equações Diferenciais, e a Teoria das Probabilidades. As suas ideias
repercutem-se em algumas das teorias mais centrais da Fı́sica Moderna.
Afinal de contas, o “espaço de estados” do átomo de hidrogénio, o mais
simples átomo da natureza, é um espaço de (classes de equivalência de)
funções de quadrado somável no sentido de Lebesgue.
Pelas razões acima, a Teoria da Integração é naturalmente uma parte
importante da formação dos alunos da Licenciatura em Matemática Apli-
cada e Computação (LMAC) do IST, e foi sobretudo para estes alunos que o
presente texto foi escrito. O ensino da Teoria da Integração no contexto do
3o ano da LMAC sempre representou para o autor um desafio e uma opor-
tunidade muito interessantes, que se pode resumir nas seguintes questões:
Prefácio iii

• Como conciliar a necessidade prática de apresentar uma área difı́cil e


extensa, indispensável à formação dos alunos, sem a desligar da sua
base intuitiva, e sem a tornar demasiado difı́cil para a maioria dos
estudantes?

• Como transformar o nı́vel de abstracção da teoria, de um obstáculo


à sua compreensão, em uma oportunidade de entender melhor o cres-
cente papel da abstracção na Matemática contemporânea?

• Como aproveitar o estudo desta teoria para apresentar a Matemática


não como um saber estático, mas como um processo dinâmico e apaixo-
nante de construção de poderosas metáforas da realidade fı́sica, de
crescente sofisticação e subtileza?

Na sua modesta tentativa de responder a estas questões, o autor socorreu-


se com frequência de ideias e comentários dos principais criadores da teoria,
em especial o grande Henri Lebesgue, e o seu professor e colega Emile Borel.
Em particular, o texto está escrito, mesmo nas secções mais abstractas, no
respeito rigoroso pelo que Lebesgue chamava a “definição geométrica” do
integral, que não é outra senão a ideia, desde sempre muito satisfatória do
ponto de vista intuitivo, que, para qualquer função não-negativa f ,

Integral da função f = Medida da região de ordenadas de f .

Entendemos aqui a palavra “medida” como significando “área”, “volume”,


ou o análogo apropriado destas noções em espaços de dimensão mais elevada.
A apresentação da teoria não segue assim o percurso que é hoje mais
tradicional, e é importante entender que alguns resultados básicos assumem
por vezes um papel diferente, menos convencional, no seu desenvolvimento:
veja-se como ilustração o Teorema de Fubini-Lebesgue, tal como é enunciado
e demonstrado no Capı́tulo 3, para a medida de Lebesgue em RN . É apenas
após a sua apresentação que encontramos neste texto, pela primeira vez, o
resultado, aqui um teorema, que é usualmente tomado como a definição de
“função Lebesgue-mensurável”. A técnica que seguimos permite ainda uma
demonstração muito simples dos resultados clássicos sobre “limites e inte-
grais”, o teorema de Beppo Levi, ou da Convergência Monótona, o lema de
Fatou, e o teorema de Lebesgue, ou da Convergência Dominada, e evidencia
a sua relação directa com as ideias mais básicas da Teoria da Medida. Por
outras palavras, revela que estas propriedades são essencialmente a chamada
“σ-aditividade”, esta uma propriedade comum a qualquer medida, e obser-
vada e registada com muita clareza por Borel.
A exposição inspira-se em múltiplos aspectos no desenvolvimento histó-
rico da Teoria, e esforça-se por deixar clara a continuidade entre as teorias de
integração de Riemann e de Lebesgue. Em especial, e repetindo fielmente o
próprio Lebesgue, a sua teoria é apresentada como uma evolução “natural”
iv Prefácio

da de Riemann, sobretudo enquanto adaptação de ideias de Peano e Jordan,


entretanto melhoradas por Borel. Discutimos algumas das principais difi-
culdades técnicas da teoria de Riemann, e a respectiva resolução pela teoria
de Lebesgue, em especial as relacionados com os Teoremas Fundamentais do
Cálculo. Estes são aqui tratados com amplo recurso a técnicas e resultados
da Teoria da Medida, i.e., com base no “modelo geométrico” da integração.
Neste contexto, o grande teorema de diferenciação de Lebesgue é provado
por uma adaptação simples do belo argumento de Riesz (o seu “Lema do
Sol Nascente”), mas a demonstração do teorema de Banach-Zaretski afasta-
se bastante das técnicas usadas por Banach. As múltiplas referências a
Cantor feitas neste texto devem ainda recordar-nos que a sua genial Teoria
dos Conjuntos é mais um exemplo de abstracções fundamentais entradas na
Matemática em grande parte pela necessidade de enunciar e estudar com
clareza questões suscitadas pela Teoria da Integração.
A apresentação dos resultados principais da Teoria, incluindo o Teorema
de Radon-Nikodym-Lebesgue, o Teorema de Fubini-Lebesgue, e os Teoremas
de Representação de Riesz, não faz qualquer concessão à tentação de tornar
estas magnı́ficas construções intelectuais mais simples do que efectivamente
o são.
Naturalmente apenas a leitura atenta do texto poderá revelar se este
responde de forma satisfatória às preocupações acima manifestadas, e se
representa um equilı́brio razoável entre os diversos objectivos que pretende
atingir. Ao seu autor resta somente desejar que outros encontrem na sua
leitura um prazer comparável à satisfação que a sua escrita lhe trouxe.
Lisboa, Junho de 2005
Manuel Ricou
Departamento de Matemática
Instituto Superior Técnico
1096 Lisboa Codex
PORTUGAL
Manuel.Ricou@math.ist.utl.pt
Conteúdo

1 Integrais de Riemann 7
1.1 Rectângulos e Conjuntos Elementares em RN . . . . . . . . . 8
1.2 Álgebras, Semi-Álgebras e Funções Aditivas . . . . . . . . . . 19
1.3 Conjuntos Jordan-Mensuráveis . . . . . . . . . . . . . . . . . 25
1.4 O Integral de Riemann . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 35
1.4.1 O Espaço das Funções Integráveis . . . . . . . . . . . 41
1.4.2 Integrais Indefinidos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45
1.4.3 Continuidade e Integrabilidade . . . . . . . . . . . . . 48
1.5 Os Teoremas Fundamentais do Cálculo . . . . . . . . . . . . . 55
1.6 O Problema de Borel . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 63

2 A Medida de Lebesgue 77
2.1 Espaços Mensuráveis e Medidas . . . . . . . . . . . . . . . . . 78
2.2 A Medida de Lebesgue . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 87
2.3 Medidas Exteriores . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 99
2.4 Os Espaços de Borel e de Lebesgue . . . . . . . . . . . . . . . 109

3 Integrais de Lebesgue 123


3.1 O Integral de Lebesgue . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 124
3.2 Limites, Mensurabilidade e Integrais . . . . . . . . . . . . . . 135
3.3 O Teorema de Fubini-Lebesgue . . . . . . . . . . . . . . . . . 143
3.4 Funções Mensuráveis . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 155
3.5 Funções Somáveis . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 165
3.6 Continuidade e Mensurabilidade . . . . . . . . . . . . . . . . 174

4 Outras Medidas 179


4.1 A Decomposição de Hahn-Jordan . . . . . . . . . . . . . . . . 180
4.2 Medidas de Variação Limitada . . . . . . . . . . . . . . . . . 190
4.3 Medidas Absolutamente Contı́nuas . . . . . . . . . . . . . . . 194
4.4 Medidas Regulares . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 196
4.5 Medidas de Lebesgue-Stieltjes em R . . . . . . . . . . . . . . 202
4.6 Funções de Variação Limitada . . . . . . . . . . . . . . . . . . 210
4.6.1 Funções Absolutamente Contı́nuas . . . . . . . . . . . 216

v
vi Prefácio

4.7 Os Teoremas Fundamentais do Cálculo em R . . . . . . . . . 221


4.7.1 O Teorema de Diferenciação de Lebesgue . . . . . . . 221
4.7.2 A Decomposição de Lebesgue . . . . . . . . . . . . . . 228
4.7.3 Diferenciação de Funções de Variação Limitada . . . . 232

5 Outros Integrais de Lebesgue 237


5.1 A Medida µ ⊗ m . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 238
5.2 Funções Mensuráveis e Integrais . . . . . . . . . . . . . . . . . 251
5.3 O Teorema de Fubini-Lebesgue . . . . . . . . . . . . . . . . . 261
5.4 O Teorema de Radon-Nikodym-Lebesgue . . . . . . . . . . . 270
5.5 Os Espaços Lp . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 278
5.6 Teoremas de Representação de Riesz . . . . . . . . . . . . . . 289
5.7 Teoremas de Egorov, Lebesgue e Riesz . . . . . . . . . . . . . 297

Índice Remissivo 305


Capı́tulo 1

Integrais de Riemann

A teoria da integração evoluiu rapidamente na segunda metade do século


XIX. Por um lado, e sobretudo como resultado das descobertas fundamen-
tais de Fourier sobre séries trigonométricas, hoje ditas séries de Fourier,
a dificuldade dos problemas a esclarecer com esta teoria ultrapassou, de-
finitivamente, os recursos pouco sofisticados da teoria existente, até então
assente, essencialmente, numa base informal e intuitiva. Em 1854, quando
Riemann quis caracterizar as funções que podem ser representadas por séries
de Fourier, foi-lhe necessário analisar a noção de “função integrável” à luz
de mais exigentes critérios de generalidade, exactidão e rigor. A definição
que apresentou ainda hoje deve ser conhecida por quem quer que deseje
compreender os conceitos mais centrais da Análise Matemática.
Por outro lado, em paralelo com estes estudos de Riemann, mas ainda no
contexto da escola Alemã, o genial Cantor descobriu a Teoria dos Conjuntos,
e, simultaneamente, atingiu-se um novo patamar de precisão na forma como
são definidos os próprios números reais. Ao procurar respostas a questões
suscitadas tanto pela nova teoria de Riemann, como pela teoria de Fourier,
retomaram-se problemas tão antigos como a própria Matemática, conheci-
dos da Geometria elementar, mas que podiam agora ser estudados à luz
destas novas ideias. O que é a área de uma figura plana? O que é o volume
de um sólido? Qualquer figura plana limitada tem área? Qualquer subcon-
junto de uma recta tem comprimento? É possı́vel calcular, por exemplo,
o comprimento do conjunto dos números racionais? Uma primeira solução
para este tipo de problemas foi descoberta pelo matemático italiano Peano,
já perto do final do século XIX. O próprio Peano compreendeu a relação di-
recta entre a sua teoria, que definia a medida de conjuntos, e a de Riemann,
que definia o integral de funções, e sabia que as duas teorias são, em certo
sentido, completamente equivalentes.
Neste primeiro capı́tulo, estudamos, sobretudo, as ideias de Riemann e de
Peano, mas não seguimos a cronologia da sua descoberta, nem usamos sem-
pre os conceitos exactamente como originalmente definidos. Procuramos,

7
8 Capı́tulo 1. Integrais de Riemann

em vez disso, evidenciar o mais directamente possı́vel a sua equivalência.


Apontaremos também algumas das deficiências técnicas que apresentam, e
que estão na origem da sua substituição, já no século XX, pela teoria des-
coberta por Henri Lebesgue.
Uma observação simples sobre terminologia: é comum usar as palavras
“medida”, ou “conteúdo”, em vez de “comprimento”, “área”, ou “volume”,
porque estas últimas estão irremediavelmente associadas à dimensão dos
conjuntos em causa (respectivamente, um, dois, ou três), e a teoria que aqui
estudamos é basicamente independente dessa dimensão, e aplicável, mesmo
quando essa dimensão é superior a três. Neste capı́tulo, usaremos sobretudo
o termo “conteúdo”, normalmente na forma “conteúdo-N ”, onde N é a
dimensão do espaço subjacente, reservando a palavra “medida”, que como
veremos tem um sentido técnico muito preciso, para utilização posterior.

1.1 Rectângulos e Conjuntos Elementares em RN


A determinação do conteúdo-N de subconjuntos de RN é muito simples
para os conjuntos que são rectângulos, ou uniões finitas de rectângulos. O
principal objectivo desta secção é o de definir o conteúdo dos conjuntos deste
tipo, e identificar e demonstrar as suas propriedades mais básicas.

Figura 1.1.1: União finita de rectângulos.

O cálculo da área de um rectângulo é imediato. Como sabemos da geo-


metria elementar, essa área é dada pelo produto dos comprimentos dos seus
lados, lados esses que são, evidentemente, intervalos em R. Considere-se o
exemplo da figura seguinte, que apresenta um rectângulo bidimensional, i.e.,
da forma R = I × J, onde I e J são intervalos. Neste caso, a área de R é o
produto dos comprimentos de I e de J.
Bem entendido, usaremos aqui o termo “rectângulo” com um sentido
mais geral, independente da dimensão N do espaço RN em causa: qualquer
1.1. Rectângulos e Conjuntos Elementares em RN 9

Figura 1.1.2: Área de R = (comprimento de I)×(comprimento de J).

produto cartesiano (finito) de intervalos na recta R é um rectângulo:

Definição 1.1.1 (Rectângulos em RN ). R ⊆ RN é um rectângulo se e


só se R = I1 × I2 × · · · × IN , onde I1 , I2 , · · · , IN são intervalos em R.

É claro que, em geral, um rectângulo em R é um intervalo, um rectângulo


em R2 é um rectângulo no sentido usual do termo, e um rectângulo em R3
é um prisma rectangular. Sempre que nos referirmos a um rectângulo, e
for conveniente indicar explicitamente a dimensão N do respectivo espaço
RN , usamos a expressão “rectângulo-N ”. Em particular, um intervalo é um
rectângulo-1. Reservamos o termo “intervalo” apenas para rectângulos-1.
Notamos que o conjunto vazio ∅ é um rectângulo-N , para qualquer N . Na
verdade, se R = I1 × I2 × · · · × IN , então um ou mais dos intervalos Ik pode
conter apenas um ponto, ou ser vazio. Por exemplo, um rectângulo-2 pode
reduzir-se a um segmento de recta, a um ponto, ou ao conjunto vazio.
O comprimento, ou conteúdo-1, do intervalo I ⊆ R, designa-se por
c1 (I). Se I é limitado, de extremos a ≤ b, do tipo [a, b], [a, b[, ]a, b], ou
]a, b[, é evidente que c1 (I) = b − a. Se I é ilimitado, i.e., se a = −∞
e/ou b = +∞, então c1 (I) = +∞. Se J é também um intervalo, então
R = I × J é um rectângulo-2, e a sua área, ou conteúdo-2, designa-se
por c2 (R), e é, naturalmente, dada por c2 (R) = c1 (I) × c1 (J). Neste como
em qualquer outro produto envolvendo factores infinitos, usaremos sempre
a seguinte convenção:

 b, se b = ±∞, e a > 0,
a×b=b×a= 0, se a = 0,
−b, se b = ±∞, e a < 0.

A tı́tulo de exemplo, o eixo dos yy em R2 é um rectângulo-2 com conteúdo-2


igual a 0, já que este eixo é o produto cartesiano R = [0, 0]×] − ∞, +∞[,
donde c2 (R) = 0 × ∞ = 0. Analogamente, um prisma rectangular P é o
10 Capı́tulo 1. Integrais de Riemann

produto cartesiano de três intervalos I, J e K em R, e o seu volume, ou


conteúdo-3, é dado por

c3 (P ) = c1 (I) × c1 (J) × c1 (K).

É imediato generalizar estas observações para o caso de RN :

Definição 1.1.2 (Conteúdo de Rectângulos em RN ). Se R = I1 ×I2 ×· · ·×IN


é um rectângulo em RN , o conteúdo-N de R designa-se por cN (R), ou
apenas c(R), e é dado por

cN (R) = c1 (I1 ) × c1 (I2 ) × · · · × c1 (IN ).

O conteúdo-N é, portanto, uma função de um tipo especial: está definida


numa classe de conjuntos, e é por isso dita uma função de conjuntos.
Neste caso, é uma função com valores no intervalo [0, +∞], definida, para
já, na classe de todos os rectângulos-N .
Uma das propriedades mais fundamentais da noção de conteúdo é a sua
aditividade. Especializada para rectângulos, esta propriedade significa
simplesmente que, quando um rectângulo R é dividido em dois rectângulos
disjuntos A e B, a soma dos conteúdos de A e de B é o conteúdo de R, i.e.,

c(R) = c(A) + c(B).

Esta propriedade é intuitivamente evidente para as noções usuais de


comprimento, área e volume, mas deve ser demonstrada como válida para o
conteúdo-N , independentemente de N . A proposição seguinte generaliza-a
para uma famı́lia finita de rectângulos, e a respectiva demonstração está
esboçada nos exercı́cios 11 a 14 desta secção.

Proposição 1.1.3 (Aditividade do Conteúdo). Se R1 , · · · , Rm são rectân-


gulos-N disjuntos, e R = ∪m
i=1 Ri é também um rectângulo-N , temos

m
X
cN (R) = cN (Ri ).
i=1

No cálculo de somas com parcelas infinitas, usamos a convenção:

a + b = b + a = b, se b = ±∞ e a 6= −b.

Esta convenção não atribui valor a expressões como “∞ − ∞”, que se dizem
por isso indeterminações.
Quando R é um conjunto, e P é uma famı́lia de conjuntos disjuntos cuja
união é R, dizemos que P é uma partição do conjunto R. Se R é um
1.1. Rectângulos e Conjuntos Elementares em RN 11

rectângulo, e P é uma partição finita de R em subrectângulos, podemos


escrever a identidade em 1.1.3 na forma
X
cN (R) = cN (r).
r∈P

O diâmetro de R ⊆ RN é definido por

diam(R) = sup {kx − yk : x, y ∈ R} .

O diâmetro da partição P do conjunto R é definido por

diam(P) = sup {diam(r) : r ∈ P} .

O diâmetro de uma partição é um indicador simples da sua granularidade.


Exemplos 1.1.4.
1. A famı́lia {[0, 1[, [1, 1], ]1, 2]} é uma partição de I = [0, 2].
2. A famı́lia P = P1 = [0, 1] × [0, 21 ], P2 = [0, 1]×] 12 , 1], P3 =]1, 2] × [0, 1] é uma


partição de R = [0, 2] × [0, 1], com diam(P) = diam(P3 ) = 2, e está ilustrada
na figura abaixo. É óbvio que

c2 (R) = c2 (P1 ) + c2 (P2 ) + c2 (P3 ).

Figura 1.1.3: Partição P do rectângulo R = [0, 2] × [0, 1].

É por vezes necessário refinar uma partição, ou seja, subdividir cada


um dos conjuntos que a constituem. Mais formalmente, se P e R são
partições de R, dizemos que R é um refinamento de P, ou que R é
mais fina do que P, se e só se cada conjunto r ∈ R está contido em al-
gum conjunto p ∈ P. É claro que, se R é um refinamento de P, então
diam(R) ≤ diam(P). Se P e Q são duas quaisquer partições do mesmo
conjunto R, qualquer partição R de R simultaneamente mais fina do que
P, e do que Q, diz-se um refinamento comum das partições P e Q. É
fácil obter um refinamento comum de quaisquer duas partições do mesmo
conjunto:
12 Capı́tulo 1. Integrais de Riemann

Figura 1.1.4: Refinamento R da partição P da figura 1.1.3.

Proposição 1.1.5. Se P e Q são partições de R, então

R = {p ∩ q : p ∈ P, q ∈ Q}

é um refinamento comum de P e Q.

Se P e Q são partições de R em rectângulos, então o refinamento comum


mencionado em 1.1.5 é, também, uma partição em rectângulos, porque a
intersecção de dois rectângulos é sempre um rectângulo. Esta observação é,
aliás, aplicável a qualquer famı́lia finita de partições de R em rectângulos.

Figura 1.1.5: Partições P e Q, e um refinamento comum R.

Se S ⊆ R é um subrectângulo de R, existem partições P de R em


rectângulos que incluem o rectângulo S. A figura 1.1.6 ilustra esta ideia,
que, em particular, implica a proposição 1.1.6.

Proposição 1.1.6. Se S e R são rectângulos, então R − S (1 ) é uma união


finita de rectângulos.

No que se segue, referimo-nos, com frequência, a conjuntos que são


uniões finitas de rectângulos (é muito fácil mostrar, com base na
proposição 1.1.6, que estes rectângulos podem sempre ser supostos disjuntos,
1
Se X e Y são conjuntos, X − Y = {x ∈ X : x 6∈ Y } é a diferença de X e Y .
1.1. Rectângulos e Conjuntos Elementares em RN 13

Figura 1.1.6: Rectângulos S ⊆ R, e a partição P.

como é referido no exercı́cio 4). Muitas vezes, restringimos a nossa atenção


aos conjuntos que são uniões finitas de rectângulos limitados, caso em que
os conjuntos se dizem elementares. Resumimos, a seguir, a notação e
terminologia que utilizaremos.

Definição 1.1.7 (Conjuntos Elementares). Seja S ⊆ RN .

a) U(RN ) é a classe dos conjuntos que são uniões finitas de rectângulos-N ,

b) E(RN ) é a classe dos conjuntos limitados E ∈ U(RN ),

c) E(S) = E ∈ E(RN ) : E ⊆ S , e U(S) = U ∈ U(RN ) : U ⊆ S ,


 

d) Os conjuntos E ∈ E(RN ) dizem-se elementares.

É interessante registar que estas classes de conjuntos são, de um ponto


de vista algébrico, fechadas em relação às operações de união, intersecção e
diferença de conjuntos. A respectiva demonstração é o exercı́cio 15.

Proposição 1.1.8. Se A, B ∈ U(RN ) (respectivamente, E(RN )), então

A ∪ B, A ∩ B e A − B ∈ U(RN ) (respectivamente, E(RN )).

A definição de conteúdo pode ser generalizada, da classe dos rectângulos,


para a classe U(RN ), usando ideias da geometria elementar. Para isso, e dado
S ∈ U(RN ), basta decompor o conjunto S numa união finita de rectângulos
disjuntos, i.e., escolher uma sua partição em rectângulos, e adicionar os
conteúdos desses rectângulos. Por exemplo,

• Se A = [0, 1]∪]3, +∞[ então c1 (A) = 1 + ∞ = ∞, e

• Se B = [0, 1]∪]2, 5[, então c1 (B) = 1 + 3 = 4.

É evidente, no entanto, que a decomposição de um dado conjunto S numa


união finita de rectângulos disjuntos pode ser feita de múltiplas maneiras,
como ilustrado na figura 1.1.7. Portanto, a ideia referida só pode ser a
base de uma correcta definição, se provarmos que a soma obtida depende
14 Capı́tulo 1. Integrais de Riemann

apenas do próprio conjunto S, e não da partição utilizada para decompor


S em subrectângulos. A demonstração deste facto assenta, somente, na
aditividade do conteúdo para rectângulos, tal como expressa em 1.1.3, e
está feita imediatamente a seguir, na proposição 1.1.9.

Figura 1.1.7: Partições distintas do conjunto S, e um refinamento comum.

Proposição 1.1.9. Se P = {P1 , P2 , · · · , Pm }, e R = {R1 , R2 , · · · , Rn }, são


partições de S ⊆ RN em rectângulos, então
m
X n
X
cN (Pj ) = cN (Ri ).
j=1 i=1

Demonstração. A famı́lia Q = {Ri ∩ Pj : 1 ≤ i ≤ n, 1 ≤ j ≤ m} é um refi-


namento comum das partições P e R, como ilustrado na figura 1.1.7. É claro
que a famı́lia Pi = {Ri ∩ Pj : 1 ≤ j ≤ m} é uma partição de Ri . Analoga-
mente, Rj = {Ri ∩ Pj : 1 ≤ i ≤ n} é uma partição de Pj . Segue-se de 1.1.3
que
Xm n
X
cN (Ri ) = cN (Ri ∩ Pj ), e cN (Pj ) = cN (Ri ∩ Pj ).
j=1 i=1

Trocando a ordem na soma dupla seguinte, obtemos imediatamente


n
X X m
n X X n
m X m
X
cN (Ri ) = cN (Ri ∩ Pj ) = cN (Ri ∩ Pj ) = cN (Pj ).
i=1 i=1 j=1 j=1 i=1 j=1

Concluı́mos que a definição seguinte não é ambı́gua, e é uma generaliza-


ção de 1.1.2.

Definição 1.1.10 (Conteúdo de Conjuntos em U(RN )). Se os conjuntos Ri


são rectângulos-N disjuntos, definimos
n
[ n
X
cN ( Ri ) = cN (Ri ).
i=1 i=1
1.1. Rectângulos e Conjuntos Elementares em RN 15

A proposição seguinte regista propriedades elementares do conteúdo,


agora considerado como uma função cN : U(RN ) → [0, ∞].
Proposição 1.1.11. Supondo que A, B, C ∈ U(RN ), temos:
a) Aditividade: Se A e B são disjuntos, então
cN (A ∪ B) = cN (A) + cN (B),

b) Positividade: cN (A) ≥ 0,
c) Monotonia: Se A ⊆ B, então cN (A) ≤ cN (B),
d) Subaditividade: Se A ⊆ B ∪ C, então cN (A) ≤ cN (B) + cN (C).
Demonstração. a) Sejam R = {R1 , R2 , · · · , Rn } e P = {P1 , P2 , · · · , Pm }
famı́lias de rectângulos disjuntos tais que
n m n
! m 
[ [ [ [ [
A= Ri e B = Pj , donde A ∪ B = Ri  Pj  .
i=1 j=1 i=1 j=1

Como A e B são disjuntos, é evidente que R ∪ P é uma partição de A ∪ B,


e segue-se, da definição 1.1.10, que
n
X m
X
cN (A ∪ B) = cN (Ri ) + cN (Pj ) = cN (A) + cN (B).
k=1 j=1

b) É evidente que cN (A) ≥ 0.


As propriedades c) e d) nesta proposição são, na verdade, consequência
automática de a) e b), e das propriedades indicadas em 1.1.8. Temos assim:
c) Se A ⊆ B, então B − A ∈ U(RN ), B − A é disjunto de A, e
B = A ∪ (B − A).
Portanto, e como cN (B − A) ≥ 0, temos, necessariamente,
cN (B) = cN (A) + cN (B − A) ≥ cN (A).
d) Tomamos B ∗ = B ∩ A, e C ∗ = (C ∩ A) − B, donde B ∗ e C ∗ são
conjuntos disjuntos em U(RN ), tais que A = B ∗ ∪ C ∗ , B ∗ ⊆ B, e C ∗ ⊆ C.
Segue-se, de a) e c), que cN (A) = cN (B ∗ ) + cN (C ∗ ) ≤ cN (B) + cN (C).

A afirmação seguinte pode ser encarada como uma outra forma de gene-
ralização da definição 1.1.2, ou como uma generalização da ideia expressa na
frase “o volume de um prisma é o produto da área da base pela altura”. Na
realidade, e de um ponto de vista intuitivo, deve ser tão natural e “óbvia”
como a propriedade de aditividade, mesmo quando N + M > 3. De um
ponto de vista mais formal, a proposição em causa é uma versão preliminar
do Teorema de Fubini, que discutiremos repetidas vezes no que se segue.
16 Capı́tulo 1. Integrais de Riemann

Proposição 1.1.12 (Conteúdo do Produto Cartesiano). Se A ∈ U(RN ) e


B ∈ U(RM ), então A × B ∈ U(RN +M ), e cN +M (A × B) = cN (A) × cM (B).
Temos ainda que A ∈ E(RN ) e B ∈ E(RM ) =⇒ A × B ∈ E(RN +M ).

Demonstração. O resultado é evidente quando A e B são rectângulos. Basta


notar que se A = I1 × · · · × IN , e B = J1 × · · · × JM , onde os conjuntos Ii e
Jj são intervalos em R, então

A × B = I1 × · · · × IN × J1 × · · · × JM é um rectângulo-(N + M ), e

cN +M (A × B) = c(I1 ) × · · · × c(IN ) × c(J1 ) × · · · × c(JM ) = cN (A) × cM (B).


Suponha-se, agora, que
n
[ m
[
A= Ri , e B = Sj ,
i=1 j=1

onde os conjuntos Ri e Sj são rectângulos, que podemos supor disjuntos.


Temos, então, que

n
! m 
n [m
[ [ [
A×B = Ri ×  Sj  = (Ri × Sj ) .
i=1 j=1 i=1 j=1

Como os rectângulos Ri × Sj são, por razões óbvias, disjuntos,

X m
n X n X
X m
cN +M (A × B) = cN +M (Ri × Sj ) = cN (Ri ) × cM (Sj ) =
i=1 j=1 i=1 j=1
 
n m
!
X X
= cN (Ri ) × cM (Sj ) = cN (A) × cM (B).
i=1 j=1

Convencionamos aqui que, se S ⊆ RN , e x ∈ RN , então S + x designa


a translacção {y + x : y ∈ S}. Qualquer translacção de um rectângulo
é, ainda, um rectângulo com o conteúdo do rectângulo original, e a mesma
observação é verdadeira para qualquer reflexão de um rectângulo num
qualquer dos hiperplanos de equação xk = 0. A próxima proposição for-
maliza esta ideia, ilustrada na figura 1.1.8, alargando-a a conjuntos que são
uniões finitas de rectângulos. A sua demonstração é o exercı́cio 17.

Proposição 1.1.13 (Invariância sob Translacções e Reflexões). Se S ∈


U(RN ) (respectivamente, E(RN )), e T é uma translacção de S, ou a reflexão
de S num dos hiperplanos xk = 0, então T ∈ U(RN ) (respectivamente,
E(RN )), e cN (T ) = cN (S).
1.1. Rectângulos e Conjuntos Elementares em RN 17

Figura 1.1.8: Translacção e reflexão (em x2 = 0) do conjunto elementar S.

Qualquer conjunto elementar pode ser aproximado por conjuntos ele-


mentares abertos, ou fechados, o que é um tipo de aproximação que nos será
útil mais adiante. Se I é um intervalo limitado de extremos a < b, então o
seu interior é ]a, b[, o respectivo fecho é [a, b], e a sua fronteira é o conjunto
{a, b}(2 ). É claro que I, o seu interior U =]a, b[, e o seu fecho F = [a, b], têm
o mesmo conteúdo-1, e a respectiva fronteira tem conteúdo nulo. Portanto,
para qualquer intervalo limitado I, existem intervalos U e F , com U aberto,
e F fechado, tais que

U ⊆ I ⊆ F , e c1 (U ) = c1 (I) = c1 (F ).

É, no entanto, impossı́vel trocar na afirmação anterior o papel de F e de


U , excepto no caso trivial em que I = ∅. Por outras palavras, em geral não
há um intervalo fechado F , e um intervalo aberto U , tal que

F ⊆ I ⊆ U , e c1 (F ) = c1 (I) = c1 (U ).

Existem, apenas, intervalos destes tipos com comprimento arbitrariamente


próximo, mas não exactamente igual, ao comprimento de I. Na verdade, e
para qualquer ε > 0, podemos por exemplo tomar, com 0 < ε′ < ε,

F = [a + ε′ /4, b − ε′ /4] e U =]a − ε′ /4, b + ε′ /4[, donde


F ⊆ I ⊆ U, e c1 (U − F ) = ε′ < ε.
É neste sentido que dizemos que qualquer intervalo pode ser aproximado,
por defeito, por um intervalo fechado, e por excesso, por um intervalo aberto.
A generalização desta afirmação para conjuntos elementares fica igualmente
como exercı́cio (18):
2
Se X ⊆ RN , designamos a fronteira de X por ∂X, e o fecho de X por X. O
interior e o exterior de X designam-se, respectivamente, por int(X), e ext(X). Temos,
em particular, que ∂X = X−int(X).
18 Capı́tulo 1. Integrais de Riemann

Proposição 1.1.14. Se S ⊆ RN é elementar, e ε > 0, existem conjuntos


elementares F e U em RN , tais que F é fechado, U é aberto, F ⊆ S ⊆ U , e
cN (U − F ) < ε, donde cN (S) − ε < cN (F ) ≤ cN (S) ≤ cN (U ) < cN (S) + ε.

cN (F ) cN (U )
-

cN (S) − ε cN (S) cN (S) + ε

Exercı́cios.

1. Quantos vértices, arestas, e faces tem um rectângulo-N ?

2. Existem 4 intervalos com os mesmos extremos a e b, que são [a, b], ]a, b], [a, b[,
e ]a, b[. Quantos rectângulos-N existem com os mesmos vértices?

3. Mostre que um conjunto ilimitado pode ter um conteúdo finito arbitrário.

4. Mostre que qualquer conjunto que seja uma união finita de rectângulos é,
necessariamente, uma união finita de rectângulos disjuntos.

5. Calcule c4 (U ), onde U = R1 ∪ R2 ∪ R3 , e R1 = [0, 3] × [0, 5] × [0, 6] × [0, 10],


R2 = [1, 4] × [2, 6] × [3, 8] × [4, 12], e R3 = [1, 3] × [3, 4] × [−1, 4] × [5, 8].

6. Mostre que se E ∈ U(RN ) então cN (∂E) = 0. Conclua que cN (E) =


cN (int(E)), e portanto int(E) = ∅ ⇔ cN (E) = 0.

7. Mostre que se E ∈ U(R) e c(E) = 0 então E é finito.

8. Mostre que se E ⊂ RN é infinito numerável então E 6∈ U(RN ).

9. Sejam A e B rectângulos, e considere R = A × B.


a) Dadas partições RA de A, e RB de B, mostre que

R = {a × b : a ∈ RA , b ∈ RB }

é uma partição de R.
b) Suponha que P é uma partição qualquer de R em rectângulos, e prove
que existe um refinamento R para a partição P do tipo referido em a).

10. Mostre que, se C ∈ U(RN +M ), então existem rectângulos-N R1 , · · · , Rn ,


disjuntos, e conjuntos Bi ∈ U(RM ), tais que
n
[
C= Ri × Bi .
i=1
1.2. Álgebras, Semi-Álgebras e Funções Aditivas 19

11. Seja I ⊆ R um intervalo, e {I1 , · · · , In } uma partição de I em intervalos.


Prove que
X n
c1 (I) = c1 (Ik ).
k=1

12. Seja R = I × J ⊆ R2 um rectângulo-2, onde I e J são intervalos em R.


Dadas partições P = {I1 , I2 , · · · , In } de I, e Q = {J1 , J2 , · · · , Jm } de J, onde
os Ik e Jj são intervalos, definimos ∆xk = c(Ik ) e ∆yj = c(Jj ). Prove que
n X
X m
c2 (R) = ∆xk ∆yj .
k=1 j=1

13. Sendo R = I × J ⊆ R2 um rectângulo, onde I e J são intervalos em R, e


P = {R1 , · · · , Rn } uma partição de R em rectângulos, prove que
n
X
c2 (R) = c2 (Rk ).
k=1

Sugestão: Mostre que P tem um refinamento R do tipo referido no exercı́cio


anterior, e no exercı́cio 9. Aplique em seguida o resultado anterior ao rectângulo
R, e a cada rectângulo Ri .

14. Generalize os exercı́cios 12 e 13 para rectângulos-N , o que conclui a demon-


stração de 1.1.3.

15. Demonstre a proposição 1.1.8.

16. Generalize as alı́neas 1.1.11 a) e 1.1.11 d) para famı́lias finitas de conjuntos.

17. Demonstre a proposição 1.1.13.

18. Demonstre a proposição 1.1.14.

1.2 Álgebras, Semi-Álgebras e Funções Aditivas


Introduzimos nesta secção um conjunto de noções abstractas, mas relati-
vamente elementares, que são úteis no estudo de funções de conjuntos, e
que são extensivamente utilizadas na teoria da medida. Começamos por
uma classificação para classes de conjuntos, parcialmente inspirada por pro-
priedades que já identificámos nas classes E(RN ) e U(RN ).

Definição 1.2.1 (Álgebras e Semi-álgebras de Conjuntos). Seja X um con-


junto arbitrário, e S uma famı́lia não-vazia de subconjuntos de X. S diz-se
uma semi-álgebra (em X) se e só se:

a) Fecho em relação à união: A, B ∈ S ⇒ A ∪ B ∈ S, e


20 Capı́tulo 1. Integrais de Riemann

b) Fecho em relação à diferença: A, B ∈ S ⇒ A − B ∈ S.

A semi-álgebra S diz-se uma álgebra (em X) se, além disso,

c) X ∈ S.

Exemplos 1.2.2.
1. As classes E(RN ) e U(RN ) são semi-álgebras em RN .

2. A classe U(RN ) é uma álgebra em RN , mas E(RN ) não é uma álgebra, porque
RN não é elementar.

3. A classe dos rectângulos em RN não é uma semi-álgebra em RN .

4. As classes E(R) são, sempre, semi-álgebras, qualquer que seja R ⊆ RN . Se


R é elementar, a classe E(R) é uma álgebra em R.

5. Sendo X um qualquer conjunto, a classe de todos os subconjuntos de X, que


designamos P(X), é, claramente, a maior álgebra de conjuntos em X.

6. A classe {∅, X} é a menor álgebra de conjuntos em X.

7. A classe dos conjuntos abertos em RN não é uma semi-álgebra em RN . Esta


classe é fechada em relação à união, mas não o é em relação à diferença. O
mesmo se passa com a classe dos conjuntos fechados em RN .

8. Os conjuntos limitados em RN formam uma semi-álgebra, que não é uma


álgebra.

Muitas das propriedades das classes de conjuntos que já estudámos re-
sultam, apenas, de essas classes serem semi-álgebras. Por exemplo, como
qualquer semi-álgebra é fechada em relação à intersecção, temos necessaria-
mente que a intersecção de dois conjuntos elementares é elementar. O pró-
ximo teorema indica algumas propriedades algébricas que, tais como esta,
são comuns a qualquer semi-álgebra de conjuntos.

Teorema 1.2.3. Seja S uma semi-álgebra no conjunto X. Temos, então:

a) ∅ ∈ S,

b) Fecho em relação à intersecção: A, B ∈ S ⇒ A ∩ B ∈ S.

c) Fecho em relação a uniões e intersecções finitas:


n
[ n
\
A1 , A2 , · · · , An ∈ S ⇒ Ak , Ak ∈ S.
k=1 k=1

Se S é uma álgebra em X, temos ainda:


1.2. Álgebras, Semi-Álgebras e Funções Aditivas 21

d) Fecho em relação à complementação: A ∈ S ⇒ Ac ∈ S.(3 )

Demonstração. a) A classe S é por definição não-vazia. Sendo A ∈ S, temos


∅ = A − A ∈ S.
b) A ∩ B = A − (A − B) ∈ S.
c) É facilmente demonstrável por indução.
d) Como, por hipótese, X ∈ S, temos Ac = X − A ∈ S.

Alguma da terminologia definida a seguir já foi informalmente utilizada


na secção anterior. Note-se que nos referimos a funções de conjuntos com
valores em [0, +∞], como o conteúdo-N em U(RN ), ou com valores reais.

Definição 1.2.4 (Funções de conjuntos). Seja λ : S → R, ou λ : S →


[0, +∞], uma função de conjuntos definida numa classe de subconjuntos S
de um conjunto fixo X. Supomos, no que se segue, que A, B, C ∈ S. A
função de conjuntos λ diz-se:

a) Aditiva: Se A ∪ B ∈ S e A e B disjuntos ⇒ λ(A ∪ B) = λ(A) + λ(B).

b) Subaditiva: Se C ⊆ A ∪ B ⇒ λ(C) ≤ λ(A) + λ(B).

c) Monótona: Se A ⊆ B ⇒ λ(A) ≤ λ(B).

d) Não-negativa: Se λ(A) ≥ 0.
Exemplos 1.2.5.
1. Conteúdo-N : O conteúdo-N , tal como o definimos em E(RN ) e em U(RN ),
é uma função aditiva, subaditiva, monótona e não-negativa.
2. Cardinal: Dado um conjunto X, e um subconjunto Y ⊆ X, o cardinal de
Y designa-se por #(Y ), e é igual ao número de elementos de Y , se Y é finito,
ou igual a +∞ , se Y é infinito. O cardinal é uma função de conjuntos aditiva,
subaditiva, monótona e não-negativa, definida na classe P(X).
3. Probabilidades: Na Teoria das Probabilidades, associamos uma probabili-
dade, que é um número entre 0 e 1, a acontecimentos. Os acontecimentos são
subconjuntos de um conjunto fixo X, e formam uma álgebra A (porquê?). A
probabilidade p : A → [0, 1] é, portanto, uma função de conjuntos, que é sem-
pre aditiva, subaditiva, monótona e não-negativa. Por exemplo, o conjunto X,
que é um acontecimento certo, tem probabilidade 1, ou seja, p(X) = 1.
4. Muitas grandezas fı́sicas, ditas extensivas, como a massa, carga eléctrica,
energia, entropia, momento linear, etc., podem ser representadas por funções
aditivas de conjuntos. Os conjuntos em causa são, normalmente, regiões do
espaço, ou partes de um dado corpo material.
5. Introduzimos aqui uma famı́lia de exemplos que referiremos, com frequência,
nos Capı́tulos seguintes. Consideramos:
3
Quando o conjunto “universal” X é evidente do contexto da discussão, usamos a
notação Ac = X − A.
22 Capı́tulo 1. Integrais de Riemann

• A classe C, formada pelos intervalos limitados em R, do tipo ]a, b],


• Uma qualquer função f : R → R, e
• Definimos λ : C → R por

λ(]a, b]) = f (b) − f (a).

Observamos que λ é uma função aditiva em C, qualquer que seja a função f .


É simples verificar que a classe F(R), formada pelas uniões finitas de intervalos
em C, é uma semi-álgebra. Se A ∈ F(R), então A é uma união finita de
intervalos disjuntos I1 , I2 , · · · , In em F(R), e podemos definir
n
X
λ(A) = λ(Ik ).
k=1

(Para mostrar que esta definição não é ambı́gua, basta adaptar o argumento
que utilizámos em 1.1.9). É ainda imediato que λ é aditiva em F(R), e que
é não-negativa, monótona e subaditiva se e só se f é crescente. Por outras
palavras, qualquer função f : R → R determina uma função de conjuntos
aditiva na semi-álgebra F(R).

6. Para um exemplo particularmente simples, mas interessante, da classe que


acabámos de introduzir, suponha que a função f referida no exemplo 5 é a
função de Heaviside (4 ) (a função caracterı́stica do intervalo [0, +∞[). Neste
caso, λ(A) = 0, excepto quando 0 ∈ A, caso em que λ(A) = 1. λ diz-se o
impulso, medida ou distribuição de dirac (5 ). Se f (x) = int(x), onde
int(x) = max{k ∈ Z : k ≤ x}, então λ(A) conta os inteiros que pertencem a A,
i.e., λ(A) = #(A ∩ Z), e λ tem o pitoresco nome de pente de dirac.

Figura 1.2.1: λ(A) = λ(A ∩ B) + λ(A − B)

Indicamos, abaixo, propriedades comuns a quaisquer funções aditivas


definidas em semi-álgebras, de que a figura 1.2.1 ilustra um exemplo.
4
De Oliver Heaviside (1850 - 1925), engenheiro, fı́sico, e matemático inglês.
5
Do célebre fı́sico inglês Paul Adrien Maurice Dirac (1902 - 1984), prémio Nobel em
1933. Foi um dos distintos ocupantes da Cátedra Lucasiana da Universidade de Cambridge
(1932-1969), hoje ocupada pelo famoso fı́sico Stephen Hawking. Terminou a sua vida nos
Estados Unidos, onde ensinou nas Universidades de Miami, e do Estado da Flórida.
1.2. Álgebras, Semi-Álgebras e Funções Aditivas 23

Teorema 1.2.6. Seja S uma semi-álgebra no conjunto X, e λ : S → R, ou


λ : S → [0, +∞], uma função aditiva. Temos:
a) λ(∅) = 0, ou λ(A) = +∞, para qualquer A ∈ S.(6 )
b) Se A, B ∈ S então (7 )
λ(A ∪ B) + λ(A ∩ B) = λ(A) + λ(B), e λ(A) = λ(A ∩ B) + λ(A − B).

c) λ é não-negativa ⇐⇒ λ é monótona ⇐⇒ λ é subaditiva.


d) Se A1 , A2 , · · · , An ∈ S e A1 , A2 , · · · , An são disjuntos então
n
[ n
X
λ( Ak ) = λ(Ak ).
k=1 k=1

Demonstração. a) Se A ∈ S, segue-se, por aditividade, que


λ(A) = λ(A) + λ(∅).
É, portanto, evidente que
λ(∅) = +∞ =⇒ λ(A) = +∞, para qualquer A ∈ S.
Por outro lado, se existe algum conjunto A tal que λ(A) 6= +∞, então é
também evidente que λ(A) = λ(A) + λ(∅) ⇒ λ(∅) = 0.
b) A ∩ B e A − B são disjuntos, e A = (A ∩ B) ∪ (A − B). Portanto,
λ(A) = λ(A ∩ B) + λ(A − B).
Analogamente, B e A − B são disjuntos, e A ∪ B = B ∪ (A − B), donde
λ(A ∪ B) = λ(B) + λ(A − B).
Concluı́mos, assim, que
λ(A ∪ B) + λ(A ∩ B) = λ(B) + λ(A − B) + λ(A ∩ B) = λ(A) + λ(B).
c) Se λ é não-negativa, e A ⊇ B, então, de acordo com (b), temos
λ(A) = λ(A ∩ B) + λ(A − B) = λ(B) + λ(A − B) ≥ λ(B),
porque λ(A − B) ≥ 0, i.e., λ é monótona.
Se λ é monótona e C ⊆ A ∪ B então
λ(C) ≤ λ(A ∪ B) = λ(A ∪ (B − A)) = λ(A) + λ(B − A) ≤ λ(A) + λ(B).
Finalmente, se λ é subaditiva e como ∅ ⊆ A ∪ A então λ(∅) ≤ 2λ(A), e
λ é não-negativa.
d) A demonstração fica como exercı́cio.
6
Em geral, consideramos apenas funções λ que não são constantes e iguais a +∞.
7
Estas identidades devem ser manipuladas com cuidado quando λ toma valores infini-
tos. Note que só podemos escrevê-las na forma λ(A ∪ B) = λ(A) + λ(B) − λ(A ∩ B), e
λ(A − B) = λ(A) − λ(A ∩ B), quando não conduzem a indeterminações do tipo (∞ − ∞).
24 Capı́tulo 1. Integrais de Riemann

No caso das funções subaditivas, deixamos como exercı́cio obter:

Teorema 1.2.7. Seja S uma semi-álgebra no conjunto X, e λ : S → R, ou


λ : S → [0, +∞],uma função subaditiva. Temos então:

a) λ é não-negativa,
Pn
b) A1 , A2 , · · · , An ∈ S ⇒ λ(∪nk=1 Ak ) ≤ k=1 λ(Ak ), e

c) Se λ(∅) = 0, então λ é monótona.

Exercı́cios.

1. Sendo A uma classe de subconjuntos de X, prove que A é uma álgebra em


X se e só se A é não-vazia, fechada em relação à união (ou intersecção), e à
complementação.

2. Pode substituir-se a união pela intersecção na definição 1.2.1?

3. Mostre que a classe S dos conjuntos limitados é uma semi-álgebra em RN .


Considere a função λ : S → R, dada por

λ(A) = diam(A) = sup {kx − yk : x, y ∈ A} , para A ∈ S.

Quais das propriedades referidas em 1.2.4 são satisfeitas por λ?

4. A classe dos subconjuntos finitos de um conjunto X é uma semi-álgebra?


Uma álgebra?

5. Sendo R um rectângulo-N limitado, mostre que E(R) é a menor álgebra em


R que contém os subrectângulos de R, e U(RN ) é a menor álgebra em RN que
contém todos os rectângulos.

6. Demonstre as afirmações feitas no texto a respeito do exemplo 1.2.5.5.

7. Generalize o exemplo 1.2.5.5 para o plano R2 , sendo agora f uma função de


duas variáveis.

8. Considere a seguinte experiência aleatória, para selecção de um número no


intervalo [0, 6]. Primeiro, usamos uma moeda para decidir um de dois métodos:
no caso “caras”, escolhemos ao acaso um número no intervalo [0, 6] (com uma
densidade de probabilidade constante); no caso “coroas”, rolamos um dado
para escolher um número do conjunto {1, 2, 3, 4, 5, 6}. Descreva a distribuição
de probabilidade λ associada a esta experiência, calculando a correspondente
função F .

9. Conclua a demonstração de 1.2.6, e prove 1.2.7.


1.3. Conjuntos Jordan-Mensuráveis 25

1.3 Conjuntos Jordan-Mensuráveis


A teoria desenvolvida no inı́cio deste Capı́tulo é, manifestamente, demasia-
do pobre para esclarecer, de modo satisfatório, a noção de conteúdo de um
conjunto. Afinal de contas, uma região tão simples como um triângulo não
é elementar, e portanto, por enquanto, ainda não definimos rigorosamente a
sua área! Nesta secção, definimos o conteúdo-N para os conjuntos Jordan-
mensuráveis (8 ), que formam uma classe bastante mais extensa do que a
classe dos conjuntos elementares. Veremos que as figuras mais comuns da
geometria elementar, tais como triângulos, cı́rculos, elipses, etc., são exem-
plos de conjuntos Jordan-mensuráveis. Exploramos aqui a aproximação de
conjuntos não-elementares por conjuntos elementares, tal como ilustrado na
figura 1.3.1, para um cı́rculo. Esta ideia, se bem que formalizada por Jor-
dan e Peano apenas no final do século XIX, é, na realidade, uma descoberta
fundamental muito antiga, usualmente atribuı́da a Arquimedes (9 ).

Figura 1.3.1: 2 < π < 4

Se J ⊆ RN é um conjunto arbitrário, mas limitado, então existem sempre


conjuntos elementares K, e U , tais que
K ⊆ J ⊆ U.
Qualquer definição “razoável” do conteúdo de J deve considerar cN (K) e
cN (U ), respectivamente, como aproximações por defeito, e por excesso, de
cN (J). Sendo K e U conjuntos elementares, sabemos de 1.1.11 c) que
K ⊆ J ⊆ U =⇒ K ⊆ U =⇒ cN (K) ≤ cN (U ).
Tomando nesta desigualdade o conjunto U como fixo, e considerando K
como variável, podemos concluir que
cN (U ) é majorante do conjunto {cN (K) : K ∈ E(J)} .
8
De Camille M.E. Jordan (1838 - 1922), matemático francês, professor da Escola
Politécnica de Paris. As ideias apresentadas nesta secção foram, no entanto, introduzidas
pelo matemático italiano Giuseppe Peano, 1858-1932, professor da Universidade de Turim.
9
Arquimedes, matemático e engenheiro, viveu em Siracusa (Sicı́lia) em 287-212 A.C.,
no tempo em que esta cidade era uma colónia grega. Foi, certamente, um dos mais geniais
cientistas de todos os tempos.
26 Capı́tulo 1. Integrais de Riemann

Figura 1.3.2: cN (K) ≤ cN (J) ≤ cN (U ).

Como o supremo de um conjunto é o menor dos seus majorantes, temos,


igualmente,
sup {cN (K) : K ∈ E(J)} ≤ cN (U ) < +∞.
A desigualdade acima é válida para qualquer conjunto elementar U que
contenha J, e, portanto, podemos ainda dizer que

sup {cN (K) : K ∈ E(J)} é minorante de cN (U ) : U ∈ E(RN ), J ⊆ U .




Como o ı́nfimo de um conjunto é o maior dos seus minorantes, temos então

sup {cN (K) : K ∈ E(J)} ≤ inf cN (U ) : U ∈ E(RN ), J ⊆ U .




O supremo e o ı́nfimo mencionados acima merecem designação especial:


Definição 1.3.1 (Conteúdo Interior e Exterior). Sendo J ⊆ RN um con-
junto limitado, definimos o respectivo conteúdo interior, designado cN (J),
e o seu conteúdo exterior, designado cN (J), por
a) cN (J) = sup {cN (K) : K ∈ E(J)}, e

b) cN (J) = inf cN (U ) : U ∈ E(RN ), J ⊆ U .




Notámos acima que, se J ⊆ RN é um conjunto limitado, e K e U são con-


juntos elementares tais que K ⊆ J ⊆ U , então qualquer definição “razoável”
para o conteúdo de J deve conduzir a
1.3.2. cN (K) ≤ cN (J) ≤ cN (U ).
Se estas desigualdades são satisfeitas, então temos, necessariamente,
1.3.3. cN (K) ≤ cN (J) ≤ cN (J) ≤ cN (J) ≤ cN (U ).
O ponto de partida para a teoria de Jordan é a seguinte observação,
genial pela sua simplicidade:

Se os conteúdos interior e exterior de J são iguais, então o


conteúdo do conjunto J só pode ser igual a esse valor comum.

Esta é a ideia formalizada na próxima definição.


1.3. Conjuntos Jordan-Mensuráveis 27

Definição 1.3.4 (Conteúdo de Jordan). (10 ) Se J ⊆ RN é limitado,

a) Dizemos que J é jordan-mensurável se e só se cN (J) = cN (J).

b) Neste caso, o conteúdo de jordan de J designa-se por cN (J), e


define-se por cN (J) = cN (J) = cN (J).

c) A classe dos conjuntos Jordan-mensuráveis de RN designa-se por J (RN ).


Mais geralmente, a classe de todos os subconjuntos Jordan-mensuráveis
de R ⊆ RN designa-se por J (R).

Se o próprio conjunto J referido em 1.3.4 é elementar, é indispensável


verificar que esta definição é compatı́vel com a que apresentámos em 1.1.10
para estes conjuntos. Por outras palavras, é necessário provar que:

• Os conjuntos elementares são Jordan-mensuráveis, e

• O respectivo conteúdo pode ser indistintamente determinado usando


1.1.10 ou 1.3.4.

Para isso, basta notar que, quando J é elementar, podemos tomar sempre
K = J = U . Quando J não é elementar, a definição 1.3.4 pode ser difı́cil de
aplicar directamente, porque exige o cálculo explı́cito dos conteúdos interior
e exterior de J. É frequentemente mais prático utilizar a proposição seguinte:

Teorema 1.3.5. J ∈ J (RN ) se e só se, para qualquer ε > 0,

Existem K, U ∈ E(RN ) tais que K ⊆ J ⊆ U , e cN (U − K) < ε.

K e U podem ser supostos fechados ou abertos, e temos ainda que

cN (J) − ε < cN (K) ≤ cN (J) ≤ cN (U ) < cN (J) + ε.

Demonstração. Supomos que, para qualquer ε > 0, existem conjuntos ele-


mentares K, U tais que

K ⊆ J ⊆ U , e cN (U − K) = cN (U ) − cN (K) < ε.

Como cN (K) ≤ cN (J) ≤ cN (J) ≤ cN (U ), temos

cN (J) − cN (J) ≤ cN (U ) − cN (K) < ε, para qualquer ε > 0.

Como ε é arbitrário, é evidente que cN (J) = cN (J), i.e., J ∈ J (RN ).


Deixamos a conclusão da demonstração para o exercı́cio 9.
10
Esta definição foi primeiro apresentada por Peano, em 1887, num trabalho muito
original, que inclui, igualmente pela primeira vez, as noções de interior, exterior, e fronteira
de um subconjunto de RN , e uma definição, completamente abstracta, de “função aditiva
de conjuntos”. O correspondente artigo de Jordan é de 1892.
28 Capı́tulo 1. Integrais de Riemann

cN (J) − ε cN (J) cN (J) + ε


cN (K) cN (U )

Figura 1.3.3: Aproximação de um conjunto Jordan-mensurável por conjun-


tos elementares.

Concluı́mos que os conjuntos Jordan-mensuráveis são os conjuntos que


podem ser aproximados, por defeito, e por excesso, por conjuntos elementares,
“com erro arbitrariamente pequeno”.

Exemplo 1.3.6.
Um dos problemas originalmente resolvidos por Arquimedes foi o do cálculo da
área da região entre um arco da parábola y = x2 e o eixo dos xx. Mostramos,
aqui, que esta região é Jordan-mensurável, deixando o cálculo da sua área
para o exercı́cio 2. Na verdade, provamos a seguir que a região de ordenadas
de qualquer função monótona é, sempre, Jordan-mensurável, se bem que o
cálculo da respectiva área possa ser um problema de mais difı́cil resolução.

Figura 1.3.4: A região de ordenadas de f é Jordan-mensurável.

Considere-se a figura 1.3.4. A região de ordenadas da função não-negativa f


no intervalo [a, b] é o conjunto

Ω = {(x, y) : a ≤ x ≤ b, 0 < y < f (x)} .


1.3. Conjuntos Jordan-Mensuráveis 29

Supomos, para simplificar, que f é crescente, se bem que o nosso argumento


seja igualmente aplicável, com modificações evidentes, a funções decrescentes.
Dividimos o intervalo [a, b] em n subintervalos de igual comprimento ∆x =
(b−a)
n , utilizando pontos igualmente espaçados a = x0 < x1 < · · · < xn = b.
Definimos intervalos Ik , e rectângulos auxiliares Ak , e Bk , para 1 ≤ k ≤ n, por
Ik = [xk−1 , xk ], Ak = Ik ×]0, f (xk−1 )[, e Bk = Ik ×]0, f (xk )[.
Sejam, finalmente, K e U os conjuntos elementares dados por
n
[ n
[
K= Ak e U = Bk .
k=1 k=1

É claro que K ⊆ Ω ⊆ U , e como a figura 1.3.4 sugere, é fácil provar que


(b − a)
c2 (U ) − c2 (K) = c2 (U − K) = (f (b) − f (a))∆x = (f (b) − f (a)) .
n
Segue-se imediatamente, de 1.3.5, que Ω é Jordan-mensurável.

O argumento anterior pode ser adaptado para provar que triângulos,


cı́rculos, e, em geral, regiões limitadas por cónicas, e/ou segmentos de recta
são Jordan-mensuráveis. O próximo exemplo ilustra o cálculo do compri-
mento de subconjuntos da recta real R.
Exemplo 1.3.7.
Consideramos o conjunto A, definido como se segue:

[ 1 1
A= An , onde An = [ , ].
n=1
2n 2n − 1

A não é elementar, mas é natural aproximá-lo pelos conjuntos elementares


N
[
KN = An , onde é evidente que KN ⊆ A.
n=1

Por outro lado, temos ainda



1 [ 1 1
An ⊆ [0, ] =⇒ An ⊆ [0, ] =⇒ A ⊆ KN ∪ [0, ].
2n − 1 2N + 1 2N + 1
n=N +1

O conjunto UN = KN ∪ [0, 2N1+1 ] é obviamente elementar, e verificámos que


KN ⊆ A ⊆ UN . Temos, ainda,
1 1
c(UN − KN ) = c([0, ]) = → 0, quando N → ∞.
2N + 1 2N + 1
Concluı́mos assim, de 1.3.5, que A é Jordan-mensurável. O seu comprimento
está, portanto, definido por 1.3.4, e é fácil concluir (ver o exercı́cio 6) que

X 1
c(A) = .
n=1
2n(2n − 1)
30 Capı́tulo 1. Integrais de Riemann
[0, 1]
K3
U3

Figura 1.3.5: Aproximação do conjunto A por conjuntos elementares.

O seguinte corolário de 1.3.5 é útil para identificar conjuntos Jordan-


mensuráveis de conteúdo nulo. A respectiva demonstração é o exercı́cio 10.

Corolário 1.3.8. Sendo J ⊆ RN , então J é Jordan-mensurável e cN (J) = 0


se e só se, para qualquer ε > 0, existe um conjunto elementar U tal que

J ⊆ U e cN (U ) < ε.

Exemplo 1.3.9.
Introduzimos aqui um exemplo clássico - o conjunto de Cantor(11 ) - que
utilizaremos repetidas vezes neste texto, directa, e indirectamente. Este con-
junto obtém-se por um engenhoso processo iterativo de divisão de intervalos
em três subintervalos iguais, seguido da remoção do subintervalo médio, como
é sugerido na figura 1.3.6. Suponha-se que I = [a, b] é um qualquer intervalo
F0 = I = [a, b]
F1 = F0 − U0
F2 = F1 − U1
F3 = F2 − U2
F4 = F3 − U3

Figura 1.3.6: A construção de Cantor.

limitado e fechado, e J é o intervalo aberto de comprimento c(I) 3 , centrado no


ponto médio de I. Definimos T (I) = I − J. É claro que T (I) consiste em dois
intervalos limitados e fechados, e c(T (I)) = 32 c(I).
Se E = ∪nk=1 Ik é uma união finita de intervalos limitados e fechados disjuntos
Ik , definimos analogamente T (E) = ∪nk=1 T (Ik ), aplicando a operação T a cada
um dos intervalos Ik que formam I. Temos ainda c(T (E)) = 32 c(E).
O conjunto de Cantor, que designamos C(I), é dado por
∞ 
\ [a, b] , se n = 0,
C(I) = Fn , onde Fn =
T (Fn−1 ) se n > 0.
n=0

11
De Georg F.L. Cantor (1845 - 1918), matemático alemão nascido na Rússia, criador
da Teoria dos Conjuntos. Este conjunto foi introduzido num trabalho de Cantor publicado
em 1883. Note-se que a primeira referência à noção de conteúdo exterior, e mesmo o termo
“conteúdo”, são igualmente de Cantor, e aparecem numa sua publicação de 1884.
1.3. Conjuntos Jordan-Mensuráveis 31

Fn é um conjunto elementar, porque é uma união finita de intervalos limitados


e fechados, e c(Fn ) = (2/3)n . Como, por razões evidentes, temos C(I) ⊆ Fn ,
segue-se do corolário anterior que C(I) é um conjunto Jordan-mensurável de
conteúdo nulo. Deixamos para o exercı́cio 19 verificar que C(I) é um conjunto
fechado, e infinito não-numerável. Note-se igualmente que se Un = Fn − Fn+1 ,
então Un é um conjunto elementar aberto, formado por 2n intervalos, cada um
1
com comprimento 3n+1 . Temos ainda que U = I − C(I) = ∪∞ n=0 Un é uma
união numerável de intervalos abertos disjuntos.

Exemplo 1.3.10.

É relativamente simples indicar conjuntos que não são Jordan-mensuráveis,


e apresentamos a seguir o conjunto de Dirichlet (12 ). Trata-se do con-
junto formado pelos racionais num dado intervalo [a, b], que, para simplificar,
supomos ser o intervalo [0, 1], ou seja, consideramos o conjunto D = Q ∩ [0, 1].
Recordamos, primeiro, que qualquer intervalo aberto não-vazio contém racionais
e irracionais (13 ). Segue-se que, se um conjunto elementar E contém apenas
pontos racionais, ou apenas pontos irracionais, então E não contém nenhum
intervalo aberto não-vazio, e, portanto, tem conteúdo nulo. É, neste caso, um
conjunto finito.
Seja agora D o conjunto de Dirichlet, e K e U conjuntos elementares tais que
K ⊆ D ⊆ U . Repare-se que:

• Como K ⊆ D só contém racionais, temos c(K) = 0, e


• Sendo V = [0, 1]−U o complementar de U em [0, 1], então V é elementar,
e só contém irracionais. V é portanto um conjunto de conteúdo nulo, e
concluı́mos que o conteúdo de U é pelo menos 1.

Segue-se que c(U )−c(K) ≥ 1, e, consequentemente, D não é Jordan-mensurável,


ainda de acordo com 1.3.5.

Indicámos na secção anterior, em 1.1.8, e em 1.1.11, algumas propriedades


elementares básicas das classes E(RN ) e U(RN ), e do conteúdo-N , tal como
o definimos para conjuntos nestas classes. É importante verificar agora que
estas propriedades se mantêm igualmente válidas na classe J (RN ).

Proposição 1.3.11. A classe J (RN ) é uma semi-álgebra, e o conteúdo de


Jordan é aditivo e não-negativo em J (RN ). Em particular, cN é monótono
e subaditivo em J (RN ).
12
Peter Gustav Lejeune Dirichlet (1805-1859), matemático alemão. O exemplo de
Dirichlet original é a função caracterı́stica dos racionais, e foi publicado em 1829.
13
Dizemos que o conjunto S ⊆ RN é denso em RN se e só se qualquer conjunto aberto
não-vazio U ⊆ RN contém pontos de S, i.e., se e só se S = RN . Nesta terminologia, os
conjuntos Q e R − Q são densos em R.
32 Capı́tulo 1. Integrais de Riemann

Demonstração. a) Provamos apenas o fecho da classe J (RN ) em relação à


união, deixando o caso da diferença para os exercı́cios. Dado ε > 0, sabemos
que existem conjuntos KA , KB , UA , UB ∈ E(RN ), tais que

KA ⊆ A ⊆ UA , cN (UA − KA ) < ε, e
KB ⊆ B ⊆ UB , cN (UB − KB ) < ε.

KA ∪ KB e UA ∪ UB são elementares, de 1.1.8, e é fácil mostrar que

KA ∪ KB ⊆ A ∪ B ⊆ UA ∪ UB , e
((UA ∪ UB ) − (KA ∪ KB )) ⊆ (UA − KA )) ∪ (UB − KB )).

Temos de 1.1.11 que

cN ((UA ∪ UB ) − (KA ∪ KB )) ≤ cN (UA − KA )) + cN (UB − KB )) ≤ 2ε.

Como ε é arbitrário, concluı́mos de 1.3.5 que A ∪ B é Jordan-mensurável.


b) Se A e B são disjuntos, os conjuntos KA e KB mencionados acima
são igualmente disjuntos, e portanto, sempre de acordo com 1.1.11, temos

cN (KA ∪ KB ) = cN (KA ) + cN (KB )


≤ cN (A ∪ B) ≤ cN (UA ∪ UB ) ≤ cN (UA ) + cN (UB ).

Notamos finalmente de 1.3.5 que

cN (A) − ε ≤ cN (KA ) ≤ cN (UA ) ≤ cN (A) + ε, e igualmente


cN (B) − ε ≤ cN (KB ) ≤ cN (UB ) ≤ cN (B) + ε.

Podemos assim concluir que

cN (A) + cN (B) − 2ε ≤ cN (A ∪ B) ≤ cN (A) + cN (B) + 2ε.

Como ε é arbitrário, só podemos ter cN (A∪B) = cN (A)+cN (B). É evidente


que o conteúdo de Jordan é não-negativo, e as restantes afirmações seguem-
se de 1.2.6.

Deixamos para o exercı́cio 14 a generalização das proposições 1.1.12 e


1.1.13 aos conjuntos Jordan-mensuráveis, que enunciamos da seguinte forma:

Teorema 1.3.12. Se A ∈ J (RN ) e B ∈ J (RM ), então

a) A × B ∈ J(RN +M ), e cN +M (A × B) = cN (A) × cM (B).

b) Se x ∈ RN então A + x ∈ J (RN ) e cN (A + x) = cN (A).

c) Se C é uma reflexão de A num dos hiperplanos xk = 0, então C ∈


J (RN ), e cN (A) = cN (C).
1.3. Conjuntos Jordan-Mensuráveis 33

Os conjuntos Jordan-mensuráveis podem ser também caracterizados pelo


conteúdo das respectivas fronteiras. Veremos mais adiante que esta condição
é um caso particular de um resultado importante, que relaciona a integra-
bilidade de uma função com o conjunto de pontos onde essa função é des-
contı́nua.
Teorema 1.3.13. Se J ⊂ RN é limitado, então

J ∈ J (RN ) ⇐⇒ cN (∂J) = 0.

Em particular, se J é Jordan-mensurável então cN (J) = cN (int(J)), e se J


é Jordan-mensurável e tem interior vazio então cN (J) = 0.
Demonstração. Supomos que J ⊂ RN é Jordan-mensurável. Dado ε > 0,
existem conjuntos elementares K, e U , tais que

K ⊆ J ⊆ U , e cN (U − K) < ε.

Supomos, sem perda de generalidade, que K é aberto, e U é fechado. Neste


caso, é fácil verificar que

K ⊆ int(J) ⊆ J ⊆ U , donde ∂J ⊆ U − K.

O conjunto U − K é elementar, e cN (U − K) < ε, onde ε é arbitrário. Temos


portanto, de acordo com 1.3.8, que cN (∂J) = 0. Deixamos para o exercı́cio
15 a conclusão desta demonstração.
Exemplos 1.3.14.
1. Note-se do anterior que os conjuntos Jordan-mensuráveis, tal como os conjun-
tos elementares, e os conjuntos em U(RN ), não podem ter, simultaneamente,
interior vazio e conteúdo positivo.
2. Vimos já que o conjunto de Dirichlet não é Jordan-mensurável, mas este facto
pode ser igualmente demonstrado a partir deste resultado. Sendo D = Q∩[0, 1],
e E = [0, 1]−Q, é evidente que [0, 1] = D∪E, e os conjuntos D e E têm, ambos,
interior vazio. Como o intervalo [0, 1] é Jordan-mensurável, e tem conteúdo
1, podemos concluir que D e E não são Jordan-mensuráveis, porque se um
destes conjuntos fosse Jordan-mensurável o outro também o seria (porquê?), e
terı́amos 1 = c([0, 1]) = c(D) + c(E) = 0.

Exercı́cios.

1. Generalize a desigualdade 2 < π < 4 (ver figura 1.3.1) de R2 para RN .

2. Prove que a área da região de ordenadas de f (x) = x2 no intervalo [0, 1] é 31 .


sugestão: Use a identidade:
n
X n3 n2 n
k2 = + + .
3 2 6
k=1
34 Capı́tulo 1. Integrais de Riemann

3. Mostre que qualquer triângulo é Jordan-mensurável, e prove a fórmula usual


para o cálculo da respectiva área.
1
4. Mostre que J = n : n ∈ N é Jordan-mensurável, e tem conteúdo nulo.

5. Suponha que Kn ⊆ J ⊆ Un ⊆ RN , e Kn e Un são elementares. Prove que,


se cN (Un − Kn ) → 0, então J é Jordan-mensurável, e

lim cN (Kn ) = lim cN (Un ) = cN (A).


n→∞ n→∞

6. Considere o exemplo 1.3.7. Mostre que



X 1
c(A) = .
n=1
2n(2n − 1)

7. Seja f : RN → RN dada por f (x) = rx, onde r > 0. Prove que, se


K ⊆ RN é Jordan-mensurável, então f (K) é igualmente Jordan-mensurável, e
cN (f (K)) = rN cN (K).

8. Prove que a área de um cı́rculo de raio r é πr2 , e a área da região limitada


por uma elipse de semi-eixos a e b é πab.

9. Conclua a demonstração do teorema 1.3.5. Porque razão os conjuntos K e


U podem ser supostos abertos ou fechados?

10. Prove o corolário 1.3.8.

11. Mostre que. se J ∈ J (RN ), cN (J) = 0, e K ⊆ J, então K ∈ J (RN ), e


cN (K) = 0.

12. Mostre que, se A ⊆ RN , B ⊆ RM , cN (A) = 0, e A e B são limitados, então


A × B é Jordan-mensurável, e cN +M (A × B) = 0.

13. Conclua a demonstração de 1.3.11.

14. Demonstre o teorema 1.3.12.

15. Conclua a demonstração de 1.3.13. sugestão: Prove que se o rectângulo


R contém pontos interiores e pontos exteriores do conjunto A, então R contém
pontos da fronteira de A.

16. Sendo A ⊆ RN limitado, prove que cN (A) − cN (A) = cN (∂A).

17. Suponha que K ⊆ R2 é Jordan-mensurável, e seja V o sólido de revolução


obtido rodando K em torno do eixo dos xx. Mostre que V é, igualmente,
Jordan-mensurável.
1.4. O Integral de Riemann 35

18. Considere o “paralelepı́pedo”


n P definido pelos vectores oa1 , a2 , · · · , aN em
PN
RN , ou seja, o conjunto P = x = k=1 tk ak : 0 ≤ tk ≤ 1 . Prove que P é
Jordan-mensurável, com cN (P ) = | det(a1 , a2 , · · · , aN )| (o valor absoluto do
determinante da matriz formada pelos vectores a1 , a2 , · · · , aN ).

19. Seja C(I) o conjunto de Cantor, tal como definido no exemplo 1.3.9.
a) Prove que C(I) é um conjunto limitado, e fechado.
b) Verifique que C(I) é Jordan-mensurável, com conteúdo nulo.
c) Mostre que os pontos de C(I) são os pontos de acumulação de C(I),
razão pela qual C(I) se diz um conjunto perfeito(14 ).
d) Prove que C(I) é infinito não-numerável, e não é elementar. sugestão:
Determine uma bijecção entre C(I) e o conjunto das sucessões binárias).

20. Se substituirmos em 1.3.11 os conjuntos Jordan-mensuráveis pelos conjuntos


limitados, e o conteúdo de Jordan pelo conteúdo exterior, quais das conclusões
se mantêm válidas?

1.4 O Integral de Riemann


Como dissémos, o problema da definição do integral de funções está directa-
mente relacionado com o problema da definição do conteúdo de conjuntos.
Dada uma função f : I → R, onde, para simplificar, supomos que I = [a, b]
é um intervalo, sejam Ω+ e Ω− os conjuntos ilustrados na figura 1.4.1, e
dados por

Ω+ = (x, y) ∈ R2 : x ∈ I e 0 < y < f (x) e




Ω− = (x, y) ∈ R2 : x ∈ I e 0 > y > f (x) .




O integral de f , dito unidimensional, ou simples, porque f é função de


uma variável real, e designado usualmente por
Z b Z b Z Z
f (x)dx, f, f (x)dx ou f,
a a I I

é a diferença das áreas, ou conteúdos-2, dos conjuntos Ω+ e Ω− . Estas


ideias generalizam-se facilmente a funções de N variáveis:

Definição 1.4.1 (Região de Ordenadas). Se R ⊆ S ⊆ RN , e f : S → R,


definimos os conjuntos:

• Ω+ N +1 : x ∈ R, 0 < y < f (x) , e



R (f ) = (x, y) ∈ R
14
O ponto x ∈ RN é ponto de acumulação do conjunto A ⊆ RN se e só se qualquer
vizinhança de x contém pontos de A distintos de x. As noções de “ponto de acumulação”
e de “conjunto perfeito” devem-se igualmente a Cantor.
36 Capı́tulo 1. Integrais de Riemann

Rb
Figura 1.4.1: a f (x)dx = c2 (Ω+ ) − c2 (Ω− ).

• Ω− N +1 : x ∈ R, 0 > y > f (x) .



R (f ) = (x, y) ∈ R

A região de ordenadas de f , no conjunto R, é o conjunto

ΩR (f ) = Ω+ −
R (f ) ∪ ΩR (f ).

Neste caso mais geral, devemos ainda ter

= cN +1 (Ω+ −
R
1.4.2. R f (x)dx R (f )) − cN +1 (ΩR (f )).

O integral é agora a diferença dos conteúdos-(N + 1) dos conjuntos Ω+ R


e Ω−R , e diz-se um integral -N . Por exemplo, um integral-2, ou duplo, é a
diferença dos volumes, ou conteúdos-3, dos conjuntos Ω+ R e Ω −
R . De acordo
com 1.4.2, podemos concluir que:

1.4.3. As funções de N variáveis para as quais podemos calcular


o respectivo integral-N são determinadas pelos conjuntos em RN +1
cujo conteúdo-(N + 1) está definido.

Na secção anterior, definimos o conteúdo de conjuntos Jordan-mensurá-


veis. Podemos, agora, definir o integral de funções para as quais os conjuntos
Ω+ −
R e ΩR são Jordan-mensuráveis, i.e., para as quais o conjunto ΩR é Jordan-
mensurável. São estas as funções que se dizem Riemann-integráveis.

Definição 1.4.4 (Integral de Riemann). Seja R ⊆ S ⊆ RN , e f : S → R.

a) f é riemann-integrável (em R) se e só se ΩR (f ) é Jordan-mensu-


rável.
1.4. O Integral de Riemann 37

b) Neste caso, o integral de riemann de f em R é dado por


Z
f = cN +1 (Ω+ −
R (f )) − cN +1 (ΩR (f )).
R

c) O conjunto das funções definidas em R, e Riemann-integráveis em R,


é designado por I(R).
Sublinhe-se que a definição original de Riemann de 1854 é equivalente a
1.4.4, mas distinta desta. Hoje é mais comum definir o integral de Riemann
usando somas de Darboux (15 ), e as noções de integral superior e integral
inferior, estas últimas descobertas por Volterra(16 ). Recorde-se que se a
função f : R → R é limitada no rectângulo R, e P é uma partição de R,
formada por conjuntos não-vazios, tomamos

mr = inf {f (x) : x ∈ r} , Mr = sup {f (x) : x ∈ r} , para qualquer r ∈ P, e


X X
S d (f, P) = mr cN (r), e S d (f, P) = Mr cN (r).
r∈P r∈P

As somas S d (f, P) e S d (f, P) dizem-se, respectivamente, somas superi-


ores e somas inferiores de Darboux, da função f . Em 1881, Volterra
introduziu as noções auxiliares de integral superior, e de integral in-
ferior, definidas como se segue.
Definição 1.4.5 (Integral Superior, Integral Inferior). Seja f limitada em
R, e designe-se por PR a classe deR todas as partiçõesR finitas de R em
rectângulos. Os integrais superior R f , e inferior f , são dados por:
R
Z Z

f = inf S d (f, P) : P ∈ PR , e f = sup {S d (f, P) : P ∈ PR }
R R

As noções de integral superior/inferior são análogas às de conteúdo exte-


rior/interior, que introduzimos na secção 1.3, mas obviamente precederam-
nas no tempo. É aliás muito provável que a definição de Volterra tenha
influenciado as primeiras tentativas de definição de “conteúdo” por parte
de Cantor, e quase certamente inspirou Peano e Jordan, nos trabalhos que
publicaram em 1887 e 1892. Em particular, Peano refere explicitamente o
resultado que indicamos no exercı́cio 11. É relativamente simples provar:
Proposição 1.4.6. Se R é um rectângulo-N , e f : R → R, então as
seguintes afirmações são equivalentes:
15
Jean Gaston Darboux (1842 - 1917), matemático francês, professor na Escola Normal
e na Sorbonne, e um dos principais divulgadores das ideias de Riemann em França. Estas
somas aparecem referidas em trabalhos de vários autores, todos publicados em 1875.
16
Vito Volterra, 1860-1940, matemático italiano. Volterra criou a noção de “funcional”,
e ensinou nas Universidades de Pisa, Turim e Roma. Foi forçado a exilar-se (com 71
anos!), por se recusar a prestar juramento de fidelidade ao regime de Mussolini.
38 Capı́tulo 1. Integrais de Riemann

a) f é Riemann-integrável em R,

b) Para qualquer ε > 0, existe uma partição P de R tal que S d (f, P) −


S d (f, P) < ε.

c)
Z Z Z Z Z
f= f , e neste caso f= f= f.
R R R R R

Deve reconhecer-se em c) o que é actualmente a definição mais “tradi-


cional” para o integral de Riemann. Não é fácil caracterizar de outras formas
mais directas as funções que satisfazem as condições acima mencionadas,
apesar de ser claro que qualquer função Riemann-integrável é limitada, e
tem suporte (17 ) limitado (porquê?). No entanto, e recordando as ob-
servações feitas na secção anterior a propósito do exemplo 1.3.6, quando
mencionámos a parábola y = x2 , podemos concluir imediatamente que
Proposição 1.4.7. Se f é limitada, e monótona, no intervalo limitado I,
então f é Riemann-integrável em I.
Exemplos 1.4.8.
1. A função de Dirichlet dir é a função caracterı́stica (18 ) do conjunto
dos racionais, isto é,

1, quando x ∈ Q,
dir(x) =
0, quando x 6∈ Q.
Deixamos como exercı́cio verificar que esta função não é integrável em nenhum
intervalo I, com c(I) > 0.
2. A função de Riemann(19 ) r é definida como se segue:

 0, quando x 6∈ Q,
r(x) = 1, quando x = 0,
 1 , quando x = p , onde p e q são inteiros primos entre si, e q > 0.
q q

Deixamos também como exercı́cio verificar que r é Riemann-integrável em


qualquer intervalo limitado, apesar de ser descontı́nua em todos os pontos
racionais.

No que se segue, e sendo f : X → R uma função, definimos as suas


partes positiva e negativa, respectivamente f + e f − , por
17
O suporte da função f é o conjunto de pontos onde f é diferente de zero.
18
Se X é um conjunto arbitrário, e A ⊆ X, a função caracterı́stica de A é a função
χA : X → R, que é constante e igual a 1 para x ∈ A, sendo igual a 0 para x 6∈ A.
19
Este exemplo foi na realidade descoberto em 1875 pelo matemático alemão Johannes
Karl Thomae, 1840-1921, professor em Göttingen. Riemann foi no entanto o primeiro
matemático a mostrar que existem funções integráveis descontı́nuas em conjuntos densos,
como é o caso da função r.
1.4. O Integral de Riemann 39

• f + (x) = max {f (x), 0}, e f − (x) = max {−f (x), 0}, donde

• f = f + − f − , e |f | = f + + f − .

As propriedades elementares do integral de Riemann indicadas no próximo


teorema são de natureza geométrica, e reflectem propriedades simples do
conteúdo.

Teorema 1.4.9. Supondo R ⊆ S ⊆ RN , e f, g : S → R, então

a) f é Riemann-integrável em R se e só se f + e f − são Riemann-


integráveis em R, e neste caso
Z Z Z
+
f= f − f −,
R R R

b) Desigualdade triangular: Se f é Riemann-integrável em R, então |f |


é Riemann-integrável em R e
Z Z Z Z
+
| f| ≤ |f | = f + f −,
R R R R

c) Monotonia: Se f e g são Riemann-integráveis em R e f ≤ g então


Z Z
f≤ g,
R R

d) Homogeneidade: Se f é Riemann-integrável em R, e c ∈ R, então cf


é Riemann-integrável em R e
Z Z
(cf ) = c f.
R R

Figura 1.4.2: Regiões de ordenadas de f , f + , f − , e |f |.

Demonstração. Provamos apenas, a tı́tulo de exemplo, a afirmação a). Para


isso, observe-se a figura 1.4.2. É evidente que:
40 Capı́tulo 1. Integrais de Riemann

• Os conjuntos Ω+ + +
R (f ) e ΩR (f ) são iguais, e

• O conjunto Ω+ − −
R (f ) é a reflexão de ΩR (f ) no hiperplano xN +1 = 0.

É, portanto, claro que f é Riemann-integrável, se e só se f + e f − são


Riemann-integráveis, e
Z
f = cN +1 (Ω+ −
R (f )) − cN +1 (ΩR (f ))
R Z Z
+ + + − +
= cN +1 (ΩR (f )) − cN +1 (ΩR (f )) = f − f −.
R R

Exercı́cios.

1. Prove que ΩR (f ) é Jordan-mensurável se e só se os conjuntos Ω+ −


R (f ) e ΩR (f )
são, ambos, Jordan-mensuráveis.

2. MostreR que, se o suporte de f em R é finito, então f é Riemann-integrável


em R e R f = 0.

3. Suponha que o suporte da função f é uma união de conjuntos Jordan-


mensuráveis disjuntos A1 , A2 , · · · , Am em RN , e que f (x) = ak , quando x ∈
Ak . Mostre que
Z m
X
f= ak cN (Ak ).
RN k=1

4. Mostre que a função f (x) = sen( x1 ) é integrável em ]0, 1].

5. Suponha que f está definida em R, R ⊇ S, g é a restrição de f a S, e f (x) = 0


quando x 6∈ S. Mostre que f é integrável em R se e só se g é integrável em S,
e que, neste caso, Z Z
f= g.
R S

6. Prove que se f e g são funções Riemann-integráveis em R, então as funções


m e M definidas por m(x) = min {f (x), g(x)}, e M (x) = max {f (x), g(x)},
são, igualmente, integráveis em R.

7. Suponha que f é Riemann-integrável no conjunto R, e que R é limitado.


Prove que o gráfico de f em R, i.e., o conjunto G = {(x, y) : x ∈ R, y = f (x)},
tem conteúdo nulo. Se o gráfico da função f tem conteúdo nulo, podemos con-
cluir que f é integrável?

8. Seja f Riemann-integrável em RN , a ∈ RN , e b ∈ R. O que pode dizer sobre


a integrabilidade, e o valor dos integrais, das funções dadas por

g(x) = f (x − a), h(x) = bf (x), e u(x) = f (bx)?


1.4. O Integral de Riemann 41

9. Calcule os integrais superior e inferior da função de Dirichlet num qualquer


intervalo limitado I ⊂ R.

10. Demonstre a proposição 1.4.6. Como se pode adaptar 1.4.6 para contemplar
regiões de integração “arbitrárias”?

11. Seja f uma função limitada, definida num rectângulo limitado R. Mostre
que
Z Z
f = cN +1 (Ω+
R ) − cN +1 (Ω−
R ), e f = cN +1 (Ω+ −
R ) − cN +1 (ΩR ).
R R

12. Demonstre as seguintes propriedades da função de Riemann (exemplo 1.4.8.2):


a) Se ε > 0, então o conjunto {x ∈ I : r(x) ≥ ε} é finito.
b) A função de Riemann r é integrável em qualquer intervalo limitado I.
sugestão: Dado ε > 0, e sendo Rε = I × [0, ε], mostre que Rε ∪ ΩI (r)
é um conjunto elementar.
c) A função r é contı́nua em x se e só se x é irracional.

13. Se a função f é Riemann-integrável em R, os respectivos conjuntos de nı́vel,


i.e., os conjuntos {x ∈ R : f (x) = a} são sempre Jordan-mensuráveis? E os
conjuntos {x ∈ R : f (x) > a}?

14. Mostre que o produto de funções Riemann-integráveis é Riemann-integrável.

15. Verifique que a composição de funções Riemann-integráveis não é, sempre,


Riemann-integrável. sugestão: Determine uma função Riemann-integrável f
tal que dir = f ◦ r.

1.4.1 O Espaço das Funções Integráveis


A aditividade do integral em relação à função integranda é a identidade
Z Z Z
(f + g) = f+ g,
R R R
que pressupõe, naturalmente, que se f e g são ambas Riemann-integráveis
em R então a respectiva soma f + g também o é. A aditividade do inte-
gral tem ainda um significado geométrico claro, mas já não é tão simples
de demonstrar a partir de propriedades dos conjuntos Jordan-mensuráveis.
Provamo-la a seguir usando somas de Darboux para as diversas funções in-
tegrandas. No que se segue, o integral definido (de Riemann, em R) é
o funcional φ : I(R) → R, dado por 20
Z
φ(f ) = f.
R
20
A função φ diz-se um funcional, precisamente porque o seu domı́nio é uma classe de
funções. Um funcional é linear se é uma transformação linear de espaços vectoriais.
42 Capı́tulo 1. Integrais de Riemann

Teorema 1.4.10. Sendo R ⊆ RN , e f, g : R → R funções Riemann-


integráveis em R, então f + g é Riemann-integrável em R, e:
Z Z Z
(f + g) = f+ g.
R R R

Temos ainda que I(R) é um espaço vectorial, e o integral definido φ : I(R) →


R é um funcional linear.

Demonstração. Supomos para simplificar que R é um rectângulo limitado.


Se f e g são funções reais definidas pelo menos em A, é evidente que

sup{f (x) + g(x) : x ∈ A} ≤ sup{f (x) : x ∈ A} + sup{g(x) : x ∈ A}.

Resulta imediatamente desta desigualdade que, se P e Q são partições de R


em rectângulos, e R é um seu refinamento comum, então:
Z
(f + g) ≤ S d (f + g, R) ≤ S d (f, R) + S d (g, R) ≤ S d (f, P) + S d (g, Q)
R
R
Como a desigualdade R (f +g) ≤ S d (f, P)+S d (g, Q) é válida para quaisquer
partições P e Q, resulta facilmente que
Z Z Z
(f + g) ≤ f+ g.
R R R

Temos, analogamente, que


Z Z Z
f+ g≤ (f + g), e portanto
R R R

Z Z Z Z Z Z
f+ g≤ (f + g) ≤ (f + g) ≤ f+ g.
R R R R R R

Concluı́mos que, se f e g são integráveis em R, então f + g é também


integrável em R, e Z Z Z
(f + g) = f+ g.
R R R

Combinando este resultado com a propriedade de homogeneidade esta-


belecida em 1.4.9, resulta finalmente que I(R) é um espaço linear(21 ), e φ é
um funcional linear.
21
O conjunto de todas as funções f : X → R, por vezes designado RX , é sempre um
espaço vectorial real, com as operações usuais de soma de funções, e de produto de funções
por números reais, qualquer que seja o conjunto X. Portanto, qualquer subconjunto não
vazio de RX , que seja fechado em relação a estas operações, é um seu subespaço vectorial.
1.4. O Integral de Riemann 43

O funcional ν : I(R) → R, dado por


Z
ν(f ) = kf k1 = |f |
R

tem, também, um papel importante na Análise, porque é frequentemente


utilizado como medida da distância entre funções integráveis f e g, tomando
essa distância como sendo kf − gk1 . Este funcional diz-se a norma L1 de
f , por razões que esclareceremos mais adiante(22 ).

Figura 1.4.3: kf − gk1 é o conteúdo da região entre os gráficos de f e g.

A propriedade de aditividade indicada em 1.4.10 a) pode ser generaliza-


da para quaisquer somas finitas por um argumento elementar de indução.
No entanto, não é facilmente generalizável a séries de funções. A função de
Dirichlet (1.4.8.1) pode ser usada para ilustrar este facto. Sendo q1 , · · · , qn , · · ·
os racionais do conjunto Q ∩ I, onde I = [0, 1], definimos fn : [0, 1] → R por

1, se x = qn , e
fn (x) =
0, se x 6= qn .

Deve ser quase imediatamente óbvio que

• As funções fn são Riemann-integráveis em [0, 1],

• dir(x) = ∞
P
n=1 fn (x) para qualquer x ∈ I, e
P∞ R
• n=1 I fn = 0.

Naturalmente, a série ∞
P R
n=1 I fn não é o integral de Riemann da função
de Dirichlet em I, porque a teoria de Riemann não atribui um integral à
função de Dirichlet em I.
A dificuldade ilustrada neste exemplo resulta de f = ∞
P
n=1 fn poder não
ser Riemann-integrável, mesmo quando as funções fn o são. De um modo
geral, a integrabilidade de Riemann é, efectivamente, demasiado sensı́vel a
operações de passagem ao limite, o que torna a sua aplicação pouco práctica
22
Este funcional é na realidade uma semi-norma no espaço I(R). Veja a este respeito
o exercı́cio 6.
44 Capı́tulo 1. Integrais de Riemann

em questões tecnicamente sofisticadas, mas esta é uma dificuldade que é


minimizada com a introdução do integral de Lebesgue, como veremos.
DeveP também entender-se que a integração termo-a-termo de uma série

f (x) = n=1 fn (x) é, em geral, impossı́vel, mesmo que a função f seja
Riemann-integrável. Esta é no entanto uma dificuldade intrı́nseca à operação
de integração, e não uma deficiência da definição de Riemann. O exemplo
seguinte é particularmente sugestivo.
Exemplo 1.4.11.
2 2 P∞
Seja gn (x) = 2n2 xe−n x , fn (x) = gn+1 (x) − gn (x), e f (x) = n=1 fn (x). A
2
série em causa é telescópica, e portanto f (x) = −2xe−x . A função Gn (x) =
2 2 1 2
−e−n x é uma primitiva de gn , e consequentemente 0 gn (x)dx = 1 − e−n .
R

Concluı́mos que:
Z 1 ∞ Z
X 1
f (x)dx = e−1 − 1, e fn dx = 1 − (1 − e−1 ) = e−1 .
0 n=1 0

Exercı́cios.

1. Sendo R = [0, 1], determine funções fn , gn ∈ I(R), tais que:


Z
a) lim fn (x) = 0, para qualquer x ∈ R, mas lim fn não existe.
n→∞ n→∞ R
Z
b) lim fn = 0, mas lim fn (x) não existe, para nenhum x ∈ R.
n→∞ R n→∞

2. Mostre que a função de Dirichlet dir é dada por:

dir(x) = lim lim (cos m!πx)2n .


m→∞ n→∞

P∞
3. Suponha que a série de potências n=1 an xn converge para |x| < r, e mostre
que esta série pode ser integrada termo-a-termo.
P∞ n
4. A função f (x) = n=0 (−1)
2n int(nx) é Riemann-integrável em [0, 1]? Qual é
o conjunto de pontos onde f é contı́nua?

5. Sendo H a função de Heaviside (a função caracterı́stica do intervalo [0, ∞[),


e Q ∩ [0, 1] = {qn : n ∈ N}, considere-se:

X (−1)n
f (x) = H(x − qn ).
n=1
2n

A função f é Riemann-integrável em [0, 1]? Qual é o seu conjunto de pontos


de descontinuidade?
Recorde que se V é um espaço vectorial real, ou complexo, então uma função
ν : V → R diz-se uma norma se e só se ν tem as seguintes propriedades:
1.4. O Integral de Riemann 45

a) Desigualdade triangular: ν(u+v) ≤ ν(u)+ν(v), para quaisquer vectores


u, v ∈ V,
b) Homogeneidade: ν(αu) = |α|ν(u), para qualquer vector u e escalar α,
c) Positividade: ν(u) ≥ 0, e ν(u) = 0 se e só se u = 0.
Sendo ν uma norma no espaço vectorial V, que se diz neste caso um espaço
vectorial normado, a distância entre vectores u e v em V é definida por
d(u, v) = ν(u − v). Se o funcional ν goza das propriedades acima indicadas,
com a única excepção que existem vectores não-nulos u para os quais ν(u) = 0,
então ν diz-se uma semi-norma.

6. Mostre que o funcional ν(f ) = kf k1 é uma semi-norma em I(R).

1.4.2 Integrais Indefinidos


É usual dizer que a função real de variável real f é um “integral indefinido”
se e só se Z x
f (x) = g(t)dt,
a
onde g é, naturalmente, uma função Riemann-integrável, e.g., num intervalo
[a, b]. A mesma convenção aplica-se a funções de várias variáveis, usando
agora integrais em rectângulos, e.g., quando
Z xZ y
F (x, y) = G(s, t)dsdt.
a b
Introduzimos aqui uma ideia ligeiramente mais geral, que corresponde a con-
siderar o integral indefinido como uma função de conjuntos, cuja variável
independente é uma região de integração “arbitrária”, que em particular não
é necessariamente um intervalo ou um rectângulo. Mais especificamente, e
dada uma qualquer função f : R → R, consideramos a classe dos subconjun-
tos de R onde f é Riemann-integrável, que designamos por Jf (R), notamos
que Jf (R) nunca é uma classe vazia (porquê?), e introduzimos
Definição 1.4.12 (Integral Indefinido). O integral indefinido (de Rie-
mann) de f em R é a função de conjuntos λ : Jf (R) → R dada por:
Z
λ(E) = f.
E
Se a função f é Riemann-integrável em R, é fácil verificar que f é igual-
mente integrável pelo menos em qualquer subconjunto Jordan-mensurável
de R, i.e., Jf (R) ⊇ J (R).
Teorema 1.4.13. Seja R ⊆ RN , e f : R → R uma função Riemann-
integrável em R. Se E ⊆ R é Jordan-mensurável, então f é Riemann-
integrável em E, e Z Z
f= f χE .
E R
46 Capı́tulo 1. Integrais de Riemann

Figura 1.4.4: ΩE (f ) = ΩR (f ) ∩ (E × J) = ΩR (f χE ).

Demonstração. A função f é limitada em R, i.e., existe m ∈ R tal que


−m < f (x) < m. Se J = [−m, m], então E ×J é Jordan-mensurável, porque
é um produto de conjuntos Jordan-mensuráveis (veja-se 1.3.12). Deve ser
evidente que
ΩE (f ) = ΩR (f ) ∩ (E × J) = ΩR (f χE ).
O conjunto ΩR (f ) ∩ (E × J) é, portanto, Jordan-mensurável, porque é a
intersecção de conjuntos Jordan-mensuráveis (1.3.11). Por outras palavras,
f é Riemann-integrável em E, e é óbvio que
Z Z
f= f χE .
E R

Podemos, agora, generalizar a qualquer integral indefinido, os resultados


indicados, em 1.3.11, para o conteúdo de Jordan.
Teorema 1.4.14. Jf (R) é uma semi-álgebra, e λ é aditivo em Jf (R). Se
f (x) ≥ 0 para x ∈ R, então λ é não-negativo, monótono, e subaditivo.
Demonstração. Tal como fizémos em 1.3.11, verificamos apenas, a tı́tulo de
exemplo, que a classe Jf (R) é fechada em relação à união, e provamos a
aditividade de λ. Sendo C = A ∪ B, onde A, B ∈ Jf (R), temos então que
(ver Figura 1.4.5):
• f é Riemann-integrável em A, e em B, i.e., os conjuntos ΩA (f ), e
ΩB (f ) são Jordan-mensuráveis.
• O conjunto ΩC (f ) = ΩA (f )∪ΩB (f ) é, igualmente, Jordan-mensurável.
• Portanto, f é Riemann-integrável em C, i.e., C ∈ Jf (R).
Se A e B são disjuntos, então Ω+ +
A (f ) e ΩB (f ) são igualmente disjuntos,
assim como Ω− −
A (f ) e ΩB (f ). Como o conteúdo de Jordan é aditivo, temos

cN +1 (Ω+ + + + +
C (f )) = cN +1 (ΩA (f ) ∪ ΩB (f )) =cN +1 (ΩA (f )) + cN +1 (ΩB (f )), e
cN +1 (Ω− − − − −
C (f )) = cN +1 (ΩA (f ) ∪ ΩB (f )) =cN +1 (ΩA (f )) + cN +1 (ΩB (f )).
1.4. O Integral de Riemann 47

Subtraindo estas identidades, concluı́mos que λ(C) = λ(A) + λ(B).

Figura 1.4.5: Regiões de ordenadas em A, B e A ∪ B.

A região de ordenadas de uma função caracterı́stica χE é o produto


cartesiano E×]0, 1[. Se E ⊆ R ⊆ RN é Jordan-mensurável, temos portanto:
Z
χE = cN +1 (E×]0, 1[) = cN (E) × 1 = cN (E).
R

Esta observação sugere o seguinte resultado, que é aliás muito fácil de provar:
Teorema 1.4.15. O conteúdo-N é o integral indefinido da função f iden-
ticamente igual a 1 no conjunto RN .
O teorema acima é de uma simplicidade quase trivial, mas encerra uma
ideia que complementa, de forma muito interessante, o que dissemos em
1.4.3. De um ponto de vista intuitivo, e como a identidade cN +1 (ΩR ) =
cN (E) × 1 = cN (E) deve ser sempre válida, é também natural esperar que
a seguinte identidade seja sempre válida:
Z
cN (E) = χE .
R

Por outras palavras, determinar o conteúdo-N do conjunto E deve ser equi-


valente a determinar o integral-N da respectiva função caracterı́stica χE , e,
portanto, também é verdade que

1.4.16. Os conjuntos em RN para os quais podemos calcular o res-


pectivo conteúdo-N são determinados pelas funções (de N variáveis)
cujo integral-N está definido.

Exemplos 1.4.17.
1. A teoria desenvolvida até aqui não atribui um integral à função de Dirichlet,
por exemplo, quando a região de integração é o intervalo [0, 1]. De forma
equivalente, não atribui um comprimento ao conjunto Q ∩ [0, 1], formado pelos
racionais do mesmo intervalo.
48 Capı́tulo 1. Integrais de Riemann

2. Recorde-se, do exemplo 1.3.7, e do exercı́cio 6 da secção anterior, que se


∞ ∞
[ 1 1 X 1
A= [ , ], então A ∈ J (RN ), e c(A) = .
n=1
2n 2n − 1 n=1
2n(2n − 1)
Portanto, se f é a função caracterı́stica do conjunto A, temos igualmente

1
Z X
f= .
R n=1
2n(2n − 1)

Exercı́cios.

1. Complete a demonstração da proposição 1.4.14.

2. Suponha que f é Riemann-integrável no conjunto R, e que g é limitada em


R. Mostre que, se o conjunto
R {x
R ∈ R : f (x) 6= g(x)} tem conteúdo nulo, então
g é integrável em R, e R f = R g.

3. Complete a demonstração da proposição 1.4.15.

1.4.3 Continuidade e Integrabilidade


Desde cedo se suspeitou que a integrabilidade no sentido de Riemann de uma
função limitada depende fortemente da “extensão” do conjunto de pontos
onde a função é descontı́nua. Por outras palavras, se f : R → R é limitada
num rectângulo compacto R, e descontı́nua apenas em S ⊂ R, onde S é
“pequeno”, esperava-se que f fosse integrável em R. O exemplo de Riemann
1.4.8.2 mostra no entanto que não é fácil tornar rigorosa esta ideia. Afinal de
contas, a função de Riemann é descontı́nua no conjunto dos racionais, que
não é Jordan-mensurável. Por outro lado, o conjunto dos racionais é denso
em R, e era também opinião corrente entre muitos matemáticos que qualquer
teoria razoável sobre a “extensão” de conjuntos devia considerar os conjuntos
densos como “grandes”. Não é por isso surpreendente que o esclarecimento
da relação entre continuidade e integrabilidade tenha sido uma fonte de tra-
balhos inovadores, que revelaram muitas das pistas conduzindo à moderna
teoria da medida.
Supomos aqui conhecida a noção de “conjunto compacto”, e a seguinte
famosa caracterização dos conjuntos compactos em RN :
Teorema 1.4.18 (Heine-Borel). (23 )O conjunto K ⊆ RN é compacto se e
23
Heinrich Eduard Heine, matemático alemão, 1821-1881, referiu pela primeira vez a
ideia subjacente a este teorema, ao provar que uma função contı́nua num intervalo limitado
e fechado é uniformemente contı́nua. Félix Edouard Justine Émile Borel, matemático
e polı́tico francês, 1871-1956, deixou uma obra muita extensa, e foi um dos principais
criadores da Teoria da Medida. Borel introduziu este teorema, em 1895. O teorema de
Heine-Borel, na sua forma actual, em RN , foi apresentado por Vitali, em 1905, num dos
principais artigos sobre a moderna teoria da integração.
1.4. O Integral de Riemann 49

só se é limitado e fechado. Em particular, os rectângulos compactos são os


rectângulos limitados e fechados.

É conveniente introduzir a noção de oscilação de uma função. Seja


R ⊆ RN , e f : R → R limitada em R. A função f tem supremo e ı́nfimo
finitos em qualquer conjunto S ⊆ R, e designamos por Oscf a função (de
conjuntos) dada por:

1.4.19. Oscf (S) = sup {f (x) : x ∈ S} − inf {f (x) : x ∈ S}.

Se x ∈ R, a função φ(x, r) = Oscf (B(x, r) ∩ R) está definida para r > 0.


É óbvio que se S ⊆ T , então Oscf (S) ≤ Oscf (T ), e por isso φ é crescente
em r. Em particular, existe sempre o limite:

Definição 1.4.20 (Oscilação de uma função limitada). Se f : R → R é uma


função limitada, a sua oscilação é a função ωf : R → R dada por:

ωf (x) = lim φ(x, r) = lim Oscf (B(x, r) ∩ R).


r→0 r→0

Note-se para posterior referência que definimos igualmente:

lim sup f (y) = lim sup {f (z) : z ∈ B(x, r) ∩ R} , e


y→x r→0

lim inf f (y) = lim inf {f (z) : z ∈ B(x, r) ∩ R} .


y→x r→0

Exemplos 1.4.21.
1. Se f (x) = x, então Oscf (B(x, r)) = 2r, e

ωf (x) = lim Oscf (B(x, r)) = 0.


r→0

2. Se f é a função de Dirichlet, e I é um conjunto aberto não-vazio, temos


sup {f (x) : x ∈ I} = 1, e inf {f (x) : x ∈ I} = 0. Concluı́mos que Oscf (I) = 1,
e ωf (x) = 1, para qualquer x ∈ R.

3. Se f é uma função limitada, então:

ωf (x) = lim sup f (y) − lim inf f (y).


y→x y→x

A demonstração das seguintes propriedades fica como exercı́cio.

Lema 1.4.22. Se R ⊆ RN , e f : R → R é limitada em R, então:

a) f é contı́nua em x se e só se ωf (x) = 0, e

b) Se U é aberto, e x ∈ U , então ωf (x) ≤ Oscf (U ∩ R).


50 Capı́tulo 1. Integrais de Riemann

Se f : R → R é uma função limitada num rectângulo-N compacto, e D


é o seu conjunto de pontos de descontinuidade, então segue-se de 1.4.22 que
∞  
[ 1
D= Dn , onde Dn = x ∈ R : ωf (x) ≥ .
n
n=1

A condição de integrabilidade indicada abaixo está enunciada em termos


dos conjuntos Dn . Mostra que o conjunto de pontos de descontinuidade de
uma função Riemann-integrável não é necessariamente Jordan-mensurável,
mas é, sempre, uma união numerável de conjuntos de conteúdo nulo.
Teorema 1.4.23 (Integrabilidade e Continuidade). Se f : R → R é limitada
no rectângulo-N compacto R, as seguintes afirmações são equivalentes:
a) f é Riemann-integrável em R, e

b) Os conjuntos Dn são Jordan-mensuráveis, e têm conteúdo nulo.


Demonstração. a) =⇒ b): supomos ε > 0, e consideramos o conjunto
{x ∈ R : ωf (x) ≥ ε}. Dado δ > 0, e como f é integrável, existe uma partição
P de R tal que S(f, P) − S(f, P) < εδ. Deve ser claro que, se r ∈ P, então

x ∈ int(r) =⇒ ωf (x) ≤ Oscf (int(r)) ≤ Oscf (r) = Mr − mr .

Designamos por A a famı́lia dos rectângulos r ∈ R tais que Mr − mr < ε, e


B = P − A. Consideramos os conjuntos:
[ [
U= int(r), V = R − U, W = r.
r∈A r∈B

Observamos que:
• x ∈ U =⇒ ωf (x) < ε, donde {x ∈ R : ωf (x) ≥ ε} ⊆ V , e
P
• cN (V ) = cN (W ) = r∈B cN (r) (porquê?).
Por outro lado,
X
εδ > S(f, P) − S(f, P) ≥ S(f, B) − S(f, B) ≥ εcN (r) = εcN (V ).
r∈B

Concluı́mos que o conjunto elementar V tem conteúdo cN (V ) < δ. Como


V ⊇ {x ∈ R : ωf (x) ≥ ε}, segue-se que cN ({x ∈ R : ωf (x) ≥ ε}) = 0.
Para provar a implicação b) =⇒ a), estabelecemos primeiro o seguinte
resultado auxiliar:
Lema 1.4.24. Se ωf < ε em T ⊆ R, e T é um conjunto elementar limitado
e fechado, então existe uma partição P de T em subrectângulos tais que

S(f, P) − S(f, P) < εcN (T ).


1.4. O Integral de Riemann 51

Demonstração. De acordo com a definição 1.4.20,


∀x∈T ∃ρx >0 0 < ρ < ρx ⇒ Oscf (B(x, ρ) ∩ T ) < ε.
A famı́lia de bolas abertas B(x, ρ2x ) é uma cobertura de T . Como T é
compacto, existe uma subfamı́lia finita de bolas centradas em x1 , x2 , · · · , xn ,
que é, ainda, uma cobertura de T . Tomando

x1 ρx2 ρx o
δ = min , ,··· , n ,
2 2 2
é claro que existe uma partição P de T , com diam(P) < δ.
ρ
Fixado r ∈ P, e x ∈ r, existe xi tal que x ∈ B(xi , 2xi ). Para qualquer
y ∈ r, temos então
ky − xi k ≤ ky − xk + kx − xi k < ρxi , i.e., r ⊆ B(xi , ρxi ).
Concluı́mos que Oscf (r) < ε, ou Mr − mr < ε, e portanto
X
S(f, P) − S(f, P) = (Mr − mr )cN (r) < εcN (r).
r∈R

Para concluir a demonstração de 1.4.23, supomos que todos os conjun-


tos Dn têm conteúdo nulo. Fixado n, e dado δ > 0, existe um conjunto
elementar aberto U tal que Dn ⊆ U , e cN (U ) < δ.
Considere-se o conjunto elementar fechado T = R − U , e note-se como
evidente que ωf (x) < n1 para x ∈ T . Segue-se do lema 1.4.24 que existe
uma partição P de T em subrectângulos tais que
S(f, P) − S(f, P) < εcN (T ).
Como f é limitada, existe M tal que |f (x)| ≤ M para x ∈ R. Sendo Q
uma qualquer partição de U , e r ∈ Q, é óbvio que −M ≤ mr ≤ Mr ≤ M .
Notamos que R = P ∪ Q é uma partição de R, e um cálculo imediato mostra
que
S(f, R) − S(f, R) =S(f, P) − S(f, P) + S(f, Q) − S(f, Q)
1 1
≤ cN (T ) + 2M cN (U ) ≤ cN (R) + 2M δ.
n n
Como δ e n são arbitrários, concluı́mos que f é Riemann-integrável.

Repare-se agora que se f é Riemann-integrável em R, então os conjuntos


Dn são Jordan-mensuráveis, e têm conteúdo nulo. Se ε > 0, existem con-
juntos elementares En ⊇ Dn , tais que cN (En ) < 2εn , e podemos supor sem
perda de generalidade que os conjuntos En são abertos. Temos então:
∞ ∞ ∞
[ X X ε
D⊆ En , e cN (En ) < = ε.
2n
n=1 n=1 n=1
52 Capı́tulo 1. Integrais de Riemann

Foi a propósito de conjuntos com esta propriedade que Borel introduziu24 a


noção de conjunto de medida nula, ou conjunto nulo:
Definição 1.4.25 (Conjunto Nulo). Dizemos que E ⊆ RN é um conjunto
nulo se e só se para qualquer ε > 0 existem rectângulos abertos Rn tais
que:

[ ∞
X
E⊆ Rn , e cN (Rn ) < ε.
n=1 n=1

Exemplos 1.4.26.
1. Se f é Riemann-integrável em R, então o conjunto D dos pontos de descon-
tinuidade de f é, evidentemente, um conjunto nulo.
2. Qualquer conjunto numerável E é nulo, e em particular Q é nulo. Sendo
x1 , x2 , · · · , xn , · · · os elementos de E, e dado ε > 0, tomamos 0 < ε′ < ε, e,
supondo para simplificar que E ⊂ R,
∞ ∞
ε′ ε′ [ X
Un =]xn − , xn + [, donde E ⊆ Un , e c(Un ) = ε′ < ε.
2n+1 2n+1 n=1 n=1

É claro que qualquer conjunto Jordan-mensurável de conteúdo nulo é


nulo no sentido de Borel, mas o exemplo do conjunto dos racionais mostra
que existem conjuntos nulos no sentido de Borel que não são Jordan-men-
suráveis. A este respeito, registamos que
Proposição 1.4.27. Se K ⊂ RN é compacto, então K é nulo no sentido
de Borel se e só se K é Jordan-mensurável, e cN (K) = 0.
Demonstração. Suponha-se que K é compacto e nulo no sentido de Borel, e
seja ε > 0. Existem rectângulos abertos Rn tais que

[ ∞
X
K⊆ Rn , e cN (Rn ) < ε.
n=1 n=1

Como K é compacto e os Rn ’s são abertos, existe um natural m tal que


m
[ m
X ∞
X
K⊆ Rn , e cN (Rn ) ≤ cN (Rn ) < ε.
n=1 n=1 n=1

É evidente que ∪m
n=1 Rn é elementar, e segue-se imediatamente que K é
Jordan-mensurável e tem conteúdo nulo.

Lebesgue introduziu a sugestiva convenção de usar a expressão “quase em


toda a parte”, abreviado “qtp”, como sinónimo de “excepto num conjunto
nulo”. Nesta terminologia, o teorema 1.4.23 enuncia-se de forma sucinta:
24
Em 1895, no artigo que já referimos a propósito do teorema de Heine-Borel.
1.4. O Integral de Riemann 53

Teorema 1.4.28 (Integrabilidade e Continuidade). Se f : R → R é limitada


no rectângulo-N compacto R, então

f é Riemann-integrável em R ⇐⇒ f é contı́nua qtp em R.

Demonstração. Resta-nos provar que se o conjunto D dos pontos de descon-


tinuidade é nulo, então f é Riemann-integrável. Recorde-se que
∞  
[ 1
D= Dn , onde Dn = x ∈ R : ωf (x) ≥ .
n
n=1

Os conjuntos Dn são igualmente nulos, por razões evidentes, e é fácil verificar


que são limitados e fechados, i.e., compactos (exercı́cio 3). Segue-se de 1.4.27
que Dn tem conteúdo nulo, e de 1.4.23 que f é Riemann-integrável.

Terminamos esta secção com uma breve análise da definição de integral


introduzida por Riemann em 1854. Fixada a partição P do rectângulo R,
se escolhermos, em cada rectângulo r, um ponto xr ∈ r, e escrevendo X =
{xr : r ∈ P}, então
X
SR (f, P, X ) = f (xr )cN (r)
r∈P

diz-se uma soma de riemann. A definição original de Riemann, de 1854,


é a seguinte(25 ):
Definição 1.4.29 (Integral de Riemann). Supondo que R é um rectângulo,
e f : R → R é limitada, então f é integrável (em R) se e só se existe α ∈ R
tal que SR (f, P, X ) → α, quando diam(P) → 0. Neste caso,
Z
f = α.
R

A definição de Riemann é, por sua vez, uma generalização de uma prévia
definição, formulada por Cauchy(26 ), em 1821, mas apenas para funções
contı́nuas f : [a, b] → R. Dada uma partição P de [a, b], determinada
por pontos a = x0 < x1 < · · · < xn = b, Cauchy demonstrou que, se
xk−1 ≤ x∗k ≤ xk , então existe α ∈ R tal que
n
X
f (x∗k )(xk − xk−1 ) → α, quando diam(P) → 0.
k=1
25
Neste como em muitos outros casos que temos referido, os trabalhos originais con-
templam apenas funções reais definidas em intervalos. Os integrais múltiplos só foram
estudados com rigor bastante mais tarde, em particular por Jordan.
26
Augustin Louis Cauchy, 1789-1857, francês, foi um dos grandes matemáticos de sem-
pre, como o atesta o facto do seu nome aparecer ligado a ideias fundamentais, em tantos
domı́nios distintos. O matemático Abel, que Cauchy tratou de forma particularmente
injusta, disse dele que “é louco, mas é o único que sabe como se deve fazer a Matemática”.
54 Capı́tulo 1. Integrais de Riemann

O valor de α define assim o integral de f . Na terminologia de Riemann,


podemos dizer que Cauchy demonstrou que as funções contı́nuas em interva-
los limitados e fechados são Riemann-integráveis. Em certo sentido, também
é verdade que Riemann se limitou a considerar a classe de todas as funções
às quais a definição de Cauchy poderia ser aplicável, uma generalização que
hoje nos pode parecer pouco significativa. Mas ao fazê-lo, levou a discussão
sobre as noções básicas da Análise, incluindo a própria ideia de “função”,
a nı́veis superiores de abstracção e rigor. Pelo menos por esta razão, foi
certamente um importante factor de progresso e renovação na Matemática
da segunda metade do século XIX.
Exercı́cios.

1. Calcule a oscilação da função de Riemann.

2. Considere a função f , dada por:


(
sen( sen(1 1 ) ), quando x 6= 0, e sen( x1 ) 6= 0,
f (x) = x .
0, em todos os outros casos

Calcule a oscilação ωf . A função f é integrável em [0, 1]?

3. Mostre que se f é limitada no rectângulo fechado R, então {x ∈ R : ωf (x) ≥ ε}


é fechado.

4. Mostre que o teorema 1.3.13 é um caso particular do teorema 1.4.23.

5. Prove que, se f é contı́nua no conjunto Jordan-mensurável fechado J, então


f é integrável em J.

6. Prove que, se f é limitada no rectângulo compacto R, então


Z Z Z
f− f= ωf .
R R R

7. Seja f : R → R uma função, D o conjunto de pontos onde f é descontı́nua,


e U um conjunto aberto em R. Prove que f −1 (U ) = (R ∩ V ) ∪ N , onde V é
aberto, e N ⊆ D.

8. Prove que se os conjuntos An ⊂ RN são nulos no sentido de Borel, então


A = ∪∞n=1 An é igualmente nulo.

R
9. Prove que se f ≥ 0 e R f = 0, então f (x) = 0, qtp em R. sugestão:
Mostre que An = {x ∈ R : f (x) > n1 } é nulo no sentido de Borel.

10. Mostre que a definição (original) de integral de Riemann (1.4.29) é equiva-


lente a (1.4.4).
1.5. Os Teoremas Fundamentais do Cálculo 55

1.5 Os Teoremas Fundamentais do Cálculo


As operações de integração e de diferenciação são inversas uma da outra.
Esta ideia central da Análise, vislumbrada já por alguns dos precursores de
Newton e Leibnitz, é tradicionalmente descrita em dois resultados, ditos os
Teoremas Fundamentais do Cálculo. De forma por enquanto pouco precisa,
estes teoremas reduzem-se aos seguintes enunciados, que descrevem respec-
tivamente a diferenciação de um integral, e a integração de uma derivada.
1.5.1 (1o Teorema Fundamental do Cálculo).
Z x
d
f (t)dt = f (x)
dx a
1.5.2 (2o Teorema Fundamental do Cálculo, ou Regra de Barrow(27 )).
Z x
dF
dt = F (x) − F (a)
a dt

Figura 1.5.1: Os Teoremas Fundamentais do Cálculo.

Nenhum destes resultados é particularmente surpreendente de um ponto


de vista intuitivo. Supondo
Z x
F (x) = f (t)dt, e h > 0,
a
então devemos ter
Z x+h
F (x + h) − F (x) = f (t)dt ≃ f (x)h,
x

donde F ′ (x) = limh→0 F (x+h)−F


h
(x)
= f (x). Analogamente, se F ′ (t) = f (t)
e a = x0 < x1 < · · · < xn = x é uma partição do intervalo [a, x], então
X n Xn Z x
F (x) − F (a) = [F (xk ) − F (xk−1 )] ≃ f (xk−1 )∆xk ≃ f (t)dt.
k=0 k=0 a

27
De Isaac Barrow, 1630-1677, o primeiro professor da Universidade de Cambridge
nomeado para a Cátedra Lucasiana. Barrow tomou a extraordinária iniciativa de se demi-
tir, para dar o lugar ao seu aluno Newton, em quem justamente reconhecia qualidades
excepcionais.
56 Capı́tulo 1. Integrais de Riemann

Não é difı́cil demonstrar resultados deste tipo usando a teoria de Riemann,


desde que se coloquem suficientes hipóteses sobre a regularidade das funções
f e F . Começamos por provar:
Lema 1.5.3.
Rx Seja f Riemann-integrável em I = [a, b], e F dada em I por
F (x) = a f (t)dt + F (a). Temos então:
a) F é uniformemente contı́nua em I, e

b) Se f é contı́nua em c ∈ I então F ′ (c) = f (c).


Demonstração. A função F está bem definida, porque f é integrável em
[a, x] ⊆ [a, b]. Como f é limitada em I, i.e., |f (x)| ≤ M , e supondo y > x,
é claro que
Z y Z y

|F (y) − F (x)| =
f (t)dt ≤ |f (t)|dt ≤ M |y − x|,
x x

e concluı́mos que F é uniformemente contı́nua em I.


Se f é contı́nua em c ∈ [a, b], então

(1.5.1) ∀ε>0 ∃δ>0 ∀x∈I |x − c| < δ ⇒ |f (x) − f (c)| < ε.

Tomando x > c para simplificar, observamos que temos


Z x Z x
1
f (c) = f (c)dt e F (x) − F (c) = f (t)dt.
x−c c c

Um cálculo simples mostra que


Z x Z x
F (x) − F (c) 1 1
| − f (c)| = | f (t)dt − f (c)| ≤ |f (t) − f (c)|dt.
x−c x−c c |x − c| c

De acordo com (1.5.1), temos, claramente,


Z x
1
|x − c| < δ =⇒ |f (t) − f (c)|dt < ε.
|x − c| c

Podemos assim reescrever (1.5.1) como se segue:

F (x) − F (c)
∀ε>0 ∃δ>0 ∀x∈I |x − c| < δ ⇒ | − f (c)| < ε.
x−c
Por outras palavras,
F (x) − F (c)
lim = f (c), ou F ′ (c) = f (c).
x→c x−c

Combinando este lema com o teorema 1.4.28, obtemos imediatamente:


1.5. Os Teoremas Fundamentais do Cálculo 57

Teorema 1.5.4 (1o Teorema Fundamental do CálculoR (I)). Se f é Riemann-


x
integrável em I = [a, b], e F é dada em I por F (x) = a f (t)dt+F (a), então

F é contı́nua em I, e F (x) = f (x), qtp em I.

É mais difı́cil identificar hipóteses igualmente “naturais” para o 2o Teo-


rema Fundamental, e esta questão tem sido uma fonte de problemas sofisti-
cados muito interessantes. Demonstramos a seguir uma versão do 2o Teo-
rema que está longe de ser o converso de 1.5.4, porque não contempla a
possibilidade de F não ser diferenciável num conjunto “excepcional”.

Teorema 1.5.5 (2o Teorema Fundamental do Cálculo (I)). Se F é contı́nua


em I = [a, b], e diferenciável em ]a, b[, onde F ′ = f , e f é Riemann-
integrável em I, então
Z x
f (t)dt = F (x) − F (a).
a

Demonstração. Dada uma qualquer partição de [a, b] em intervalos Ik , onde


supomos que Ik tem extremos xk−1 < xk , e a = x0 < x1 < · · · < xn = x,
observamos que
n
X
F (x) − F (a) = [F (xk ) − F (xk−1 )],
k=0

porque a soma à direita é telescópica. Do Teorema de Lagrange (28 ), temos


F (xk ) − F (xk−1 ) = F ′ (x∗k )(xk − xk−1 ), onde xk−1 < x∗k < xk , e portanto

n
X
F (x) − F (a) = f (x∗k )(xk − xk−1 ).
k=0

F (x) − F (a) é assim uma soma de Riemann da função f , e é claro que

S d (f, P) ≤ F (x) − F (a) ≤ S d (f, P).

Como a partição P é arbitrária, podemos concluir imediatamente que


Z x
F (x) − F (a) = f (t)dt.
a

28
Se F é contı́nua em [a, b] e diferenciável em ]a, b[, existe c tal que a < c < b e
F (b) − F (a) = F ′ (c)(b − a). Este teorema tem o nome de Joseph-Louis Lagrange, (1736-
1813), matemático francês de origem italiana, um dos primeiros professores das Escolas
Politécnica e Normal de Paris.
58 Capı́tulo 1. Integrais de Riemann

Sublinhe-se que a hipótese de integrabilidade de f é indispensável neste


teorema. O próximo exemplo ilustra esta observação, porque exibe uma
função f que tem uma primitiva contı́nua, mas que não é integrável. Note-
se que, por esta razão, a integração e a diferenciação não são exactamente
operações inversas uma da outra, e a operação de integração é distinta da
operação de primitivação.
Exemplo 1.5.6.
Definimos g : R → R por g(x) = x2 sen( x12 ) para x 6= 0, e g(0) = 0. A função
g é diferenciável em R, e a sua derivada é dada por
1 2 1
g ′ (x) = 2x sen( ) − cos( 2 ), para x 6= 0, e g ′ (0) = 0.
x2 x x
A função g é diferenciável em R, mas o integral da sua derivada f = g ′ não pode
ser calculado usando a regra de Barrow em qualquer intervalo que contenha
a origem, porque f é ilimitada nesse intervalo, e portanto não é Riemann-
integrável.

De um ponto de vista “prático”, é evidentemente muito útil poder aplicar


o 2o Teorema, sem supormos a função F diferenciável em todos os pontos
do intervalo I. Afinal de contas, a regra de Barrow é certamente aplicável,
em pelo menos alguns destes casos.
Exemplos 1.5.7.
1. Seja f (x) = sgn(x) a função sinal de x, dada por

+1 para x > 0, e
sgn(x) =
−1 para x < 0.

A função f não é contı́nua na origem, qualquer que seja o valor f (0), mas f é
integrável em qualquer intervalo [a, b]. Sendo FR(x) = |x|, então F é diferenciá-
x
vel para x 6= 0, onde F ′ (x) = sgn(x), e F (x) = a f (t)dt + F (a) para qualquer
x.

2. Se f é a função de Riemann, e F = 0, então F é diferenciável em R, mas



R x(x) = f (x) apenas se x 6∈ Q. Apesar disso, temos novamente F (x) =
F
a
f (t)dt + F (a), para qualquer x. Note-se deste exemplo que a continuidade
da integranda é uma condição suficiente, mas não necessária, para a diferen-
ciabilidade do integral indefinido.

É simples generalizar o teorema 1.5.5 para o caso em que a igualdade


F ′ (x) = f (x) falha apenas num conjunto finito de pontos, o que bem en-
tendido é suficiente para justificar cálculos elementares como os referidos no
exemplo 1.5.7.1. Deixamos para o exercı́cio 2 a demonstração da seguinte
versão do 2o Teorema.
1.5. Os Teoremas Fundamentais do Cálculo 59

Teorema 1.5.8 (2o Teorema Fundamental do Cálculo (II)). Se F é contı́nua


em I = [a, b], f é Riemann-integrável
Rx em I, e F ′ (t) = f (t), excepto num
conjunto finito D, então F (x) = a f (t)dt + F (a).

No entanto, e para que o 2o Teorema Fundamental se converta num ver-


dadeiro converso do 1o Teorema na forma 1.5.4, é claro que as suas hipóteses
só podem incluir

• A continuidade de F ,

• A integrabilidade de f , e

• A igualdade F ′ = f , mas apenas suposta satisfazer-se qtp.

O exemplo seguinte revela que estas hipóteses são insuficientes.


Exemplo 1.5.9.
A função aqui definida, a chamada “escada do diabo”, ou função de can-
tor, é outro exemplo clássico(29 ). Usamos o conjunto de Cantor introduzido
em 1.3.4. Este conjunto é definido como C(I) = ∩∞ n=0 Fn , onde os conjuntos
Fn formam uma determinada sucessão decrescente, obtida pelo processo de
“remoção do intervalo médio” que descrevemos em 1.3.4. Tomando F0 = [0, 1],
n
então Fn é formado por 2n intervalos, cada um com comprimento 13 , e o
n
comprimento do próprio conjunto Fn é dado por c(Fn ) = 32 . Sendo fn


a função Rcaracterı́stica do conjunto Fn , e φn o respectivo integral indefinido


x
φn (x) = 0 f n(t)dt, é evidente que φn é uma função contı́nua crescente, com
n
φn (1) = 23 . Definimos finalmente as funções gn por
 n  n Z x
3 3
gn (x) = φn (x) = fn (t)dt.
2 2 0

As funções gn são, por razões óbvias, igualmente contı́nuas e crescentes, satis-


fazendo, ainda, gn (0) = 0, e gn (1) = 1. A figura seguinte ilustra os gráficos
das funções gn , para 0 ≤ n ≤ 3.

Deixamos para o exercı́cio 5 mostrar que a sucessão gn converge uni-


formemente para uma função F , que é portanto contı́nua, e crescente, com
F (0) = 0, e F (1) = 1. É a esta função F que nos referimos como a “escada
do Diabo”. Deixamos, também para o mesmo exercı́cio, mostrar que

Proposição 1.5.10. A “escada do Diabo” é diferenciável, e a sua derivada


é nula, excepto no conjunto de Cantor, que é, como sabemos, um conjunto
Jordan-mensurável, e de conteúdo nulo.
29
Para uma aplicação talvez surpreendente, mas “práctica”, deste tipo de funções, veja-
se por exemplo o artigo Devil’s Staircase-Type Faceting of a Cubic Lyotropic Liquid Crys-
tal, de Pawel Pieranski, Paul Sotta, Daniel Rohe, e Marianne Imperor-Clerc, em Phys.
Rev. Lett. 84, 2409, de 13 de Março de 2000.
60 Capı́tulo 1. Integrais de Riemann

Figura 1.5.2: As funções g0 , g1 , g2 , e g3 , onde gn → F .

Se F é a “escada do Diabo”, temos portanto


Z 1
1 = F (1) − F (0) 6= F ′ (t)dt = 0.
0

A caracterização das funções F para as quais o segundo teorema é válido


revela-se, assim, um problema bem mais difı́cil do que uma leitura rápida do
1o Teorema Fundamental na forma 1.5.4 nos pode fazer supor. Resumimos
a questão com que nos deparamos na seguinte forma:

Quais são as funções que são integrais indefinidos?

Concluı́mos para já, e do exemplo da “escada do Diabo”, que as con-


clusões do teorema 1.5.4 (continuidade, e diferenciabilidade qtp) não per-
mitem responder à pergunta acima, que deixamos por enquanto em aberto.
Estudaremos adiante a resposta dada a esta questão pela teoria de Lebesgue,
que envolve de forma crucial a noção de continuidade absoluta, e o grande
Teorema de Diferenciação do próprio Lebesgue, descoberto em 1904.
Aproveitamos ainda para descrever mais um exemplo clássico, de uma
função contı́nua em toda a parte que não é diferenciável em ponto nenhum.
Este exemplo sugere fortemente que a usual noção de continuidade é pouco
útil para identificar as funções que são “integrais indefinidos”.
Exemplo 1.5.11.
a função de van der Waaerden (30 ): Esta função obtém-se a partir de
f0 : R → R, dada pela distância ao inteiro mais próximo. Por outras palavras,
se int(x) é a parte inteira de x, então

1
f0 (x) = x − int(x + ) .

2
30
De Bartel Leendert van der Waerden, 1903-1996, matemático holandês, grande alge-
brista contemporâneo, que estudou e ensinou na Alemanha até à 2a Guerra Mundial. Era
desde 1951 professor na Universidade de Zurique. O exemplo aqui referido foi publicado
em 1930.
1.5. Os Teoremas Fundamentais do Cálculo 61

Figura 1.5.3: As funções fn (0 ≤ n ≤ 4) e f .

Observamos que
• f0 é uma função contı́nua, com perı́odo 1.
• 0 ≤ f0 (x) ≤ 21 , e f0 (k) = 0 para qualquer inteiro k ∈ Z.
1 n
Tomando fn (x) = 2n f0 (2 x) para n ≥ 0, temos igualmente
1
• fn é uma função contı́nua, com perı́odo 2n ,
1
• 0 ≤ fn (x) ≤ 2n+1 , e fn ( 2kn ) = 0, para qualquer k ∈ Z, e n ∈ N.
A função de van der Waerden é definida por

X
f (x) = fn (x).
n=0

P∞ 1
É evidente que 0 ≤ f (x) ≤ n=0 2n+1 = 1 e, como a série acima converge
uniformemente em R, a função de van der Waerden é contı́nua em R. A figura
1.5.3 ilustra os gráficos das funções fn e f . O gráfico de cada função fn é “em
dente de serra”, formado por segmentos de recta de declive ±1, e usamos este
facto para demonstrar que:
Proposição 1.5.12. A função de van der Waerden não é diferenciável em
ponto nenhum.

Demonstração. Dado x ∈ R, e n ∈ N, existe um inteiro kn tal que:

kn − 1 kn
an = n
≤ x < n = bn .
2 2

É claro que an ր x, e bn ց x. Portanto, se f ′ (x) existe, temos:

f (bn ) − f (an )
lim = f ′ (x).
n→∞ bn − an
62 Capı́tulo 1. Integrais de Riemann

k
A função de van der Waerden é fácil de calcular nos pontos da forma n, porque
para m ≥ n temos fm ( 2kn ) = fn ( 2kn ) = 0, i.e.,
n−1 n−1 n−1
k X k f (bn ) − f (an ) X fm (bn ) − fm (an ) X
f( n
) = fm ( n
), e = = cm,n .
2 m=0
2 bn − an m=0
bn − an m=0

Um cálculo simples mostra que os declives cm,n são constantes para n > m, ou
seja, cm,n = dm , e
n−1
f (bn ) − f (an ) X
= dm , onde dm = ±1.
bn − an m=0

Como dm não tende para zero quando m → ∞, o limite


n−1
f (bn ) − f (an ) X
lim = dm ,
n→∞ bn − an m=0

não pode existir e ser finito. Portanto, f não é diferenciável em x.

Exercı́cios.
R∞
1. Suponha que o integral impróprio(31 ) −∞ f (t)dt é convergente. A função
Rx
F (x) = a f (t)dt para x ∈ R é uniformemente contı́nua em R?

2. Demonstre a versão do 2o Teorema Fundamental indicada em 1.5.8.


Rx
3. Suponha que F é uma função crescente no intervalo I, e F (x) = a f (t)dt +
F (a), onde f é Riemann-integrável em I. Mostre que se A ⊆ I e c(A) = 0,
então c(F (A)) = 0. Prove igualmente que se A é nulo no sentido de Borel,
então F (A) é também nulo.

4. Considere a definição da “escada do Diabo” F apresentada em 1.5.9.


a) Calcule o máximo de |gn+1 (x)−gn (x)|. Conclua que a sucessão de funções
gn converge uniformemente para uma função contı́nua e crescente F .
b) Demonstre a proposição 1.5.10.
c) Calcule o integral de F sobre o intervalo [0, 1].
d) Calcule o comprimento do gráfico de F no intervalo [0, 1]. (32 )
e) Sendo C(I) o conjunto de Cantor, mostre que F (C(I)) = I. Conclua
directamente do exercı́cio 3 que F não é um integral indefinido.
f) Prove que F não é diferenciável em nenhum ponto de C(I).
R
R
31 ∞
O integral impróprio de Riemann −∞ f (t)dt diz-se convergente, se o integral de
y
Riemann F (x, y) = x f (t)dt existe, para quaisquer −∞ < x ≤ y < ∞, e a função F tem
limite finito, quando (x, y) → (−∞, ∞).
32
O comprimento do gráfico G, da função f , no intervalo [a, b], é o supremo dos
comprimentos das linhas poligonais inscritas em G.
1.6. O Problema de Borel 63

5. Prove que o gráfico da função de van der Waerden (exemplo 1.5.11) não
é rectificável em qualquer intervalo não trivial, i.e., com mais de um ponto.
Conclua em particular que esta função não é monótona em nenhum intervalo
não trivial.

6. Suponha que f : I → R é diferenciável em I, e ε > 0. Mostre que existem


funções contı́nuas g : I → R que não são diferenciáveis em ponto nenhum de
I, e satisfazem |f (x) − g(x)| < ε, para qualquer x ∈ I.

1.6 O Problema de Borel


É justo sublinhar que a noção de “aditividade”, reconhecidamente na forma
algo vaga de princı́pios como “o todo é a soma das partes”, é uma questão
já intensamente debatida por filósofos gregos da Antiguidade Clássica, e.g.,
em torno dos famosos paradoxos de Zenão. O chamado paradoxo da seta(33 )
observa essencialmente que um segmento de recta de comprimento positivo
é formado por pontos de comprimento zero, e portanto neste caso não é
razoável sustentar que “o comprimento do todo é a soma dos comprimentos
das partes”. O paradoxo do corredor (34 ) envolve por sua vez a partição de
um segmento de recta numa famı́lia numerável de subintervalos. A tı́tulo
de ilustração, considere-se a partição de I =]0, 1] dada por
∞ ∞
1 1 X 1 X
P = {Ik =] k , k−1 ] : k ∈ N}, onde c(I) = 1 = = c(Ik ).
2 2 2k
k=1 k=1

Pelo menos neste caso, a propriedade de aditividade é aplicável, desde que


se considerem séries em lugar das usuais somas com um número finito de
parcelas, ou seja, continua a ser verdade que “o comprimento do todo é a
soma (da série) dos comprimentos das partes”. Muito naturalmente, este
facto não parece ter sido entendido pelos Antigos, que nunca dominaram a
noção de limite, sem a qual é impossı́vel o correcto tratamento de séries,
e não terão suspeitado da subtil diferença entre o infinito numerável e o
infinito não-numerável(35 ), que é a verdadeira justificação para a diferença
de conclusões nos dois paradoxos referidos.
33
“Imagine-se uma seta em voo. Em cada instante de tempo, que não tem duração, a
seta não se move. Como o tempo de voo é uma sucessão de instantes, a seta nunca se
move!”
34
O corredor deve correr uma distância fixa. Demora um tempo finito a percorrer a
primeira metade, um tempo finito a percorrer metade do restante, e assim sucessivamente.
O tempo da corrida é uma soma infinita de termos positivos, à qual se julgava dever atribuir
um valor infinito. Ambos os paradoxos, entre muitos outros, são atribuı́dos ao filósofo
Zenão (de Eleia, no sul de Itália), que viveu no século V AC. Os paradoxos parecem
ter sido criados para exibir dificuldades lógicas da ideia de “contı́nuo”, hoje ubı́qua na
Matemática, através de exemplos como a recta real R.
35
Foi apenas em 1873 que Cantor esclareceu esta diferença, provando em particular que
Q é numerável, e R é não-numerável.
64 Capı́tulo 1. Integrais de Riemann

Do nosso ponto de vista, o paradoxo do corredor é especialmente notável


porque a sua solução sugere como se pode definir o “conteúdo” de alguns
conjuntos que não são Jordan-mensuráveis. A ideia em causa é a base con-
ceptual da moderna Teoria da Medida, e aparece explicitamente na tese de
doutoramento de Borel. Consiste em observar que a aditividade do conteúdo
se aplica igualmente a partições infinitas numeráveis(36 ), um resultado que
pode ser enunciado como se segue:

Teorema 1.6.1. Se A = ∪∞ n=1 An , onde


Pos conjuntos An ∈ J (RN ) são
N ∞
disjuntos, e A ∈ J (R ), então cN (A) = n=1 cN (An ).

Demonstração. Provamos separadamente as desigualdades



X ∞
X
(i) cN (A) ≤ cN (An ), e (ii) cN (An ) ≤ cN (A).
n=1 n=1

Para provar (i), supomos ε > 0, e usamos 1.3.5 para concluir que existem
conjuntos elementares K (compacto), e U (aberto), tais que

K ⊆ A ⊆ U , e cN (U − K) < ε, donde temos (iii) cN (A) − ε ≤ cN (K).

Cada An é também Jordan-mensurável, e por isso existem ainda conjuntos


elementares Kn e Un , Kn compacto, e Un aberto, tais que
ε ε
Kn ⊆ An ⊆ Un , cN (Un − Kn ) < n
, e (iv) cN (Un ) ≤ cN (An ) + n .
2 2
Como K é compacto, segue-se do teorema de Heine-Borel que existe m ∈ N
tal que

[ ∞
[ [m
K⊆A⊆ An ⊆ Un =⇒ K ⊆ Un .
n=1 n=1 n=1
Pm
Concluı́mos que cN (K) ≤ c (U ), porque o conteúdo de Jordan é
Pm n=1 N n P∞
subaditivo. É óbvio que n=1 cN (Un ) ≤ n=1 cN (Un ), e portanto podemos
usar (iii) e (iv) para obter
∞ ∞  ∞
X X ε X
cN (A) − ε ≤ cN (K) ≤ cN (Un ) ≤ cN (An ) + = cN (An ) + ε.
2n
n=1 n=1 n=1

36
A tese de Borel, de 1895, que curiosamente não faz qualquer referência à teoria da
integração, introduz pelo menos três ideias relacionadas entre si e fundamentais para essa
teoria: a aditividade do conteúdo para partições numeráveis, o teorema de Heine-Borel,
e a noção de conjunto de medida nula. O teorema de Heine-Borel é indispensável para
provar a propriedade de aditividade referida, e a definição de conjunto de medida nula
usa partições numeráveis para atribuir uma “medida” a conjuntos que podem não ser
Jordan-mensuráveis. Esta última definição tem aliás um domı́nio de aplicação tão geral
que cedo conduziu Borel a delicadas reflexões sobre a ideia de “conjunto”.
1.6. O Problema de Borel 65

Temos assim que



X ∞
X
cN (A) − ε ≤ cN (An ) + ε, ou cN (A) ≤ cN (An ) + 2ε.
n=1 n=1

Fazendo ε → 0, obtemos a desigualdade (i). Note-se que esta desigualdade


é válida desde que A ⊆ ∪∞n=1 An .
Consideramos os conjuntos Bk = kn=1 An , e notamos que, como cN
S
Pk
é aditivo, então cN (Bk ) = n=1 cN (An ). Por outro lado, como cN é
monótono, e Bk ⊆ A, temos também cN (Bk ) ≤ cN (A), donde
k
X
cN (An ) ≤ cN (A), para qualquer k ∈ N.
n=1

Fazendo k → ∞, obtemos (ii), o que termina a demonstração.

Este teorema é a chave para a extensão da noção de “conteúdo” para


alguns conjuntos que não são Jordan-mensuráveis por razões fáceis de ex-
N
S∞De acordo com 1.6.1, se os conjuntos An ∈ J (R ) são disjuntos, e
plicar.
A = n=1 An , então uma das seguintes alternativas é sempre válida:
P∞
1) A é Jordan-mensurável, e neste caso cN (A) = n=1 cN (An ), ou

2) P
A não é Jordan-mensurável, e neste caso não podemos ter cN (A) =

n=1 cN (An ), apenas porque o lado esquerdo desta identidade não está
definido. (Fazemos aqui a convenção natural de atribuir à série a soma
∞, no caso de esta divergir no sentido usual do termo.)

A ideia de Borel é muito simples: No caso 2),

P∞
a identidade cN (A) = n=1 cN (An ) deve ser a definição de cN (A).

Exemplo 1.6.2.
Seja A = Q = {q1 , q2 , · · · , qn , · · · }, e An = {qn }. É óbvio que os conjuntos An
são Jordan-mensuráveis, e c(An ) = 0. É também claro que Q não é Jordan-
mensurável, mas a ideia referida acima sugere que se defina c(Q) = 0.

Claro que é necessário verificar que esta ideia não conduz a ambigui-
dades, mas como veremos isso é uma adaptação simples do argumento que
utilizámos a propósito dos conjuntos elementares, já na proposição 1.1.9.
Antes de desenvolver esta observação, é para já mais conveniente enrique-
cer a terminologia e resultados abstractos introduzidos na secção 1.2 com
algumas noções complementares.
66 Capı́tulo 1. Integrais de Riemann

Definição 1.6.3 (Funções σ-Aditivas e σ-Subaditivas). Seja S uma classe


de subconjuntos do conjunto X, e λ : S → [0, +∞] uma função. Supondo
os conjuntos C, An ∈ S, a função λ diz-se
a) σ-aditiva se e só se, se os conjuntos An são disjuntos, e

[ ∞
[ ∞
X
An ∈ S, então λ( An ) = λ(An ).
n=1 n=1 n=1

b) σ-subaditiva (37 ) se e só se



[ ∞
X
C⊆ An =⇒ λ(C) ≤ λ(An ).
n=1 n=1

Exemplos 1.6.4.
1. O conteúdo de Jordan é σ-aditivo na classe dos conjuntos Jordan-mensuráveis,
conforme observámos no teorema 1.6.1. A demonstração do ponto (i) neste
teorema mostra igualmente que o conteúdo de Jordan é σ-subaditivo.
2. Exibimos aqui um conjunto aberto limitado que não é Jordan-mensurável.
Seja D = {q1 , q2 , · · · , qn , · · · } = Q ∩ [0, 1] o exemplo de Dirichlet, ε > 0, e
considerem-se os conjuntos abertos

ε ε [
Un =]qn − n , qn + n [, e U = Un .
2 2 n=1

Como o conteúdo de Jordan é σ-subaditivo, se U é Jordan-mensurável então:


∞ ∞
X X ε
c(U ) ≤ c(Un ) = = 2ε.
n=1 n=1
2n−1

É evidente que D ⊆ U , e sabemos que c(D) = 1. Podemos, assim, concluir


que c(U ) ≥ 1. Segue-se que, se ε < 21 , então U não é Jordan-mensurável.

Deixamos como exercı́cio a demonstração do resultado seguinte, que pode


ser usado para exibir muitos outros exemplos de funções σ-aditivas.
Teorema 1.6.5. Se R ⊆ RN , e f : R → R, então o integral indefinido λ de
f é σ-aditivo em Jf (R). Se f ≥ 0 em R, então λ é σ-subaditivo.
A relação entre σ-aditividade e σ-subaditividade é directa, no caso de
funções aditivas definidas em semi-álgebras.
37
Recorde-se que a soma da série ∞
P n=1 λ(An ) está sempre definida, podendo, claro, ser
+∞. A noção de σ-aditividade também se aplica a funções com valores reais ou complexos,
mas, nestes casos, é necessário supôr que as séries em causa são sempre convergentes no
sentido usual do termo. É fácil verificar que a noção de σ-subaditividade só é aplicável
quando λ ≥ 0.
1.6. O Problema de Borel 67

Teorema 1.6.6. Seja S uma semi-álgebra de conjuntos, e λ : S → [0, +∞]


uma função aditiva. Então, λ é σ-aditiva se e só se λ é σ-subaditiva. Neste
caso, λ é igualmente monótona, e subaditiva.

Demonstração. Como λ é aditiva, segue-se do teorema 1.2.6 que λ é monótona


e subaditiva. Suponha-se que λ é também σ-aditiva. Para mostrar que λ é σ-
subaditiva, sejam A, An ∈ S tais que A ⊆ ∞
S
A
n=1 n . Tomamos Ãn = An ∩ A,
e definimos conjuntos auxiliares Bn , fazendo (ver figura 1.6.1):

n−1
[
B1 = Ã1 , e, para n > 1, Bn = Ãn − Bk .
k=1

Os conjuntos Bn são evidentemente disjuntos, e Bn ∈ S, porque S é uma

n−1
Figura 1.6.1: B1 = Ã1 , e para n > 1, Bn = Ãn − ∪k=1 Bk .

semi-álgebra. Temos, então, por σ-aditividade, que:



[ ∞
[ ∞
[ ∞
X
Bn = Ãn = A =⇒ λ(A) = λ( Bn ) = λ(Bn ).
n=1 n=1 n=1 n=1

É claro que λ(Bn ) ≤ λ(An ), porque λ é monótona, e Bn ⊆ Ãn ⊆ An .


Concluı́mos assim que

X ∞
X
λ(A) = λ(Bn ) ≤ λ(An ).
n=1 n=1

Se λ é σ-subaditiva, podemos provar que λ é σ-aditiva adaptandoS o argu-


mento que usámos para o conteúdo de Jordan. Supomos que AP = ∞n=1 An ,
onde A, An ∈ S, e os An são disjuntos. Temos então que λ(A) ≤ ∞
n=1 λ(An ),
por σ-subaditividade, e temos também, por aditividade e monotonia, que
m m
!
X [
λ(An ) = λ An ≤ λ(A),
n=1 n=1
P∞ P∞
Concluı́mos que n=1 λ(An ) ≤ λ(A), donde n=1 λ(An ) = λ(A).
68 Capı́tulo 1. Integrais de Riemann

A ideia de Borel não conduz a ambiguidades, em virtude do seguinte


lema:
Lema 1.6.7. Se P = {An : n ∈ N} e P ′ = {Bm : m ∈ N} são partições do
conjunto A ⊆ RN em conjuntos Jordan-mensuráveis, então

X ∞
X
cN (An ) = cN (Bm ).
n=1 m=1

Demonstração. Observamos que



[ ∞
[ ∞
[ ∞
[
A= An = Bm =⇒ An = An ∩ Bm , e Bm = An ∩ Bm .
n=1 m=1 m=1 n=1

Como os conjuntos An ∩ Bm são Jordan-mensuráveis e disjuntos, e os con-


juntos An e Bm são Jordan-mensuráveis, obtemos de 1.6.1 que:

X ∞
X
cN (An ) = cN (An ∩ Bm ), e cN (Bm ) = cN (An ∩ Bm ).
m=1 n=1

Segue-se imediatamente que



X X ∞
∞ X X ∞
∞ X ∞
X
cN (An ) = cN (An ∩ Bm ) = cN (An ∩ Bm ) = cN (Bm ).
n=1 n=1 m=1 m=1 n=1 m=1

Qualquer união numerável de conjuntos em E(RN ) ou J (RN ) é uma


união de conjuntos disjuntos na classe em questão, porque estas classes são
semi-álgebras. A ideia de Borel permite por isso atribuir um “conteúdo”, ou
“extensão”, que designamos temporariamente por c̃N , pelo menos aos con-
juntos que são uniões numeráveis de conjuntos Jordan-mensuráveis, con-
forme registamos na próxima definição:
Definição 1.6.8 (Conjuntos σ-elementares). Designamos as classes de con-
juntos que são uniões numeráveis de conjuntos elementares, ou de conjuntos
Jordan-mensuráveis, como se segue:
a) Eσ (RN ) = E ⊆ RN : E = ∞ N
 S
n=1 En : En ∈ E(R ) .

b) Jσ (RN ) = E ⊆ RN : E = ∞ N
 S
n=1 En : En ∈ J (R ) .

Os conjuntos E ∈ Eσ (RN ) dizem-se σ-elementares.


N N
S∞ A ∈ Jσ (R ), existem conjuntos An ∈ J (R ) disjuntos tais que
Dado
A = n=1 An , e definimos

X
c̃N (A) = cN (An ).
n=1
1.6. O Problema de Borel 69

Exemplos 1.6.9.
1. Qualquer conjunto numerável é σ-elementar. Se E = {x1 , x2 , · · · , xn , · · · },
então E = ∪∞n=1 En , onde os conjuntos En = {xn } são elementares. Dado que
cN (En ) = 0, temos c̃N (E) = 0. Em particular, Q é σ-elementar.
2. É fácil verificar que RN é um conjunto σ-elementar, e c̃N (RN ) = ∞.
3. A função c̃N é uma extensão do conteúdo de Jordan, i.e., se A ⊆ RN é
Jordan-mensurável, então c̃N (A) = cN (A).
4. Seja f : R → R limitada e contı́nua qtp no rectângulo compacto R, e D o
conjunto de pontos de descontinuidade de f . Recorde-se que D é uma união
numerável de conjuntos de conteúdo nulo, donde D ∈ Jσ (RN ), e c̃N (D) = 0.

De acordo com a observação feita no exemplo 1.6.9.3 acima, e para evitar


sobrecarregar a notação utilizada, passamos a usar a designação “cN ” em
lugar de “c̃N ”. A observação seguinte é útil no que se segue (exercı́cio 8).
Proposição 1.6.10. Seja E ∈ Jσ (RN ). Temos então:
a) cN (E) = 0 ⇐⇒ int(E) = ∅.

b) Se E ∈ Eσ (R), então cN (E) = 0 ⇐⇒ E é numerável.


Exemplos 1.6.11.
1. O conjunto de Cantor C(I) não é σ-elementar, porque tem conteúdo nulo, e
não é numerável.
2. O conjunto U = [0, 1] − C(I) é σ-elementar, porque U = ∪∞ n=1 En , onde En
é um conjunto elementar formado por 2n−1 subintervalos, cada um de compri-
mento 31n . Repare-se por isso que Eσ (R) não é uma semi-álgebra.

É conveniente registar o seguinte resultado:


Teorema 1.6.12. As classes Eσ (RN ) e Jσ (RN ) são fechadas em relação a
uniões numeráveis, e a função cN é aditiva, σ-aditiva, subaditiva e σ-suba-
ditiva em Jσ (RN ).
Demonstração. Provamos apenas que a classe Jσ (RN ) é fechada em relação
a uniões numeráveis, deixando as restantes afirmações como exercı́cio. Supo-
nha-se então que os conjuntos An ∈ Jσ (RN ), i.e., existem conjuntos Anm ∈
J (RN ) tais que An = ∪∞ m=1 Anm . Segue-se que

[ ∞ [
[ ∞
A= An = Anm
n=1 n=1 m=1

é uma união numerável de conjuntos Anm ∈ J (RN ), i.e., A ∈ Jσ (RN ).


70 Capı́tulo 1. Integrais de Riemann

Exemplo 1.6.13.
Seja D o exemplo de Dirichlet, e I = [0, 1] − D o conjunto dos irracionais em
[0, 1]. Sabemos que D é σ-elementar, c(D) = 0, e c([0, 1]) = 1. Se I ∈ Jσ (R),
segue-se pela propriedade de aditividade referida no teorema anterior que
1 = c([0, 1]) = c(I) + c(D) ⇒ c(I) = 1.
Sabemos que int(I) = ∅, e como referimos acima, se I ∈ Jσ (R) então c(I) = 0.
Concluı́mos que I 6∈ Jσ (R). Em particular, Jσ (R) não é uma semi-álgebra.

A proposição 1.3.12 generaliza-se sem dificuldades a Jσ (RN ):


Lema 1.6.14. Se U ∈ Jσ (RN ) e V ∈ Jσ (RM ), então
a) Fecho em relação ao produto: U × V ∈ Jσ (RN +M ), e
cN +M (U × V ) = cN (U )cM (V ).

b) Invariância sob translacções: Se x ∈ RN então U + x ∈ Jσ (RN ) e


cN (U + x) = cN (U ),

c) Invariância sob reflexões: Se W é uma reflexão de U num dos hiper-


planos xk = 0, então W ∈ Jσ (RN ), e cN (W ) = cN (U ).
Estas afirmações são igualmente verdadeiras substituindo as classes Jσ (RN ),
Jσ (RM ) e Jσ (RN +M ) pelas classes Eσ (RN ), Eσ (RM ) e Eσ (RN +M ).
Demonstração. Supomos que os conjuntos Un ∈ J (RN ) e Vm ∈ J (RM ) for-
mam partições, respectivamente, dos conjuntos U e V . Sendo U = ∪∞
n=1 Un
e V = ∪∞
m=1 V m , concluı́mos que
∞ ∞ ∞ [ ∞
! !
[ [ [
U ×V = Un × Vm = Un × V m .
n=1 m=1 n=1 m=1

Segue-se de 1.3.12 que


Un × Vm ∈ J (RN +M ), e cN +M (Un × Vm ) = cN (Un )cM (Vm ).
Como os conjuntos Un × Vm formam uma partição de U × V , segue-se que
U × V ∈ Jσ (RN +M ), e
∞ X
X ∞ ∞ X
X ∞
cN +M (U × V ) = cN +M (Un × Vm ) = cN (Un )cM (Vm ) =
n=1 m=1 n=1 m=1
X∞ ∞
X
= cN (Un ) cM (Vm ) = cN (U )cM (V ).
n=1 m=1

É claro que se U ∈ Eσ (RN ) e V ∈ Eσ (RM ) então U × V ∈ Eσ (RN +M ). A


verificação de b) e c) é imediata.
1.6. O Problema de Borel 71

Exemplos 1.6.15.
1. o conjunto de volterra(38 ) - O conjunto de Cantor C(I) (exemplo 1.3.9)
foi definido como C(I) = ∩∞ n
n=0 Fn , onde Fn é uma união de 2 intervalos
fechados disjuntos Ik,n , e F0 = I = [a, b] é o “intervalo inicial”. A sucessão de
conjuntos Fn foi definida recursivamente: dividimos cada subintervalo Ik,n de
Fn em três intervalos de igual comprimento 13 c(Ik,n ), e designamos por Jk,n o
subintervalo médio (aberto) Jk,n ⊂ Ik,n . O conjunto Fn+1 resulta de extrair
de Fn os subintervalos Jk,n , i.e.,
n
2
[
Fn+1 = Fn − Un , onde Un = Jk,n .
k=1

É claro que nada nos impede de extrair, em cada passo, e de cada subintervalo
Ik,n , um intervalo aberto Jk,n , ainda centrado no ponto médio de Ik,n , mas
agora com comprimento c(Jk,n ) ≤ 13 c(Ik,n ). Exactamente como no procedi-
mento original de Cantor, é fácil verificar que (exercı́cio 12)

\
V = Fn não é numerável, é perfeito, e tem interior vazio.
n=o

Sendo I = F0 o intervalo inicial, temos igualmente que



[
U =I −V = Un é σ-elementar, e aberto.
n=0

Para simplificar a notação, escrevemos an = c(Jk,n ). A escolha da sucessão an


é em larga medida arbitrária, mas para efeitos do presente exemplo é suficiente
seleccionar primeiro um qualquer 0 ≤ ε < 1, e definir:
 1−ε
an = 3 c(I), se n = 0,
1
3 an−1 , se n > 0.

O conjunto de Cantor tal como definido no exemplo 1.3.9 corresponde obvi-


amente à escolha ε = 0. Note-se que cada conjunto Un é formado por 2n
2n
subintervalos de comprimento an = 31−ε
n+1 c(I), donde c(Un ) = (1 − ε) 3n+1 c(I).

Temos por isso que


∞ ∞  n
X 1−ε X 2
c(U ) = c(Un ) = ( )c(I) = (1 − ε)c(I).
n=0
3 n=0
3

V é o que chamamos um conjunto de volterra, e se V ∈ Jσ (RN ), então

c(I) = c(V ) + c(U ) = c(V ) + (1 − ε)c(I), donde c(V ) = εc(I).

Como V tem interior vazio, só podemos ter c(V ) = 0, e portanto V 6∈ Jσ (RN )
quando ε > 0. Designaremos o conjunto V no que se segue por Cε (I).
38
Vito Volterra descobriu exemplos análogos a este e ao seguinte em 1881, quando era
ainda estudante. Actualmente é comum dizer que conjuntos deste tipo são “de Cantor”.
72 Capı́tulo 1. Integrais de Riemann

2. a função de volterra - Consideramos primeiro a função f definida por

x sen( x1 ), se x 6= 0,
 2
f (x) =
0, se x = 0.

A função f é diferenciável em R, e a sua derivada é:

2x sen( x1 ) − cos( x1 ), se x 6= 0,


f (x) =
0, se x = 0.

Por razões evidentes, f ′ não é contı́nua em 0, onde a respectiva oscilação


é ωf ′ (0) = 2. No entanto, f ′ é limitada em qualquer intervalo limitado.
Podemos, facilmente, adaptar esta definição para obter uma função g : R → R,
com suporte contido em ]0, 1[, diferenciável em R, com derivada limitada, mas
descontı́nua nos pontos x = 0, e x = 1, onde ωf ′ (0) = ωf ′ (1) = 2. Deixamos a
definição exacta da função g como exercı́cio, e supomos agora que U = I −Cε (I)
é o complementar do conjunto de Volterra no intervalo I. Recordamos da dis-
cussão precedente que U é uma união numerável de intervalos abertos limitados
disjuntos:
[∞
U= ]an , bn [.
n=1

Definimos a função gn por


 
1 x − an
gn (x) = g .
bn − an bn − an

É imediato verificar que gn tem suporte contido em ]an , bn [, é diferenciável em


R, e tem derivada limitada, mas descontı́nua nos pontos x = an , e x = bn ,
onde ωf ′ (an ) = ωf ′ (bn ) = 2. A função de volterra F é dada por:

X
F (x) = gn (x).
n=1

Deixamos para o exercı́cio 13 mostrar que


• F é diferenciável em R, com F ′ (x) = 0 quando x 6∈ U , e
• F ′ é descontı́nua em todos os pontos de Cε (I), e por isso não é Riemann-
integrável em I, quando ε > 0.

A função de Volterra é um exemplo análogo ao que vimos em 1.5.6,


porque é uma função diferenciável em toda a parte, cuja derivada não é
Riemann-integrável. Por outras palavras, a regra de Barrow não é aplicável
a f = F ′ , porque o integral de Riemann de f não existe, apesar de f
ter uma primitiva. A função de Volterra é especialmente notável, porque
mostra que a hipótese da integrabilidade de F ′ não pode ser eliminada do 2o
Teorema Fundamental, tal como o enunciámos em 1.5.5, mesmo quando F ′ é
limitada. Esta circunstância é particularmente interessante, por sugerir que
o facto de F ′ não ser integrável não reflecte uma dificuldade “natural” como
1.6. O Problema de Borel 73

a do exemplo 1.5.6, mas reflecte em vez disso uma deficiência da própria


definição do integral de Riemann(39 ).
No entanto, e em última análise, este exemplo apenas ilustra novamente
a fragilidade da integrabilidade de Riemann em relação a operações de pas-
sagem ao limite. Afinal de contas, F ′ é o limite pontual de uma sucessão de
funções Riemann-integráveis, porque

′ F (x + h) − F (x) F (x + n1 ) − F (x)
F (x) = lim = lim 1
h→0 h n→∞
n
1
= lim gn (x), onde gn (x) = n(F (x + ) − F (x)).
n→∞ n
As funções gn são Riemann-integráveis desde que F o seja, mas daqui não
podemos concluir a integrabilidade da função limite F ′ , como sabemos.
A classe Jσ (RN ) é uma extensão não-trivial de J (RN ), já que contém
conjuntos que não são Jordan-mensuráveis, mas não é ainda uma base satis-
fatória para o desenvolvimento da teoria. Por exemplo, e como apontámos
acima, se A ⊆ B, e A, B ∈ Jσ (RN ), então só é razoável tomar c(B −
A) = c(B) − c(A), mas já vimos que podemos ter B − A 6∈ Jσ (RN ). Por
outras palavras, a classe Jσ (RN ) é, apesar de tudo, demasiado pequena, em
particular porque não é uma semi-álgebra.
Borel teve aqui o enorme mérito de analisar e identificar com total clareza
as dificuldades com que se debatia. Enunciou com muita precisão o pro-
blema que entendia dever ser resolvido, listando o que ele referia como os
“princı́pios gerais” a satisfazer. Borel foi assim um notável pioneiro do tipo
de procedimento que hoje chamamos de “axiomático”.

1.6.16 (Problema de Borel). Determinar uma classe MN de sub-


conjuntos de RN , e uma função mN : MN → [0, ∞], tais que:

a) A classe MN contém os conjuntos elementares.

b) Se E ⊂ RN é elementar então mN (E) = cN (E).

c) MN é uma álgebra fechada em relação a uniões numeráveis.

d) mN é uma função σ-aditiva.

Não vamos descrever imediatamente a solução que Borel descobriu para este
problema(40 ). Estudamos para já alguns resultados auxiliares importantes,
39
O próprio Henri Lebesgue considerava este exemplo como uma das suas mais impor-
tantes motivações na busca de uma teoria de integração mais geral do que a de Riemann.
Como veremos mais adiante, a regra de Barrow é válida para a função de Volterra na
teoria da integração de Lebesgue.
40
Veremos adiante que a classe MN = B(RN ) descoberta por Borel, formada pelos con-
74 Capı́tulo 1. Integrais de Riemann

em especial o seguinte, descoberto por Cantor em 1883:


Os conjuntos abertos são σ-elementares.
Seja Q(R) = {]q, r[: q, r ∈ Q} a classe formada pelos intervalos abertos
de extremos racionais, e, mais geralmente, considerem-se as classes Q(RN ),
formadas pelos rectângulos-N com vértices de coordenadas racionais, i.e.,
os rectângulos da forma I1 × I2 × · · · × In , com Ik ∈ Q(R). Como Q é
numerável, as classes Q(RN ) são igualmente numeráveis. Este facto conduz
directamente a:
Teorema 1.6.17 (de Cantor). Qualquer aberto é uma união numerável de
rectângulos abertos limitados, e é, por isso, um conjunto σ-elementar.

Figura 1.6.2: Os rectângulos Qx e Rx.

Demonstração. Se U ⊆ RN é um aberto, e x ∈ U , existe um rectângulo


aberto limitado Rx, tal que x ∈ Rx ⊆ U . Suponha-se que
Rx = I1 × I2 × · · · × IN , onde Ik =]ak , bk [, e x = (x1 , x2 , · · · , xN ) .
É claro que existem racionais qk e rk tais que
ak < qk < xk < rk < bk , e Jk =]qk , rk [∈ Q(R).
É, também, evidente que
J1 × J2 × · · · × JN = Qx ∈ Q(RN ), e x ∈ Qx ⊆ Rx ⊆ U.
Concluı́mos, assim, que [
U= Qx.
x∈U
Os rectângulos Qx são limitados e abertos, e a classe U = {Qx : x ∈ U } ⊆
Q(RN ). Como Q(RN ) é numerável, a classe U só pode ser numerável.
juntos que hoje se dizem Borel-mensuráveis, é a menor solução do seu problema. Esta
classe é uma extensão de Eσ (RN ), mas não contém todos os conjuntos Jordan-mensuráveis,
facto que Borel conhecia, e que sublinhava com cuidado, porventura em sinal de prudente
respeito por Jordan, que gozava de grande influência.
1.6. O Problema de Borel 75

Do nosso ponto de vista nesta secção, e nos termos da definição 1.6.8,


concluı́mos que cN (U ) está definida para qualquer conjunto aberto U ⊆ RN .
Além disso, e de acordo com as condições a) e c) no enunciado do “Proble-
ma de Borel”, resulta que qualquer solução MN deste problema contém
necessariamente todos os conjuntos abertos, e todos os conjuntos fechados.
O argumento usado para demonstrar 1.6.17 é igualmente válido se substi-
tuirmos os intervalos abertos de extremos racionais ]q, r[ pelos corresponden-
tes intervalos fechados, e portanto compactos, [q, r]. O próximo teorema in-
dica esta, e outras propriedades análogas, a demonstrar nos exercı́cios desta
secção.

Teorema 1.6.18. Seja U ⊆ RN um aberto. Então,

a) U é uma união numerável de rectângulos compactos.

b) U é uma união numerável de rectângulos limitados disjuntos.

c) Se N = 1, então U é uma união numerável de intervalos abertos


disjuntos(41 ).

Exercı́cios.

1. Seja C uma classe de conjuntos tal que ∅ ∈ C, e λ : C → [0, +∞] uma função
σ-aditiva em C.

a) Mostre que λ(∅) = 0, ou λ é idênticamente +∞.


b) Prove que λ é aditiva.

2. Prove que qualquer conjunto Jordan-mensurável numerável tem conteúdo


nulo.

3. Suponha que 0 ≤ anm ≤ ∞, para quaisquer n, m ∈ N, e prove que


∞ ∞ ∞ ∞
! !
X X X X
anm = anm .
n=1 m=1 m=1 n=1

4. Demonstre o teorema 1.6.12.

5. Sendo R ⊆ RN , e f : R → R Riemann-integrável em R, mostre que o integral


indefinido λ de f é σ-aditivo em Jf (R). (teorema 1.6.5).

6. Demonstre o teorema 1.6.18.

7. Prove que, se U ⊆ R é um conjunto aberto não-vazio, então existe um aberto


V ⊆ U que não é Jordan-mensurável.
41
Este é o resultado descoberto por Cantor em 1883.
76 Capı́tulo 1. Integrais de Riemann

8. Prove que se E ∈ Jσ (RN ) então cN (E) = 0 se e só se int(E) = ∅. Mostre


igualmente que se E ∈ Eσ (R), então cN (E) = 0 se e só se E é numerável.

9. As classes Eσ (RN ) e Jσ (RN ) são fechadas em relação a intersecções finitas?


E em relação a intersecções numeráveis?

10. Suponha que E ∈ Jσ (RN ) é limitado, e prove que cN (E) ≤ cN (E) ≤ cN (E).

11. Determine o cardinal da classe dos abertos em RN . (42 )

12. Considere o conjunto de Volterra Cε (I) (exemplo 1.6.15.1).


a) O conjunto Fn é elementar, e é formado por 2n intervalos. Se J é um
desses intervalos, qual é a medida de J ∩ Cε (I)? sugestão: Determine
δ tal que J ∩ Cε (I) = Cδ (J).
b) Mostre que Cε (I) é um conjunto perfeito, não-numerável, com interior
vazio.

13. Verifique as afirmações feitas no texto a propósito da função de Volterra.


Em particular,
a) Mostre que g é diferenciável em R, e que g ′ é limitada, e tem oscilação 2,
em a, e em b.
b) Prove que F é diferenciável em R, com F ′ (x) = 0 para x 6∈ U .
c) Mostre que a derivada da função de Volterra é descontı́nua em Cε (I).
sugestão: Recorde que qualquer ponto de Cε (I) é limite de sucessões
de pontos fronteira dos Fn .
d) Mostre que F ′ não é Riemann-integrável, i.e., a sua região de ordenadas
não é Jordan-mensurável, mas que essa região é um conjunto em Jσ (R2 ).
Como definiria e calcularia o integral de F ′ em I?

14. Seja U o conjunto aberto referido no exemplo 1.6.4.2. O que pode concluir
sobre a mensurabilidade de U , se ε = 21 ?

15. Seja ainda U o conjunto aberto referido no exemplo 1.6.4.2, e F a função


de Volterra com suporte em U . O que pode concluir sobre a integrabilidade
de F ′ ?

42
Usamos as seguintes designações para cardinais infinitos: ℵ0 é o cardinal de N, ℵ1 é o
cardinal de R, ℵ2 é o cardinal de P(R), ℵ3 é o cardinal de P(P(R)), etc.
Capı́tulo 2

A Medida de Lebesgue

As dificuldades técnicas associadas ao integral de Riemann, algumas das


quais temos vindo a apontar, eram bem conhecidas no final do século XIX,
mas certamente prevalecia a opinião que eram inevitáveis, e inultrapassáveis.
Apenas um grupo restrito de jovens matemáticos(1 ) parece ter-se apercebido,
por volta de 1900, que era possı́vel e desejável ultrapassar alargar a classe
das funções às quais atribuı́mos um integral, e que dessa forma se podiam
ultrapassar algumas das limitações do integral de Riemann. Por um lado,
os trabalhos de Jordan e Peano tinham revelado que este problema se reduz
ao de alargar a classe de conjuntos aos quais atribuı́mos um conteúdo. Por
outro lado, Borel tinha descoberto que certos conjuntos que não são Jordan-
mensuráveis podem ser “medidos” usando partições infinitas numeráveis em
rectângulos, e tinha igualmente identificado com muito rigor e clareza o que
ele próprio considerava como as “propriedades essenciais” a satisfazer por
qualquer possı́vel extensão do conteúdo de Jordan.
Em 1902, o então jovem professor de liceu Henri Léon Lebesgue (1875-
1941) apresentou a sua própria definição de conjuntos mensuráveis, e
de medida, numa excepcional tese de doutoramento, com o tı́tulo “Integral,
área, volume”, que submeteu à Universidade de Nancy. A ideia de Lebesgue
combinava de forma muito natural o trabalho de Jordan com o de Borel,
retomando a ideia de aproximação usada por Jordan, mas substituindo os
conjuntos elementares pelos conjuntos σ-elementares, cuja medida Lebes-
gue calculava pela técnica de Borel. Os conjuntos mensuráveis “no sentido
de Lebesgue” dizem-se conjuntos de Lebesgue, ou conjuntos Lebesgue-
mensuráveis, e formam a classe L(RN ), que inclui a classe J (RN ). A
medida de Lebesgue designa-se “mN ”, ou apenas “m”, é uma função
mN : L(RN ) → [0, ∞], e é uma extensão do conteúdo de Jordan cN .

1
Além de Henri Leon Lebesgue, 1875-1941, formado em 1897 pela École Normale
Supérieure, donde conhecia Borel, pelo menos o matemático italiano Giuseppe Vitali,
1875-1941, na altura assistente na Scuola Normale de Pisa, e o matemático inglês William
Henry Young, 1863-1942, então em Göttingen.

77
78 Capı́tulo 2. A Medida de Lebesgue

Em 1913, Radon(2 ) deu um passo decisivo no caminho da generalização


crescente, ao aperceber-se que a medida de Lebesgue é apenas um exemplo
de um tipo de objecto matemático que hoje tem o nome genérico de medida,
e que qualquer medida pode ser utilizada para definir integrais de funções.
Na realidade, as ideias de Borel, Lebesgue e Radon, acompanharam, e fre-
quentemente precederam, a vaga de fundo de abstracção que começou a
varrer os mais diversos domı́nios da Matemática no inı́cio do século XX, e
rapidamente conduziram à identificação de uma base axiomática apropriada
para a chamada Teoria da Medida.
Na teoria axiomática da medida, os conjuntos mensuráveis são, sim-
plesmente, elementos de álgebras de conjuntos de um tipo especial, ditas
σ-álgebras, das quais a classe L(RN ), descoberta por Lebesgue, é apenas
um exemplo, se bem que de importância capital. As medidas são funções
aditivas definidas em σ-álgebras, mas para as quais a propriedade de adi-
tividade é ainda válida para partições numeráveis.
O principal objectivo deste Capı́tulo é a definição da medida de Lebesgue
propriamente dita, e a identificação das suas propriedades mais relevantes.
Aqui introduzimos também a base axiomática da Teoria da Medida, uma
das mais importantes ferramentas de trabalho em todo este texto, e que em
muitos aspectos simplifica desde já o nosso estudo da medida de Lebesgue.

2.1 Espaços Mensuráveis e Medidas


Esta secção apresenta algumas das ideias mais básicas da Teoria da Medida,
todas relacionadas com a noção de σ-aditividade, e em grande parte su-
geridas pelo enunciado do “Problema de Borel”. A primeira definição que
apresentamos resume-se aliás a abstrair a condição (c) desse problema:
Definição 2.1.1 (σ-Álgebra). Seja M uma classe de subconjuntos em X.
Dizemos que M é uma σ-álgebra (em X) se e só se M é uma álgebra de
conjuntos fechada em relação a uniões numeráveis, i.e.,

[
E1 , E2 , · · · , En , · · · ∈ M =⇒ E = En ∈ M.
n=1

Exemplos 2.1.2.
1. Nesta terminologia, a condição c) do Problema de Borel pode enunciar-se:
“MN é uma σ-álgebra em RN ”.
2. Sendo I = [0, 1], a classe J (I) é uma álgebra, mas o conjunto de Dirichlet
D = Q ∩ I mostra que J (I) não é fechada em relação a uniões numeráveis, e
portanto não é uma σ-álgebra.
2
Johann Radon (1887-1956), matemático austrı́aco. Foi professor em diversas universi-
dades alemãs, e terminou a sua carreira na Universidade de Viena, onde se tinha doutorado
em 1910.
2.1. Espaços Mensuráveis e Medidas 79

3. A classe Jσ (RN ) é fechada em relação a uniões numeráveis, mas não é uma


σ-álgebra, porque não é uma semi-álgebra.
4. Qualquer semi-álgebra em RN que seja fechada em relação a uniões nume-
ráveis, e contenha pelo menos os conjuntos elementares, contém o próprio
conjunto RN , e por isso é uma álgebra, e uma σ-álgebra.
5. De acordo com o teorema de Cantor (1.6.17), qualquer σ-álgebra em RN
que contenha os conjuntos elementares contém todos os conjuntos abertos, e
portanto todos os conjuntos fechados.
6. Sendo X um qualquer conjunto, a classe de todos os subconjuntos de
X, designada P(X), é, por razões óbvias, a maior σ-álgebra em X. A classe
{∅, X} é a menor σ-álgebra em X.

A definição 2.1.1 é complementada pela seguinte:


Definição 2.1.3 (Espaço Mensurável, Conjuntos Mensuráveis). Um espaço
mensurável é um par (X, M), onde X é um conjunto, e M é uma σ-álgebra
em X. Se E ⊆ X, dizemos que E é M-mensurável se e só se E ∈ M.
Quando a σ-álgebra M é óbvia do contexto da discussão, dizemos ape-
nas que o conjunto E é “mensurável”, em vez de “M-mensurável”. Das
propriedades seguintes, apenas o fecho em relação a intersecções numeráveis
requer ainda demonstração, o que fica como exercı́cio.
Teorema 2.1.4 (Propriedades Algébricas de σ-Álgebras). Se M é uma
σ-álgebra em X, i.e., se (X, M) é um espaço mensurável, temos:
a) ∅, X ∈ M.

b) Fecho em relação à diferença: E, F ∈ M =⇒ E − F ∈ M.

c) Fecho em relação a uniões e intersecções, finitas e numeráveis:


m
[ m
\ ∞
[ ∞
\
En ∈ M, ∀n∈N =⇒ En , En , En , En ∈ M.
n=1 n=1 n=1 n=1

O objectivo da teoria da medida é o estudo de funções σ-aditivas, definidas


em σ-álgebras, e são estas as funções que chamamos medidas.
Definição 2.1.5 (Medidas de Radon, Reais e Complexas). Seja M uma
σ-álgebra de conjuntos em X. Dizemos que µ é uma medida real (respec-
tivamente, complexa) se e só se µ é uma função σ-aditiva definida em M,
com valores reais (respectivamente, complexos). Uma medida de radon é
uma função σ-aditiva µ : M → [0, +∞], que não é identicamente +∞, i.e.,
tal que µ(∅) = 0.
As seguintes observações são muito fáceis de verificar:
80 Capı́tulo 2. A Medida de Lebesgue

• Qualquer medida complexa α é da forma α = µ + iλ, onde µ e λ são


medidas reais.

• As medidas reais não-negativas são as medidas de Radon finitas.

• Se π e ν são medidas de Radon finitas, então µ = π − ν é uma medida


real.

Demonstraremos, mais adiante, o chamado Teorema da Decomposição de


Hahn-Jordan. Este resultado mostra que qualquer medida real µ é da forma
µ = µ+ − µ− , onde µ+ e µ− são medidas de Radon finitas. De acordo com
as observações acima, e o teorema de Hahn-Jordan, as medidas de Radon
são elementos base da teoria. As relações entre os diversos tipos de medidas
mencionados ilustram-se na figura 2.1.1.

Figura 2.1.1: Tipos de medidas.

Exemplos 2.1.6.
1. A distribuição de dirac δ, definida em P(R) por

1, se 0 ∈ A, e
δ(A) =
0, se 0 6∈ A,

é uma medida em P(R), e diz-se, também, a medida de dirac. É frequente-


mente utilizada para representar a distribuição de massa associada a um único
ponto material, de massa unitária, colocado na origem. Mais geralmente, se X
é um conjunto e x0 ∈ X, a distribuição de Dirac (em x0 ) define-se por

1, se x0 ∈ A, e
δx0 (A) =
0, se x0 6∈ A,

e é uma medida em P(X).


2. Sendo X um conjunto, o cardinal é uma medida em P(X). O cardinal é
uma medida de Radon, que é finita se e só se o conjunto X é finito. Diz-se,
frequentemente, a medida de contagem, e é aqui designada por “#”.
3. Uma medida de probabilidade π no conjunto X é, simplesmente, uma
medida de Radon satisfazendo a condição π(X) = 1. Em certo sentido, é
2.1. Espaços Mensuráveis e Medidas 81

legı́timo dizer que a Teoria das Probabilidades não passa de um subcapı́tulo


da Teoria da Medida! Um dos exemplos mais simples de medida de probabi-
lidade resulta de tomar π(E) = #(E)/#(X), para qualquer E ∈ P(X), onde
X é um conjunto finito. Neste caso, os diversos elementos de X correspon-
dem a acontecimentos igualmente prováveis, o que é o usual modelo para o
estudo de muitas questões elementares sobre, por exemplo, jogos de azar com
cartas e dados. A própria medida de Dirac é um exemplo trivial de medida de
probabilidade.

4. O usual pente de Dirac em R é a medida de Radon π(E) = #(E ∩ Z).

Definição 2.1.7 (Espaço de Medida). Um espaço de medida é um terno


(X, M, µ), onde (X, M) é um espaço mensurável, e µ é uma medida de
Radon definida em M.

Exemplos 2.1.8.
1. (R, P(R), δ) é um espaço de medida.

2. O espaço da medida de contagem em N é (N, P(N), #).

3. Um espaço de probabilidade é um espaço de medida (X, M, µ) em que


µ(X) = 1, ou seja, em que µ é uma medida de probabilidade. Neste caso, é
tradicional dizer que os conjuntos mensuráveis, i.e., os conjuntos E ∈ M, são
os acontecimentos.

Utilizaremos, no que se segue, a seguinte terminologia:

Definição 2.1.9 (Espaço de Medida Finito, σ-Finito). O espaço de medida


(X, M, µ) diz-se finito, se e só se µ(X) < ∞. Diz-se σ-finito, se e só se
existem conjuntos Xn ∈ M, tais que

[
µ(Xn ) < ∞, e X = Xn .
n=1

Dizemos igualmente que a medida µ é finita, ou σ-finita.

Exemplos 2.1.10.
1. Qualquer espaço de probabilidades é um espaço de medida finito, porque,
neste caso, µ(X) = 1.

2. O pente de Dirac (exemplo 2.1.6.4) é uma medida σ-finita que não é finita.

3. O espaço da medida de contagem (X, P(X), #), em qualquer conjunto X


infinito não-numerável, não é σ-finito. Basta notar que, se os conjuntos Xn ⊆
X têm medida finita, i.e., se são conjuntos finitos, então o conjunto ∪∞
n=1 Xn é
finito, ou infinito numerável, e portanto X 6= ∪∞ X
n=1 n .
82 Capı́tulo 2. A Medida de Lebesgue

Os próximos teoremas indicam propriedades válidas para qualquer me-


dida, que utilizaremos quase constantemente no que se segue. Começamos
por resumir alguns dos resultados elementares que já apresentámos até aqui.

Teorema 2.1.11. Seja µ uma medida definida na σ-álgebra M em X. Se


os conjuntos E, F, E1 , E2 , · · · , En , · · · são M-mensuráveis, temos:

a) µ(∅) = 0.

b) Aditividade e σ-aditividade: Se os conjuntos En são disjuntos,


m
[ m
X ∞
[ ∞
X
µ( En ) = µ(En ), e µ( En ) = µ(En ).
n=1 n=1 n=1 n=1

Se µ é não-negativa, i.e., se µ é uma medida de Radon, temos ainda:

c) Monotonia: E ⊆ F =⇒ µ(E) ≤ µ(F ).

d) Subaditividade e σ-subaditividade:
m
[ m
X ∞
[ ∞
X
µ( En ) ≤ µ(En ), e µ( En ) ≤ µ(En ).
n=1 n=1 n=1 n=1

Qualquer sucessão monótona na “recta acabada” R = [−∞, ∞] con-


verge para algum α ∈ R, e introduzimos aqui algumas convenções simples:

• Se a sucessão de termo geral xn é crescente, então α = sup xn , e


escrevemos “xn ր α”.

• Quando a sucessão é decrescente, α = inf xn , e escrevemos “xn ց α”.

Se os conjuntos En formam uma sucessão crescente, escrevemos



[
En ր E, onde se entende que E = En .
n=1

Se os conjuntos En formam uma sucessão decrescente, escrevemos



\
En ց E, onde se entende que E = En .
n=1

Se os conjuntos En são M-mensuráveis, e formam uma sucessão cres-


cente, é possı́vel usar, indirectamente, a σ-aditividade de µ, para calcular a
medida do conjunto ∪∞ n=1 En .

Teorema 2.1.12 (da Convergência Monótona de Lebesgue). Se os conjun-


tos En ∈ M, e En ր E, então E ∈ M, e µ(En ) → µ(E).
2.1. Espaços Mensuráveis e Medidas 83

Demonstração. Sendo Fn+1 = En+1 − En , e F1 = E1 , notamos que os con-


juntos Fn são disjuntos, e verificam
n
[ ∞
[ ∞
[
En = Fk , e E = En = Fn .
k=1 n=1 n=1

Como os conjuntos Fn são disjuntos, e µ é uma medida, temos, imediata-


mente,
n
[ n
X ∞
[ ∞
X
µ(En ) = µ( Fk ) = µ(Fk ), e µ(E) = µ( Fn ) = µ(Fn ).
k=1 k=1 n=1 n=1

É, portanto, óbvio que µ(En ) → µ(E).

Se os conjuntos En formam uma sucessão decrescente, temos

Teorema 2.1.13. Se os conjuntos En ∈ M, e En ց E, então E ∈ M. Se,


além disso, µ(E1 ) 6= +∞, então µ(En ) → µ(E).

Demonstração. Os conjuntos Fn = E1 − En são M-mensuráveis e formam


uma sucessão crescente. Portanto,

[ ∞
[
µ(Fn ) → µ( Fn ), ou seja, µ(E1 − En ) → µ( (E1 − En )).
n=1 n=1

Por outro lado,



[ ∞
\ ∞
\
(E1 − En ) = E1 − En =⇒ µ(E1 − En ) → µ(E1 − En ).
n=1 n=1 n=1

Dado que En ⊆ E1 e ∩∞ n=1 En ⊆ E1 , se todos os conjuntos em causa têm


medida finita, é claro que

\ ∞
\
µ(En ) = µ(E1 ) − µ(E1 − En ), e µ( En ) = µ(E1 ) − µ(E1 − En ).
n=1 n=1

Obtemos, imediatamente, que



\
µ(En ) → µ( En ).
n=1

A hipótese adicional µ(E1 ) 6= +∞, referida no teorema anterior, só não


é automaticamente satisfeita quando µ é uma medida de Radon. O exemplo
seguinte mostra que, neste caso, a hipótese é indispensável.
84 Capı́tulo 2. A Medida de Lebesgue

Exemplo 2.1.14.
Considere-se o espaço de medida (de contagem) (N, P(N), #). Os conjuntos
En = {k ∈ N : k ≥ n} formam uma sucessão decrescente, e ∩∞
n=1 En = ∅. Como
#(En ) = +∞, é evidente que #(En ) não converge para #(∩∞n=1 En ) = 0.

Certas funções σ-subaditivas, ditas medidas exteriores, têm um papel


auxiliar, mas importante, na Teoria da Medida, comparável ao do conteúdo
exterior na teoria de Jordan. São definidas como se segue:

Definição 2.1.15 (Medidas Exteriores). A função λ : P(X) → [0, +∞]


diz-se uma medida exterior em X se e só se λ é σ-subaditiva, e λ(∅) = 0.

A principal restrição na definição anterior é, para além da σ-subaditivi-


dade, o facto de λ estar definida para todos os subconjuntos de X.

Exemplos 2.1.16.
1. A função λ : P(X) → [0, +∞], dada por

0, se E = ∅, e
λ(E) =
1, se E 6= ∅,

é uma medida exterior. A função λ não é aditiva, e não é uma medida, excepto
nos casos triviais em que X é vazio, ou tem apenas um elemento.

2. Se R é um subconjunto limitado de RN , o conteúdo exterior de Jordan está


definido para qualquer subconjunto E de R, e vimos, nos exercı́cios do ca-
pı́tulo anterior, que é uma função subaditiva. Deixamos para os exercı́cios
desta secção verificar que, no entanto, o conteúdo exterior de Jordan não é
σ-subaditivo, e, portanto, não é uma medida exterior em R.

O próximo resultado é muito simples de provar.

Teorema 2.1.17. Qualquer medida exterior é monótona e subaditiva.

Utilizaremos com alguma frequência o seguinte procedimento de definição


de medidas exteriores.

Teorema 2.1.18. Seja X um conjunto, S uma classe de subconjuntos de


X, e λ : S → [0, ∞] uma função. Suponha-se que:

a) ∅ ∈ S, e λ(∅) = 0,

b) Existem conjuntos Sn ∈ S, tais que X = ∪∞ 3


n=1 Sn ( ), e

3
Dizemos neste caso que S é uma cobertura sequencial de X.
2.1. Espaços Mensuráveis e Medidas 85

c) λ∗ : P(X) → [0, ∞] é dada por

∞ ∞
( )
X [
λ∗ (E) = inf λ(Sn ) : E ⊆ Sn , Sn ∈ S .
n=1 n=1

Então λ∗ é uma medida exterior em X.

Demonstração. Como ∅ ∈ S, tomamos Sn = ∅ para qualquer n ∈ N, para


concluir que λ∗ (∅) = 0.
Para provar que λ∗ é σ-subaditivo, consideramos conjuntos E, En ⊆ X,
onde

[
E⊆ En .
n=1

Dado ε > 0 arbitrário, existem conjuntos Smn , com n, m ∈ N, tais que


∞ ∞
[ X ε
En ⊆ Smn , e λ∗ (En ) ≤ λ(Smn ) ≤ λ∗ (En ) + .
2n
m=1 m=1

A famı́lia {Smn : n, m ∈ N} é uma cobertura numerável de E por conjuntos


em S, i.e., E ⊆ ∪∞ ∞
n=1 ∪m=1 Smn , e portanto


∞ X ∞ ∞
X X ε X
λ∗ (E) ≤ λ(Smn ) ≤ [λ∗ (En ) + n
]≤ε+ λ∗ (En ).
2
n=1 m=1 n=1 n=1

Fazendo ε → 0, obtemos o resultado pretendido.

Exemplos 2.1.19.
1. Designando por R(RN ) a classe dos rectângulos-N limitados, é claro que
R(RN ) é uma cobertura sequencial de RN . Veremos já na próxima secção que
a medida exterior de Lebesgue em RN , designada m∗N , pode ser obtida fazendo
S = R(RN ), e λ = cN . Mais precisamente,

∞ ∞
( )
X [
m∗N (E) = inf cN (Rn ) : E ⊆ Rn , Rn ∈ R(RN ) .
n=1 n=1

Em particular, o conjunto E é nulo no sentido de Borel se e só se m∗N (E) = 0.

2. Generalizando o exemplo anterior, qualquer função λ : R(RN ) → [0, ∞] que


satisfaça λ(∅) = 0 determina uma medida exterior λ∗ em RN , dada por

∞ ∞
( )
X [
∗ N
λ (E) = inf λ(Rn ) : E ⊆ Rn , Rn ∈ R(R ) .
n=1 n=1
86 Capı́tulo 2. A Medida de Lebesgue

3. A classe F(R) formada pelos intervalos da forma ]a, b] é uma cobertura se-
quencial de R. Vimos no exemplo 1.2.5.5 que qualquer função F : R → R
determina uma função λ : F(R) → R, dada por λ(]a, b]) = F (b) − F (a). Su-
pondo que F é crescente, a função λ∗ : P(R) → [0, ∞], dada por

∞ ∞
( )
X [

λ (E) = inf [F (bn ) − F (an )] : E ⊆ ]an , bn ],
n=1 n=1

é uma medida exterior em R.

Exercı́cios.

1. Seja X um conjunto infinito. Diga, para cada um dos exemplos seguintes,


se a função de conjuntos em causa µ : P(X) → [0, +∞] é aditiva, subaditiva,
σ-aditiva, σ-subaditiva.

a) µ(E) = 0, se E é finito, com µ(E) = 1, se E é infinito,


b) µ(E) = 0, se E é finito, com µ(E) = +∞, se E é infinito.

2. Suponha que M é uma σ-álgebra em X, e E1 , E2 , · · · , En , · · · são conjuntos


em M. Prove que E = ∩∞n=1 En pertence igualmente a M (Teorema 2.1.4).

3. Suponha que µ é uma medida definida na σ-álgebra M, e E é M-mensurável.


Prove que a função λ definida por λ(F ) = µ(F ∩ E) é igualmente uma medida.

4. Em cada um dos casos seguintes, prove que a função µ : P(X) → [0, +∞]
dada é uma medida na σ-álgebra P(X).

a) A medida de contagem #.
b) a medida de Dirac δx0 , onde x0 ∈ X.

5. Suponha que (X, M) é um espaço mensurável, e µ é uma medida complexa


definida em M. Prove que

a) Existem medidas reais α e β tais que µ = α + iβ.


b) µ(∅) = 0.
c) µ é aditiva.

6. Suponha que µn : Mn → [0, +∞] é uma medida de Radon na σ-álgebra Mn


em X. Considere

\ ∞
X
M= Mn , e µ : M → [0, +∞] dada por µ(E) = µn (E), para E ∈ M.
n=1 n=1

Prove que M é uma σ-álgebra em X, e µ é uma medida de Radon em M.


2.2. A Medida de Lebesgue 87

7. (O Lema de Borel-Cantelli)(4 ): Suponha que (X, M) é um espaço men-


surável, e µ é uma medida de RadonPdefinida em M. Suponha, ainda, que

os conjuntos En são M-mensuráveis, n=1 µ(En ) < ∞, e E é o conjunto dos
x ∈ X que pertencem a um número infinito de conjuntos En ’s. Prove que E é
M-mensurável, e µ(E) = 0. Sugestão: Prove primeiro que
∞ [
\ ∞
E= Ek .
n=1 k=n

8. Se R é um subconjunto limitado de RN , o conteúdo exterior de Jordan está


definido para qualquer subconjunto E de R. Verifique que o conteúdo exterior
de Jordan, apesar de subaditivo, não é σ-subaditivo, e portanto não é uma
medida exterior em R.(Exemplo 2.1.16.2)

9. Existe alguma σ-álgebra infinita numerável? Sugestão: comece por provar


que qualquer σ-álgebra infinita contém uma famı́lia infinita de conjuntos men-
suráveis disjuntos.

2.2 A Medida de Lebesgue


Passamos a descrever a extensão do conteúdo de Jordan descoberta por
Lebesgue, que envolve:

• A classe L(RN ), formada pelos conjuntos Lebesgue-mensuráveis, e

• A medida de Lebesgue mN , que é uma função mN : L(RN ) → [0, +∞].

A função mN é uma extensão da conteúdo de Jordan, no sentido usual


do termo “extensão”, i.e.,

J (RN ) ⊆ L(RN ), e mN (J) = cN (J) para qualquer J ∈ J (RN ).

A “medida de Lebesgue” será necessariamente também uma extensão da


função cN , tal como a redefinimos em 1.6.8 para os conjuntos em Jσ (RN ):
se E ∈ Jσ (RN ), existem conjuntos Jordan-mensuráveis disjuntos En tais
que E = ∪∞ n=1 En , e devemos ter

X ∞
X
mN (E) = mN (En ) = cN (En ) = cN (E).
n=1 n=1

Como RN é σ-elementar, é óbvio que qualquer subconjunto de RN pode ser


aproximado por excesso por conjuntos σ-elementares, i.e.,

Se E ⊆ RN , existe U ∈ Eσ (RN ) tal que E ⊆ U.


4
De Borel, e Francesco Paolo Cantelli, 1875-1966, matemático italiano, professor na
Universidade de Roma.
88 Capı́tulo 2. A Medida de Lebesgue

Se mN (E) está definida, temos então, por monotonia,

mN (E) ≤ mN (U ) = cN (U ).

Concluı́mos que cN (U ) é uma aproximação por excesso de mN (E), i.e.,

cN (U ) : E ⊆ U, U ∈ Eσ (RN ) .

mN (E) é minorante do conjunto

Observamos aqui, tal como o fizémos no Capı́tulo 1, a propósito da noção


de conteúdo exterior de Jordan, que:

mN (E) ≤ inf cN (U ) : E ⊆ U, U ∈ Eσ (RN ) .




Como já mencionámos, a próxima definição é uma simples adaptação da de


Jordan e Peano, mas agora usando os conjuntos σ-elementares.

Definição 2.2.1 (Medida Exterior de Lebesgue ). A medida exterior de


Lebesgue em RN é a função m∗N : P(RN ) → [0, +∞], dada por

m∗N (E) = inf cN (U ) : E ⊆ U, U ∈ Eσ (RN ) .




A proposição seguinte indica outras possı́veis definições para a medida


exterior de Lebesgue, e a sua demonstração fica como exercı́cio. Repare-
se que a observação final, relativa ao facto de m∗N ser efectivamente uma
medida exterior, resulta do teorema 2.1.18.

Proposição 2.2.2. Dado E ⊆ RN , temos:

∞ ∞
( )
X [
m∗N (E) = inf cN (Rn ) : E ⊆ Rn , Rn rectângulo limitado ,
n=1 n=1
N

inf cN (U ) : E ⊆ U ⊆ R , U aberto .

Em particular, m∗N é uma medida exterior.

A próxima proposição compara a medida exterior de Lebesgue com o


conteúdo interior, exterior, e com a função cN .

Proposição 2.2.3. Se E ⊆ RN , então

a) Se E é limitado, cN (E) ≤ m∗N (E) ≤ cN (E).

b) Se E ∈ Jσ (RN ), m∗N (E) = cN (E).


2.2. A Medida de Lebesgue 89

Demonstração. Demonstramos apenas que cN (E) ≤ m∗N (E), deixando as


restantes afirmações para o exercı́cio 12. Para isso, supomos que K ⊆ E
é elementar, e U ⊇ E é σ-elementar. Consideramos ainda conjuntos ele-
mentares disjuntos Un tais que U = ∪∞ n=1 Un ⊇ E ⊇ K. Como o conteúdo
de Jordan é σ-subaditivo, temos

X
cN (K) ≤ cN (Un ) = cN (U ).
n=1

Por outras palavras,


cN (U ) : E ⊆ U, U ∈ Eσ (RN ) .

cN (K) é minorante de
Concluı́mos que cN (K) ≤ m∗N (E), ou seja,
m∗N (E) é majorante de cN (K) : K ∈ E(RN ), K ⊆ E .


É, assim, evidente que cN (E) ≤ m∗N (E).


Exemplos 2.2.4.
1. O conjunto Q é σ-elementar, e portanto m∗ (Q) = c1 (Q) = 0. Note-se que
escrevemos m∗ em vez de m∗1 .
2. Sendo D = Q ∩ [0, 1] o exemplo de Dirichlet, temos
0 = c(E) = c1 (Q) = m∗ (E) < c(E) = 1.

As propriedades da medida exterior de Lebesgue indicadas a seguir são


consequências directas das propriedades análogas do conteúdo de Jordan.
Proposição 2.2.5. Sejam E ⊆ RN e F ⊆ RM , e x ∈ RN . Seja ainda R a
reflexão de E no hiperplano xk = 0. Temos então:
a) Invariância sob translações: m∗N (E + x) = m∗N (E).
b) Invariância sob reflexões: m∗N (R) = m∗N (E).
c) Medida exterior do produto: m∗N +M (E × F ) ≤ m∗N (E) × m∗M (F ).
Demonstração. A verificação de a) e de b) é particularmente simples. Por
exemplo, é muito fácil mostrar que
cN (U ) : E ⊆ U, U ∈ Eσ (RN ) = cN (V ) : E + x ⊆ V, V ∈ Eσ (RN ) ,
 

porque os conjuntos V são da forma V = (U + x), e cN (U + x) = cN (U ).


c) Existem conjuntos Un ∈ Eσ (RN ), e Vm ∈ Eσ (RM ), tais que Un ⊇ E,
Vm ⊇ F , cN (Un ) ց m∗N (E), e cM (Vm ) ց m∗M (F ). É claro que E × F ⊆
Un × Vm , e portanto, usando o lema 1.6.14, temos
(i) m∗N +M (E × F ) ≤ cN +M (Un × Vm ) = cN (Un )cM (Vm ),
Consideramos, agora, os seguintes casos:
90 Capı́tulo 2. A Medida de Lebesgue

• O produto m∗N (E)m∗M (F ) não é da forma 0 × ∞: Temos, então, que


cN (Un )cM (Vm ) → m∗N (E)m∗M (F ) (5 ), e segue-se, de (i), que

(ii) m∗N +M (E × F ) ≤ m∗N (E) × m∗M (F ).

• O produto m∗N (E)×m∗M (F ) é da forma 0×∞: supomos que m∗N (E) =


0, e m∗M (F ) = ∞. Definimos os conjuntos auxiliares

[
Fn = {y ∈ F : kyk ≤ n} = F ∩ B(0, n), donde F = Fn .
n=1

Os conjuntos Fn têem medida exterior finita, porque são limitados.


Segue-se de (ii) que m∗N +M (E × Fn ) = 0 × m∗M (Fn ) = 0. Temos então:

[ ∞
X
E×F = E × Fn ⇒ m∗N +M (E × F) ≤ m∗N +M (E × Fn ) = 0.
n=1 n=1

A medida exterior de Lebesgue providencia apenas uma aproximação


por excesso da medida de Lebesgue. Lebesgue descobriu, igualmente, uma
aproximação por defeito apropriada, dita hoje a medida interior de Le-
besgue, e definiu os conjuntos Lebesgue-mensuráveis, imitando Jordan e
Peano, como os conjuntos cujas medidas interior e exterior de Lebesgue
são iguais. Afastamo-nos aqui do procedimento original de Lebesgue(6 ),
utilizando uma técnica mais directa, que resulta da seguinte observação:

Seja qual for a “correcta” definição de medida interior de Lebesgue,


devemos ter, para os conjuntos Lebesgue-mensuráveis, que

mN (E) = m∗N (E),

exactamente como temos, para os conjuntos Jordan-mensuráveis, que

cN (E) = cN (E).

De acordo com esta observação, a medida exterior m∗N deve coincidir


com a medida de Radon mN na classe dos conjuntos Lebesgue-mensuráveis
L(RN ), e será, portanto, σ-aditiva em L(RN ). Por outras palavras, L(RN )
5
Observe que, se xn e yn são sucessões convergentes em [0, ∞], então, exactamente
como em R, a única indeterminação a considerar, no cálculo do limite de xn yn , é a que
ocorre quando uma das sucessões tende para 0, e a outra para ∞.
6
O trabalho original de Lebesgue contemplava conjuntos E ⊆ I, onde I é um intervalo
limitado. A medida interior de E é neste caso c(I) − m∗ (I − E). Note-se do exercı́cio 14
desta secção que a definição da medida interior de Lebesgue está longe de ser trivial.
2.2. A Medida de Lebesgue 91

é uma classe de conjuntos onde a medida exterior de Lebesgue é σ-aditiva.


Como m∗N é, em qualquer caso, σ-subaditiva, sabemos que

m∗N é σ-aditiva em L(RN ) ⇐⇒ m∗N é aditiva em L(RN ).

Por esta razão, e em vez de nos ocuparmos da definição da medida interior


de Lebesgue, propomo-nos estudar as σ-álgebras onde a medida exterior é
aditiva. Mais exactamente, propomo-nos resolver o seguinte problema:

2.2.6 (O Problema “Fácil” de Lebesgue). Determinar uma σ-álgebra


MN ⊇ E(RN ) onde a medida exterior de Lebesgue seja aditiva.

Deve ser claro que:

• Se MN é solução do problema “fácil” de Lebesgue, e λ é a restrição


de m∗N a MN , então (RN , MN , λ) é um espaço de medida.

• Neste caso, (RN , MN , λ) é também uma solução do problema de Borel.

Figura 2.2.1: Decomposição do conjunto elementar J.

Começamos o nosso estudo detalhado do problema “fácil” de Lebesgue


2.2.6 por uma observação muito simples, sugerida pela figura 2.2.1.

Proposição 2.2.7. Se MN é solução do problema 2.2.6, então, para qual-


quer E ∈ MN , e qualquer rectângulo-N limitado R, temos:

cN (R) = m∗N (R ∩ E) + m∗N (R − E).

Demonstração. Seja MN uma solução do problema 2.2.6. Como MN é


uma semi-álgebra que contém os rectângulos limitados, e E ∈ MN , temos
R ∩ E, R − E ∈ MN . Os conjuntos R ∩ E e R − E são disjuntos, e é claro
que R = (R ∩ E) ∪ (R − E). Como m∗N é, por hipótese, aditiva em MN ,
temos m∗N (R) = m∗N (R ∩ E) + m∗N (R − E). Como m∗N (R) = cN (R) (por
2.2.3), temos, finalmente, cN (R) = m∗N (R ∩ E) + m∗N (R − E).
92 Capı́tulo 2. A Medida de Lebesgue

A condição referida acima pode ser reformulada de diversas maneiras, em


particular usando subconjuntos arbitrários de RN . Neste caso, esta refor-
mulação é uma consequência directa, e quase trivial, da definição da medida
exterior de Lebesgue, mas, como veremos adiante, sugere ideias muito úteis
para o estudo de qualquer medida exterior.
Proposição 2.2.8. As seguintes afirmações são equivalentes:
a) cN (R) = m∗N (R ∩ E) + m∗N (R − E), para qualquer rectângulo-N limi-
tado.
b) m∗N (F ) = m∗N (F ∩ E) + m∗N (F − E), para qualquer F ⊆ RN .
Demonstração. É evidente que b) ⇒ a), e, portanto, limitamo-nos a provar
que a) ⇒ b). Recordamos que m∗N é subaditiva, donde
m∗N (F ) ≤ m∗N (F ∩ E) + m∗N (F − E).
Por esta razão, temos a provar apenas a desigualdade
m∗N (F ) ≥ m∗N (F ∩ E) + m∗N (F − E).
Considerem-se rectângulos limitados Rn , tais que F ⊆ ∪∞
n=1 Rn . É claro que

[ ∞
[
F ∩E ⊆ (Rn ∩ E), e F − E ⊆ (Rn − E).
n=1 n=1

Como m∗N é σ-subaditiva, sabemos que



X ∞
X
m∗N (F ∩ E) ≤ m∗N (Rn ∩ E), e m∗N (F − E) ≤ m∗N (Rn − E).
n=1 n=1

Adicionando as desigualdades precedentes, obtemos



X
m∗N (F ∩ E) + m∗N (F − E) ≤ [m∗N (Rn ∩ E) + m∗N (Rn − E)].
n=1

Por hipótese, temos m∗N (Rn ∩ E) + m∗N (Rn − E) = cN (Rn ). Concluı́mos que

X
m∗N (F ∩ E) + m∗N (F − E) ≤ cN (Rn ).
n=1

Dito doutra forma, m∗N (F ∩ E) + m∗N (F − E) é minorante do conjunto


(∞ ∞
)
X [
cN (Rn ) : F ⊆ Rn , onde os Rn são rectângulos-N .
n=1 n=1

Como m∗N (F ) é o ı́nfimo deste mesmo conjunto, é evidente que


m∗N (F ∩ E) + m∗N (F − E) ≤ m∗N (F ).
2.2. A Medida de Lebesgue 93

As definições fundamentais da teoria de Lebesgue são as seguintes:


Definição 2.2.9 (Conjuntos de Lebesgue, Medida de Lebesgue). Sendo
E ⊆ RN ,
a) E diz-se Lebesgue-mensurável (em RN ) se e só se

m∗N (F ) = m∗N (F ∩ E) + m∗N (F − E), para qualquer F ⊆ RN .

b) L(RN ) é a classe dos conjuntos Lebesgue-mensuráveis em RN .

c) A medida de Lebesgue mN : L(RN ) → [0, ∞] é a restrição de m∗N


a L(RN ).
Exemplos 2.2.10.
1. Tomando E = RN na definição 2.2.9, é claro que F ∩ E = F , e F − E = ∅,
donde

m∗N (F ∩ E) + m∗N (F − E) = m∗N (F ) + m∗N (∅) = m∗N (F ).

Portanto, RN é Lebesgue-mensurável, apesar de, bem entendido, não ser Jordan-


mensurável.
2. Se m∗N (E) = 0 e F ⊆ RN , então m∗N (F ∩ E) = 0, porque F ∩ E ⊆ E, e m∗N
é monótona. Temos, assim, que

m∗N (F ∩ E) + m∗N (F − E) = m∗N (F − E) ≤ m∗N (F ),

mais uma vez, porque m∗N é monótona. Por outro lado, e como m∗N é subadi-
tiva, temos
m∗N (F ∩ E) + m∗N (F − E) ≥ m∗N (F ).
Concluı́mos que qualquer conjunto com medida exterior nula é Lebesgue-men-
surável.
3. Já observámos que E ⊂ RN é um conjunto nulo no sentido de Borel se e só
se m∗N (E) = 0. Podemos concluı́r que E é nulo no sentido de Borel se e só se
E ∈ L(RN ) e mN (E) = 0.
4. O conjunto Q dos racionais é Lebesgue-mensurável, porque tem medida ex-
terior nula, como vimos no exemplo 2.2.4.
5. Se E ⊂ RN tem medida exterior nula, e F ⊆ RM é arbitrário, então E ×
F é Lebesgue-mensurável, porque tem medida exterior nula, como vimos na
proposição 2.2.5.

Não é por enquanto óbvio que L(RN ) é solução do problema “fácil” de


Lebesgue. Provaremos este facto na próxima secção, como consequência de
alguns resultados mais abstractos, referentes a qualquer medida exterior, e
que nos serão muito úteis para definir outras medidas de interesse. Demons-
tramos aqui os seguintes resultados auxiliares:
94 Capı́tulo 2. A Medida de Lebesgue

Teorema 2.2.11. L(RN ) e mN têm as seguintes propriedades:

a) J (RN ) ⊂ L(RN ).

b) mN é aditiva, e portanto σ-aditiva, em L(RN ).

c) Se E ∈ L(RN ) e x ∈ RN então E + x ∈ L(RN ).

d) Se MN é solução do problema “fácil” de Lebesgue, então MN ⊆


L(RN ).

Demonstração. Para provar a), suponha-se que E ∈ J (RN ), e R é um


rectângulo limitado. Como J (RN ) é uma semi-álgebra que contém os
rectângulos limitados, os conjuntos R ∩ E e R − E são Jordan-mensuráveis.
O conteúdo de Jordan é aditivo em J (RN ), e os conjuntos R ∩ E e R − E
são, por razões óbvias, disjuntos. Como R = (R ∩ E) ∪ (R − E), e a medida
exterior de Lebesgue coincide com o conteúdo de Jordan em J (RN ), temos

cN (R) = cN (R ∩ E) + cN (R − E) = m∗N (J ∩ E) + m∗N (J − E).

Concluı́mos, de 2.2.8, que E é Lebesgue-mensurável, i.e., E ∈ L(RN ).


Para provar b), que aliás demonstraremos novamente na próxima secção,
no contexto mais geral que referimos acima, basta supormos que os conjuntos
A e B são disjuntos, e que pelo menos um deles é Lebesgue-mensurável. Seja
então A ∈ L(RN ). Como A ∩ B = ∅, temos

(A ∪ B) ∩ A = A e (A ∪ B) − A) = B.

De acordo com 2.2.9 a), tomando E = A e F = A ∪ B, obtemos

m∗N (A ∪ B) = m∗N ((A ∪ B) ∩ A) + m∗N ((A ∪ B) − A) = m∗N (A) + m∗N (B).

Deixamos a verificação de c) e d) como exercı́cio.

Mostraremos na próxima secção que a classe L(RN ) é uma σ-álgebra, e


é, portanto, solução do problema fácil de Lebesgue. Tomando esta afirmação
como verdadeira, e usando o resultado anterior, registamos desde já que:

• A medida de Lebesgue é uma extensão do conteúdo de Jordan.

• Qualquer solução do problema “fácil” de Lebesgue é uma restrição


da medida de Lebesgue, i.e., a medida de Lebesgue é a solução deste
problema com o maior domı́nio de definição possı́vel. Dizemos por
isso que a medida de Lebesgue é a maior solução do problema de
Lebesgue.

• A medida de Lebesgue é solução do problema de Borel.


2.2. A Medida de Lebesgue 95

• Se a medida µ é solução do problema de Borel, então µ(E) ≤ m∗N (E)


para qualquer conjunto E no seu domı́nio de definição. Não se segue
daqui que µ(E) = m∗N (E), i.e., pelo menos em princı́pio, podem exis-
tir soluções do problema de Borel que não coincidem com a medida
exterior de Lebesgue, e que por isso não são soluções do problema de
Lebesgue(7 ).

Em particular, o facto de L(RN ) ser a maior solução do problema “fácil”


de Lebesgue não resolve a questão mais profunda de saber se existe alguma
extensão do conteúdo de Jordan definida numa σ-álgebra L∗ (RN ) ⊃ L(RN ),
L∗ (RN ) 6= L(RN ). O próprio Lebesgue (8 ) enunciou e estudou o seguinte
problema, que envolve a escolha L∗ (R) = P(R):

2.2.12 (O Problema “Difı́cil” de Lebesgue). Determinar uma função m :


P(R) → [0, ∞] com as seguintes propriedades:

1. Normalização: Se I é um intervalo de extremos a, b, m(I) = b − a.

2. Invariância sob translacções: Se x é um real e E ⊆ R,

m(E + x) = m(E).

3. σ-aditividade: Se {En } é uma sucessão de conjuntos disjuntos em R,



[ ∞
X
m( En ) = m(En ).
n=1 n=1

Infelizmente, Vitali(9 ) rapidamente descobriu que este problema não tem


solução. Pelo menos no contexto da Teoria dos Conjuntos tal como é nor-
malmente concebida hoje, é possı́vel provar que existem conjuntos que não
são mensuráveis. O exemplo que se segue é de Sierpinski (10 ).

Exemplo 2.2.13.
7
Mostraremos adiante que as soluções do problema “fácil” de Lebesgue são as chamadas
soluções regulares do problema de Borel. Provaremos também que, em qualquer caso, se
µ é uma solução do problema de Borel definida na σ-álgebra L∗ (RN ), então µ coincide
com mN em L∗ (RN ) ∩ L(RN ).
8
Em “Leçons Sur L’Integration et La Recherche de Fonctions Primitives”, de H. Le-
besgue, Paris 1904 e 1928. Lebesgue enunciou a condição 1. na forma (equivalente) de
“m([0, 1]) 6= 0”.
9
Vitali, G.: Sul problema della misura dei gruppi di punti di una retta. Bologna
(1905). De Giuseppe Vitali, 1875-1941, matemático italiano, professor nas Universidades
de Pádua e Bolonha.
10
Sierpinski, W.: Sur une problème conduisant à un ensemble non mesurable. Fund.
Math. 10 (1927) 177-179. De Waclaw Sierpinski, 1882-1969, um dos mais produtivos
matemáticos polacos do século XX, professor na Universidade de Varsóvia.
96 Capı́tulo 2. A Medida de Lebesgue

o exemplo de Sierpinski: A relação ∼ definida em R por

x∼y ⇔x−y ∈Q

é de equivalência. Fixado um real x, a classe de equivalência de x é o conjunto


[x] = {x + q : q ∈ Q}, e, por isso, tem representantes (elementos) em qualquer
intervalo aberto não-vazio. Em particular, existe um racional q tal que

−x < q < −x + 1, i.e., 0 < x + q < 1.

Se tomarmos a = x + q, então x ∼ a, e a ∈ ]0, 1[. Por outras palavras,


2.2.14. Qualquer classe de equivalência [x] tem pelo menos um representante
a no intervalo ]0, 1[.

De acordo com o axioma da escolha, (11 )


2.2.15. Existe um conjunto A que contém exactamente um representante de
cada classe de equivalência [x], representante esse sempre em ]0, 1[.

Sendo r1 , · · · , rn , · · · os racionais de ] − 1, 1[, definimos



[
An = A + rn = {a + rn : a ∈ A} , e S = An .
n=1

Provamos, em seguida, que


2.2.16. Os conjuntos An são disjuntos entre si, i.e., An ∩ Am 6= ∅ ⇒ n = m.

Demonstração. Se x ∈ An ∩ Am , existe a ∈ A tal que a + rn = x, porque


x ∈ An , e existe também a∗ ∈ A tal que a∗ + rm = x, porque x ∈ Am . Mas

x = a + rn = a∗ + rm ⇒ a − a∗ = rm − rn ∈ Q ⇒ a ∼ a∗ ⇒ [a] = [a∗ ].

Como A tem exactamente um representante de cada classe [a], temos a = a∗ e


rn = rm , donde n = m.

Suponha-se que o Problema 2.2.12 tem solução. Como m é invariante sob


translacções (propriedade 2), temos m(An ) = m(A). Como os conjuntos An
são disjuntos entre si, temos, por σ-aditividade, (propriedade 3), que:

X ∞
X
m(S) = m(An ) = m(A).
n=1 n=1

Concluı́mos que m(S) só pode tomar um de dois valores, dependendo do valor
de m(A):
(1) m(A) 6= 0 =⇒ m(S) = +∞, ou
(2) m(A) = 0 =⇒ m(S) = 0.
Demonstramos que o problema “difı́cil” de Lebesgue não tem solução, verifi-
cando que qualquer uma destas alternativas conduz a contradições. Provamos
primeiro que a alternativa (1) é impossı́vel:
11
Ver nota complementar sobre o axioma da escolha, no final desta secção.
2.2. A Medida de Lebesgue 97

2.2.17. S ⊆] − 1, 2[, donde m(S) ≤ m(] − 1, 2[) = 3 < +∞.

Demonstração. Basta observar que A ⊆ ]0, 1[, e −1 < rn < +1, donde An ⊆
] − 1, 2[, e S ⊆] − 1, 2[. Como m é monótona, temos m(S) ≤ m(] − 1, 2[), e, de
acordo com 1. (Normalização), m(] − 1, 2[) = 3.

Provamos, finalmente, que a alternativa (2) é igualmente impossı́vel, porque


2.2.18. ]0, 1[⊆ S, donde 1 ≤ m(S), e m(S) 6= 0.
Se x ∈ ]0, 1[, existe algum a ∈ A que é equivalente a x, porque A contém um
representante de qualquer classe, incluindo [x]. Naturalmente, x = a + r, onde
r ∈ Q. Sabemos também que a ∈ ]0, 1[. Como também x ∈ ]0, 1[, é claro que
r = x − a ∈] − 1, 1[. Por outras palavras, existe um natural n tal que r = rn ,
e x ∈ An , donde x ∈ S.

Como acabámos de ver, o problema 2.2.12 não tem solução, ou seja, não
é possı́vel atribuir um comprimento a todos os subconjuntos da recta real de
modo a satisfazer as três propriedades que indicámos. Como também vimos,
a medida exterior de Lebesgue satisfaz as condições (1) e (2) do Problema
2.2.12. Concluı́mos que a medida exterior de Lebesgue não pode ser σ-
aditiva, e portanto não pode ser aditiva, na classe de todos os subconjuntos
de R. Como a medida exterior de Lebesgue é aditiva em L(RN ), podemos
concluir, desde já, que L(R) 6= P(R). Por outras palavras,
Existem subconjuntos de R que não são Lebesgue-mensuráveis.
Já vimos que a medida exterior de Lebesgue é invariante sob translacções,
e referimos que se A é Lebesgue-mensurável então A + x é igualmente Le-
besgue-mensurável (exercı́cio 2). Daqui obtemos que
o conjunto A do exemplo de Sierpinski não é Lebesgue-mensurável.
Aproveitamos para uma breve descrição do chamado axioma da es-
colha da Teoria dos Conjuntos, e para esclarecer um pouco melhor o seu
papel na definição do exemplo de Sierpinski. Uma das maneiras de enunciar
este axioma é a seguinte:
2.2.19 (Axioma da Escolha). Seja F uma famı́lia de conjuntos não-vazios,
e T = ∪C∈F C. Então existe uma função f : F → T tal que f (C) ∈ C, para
qualquer C ∈ F.
Intuitivamente, a função f “escolhe” um elemento de cada conjunto C
que pertence à famı́lia F, e daı́ o nome do axioma. É por isso comum
referirmo-nos a f como uma “função de escolha”.
No caso do exemplo de Sierpinski, começamos por tomar Cx = [x]∩]0, 1[
para qualquer x ∈ R. Temos, então, (porquê?)
Para qualquer x ∈ R, Cx = {y ∈ ]0, 1[: x ≃ y} , e Cx 6= ∅, e ainda
98 Capı́tulo 2. A Medida de Lebesgue
[
T = Cx =]0, 1[.
x∈R

Seja agora F = {Cx : x ∈ R}. Pelo axioma da escolha, existe uma função
f : F →]0, 1[ tal que f (C) ∈ C, para qualquer C ∈ F. O conjunto A usado
no exemplo de Sierpinski é, exactamente,

A = f (F) = {f (C) : C ∈ F} .

Este conjunto verifica as seguintes propriedades:

(1) A contém um representante de cada classe de equivalência: Se x ∈ R,


existe a ∈ A tal que a ∼ x: basta considerar a = f (Cx ).

(2) A contém apenas um representante de cada classe de equivalência: Se


a, a∗ ∈ A, então a = f (C), e a∗ = f (C ∗ ). Se a 6= a∗ então C 6= C ∗ .
Como a e a∗ pertencem a classes de equivalência distintas, não podem
ser equivalentes entre si.

A relação entre o axioma da escolha e o problema “difı́cil” de Lebesgue


é uma questão difı́cil, e não completamente compreendida, envolvendo os
fundamentos da Teoria dos Conjuntos. Sabe-se (12 ) que a existência de uma
solução para o problema “difı́cil” de Lebesgue é compatı́vel com a negação
do axioma da escolha, mas não é consequência dessa negação. Existem,
mesmo, diferenças subtis em questões semelhantes em RN , dependendo da
dimensão N . Por exemplo, se substituirmos no problema de Lebesgue a
σ-aditividade pela aditividade, então existem soluções em R e R2 , mas,
sempre como consequência do axioma da escolha, não há solução em R3 . A
este respeito, é conhecido o:

2.2.20 (Paradoxo de Banach-Tarski). (13 ) Se A e B são esferas disjuntas


em R3 com o mesmo raio, existem conjuntos Cn , Dn , 1 ≤ n ≤ 41, tais que:

a) Os conjuntos Cn são disjuntos, e a sua união é a esfera A,

b) Os conjuntos Dn são disjuntos, e a sua união é o conjunto das duas


esferas A ∪ B, e

c) Para 1 ≤ n ≤ 41, os conjuntos Cn e Dn são isométricos (i.e., existem


funções bijectivas fn : Cn → Dn tais que kf (x) − f (y)k = kx − yk).
12
Solovay, R.M.: A model of set-theory in which every set of reals is Lebesgue measur-
able, Ann. of Math. 92 (1970).
13
Stefan Banach, 1892-1945, polaco, foi um dos grandes matemáticos do século XX. A
sua tese de doutoramento (1920), intitulada “Sobre Operações em Conjuntos Abstractos
e as suas Aplicações a Equações Integrais” é frequentemente tomada como marcando
a criação da Análise Funcional. Alfred Tarski, 1902-1983, também de origem polaca,
foi professor nas Universidades de Varsóvia e Harvard, e associou-se à Universidade de
Berkeley, na Califórnia, desde 1942.
2.3. Medidas Exteriores 99

Exercı́cios.

1. Prove que o complementar de um conjunto Lebesgue-mensurável é Lebesgue-


mensurável.

2. Prove que a medida exterior de Lebesgue é invariante sob translacções, e con-


clua que a classe dos conjuntos Lebesgue-mensuráveis é igualmente invariante
sob translacções.

3. Prove que qualquer conjunto numerável E ⊆ RN verifica m∗N (E) = 0.

4. Determine conjuntos E ⊆ R tais que

c(E) < m∗ (E) = c(E) e c(E) < m∗ (E) < c(E).

5. Prove que se m∗N (E) = 0 então qualquer subconjunto de E é Lebesgue-


mensurável.

6. Prove que se I ⊆ R é um intervalo ilimitado então I ∈ L(R), e m(I) = +∞.

7. Prove que R − Q é Lebesgue-mensurável, com m(R − Q) = ∞.

8. Prove a proposição 2.2.2.

9. Prove que Jσ (RN ) ⊂ L(RN ). Conclua que os conjuntos abertos e os conjun-


tos fechados são Lebesgue-mensuráveis.

10. Prove que se E ⊆ RN então m∗N (E) = inf{mN (U ) : E ⊆ U, U aberto }.

11. Prove que se K é compacto, então m∗N (K) = cN (K).

12. Complete a demonstração de 2.2.3.

13. Mostre que podemos ter mN (E) > 0 e int E = ∅.

14. Podemos definir a medida interior de Lebesgue do conjunto E ⊆ RN usando


sup{cN (K) : K ∈ Eσ (E)}?

15. Mostre que o conjunto A indicado na discussão do exemplo de Sierpinski


pode ser definido de modo que m∗ (A) < ε, onde ε > 0 é arbitrário.

2.3 Medidas Exteriores


Apresentamos nesta secção um conjunto de resultados importantes, aplicáveis
a qualquer medida exterior, e descobertos por Caratheodory(14 ). Muito em
14
Constantin Caratheodory (1873-1950), matemático alemão, professor na Universidade
de Munique.
100 Capı́tulo 2. A Medida de Lebesgue

especial, provamos aqui que qualquer medida exterior µ∗ determina uma σ-


álgebra de conjuntos, formada pelos conjuntos ditos “µ∗ -mensuráveis”, onde
a medida exterior dada é aditiva, e portanto σ-aditiva, i.e., onde a medida
exterior dada é uma medida de Radon. Por outras palavras,

Qualquer medida exterior determina um espaço de medida.

Aplicados ao caso especial da medida exterior de Lebesgue, estes resul-


tados mostrarão que L(RN ) é efectivamente solução do problema “fácil” de
Lebesgue, porque é uma σ-álgebra. Começamos por abstrair do problema
“fácil” de Lebesgue (2.2.6) o problema que chamamos aqui:
2.3.1 (Problema de Caratheodory). Dada uma medida exterior µ∗ em X,
determinar uma σ-álgebra M onde µ∗ seja aditiva.
Resolveremos este problema usando uma ideia directamente sugerida
pela definição 2.2.9.
Definição 2.3.2 (Conjuntos µ∗ -Mensuráveis). Dada uma medida exterior
µ∗ em X, o conjunto E ⊆ X diz-se µ∗ -mensurável se e só se

µ∗ (F ) = µ∗ (F ∩ E) + µ∗ (F − E), para qualquer conjunto F em X.

Designamos a classe dos conjuntos µ∗ -mensuráveis por Mµ∗ .


Exemplos 2.3.3.
1. No caso da medida exterior de Lebesgue, os conjuntos m∗N -mensuráveis são,
evidentemente, os conjuntos que são Lebesgue-mensuráveis no sentido de 2.2.9.
2. A medida de Dirac δ num qualquer conjunto X está definida em toda a classe
P(X), e é σ-subaditiva, porque é σ-aditiva. É, portanto, também uma medida
exterior. Neste caso, qualquer conjunto E ⊆ X é δ-mensurável, porque sendo
δ aditiva em P(X), a condição em 2.3.2 é satisfeita por todos os conjuntos
E ⊆ X.
3. Se X 6= ∅ é um conjunto, e E ⊆ X, definimos

0, se E = ∅, e
µ∗ (E) =
1, se E 6= ∅.

É simples verificar que µ∗ é uma medida exterior no conjunto X (trata-se


do exemplo 2.1.16.1 referido atrás). Sendo E ⊆ X µ∗ -mensurável, tomamos
F = X em 2.3.2, para concluir que

µ∗ (X) = µ∗ (E) + µ∗ (E c ).

Como X 6= ∅, sabemos que µ∗ (X) = 1, e a igualdade anterior só pode ser válida
se µ∗ (E) = 0, ou µ∗ (E c ) = 0, ou seja, se E = ∅, ou E c = ∅ ( i.e., se E = X).
Por outras palavras, os únicos conjuntos que podem ser µ∗ -mensuráveis são ∅,
e X. Como estes conjuntos são sempre µ∗ -mensuráveis (porquê?), neste caso
os conjuntos µ∗ -mensuráveis reduzem-se exactamente a ∅ e X.
2.3. Medidas Exteriores 101

Passamos a demonstrar que Mµ∗ é sempre uma álgebra.

Teorema 2.3.4. A classe Mµ∗ é uma álgebra em X, i.e.,

a) X ∈ Mµ∗ ,

b) Fecho em relação à complementação: A ∈ Mµ∗ =⇒ Ac ∈ Mµ∗ , e

c) Fecho em relação à intersecção: A, B ∈ Mµ∗ =⇒ A ∩ B ∈ Mµ∗ .

Demonstração. Deixamos as demonstrações de a) e b) como exercı́cio.


Para provar c), temos a mostrar que se A, B ∈ Mµ∗ então A ∩ B ∈ Mµ∗ ,
ou seja,

µ∗ (F ) = µ∗ (F ∩ (A ∩ B)) + µ∗ (F ∩ (A ∩ B)c ), para qualquer F ⊆ X.

Como µ∗ é, por hipótese, subaditiva, temos apenas que mostrar que

µ∗ (F ) ≥ µ∗ (F ∩ (A ∩ B)) + µ∗ (F ∩ (A ∩ B)c ).

Para estimar µ∗ (F ∩ (A ∩ B)c ), notamos que

F ∩ (A ∩ B)c = (F ∩ Ac ) ∪ (F ∩ A ∩ B c ).

(Observe-se a figura 2.3.1). Como µ∗ é subaditiva, temos

µ∗ (F ∩ Ac ) + µ∗ (F ∩ A ∩ B c ) ≥ µ∗ (F ∩ (A ∩ B)c ).

Somando µ∗ (F ∩ A ∩ B) a ambos os membros desta desigualdade, temos

(i ) µ∗ (F ∩ Ac ) + µ∗ (F ∩ A ∩ B) + µ∗ (F ∩ A ∩ B c ) ≥
≥ µ∗ (F ∩ A ∩ B) + µ∗ (F ∩ (A ∩ B)c ).

Como B ∈ Mµ∗ , e F ∩ A ⊆ X, usamos a definição 2.3.2, com B em vez


de E, e F ∩ A em vez de F , para concluir que

µ∗ (F ∩ A ∩ B) + µ∗ (F ∩ A ∩ B c ) = µ∗ (F ∩ A).

A desigualdade (i) pode, portanto, escrever-se na forma

(ii) µ∗ (F ∩ Ac ) + µ∗ (F ∩ A) ≥ µ∗ (F ∩ A ∩ B) + µ∗ (F ∩ (A ∩ B)c ).

Como A ∈ Mµ∗ , e F ⊆ X, temos µ∗ (F ∩ Ac )) + µ∗ (F ∩ A) = µ∗ (F ), e


segue-se, finalmente, de (ii) que

µ∗ (F ) ≥ µ∗ (F ∩ A ∩ B) + µ∗ (F ∩ (A ∩ B)c ).
102 Capı́tulo 2. A Medida de Lebesgue

Figura 2.3.1: F ∩ (A ∩ B)c = (F ∩ Ac ) ∪ (F ∩ A ∩ B c ).

É extremamente simples mostrar que a função µ∗ é aditiva na álgebra


Mµ∗ , e é sobretudo de sublinhar que, para que seja válida a identidade

µ∗ (A ∪ B) = µ∗ (A) + µ∗ (B), com A e B disjuntos,

basta que um dos conjuntos A e B seja µ∗ -mensurável.

Lema 2.3.5. Se A e B são disjuntos e A ∈ Mµ∗ , então

µ∗ (A ∪ B) = µ∗ (A) + µ∗ (B).

Demonstração. Utilizamos a definição 2.3.2, com A no lugar de E, e A ∪ B


no lugar de F . Sendo A e B disjuntos, temos

(A ∪ B) ∩ A = A, e (A ∪ B) − A = B,

donde, como A é mensurável, se segue que

µ∗ (A ∪ B) = µ∗ ((A ∪ B) ∩ A) + µ∗ ((A ∪ B) − A) = µ∗ (A) + µ∗ (B).

Este resultado pode ser generalizado, fazendo intervir um segundo con-


junto arbitrário C, que também não necessita ser µ∗ -mensurável.

Figura 2.3.2: B e C são arbitrários, A ∈ Mµ∗ .


2.3. Medidas Exteriores 103

Proposição 2.3.6. Se A e B são disjuntos, C ⊆ X, e A ∈ Mµ∗ , então

µ∗ (C ∩ (A ∪ B)) = µ∗ (C ∩ A) + µ∗ (C ∩ B).

Demonstração. Consideramos o conjunto D, ilustrado na figura 2.3.2, e dado


por:
D = C ∩ (A ∪ B) = (C ∩ A) ∪ (C ∩ B).
Por hipótese, A ∈ Mµ∗ , donde temos, mais uma vez, que

µ∗ (D) = µ∗ (D ∩ A) + µ∗ (D − A).

Como, obviamente, D ∩ A = C ∩ A, e D − A = C ∩ B, concluı́mos que

µ∗ (D) = µ∗ (D ∩ A) + µ∗ (D ∩ B).

Este último resultado generaliza-se, por um simples argumento de indução


finita, ao seguinte:
Corolário 2.3.7. Se E1 , · · · , Em ∈ M(X) são disjuntos, e F ⊆ X,então
m
[ m
X
µ∗ ( (F ∩ En )) = µ∗ (F ∩ En )
n=1 n=1

Em particular,
m
[ m
X

µ ( En ) = µ∗ (En ).
n=1 n=1

É claro do lema 2.3.5 que a função µ∗ é aditiva na álgebra Mµ∗ . Como


µ∗ é uma medida exterior, é σ-subaditiva em P(X). Podemos assim concluir
de 1.6.6 que µ∗ é σ-aditiva em Mµ∗ . No entanto, como a aditividade finita
de µ∗ em Mµ∗ é válida na forma mais geral expressa em 2.3.7, é natural
investigar se a σ-aditividade de µ∗ pode ser reforçada de forma análoga.
Provamos a seguir uma forma generalizada da propriedade de σ-aditivi-
dade, com a particularidade muito interessante de não necessitarmos supor,
no seu enunciado, que o conjunto E = ∪∞ ∗
n=1 En é µ -mensurável.

Teorema 2.3.8. Se os conjuntos En ∈ Mµ∗ são disjuntos, e F ⊆ X, então



[ ∞
X
µ∗ ( F ∩ En ) = µ∗ (F ∩ En )
n=1 n=1

Em particular,

[ ∞
X

µ ( En ) = µ∗ (En ).
n=1 n=1
104 Capı́tulo 2. A Medida de Lebesgue

Demonstração. Mais uma vez, temos a provar apenas que



X
µ∗ (F ∩ E) ≥ µ∗ (F ∩ En ).
n=1

Tomamos Ẽm = ∪m n=1 En . Usamos o corolário 2.3.7, com Ẽm no lugar de E,


para concluir que
m
X
µ∗ (F ∩ Ẽm ) = µ∗ (F ∩ En ).
n=1

Notamos que
m
X
Ẽm ⊆ E ⇒ F ∩ Ẽm ⊆ F ∩ E ⇒ µ∗ (F ∩ En ) = µ∗ (F ∩ Ẽm ) ≤ µ∗ (F ∩ E).
n=1

Obtemos, finalmente, que


m
X ∞
X
∗ ∗
lim µ (F ∩ En ) ≤ µ (F ∩ E), i.e., µ∗ (F ∩ En ) ≤ µ∗ (F ∩ E).
m→+∞
n=1 n=1

Já demonstrámos para qualquer medida exterior µ∗ que:

• Mµ∗ é uma álgebra,

• µ∗ é aditiva, e portanto σ-aditiva, em Mµ∗ .

Para mostrar que Mµ∗ é solução do Problema 2.3.1, resta-nos provar que

• Mµ∗ é uma σ-álgebra, i.e., Mµ∗ é fechada em relação a uniões nume-


ráveis.

É precisamente o facto de termos demonstrado o teorema anterior sem


supor que ∪∞n=1 En ∈ Mµ∗ , que agora nos permite provar que, na realidade,
temos sempre ∪∞ n=1 En ∈ Mµ∗ . Começamos por verificar esta afirmação, no
caso especial de uma famı́lia de conjuntos disjuntos.

Lema 2.3.9. Se os conjuntos En ∈ Mµ∗ são disjuntos, então



[
E= En ∈ Mµ∗ .
n=1

Demonstração. Sendo F ⊆ X arbitrário, temos a provar que

µ∗ (F ) ≥ µ∗ (F ∩ E) + µ∗ (F ∩ E c ).
2.3. Medidas Exteriores 105

Definimos, novamente, Ẽm = ∪mn=1 En , e notamos que Ẽm ∈ Mµ∗ , porque


Mµ∗ é uma álgebra. Temos portanto

µ∗ (F ) = µ∗ (F ∩ Ẽm ) + µ∗ (F ∩ Ẽm
c
).

Ẽm ⊆ E ⇒ µ∗ (F ∩ Ẽm
c
) ≥ µ∗ (F ∩ E c ), donde
µ∗ (F ) ≥ µ∗ (F ∩ Ẽm ) + µ∗ (F ∩ E c ).
De acordo com 2.3.7, temos µ∗ (F ∩ Ẽm ) = m ∗
P
n=1 µ (F ∩ En ), e, por isso

m
X
µ∗ (F ) ≥ µ∗ (F ∩ En ) + µ∗ (F ∩ E c ).
n=1

Fazendo m → +∞, obtemos



X

µ (F ) ≥ µ∗ (F ∩ En ) + µ∗ (F ∩ E c ).
n=1
P∞
Observamos, finalmente, de 2.3.8 que µ∗ (F ∩ E) = ∗
n=1 µ (F ∩ En ), e
concluı́mos assim que

µ∗ (F ) ≥ µ∗ (F ∩ E) + µ∗ (F ∩ E c ).

O principal resultado desta secção é, agora, quase evidente.

Teorema 2.3.10. Mµ∗ é uma σ-álgebra, e a restrição de µ∗ a Mµ∗ é uma


medida de Radon.

Demonstração. Para verificar que Mµ∗ é fechada em relação a uniões nu-


meráveis, supomos que os conjuntos En ∈ Mµ∗ , e definimos
m−1
[
Ẽ1 = E1 , e para m > 1, Ẽm = Em − En .
n=1

Os conjuntos Ẽm pertencem a Mµ∗ , porque Mµ∗ é uma álgebra. Estes


conjuntos são, evidentemente, disjuntos. Como

[ ∞
[
E= Ẽn = En ,
n=1 n=1

concluı́mos de 2.3.9 que E ∈ Mµ∗ , i.e., Mµ∗ é uma σ-álgebra.

A aplicação deste teorema ao caso µ∗ = m∗N estabelece, finalmente,

Corolário 2.3.11. L(RN ) é solução do problema “fácil” de Lebesgue.


106 Capı́tulo 2. A Medida de Lebesgue

Note-se também que, de acordo com o teorema de Cantor,


Corolário 2.3.12. Se E ⊆ RN é aberto ou fechado então E ∈ L(RN ).
Exemplos 2.3.13.
1. O exemplo 1.6.4.2 é um conjunto da forma

[ ε ε
U= ]qn − n
, qn + n [,
n=1
2 2

onde q1 , q2 , · · · , qn , · · · são os racionais de [0, 1]. Vimos que U não é Jordan-


mensurável, mas como U é aberto, U é Lebesgue-mensurável.
2. O conjunto de Volterra Cε (I) não é Jordan-mensurável, e vimos mesmo que
Cε (I) 6∈ Jσ (RN ). Mas como o conjunto de Volterra é fechado, é óbvio que
Cε (I) é Lebesgue-mensurável. Recorde-se que se U = I − Cε (I) então m(U ) =
c(U ) = (1 − ε)c(I), donde concluı́mos que m(Cε (I)) = εc(I).

Dado um espaço de medida (X, M, µ), sejam A, B ∈ M conjuntos tais


que A ⊆ B, e µ(B −A) = 0. Se A ⊆ E ⊆ B, então a medida µ(E), se estiver
definida, i.e., se E ∈ M, só pode ser µ(E) = µ(A) = µ(B). Se N = E − A,
então é claro que E ∈ M se e só se N ∈ M. Temos N ⊆ (B − A), ou seja,
N é subconjunto de um conjunto de medida nula. Por esta razão, é por
vezes útil saber se todos os subconjuntos de conjuntos de medida nula são
M-mensuráveis, o que pode não ser o caso.
Definição 2.3.14 (Espaço Completo). O espaço (X, M, µ) é completo, se
e só se todos os subconjuntos de conjuntos de medida nula são mensuráveis,
ou seja, se µ(C) = 0 e N ⊆ C ⇒ N ∈ M, donde µ(N ) = 0. Dizemos
também que a medida µ é completa.
Exemplos 2.3.15.
1. Se o espaço de medida (X, M, µ) é completo, A, B ∈ M, µ(B − A) = 0, e
A ⊆ E ⊆ B, então E ∈ M, e µ(E) = µ(A) = µ(B).
2. Qualquer espaço de medida definido a partir de uma medida exterior é com-
pleto (exercı́cio 1). Em particular,
3. O espaço de medida de Lebesgue é completo.

Identificamos a seguir a menor extensão completa de um qualquer espaço


de medida.
Teorema 2.3.16 (Menor Extensão Completa). Seja (X, M, µ) um espaço
de medida, e considere-se a classe
Mµ = {E ⊆ X : Existem A, B ∈ M, tais que A ⊆ E ⊆ B, µ(B − A) = 0} .
Dado E ∈ Mµ , definimos µ(E) = µ(A) = µ(B). Temos, então,
2.3. Medidas Exteriores 107

a) O espaço de medida (X, Mµ , µ) é uma extensão completa de (X, M, µ),


b) Se (X, N , ρ) é uma qualquer extensão de (X, M, µ), então:
• ρ(E) = µ(E), para os conjuntos E ∈ N ∩ Mµ , e
• Se (X, N , ρ) é um espaço completo, então Mµ ⊆ N , i.e.,
(X, Mµ , µ) é a menor extensão completa de (X, M, µ).
Demonstração. Se E ∈ M, tomamos A = B = E, para mostrar que E ∈
Mµ , i.e., M ⊆ Mµ .
Para verificar que a função µ está bem definida, i.e., não depende da
escolha dos conjuntos A e B, supomos que
A ⊆ E ⊆ B, A∗ ⊆ E ⊆ B ∗ , e µ(B − A) = µ(B ∗ − A∗ ) = 0.
Como A ⊆ A ∪ A∗ ⊆ E ⊆ B ∩ B ∗ ⊆ B e µ(B − A) = 0, é claro que
µ(B) = µ(B∩B ∗ ) = µ(A∪A∗ ) = µ(A). A mesma afirmação é, naturalmente,
verdadeira para os conjuntos A∗ e B ∗ , donde µ(B) = µ(B ∗ ) = µ(A∗ ) =
µ(A).
Passamos a mostrar que Mµ é uma σ-álgebra. Para verificar que Mµ é
fechada em relação à complementação, basta notar que
A ⊆ E ⊆ B ⇐⇒ B c ⊆ E c ⊆ Ac , e (B − A) = (Ac − B c ).
Como os conjuntos Ac e B c pertencem a M, segue-se que E c ∈ Mµ .
Provamos, em seguida, que Mµ é fechada em relação a uniões numerá-
veis. Se os conjuntos En ∈ Mµ , então existem conjuntos An , Bn ∈ M tais
que:
An ⊆ En ⊆ Bn , e µ(Bn − An ) = 0.
Consideramos os conjuntos

[ ∞
[ ∞
[
E= En , A = An , e B = Bn .
n=1 n=1 n=1

Observamos que A ⊆ E ⊆ B, A, B ∈ M, e

[ ∞
X
B−A⊆ (Bn − An ) , donde 0 ≤ µ(B − A) ≤ µ(Bn − An ) = 0.
n=1 n=1

Concluı́mos, assim, que E ∈ Mµ , e Mµ é uma σ-álgebra. Repare-se,


também, que se os conjuntos En são disjuntos, então os conjuntos An são
igualmente disjuntos, e temos

[ ∞
X ∞
X
µ(E) = µ(A) = µ( An ) = µ(An ) = µ(En ).
n=1 n=1 n=1

Concluı́mos que µ é uma medida. É óbvio que µ(E) = µ(E), quando E ∈ M,


e, portanto, o espaço (X, Mµ , µ) é uma extensão de (X, M, µ).
Deixamos a conclusão desta demonstração para o exercı́cio 6.
108 Capı́tulo 2. A Medida de Lebesgue

Exercı́cios.

1. Mostre que, se µ∗ é uma medida exterior, e µ∗ (E) = 0, então F ⊆ E ⇒ F é


µ∗ -mensurável, e µ(F ) = 0.

2. Complete a demonstração do teorema 2.3.4.

3. Em cada um dos casos seguintes, prove que a função µ∗ : P(X) → [0, +∞]
dada é uma medida exterior, e descreva os conjuntos µ∗ -mensuráveis.
a) µ∗ (E) = #(E).

∗ 0, se E é finito ou numerável,
b) µ (E) =
1, se E é não-numerável.
(Suponha, aqui, X infinito não-numerável.)

4. Suponha que µ∗ é uma medida exterior em X, F ⊆ X, e λ∗ : P(X) → [0, +∞]


é dada por λ∗ (E) = µ∗ (E ∩ F ). Mostre que λ∗ é uma medida exterior. Qual
é a relação entre os conjuntos µ∗ -mensuráveis e os conjuntos λ∗ -mensuráveis?

5. Suponha que µ∗n : P(X) → [0, +∞] é uma medida exterior para qualquer
P∞
n ∈ N, e prove que µ∗ , dada por µ∗ (E) = n=1 µ∗n (E), é, igualmente, uma
medida exterior em X.

6. Complete a demonstração do teorema 2.3.16.

7. Dado o espaço de medida (X, M, µ), definimos a função λ∗ : P(X) → [0, +∞]
por λ∗ (E) = inf {µ(S) : E ⊆ S, S ∈ M}. Prove as seguintes afirmações:
a) λ∗ é uma medida exterior, e, sendo Mλ∗ a classe dos conjuntos λ∗ -
mensuráveis, M ⊆ Mλ∗ ,
b) λ∗ (F ) = 0 se e só se existe E ∈ M tal que F ⊆ E e µ(E) = 0. Em
particular, (X, M, µ) é completo se e só se λ∗ (E) = 0 ⇒ E ∈ M.
c) Se o espaço (X, M, µ) é finito, e λ é a restrição de λ∗ a Mλ∗ , prove que
(X, Mλ∗ , λ) = (X, Mµ , µ), tal como este espaço foi definido em 2.3.16.
d) Mostre que a conclusão da alı́nea anterior é ainda válida, supondo apenas
que o espaço (X, M, µ) é σ-finito.
e) Verifique que, quando (X, M, µ) não é σ-finito, podemos ter (X, Mλ∗ , λ) 6=
(X, Mµ , µ).

8. Suponha que f : K → R é limitada em K, K é um rectângulo-N compacto,


e D é o conjunto de pontos de descontinuidade de f . Prove que
a) D é Lebesgue-mensurável.
b) Se f é Riemann-integrável em K, então os conjuntos

{x ∈ K : f (x) = a} , e {x ∈ K : f (x) > a}

são Lebesgue-mensuráveis.
2.4. Os Espaços de Borel e de Lebesgue 109

9. Mostre que o conjunto A referido na discussão do exemplo de Sierpinski não


é Lebesgue-mensurável.

10. Prove que E ⊆ RN tem subconjuntos não-mensuráveis se e só se m∗N (E) >
0. Sugestão: Recorde o exemplo de Sierpinski.

2.4 Os Espaços de Borel e de Lebesgue


Definimos nesta secção os conjuntos de Borel a que já aludimos diversas
vezes, e estudamos propriedades destes conjuntos, e dos conjuntos Lebes-
gue-mensuráveis. Não referimos aqui a definição original de Borel, que é
construtiva(15 ), e bastante complexa. Sabemos hoje que os conjuntos de
Borel formam a menor σ-álgebra em RN que contém todos os conjuntos
abertos, e este facto permite uma definição muito mais sucinta. Precisamos
apenas de provar um resultado abstracto preliminar:
Proposição 2.4.1. Se {Mα : α ∈ J} é uma famı́lia não-vazia de σ-álgebras
em X, a classe M = ∩a∈J Mα é uma σ-álgebra em X.
Demonstração. Sabemos que qualquer σ-álgebra Mα ⊇ {∅, X}, e portanto
M ⊇ {∅, X}. Em particular, M = 6 ∅. Para verificar que M é fechado em
relação à complementação, basta-nos notar que, como cada σ-álgebra Mα
é fechada em relação à complementação,
A ∈ M ⇔ A ∈ Mα , ∀α∈J ⇒ Ac ∈ Mα , ∀α∈J ⇔ Ac ∈ M.
Analogamente, e para demonstrar que M é fechado em relação a uniões nu-
meráveis, observamos que cada σ-álgebra Mα é fechada em relação a uniões
numeráveis, donde

[ ∞
[
An ∈ M ⇔ An ∈ Mα , ∀α∈J ⇒ An ∈ Mα , ∀α∈J ⇔ An ∈ M.
n=1 n=1

Se C é uma famı́lia inteiramente arbitrária de subconjuntos de X, então


a σ-álgebra P(X), que contém todos os subconjuntos de X, contém certa-
mente todos os conjuntos em C. Portanto, existem sempre σ-álgebras de X
que contém todos os conjuntos em C. A intersecção de todas as σ-álgebras
que contêm C é, de acordo com a proposição anterior, a menor σ-álgebra
de X que contém C (porquê?). Introduzimos por isso:
15
A opção de Borel parece ter sido motivada, pelo menos parcialmente, por razões filosó-
ficas. Borel revela algum desconforto com noções demasiado abstractas da ideia de “con-
junto”, e prefere referir conjuntos que podem ser definidos usando apenas rectângulos, e
operações de intersecção, união, e complementação sobre famı́lias numeráveis de conjuntos.
Naturalmente, este facto não o impede de reconhecer que a sua própria definição de
conjunto de medida nula não se coaduna com estas reservas.
110 Capı́tulo 2. A Medida de Lebesgue

Definição 2.4.2 (σ-Álgebra Gerada pela Classe C). Se C é uma classe de


subconjuntos do conjunto X, a intersecção de todas as σ-álgebras em X que
contêm a classe C diz-se a σ-álgebra gerada por C.
Exemplo 2.4.3.
Se C = {E}, onde E ⊆ X, a σ-álgebra gerada por C é M = {∅, E, E c , X}.

Definimos os conjuntos Borel-mensuráveis usando 2.4.2, com X = RN ,


e sendo C a classe dos subconjuntos abertos de RN :

Definição 2.4.4 (Conjuntos Borel-Mensuráveis). A σ-álgebra gerada pelos


subconjuntos abertos de RN diz-se a σ-álgebra de borel, e designa-se
por B(RN ). Os conjuntos em B(RN ) dizem-se borel-mensuráveis, ou
conjuntos de borel.
Exemplos 2.4.5.
1. Qualquer conjunto aberto (ou fechado) é Borel-mensurável. Em particular,
sendo S ⊆ RN um conjunto qualquer, o seu interior, exterior e fronteira são
sempre Borel-mensuráveis.
2. O conjunto de Canto C(I) e o conjunto de Volterra Cε (I) são Borel-mensu-
ráveis, porque são fechados.
3. Se os conjuntos Un são abertos, então G = ∩∞ n=1 Un é Borel-mensurável,
apesar de G não ser necessariamente aberto, ou fechado. Analogamente, se os
conjuntos Fn são fechados, então F = ∪∞
n=1 Fn é Borel-mensurável, apesar de
F não ser necessariamente fechado, ou aberto.
4. Se B = {x1 , x2 , · · · , xn , · · · } é um conjunto numerável em RN , tomamos
Fn = {xn } (um conjunto fechado, logo Borel-mensurável), e notamos que
B = ∪∞n=1 Fn é Borel-mensurável.

Os conjuntos dos tipos mencionados em 2.4.5.3 têm nomes especiais:

Definição 2.4.6 (Conjuntos Fσ e Gδ ). Se E ⊆ RN , dizemos que

a) E é um conjunto Fσ , ou de tipo Fσ , se e só se E é a união de uma


famı́lia numerável de fechados, e

b) E é um conjunto Gδ , ou de tipo Gδ , se e só se E é a intersecção de


uma famı́lia numerável de abertos.(16 )
Exemplos 2.4.7.
1. De acordo com 1.6.18, qualquer conjunto aberto em RN é um conjunto Fσ .
2. O conjunto dos racionais é um conjunto Fσ , porque é numerável.
16
As letras “s” (σ) e “d” (δ) são as iniciais de “união” e “intersecção” na lı́ngua alemã.
2.4. Os Espaços de Borel e de Lebesgue 111

3. O conjunto dos irracionais é um conjunto Gδ , porque é o complementar dum


conjunto Fσ .

De acordo com 2.3.12, L(RN ) é uma σ-álgebra que contém os abertos.


Como a σ-álgebra de Borel é a menor σ-álgebra que contém os abertos, é
imediato que

Corolário 2.4.8. B(RN ) ⊆ L(RN ).

Note-se em particular que

• Se MN é solução do problema de Borel, temos B(RN ) ⊆ MN , porque


MN é uma σ-álgebra que contém os abertos.

• Se MN é solução do problema de Lebesgue, temos B(RN ) ⊆ MN ⊆


L(RN ), porque é uma solução do problema de Borel, e porque L(RN )
é a maior solução do problema de Lebesgue.

É claro que B(RN ) ⊆ L(RN ), mas não é simples mostrar que B(R) 6= L(R).
Para o provar, usamos a seguir um argumento indirecto, que combina de
uma forma muito interessante diversos exemplos que já mencionámos: a
função “escada do diabo” F (1.5.9), o conjunto de Cantor C (1.3.9), e o
exemplo de Sierpinski A (2.2.15).
Exemplo 2.4.9.
Propomo-nos apresentar um conjunto que é Lebesgue-mensurável, mas não
é Borel-mensurável. O exemplo em causa mostrará ainda que o espaço de
medida de Borel não é completo. Os passos principais são os seguintes:
a) Consideramos o conjunto B = F −1 (A) ∩ C, e provamos que F (B) = A.
b) Introduzimos a classe A, formada pelos conjuntos cujas imagens por F
são Borel-mensuráveis, i.e.,

A = {E ⊂ R : F (E) ∈ B(R)} .

Mostramos que A é uma σ-álgebra, e A ⊇ B(R).


c) Como F (B) = A não é Lebesgue–mensurável, é claro que F (B) não é
Borel-mensurável, e portanto B 6∈ A. Como A ⊇ B(R), é óbvio que B
não é Borel-mensurável. Por outro lado, B ⊂ C, onde m(C) = 0, donde
é evidente que B é Lebesgue-mensurável.
Notamos primeiro que, por razões simples, F (C) = [0, 1]. É por isso óbvio que
F (B) = A, que é a afirmação a). A conclusão expressa em c) é uma conse-
quência directa de a) e b), e portanto temos a demonstrar b), o que passamos
a fazer.

Demonstração. Como F é contı́nua, se E é um intervalo então F (E) é também


um intervalo, e F (E) ∈ B(R). Temos assim que
112 Capı́tulo 2. A Medida de Lebesgue

(1) A contém todos os intervalos.


S∞ S∞
Por outro lado, como a identidade F ( n=1 En ) = n=1 F (En ) é válida para
qualquer função, e B(R) é uma σ-álgebra, temos

[ ∞
[
En ∈ A ⇒ F (En ) ∈ B(R) ⇒ F ( En ) = F (En ) ∈ B(R), donde
n=1 n=1

(2) A é fechada em relação a uniões numeráveis.


Para provar que A é uma σ-álgebra precisamos de verificar ainda que A é
fechada em relação a complementações. Isso requer um resultado auxiliar:
(3) Se x, y ∈ R, x < y, e F (x) = F (y), então ]x, y[ ⊂ C c , e F (x) ∈ Q.
Sendo C ⊂ I = [0, 1] o conjunto de Cantor, e U = C c , escrevemos

[
U= Un , onde os intervalos Un = ]an , bn [ são disjuntos, e
n=1

n

\ 2
[
C= Fn , onde Fn = In,k , e os conjuntos In,k são intervalos fechados.
n=0 k=1

Sabemos que
(4) F é constante em cada intervalo Un .
k
(5) O valor de F em cada intervalo Un é um racional qn (da forma 2m ).
(6) Se n 6= m então qn 6= qm .
Suponha-se que ]x, y[ ∩ C 6= ∅. Dado z ∈ ]x, y[ ∩ C, existem n, k ∈ N tais
que z ∈ In,k ⊆ ]x, y[. É imediato concluir que ]x, y[ contém 2 subintervalos do
conjunto Fn+1 , e portanto contém pelo menos 3 subintervalos de U (porquê?).
Como F é crescente, segue-se de (6) que F (x) < F (y). Como supomos que
F (x) = F (y), concluı́mos que ]x, y[⊂ U , e temos de (4) que F (x) ∈ F (U ) ⊂ Q.
Seja agora E ∈ A, i.e., F (E) ∈ B(R). O conjunto F (E) ∩ F (E c ) ⊆ Q, de
acordo com (3), e por isso é numerável, e Borel-mensurável. Como

F (E c ) = ([0, 1] − F (E)) ∪ (F (E) ∩ F (E c )) ,

concluı́mos que F (E c ) é Borel-mensurável, e temos finalmente


(7) A é uma σ-álgebra que contém os intervalos.
Segue-se que A contém todos os abertos, e portanto A ⊇ B(R).

Note-se ainda que as classes J (RN ) e L(RN ) têm o cardinal de P(R)


(exercı́cio 5). É possı́vel mostrar que a classe B(R) tem o cardinal de R, mas
não apresentamos o cálculo respectivo neste texto. A relação entre E(RN ),
J (RN ), B(RN ) e L(RN ) está ilustrada na figura 2.4.1.
Exemplo 2.4.10.
2.4. Os Espaços de Borel e de Lebesgue 113

Figura 2.4.1: As classes E(RN ), J (RN ), B(RN ) e L(RN ).

o conjunto de Volterra generalizado - Introduzimos aqui um outro


exemplo interessante, que é uma união numerável de conjuntos de Volterra
no sentido em que estes conjuntos foram definidos em 1.6.15.1, e é por isso
Borel-mensurável. Observe-se primeiro que o procedimento usado para definir
o conjunto de Volterra Cε (I) é igualmente aplicável mesmo quando o conjunto
inicial I é uma união numerável de intervalos disjuntos In , i.e.,

[ ∞
[
Se I = In , tomamos Cε (I) = Cε (In ), e temos ainda m(Cε (I)) = εm(I).
n=1 n=1
S∞
Sendo Jn = Cε (In ) ⊂ In , é claro que I −Cε (I) = n=1 (In −Jn ). Deve notar-se
que o conjunto In − Jn é uma união numerável de intervalos abertos disjuntos,
independentemente do tipo de cada um dos intervalos In , e portanto o conjunto
I −Cε (I) é também uma união numerável de intervalos abertos disjuntos. Esta
operação pode assim ser aplicada recursivamente, i.e.,
• Fixamos um “intervalo inicial” U1 = I = [a, b].
• Seleccionamos uma sucessão de reais 0 < εn < 1.
• Definimos, para n ∈ N, Fn = Cεn (Un ), e Un+1 = Un − Fn .
O exemplo que desejamos introduzir aqui é o conjunto

[ ∞
\
F (I) = Fn , e referimos igualmente G(I) = Un .
n=1 n=1

Repare-se que o mecanismo de definição do conjunto G(I) é análogo ao que


usámos para definir os conjuntos de Cantor e de Volterra. A diferença está
em que, em vez de extrair, em cada passo, uma união finita de “intervalos
médios”, aqui extraı́mos, em cada passo, uma união numerável de conjuntos
de Volterra. Por esta razão, para n > 1 os conjuntos Un são abertos que
não são elementares. Segue-se que G(I) é de tipo Gδ , F (I) é de tipo Fσ , e
naturalmente G(I) e F (I) são Borel-mensuráveis. Note-se de passagem que os
conjuntos ∪N n=1 Fn são compactos.
A medida dos conjuntos G(I) P∞e F (I) depende da sucessão ε1 , ε2 , · · · , mas em
qualquer caso m(F (I)) = n=1 m(Fn ). Fixado 0 < ε < 1, podemos tomar
ε1 = 12 ε, e é simples definir εn para n > 1 de forma a que
1 1 1 εn
m(Fn ) = m(Fn−1 ) = n εc(I), que resulta de εn+1 = .
2 2 2 1 − εn
114 Capı́tulo 2. A Medida de Lebesgue

Figura 2.4.2: Fn = Cεn (Un ), Un+1 = Un − Fn , F (I) = ∪∞


n=1 Cεn (Un ).

Obtemos então:

X 1
m(F (I)) = εc(I) = εc(I), e m(G(I)) = (1 − ε)c(I).
n=1
2n

O que torna este exemplo notável é a seguinte propriedade, aparentemente


paradoxal: qualquer subintervalo não-trivial de I intercepta tanto F (I) como
G(I) em conjuntos de medida positiva (exercı́cio 4). Registamos este facto na:

Proposição 2.4.11. Se J ⊆ I, e c(J) > 0, então

m(J ∩ F (I)) > 0, e m(J ∩ G(I)) > 0.

As propriedades dos conjuntos Jordan-mensuráveis que vimos na pro-


posição 1.3.12, relacionadas com produtos cartesianos, e com a invariância
sob translacções e reflexões, são, na realidade, propriedades comuns aos
conjuntos de Jordan, de Borel, e de Lebesgue. Provamos, desde já, o seguinte
resultado parcial, relativo aos conjuntos Borel-mensuráveis.
Teorema 2.4.12. Sejam A ∈ B(RN ), B ∈ B(RM ), e x ∈ RN .
a) Fecho em relação ao produto: A × B ∈ B(RN +M ).

b) Invariância sob translacções: A + x ∈ B(RN ).

c) Invariância sob reflexões: Se C é a reflexão de A no hiperplano xk =


0, então C ∈ B(RN ).
Demonstração. Demonstramos aqui a), deixando as observações em b) e c)
para o exercı́cio 3. Observamos primeiro que, quando os conjuntos A e B são
abertos, então a) resulta imediatamente de 1.6.14 e do teorema de Cantor.
2.4. Os Espaços de Borel e de Lebesgue 115

Suponha-se, agora, que U ⊆ RN é um conjunto aberto, e considere-se a


classe de conjuntos BU , dada por:

BU = V ⊆ RM : U × V ∈ B(RN +M ) .


Conforme notámos acima, é claro que

(1) A classe BU contém todos os subconjuntos abertos de RM .

Temos, por razões óbvias, que



[ ∞
[
V = Vm ⇒ U × V = U × Vm .
m=1 m=1

Se os conjuntos Vm ∈ BU , então os conjuntos U × Vm são Borel-mensuráveis.


Como B(RN +M ) é uma σ-álgebra, é claro que, neste caso, U ×V é igualmente
Borel-mensurável. Por outras palavras,

(2) A classe BU é fechada em relação a uniões numeráveis.

Por outro lado, temos que

U × V c = (U × V )c ∩ U × RM .


Se V ∈ BU , então (U × V )c é Borel-mensurável, porque é o complementar


 Borel-mensurável U ×V . Sendo U aberto, deve ser evidente que
do conjunto
U × RM é aberto, e concluı́mos que U × V c é Borel-mensurável. Temos
assim,

(3) A classe BU é fechada em relação a complementações.

Podemos concluir de (1), (2) e (3) que:

(4) A classe BU é uma σ-álgebra que contém os abertos, e portanto contém


os conjuntos Borel-mensuráveis. Dito doutra forma,

(5) Se U ∈ RN é aberto, e B ∈ B(RM ), então U × B ∈ B(RN +M ).

Para terminar a demonstração de a), supomos que B ∈ B(RM ), e conside-


∗ , dada por:
ramos a classe de conjuntos BB

= U ⊆ RN : U × B ∈ B(Rn+M ) .

BB

Como vimos em (5), a classe BB ∗ contém os abertos de RN , e é simples

adaptar os argumentos acima para mostrar que esta classe é, também, uma
σ-álgebra:

• U= ∞
S S∞ ∗
n=1 Un ⇒ U × B = n=1 Un × B, e, por isso, BB é fechada em
relação a uniões numeráveis.
116 Capı́tulo 2. A Medida de Lebesgue

• U c × B = (U × B)c ∩ RN × B , donde BB
∗ é fechada em relação a


complementações.
Podemos concluir, mais uma vez, que
∗ é uma σ-álgebra que contém os abertos, e portanto contém
(6) A classe BB
os conjuntos Borel-mensuráveis. Dito doutra forma,

(7) Se A ∈ B(RN ), e B ∈ B(RM ), então A × B ∈ B(RN +M ).

Se U ⊆ RN é aberto sabemos que U é σ-elementar, e cN (U ) = mN (U ).


Podemos assim concluir de 2.2.2 que:
Teorema 2.4.13. Se E ∈ L(RN ), então

mN (E) = inf mN (U ) : E ⊆ U ⊆ RN , U aberto .




Exploramos a seguir este teorema para obter diversos tipos de apro-


ximações de conjuntos Lebesgue-mensuráveis, análogas às que enunciámos
no capı́tulo 1 sobre a aproximação de conjuntos Jordan-mensuráveis por
conjuntos elementares. Os resultados em causa podem resumir-se dizendo
que os conjuntos Lebesgue-mensuráveis:
• Podem ser aproximados por excesso por conjuntos abertos.

• Podem ser aproximados por defeito por conjuntos fechados.

• Diferem de conjuntos Borel-mensuráveis por conjuntos de medida nula.


Teorema 2.4.14. As seguintes afirmações são equivalentes:
a) E ⊆ RN é Lebesgue-mensurável.

b) Para qualquer ε > 0, existe um conjunto aberto U ⊆ RN tal que

E ⊆ U , e m∗N (U − E) < ε.

c) Existe um conjunto Borel-mensurável B, de tipo Gδ , tal que

E ⊆ B, e m∗N (B − E) = 0.

Demonstração. a) ⇒ b): Supomos primeiro que mN (E) < +∞. De acordo


com 2.4.13, para qualquer ε > 0 existe um aberto U tal que E ⊆ U , e

m∗N (E) = mN (E) ≤ mN (U ) ≤ mN (E) + ε, donde mN (U ) − mN (E) < ε.

Como E é Lebesgue-mensurável, temos

mN (U ) = mN (E) + mN (U − E), e mN (U − E) = mN (U ) − mN (E) < ε.


2.4. Os Espaços de Borel e de Lebesgue 117

Supomos agora que mN (E) = +∞. Tomamos En = {x ∈ E : kxk < n},


e notamos que En é Lebesgue-mensurável (porquê?), e mN (En ) < +∞.
Como acabámos de provar, para qualquer ε > 0 existe um aberto Un tal que
ε
En ⊆ Un , e mN (Un − En ) < .
2n

U = ∪∞
n=1 Un é aberto, porque é uma união de abertos. É claro que


[ ∞
[ ∞
[ ∞
[
E= En ⊆ Un = U , e U − E = (Un − E) ⊆ (Un − En ).
n=1 n=1 n=1 n=1

Por σ-subaditividade,
∞ ∞ ∞
[ X X ε
m∗N (U − E) ≤ mN ( Un − E n ) ≤ mN (Un − En ) < < ε.
2n
n=1 n=1 n=1

1
Passamos a provar que b) ⇒ c). Dado ε = n > 0, temos, de acordo com
b), que existe um aberto Un tal que

1
E ⊆ Un , e mN (Un − E) < .
n
Consideramos o conjunto B = ∞
T
n=1 Un , que é de tipo Gδ , e portanto Borel-
mensurável, e notamos que E ⊆ B, e B − E ⊆ Un − E, para qualquer n.
Como m∗N (B − E) ≤ m∗N (Un − E), temos

1
m∗N (B − E) < , para qualquer n, donde m∗N (B − E) = 0.
n
Finalmente, provamos que c) ⇒ a), para concluir a demonstração. Temos
que E ⊆ B, e m∗N (B−E) = 0. O conjunto B é Lebesgue-mensurável, porque
é Borel-mensurável, e o conjunto N = B −E é Lebesgue-mensurável, porque
tem medida nula. Logo, E = B−N é, igualmente, Lebesgue-mensurável.

Por vezes usamos este teorema na seguinte forma:

Corolário 2.4.15. E ⊆ RN é Lebesgue-mensurável se e só se existe uma


sucessão decrescente de conjuntos abertos Un ⊇ E tais que m∗N (Un −E) ց 0,
e neste caso mN (Un ) ց mN (E).

O conjunto E é Lebesgue-mensurável se e só se o seu complementar E c


é Lebesgue-mensurável. O teorema 2.4.14 pode por isso ser adaptado como
se segue:

Teorema 2.4.16. As seguintes afirmações são equivalentes:

a) E ⊆ RN é Lebesgue-mensurável.
118 Capı́tulo 2. A Medida de Lebesgue

b) Para qualquer ε > 0, existem F (fechado), e U (aberto), tais que

F ⊆ E ⊆ U , e mN (U − F ) < ε.

c) Existem A, B ∈ B(RN ), onde A é um Fσ , e B um Gδ , tais que

A ⊆ E ⊆ B e mN (B − A) = 0.

Demonstração. a) ⇒ b) Se E é Lebesgue-mensurável, então E c é, igual-


mente, Lebesgue-mensurável. Dado ε > 0, temos, de acordo com 2.4.14,
que
• Existe um aberto U , tal que E ⊆ U , e mN (U − E) < 2ε , e

• Existe um aberto V , tal que E c ⊆ V , e mN (V − E c ) < 2ε .

É claro que F = V c é fechado, e F ⊆ E. Basta-nos, agora, notar que


ε ε
U −F = (U −E)∪(E −F ) = (U −E)∪(V −E c ) ⇒ mN (U −F ) < + = ε.
2 2
b) ⇒ c): Se n ∈ N, existem conjuntos Fn (fechado), e Un (aberto), tais que
1
Fn ⊆ E ⊆ Un e mN (Un − Fn ) < .
n
Os conjuntos A = ∪∞ ∞
n=1 Fn e B = ∩n=1 Un são, respectivamente, um Fσ , e
um Gδ , e temos A ⊆ E ⊆ B, e B − A ⊆ Un − Fn , donde
1
mN (B − A) ≤ mN (Un − Fn ) < , para qualquer n ⇒ mN (B − A) = 0.
n
c) ⇒ a): Já o demonstrámos em 2.4.14.

Figura 2.4.3: Os conjuntos E, G, e os abertos Un .

Os conjuntos com medida finita podem ainda ser aproximados por con-
juntos compactos, e mesmo por conjuntos elementares (exercı́cio 6):
2.4. Os Espaços de Borel e de Lebesgue 119

Teorema 2.4.17. Se E ⊆ RN , e m∗N (E) < +∞, então as seguintes afirmações


são equivalentes:
a) E é Lebesgue-mensurável.
b) Para qualquer ε > 0, existem K (compacto), e U (aberto), tais que

K ⊆ E ⊆ U , e mN (U − K) < ε.

c) Para qualquer ε > 0, existe um conjunto elementar J tal que (17 )

m∗N (E∆J) < ε.

A propriedade da medida de Lebesgue referida em 2.4.13 é na realidade


partilhada por muitas outras medidas definidas em RN . É por isso conve-
niente introduzir:
Definição 2.4.18 (Medida Regular). Seja µ uma medida de Radon definida
na σ-álgebra M ⊇ B(RN ). Dizemos que µ é regular(18 ) em N ⊆ M se e
só se

µ(E) = inf µ(U ) : E ⊆ U, U ⊆ RN aberto , para qualquer E ∈ N .




Se N é uma σ-álgebra, dizemos também que o espaço (RN , N , µ) é regular.


Exemplos 2.4.19.
1. A medida de Lebesgue é regular em L(RN ).
2. A medida de Dirac é regular em P(R).
3. Se a medida µ é o cardinal, temos inf {µ(U ) : E ⊆ U, U aberto } = +∞ para
qualquer E 6= ∅, porque qualquer aberto não-vazio é não-numerável. Como
qualquer conjunto finito é Borel-mensurável, µ não é regular em B(RN ).
4. As soluções do problema “fácil” de Lebesgue são as soluções regulares do
problema de Borel.

Veremos mais adiante que muitas das propriedades da medida de Lebes-


gue indicadas nesta secção, depois de convenientemente reformuladas, são
comuns a todas as medidas regulares σ-finitas, e em especial são comuns a
todas as medidas que são finitas em conjuntos compactos.
Aproveitamos para fazer mais algumas observações sobre as soluções do
problema de Borel e do problema “fácil” de Lebesgue. Deixamos a sua
demonstração para o exercı́cio 9.
17
Se A e B são conjuntos, o conjunto A∆B = (A − B) ∪ (B − A) é a diferença
simétrica de A e B.
18
Mais exactamente, esta propriedade diz-se a regularidade exterior da medida µ.
A distinção entre regularidade, e regularidade exterior, não é importante, no contexto em
que vamos usar esta noção.
120 Capı́tulo 2. A Medida de Lebesgue

Teorema 2.4.20. Se (RN , A, µ) é uma solução do problema de Borel, temos:


a) Se µ é regular, i.e., se µ é solução do problema “fácil” de Lebesgue,
então µ é uma restrição de mN .

b) Se µ é completa, então µ é uma extensão de mN .

c) µ(E) = mN (E), para qualquer E ∈ A∩L(RN ). Em particular, µ(E) =


mN (E), para qualquer E ∈ B(RN ).

d) mN é a única solução completa do problema “fácil” de Lebesgue, e a


única solução completa e regular do problema de Borel.
Usaremos o seguinte resultado, que está demonstrado no Apêndice a este
texto, já nos exercı́cios desta secção, para exibir uma extensão não regular
da medida de Lebesgue(19 ).
Teorema 2.4.21. Existe A ⊂ [0, 1] tal que, com B = [0, 1] − A, temos
m∗ (A) = m∗ (B) = 1.
Generalizamos agora a proposição 1.3.12, sobre produtos cartesianos, e a
invariância do conteúdo sob translacções e reflexões, aos conjuntos Lebesgue-
mensuráveis. As propriedades análogas para conjuntos Borel-mensuráveis
resultam naturalmente deste teorema, e de 2.4.12.
Teorema 2.4.22. Sejam A ∈ L(RN ) e B ∈ L(RM ).
a) Fecho em relação ao produto: A × B ∈ L(RN +M ), e

mN +M (A × B) = mN (A) × mM (B).

b) Invariância sob translacções: Se x ∈ RN , A + x ∈ L(RN ), e

mN (A + x) = mN (A),

c) Invariância sob reflexões: Se C é a reflexão de A no hiperplano xk =


0, então C ∈ L(RN ), e mN (A) = mN (C).
Demonstração. Provamos apenas a afirmação a), quando A e B têm medida
finita, deixando a conclusão da demonstração para o exercı́cio 8. De acordo
com o corolário 2.4.15, existem sucessões decrescentes de conjuntos abertos
Un ⊇ A, e Vn ⊇ B, tais que mN (Un − A) → 0, e mM (Vn − B) → 0. Temos:

(Un × Vn ) − (A × B) ⊆ [(Un − A) × V1 ] ∪ [U1 × (Vn − B)] , e por isso


19
Registe-se, a este respeito, as extensões não regulares da medida de Lebesgue
a σ-álgebras M ⊃ L(RN ), M 6= L(RN ), descobertas em 1950 (Kakutani,S. e Oxtoby,
J., Construction of a non-separable invariant extension of the Lebesgue measure space, e
Kodaira, K., Kakutani, S., A non-separable translation invariant extension of the Lebesgue
measure space, ambos em Ann. of Math. (2) 52, (1950).
2.4. Os Espaços de Borel e de Lebesgue 121

m∗N +M ((Un × Vn ) − (A × B)) ≤


≤ m∗N +M ((Un − A) × V1 ) + m∗N +M (U1 × (Vn − B)) .
Recordamos de 2.2.5 que m∗N +M ((Un − A) × V1 ) ≤ mN (Un − A) mM (V1 ),
e analogamente m∗N +M (U1 × (Vn − B)) ≤ mN (U1 ) mM (Vn − B). Se A e
B são conjuntos de medida finita, podemos supor que U1 e V1 são também
conjuntos de medida finita, e é claro que

mN (Un − A) mM (V1 ) + mN (U1 ) mM (Vn − B) → 0, donde

m∗N +M ((Un × Vn ) − (A × B)) → 0.


Conforma notámos na demonstração de 2.4.12, Un × Vn é aberto. Ainda de
acordo com 2.4.15, A × B é Lebesgue-mensurável, e

mN +M (Un × Vn ) → mN +M (A × B) .

Observamos finalmente (usando 1.6.14) que

mN +M (Un × Vn ) = mN (Un )mM (Vn ) → mN (A)mM (B) = mN +M (A × B).

Deixamos para o exercı́cio 8 a generalização de a) para conjuntos de medida


infinita, e a demonstração de b), e c), para quaisquer conjuntos Lebesgue-
mensuráveis.
Exercı́cios.

1. Mostre que os conjuntos elementares são de tipo Gδ .

2. Seja D o conjunto de pontos de descontinuidade de uma função definida num


rectângulo-N fechado. Mostre que D é um Fσ .

3. Conclua a demonstração do teorema 2.4.12.

4. Este exercı́cio diz respeito ao exemplo 2.4.10,e à proposição 2.4.11.


a) Cada conjunto Un é uma união numerável de intervalos disjuntos In,k .
Mostre que αn = max{c(In,k ) : k ∈ N} → 0, quando n → ∞. Conclua
que G(I) tem interior vazio.
b) Mostre que m(F (I) ∩ In,k ) > 0, e m(G(I) ∩ In,k ) > 0, para quaisquer
n, k ∈ N.
c) Sendo J ⊂ I um intervalo aberto não-vazio, prove que existem n, k ∈ N
tais que In,k ⊆ J. sugestão: Existe m ∈ N tal que Fm ∩ J 6= ∅, e Fm é
uma união numerável de conjuntos perfeitos.

5. Determine o cardinal das classes J (RN ) e L(RN ). sugestão: Considere o


conjunto de Cantor.

6. Demonstre o teorema 2.4.17.


122 Capı́tulo 2. A Medida de Lebesgue

7. Determine uma função f : R → R tal que, se g : R → R satisfaz g(x) = f (x)


qtp em R, então g é descontı́nua em todos os pontos x ∈ R.

8. Conclua a demonstração do teorema 2.4.22.

9. Para provar o teorema 2.4.20, suponha que o espaço (RN , A, µ) é solução do


problema de Borel, e demonstre primeiro as seguintes afirmações:
• µ(E) = mN (E), para qualquer conjunto aberto E ⊆ RN .
• Se E ∈ A ∩ L(RN ) e mN (E) = 0 então µ(E) = 0.
• Se E é um Gδ e mN (E) < ∞ então mN (E) = µ(E).
Conclua que µ = mN em A ∩ L(RN ) ⊇ B(RN ), e complete a demonstração do
teorema.

10. Seja A ⊆ RN e B ⊆ RM .
a) Mostre que se B é compacto então m∗N +M (A × B) = m∗N (A)mM (B).
b) Mostre que m∗N +M (A × B) = m∗N (A)mM (B) para qualquer B ∈ L(RM ).
P∞
11. Suponha que n=1 |cn | < ∞, seja D = {xn : n ∈ N} um conjunto infinito
numerável em R, e considere a função f : R → R com suporte em D, tal que
f (xn ) = cn .
a) Prove que f ′ (x) = 0 qtp em R. sugestão: Aplique o lema de Borel-
Cantelli aos conjuntos:
  ∞ [ ∞
|cn | 1 \
An,k = x ∈ R : > , e Ak = An,k .
|x − xn | k m=1 n=m

b) Mostre que a conclusão anterior é igualmente válida desde que, para


qualquer intervalo limitado I, e tomando K = {n ∈ N : xn ∈ I}, se tenha
X
|cn | < ∞.
n∈K

12. Suponha que f : R → R é crescente e contı́nua. Prove que:


a) E ∈ B(R) =⇒ f (E) ∈ B(R).
b) (E ∈ L(R) =⇒ f (E) ∈ L(R)) ⇐⇒ (m(E) = 0 =⇒ m(f (E)) = 0).

13. Sejam A e B os conjuntos referidos em 2.4.21, e A a σ-álgebra gerada em


I = [0, 1] pelos intervalos, e pelo conjunto A.
a) Mostre que A = {(E ∩ A) ∪ (F ∩ B), E, F ∈ B(I)}.
b) Mostre que se E ⊆ I é Lebesgue-mensurável então m∗ (E ∩ A) = m(E).
c) Determine uma extensão não regular da medida de Lebesgue em I, e em
R. sugestão: Considere a função ρ(E) = 21 m∗ (E ∩ A) + 21 m∗ (E ∩ B).
Capı́tulo 3

Integrais de Lebesgue

A exposição que se segue é, em certo sentido, uma adaptação directa das
ideias de Jordan e Peano apresentadas no Capı́tulo 1: resulta destas pela
simples substituição do conteúdo de Jordan pela medida de Lebesgue. A cor-
respondente definição do integral é a que Lebesgue chamava de “geométrica”,
e tem como principal vantagem a de tornar evidente a relação entre alguns
dos principais resultados da Teoria da Medida e da Teoria da Integração.
Neste contexto, as funções Lebesgue-mensuráveis são as funções cujas
regiões de ordenadas são conjuntos Lebesgue-mensuráveis. Analogamente,
as funções Borel-mensuráveis são aquelas cujas regiões de ordenadas são con-
juntos Borel-mensuráveis. Os respectivos integrais de Lebesgue são definidos
usando a medida de Lebesgue das suas regiões de ordenadas, e dizem-se, por
isso, “em ordem à medida de Lebesgue”.
Estabelecemos muito rapidamente algumas das propriedades mais rele-
vantes do integral de Lebesgue, usando frequentemente argumentos conheci-
dos do Capı́tulo 1. As vantagens técnicas do integral de Lebesgue começarão
a tornar-se aparentes quando estudarmos os resultados clássicos sobre limi-
tes e integrais, hoje conhecidos como o teorema da convergência monótona,
ou de Beppo Levi, o lema de Fatou, e o teorema da convergência dominada,
ou de Lebesgue. Estes resultados são centrais na moderna teoria da inte-
gração, e são reflexos directos das “propriedades essenciais” identificadas no
enunciado do Problema de Borel.
Estudamos, em seguida, o teorema de Fubini-Lebesgue. Na forma em
que o apresentamos, este teorema estabelece a mensurabilidade das secções
de qualquer conjunto mensurável, e exprime a medida desse conjunto como
o integral da medida das suas secções, convenientemente escolhidas. Um
corolário directo, mas fundamental, do teorema de Fubini-Lebesgue permite-
nos caracterizar as funções mensuráveis de uma forma mais conveniente para
o desenvolvimento da teoria: as funções mensuráveis são limites de sucessões
de funções simples. Os integrais das funções simples desempenham, na teoria
de Lebesgue, o papel das somas de Darboux na teoria de Riemann.

123
124 Capı́tulo 3. Integrais de Lebesgue

A aproximação de funções mensuráveis por funções simples, combinada


com a relativa facilidade de estudo das próprias funções simples, vai-nos
ainda permitir provar neste Capı́tulo mais algumas propriedades impor-
tantes das funções mensuráveis e dos respectivos integrais. Repetimos aqui
argumentos conhecidos do Capı́tulo 1 mas, neste caso, os teoremas sobre in-
tegração e passagem ao limite conduzem-nos a resultados muito elegantes e
fáceis de aplicar, em particular sobre a integração de séries. Como corolário
destes, obtemos uma versão preliminar do clássico Teorema de Riesz-Fischer.
Terminamos o Capı́tulo estudando a aproximação de funções mensuráveis
por funções contı́nuas. Como veremos, os resultados associados a esta ques-
tão reflectem, essencialmente, os que já estudámos sobre a aproximação de
conjuntos mensuráveis por conjuntos fechados, e por conjuntos abertos, ou
seja, reflectem a regularidade da medida de Lebesgue.

3.1 O Integral de Lebesgue


A figura 3.1.1 é o ponto de partida da teoria de Lebesgue, como o foi para
a teoria de Riemann. É de notar que, em resultado directo de substituir os

f dmN = mN +1 (Ω+ ) − mN +1 (Ω− )


R
Figura 3.1.1: E

conjuntos Jordan-mensuráveis, e o conteúdo de Jordan, pelos conjuntos Le-


besgue-mensuráveis, e pela medida de Lebesgue, as nossas definições básicas
passam a ser aplicáveis a funções ilimitadas, ou mesmo com valores infinitos,
e podendo ter, além disso, suporte igualmente ilimitado. Em particular, não
existe na teoria de Lebesgue qualquer análogo da distinção entre integrais
próprios e impróprios, como ocorre na teoria de Riemann.
Definição 3.1.1 (Funções mensuráveis, Integrais de Lebesgue). Se E ⊆
S ⊆ RN , e f : S → R, então
a) f é lebesgue-mensurável em E se e só se o conjunto ΩE (f ) é Lebes-
gue-mensurável em RN +1 . Analogamente, f é borel-mensurável
em E se e só se o conjunto ΩE (f ) é Borel-mensurável em RN +1 .
b) Se f é Lebesgue-mensurável em E, e pelo menos um dos conjuntos
Ω+ +
E (f ) e ΩE (f ) tem medida finita, o integral de lebesgue de f
3.1. O Integral de Lebesgue 125

(em ordem a mN ) em E é dado por


Z
f dmN = mN +1 (Ω+ −
E (f )) − mN +1 (ΩE (f )).
E

c) f é lebesgue-somável em E se e só f é Lebesgue-mensurável em E,


e mN +1 (ΩE (f )) < ∞.

É evidente que as funções Borel-mensuráveis são Lebesgue-mensurá-


veis, e é simples exibir funções Lebesgue-mensuráveis, e mesmo Riemann-
integráveis, que não são Borel-mensuráveis (exercı́cio 4).
Exemplificamos abaixo o cálculo de alguns integrais de Lebesgue:
Exemplos 3.1.2.
1. Funções Riemann-integráveis: A função f : E → R é Riemann-integrável
em E se e só se ΩE (f ) é Jordan-mensurável. Neste caso, ΩE (f ) é, evidente-
mente, Lebesgue-mensurável, e portanto f é Lebesgue-mensurável em E. O
integral de Riemann de f sobre E é dado por
Z
f = cN +1 (Ω+ − + −
E (f )) − cN +1 (ΩE (f )) = mN +1 (ΩE (f )) − mN +1 (ΩE (f )).
E

Por outras palavras, qualquer integral de Riemann é um integral de Lebesgue,


e o integral de Lebesgue é uma extensão do integral de Riemann, porque a
medida de Lebesgue é uma extensão do conteúdo de Jordan.
2. integrais impróprios de Riemann: Os integrais impróprios de Riemann
cobrem alguns casos especiais em que a função integranda é ilimitada na região
de integração e/ou a região de integração é ilimitada(1 ). A sua definição
(quando a região de integração B ⊆ RN , N > 1) supõe que
i) Existem conjuntos Jordan-mensuráveis An ր B, tais que f é Riemann-
integrável, no sentido usual, em cada conjunto An .
Neste caso, dizemos que o integral impróprio de Riemann de f em B
existe, e é dado por:
Z Z
f = lim f , se e só se
B n→∞ An

ii) O limite à direita existe, e é independente da sucessão de conjuntos An


utilizada, desde que satisfaça i).
É fácil verificar a condição ii) quando f ≥ 0. Temos de acordo com i) que os
conjuntos ΩAn (f ) são Jordan-mensuráveis, e ΩAn (f ) ր ΩB (f ). É claro que
os conjuntos ΩAn (f ) são igualmente Lebesgue-mensuráveis, e por isso ΩB (f )
1
O integral impróprio diz-se de primeira espécie se a integranda é ilimitada, e de
segunda espécie se a região de integração é ilimitada. Os integrais impróprios simul-
taneamente de 1a e 2a espécie dizem-se mistos. Cauchy introduziu integrais impróprios
em R, mas em RN a teoria é mais complexa, e deve-se sobretudo ao matemático alemão
Harnack, que a desenvolveu nos finais do século XIX.
126 Capı́tulo 3. Integrais de Lebesgue

é Lebesgue-mensurável, i.e., f é Lebesgue-mensurável em B. Usando o teo-


rema da convergência monótona de Lebesgue, e as definições dos integrais de
Riemann e de Lebesgue, obtemos
Z Z
f = cN (ΩAn (f )) = mN (ΩAn (f )) ր mN (ΩB (f )) = f dmN .
An B

Dito doutra forma, se f ≥ 0 e a condição i) é satisfeita, o integral impróprio de


Riemann de f em B existe, e é o integral de Lebesgue de f em B. Temos assim
que qualquer integral impróprio de Riemann de uma função não-negativa é um
integral de Lebesgue, e pode ser calculado usando uma qualquer sucessão de
conjuntos Jordan-mensuráveis que satisfaça i).
Deixamos para o exercı́cio 5 a análise do caso em que f muda de sinal, mas
resumimos aqui as principais conclusões:

• O integral impróprio de f existe, e é finito, no sentido indicado acima,


se e só se o integral impróprio de |f | também existe, e é finito. Dizemos
neste caso que o integral impróprio de Riemann de f é absolutamente
convergente e, mais uma vez, qualquer integral impróprio de Riemann
absolutamente convergente é um integral de Lebesgue.
• Se f : R → R, o integral impróprio de f pode existir no sentido que
referimos no exercı́cio 1 da secção 1.5 sem ser absolutamente convergente.
Neste caso, f não é Lebesgue-somável, e o seu integral de Lebesgue não
está definido.

3. f (x) = √1x ≥ 0 é Riemann-integrável em An =] n1 , 1], e B = ∪∞


n=1 An =]0, 1].
Concluı́mos que f é Lebesgue-mensurável em ]0, 1], e que
1 1 √ x=1
 
1 1 1
Z Z
√ dm = lim √ dx = lim 2 x x= 1 = lim 2 1 − √ = 2.
0 x n→∞ 1
n
x n→∞ n n→∞ n

2 2
4. Considere-se a função f (x, y) = e−x −y , e seja Bn = Bn (0) a bola centrada
na origem com raio n. A função f é Riemann-integrável em Bn , e podemos
calcular o respectivo integral usando coordenadas polares:
Z Z n Z 2π Z n n Z
−r 2 −r 2 −r 2
f= e rdθdr = 2π e rdr = −πe →π= f dm2 .
Bn 0 0 0 0 R2

Concluı́mos que o integral impróprio de f no plano R2 = ∪∞n=1 Bn é igual a


π. Observe-se que o mesmo cálculo, mas executado agora com os conjuntos
An = [−n, n] × [−n, n], conduz necessariamente ao mesmo resultado, i.e.,
Z Z n Z n Z n 2
2 2 2
f= e−x dx e−y dy = e−x dx → π.
An −n −n −n

Obtemos assim a identidade clássica:


Z ∞

Z
−x2 2
e dx = π = e−x dm.
−∞ R
3.1. O Integral de Lebesgue 127

5. A função de Dirichlet dir em R não é Riemann-integrável em nenhum inter-


valo não-trivial. No entanto, dir é a função caracterı́stica dos racionais Q, e,
portanto, a sua região de ordenadas é ΩR (dir) = Q×]0, 1[. O conjunto ΩR (dir)
é Borel-mensurável, porque é um produto cartesiano de conjuntos Borel-men-
suráveis. Temos, ainda, m2 (ΩR (dir)) = 0 × 1 = 0. Concluı́mos que a função
de Dirichlet é Borel-mensurável, e
Z
dir dm = 0.
R

6. Mais geralmente, se f é a função caracterı́stica de um conjunto E ⊆ RN


Borel-mensurável (respectivamente, Lebesgue-mensurável), então f é uma função
Borel-mensurável (respectivamente, Lebesgue-mensurável), e o seu integral é
a medida do conjunto E:
Z
f dmN = mN (E).
RN

No que se segue, e para simplificar a nossa terminologia, escreveremos


com frequência “B-mensurável”, e “L-mensurável”, em lugar de “Borel-men-
surável”, e “Lebesgue-mensurável”. Usaremos esta convenção com funções,
e com conjuntos. Por outro lado, muitos dos teoremas, demonstrações e
definições que estudamos são aplicáveis, sem qualquer alteração, quando a
expressão “Lebesgue-mensurável” é substituı́da, em todas as suas ocorrências,
por “Borel-mensurável”. É este o caso da própria definição de função “Le-
besgue-mensurável/Borel-mensurável”, que apresentámos em 3.1.1 a). Mais
uma vez para simplificar a nossa terminologia, e evitar repetições óbvias e
triviais, convencionamos que, até menção em contrário, a utilização da ex-
pressão “mensurável”, sem mais qualificativos, no contexto de um teorema,
demonstração, ou definição, significa que esta pode ser identicamente sub-
stituı́da, em todas as suas ocorrências nesse mesmo contexto, tanto por “L-
mensurável”, como por “B-mensurável”. Também até menção em contrário,
a palavra “somável” entende-se como “Lebesgue-somável”, no sentido de
3.1.1 c). Seguimos estas convenções já na próxima definição, que generaliza
M
3.1.1 a funções vectoriais f : S → R .
Definição 3.1.3 (Funções Vectoriais: Mensurabilidade e Integral). Se E ⊆
M
S ⊆ RN , e f : S → R , donde f = (f1 , f2 , · · · , fM ), com fk : S → R, então
a) f é mensurável em E se e só se as funções fk são mensuráveis em
E, para 1 ≤ k ≤ M , no sentido de 3.1.1.
b) f é somável em E se e só as funções fk são somáveis em E.
c) Se f é mensurável em E, o integral de lebesgue de f (em ordem
a mN ) em E é dado por
Z Z Z Z 
f dmN = f1 dmN , f2 dmN , · · · , fM dmN ,
E E E E
128 Capı́tulo 3. Integrais de Lebesgue

sempre que todos os integrais de Lebesgue à direita estão definidos.


Exemplo 3.1.4.
funções mensuráveis complexas: Seja f : RN → C uma função complexa,
donde f (x) = u(x) + iv(x), com u, v : RN → R. A função f é mensurável se
e só se as funções u, e v são mensuráveis, e o integral de f é dado por
Z Z Z
f dmN = udmN + i vdmN ,
E E E

sempre que existem os integrais de u e de v no conjunto E.

Supondo que existe o integral da função f num dado conjunto E, o


valor desse integral é independente dos valores que f tome em qualquer
subconjunto de E de medida nula. Podemos mesmo decidir se f é L-mensu-
rável, conhecendo os valores de f apenas quase em toda a parte em E. Se as
funções f e g estão definidas pelo menos no conjunto E ⊆ RN , dizemos que f
e g são equivalentes em E, e escrevemos “f ≃ g”, se e só se f (x) = g(x),
qtp em E. É fácil verificar que esta é uma relação de equivalência, por
exemplo na classe das funções reais definidas em E. Com estas convenções,
temos
Proposição 3.1.5. Seja E ⊆ RN , e f, f˜ : E → R funções, onde f é L-
mensurável em E. Sejam h, h̃ : F → R, onde F ⊇ E, e mN (F − E) = 0.
Temos então:
a) Se f˜ ≃ f em E, então f˜ é L-mensurável em E. Neste caso, se o
integral de f em E existe, então o integral de f˜ também existe, e
Z Z
f˜dmN = f dmN .
E E

b) Se h ≃ f em E, h é L-mensurável em F . Neste caso, se h̃ ≃ f em E,


então h̃ ≃ h em F .
Demonstração. Demonstramos apenas a), deixando as restantes alı́neas para
o exercı́cio 8. Suponha-se que

G = {x ∈ E : f (x) 6= f˜(x)}, donde mN (G) = 0.

Seja H a “faixa vertical” em RN +1 que intersecta RN em G, i.e., H = G×R.


Sabemos que mN +1 (H) = mN (G)m1 (R) = 0, e deve ser evidente que

ΩE (f )∆ΩE (f˜) = (ΩE (f ) − ΩE (f˜)) ∪ (ΩE (f˜) − ΩE (f )) ⊆ H.

As regiões de ordenadas de f e f˜ diferem assim por um conjunto nulo.


Concluı́mos que ΩE (f ) é L-mensurável se e só se ΩE (f˜) é L-mensurável, e
neste caso os integrais de f e f˜ são iguais.
3.1. O Integral de Lebesgue 129

Se f˜ ≃ f e f é B-mensurável então f˜ pode não ser B-mensurável, porque


o espaço de Borel (RN , B(RN ), mN ) não é completo (exercı́cio 4).
Se E ⊆ RN , e f : RN → R, é evidente que as regiões de ordenadas de f ,
em E, e de f χE , em RN , são iguais. Concluı́mos que
Proposição 3.1.6. Se E ⊆ RN , e f : RN → R, então
a) f é mensurável em E se e só se f χE é mensurável em RN .
b) Se f é mensurável em E, e algum dos seguintes integrais existe, o
outro existe igualmente, e
Z Z
f dmN = f χE dmN .
E RN

O resultado seguinte inclui a usual desigualdade triangular. A sua de-


monstração, uma adaptação directa da de 1.4.9), é o exercı́cio 10.
Proposição 3.1.7. Se E ⊆ RN , e f : E → R, então
a) f é mensurável em E se e só se as funções f + e f − são mensuráveis
em E. Neste caso, a função |f | é mensurável em E, e
Z Z Z
|f | dmN = f + dmN + f − dmN .
E E E

b) f é somável em E se e só se as funções f + e f − são somáveis em E.


Neste caso,
Z Z Z Z Z
+ −

f dmN = f dmN − f dmN , e f dmN ≤
|f | dmN .
E E E E E

As duas proposições seguintes indicam as propriedades fundamentais de


monotonia do integral de Lebesgue, em relação à região de integração, e em
relação à função integranda.
Proposição 3.1.8. Se E ⊆ RN , f : E → R é mensurável em E, e F ⊆ E
é mensurável, então f é mensurável em F . Se f ≥ 0 qtp, temos ainda
Z Z
f dmN ≤ f dmN .
F E
Demonstração. Se G = F × R, é claro que ΩF (f ) = ΩE (f ) ∩ G ⊆ ΩE (f ).
Como os conjuntos ΩE (f ) e G são mensuráveis, segue-se que ΩF (f ) é men-
surável, i.e., f é mensurável em F . Se f ≥ 0 qtp, consideramos a função
f˜ = f χẼ , onde Ẽ = {x ∈ E : f (x) ≥ 0}, e aplicamos 3.1.5 a), para obter:
Z Z
f dmN = f˜dmN = mN +1 (Ω+ ˜ + ˜
F (f )) ≤ mN +1 (ΩE (f )), e
F F
Z Z
mN +1 (Ω+ ˜ f˜dmN =
E (f )) = f dmN .
E E
130 Capı́tulo 3. Integrais de Lebesgue

Proposição 3.1.9. Se E ⊆ RN , f, g : E → R são mensuráveis em E,


f (x) ≤ g(x) qtp em E, e os integrais de f e de g em E existem, então
Z Z
f dmN ≤ gdmN .
E E

Demonstração. Supomos primeiro que f (x) ≤ g(x), para qualquer x ∈ E.


Temos, então, Ω+ + − −
E (f ) ⊆ ΩE (g), e ΩE (g) ⊆ ΩE (f ), donde se segue que
Z
f dmN =mN +1 (Ω+ −
E (f )) − mN +1 (ΩE (f )) ≤
E
Z
≤mN +1 (Ω+E (g)) − mN +1 (Ω−
E (g)) = gdmN .
E

Para adaptar este argumento ao caso em que f (x) ≤ g(x), apenas qtp em
E, consideramos funções auxiliares f˜ = f χẼ , e g̃ = gχẼ , onde Ẽ = {x ∈
E : f (x) ≤ g(x)}. As funções f˜ e g̃ são L-mensuráveis em E, de acordo com
3.1.5 a), e f˜(x) ≤ g̃(x), para qualquer x ∈ E. Aplicando o resultado que
acabámos de provar às funções f˜ e g̃, e 3.1.5 a), obtemos
Z Z Z Z
f dmN = ˜
f dmN ≤ g̃dmN = gdmN .
E E E E

A noção de integral indefinido de Lebesgue pode ser introduzida sem


quaisquer complicações técnicas. Note-se em particular, e antecipando o que
estudaremos no próximo Capı́tulo, como é fácil exibir uma enorme variedade
de medidas definidas em L(RN ).
Teorema 3.1.10. Seja f : RN → R mensurável em RN . Se f ≥ 0, ou se f
é somável em RN , definimos λ : L(RN ) → R por
Z
λ(E) = f dmN para qualquer E ∈ L(RN ).
E

Temos então que


a) λ é uma medida em L(RN ).
b) Para qualquer E ∈ L(RN ), mN (E) = 0 =⇒ λ(E) = 0.
Demonstração. Provamos este teorema supondo que f é não-negativa. O
caso das funções somáveis fica para o exercı́cio 11.
a) Para mostrar que λ é uma medida de Radon basta-nos provar que λ
= 0. Consideramos conjuntos disjuntos e L-mensu-
é σ-aditiva, já que λ(∅) S
ráveis En tais que E = ∞ n=1 En , e observamos que:

[
ΩE (f ) = ΩEn (f ), onde os conjuntos ΩEn (f ) são disjuntos, donde
n=1
3.1. O Integral de Lebesgue 131


X ∞
X
mN +1 (ΩE (f )) = mN +1 (ΩEn (f )), i.e., λ(E) = λ(En ).
n=1 n=1
b) Como ΩE (f ) ⊆ E × R, é claro que
mN (E) = 0 =⇒ 0 ≤ λ(E) = mN +1 (ΩE (f )) ≤ mN +1 (E × R) = 0.

Tal como fizémos no caso do integral de Riemann, podemos extender λ


à classe dos conjuntos E ⊆ RN onde f é mensurável (e somável, se f muda
de sinal em RN ), que designamos Lf . O exercı́cio 11 refere algumas pro-
priedades desta extensão. A função λ : Lf → R é o integral indefinido
de lebesgue da função f .
A mensurabilidade e o integral da função f no conjunto E foram definidos
em termos do conjunto ΩE (f ) = Ω+ −
E (f ) ∪ ΩE (f ), onde

Ω+
E (f ) = {(x, y) ∈ R
N +1
: x ∈ E, e 0 < y < f (x)}, e
Ω−
E (f ) = {(x, y) ∈ R
N +1
: x ∈ E, e 0 > y > f (x)}.
O gráfico de f em E é o conjunto
GE (f ) = {(x, y) ∈ RN +1 : x ∈ E, e y = f (x)},
e é evidente que ΩE (f ) não inclui quaisquer pontos de GE (f ). No entanto,
é útil reconhecer que, em larga medida, a inclusão ou exclusão de pontos do
gráfico é irrelevante, tal como vimos para as funções Riemann-integráveis,
cujo gráfico é sempre Jordan-mensurável, e de conteúdo nulo. Definimos os
conjuntos ΣE (f ) = Σ+ −
E (f ) ∪ ΣE (f ) por

Σ+
E (f ) = {(x, y) ∈ R
N +1
: x ∈ E, e 0 < y ≤ f (x)}, e
Σ−
E (f ) = {(x, y) ∈ R
N +1
: x ∈ E, e 0 > y ≥ f (x)}.
Notamos que ΓE (f ) = ΣE (f ) − ΩE (f ) ⊆ GE (f ), porque ΓE (f ) é o gráfico
de f no subconjunto de E onde f (x) 6= 0. O teorema seguinte formaliza as
observações acima para funções L-mensuráveis:
Teorema 3.1.11. Se E ⊆ RN , e f : E → R, então
a) ΩE (f ) ∈ L(RN +1 ) ⇔ ΣE (f ) ∈ L(RN +1 ) ⇒ GE (f ) ∈ L(RN +1 ).
b) ΩE (f ) ∈ L(RN +1 ) ⇒ mN +1 (GE (f )) = 0.
Demonstração. Consideramos a função g, definida por g(x) = f (x), quando
x ∈ E, e g(x) = 0, quando x 6∈ E, que é L-mensurável em RN . Temos
ΩE (f ) = ΩRN (g), ΣE (f ) = ΣRN (g), e ΓE (f ) = ΓRN (g).
Observamos que GE (f ) − ΓE (f ) = {(x, 0) : x ∈ E, f (x) = 0} é sempre
L-mensurável, porque tem medida nula.
132 Capı́tulo 3. Integrais de Lebesgue

a) Basta-nos considerar o caso f ≥ 0 (porquê?). Provamos primeiro que:

ΩE (f ) ∈ L(RN +1 ) ⇒ ΣE (f ) ∈ L(RN +1 ) ⇒ ΓE (f )) ∈ L(RN +1 ).

A função gn , dada por


1
(i) gn (x) = g(x) + ,
n
é L-mensurável em RN , porque a respectiva região de ordenadas é
ΩRN (gn ) = Ωn ∪ Rn , onde

• Ωn = {(x, y + n1 ) : (x, y) ∈ ΩRN (f )} é uma translacção vertical


de ΩRN (g), e, por isso, é L-mensurável, e
• Rn = RN ×]0, n1 ] é um rectângulo, obviamente L-mensurável.

É simples verificar que



\
ΩRN (gn ) = ΣRN (g), donde ΣE (f ) = ΣRN (g) ∈ L(RN +1 ), e
n=1

ΓE (f ) = ΓRN (g) = ΣRN (g) − ΩRN (g) ∈ L(RN +1 ).


Deixamos como exercı́cio verificar a implicação:

(ii) ΣRN (f ) ∈ L(RN +1 ) =⇒ ΩE (f ) ∈ L(RN +1 ).

b) Seja f limitada, com suporte no rectângulo limitado R (deixamos o


caso geral para o exercı́cio 14). Então g tem suporte em R, donde

ΩRN (g) = ΩR (g), ΣRN (g) = ΣR (g), e ΓRN (g) = ΓR (g).

De acordo com a definição (i), e como f é limitada, temos


1
Z Z
gn dmN = mN +1 (ΩR (gn )) = f dmN + mN (R) < ∞, donde
R R n
Z
(iii) mN +1 (ΩR (gn )) → f dmN = mN +1 (ΩR (f )).
R
Como ΩR (gn ) ց ΣR (g), concluı́mos do teorema 2.1.13 que:

(iv) mN +1 (ΩR (gn )) → mN +1 (ΣR (g)).

Segue-se de (iii) e (iv) que mN +1 (ΣR (g)) = mN +1 (ΩR (g)) < ∞,


donde mN +1 (ΓR (g)) = mN +1 (ΣR (g)) − mN +1 (ΩR (g)) = 0, e portanto
mN +1 (ΓE (f )) = mN +1 (ΓRN (g)) = mN +1 (ΓR (g)) = 0.
3.1. O Integral de Lebesgue 133

O resultado anterior pode ser completado como se segue (exercı́cio 14):

Teorema 3.1.12. Se E ⊆ RN , e f : E → R, então

ΩE (f ) ∈ B(RN +1 ) ⇔ ΣE (f ) ∈ B(RN +1 ) ⇒ ΓE (f ) ∈ B(RN +1 ).

Exercı́cios.

1. Seja f : RN → R contı́nua em RN , e E ⊆ RN B-mensurável. Prove que f é


Borel-mensurável em E.

2. Mostre que se ER ⊆ RN , e mN (E) = 0, então qualquer função f : RN → R é


somável em E, e E f dmN = 0.

3. Em cada um dos seguintes casos, diga


• Se f é B-mensurável em E, e
R
• Se o integral E f existe, como um integral impróprio de Riemann e/ou
como um integral de Lebesgue.

1
a) f (x) = x2 , E = [1, +∞[.
b) f (x) = log(|x|), E = [−1, +1].
c) f (x) = x1 , E = [0, +∞[.
sen x
d) f (x) = x , E = [0, +∞[.
1
e) f (x) = dir(x) , E =] − ∞, +∞[.

f) f (x, y) = log(x2 + y 2 ), E = B1 (0).


g) f (x) = g ′ (x), onde g(x) = x2 sen( x12 ), para x 6= 0, e g(0) = 0, com
E = [−1, 1].

4. Mostre que existem funções Riemann-integráveis que não são Borel-mensu-


ráveis. Aproveite para verificar que existem funções f ≃ 0 qtp em R que não
são Borel-mensuráveis.

5. Suponha que f : RN → R é Riemann-integrável em qualquer E ∈ J (RN ).


a) Prove que o integral impróprio de Riemann de f em RN existe e é finito
se e só se é absolutamente convergente.
b) Mostre que as funções f : RN → R com integral impróprio de Riemann
em RN absolutamente convergente formam um espaço vectorial, onde o
integral impróprio é uma transformação linear.
c) Prove que o integral impróprio de Riemann de f em RN existe e é finito se
e só se f é somável em RN , e neste caso o integral impróprio de Riemann
de f é o integral de Lebesgue de f .

R ∞ uma função f : R → R tal que o integral impróprio de Rie-


d) Determine
mann −∞ f (x)dx (no sentido referido no exercı́cio 1 da secção 1.5) existe
e é finito, mas f não é somável.
134 Capı́tulo 3. Integrais de Lebesgue

6. Suponha que f ≥ 0 é mensurável em E ⊆ RN .

a) Mostre que se f é somável em E, então f é finita qtp em E.


R
b) Prove que se E f dmN = 0, então f ≃ 0 em E.
sugestão: Em ambos os casos, seja Fα = {x ∈ E : f (x) ≥ α}, e aplique
o exercı́cio 10 da secção 2.4 ao conjunto Fα × ]0, α[.

7. Mostre que E ⊆ RN é Lebesgue-mensurável se e só se χE é Lebesgue-men-


surável, e nesse caso, Z
χE dmN = mN (E).
RN

8. Complete a demonstração de 3.1.5.

9. Seja F a classe das funções h : E → R, mensuráveis em E. Mostre que a


relação f ≃ g em E é de equivalência em F.

10. Demonstre as proposições 3.1.6 e 3.1.7.

11. Complete a demonstração do teorema 3.1.10.


Rx
12. Seja f : R → R somável, e F (x) = −∞ f dm. Mostre que F é uniforme-
mente contı́nua em R. Generalize este resultado para RN . sugestão: Mostre
primeiro que F é contı́nua em R.

13. Seja f ≥ 0 uma função L-mensurável em RN , e considere a classe dos


conjuntos onde f é L-mensurável:

Lf = {E ⊆ RN : ΩE (f ) ∈ L(RN +1 }.

a) Mostre que Lf é uma σ-álgebra que contém L(RN ).


b) Suponha que que f é somável em qualquer compacto K ⊂ RN (dizemos
neste caso que f é localmente somável em RN ). Mostre que o integral
indefinido λ é regular em L(RN ).
c) λ é sempre regular em B(RN )?
d) Mostre que λ tem uma extensão completa definida em Lf .

14. Complete a demonstração dos teoremas 3.1.11 e 3.1.12. sugestão: Pode


ser conveniente demonstrar, sucessivamente, as seguintes afirmações:

a) ΣRN (f ) ∈ L(RN +1 ) =⇒ ΩRN (f ) ∈ L(RN +1 ), com f ≥ 0, e E = RN .


b) mN +1 (ΓRN (f )) = 0, quando f ≥ 0 tem suporte num rectângulo limitado
R, mesmo que f não seja somável em R. sugestão: Mostre que fn (x) =
min{f (x), n} é mensurável.
c) mN +1 (ΓRN (f )) = 0, quando f ≥ 0 é L-mensurável em RN .
d) O teorema 3.1.12.
3.2. Limites, Mensurabilidade e Integrais 135

3.2 Limites, Mensurabilidade e Integrais


As vantagens técnicas do integral de Lebesgue sobre o integral de Riemann
tornam-se evidentes quando reconhecemos a facilidade com que a teoria de
Lebesgue trata diversas operações de passagem de limite. Esta facilidade
advém, naturalmente, das propriedades da própria medida de Lebesgue e
da classe dos conjuntos Lebesgue-mensuráveis. A tı́tulo de exemplo, vimos
na secção anterior que o integral indefinido de Lebesgue é uma medida,
simplesmente porque a medida de Lebesgue também o é (3.1.10). Veremos
nesta secção como os teoremas sobre sucessões monótonas de conjuntos men-
suráveis (2.1.12 e 2.1.13) têm como consequência directa três resultados
clássicos sobre integrais e limites:

• O teorema de Beppo Levi,

• O lema de Fatou, e

• O teorema da convergência dominada de Lebesgue.

Figura 3.2.1: ΩE (m) = ΩE (f ) ∩ ΩE (g), ΩE (M ) = ΩE (f ) ∪ ΩE (g)

Os resultados referidos aplicam-se, essencialmente sem quaisquer alterações,


tanto a funções Lebesgue-mensuráveis, como a funções Borel-mensuráveis,
porque resultam de propriedades comuns a qualquer espaço de medida. Por
esta razão, e como veremos mais adiante, o seu domı́nio de aplicabilidade é
muito mais geral do que esta primeira exposição poderia fazer supor.
Notámos, ainda no Capı́tulo 1, que se f e g são funções não-negativas,
as regiões de ordenadas das funções

m(x) = min{f (x), g(x)}, e M (x) = max{f (x), g(x)},

são, respectivamente, a intersecção e a união das regiões de ordenadas de


f e de g. Esta observação é válida para qualquer famı́lia de funções, e é a
chave para mostrar que a mensurabilidade de funções é sempre preservada
em operações de passagem ao limite. É um exercı́cio elementar demonstrar
o seguinte
136 Capı́tulo 3. Integrais de Lebesgue

Lema 3.2.1. Dadas funções fn : E → R, onde E ⊆ RN , sejam

g(x) = sup{fn (x) : n ∈ N}, e h(x) = inf{fn (x) : n ∈ N}.

Temos então:

[ ∞
\
a) Ω+
E (g) = Ω+ −
E (fn ), e ΣE (g) = Σ−
E (fn ), e
n=1 n=1
\∞ ∞
[
b) Σ+
E (h) = Σ+ −
E (fn ), e ΩE (h) = Ω−
E (fn ).
n=1 n=1

O seguinte teorema é uma consequência directa deste lema.

Teorema 3.2.2. Se as funções fn : E → R são mensuráveis em E, então


as seguintes funções são mensuráveis em E:

a) g(x) = sup{fn (x) : n ∈ N}, h(x) = inf{fn (x) : n ∈ N},


b) G(x) = lim sup fn (x) e H(x) = lim inf fn (x).
n→∞ n→∞

Se f (x) = limn→∞ fn (x) para qualquer x ∈ E, então f é mensurável em E.

Demonstração. Supomos que as funções fn são não-negativas, deixando o


caso mais geral para os exercı́cios. Para demonstrar a) no que diz respeito
à função g, observamos que, de acordo com o lema anterior,

[ ∞
[
ΩE (g) = Ω+
E (g) = Ω+
E (fn ) = ΩE (fn ),
n=1 n=1

• Se as funções fn são mensuráveis, então os conjuntos ΩE (fn ) são, por


definição, mensuráveis.

• Como os conjuntos ΩE (fn ) são mensuráveis, o conjunto ΩE (g) é men-


surável, porque a classe dos conjuntos mensuráveis é uma σ-álgebra,
e por isso é fechada em relação a uniões numeráveis.

Concluı́mos, assim, que a função g é mensurável.


No caso da função h, observamos, ainda do lema anterior, que

\ ∞
\
ΣE (h) = Σ+
E (h) = Σ+
E (fn ) = ΣE (fn ).
n=1 n=1

Os conjuntos ΣE (fn ) são mensuráveis, porque a classe dos conjuntos men-


suráveis é uma σ-álgebra, e é, por isso, fechada em relação a intersecções
numeráveis. De acordo com 3.1.11, ou 3.1.12, a função h é mensurável.
3.2. Limites, Mensurabilidade e Integrais 137

As restantes alı́neas deste teorema são consequências quase directas de


a). Tomando
gn (x) = sup{fk (x) : k ≥ n} e hn (x) = inf{fk (x) : k ≥ n},
já vimos em a) que as funções gn e hn são mensuráveis. É uma propriedade
elementar das sucessões numéricas que

G(x) = lim sup fn (x) = lim gn (x) = inf{gn (x) : n ∈ N}, e


n→∞ n→∞

H(x) = lim inf fn (x) = lim hn (x) = sup{hn (x) : n ∈ N}.


n→∞ n→∞
Concluı́mos, e ainda em consequência de a), que as funções G e H são men-
suráveis.
Para provar a afirmação final, observe-se que, se f (x) = limn→∞ fn (x)
para qualquer x ∈ E, então, por razões evidentes,
f (x) = G(x) = H(x) para qualquer x ∈ E.
Como G e H são mensuráveis em E, segue-se que f é mensurável em E.
A afirmação acima sobre a função f (x) = limn→∞ fn (x) pode ser facil-
mente completada para o caso em que a convergência é válida, apenas, qtp
em E.
Teorema 3.2.3. Se as funções fn : E → R são L-mensuráveis em E, e
f (x) = limn→∞ fn (x) qtp em E, então f é L-mensurável em E.
Demonstração. Seja F ⊆ E o conjunto onde f (x) 6= limn→∞ fn (x) ou
limn→∞ fn (x) não existe, donde, por hipótese, mN (F ) = 0. Considerem-
se as funções f˜n : E → R dadas por:

˜ fn (x), se x ∈ E − F,
fn (x) = .
0, se x ∈ F.
As funções f˜n são L-mensuráveis em E, porque f˜n ≃ fn em E. É evi-
dente que limn→∞ f˜n (x) existe, para qualquer x ∈ E, e portanto f˜(x) =
limn→∞ f˜n (x) é L-mensurável em E, pelo resultado anterior. Finalmente, e
como f ≃ f˜ em E, concluı́mos que f é L-mensurável em E.
O resultado que acabámos de provar usa o facto do espaço de Lebes-
gue ser completo. Veremos adiante que é mesmo assim possı́vel formular
resultados análogos, aplicáveis quando o espaço de medida subjacente não
é completo.
Apesar de o limite de uma sucessão de funções mensuráveis ser sem-
pre uma função mensurável, a operação de integração não pode ser sempre
trocada com a de passagem ao limite, como observámos logo no inı́cio do
capı́tulo 1. Esta troca é sempre possı́vel, no entanto, no caso de uma sucessão
crescente de funções não negativas, em consequência directa do teorema da
convergência monótona de Lebesgue (2.1.12). É esse o
138 Capı́tulo 3. Integrais de Lebesgue

Teorema 3.2.4 (Teorema de Beppo Levi). (2 ) Se as funções fn : E →


[0, +∞] são mensuráveis em E ⊆ RN , e formam uma sucessão crescente,
então fn (x) ր f (x), onde f é mensurável em E, e
Z Z
lim fn dmN = lim fn dmN .
E n→∞ n→∞ E

Demonstração. Sabemos que f (x) = sup{fn (x) : n ∈ N} é mensurável, de


acordo com 3.2.2, precisamente porque

[
ΩE (fn ) ր ΩE (f ) = ΩE (fn ).
n=1

Segue-se do teorema da convergência monótona de Lebesgue para medidas


(2.1.12) que
Z Z
mN +1 (ΩE (fn )) → mN +1 (ΩE (f )), ou seja, fn dmN → f dmN .
E E

Exemplo 3.2.5.
Seja f a função com suporte em ]0, 1[, e f (x) = √1 ,
quando 0 < x < 1.
x
R1
Observámos no exemplo 3.1.2.3 que o integral impróprio 0 f (x)dx existe, e é
igual a 2. Sendo Q ∩ ]0, 1[ = {q1 , q2 , · · · }, consideramos
n ∞
X 1 X 1
gn (x) = f (x − q k ) ր g(x) = f (x − qk ).
2k 2k
k=1 k=1

É evidente que a função g é ilimitada em qualquer subintervalo não trivial de


[0, 1], e por isso o integral impróprio de Riemann de g em qualquer intervalo
I ⊇ [0, 1] não está definido. Por outro lado, é fácil verificar (a partir do
exercı́cio 5 da secção anterior) que as funções gn são L-mensuráveis, os integrais
R2
impróprios 0 gn (x)dx existem, e
2 2 n Z 2 n
1 1
Z Z X X
gn dm = gn (x)dx = f (x − qk )dx = ր 1.
0 0 2k 0 2k−1
k=1 k=1
R2
Concluı́mos do teorema de Beppo Levi que g é L-mensurável, e 0 gdm = 1,
Rx
donde g é finita qtp. A função G(x) = −∞ gdm pode ser calculada integrando
a série termo-a-termo, e é dada por

X 1 √
G(x) = x − qn .
n=1
2n−1
2
Beppo Levi, 1875-1961, matemático italiano, refugiou-se do regime de Mussolini na
Argentina, e teve um papel central no desenvolvimento da Matemática no seu paı́s de
adopção. Este teorema foi publicado em 1906.
3.2. Limites, Mensurabilidade e Integrais 139

O teorema de Beppo Levi é aplicável a sucessões decrescentes de funções,


desde que as funções em causa sejam somáveis a partir de certa ordem.

Teorema 3.2.6 (Teorema de Beppo Levi (II)). Se as funções fn : E →


[0, +∞] são mensuráveis em E ⊆ RN , e formam uma sucessão decrescente,
então fn (x) ց f (x), onde f é mensurável em E. Se alguma função fn é
somável, então Z Z
lim fn dmN = lim fn dmN .
E n→∞ n→∞ E

Demonstração. A função f (x) = inf{fn (x) : n ∈ N} é mensurável, de


acordo com 3.2.2. Sabemos que

\
ΣE (fn ) ց ΣE (f ) = ΣE (fn ).
n=1

Se alguma das funções fn é somável, então existe k tal que mN +1 (ΣE (fk )) <
+∞. Concluı́mos, directamente de 2.1.13 e 3.1.11, que:
Z Z
mN +1 (ΣE (fn )) → mN +1 (ΣE (f )), i.e., fn dmN → f dmN .
E E

O limite inferior de uma sucessão de funções é sempre o limite de uma


sucessão crescente, à qual podemos aplicar o teorema de Beppo Levi. Obte-
mos, assim, a desigualdade conhecida como

Lema 3.2.7 (Lema de Fatou). (3 ) Se as funções fn : E → [0, +∞] são


mensuráveis em E ⊆ RN , então
Z Z
lim inf fn dmN ≤ lim inf fn dmN .
E n→∞ n→∞ E

Demonstração. Como notámos na demonstração de 3.2.2, temos

lim inf fn (x) = sup{hn (x) : n ∈ N} = lim hn (x), onde


n→∞ n→∞

hn (x) = inf{fk (x) : k ≥ n} ր lim inf fn (x).


n→∞

Como as funções hn formam uma sucessão crescente, o teorema de Beppo


Levi permite-nos concluir que
Z Z Z Z
lim hn dmN = lim hn dmN , ou hn dmN → lim inf fn dmN .
E n→∞ n→∞ E E E n→∞
3
Pierre Joseph Louis Fatou, 1878-1929, matemático francês. Fatou referiu um lema
muito semelhante a este num artigo publicado em 1906.
140 Capı́tulo 3. Integrais de Lebesgue

Da monotonia do integral em relação à integranda segue-se que


Z Z
hn dmN ≤ fk dmN , para qualquer k ≥ n, ou
E E
Z Z
(i) hn dmN ≤ inf{ fk dmN : k ≥ n}.
E E
As observações feitas na demonstração de 3.2.2 a propósito de limites de
sucessões
R numéricas aplicam-se, naturalmente, à sucessão de termo geral
f
E k dm N , e portanto
Z Z
inf{ fk dmN : k ≥ n} → lim inf fn dmN .
E n→∞ E

Passando ao limite na desigualdade (i), obtemos


Z Z
lim inf fn dmN ≤ lim inf fn dmN .
E n→∞ n→∞ E

Deixamos como exercı́cio a seguinte versão do lema de Fatou para o


limite superior de uma sucessão de funções, que é consequência de 3.2.6.
Teorema 3.2.8 (Lema de Fatou (II)). Se as funções fn : E → [0, +∞] são
mensuráveis em E ⊆ RN , e existe uma função somável F : E → [0, +∞] tal
que fn (x) ≤ F (x), qtp em E, então
Z Z
lim sup fn dmN ≤ lim sup fn dmN .
n→∞ E E n→∞

Este resultado, e o lema de Fatou, permitem-nos obter uma versão pre-


liminar do que é, seguramente, um dos resultados mais úteis da teoria da
integração de Lebesgue.
Teorema 3.2.9 (Teorema da Convergência Dominada de Lebesgue). (4 )
Suponha-se que
a) As funções fn : E → R são L-mensuráveis em E,

b) Existe uma função somável F : E → [0, +∞] tal que |fn (x)| ≤ F (x),
qtp em E, e

c) f (x) = limn→∞ fn (x) qtp em E.

Neste caso, f é L-mensurável e somável em E, e


Z Z
lim fn dmN = lim fn dmN .
E n→∞ n→∞ E

4
Publicado por Lebesgue, em 1908.
3.2. Limites, Mensurabilidade e Integrais 141

Demonstração. Supomos que as funções fn são não-negativas, deixando o


caso geral para os exercı́cios. Os limites superior, e inferior, da sucessão dos
integrais de fn existem sempre, e satisfazem
Z Z Z
lim inf fn dmN ≤ lim sup fn dmN ≤ F dmN < ∞.
n→∞ E n→∞ E E

Aplicamos os teoremas 3.2.7 e 3.2.8 à sucessão de funções fn , para obter


Z Z
lim inf fn dmN ≤ lim inf fn dmN ≤
E n→∞ n→∞ E
Z Z
≤ lim sup fn dmN ≤ lim sup fn dmN .
n→∞ E E n→∞

O resultado é agora imediato, porque, por hipótese,

lim inf fn ≃ lim sup fn ≃ f em E.


n→∞ n→∞

Note-se, finalmente, que apesar do teorema da convergência dominada


de Lebesgue se referir a uma famı́lia de funções indexada por um parâmetro
n ∈ N, é frequentemente possı́vel aplicá-lo, igualmente, a famı́lias de funções
que dependem de um parâmetro real. A ideia básica aqui é a seguinte afir-
mação, que deve ser conhecida:

3.2.10. Se f : U → R está definida num aberto U ⊆ R e a ∈ U , então


limt→a f (t) = b se e só se, para qualquer sucessão em U tal que xn → a, se
tem f (xn ) → b.

Exemplo 3.2.11.
derivada de um integral paramétrico: É muito frequente invocar o teo-
rema da convergência dominada de Lebesgue para calcular a derivada de um
integral paramétrico. Considere-se, a tı́tulo de exemplo, o integral
Z ∞
F (s) = e−st sen(t2 )dt, para s > 0.
0

É fácil mostrar que o integral acima é um integral impróprio de Riemann


absolutamente convergente, e portanto a integranda é uma função somável,
porque Z ∞
1
|e−st sen(t2 )| ≤ e−st , e e−st dt = .
0 s
Para calcular a derivada de F , consideramos o quociente
∞ ∞
F (s + h) − F (s) e−(s+h)t − e−st e−ht − 1 −st
Z Z
= sen(t2 )dt = e sen(t2 )dt.
h 0 h 0 h
142 Capı́tulo 3. Integrais de Lebesgue

Temos, portanto, que



e−ht − 1 −st
Z

F (s) = lim e sen(t2 )dt,
h→0 0 h

se este limite existir. É fácil mostrar que

e−ht − 1 e−ht − 1 −st


lim = −t, e | e sen(t2 )| ≤ te−st .
h→0 h h
Como a função g(t) = te−st é somável em [0, ∞[, podemos concluir, do Teorema
da Convergência Dominada, que
Z ∞
F ′ (s) = − te−st sen(t2 )dt.
0

Exercı́cios.

1. Suponha que fn : E → R, g(x) = sup{fn (x) : n ∈ N} e h(x) = inf{fn (x) :


n ∈ N}. Mostre que

g + (x) = sup{fn+ (x) : n ∈ N} e g − (x) = inf{fn− (x) : n ∈ N}.

Qual é o resultado análogo para as funções h+ e h− ?

2. Demonstre o lema 3.2.1.

3. Demonstre o teorema 3.2.2 para funções fn : E → R.

4. Mostre que o teorema de Beppo Levi é válido para funções L-mensuráveis


definidas qtp.

R o teorema de Beppo Levi é válido para funções fn : E → R,


5. Mostre que
desde que E f1 dmN > −∞.

6. Mostre que a região de ordenadas da função g definida no exemplo 3.2.5 é


σ-elementar, e portanto g é Borel-mensurável.

7. Demonstre o teorema 3.2.8.

8. Mostre que a desigualdade estrita é possı́vel no lema de Fatou e em 3.2.8.

9. O Lema de Fatou (II) tem como uma das hipóteses a condição


(i) fn (x) ≤ F (x), qtp em E, onde F é somável em E.
Verifique se esta condição pode ser substituı́da por
R
(ii) E fn dmN < K < ∞, para qualquer n ∈ N.

10. Demonstre o teorema da convergência dominada para fn : E → R.


3.3. O Teorema de Fubini-Lebesgue 143

11. Verifique os detalhes dos cálculos indicados na discussão do exemplo 3.2.11.

12. Calcule n
x n x
Z 
lim 1− e 2 dx.
n→+∞ 0 n

13. Calcule a derivada da função



e−t
Z
F (s) = sen(st)dt.
0 t

3.3 O Teorema de Fubini-Lebesgue


A teoria de integração de Lebesgue inclui uma solução particularmente ele-
gante para o problema do cálculo da medida de um conjunto por integração
da medida das suas secções: o Teorema de Fubini-Lebesgue(5 ). Escrevemos
aqui os pontos v ∈ RN +M na forma v = (x, y), onde x ∈ RN e y ∈ RM . Se
y 0 ∈ RM , o conjunto π dado por:

π = (x, y) ∈ RN +M : y = y 0 ,


é um hiperplano em RN +M paralelo a RN . Analogamente, se x0 ∈ RN então


o conjunto ρ, dado por ρ = {(x, y) : x = x0 } é um hiperplano ρ em RN +M
paralelo a RM .

Figura 3.3.1: Secções do conjunto E.

Se E ⊆ RN +M , é natural dizer que

E ∩ π = {(x, y 0 ) : (x, y 0 ) ∈ E} e E ∩ ρ = {(x0 , y) : (x0 , y) ∈ E}


5
De Guido Fubini, 1879-1943, matemático italiano de origem judaica, refugiado nos
EUA em 1939, depois de obrigado a demitir-se da sua posição na Universidade de Turim.
A versão moderna deste teorema foi descoberta no perı́odo 1906-1907 por Fubini e Beppo
Levi.
144 Capı́tulo 3. Integrais de Lebesgue

são secções de E. Preferimos no entanto considerar as projecções destes


conjuntos, respectivamente em RN e RM :

Ey0 = x ∈ RN : (x, y 0 ) ∈ E , e Ex′ 0 = y ∈ RM : (x0 , y) ∈ E .


 

Estes conjuntos são exemplos de secções do conjunto E, no sentido em


que passamos a usar esta palavra, mas não esgotam todos os casos que nos
interessa considerar. Quando o espaço em causa é pelo menos tridimensio-
nal, podemos escrever os pontos v ∈ RN +M +P na forma

v = (x, y, z), onde x ∈ RN , y ∈ RM , e z ∈ RP .

Dado y 0 ∈ RM , o conjunto (x, z) ∈ RN +P : (x, y 0 , z) ∈ E é também uma




secção de E. Os diferentes tipos de secções que referimos acima podem ser


definidos, mais precisamente, como se segue:
Definição 3.3.1 (Secções de E ⊆ RN ). Seja E ⊆ RN , N = M +K, t ∈ RK ,
e 0 ≤ i ≤ M . As secções Eit ⊆ RM do conjunto E são os conjuntos dados
por:

 y ∈ RM : (t, y) ∈ E , se i = 0,
 

Eit = x ∈ RM : (x, t) ∈ E , se i = M,
(x, z) ∈ RM : x ∈ Ri , z ∈ RM −i , (x, t, z) ∈ E , se 0 < i < M.
 

Exemplos 3.3.2.
1. Seja Ω ⊂ R3 a região de ordenadas de f : R2 → R. Escrevemos os pontos de
R3 na forma v = (x, y, z), e observamos que, se t ∈ R, e f ≥ 0, então:
• Ωt0 = {(y, z) : 0 < z < f (t, y)} é a região de ordenadas da função gt : R →
R, dada por gt (y) = f (t, y).
• Ωt1 = {(x, z) : 0 < z < f (x, t)} é a região de ordenadas da função ht :
R → R, dada por ht (x) = f (x, t).
• Ωt2 = {(x, y) : 0 < t < f (x, y)} é o conjunto de pontos onde f é maior do
que t.

Figura 3.3.2: A secção Ωt0 é a região de ordenadas de gt .


3.3. O Teorema de Fubini-Lebesgue 145

2. Considere-se a bola S = x ∈ RN : kxk ≤ R ⊂ RN , e seja y ∈ RK , onde



y
K < N , e kyk <nR. É fácil reconhecer que a secção
o Si é igualmente uma bola,
dada por Siy = z ∈ RN −K : kzk ≤ R2 − kyk2 .
p

O seguinte resultado deve ser evidente:


Lema 3.3.3. Seja E ⊆ RN , N = M +K, t ∈ RK , e 0 ≤ i ≤ M . Suponha-se
também que os conjuntos Eα ⊆ RN . Temos, então:
c
a) (E c )ti = Eit .

b) Se E = α∈J Eα , então Eit = α∈J (Eα )ti .


S S

c) Se E = α∈J Eα , então Eit = α∈J (Eα )ti .


T T

É também muito simples mostrar que as secções de rectângulos (respec-


tivamente, conjuntos elementares, conjuntos abertos) são rectângulos (res-
pectivamente, conjuntos elementares, conjuntos abertos):
Lema 3.3.4. Seja E ⊆ RN , N = M + K, t ∈ RK , e 0 ≤ i ≤ M . Temos,
então:
a) Se E é um rectângulo, então Eit é um rectângulo.

b) Se E é elementar, então Eit é elementar.

c) Se E é aberto, então Eit é aberto.


Demonstração. No caso de a), basta-nos observar que, se E é um rectângulo,
então E = I1 × I2 × · · · × IN , onde os conjuntos Ik são intervalos. Neste
caso, a secção Eit, se não é vazia, é necessariamente de uma das formas:

 IK+1 × IK+2 × · · · × IN , se i = 0,
t
Ei = I1 × I2 × · · · × IM , se i = M,
I1 × · · · × Ii × Ii+K+1 × · · · × IN , se 0 < i < M.

Os casos de b) e c) são análogos. Para provar, por exemplo, c), recordamos


que, se E é aberto, então existem rectângulos abertos Rn tais que

[
E= Rn .
n=1

De acordo com 3.3.3, temos



[
Eit = (En )ti .
n=1

É assim evidente que Eit é um conjunto aberto.


146 Capı́tulo 3. Integrais de Lebesgue

Se as secções Eit ⊆ RM são Lebesgue-mensuráveis, podemos determinar


as respectivas medidas Ai (t) = mM (Eit), e Ai é uma função em RK . O
teorema de Fubini-Lebesgue, na versão apresentada abaixo, garante em par-
ticular que, se o conjunto E é L-mensurável, então o integral de Ai existe,
e é a medida de E.

Teorema 3.3.5 (Teorema de Fubini-Lebesgue (I)). Seja E ⊆ RN um con-


junto L-mensurável, e suponha-se que N = K + M , 0 ≤ i ≤ M , e t ∈ RK .
Temos, então

a) Os conjuntos Eit ⊂ RM são L-mensuráveis, para quase todo o t ∈ RK ,

b) As funções Ai (t) = mM (Eit) são L-mensuráveis em RK , e


Z
Ai dmK = mN (E).
RK

Exemplo 3.3.6.
Designamos por E a região de ordenadas da função f : R2 → R dada por
z = log(x2 + y 2 ), no conjunto B1 (0). Se z < 0, as secções E2z são cı́rculos, de
z
raio r = e 2 , donde A2 (z) = πez .
A medida do conjunto E é dada, portanto, por
Z 0 Z 0
m3 (E) = A2 (z)dm = πez dm,
−∞ −∞

que pode ser calculado como um integral impróprio de Riemann. Temos, assim,
Z 0 0
m3 (E) = lim πet dm = lim π et z = π.
z→−∞ z z→−∞

O teorema de Fubini refere-se usualmente ao cálculo de integrais múltiplos


por iteração de integrais de mais baixa dimensão, como vimos no Capı́tulo
1. Antes de demonstrarmos o teorema 3.3.5, mostramos como a forma mais
clássica do teorema de Fubini, para funções mensuráveis não negativas, é
um seu corolário directo, e muito simples.

Teorema 3.3.7 (Teorema de Fubini-Lebesgue (II)). Se f : RN +M → [0, +∞]


é L-mensurável, então

a) As funções gx(y) = f (x, y) são L-mensuráveis, para quase todo o


x ∈ RN ,

b) As funções hy (x) = f (x, y) são L-mensuráveis, para quase todo o


y ∈ RM ,
3.3. O Teorema de Fubini-Lebesgue 147

R R
c) Sendo A(x) = RM gxdmM , e B(y) = RN hy dmN , as funções A e B
são L-mensuráveis, e
Z Z ZZ
AdmN = BdmM = f dmN +M .
RN RM RN +M

Demonstração. Observe-se a figura 3.3.2. Designamos por E = ΩRN +M (f )


a região de ordenadas de f , i.e.,

E = {(x, y, z) ∈ RN +M +1 : x ∈ RN , y ∈ RM e 0 < z < f (x, y)}.

E é L-mensurável, porque f é L-mensurável. Dado x ∈ RN , a secção


E0x ⊆ RM +1 é dada por:

E0x = {(y, z) ∈ RM +1 : y ∈ RM , e 0 < z < f (x, y)}.

Esta secção é a região de ordenadas da função gx, i.e., E0x = ΩRM (gx), e
aplicamos o teorema 3.3.5, para concluir que

• o conjunto E0x é L-mensurável para quase todo o x, i.e., gx é L-men-


surável para quase todo o x,
R
• A(x) = mM +1 (E0x) = mM +1 (ΩRM (gx)) = RM gxdmM é L-mensurá-
vel, e, finalmente,

Z Z ZZ
AdmN = mM +1 (E0x)dmN = mN +M +1 (E) = f dmN +M .
RN RN RN +M
Na notação do teorema 3.3.5, a função A deve ser designada por A0 .
É muito fácil verificar que a função B é a função AN , e que as secções
y
correspondentes, i.e., os conjuntos EN , são as regiões de ordenadas das
funções hy .

O teorema de Fubini-Lebesgue para funções somáveis é, igualmente, um


corolário simples deste último resultado. No entanto, requer para a sua
demonstração a aditividade do integral de Lebesgue, que ainda não estabe-
lecemos. Será enunciado e demonstrado na secção 3.5.
Passamos a demonstrar o teorema de Fubini-Lebesgue na forma 3.3.5.
Provamos, sucessivamente, lemas auxiliares que se referem a diversos tipos
de conjuntos, em geral baseando cada resultado no obtido anteriormente.
Demonstraremos assim:

• Lema 3.3.8: Para conjuntos elementares.

• Lema 3.3.9: Para conjuntos abertos.

• Lema 3.3.10: Para conjuntos de tipo Gδ , de medida finita.


148 Capı́tulo 3. Integrais de Lebesgue

• Lema 3.3.11: Para conjuntos de medida nula.

• O teorema de Fubini-Lebesgue (I).

Em todos estes resultados, supomos que E ⊆ RN , N = K + M , 0 ≤ i ≤ M ,


e t ∈ RK . Começamos pelo caso muito simples dos conjuntos elementares,
cuja demonstração é o exercı́cio 1:

Lema 3.3.8. Se E é um conjunto elementar, então

a) Eit ⊂ RM é elementar, para qualquer t ∈ RK ,

b) Ai (t) = mM (Eit) é uma função em escada em RK , e


Z
Ai dmK = mN (E).
RK

c) Fi (λ) = {t ∈ RK : Ai (t) > λ} é elementar.

Passamos ao caso em que o conjunto E é suposto aberto.

Lema 3.3.9. Seja E é aberto, então

a) Eit ⊂ RM é aberto, para qualquer t ∈ RK ,

b) Ai (t) = mM (Eit) é uma função B-mensurável em RK , e


Z
Ai dmK = mN (E).
RK

c) Fi (λ) = {t ∈ RN : Ai (t) > λ} é B-mensurável.

d) Se mN (E) < ∞, então Ai (t) < ∞, qtp em RK .

Demonstração. Qualquer conjunto aberto E é uma união numerável de


rectângulos abertos limitados Rj . Sabemos que

[ ∞
[
E= Rj =⇒ Eit = (Rj )ti .
j=1 j=1

Os conjuntos Eit são, por isso, abertos, e mensuráveis, e a função Ai (t) =


mM (Eit) está definida em RK . Consideramos os conjuntos auxiliares
n
[
Un = Rj , que são elementares e abertos.
j=1

Notamos que:

(i) Un ր E, donde mN (Un ) → mN (E),


3.3. O Teorema de Fubini-Lebesgue 149

(ii) (Un )ti ր Eit, donde mM ((Un )ti ) → mM (Eit), para qualquer t ∈ RK .
 
As funções An,i (t) = mM (Un )ti são em escada, de acordo com o lema
3.3.8. São, portanto, B-mensuráveis.
 Por outro lado, de acordo com (ii),
t
temos An,i ր Ai = mM Ei . Concluı́mos, do teorema de Beppo Levi, que

(iii) A função Ai é B-mensurável, e


Z Z
An,i dmK → Ai dmK .
RK RK

Ainda de acordo com o lema 3.3.8, e com (i),


R
(iv) RK An,i dmK = mN (Un ) → mN (E).
R
Podemos finalmente concluir de (iii) e (iv) que RK AdmK = mN (E).
Para provar a afirmação c), sobre os conjuntos Fi (λ), consideramos os
conjuntos Fn,i (λ) = t ∈ RK : An,i (t) > λ . De acordo com o lema 3.3.8,


estes conjuntos Fn,i são elementares. É imediato verificar que Fn,i ր Fi (λ),
e concluı́mos, assim, que Fi (λ) é B-mensurável.
Para provar a afirmação d), notamos que, para qualquer n ∈ N, temos
Z Z
mN (E) = Ai (t)dmK ≥ Ai (t)dmK ≥ n mK (Fi (n)).
RK Fi (n)

Temos assim que mK (Fi (n)) ≤ n1 mN (E). Se mN (E) < ∞, é claro que
∞ ∞
\ 1 \
mK ( Fi (n)) ≤ mN (E), para qualquer n ⇒ mK ( Fi (n)) = 0.
n
n=1 n=1

Concluı́mos que Ai é finita qtp, porque é evidente que



\
t ∈ RK : Ai (t) = ∞ =

Fi (n).
n=1

Consideramos em seguida o caso:

Lema 3.3.10. Se E é um conjunto de tipo Gδ , com mN (E) < ∞, então

a) Eit ⊂ RM é um Gδ , para qualquer t ∈ RK ,

b) Ai (t) = mM (Eit) é uma função L-mensurável em RK , e


Z
Ai dmK = mN (E).
RK
150 Capı́tulo 3. Integrais de Lebesgue

Demonstração. Existem conjuntos abertos Un , de medida finita, tais que

(i) Un ց E, donde mN (Un ) → mN (E).

É também claro que



\ ∞
\
E= Un =⇒ Eit = (Un )ti , i.e., (Un )ti ց Eit, e Eit é um Gδ .
n=1 n=1

A função Ai (t) = mM (Eit) está, portanto, definida para qualquer t ∈ RK .


Definindo An,i (t) = mM ((Un )ti ), temos An,i (t) ց Ai (t), desde que, para
algum n, tenhamos An,i (t) < ∞. Concluı́mos de d), no lema anterior, que
An,i (t) ց Ai (t), qtp em RK , e segue-se do teorema de Beppo Levi (II) que
Ai é L-mensurável, e
Z Z
(ii) An,i dmK → Ai dmK .
RK RK

Ainda do lema 3.3.9, e (i), temos


Z
(iii) An,i dmK = mN (Un ) → mN (E).
RK

O resultado segue-se de comparar (ii) e (iii).

Passamos ao caso dos conjuntos de medida nula.

Lema 3.3.11. Se E ⊆ RN , e mN (E) = 0, então

a) mM (Eit) = 0, para quase todo o t ∈ RK , donde

b) Ai ≃ 0 em RK , Ai é L-mensurável, e
Z
Ai dmK = mN (E) = 0.
RK

Demonstração. É claro que E ⊆ B, onde B é um conjunto de tipo Gδ tal


que mK (B) = 0. É evidente que Eit ⊆ Bit, e observamos, por isso, que

mM (Bit) = 0 =⇒ mM (Eit) = 0.

Passamos a provar que Ãi (t) = mM (Bit) = 0 qtp em RK . Tal como na


demonstração de 3.3.9, consideramos conjuntos abertos Un ց B, e as res-
pectivas funções An,i (t) = mM ((Un )ti ), onde An,i (t) ց Ãi (t), qtp em RK .
Observamos, como no lema anterior, que
Z Z
(i) An,i dmK → 0 = mK (B) = Ãi dmK .
RK RK
3.3. O Teorema de Fubini-Lebesgue 151

Seja λ > 0. Os conjuntos Fn,i (λ) = t ∈ RK : An,i (t) > λ são B-men-


suráveis, de acordo com 3.3.9, e, por isso,



\
Φi (λ) = Fn,i (λ) é B-mensurável.
n=1

É claro que t ∈ Φi (λ) ⇒ t ∈ Fn,i (λ) ⇒ An,i (t) > λ. Temos, por isso,
Z Z
An,i dmK ≥ An,i dmK ≥ λmK (Φi (λ)).
RK Φi (λ)

Dito doutra forma, temos

1
Z
mK (Φi (λ)) ≤ An,i dmK , para qualquer n ∈ N.
λ RK

Com λ fixo, fazemos n → ∞, para concluir que

(ii) mK (Φi (λ)) = 0, para qualquer λ > 0.

Note-se que, como An,i (t) ≥ Ãi (t), é claro que


n o
Ãi (t) > λ =⇒ An,i (t) > λ, i.e. t ∈ RK : Ãi (t) > λ ⊆ Φi (λ).

Podemos, assim, concluir que


n o
mK t ∈ RK : Ãi (t) > λ = 0, para qualquer λ > 0.

Repare-se que, por razões óbvias,


∞  
n
K
o [
K 1
t ∈ R : Ãi (t) 6= 0 = t ∈ R : Ãi (t) > .
n
n=1

Como os conjuntos à direita têem todos medida nula, segue-se que


n o
mK t ∈ RK : Ãi (t) 6= 0 = 0.

Como Eit ⊆ Bit, deve ser evidente que

Ãi (t) = 0 ⇔ mM (Bit) = 0 ⇒ mM (Eit) = 0 ⇔ Ai (t) = 0.

Concluı́mos que Eit é L-mensurável qtp em RK , e Ai (t) = 0, também qtp


em RK , o que termina a demonstração deste lema.

Provamos finalmente o teorema de Fubini-Lebesgue (I).


152 Capı́tulo 3. Integrais de Lebesgue

Demonstração. Supomos que mN (E) < ∞, e deixamos a generalização para


conjuntos de medida infinita como exercı́cio. Recordamos que, como E é L-
mensurável, existe um conjunto B ⊇ E, de tipo Gδ , tal que Z = B − E é
um conjunto nulo. É evidente que

B = E ∪ Z, e Bit = Eit ∪ Zit.

Os conjuntos Bit são de tipo Gδ , como observámos em 3.3.10. Portanto, se


Zit é um conjunto nulo, é claro que Eit é L-mensurável, e

Ai (t) = mM (Eit) = mM (Bit) = Ãi (t).

Provámos, em 3.3.11, que Zit é um conjunto nulo, qtp em RK . Concluı́mos,


assim, que

Eit ⊂ RM é L-mensurável, para quase todo o t ∈ RK , e Ai ≃ Ãi em RK .

Como Z é um conjunto nulo, temos mN (E) = mN (B), e novamente usamos


3.3.10 para obter:
Z Z
mN (E) = mN (B) = Ãi dmk = Ai dmk .
RK RK

A seguinte consequência do teorema de Fubini-Lebesgue é menos óbvia,


mas muito útil, como veremos na próxima secção. A propriedade em causa
não tem paralelo na teoria de Riemann, como já sabemos.

Teorema 3.3.12. Seja E ⊆ RN , e f : E → R uma função L-mensurável


em E. Então os conjuntos F (λ) = {x ∈ E : f (x) > λ} e G(λ) = {x ∈ E :
f (x) < −λ} são L-mensuráveis para quaisquer λ ≥ 0.

Figura 3.3.3: F (λ) = {x ∈ RN : f (x) > λ} é uma secção da região de


ordenadas de f .

Demonstração. Quando λ > 0 é claro que


3.3. O Teorema de Fubini-Lebesgue 153

• F (λ) é uma secção de Ω+ N +1 : x ∈ E e 0 < y < f (x) .



E (f ) = (x, y) ∈ R

• G(λ) é uma secção de Ω− N +1 : x ∈ E e 0 > y > f (x) .



E (f ) = (x, y) ∈ R

Concluı́mos de 3.3.5 que F (λ) e G(λ) são L-mensuráveis, para quase


todo o λ > 0. Deixamos para o exercı́cio 5 a verificação de:
3.3.13. Existe uma sucessão λn ց λ ≥ 0 tais que F (λn ) e G(λn ) são L-
mensuráveis.
É simples constatar que, se λn ց λ, então

[ ∞
[
F (λ) = F (λn ), e G(λ) = G(λn ).
n=1 n=1

Concluı́mos que F (λ) e G(λ) são L-mensuráveis, para qualquer λ ≥ 0.

O teorema de Fubini-Lebesgue tem um enunciado mais simples para con-


juntos e funções Borel-mensuráveis. Apresentaremos e demonstraremos mais
adiante uma versão abstracta deste teorema esclarecendo esta observação,
mas introduzimos desde já o seguinte resultado, que é relativamente fácil de
provar (exercı́cio 4).

Teorema 3.3.14. Se E é B-mensurável, os conjuntos Eit são B-mensurá-


veis, para todo o t ∈ RK . Se f : E → R é B-mensurável, então os conjuntos
F (λ) = {x ∈ E : f (x) > λ} e G(λ) = {x ∈ E : f (x) < −λ} são B-mensu-
ráveis para qualquer λ ≥ 0.
Exercı́cios.

1. Demonstre o lema 3.3.8.

2. Send f somável em E, prove que as seguintes afirmações são equivalentes:


a) f ≃ 0 em E.
R
b) F
f dmN = 0, para qualquer conjunto L-mensurável F ⊆ E.

3. Conclua a demonstração do teorema de Fubini-Lebesgue, generalizando o


resultado para conjuntos de medida infinita.

4. Demonstre o teorema 3.3.14. sugestão: Mostre que a classe dos conjuntos


E ⊆ RN tais que as secções Eit são Borel-mensuráveis é uma σ-álgebra que
contém os abertos.

5. Prove a afirmação 3.3.13, que utilizámos na demonstração de 3.3.12.

6. Sendo f : RN → [0, +∞] L-mensurável, e F (λ) = {x ∈ RN : f (x) > λ},


definimos
R∞ φ(λ)
R = mN (F (λ)) para λ ≥ 0. Mostre que φ é L-mensurável, e
0
φdm = RN
f dmN . Prove que se f é somável então λφ(λ) ≤ A < ∞.
154 Capı́tulo 3. Integrais de Lebesgue

7. Sendo f : E → R mensurável, mostre que os seguintes conjuntos são mensu-


ráveis.

a) {x ∈ RN : f (x) ≥ λ > 0}, e {x ∈ RN : f (x) ≤ λ < 0}.


b) {x ∈ RN : f (x) = λ 6= 0} (que são conjuntos de nı́vel de f ).
c) A imagem inversa f −1 (I) = {x ∈ RN : f (x) ∈ I} de qualquer intervalo
I ⊆ R, desde que 0 6∈ I.

O que pode dizer se f é B-mensurável?

8. Seja f : E → R uma função mensurável em E, com suporte S = {x ∈ E :


f (x) 6= 0}.

a) Prove que S é mensurável.


b) Prove que f é mensurável em F ⊆ E se e só se F = A ∪ N , onde A ⊆ S
é mensurável, e N ∩ S = ∅.

2
9.R Considere a função f : RN → [0, +∞[ dada por f (x) = e−|x| . Calcule
RN
f dmN . sugestão: Considere primeiro o caso N = 2.

2
|x|2 e−|x| dmN .
R
10. Calcule o integral RN

11. Suponha que f : RN → R é somável, seja λ o respectivo integral indefinido,


e En = {x ∈ RN : f (x) > n}.

a) Prove que mN (En ) → 0, e λ(En ) → 0, quando n → ∞.


b) Mostre que para qualquer ε > 0 existe δ > 0 tal que
Z Z

mN (E) < δ =⇒ f dmN ≤
|f |dmN < ε.
E E

Rx
c) Suponha que N = 1, e F (x) = −∞ f dm. Mostre que para qualquer
ε > 0 existe δ > 0 tal que, se os intervalos Ik =]xk , yk [ são disjuntos,
1 ≤ k ≤ n,(6 )
n
X n
X
(yk − xk ) < δ =⇒ |F (yk ) − F (xk )| < ε.
k=1 k=1

d) Verifique que a “escada do diabo”, que é uniformemente contı́nua em R,


não verifica a propriedade descrita na alı́nea anterior.

6
Esta propriedade é mais forte do que a continuidade uniforme, e foi primeiro observada
por Harnack, ainda no século XIX, a propósito de integrais impróprios absolutamente
convergentes. Diz-se continuidade absoluta, conforme proposto por Vitali em 1905.
3.4. Funções Mensuráveis 155

3.4 Funções Mensuráveis


Demonstramos nesta secção diversas propriedades básicas da classe das
funções mensuráveis, e do integral de Lebesgue. Baseamo-nos aqui em larga
medida na aproximação de funções mensuráveis por funções simples. Como
veremos, os integrais de funções simples desempenham o papel das somas
de Darboux na teoria de Riemann.
Definição 3.4.1 (Funções simples). Se E ⊆ S ⊆ RN , e s : S → R, então
dizemos que s é uma função simples em E se e só se s assume um número
finito de valores em E, i.e., se e só se o conjunto s(E) é finito.
As funções simples mensuráveis podem caracterizar-se da seguinte forma:
Lema 3.4.2. Se s é simples em E, então s é mensurável em E se e só
existe uma partição finita P = {A1 , · · · , An } do suporte de s em E em
conjuntos mensuráveis, tais que s é constante em cada conjunto Ak .
Demonstração. Seja s simples e mensurável. Se s é nula nada temos a
provar, e supomos assim que s assume n valores, distintos e não nulos,
que designamos por αk , com 1 ≤ k ≤ n, ordenando-os de forma crescente:
α1 < α2 < · · · < αn . Sendo Ak = {x ∈ E : s(x) = αk }, os conjuntos
A1 , A2 , · · · , An formam uma partição do suporte de s em E. Tomamos
α0 = αn+1 = 0, e observamos que os conjuntos Ak são secções da região de
ordenadas de s, porque Ak = (ΩE (s))tN , quando
• αk > 0 e max{αk−1 , 0} < t < αk , e

• αk < 0 e αk < t < min{αk+1 , 0}.


Concluı́mos do teorema de Fubini-Lebesgue que os conjuntos Ak são men-
suráveis.
Supomos agora que os conjuntos A1 , A2 , · · · , An são mensuráveis, for-
mam uma partição do suporte de s em E, e Ak = {x ∈ E : s(x) = αk }. A
região de ordenadas de s em E é dada por
n 
[ ]0, αk [, se αk > 0, e
ΩE (s) = Ak × Ik , onde Ik =
]αk , 0[, se αk < 0.
k=1

Concluı́mos que ΩE (s) é uma união finita de conjuntos mensuráveis, e é


mensurável, assim como a função s.

Quando s é uma função simples mensurável com suporte S, e P =


{A1 , A2 , · · · , An } é uma partição finita de S em conjuntos mensuráveis, tais
que s é constante em cada conjunto Ak , dizemos que P é apropriada à
função s, em E. Diremos ainda que a partição P é apropriada a s mesmo
quando P inclui conjuntos mensuráveis onde s é nula, caso em que P é uma
cobertura do suporte de s.
156 Capı́tulo 3. Integrais de Lebesgue

Exemplos 3.4.3.
1. A função de Dirichlet é uma função simples mensurável, porque é a função
caracterı́stica do conjunto mensurável Q.

2. Mais geralmente, as funções simples mensuráveis são combinações lineares


finitas de funções caracterı́sticas de conjuntos mensuráveis.

O cálculo de integrais de Lebesgue de funções simples mensuráveis reduz-


se ao cálculo de somas finitas, semelhantes a somas de Darboux.

Figura 3.4.1: mN +1 (Ri ) = |αi |mN (Ai )

Proposição 3.4.4. Seja s : S → R simples e mensurável em E ⊆ S ⊆ RN .


Se P = {A1 , A2 , · · · , An } é uma partição de E apropriada a s, e s(x) = αk
quando x ∈ Ak , então:

a) s é somável em E se e só se nk=1 |αk |mN (Ak ) < +∞.


P

b) Se o integral de s em E existe, em particular se s ≥ 0 qtp em E, ou


se s é somável em E, então
Z n
X
sdmN = αk mN (Ak ).
E k=1

Demonstração. Repetimos quase sem adaptação as ideias que introduzimos,


no Capı́tulo 1, a propósito das funções em escada. Se s é uma função simples
não-negativa, o conjunto Ω− +
E (s) é vazio, e o conjunto ΩE (s) é a união (finita)
dos produtos cartesianos disjuntos Rk = Ak ×]0, αk [, onde supomos sem
perda de generalidade que αk > 0 para 1 ≤ k ≤ n. Temos neste caso

mN +1 (Rk ) = mN +1 (Ak ×]0, αk [) = mN (Ak )m1 (]0, αk [) = αk mN (Ak ).


3.4. Funções Mensuráveis 157

Concluı́mos que
Z n
[ n
X n
X
sdmN = mN +1 ( Rk ) = mN +1 (Rk ) = αk mN (Ak ).
E k=1 k=1 k=1

Deixamos as restantes afirmações para o exercı́cio 1.

Exemplo 3.4.5.
Se existe uma partição P apropriada à função s formada por rectângulos limi-
tados, então s é em escada, e o seu integral é uma soma de Darboux, porque
nesse caso X X
αr mN (r) = αr cN (r).
r∈P r∈P

Estabelecemos a seguir algumas propriedades elementares das funções


simples mensuráveis, e do respectivo integral de Lebesgue, que serão depois
generalizadas a outras funções mensuráveis.

Proposição 3.4.6. Seja E ⊆ S ⊆ RN , c ∈ R, e s, t : S → R funções


simples mensuráveis em E. Temos então:

a) cs, s+ , s− , |s|, s + t, e st são simples, e mensuráveis em E.

Se s e t são não-negativas em E, ou se s e t são somáveis em E, temos


ainda
R R R
b) Aditividade: E (s + t)dmN = E sdmN + E tdmN .
R R
c) Homogeneidade: E (cs)dmN = c( E sdmN ).

Demonstração. Sejam P e Q partições apropriadas, respectivamente, a s e


a t. A partição P é apropriada a qualquer uma das funções cs, s+ , s− , e
|s|, que são, por isso, simples e mensuráveis. Se necessário, completamos as
partições P e Q, para obter partições da união dos suportes de s e de t. A
partição R = {p ∩ q : p ∈ P, q ∈ Q} é então apropriada às funções as + bt e
st, que são, por isso, simples e mensuráveis.
Se s e t são não-negativas, e c ≥ 0, então s + t e cs são, também, não-
negativas. Sendo s(x) = αr ≥ 0, e t(x) = βr ≥ 0, quando x ∈ r ∈ R,
segue-se de 3.4.4 b) que:
Z X X X
(i) (s + t)dmN = (αr + βr )mN (r) = αr mN (r) + βr mN (r) =
E r∈R r∈R r∈R
Z Z
= sdmN + tdmN .
E E
158 Capı́tulo 3. Integrais de Lebesgue

Se s e t são somáveis então |s + t| é somável, porque |s + t| ≤ |s| + |t|, e


Z Z Z Z
|s + t| dmN ≤ (|s| + |t|) dmN = |s| dmN + |t| dmN ,
E E E E

de acordo com (i). Concluı́mos, novamente de 3.4.4 b), que (i) também é
válida para funções simples somáveis.

Demonstramos a seguir o resultado sobre a aproximação de funções men-


suráveis por funções simples mensuráveis que já referimos. Curiosamente,
a técnica utilizada, descoberta por Lebesgue e ilustrada na figura 3.4.2,
utiliza, tal como na teoria de Riemann, partições em intervalos, mas agora
no contradomı́nio da função f .

Figura 3.4.2: Aproximação de f por uma função simples.

Como sugerido pela figura 3.4.2, sendo 0 ≤ f ≤ +∞ uma função mensu-


rável em E, e dada uma partição finita 0 = y0 ≤ y1 ≤ y2 ≤ · · · ≤ yn+1 = +∞
do intervalo [0, +∞], consideramos os conjuntos
Ek = {x ∈ E : yk < f (x) ≤ yk+1 },
que são mensuráveis, porque {x ∈ E : f (x) > λ ≥ 0} é mensurável, e
{x ∈ E : α < f (x) ≤ β} = {x ∈ E : f (x) > α} − {x ∈ E : f (x) > β} .
A função s dada por
n
X
s= yk χEk
k=1
é por isso simples e mensurável, e aproxima f por defeito. O próximo teo-
rema usa este tipo de aproximação, para provar que as funções mensuráveis
são limites pontuais de sucessões de funções simples mensuráveis.
Teorema 3.4.7. Se f : E → R, onde E ⊆ RN , então f é mensurável
em E se e só existe uma sucessão de funções simples mensuráveis em E,
sn : E → R tais que sn (x) → f (x), e |sn (x)| ր |f (x)|, para qualquer x ∈ E.
Neste caso, e se f ≥ 0, ou se f é somável, temos ainda que
Z Z
sn dmN → f dmN .
E E
3.4. Funções Mensuráveis 159

Demonstração. Se existe uma sucessão de funções simples mensuráveis sn ,


tais que sn (x) → f (x), para qualquer x ∈ E, então f é mensurável, de
acordo com o teorema 3.2.2.
Supomos, portanto, que f é mensurável em E. Começamos por supor
f ≥ 0, e definimos uma sucessão de funções sn , simples e mensuráveis em
E, tais que sn (x) ր f (x), para qualquer x.
Consideramos a partição Pn do intervalo ]0, ∞], dada por
1 2 n2n
Pn = {yn,0 = 0, yn,1 = , yn,2 = , · · · , yn,n2n = = n, yn,n2n +1 = ∞}.
2n 2n 2n
Por outras palavras, dividimos ]0, ∞] =]0, n]∪]n, ∞], e subdividimos ainda
o intervalo ]0, n] em n2n subintervalos de comprimento 21n , do tipo ] 2kn , k+1
2n ],
onde 0 ≤ k < n2n . Tal como esboçado acima, definimos
En,k = {x ∈ E : yn,k < f (x) ≤ yn,k+1 }, para 1 ≤ k ≤ n2n .
Os conjuntos En,k formam uma partição do suporte de f em conjuntos
mensuráveis, e definimos as funções sn : E → [0, +∞[, por
n2 n
X k
sn = χE .
2n n,k
k=1

Estas funções sn são simples e mensuráveis, por razões evidentes, e passamos


a verificar que:
(i) sn (x) ր f (x) para qualquer x ∈ E.
Consideramos os seguintes casos:
a) Se f (x) = 0, então sn (x) = 0 → 0.
b) Se f (x) = ∞, então sn (x) = n ր ∞.
c) Se 0 < f (x) < ∞, existe um natural m tal m − 1 < f (x) ≤ m, e é
fácil ver que
• sn (x) = n, se n < m.
• m − 1 ≤ sm (x) < m.
• sn (x) ≤ f (x) < sn (x) + 21n , se n ≥ m.
1
• sn (x) ≤ sn+1 (x) ≤ sn (x) + 2n+1 , se n ≥ m.

Se f : E → R, o argumento acima mostra que existem funções simples


mensuráveis s1,n (x) ր f + (x), e s2,n (x) ր f − (x), donde sn (x) = s1,n (x) −
s2,n (x) → f (x) para qualquer x ∈ E. É claro que
|sn (x)| = |s1,n (x) − s2,n (x)| = s1,n (x) + s2,n (x) ր f + (x) + f − (x) = |f (x)|.
R R
A afirmação E sn dmN → E f dmN resulta da propriedade de Beppo Levi,
aplicada separadamente às sucessões s1,n ր f + , e s2,n ր f − .
160 Capı́tulo 3. Integrais de Lebesgue

É interessante registar que a demonstração anterior não usa directamente


a mensurabilidade da função f . Na realidade, usámos apenas a mensurabili-
dade dos conjuntos {x ∈ E : f (x) > λ}, e {x ∈ E : f (x) < −λ}, para λ > 0.
Podemos assim reforçar os teoremas 3.3.12 e 3.3.14 da seguinte forma:
Lema 3.4.8. Seja f : E → R, onde E ⊆ RN . Então f é mensurável em
E se e só se os conjuntos F (λ) = {x ∈ E : f (x) > λ} e G(λ) = {x ∈ E :
f (x) < −λ} são mensuráveis para quaisquer λ ≥ 0.
As operações algébricas usuais sobre funções f, g : E → R podem con-
duzir a indeterminações, e nesse caso o seu resultado é uma função que não
está definida em todo o conjunto E. Apesar disso, o resultado da operação
é uma função mensurável, no conjunto onde está definida. A demonstração
deste facto é uma aplicação directa do teorema 3.4.7.
Teorema 3.4.9. Se f, g : E → R são mensuráveis em E, e c ∈ R, então
a) As funções f g e cf são mensuráveis em E.
b) As funções f + g e f − g são mensuráveis nos conjuntos onde estão
definidas. Em particular,
c) Se f, g ≥ 0 em E, então f + g é mensurável em E.
d) Se f e g são finitas em E, então f + g e f − g são mensuráveis em E.
Demonstração. Existem funções simples mensuráveis sn , tn tais que
sn (x) → f (x), tn (x) → g(x), |sn (x)| ր |f (x)|, e |tn (x)| ր |g(x)|.
Temos sn (x)tn (x) → f (x)g(x), para qualquer x ∈ E, já que a indeter-
minação 0 × ∞ pode ser trivialmente levantada(7 ). Concluı́mos que f g é
uma função mensurável em E. Temos também csn (x) → cf (x), para qual-
quer x ∈ E, o que termina a verificação de a).
Os casos da soma e da diferença são semelhantes, e ilustramos o tipo de
argumento necessário com a soma, que está definida em E − F , onde
F = {x ∈ E : |f (x)| = ∞, e g(x) = −f (x)} .
O conjunto F é mensurável (exercı́cio 7).
Supomos as funções sn e tn definidas como na demonstração de 3.4.7, e
observamos que, quando x ∈ F , temos sn (x) + tn (x) = 0, porque sn (x) =
−tn (x) = n, se f (x) = ∞, ou sn (x) = −tn (x) = −n, se f (x) = −∞.
Quando x 6∈ F , é óbvio que sn (x) + tn (x) → f (x) + g(x). Concluı́mos que
sn (x) + tn (x) → h(x), para qualquer x ∈ E, onde h é mensurável em E, e a
função f + g é a restrição de h a E − F . Como o suporte de h está contido
em E − F , temos ainda que h = f + g é mensurável em E − F .
As afirmações c) e d) são consequências evidentes de b).
7
Recorde que f g está definido em E, e convencionámos que 0 × (±∞) = 0.
3.4. Funções Mensuráveis 161

A aditividade e homogeneidade do integral, estabelecidas em 3.4.6 para


as funções simples, podem ser generalizadas como se segue.
Teorema 3.4.10. Sejam f, g : E → R mensuráveis em E, e c ∈ R. Se
f, g ≥ 0 em E, ou se f e g são finitas e somáveis em E, então
R R R
a) Aditividade: E (f + g)dmN = E f dmN + E gdmN .
R R 
b) Homogeneidade: E (cf )dmN = c E f dmN .
Demonstração. Recorremos mais uma vez às funções sn e tn referidas na
demonstração do teorema anterior. Se f e g são não-negativas, notamos da
propriedade de Beppo Levi que
Z Z
(i) (sn + tn )dmN → (f + g)dmN .
E E
Se as funções f e g são finitas em E, então f + g é mensurável em E. Se f
e g são somáveis, então |f + g| é somável, porque |f + g| ≤ |f | + |g|, e
Z Z Z Z
|f + g|dmN ≤ (|f | + |g|)dmN = |f |dmN + |g|dmN < ∞.
E E E E

Neste caso, a afirmação (i) resulta do teorema da convergência dominada de


Lebesgue.
Usamos a proposição 3.4.6, e novamente a propriedade de Beppo Levi,
ou o teorema da convergência dominada de Lebesgue, para concluir que
Z Z Z Z Z
(ii) (sn + tn )dmN = sn dmN + tn dmN → f dmN + gdmN .
E E E E E

A propriedade de aditividade resulta da comparação de (i) com (ii).


A propriedade de homogeneidade pode provar-se para qualquer função
f para a qual exista o respectivo integral de Lebesgue (exercı́cio 5).

Provámos a aditividade do integral para funções somáveis apenas quando


estas são finitas na região de integração, mas esta restrição é em certo sentido
supérflua. Qualquer função somável é finita qtp, e portanto a soma f + g
está definida, e é mensurável e finita em F ⊆ E, onde mN (E − F ) = 0. Se
h é mensurável em E e h ≃ f + g em F , é evidente que
Z Z Z
hdmN = hdmN = (f + g)dmN =
E F F
Z Z Z Z
= f dmN + gdmN = f dmN + gdmN .
F F E E
Veremos na próxima secção como tornear estas dificuldades usando classes
de equivalência determinadas pela relação “≃”.
Os dois resultados seguintes são ainda consequências do teorema 3.4.7.
O primeiro é aliás um complemento interessante do teorema 3.2.3. As res-
pectivas demonstrações fazem parte dos exercı́cios 8, 9, e 10.
162 Capı́tulo 3. Integrais de Lebesgue

Teorema 3.4.11. Se as funções fn : E → R são mensuráveis em E ⊆ RN ,


F ⊆ E é o conjunto onde existe limn→∞ fn (x), e f : F → R é dada por
f (x) = limn→∞ fn (x), então f é mensurável em F .
Teorema 3.4.12. f : E → R é L-mensurável em E se e só se existe uma
função g : E → R, B-mensurável em E, tal que g ≃ f em E.
A definição de “função mensurável” que usámos até aqui é a definição
original de Lebesgue, mas não é a única possı́vel, e é útil conhecer e explorar
outras alternativas. Recorde-se do lema 3.4.8 que f : E → R é mensurável
se e só se os seguintes conjuntos são mensuráveis, para qualquer λ ≥ 0:
• {x ∈ E : f (x) > λ} = f −1 (]λ, ∞]), e

• {x ∈ E : f (x) < −λ} = f −1 ([−∞, −λ[).


Esta observação sugere o estudo dos conjuntos A ⊆ R com imagem in-
versa f −1 (A) mensurável, o que é facilitado pelo seguinte lema abstracto.
Lema 3.4.13. Seja (X, M) um espaço mensurável, E ∈ M um conjunto
M-mensurável, Y um conjunto qualquer, e f : E → Y uma função. Se

A = A ⊆ Y : f −1 (A) ∈ M ,


então A é uma σ-álgebra em Y .


Demonstração. Basta-nos observar que:
• Como f −1 (Y ) = E ∈ M, temos Y ∈ A.

• f −1 (Ac ) = E − f −1 (A), donde A ∈ A ⇒ Ac ∈ A.

• f −1 ( ∞
S S∞ −1
n=1 An ) = n=1 f (An ) e, por isso,

[ ∞
[
An ∈ A ⇒ f −1 (An ) ∈ M ⇒ f −1 (An ) ∈ M ⇒ An ∈ A.
n=1 n=1

Este lema pode ser aplicado a funções f : E → R, supondo que E ⊆ RN


é mensurável, e conduz facilmente a
Teorema 3.4.14. Seja E ⊆ RN um conjunto mensurável. Se f : E → R,
então as seguintes condições são equivalentes:
a) {x ∈ E : f (x) > λ} é mensurável, para qualquer λ ∈ R.

b) f −1 (I) é mensurável, para qualquer intervalo I ⊆ R.

c) f é mensurável em E.
3.4. Funções Mensuráveis 163

Demonstração. Seja A = {A ⊆ R : f −1 (A) é mensurável }. A classe A é


uma σ-álgebra em R, pelo lema 3.4.13.
a) ⇒ b): A σ-álgebra A contém os intervalos ]λ, ∞], para qualquer λ ∈ R.
Portanto contém igualmente:

• Os intervalos ]α, β] =]α, ∞] − [β, ∞], para quaisquer α, β ∈ R.


1
• os conjuntos {β} = ∩∞
n=1 ]β − n , β], para qualquer β ∈ R.

Deixamos como exercı́cio mostrar que A contém todos os intervalos I ⊆ R.


b) ⇒ c): A σ-álgebra A contém evidentemente os intervalos [−∞, −λ[ e
]λ, ∞], para qualquer λ ≥ 0. Concluı́mos do lema 3.4.8 que f é mensurável
em E.
c) ⇒ a): Sabemos de 3.4.8 que a σ-álgebra A contém os intervalos
[−∞, −λ[ e ]λ, ∞], para qualquer λ ≥ 0. Deixamos como exercı́cio mostrar
que A contém os intervalos da forma ]λ, ∞], para qualquer λ ∈ R.

O resultado anterior pode também ser enunciado como se segue.

Teorema 3.4.15. Se E ⊆ RN é mensurável, e f : E → RM , então as


seguintes afirmações são equivalentes:

a) f = (f1 , f2 , · · · , fM ) é mensurável em E.

b) f −1 (B) é mensurável, para qualquer B ∈ B(RM ).

Demonstração. Consideramos novamente a classe

A = B ⊆ RM : f −1 (B) é mensurável .


a) ⇒ b): Seja B = I1 ×I2 ×· · ·×IM um rectângulo aberto, onde os conjuntos


Ik são intervalos abertos. Como cada função fk é mensurável, temos
M
\
f −1
(B) = {x ∈ E : fk (x) ∈ Ik , 1 ≤ k ≤ n} = fk−1 (Ik ) é mensurável.
k=1

Concluı́mos que a σ-álgebra A contém todos os rectângulos abertos, e con-


sequentemente, todos os conjuntos Borel-mensuráveis.
b) ⇒ a): Seja ainda B = I1 × I2 × · · · × IM , onde Ik = R, para k 6= j, e
Ij = I é um intervalo arbitrário. O conjunto B é B-mensurável, e portanto
f −1 (B) é mensurável. Como

M
\
f −1
(B) = {x ∈ E : fk (x) ∈ Ik } = fk−1 (Ik ) = fj−1 (I),
k=1

concluı́mos que fj é mensurável, para qualquer j, donde f é mensurável.


164 Capı́tulo 3. Integrais de Lebesgue

Podemos ainda mostrar que a composição de uma função B-mensurável


com qualquer função mensurável é mensurável:
Corolário 3.4.16. Seja E ⊆ RN mensurável, e f = (f1 , f2 , · · · , fM ) : E →
RM mensurável em E. Se g : RM → R é B-mensurável em RM , então a
composta h = g ◦ f é mensurável em E.
Demonstração. Se A ⊆ R é B-mensurável, então B = g −1 (A) é B-mensurá-
vel, e portanto h−1 (A) = f −1 (g −1 (A)) = f −1 (B) é mensurável, e a função
h é mensurável.

É muito comum usar a afirmação a) no teorema 3.4.14 como a definição


de “função mensurável”, supondo que a função em causa está definida num
conjunto mensurável. Esta alternativa tem as seguintes vantagens:
• Torna evidente que as funções contı́nuas são Borel-mensuráveis,

• É directamente aplicável a funções f : E → RM , mesmo quando E ⊆


X, onde (X, M) é um espaço mensurável “arbitrário”.
O seu principal inconveniente, e uma das razões pela qual não foi aqui adop-
tada, é a de obscurecer as relações muito directas que existem entre as noções
de mensurabilidade para conjuntos, e para funções, e entre as noções de me-
dida para conjuntos, e integral para funções. Veremos no Capı́tulo 5 como a
definição 3.1.1, que adoptámos neste texto, pode ser generalizada para um
qualquer espaço de medida (X, M, µ).
Exercı́cios.

1. Complete a demonstração de 3.4.4.

2. Mostre que as funções simples mensuráveis em RN formam o menor espaço


vectorial que contém as funções caracterı́sticas dos conjuntos mensuráveis.

3. Suponha que f : E → R é mensurável, e finita qtp. Mostre que existe uma


função mensurável g : E → R tal que f ≃ g.

4. Seja s : RN → R uma função simples mensurável não-negativa, ou somável,


em RN . Supondo que s assume os valores α1 , α2 , · · · , αn , respectivamente, nos
conjuntos mensuráveis A1 , A2 , · · · , An , e E ∈ L(RN ), mostre que
Z n
X
sdmN = αk mN (Ak ∩ E).
E k=1
R
5.R Mostre que se o integral de Lebesgue
R E
f dmNR existe e c ∈ R então o integral
E
(cf )dm N também existe, e E
(cf )dm N =c E
f dmN .

6. Sendo f : R → R L-mensurável, e diferenciável qtp, mostre que a derivada


f ′ é L-mensurável.
3.5. Funções Somáveis 165

7. Mostre que o conjunto F referido na demonstração de 3.4.9 é mensurável.

8. Prove que se f, g : RN → R são mensuráveis, os conjuntos {x ∈ RN : f (x) =


g(x)} e {x ∈ RN : f (x) ≥ g(x)} são mensuráveis.

9. Demonstre o teorema 3.4.11. sugestão: Aplique o exercı́cio anterior às


funções lim supn→∞ fn e lim inf n→∞ fn .

10. Mostre que f é L-mensurável em E se e só se existe uma função g, B-men-


surável em E, tal que f ≃ g em E. sugestão: determine uma sucessão de
funções sn , simples e B-mensuráveis em E, tais que limn→∞ sn (x) existe, para
qualquer x ∈ E, e f (x) = limn→∞ sn (x), qtp em E.

11. Conclua a demonstração de 3.4.14.

12. Prove que se E ⊆ RN , e f : E → [0, +∞] é mensurável em E, então


Z Z 
f dmN = sup sdmN : s : E → [0, +∞[, simples e mensurável, com s ≤ f .
E E

M
13. Sendo f : RN → R mensurável, e g(x) = |f (x)|, prove que g é mensurá-
vel. Demonstre ainda a desigualdade triangular, na forma:
Z Z

f dmN ≤ |f | dmN .

E E

14. Seja f somável em E ⊆ RN , Re ε > 0. Mostre que existe uma função s,


simples e somável em E, tal que E |f − s|dmN < ε.

3.5 Funções Somáveis


O estudo das funções finitas qtp é simplificado identificando (i.e., tratando
como um único objecto) funções mensuráveis que diferem entre si num con-
junto de medida nula. Esta identificação resume-se a considerar, no lugar do
espaço de todas as funções mensuráveis e finitas qtp f : E → R, o respectivo
conjunto quociente pela relação “≃”, que designaremos aqui F(E).

Teorema 3.5.1. F(E) é um espaço vectorial.

Demonstração. Dadas classes de equivalência [f ], [g] ∈ F(E), existem repre-


sentantes f˜ ∈ [f ] e g̃ ∈ [g], i.e., funções f˜ ≃ f e g̃ ≃ g, tais que f˜, g̃ : E → R,
e podemos por isso definir [f ] + [g] = [f˜ + g̃]. Se c ∈ R, podemos definir
directamente c[f ] = [cf ]. É muito simples verificar que F(E) é um espaço
vectorial com estas operações algébricas.
166 Capı́tulo 3. Integrais de Lebesgue

Repare-se que se f : F → R é mensurável e finita qtp em F ⊆ E, onde


mN (E − F ) = 0, então f determina uma única classe em F(E), de acordo
com a proposição 3.1.5. Podemos por isso usar o sı́mbolo “[f ]”, mesmo
quando f não está definida em todo o conjunto E. Em geral, escreveremos
mesmo apenas f , no lugar de [f ]. Bem entendido, devemos sempre verificar
que as noções que associamos a uma qualquer classe [f ] são efectivamente
independentes do representante f escolhido.
Exemplos 3.5.2.
1. A soma [f ] + [g] = [f + g] está bem definida, porque se f ≃ f ∗ e g ≃ g ∗ então
f + g ≃ f ∗ + g ∗ . Repare-se que a soma [f ] + [g] está bem definida, mesmo que
a soma usual f + g esteja apenas definida qtp em E, o que resolve a questão
da soma de funções somáveis que mencionámos na secção anterior.

2. É razoável referirmo-nos a classes de equivalência “somáveis”, e ao respectivo


integral, porque se uma dada classe tem um representante somável f , então
qualquer outro representante da mesma classe é igualmente somável, e tem o
mesmo integral. Em particular, o integral está bem definido no conjunto das
classes somáveis.

3. A convergência pontual qtp está também bem definida em F(E). Por outras
palavras, se f (x) = limn→∞ fn (x), qtp em E, e f˜n ≃ fn , então temos também
f (x) = limn→∞ f˜n (x), qtp em E.

Se as classes [f ] e [g] são somáveis, e c ∈ R, é claro que [f + g] e [cf ] são


somáveis, i.e., as classes de funções somáveis formam um subespaço vectorial
de F(E).

Definição 3.5.3 (Espaço L1 ). L1 (E) é formado pelas classes de funções


f : E → R somáveis, i.e.,
 Z 
1
L (E) = [f ] ∈ F(E) : kf k1 = |f |dmN < ∞ .
E

A função k[f ]k1 = kf k1 = E |f |dmN é uma norma em L1 (E), e L1 (E)


R

é um espaço vectorial normado, porque

• Se f, g ∈ L1 (E), a desigualdade kf +gk1 ≤ kf k1 +kgk1 é a desigualdade


triangular.

• Se f ∈ L1 (E) e c ∈ R, é óbvio que kcf k1 = |c|kf k1 .

• kf k1 = 0 ⇐⇒ f ≃ 0 ⇐⇒ [f ] = [0].

Como em qualquer espaço vectorial normado, uma sucessão de termo


geral fn ∈ L1 (E) diz-se convergente em L1 se e só se existe f ∈ L1 (E)
3.5. Funções Somáveis 167

tal que kfn − f k1 → 0, quando n → ∞. A sucessão diz-se fundamental,


ou de Cauchy, se e só se kfn − fm k1 → 0, quandoR n, m → ∞. De acordo
com o teorema 3.4.10, podemos dizer que φ(f ) = E f dmN é um funcional
linear em L1 (E). É óbvio da desigualdade triangular usual que
Z Z

|φ(f ) − φ(g)| = |φ(f − g)| = (f − g) dmN ≤
|f − g| dmN = kf − gk1 ,
E E

e portanto φ é também um funcional linear contı́nuo(8 ).


O teorema da convergência dominada de Lebesgue (3.2.9) pode ser re-
forçado como se segue. O exercı́cio 6 ilustra razões pelas quais esta ob-
servação não é trivial.
Teorema 3.5.4 (Teorema da Convergência Dominada de Lebesgue). Sendo
fn ∈ L1 (E), suponha-se que
• Existe uma função somável F : E → [0, +∞] tal que |fn (x)| ≤ F (x),
qtp em E, e

• f (x) = limn→∞ fn (x), qtp em E.


Temos então:
a) f ∈ L1 (E),

b) fn → f em L1 , e em particular,
R R
c) E fn dmN → E f dmN , quando n → ∞.
Demonstração. Podemos supor, sem perda de generalidade (porquê?), que
• As funções fn e F são finitas em E,

• f (x) = limn→∞ fn (x), para qualquer x ∈ E, e

• |fn (x)| ≤ F (x), também para qualquer x ∈ E.


A função f é L-mensurável em E. Como |f (x)| ≤ F (x), concluı́mos que f é
somável e finita em E. Consideramos as funções auxiliares gn = |fn −f | ≥ 0,
às quais podemos aplicar o Lema de Fatou (II), porque gn ≤ 2F :
Z Z
(i) lim sup gn dmN ≥ lim sup gn dmN .
E n→∞ n→∞ E

Como lim supn→∞ gn (x) = limn→∞ gn (x) = 0, temos


Z Z
lim sup |fn − f |dmN ≤ 0, ou lim |fn − f |dmN = 0.
n→∞ E n→∞ E

8 1
L (E) é em geral um espaço vectorial de dimensão infinita, e como tal existem trans-
formações lineares em L1 (E) que não são contı́nuas.
168 Capı́tulo 3. Integrais de Lebesgue

Segue-se da desigualdade triangular que


Z Z Z

0 ≤ fn dmN − f dmN ≤ |fn − f | dmN → 0.
E E E

Exemplo 3.5.5.
a transformada de fourier: Se f : R → R é somável, a sua transformada
de Fourier é a função T (f ) : R → C dada por:
Z ∞ Z ∞ Z ∞
−iωx
T (f )(ω) = f (x)e dm = f (x) cos(ωx)dm−i f (x) sen(ωx)dm.
−∞ −∞ −∞

A função T (f ) está bem definida, porque a integranda acima é mensurável,


por
ser um produto de funções mensuráveis, e somável, dado que f (x)e−iωx ≤
|f (x)|. Por outro lado, se ωn → ω, segue-se da continuidade da exponencial
complexa que f (x)e−iωn x → f (x)e−iωx .
Concluı́mos do teorema da convergência dominada de Lebesgue que T (f )(ωn ) →
T (f )(ω). Por outras palavras, a transformada de Fourier de uma função
somável é uma função contı́nua. O exercı́cio 3 refere mais algumas propriedades
da transformada de Fourier.

A aditividade do integral para somas finitas de funções mensuráveis não-


negativas, ou para somas finitas em L1 (E), estabelece-se facilmente por
indução. A sua generalização a séries de funções não-negativas é sur-
preendentemente simples, e livre dos problemas técnicos existentes na teoria
de Riemann:

Qualquer série de funções mensuráveis não-negativas pode ser integrada


termo-a-termo.

A demonstração deste facto é uma ligeira adaptação do argumento que uti-


lizámos a propósito do exemplo 3.2.5.

Teorema 3.5.6. PSe as funções fn : E → [0, +∞] são mensuráveis em E,


então a função ∞
n=1 fn é mensurável em E, e

∞ ∞ Z
Z ! 
X X
fn dmN = fn dmN .
E n=1 n=1 E

Demonstração. Observamos que


m
X ∞
X
gm (x) = fn (x) ր f (x), onde f (x) = fn (x).
n=1 n=1
3.5. Funções Somáveis 169

Como gm ≥ 0, segue-se, do teorema de Beppo Levi, que


Z Z
gm dmN ր f dmN .
E E

Pela aditividade do integral para somas finitas,


Z Z X m Xm Z ∞ Z
X
gm dmN = ( fn )dmN = ( fn dmN ) ր ( fn dmN ).
E E n=1 n=1 E n=1 E

Exemplos 3.5.7.
1. Se as funções fn ≥ 0 são somáveis em RN , tomamos an = RN fn dmN , e
R

supomos sem perda P∞de generalidade que an > 0. Escolhemos uma qualquer
série convergente n=1 bn com bn > 0. De acordo com o resultado anterior,
∞ ∞ ∞
bn bn
X Z X Z X
f (x) = fn (x) =⇒ f dmN = fn (x) = bn < ∞.
a
n=1 n RN a
n=1 n R
N
n=1

É muito fácil obter por este processo muitos exemplos semelhantes a 3.2.5.
2. O teorema anterior pode também ser usado para analisar a convergência
pontual de uma série de funções fn ≥ 0. Como
∞ ∞ Z
Z !
X X
fn (x) dmN = fn (x)dmN ,
RN n=1 n=1 RN
P∞ R P∞
se n=1 RN fn (x)dmN < ∞ então a função f (x)P = n=1 fn (x) é somável, e

por isso é finita qtp. Por outras palavras, a série n=1 fn (x) converge qtp.
3.PA ideia acima é aplicável a funções somáveis fn : RN → R, desde que
∞ R
n=1 RN |fn (x)| dmN < ∞. Observamos que


X Z ∞ Z
X
g(x) = |fn (x)| =⇒ g(x)dmN = |fn (x)| dmN < ∞.
n=1 RN n=1 RN
P∞
A série f (x) = n=1 fn (x) converge absolutamente qtp, porque g é finita qtp.

As séries de funções somáveis não são automaticamente integráveis


termo-a-termo, como as de funções mensuráveis não-negativas, mas temos,
mesmo assim, o seguinte resultado:
Teorema 3.5.8. Dadas funções L-mensuráveis fn : E → R, se
∞ Z
X X∞
( |fn |dmN ) = kfn k1 < +∞,
n=1 E n=1

então:
170 Capı́tulo 3. Integrais de Lebesgue

P∞
a) a série n=1 fn (x) converge absolutamente, qtp em E,
P∞
b) Sendo f (x) = n=1 fn (x), qtp em E, então f é L-mensurável, e
somável, em E,

c) k m
P R Pm
n=1 fn − f k1 = E | n=1 fn − f |dmN → 0, e, em particular,

d) E ( n=1 fn ) dmN = ∞
R P∞ P R 
n=1 E fn dm N .
Demonstração. Observámos no exemplo 3.5.7.3 que a função g, dada por
g(x) = ∞
P
|f
n=1 n (x)|, é somável, e finita qtp, porque
Z ∞ Z
X
gdmN = |fn |dmN < ∞.
E n=1 E

Por outras palavras,Pa série ∞


P
n=1 fn (x) converge absolutamente qtp em E.
Definindo gm (x) = m n=1 nf (x), temos:
P∞
• gm (x) → n=1 fn (x), qtp em E.

• |gm (x)| ≤ g(x).


Podemos assim aplicar o teorema da convergência monótona de Lebesgue,
na forma 3.5.4, à sucessão de funções gm . Usando ainda a aditividade do
integral para somas finitas, temos:
Z X ∞ Z Xm Z X∞ Z
fn dmN = lim gm dmN = lim fn dmN = fn dmN .
E n=1 m→∞ E m→∞
n=1 E n=1 E

O teorema 3.5.8 pode ser simplificado com se segue:


Se fn ∈ L1 (E) e ∞
P
Corolário 3.5.9. n=1 kfn k1 < +∞, então existe f ∈
L1 (E) tal que k m
P
n=1 nf − f k 1 → 0.
P∞
Se an ∈ R, a série
P∞ de termos reais n=1 an diz-se absolutamentePconver-
gente se e só se n=1 |an | < ∞. Sabemos que neste caso a série ∞ n=1 an
é igualmente convergente, o que é aliás um dos mais comuns critérios de
convergência de séries reais. Por analogia P∞com as séries reais, e quando
fn ∈ L1 (E), é natural dizer que
P∞ a série n=1 fn é absolutamente con-
1
vergente em L , quando n=1 kfn k1 < +∞. O corolário 3.5.9 pode
resumir-se dizendo que

As séries absolutamente convergentes em L1 são convergentes em L1 .

Podemos usar este facto para mostrar que L1 (E) é um espaço de banach,
i.e., é um espaço vectorial normado em que as sucessões de Cauchy, ou
fundamentais, são convergentes.
3.5. Funções Somáveis 171

Teorema 3.5.10 (de Riesz-Fischer). L1 (E) é um espaço de Banach.(9 )

Demonstração. Supomos que a sucessão de termo geral fn ∈ L1 (E) é de


Cauchy, i.e., kfn − fm k1 → 0, quando n, m → ∞. Notamos que existe uma
sucessão de naturais nk ր ∞ tais que n, m ≥ nk ⇒ kfn − fm k1 ≤ 21k , e
kfnk − fk k1 → 0 (porquê?). P∞
Seja gk = fnk+1 − fnk , donde kgk k1 ≤ 21k , e P
k=1 kgk k1 ≤ 1. Concluı́mos
do teorema 3.5.9 que existe g ∈ L1 (E) tal que k m k=1 gk − gk1 → 0.
P∞ Pk−1
A série k=1 gk é telescópica, e i=1 gi = fnk − fn1 . Se f = fn1 + g,
temos kfnk − f k1 → 0. Observamos finalmente que

kfk − f k1 ≤ kfk − fnk k1 + kfnk − f k1 → 0.

Concluı́mos aqui a apresentação do teorema de Fubini-Lebesgue, com


um enunciado aplicável a funções somáveis. Deixamos a demonstração para
o exercı́cio 7.

Teorema 3.5.11 (Teorema de Fubini-Lebesgue (III)). Dada uma função


L-mensurável f : RN +M → R, definimos as funções gx : RM → R, e
hy : RN → R, por
gx(y) = hy (x) = f (x, y).
Temos, então, que as funções gx são L-mensuráveis para quase todo o x ∈
RN , as funções hy são L-mensuráveis para quase todo o y ∈ RM , e
Z Z Z Z ZZ
( |gx |dmM )dmN = ( |hy |dmN )dmM = |f |dmN +M .
RN RM RM RN RN +M

Em particular, se pelo menos um destes integrais é finito, então todos são


finitos, e f é somável. Supondo que f é somável, então as funções
Z Z
A(x) = gxdmM , e B(y) = hy dmN
RM RN

são somáveis, e
Z Z ZZ
AdmN = BdmM = f dmN +M .
RN RM RN +M

Exemplo 3.5.12.
produto de convolução: Se f, g : RN → R, é por vezes útil formar o
respectivo produto de convolução, que é a função f ∗ g dada por:
Z
(f ∗ g) (x) = f (x − y)g(y)dmN .
RN
9
Este resultado é uma versão preliminar do Teorema de Riesz-Fischer.
172 Capı́tulo 3. Integrais de Lebesgue

Se f e g são L-mensuráveis, e x está fixo, a função h(y) = f (x − y) é L-


mensurável, e o produto hg é, igualmente, L-mensurável. Por outro lado,
existe uma função B-mensurável f˜ ≃ f em RN e, para efeitos do cálculo do
integral indicado acima, podemos substituir a função f por f˜, sem modificar o
resultado final, i.e., sem alterar a função f ∗ g. Supomos, assim, e sem perda
de generalidade, que f é B-mensurável. A função G : R2N → R, dada por
F̃ (x, y) = f (x − y) é B-mensurável em R2N (porquê?). Concluı́mos, assim,
que a função F : R2N → R, dada por F (x, y) = f (x − y)g(y), é L-mensurável
em R2N . Em particular, o teorema de Fubini, na forma 3.5.11, é aplicável à
função F .
Deixamos para o exercı́cio 9 explorar esta ideia, para verificar que, se f e g
são somáveis, então a função f ∗ g está bem definida qtp em RN , é somável, e
satisfaz:
kf ∗ gk1 ≤ kf k1 kgk1 .
Sendo T a transformada de Fourier que definimos no exemplo 3.5.5, podemos
ainda mostrar que T (f ∗ g) = T (f )T (g).

Exercı́cios.

1. Mostre que se f (x) = limn→∞ fn (x), qtp em E, e f˜n ≃ fn , então temos


também f (x) = limn→∞ f˜n (x), qtp em E.

2. Suponha que B 1 (E) é o quociente do espaço das funções f : E → R B-


mensuráveis pela relação “≃”, e L1 (E) é o quociente do espaço das funções
f : E → R L-mensuráveis pela relação análoga. Qual é a relação entre B 1 (E)
e L1 (E)?

3. Supondo que f : R → R é somável, designamos aqui por T (f ) a transformada


de Fourier da função f . Demonstre os seguintes resultados:

a) A função T (f ) é contı́nua em R.
b) Se f˜(x) = f (x − x0 ), então T (f˜)(ω) = T (f )(ω)e−iωx0 .
c) Se a função h(x) = xf (x) é somável, então T (f ) é diferenciável, e T (f )′ =
−iT (h).

1
4. Seja f (x) = x− 3 , para x 6= 0. Dada P∞ uma enumeração dos racionais, Q =
1
{q1 , · · · , qn , · · · }, mostre que a série
P∞ n=1 n2 f (x−qn ) converge absolutamente

qtp em R. Mostre que f (x) = n=1 n12 f (x − qn ) é Borel-mensurável no con-


junto onde a série converge simplesmente.

5. Considere o espaço L1 (R).

a) Mostre que qualquer classe em L1 (R) tem um representante f : RN → R


que é B-mensurável.
b) Mostre que existem classes em L1 (R) cujos representantes são todos des-
contı́nuos em toda a parte.
3.5. Funções Somáveis 173

c) Mostre que existem classes em L1 (R) cujos representantes são todos ili-
mitados em qualquer intervalo aberto não-vazio em R.

6. Consideramos aqui uma sucessão de funções fn tais que


Z Z
fn dm → f dm para qualquer E ⊆ X mensurável,
E E

mas onde não é verdade que


Z
|fn − f |dm → 0.
X

Tomamos E ⊆ X = [0, 2π], fn (x) = sen nx, e f = 0. Prove o seguinte:


R
a) Se E é um intervalo ou um conjunto elementar, então E fn dm → 0.
R
b) Se E é um conjunto mensurável, então E fn dm → 0.
c) Suponha que g é somável, e prove que X gfn dm → 0. (10 )
R
R
d) Calcule limn→+∞ X |fn |dm.
e) Calcule limn→+∞ E fn2 dm. sugestão: considere igualmente as funções
R

cos2 nx.
f) Prove que {x ∈ [0, 2π] : limn→+∞ sen nx existe } tem medida nula.

7. Demonstre o teorema de Fubini-Lebesgue na forma 3.5.11.

8. Calcule os dois integrais iterados para as funções indicadas. O que pode


concluir?
x−y
a) f (x, y) = (x+y)3
, em [0, 1] × [0, 1].
xy
b) g(x, y) = (x2 +y 2 )2
, em [−1, 1] × [−1, 1].

9. Suponha que as funções f , g, e h são somáveis em RN . Mostre que


a) O produto de convolução (Exemplo 3.5.12)
Z
(f ∗ g)(x) = f (x − y)g(y)dmN ,
RN

está bem definido, qtp em RN , e f ∗ g é uma função somável em RN ,


porque
kf ∗ gk1 ≤ kf k1 kgk1 .
sugestão: Considere a função F (x, y) = f (x − y)g(y), e aplique o
teorema de Fubini.
b) O produto de convolução é associativo, i.e., f ∗ (g ∗ h) = (f ∗ g) ∗ h.
c) Sendo T a transformada de Fourier, mostre que T (f ∗ g) = T (f )T (g).
sugestão: Use o teorema de Fubini.

10
Este resultado, que é importante na teoria das séries de Fourier, diz-se o lema de
riemann-lebesgue.
174 Capı́tulo 3. Integrais de Lebesgue

3.6 Continuidade e Mensurabilidade


Vimos como as funções mensuráveis podem ser aproximadas por funções
simples mensuráveis. Mostramos nesta secção que as funções mensuráveis
podem ser também aproximadas por funções contı́nuas.
É conveniente provarmos primeiro que as funções mensuráveis são, sem-
pre, séries de funções simples mensuráveis.

Teorema 3.6.1. Se f : E → [0, M ] é mensurável e M < ∞ então existem


conjuntos mensuráveis Tn ⊆ E tais que, se tn = 2An χTn , então

X
f (x) = tn (x).
n=1

Em particular, a série indicada converge uniformemente para f .

Demonstração. Consideramos funções simples sn : E → R+ , para n > 0,


definidas exactamente como na demonstração de 3.4.7. Definindo s0 = 0, e,
para qualquer n ∈ N, tn = sn − sn−1 ≥ 0, é evidente que

X
tn (x) = lim sn (x) = f (x), para qualquer x ∈ E.
n→∞
n=1

Se 0 ≤ f (x) < 1, para qualquer x ∈ E, deixamos para o exercı́cio 1 mostrar


que
2n−1
[−1
1
tn = sn − sn−1 = n χTn , onde Tn = En,2k+1 .
2
k=1

Designamos o conjunto das funções contı́nuas de suporte compacto


(11 ) f : RN → R por Cc (RN ). Designaremos por C0 (RN ) o conjunto das
funções contı́nuas f : RN → R com limite nulo quando |x| → ∞, e por
Cck (RN ), onde k ∈ N, a classe das funções de suporte compacto, que são
continuamente diferenciáveis até à ordem k ∈ N. Cc∞ (RN ) é a classe das
funções contı́nuas de suporte compacto que têm derivadas contı́nuas de qual-
quer ordem. Usaremos a mesma notação para qualquer conjunto U ⊆ RN ,
e.g., Cck (U ) é a classe das funções de suporte compacto em U , que são con-
tinuamente diferenciáveis até à ordem k ∈ N. O seguinte resultado auxiliar
é útil no que se segue.

Proposição 3.6.2. Se K ⊆ U ⊆ RN , onde K é compacto e U é aberto,


existe f ∈ Cc (RN ) tal que χK ≤ f ≤ χU .
11
Diz-se que a função f tem suporte compacto, quando o fecho do conjunto de pontos
onde a função não é nula é um conjunto compacto. Esta terminologia não é completamente
consistente com a que temos vindo a utilizar, mas é inevitável pela força da tradição.
3.6. Continuidade e Mensurabilidade 175

Demonstração. Dado x ∈ K, existem rectângulos abertos limitados Rx e


Sx tais que
x ∈ Rx ⊂ Rx ⊂ Sx ⊂ S x ⊂ U.
Existe portanto uma subcobertura finita de K por rectângulos Rxi , onde
1 ≤ i ≤ m. É simples mostrar que (exercı́cio 2)

(i) Existem funções gi ∈ Cc (RN ) tais que χRxi ≤ gi ≤ χSxi ≤ χU .

Se g : RN → R é dada por g(x) = m


P
i=1 gi (x), então g ≥ χK , e g tem suporte
compacto em U . Sendo agora h : R → [0, 1] uma qualquer função contı́nua
e crescente, com h(0) = 0 e h(1) = 1, tomamos f (x) = h(g(x)).

Esta proposição tem um corolário imediato:

Corolário 3.6.3. Sendo E ⊆ RN um conjunto mensurável de medida finita,


e ε > 0, existe f ∈ Cc (RN ) tal que

0 ≤ f ≤ 1, e mN ({x ∈ RN : f (x) 6= χE (x)}) < ε.

Demonstração. De acordo com o teorema 2.4.17 b), existem conjuntos K ⊆


E ⊆ U tais que K é compacto, U é aberto, e mN (U − K) < ε. Pela
proposição anterior, existe f ∈ Cc (RN ) tal que χK ≤ f ≤ χU , e deve ser
evidente que:
x ∈ RN : f (x) 6= χE (x) ⊆ U − K.


Os resultados anteriores permitem-nos obter um teorema clássico sobre


a aproximação de funções mensuráveis por funções contı́nuas.

Teorema 3.6.4 (Teorema de Vitali-Luzin). (12 ) Seja f : RN → [0, 1] uma


função mensurável com suporte num conjunto de medida finita. Se ε > 0,
então existe g ∈ Cc (RN ) tal que

0 ≤ g ≤ 1, e mN x ∈ RN : f (x) 6= g(x) < ε.


 

Demonstração. De acordo com o teorema 3.6.1, existem funções simples


mensuráveis tn : RN → R, tais que

X 1
f (x) = tn (x), onde tn = χT .
2n n
n=1

Os conjuntos Tn são mensuráveis e de medida finita, porque estão contidos


no suporte de f .
12
De Nikolai Luzin, 1883-1950, matemático russo, professor da Universidade de
Moscovo.
176 Capı́tulo 3. Integrais de Lebesgue

Dado ε > 0, e de acordo com o lema 3.6.3, existem funções contı́nuas de


suporte compacto fn : RN → [0, 1], tais que
ε
x ∈ RN : fn (x) 6= χTn (x) < n .
 
mN
2
P∞ 1
A série g(x)
P∞ 1n=1 2n fn (x) converge uniformemente, porque é majorada
=
pela série n=1 2n . A função g é, por isso, contı́nua. Notamos que

[
N

Se En = x ∈ R : fn (x) 6= χTn (x) , e E = En , então mN (E) < ε, e
n=1

x 6∈ E ⇒ fn (x) = χTn (x), para qualquer natural n ⇒ f (x) = g(x).


Segue-se que mN x ∈ RN : f (x) 6= g(x)
 
≤ mN (E) < ε. Sendo A o
suporte de g, e B o suporte de f , deve ser óbvio que:

A ⊆ B ∪ x ∈ RN : f (x) 6= g(x) , donde mN (A) ≤ mN (B) + ε < ∞.




Deixamos para o exercı́cio 3 mostrar que o suporte de g pode ser suposto


compacto.

O resultado anterior é facilmente generalizado como se segue, e deixamos


a respectiva demonstração também como exercı́cio (4).

Corolário 3.6.5. Seja f : RN → R uma função mensurável e finita qtp. Se


ε > 0, então existe uma função contı́nua g : RN → R tal que

x ∈ RN : f (x) 6= g(x) < ε.


 
mN

Este corolário pode, por sua vez, ser usado para mostrar que as funções
mensuráveis e finitas qtp são limites de sucessões de funções contı́nuas.

Corolário 3.6.6. Se f : RN → R é finita qtp, então f é L-mensurável se


e só se existem funções contı́nuas fn : RN → R tais que fn (x) → f (x) qtp
em RN .

Demonstração. Sabemos, do teorema de Vitali-Luzin, que existem funções


contı́nuas fn tais que

1
x ∈ RN : fn (x) 6= f (x) < n .
 
mN
2
Considerem-se os conjuntos
∞ [
\ ∞
En = {x ∈ RN : fn (x) 6= f (x)}, e E = En .
k=1 n=k
3.6. Continuidade e Mensurabilidade 177

De acordo com o lema de Borel-Cantelli (recorde o exercı́cio 7 da secção


2.1), o conjunto E tem necessariamente medida nula, e portanto x 6∈ E, qtp
em RN . Para finalizar este argumento, resta-nos notar que:

[
x 6∈ E ⇔ Existe k ∈ N tal que x 6∈ En , i.e., n ≥ k ⇒ x 6∈ En , ou
n=k

x 6∈ E ⇔ Existe k ∈ N tal que n ≥ k ⇒ fn (x) = f (x), i.e., fn (x) → f (x).

Podemos ainda mostrar que as funções somáveis podem ser aproximadas


por funções contı́nuas:

Corolário 3.6.7. Se f : RN → R é somável e ε > 0, então existe g ∈


Cc (RN ) tal que kf − gk1 < ε.

Demonstração. Supomos que f é limitada em RN , e 0 ≤ f (x) ≤ M . Obser-


vamos que existe um compacto K tal que
ε
Z Z
(i) |f |dmN − |f |dmN < .
RN K 2

Pelo teorema de Vitali-Luzin aplicado à função f˜ = M 1


f χK , existe uma
função contı́nua de suporte compacto g̃, tal que 0 ≤ g̃(x) ≤ 1, e
n o ε
mN x ∈ RN : f˜(x) 6= g̃(x) < .
4M
n o
Sendo E = x ∈ RN : f˜(x) 6= g̃(x) , é imediato verificar que:

ε
Z
˜ ˜
f − g̃ = f − g̃ dmN ≤ 2mN (E) < .

1 E 2M

É claro que (i) implica f − M f˜ < 2ε e, sendo g = M g̃, temos M f˜ − g =

1 1
˜ ˜ ε
M f − M g̃ = M f − g̃ < 2 . Concluı́mos que

1 1

kf − gk1 ≤ f − M f˜ + M f˜ − g < ε.

1 1

O caso em que f não é suposta limitada fica para o exercı́cio 5.


Exemplo 3.6.8.
Designamos também por Cc (RN ) o subespaço de L1 (RN ) formado pelas classes
de equivalência de funções contı́nuas de suporte compacto. O resultado ante-
rior pode exprimir-se dizendo que Cc (RN ) é denso em L1 (RN ). Se designar-
mos por R1 (RN ) o subespaço formado pelas classes de equivalência de funções
178 Capı́tulo 3. Integrais de Lebesgue

f : RN → R tais que o integral impróprio de Riemann RN f (x)dx é absolu-


R

tamente convergente, é evidente que R1 (RN ) ⊇ Cc (RN ), e portanto R1 (RN ) é


igualmente denso em L1 (RN ).
Já vimos que L1 (RN ) é completo, i.e., é um espaço de Banach. Como
R1 (RN ) é denso em L1 (RN ), concluı́mos que L1 (RN ) é o espaço completo
determinado por R1 (RN ). Por outras palavras, o espaço L1 (RN ) está para o
espaço R1 (RN ) exactamente como o conjunto R está para o conjunto Q.

Exercı́cios.

1. Complete o cálculo da função tn = sn − sn−1 referido na demonstração de


3.6.1. sugestão: Mostre que En−1,k = En,2k ∪ En,2k+1 .

2. Para completar a demonstração de 3.6.2, mostre que dados rectângulos aber-


tos limitados R e S, tais que R ⊂ R ⊂ S, existe uma função contı́nua f ,
0 ≤ f ≤ 1, tal que f (x) = 1 para x ∈ R, e f (x) = 0 para x 6∈ S, donde f tem
suporte compacto. Mostre que podemos supor que f é de classe C ∞ .

3. Conclua a demonstração do teorema de Vitali-Luzin (3.6.4) provando que o


suporte de g pode ser suposto compacto.

4. Demonstre o corolário 3.6.5. sugestão: Suponha primeiro que f é finita


qtp, e tem suporte num conjunto de medida finita.

5. Conclua a demonstração do corolário 3.6.7.

6. Seja f : RN → R uma função L-mensurável e mN -somável. Prove que


Z
lim |f (x + y) − f (x)| dmN = 0.
y→0 RN

sugestão: Suponha primeiro que f é contı́nua de suporte compacto.

N ∞
7. Mostre que C0 (R
 ) é um espaço
de Banach, com aN norma “de L ”, dada
por kf k∞ = sup |f (x)| : x ∈ R . Prove que Cc (R ) é denso em C0 (RN ),
N

com esta norma.

8. continuidade da transformada de Fourier: Prove que se f ∈ L1 (R) e


T (f ) é a sua transformada de Fourier, então T (f ) ∈ C0 (R), onde aqui C0 (RN )
designa a classe das funções contı́nuas com valores complexos, tais que |f (x)| →
0, quando kxk → ∞. Aproveite para mostrar que T : L1 (R) → C0 (R) é um
operador (uniformemente) contı́nuo, i.e.,
∀ε>0 ∃δ>0 kf − gk1 < δ =⇒ kT (f ) − T (g)k∞ < ε.
sugestão: Sabemos que T (f ) é contı́nua. Comece por mostrar que kT (f )k∞ ≤
π
kf k1 . Considere a função fα (x) = f (x − α ), e a respectiva transformada de
Fourier Fα . Aplique o exercı́cio 6 à diferença fα − f .
Capı́tulo 4

Outras Medidas

A teoria da medida não se esgota com o estudo da medida de Lebesgue, nem


a teoria da integração se esgota com o estudo dos integrais “em ordem à
medida de Lebesgue”. Estudamos neste Capı́tulo outros espaços de medida,
deixando para mais tarde a questão da definição de “integrais de Lebesgue”
em ordem a qualquer medida.
Começamos por complementar as ideias e resultados gerais sobre medi-
das que referimos no capı́tulo 2. É indispensável aqui esclarecer a estrutura
das medidas reais, i.e., provar o Teorema da Decomposição de Hahn-Jordan,
que mostra que as medidas reais são diferenças de medidas de Radon finitas.
Este resultado leva-nos a introduzir os conceitos de variação total de uma
medida, e de medida de variação limitada.
Sabemos que qualquer integral indefinido de Lebesgue é uma medida.
Estas medidas gozam de uma propriedade especial, dita continuidade ab-
soluta, que estudaremos no que se segue. Esta ideia, primeiro referida por
Harnack(1 ) nos finais do século XIX, a propósito dos integrais impróprios de
Riemann de 1a espécie, que ele próprio descobriu, e formalmente definida por
Vitali em 1905, quando lhe atribuiu o nome que hoje utilizamos, é aplicável
a medidas e a funções, e é a chave para o entendimento actual dos Teoremas
Fundamentais do Cálculo.
Muitos dos exemplos relevantes nas aplicações envolvem medidas de-
finidas pelo menos na classe B(RN ), que chamaremos aqui “medidas de
Lebesgue-Stieltjes”. A questão da sua regularidade é frequentemente muito
importante, e provaremos diversos resultados sobre este assunto. Veremos
em particular que qualquer medida definida em B(RN ) e localmente finita,
i.e., finita nos conjuntos compactos, tem uma única extensão regular e com-
pleta, um facto que usaremos repetidamente no que se segue. Mostraremos
também que as medidas de Lebesgue-Stieltjes regulares e σ-finitas têm pro-
priedades muito semelhantes às da medida de Lebesgue, tal como as es-
tudámos no Capı́tulo 2.
1
Carl Gustav Axel Harnack, 1851-1888.

179
180 Capı́tulo 4. Outras Medidas

As medidas de Lebesgue-Stieltjes localmente finitas na recta real são


especialmente fáceis de caracterizar e estudar, e estão associadas a funções
reais de variável real, que chamaremos as suas funções de distribuição. Esta
dualidade entre medidas e funções enriquece simultaneamente a teoria da
medida e a teoria das funções. Introduzimos e estudamos aqui as classes
das funções de variação limitada e das funções absolutamente contı́nuas, e
provamos um resultado clássico sobre funções absolutamente contı́nuas: o
Teorema de Banach-Zaretsky.
Terminamos o Capı́tulo provando o grande Teorema de Diferenciação
de Lebesgue, a partir do “Lema do Sol Nascente” de F.Riesz, e obtemos
finalmente versões modernas dos Teoremas Fundamentais do Cálculo em R,
relacionando estes resultados com uma das questões mais centrais da Teoria
da Medida: a de caracterizar as medidas que são integrais indefinidos.

4.1 A Decomposição de Hahn-Jordan


Qualquer função real f pode ser decomposta na forma f = f + − f − , em que
f + e f − são funções não-negativas com suportes disjuntos (respectivamente,
os conjuntos onde f > 0, e onde f < 0). Provamos, nesta secção, que
qualquer medida real µ é a diferença de duas medidas de Radon finitas,
µ = µ+ − µ− , também com suportes disjuntos. Esta decomposição, dita de
Jordan, simplifica o estudo de medidas reais e complexas, reduzindo-o em
larga medida ao estudo de medidas de Radon finitas. A decomposição de
Hahn de µ é formada por suportes (disjuntos) das medidas µ+ e µ− .
No que se segue nesta secção, e salvo menção em contrário, (X, M) é
um espaço mensurável fixo, e todas as medidas mencionadas estão definidas
em M.

Definição 4.1.1 (Suporte de uma Medida). Se µ é uma medida definida em


M, e S ∈ M, dizemos que µ tem suporte em S, ou está concentrada
em S, se e só se µ(E) = µ(E ∩ S), para qualquer E ∈ M.

Figura 4.1.1: µ(E) = µ(E ∩ S), se µ tem suporte em S.

Exemplos 4.1.2.
4.1. A Decomposição de Hahn-Jordan 181

1. A medida de Dirac em R tem suporte em A = {0}. Tem igualmente suporte


em B = [0, 1], ou mais geralmente em qualquer conjunto C tal que A ⊆ C.
2. A medida de Lebesgue em R tem suporte no conjunto dos irracionais. Podemos
também dizer que m tem suporte em R − Z, em R − {0}, etc.
3. Se f é mensurável e não-negativa, ou somável, o respectivo integral indefinido
tem suporte no suporte de f , i.e., no conjunto x ∈ RN : f (x) 6= 0 (ver o


exercı́cio 8).

Repare-se que, em geral, o suporte de uma medida não é único. A deter-


minação de suportes de µ está directamente relacionada com a identificação
dos:
Definição 4.1.3 (Conjuntos µ-Nulos). E ∈ M é µ-nulo se e só se, para
qualquer F ∈ M, temos F ⊆ E ⇒ µ(F ) = 0.
Temos, portanto, que E é µ-nulo se e só se todos os seus subconjuntos
mensuráveis têm medida nula. Quando µ é uma medida de Radon, esta
condição reduz-se, por razões óbvias, à condição µ(E) = 0.
Exemplos 4.1.4.
1. Seja A = [−1, 0], B = [0, 1], e µ(E) = m(E ∩ A) − m(E ∩ B). Então
µ([−1, 1]) = 0, mas [−1, 1] não é µ-nulo, porque, por exemplo, A ⊂ [−1, 1], e
µ(A) 6= 0.
2. A função f (x) = e−|x| sen(x) é somável em R. Se µ é o seu integral indefinido,
então µ([−π, π]) = 0, mas [−π, π] não é µ-nulo, porque µ([0, π]) > 0.

Usamos expressões como “µ-quase em toda a parte”, abreviada “µ-qtp”,


para significar “excepto num conjunto µ-nulo”. Quando a medida µ é óbvia
do contexto, em especial quando µ é a medida de Lebesgue, eliminamos o
prefixo “µ” destas expressões.
Exemplos 4.1.5.
1. A função f (x) = x é nula, δ-qtp.
2. Sendo µ o integral indefinido de uma função f : R → R somável, o conjunto
dos racionais é µ-nulo. Mais geralmente, qualquer conjunto nulo é µ-nulo.

Deixamos para o exercı́cio 1 mostrar que


Proposição 4.1.6. µ tem suporte em S se e só se S c é µ-nulo.
No caso de uma medida µ definida pelo menos em B(RN ), e apesar do
que dissémos acima, é possı́vel contornar a questão da falta de unicidade do
respectivo suporte, exigindo que o conjunto seleccionado seja fechado, como
passamos a enunciar.
182 Capı́tulo 4. Outras Medidas

Teorema 4.1.7. Seja µ uma medida definida pelo menos em B(RN ), e


considere-se a classe V = U ⊆ RN : U é aberto, e U é µ-nulo , e os con-
juntos V = ∪U ∈V U , e F = V c .

a) V é o maior conjunto aberto µ-nulo, donde,

b) µ tem suporte no conjunto fechado F , e

c) Se G ⊂ F é fechado, e G 6= F , então µ não tem suporte em G. Em


particular, se µ ≥ 0 é finita, então µ(G) < µ(F ).

A demonstração deste resultado é o exercı́cio 2.

Exemplos 4.1.8.
1. No caso da medida de Lebesgue, se U é um aberto não-vazio, temos, por
razões óbvias, mN (U ) > 0. Portanto,

V = U ⊆ RN : U é aberto e U é mN -nulo = {∅} ,




e V = ∅, donde F = RN .

2. No caso do exemplo 4.1.4.1, é fácil ver que F = [−1, +1].

3. Se µ é a medida de Dirac na origem, então F = {0}.

4. Se µ é o exemplo 4.1.4.2, então F = R.

Definição 4.1.9 (Decomposição de Jordan). Uma decomposição de jor-


dan da medida real µ é um par (π, ν) de medidas de Radon finitas tais que

• µ(E) = π(E) − ν(E), para qualquer E ∈ M, e

• π e ν têm suporte em conjuntos disjuntos.

Figura 4.1.2: Medidas com suportes disjuntos.

Exemplo 4.1.10.
4.1. A Decomposição de Hahn-Jordan 183

Suponha-se que f : RN → R é somável em RN , e π e ν são, respectivamente,


os integrais indefinidos de f + , e de f − (as partes positiva e negativa de f ). As
medidas π(RN ) e ν(RN ) são medidas de Radon finitas, e
• µ = π − ν é o integral indefinido de f ,
em P = x ∈ RN : f (x) > 0 , e

• π e ν têm suporte, respectivamente,
N = x ∈ RN : f (x) < 0 ,

• P e N são, evidentemente, conjuntos disjuntos.


Concluı́mos que (π, ν) é uma decomposição de Jordan de µ.

Se π e ν têm suporte, respectivamente, nos conjuntos disjuntos P e N ,


é claro que N é π-nulo, porque está contido no complementar de P , e P é
ν-nulo, porque está contido no complementar de N . Dizemos neste caso que
as medidas π e ν são singulares (uma em relação à outra).
Definição 4.1.11 (Medidas Singulares). Se π tem suporte num conjunto
ν-nulo, π diz-se singular (em relação a ν), e escrevemos π⊥ν.
No caso de medidas em RN , dizemos simplesmente que π é singular, sem
mais qualificativos, quando π é singular em relação à medida de Lebesgue.
A demonstração do seguinte resultado não apresenta quaisquer dificuldades:
Proposição 4.1.12. π⊥ν se e só se π e ν têm suportes em conjuntos dis-
juntos. Em particular, π⊥ν se e só se ν⊥π.
Exemplos 4.1.13.
1. A medida de Dirac δ em R é singular (em relação à medida de Lebesgue),
porque tem suporte em S = {0}, e S é um conjunto m-nulo.
2. A medida de Lebesgue é singular em relação à medida de Dirac, porque a
medida de Lebesgue tem suporte em B = R − {0} = Ac e δ(B) = 0.

Se (π, ν) é uma decomposição de Jordan da medida µ, então π tem


suporte num conjunto ν-nulo P , e ν tem suporte num conjunto π-nulo N =
P c . Notamos que:
• Se E ⊆ P então µ(E) ≥ 0, porque µ(E) = π(E) − ν(E) = π(E) ≥ 0, e
• Se E ⊆ N então µ(E) ≤ 0, porque µ(E) = π(E) − ν(E) = −ν(E) ≤ 0.
Por outras palavras, todos os subconjuntos de P têm medida não-negativa,
e todos os subconjuntos de N têm medida não-positiva. Os conjuntos com
estas propriedades designam-se:
Definição 4.1.14 (Conjuntos µ-Positivos, µ-Negativos). Sendo (X, M) um
espaço mensurável, e µ : M → R uma medida real, dizemos que E ∈ M é
µ-positivo (respectivamente, µ-negativo) se e só se para qualquer F ∈ M
temos F ⊆ E ⇒ µ(F ) ≥ 0 (respectivamente, µ(F ) ≤ 0).
184 Capı́tulo 4. Outras Medidas

Exemplos 4.1.15.
1. O conjunto ∅ é simultaneamente µ-positivo, µ-negativo e µ-nulo.
2. Se µ é o exemplo 4.1.4.1, é fácil ver que A = [−1, 0] é µ-positivo, e B = [0, +1]
é µ-negativo.
3. Se µ é o integral indefinido da função somável f , e E é mensurável, então E é
µ-positivo (respectivamente, µ-negativo) se e só se f (x) ≥ 0 (respectivamente,
f (x) ≤ 0) qtp em E.

A demonstração das seguintes propriedades é o exercı́cio 5.


Proposição 4.1.16. Seja µ : M → R uma medida real, e P, Q, Pn ∈ M.
a) P é µ-positivo e Q ⊆ P ⇒ Q é µ-positivo, e µ(Q) ≤ µ(P ),

b) P é µ-negativo e Q ⊆ P ⇒ Q é µ-negativo, e µ(Q) ≥ µ(P ),

c) Pn µ-positivo para qualquer n ∈ N ⇒



[ ∞
[
Pn µ-positivo, e µ( Pn ) ≥ µ(Pk ), para qualquer k ∈ N.
n=1 n=1

Definição 4.1.17 (Decomposição de Hahn). Se µ : M → R é uma medida


real, e P, N ∈ M são conjuntos M-mensuráveis, o par (P, N ) diz-se uma
decomposição de hahn para (X, M, µ) se e só se
• P é µ-positivo, N é µ-negativo, e

• X = P ∪ N , e P ∩ N = ∅.

Figura 4.1.3: Decomposição de Hahn.

A determinação de uma decomposição de Jordan é equivalente à deter-


minação de uma decomposição de Hahn:
Teorema 4.1.18. Se µ : M → R é uma medida real, as seguintes afirmações
são equivalentes:
4.1. A Decomposição de Hahn-Jordan 185

a) Existe uma decomposição de Jordan para (X, M, µ),

b) Existe uma decomposição de Hahn para (X, M, µ).

Demonstração. a) ⇒ b): Seja (π, ν) uma decomposição de Jordan. Sendo


A e B conjuntos mensuráveis disjuntos, tais que π tem suporte em A, e ν
tem suporte em B, tomamos P = A, e N = Ac . Então P é µ-positivo, e N
é µ-negativo, e, portanto, (P, N ) é uma decomposição de Hahn.
b) ⇒ a): Seja (P, N ) uma decomposição de Hahn (ver figura 4.1.3), e
defina-se
π(E) = µ(E ∩ P ), e ν(E) = −µ(E ∩ N ).
Temos, então, que

• µ(E) = µ(E ∩ P ) + µ(E ∩ N ) = π(E) − ν(E),

• π⊥ν, porque, por razões óbvias, π e ν têm suporte nos conjuntos


disjuntos P e N , e

• π e ν são medidas de Radon finitas, porque, de acordo com 4.1.16,


temos π(E) = µ(E ∩ P ) ≤ µ(P ), e ν(E) = −µ(E ∩ N ) ≤ −µ(N ).

Concluı́mos que (π, ν) é uma decomposição de Jordan de µ.

Provaremos nesta secção que qualquer medida real tem uma decomposi-
ção de Hahn. Seguir-se-á então, do teorema anterior, que qualquer medida
real tem, igualmente, uma decomposição de Jordan. A questão da unicidade
destas decomposições é bastante mais simples de analisar, e por isso a sua
verificação fica para os exercı́cios 6 e 7.

Teorema 4.1.19. Seja µ uma medida real, e suponha-se que (π, ν) e (P, N )
são, respectivamente, decomposições de Jordan e de Hahn para µ. Então,

a) Se π ∗ e ν ∗ são medidas de Radon finitas tais que µ = π ∗ − ν ∗ , então


π ≤ π∗ e ν ≤ ν ∗.

b) Em particular, se (π ∗ , ν ∗ ) é uma decomposição de Jordan de µ, então


π ∗ = π, e ν = ν ∗ .

c) Se (P ∗ , N ∗ ) é uma decomposição de Hahn para µ, então P ∩ N ∗ e


P ∗ ∩ N são µ-nulos.

Se µ é uma medida real e (π, ν) é uma decomposição de Jordan de µ, é


simples provar que µ é limitada: Basta notar que, para qualquer E ∈ M,

0 ≤ π(E) ≤ π(X) e 0 ≤ ν(E) ≤ ν(X), donde

−ν(X) ≤ −ν(E) ≤ π(E) − ν(E) ≤ π(E) ≤ π(X), ou seja,


−ν(X) ≤ µ(E) ≤ π(X).
186 Capı́tulo 4. Outras Medidas

Na realidade, supondo que π tem suporte no conjunto ν-nulo P , e N =


P c , sabemos que π(E) = π(E ∩ P ) e ν(E) = ν(E ∩ N ). Portanto,

π(X) = π(X ∩ P ) = π(P ) = π(P ) − ν(P ) = µ(P ), e

ν(X) = ν(X ∩ N ) = ν(N ) = −π(N ) + ν(N ) = −µ(N ),


onde usámos o facto óbvio de π(N ) = ν(P ) = 0. A desigualdade acima
pode, por isso, escrever-se na forma

µ(N ) ≤ µ(E) ≤ µ(P ).

Concluı́mos que, se a medida real µ tem uma decomposição de Jordan,


então µ é limitada em M, existindo um conjunto µ-negativo N , e um
conjunto µ-positivo P , em M, onde µ atinge, respectivamente, os seus va-
lores mı́nimo, e máximo. Por estas razões, para estabelecer a existência de
decomposições de Hahn, é natural estudar o supremo do conjunto

{µ(Q) : Q ∈ M, Q µ-positivo } .

Proposição 4.1.20. Seja (X, M) um espaço mensurável, e µ : M → R


uma medida real. Então

a) α = sup {µ(Q) : Q ∈ M, Q µ-positivo } < +∞, e

b) α = µ(P ), onde P é µ-positivo, ou seja,

α = max {µ(Q) : Q ∈ M, Q µ-positivo } .

Demonstração. O conjunto ∅ é, sempre, µ-positivo. Em particular, a classe


dos conjuntos µ-positivos não é vazia. Portanto,

0 ≤ α = sup {µ(Q) : Q ∈ M, Q µ-positivo } ≤ ∞.

Existem, naturalmente, conjuntos µ-positivos Qn , tais que

µ(Qn ) → α.

Segue-se, de 4.1.16 c), que



[
P = Qn é µ-positivo, e µ(P ) ≥ µ(Qn ), para qualquer n.
n=1

Passando ao limite quando n → ∞, obtemos µ(P ) ≥ α. Por outro lado, e


como P é µ-positivo, temos, por definição de α, µ(P ) ≤ α. Concluı́mos que
µ(P ) = α, provando a) e b).
4.1. A Decomposição de Hahn-Jordan 187

O conjunto P indicado em 4.1.20 é µ-positivo. Tomando N = X − P ,


o par (P, N ) será uma decomposição de Hahn para µ se e só se N for um
conjunto µ-negativo. Para mostrar que N é µ-negativo, precisamos de provar
primeiro que qualquer conjunto com medida estritamente positiva contém
um subconjunto µ-positivo, também com medida estritamente positiva.
Lema 4.1.21. Se µ(E) > 0, existe um conjunto µ-positivo P ⊆ E com
µ(P ) > 0.
Demonstração. Dado A ∈ M, definimos ν(A) = inf {µ(F ) : F ∈ M, F ⊆ A}.
Observamos que
• A é µ-positivo se e só se ν(A) ≥ 0.

• Se A ⊆ B então ν(B) ≤ ν(A).


n o
• Se ν(A) < 0, então existe B ⊆ A tal que µ(B) ≤ max −1, ν(A)
2 .

Argumentamos por contradição, supondo que


(i) Não existem conjuntos µ-positivos P ⊆ E com µ(P ) > 0.
Em particular, sendo P1 = E, e como µ(E) > 0, então
n P1 nãoo é µ-positivo.
Existe, por isso, F1 ⊆ P1 tal que µ(F1 ) ≤ max −1, ν(P2 1 ) . Definimos
P2 = P1 − F1 . É claro que

P1 = F1 ∪ P2 , µ(P1 ) > 0, e µ(F1 ) < 0 ⇒ µ(P2 ) > µ(P1 ) > 0.

Como µ(P2 ) > 0, temos novamente


n que
o P2 não é µ-positivo, e existe
ν(P2 )
F2 ⊆ P2 tal que µ(F2 ) ≤ max −1, 2 < 0. Definimos P3 = P2 − F2 ,
onde µ(P3 ) > µ(P2 ) > 0 (ver figura 4.1.4).
Suponha-se que n > 1, e os conjuntos P1 , · · · , Pn e F1 , · · · , Fn−1 satis-
fazem, para 0 < k ≤ n,
(ii) P1 = E, Fk ⊆ Pk , e Pk = Pk−1 − Fk−1 , e
n o
(iii) µ(Fk ) ≤ max −1, ν(P2 k ) < 0, donde

µ(Pk ) = µ(Pk−1 ) − µ(Fk−1 ) > µ(Pk−1 ) > 0.

Como µ(Pn ) > 0, então de acordo


n com o (i) Pn não é µ-positivo, e existe
ν(Pn )
Fn ⊆ Pn tal que µ(Fn ) ≤ max −1, 2 . Tomamos Pn+1 = Pn − Fn , e
concluı́mos que existem sucessões de conjuntos Fn e Pn satisfazendo (ii) e
(iii). Consideramos, finalmente, os conjuntos

[ ∞
\ ∞
X
F = Fn e P = E − F = Pn , onde µ(F ) = µ(Fn ) < 0.
n=1 n=1 n=1
188 Capı́tulo 4. Outras Medidas

Como µ(F ) < 0, é claro que µ(P ) > µ(E) > 0. A série indicada é conver-
gente, e portanto µ(Fn ) → 0. Como
 
ν(Pn )
µ(Fn ) ≤ max −1, < 0,
2

temos também que ν(Pn ) → 0. Como P ⊆ Pn , temos ν(Pn ) ≤ ν(P ), e


ν(P ) ≥ 0, i.e., P é µ-positivo, contradizendo (i).

Figura 4.1.4: F = ∪∞ ∞
n=1 Fn e P = ∩n=1 Pn = E − F .

Segue-se o resultado principal desta secção:

Teorema 4.1.22 (da Decomposição de Hahn-Jordan). Qualquer medida


real tem decomposições de Hahn e de Jordan.

Demonstração. De acordo com 4.1.20, existe um conjunto µ-positivo P tal


que
µ(P ) = α = max {µ(E) : E ∈ M, E µ-positivo } < +∞.
Tomando N = X − P , se N tem algum subconjunto E com µ(E) > 0
então, de acordo com 4.1.21, existe um subconjunto µ-positivo P ∗ de N com
µ(P ∗ ) > 0. É claro que P ∪ P ∗ é um conjunto µ-positivo com µ(P ∪ P ∗ ) =
µ(P ) + µ(P ∗ ) > α, o que contradiz a definição de α.
Concluı́mos que N é µ-negativo, e (P, N ) é uma decomposição de Hahn
para (X, M, µ). Por esta razão, e como vimos em 4.1.18, existe também
uma decomposição de Jordan para (X, M, µ).

Sendo µ uma medida real, a respectiva decomposição de Jordan (π, ν)


existe, de acordo com o resultado acima, e é única, de acordo com 4.1.19.
Passamos a escrever µ+ , em lugar de π, e µ− , em lugar de ν.
4.1. A Decomposição de Hahn-Jordan 189

Exercı́cios.

1. Prove que µ tem suporte em S se e só se S c é µ-nulo (proposição 4.1.6).

2. Demonstre o teorema 4.1.7. sugestão: Recorde a classe Q(RN ), formada


pelos rectângulos-N abertos, com vértices em QN , e considere

R ⊆ RN : R ∈ Q(RN ) e R é µ-nulo .


Suponha que (µ+ , µ− ) é a decomposição de Jordan de µ. Existem sempre


suportes disjuntos fechados para µ+ e µ− ? Existem sempre suportes disjuntos
Borel-mensuráveis?

3. Demonstre a proposição 4.1.12.

4. Sendo I = [0, 2] e J = [1, 3], determine decomposições de Jordan e de Hahn


para a medida µ dada por µ(E) = m(E ∩ I) − m(E ∩ J).

5. Seja µ uma medida real no espaço mensurável (X, M). Demonstre 4.1.16,
ou seja:

a) Se P é µ-positivo, Q ∈ M, e Q ⊆ P , então Q é µ-positivo, e µ(Q) ≤ µ(P ).


b) Se P é µ-negativo, Q ∈ M, e Q ⊆ P , então Q é µ-negativo, e µ(Q) ≥
µ(P ).
c) Se Pn é µ-positivo para qualquer n ∈ N, então ∪∞
n=1 Pn é µ-positivo, e
µ(∪∞ P
n=1 n ) ≥ µ(P n ).

6. Mostre que, se µ : M → R é uma medida real, (π, ν) é uma decomposição


de Jordan para µ, e π ∗ , ν ∗ : M → [0, +∞[ são medidas de Radon finitas tais
que µ = π ∗ − ν ∗ , então π ≤ π ∗ e ν ≤ ν ∗ . Em particular, a decomposição de
Jordan de (X, M, µ) é única (teorema 4.1.19, a), e b)).

7. Prove que se (P, N ) e (P ′ , N ′ ) são decomposições de Hahn de (X, M, µ),


então P ∩ N ′ e P ′ ∩ N são µ-nulos (teorema 4.1.19, b)).

8. Seja f : RN → R localmente somável, e µ o respectivo integral indefinido.

a) Supondo f ≥ 0, mostre que µ tem suporte em P = x ∈ RN : f (x) > 0 .




b) Suponha agora que f = f + − f − muda de sinal em RN , e é somável em


RN . Sejam π e ν os integrais indefinidos de f + e f − . Mostre que (π, ν)
é a decomposição de Jordan de µ = π − ν.
c) Continuando a alı́nea anterior, as medidas π, ν e µ estão definidas res-
pectivamente nas σ-álgebras Lf + , Lf − , e Lf . Mostre que Lf = L|f | =
Lf + ∩ Lf − .
d) Prove que se E ∈ Lf então E é µ-positivo (respectivamente, µ-negativo)
se e só se f (x) ≥ 0 (respectivamente, f (x) ≤ 0) qtp em E.
190 Capı́tulo 4. Outras Medidas

9. Sendo δn a medida de Dirac com suporte em {n}, e



X (−1)n
µ= δn ,
n=1
2n

determine decomposições de Jordan e de Hahn para a medida µ.


2
10. Seja λ o integral indefinido de f (x) = e−x sen(πx), e µ a medida referida no
exercı́cio anterior. Determine decomposições de Jordan e de Hahn para λ + µ.
Rb sen(x)
11. Existe alguma medida real µ tal que µ([a, b]) = a x dx?

12. Suponha que µ é uma medida real em B(R), e f (x) = µ(] − ∞, x]). Prove
que f (x) = g(x) − h(x), onde g e h são funções crescentes e limitadas em R.

4.2 Medidas de Variação Limitada


A noção de variação total de uma medida real ou de Radon µ é análoga à
de oscilação de uma função real, num dado conjunto. Se µ está definida na
σ-álgebra M, temos
Definição 4.2.1 (Variação Total). A variação total de µ é a função |µ|
definida em M por:(2 )
|µ| (E) = sup {µ(F ) : F ⊆ E, F ∈ M} − inf {µ(F ) : F ⊆ E, F ∈ M} .
Dizemos também que
• |µ|+ (E) = sup {µ(F ) : F ⊆ E, F ∈ M} é a variação positiva de µ, e
• |µ|− (E) = − inf {µ(F ) : F ⊆ E, F ∈ M} é a variação negativa de µ.

É claro que |µ| = |µ|+ + |µ|− , e, se µ é uma medida de Radon,


|µ|+ (E) = µ(E), e |µ|− (E) = µ(∅) = 0, i.e., |µ| = µ.
A variação total de uma medida real µ calcula-se facilmente das suas de-
composições de Hahn e de Jordan. Sendo (P, N ) uma sua decomposição de
Hahn, temos
sup {µ(F ) : F ⊆ E, F ∈ M} = µ(E ∩ P ) = µ+ (E), e
inf {µ(F ) : F ⊆ E, F ∈ M} = µ(E ∩ N ) = −µ− (E).
Segue-se que |µ| = µ+ + µ− , e µ+ e µ− são a variação positiva, e a variação
negativa, de µ. Note-se que a variação total de uma medida real é uma
medida de Radon finita.
2
A utilização do sı́mbolo |µ| para designar a variação total de µ é tradicional, mas é
ambı́gua, porque se presta a confusões com o simples valor absoluto da função µ. Conven-
cionamos a este respeito que o valor absoluto de µ(E) será sempre designado por |µ(E)|.
4.2. Medidas de Variação Limitada 191

Exemplos 4.2.2.
1. Se f : RN → R é somável, e µ é o respectivo integral indefinido, então µ+ e µ−
são os integrais indefinidos de f + e f − . A variação total de µ é |µ| = µ+ + µ− ,
que é o integral indefinido de |f | = f + + f − .
2. Se µ = δ1 − δ−1 , então |µ| = δ1 + δ−1 .

A variação total de uma medida real pode ser também calculada usando:
Proposição 4.2.3. Se µ é uma medida real, ou de Radon, então
(∞ ∞
)
X [
|µ| (E) = sup |µ(En )| : En ∈ M, E = En , En ’s disjuntos .
n=1 n=1

Demonstração. O resultado é evidente quando µ é uma medida de Radon.


Se µ é uma medida real então, para qualquer partição {En }, temos

X ∞
X ∞
X
+ −
µ+ (En ) + µ− (En ) =

|µ(En )| = |µ (En ) − µ (En )| ≤
n=1 n=1 n=1
= µ+ (E) + µ− (E) = |µ| (E), i.e.,
∞ ∞
( )
X [
sup |µ(En )| : En ∈ M, E = En , En ’s disjuntos ≤ |µ| (E).
n=1 n=1

Por outro lado, e supondo que (P, N ) é uma decomposição de Hahn para µ,
tomamos E1 = E ∩ P, E2 = E ∩ N , e En = ∅, para n > 2, donde

X
|µ(En )| = |µ(E1 )| + |µ(E2 )| = µ(E ∩ P ) + µ(E ∩ N ) =
n=1
= µ+ (E) + µ− (E) = |µ| (E), e
∞ ∞
( )
X [
|µ| (E) ≤ sup |µ(En )| : En ∈ M, E = En , En ’s disjuntos .
n=1 n=1

De acordo com este resultado, podemos substituir a definição 4.2.1 pela


seguinte, agora aplicável a qualquer medida real, de Radon, ou complexa:
Definição 4.2.4 (Variação Total, Variação Limitada). Se µ é uma medida
(de Radon, real, ou complexa) definida em M, a variação total de µ é
a função |µ| : M → [0, ∞], dada por:
(∞ ∞
)
X [
|µ| (E) = sup |µ(En )| : En ∈ M, E = En , En ’s disjuntos .
n=1 n=1
192 Capı́tulo 4. Outras Medidas

A medida µ diz-se de variação limitada se e só se

kµk = |µ| (X) < +∞.

Deve verificar-se (exercı́cio 3) que kµk = |µ| (X) é uma norma no espaço
vectorial real (respectivamente, complexo) de todas as medidas reais (respec-
tivamente, complexas) definidas em M, e que este espaço é de Banach.
Exemplos 4.2.5.
1. Se µ é o integral indefinido de uma função somável f : RN → R, então
Z
N
kµk = |µ| (R ) = |f |dmN = kf k1 .
RN

2. O pente de Dirac π(E) = #(E ∩Z) pode ser generalizado a qualquer conjunto
X, escolhendo um conjunto numerável S = {x1 , x2 , · · · , xn , · · · } ⊆ X, e uma
sucessão de reais c1 , c2 , · · · . Dado um qualquer E ⊆ X, definimos
X
IE = {n ∈ N : xn ∈ E} , e π(E) = cn .
n∈IE

A
P∞soma está bem definida desde que os cn ’s sejam não-negativos, ou a série
n=1 cn seja absolutamente convergente, e nestes casos π é uma medida, que
podemos sempre chamar um “pente de Dirac”, ou uma medida discreta.
A variação total de π é dada por:
X ∞
X
|π| (E) = |cn | , e kπk = |cn | .
n∈IE n=1

3. Seja M (B(RN )) o espaço de Banach formado por todas as medidas reais


definidas em B(RN ), que se diz o espaço das medidas de Borel. As classes
de equivalência em L1 (RN ) podem ser identificadas com os respectivos inte-
grais indefinidos, que são elementos de M (B(RN )), e podemos assim dizer que
L1 (RN ) ⊆ M (B(RN )). A usual norma de L1 é, como vimos acima, a restrição
da norma de M (B(RN )) ao espaço L1 . O espaço de Banach M (B(RN )) é
portanto uma extensão do espaço de Banach L1 (RN )(3 ).

O próximo teorema agrupa algumas observações elementares, todas de


muito simples verificação. Note-se que |µ| é uma medida de Radon finita,
mesmo quando µ é uma medida complexa.

Teorema 4.2.6. Se µ é uma medida real, ou complexa, então:


3
Os elementos de M (B(RN )) são também distribuições, que por vezes se chamam
funções generalizadas. Esta terminologia reflecte exactamente a identificação entre
funções e os respectivos integrais indefinidos, no sentido que certas medidas são (i.e.,
correspondem a) funções “normais”, e outras são apenas “funções generalizadas”.
4.2. Medidas de Variação Limitada 193

a) |µ| é uma medida de Radon finita, donde µ é de variação limitada.

b) |µ(E)| ≤ |µ| (E) ≤ |µ| (X), para qualquer E ∈ M.

c) E é µ-nulo ⇐⇒ |µ| (E) = 0.

d) µ tem suporte em S ⇐⇒ |µ| tem suporte em S.

Demonstração. Se µ é uma medida real, já vimos que |µ| é uma medida de
Radon finita, porque é a soma de duas medidas de Radon finitas. Temos,
portanto, neste caso,
|µ| (E) ≤ |µ| (X).
Tomando E1 = E, e En = ∅, para n > 1, é também claro que

|µ(E)| ≤ |µ| (E).

Deixamos a demonstração de c) e d), e a análise das medidas complexas,


para o exercı́cio 2.

A definição 2.3.14 pode ser generalizada como se segue:

Definição 4.2.7 (Medida Completa). A medida µ é completa se e só se


todos os subconjuntos de conjuntos µ-nulos são mensuráveis, i.e., se e só se
o espaço (X, M, |µ|) é completo, no sentido de 2.3.14.
Exemplos 4.2.8.
1. O integral indefinido de f é completo, se tomarmos M = Lf .

2. Se µ é uma medida complexa definida em M, a sua menor extensão completa


está definida da forma óbvia na σ-álgebra Mµ = M|µ| , dada por:

Mµ = {E ⊆ X : Existem A, B ∈ M, A ⊆ E ⊆ B, |µ|(B − A) = 0} .

Exercı́cios.

1. Verifique o cálculo de |π|, quando π é a medida discreta do exemplo 4.2.5.2.


Supondo que osPcn ’s mudam de sinal, porque razão π só está bem definida

quando a série n=1 cn é absolutamente convergente?

2. Conclua a demonstração do teorema 4.2.6.

3. Seja V o espaço vectorial das medidas complexas definidas em (X, M), com
as operações óbvias de soma e produto por escalares, µ, λ ∈ V, e α ∈ C. Mostre
que
a) |µ + λ| ≤ |µ| + |λ|, e |αµ| = |α| |µ|.
b) kµk = |µ| (X) é uma norma em V, i.e., V é um espaço vectorial normado.
194 Capı́tulo 4. Outras Medidas

c) Dada uma sucessão de termo geral µn ∈ V, se kµn − µm k → 0, então


existe µ ∈ V, tal que kµn − µk → 0.(4 )
d) Seja λ ∈ V, e U = {µ ∈ V : µ⊥λ}. U é um espaço de Banach?
e) As medidas discretas em V formam um espaço de Banach?

4. Seja µ uma medida definida no espaço mensurável (X, M). Prove que

a) E ∈ M é µ-nulo se e só se |µ| (E) = 0, e portanto


b) µ tem suporte em P se e só se |µ| tem suporte em P ,
c) |µ| = 0 se e só se µ = 0,
d) Se λ é uma medida definida em M, então µ⊥λ ⇔ |µ| ⊥ |µ|.

4.3 Medidas Absolutamente Contı́nuas


Sabemos que se a medida µ é o integral indefinido de Lebesgue da função
f , então:
mN (E) = 0 =⇒ µ(E) = 0.
Introduzimos a noção de continuidade absoluta para exprimir esta relação
entre medidas. O exemplo que acabámos de mencionar é especialmente
simples, porque mN é uma medida de Radon, mas é fácil frasear a definição
correspondente de modo a ser aplicável a qualquer tipo de medidas.

Definição 4.3.1 (Continuidade Absoluta). Se µ e λ são medidas em M,


dizemos que µ é absolutamente contı́nua (em relação a λ), e escrevemos
µ ≪ λ, se e só se qualquer conjunto λ-nulo é igualmente µ-nulo. Quando λ
é a medida de Lebesgue, é usual omitir a referência “em relação a λ”.

Exemplos 4.3.2.
1. Como dissémos acima, se a medida µ é o integral indefinido da função f em
RN , então µ ≪ mN .

2. A medida de Dirac não é absolutamente contı́nua. Por exemplo, o conjunto


A = {0} é m-nulo, mas não é δ-nulo.

3. Se µ é uma medida real, temos µ ≪ |µ|, µ+ ≪ |µ| e µ− ≪ |µ|. Em particular,


|µ| = 0 se e só se µ = 0.

A continuidade absoluta de µ em relação a λ pode ser expressa de diver-


sas formas equivalentes, e analisaremos algumas delas nos exercı́cios. Ob-
servamos desde já que
4
Por outras palavras, V é um espaço de Banach.
4.3. Medidas Absolutamente Contı́nuas 195

Teorema 4.3.3. Se µ e λ são medidas em M, então:

µ ≪ λ ⇔ |µ| ≪ |λ| ⇔ Para qualquer E ∈ M, |λ| (E) = 0 ⇒ |µ| (E) = 0.

O resultado seguinte generaliza o exercı́cio 11 da secção 3.3 a qualquer


medida complexa.

Teorema 4.3.4. Se µ é uma medida de variação limitada e λ é uma medida


de Radon, então µ ≪ λ se e só se

(1) ∀ε>0 ∃δ>0 ∀E∈M λ(E) < δ =⇒ |µ(E)| < ε.

Demonstração. Supomos primeiro que a condição (1) é falsa, i.e.,

∃ε>0 ∀δ>0 ∃E∈M tal que λ(E) < δ, e |µ(E)| ≥ ε.

Passamos a provar que µ não é absolutamente contı́nua em relação a λ.


Para isso, notamos que existem conjuntos En tais que
1
, e |µ| (En ) ≥ |µ(En )| ≥ ε.
λ(En ) <
2n
Os conjuntos Fn = ∞
S T∞
k=n Ek ց F = n=1 Fn , e portanto

λ(Fn ) ց λ(F ), e |µ| (Fn ) ց |µ| (F ).

Como |µ| (Fn ) ≥ |µ| (En ) ≥ ε > 0, é evidente que |µ| (F ) 6= 0. Por outro
lado, como λ é uma medida de Radon, segue-se, por σ-subaditividade, que
∞ ∞
X X 1 1
λ(Fn ) ≤ λ(Ek ) < = n−1 , e portanto λ(Fn ) → 0 = λ(F ).
2k 2
k=n k=n

Como F é λ-nulo mas não é µ-nulo, µ não é absolutamente contı́nua em


relação a λ. Deixamos a conclusão desta demonstração como exercı́cio.
Exercı́cios.

1. Sendo µ e λ medidas definidas em M, quais destas afirmações são equiva-


lentes a µ ≪ λ?
a) Para qualquer E ∈ M, λ(E) = 0 ⇒ µ(E) = 0.
b) Para qualquer E ∈ M, |λ| (E) = 0 ⇒ µ(E) = 0.
c) Para qualquer E ∈ M, |λ| (E) = 0 ⇒ |µ| (E) = 0.
d) Para qualquer P ∈ M, se λ tem suporte em P então µ tem suporte em
P.

2. Sejam µ e λ medidas definidas em M. Dizemos que (µa , µs ) é a decomposição


de lebesgue de µ em ordem a λ se e só se µa e µs são medidas definidas em
M tais que
196 Capı́tulo 4. Outras Medidas

• µa ≪ λ, e µs ⊥λ, e
• µ = µa + µs .

Prove que esta decomposição, a existir, é única.(5 )

3. Sejam µ e λ medidas definidas em M, e suponha que µ é de variação limitada.

a) Prove que se µ é absolutamente contı́nua em relação a λ e λ(En ) → 0


então µ(En ) → 0.
b) Verifique que a afirmação a) é falsa se µ não é de variação limitada.

4. Sendo µ o integral indefinido da função somável (ou não-negativa) f : RN →


R, mostre que mN ≪ µ se e só se f (x) 6= 0 qtp.

4.4 Medidas Regulares


Passamos a dizer que µ é uma medida de Lebesgue-Stieltjes se e só se
µ está definida numa σ-álgebra M ⊇ B(RN ). Quando M = B(RN ) dize-
mos também que µ é uma medida de Borel(6 ). A noção de regularidade
(exterior) que introduzimos em 2.4.18 aplica-se naturalmente a quaisquer
medidas de Lebesgue-Stieltjes não-negativas, i.e., de Radon. Podemos exibir
múltiplos exemplos de medidas de Lebesgue-Stieltjes, regulares ou não.

Exemplos 4.4.1.
1. A medida de Lebesgue em RN é uma medida de Lebesgue-Stieltjes regular
em L(RN ).

2. Qualquer medida de Dirac em RN é uma medida de Lebesgue-Stieltjes regular


em P(RN ).

3. Se f ≥ 0 é localmente somável, o respectivo integral indefinido é uma medida


de Lebesgue-Stieltjes σ-finita e regular.

4. Se f (x) = x−2 em R, e µ é o integral indefinido de f , então µ é σ-finita, mas


não é regular em B(R), porque

µ({0}) = 0 6= inf{µ(U ) : 0 ∈ U ⊆ R, U aberto } = ∞.

5. O cardinal em RN é uma medida de Lebesgue-Stieltjes que não é regular nos


conjuntos finitos não-vazios.
5
A existência deste tipo de decomposições será estabelecida, mais adiante, com o Teo-
rema de Radon-Nikodym-Lebesgue.
6
Note-se que é comum dizer que a restrição da medida de Lebesgue à σ-álgebra de
Borel é “a” medida de Borel.
4.4. Medidas Regulares 197

Para estudar a regularidade de uma medida de Lebesgue-Stieltjes µ ≥ 0,


introduzimos a função µ∗ : P(RN ) → [0, ∞] dada por

µ∗ (E) = inf {µ(U ) : E ⊆ U, U aberto } .

A medida µ é regular em B(RN ) se só se µ = µ∗ em B(RN ). É muito fácil


verificar que µ∗ é uma medida exterior, e podemos assim considerar a classe
dos conjuntos µ∗ -mensuráveis, designada aqui Bµ (RN ).
Proposição 4.4.2. Se µ é uma medida de Radon em B(RN ), então
a) µ∗ (U ) = µ(U ), para qualquer aberto U ⊆ RN .

b) E ∈ Bµ (RN ) ⇔ µ(U ) = µ∗ (U ∩ E) + µ∗ (U − E), para os abertos


U ⊆ RN .

c) B(RN ) ⊆ Bµ (RN ).
Demonstração. A verificação de a) e de b) é o exercı́cio 1. Para provar c),
é suficiente mostrarmos que qualquer aberto V é µ∗ -mensurável. De acordo
com a) e b), e dado que µ∗ é subaditiva, temos que demonstrar apenas que,
se U e V são abertos, então:

µ(U ) ≥ µ(U ∩ V ) + µ∗ (U − V ).

Qualquer aberto é um Fσ , i.e., existem conjuntos fechados Fn ր V . Como


U − Fn ⊇ U − V , e U − Fn é aberto, temos µ(U − Fn ) = µ∗ (U − Fn ) ≥
µ∗ (U − V ), donde

µ(U ) = µ(U ∩ Fn ) + µ(U − Fn ) = µ(U ∩ Fn ) + µ∗ (U − Fn )


≥ µ(U ∩ Fn ) + µ∗ (U − V ) ր µ(U ∩ V ) + µ∗ (U − V )

A restrição de µ∗ a Bµ (RN ) é uma medida regular completa, por razões


óbvias, mas já vimos nos exemplos 4 e 5 de 4.4.1 que µ não é necessariamente
a restrição de µ∗ a B(RN ). A este respeito, note-se que a desigualdade µ ≤ µ∗
é sempre válida. Por esta razão, temos µ(E) = µ∗ (E) pelo menos quando
µ(E) = ∞ ou µ∗ (E) = 0. O próximo lema completa estas observações.
Lema 4.4.3. Se µ é uma medida de Radon em B(RN ), E ∈ B(RN ), e
µ∗ (E) < ∞, então µ(E) = µ∗ (E).
Demonstração. Seja E ∈ B(RN ). Existem abertos Un ⊇ E tais que

µ(Un ) = µ∗ (Un ) ց µ∗ (E).

Supomos sem perda de generalidade que os conjuntos Un formam uma


sucessão decrescente, e portanto Un ց B, e B ⊇ E é um Gδ .
198 Capı́tulo 4. Outras Medidas

Se µ∗ (E) < ∞, então temos µ(Un ) = µ∗ (Un ) < ∞ para n suficientemente


grande. Como tanto µ como µ∗ são medidas em B(RN ), concluı́mos que

µ(Un ) = µ∗ (Un ) ց µ∗ (B) = µ(B), e µ∗ (B) = µ∗ (E).

Segue-se que µ∗ (B − E) = 0, donde é óbvio que µ(B − E) = 0. Temos assim


que µ∗ (E) = µ∗ (B) = µ(B) = µ(E).

É frequente nas aplicações da teoria a utilização de medidas de Radon


que são finitas em conjuntos compactos(7 ), e que dizemos por isso medidas
localmente finitas.

Exemplos 4.4.4.
1. O integral indefinido de uma função localmente somável e não negativa é
uma medida de Radon localmente finita.

2. O pente de Dirac em R dado por π(E) = #(E ∩ Z) é uma medida de Radon


localmente finita.

3. O integral indefinido de f (x) = x−2 é uma medida σ-finita que não é local-
mente finita.

O lema anterior permite-nos provar que:

Teorema 4.4.5. Qualquer medida de Lebesgue-Stieltjes µ ≥ 0 localmente


finita é σ-finita e regular em B(RN ).

Demonstração. Se U é um aberto limitado, é óbvio que µ(U ) = µ∗ (U ) < ∞,


e em particular µ é σ-finita. Mais geralmente, se E ∈ B(RN ) é limitado, é
também claro que µ∗ (E) < ∞, e segue-se de 4.4.3 que µ(E) = µ∗ (E). É
muito fácil concluir daqui que µ(E) = µ∗ (E), para qualquer E ∈ B(RN ),
i.e., µ é uma restrição de µ∗ , e portanto µ é uma medida regular.

As medidas de Lebesgue-Stieltjes σ-finitas e regulares partilham muitas


das propriedades que referimos para a medida de Lebesgue, em especial as
indicadas em 2.4.16 e 2.4.17. Deixamos a demonstração do teorema corres-
pondente para o exercı́cio 2.

Corolário 4.4.6. Se µ ≥ 0 é σ-finita e regular em B(RN ), qualquer uma


das seguintes afirmações descreve os conjuntos E ∈ Bµ (RN ):

a) Para qualquer ε > 0, existe um aberto U ⊇ E, tal que µ∗ (U − E) < ε.


7
No contexto de RN , os conjuntos compactos podem ser substituı́dos nesta definição
por conjuntos elementares, ou limitados. A referência a compactos reflecte a adaptação
da definição para contextos mais gerais.
4.4. Medidas Regulares 199

b) Para qualquer ε > 0, existem F (fechado), e U (aberto), tais que


F ⊆ E ⊆ U , e µ(U − F ) < ε.(8 )
d) Existem A, B ∈ B(RN ), tais que A ⊆ E ⊆ B, e µ(B − A) = 0.
Se µ∗ (E) < +∞, temos ainda:
e) Para qualquer ε > 0, existem K (compacto), e U (aberto), tais que
K ⊆ E ⊆ U , e µ(U − K) < ε.

f ) Para qualquer ε > 0, existe J ∈ E(RN ), tal que µ∗ (E∆J) < ε.


No que segue, designamos por µ a restrição de µ∗ à σ-álgebra Bµ (RN ).
Podemos agora adaptar o teorema 2.4.20 da seguinte forma:
Corolário 4.4.7. Se µ ≥ 0 é uma medida σ-finita e regular em B(RN ),
então µ é a maior extensão regular de µ, a menor extensão completa de
µ, e a única extensão completa e regular de µ.
Demonstração. De acordo com o teorema 2.3.16 e a alı́nea d) de 4.4.6 acima,
concluı́mos que µ é a menor extensão completa de µ. É também muito fácil
concluir da alı́nea b) de 4.4.2 que µ é a maior extensão regular de µ.

Este corolário é por vezes usado para comparar medidas de Radon que
coincidem nos conjuntos abertos. Podemos por exemplo demonstrar que
Corolário 4.4.8. Seja µ ≥ 0 uma medida de Borel finita em rectângulos
abertos limitados, e λ ≥ 0 uma medida de Lebesgue-Stieltjes que coincide
com µ nos rectângulos abertos limitados. Suponha-se que λ está definida em
A. Temos então:
a) λ é uma extensão de µ, e coincide com µ em A ∩ Bµ (RN ).
b) Se λ é regular então é uma restrição de µ.
c) Se λ é completa então é uma extensão de µ.
d) Se λ é regular e completa então λ = µ.
Exemplo 4.4.9.
Sejam f e g funções não-negativas, e localmente somáveis em R. Suponha-
Rb Rb
se que a f dm = a gdm, para quaisquer a, b ∈ R. Designando por φ e γ
respectivamente os integrais indefinidos de f e de g na σ-álgebra L(R), é claro
que φ(U ) = γ(U ), para qualquer intervalo aberto limitado U , e tanto φ como
γ são regulares em L(R).RDe acordoRcom o resultado anterior, φ e γ coincidem
na σ-álgebra L(R), i.e., E f dm = E gdm, para qualquer E ∈ L(R). Temos
por isso que f ≃ g.
8
A regularidade interior de µ é a condição µ(E) = sup {µ(U ) : F ⊆ E, F fechado}.
Este resultado mostra que em RN a regularidade exterior implica a regularidade interior
para medidas σ-finitas.
200 Capı́tulo 4. Outras Medidas

É útil generalizar estas ideias para qualquer tipo de medidas de Lebesgue-


Stieltjes. A regularidade de medidas reais ou complexas pode ser introduzida
da seguinte forma:
Definição 4.4.10. Seja µ uma medida de Lebesgue-Stieltjes, definida pelo
menos em A. Dizemos que µ é regular em A se e só se |µ| é regular em
A, no sentido da definição 2.4.18.
Quando µ é uma medida complexa em B(RN ), então |µ| é uma medida de
Radon finita em B(RN ). De acordo com 4.4.7, |µ| tem uma única extensão
regular e completa, que é a sua menor extensão completa, e a sua maior
extensão regular. Esta extensão está definida na σ-álgebra B|µ| (RN ), que
para simplificar a notação continuamos a designar por Bµ (RN ):
n o
Bµ (RN ) = E ⊆ RN : ∃A,B∈B(RN ) A ⊆ E ⊆ B, |µ| (B − A) = 0

O próximo lema relaciona as extensões regulares de µ com as extensões


regulares da sua variação total |µ|.
Lema 4.4.11. Seja µ uma medida complexa em B(RN ), e ρ uma extensão
regular de µ. Então |ρ|, ρ+ , e ρ− são extensões regulares, respectivamente,
de |µ|, µ+ , e µ− .
Demonstração. Supomos que µ é real, deixando o caso complexo como exer-
cı́cio (9). Designamos por A o domı́nio de definição de ρ, e por λ a restrição
de |ρ| a B(RN ). É claro que |ρ| é uma extensão finita e regular de λ, e
segue-se de 4.4.8 que A ⊆ Bλ (RN ), onde
n o
Bλ (RN ) = E ⊆ RN : ∃A,B∈B(RN ) A ⊆ E ⊆ B, λ(B − A) = 0 .

As medidas ρ+ e ρ− têm suportes disjuntos P, N ∈ A ⊆ Bλ (RN ). Existem,


por isso, conjuntos A, B, C, D ∈ B(RN ) tais que

A ⊆ P ⊆ B, C ⊆ N ⊆ D, e λ(B − A) = λ(D − C) = 0.

Concluı́mos que ρ+ e ρ− têm suportes, respectivamente, em A, e C, que


são disjuntos, e Borel-mensuráveis. Como µ = ρ = ρ+ − ρ− em B(RN ), as
restrições de ρ+ e ρ− a B(RN ) formam a única decomposição de Jordan de
µ em B(RN ), i.e., coincidem com µ+ e µ− em B(RN ). Portanto ρ+ , ρ− e
|ρ| são extensões de µ+ , µ− e |µ|. A regularidade de ρ+ e ρ− é muito fácil
de estabelecer a partir da regularidade de |ρ|.

O próximo teorema é uma versão de 4.4.7 para medidas complexas em


B(RN ). Note-se mais uma vez que estas medidas são unicamente determi-
nadas pelos seus valores nos rectângulos abertos limitados.
Teorema 4.4.12. Se µ é uma medida complexa definida em B(RN ), então:
4.4. Medidas Regulares 201

a) µ é regular em B(RN ).

b) µ tem uma única extensão completa e regular µ, definida em Bµ (RN ).

c) Qualquer medida regular que coincida com µ nos rectângulos abertos


limitados é uma restrição de µ.

As extensões não regulares de medidas complexas podem ter propriedades


surpreendentes, e indicamos um exemplo interessante no exercı́cio 12.

Exercı́cios.

1. Seja µ ≥ 0 uma medida de Lebesgue-Stieltjes em RN , e µ∗ : P(RN ) → [0, ∞]


dada por µ∗ (E) = inf {µ(U ) : E ⊆ U, U aberto }. Mostre que µ∗ é uma medida
exterior, e prove as afirmações a) e b) da proposição 4.4.2.

2. Demonstre 4.4.6. sugestão: Adapte as demonstrações de 2.4.16 e 2.4.17.

3. Recorde o corolário 4.4.7, e verifique que µ é efectivamente a maior extensão


regular de µ.

4. Mostre que existem medidas σ-finitas distintas em B(R), que coincidem nos
intervalos abertos.

5. Prove que duas medidas de Radon que coincidem nos rectângulos abertos
limitados coincidem também em todos os conjuntos abertos.

6. Prove o corolário 4.4.8.

7. Suponha que µ é regular, mas não é σ-finita, e mostre que µ não é necessari-
amente a menor extensão completa de µ.

8. Seja f ≥ 0 uma função Riemann-integrável em qualquer rectângulo limitado


de RN , e λ : J (RN ) → R o seu integral indefinido de Riemann. Mostre que o
integral indefinido de Lebesgue em Lf é a extensão regular e completa de λ.

9. Demonstre o lema 4.4.11 para medidas complexas.

10. Demonstre o teorema 4.4.12.

11. Mostre que as medidas de Borel complexas regulares são unicamente deter-
minadas pelos seus valores nos rectângulos abertos limitados.

12. Recorde o teorema 2.4.21 e o exercı́cio 13 da mesma secção. Determine


uma extensão não regular da medida de Borel nula. sugestão: Na notação
do exercı́cio referido, considere a medida real µ(U ) = ρ(U ∩ A) − ρ(U ∩ B).
202 Capı́tulo 4. Outras Medidas

4.5 Medidas de Lebesgue-Stieltjes em R


As medidas de Lebesgue-Stieltjes localmente finitas são fáceis de descrever
em termos das respectivas funções de distribuição. No caso mais simples,
que é o de uma medida µ finita em R, consideramos a função dada por
F (x) = µ(] − ∞, x]), e observamos que

(4.5.1) µ(]a, b]) = F (b) − F (a), para quaisquer a ≤ b ∈ R.

Dizemos que F é função de distribuição da medida µ se e só se satisfaz


4.5.1, e é fácil verificar que

• Se µ é localmente finita em R, existe uma função F : R → R que


satisfaz 4.5.1.

• As funções de distribuição de µ são da forma G(x) = F (x) + C, onde


C ∈ R é arbitrário.

• A função F determina a medida µ unicamente em B(R). Dizemos que


µ é a medida de Lebesgue-Stieltjes determinada por F , ou a derivada
generalizada de f (9 ).

A expressão “derivada generalizada”, análoga à de “função generalizada”,


tem origem na Teoria das Distribuições. Repare-se que se a função F é
diferenciável qtp, e satisfaz a regra de Barrow, então
Z b
µ(]a, b]) = F (b) − F (a) = F ′ dm, para quaisquer a ≤ b ∈ R.
a

Neste caso, é claro que a medida µ é o integral indefinido da derivada usual


de F (10 ). Mais uma vez identificando a função F ′ com o respectivo integral
indefinido, podemos dizer que a derivada de F no sentido usual coincide
com a derivada generalizada de F se e só se a função F satisfaz a regra
de Barrow. Dito doutra forma, o objectivo do 2o Teorema Fundamental do
Cálculo pode resumir-se como se segue:
Z
Esclarecer as condições em que µ(E) = F ′ dm.
E

Exemplos 4.5.1.
1. A função F (x) = x é função de distribuição da medida de Lebesgue em R,
i.e., a medida m é a derivada generalizada de F . Note-se que m é o integral
indefinido da derivada usual de F , e é absolutamente contı́nua.
9
Diz-se também “derivada no sentido das distribuições”.
10
Como µ e o integral indefinido de F ′ coincidem nos intervalos, coincidem igualmente
em B(RN ), e em qualquer σ-álgebra onde ambas sejam regulares.
4.5. Medidas de Lebesgue-Stieltjes em R 203

2
2. Se µ é o integral indefinido de f (x) = ex , que é localmente somável em R,
podemos tomar para F , por exemplo, a função dada por
Z x Z b
F (x) = f dm, donde F (b) − F (a) = f dm.
0 a

µ é o integral indefinido de f , que é a derivada usual de F , e é mais uma vez


absolutamente contı́nua.
3. A função de Heaviside é função de distribuição da medida de Dirac δ, i.e., δ é
a derivada generalizada da função de Heaviside. A medida de Dirac não é um
integral indefinido, porque a função de Heaviside não é contı́nua. A derivada
usual da função de Heaviside é nula qtp, e δ é uma medida singular.

Como dissémos, é fácil mostrar que, se µ é uma medida localmente finita


em R, então existem funções F que satisfazem a identidade 4.5.1. No en-
tanto, se encararmos esta identidade como um problema em que F é um
dado, e µ é a incógnita, já não é tão simples caracterizar as funções F para
as quais o problema tem solução. Enunciamos este problema, para posterior
referência, como o
4.5.2 (Problema de Stieltjes). Dada uma função F : R → R, determinar
uma σ-álgebra SF contendo os intervalos do tipo ]a, b], e uma medida µ
definida em SF tal que µ e F satisfazem 4.5.1.
A resolução do problema de Stieltjes pode ser muito útil, em particular
no contexto da Teoria das Probabilidades. Recorde-se que se X é uma
variável aleatória real, então a sua função distribuição de probabilidade é
a função F : R → R, tal que F (x) é a probabilidade do acontecimento
{X ∈ R : X ≤ x}. A figura 4.5.1 exibe o exemplo clássico do dado ideal,

Figura 4.5.1: Distribuição de probabilidade do dado ideal.

onde a função F é uma função em escada. A probabilidade do acontecimento


{X ∈ R : a < X ≤ b} é dada por F (b) − F (a), mas a teoria deve esclarecer:
• Quais são os subconjuntos de R aos quais podemos associar uma pro-
babilidade, i.e., quais são os acontecimentos, e
204 Capı́tulo 4. Outras Medidas

• Como calcular a probabilidade do acontecimento A, quando A não é


um intervalo do tipo ]a, b].
Qualquer medida µ que coincida com a probabilidade nos intervalos
]a, b] é solução de um problema de Stieltjes, e pode ser usada para resolver
questões da Teoria das Probabilidades com técnicas e resultados da Teoria
da Medida.
Começamos por mostrar que o problema de Stieltjes tem sempre solução
quando F é crescente e contı́nua. Este resultado é interessante, em especial
porque revela, como veremos, a existência algo inesperada de medidas que
não são integrais indefinidos, e também não são “pentes de Dirac”.

Figura 4.5.2: µ(E) = m(F (E)).

Teorema 4.5.3. Seja F : R → R contı́nua e crescente, e considere-se a


classe SF = {E ⊆ R : F (E) ∈ L(R)}, e a função µF : SF → [0, ∞], dada
por µF (E) = m(F (E)). Temos então que:
a) SF é uma σ-álgebra, e B(R) ⊆ SF .
b) µF é uma medida de Radon, e (R, SF , µF ) é a única solução completa
e regular do problema de Stieltjes 4.5.2.
c) m∗ (F (E)) = inf {µF (U ) : E ⊆ U, U aberto }, para qualquer E ⊆ R.

Figura 4.5.3: J = F (E) ∪ F (E c ), e N ⊆ S é numerável.

Demonstração. É-nos necessário provar a seguinte observação auxiliar:


(i) Se F é crescente, o conjunto S, formado pelos y ∈ R para os quais a
equação F (x) = y tem múltiplas soluções, é numerável.
4.5. Medidas de Lebesgue-Stieltjes em R 205

Demonstração. Se a equação F (x) = y tem soluções x1 < x2 , então


existe um racional qy tal que x1 ≤ qy ≤ x2 , e é evidente da monotonia
de F que F (qy ) = y. A função f : S → Q dada por f (y) = qy é
injectiva, por razões óbvias, e portanto S é numerável.

Para demonstrar a), observamos que:

(ii) SF é fechada em relação a uniões numeráveis: Se os conjuntos En ∈ SF ,


então F (En ) ∈ L(R), e segue-se que

[ ∞
[ ∞
[
F( En ) = F (En ) ∈ L(R), donde En ∈ SF .
n=1 n=1 n=1

(iii) SF é fechada em relação à complementação: Se E ∈ SF , é imediato


de (i) que N = F (E) ∩ F (E c ) ⊆ S é numerável, e portanto Lebesgue-
mensurável. O conjunto J = F (R) = F (E) ∪ F (E c ) é um intervalo,
logo F (E c ) = (J − F (E)) ∪ N é Lebesgue-mensurável, e E c ∈ SF .

(iv) SF contém os intervalos: Se F é crescente e contı́nua, e E é um inter-


valo, então F (E) é um intervalo, e F (E) ∈ L(R), donde E ∈ SF .

Como SF é uma σ-álgebra que contém os intervalos, SF contém os abertos,


e portanto B(R) ⊆ SF . A demonstração de b) e c) é o exercı́cio 3.
Exemplo 4.5.4.
Considere-se a função
 1
 π arcsen(x) + 12 , para − 1 ≤ x ≤ +1,
F (x) = 0, para x < −1, e
1, para x > 1.

F é uma função contı́nua e crescente, e a respectiva medida de Lebesgue-


Stieltjes µF é uma medida de probabilidade. Na verdade, sabendo que um
“oscilador harmónico linear” qualquer(11 ), por exemplo, um pêndulo simples,
se desloca em unidades normalizadas de acordo com x = sen(t), podemos
concluir que µF (E) é a probabilidade do acontecimento “x ∈ E”, quando o
oscilador é observado num instante de tempo t escolhido ao acaso.

A função “escada do Diabo” F é contı́nua, e crescente na recta real.


Podemos, portanto, aplicar o teorema 4.5.3 sem reservas.
Exemplo 4.5.5.
a medida de cantor, designada aqui ξ, é a medida de Lebesgue-Stieltjes
determinada pela “escada do Diabo”, e é uma medida de probabilidade.
11
“Clássico”, por oposição a “quântico”. No caso quântico, a determinação da função
F requer a solução prévia da equação de Schrödinger apropriada.
206 Capı́tulo 4. Outras Medidas

A seguinte propriedade de ξ é particularmente relevante no que se segue:


Proposição 4.5.6. ξ tem suporte no conjunto de Cantor C, e é portanto
uma medida singular.
Demonstração. É claro que ξ(R) = ξ(]0, 1]) = F (1) − F (0) = 1, e portanto ξ
tem suporte, e.g., em I = [0, 1]. Por outro lado, sendo U = I − C, sabemos
que U = ∪∞ n=1 ]an , bn [ é um conjunto aberto, e a “escada do Diabo” F é
constante em cada um dos intervalos [an , bn ]. Notamos como evidente que
0 = F (bn ) − F (an ) = ξ(]an , bn ]) ≥ ξ(]an , bn [) ≥ 0. Segue-se assim que:

X
ξ(U ) = ξ(]an , bn [) = 0, e ξ(C) = ξ(C) + ξ(U ) = ξ(C ∪ U ) = ξ(I) = 1
n=1

Concluı́mos que ξ tem suporte em C, e é por isso singular.

Registe-se deste exemplo que a derivada generalizada de uma função


contı́nua pode ser uma medida singular não-nula, que por esta razão não é
um integral indefinido.
As seguintes condições são relevantes para entender a questão da exis-
tência de solução do problema de Stieltjes.
Lema 4.5.7. Se o problema de Stieltjes para F tem solução µ, então:
a) A função F é contı́nua à direita em R,

b) O limite de F à esquerda de x é F (x) − µ({x}), e, em particular

c) F é contı́nua em x se e só se µ({x}) = 0.


Demonstração. Deixamos para o exercı́cio 2 as afirmações b) e c). Para
provar a), supomos que In =]a, xn ], onde os xn decrescem para a. Como
os conjuntos In ց ∅, e µ(In ) 6= ∞, temos µ(In ) = F (xn ) − F (a) → 0, i.e.,
F (xn ) → F (a).

Repare-se que se µ é um “pente de Dirac” e F é uma sua função de


distribuição, então existem pontos x1 , x2 , · · · , tais que µ({xn }) 6= 0, e F
não é contı́nua em qualquer um destes pontos. Em particular, a medida de
Cantor ξ, que como vimos não é um integral indefinido, também não é um
“pente de Dirac”, porque é a derivada generalizada de uma função contı́nua.
Mostraremos a seguir, ainda nesta secção, que na realidade todas as medidas
de Radon localmente finitas em R são da forma µ = µc + µd , onde qualquer
uma destas medidas pode ser nula, e:
• µc , dita a parte contı́nua de µ, é a derivada generalizada de uma
função contı́nua crescente, que dizemos ser uma medida contı́nua, e

• µd , dita a parte discreta de µ, é uma série ou soma finita de medidas


de Dirac (um pente de Dirac), i.e., é uma medida discreta.
4.5. Medidas de Lebesgue-Stieltjes em R 207

Exemplo 4.5.8.
Seja F (x) = x + int(x), onde int(x) é a usual “parte inteira” do real x. A
derivada generalizada de F é dada por:
X
µ(E) = m(E) + δn (E),
n∈Z

onde δn é a medida de Dirac em x = n, com δn ({n}) = 1. A medida ρ =


P
n∈Z δn é o pente de Dirac propriamente dito. A medida de Lebesgue é a
parte contı́nua de µ, e ρ é a sua parte discreta.

Estabeleceremos a existência da decomposição µ = µc +µd provando uma


correspondente decomposição para funções: qualquer função monótona F é
da forma F = g + s, onde g e s são monótonas, g é contı́nua, e s é o que
dizemos ser uma função discreta(12 ), i.e., é uma soma, ou série, de funções
do tipo da função de Heaviside. Mais exactamente,

Definição 4.5.9 (Função Discreta). s : R → R é uma função discreta


se e só se existem sucessões de reais xn , an , yn , bn , tais que

X∞  an , para x < xn ,
s(x) = hn (x) para x ∈ R, onde hn (x) = yn , para x = xn ,
bn , para x > xn .

n=1

As funções g e s dizem-se, respectivamente, a parte contı́nua, e a


parte discreta, de F . Os pontos xn referidos em 4.5.9 são, como veremos,
os pontos de descontinuidade de F . Qualquer função monótona tem, por

Figura 4.5.4: Parte contı́nua e parte discreta de F .

razões elementares, limites laterais em qualquer ponto, possivelmente distin-


tos, e limites, possivelmente infinitos, quando x → −∞, e quando x → +∞.
Obtemos desta observação:

Proposição 4.5.10. Qualquer função monótona é contı́nua excepto num


conjunto numerável.
12
Estas funções dizem-se também de saltos.
208 Capı́tulo 4. Outras Medidas

Demonstração. Supomos, sem perda de generalidade, que F é crescente.


Designamos por F (x+ ), e F (x− ), respectivamente, os limites de F à direita,
e à esquerda de x, e por D, o conjunto onde F é descontı́nua. Sendo x um
real no domı́nio de F , definimos Ix =]F (x− ), F (x+ )[. Temos, então:

• x ∈ D se e só se Ix 6= ∅ (porque F é contı́nua em x se e só se F (x− ) =


F (x+ )), e

• Se x 6= y então Ix e Iy são disjuntos (supondo x < y, é óbvio que


F (x+ ) ≤ F (y−)).

Para cada x ∈ D escolhemos um racional qx no intervalo Ix , definindo desta


forma uma função injectiva f : D → Q, dada por f (x) = qx . Concluı́mos
que D é numerável.

Teorema 4.5.11. Se F : R → R é monótona em R, existem funções


monótonas g, s : R → R, tais que g é contı́nua, s é discreta, e F = g + s.
As funções g e s são únicas, a menos de uma constante aditiva.

Demonstração. Supomos F : R → R crescente em R, e contı́nua excepto


em D = {x1 , x2 , · · · , xn , · · · }. Para simplificar o argumento, supomos F
limitada, e contı́nua à direita, em R. (Deixamos o caso geral para o exercı́cio
6). Definimos bn = F (xn ) − F (x− n ). Sendo D∩]x, y] = {xnk : k ∈ N}, é fácil
verificar que

X ∞
X
(i) bnk ≤ F (y) − F (x), e bn ≤ lim F (y) − lim F (x) < ∞.
y→∞ x→−∞
k=1 n=1

Seja agora δn Pa medida de Dirac no ponto xn , com δn ({xn }) = bn > 0. É


claro que ρ = ∞ n=1 δn é também uma medida de Radon, que é igualmente
finita, de acordo com (i). A função de distribuição s de ρ é dada por

X ∞
X
s(x) = ρ(]−∞, x]) = δn (]−∞, x]) = hn (x), com hn (x) = δn (]−∞, x]).
n=1 n=1

Em particular, s é uma função discreta crescente. De acordo com 4.5.7 a) e


b), s é contı́nua à direita em R, e

(ii) s(xn ) − s(x− −


n ) = ρ({xn }) = δn ({xn }) = bn = F (xn ) − F (xn ).

Definimos g(x) = F (x) − s(x), donde g é, igualmente, contı́nua à direita em


R. Concluı́mos de (ii) que

g(xn ) − g(x− − −
n ) = [F (xn ) − F (xn )] − [s(xn ) − s(xn )] = 0.
4.5. Medidas de Lebesgue-Stieltjes em R 209

Concluı́mos que g é também contı́nua à esquerda em R, logo contı́nua em


R. Note-se ainda que g é crescente, porque, sendo D∩]x, y] = {xnk : k ∈ N},
segue-se de (i) que

X
s(y) − s(x) = bnk ≤ F (y) − F (x) =⇒ g(x) ≤ g(y).
k=1

Se g1 + s1 = g2 + s2 , onde as funções gi são contı́nuas, e as funções si


discretas, então h = g1 − g2 = s2 − s1 é uma função contı́nua e discreta, e
portanto h é, evidentemente, constante.

O próximo corolário usa a decomposição em parte contı́nua e parte dis-


creta para mostrar que o problema de Stieltjes tem solução para F crescente
quando F é contı́nua à direita.

Corolário 4.5.12. Seja F : R → R crescente, e contı́nua à direita em R.


Suponha-se, ainda, que

• F é contı́nua excepto em D = {x1 , · · · , xn , · · · },

• δn é a medida de Dirac com δn ({xn }) = F (xn ) − F (x−


n ),

• F = g + s é a decomposição de F referida em 4.5.11,

• Sg = {E ⊆ R : g(E) ∈ L(R)}, e µF : Sg → [0, ∞] é dada por



X ∞
X
µF (E) = m(g(E)) + δn (E) = µg (E) + δn (E).
n=1 n=1

Então (R, Sg , µF ) é a única solução completa e regular do problema 4.5.2.

Demonstração. (R, Sg , µF ) é uma solução do problema de Stieltjes 4.5.2,


porque é um espaço de medida, de acordo com 4.5.3, e

µF (]a, b]) = g(b) − g(a) + s(b) − s(a) = F (b) − F (a).

É muito simples verificar que (R, Sg , µF ) é completo e regular.

Combinado com o lema 4.5.7, este resultado encerra a análise do pro-


blema de Stieltjes quando F é crescente: é agora claro que neste caso o
problema de Stieltjes tem solução se e só se F é contı́nua á direita em R.
Veremos na próxima secção as condições em que o problema de Stieltjes tem
solução quando F não é crescente.
Exercı́cios.

1. Mostre que qualquer medida de Radon em R localmente finita é derivada


generalizada de F : R → R. Mostre igualmente que:
210 Capı́tulo 4. Outras Medidas

a) µ(]a, b]) = G(b) − G(a) ⇐⇒ G(x) = F (x) + C.


b) Se F : R → R é crescente e tem uma derivada generalizada µ, então µ é
única em B(R), e regular em B(R).

2. Suponha que o problema 4.5.2 tem uma solução µ para a função F .

a) Prove que se an → b pela esquerda então F (an ) → F (b)−µ({b}). Conclua


que F é contı́nua em b se e só se µ({b}) = 0. (Lema 4.5.7).
b) Suponha que µ é uma medida real, e prove que existem os limites

lim F (x), e lim F (x).


x→−∞ x→+∞

c) Em que condições temos µ(]a, b[) = µ(]a, b]) = µ([a, b[) = µ([a, b])?

3. Conclua a demonstração de 4.5.3. É necessário provar que µF é σ-aditiva, e


mostrar ainda que o espaço (R, SF , µF ) é completo e regular.

4. Seja F : R → R a “escada do Diabo”, e ξ a respectiva medida de Lebesgue-


Stieltjes. Qual
 é o maior conjunto
 aberto U tal que ξ(U ) = 0? Qual é o
conjunto S = y ∈ R : # F −1 (y) > 1 ?

5. Suponha que F é contı́nua e crescente, e mostre que L(R) ⊆ SF se e só se,


para qualquer E ⊆ R, temos m(E) = 0 ⇒ m∗ (F (E)) = 0.

6. Conclua a demonstração de 4.5.11. Em particular, prove a afirmação (i) da


demonstração referida, e mostre que o resultado é igualmente válido quando f
não é limitada nem contı́nua à direita.

7. Determine as partes contı́nua e discreta da função F definida abaixo, e da


respectiva medida de Lebesgue-Stieltjes.

 0, para x < 0,
F (x) = 2x + 1, para 0 ≤ x < 3, e
 2
x , para x ≥ 3.

8. Determine uma função crescente, contı́nua à direita na recta real, e descon-


tı́nua nos racionais. Determine igualmente uma função contı́nua, diferenciável
em x se e só se x é irracional.

4.6 Funções de Variação Limitada


A análise do problema de Stieltjes quando F não é crescente é facilitada pela
introdução da classe das funções de variação limitada. Suponha-se para isso
que µ é uma medida real, e F uma sua função de distribuição. Sabemos
que µ tem variação total limitada, e este facto restringe de forma muito
significativa a função F , como passamos a mostrar.
4.6. Funções de Variação Limitada 211

Se I é um intervalo, qualquer conjunto finito P = {x0 , · · · , xn } ⊂ I, onde


supomos xk ր, determina uma partição finita de J =]x0 , xn ] em subinter-
valos Ik =]xk−1 , xk ], com 1 ≤ k ≤ n. Como µ é de variação limitada, temos
n
X n
X
|F (xk ) − F (xk−1 )| = |µ(Ik )| ≤ |µ| (J) ≤ |µ| (I) ≤ |µ| (R) < +∞.
k=1 k=1

Podemos assim concluir que


( n )
X
sup |F (xk ) − F (xk−1 )| : x0 < x1 < x2 < · · · < xn , xk ∈ R < +∞.
k=1

Definição 4.6.1 (Funções de Variação Limitada). Se F : S → R e I ⊆ S ⊆


R é um intervalo, a variação total de F em I, designada VF (I), é dada
por
( n )
X
VF (I) = sup |F (xk ) − F (xk−1 )| : x0 < x1 < x2 < · · · < xn , xk ∈ I .
k=1

F diz-se de variação limitada em I se e só se VF (I) < +∞. BV (I) é a


classe das funções F : I → R de variação limitada em I, e N BV (R) (13 ) é a
subclasse de BV (R) formada pelas funções que satisfazem ainda a condição
F (x) → 0 quando x → −∞.
Exemplos 4.6.2.
Pn
1. Se F : R → R é a função de Heaviside, então k=1 |F (xk ) − F (xk−1 )| é 1,
se x0 < 0 e xn ≥ 0, ou 0, caso contrário. Portanto, VF (R) = 1.
Rx
2. Se F (x) = a f dm, onde f é somável, então F é de variação limitada, porque
se P = {x0 , · · · , xn } ⊂ I, então
Xn X n Z xk n Z xk
X Z
|F (xk ) − F (xk−1 )| = | f dm| ≤ |f |dm ≤ |f |dm.
k=1 k=1 xk−1 k=1 xk−1 I

3. A função f (x) = x sen(1/x) (com f (0) = 0) é contı́nua, e portanto uniforme-


mente contı́nua, em [0, 2π]. Apesar disso, f não é de variação limitada em
[0, 2π] (exercı́cio 8).
4. Sendo f : [a, b] → R, é relativamente simples verificar que f é de variação
limitada em I se e só se o gráfico de f é rectificável (exercı́cio 7).

Para simplificar a notação, e supondo que P = {x0 , x1 , · · · , xn }, onde


x0 ≤ x1 ≤ · · · ≤ xn , escrevemos
n
X
SV (f, P) = |f (xk ) − f (xk−1 )|, e Vf (x) = Vf (]−∞, x]) .
k=1
13
BV e NBV são iniciais para as expressões inglesas “Bounded Variation” e “Normalized
Bounded Variation”.
212 Capı́tulo 4. Outras Medidas

Deve ser claro que se P ⊆ P ′ , então SV (f, P) ≤ SV (f, P ′ ), que Vf é sempre


uma função crescente, e que f é de variação limitada (e limitada) se e só se
Vf é limitada.

Lema 4.6.3. Sendo f : R → R então:

a) Se y ≥ x, então Vf (y) = Vf (x) + Vf ([x, y]) ≥ Vf (x) + |f (y) − f (x)|.

b) Se f é função de distribuição da medida real µ, então f ∈ BV (R), f e


Vf são contı́nuas à direita em R, e Vf (x) ≤ |µ| (]−∞, x]), para x ∈ R.

Demonstração. a) Se P1 ⊂ ]−∞, x] e P2 ⊂ [x, y], então

P = P1 ∪ P2 ∪ {x} ⊂ ]−∞, y] , e SV (f, P1 ) + SV (f, P2 ) ≤ SV (f, P) ≤ Vf (y).

Como P1 e P2 são arbitrárias, concluı́mos que Vf (x) + Vf ([x, y]) ≤ Vf (y).


Por outro lado, se P ⊂ ]−∞, y], tomamos P ′ = P ∪ {x}, P1 = P ′ ∩
]−∞, x], e P2 = P ′ ∩ [x, y]. Temos

SV (f, P) ≤ SV (f, P ′ ) = SV (f, P1 ) + SV (f, P2 ) ≤ Vf (x) + Vf ([x, y]) .

P é arbitrária, e concluı́mos que Vf (y) ≤ Vf (x) + Vf ([x, y]), donde

Vf (y) = Vf (x) + Vf ([x, y]) .

Como P = {x, y} ⊂ [x, y], temos SV (f, P) = |f (y) − f (x)| ≤ Vf ([x, y]), o
que termina a verificação de a).
Para demonstrar b), notamos como evidente que f ∈ BV (R), e sabemos
do lema 4.5.7 a) que f é contı́nua à direita. É muito simples verificar que

Vf (x) ≤ |µ|(] − ∞, x]), e Vf (y) − Vf (x) = Vf ([x, y]) ≤ |µ|(]x, y]).

Se y ց x temos então |µ|(]x, y]) ց 0, e Vf (y) ց Vf (x).

Podemos finalmente estabelecer a existência de soluções do problema de


Stieltjes 4.5.2, quando a função em causa não é crescente.

Teorema 4.6.4. Se f : R → R, então existe uma medida real µ tal que


µ(]a, b]) = f (b) − f (a) se e só se f ∈ BV (R) e f é contı́nua à direita em R.
Neste caso, temos ainda que |µ|, µ+ , e µ− são as derivadas generalizadas
de Vf , g = 21 (Vf + f ), e h = 12 (Vf − f ).

Demonstração. Se existe uma medida real µ tal que µ(]a, b]) = f (b) − f (a),
sabemos do lema 4.6.3 que f ∈ BV (R) e que f e Vf são contı́nuas à direita
em R. É imediato verificar que g e h são crescentes, limitadas e contı́nuas à
direita em R, e que f = g − h, e Vf = g + h.
Sejam ρ, ν e τ as derivadas generalizadas de g, h, e Vf , que são medidas
de Radon finitas em R. Temos, por razões óbvias, e para qualquer E ∈ B(R),
4.6. Funções de Variação Limitada 213

que µ(E) = ρ(E) − ν(E), e τ (E) = ρ(E) + ν(E). Segue-se do lema 4.6.3 b),
que
(i) τ (E) = ρ(E) + ν(E) ≤ |µ|(E).
Se µ = µ+ − µ− é a decomposição de Jordan de µ, temos, do teorema 4.1.19,
que µ+ (E) ≤ ρ(E), e µ− (E) ≤ ν(E), também para qualquer E ∈ B(R).
Concluı́mos de (i) que

τ (E) = ρ(E) + ν(E) ≤ |µ|(E) = µ+ (E) + µ− (E) ≤ ρ(E) + ν(E) = τ (E).

É portanto evidente que µ+ = ρ, µ− = ν, e |µ| = τ .


Resta-nos apenas demonstrar que se f ∈ BV (R) e f é contı́nua à direita
então o problema de Stieltjes tem solução µ. Observamos novamente que
f = g−h, onde g e h são crescentes e limitadas. É muito simples verificar que
podemos supor g e h contı́nuas à direita, sem qualquer perda de generalidade
(porquê?). Por esta razão, podemos tomar µ = ρ − ν, onde ρ e ν são
as derivadas generalizadas de g e h. Note-se de passagem que g e h são
efectivamente contı́nuas à direita.

Passamos a analisar em mais detalhe as funções de variação limitada que


são contı́nuas. Começamos por observar que a variação total de uma função
contı́nua pode ser calculada como se segue:

Lema 4.6.5. Se f é contı́nua em R, I ⊆ R é um intervalo compacto, e P(I)


é a famı́lia de todas as partições finitas de I em intervalos, então
( )
X
Vf (I) = sup m(f (i)) : R ∈ P(I) .
i∈R
P
Temos além disso que i∈R m(f (i)) → Vf (I), quando diam(R) → 0.

Demonstração. Supomos I = [a, b], e escrevemos


( )
X
Φ(I) = sup m(f (i)) : R ∈ P(I) .
i∈R

Para evitar sobrecarregar a notação, usaremos aqui o mesmo sı́mbolo para


designar uma partição R de I em subintervalos, e para designar o conjunto
dos extremos dos subintervalos em R (a continuidade de f torna irrelevante
saber a que subintervalo pertence cada extremo). Notamos que

• Sendo R uma partição de I, então


X
(i) SV (f, R) ≤ m(f (i)) ≤ Φ(I), donde se segue que Vf (I) ≤ Φ(I).
i∈R
214 Capı́tulo 4. Outras Medidas

• Dado um subintervalo i ∈ R, sejam xi e yi pontos onde f atinge o


seu máximo e mı́nimo no fecho i. Seja R′ o refinamento de R com os
pontos xi e yi . Um momento de reflexão mostra que
X X
Vf (I) ≥ SV (f, R′ ) ≥ |f (yi ) − f (xi )| = m(f (i)),
i∈R i∈R

donde Vf (I) ≥ Φ(I), e concluı́mos de (i) que Vf (I) = Φ(I).


Suponha-se Vf (I) < ∞, e ε > 0. Existe uma partição R0 ⊂ I com n
pontos tal que
(i) SV (f, R0 ) > Vf (I) − ε/2.
Como f é uniformemente contı́nua em I, existe δ > 0 tal que |x − y| < δ ⇒
|f (x)−f (y)| < ε/4n. Seja R uma qualquer partição de I, com diam(R) < δ.
Dado z ∈ I, z 6∈ R, existem x, y ∈ R tais que x < z < y. Se R′ = R ∪ {z},
temos

SV (f, R′ ) = SV (f, R) − |f (x) − f (y)| + |f (x) − f (z)| + |f (z) − f (y)| ≥ 0.

Como |x − y| < δ, é simples concluir que

|f (x) − f (z)| + |f (z) − f (y)| − |f (x) − f (y)| < ε/2n.

Por outras palavras, se adicionarmos um ponto a uma partição com diâmetro


ε
inferior a δ, a soma SV aumenta menos de 2n . Como a partição R′′ = R∪R0
resulta de adicionar n pontos a R, concluı́mos que
ε
(ii) SV (f, R0 ) ≤ SV (f, R′′ ) < SV (f, R) + .
2
Segue-se de (i) e (ii) que
X
diam(R) < δ =⇒ Vf (I) − ε < SV (f, R) ≤ m(f (i)) ≤ Vf (I).
i∈R

Dada uma função f : X → R, a respectiva indicatriz de Banach é


a função B : R → [0, +∞] que conta, para cada y, as soluções da equação
f (x) = y. Por outras palavras, B é dada por

B(y) = # ({x ∈ X : f (x) = y}) .

Apresentamos a seguir um resultado clássico sobre funções contı́nuas,


que mostra que a norma L1 da indicatriz de Banach é a variação total da
função original.
Teorema 4.6.6 (de Banach-Vitali). Se f é contı́nua em I = [a, b] Re B : R →
[0, +∞] é a sua indicatriz de Banach, então B é B-mensurável e R Bdm =
Vf (I). Em particular, f ∈ BV (I) ⇐⇒ B ∈ L1 (R).
4.6. Funções de Variação Limitada 215

Demonstração. Dado n ∈ N, consideramos os pontos xn,k = a + 2kn (b − a),


onde 0 ≤ k ≤ 2n . Estes pontos determinam uma partição do intervalo I em
2n subintervalos In,k , de diâmetro (b−a)
2n . Definimos, e.g., In,1 = [xn,0 , xn,1 ]
e In,k =]xn,k−1 , xn,k ], se k > 1. Os conjuntos Jn,k = f (In,k ) são igualmente
intervalos.
Pn
Seja An,k a função caracterı́stica de Jn,k , e Bn (y) = 2k=1 An,k (y). A
equação y = f (x) tem soluções em In,k se só se y ∈ Jn,k , i.e., se e só se
An,k (y) = 1. Temos portanto que Bn (y) ≤ B(y), e segue-se de 4.6.5 que
Z 2 n 2 n
X X
Bn dm = m(Jn,k ) = m(f (In,k )) → Vf (I).
R k=1 k=1

As funções Bn ≤ B formam uma sucessão crescente. Pelo R teorema de Beppo


Levi, temos Bn ր B ∗ ≤ B, onde B ∗ é B-mensurável, e R B ∗ dm = Vf (I).
Resta-nos provar que B(y) = B ∗ (y), para o que basta verificar que
B(y) ≤ B ∗ (y). Suponha-se que B(y) ≥ m ∈ N, i.e., existem pelo menos m
raı́zes distintas da equação f (x) = y, aqui designadas por x1 , · · · , xm . Se
(b − a)/2n < min |xi − xj | então cada intervalo In,k contém no máximo uma
destas raı́zes, e portanto Bn (y) ≥ m. Segue-se que B(y) = B ∗ (y).

É ainda conveniente generalizar o lema 4.6.5 da seguinte forma:

Teorema 4.6.7. Se f ∈ BV (R) ∩ C(R), µ é a sua derivada generalizada e


E ∈ B(R), então
(∞ ∞
)
X [
|µ| (E) = sup m∗ (f (En )) : E = En , En ’s ∈ B(R) disjuntos .
n=1 n=1

Demonstração. Começamos por estabelecer o seguinte resultado auxiliar:


Lema 4.6.8. m∗ (f (E)) ≤ |µ| (E).

Demonstração. Se E é um intervalo, a desigualdade é evidente do lema 4.6.5.


Se E é aberto, então E = ∪∞
n=1 In , onde os In ’s são intervalos disjuntos, e:


[ ∞
X ∞
X
∗ ∗ ∗
m (f (E)) = m ( f (In )) ≤ m (f (In )) ≤ |µ| (In )) = |µ| (E).
n=1 n=1 n=1

Se E ∈ M, existem abertos Un ⊇ E tais que |µ| (Un ) ց |µ| (E), e é evidente


que f (E) ⊆ f (Un ), donde m∗ (f (E)) ≤ m∗ (f (Un )) ≤ |µ| (Un ) ց |µ| (E).

Retomando a demonstração de 4.6.7, definimos Ψ : B(R) → [0, ∞[ por:


(∞ ∞
)
X [

Ψ(E) = sup m (f (En )) : E = En , En ’s ∈ B(R) disjuntos .
n=1 n=1
216 Capı́tulo 4. Outras Medidas

Como os conjuntos En ’s são disjuntos, concluı́mos do lema 4.6.8 que



X ∞
X

(i) m (f (En )) ≤ |µ| (En ) = |µ| (E), donde Ψ(E) ≤ |µ| (E).
n=1 n=1
S∞
Suponha-se que A, B ∈ B(R) são disjuntos. Dadas partições A = n=1 An ,
eB= ∞
S
n=1 Bn , é evidente que

X ∞
X

(ii) Ψ(A∪B) ≥ m (f (An ))+ m∗ (f (Bn )), e Ψ(A∪B) ≥ Ψ(A)+Ψ(B).
n=1 n=1
S∞ S∞
Considere-se partições de E = k=1 Ak = n=1 En . É claro que

[ ∞
X
Ak = Ak ∩ En =⇒ m∗ (f (Ak ∩ En )) ≤ Ψ(Ak ), e
n=1 n=1

[ ∞
X

f (En ) = f (Ak ∩ En ) ⇒ m (f (En )) ≤ m∗ (f (Ak ∩ En )).
k=1 k=1
Obtemos imediatamente:

X X ∞
∞ X ∞
X
m∗ (f (En )) ≤ m∗ (f (Ak ∩ En )) ≤ Ψ(Ak ).
n=1 k=1 n=1 k=1

Supondo a partição formada pelos Ak ’s fixa, e a partição formada pelos En ’s


variável, concluı́mos que:

X
(iii) Ψ(E) ≤ Ψ(An ).
n=1

De acordo com (i), (ii) e (iii), Ψ é uma medida de Radon finita, e portanto
regular, em B(R). O lema 4.6.5 mostra que Ψ e |µ| coincidem nos intervalos
compactos, donde coincidem nos abertos, e em B(R).

4.6.1 Funções Absolutamente Contı́nuas


Tal como observámos a propósito da noção de variação total, é fácil adaptar a
definição de continuidade absoluta para ser directamente aplicável a funções.
Suponha-se que f é função distribuição de uma medida real µ absolutamente
contı́nua em R. De acordo com 4.3.4,
para qualquer ε > 0, existe δ > 0 tal que m(E) < δ ⇒ |µ| (E) < ε.
Se E = ∪nk=1 Ik , onde I1 ,P
· · · , In são intervalos disjuntos, e Ik tem extremos
xk ≤ yk , temos m(E) = nk=1 (yk − xk ), e por isso:
n
X n
X n
X
(yk − xk ) < δ ⇒ |f (yk ) − f (xk )| = |µ(Ik )| ≤ |µ| (E) < ε.
k=1 k=1 k=1

A definição seguinte regista estas observações:


4.6. Funções de Variação Limitada 217

Definição 4.6.9 (Funções Absolutamente Contı́nuas). Se f : I → R onde


I ⊆ R é um intervalo, dizemos que f é absolutamente contı́nua em I
se e só se para qualquer ε > 0 existe δ > 0 tal que sendo Ik =]xk , yk ] para
1 ≤ k ≤ n intervalos disjuntos em R,
n
X n
X
(yk − xk ) < δ ⇒ |f (yk ) − f (xk )| < ε.
k=1 k=1

Exemplos 4.6.10.
Rx
1. Se a função g : R → R é somável, então a função f (x) = −∞ gdm é função
distribuição de uma medida absolutamente contı́nua em R, e portanto f é uma
função absolutamente contı́nua em R, como aliás verificámos directamente no
exercı́cio 11 da secção 3.3.

2. Se f satisfaz uma condição de Lipschitz em I, i.e., se existe uma constante


K tal que |f (x) − f (y)| = K|x − y|, é evidente que f é absolutamente contı́nua
em I.

3. A função f (x) = sen(x) satisfaz uma condição de Lipschitz em R com K = 1,


e portanto é absolutamente contı́nua em R.

4. É fácil verificar que a “escada do diabo” é uniformemente contı́nua em R,


mas não é absolutamente contı́nua.

5. Qualquer função absolutamente contı́nua é uniformemente contı́nua (é o caso


n = 1, na definição 4.6.9.)

As funções absolutamente contı́nuas são de variação limitada em inter-


valos limitados:

Teorema 4.6.11. Se f é absolutamente contı́nua no intervalo I ⊆ R então


f é de variação limitada em qualquer subintervalo limitado J ⊆ I.

Demonstração. Seja J = [a, b] ⊆ I ⊆ R. Como f é absolutamente contı́nua


em I, existe δ1 > 0 tal que, se a = x1 < y1 = x2 < y2 = · · · = xn < yn = b,
n
X n
X
(yk − xk ) < δ1 =⇒ |f (yk ) − f (xk )| < 1.
k=1 k=1

Seja b−a k

N < δ1 , e P0 = zk = a + N (b − a) : 0 ≤ k ≤ N . Dado P ⊂ J,
consideramos também P ′ = P P ∪ P0 , e Pk = P ′ ∩ [zk−1 , zk ]. Supondo Pk =
{tk,0 , · · · , tk,nk }, é claro que nj=1
k
|tk,j − tk,j−1 | = zk − zk−1 < δ1 , donde

nk
X
SV (f, Pk ) = |f (tk,j ) − f (tk,j−1 )| < 1.
j=1
218 Capı́tulo 4. Outras Medidas

Observamos finalmente que:


N
X
SV (f, P) ≤ SV (f, P ′ ) = SV (f, Pk ) < N =⇒ Vf (J) ≤ N =⇒ f ∈ BV (J).
k=1

Exemplos 4.6.12.
1. A função f (x) = x sen(1/x) (com f (0) = 0) é uniformemente contı́nua em
[0, 1], mas não é de variação limitada em [0, 1]. Portanto, f não é absolutamente
contı́nua em [0, 1].
2. A função f (x) = sen x é absolutamente contı́nua em R, e portanto é de
variação limitada em qualquer intervalo limitado. Não é no entanto de variação
limitada em R.

Completamos agora o teorema 4.6.4 para o caso em que a medida µ é


absolutamente contı́nua. O próximo teorema será usado na próxima secção
para mostrar que as funções absolutamente contı́nuas são precisamente as
funções que são integrais indefinidos de funções somáveis.
Teorema 4.6.13. Se f ∈ BV (R) ∩ C(R), então f é absolutamente contı́nua
em R se e só se a sua derivada generalizada µ ≪ m.
Demonstração. Temos apenas a provar que, se f : R → R é de variação
limitada e absolutamente contı́nua em R, então a sua derivada generalizada
µ ≪ m. Se ε > 0, existe δ > 0 tal que, sendo I1 , · · · , In intervalos disjuntos
em R, onde Ik tem extremos xk ≤ yk , então:
n
X n
X
(i) (yk − xk ) < δ =⇒ |f (yk ) − f (xk )| < ε.
k=1 k=1
Considerem-se partições Pk dos intervalos Ik . Para simplificar a notação,
seja ι(x) = x a função identidade. É fácil verificar, usando (i), que
n
X n
X n
X
SV (ι, Pk ) ≤ (yk − xk ) < δ, donde SV (f, Pk ) < ε.
k=1 k=1 k=1
Como as partições Pk são arbitrárias, concluı́mos que
n
X n
X n
X
(ii) (yk − xk ) < δ =⇒ Vf (Ik ) = (Vf (yk ) − Vf (xk )) ≤ ε.
k=1 k=1 k=1
Por outras palavras, a função Vf é também absolutamente contı́nua, e se
E = ∪nk=1 Ik é uma união finita de intervalos limitados Ik , temos:
n
X n
X
m(E) < δ =⇒ Vf (Ik ) = |µ| (Ik ) = |µ| (E) ≤ ε.
k=1 k=1
Deixamos a conclusão desta demonstração para o exercı́cio 14.
4.6. Funções de Variação Limitada 219

Concluı́mos esta secção com mais uma caracterização clássica das funções
absolutamente contı́nuas.

Teorema 4.6.14 (de Banach-Zaretsky). (14 ) Se f ∈ BV (R) ∩ C(R), então


f é absolutamente contı́nua em R se e só se, para qualquer E ∈ B(R),
m(E) = 0 =⇒ m(f (E)) = 0.

Demonstração. Suponha-se primeiro que f é absolutamente contı́nua. No-


tamos de 4.6.13 que µ ≪ m, e usamos o lema 4.6.8 para concluir que

m(E) = 0 =⇒ m∗ (f (E)) ≤ |µ| (E) = 0.

Suponha-se agora que m(E) = 0 =⇒ m(f (E)) = 0 para qualquer E ∈ B(R).


Temos de 4.6.7 que
(∞ ∞
)
X [

|µ| (E) = sup m (f (En )) : E = En , En ’s ∈ B(R) disjuntos .
n=1 n=1

É evidente que m(E) = 0 =⇒ m∗ (f (En )) = 0, donde |µ| (E) = 0, e portanto


µ ≪ m.

Deixamos para o exercı́cio 15 a demonstração de

Corolário 4.6.15. Se f é contı́nua em I = [a, b], então f é absolutamente


contı́nua em I se e só se E ∈ L(I) =⇒ f (E) ∈ L(R).

Exercı́cios.

1. Sendo f : R → R, mostre que

a) P ⊆ P ′ =⇒ SV (f, P) ≤ SV (f, P ′ ).
b) Vf é uma função crescente.
c) f é de variação limitada (e limitada) se e só se Vf é limitada.

2. Prove o lema de Jordan: f : R → R é de variação limitada se e só se


f = g − h, onde g e h são funções crescentes limitadas.

3. Prove que qualquer polinómio f é de variação limitada em qualquer intervalo


limitado. sugestão: Considere os zeros da derivada de f .

4. Se f é Riemann-integrável f é necessariamente de variação limitada? E se f


é de variação limitada f é necessariamente Riemann-integrável?

5. Generalize as afirmações 4.5.11 e 4.5.12 para funções de variação limitada.


14
De Banach e M.A.Zaretsky (ou Zarecki), 1903-1930, matemático russo.
220 Capı́tulo 4. Outras Medidas

6. Sendo f a “escada do Diabo”, determine decomposições de Jordan e de Hahn


para a derivada generalizada µ de F , onde
 2
x − f (x), para 0 ≤ x ≤ 1,
F (x) =
0, para x < 0, e para x > 1.

Determine igualmente composições de Jordan e de Hahn para a derivada gene-


ralizada λ de G(x) = F (x) + H(x) − H(x − 1), onde H é a função de Heaviside.
Calcule kµk, e kλk.

7. Suponha que f ∈ BV (R), e mostre que o gráfico de f tem comprimento finito


em qualquer intervalo limitado.

8. Mostre que a função f (x) = x sen(1/x) não é de variação limitada em ]0, 2π].

9. Para que valores de a > 0 é que f (x) = xa sen(1/x) é de variação limitada


em ]0, 2π]?

10. Mostre que a função de van der Waerden (exemplo 1.5.11) não é de variação
limitada.

11. Seja I = [0, 1]. Determine funções contı́nuas f, g, h : I → R, f, g, h 6∈ BV (I),


tais que:

a) f é diferenciável em I.
b) g ′ ≃ 0 em I.
c) m(E) = 0 =⇒ m(h(E)) = 0.(15 )

12. Prove que se f é absolutamente contı́nua e g satisfaz uma condição de


Lipschitz então a composta g ◦ f é absolutamente contı́nua.

13. Mostre que as funções absolutamente contı́nuas no intervalo I formam um


espaço vectorial. O produto de funções absolutamente contı́nuas é sempre
absolutamente contı́nuo?

14. Conclua a demonstração do teorema 4.6.13.

15. Demonstre o teorema 4.6.15. Sugestão: Prove que se E é fechado (respec-


tivamente, de tipo F σ) então f (E) é fechado (respectivamente, de tipo F σ).
Conclua em particular que se f é absolutamente contı́nua em I e E ∈ L(I)
então f (E) ∈ L(R).

16. Prove que a composição de funções absolutamente contı́nuas é absoluta-


mente contı́nua, se for de variação limitada (Teorema de Fichtenholz).

17. Seja AC(R) a classe das funções absolutamente contı́nuas em R.


15
Note que o Teorema de Banach-Zaretsky não é válido sem a hipótese f ∈ BV (R).
4.7. Os Teoremas Fundamentais do Cálculo em R 221

a) Mostre que AC(R), BV (R), e N BV (R) são espaços vectoriais, e que


N BV (R) é um espaço vectorial normado, com norma kf k = Vf (R).
b) Prove que N BV (R) e AC(R) ∩ N BV (R) são espaços de Banach, com
esta norma.
c) Mostre que se kfn − f k → 0 então kfn − f k∞ → 0, mas que a implicação
inversa é em geral falsa.

4.7 Os Teoremas Fundamentais do Cálculo em R


Provámos no Capı́tulo 1 que os integrais indefinidos de Riemann são diferen-
ciáveis qtp, porque as respectivas integrandas, que são Riemann-integráveis,
são necessariamente contı́nuas qtp. Este argumento é evidentemente inapli-
cável quando a integranda é apenas Lebesgue-somável, porque estas funções
podem ser descontı́nuas em toda a parte. É no entanto claro que os Teoremas
Fundamentais do Cálculo só podem ser válidos no contexto da teoria de
Lebesgue se os integrais indefinidos de funções Lebesgue-somáveis forem,
apesar disso, diferenciáveis qtp.
Foi o próprio Lebesgue quem descobriu a solução para este problema, em
1904, com o seu Teorema de Diferenciação, certamente um dos resultados
mais importantes da Análise Real, e que passamos a estudar.

4.7.1 O Teorema de Diferenciação de Lebesgue


Em 1932, F.Riesz descobriu um resultado auxiliar relativamente elementar,
e de natureza geométrica, que simplifica muito a demonstração do teorema
de diferenciação de Lebesgue.

Figura 4.7.1: Lema do Sol Nascente.

Lema 4.7.1 (de Riesz, “do Sol Nascente”). (16 ) Se f : R → R é contı́nua


16
O lema diz-se “do Sol Nascente” porque pode ser imaginado como descrevendo a
região à sombra numa cadeia de montanhas, quando a altura do Sol é θ, onde α = tan θ.
222 Capı́tulo 4. Outras Medidas

em R, I = ]a, b[ é um intervalo aberto limitado, e


 
f (y) − f (x)
Dα (I) = x ∈ I : Existe y ∈ I, tal que y > x, e >α .
y−x
Então Dα (I) = ∞
S
n=1 ]an , bn [ é uma união disjunta de intervalos abertos, e
f (bn ) − f (an )
≥ α, ou f (bn ) − f (an ) ≥ α (bn − an ) , para qualquer n.
bn − an
Demonstração. Seja g(x) = f (x) − αx, que é contı́nua em R. Notamos que
f (y) − f (x)
Se y > x então > α ⇐⇒ g(y) > g(x), e
y−x
f (bn ) − f (an )
≥ α ⇐⇒ g(bn ) ≥ g(an ).
bn − an
É muito simples verificar que Dα (I) é aberto, e portanto é uma união
de intervalos abertos disjuntos In =]an , bn [. Passamos a provar que se x ∈
]an , bn [ ⊆ Dα (I), então g(x) ≤ g(bn ) (donde facilmente se segue que g(x) <
g(bn )). Para isso, e dado x0 ∈]an , bn [, definimos
(i) S = {x ∈ [x0 , bn ] : g(x) ≥ g(x0 )}, e x1 = sup S ≤ bn .
S é fechado, e portanto x1 ∈ S, donde g(x1 ) ≥ g(x0 ), x1 ≤ bn . Para provar
que x1 = bn , argumentamos por contradição, supondo que x1 < bn . Neste
caso teremos:
(ii) g(bn ) < g(x0 ), porque bn 6∈ S, e x1 ∈ Dα (I), porque an < x1 < bn .
Como x1 ∈ Dα (I), concluı́mos ainda que
(iii) Existe y1 ∈ I tal que y1 > x1 e g(y1 ) > g(x1 ) ≥ g(x0 ) > g(bn ).
Como y1 > x1 = sup S, é óbvio que y1 6∈ S, e portanto y1 > bn . Segue-se
então de (iii) que bn ∈ Dα (I), o que é absurdo. Por outras palavras, só
podemos ter x1 = bn , i.e., g(x) ≤ g(bn ), para qualquer x ∈]an , bn [. Por
continuidade de g em an , temos ainda g(an ) ≤ g(bn ) (e é também fácil
mostrar que g(an ) = g(bn ), excepto possivelmente se an = a).
O “Lema do Sol Nascente” pode ser aplicado à função g(x) = f (−x), do
que resulta imediatamente (ver exercı́cio 3)
Lema 4.7.2 (de Riesz (II)). Seja f : R → R contı́nua em R, I = ]a, b[ um
intervalo aberto limitado, e
 
f (y) − f (x)
Sβ (I) = x ∈ I : Existe y ∈ I, tal que y < x, e <β .
y−x
Então Sβ (I) = ∞
S
n=1 ]an , bn [ é uma união disjunta de intervalos abertos, e
f (bn ) − f (an )
≤ β, ou f (bn ) − f (an ) ≤ β (bn − an ) , para qualquer n.
bn − an
4.7. Os Teoremas Fundamentais do Cálculo em R 223

Os diversos limites laterais superiores e inferiores associados ao cálculo


da derivada de f designam-se aqui como se segue:

Definição 4.7.3 (Derivadas de Dini). Dada f : R → R, as derivadas de


d e
Dini de f são as funções D (f ), Dd (f ), D (f ), De (f ) : R → R dadas por:

d f (x + h) − f (x) d f (x + h) − f (x)
D (f )(x) = lim sup , D (f )(x) = lim inf
hց0 h hց0 h

e f (x + h) − f (x) e f (x + h) − f (x)
D (f )(x) = lim sup , D (f )(x) = lim inf
hր0 h hր0 h

Exemplos 4.7.4.
1. Para a função de Dirichlet dir, temos
d e
D (dir) = −De (dir) = (∞)(1 − dir), D (dir) = −Dd (dir) = (∞)(dir).

2. f é diferenciável em x se e só se
d e
D (f )(x) = Dd (f )(x) = D (f )(x) = De (f )(x) 6= ±∞.

d e
3. Temos D (f )(x) ≥ Dd (f )(x), e D (f )(x) ≥ De (f )(x), para qualquer x ∈ R.

O seguinte lema resulta facilmente das definições de Dα (I) e de Sβ (I).

Lema 4.7.5. Se I é um intervalo aberto e x ∈ I, então


d
D (f )(x) > α =⇒ x ∈ Dα (I), e De (f )(x) < β =⇒ x ∈ Sβ (I).

Nos enunciados que se seguem, e salvo menção em contrário, supomos


que a função f é crescente, além de contı́nua. Designamos por µ a respectiva
derivada generalizada, e por µ∗ a medida exterior dada por

µ∗ (E) = inf{µ(U ) : E ⊆ U, U aberto } = m∗ (f (E)).

Passamos a estimar as medidas dos conjuntos Dα (I) e f (Sβ (I)) usando


o lema de Riesz, notando ainda que as desigualdades em causa têm uma
interpretação geométrica muito simples.

Proposição 4.7.6. Se I = ]a, b[ ⊂ R, e α, β > 0, então

a) α m(Dα (I)) ≤ µ(I).

b) µ(Sβ (I)) ≤ βm (I).


224 Capı́tulo 4. Outras Medidas

Demonstração. Provamos apenas a afirmação a), e supondo que I é um in-


tervalo limitado.SDeixamos a conclusão da demonstração para o exercı́cio 4.
Sendo Dα (I) = ∞ n=1 ]an , bn [, e In = ]an , bn [, concluı́mos do Lema de Riesz
na forma 4.7.1 que

X ∞
X ∞
X
α m(Dα (I)) = α m(In ) = α (bn − an ) ≤ [f (bn ) − f (an )] .
n=1 n=1 n=1

Deve ser claro que



X ∞
X
[f (bn ) − f (an )] = µ(In ) = µ(Dα (I)) ≤ µ(I) = m(f (I)).
n=1 n=1

Se a função f é crescente e diferenciável no intervalo I = [a, b], segue-se


do teorema de Lagrange que

m(f (I)) = f (b) − f (a) = f ′ (c)(b − a) = f ′ (c)m(I), onde c ∈ I.

Se temos além disso que 0 ≤ α ≤ f ′ (x) ≤ β para x ∈ I, é óbvio que

α m(I) ≤ m(f (I)) ≤ β m(I).

O próximo teorema é uma generalização profunda e muito interessante desta


observação elementar.
Teorema 4.7.7. Se α, β > 0, então
n o
d
a) E ⊆ x ∈ R : D (f )(x) ≥ α =⇒ α m∗ (E) ≤ µ∗ (E).

b) E ⊆ {x ∈ R : De (f )(x) ≤ β} =⇒ µ∗ (E) ≤ β m∗ (E).


d
Demonstração. Limitamo-nos a demonstrar a), supondo que D (f )(x) > α
em E, deixando a conclusão do argumento para o exercı́cio (5). Considere-se
um qualquer aberto U = ∪∞ n=1 In ⊇ E, onde os conjuntos In são intervalos
abertos disjuntos. Notamos de 4.7.5 a) que E ∩ In ⊆ Dα (In ). Temos de
4.7.6 a) que

α m∗ (E ∩ In ) ≤ α m(Dα (In )) ≤ m(f (In )) = µ(In ), donde



X ∞
X
α m∗ (E) ≤ α m∗ (E ∩ In ) ≤ µ(In ) = µ(U ) = m(f (U )).
n=1 n=1

Segue-se muito facilmente (e.g., de 4.5.3) que α m∗ (E) ≤ m∗ (f (E)).

O próximo lema é a chave para a demonstração do Teorema de Diferen-


ciação de Lebesgue.
4.7. Os Teoremas Fundamentais do Cálculo em R 225

d
6 D (f ) ≤ De (f ) qtp em R.
Lema 4.7.8. ∞ =

Demonstração. Sejam 0 < β < α, m∗ (E) 6= ∞, e suponha-se que


d
De (f )(x) < β < α < D (f )(x) para qualquer x ∈ E.

Concluı́mos de 4.7.7 que α m∗ (E) ≤ m∗ (f (E)) ≤ β m∗ (E). Como β < α,


segue-se que m∗ (E) = 0.
Se m∗ (E) = ∞, consideramos En = E∩[−n, n], e notamos que m∗ (En ) =
0, e E = ∪∞ ∗
n=1 En , donde mais uma vez m (E) = 0. Por outras palavras:
n o
d
(i) E ⊆ x ∈ R : De (f )(x) < β < α < D (f )(x) =⇒ m(E) = 0.

Dada uma enumeração q1 , q2 , · · · , qn , · · · dos racionais positivos, seja


 
e 1 d
En,k = x ∈ R : D (f )(x) < qn < qn + < D (f )(x) .
k
n o
d
Notamos que E = x ∈ R : De (f )(x) < D (f )(x) = ∞
S S∞
n=1 k=1 En,k , e
temos m(En,k ) = 0, de acordo com (i). Concluı́mos que m(E) = 0, i.e.,
d
De (f )(x) ≥ D (f )(x), qtp em R.
n o
d
Seja agora E = x ∈ R : D (f )(x) = ∞ , e I = ]a, b[ um intervalo
d
aberto limitado. Se α > 0, temos D (f )(x) > α para qualquer x ∈ E,
e sabemos de 4.7.7 a) que

α m∗ (E ∩ I) ≤ µ∗ (E ∩ I) ≤ µ(I) = f (b) − f (a).


f (b)−f (a)
Temos assim m∗ (E ∩ I) ≤ α , para qualquer α, donde m(E ∩ I) = 0,
e portanto m(E) = 0.

O resultado anterior é evidentemente aplicável à função g, e por isso


temos também
e
Lema 4.7.9. D (f ) ≤ Dd (f ) qtp em R.

Podemos finalmente provar

Teorema 4.7.10 (da Diferenciação de Lebesgue). Seja f : R → R con-


tı́nua em R. Se f é crescente, ou de variação limitada, ou absolutamente
contı́nua, então f é diferenciável qtp em R.

Demonstração. Basta-nos provar este resultado supondo f crescente. Temos


d e
• D (f ) ≤ De (f ) e D (f ) ≤ Dd (f ) qtp, respectivamente de 4.7.8 e 4.7.9.
226 Capı́tulo 4. Outras Medidas

e d
• De (f ) ≤ D (f ), e Dd (f ) ≤ D (f ), por razões evidentes.
d
• D (f )(x) < ∞ qtp, por 4.7.8.

Temos destas desigualdades que


d e d
D (f ) ≤ De (f ) ≤ D (f ) ≤ Dd (f ) ≤ D (f ) < ∞, qtp em R.
e d
Concluı́mos que De (f ) = D (f ) = Dd (f ) = D (f ) < ∞ qtp em R, i.e., f é
diferenciável qtp em R.

Aproveitamos para introduzir mais um exemplo interessante, a chamada


função de Hellinger (17 ), que tem derivada nula qtp e é contı́nua, como a
escada do Diabo, mas que é além disso estritamente crescente.
Exemplo 4.7.11.
a função de Hellinger : Fixamos 0 < α < 21 arbitrário, e definimos uma
sucessão de funções fn : [0, 1] → [0, 1], cada uma estritamente crescente e
contı́nua. Consideramos os pontos Pn = { 2kn : 0 ≤ k ≤ 2n }, e notamos que
Pn ⊆ Pn+1 . O gráfico da função fn é um segmento de recta entre cada dois
pontos consecutivos de Pn (ver figura 4.7.2). Passamos a definir os valores
fn ( 2kn ), para 0 ≤ k ≤ 2n :
• f0 (0) = 0, e f0 (1) = 1, ou seja, f0 (x) = x, para qualquer 0 ≤ x ≤ 1,
• fn+1 ( 2kn ) = fn ( 2kn ), ou seja, se x ∈ Pn , então fn+1 (x) = fn (x), e
• fn+1 ( 2k+1 k k+1
2n+1 ) = αfn ( 2n ) + (1 − α)fn ( 2n ), ou seja, se x é o ponto médio
k k+1
de [ 2n , 2n ], fn+1 (x) é uma combinação convexa dos valores de fn , nos
extremos desse mesmo intervalo.
A figura 4.7.2 exibe as funções fn até n = 4.

Figura 4.7.2: O exemplo de Hellinger.

É muito simples provar as seguintes afirmações (exercı́cio 7):


17
Ernst David Hellinger, 1883-1950, matemático alemão, nascido na actual Polónia. De
ascendência judaica, chegou a estar preso no campo de Dachau, mas emigrou para os
EUA em 1938. Ensinou em Göttingen, Marburg e Frankfurt, e nos EUA na Northwestern
University e no Instituto de Tecnologia do Illinois.
4.7. Os Teoremas Fundamentais do Cálculo em R 227

(1) Cada função fn é estritamente crescente, e


(2) Se n ≤ m e k−1 k n
2n < x < 2n , onde 0 < k ≤ 2 , então

k−1 k
fn ( ) < fn (x) < fm (x) < fn ( n ), ou
2n 2
k k−1
0 < fm (x) − fn (x) < fn ( n ) − fn ( n ).
2 2
(3) fn (x) → hα (x) para qualquer 0 ≤ x ≤ 1, onde 0 ≤ hα (x) ≤ 1, e hα é
estritamente crescente.

hα é a função de Hellinger. A figura 4.7.3 ilustra a afirmação (2) para


n = 1: note-se que os gráficos das funções fm com m ≥ 1, e da função hα ,
estão necessariamente na zona sombreada da figura.

Figura 4.7.3: Região que contém os gráficos de fm com m ≥ 1.

Se um dado segmento no gráfico de fn tem declive m, então um cálculo simples


mostra que os dois segmentos correspondentes no gráfico de fn+1 têm declives
2(1−α)m (o segmento à esquerda) e 2αm (o segmento à direita). A observação
seguinte resulta de observar que o gráfico de f0 tem evidentemente declive 1.

(4) fn′ só toma os valores m = 2n αi (1 − α)n−i , onde 0 ≤ i ≤ n.

Repare-se também que o segmento mais à esquerda no gráfico de fn tem o


declive máximo m = 2n (1 − α)n , e é portanto no intervalo 0 < x < 21n que a
estimativa apresentada em (2) é maior, e igual a (1 − α)n . Podemos por isso
adaptar (2) para

(5) Se n ≤ m, então 0 ≤ fm (x) − fn (x) < (1 − α)n . Em particular, fn (x) →


hα (x) uniformemente, e a função hα é contı́nua.

hα é diferenciável qtp, porque é contı́nua e crescente, mas temos ainda

(6) Se hα é diferenciável em x então h′α (x) = 0.

Demonstração. Consideramos um ponto x de diferenciabilidade de hα , 0 ≤


x ≤ 1. Para cada n ∈ N, existe kn ≥ 0 tal que kn2−1
n ≤ x ≤ k2nn , e escrevemos
kn −1 kn
an = 2n ր x, e bn = 2n ց x. De acordo com (4),
hα (bn ) − hα (an ) fn (bn ) − fn (an )
cn = = = 2n ain (1 − a)n−in → h′α (x).
bn − an bn − an
cn+1
Supondo agora que 0 < h′α (x) < +∞, observamos que, neste caso, cn → 1.
Mas como cn+1
cn só pode ser igual a 2α ou 2(1 − α), é impossı́vel que
cn+1
cn → 1.
Por outras palavras, só podemos ter h′α (x) = 0.
228 Capı́tulo 4. Outras Medidas

A derivada generalizada de hα diz-se a medida de Hellinger, e designa-se


aqui por ηα .

4.7.2 A Decomposição de Lebesgue


O teorema 4.7.7 pode ser também explorado para caracterizar melhor o
suporte da derivada generalizada µ, num resultado que nos será muito útil.
Deixamos a respectiva demonstração como exercı́cio (10).
Teorema 4.7.12. µ tem suporte no suporte de f ′ , i.e., no conjunto S onde
f ′ existe, finita ou infinita, e é não-nula. Se T ⊆ S é o conjunto onde
f ′ (x) = ∞, E ∈ L(R), e E ∩ T = ∅, então S, T ∈ Sf (18 ), e
a) E ∈ Sf , i.e., µ(E) está definida.
b) m(E) = 0 ⇒ µ(E) = 0.
Sabemos do teorema de diferenciação de Lebesgue que f é diferenciável
qtp, e f ′ ≥ 0 é necessariamente Lebesgue-mensurável. Já observámos que
o 2o Teorema Fundamental do Cálculo no sentido usual se reduz à questão
de saber se µ é, ou não, o integral indefinido de f ′ . Estabelecemos para já
uma desigualdade entre µ e o integral indefinido de f ′ .
Teorema 4.7.13. A derivada f ′ é localmente somável, porque
Z
f ′ dm ≤ µ(E), para qualquer E ∈ B(R).
E

Demonstração. Sabemos de 4.7.12 que µ tem suporte em S, onde S é o


suporte de f ′ . Supomos sem perda de generalidade (porquê) que E ⊆ S.
Seja ainda s uma função simples B-mensurável tal que 0 ≤ s ≤ f ′ . Dada
uma partição apropriada a s, formada por conjuntos Ek ∈ B(R), temos
n
X n
[
s= αk χEk , onde αk > 0 para qualquer k, e Ek = F ⊆ E.
k=1 k=1

Como f ′ (x) ≥ αk em Ek , temos de 4.7.7 que µ(Ek ) ≥ αk m(Ek ), donde


Z Xn Xn
(i) sdm = αk m(Ek ) ≤ µ(Ek ) = µ(F ) ≤ µ(E).
E k=1 k=1

Existem como sabemos funções simples B-mensuráveis 0 ≤ sn ≤ f ′ , com


suporte em E, tais que sn (x) ր f ′ (x), qtp em E. Concluı́mos de (i) e da
propriedade de Beppo Levi que
Z Z
µ(E) ≥ sn dm → f ′ dm.
E E

18
Recorde a definição de Sf , apresentada em 4.5.3.
4.7. Os Teoremas Fundamentais do Cálculo em R 229

Exemplo 4.7.14.
Se f é a “escada do diabo”, ou o exemplo de Hellinger, a desigualdade do
teorema anterior é estrita, porque em ambos os casos temos f ′ ≃ 0, e µ 6= 0.

O resultado anterior adapta-se facilmente ao caso em que f é uma função


contı́nua de variação limitada. Deixamos como exercı́cio a demonstração de

Corolário 4.7.15. Se f : R → R é contı́nua e de variação limitada, e µ é


a respectiva derivada generalizada, então
Z
|f ′ |dm ≤ |µ|(E), para qualquer E ∈ B(R).
E

Em particular, kf ′ k1 ≤ kµk, e f ′ é somável.

O argumento utilizado na demonstração de 4.7.13 permite reforçar a


respectiva conclusão, se suposermos que f ′ é finita no conjunto E em causa.

Lema 4.7.16. Se E ∈ B(R), e f ′ (x) é finita em E, nos pontos de E onde


f ′ está definida, então Z
f ′ dm = µ(E).
E

Demonstração. Seja S o suporte de f ′ , e T o conjunto onde f ′ (x) = ∞.


Temos E ∩ T = ∅, e podemos supor, sem perda de generalidade, que E ⊆ S.
Existem funções simples
R B-mensuráveis
R ′ 0 ≤ sn ≤ f ′ , tais que sn (x) ր f ′ (x)
qtp em R, donde E sn dm ր E f dm ≤ µ(E). Designamos por En,k os
conjuntos onde sn (x) = αn,k > 0, 1 ≤ k ≤ Nn , e escrevemos Fn = ∪N k=1 .
n


Suponha-se agora que f (x) < 1 para x ∈ E. Recorde-se que, neste caso,
existem funções simples L-mensuráveis que convergem uniformemente para
f ′ , e podemos assumir que Nn = n2n , e f ′ (x) ≤ αn,k + 21n para qualquer
x ∈ En,k . Segue-se de 4.7.7 que
 
1
(i) µ(En,k ) ≤ αn,k + n m(En,k ).
2

Supondo finalmente que m(E) < ∞, um cálculo simples mostra que


n
n2 n
n2
1
Z X X
sn dm = αn,k m(En,k ) ≥ µ(En,k ) − m(E).
E 2n
k=1 k=1

É claro que Fn ր F ⊆ E, e que m(E − F ) = 0. Segue-se de 4.7.12 b) que


µ(E) = µ(F ), donde

1
Z
µ(E) ≥ sn dm ≥ µ(Fn ) − n m(E) → µ(F ) = µ(E).
E 2
230 Capı́tulo 4. Outras Medidas

f ′ dm, temos finalmente


R R
Como E sn dm → E
Z
f ′ dm = µ(E).
E

Deixamos como exercı́cio completar esta demonstração, supondo apenas


f ′ (x) < ∞ em E, e incluindo o caso m(E) = ∞.

Notámos em 4.7.12 que T ∈ Sf . Se E ⊆ R é B-mensurável, temos

µ(E) = µ(E ∩ T c ) + µ(E ∩ T ).

Como m(T ) = 0, a medida ν(E) = µ(E ∩ T ) é singular. Por outro lado, e


de acordo com o resultado anterior, temos
Z Z

c
µ(E ∩ T ) = f dm = f ′ dm = λ(E).
E∩T c E

A medida λ é absolutamente contı́nua, e é portanto evidente que µ = λ + ν


é a decomposição de Lebesgue de µ.

Teorema 4.7.17 (da Decomposição de Lebesgue). Se T = {x ∈ R : f ′ (x) =


∞}, então
Z
µ(E) = f ′ dm + µ(E ∩ T ), para qualquer E ∈ B(R).
E

A mesma decomposição é válida quando f é contı́nua e de variação limitada,


tomando agora T = {x ∈ R : |f ′ (x)| = ∞}.

O teorema da decomposição de Lebesgue permite-nos identificar múl-


tiplas circunstâncias de interesse prático onde podemos aplicar a regra de
Barrow.

Exemplos 4.7.18.
1. A função de Volterra f é diferenciável em toda a parte, e a sua derivada é
limitada. Portanto T = ∅, e f é de variação limitada. Segue-se do teorema
anterior que f satisfaz a regra de Barrow.

2. Se f é de variação limitada, não é necessário que seja diferenciável em toda a


parte para que possamos usar a regra de Barrow. Por exemplo, se o conjunto
T é finito ou numerável então é óbvio que µ(T ) = 0, e portanto µ é o integral
indefinido de f ′ .

3. Se f é diferenciável em toda a parte, não se segue do teorema da decom-


posição de Lebesgue que a regra de Barrow seja aplicável, porque f pode não
ser de variação limitada (como vimos no exercı́cio 11 da secção 4.6).
4.7. Os Teoremas Fundamentais do Cálculo em R 231

Bem entendido, o resultado mais tradicional sobre a aplicação da regra


de Barrow é o 2o Teorema Fundamental do Cálculo, que é também
um corolário directo do teorema da decomposição de Lebesgue. É comum
enunciá-lo da seguinte forma:
Teorema 4.7.19 (2o Teorema Fundamental). Seja I um intervalo compacto
e F : I → R absolutamente contı́nua em I. Então F é diferenciável qtp em
I, F ′ = f é somável em I, e
Z b
F (b) − F (a) = f dm, para quaisquer a ≤ b ∈ I.
a

Demonstração. Definimos F em toda a recta real tomando F (x) = F (a)


para x < a, e F (x) = F (b), para x > b. É claro que F é de variação
limitada e absolutamente contı́nua em R, e sabemos de 4.6.13 que a derivada
generalizada µ ≪ m. Concluı́mos que µ(T ) = 0, e é imediato de 4.7.17 que
Z Z
µ(E) = f dm + µ(E ∩ T ) = f dm, para qualquer E ∈ B(R).
E E

O 1o Teorema Fundamental pode ser enunciado como o converso exacto


desta afirmação.
Teorema 4.7.20 (1o Teorema Fundamental). Seja I um R xintervalo compacto
e f : I → R somável em I. Dado a ∈ I, seja F (x) = a f dm, para x ∈ I.
Então F é absolutamente contı́nua e diferenciável qtp em I, e F ′ ≃ f .
Demonstração. É evidente da definição de F que a sua derivada generalizada
é o integral indefinido de f . De acordo com o 2o Teorema Fundamental, a
derivada generalizada de F é o integral indefinido de F ′ . Segue-se natural-
mente que F ′ ≃ f .

Estes teoremas adaptam-se e/ou generalizam-se facilmente a outros ca-


sos, e ilustramos este facto com alguns exemplos.
Exemplos 4.7.21.
1. Se f é absolutamente contı́nua em R, então f ′ pode ser apenas localmente
somável em R. Mesmo neste caso, é claro que a regra de Barrow se aplica em
qualquer intervalo compacto.
2. Se f ∈ BV (R) é absolutamente contı́nua em R, então f ′ é somável em R.
Sendo µ a derivada generalizada de f , temos
Z
µ(E) = f ′ dm, para qualquer E ∈ L(R).
E
232 Capı́tulo 4. Outras Medidas

4.7.3 Diferenciação de Funções de Variação Limitada


É relativamente simples mostrar que os resultados sobre diferenciabilidade
que acabámos de apresentar são na verdade válidos para quaisquer funções
de variação limitada, independentemente de hipóteses sobre a sua continui-
dade. É conveniente para isso introduzir a noção de semi-continuidade.
Recorde-se da definição 1.4.20 a noção de limite superior de uma função
limitada. Dizemos que f : R → R é semi-contı́nua superior em A ⊆ R
se e só se f (a) = lim supx→a f (x), para qualquer a ∈ A. Estas funções tam-
bém podem ser caracterizadas como se segue, o que deve ser verificado no
exercı́cio 21.

Lema 4.7.22. f : R → R é semi-contı́nua superior em R se e só se

{x ∈ R : f (x) < α} é aberto, para qualquer α ∈ R.

Exemplos 4.7.23.
1. Se f : R → R é crescente e contı́nua à direita em R, então f é semi-contı́nua
superior em R. Por outras palavras, se f tem derivada generalizada µ ≥ 0,
então f é semi-contı́nua superior.

2. Qualquer função contı́nua é semi-contı́nua superior.

3. Se f é semi-contı́nua superior e g é contı́nua então as funções f + g e f − g


são semi-contı́nuas superiores.

Uma análise atenta da demonstração do “Lema do Sol Nascente” de


Riesz (4.7.1) revela que a continuidade da função em causa é usada na jus-
tificação das seguintes afirmações:

(1) U = {x ∈ I : g(x) < g(y0 )} é aberto.

(2) S = {x ∈ [x0 , bn ] : g(x) ≥ g(x0 )} é fechado.

(3) g(x) ≤ g(bn ), para qualquer x ∈]an , bn [=⇒ g(an ) ≤ g(bn ).

É evidente do lema 4.7.22 que as afirmações (1) e (2) são válidas sem qual-
quer alteração desde que g seja uma função semi-contı́nua superior. A
afirmação (3) não é certamente sempre verdadeira, mas pelo menos desde
que g tenha limite à direita em qualquer ponto podemos ainda concluir que:

(3’) Como g(x) ≤ g(bn ), para qualquer x ∈]an , bn [, temos g(a+


n ) ≤ g(bn ).

Como as funções de variação limitada têm limites laterais em qualquer ponto,


o Lema de Riesz nas duas versões que apresentámos (4.7.1 e 4.7.2) pode ser
enunciado como se segue:
4.7. Os Teoremas Fundamentais do Cálculo em R 233

Lema 4.7.24 (de Riesz (III)). Seja f : R → R de variação limitada em


qualquer intervalo limitado, e semi-contı́nua superior S em R. Se I = ]a, b[
éS um intervalo aberto limitado, então Dα (I) = ∞ n=1 ]an , bn [ e Sβ (I) =

n=1 ]cn , dn [ são uniões disjuntas de intervalos abertos, onde

f (bn )−f (a+ −


n ) ≥ α (bn − an ) , e f (dn )−f (cn ) ≤ β (dn − cn ) , para qualquer n

Esta observação é particularmente relevante quando recordamos dos


exemplos acima que qualquer função crescente e contı́nua à direita é semi-
contı́nua superior, e é por razões óbvias de variação limitada em intervalos
limitados. Por outras palavras, o Lema de Riesz nesta última versão é apli-
cável a qualquer função f com uma derivada generalizada µ ≥ 0. Com
In =]an , bn ], e Jn =]cn , dn [, as seguintes desigualdades são agora evidentes:

µ(In ) = f (bn ) − f (an ) = f (bn ) − f (a+


n ) ≥ α (bn − an ) = αm(In ), e

µ(Jn ) = f (d−
n ) − f (cn ) ≤ β (dn − cn ) .

É claro que a proposição 4.7.5 é independente de quaisquer hipóteses de


continuidade, e é imediato verificar que a proposição 4.7.6 e o teorema 4.7.7
se mantém sem quaisquer modificações. Resulta daqui que o Teorema de
Diferenciação de Lebesgue é válido para funções monótonas ou de variação
limitada, pelo menos desde que contı́nuas à direita. Recorde-se a este res-
peito que se f é monótona ou de variação limitada, então o seu conjunto
de pontos de descontinuidade D = {xn : n ∈ N} é numerável, e é claro
que f (x) = g(x) + h(x), onde g é contı́nua à direita em R, e h tem suporte
no conjunto D. A função h é diferenciável qtp, conforme observámos no
exercı́cio 11 da secção 2.4:
Lema 4.7.25. Se h ∈ BV (R) tem suporte numerável então h′ ≃ 0.
Resulta portanto que f = g + h é diferenciável qtp se e só se g o é, e
concluı́mos que o teorema de diferenciação de Lebesgue se pode generalizar
para
Teorema 4.7.26 (de Diferenciação de Lebesgue (II)). Se f : R → R é
monótona ou de variação limitada então f é diferenciável qtp em R.
O teorema da decomposição de Lebesgue também não requer a con-
tinuidade de f , e temos
Teorema 4.7.27 (da Decomposição de Lebesgue (II)). Seja µ a derivada
generalizada de f : R → R, e f = g + h, onde g é contı́nua e h é discreta.
Se T = {x ∈ R : |g ′ (x)| = ∞}, e µd é a derivada generalizada de h, então
Z
µ(E) = f ′ dm + µ(E ∩ T ) + µd (E), para qualquer E ∈ B(R).
E
234 Capı́tulo 4. Outras Medidas

Dizemos que a função f é singular se e só se f ′ ≃ 0, e é muito fácil


usar a decomposição de Lebesgue acima para mostrar que

Teorema 4.7.28. Seja µ a derivada generalizada de f : R → R. Neste


caso, µ é singular se e só se f é singular.
Exemplo 4.7.29.
A escada do Diabo e a função de Hellinger são singulares.

Os resultados sobre decomposição de funções que estudámos na secção


podem também ser

Teorema 4.7.30. Se f : R → R é monótona em R, existem funções monó-


tonas g, h, s : R → R, tais que g é um integral indefinido, h é uma função
contı́nua singular, s é de saltos, e singular, e f = g + h + s.

Deve ser claro que f = (g + h) + s é a decomposição em parte contı́nua


e parte discreta mencionada em 4.5.11, e f = g + (h + s) é essencialmente a
decomposição de Lebesgue, porque g é um integral indefinido, e h + s é uma
função singular. Note-se que as funções em causa são todas diferenciáveis
qtp, f ′ ≃ g ′ , e h′ ≃ s′ ≃ 0.
Exercı́cios.

1. Verifique que as seguintes afirmações são equivalentes:


f (xn )−f (x)
(i) Existe α′ > α e uma sucessão xn ց x tal que xn −x → α′ > α.
(ii) x ∈ Dα (I), sempre que x ∈ I.
f (x+h)−f (x)
(iii) lim suphց0 h > α.

2. Mantendo as hipóteses e notação do lema 4.7.1, mostre que se an < x < bn ,


então f (x) < f (bn ), e se an > a, então f (an ) = f (bn ). Como se pode adaptar
o lema 4.7.1 para o caso em que I não é limitado?

3. Demonstre o corolário 4.7.2.

4. Conclua a demonstração do teorema 4.7.6.

5. Conclua a demonstração do teorema 4.7.7.


e
6. Supondo g(x) = −f (−x), mostre que Dd (f )(x) = De (g)(−x), e D (f )(x) =
d
D (g)(−x).

7. Demonstre as afirmações (2) e (3), relativas ao exemplo de Hellinger.

8. Qual é o comprimento do gráfico do exemplo de Hellinger?


4.7. Os Teoremas Fundamentais do Cálculo em R 235

9. Existem funções contı́nuas que não são monótonas em nenhum intervalo não-
trivial?

10. Demonstre o teorema 4.7.12. sugestão: Mostre sucessivamente que


(i) Se f ′ não existe (finita ou infinita) em E, então m∗ (f (E)) = 0.
(ii) Se f ′ = 0 em E, então m∗ (f (E)) = 0.
(iii) Se f ′ existe e é finita em E, e m(E) = 0, então m∗ (f (E)) = 0.
(iv) Se E ⊆ T c e m(E) = 0, então E ∈ Sf e µ(E) = 0.
(v) Se E ⊆ T c e E ∈ L(R), então E ∈ Sf .

11. Demonstre o corolário 4.7.15.

12. Complete a demonstração do lema 4.7.16.

13. Mostre que se f ∈ BV (R) ∩ C(R) e {x ∈ R : |f ′ (x)| = ∞} é numerável


então f satisfaz a regra de Barrow.

14. Mostre que ηα ⊥ηβ quando α 6= β.

15. Seja f : R → R a função dada por f (x) = 1 + x, para x ≥ 0, com f (x) = 0


para x ≤ 0. Sendo µ a derivada generalizada de f , determine a decomposição
de Lebesgue de µ.

16. Seja F a escada do Diabo, e



 0, se x < 0,
f (x) = cos(πx) + F (x), se 0 ≤ x < 1,
0, se x ≥ 1.

Seja µ a derivada generalizada de f . Qual é a decomposição de Lebesgue de


µ?

17. A “escada do diabo” foi definida usando o conjunto de Cantor. Substituindo


nesta definição o conjunto de Cantor pelo exemplo de Volterra Cε (I), com ε >
0, seja Fε a correspondente “escada”, e ξε a respectiva derivada generalizada.
Qual é a decomposição de Lebesgue de ξε ?

18.
P∞ Suponha que as funções fn : R → R são P crescentes, e a série f (x) =
′ ∞ ′
n=1 fn (x) converge em R. Prove que f ≃ n=1 fn . sugestão: Use a
unicidade da decomposição de Lebesgue. Este resultado diz-se o Teorema de
diferenciação de Fubini, ou mais coloquialmente, o “pequeno” teorema de
Fubini.

19. Mostre que qualquer função discreta de variação limitada é singular.

20. Suponha que f : [0, 1] → [0, 1] é uma função contı́nua, estritamente cres-
cente, e singular. Mostre que a medida de Lebesgue-Stieltjes determinada pela
inversa f −1 : [0, 1] → [0, 1] é singular.
236 Capı́tulo 4. Outras Medidas

21. Demonstre o lema 4.7.22.

22. Suponha que a medida real µ é a derivada generalizada de f , e sejam g e h


funções distribuição de µ+ e µ− . Sendo F = g + h, prove que F ′ ≃ |f ′ |.

23. Mostre que se f e g são L-mensuráveis então h = f ◦g não é necessariamente


mensurável. sugestão: Determine uma função g contı́nua e estritamente
crescente tal que g(A) = B, onde A não é mensurável, e m(B) = 0.
Capı́tulo 5

Outros Integrais de Lebesgue

Passamos neste Capı́tulo ao estudo de integrais de Lebesgue de funções


definidas num espaço de medida arbitrário (X, M, µ), de que a aplicação
mais evidente é a Teoria das Probabilidades. Na realidade, quando (X, M, µ)
é um espaço de probabilidades, as funções mensuráveis dizem-se, normal-
mente, variáveis aleatórias, e o integral de uma variável aleatória em ordem
à medida de probabilidade µ é o seu valor médio, ou expectável.
A região de ordenadas de uma função definida num conjunto “arbitrário”
X é um subconjunto de X × R. Para atribuir um integral a uma função
deste tipo, é necessário atribuir uma medida apropriada a subconjuntos de
X × R. Veremos que a teoria desenvolvida nos Capı́tulo anteriores permite
a definição de um espaço de medida com suporte em X × R, obtido, por um
procedimento muito natural, a partir dos espaços (X, M, µ) e (R, L(R), m).
Mostraremos em seguida que as propriedades mais significativas dos in-
tegrais de Lebesgue “em ordem à medida de Lebesgue” são válidas, essen-
cialmente sem modificação, neste contexto muito geral, reduzindo a teoria
desenvolvida no Capı́tulo anterior a um caso particular. Demonstramos
uma versão abstracta do teorema de Fubini-Lebesgue, aplicável a funções
definidas em X × Y , onde (X, M, µ) e (Y, N , λ) são espaços de medida
quaisquer, e estudamos o clássico Teorema de Radon-Nikodym-Lebesgue,
que generaliza o 2o Teorema Fundamental do Cálculo, e o Teorema da De-
composição de Lebesgue.
Terminamos o capı́tulo com o que é, sobretudo, uma ligeira introdução
ao vastı́ssimo domı́nio da Análise Funcional. Introduzimos aqui diversos
exemplos de espaços de (classes de) funções mensuráveis, fundamentais em
múltiplas aplicações da Análise Real a outros ramos da Matemática, e a
outras áreas cientı́ficas, e discutimos questões técnicas sofisticadas, susci-
tadas pelo estudo destes espaços. Consideramos, em particular, a genera-
lização de noções topológicas que conhecemos de RN , incluindo a definição
de critérios de convergência de sucessões nestes espaços, e o estudo dos
respectivos espaços duais, que são constituı́dos pelas suas transformações

237
238 Capı́tulo 5. Outros Integrais de Lebesgue

lineares contı́nuas. Estes espaços duais são indispensáveis à adaptação das


ideias e métodos do Cálculo Diferencial em RN para o contexto de espaços
de funções, que é o Cálculo de Variações. É difı́cil subestimar a importância
desta área, tendo em conta que as mais importantes teorias da Fı́sica moder-
na se baseiam em princı́pios variacionais. Os resultados aqui apresentados
são, sem qualquer dúvida, dos mais significativos e relevantes da Análise
Real, e são uma magnı́fica ilustração da superioridade técnica da teoria da
integração de Lebesgue.

5.1 A Medida µ ⊗ m

R
Figura 5.1.1: E f dµ =?

Dado um qualquer espaço de medida (X, M, µ), propomo-nos agora iden-


tificar as funções f : X → R, ditas “M−mensuráveis”, e definir integrais
de Lebesgue “em ordem à medida µ”, para uma subclasse apropriada das
funções M-mensuráveis. O principal obstáculo técnico a vencer é, natural-
mente, a indispensável generalização da identidade
Z
f dmN = mN +1 (Ω+ −
E (f )) − mN +1 (ΩE (f )).
E

No caso de f : X → R, os conjuntos Ω+ −
E (f ) e ΩE (f ) são dados por

Ω+
E (f ) = {(x, y) ∈ X × R : x ∈ E, e 0 < y < f (x)}, e

Ω−
E (f ) = {(x, y) ∈ X × R : x ∈ E, e 0 > y > f (x)}.

Os conjuntos Ω+ −
E (f ) e ΩE (fR ) são evidentemente subconjuntos de X × R
e, por isso, a definição de E f dµ exige uma resposta prévia às seguintes
questões:
5.1.1. Dado o espaço de medida (X, M, µ),
(1) Que subconjuntos de X × R são “mensuráveis” em algum sentido ra-
zoável do termo?

(2) Qual a “medida” desses subconjuntos “mensuráveis” de X × R?


5.1. A Medida µ ⊗ m 239

Exemplos 5.1.2.
1. Na teoria das probabilidades, e dado um espaço de probabilidades (X, M, µ),
as funções M-mensuráveis dizem-se variáveis aleatórias. Tipicamente, te-
mos X = RN , M = B(RN ), e as variáveis aleatórias são, como veremos imedia-
tamente a seguir, as funções borel-mensuráveis. O integral de f em ordem
a µ é o chamado valor médio, ou expectável, de f .
2. Quando X = N, as funções f : X → R são simplesmente as sucessões reais.
Consideramos a σ-álgebra M = P(N), com a medida de contagem (cardinal)
µ = #. Veremos que as funções M-mensuráveis são aqui todas as sucessões
P∞ Veremos também que o integral de f : N → R “em ordem a #” é
reais.
n=1 f (n), sempre que esta série é absolutamente convergente.

3. Os “integrais de Stieltjes” são, como veremos, integrais em ordem a


medidas de Lebesgue-Stieltjes. Por exemplo, se f ≥ 0 é Borel-mensurável em
R, e ξ é a medida de Cantor, o integral
Z
f dξ
R

é um integral de Stieltjes. A medida de Cantor é de probabilidade, e neste


sentido o integral acima é o valor expectável de f .
Para entender a referência ao nome de Stieltjes neste contexto, recorde-se que
Rb
os integrais de Riemann a g(x)dx são limites de somas “de Riemann”, do tipo
n
X
g(x∗k )(xk − xk−1 ).
k=1

Stieltjes substituiu os factores ∆xk = (xk −xk−1 ) por F (xk )−F (xk−1 ), onde F
é uma função arbitrária, e considerou o limite correspondente, quando existe,
como o integral que hoje dizemos de “Riemann-Stieltjes”:
Z b Xn
g(x)dF = lim g(x∗k )(F (xk ) − F (xk−1 )).
a diam(P)→0
k=1

A definição de Stieltjes generaliza a de Riemann, porque esta última correspon-


de à escolha F (x) = x. Na terminologia actual, Stieltjes substituiu a medida
de Lebesgue m(Ik ) do intervalo Ik =]xk−1 , xk ] pela medida µ(Ik ), onde µ é
a derivada generalizada de F . Foi assim o primeiro matemático a estudar
integrais que hoje reconhecemos como sendo em ordem a uma medida µ 6= m.

A resposta às questões colocadas em 5.1.1 é surpreendentemente simples,


e resulta de adaptar a afirmação feita em 2.4.22 a), ou seja,

A ∈ L(RN ) e B ∈ L(RM ) =⇒ A × B ∈ L(RN +M ), e

mN +M (A × B) = mN (A)mM (B).
Abstraı́mos daqui o princı́pio de que o produto cartesiano de conjuntos men-
suráveis deve ser mensurável, e a sua medida deve ser o produto das medidas
240 Capı́tulo 5. Outros Integrais de Lebesgue

dos conjuntos em causa. Mais precisamente, se A ⊆ X é M-mensurável e


se B ⊆ R é, pelo menos, Borel-mensurável, então

5.1.3. A × B deve ser “mensurável” em X × R, com “medida” dada por

ρ(A × B) = µ(A)m(B).

A medida ρ, a existir, está definida pelo menos na σ-álgebra gerada em


X × R pelos conjuntos da forma A × B, onde A ∈ M e B ∈ B(R).
É conveniente introduzir esta σ-álgebra num contexto um pouco mais
geral, que nos será útil mais adiante, quando definirmos o produto de quais-
quer dois espaços de medida (X, M, µ) e (Y, N , ν).

Definição 5.1.4 (Produto de σ-álgebras). Dados espaços mensuráveis (X, M)


e (Y, N ), M ⊗ N é a σ-álgebra gerada em X × Y pelos conjuntos da forma
A × B, onde A ∈ M e B ∈ N .
Exemplo 5.1.5.
Para calcular o produto de σ-álgebras de Borel, recordamos que

A ∈ B(RN ) e B ∈ B(RM ) =⇒ A × B ∈ B(RN +M ).

A σ-álgebra B(RN +M ) é assim uma das σ-álgebras que contêm os conjuntos


da forma A × B, com A ∈ B(RN ) e B ∈ B(RM ), e portanto

B(RN ) ⊗ B(RM ) ⊆ B(RN +M ).

Por outro lado, se U ⊆ RN e V ⊆ RM são abertos, é evidente que U ×


V ∈ B(RN ) ⊗ B(RM ), por definição. É fácil concluir daqui que a σ-álgebra
B(RN ) ⊗ B(RM ) contém todos os abertos de RN +M . Como B(RN +M ) é, por
definição, a menor σ-álgebra que contém todos os abertos de RN +M , temos

B(RN +M ) ⊆ B(RN ) ⊗ B(RM ), donde B(RN ) ⊗ B(RM ) = B(RN +M ).

Dado um espaço de medida (X, M, µ), podemos utilizar a σ-álgebra


M ⊗ B(R) para identificar os conjuntos “mensuráveis” em X × R. É um
problema um pouco mais difı́cil mostrar que existe, além disso, uma medida
ρ, definida em M ⊗ B(R), e satisfazendo a identidade em 5.1.3, i.e., tal que
ρ(A × B) = µ(A)m(B), quando A ∈ M, e B ∈ B(R).
Exemplo 5.1.6.
Seja (X, M, µ) = (RN , L(RN ), mN ) o espaço de Lebesgue. Neste caso, temos,
certamente,

M ⊗ B(R) = L(RN ) ⊗ B(R) ⊆ L(RN ) ⊗ L(R) ⊆ L(RN +1 ).

Podemos, por razões evidentes, tomar para ρ a restrição da medida de Lebesgue


mN +1 à σ-álgebra L(RN ) ⊗ B(R).
5.1. A Medida µ ⊗ m 241

Demonstraremos, nesta secção, o seguinte resultado:

Teorema 5.1.7 (Espaço com suporte em X ×R). Se (X, M, µ) é um espaço


de medida, então existe uma medida µ ⊗ m definida em M ⊗ B(R), tal que
(µ ⊗ m)(A × B) = µ(A)m(B), ∀A∈M ∀B∈B(R) .

Antes de demonstrar este teorema, mostramos como este resultado nos


permite definir integrais de Lebesgue “em ordem à medida µ”, para funções
f : X → R, ditas, neste caso, “M-mensuráveis”.

Definição 5.1.8 (Integrais em ordem à medida µ). Seja E ⊆ S ⊆ X, e


f : S → R.

a) f é M-mensurável em E se e só se ΩE (f ) ∈ M ⊗ B(R).

b) Se f é M-mensurável em E, e pelo menos um dos conjuntos Ω+ E (f )


e Ω+
E (f ) tem medida (µ ⊗ m) finita, o integral de lebesgue de f
(em ordem a µ) em E é dado por
Z
f dµ = (µ ⊗ m)(Ω+ −
E (f )) − (µ ⊗ m)(ΩE (f )).
E

c) Se f é M-mensurável em E, então f é µ-somável em E se e só se


(µ ⊗ m) (ΩE (f )) < ∞.

Exemplos 5.1.9.
1. o espaço de borel: Se (X, M, µ) = (RN , B(RN ), mN ) é o espaço de Borel,
já vimos que
M ⊗ B(R) = B(RN +1 ).
Por esta razão, as funções B(RN )-mensuráveis, de acordo com a definição
acima, são as funções Borel-mensuráveis, que introduzimos em 3.1.1.
A medida mN ⊗ m coincide com a medida mN +1 , pelo menos na classe dos
conjuntos elementares, e sabemos do Capı́tulo 2 que neste caso mN ⊗ m =
mN +1 , em toda a σ-álgebra B(RN +1 ).
Concluı́mos que a definição acima inclui, como caso particular, a definição
3.1.1, quando esta última é aplicada a funções borel-mensuráveis.

2. o espaço das sucessões reais: Trata-se, como vimos no exemplo 5.1.2.2,


do espaço (N, P(N), #), onde # é a medida de contagem. É simples verificar
que qualquer sucessão f : N → R é M-mensurável. Suponha-se, para isso, que
f (n) = an , An = {n}, e os intervalos In são dados por:

 ]0, an [, se an > 0,
In = ∅, se an = 0,
]an , 0[, se an < 0.

S∞
A região de ordenadas de f é ΩN (f ) = n=1 An × In , e notamos que:
242 Capı́tulo 5. Outros Integrais de Lebesgue

• Os conjuntos An × In são P(N) ⊗ B(R)-mensuráveis, porque An ∈ P(N),


In é um intervalo, e P(N)⊗B(R) contém, por definição, todos os conjuntos
deste tipo, e
• ΩN (f ) é uma união numerável de conjuntos P(N) ⊗ B(R)-mensuráveis, e
portanto é P(N) ⊗ B(R)-mensurável.
Se f é não-negativa, podemos calcular imediatamente o seu integral. Como
(# ⊗ m) é uma medida,
Z ∞
[
f d# =(# ⊗ m)(ΩN (s)) = (# ⊗ m)( An × In ) =
N n=1

X ∞
X ∞
X
= (# ⊗ m)(An × In ) == #(An ) × m(]0, an [) = an .
n=1 n=1 n=1

Por outras palavras, a soma de uma série de termos não-negativos é também


um integral de Lebesgue (em ordem à medida de contagem). Se f muda de
sinal, temos então
Z X∞
|f |d# = |an |,
X n=1

e as funções #-somáveis correspondem às séries absolutamente convergentes.


É simples mostrar que, para as funções #-somáveis, temos igualmente
Z ∞
X
f d# = an .
X n=1

A questão da mensurabilidade das secções de conjuntos mensuráveis é


de importância fundamental, conforme vimos no Capı́tulo anterior, quando
estudámos o teorema de Fubini-Lebesgue e as suas múltiplas consequências.
No que se segue, se E ⊆ X × Y , x ∈ X, e y ∈ Y , consideramos apenas
secções dos tipos Ex = {y ∈ Y : (x, y) ∈ E}, e E y = {x ∈ X : (x, y) ∈ E}.
Demonstraremos mais adiante uma versão (5.3.6) muito geral do teorema de
Fubini-Lebesgue, mas podemos provar imediatamente o seguinte resultado.

Teorema 5.1.10. Sejam (X, M) e (Y, N ) espaços mensuráveis quaisquer.


Se E ∈ M ⊗ N , i.e., se E é M ⊗ N -mensurável, então

a) Para qualquer x ∈ X, a secção Ex ⊆ Y é N -mensurável, e

b) Para qualquer y ∈ Y , a secção E y ⊆ X é M-mensurável.

c) Se E ⊆ X, f : E → [0, +∞] é M-mensurável, e λ ≥ 0, então os


conjuntos

F (λ) = {x ∈ E : f (x) > λ}, e {x ∈ E : f (x) < −λ}

são M-mensuráveis para qualquer λ.


5.1. A Medida µ ⊗ m 243

Demonstração. Seja A a classe formada por todos os conjuntos E ⊆ X × Y ,


cujas secções Ex e E y são mensuráveis, nos espaços apropriados.

A = {E ⊆ X × Y : Ex ∈ N , ∀x∈X , e E y ∈ M, ∀y∈Y } .

Observamos que:

(i) A classe A contém todos os conjuntos do tipo A × B, com A ∈ M e


B ∈ N : Basta notar que:
 
B, se x ∈ A A, se y ∈ B
(A × B)x = , e (A × B)y =
∅, se x 6∈ A, ∅, se y 6∈ B,

(ii) A classe A é uma σ-álgebra: Observamos que:

(E c )x = (Ex )c , (E c )y = (E y )c , e,

[ ∞
[ ∞
[
Se E = En , então Ex = (En )x , e E y = (En )y .
n=1 n=1 n=1

Como M e N são σ-álgebras, deve ser claro que



[
E ∈ M ⊗ N ⇒ E c ∈ M ⊗ N , e En ∈ M ⊗ N ⇒ En ∈ M ⊗ N .
n=1

Como a classe M ⊗ N é, por definição, a menor σ-álgebra que contém


todos os conjuntos do tipo A × B, com A ∈ M e B ∈ N , e A é, também,
uma σ-álgebra que contém estes conjuntos, concluı́mos que M ⊗ N ⊆ A, o
que demonstra a) e b).
A demonstração de c) fica para o exercı́cio 8.

Exemplo 5.1.11.
o espaço de Lebesgue: O produto de σ-álgebras de Lebesgue não é uma
σ-álgebra de Lebesgue. Sabemos que

A ∈ L(RN ) e B ∈ L(RM ) =⇒ A × B ∈ L(RN +M ),

e, por esta razão, continua a ser válida a conclusão:

L(RN ) ⊗ L(RM ) ⊆ L(RN +M ).

No entanto, existem conjuntos E ∈ L(RN +M ) cujas secções não são, todas,


Lebesgue-mensuráveis. Por exemplo, se A tem medida nula, então A × B é
Lebesgue-mensurável, mesmo que B o não seja. Concluı́mos, deste facto, e do
teorema anterior, que

(i) L(RN ) ⊗ L(RM ) 6= L(RN +M ).


244 Capı́tulo 5. Outros Integrais de Lebesgue

Aplicando a definição 5.1.8 ao espaço de Lebesgue (RN , L(RN ), mN ), então

(ii) f : RN → R é L(RN )-mensurável ⇔ ΩRN (f ) ∈ L(RN ) ⊗ L(R), e

Aplicando a definição “original” 3.1.1, temos

(iii) f : RN → R é L-mensurável ⇔ ΩRN (f ) ∈ L(RN +1 ).

Apesar de L(RN ) ⊗ L(R) 6= L(RN +1 ), a discrepância entre (ii) e (iii) é apenas


aparente, e deixamos como exercı́cio (12) verificar que

ΩRN (f ) ∈ L(RN +1 ) =⇒ ΩRN (f ) ∈ L(RN ) ⊗ L(R).

Por outras palavras, a classe das funções L-mensuráveis, no sentido de 3.1.1, é


a classe das funções L(RN )-mensuráveis, no sentido de 5.1.8.

As ideias sobre funções simples generalizam-se, sem qualquer dificuldade,


ao contexto mais geral de um espaço (X, M, µ). Tal como nos espaços de
Borel e de Lebesgue, temos
Lema 5.1.12. Se s : S → R é simples em E ⊆ S ⊆ X, então s é M-
mensurável em S se e só se existe uma partição finita P do suporte de s
em E, em conjuntos M-mensuráveis, P = {A1 , A2 , · · · , An }, tais que s é
constante em cada conjunto Ai .
Continuamos a dizer que a partição P é apropriada à função s, no
conjunto E, se é formada por conjuntos mensuráveis, s é constante em cada
conjunto em P, e P é uma cobertura do suporte de s em E. As fórmulas
para o cálculo de integrais de funções simples que vimos em 3.4.4 mantêm-se
inalteradas:
Proposição 5.1.13 (Integrais de funções simples). Seja s : S → R simples
M-mensurável em S, e P = {A1 , A2 , · · · , An } uma partição apropriada a
s. Se s(x) = αi quando x ∈ Ai , então:
a) s é somável em S se e só se ni=1 |αi |µ(Ai ) < +∞.
P

b) Se o integral de s em ordem a µ existe, S sdµ = ni=1 αi µ(Ai ).


R P

Demonstração. Demonstramos apenas b), e para o caso s ≥ 0. Como Ai ∈


M, os conjuntos Ri = Ai ×]0, αi [ são M ⊗ B(R)-mensuráveis. temos
n
[
ΩE (s) = Ω+
E (s) = Ai ×]0, αi [, donde
i=1
Z n
X n
X
sdµ = (µ ⊗ m)(ΩE (s)) = (µ ⊗ m)(Ai ×]0, αi [) = αi µ(Ai ).
E i=1 i=1
5.1. A Medida µ ⊗ m 245

Exemplo 5.1.14.
espaços de probabilidade: Seja (X, M, µ) um espaço de probabilidades, e
s : X → R uma variável aleatória simples. Suponha-se que s assume os valores
a1 , a2 , · · · , an , respectivamente, nos conjuntos A1 , A2 , · · · , An . Na terminolo-
gia usual da teoria das probabilidades, temos:

• O conjunto Ai é o acontecimento “s(x) = ai ”,


• µ(Ai ) é a probabilidade de Ai , i.e., a probabilidade de “s(x) = ai ”.

O integral de s em ordem a µ é
Z n
X
sdµ = αi µ(Ai ),
X i=1

e é claramente o valor médio (ou expectável) da variável aleatória s.

O teorema 5.1.7 não contém nenhuma afirmação sobre a unicidade da


medida µ ⊗ m. Portanto, não é por enquanto claro se a definição 5.1.8 é
ambı́gua, no que diz respeito ao valor do integral de uma função em ordem
à medida µ. No entanto, é óbvio do lema 5.1.13 que essa ambiguidade não
existe para funções simples M-mensuráveis. Veremos mais adiante que as
funções M-mensuráveis podem ser aproximadas por funções simples M-
mensuráveis, o que nos permitirá mostrar que o integral tal como definido
em 5.1.8 é único.
Antes de passarmos à demonstração do teorema 5.1.7, notamos que este
é mais um “problema de extensão”, análogo aos problemas de Borel, de
Lebesgue, e de Stieltjes. Num problema deste tipo, dada uma classe C de
subconjuntos de um conjunto fixo S, e uma função λ : C → [0, +∞] definida
apenas para os conjuntos em C, pretende-se determinar um espaço de medida
(S, A, ρ) que seja extensão de (S, C, λ), i.e., tal que

A ⊇ C e ρ(E) = λ(E), para qualquer E ∈ C.

As ideias que usámos para resolver o problema “fácil” de Lebesgue po-


dem ser adaptadas para resolver problemas mais gerais, desde que certas
hipóteses auxiliares apropriadas sejam satisfeitas. A técnica base não sofre
qualquer modificação, e consiste em

• Usar a função “original” λ para definir uma medida exterior λ∗ ,

• Considerar a σ-álgebra Mλ∗ , formada pelos conjuntos λ∗ -mensuráveis,

• Tomar ρ igual à restrição da medida exterior λ∗ à σ-álgebra A = Mλ∗ .


246 Capı́tulo 5. Outros Integrais de Lebesgue

Figura 5.1.2: As funções λ : C → [0, +∞], ρ : Mλ∗ → [0, +∞], e λ∗ :


P(S) → [0, +∞].

Teorema 5.1.15. Seja C ⊆ P(S), e λ : C → [0, +∞] uma função não


identicamente +∞, e σ-aditiva em C. Supomos que C é uma semi-álgebra
em S, e uma cobertura sequencial de S. Definimos λ∗ : P(S) → [0, ∞] por
(∞ ∞
)
X [

λ (E) = inf λ(En ) : E ⊆ En , com En ∈ C .
n=1 n=1

Temos então que

a) λ∗ é uma medida exterior em S, e portanto a restrição de λ∗ à classe


Mλ∗ , formada pelos conjuntos λ∗ -mensuráveis, é uma medida ρ.

b) ρ é uma extensão de λ, i.e., C ⊆ Mλ∗ , e ρ(E) = λ(E), para qualquer


E ∈ C.

Demonstração. a) é imediato de 2.1.18 e 2.3.10. Para verificar b), mostramos


primeiro que

(i) λ∗ (E) = λ(E), para qualquer E ∈ C:

Demonstração. Se E ∈ C, podemos tomar, na definição de λ∗ (E),


E1 = E, e, para n > 1, En = ∅. Obtemos imediatamente que
λ∗ (E) ≤ λ(E). Por outro lado, como λ é σ-aditiva na semi-álgebra C,
é igualmente σ-subaditiva em C, e, portanto, se E, En ∈ E, temos

[ ∞
X
E⊆ En =⇒ λ(E) ≤ λ(En ) =⇒ λ(E) ≤ λ∗ (E).
n=1 n=1

Concluı́mos que λ∗ (E) = λ(E), quando E ∈ C.

Deixamos como exercı́cio a seguinte afirmação, análoga a 2.2.8:

(ii) E ∈ Mλ∗ ⇔ λ(C) = λ∗ (C ∩ E) + λ∗ (C ∩ E c ), para qualquer C ∈ C.

(iii) C ⊆ Mλ∗ .
5.1. A Medida µ ⊗ m 247

Demonstração. Se E, C ∈ C, então C ∩ E, C ∩ E c ∈ C, porque C é


uma semi-álgebra. Como λ∗ (C) = λ(C) para C ∈ C, e λ é aditiva em
C, temos λ∗ (C ∩ E) + λ∗ (C ∩ E c ) = λ(C ∩ E) + λ(C ∩ E c ) = λ(C).
Concluı́mos de (ii) que C ⊆ Mλ∗ , o que termina a verificação de b).

Se C é uma álgebra em S, o teorema (5.1.15) pode enunciar-se como o:

Corolário 5.1.16 (Teorema de Extensão de Hahn (1 )). Se C é uma álgebra


em S, λ : C → [0, ∞], e λ(∅) = 0, então existe um espaço de medida (S, A, ρ)
que é extensão de (S, C, λ) se e só se λ é σ-aditiva em C.

Demonstração. Basta observar que se C é uma álgebra em S, então é uma


cobertura sequencial de S.
Exemplo 5.1.17.
A definição que démos da medida de Lebesgue é uma aplicação directa do
teorema 5.1.15. Neste caso, temos S = RN , podemos tomar C = E(RN ), ou
C = J (RN ), e é claro que λ = cN é o conteúdo de Jordan.

Designamos por R a classe dos conjuntos da forma A×B, onde A ∈ M e


B ∈ B(R), que chamaremos aqui “rectângulos”, e definimos λ : R → [0, +∞]
por λ(A × B) = µ(A)m(B). Para demonstrar o teorema 5.1.7, seguiremos
os seguintes passos:

• Provamos que λ é σ-aditiva em R. Usaremos aqui o teorema de Beppo


Levi, tal como se aplica no espaço de Lebesgue usual.

• Introduzimos a classe C = E, dos conjuntos que são uniões finitas de


“rectângulos” em R, que diremos serem conjuntos “elementares”.

• Definimos λ em toda a classe E, usando a aditividade de λ em R.

• Mostramos que E é uma álgebra em S = X × R, e usamos o teorema


de extensão de Hahn.

Proposição 5.1.18. λ é σ-aditiva, e portanto aditiva, na classe R.

Demonstração. Supomos que An ∈ M, Bn ∈ B(R), e os “rectângulos”


An × Bn são disjuntos. Temos a provar que, se A ∈ M, B ∈ B(R), e

[ ∞
X
A×B = An × Bn , então µ(A)m(B) = µ(An )m(Bn ).
n=1 n=1
1
Hans Hahn, austrı́aco, 1879-1934, mais conhecido pelo “Teorema de Hahn-Banach”
da Análise Funcional.
248 Capı́tulo 5. Outros Integrais de Lebesgue

As secções destes conjuntos, para y ∈ R fixo, são muito fáceis de determinar.


 
y An , se y ∈ Bn , y A, se y ∈ B,
(An × Bn ) = , e (A × B) =
∅, se y 6∈ Bn , ∅, se y 6∈ B.

As seguintes identidades são trivialmente válidas para qualquer y ∈ R:

µ((A × B)y ) = µ(A)χB (y), e µ((An × Bn )y ) = µ(An )χBn (y).

As secções (An × Bn )y são, também, conjuntos disjuntos, e



[
y
(A × B) = (An × Bn )y , donde
n=1


X ∞
X
y y
µ((A × B) ) = µ((An × Bn ) ), i.e., µ(A)χB (y) = µ(An )χBn (y).
n=1 n=1
Esta última identidade pode ser integrada termo-a-termo, de acordo com o
teorema de Beppo Levi, porque é uma série de funções Borel-mensuráveis,
não-negativas. Temos, por isso:

X ∞
X
µ(A)m(B) = µ(An )m(Bn ), ou λ(A × B) = λ(An × Bn ).
n=1 n=1

Sendo E a classe dos conjuntos que são uniões finitas de conjuntos em R,


e que dizemos conjuntos “elementares”, notamos agora que, analogamente
ao que observámos em 1.1.9, e em 1.1.10, temos:

Proposição 5.1.19. Se E é “elementar”, i.e., se E ∈ E então

a) E é uma união finita de “rectângulos” em R disjuntos, e

b) Se P = {A1 × B1 , A2 × B2 , · · · , Am × Bm } e Q = {C1 × D1 , C2 ×
D2 , · · · , Cn × Dn } são partições de E em “rectângulos” em R, então
m
X n
X
λ(Aj × Bj ) = λ(Ck × Dk ).
j=1 k=1

Demonstração. Basta-nos observar que a classe R é fechada em relação a


intersecções, e a diferença de dois conjuntos em R é uma união disjunta
finita de conjuntos em R. A demonstração pode, portanto, ser concluı́da
como no caso de 1.1.9.

Tal como no Capı́tulo 1, alargamos a definição de λ aos conjuntos “ele-


mentares”:
5.1. A Medida µ ⊗ m 249

Definição 5.1.20. Se E ∈ E e P = {A1 × B1 , A2 × B2 , · · · , An × Bn } é uma


partição de E em conjuntos de R, definimos
n
X n
X
λ(E) = λ(Aj × Bj ) = µ(Aj )m(Bj ).
j=1 j=1

O seguinte resultado é uma consequência quase trivial de 5.1.18:

Proposição 5.1.21. λ é σ-aditiva, e portanto aditiva, na álgebra E.

Segue-se do teorema de extensão de Hahn (5.1.16) que

Teorema 5.1.22. Existe um espaço de medida (X × R, N , ρ) tal que

R ⊆ E ⊆ N , e ρ(E) = λ(E), para qualquer E ∈ E.

Como a σ-álgebra N referida acima contém a classe R, é claro que

M ⊗ B(R) ⊆ N .

A medida ρ está assim definida, em particular, em M ⊗ B(R), e designamos


por µ ⊗ m a sua restrição a M ⊗ B(R). Esta observação termina a demons-
tração do teorema 5.1.7. Note-se para posterior referência que

5.1.23. Se E ∈ M ⊗ B(R) então



X ∞
[
µ ⊗ m(E) = inf{ µ(An )m(Bn ) : E ⊆ An × Bn , An ∈ M, Bn ∈ B(R)}.
n=1 n=1

Figura 5.1.3: Translacção e reflexão de A.

Algumas propriedades elementares do integral de Lebesgue resultam da


invariância da medida de Lebesgue, em relação a translacções, e reflexões.
250 Capı́tulo 5. Outros Integrais de Lebesgue

As propriedades de invariância da medida µ ⊗ m são mais limitadas, e


resumem-se em geral ao que chamaremos aqui de invariância em relação
a “translacções verticais”, e a “reflexões em X”. Para definir este tipo de
“translacções” e “reflexões”, seja A ⊆ X ×R (ver a figura 5.1.3). Escrevemos
os pontos de X × R na forma (x, y), onde x ∈ X, e y ∈ R. Se z ∈ R, então

• B = {(x, y + z) ∈ X × R : (x, y) ∈ A} é uma translacção vertical


de A, e

• C = {(x, −y) ∈ X × R : (x, y) ∈ A} é a reflexão de A em X.

Proposição 5.1.24. Seja A ⊆ X × R, e B e C como descrito acima.

a) Invariância sob translacções verticais: B é M ⊗ B(R)-mensurável se


e só se A é M ⊗ B(R)-mensurável, e neste caso µ ⊗ m(A) = µ ⊗ m(B).

b) Invariância sob reflexões em X: C é M ⊗ B(R)-mensurável se e só se


A é M ⊗ B(R)-mensurável, e neste caso µ ⊗ m(A) = µ ⊗ m(C).

Demonstração. A invariância da classe M ⊗ B(R) em relação às operações


indicadas é o exercı́cio 11. A invariância da medida ρ em relação às mesmas
operações é uma consequência directa da evidente invariância da medida
exterior λ∗ em relação a essas operações.
Exercı́cios.

1. Complete a demonstração de 5.1.15. sugestão: Tem apenas que provar a


afirmação (ii) referida na demonstração.

2. Seja S = {1, 2, 3}, C = {∅, {1} , {2, 3} , S}, e λ : C → [0, +∞[ dada por
λ(E) = #(E). Definimos λ∗ : P(X) → [0, +∞[ por:
(∞ ∞
)
X [

λ (E) = inf λ(En ) : E ⊆ En , com En ∈ C, para qualquer n ∈ N .
n=1 n=1

a) Determine a classe Mλ∗ dos conjuntos λ∗ -mensuráveis.


b) Prove que Mλ∗ não é a maior álgebra onde existe uma extensão de λ.

3. Mantendo a notação de 5.1.15, mostre que


a) Mλ∗ é a maior σ-álgebra que contém C, e onde λ∗ é uma medida.
Se o espaço (S, Mλ∗ , ρ) é σ-finito, temos ainda
b) ρ é a única extensão de λ a σ-álgebras A ⊆ Mλ∗ , e
c) (S, Mλ∗ , ρ) é a menor extensão completa de λ.

4. Sendo f : R → R, calcule o integral de f em R, em ordem à medida de Dirac.

5. Calcule o integral da função de Dirichlet em R, em ordem à medida de Cantor.


5.2. Funções Mensuráveis e Integrais 251

6. Considere o espaço (N, P(N), #), e sejam f, g : N → [0, ∞] sucessões não


negativas. Seja ainda λ o integral indefinido de g. Mostre que
Z Z
f dλ = f gd#.
N N

7. Se E ⊆ X, e µ(E) = 0, é necessariamente
R verdade que qualquer função
f : E → R é µ-somável em E, e E f dµ = 0?

8. Mostre que, se f : E → [0, ∞] é M-mensurável e λ ≥ 0, então os conjuntos


F (λ) = {x ∈ E : f (x) > λ} e G(λ) = {x ∈ E : f (x) < −λ} são M-mensuráveis
(5.1.10 c)).

9. Mostre que se s : X → R é simples, e f (X) = {a1 , · · · , an }, então f é M-


mensurável se e só se os conjuntos Ak = f −1 (ak ) são M-mensuráveis (Lema
5.1.12).

10. Mostre que se s : X → R é simples e assume os valores a1 , a2 , · · · , an


respectivamente nos conjuntos mensuráveis A1 , A2 , · · · , An , e E ∈ M, então
R Pn
temos E sdµ = k=1 ak µ(Ak ∩ E), desde que s seja não-negativa, ou somável.

11. Mostre que M ⊗ B(R) é sempre fechada em relação a translacções verticais


e reflexões em X.

12. Mostre que ΩRN (f ) ∈ L(RN +1 ) =⇒ ΩRN (f ) ∈ L(RN ) ⊗ L(R). (5.1.11).

13. Se o espaço (X, M, µ) é completo, o espaço (X × R, M ⊗ B(R), µ ⊗ m) é


sempre completo?

5.2 Funções Mensuráveis e Integrais


As propriedades elementares do integral de Lebesgue, tal como demonstra-
das na secção 3.1, mantêm-se essencialmente inalteradas. Para generalizar os
respectivos enunciados para o contexto de um espaço de medida arbitrário
(X, M, µ), basta em geral supor que as funções em causa estão definidas
em subconjuntos de X, substituir as referências à medida de Lebesgue mN
por referências a µ, e ler as expressões “mensurável” e “somável”, respectiva-
mente, como “M-mensurável” e “µ-somável”. Esta observação é igualmente
válida para definições, e usamos como exemplo 3.1.3:
Definição 5.2.1 (Funções Vectoriais: Mensurabilidade e Integral). Se E ⊆
M
S ⊆ X, e f : S → R , donde f = (f1 , f2 , · · · , fM ), com fk : S → R, então
a) f é M-mensurável em E se e só se as funções fk são M-mensuráveis
em E, para 1 ≤ k ≤ M , no sentido de 5.1.8.

b) f é µ-somável em E se e só as funções fk são µ-somáveis em E.


252 Capı́tulo 5. Outros Integrais de Lebesgue

c) Se f é M-mensurável em E, o integral de lebesgue de f (em


ordem a µ) em E é dado por
Z Z Z Z 
f dµ = f1 dµ, f2 dµ, · · · , fM dµ ,
E E E E

sempre que todos os integrais de Lebesgue à direita estão definidos.


Exemplo 5.2.2.
funções mensuráveis complexas: Seja f : X → C uma função complexa,
donde f (x) = u(x) + iv(x), com u, v : X → R. A função f é M-mensurável
se e só se as funções u, e v são M-mensuráveis, e o integral de f é dado por
Z Z Z
f dµ = udµ + i vdµ,
E E E

sempre que existem os integrais de u e de v no conjunto E.

Em particular, os enunciados e demonstrações dos resultados 3.1.6 a


3.1.10 não requerem qualquer alteração substancial. Ilustramos este facto
com a proposição 3.1.10, que pode ser ligeiramente simplificada com termi-
nologia introduzida no Capı́tulo anterior.

Teorema 5.2.3. Se f : X → [0, +∞] é M-mensurável, e se f ≥ 0 µ-qtp,


ou se f : X → R é µ-somável, e
Z
λ(E) = f dµ, para qualquer E ∈ M,
E

então λ é uma medida em M, e λ ≪ µ.

Demonstração. Provamos este teorema apenas para f não-negativa. Para


mostrar que λ é uma medida de Radon basta-nos provar que λ é σ-aditiva,
já que λ(∅) =S0. Consideramos conjuntos disjuntos e M-mensuráveis En
tais que E = ∞ n=1 En , e observamos que:


[
ΩE (f ) = ΩEn (f ), onde os conjuntos ΩEn (f ) são disjuntos, donde
n=1


X ∞
X
(µ ⊗ m)(ΩE (f )) = (µ ⊗ m)(ΩEn (f )), i.e., λ(E) = λ(En ).
n=1 n=1

Como ΩE (f ) ⊆ E × R, é claro que, se µ(E) = 0, então

0 ≤ λ(E) = (µ ⊗ m)(ΩE (f )) ≤ (µ ⊗ m)(E × R) = µ(E)m(R) = 0.


5.2. Funções Mensuráveis e Integrais 253

Alguns dos enunciados que apresentámos não são válidos para qualquer
espaço de medida, e requerem entre as suas hipóteses propriedades mais es-
pecı́ficas do espaço em causa. Por exemplo, a propriedade 3.1.5 é válida se
o espaço (X, M, µ) for completo, e o teorema 3.1.11 é válido para espaços
σ-finitos. Em certos casos, pode ser vantajoso enfraquecer as conclusões,
sem perder generalidade nas hipóteses. Por exemplo, o teorema 3.1.11 pode
ser modificado como se segue

Teorema 5.2.4. Seja E ⊆ X, e f : E → R. Então(2 )

ΩE (f ) ∈ M⊗B(R) ⇔ ΣE (f ) ∈ M⊗B(R) ⇒ (µ⊗m)(ΩE (f )) = (µ⊗m)(ΣE (f )).

Os teoremas sobre limites e integrais que estudámos na secção 3.2 são,


essencialmente, corolários do teorema da convergência monótona para me-
didas, que é válido para qualquer medida. Estes resultados são por isso
aplicáveis em qualquer espaço de medida (X, M, µ).
O lema 3.2.1 é independente do domı́nio de definição das funções em
causa, ou seja, é aplicável a funções fn : E → R, com E ⊆ X. O teorema
3.2.2, que é sobretudo um corolário deste lema, pode agora ser enunciado
como se segue:

Teorema 5.2.5. Se as funções fn : E → R são M-mensuráveis em E ⊆ X,


então as funções dadas por g(x) = sup{fn (x) : n ∈ N}, h(x) = inf{fn (x) :
n ∈ N}, G(x) = lim supn→∞ fn (x) e H(x) = lim inf n→∞ fn (x) são M-men-
suráveis em E. Se f (x) = limn→∞ fn (x) para qualquer x ∈ E então f é
M-mensurável em E.

Este teorema, combinado com o teorema da convergência monótona de


Lebesgue para medidas, conduz directamente aos clássicos resultados sobre
limites e integrais, correspondentes aos teoremas 3.2.4 a 3.2.8, que não têm
qualquer alteração nos respectivos enunciados:

Teorema 5.2.6 (Teorema de Beppo Levi). Se as funções fn : E → [0, +∞]


são M-mensuráveis em E ⊆ X, e formam uma sucessão crescente, então
f (x) = limn→∞ fn (x) é M-mensurável em E, e
Z Z
lim fn dµ = lim fn dµ.
E n→∞ n→∞ E

2
Os conjuntos ΣE (f ) = Σ+ −
E (f ) ∪ ΣE (f ) definem-se por

Σ+
E (f ) = {(x, y) ∈ X × R : x ∈ E, e 0 < y ≤ f (x)},

Σ−
E (f ) = {(x, y) ∈ X × R : x ∈ E, e 0 > y ≥ f (x)}.
254 Capı́tulo 5. Outros Integrais de Lebesgue

Teorema 5.2.7 (Teorema de Beppo Levi (II)). Se as funções fn : E →


[0, +∞] são M-mensuráveis em E ⊆ X, e formam uma sucessão decres-
cente, então f (x) = limn→∞ fn (x) é M-mensurável em E, e se alguma
função fn é µ-somável, então
Z Z
lim fn dµ = lim fn dµ.
E n→∞ n→∞ E

Lema 5.2.8 (Lema de Fatou). Se as funções fn : E → [0, +∞] são M-


mensuráveis em E ⊆ X, então
Z Z
lim inf fn dµ ≤ lim inf fn dµ.
E n→∞ n→∞ E

Teorema 5.2.9 (Lema de Fatou (II)). Se as funções fn : E → [0, +∞] são


M-mensuráveis em E ⊆ X, e existe uma função µ-somável F : E → [0, +∞]
tal que fn (x) ≤ F (x), µ-qtp em E, então
Z Z
lim sup fn dµ ≤ lim sup fn dµ.
n→∞ E E n→∞

Estes resultados provam-se com adaptações óbvias dos argumentos que


apresentámos em 3.2. Ilustramos esta afirmação com a demonstração do
teorema de Beppo Levi.

Demonstração. Sabemos que f (x) = sup{fn (x) : n ∈ N} é M-mensurável,


de acordo com 5.2.5. Sabemos igualmente que

[
Ω+
E (f ) = Ω+
E (fn ).
n=1

Como os conjuntos Ω+ E (fn ) formam uma sucessão crescente, segue-se, do


teorema da convergência monótona para medidas 2.1.12, que
Z Z
+ +
(µ ⊗ m)(ΩE (fn )) → (µ ⊗ m)(ΩE (f )), i.e., fn dµ → f dµ.
E E

A proposição 3.4.6, sobre funções simples mensuráveis, mantem-se inal-


terada, exactamente com a mesma demonstração:

Proposição 5.2.10. Seja E ⊆ S ⊆ X, c ∈ R, e s, t : S → R funções


simples M-mensuráveis em E. Temos então:

a) cs, s+ , s− , |s|, s + t, e st são simples, e M-mensuráveis em E.

Se s e t são não-negativas em E, ou se s e t são µ-somáveis em E,


temos ainda
5.2. Funções Mensuráveis e Integrais 255

R R R
b) Aditividade:E (s + t)dµ = E sdµ + E tdµ.
R R
c) Homogeneidade: E (cs)dµ = c( E sdµ).

Os resultados sobre funções mensuráveis que estudámos em 3.4 depen-


dem, em larga medida, do facto das funções mensuráveis serem limites de
funções simples mensuráveis, o que provámos em 3.4.7. Este último resul-
tado é também válido em qualquer espaço de medida.

Teorema 5.2.11. Se f : E → R, onde E ⊆ X, então f é M-mensurável


se e só existe uma sucessão de funções simples M-mensuráveis sn : E → R
tais que sn (x) → f (x), e |sn (x)| ր |f (x)|. Neste caso, e se f ≥ 0, ou se f
é µ-somável, temos ainda que
Z Z
sn dµ → f dµ.
E E

O teorema 3.4.9, sobre operações algébricas que envolvem funções com


valores em R, não requer qualquer adaptação:

Teorema 5.2.12. Se f, g : E → R são M-mensuráveis, então

a) A função f g é M-mensurável em E.

b) As funções f +g e f −g são M-mensuráveis, nos conjuntos onde estão


definidas.

O teorema 5.2.13 é uma versão abstracta de 3.4.10, e é um corolário


directo de 5.2.11, tal como 3.4.10 é um corolário de 3.4.7.

Teorema 5.2.13. Sejam f, g : E → R M-mensuráveis em E, e c ∈ R. Se


f, g ≥ 0 em E, ou se f e g são finitas e µ-somáveis em E, então
R R R
a) Aditividade: E (f + g)dµ = E f dµ + E gdµ.
R R 
b) Homogeneidade: E (cf )dµ = c E f dµ .

O teorema 3.4.11, sobre limites de sucessões de funções mensuráveis, é


também completamente geral.

Teorema 5.2.14. Se as funções fn : E → R são M-mensuráveis em E ⊆


X, F ⊆ E é o conjunto onde existe limn→∞ fn (x), e f : F → R é dada por
f (x) = limn→∞ fn (x), então f é M-mensurável em F .

Os diversos critérios de mensurabilidade que vimos em 3.4.14, e aplicáveis


a funções definidas em conjuntos mensuráveis, não sofrem qualquer alteração.

Teorema 5.2.15. Seja E ⊆ X um conjunto M-mensurável. Se f : E → R,


então as seguintes condições são equivalentes:
256 Capı́tulo 5. Outros Integrais de Lebesgue

a) {x ∈ E : f (x) > λ} é M-mensurável, para qualquer λ ∈ R.

b) f −1 (I) é M-mensurável, para qualquer intervalo I ⊆ R.

c) f é M-mensurável em E.

O resultado em 3.4.16, relativo à composição com funções Borel-mensu-


ráveis, é aplicável independentemente da natureza da σ-álgebra M:

Teorema 5.2.16. Seja E ⊆ RN um conjunto M-mensurável, e f1 , f2 ,


· · · , fM : E → R funções M-mensuráveis em E. Se f = (f1 , f2 , · · · , fM ),
e g : RM → R é Borel-mensurável, então a composta h = g ◦ f é M-
mensurável em E.

A relação “≃” de equivalência entre funções, i.e., de igualdade qtp, é


facilmente generalizável a espaços de medida arbitrários. Se f, g : X → R,
dizemos que f ≃ g se e só se µ({x ∈ X : f (x) 6= g(x)} = 0. Designaremos
por Fµ (E) o espaço das classes de equivalência de funções f : E → R M-
mensuráveis em E, e por L1µ (E) o correspondente espaço das classes de
funções µ-somáveis.
R Este espaço é um espaço vectorial normado, com a
norma kf k1 = E |f | dµ.
Exemplo 5.2.17.
o espaço ℓ1 : Se µ é a medida de contagem, então a relação ≃ é a igualdade
usual, i.e., f ≃ g ⇔ f = g. O espaço Fµ (N) é o conjunto de todas as sucessões
P∞
reais, e o espaço L1µ (N) é formado pelas sucessões reais tais que n=1 |f (n)| <
∞. Este espaço é usualmente designado por ℓ1 .

O Teorema da Convergência Dominada pode enunciar-se como se segue:

Teorema 5.2.18 (Teorema da Convergência Dominada de Lebesgue). Sendo


fn ∈ L1µ (E), suponha-se que existe uma função somável F : E → [0, +∞] tal
que |fn (x)| ≤ F (x), µ-qtp em E, e limn→∞ fn (x) existe µ-qtp em E. Seja
ainda f (x) = limn→∞ fn (x) onde este limite existe. Temos então

a) f ∈ L1µ (E),

b) fn → f em L1µ (E), e em particular,


R R
c) E fn dµ → E f dµ, quando n → ∞.

Demonstração. Supomos sem perda de generalidade que

• As funções fn e F são finitas em E,

• f (x) = limn→∞ fn (x), para qualquer x ∈ E, e

• |fn (x)| ≤ F (x), também para qualquer x ∈ E.


5.2. Funções Mensuráveis e Integrais 257

A função f é M-mensurável em E. Como |f (x)| ≤ F (x), concluı́mos que f é


µ-somável e finita em E. Consideramos as funções auxiliares gn = |fn −f | ≥
0, e aplicamos o Lema de Fatou (II), para concluir que
Z Z
lim sup |fn − f |dµ ≤ 0, ou lim |fn − f |dµ = 0.
n→∞ E n→∞ E

Segue-se da desigualdade triangular que


Z Z Z

0 ≤ fn dµ − f dµ ≤ |fn − f | dµ → 0.
E E E

Os teoremas sobre a integração de séries de funções mensuráveis não


sofrem modificações, e L1µ (E) é sempre um espaço de Banach.

Teorema 5.2.19. Se as funções fn : E → [0, +∞] são M-mensuráveis,


então
∞ ∞ Z
Z ! 
X X
fn dµ = fn dµ .
E n=1 n=1 E

Teorema 5.2.20. Suponha-se que fn ∈ L1µ (E) e


X ∞ Z
X
kfn k1 = ( |fn |dµ) < +∞.
n=1 n=1 E

Temos então que:


P∞
a) A série n=1 fn (x) converge absolutamente µ-qtp em E,
P∞
b) Existem funções M-mensuráveis f : E → R tais que f (x) = n=1 fn (x),
µ-qtp em E, e
P∞
c) Se f : E → R é M-mensurável em E e f (x) = n=1 fn (x), µ-qtp em
E, então f é µ-somável em E, e

Z m
X Z ∞
X ∞ Z
X
lim |f − fn (x)|dµ = 0, donde ( fn )dµ = ( fn dµ).
m→∞ E E n=1 E
n=1 n=1

Se fn ∈ L1µ (E) e ∞
P
Corolário 5.2.21. n=1 kfn k1 < +∞, então existe f ∈
L1µ (E) tal que k m particular, L1µ (E) é um espaço de
P
n=1 fn − f k 1 → 0. Em
Banach.
258 Capı́tulo 5. Outros Integrais de Lebesgue

Vimos na secção 3.6 diversos resultados sobre a aproximação de funções


mensuráveis por funções contı́nuas, dos quais o principal é o teorema de
Vitali-Luzin. Estes resultados podem ser facilmente adaptados a qualquer
medida de Lebesgue-Stieltjes regular e σ-finita, e são válidos em particular
para qualquer medida de Lebesgue-Stieltjes localmente finita, como é o caso
da própria medida de Lebesgue.
Supomos então que µ é uma medida de Radon σ-finita, definida e regular
em M ⊇ B(RN ). O argumento utilizado para demonstrar o corolário 3.6.3
é aplicável a µ, de acordo com o corolário 4.4.6 e), e temos portanto

Lema 5.2.22. Sendo E ⊆ RN um conjunto mensurável com µ(E) < ∞, e


ε > 0, existe f ∈ Cc (RN ) tal que

0 ≤ f ≤ 1, e µ({x ∈ RN : f (x) 6= χE (x)}) < ε.

É simples generalizar o teorema 3.6.1 para qualquer espaço de medida,


e obtemos assim uma versão mais geral do:

Teorema 5.2.23 (de Vitali-Luzin). Seja f : RN → [0, 1] uma função M-


mensurável com suporte num conjunto de medida finita. Se ε > 0, então
existe g ∈ Cc (RN ) tal que

0 ≤ g ≤ 1, e µ x ∈ RN : f (x) 6= g(x) < ε.


 

Os corolários do teorema de Vitali-Luzin que apresentámos na secção


3.6 são aplicáveis com adaptações óbvias ao presente contexto. Deve notar-
se apenas que 3.6.6 requer uma modificação mais significativa, porque só é
válido para medidas completas. Podemos enunciá-lo como se segue, supondo
que (RN , Mµ , µ) é a menor extensão completa do espaço de medida original:

Corolário 5.2.24. Seja f : RN → R finita µ-qtp. Temos então,

a) Se f é M-mensurável existem funções contı́nuas fn : RN → R tais


que fn (x) → f (x) µ-qtp em RN .

b) f é Mµ -mensurável se e só se existem funções contı́nuas fn : RN → R


tais que fn (x) → f (x) µ-qtp em RN .

Aproveitamos para generalizar a noção de integral de Lebesgue em ordem


à medida de Radon µ para o caso em que µ é real (ou complexa) no espaço
(X, M), e f é uma função M-mensurável.

Definição 5.2.25 (Integral em ordem a medidas reais). Se f : X → R é


M-mensurável em E ⊆ X, e µ é uma medida real em M, o integral de f
em E, em ordem a µ é dado por:
Z Z Z
f dµ = f dµ+ − f dµ− ,
E E E
5.2. Funções Mensuráveis e Integrais 259

se os integrais em ordem às medidas de Radon µ+ e µ− estão definidos, e a


expressão acima não conduz a indeterminações. R
Dizemos que f é µ-somável em E se e só se E f dµ < ∞.
Exemplos 5.2.26.
1. Se µ é uma medida real então f é µ-somável em E se e só se f é |µ|-somável
em E, no sentido da definição 5.1.8.
2. Se µ é uma medida complexa então µ = α + iβ, onde α e β são medidas reais,
e podemos definir Z Z Z
f dµ = f dα + i f dβ,
X X X
sempre que os integrais à direita estão definidos.
3. Se µ é uma medida real então L1µ (E) = L1|µ| (E), e o integral definido φ :
L1µ (E) → R, dado por φ(f ) = E f dµ é uma transformação linear. Se µ é de
R

Radon a transformação é também monótona, i.e., f ≤ g ⇒ φ(f ) ≤ φ(g).

R
É interessante observar que, na expressão X f dµ, podemos considerar,
em alternativa, a função f como fixa, e a medida µ como variável. Por
exemplo, se f : E → R é mensurável e limitada em E, então é µ-somável,
qualquer que seja a medida real µ definida em M.
Exemplos 5.2.27.
1. Seja M (B(RN )) o espaço de todas as medidas reais definidas em B(RN ).
Se f : RN → R é B-mensurável e limitada em E ⊆ RN , podemos definir
Ψ : M (B(RN )) → R por Z
Ψ(µ) = f dµ.
E

2. Em particular, se f ∈ C0 (RN ) e µ ∈ M (B(RN )), podemos definir


Z
hf, µi = f dµ.
RN

φ(f ) = hf, µi é um funcional linear em C0 (RN ), e o teorema 5.2.28 mostra que


φ é contı́nuo na norma de L∞ . Mostra igualmente que Ψ(µ) = hf, µi é um
funcional linear contı́nuo no espaço de Banach M (B(RN )).(3 )

O próximo teorema indica algumas identidades sugeridas por estas ob-


servações. A respectiva demonstração é o exercı́cio 9.
Teorema 5.2.28. Seja f : X → R uma função M-mensurável, e µ e λ
medidas definidas em (X, M). Temos então:
3
Um dos famosos Teoremas de Representação de Riesz afirma que todos os funcionais
lineares contı́nuos no espaço de Banach C0 (RN ) (com a norma de L∞ ) são da forma
φ(f ) = hf, µi, com µ ∈ M (B(RN )), conforme veremos mais adiante.
260 Capı́tulo 5. Outros Integrais de Lebesgue

a) Aditividade: Se f , µ e λ são não-negativas, ou se f é µ-somável e


λ-somável, Z Z Z
f d (µ + λ) = f dµ + f dλ.
X X X

b) Homogeneidade: Se f , µ e c ∈ R são não-negativos, ou se f é µ-


somável e c ∈ R, Z Z 
f d (cµ) = c f dµ .
X X

c) Desigualdade Triangular: Se f é µ-somável,


Z Z

f dµ ≤ |f | d(|µ|).

X X

d) Continuidade: Supondo que kf k∞ = sup{|f (x)| : x ∈ X} < ∞, e


sendo kµk = |µ|(X) < ∞, então f é µ-somável, e
Z

f dµ ≤ kf k kµk .

X

Exercı́cios.

1. Seja (X, Mµ , µ) a menor extensão completa de (X, M, µ). Prove que f :


E → R é Mµ -mensurável em E se e só se existe uma função g : E → R,
M-mensurável em E, tal que g ≃ f em E.

2. Prove que o gráfico da função M-mensurável f tem medida µ⊗m nula, desde
que o espaço (X, M, µ) seja σ-finito, ou a função f seja µ-somável. sugestão:
suponha primeiro que µ(X) < +∞.

3. Considere o espaço (R, P(R), #), e a função f : R → R dada por f (x) = x.

a) Determine a medida (# ⊗ m)(GE (f )).


b) Determine as funções A(x) =Rm(ΩE (f )xR), e B(y) = #(ΩE (f )y ). Deter-
mine igualmente os integrais R Ad#, e R Bdm.

4. Dado um espaço (X, M, µ), considere uma função M-mensurável f : X →


[0, +∞], e seja λ o respectivo integral
R indefinido.
R Mostre que se g : X →
[0, +∞] é M-mensurável então E gdλ = E gf dµ. Se g : X → R é µ-somável
temos necessariamente que g : X → R é λ-somável? sugestão: Suponha
primeiro que g é simples.

5. Sejam µ e ν medidas em M, e µ a menor extensão completa de µ.

a) Qual é a relação entre os espaços L1µ e Lµ1 ?


b) Qual é a relação entre os espaços L1µ e L1ν , quando µ ≪ ν?
5.3. O Teorema de Fubini-Lebesgue 261

c) Supondo que δnPé a usual medida de Dirac no ponto n ∈ N, ∆n =


Pn ∞ 1 1 1
k=1 δk , e ∆ = n=1 δn , o que são os espaços Lδ0 (R), L∆n (R), e L∆ (R)?
d) Supondo que ξ é a medida de Cantor, qual é a relação entre os espaços
L1ξ ([0, 1] e L1m ([0, 1]?

6. Suponha que f : X → R é µ-somável. Prove que para qualquer ε > 0 existe


δ > 0 tal que, para qualquer conjunto M-mensurável E,
Z Z

µ(E) < δ =⇒ f dµ ≤
|f | dµ < ε.
E E

7. Suponha que o espaço (X, M, µ) é completo, f : X → R, e f (x) = 0, µ-qtp


em X. A função f é sempre M-mensurável?

8. Suponha que µ, λ são medidas de Radon em B(R), finitas em conjuntos lim-


itados, e são as derivadas generalizadas de, respectivamente, f, g : R → R.
a) Suponha que f e g são contı́nuas. Prove a seguinte fórmula de integração
por partes:
Z b Z b
f dλ + gdµ = f (b)g(b) − f (a)g(a)
a a

b) A fórmula anterior é válida, mesmo que f e/ou g não sejam contı́nuas?


c) Supondo que µ e λ são medidas reais, a fórmula anterior é válida, quando
f e g são contı́nuas?
d) Suponha que h : R → R é B-mensurável, e prove a seguinte fórmula de
integração por substituição:
Z Z
h ◦ f dµ = hdm
E f (E)

9. Demonstre o teorema 5.2.28. Pode ser conveniente provar primeiro:


a) Se f é Rsimples, mensurável
R e não Rnegativa, e µ e λ são medidas de Radon,
então X f d (µ + λ) = X f dµ + X f dλ.
b) RSe f é mensurável
R e não negativa,
R e µ e λ são medidas de Radon, então
X
f d (µ + λ) = X
f dµ + X
f dλ.

5.3 O Teorema de Fubini-Lebesgue


Estudamos nesta secção versões mais abstractas do teorema de Fubini-
Lebesgue, agora aplicáveis no produto cartesiano de quaisquer dois espaços
de medida (X, M, µ) e (Y, N , ν). A teoria que vamos desenvolver exige a
definição de um espaço de medida com suporte no produto cartesiano dos
espaços de medida indicados, e para isso demonstraremos o seguinte resul-
tado.
262 Capı́tulo 5. Outros Integrais de Lebesgue

Teorema 5.3.1. Dados espaços (X, M, µ) e (Y, N , ν), existe um espaço


(X × Y, M ⊗ N , µ ⊗ ν) com (µ ⊗ ν)(A × B) = µ(A)ν(B), para quaisquer
conjuntos A ∈ M e B ∈ N .
O caso particular deste teorema com (Y, N , ν) = (R, B(R), m) é o teo-
rema 5.1.7, que estudámos a propósito da definição de integrais de Lebesgue
“em ordem à medida µ”. A demonstração de 5.3.1 segue aliás os mesmos
passos da demonstração de 5.1.7, mas usando agora os resultados da secção
anterior sobre integrais de Lebesgue em ordem a uma qualquer medida.
Fixados os espaços de medida (X, M, µ) e (Y, N , ν), definimos:
• A classe R formada pelos “rectângulos” A × B ⊆ X × Y , com
A ∈ M e B ∈ N,

• A função λ : R → [0, +∞] dada por ζ(A × B) = µ(A)ν(B), e

• A classe E formada pelas uniões finitas de “rectângulos” em R, ditos


novamente conjuntos “elementares”. Deixamos para o exercı́cio 1
verificar que E é uma álgebra em X × Y .
Lema 5.3.2. A função λ é σ-aditiva na classe R.
Demonstração. Segue precisamente os passos da demonstração de 5.1.18:
Seja A × B = ∪∞n=1 An × Bn , com A, An ∈ M, B, Bn ∈ N , e os “rectângulos”
An × Bn disjuntos. As secções (A × B)y e (An × Bn )y , com y ∈ Y , são
dadas, novamente, por:
 
A, se y ∈ B, An , se y ∈ Bn ,
• (A × B)y = , e (An × Bn )y =
∅, se y 6∈ B. ∅, se y 6∈ Bn .
Segue-se, mais uma vez, e por razões evidentes, que
   
µ (A × B)y = µ(A)χB (y) e µ (An × Bn )y = µ(An )χBn (y), para y ∈ Y.

As secções (An × Bn )y são conjuntos disjuntos, e, por isso,



X
µ(A)χB (y) = µ(An )χBn (y).
n=1

Integramos esta identidade termo-a-termo, usando o teorema 5.2.19. Temos


novamente

X ∞
X
µ(A)ν(B) = µ(An )ν(Bn ), i.e., λ(A × B) = λ(An × Bn ).
n=1 n=1

Podemos alargar a definição de λ à classe E dos conjuntos “elementares”,


demonstrando o próximo lema exactamente como 5.1.19.
5.3. O Teorema de Fubini-Lebesgue 263

Lema 5.3.3. Se E é “elementar”, i.e., se E ∈ E, então

a) E é uma união finita de “rectângulos” em R disjuntos, e

b) Se P = {A1 × B1 , · · · , Am × Bm } e Q = {C1 × D1 , · · · , Cn × Dn } são


partições de E em “rectângulos” em R, então
m
X n
X
λ(Aj × Bj ) = λ(Ck × Dk ).
j=1 k=1

Definição 5.3.4. Se E ∈ E e P = {A1 × B1 , A2 × B2 , · · · , Am × Bm } é uma


partição de E em conjuntos de R, definimos
m
X m
X
λ(E) = λ(Aj × Bj ) = µ(Aj )ν(Bj ).
j=1 j=1

É claro que a função λ é σ-aditiva na álgebra E, e segue-se do teorema


de extensão de Hahn (5.1.16) que:

Teorema 5.3.5. Existe um espaço de medida (X ×Y, K, ρ) tal que R ⊆ E ⊆


K e ρ(E) = λ(E), para qualquer conjunto E ∈ E.

A σ-álgebra K referida acima contém a classe R, e por isso M ⊗ N ⊆ K.


A restrição da medida ρ à σ-álgebra M ⊗ N é a medida µ ⊗ ν, o que termina
a demonstração de 5.3.1. Temos naturalmente que

X ∞
[
(µ ⊗ ν)(E) = inf{ µ(An )ν(Bn ) : E ⊆ An × Bn , An ∈ M, Bn ∈ N }.
n=1 n=1

Estabelecido assim o primeiro resultado que nos tı́nhamos proposto de-


monstrar nesta secção, passamos ao estudo do teorema de Fubini-Lebesgue
na forma aplicável a conjuntos:

Teorema 5.3.6 (Teorema de Fubini-Lebesgue (I)). Dados espaços de me-


dida σ-finitos (X, M, µ) e (Y, N , ν), e supondo que o conjunto E ⊆ X × Y
é M ⊗ N -mensurável, então

a) As secções Ex = {y ∈ Y : (x, y) ∈ E} ∈ N , para todo o x ∈ X,

b) As secções E y = {x ∈ Y : (x, y) ∈ E} ∈ M, para todo o y ∈ Y ,

c) A função A(x) = ν(Ex ) é M-mensurável em X,

d) A função B(y) = µ(E y ) é N -mensurável em Y , e


Z Z
ν(Ex )dµ = µ(E y )dν = (µ ⊗ ν)(E).
X Y
264 Capı́tulo 5. Outros Integrais de Lebesgue

Para provar este resultado, consideramos a classe FL(µ ⊗ ν), formada


pelos conjuntos em M ⊗ N que satisfazem todas as condições indicadas em
5.3.6. Note que a definição seguinte ignora as condições 5.3.6 a) e b), já que
estas são satisfeitas por todos os conjuntos em M⊗N , conforme verificámos
em 5.1.10.
Definição 5.3.7 (A Classe FL(µ ⊗ ν)). Designamos por FL(µ ⊗ ν) a classe
dos conjuntos E ∈ M ⊗ N tais que:
a) A função A(x) = ν(Ex ) é M-mensurável em X,
b) A função B(y) = µ(E y ) é N -mensurável em Y , e
Z Z
ν(Ex )dµ = µ(E y )dν = (µ ⊗ ν)(E).
X Y

Nesta terminologia, o teorema 5.3.6 é a identidade FL(µ ⊗ ν) = M ⊗ N .


Mostramos a seguir que FL(µ ⊗ ν) contém os conjuntos “elementares”.
Lema 5.3.8. E ⊆ FL(µ ⊗ ν).
Demonstração. Suponha-se que E = A × B é um “rectângulo”. Temos
A ∈ M e B ∈ N , e sabemos que
A(x) = ν(Ex ) = ν(B)χA (x), e B(y) = µ(E y ) = µ(A)χB (y).
É evidente que estas funções são mensuráveis, e que
Z Z
Adµ =ν(B) χA dµ = ν(B)µ(A) = (µ ⊗ ν)(E) = µ(A)ν(B) =
X X
Z Z
=µ(A) χB dν = Bdν.
Y Y

Se E é um conjunto “elementar”, temos


m
[
E= An × Bn , com An ∈ M e Bn ∈ N ,
n=1

onde podemos supor que os “rectângulos” An ×Bn são disjuntos. Um cálculo


simples, semelhante ao que fizémos na demonstração de 5.3.2, mostra que
m
X m
X
A(x) = ν(Ex ) = ν(Bn )χAn (x) e B(y) = µ(E y ) = µ(An )χBn (y).
n=1 n=1

A e B são, portanto, funções simples mensuráveis, respectivamente em


(X, M), e em (Y, N ), e temos
Z Xm Z
Adµ = ν(Bn )µ(An ) = (µ ⊗ ν)(E) = Bdν.
X n=1 Y
5.3. O Teorema de Fubini-Lebesgue 265

Como M⊗N é a σ-álgebra gerada pelos “rectângulos”, provarı́amos que


M⊗N ⊆ FL(µ⊗ν), e portanto que M⊗N = FL(µ⊗ν), estabelecendo que
FL(µ⊗ν) é uma σ-álgebra, mas esta ideia não é fácil de aplicar directamente.
É mais simples aproveitar outras propriedades de FL(µ ⊗ ν):
Lema 5.3.9. Suponha-se que os conjuntos En , Fn ∈ FL(µ ⊗ ν). Temos
então:
a) Se En ր E = ∪∞
n=1 En , então E ∈ FL(µ ⊗ ν), e

b) Se Fn ց F = ∩∞
n=1 Fn , então F ∈ FL(µ ⊗ ν).

Demonstração. Demonstramos a), deixando b) para o exercı́cio 2. O ar-


gumento que utilizamos é idêntico para as secções Ex e E y , e ilustramo-lo
usando as secções Ex . Notamos como evidente que:

[ ∞
[
En ր E = En =⇒ (En )x ր (En )x = Ex .
n=1 n=1

Consideramos as funções A(x) = ν(Ex ) e An (x) = ν((En )x ). As funções An


são M-mensuráveis por hipótese, e o teorema da convergência monótona
para medidas mostra que An ր A. Concluı́mos do teorema de Beppo Levi
que A é M-mensurável, e
Z Z
(i) An dµ → Adµ.
X X

Como En ∈ FL(µ ⊗ ν), e ainda do teorema da convergência monótona para


medidas, temos
Z
(ii) An dµ = (µ ⊗ ν)(En ) → (µ ⊗ ν)(E).
X
R
Obtemos assim que (µ ⊗ ν)(E) = X Adµ, i.e., E ∈ FL(µ ⊗ ν).

As seguintes noções abstractas são sugeridas pelo lema anterior.


Definição 5.3.10 (Classe Monótona). Seja C uma classe de subconjuntos
do conjunto Z. Dizemos que C é uma classe monótona se e só se:
a) En ∈ C e En ր E =⇒ E ∈ C, e

b) Fn ∈ C e Fn ց F =⇒ F ∈ C.
Exemplos 5.3.11.
1. FL(µ ⊗ ν) é uma classe monótona, de acordo com 5.3.9.
2. Qualquer σ-álgebra, em particular M⊗N , é igualmente uma classe monótona.
3. A classe dos intervalos em R não é uma álgebra, mas é uma classe monótona.
266 Capı́tulo 5. Outros Integrais de Lebesgue

4. Os conjuntos elementares em [0, 1] formam uma álgebra que não é monótona.

Deixamos para o exercı́cio 3 a demonstração do seguinte lema.


Lema 5.3.12. Se A é uma classe monótona, então A é uma σ-álgebra se e
só se A é uma álgebra.
Apresentámos no capı́tulo 2 a definição de σ-álgebra gerada por uma
classe de conjuntos. Observamos agora que o mesmo procedimento pode ser
aplicado também a classes monótonas.
Definição 5.3.13 (Classe Monótona Gerada por S). Se S é uma classe
de subconjuntos do conjunto Z, a classe monótona gerada por S é a
intersecção de todas as classes monótonas em Z que contém S, e designa-se
aqui mon(S).
É muito fácil verificar que mon(S) é a menor classe monótona que contém
a classe S (exercı́cio 6). Temos ainda:
Lema 5.3.14. Se S é uma álgebra então mon(S) é uma σ-álgebra. Em
particular, mon(E) é uma σ-álgebra que contém E.
Demonstração. Dado E ∈ mon(S), consideramos a classe auxiliar
comp(E) = {F ∈ mon(S) : E − F, F − E, E ∪ F ∈ mon(S)} ⊆ mon(S).
Provamos primeiro que:
(i) Se E ∈ S então S ⊆ comp(E) = mon(S).

Demonstração. comp(E) é uma classe monótona (exercı́cio 5). Como


S é por hipótese uma álgebra,
E, F ∈ S =⇒ E − F, F − E, E ∪ F ∈ S ⊆ mon(S), i.e.
S ⊆ comp(E), e comp(E) é uma classe monótona que contém S.
Como mon(S) é a classe monótona gerada por S, temos comp(E) ⊇
mon(S), donde comp(E) = mon(S).

Provamos agora que:


(ii) Se E ∈ mon(S) então S ⊆ comp(E) = mon(S), e mon(S) é uma
semi-álgebra.

Demonstração. comp(E) é ainda uma classe monótona. De acordo


com (i), se F ∈ S temos E ∈ comp(F ), i.e., F ∈ comp(E), e S ⊆
comp(E). comp(E) é mais uma vez uma classe monótona que contém
S, donde comp(E) ⊇ mon(S), e comp(E) = mon(S). Em particular,
se E, F ∈ mon(S) então E − F, F − E, E ∪ F ∈ mon(S), e mon(S) é
uma semi-álgebra.
5.3. O Teorema de Fubini-Lebesgue 267

Como S é uma álgebra temos Z ∈ S, donde Z ∈ mon(S), e mon(S) é


também uma álgebra. Segue-se de 5.3.12 que mon(S) é uma σ-álgebra.

A demonstração do teorema de Fubini-Lebesgue 5.3.6 é uma aplicação


muito simples deste último resultado:

Demonstração. Limitamo-nos a observar que

• M ⊗ N ⊆ mon(E), porque mon(E) é uma σ-álgebra que contém E, e

• mon(E) ⊆ FL(µ ⊗ ν), porque FL(µ ⊗ ν) é uma classe monótona que


contém E.

Como FL(µ ⊗ ν) ⊆ M ⊗ N , temos M ⊗ N = mon(E) = FL(µ ⊗ ν).

Estabelecido o teorema de Fubini-Lebesgue na forma aplicável a conjun-


tos, é possı́vel aplicá-lo igualmente a funções. Consideramos a seguir o caso
de funções simples M ⊗ N -mensuráveis e não-negativas.

Lema 5.3.15. Se f : X × Y → [0, +∞[ é simples e M ⊗ N -mensurável,

a) As funções gx (y) = f (x, y) são simples e N -mensuráveis, para todo o


x ∈ X,

b) As funções hy (x) = f (x, y) são simples e M-mensuráveis, para todo


o y ∈Y,
R
c) A função A(x) = Y gx dν é M-mensurável e não-negativa,
R
d) A função B(y) = X hy dµ é N -mensurável e não-negativa, e

Z Z Z  Z Z  Z ZZ
Adµ = gx dν dµ = hy dµ dν = Bdν = f d(µ⊗ν).
X X Y Y X Y X×Y

Demonstração. Suponha-se que E é um conjunto M ⊗ N -mensurável, e


f = χE é a função caracterı́stica de E, donde
ZZ
(µ ⊗ ν)(E) = f d(µ ⊗ ν).
X×Y

De acordo com o teorema 5.3.6 aplicado a E, temos que:

• Os conjuntos Ex são N -mensuráveis, i.e.,

• As funções gx (y) = f (x, y) = χEx (y) são N -mensuráveis,


R
• A função A(x) = ν(Ex ) = Y gx dν é M-mensurável, e
268 Capı́tulo 5. Outros Integrais de Lebesgue

Z Z Z 
(µ ⊗ ν)(E) = Adµ = gx dν dµ.
X X Y

O resultado fica assim demonstrado para a função A. É claro que o


mesmo argumento é aplicável à função B, o que termina a demonstração
quando f é uma função caracterı́stica.
Se f é uma função simples, então f é uma combinação linear finita de
funções caracterı́sticas, e o resultado segue-se da linearidade e homogenei-
dade do integral.

O teorema de Fubini-Lebesgue para funções mensuráveis não-negativas


é um corolário do resultado anterior, obtido aproximando a função f por
funções simples mensuráveis. A sua demonstração é o exercı́cio 7.
Teorema 5.3.16 (Teorema de Fubini-Lebesgue (II)). Se f : X × Y →
[0, +∞] é M ⊗ N -mensurável,
a) As funções gx (y) = f (x, y) são N -mensuráveis, para todo o x ∈ X,

b) As funções hy (x) = f (x, y) são M-mensuráveis, para todo o y ∈ Y ,


R
c) A função A(x) = Y gx dν é M-mensurável,
R
d) A função B(y) = X hy dµ é N -mensurável, e
Z Z  Z Z  ZZ
gx dν dµ = hy dµ dν = f d(µ ⊗ ν).
X Y Y X X×Y

O teorema de Fubini-Lebesgue para funções somáveis obtem-se aplicando


o resultado anterior separadamente às partes positiva e negativa de f . A
respectiva demonstração é ainda parte do exercı́cio 7.
Teorema 5.3.17 (Teorema de Fubini-Lebesgue (III)). Se f : X × Y → R é
M ⊗ N -mensurável, e mantendo a notação do teorema anterior, temos
Z Z  Z Z  ZZ
|gx |dν dµ = |hy |dµ dν = |f |d(µ ⊗ ν).
X Y Y X X×Y

Em particular, se pelo menos um destes integrais é finito então todos são


finitos, e f é (µ ⊗ ν)-somável. Se f é (µ ⊗ ν)-somável então as funções gx
e B são ν-somáveis, hy e A são µ-somáveis, e
Z Z  Z Z  ZZ
gx dν dµ = hy dµ dν = f d(µ ⊗ ν).
X Y Y X X×Y

As diferenças entre os enunciados apresentados nesta secção e os seus


correspondentes para a medida de Lebesgue nos espaços RN , tal como indi-
cados em 3.3, resultam naturalmente dos seguintes factos:
5.3. O Teorema de Fubini-Lebesgue 269

(1) L(RN ) ⊗ L(RM ) 6= L(RN +M ), o que mostra que a teoria em 3.3 não é
um caso particular dos resultados desta secção, e

(2) Os espaços (X, M, µ) e (Y, N , ν) não foram aqui supostos completos.


É simples introduzir neste contexto abstracto as extensões completas apro-
priadas, definidas pelo processo que indicámos em 2.3.16.
Exemplos 5.3.18.
1. A menor extensão completa de (X ×Y, M⊗N , µ⊗ν) é o espaço (X ×Y, K, ρ),
que mencionámos em 5.3.5.
2. A menor extensão completa de L(RN ) ⊗ L(RM ) é L(RN +M ).

Podemos adaptar os resultados desta secção usando espaços completos,


e assim generalizar efectivamente a teoria desenvolvida em 3.3. A tı́tulo de
ilustração, e supondo que os espaços (X, M, µ) e (Y, N , ν) são completos, o
teorema 5.3.16 tem o seguinte análogo, que efectivamente generaliza 3.3.7.
Teorema 5.3.19 (Teorema de Fubini-Lebesgue (II)). Se f : X × Y →
[0, +∞] é K-mensurável,
a) As funções gx (y) = f (x, y) são N -mensuráveis, µ-qtp em X,

b) As funções hy (x) = f (x, y) são M-mensuráveis, ν-qtp em Y ,


R
c) A função A(x) = Y gx dν é M-mensurável,
R
d) A função B(y) = X hy dµ é N -mensurável, e
Z Z  Z Z  ZZ
gx dλ dµ = hy dµ dν = f dρ.
X Y Y X X×Y

É talvez mais interessante investigar até que ponto as hipóteses básicas


usadas nesta secção (e implicitamente também em 3.3) são realmente neces-
sárias. Repare-se que suposémos sempre:
• Os espaços de medida (X, M, µ) e (Y, N , ν) σ-finitos, e

• A função f mensurável (e somável, se muda de sinal) em X × Y .


Vimos já em exemplos simples nos exercı́cios da secção 3.3 que a somabil-
idade de f é essencial. Não mostraremos aqui porque razão não podemos
concluir a mensurabilidade de f , mesmo supondo que as funções auxiliares
gx e hy são mensuráveis, porque se trata de uma questão delicada, mais
uma vez relacionada com os fundamentos da Teoria dos Conjuntos. É no
entanto relativamente simples mostrar que o teorema de Fubini-Lebesgue
não é válido se algum dos espaços (X, M, µ) e (Y, N , ν) não for σ-finito.
270 Capı́tulo 5. Outros Integrais de Lebesgue

Exemplo 5.3.20.
Tomamos X = Y = [0, 1], sendo µ = # a medida de contagem e M = P(X), e
ν = m a medida de Lebesgue, com N = L(Y ). Definimos f (x, y) = 1 se x = y,
e f (x, y) = 0, se x 6= y. O espaço (X, M, µ) não é σ-finito, e deixamos como
exercı́cio verificar a mensurabilidade de f , e mostrar que neste caso temos
Z Z  Z Z 
gx dν dµ 6= hy dµ dν.
X Y Y X

Exercı́cios.

1. Mostre que a classe E formada pelas uniões finitas de “rectângulos” em R


(os conjuntos “elementares”) é uma álgebra em X × Y .

2. Demonstre 5.3.9b). sugestão: Suponha primeiro que os espaços (X, M, µ)


e (Y, N , λ) são finitos, e depois generalize o argumento para espaços σ-finitos.

3. Mostre que a classe monótona A é uma σ-álgebra se e só se A é uma álgebra.

4. Verifique as afirmações feitas no texto nos exemplos 5.3.11.2 a 5.3.11.4.

5. Para concluir a demonstração de 5.3.14, verifique que comp(E) é uma classe


monótona.

6. Seja S uma classe de subconjuntos do conjunto Z. Recorde 5.3.13, e mostre


que mon(S) é a menor classe monótona que contém S, i.e., prove que:

a) Se M é uma classe monótona que contém S então mon(S) ⊆ M,


b) mon(S) é uma classe monótona e S ⊆ mon(S), e
c) Mostre que se S é uma álgebra então mon(S) é uma σ-álgebra.

7. Demonstre o teorema de Fubini-Lebesgue nas suas versões 5.3.16 e 5.3.17.

8. Considere o exemplo 5.3.20. Mostre que a função f é M ⊗ N -mensurável,


mas Z Z  Z Z 
gx dλ dµ = 0, e hy dµ dλ = 1.
X Y Y X

5.4 O Teorema de Radon-Nikodym-Lebesgue


Dado um espaço de medida (X, M, µ), e uma função M-mensurável f não-
negativa, ou µ-somável, o respectivo integral indefinido, dado por
Z
λ(E) = f dµ, para qualquer E ∈ M,
E
5.4. O Teorema de Radon-Nikodym-Lebesgue 271

é sempre uma medida λ ≪ µ, como vimos em 5.2.3. Bastante mais difı́cil de


esclarecer é a questão de saber se qualquer medida λ ≪ µ é, efectivamente,
um integral indefinido em ordem a µ. A resposta (afirmativa) a esta questão
é o Teorema de Radon-Nikodym (4 ), que será discutido e demonstrado nesta
secção, e que se pode resumir informalmente como se segue:

As medidas absolutamente contı́nuas são os integrais indefinidos.

Veremos, simultaneamente, que qualquer medida λ definida em (X, M) pode


ser decomposta de forma única como uma soma λ = λa +λs de duas medidas,
onde λa é absolutamente contı́nua em relação a µ, e λa é singular em relação
a µ. Esta afirmação é o Teorema da Decomposição de Lebesgue, e o par
(λa , λs ) é a Decomposição de Lebesgue de λ em relação a µ.
Exemplos 5.4.1.
1. A medida de Dirac δ, no espaço de Lebesgue (R, L(R), m), não é um integral
indefinido, porque δ é singular em relação a m.
2. A medida de Cantor ξ não é um integral indefinido no espaço (R, L(R), m),
porque ξ é igualmente singular. Se λ = m + ξ − δ, então a decomposição de
Lebesgue de λ é (m, ξ − δ).

A decomposição de Lebesgue foi mencionada no exercı́cio 2 da secção


4.2. Define-se formalmente como se segue:

Definição 5.4.2 (Decomposição de Lebesgue ). Se λ e µ são medidas em


(X, M), uma decomposição de lebesgue de λ em relação a µ é um par
de medidas (λa , λs ) em (X, M), tais que:

a) λ = λa + λs , e

b) λa ≪ µ, e λs ⊥µ.

O seguinte resultado deve ser conhecido, do exercı́cio mencionado:

Proposição 5.4.3. Sejam λ e µ medidas em (X, M).

a) Se λ ≪ µ e λ⊥µ, então λ = 0,

b) Se (λa , λs ) e (λ∗a , λ∗s ) são decomposições de Lebesgue de λ em relação


a µ, então λa = λ∗a , e λs = λ∗s .

No que se segue nesta secção, todas as medidas mencionadas estão


definidas num espaço mensurável fixo (X, M). O nosso principal objectivo
é a demonstração de:
4
De Radon e Otto M. Nikodym, 1889-1974, matemático polaco, e colaborador de
Radon.
272 Capı́tulo 5. Outros Integrais de Lebesgue

Teorema 5.4.4 (de Radon-Nikodym-Lebesgue (I)). Se λ e µ são medidas


de Radon σ-finitas, existe uma função M-mensurável f : X → [0, +∞] e
uma medida de Radon ν⊥µ tal que
Z
λ(E) = f dµ + ν(E) para qualquer E ∈ M.
E

Como o integral indefinido da função f é uma medida absolutamente


contı́nua em relação a µ, este teorema estabelece também a existência da
decomposição de Lebesgue de λ em relação a µ. A unicidade desta decom-
posição é a proposição 5.4.3, e portanto a medida ν e a classe de equivalência
de f em Fµ (X) são únicos.
Antes de demonstrarmos o teorema 5.4.4 exploramos algumas das suas
consequências mais imediatas. Se λ ≪ µ, obtemos:

Teorema 5.4.5 (de Radon-Nikodym (I)). Se λ e µ são medidas de Radon


σ-finitas, e λ ≪ µ, existe uma função M-mensurável f : X → [0, +∞] tal
que Z
λ(E) = f dµ, para qualquer E ∈ M.
E

Demonstração. De acordo com 5.4.4, existe uma função M-mensurável f :


X → [0, +∞] e uma medida de Radon ν⊥µ tal que
Z
λ(E) = f dµ + ν(E), para qualquer E ∈ M.
E

Como λ ≪ µ, o par (λ, 0) é a (única) decomposição de Lebesgue de λ. É


por isso evidente que ν = 0.

Os resultados anteriores são facilmente adaptados a medidas reais.

Teorema 5.4.6 (de Radon-Nikodym-Lebesgue (II)). Se µ é uma medida


de Radon σ-finita, e λ é uma medida real, existe f ∈ L1µ (X) e uma medida
real ν⊥µ tal que
Z
λ(E) = f dµ + ν(E) para qualquer E ∈ M.
E

Demonstração. Sendo λ = λ+ − λ− a decomposição de Jordan de λ, é claro


que λ+ e λ− são medidas de Radon finitas em (X, M). O teorema 5.4.4
é aplicável às medidas λ+ e λ− , donde existem funções M-mensuráveis
f+ , f− : X → [0, +∞], e medidas de Radon ν+ , ν− ⊥µ tais que
Z
λ± (E) = f± dµ + ν± (E), para qualquer E ∈ M.
E
5.4. O Teorema de Radon-Nikodym-Lebesgue 273

É claro que as funções f+ , f− e f = f+ − f− são µ-somáveis, as medidas ν+


e ν− são finitas, ν = ν+ − ν− é uma medida real, ν⊥µ, e
Z
λ(E) = f dµ + ν(E), para qualquer E ∈ M.
E

Deixamos como exercı́cio a demonstração de


Teorema 5.4.7 (de Radon-Nikodym (II)). Se µ é uma medida de Radon
σ-finita, λ é uma medida real, e λ ≪ µ, existe f ∈ L1µ (X) tal que
Z
λ(E) = f dµ, para qualquer E ∈ M.
E

A função f que ocorre na decomposição de Lebesgue diz-se:


Definição 5.4.8 (Derivada de Radon-Nikodym). Se λ, µ, e ν são medidas,
e Z
λ(E) = f dµ + ν(E),
E
é a decomposição de Lebesgue de λ em ordem a µ, dizemos que f é a

derivada de Radon-Nikodym de λ em ordem a µ, e escrevemos f = dµ .
Exemplos 5.4.9.
1. Considere-se, no espaço (R, B(R), m), a medida λ = ρ + ξ, onde ξ é a me-
dida de Cantor, e ρ é o integral indefinido da função exponencial f (x) = ex .
Como ρ é absolutamente contı́nua, e ξ é singular, então λ = ρ + ξ é a decom-

posição de Lebesgue de λ em ordem a µ, e a derivada de Radon-Nikodym dm
é, evidentemente, a função exponencial.

2. Como ξ é singular, a derivada de Radon-Nikodym dm é nula.

A noção de derivada de Radon-Nikodym é aplicável em circunstâncias


muito gerais(5 ), e onde a derivada no sentido usual do termo pode não ter
qualquer significado. Podemos no entanto comparar a derivada usual de
uma função f : R → R com a derivada de Radon-Nikodym da sua deriva-
da generalizada µ, supondo que µ existe. Deve ser claro que, quando µ é
absolutamente contı́nua, então:

• A existência da derivada de Radon-Nikodym dm é o 2o Teorema Fun-
damental do Cálculo, e
5
Cauchy parece ter tido algumas noções intuitivas sobre este conceito, e a ideia de
continuidade absoluta, já em 1841. Discutiu de forma algo vaga a ideia de “magnitudes
coexistentes”, mas o exemplo que utilizou é muito sugestivo: a massa e o volume de um
corpo, onde, na terminologia moderna, a massa é a medida λ, o volume é a medida µ, e é
a medida de Lebesgue, e a derivada de Radon-Nikodym é a função “densidade”.
274 Capı́tulo 5. Outros Integrais de Lebesgue


• A igualdade dm = f ′ é o 1o Teorema Fundamental do Cálculo.

• Mesmo quando µ não é absolutamente contı́nua, o Teorema da De-



composição de Lebesgue mostra que dm = f ′.

Passamos à demonstração do teorema 5.4.4, que organizamos numa sequên-


cia de resultados parciais auxiliares. O argumento que utilizamos baseia-se
numa observação muito natural: supondo que λ e µ são medidas de Radon
em (X, M), e temos
Z
λ(E) = f dµ + ν(E), para qualquer E ∈ M,
E

onde ν é também uma medida de Radon, é evidente que


Z
(5.4.1) f dµ ≤ λ(E), para qualquer E ∈ M.
E

É por isso razoável procurar a derivada de Radon-Nikodym de λ em ordem


a µ na classe das funções que satisfazem a desigualdade 5.4.1, e é de esperar
que esta derivada seja a maior solução para esta desigualdade.

Definição 5.4.10. Seja Dλ a classe das funções M-mensuráveis g : X →


[0, +∞] tais que
Z
gdµ ≤ λ(E) para qualquer E ∈ M.
E

É fácil obter sucessões crescentes em Dλ .

Lema 5.4.11. Se gk ∈ Dλ e fn = max{gk : k ≤ n}, então fn ∈ Dλ .

Demonstração. Basta-nos considerar n = 2, por razões óbvias. Se g =


f2 = max{g1 , g2 }, então g é uma função M-mensurável e não-negativa, e os
conjuntos F1 = {x ∈ X : g(x) = g1 (x)}, e F2 = F1c são mensuráveis. É claro
que f (x) = g2 (x) para x ∈ F2 . Portanto, e sendo E ∈ M, temos:
Z Z Z Z Z
gdµ = gdµ + gdµ = g1 dµ + g2 dµ ≤
E E∩F1 E∩F2 E∩F1 E∩F2
≤λ(E ∩ F1 ) + λ(E ∩ F2 ) = λ(E),

dado que g1 , g2 ∈ Dλ , e λ é uma medida. Concluı́mos que g ∈ Dλ .

Como Dλ 6= ∅, podemos introduzir a seguinte definição auxiliar:

Definição 5.4.12. A função π : M → [0, ∞] é dada por


Z
π(E) = sup{ gdµ : g ∈ Dλ }.
E
5.4. O Teorema de Radon-Nikodym-Lebesgue 275

É evidente que π(E) ≤ λ(E) para qualquer E ∈ M. Provamos a seguir


que π é o integral indefinido de uma função f ∈ Dλ , sob a hipótese adicional
de λ e µ serem medidas finitas.

R Se λ e µ são medidas de Radon finitas, existe f ∈ Dλ tal


Lema 5.4.13.
que π(E) = E f dµ para E ∈ M.
R
R Como π(X) = sup{ X gdµ : g ∈ Dλ }, existem funções gn ∈
Demonstração.
Dλ tais que X gn dµ → π(X). Definimos fn = max{g1 , g2 , g3 , · · · , gn }, e
notamos que as funções fn ∈ Dλ , de acordo com 5.4.11.
As funções fn são mensuráveis, não-negativas, e fn (x) ր f (x). Segue-se,
do teorema de Beppo Levi, que f é uma função mensurável não-negativa, e
Z Z
fn dµ ր f dµ, para qualquer E ∈ M.
E E
R R
Como E fn dµ ≤ λ(E), para qualquer E ∈ M, temos E f dµ ≤ λ(E), i.e.,

f ∈ Dλ .

Para mostrar que π é o integral indefinido de f , note-se primeiro que, para


E = X, temos:
Z Z
fn dµ ր π(X) = f dµ.
X X

Seja E ∈ M, e g ∈ Dλ . Sendo h = max{f, g}, segue-se de 5.4.11 que h ∈ Dλ .


Por definição de π, temos
Z Z Z Z Z Z
f dµ + f dµ = f dµ = π(X) ≥ hdµ ≥ gdµ + f dµ.
E Ec X X E Ec

Concluı́mos que
Z Z
π(E) ≥ f dµ ≥ gdµ, para qualquer E ∈ M, e qualquer g ∈ Dλ .
E E

R
É assim evidente que π(E) = E f dµ, i.e., π é o integral indefinido de f .

Acabámos de provar que π é um integral indefinido, e é, por isso, uma


medida absolutamente contı́nua em relação a µ. Para concluir a demons-
tração de 5.4.4, para o caso em que λ e µ são medidas de Radon finitas,
resta-nos mostrar que a diferença ν = λ − π é singular em relação a µ.

Lema 5.4.14. Se λ e µ são medidas de Radon finitas, e π é definido por


5.4.12, então ν = λ − π é uma medida de Radon finita, e ν⊥µ.
276 Capı́tulo 5. Outros Integrais de Lebesgue

Demonstração. λ e π são medidas de Radon finitas e λ ≥ π, donde ν = λ−π


é uma medida de Radon finita. Designamos por (Pn , Nn ) uma decomposição
de Hahn da medida real νn = ν − n1 µ, e registamos que

[ ∞
\
(1) Se P = Pn e N = Nn , então X = P ∪ N , e P ∩ N = ∅.
n=1 n=1

Como N ⊆ Nn para qualquer n, temos


1 1
νn (N ) = ν(N ) − µ(N ) ≤ 0, ou ν(N ) ≤ µ(N ).
n n
Fazendo n → +∞, obtemos ν(N ) = 0, e portanto

(2) ν tem suporte em P.

Seja agora f a função referida no lema 5.4.13, cujo integral indefinido é π.


Consideramos a função hn = f + n1 χPn , e notamos que hn é uma função
mensurável não-negativa. Designamos o integral indefinido de hn por φn .
Provamos em seguida que hn pertence a Dλ , ou seja, que φn (E) ≤ λ(E)
para qualquer E ∈ M. Um cálculo simples mostra que
1 1
φn (E) = π(E) + µ(E ∩ Pn ) = π(E ∩ Pnc ) + π(E ∩ Pn ) + µ(E ∩ Pn ).
n n
Como π + n1 µ = (λ − ν) + n1 µ = λ − νn , concluı́mos que
1
π(E ∩ Pn ) + µ(E ∩ Pn ) = λ(E ∩ Pn ) − νn (E ∩ Pn ), e
n
φn (E) = π(E ∩ Pnc ) + λ(E ∩ Pn ) − νn (E ∩ Pn ).
Sabemos também que π(E ∩ Pnc ) ≤ λ(E ∩ Pnc ), e Pn é νn -positivo, donde
νn (E ∩ Pn ) ≥ 0. Portanto,

φn (E) ≤ λ(E ∩ Pnc ) + λ(E ∩ Pn ) = λ(E).

Concluı́mos que hn pertence a Dλ , donde


1
Z Z Z
hn dµ = f dµ + µ(Pn ) ≤ π(X) = f dµ.
X X n X

É, portanto, óbvio que µ(Pn ) = 0, e como P = ∪∞


n=1 Pn , temos

X
µ(P ) ≤ µ(Pn ) = 0, ou µ(P ) = 0, i.e.,
n=1

(3) µ tem suporte em N.


Segue-se de (1), (2) e (3) que ν⊥µ.
5.4. O Teorema de Radon-Nikodym-Lebesgue 277

A demonstração do Teorema de Radon-Nikodym-Lebesgue para medidas


σ-finitas é uma generalização relativamente simples destes argumentos.

Demonstração. Se as medidas µ e λ são σ-finitas, existem conjuntos M-


mensuráveis Xn , que podemos supor disjuntos, tais que

[
X= Xn , onde µ(Xn ) < +∞, e λ(Xn ) < +∞.
n=1

Definimos medidas λn , e µn , por

λn (E) = λ(E ∩ Xn ), e µn (E) = µ(E ∩ Xn ).

As medidas λn e µn são finitas, e têm suporte em Xn . Existem, por isso,


funções M-mensuráveis não-negativas fn : X → [0, +∞], e medidas de
Radon finitas νn , em ambos os casos com suporte em Xn , tais que
Z
λn (E) = fn dµn + νn (E), para qualquer E ∈ M, e νn ⊥µn .
E
R R
É simples verificar que E fn dµn = E fn dµ. Temos, portanto,
Z
(1) λn (E) = fn dµ + νn (E), para qualquer E ∈ M.
E

Definimos

X ∞
X
f (x) = fn (x), e ν(E) = νn (E).
n=1 n=1

Segue-se de (1) que:



X ∞
X
(2) λ(E) = λ(E ∩ Xn ) = λn (E) =
n=1 n=1

Z X ∞
X Z
fn dµ + νn (E) = f dµ + ν(E).
E n=1 n=1 E

Deixamos para o exercı́cio 3 verificar que ν⊥µ, o que termina a demonstração


de 5.4.4.
Exemplo 5.4.15.
O teorema de Radon-Nikodym-Lebesgue não é, em geral, válido, se as medidas
em causa não são σ-finitas. Deixamos para o exercı́cio 1 o estudo dos casos
λ = m, e µ = #, bem como λ = #, e µ = m.

Exercı́cios.
278 Capı́tulo 5. Outros Integrais de Lebesgue

1. Considere a medida de contagem # e a medida de Lebesgue m, ambas


definidas em L(R). Existem decomposições de Lebesgue de # (respectiva-
mente, m) em relação a m (respectivamente, #)?

2. Demonstre 5.4.7.

3. Para concluir a demonstração do teorema de Radon-Nikodym esboçada acima,


mostre que:
R R
a) E fn dµn = E fn dµ.
b) ν⊥µ.

4. Suponha que λ e µ são medidas de Radon σ-finitas, e λ ≪ µ.



R R
a) Mostre que se f é M-mensurável, e não-negativa, então X f dλ = X f dµ dµ.
dλ dλ
b) Prove que se f ∈ L1λ (X) então f dµ ∈ L1µ (X) e X f dλ = X f dµ
R R
dµ.
dλ dλ dµ
c) Mostre que µ ≪ λ se e só se dµ 6= 0, µ-qtp, e que neste caso dµ dλ = 1.

5. Suponha que λ, ν e µ são medidas de Radon σ-finitas, e λ ≪ ν.


dλ dλ dν
a) Prove que dµ = dν dµ .

b) Suponha que λ não é absolutamente contı́nua em relação a ν. A conclusão


anterior mantem-se válida?

6. Suponha que µ, ν, λ, e λn são medidas de Radon σ-finitas.


d(λ+ν) dλ dν
a) Prove que dµ = dµ + dµ .

b) Prove, mais geralmente, que (6 )


∞ ∞
!
d X X dλn
λn = .
dµ n=1 n=1

5.5 Os Espaços Lp
Na discussão que se segue, identificamos ( i.e., tratamos como um único
objecto) funções mensuráveis que diferem entre si num conjunto de medida
nula. Sendo (X, M, µ) um espaço de medida fixo, introduzimos

Definição 5.5.1 (Funções Equivalentes). Se f, g : X → R são M-mensurá-


veis, então f e g dizem-se equivalentes, e escrevemos f ≃ g, quando

µ({x ∈ X : f (x) 6= g(x)}) = 0, i.e., se e só se f (x) = g(x) µ-qtp.


6
Esta é uma forma abstracta do Teorema de Diferenciação de Fubini para séries de
funções crescentes, a que também chamámos o “pequeno teorema de Fubini”.
5.5. Os Espaços Lp 279

Podemos demonstrar facilmente que a relação “≃” é de equivalência,


no conjunto de todas as funções mensuráveis f : X → R. Por esta razão, con-
sideramos o conjunto quociente, formado pelas classes de equivalência
de todas as funções mensuráveis f : X → R, que designaremos aqui Fµ (X).
É muito simples verificar que (7 )

Teorema 5.5.2. Fµ (X) é um espaço vectorial.

Diz-se frequentemente que Fµ (X) é o espaço das (classes de) funções


mensuráveis, definidas e finitas qtp em X, porque qualquer função M-men-
surável definida µ-qtp, e finita também µ-qtp, determina uma única classe
em Fµ (X), mesmo quando o espaço (X, M, µ) não é completo.

Teorema 5.5.3. Seja f : E → R M-mensurável, e finita µ-qtp em E. Se


µ(E c ) = 0, então:

a) Existe g : X → R, M-mensurável em E, tal que g(x) = f (x), µ-qtp


em E, e

b) Se h : X → R é M-mensurável em X, e h(x) = f (x) µ-qtp em E,


então h ≃ g.

Demonstração. a) A função f˜ : X → R, que coincide com f no conjunto E,


e é nula em E c , é mensurável em X. Como H = {x ∈ E : |f (x)| = ∞} é
mensurável, a função g = f˜χH c é mensurável. É óbvio que f (x) = g(x), se
x 6∈ E c ∪ H, onde µ(E c ∪ H) = 0, i.e., f (x) = g(x), µ-qtp em E.
b) Os conjuntos A = {x ∈ E : g(x) 6= f (x)} e B = {x ∈ E : h(x) 6= f (x)}
são mensuráveis, e têm medida nula. Como {x ∈ X : h(x) 6= g(x)} ⊆
E c ∪ A ∪ B, é óbvio que g ≃ h.

A classe de equivalência de f é designada por [f ], mas, em geral, escre-


veremos simplesmente f , no lugar de [f ]. Bem entendido, teremos sempre
de verificar que as noções que associamos a uma qualquer classe [f ] são
efectivamente independentes do representante f escolhido. Por exemplo, se
f ≃ g, e f é somável, é evidente que g é igualmente somável, e, portanto, é
razoável referirmo-nos a classes de equivalência “somáveis”.
Introduzimos imediatamente a seguir uma famı́lia de subespaços de Fµ (X),
ditos os espaços Lp , com 1 ≤ p ≤ ∞, que designaremos por Lpµ (X). Estes
espaços são definidos em termos das chamadas normas Lp . A norma Lp
da classe [f ] pode ser calculada a partir de qualquer representante f , e
designa-se por kf kp .
7
O conjunto F (X), de todas as funções mensuráveis f : X → R, é, como sabemos, um
espaço vectorial real. A classe N (X), de todas as funções mensuráveis f : N → R que são
nulas µ-qtp é, claramente, um subespaço vectorial de F (X). É fácil mostrar que Fµ (X) é
o quociente F (X)/N (X).
280 Capı́tulo 5. Outros Integrais de Lebesgue

Definição 5.5.4 (Norma Lp , Espaços Lp ). Se 1 ≤ p < ∞, e f : X → R é


M-mensurável, então (8 )
Z 1
p
p
kf kp = |f | dµ .
X

Lpµ (X) é formado pelas classes de funções com norma Lp finita, i.e.,
n o
Lpµ (X) = [f ] ∈ Fµ (X) : kf kp < ∞

Veremos que Lpµ (X) é, efectivamente, um espaço vectorial normado, com
a norma indicada. Esta afirmação é, em qualquer caso, quase evidente para
p = 1, onde a norma é dada por
Z
k[f ]k1 = kf k1 = |f |dµ.
X

Recorde-se, a este respeito, as seguintes observações, que fizémos num con-


texto mais restrito já no Capı́tulo 1, agora reforçadas com os resultados da
secção anterior, e a afirmação final.

• Se f, g ∈ L1µ (E), a desigualdade kf +gk1 ≤ kf k1 +kgk1 é a desigualdade


triangular usual,

• Se f ∈ L1µ (E) e α ∈ R, a identidade kαf k1 = |α|kf k1 resulta directa-


mente de 5.2.13, e

• kf k1 = 0 ⇐⇒ f ≃ 0 ⇐⇒ [f ] = [0].

A definição do espaço L∞
µ (X) requer a introdução de algumas noções
auxiliares.

Definição 5.5.5 (Majorantes e Minorantes Essenciais). Dizemos que M é


majorante ( respectivamente, minorante) essencial da função f se e
só se f (x) ≤ M , (respectivamente, f (x) ≥ M ) µ-qtp em X.
Exemplo 5.5.6.
No espaço (R, L(R), m), qualquer M ≥ 0 é majorante essencial da função de
Dirichlet, porque a função de Dirichlet é nula qtp em R.

Funções equivalentes têm exactamente os mesmos majorantes e mino-


rantes essenciais, e portanto estas noções são aplicáveis a elementos de
Fµ (X). Deixamos para o exercı́cio 3 a demonstração de:
8
Seguimos a convenção natural de tomar (∞)α = ∞, desde que α > 0.
5.5. Os Espaços Lp 281

Proposição 5.5.7. Se f : X → R é M-mensurável, e A é o conjunto dos


majorantes essenciais de f , então o conjunto A tem mı́nimo.
Definição 5.5.8 (Norma L∞ , Espaço L∞ ). Se f : X → R é M-mensurável,
o menor majorante essencial de |f | designa-se kf k∞ , e diz-se a norma L∞
da classe [f ]. Definimos ainda L∞
µ (X) = {[f ] ∈ Fµ (X) : kf k∞ < ∞}.

Deixamos também como exercı́cio a demonstração do seguinte resultado:


Proposição 5.5.9. L∞
µ (X) é um espaço vectorial normado, com a norma

L definida em 5.5.8.
Exemplos 5.5.10.
1. Designaremos o espaço LpmN (E) por Lp (E), quando E ⊆ RN é um conjunto
Lebesgue-mensurável.
2. Se (X, M, µ) = (N, P(N), #), é tradicional designar o espaço Lp# (N) por ℓp .
P∞
Por exemplo, ℓ2 é o espaço das sucessões reais tais que n=1 x2n < ∞, e ℓ∞ é
o espaço das sucessões reais limitadas.
3. RN é um espaço Lp , para qualquer 1 ≤ p ≤ ∞.

Os espaços Lp , com 1 < p < ∞, são igualmente espaços vectoriais nor-


mados, mas a demonstração deste resultado requer a prévia verificação das
desigualdades ditas de Hölder(9 ), e de Minkowski(10 ). Recordamos aqui
alguns factos elementares relacionados com as noções de convexidade, e con-
cavidade, tais como se aplicam a funções reais de variável real.

Figura 5.5.1: Função convexa à esquerda, côncava à direita

Definição 5.5.11 (Funções Convexas, Côncavas). Se f : I → R está


definida num intervalo I ⊆ R, então f é convexa em I se e só se

s, t ∈ I, α, β ≥ 0, e α + β = 1 =⇒ f (αs + βt) ≤ αf (s) + βf (t).


9
Otto Ludwig Hölder, 1859-1937, matemático alemão com o nome associado a esta
desigualdade, e ao teorema de Jordan-Hölder da Teoria dos Grupos. Ensinou nas univer-
sidades de Göttingen e Tübingen.
10
Hermann Minkowsky, 1864-1909, matemático alemão, professor em Göttingen, com o
nome indissociavelmente ligado ao espaço-tempo quadridimensional da teoria da Relativi-
dade Restrita.
282 Capı́tulo 5. Outros Integrais de Lebesgue

A função f diz-se côncava se e só se −f é convexa.(11 )


O significado geométrico destas definições é ilustrado na figura 5.5.1.
Note-se que f é convexa se e só se o seu gráfico está sob qualquer uma das
suas cordas, e côncava se o seu gráfico está sobre as respectivas cordas.
Lema 5.5.12. Se f, g : X → R são funções M-mensuráveis e α ∈ R, então
a) kαf kp = |α| kf kp .

b) kf kp = 0 ⇔ f (x) = 0, µ-q.t.p. em X ⇔ [f ] = [0].

c) kf kp + kgkp < ∞ =⇒ kf + gkp ≤ k|f | + |g|kp < ∞.

d) Em particular, Lpµ (X) é um subespaço vectorial de Fµ (X).


Demonstração. As afirmações a) e b) são evidentes, para qualquer 1 ≤ p ≤
∞, assim como c), para p = ∞. Passamos a provar c), para p < ∞. Como
a função φ(t) = tp é convexa para t ≥ 0, tomamos s = |f (x)|, t = |g(x)|, e
α = β = 12 , para concluir que

|f (x)| + |g(x)| p 1
 
1 p
(|f (x)| + |g(x)|) = ≤ (|f (x)|p + |g(x)|p ) .
2p 2 2
A integração desta desigualdade conduz imediatamente a
1 1 1
p
k |f | + |g| kpp ≤ kf kpp + kgkpp < ∞.
2 2 2
Repare-se que as funções f e g são, necessariamente, finitas µ-qtp, e podemos
supor, sem perda de generalidade, que f + g é finita e está definida em toda
a parte. Como |f + g| ≤ |f | + |g|, é claro que kf + gkp ≤ k|f | + |g|kp < ∞.
A afirmação d) é um corolário imediato de a) e c).

Usaremos aqui a seguinte terminologia:


Definição 5.5.13 (Expoentes Conjugados). Se 1 ≤ p, q ≤ ∞, então p e q
são expoentes conjugados se e só se p1 + 1q = 1, onde tomamos ∞
1
= 0.
Observe-se que o único valor de p que é conjugado de si próprio é p = 2.
Esta observação está relacionado com o facto do espaço L2 ser o único espaço
Lp que é euclideano(12 ).
Lema 5.5.14. Se p e q são expoentes conjugados, 1 < p < ∞, então
1 1
0 ≤ x, y ≤ ∞ =⇒ xy ≤ xp + y q .
p q
11
z = αs + βt diz-se uma combinação convexa de s e t.
12
O espaço vectorial normado V é euclidiano se e só se a respectiva norma é dada por
1
kvk = (v • v) 2 , onde o sı́mbolo “•” representa um produto interno em V.
5.5. Os Espaços Lp 283

Demonstração. A desigualdade só não é evidente se 0 < x, y < ∞. Neste


caso, como a função logaritmo é concâva, e p1 + 1q = 1, um cálculo simples
mostra que
1 1 1 1
log( xp + y q ) ≥ log(xp ) + log(y q ) = log(xy).
p q p q
A função logaritmo é crescente, e por isso p1 xp + 1q y q ≥ xy.

O próximo teorema generaliza a desigualdade de Cauchy-Schwarz(13 )


para quaisquer expoentes conjugados.
Teorema 5.5.15 (Desigualdade de Hölder). Se f, g : X → R são M-
mensuráveis, e p e q são expoentes conjugados, 1 ≤ p ≤ ∞, então

kf gk1 ≤ kf kp kgkq .

Demonstração. A desigualdade é evidente se kf kp kgkq = ∞, e é muito


simples de estabelecer se kf kp kgkq = 0, porque, neste último caso, temos
f g = 0, µ-qtp. Supomos por isso que 0 < kf kp kgkq < ∞. Tomamos
|f (x)| |g(x)|
F (x) = kf kp , e G(x) = kgkq . De acordo com o lema 5.5.14, temos

1 1
F (x)G(x) ≤ F (x)p + G(x)q .
p q
Integramos esta desigualdade, e como kF kp = kGkq = 1, obtemos:

1 1 1 1
kF Gk1 ≤ kF kpp + kGkqq = + = 1.
p q p q
kf gk1
Finalmente, e como kf kp kgkq = kF Gk1 ≤ 1, temos kf gk1 ≤ kf kp kgkq .

Outra das consequências do teorema anterior é a seguinte desigualdade:


Teorema 5.5.16 (Desigualdade de Minkowski). Se 1 ≤ p ≤ ∞, então

f, g ∈ Lpµ (X) ⇒ f + g ∈ Lpµ (X), e kf + gkp ≤ kf kp + kgkp .

Demonstração. Limitamo-nos a considerar aqui os casos 1 < p < ∞. Defi-


nimos h = (|f | + |g|)p−1 , e registamos que

(|f | + |g|)p = h|f | + h|g|.

A desigualdade de Hölder aplicada aos produtos h|f | e h|g| conduz a:


Z Z Z
p
(1) (|f | + |g|) dµ = h|f |dµ + h|g|dµ ≤ khkq kf kp + khkq kgkp .
X X X
13
A desigualdade de Cauchy-Schwarz para integrais é a desigualdade de Hölder com
p = q = 2.
284 Capı́tulo 5. Outros Integrais de Lebesgue

O lado esquerdo desta desigualdade é naturalmente dado por:


Z
(2) (|f | + |g|)p dµ = k |f | + |g| kpp .
X

Como (p − 1)q = p, temos


Z Z
q (p−1)q
khkq = (|f | + |g|) dµ = (|f | + |g|)p dµ = k |f | + |g| kpp , ou
X X

 p
q
(3) khkq = k |f | + |g| kp .

Usando (2) e (3) na desigualdade (1), obtemos


 p  
k |f | + |g| kpp ≤ k |f | + |g| kp
q
kf kp + kgkp .

É claro que nada temos a provar se k|f | + |g|kp = 0. Caso contrário, dividi-
 p
mos a desigualdade anterior por k |f | + |g| kp , e notamos que p − pq = 1,
q

donde
kf + gkp ≤ k|f | + |g|kp ≤ kf kp + kgkp .

Este resultado, associado ao lema 5.5.12, torna o seguinte corolário essen-


cialmente evidente.

Corolário 5.5.17. Lpµ (X) é um espaço vectorial normado com a norma


de Lpµ (X). Em Rparticular, L2µ (X) é um espaço euclidiano, com o produto
interno f • g = X f gdµ.

As noções topológicas básicas, que devem ser conhecidas pelo menos


do espaço RN , adaptam-se facilmente ao contexto de um qualquer espaço
vectorial normado.

Definição 5.5.18 (Topologia em V). Sejam V e W espaços vectoriais nor-


mados reais. Se v ∈ V (respectivamente, w ∈ W), designamos por kvk
(respectivamente, kwk′ ), as correspondentes normas.

a) A bola aberta de centro em v e raio ε > 0 é o conjunto Bε (v) =


{u ∈ V : ku − vk < ε}.

b) O conjunto U ⊆ V é aberto se e só se, para qualquer v ∈ U , existe


ε > 0 tal que Bε (v) ⊆ U . Se U é aberto, e v ∈ U , dizemos que U é
uma vizinhança de v. A famı́lia O = {U ⊆ V : U é aberto em V} é
a topologia do espaço V.
5.5. Os Espaços Lp 285

c) A sucessão de termo geral v n ∈ V converge para v ∈ V se e só se


kv n − vk → 0, quando n → ∞. Em particular, se f, fn ∈ Lpµ (X), e
kfn − f kp → 0, dizemos que fn converge para f em Lp .

d) A sucessão de termo geral v n ∈ V é fundamental se e só se

kv n − v m k → 0, quando n, m → ∞.

e) A função f : V → W é contı́nua em v ∈ V se e só se para qualquer


ε > 0 existe δ > 0 tal que ku − vk < δ ⇒ kf (u) − f (v)k′ < ε.
Usaremos no que se segue, e sem mais comentários, noções que se derivam
destas sem qualquer dificuldade, como, por exemplo, as de interior, exterior,
fronteira, e fecho de qualquer conjunto U ⊆ V.
Exemplos 5.5.19.
1. O teorema da convergência dominada de Lebesgue pode ser enunciado como
se segue: Se fn → f pontualmente em X, e existe g ∈ L1µ (X) tal que |fn (x)| ≤
g(x) µ-qtp em X, então fn também converge para f em L1 . Um resultado
análogo é válido em Lp (exercı́cio 11).
2. O integral definido φ : L1µ (X) → R é um funcional contı́nuo em L1µ (X):
Z Z Z

|φ(f ) − φ(g)| = f dµ − gdµ ≤ |f − g| dµ = kf − gk1 .
X X X

3. Seja U ⊂ L1 (R) formado pelas classes de funções que têm algum represen-
tante f ∈ Cc (R). É usual escrever U = Cc (R), não distinguindo “funções”
de “classes de equivalência” de funções, para evitar sobrecarregar a notação
utilizada. Com esta convenção, o corolário 3.6.7 afirma que Cc (R) é denso em
L1 (R), i.e., Cc (R) = L1 (R).
4. Deixamos para o exercı́cio 14 verificar que, se 1 ≤ p, q < ∞, então Lpµ (X) ∩
Lqµ (X) é denso em Lpµ (X).

É muito interessante observar que as definições apresentadas em 5.5.18


c), d) e e), dependem apenas da topologia do espaço em causa, i.e., da famı́lia
formada pelos conjuntos abertos, e não da norma utilizada para definir essa
topologia. Podemos igualmente dizer:
Proposição 5.5.20. Mantendo a notação em 5.5.18, temos:
a) v n → v se e só se, para qualquer vizinhança U de v, existe p ∈ N tal
que n > p =⇒ v n ∈ U .

b) A sucessão de termo geral v n é fundamental se e só se, para qualquer


vizinhança U de 0 ∈ V, existe p ∈ N tal que n, m > p =⇒ (v n − v m ) ∈
U.
286 Capı́tulo 5. Outros Integrais de Lebesgue

c) A função f : V → W é contı́nua em v ∈ V se e só se para qualquer


vizinhança W de f (v) em W existe uma vizinhança V de v em V tal
que f (V ) ⊆ W .
Por esta razão, duas normas definidas no mesmo espaço vectorial dizem-
se equivalentes se determinam a mesma topologia. Esta noção é irrele-
vante no estudo dos espaços de dimensão finita, porque todas as normas
num mesmo espaço são automaticamente equivalentes. A situação é dra-
maticamente diferente nos espaços de dimensão infinita, o que introduz uma
complexidade e riqueza de resultados muito interessante na teoria.
Exemplos 5.5.21.
1. Lpµ (X) ∩ Lqµ (X) é um subespaço vectorial, tanto de Lpµ (X), como de Lqµ (X).
No entanto, em geral, as normas de Lp e de Lq geram topologias distintas
em Lpµ (X) ∩ Lqµ (X). Por exemplo, se gn é a função caracterı́stica do intervalo

[0, n1 ] no intervalo X = [0, 1], então fn = ngn → 0, com a norma √ de L1 , ou
1 ∞
“em L ”, mas a sucessão diverge em L , porque kfn k∞ = n → ∞. Por
outras palavras, as topologias determinadas em L1 (X) ∩ L∞ (X) pelas normas
de L1 (X) e de L∞ (X) são diferentes.
2. Continuando o exemplo anterior, o funcional φ : L1 (X) ∩ L∞ (X) → R, dado
por φ(f ) = kf k∞ , é contı́nuo na topologia de L∞ , por razões óbvias, mas não
é contı́nuo na topologia de L1 . Basta observar novamente que fn → 0 em L1 ,
mas φ(fn ) → ∞.

3. Vimos atrás que Cc (RN ) é denso em L1 (RN ), i.e., Cc (RN ) = L1 (RN ), na


topologia de L1 . É relativamente simples mostrar que Cc (RN ) = C0 (RN ), na
topologia de L∞ (exercı́cio 12).
1
4. Se x ∈ RN , temos kxk∞ ≤ kxkp ≤ N p kxk∞ . Segue-se daqui que todas as
normas Lp em RN são equivalentes.

O seguinte resultado relaciona as sucessões convergentes com as sucessões


fundamentais.
Lema 5.5.22. Seja V um espaço vectorial normado. Então
a) Qualquer sucessão convergente em V é fundamental.
b) Qualquer sucessão fundamental em V com pelo menos uma subsucessão
convergente é necessariamente convergente.
Demonstração. Para provar a afirmação b), supomos que a sucessão de
termo geral xn é fundamental, e tem uma subsucessão de termo geral y n =
xkn → y. Como a sucessão de naturais de termo geral kn é estritamente
crescente, e a sucessão original é fundamental, temos kxn − y n k → 0. Ob-
servamos agora que:
kxn − yk ≤ kxn − y n k + ky n − yk → 0.
5.5. Os Espaços Lp 287

A demonstração de a) é parte do exercı́cio 15.

No espaço RN , as sucessões fundamentais são convergentes, mas é sim-


ples dar exemplos de espaços vectoriais normados com sucessões fundamen-
tais que divergem.
Exemplo 5.5.23.
Seja hn a função caracterı́stica do intervalo [ n1 , 1], e ϕ(x) = √1x . Considere-se
a sucessão de funções ϕn = hn ϕ, no espaço L1 (X) ∩ L∞ (X), com a norma de
L1 (X), onde X = [0, 1]. É claro que a sucessão converge em L1 para a função
ϕ 6∈ L1 (X) ∩ L∞ (X). Portanto, a sucessão é fundamental, mas divergente, no
espaço L1 (X) ∩ L∞ (X), com a norma de L1 (X).

Os espaços vectoriais normados em que todas as sucessões fundamentais


convergem são classificados como se segue:
Definição 5.5.24 (Espaços de Banach, Espaços de Hilbert). O espaço vec-
torial normado V diz-se um espaço de banach se e só se as sucessões
fundamentais em V convergem em V. Um espaço de hilbert(14 ) é um
espaço de Banach euclidiano.
Como sugerimos a propósito do teorema sobre a integração de séries de
funções somáveis, o critério usual de convergência de séries reais (“qualquer
série absolutamente convergente é convergente”), pode ser adaptado para
caracterizar os espaços de Banach.
Teorema 5.5.25. Se V é um espaço vectorial normado, então as seguintes
afirmações são equivalentes:
a) V é um espaço de Banach.
b) Qualquer série absolutamente convergente em V é convergente, i.e., se
v n ∈ V,

m
X X
kv n k < +∞ =⇒ Existe v ∈ V tal que lim v n − v = 0.

m→∞
n=1 n=1

Demonstração. Deixamos a implicação “a) ⇒ b)” para o exercı́cio 15. Para


provar que “b) ⇒ a)”, supomos que a sucessão de termo geral xn ∈ V é
fundamental, donde:
1
Para qualquer k ∈ N, existe nk ∈ N tal que n, m ≥ nk ⇒ kxn − xm k < .
2k
14
David Hilbert, 1862-1943, alemão, professor em Göttingen, um dos grandes matemá-
ticos de sempre, tem o seu nome associado à célebre lista de problemas que apresentou
no Congresso da Matemática de 1900, como um desafio às capacidades dos matemáticos
do século que então se iria iniciar. O seu problema no 8, sobre a chamada “Hipótese de
Riemann”, é talvez o mais famoso problema da Matemática à espera de solução.
288 Capı́tulo 5. Outros Integrais de Lebesgue

Supomos sem perda de generalidade que a sucessão de termo geral nk é


estritamente crescente, e consideramos a subsucessão de termo geral y k =
xnk , e a sucessão auxiliar de termo geral z k = y k+1 − y k . É claro que
m ∞ ∞
X X X 1
z k = y m+1 − y 1 , e kz k k < < +∞.
2k
k=1 k=1 k=1

De acordo com b), existe z ∈ V tal que kz − m


P
k=1 z k k → 0. Por outras
palavras, temos y m = xnm → z +y 1 , quando m → ∞, e a sucessão de termo
geral xn tem uma subsucessão convergente. Concluı́mos do lema 5.5.22 que
a sucessão fundamental de termo geral xn converge.

O resultado que provámos anteriormente sobre séries de funções somáveis


é generalizável a qualquer espaço Lpµ (X).

Teorema 5.5.26. Se fn ∈ Lpµ (X), e ∞


P
n=1 kfn kp < ∞, então:
P∞
a) A série f (x) = n=1 fn (x) converge absolutamente µ-qtp em X.

b) kf kp ≤ ∞ p
P
n=1 kfn kp , donde f ∈ Lµ (X), e
p
c) As somas parciais m
P
n=1 fn convergem para f em Lµ (X), i.e.,
m
X
lim fn − f = 0.

m→∞
n=1 p

Demonstração. Supomos 1 ≤ p < ∞, e deixamos o caso p = ∞ como


exercı́cio. Observamos que
m
X ∞
X
gm (x) = |fn (x)| ր |fn (x)| = g(x), donde gm (x)p ր g(x)p .
n=1 n=1

Segue-se da propriedade de Beppo Levi que kgm kp → kgkp . Temos ainda,


da desigualdade de Minkowski, que:
m
X ∞
X ∞
X
kgm kp ≤ kfn kp ≤ kfn kp < ∞, donde kgkp ≤ kfn kp < ∞.
n=1 n=1 n=1

Concluı́mos que g é finita µ-qtp, o que Pestabelece a).


Para provar b), definimos f (x) = ∞ n=1 fn (x), onde podemos supor que
a série converge, e é finita, em todo o conjunto X. A função f é mensurável,
e temos:
∞ ∞ ∞
X X X
kf kp = fn ≤ |fn | = kgkp ≤ kfn kp < ∞.


n=1 p n=1 p n=1
5.6. Teoremas de Representação de Riesz 289

P∞
Aplicamos a afirmação b) à cauda da série n=1 fn , para concluir que
m ∞ ∞
X X X
fn − f = fn ≤ kfn kp → 0, quando m → ∞.



n=1 p n=m+1 p n=m+1

O resultado seguinte é, certamente, um dos mais importantes resultados


da teoria de integração de Lebesgue, e um dos seus sucessos técnicos mais
significativos. É uma consequência evidente dos teoremas 5.5.25 e 5.5.26.

Corolário 5.5.27 (Teorema de Riesz-Fischer). (15 ) Lpµ (X) é um espaço de


Banach. Em particular, L2µ (X) é um espaço de Hilbert.

5.6 Teoremas de Representação de Riesz


A generalização das ideias e métodos do Cálculo Diferencial, conhecidas do
espaço RN , para um espaço vectorial normado V “arbitrário”, em parti-
cular para os espaços Lpµ (X), utiliza transformações lineares T : V → R
apropriadas. Estas transformações devem aproximar funções ϕ : V → R,
de forma a que ϕ(x + y) = ϕ(x) + T (y) + kyk ∆(x, y), onde ∆(x, y) → 0,
quando y → 0.
As transformações lineares em espaços vectoriais normados de dimensão
finita são automaticamente funções contı́nuas. Recorde-se que T : RN → R
é linear se e só se T (x) = a • x, onde a ∈ RN , e “•” designa o produto
interno usual. No caso dos espaços vectoriais de dimensão infinita, e no
seguimento das observações que fizémos acima sobre a existência de normas
que não são equivalentes, não é razoável esperar que qualquer transformação
linear seja contı́nua, e é necessário distinguir:

Definição 5.6.1 (Dual Algébrico, Dual Topológico). Seja V um espaço


vectorial normado.

a) O dual algébrico de V é o conjunto de todas as transformações


lineares f : V → R.

b) O dual topológico de V é o conjunto V∗ de todas as transformações


lineares contı́nuas f : V → R.

Exemplos 5.6.2.
15
Ernst Fischer, 1875-1954, matemático alemão de origem austrı́aca, foi professor em
Erlangen e Colónia. Este teorema foi provado para L2 quase simultaneamente por Riesz
e por Fischer em 1907. Riesz definiu os espaços Lp para p > 1 em 1910, e descobriu que
são espaços de Banach, para qualquer p.
290 Capı́tulo 5. Outros Integrais de Lebesgue

1. Se V = L1 (R) ∩ L∞ (R), e φ : V → R é dada por φ(f ) = R f dm, é evidente


R

que φ é linear. Sendo fn a função caracterı́stica de [0, n2 ], e gn = n1 fn , então


φ(gn ) = n → ∞, e kgn k∞ = n1 → 0. Se considerarmos em V a topologia de
L∞ , então φ não é contı́nua, i.e., φ pertence ao dual algébrico, mas não ao
dual topológico.

2. No mesmo espaço, e supondo


R que E ∈ L(R) tem medida finita, a função
ϕ : V → R dada por ϕ(f ) = E f dm é linear, e contı́nua. Basta observar que
Z
|ϕ(f ) − ϕ(g)| ≤ |f − g| dm ≤ kf − gk∞ m(E).
E

3. ϕ : V → R é diferenciável em V se e só se existe uma função Dϕ : V → V∗


tal que
ϕ(x + y) − ϕ(y) − Dϕ(x)(y)
lim =0
y→0 kyk

Teorema 5.6.3. Seja V um espaço vectorial normado, e φ : V → R uma


transformação linear. Então:

a) φ é contı́nua se e só se kφk = sup {|φ(x)| : kxk ≤ 1} < ∞. Em par-


ticular, temos

|φ(x)| ≤ kφk kxk , para quaisquer φ ∈ V∗ , e x ∈ V.

b) O dual topológico V∗ é um espaço de Banach, com norma dada por


kφk = sup {|φ(x)| : kxk ≤ 1}.

Demonstração. Para provar a), seja φ : V → R uma transformação linear.

(i) Suponha-se que φ é contı́nua, em particular contı́nua em 0 ∈ V. Exis-


te por isso δ > 0 tal que kxk ≤ δ ⇒ |φ(x)| ≤ 1. Dado x 6= 0,
δ
consideramos y = kxk x. Observamos que

δ 1
1 ≥ |φ(y)| = |φ(x)| , e |φ(x)| ≤ kxk .
kxk δ

Segue-se que kφk = sup {|φ(x)| : kxk ≤ 1} ≤ 1δ < ∞, e é muito fácil


mostrar que |φ(x)| ≤ kφk kxk, para qualquer x ∈ V.

(ii) Suponha-se que kφk = sup {|φ(x)| : kxk ≤ 1} < ∞, donde mais uma
vez |φ(x)| ≤ kφk kxk. Se y ∈ V, então

|φ(x) − φ(y)| = |φ(x − y)| ≤ kφk kx − yk .

É portanto evidente que φ é (uniformemente) contı́nua em V.


5.6. Teoremas de Representação de Riesz 291

Para mostrarmos que V∗ é um espaço de Banach, é necessário verificar


primeiro que kφk = sup {|φ(x)| : kxk ≤ 1} é uma norma em V∗ , o que dei-
xamos para o exercı́cio 15.
Dada uma sucessão fundamental em V∗ , de termo geral φn , e x ∈ V, a
sucessão real de termo geral φn (x) é fundamental em R, e existe por isso
limn→∞ φn (x), porque:

|φn (x) − φm (x)| = |(φn − φm ) (x)| ≤ kφn − φm k kxk → 0.

Podemos portanto definir φ : V → R por φ(x) = limn→∞ φn (x), e é simples


verificar que φ é linear. A sucessão real de termo geral kφn k é fundamen-
tal, convergente, e limitada, porque |kφn k − kφm k| ≤ kφn − φm k. É fácil
concluir daqui que φ é contı́nua, e V é um espaço de Banach.

Exemplos 5.6.4.
1. Se p e q são expoentesR conjugados, e g ∈ Lqµ (X), podemos definir T :
Lpµ (X) → R por T (f ) = X f gdµ, de acordo com a desigualdade de Hölder.
Ainda de acordo com a mesma desigualdade, é claro que T é uma transformação
linear contı́nua em Lp , e kT k ≤ kgkq .

2. Se µ éR uma medida real em B(RN ), podemos definir T : Cc (RN ) → R por


T (f ) = RN f dµ. Temos neste caso que (16 )

|T (f )| ≤ kf k∞ |µ|(RN ) = kf k∞ kµk .

Concluı́mos que T é uma transformação linear contı́nua em Cc (RN ), com a


topologia de L∞ .

A identificação de transformações lineares apropriadas definidas num


dado espaço normado é um problema muito interessante, e apresentamos a
seguir alguns resultados clássicos desta natureza.

Teorema 5.6.5 (Teorema de Representação de Riesz (I)). As seguintes


afirmações são equivalentes:

a) T : Cc (RN ) → R é uma transformação linear crescente, i.e., se f ≤ g


em RN , então T (f ) ≤ T (g).

b) Existe uma única medida de Radon µ, definida em M(RN ) ⊇ B(RN ),


completa, regular, e finita em conjuntos limitados, tal que
Z
T (f ) = f dµ.
RN
16
Recorde do Capı́tulo 2 que a função kµk = |µ|(X) é uma norma no espaço vectorial
de todas as medidas reais definidas em (X, M).
292 Capı́tulo 5. Outros Integrais de Lebesgue

Demonstração. A implicação b) =⇒ a) é evidente. Para provar que a)


=⇒ b), supomos que U ⊆ RN é aberto, e designamos por Ac (U ) o conjunto
das funções f ∈ Cc (RN ), com suporte compacto em U , e tais que 0 ≤ f ≤ 1
em RN . Definimos ainda

• Se U ⊆ RN é aberto, τ (U ) = sup {T (f ) : f ∈ Ac (U )}.

• para qualquer E ⊆ RN , µ∗ (E) = inf {τ (U ) : E ⊆ U, U , aberto }.

Deve ser claro que, se U é aberto, então µ∗ (U ) = τ (U ).

(i) τ é aditiva e σ-subaditiva na classe dos conjuntos abertos.

Demonstração. Supomos os conjuntos U, Un abertos, e U ⊆ ∪∞ n=1 Un .


Seja f ∈ Ac (U ), com suporte compacto K ⊆ U . Existe m ∈ N tal que
K ⊆ ∪m P h1 , · · · , hm , subordi-
n=1 Un , e existe uma partição da unidade
· · , Um . Com h = m
nada à cobertura U1 , U2 , · P n=1 hn , e fn = f hn ,
m
observamos que f = f h = n=1 fn , e fn ∈ Ac (Un ). Concluı́mos que
m
X m
X ∞
X
f ∈ Ac (U ) =⇒ T (f ) = T (fn ) ≤ τ (Un ) ≤ τ (Un ).
n=1 n=1 n=1
P∞
Segue-se que τ (U ) ≤ n=1 τ (Un ), i.e., τ é σ-subaditiva.
Suponha-se agora que U1 , · · · , Um são abertos e disjuntos, e U =
∪m Un . Quaisquer que sejam as funções fn ∈ Ac (Un ), é claro que
n=1P
f= m n=1 fn ∈ Ac (U ), donde

m
X m
X
T (fn ) = T (f ) ≤ τ (U ), e por isso τ (Un ) ≤ τ (U ).
n=1 n=1
Pm
Como provámos acima que τ (U ) ≤ n=1 τ (Un ), é evidente que
m
X
τ (Un ) = τ (U ).
n=1

Temos assim que τ é aditiva.

(ii) µ∗ é uma medida exterior, e E ⊆ RN é µ∗ -mensurável se e só se


τ (U ) = µ∗ (U ∩ E) + µ∗ (U − E), para qualquer aberto U ⊆ RN .
A respectiva verificação, que é muito simples, fica para o exercı́cio 16.

(iii) Os conjuntos compactos são µ∗ -mensuráveis.


5.6. Teoremas de Representação de Riesz 293

Demonstração. Sendo K compacto e U aberto, temos a provar que

τ (U ) ≥ µ∗ (U ∩ K) + µ∗ (U − K) = µ∗ (U ∩ K) + τ (U − K).

Dado ε > 0, seja f ∈ Ac (U − K), tal que T (f ) > τ (U − K) + ε. Sendo


K ′ o suporte de f , que é disjunto de K, notamos que existem conjuntos
abertos disjuntos V ′ , V tais que K ′ ⊂ V ′ , e K ⊂ V . Consideramos
agora os abertos W ′ = U ∩ V ′ , e W = U ∩ V . Deve ser evidente que
U ⊃ W ∪ W ′ , W e W ′ são disjuntos, U ∩ K ⊂ W , e K ′ ⊂ W ′ . Temos:

τ (U ) ≥ τ (W ∪ W ′ ) = τ (W ) + τ (W ′ ) ≥ µ∗ (U ∩ K) + τ (W ′ ) ≥

≥ µ∗ (U ∩ K) + T (f ) > µ∗ (U ∩ K) + τ (U − K) + ε.
O resultado segue-se fazendo ε → 0.

Sendo M(RN ) a σ-álgebra dos conjuntos µ∗ -mensuráveis, e µ a re-


strição de µ∗ a M(RN ), podemos evidentemente concluir que

(iv) µ é uma medida completa e regular em M(RN ) ⊇ B(RN ).


O próximo resultado estabelece, em particular, que µ é finita em con-
juntos limitados. É por isso relevante para a questão da unicidade de
µ.

(v) Se K é compacto, então

µ(K) = inf T (f ) : f ∈ Cc (RN ), χK ≤ f ≤ 1 < ∞.




Demonstração. Dado f ∈ Cc (RN ) tal que χK


≤ f ≤ 1, suponha-se que
N
0 < ε < 1, e seja Uε = x ∈ R : f (x) > ε . É óbvio que Uε ⊃ K, e
Uε é aberto. Notamos que
1
g ∈ Ac (Uε ) ⇒ εg < f ⇒ εT (g) ≤ T (f ) ⇒ τ (Uε ) ≤ T (f ).
ε
Concluı́mos que µ(K) ≤ τ (Uε ) ≤ 1ε T (f ), para qualquer 0 < ε < 1, e
fazendo ε → 1 obtemos µ(K) ≤ T (f ) < ∞. Em particular,

µ(K) ≤ inf T (f ) : f ∈ Cc (RN ), χK ≤ f ≤ 1 .




Existe ainda um aberto U ⊃ K tal que τ (U ) < µ(K) + ε, e existe


g ∈ Ac (U ) tal que χK ≤ g. É claro que

inf T (f ) : f ∈ Cc (RN ), χK ≤ f ≤ 1 ≤ T (g) ≤ τ (U ) < µ(K) + ε.




Fazendo ε → 0, obtemos inf T (f ) : f ∈ Cc (RN ), χK ≤ f ≤ 1 = µ(K).



294 Capı́tulo 5. Outros Integrais de Lebesgue

O próximo resultado mostra que a medida µ é uma “representação”


do funcional T .
(vi) T (f ) = RN f dµ, para qualquer f ∈ Cc (RN ).
R

Demonstração. Seja K o suporte de f , e R ⊇ K um rectângulo com-


pacto. A função f é uniformemente contı́nua em R, e dado ε > 0, existe
uma partição de R em rectângulos Rk , 1 ≤ k ≤ n, tais que a oscilação
de f em cada Rk é inferior a ε. Supondo Mk = sup {f (x) : x ∈ Rk },
temos:
Xn Z Z
(∗) Mk µ(Rk ) ≤ (f + ε)dµ = f dµ + εµ(R).
k=1 R R

Existem conjuntos abertos Uk ⊇ Rk tais que f (x) < Mk + ε, para


x ∈ Uk , porque f é contı́nua. Sem perda de generalidade, supomos
ε
que µ(Rk ) ≤ τ (Uk ) <
Pµ(R k ) + n , e consideramos uma partição da
n
unidade para K, h = k=1 hk , subordinada aos abertos Uk . Notamos
que fk = f hk < (Mk + ε)hk , donde concluı́mos que:
n
X n
X n
X
T (f ) = T (fk ) ≤ (Mk + ε)T (hk ) ≤ (Mk + ε)τ (Uk ) <
k=1 k=1 k=1
n n
X ε X
< (Mk + ε)(µ(Rk ) + ) ≤ Mk µ(Rk ) + (µ(R) + kf k∞ + ε)ε.
n
k=1 k=1
Utilizamos finalmente (∗), para obter
Z
T (f ) ≤ f dµ + ε(2µ(R) + kf k∞ + ε).
R
R
Fazemos ε → 0, para obter T (f ) ≤ R R f dµ, e aplicamos a desigualdade
à função −f , para obter T (f ) = R f dµ.

A unicidade da medida µ fica estabelecida com o seguinte resultado,


que deixamos para o exercı́cio 16.
(vii) Se λ é uma Rmedida de Radon, definida pelo menos em B(RN ), e tal
que T (f ) = RN f dλ, para qualquer f ∈ Cc (RN ), então λ(K) = µ(K),
para qualquer compacto K ⊂ RN .

Exemplo 5.6.6.
Definimos T : Cc (RN ) → R tomando para T (f ) o integral de Riemann de f
em RN . Sabemos que T é um funcional linear crescente em Cc (RN ). Deve ser
evidente que a medida µ que lhe está associada pelo teorema de representação
de Riesz é exactamente a medida de Lebesgue.
5.6. Teoremas de Representação de Riesz 295

Teorema 5.6.7 (Teorema de Representação de Riesz (II)). Seja T : Lpµ (X) →


R uma transformação linear, onde 1 ≤ p < ∞. Se p = 1, suponha-se que o
espaço (X, M, µ) é σ-finito. Então T é contı́nua se e só se existe g ∈ Lqµ (X),
onde q é conjugado de p, tal que
Z
T (f ) = f gdµ.
X

Neste caso, kT k = kgkq .

Demonstração. Só completaremos esta demonstração mais adiante, depois


de provarmos o teorema de Radon-Nikodym-Lebesgue. Supomos µ(X) < ∞,
e p > 1, e observamos que χE ∈ Lpµ (X), para qualquer E ∈ M. Podemos
assim definir λ : M → R por λ(E) = T (χE ), e deixamos como exercı́cio a
demonstração de:

(i) λ é uma medida real, e λ << µ.


Como veremos adiante, resulta do teorema de Radon-Nikodym que:

(ii) Existe g ∈ L1µ (X) tal que λ(E) = E gdµ, para qualquer E ∈ M.
R

Podemos agora provar:

(iii) g ∈ Lqµ (X), e kgkq ≤ kT k.

Demonstração. Se s é uma função simples mensurável,Pé claro que


s ∈ Lpµ (X), porque supomos µ(X) < ∞. Sendo s = n
k=1 αk χAk ,
temos
n
X n
X Xn Z Z
T (s) = αk T (χAk ) = αk λ(Ak ) = αk gdµ = sgdµ.
k=1 k=1 k=1 Ak X

Existem funções simples mensuráveis tais que 0 ≤ sn ր |g|q , e defini-


1
mos tn = (sn ) p sgn(g). As funções tn são simples e mensuráveis, e é
1 1 1
claro que tn g = (sn ) p |g| ≥ (sn ) p (sn ) q = sn .
Z Z 1
ksn k1 = sn dµ ≤ tn gdµ = T (tn ) ≤ kT k ktn kp = kT k ksn k1p .
X X

Como 0 ≤ sn ր |g|q , temos igualmente


1 q
kg q k1 ≤ kT k kg q k1p , i.e. kgkqq ≤ kT k kgkqp , ou kgkq ≤ kT k ,

onde supomos sem perda de generalidade que kgkq > 0.

O próximo resultado conclui a demonstração para o caso µ(X) < ∞,


e p > 1.
296 Capı́tulo 5. Outros Integrais de Lebesgue

f gdµ, para qualquer f ∈ Lpµ (X), e kT k = kgkq .


R
(iv) T (f ) = X

Demonstração. Definimos S(f ) = X f gdµ, para qualquer f ∈ Lpµ (X).


R

Segue-se imediatamente da desigualdade de Hölder que S é um fun-


cional linear contı́nuo, e kSk ≤ kgkq . Como S(f ) = T (f ) para qual-
quer função simples, e as funções simples são densas em Lp , é fácil
concluir que S = T , e kT k = kgkq (exercı́cio 15).

Deixamos os restantes casos (µ(X) = ∞, e p = 1), para os exercı́cios.

O próximo teorema identifica o dual topológico de Cc (RN ), na topologia


de L∞ . A respectiva demonstração é interessante, em especial por utilizar
duas topologias distintas em Cc (RN ), a da convergência uniforme usual (de
L∞ ), e a do espaço L1λ , onde λ = Var(µ), e µ é a medida real que representa
o funcional T em causa.
Teorema 5.6.8 (Teorema de Representação de Riesz (III)). A transforma-
ção linear T : Cc (RN ) → R é contı́nua na topologia de L∞ se e só se existe
uma medida real µ, definida em B(RN ), tal que
Z
T (f ) = f dµ.
RN

Neste caso, kT k = kµk = |µ|(RN ).


Demonstração. Sendo Cc+ (RN ) = f ∈ Cc (RN ) : f ≥ 0 , definimos


ϕ(T ) : Cc+ (RN ) → R por ϕ(T )(f ) = sup |T (g)| : |g| ≤ f, g ∈ Cc (RN ) .


Temos:
(i) ϕ(T ) é crescente em Cc+ (RN ), e ϕ(T ) ≤ kT k kf k∞ .

(ii) Se c ≥ 0 e f ∈ Cc+ (RN ), então ϕ(T )(cf ) = cϕ(T )(f ) = ϕ(cT )(f ).

(iii) Se f1 , f2 ∈ Cc+ (RN ), então ϕ(T )(f1 + f2 ) = ϕ(T )(f1 ) + ϕ(T )(f2 ).
Demonstramos apenas (iii), já que (i) e (ii) são evidentes. Se g1 , g2 ∈
Cc (RN ), e |gi | ≤ fi , é claro que

T (g1 ) + T (g2 ) = T (g1 + g2 ) ≤ ϕ(T )(f1 + f2 ),

e podemos concluir que

ϕ(T )(f1 ) + ϕ(T )(f2 ) ≤ ϕ(T )(f1 + f2 ).

Por outro lado, se g ∈ Cc (RN ), e |g| ≤ f1 + f2 , definimos


(
g(x)fi (x)
gi (x) = f1 (x)+f2 (x) , se f1 (x) + f2 (x) 6= 0,
0, se f1 (x) + f2 (x) = 0.
5.7. Teoremas de Egorov, Lebesgue e Riesz 297

É claro que as funções gi ∈ Cc (RN ), e |gi | ≤ fi . Temos assim que


T (g) = T (g1 ) + T (g2 ) ≤ ϕ(T )(f1 ) + ϕ(T )(f2 ), donde concluı́mos que

ϕ(T )(f1 + f2 ) ≤ ϕ(T )(f1 ) + ϕ(T )(f2 ).

Definimos Φ(T ) : Cc (RN ) → R por Φ(T )(f ) = ϕ(T )(f + ) − ϕ(T )(f − ).
Observamos que, se f ≥ 0 então Φ(T )(f ) = ϕ(T )(f ), e:
R
(iv) Existe uma medida deR Radon finita α tal que Φ(T )(f ) = RN f dλ. Em
particular, |T (f )| ≤ RN |f | dλ, e portanto T é também contı́nuo na
topologia de L1λ (RN ).
É muito simples mostrar que Φ(T ) é linear e crescente em Cc (RN ). A
existência da medida λ segue-se assim do teorema de representação de
Riesz 5.6.5. A medida λ é finita, de acordo com (i). Temos também,
por definição de ϕ(T ), que

|T (f )| ≤ ϕ(T )(|f |) = ϕ(T )(f + ) + ϕ(T )(f − ) =


Z Z Z
= |f | dλ + |f | dλ = |f | dλ = kf k1 .
RN RN RN

Como Cc (RN ) é denso em L1λ (RN ), existe um funcional linear T̃ : L1λ (RN ) →
R, contı́nuo na topologia de L1 , e que é extensão de T (exercı́cio 15). De
acordo com 5.6.7, existe g ∈ L∞ N
λ (R ) tal que
Z Z
T̃ (f ) = f gdλ = f dµ, para qualquer f ∈ L1λ (RN ),
RN RN
R
onde µ(E) = E gdλ, i.e., µ é o integral indefinido de g em ordem a λ.
Deixamos como exercı́cio verificar que kT k = kµk = Var(µ)(RN ).

5.7 Teoremas de Egorov, Lebesgue e Riesz


É em alguns casos indispensável utilizar topologias que não podem ser
definidas a partir de normas, ou mesmo de qualquer outro tipo de métrica
(17 ). Quando o conjunto em causa é um espaço vectorial, a limitação mais
fundamental a ter em conta na definição de topologias adequadas é a de
garantir a compatibilidade entre as suas estruturas algébrica e topológica,
o que se resume a assegurar que as suas operações algébricas básicas são
contı́nuas. Mais precisamente, sendo O a classe dos conjuntos abertos no
espaço vectorial real V, é necessário que:
17
Uma métrica, ou distância, no conjunto X é uma função d : X × X → [0, ∞[,
tal que d(x, y) = d(y, x), d(x, z) ≤ d(x, y) + d(y, z), e d(x, y) = 0 se e só se x = y.
Uma topologia gerada por uma métrica, a partir das chamadas bolas abertas, que são os
conjuntos Bρ (x) = {y ∈ X : d(x, y) < ρ}, é uma topologia metrizável.
298 Capı́tulo 5. Outros Integrais de Lebesgue

• Se x + y ∈ U ∈ O, então existem V, W ∈ O tal que x ∈ V , y ∈ W , e


(v, w) ∈ V × W ⇒ v + w ∈ U , e

• Se α ∈ R, x ∈ V, e αx ∈ U ∈ O, então existe um aberto V ⊆ R, e


W ∈ O, tal que (α, x) ∈ V × W , e (β, y) ∈ V × W ⇒ βy ∈ U .

Dizemos que o espaço V com a topologia O é um espaço vectorial


topológico. Não nos detemos aqui a examinar em pormenor como definir
topologias em espaços deste tipo, mas notamos que, dada a famı́lia O, é
simples identificar as sucessões convergentes. Dada uma sucessão em V,
de termo geral xn , dizemos que xn → x ∈ V na topologia O, se e só
se, para qualquer aberto U ∈ O, se x ∈ U então existe p ∈ N tal que
n > p ⇒ xn ∈ U . Dadas topologias O e O′ num mesmo espaço V, é comum
dizer que O é mais forte que O′ , ou O′ é mais fraca que O, se e só se
O′ ⊆ O. Deve notar-se que se uma dada sucessão converge na topologia O,
então converge necessariamente em qualquer topologia mais fraca do que O.
Frequentemente, é apenas necessário estabelecer exactamente o critério
de convergência de sucessões, mesmo sem descrever a topologia O em causa.
Damos imediatamente a seguir dois exemplos, nenhum dos quais correspon-
de, em geral, a uma topologia determinada por uma métrica.

Definição 5.7.1 (Convergência Pontual, e em Medida). Dada uma sucessão


fn ∈ Fµ (X), dizemos que a sucessão converge para f

a) pontualmente, se e só se limn→∞ fn (x) = f (x), µ-qtp em X.

b) em medida, se e só se, para qualquer ε > 0,

µ ({x ∈ X : |fn (x) − f (x)| > ε}) → 0 , quando n → ∞.

Escrevemos neste caso “fn ⇒ f ”.(18 )

Note-se de passagem que a convergência em medida é muito utilizada na


Teoria das Probabilidades, já que afirma que a probabilidade da diferença
entre as variáveis aleatórias fn e f ser “significativa” é pequena, quando
n → ∞.

Exemplos 5.7.2.
1. Seja fn : R → R a função caracterı́stica de [n, n + 1]. É claro que fn → 0
pontualmente, mas fn não converge para 0 em Lp (R), para qualquer 1 ≤ p ≤
∞, porque kfn kp = 1. A sucessão fn também não converge para 0 em medida.

2. Se fn (x) = nχIn (x), onde In = [0, n1 ], então fn converge pontualmente e em


medida, mas não converge em Lp .
18
A convergência em medida foi definida por Riesz em 1909.
5.7. Teoremas de Egorov, Lebesgue e Riesz 299

3. Com n, k ∈ N, e 0 ≤ k < n, seja In,k = nk , k+1


 
n , e gn,k a respectiva função
caracterı́stica. Reindexamos as funções gn,k , definindo hm = gn,k , quando
m = nq + k. A sucessão hn converge em Lp , mas não converge pontualmente.
As funções nhn convergem em medida, mas não convergem em Lp .

A topologia da convergência uniforme é sempre mais forte do que a


topologia da convergência pontual, e mais forte do que a topologia de Lp ,
desde que µ(X) < ∞, o que é reflectido no próximo lema. Deixamos a
respectiva demonstração para o exercı́cio 8.

Lema 5.7.3. Se kfn − f k∞ → 0, então fn → f pontualmente, e em medida.


Se µ(X) < ∞, então fn → f em Lp , para qualquer 1 ≤ p ≤ ∞.

A topologia de Lp pode ser introduzida no espaço Fµ (X), através da


métrica, ou distância, d, dada por d(f, g) = min{1, kf − gkp }. A topologia
da convergência em medida é mais fraca do que a topologia de Lp :

Proposição 5.7.4. Dada uma sucessão fn ∈ Fµ (X), se fn → f em Lp ,


então fn converge para f em medida.

Demonstração. Fixado ε > 0, seja En = {x ∈ X : |fn (x) − f (x)| > ε}. Temos
a provar que µ(En ) → 0, e deixamos o caso p = ∞ para o exercı́cio 10.
Temos fn → f em Lp , donde
Z  1 Z 1
p p 1
p p
kfn − f kp = |fn − f | dµ ≥ |fn − f | dµ ≥ εµ(En ) p ≥ 0.
X En

É evidente que µ(En ) → 0.

Demonstramos a seguir três resultados clássicos, devidos a Riesz, Egorov


(19 ), e Lebesgue, que relacionam alguns destes modos de convergência. O
primeiro destes resultados envolve a convergência em medida e a convergência
pontual:

Teorema 5.7.5 (Teorema de Riesz). Dada uma sucessão fn ∈ Fµ (X), se


fn ⇒ f então existe uma subsucessão fnk → f pontualmente.

Demonstração. Fixado k ∈ N , temos


 
1
lim µ x ∈ X : |fn (x) − f (x)| ≥ = 0.
n→∞ k
19
Dimitri Egorov, 1869-1931, matemático russo, de quem Luzin foi aluno. Foi profes-
sor da Universidade de Moscovo, e ocupou cargos muito relevantes, mas foi duramente
perseguido pelas autoridades soviéticas pelas suas convicções religiosas. Morreu no segui-
mento de uma greve da fome, que iniciou na prisão.
300 Capı́tulo 5. Outros Integrais de Lebesgue

Portanto, para cada k existe um natural nk tal que


 
1 1
µ x ∈ X : |fnk (x) − f (x)| ≥ < k.
k 2
Definimos:
a) gk = fnk ,

b) Ek = {x ∈ X : |gk (x) − f (x)| ≥ k1 }, donde µ(Ek ) < 21k .


P∞ 1 1
c) Fm = ∪∞ ∞
k=m Ek , e F = ∩m=1 Fm , donde µ(Fm ) < k=m 2k
= 2m−1
, e
µ(F ) = 0.
Se x 6∈ F , i.e., se x 6∈ Fm para algum m, então x 6∈ Ek para todo o k ≥ m,
e portanto |gk (x) − f (x)| < k1 para k ≥ m, donde gk (x) → f (x). Como
gk (x) → f (x) para x 6∈ F e µ(F ) = 0 temos que gk → f pontualmente.

Quando uma sucessão converge em duas topologias distintas, não é ne-


cessariamente verdade que o respectivo limite seja independente da topolo-
gia em causa. O teorema de Riesz mostra que este problema não existe,
no caso de sucessões de funções que convergem de acordo com mais de um
dos critérios que mencionámos (exercı́cio 6). Passamos a demonstrar uma
relação algo surpreendente entre convergência pontual e convergência uni-
forme.
Teorema 5.7.6 (Teorema de Egorov). Se fn (x) → f (x), µ-q.t.p. em X, e
µ(X) < +∞, então para qualquer ε > 0 existe um conjunto E com µ(X −
E) < ε tal que fn → f uniformemente em E.
Demonstração. Para cada n, k ∈ N, seja
 
1
En,k = x ∈ X : |fn (x) − f (x)| < .
k
Consideramos igualmente os conjuntos

\ ∞
[ ∞
\
Fm,k = En,k ր Ck = Fm,k , e C = Ck .
n=m m=1 k=1

É fácil verificar que fn (x) → f (x) se e só se x ∈ C. Tomando k fixo, sabemos


que µ(Fm,k ) ր µ(Ck ) < ∞. Concluı́mos que, para cada k, existe um natural
pk tal que
ε
µ(Ck − Fpk ,k ) < k .
2
Consideramos o conjunto E, onde

\
E= Fpk ,k .
k=1
5.7. Teoremas de Egorov, Lebesgue e Riesz 301

Dado qualquer natural k, supomos que n ≥ pk e tomamos qualquer x ∈


E. Como x ∈ Fpk ,k , concluimos que |fn (x) − f (x)| < k1 , donde fn →
f uniformemente em E. Por outro lado, é fácil verificar que C − E ⊆
∪∞
m=1 (Ck − Fpk ,k ), donde se segue imediatamente que µ(C − E) < ε. Como
o complementar de C tem medida nula, o resultado está demonstrado.

O resultado seguinte relaciona a convergência pontual com a convergência


em medida. Mais uma vez, só é aplicável quando µ(X) < +∞.

Teorema 5.7.7 (Teorema de Lebesgue). Se fn → f pontualmente e µ(X) <


+∞ então fn ⇒ f .

Demonstração. Dado ε > 0, seja

En = {x ∈ X : |fn (x) − f (x)| ≥ ε} .

Dado δ > 0, sabemos do teorema de Egoroff que existe E ⊆ X tal que


fn → f uniformemente em E, e µ(X − E) < δ.
Existe, por isso, um natural p tal que n > p ⇒ |fn (x) − f (x)| < ε, para
qualquer x ∈ E. É portanto óbvio que para n > p temos En ⊆ (X − E),
donde n > p ⇒ µ(En ) < δ.

É tradicional dizer que a topologia usual de um qualquer espaço vectorial


normado, associada à respectiva norma, é a sua topologia forte. Além
desta, é muito comum a utilização das chamadas topologias “fraca”, e
“fraca∗ ”, que se lê “fraca estrela”. Estas duas últimas são mais fracas do
que a topologia “forte”, como o respectivo nome indica, e, em geral, não
são metrizáveis. A próxima definição indica os critérios de convergência de
sucessões que estão associados a estas topologias.

Definição 5.7.8 (Topologias Fraca, e Fraca∗ ). Seja V um espaço vectorial


normado, e V∗ o seu dual topológico.

a) A sucessão de termo geral xn ∈ V converge para x na topologia


fraca se e só se T (xn ) → T (x), para qualquer T ∈ V∗ .

b) A sucessão de termo geral Tn ∈ V∗ converge para T na topologia


fraca∗ se e só se Tn (x) → T (x), para qualquer x ∈ V.
Exemplos 5.7.9.
1. A sucessão de funções fn (x) = sen(nx) converge para 0 na topologia fraca
de L1 ([0, 2π]) (recorde o exercı́cio 6 da secção 3.4).

2. A topologia fraca∗ é a usual convergência pontual de funções, restrita ao


espaço das transformações lineares contı́nuas.

3. De acordo com o Teorema de Riesz, se V = Lp , e 1 < p < ∞, então V∗∗ = V.


Portanto, as topologias fraca e fraca∗ são iguais em Lp , desde que 1 < p < ∞.
302 Capı́tulo 5. Outros Integrais de Lebesgue

A tı́tulo de curiosidade, indicamos aqui um resultado que sugere algumas


das vantagens associadas a estas topologias fracas:

Teorema 5.7.10 (Teorema de Alaoglu). A bola fechada unitária {T ∈ V∗ :


kT k ≤ 1} é compacta na topologia fraca∗ .

Uniforme
@@  9 99
 99
 99
 99
99
 99
Egorov  99
99
Em L p 99
t:: KK
K KK 99
t KK 99
t KK
t K 99
t KK
t KK 999
t TCDL KK 9
KK 9
t
t Lebesgue
t b a a ` ` _ _ _ ^ ^ ] ] ..
KK 99
K%% 
Pontual nn Em medida
Riesz

Figura 5.7.1: Relações entre modos de convergência

Exercı́cios.

1. Prove que a relação ≃ é de equivalência. Prove que se f ≃ f ∗ , g ≃ g ∗ e


c ∈ R, então f + g ≃ f ∗ + g ∗ , f g ≃ f ∗ g ∗ , e cf ≃ cf ∗ .

2. Seja f : R → R Lebesgue-mensurável.
a) Se f é equivalente a uma função contı́nua g : R → R, f é sempre contı́nua
qtp?
b) Se f é contı́nua qtp, existe sempre g : R → R contı́nua equivalente a f ?

3. Demonstre as proposições 5.5.7 e 5.5.9, relativas aos espaços L∞ .

4. Demonstre o teorema 5.5.26 para o caso p = ∞.

5. Suponha que fn , gn ∈ Fµ (X), α ∈ R, fn → f , e gn → g, pontualmente


(respectivamente, em medida, em Lp ). Prove que fn +gn → f +g, e αfn → αf ,
pontualmente (respectivamente, em medida, em Lp ).

6. Suponha que fn ∈ Fµ (X), fn → f , e fn → g, de acordo com dois critérios


de convergência distintos (pontualmente, em medida, ou em Lp ). Prove que
f = g.
5.7. Teoremas de Egorov, Lebesgue e Riesz 303

7. Suponha que fn ∈ Fµ (X), e fn − fm → 0 pontualmente (respectivamente,


em medida). Prove que existe f ∈ Fµ (X) tal que fn → f pontualmente
(respectivamente, em medida).

8. Demonstre o lema 5.7.3.

9. Supondo µ(X) < ∞, e f, g ∈ Fµ (X), definimos


|f − g|
Z
d(f, g) = dµ.
X 1 + |f − g|

Mostre que:
a) d é uma métrica em Fµ (X).
b) d(fn , f ) → 0 se e só se fn ⇒ f .

10. Demonstre a proposição 5.7.4, para p = ∞.

11. Generalize o teorema da convergência dominada de Lebesgue para o espaço


Lp . sugestão: Suponha |fn | ≤ g, onde g ∈ Lp , e fn (x) → f (x), qtp em X.

12. Mostre que o fecho de Cc (RN ) na topologia de L∞ (RN ) é o espaço C0 (RN ).

13. Demonstre as seguintes afirmações, relativas aos espaços Lpµ (X):


a) Se µ(X) < ∞, e p < q, então Lqµ (X) ⊆ Lpµ (X).
b) Se p < q < r, e f ∈ Lpµ (X) ∩ Lrµ (X), então f ∈ Lqµ (X).
c) Se p < q, então ℓp ⊆ ℓq , Lp (R) − Lq (R) 6= ∅, e Lq (R) − Lp (R) 6= ∅.

14. Seja Sµ (X) ⊆ Fµ (X) o conjunto das classes que têm um representante
simples. Supondo 1 ≤ p, q < ∞, prove que:
a) Sµ (X) ∩ Lpµ (X) é um subespaço denso de Lpµ (X).
b) Lpµ (X) ∩ Lqµ (X) é denso em Lpµ (X).
c) Em geral, Sµ (X) ∩ L∞ ∞
µ (X) não é denso em Lµ (X).
d) Existe um conjunto numerável, denso em Lp (RN ).

15. Seja V um espaço vectorial normado.


a) Mostre que qualquer sucessão convergente em V na topologia forte é
fundamental.
b) Prove a implicação “a) ⇒ b)” do lema 5.5.22.
c) Mostre que kφk = sup{|φ(x)k : kxk ≤ 1} é uma norma em V∗ .
d) Mostre que se a sucessão de termo geral Tn converge na topologia fraca
de V∗ , então converge igualmente na topologia fraca∗ .
e) Suponha que W ⊆ V é um subespaço denso de V, e T : W → R é linear e
contı́nua. Prove que T tem uma única extensão linear contı́nua S a todo
o espaço V, e que kT k = kSk, i.e.,
sup {|T (x)| : kxk ≤ 1, x ∈ W} = sup {|S(y)| : kyk ≤ 1, y ∈ V} .
304 Capı́tulo 5. Outros Integrais de Lebesgue

f) Suponha que B é um espaço de Banach, e T é o espaço das transformações


lineares contı́nuas T : V → B. Mostre que T é um espaço de Banach.

16. Complete a demonstração do teorema de representação de Riesz (I) (5.6.5),


provando as afirmações (ii) e (vii).

17. Complete a demonstração do teorema de representação de Riesz (II) (5.6.7).


sugestão: Proceda como se segue:
a) Demonstre o resultado para p = 1, supondo µ(X) < ∞.
b) Demonstre que a função g, a existir, é única em Lqµ (X).
c) Prove que, se E ⊆ X tem medida finita, existe g ∈ Lqµ (X), com suporte
em E, tal que,R para qualquer função f ∈ Lpµ (X), como suporte em E,
temos T (f ) = X f gdµ.
d) Demonstre o resultado para 1 ≤ p < ∞, quando µ é σ-finita.
e) Demonstre o resultado para 1 < p < ∞. sugestão: A alı́nea c) pode
ser generalizada Rpara conjuntos σ-finitos. Mostre que existe um conjunto
σ-finito S onde E |g|q dµ é máximo.

18. Complete a demonstração de 5.6.8, provando que kT k = kµk.

19. Os teoremas 5.7.6 e 5.7.7 são aplicáveis em espaços σ-finitos?

20. Mostre que, em geral, a bola unitária fechada B 1 (0) = {v ∈ V : kvk ≤ 1}


não é compacta na topologia forte. sugestão: Considere os espaços ℓp .
Índice

305
Índice

acontecimento, 81 µ∗ -mensurável, 100


aditividade, 10, 15, 21 perfeito, 35
álgebra de conjuntos, 20 σ-elementar, 68
axioma da escolha, 97 conteúdo, 9, 10
de Jordan, 27
Barrow, regra de, 55 exterior, 26
BV (I), 211 interior, 26
continuidade
C(I), 30
absoluta, 194, 217
Cε (I), 71
convergência
cardinal, 21
em medida, 298
Cck (RN ), C0 (RN ), 174
classe monótona, 265 em Lp , 285
gerada por, 266 pontual, 298
c̃N , 68
cobertura decomposição
sequencial, 84 de Hahn, 184
combinação convexa, 282 de Jordan, 182
comprimento, 9 de Lebesgue, 195, 271
conjunto derivada
Borel-mensurável, 110 de Radon-Nikodym, 273
de Borel, 110 generalizada, 202
de Cantor, 30 no sentido das distribuições, 202
de Dirichlet, 31 desigualdade
de Volterra, 71 de Hölder, 283
denso, 31 de Minkowski, 283
diâmetro, 11 diâmetro
elementar, 13 de conjunto, 11
Fσ , 110 de partição, 11
Gδ , 110 diferença de conjuntos, 12
Jordan-mensurável, 27 Dirichlet
Lebesgue-mensurável, 93 conjunto de, 31
mensurável, 79 função de, 38
µ-negativo, 183 distribuição
µ-nulo, 181 de Dirac, 22
µ-positivo, 183 de probabilidade, 203

306
ÍNDICE 307

equivalência de funções, 128, 278 de Cantor, 59


E(RN ), 13 de conjuntos, 21
Eσ (RN ), 68 aditiva, 21
escada do Diabo, 59 monótona, 21
espaço σ-aditiva, 66
de Banach, 170, 287 σ-subaditiva, 66
de Hilbert, 287 subaditiva, 21
de medida, 81 de Dirichlet, 38
completo, 106 de escolha, 97
finito, 81 de Heaviside, 22
menor extensão completa, 106 de Hellinger, 226
σ-finito, 81 de Riemann, 38
de probabilidade, 81 de saltos, 207
dual de van der Waerden, 60
algébrico, 289 de variação limitada, 211
topológico, 289 de Volterra, 72
euclidiano, 282 discreta, 207
L1 , 166 equivalente, 128
Lp , 280 escada do Diabo, 59
L∞ , 281 gráfico, 40
mensurável, 79 comprimento, 62
vectorial normado, 45 Lebesgue-mensurável, 124, 127
exemplo de Lebesgue-somável, 125, 127
Cantor, conjunto, 30 mensurável, 251
Cantor, função, 59 M-mensurável, 241
Dirichlet, conjunto, 31 µ-somável, 241
Dirichlet, função, 38 oscilação, 49
Hellinger, 226 parte contı́nua, 207
Riemann, 38 parte discreta, 207
Sierpinski, 96 parte negativa, 38
van der Waerden, 60 parte positiva, 38
Volterra, conjunto, 71 região de ordenadas, 35
Volterra, função, 72 Riemann-integrável, 36
expoentes conjugados, 282 simples, 155
sinal, 58
FL(µ ⊗ ν), 264 somável, 251
função suporte, 38
absolutamente contı́nua, 217 variação total, 211
Borel-mensurável, 124, 127 funcional, 41
côncava, 281
caracterı́stica, 38 GE (f ), ΓE (f ), 131
contı́nua
de suporte compacto, 174 impulso de Dirac, 22
convexa, 281 indicatriz de Banach, 214
308 ÍNDICE

integração por partes, 261 de Cantor, 205


integral de contagem, 80
de Lebesgue de Dirac, 22, 80
em ordem a µ, 241 de Lebesgue, 93
em ordem a mN , 124 de Lebesgue-Stieltjes, 196
de Riemann, 36, 53 de probabilidade, 80
de Stieltjes, 239 de Radon, 79
definido discreta, 192
de Riemann, 41 localmente finita, 198
desigualdade triangular, 39 parte contı́nua, 207
homogeneidade, 39 parte discreta, 207
impróprio de Riemann, 125 real, 79
absolutamente convergente, regular, 200
126 singular, 183
impróprio, 62 suporte, 180
indefinido medida exterior, 84
de Lebesgue, 131 de Lebesgue, 88
de Riemann, 45 minorante essencial, 280
inferior, 37 mN , 93
paramétrico, 141 m∗N , 88
superior, 37 M ⊗ N , 240

J (RN ), 27 N BV (I), 211


Jσ (RN ), 68 norma, 44
de L1 , 43, 166
ℓ1 , 256 de Lp , 280
L1 , 166 de L∞ , 178, 281
Lema normas equivalentes, 286
de Borel-Cantelli, 87
de Fatou, 139, 254 ωf , 49
de Fatou (II), 140, 254 ΩR (f ), 36
de Jordan, 219 Oscf (S), 49
de Riemann-Lebesgue, 173 oscilação
de Riesz (Sol Nascente), 221, de função, 49
233
L(RN ), 93 paradoxo de Banach-Tarski, 98
partição, 10
µ-qtp, 181 apropriada, 155
majorante essencial, 280 diâmetro, 11
M (B(RN )), 192 refinamento, 11
medida pente de Dirac, 22, 192, 207
absolutamente contı́nua, 194 ponto de acumulação, 35
completa, 193 probabilidade, 21
complexa, 79 problema
de Borel, 196 de Caratheodory, 100
ÍNDICE 309

de Stieltjes, 203 decomposição de Hahn-Jordan,


difı́cil de Lebesgue, 95 188
fácil de Lebesgue, 91 decomposição de Lebesgue, 230,
produto de convolução, 171 271
diferenciação de Fubini, 278
qtp, 52, 181 diferenciação de Lebesgue, 225
Egorov, 300
R, 82 Fichtenholz, 220
rectângulo, 9 Fubini-Lebesgue, 146, 171
recta acabada, 82 Fubini-Lebesgue, 263, 268
refinamento, 11 Fundamental do Cálculo
comum, 11 1o , 57, 231
reflexão, 16 2o , 57, 59, 231
regra de Barrow, 55 Hahn, extensão de, 247
Riemann Heine-Borel, 49
função de, 38 Lebesgue, 301
Radon-Nikodym, 272, 273
σ-aditividade, 66 Radon-Nikodym-Lebesgue, 272
σ-álgebra, 78 Representação de Riesz, 291,
gerada por, 110 295, 296
semi-álgebra de conjuntos, 19 Riesz, 299
semi-norma, 45 Riesz-Fischer, 289
Sierpinski Vitali-Luzin, 175, 258
exemplo de, 96 topologia, 284
soma transformada de Fourier, 168
de Riemann, 53 continuidade, 178
inferior de Darboux, 37 translacção, 16
superior de Darboux, 37
σ-subaditividade, 66 U(RN ), 13
subaditividade, 15, 21
variável aleatória, 239
suporte de
variação
função, 38
limitada, 192
medida, 180
negativa, 190
positiva, 190
Teorema (de/da)
total, 190, 192, 211
Alaoglu, 302
Banach-Vitali, 214
Banach-Zaretsky, 219
Beppo Levi, 138, 253
Beppo Levi (II), 139, 253
convergência dominada de Le-
besgue, 140, 167, 256
convergência monótona de Le-
besgue, 82

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