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RESENHA
CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DOS TRA- trabalhista em matéria de reconhecimento dos
BALHADORES direitos dos trabalhadores, notadamente de re-
ajustes salariais e da legalidade das greves, um
importante componente para a deflagração do
golpe militar de 1964.
Renata Queiroz Dutra* Para cumprir essa empreitada, o autor
parte do levantamento empírico dos dissídios
coletivos julgados pelo Tribunal Regional do
Trabalho de São Paulo durante o fatídico perí-
SILVA, F. T. da. Trabalhadores no Tribunal:
odo, que se inicia em janeiro de 1963 e vai até
conflitos e justiça do trabalho em São Paulo
no contexto do golpe de 1964. São Paulo: Ed. março de 1964.
Alameda, 2016. 307p. É a partir da análise do exercício do po-
der normativo da Justiça do Trabalho que o pes-
quisador constrói as reflexões que orientam a
obra. Tal poder consiste na competência atribu-
ída aos Tribunais Trabalhistas de, resolvendo
A obra analisada, fruto da tese de livre- conflitos deflagrados no processo de negocia-
-docência do historiador Fernando Teixeira da ção entre empregadores e sindicatos de traba-
Silva (Professor do Departamento de História lhadores, estabelecer, por meio de decisão ju-
da UNICAMP), oferece uma importante relei- dicial, normas econômicas e sociais a vigerem
tura do papel da Justiça do Trabalho no proces- entre as partes, com força de lei. Amplamente
so de organização e construção da identidade criticado no âmbito jurídico, por ser considera-
dos trabalhadores, em sua luta por direitos. do uma das marcas autoritárias e paternalistas
Revisando o clássico entendimento de de nossa legislação em relação à negociação
que a estrutura corporativista imposta por coletiva (Delgado, 2016), tal poder veio a ser
Getúlio Vargas no Brasil teria operado, tendo restringido por meio da Emenda Constitucio-
por braço a Justiça do Trabalho, no sentido de nal nº 45/2004, que limita as possibilidades de
manter os conflitos sociais sob o controle do ajuizamento de dissídios coletivos. A proposta
de Fernando Teixeira da Silva, todavia, é com-
*
Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Direito. 1
O que, inclusive, conduz o autor ao debate sobre a pre-
Rua Da Paz, S/N. Graça. Cep: 40150140. Salvador – Bahia servação nos arquivos da Justiça do Trabalho em um “ca-
– Brasil. renataqdutra@gmail.com pítulo-bônus”.
http://dx.doi.org/10.1590/S0103-49792018000200016 427
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e, ao contrário do que se costuma registrar, ção como forma de luta e (ou) pressão contra
evidencia que essa mobilização judicial não os empregadores. Não houve, na pesquisa em-
implicava anulação de outras formas de mobi- preendida, identificação de incompatibilidade
lização: o autor detecta o manejo articulado de entre o acionamento da Justiça do Trabalho e
formas de ação institucional e outras formas a mobilização coletiva dos trabalhadores, mas,
de luta (como greves e manifestações) pelos em verdade, a confirmação de seu caráter com-
trabalhadores, no período analisado. plementar.
Para Silva, a historiografia assentada ex- Nesse sentido, é feita uma análise com-
clusivamente nas narrativas e memórias de di- parativa dos modelos justrabalhistas contratu-
rigentes sindicais, sem mediações e confronta- ais (Inglaterra, Canadá e EUA) e legais, a fim
ções empíricas, acaba por obnubilar, por meio de demonstrar que a opção por sistemas nego-
dos complexos processos de seleção, edição ciados, com ampla liberdade para as partes, e
criativa e politização das memórias, dinâmi- a opção por sistemas bifrontes (comportando
cas institucionais importantes (Silva, 2016, p. negociação, mas com alguma margem de in-
209). Daí porque o recurso aos autos judiciais, tervenção estatal) não estabelecem, a priori, a
devidamente preservados e confrontados com caraterística democrática ou as dinâmicas de
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24/1999, que os extinguiu) com as respectivas pel das instituições trabalhistas como “fontes
pautas dos grupos representados, à revelia de de insolência” dos trabalhadores rurais, bem
uma subestimação do papel desses sujeitos, como a eclosão de greves importantes no meio
declarada por pesquisas anteriores. rural em 1963. As disputas no meio agrário,
A consulta aos registros contidos nos au- na década de 1960, e temor dos proprietários
tos processuais analisados ainda revelou que o de terra em relação a elas também compõem,
caráter proibitivo da norma regente da greve segundo o autor, o cenário do golpe de 1964.
no período (Decreto-Lei nº 9.070) era contor- Nessa esteira, as conclusões do autor ca-
nado, conforme critérios de conveniência, por minham para uma revisão do posicionamento
decisões judiciais de frequência progressiva- hodierno da academia em relação à judicializa-
mente maior no ano de 1963. Em verdade, as ção dos conflitos do trabalho, colocando esse
brechas encontradas pelos trabalhadores reve- fenômeno não como fator de arrefecimento da
laram a incapacidade da Justiça do trabalho luta de classes, mas como elemento constituti-
para conter movimentos paredistas, chegando, vo da classe trabalhadora brasileira e de suas
em certas ocasiões, até mesmo a estimulá-los lutas: na medida em que os tribunais se apre-
(a exemplo da ameaça de greve com o propósi- sentaram como arena de disputa de direitos
to de suscitar dissídio coletivo). e interesses, os trabalhadores ocuparam esse
O autor ressalta como esse aspecto pas- espaço e participaram ativamente da constru-
sou despercebido pela literatura especializada, ção dos fundamentos e da ação institucional
não obstante sua relevância política. A lição da Justiça do Trabalho, conseguindo permear,
tirada pelo autor é a de que “trabalhadores e em muitos momentos, sua atuação, sem perder
movimento sindical aprenderam a jogar com de vista, é claro, os limites dessa ação institu-
e contra as armas oferecidas pelo decreto-lei cional.
nº 9070, o que não tem merecido a atenção O caldo político formulado pela esquer-
dos pesquisadores” (Silva, 2016, p. 199), sen- da mediante esgarçamento dos conflitos de
do que as decisões proferidas nos dissídios em classe no início da década de 1960 não apenas
que houve incidência de greve se mostraram implicou um aprofundamento da organização
até mais favoráveis aos trabalhadores, se com- coletiva dos trabalhadores, mas também uma
paradas às daqueles dissídios em que não hou- captura inteligente e eficiente das instituições
ve greve. Ressalta, também aqui, a convivência estatais em muitos momentos, de modo con-
Caderno CRH, Salvador, v. 31, n. 83, p. 427-431, Maio/Ago. 2018
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Renata Queiroz Dutra
Renata Queiroz Dutra – Doutora e Mestra em Direito pela UNB, Professora do Departamento de Direito
Privado da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia. Integra o Grupo de Pesquisas “Trabalho,
Precarização e resistências” (CRH/UFBA), desenvolvendo pesquisas na área de regulação do trabalho.
Suas mais recentes publicações são: Trabalho, regulação e cidadania: a dialética da regulação social do
trabalho (São Paulo: LTr, 2018).
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