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A PERCEPÇÃO E SEUS DESTINOS EM MERLEAU-PONTY E NA


PSICANÁLISE FREUDIANA1

NELSON ERNESTO COELHO JUNIOR


Professor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo

A dificuldade própria de uma filosofia da


percepção é precisamente fazer jus a este
fenômeno, ao vivido de uma autonomia e de
uma pré-existência do real, sem por isso
fundá-lo ingenuamente sobre uma pré-
existência real ou natural. (Merleau-Ponty,
Fenomenologia da Percepção)

... finalmente, o problema da natureza do


mundo sem levar em consideração nosso
aparelho anímico perceptivo
[wahrnehmenden seelischen Apparat ] não
passa de uma abstração vazia. (Freud, O
futuro de uma ilusão)

INTRODUÇÃO:
A percepção voltou à moda nas duas últimas décadas. Em meio ao domínio
quase absoluto das investigações que privilegiavam o mundo da linguagem,
tanto na filosofia quanto na psicanálise, em geral fazendo a linguagem
preexistir a sujeito e mundo, reapareceu uma providencial preocupação com
a percepção como nossa forma mais original de contato com o mundo e com
nós mesmos. Talvez esta volta de interesse pelo estudo da percepção
também possa ser entendida como uma reação a uma cultura e a relações
cada vez mais virtuais. E neste caso se depositaria no retorno da percepção
a esperança de acessos verdadeiros ao real, àquilo que seria material e
1
Retomo neste artigo ideias apresentadas em “Merleau-Ponty e o Primado da Percepção” (Cf. Coelho
Junior, N. 2000), em “Inconsciente e Percepção na Psicanálise Freudiana” (Cf. Coelho Junior, N. 1999 a)
e em “Usos da Percepção na Psicanálise Contemporânea” (Cf. Coelho Junior, N. 1999b).
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objetivo. Talvez ela também possa ser entendida pela expectativa de que se
reinstale, sem maiores conflitos, a correspondência aristotélica entre o objeto
percebido, o sujeito que percebe e a representação mental do objeto
percebido. Assim, uma realidade marcada por grandes tensões, regida em
parte pelo signo do caos, talvez reencontrasse uma tranquilizadora ordem
racional.
A percepção é, de forma geral, simultaneamente a designação de uma
função, de um ato que exerce esta função e do resultado deste ato. Ou
como prefere Barande (1992), “perceber é uma conduta de um organismo,
uma conduta dinâmica.” (p.371) Perceber é, ainda, adquirir conhecimentos
através dos sentidos, é um ato que na filosofia sempre esteve associado, ao
menos até os trabalhos de Merleau-Ponty, à concepção de um sujeito que
capta ativamente um objeto externo. Desde a noção latina percipere
encontramos este último sentido, que enfatiza a posição ativa do sujeito
perante um mundo inerte que está lá para ser ‘apreendido’, ‘recolhido’,
‘captado’.
A hipótese principal que defendo, no entanto, é a de que a percepção
ocupa o espaço intermediário, o lugar da ambiguidade entre o virtual e o
atual, entre o subjetivo e o objetivo, entre o psiquismo e a assim chamada
realidade externa. Entendo que a percepção não pode ser purificada de
seus aspectos introjetivos e projetivos. Diante dessas hipóteses investigo já
há mais de uma década o que autores e teorias, tanto na filosofia como na
psicanálise têm pensado ao procurar recolocar a percepção em um lugar
central em nossa compreensão dos processos de constituição da
subjetividade. Mas para isso, procurei também reler dois autores principais
para o estudo do tema da percepção, no âmbito da psicanálise e da
fenomenologia: Freud e Merleau-Ponty.

Setenta anos após a publicação do livro Fenomenologia da Percepção de


Merleau-Ponty, filósofos e psicanalistas têm retornado ao tema em busca de
novas vias de investigação (isto sem mencionar, é evidente, os ininterruptos
avanços em pesquisas sobre percepção nas neurociências, nas ciências
cognitivas e nos estudos mais recentes que procuram ampliar as
possibilidades sensoriais dos seres humanos através dos recursos do
3

sofisticado mundo da informática2). O filósofo francês Jacques Bouveresse,


por exemplo, para quem foi criada em 1995 uma nova cadeira de filosofia no
Collège de France, onde o precederam Merleau-Ponty e Foucault, no
primeiro volume de seu livro Langage, perception et réalité (1995), dedicado
ao estudo da percepção e do julgamento, afirma categoricamente que:
“Entre todos os problemas filosóficos, o da percepção é certamente um dos
mais difíceis e, ao mesmo tempo, um daqueles em que a dificuldade foi e
continua sendo mais gravemente subestimada.”(p.34).
Bouveresse, percorrendo diferentes caminhos pela filosofia dos dois últimos
séculos, de Brentano a Frege ou de Husserl a Wittgenstein e também pela
psicologia, discutindo detalhadamente as teorias de Helmholtz sobre a
percepção e fazendo incursões pelos estudos de Köhler, nos revela a
complexa rede de questões que envolvem os debates contemporâneos
sobre a percepção, na filosofia. Sem pretender um levantamento exaustivo
das contribuições das duas últimas décadas, gostaria de destacar, no campo
da filosofia fenomenológica, o ensaio de Kevin Mulligan (1995) “Perception”,
sobre as teorias de Husserl e sua contextualização na filosofia
contemporânea, e o número da revista Lettres Philosophiques (3, 1991),
dedicado ao tema da percepção. Caberia destacar, ainda, as relações entre
percepção e ação, campo de pesquisa sobre o qual estudiosos do legado
merleau-pontyano têm se debruçado com grande efetividade (Cf. Bonan, R.
(éd.), 2005).
Na psicanálise, este retorno aparece com maior evidência nas investigações
dos psicanalistas franceses, bastante bem representadas nos números da
Revue Française de Psychanalyse (1-1992) e (2-1995) dedicados
respectivamente aos temas “Irrepresentável ou irrepresentado?“ e
“Percepção”, além dos livros de Nicolaïdis (1993), Bernat (1996) e Janin

2
Com relação ao estudo da percepção nas ciências cognitivas, remeto o leitor ao texto de Elisabeth
Pacherie “Sciences Cognitives: Nouvelles Perspectives sur L’Intentionnalite et la Perception”, In :Lettres
Philosophiques , 3 , Editions Gaïa, Paris, 1991.Quanto às relações entre percepção e avanços na
informática cabe destacar pesquisas como as do Prof. Hiroshi Ishii, do Media Lab do M.I.T. com relação
à inclusão das possibilidades do tato na comunicação através de computadores. Pesquisas como esta são
exemplo de trabalhos que procuram possibilitar atos perceptivos “ à distância” , ampliando de maneira
radical a nossa concepção do que seja um ato perceptivo. Outros estudos nesta linha têm sido feitos com
relação ao olfato, a visão, a audição e o paladar, como aparecem relatados em “In the realms of the
senses”, reportagem de James Geary, para o número especial da revista norte-americana “Time”,
dedicado à “The new age of discovery- A celebration of mankind’s exploration of the unknown”,
dezembro,1997- janeiro, 1998.
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(1996). Mas ele está presente também entre os autores de língua inglesa,
em trabalhos como os de Bollas (1992, 1993 e 2013) onde, além de um
inovador uso da concepção freudiana de percepções endopsíquicas, merece
destaque o desenvolvimento de noções como a de percepção intuitiva na
análise dos usos expressivos da contratransferência, Ogden (1996 a, 1996b,
1997 e 2009) com sua ênfase em uma compreensão intersubjetiva do
processo analítico, ou Steiner (1997), analisando mecanismos perversos
como o que ele denomina de “fingir que não vê” e também a forma como
retoma as ideias de Freud sobre o fetichismo, enfatizando a simultaneidade
do reconhecimento e da negação de algo percebido. Há ainda o trabalho em
torno das relações entre a imitação e a percepção na constituição subjetiva,
que articulam as referências freudianas aos estudos da psicologia do
desenvolvimento e das neurociências, como nos trabalhos dos psicanalistas
brasileiros Paulo Carvalho (2012) e Pedro Salem (2012). Estas referências
iniciais, longe de serem exaustivas, fornecem um panorama mínimo que
permite contextualizar a investigação que proponho neste trabalho.
No avant propos da Revue Française de Psychanalyse (2-1995) os editores
do número iniciam seu argumento afirmando que:

Ao inconsciente Freud opõe o sistema percepção- consciência, oposição pertinente de dois


polos, um se definindo em relação ao outro. No entanto, a psicanálise deixou a maior parte
do tempo fora de seu campo de reflexão tanto a consciência como a percepção.
Porque o inconsciente torna a psicanálise específica, porque a fantasia inconsciente é seu
objeto de estudo eleito, porque a pulsão e o universo das representações estão no centro
do trabalho clínico da psicanálise, a percepção foi deixada aos psicólogos, estudar a
consciência e suas dissoluções foi abandonado aos psiquiatras. Trate-se de desdém ou de
sacrifício contra- fóbico, esta afirmação de identidade que se apoia sobre uma assim tão
bela indiferença, não deve fazer com que se pense que certo corte epistemológico colocaria

a percepção e os fenômenos conscientes fora do domínio da psicanálise . (p.333)

Ainda no avant propos, um pouco adiante, eles se perguntam: “A noção de


realidade em psicanálise pode ter outro sentido, a não ser o metafísico, se
nós evitamos a construção de uma teoria da percepção?”(p.333) E aqui
surge com clareza uma das principais facetas da urgência de um estudo
aprofundado da percepção para a psicanálise: reinstalar a elaboração
5

psicanalítica sobre a realidade, sobre as relações concretas entre psiquismo


e realidade. Se recorri a uma citação tão longa como essa, é porque entendo
que ela apresenta com grande clareza o estado da questão e algumas das
implicações presentes no longo silêncio dos psicanalistas com relação ao
tema da percepção3. Há que se fazer justiça aos analistas franceses pós-
lacanianos, que principalmente a partir da crítica de André Green (1973
[1982]) ao pensamento lacaniano e sua exclusão da temática do afeto, têm
se esforçado em pensar as questões clínicas e teóricas da psicanálise fora
da tirania da linguagem. Cabe ao chamado grupo de analistas pós-
freudianos denominados de “analistas marginais” por Bercherie (1988),
aproveitando um batismo feito por Balint, a preocupação com esta temática
na psicanálise de língua inglesa, principalmente entre os autores que se
interessaram pela análise clínica da percepção inconsciente na relação
transferencial-contratransferencial. O maior interesse recente de
psicanalistas pelo estudo da percepção vem precedido por uma série de
estudos dedicados ao tema da realidade 4. Neste sentido, a importância
dada por Winnicott ao ambiente e às relações com a mãe na constituição do
psiquismo do bebê, assim como a obra de Lacan e sua decisiva afirmação
da necessidade do outro para a existência psíquica do sujeito, contribuíram
claramente para que o interesse dos psicanalistas não se restringisse à
realidade intrapsíquica.
Cabe também reafirmar que a percepção está vinculada, clínica e
teoricamente ao tema da alucinação. As descrições psicanalíticas
apresentam tanto situações em que "percebe-se" algo que não está
presente na assim chamada realidade externa e, portanto, sem que tenha
havido algo que estimulasse os órgãos dos sentidos, como situações em
que “não se percebe" algo que de fato está presente na realidade externa e

3
Botella e Botella (1995), referindo-se ao estatuto da percepção entre os psicanalistas, lembram que a
percepção “...mal amada pelos psicanalistas, inteiramente ignorada pelo índice do Abstract of the
Standard Edition, só tem direito, no Vocabulário de Laplanche e Pontalis, a uma referência sob a
rubrica Consciência (psicológica); considerada por muitos como devendo ser deixada aos psicólogos, aos
neurofisiologistas, ou ainda aos cognitivistas, a percepção é abordada por Freud desde o Projeto, mas não
será jamais objeto de um estudo analítico sério.” (p.349)
4
Em A Força da Realidade na Clínica Freudiana (Coelho Junior, N. 1995) procurei expor os diferentes
eixos que organizam a questão da realidade na obra freudiana e , acima de tudo, demonstrar que a
presença da realidade externa no trabalho clínico de Freud é muito maior do que se costuma supor.
Remeto o leitor interessado, à bibliografia deste livro para a referência de estudos psicanalíticos sobre a
noção de realidade na teoria e na clínica.
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que estimulou os órgãos dos sentidos. Outro aspecto das descrições


psicanalíticas que está diretamente vinculado ao estudo da percepção são
as experiências que se articulam em torno do complexo de castração. A
partir de conceituações como as expostas em “O Fetichismo” (1927), Freud
nos apresenta a complexidade de uma experiência ambígua, onde o que é
percebido precisa ser simultaneamente reconhecido e negado. Há também a
situação extrema, bastante bem demonstrada em vários estudos
psicanalíticos (por exemplo, Steiner, 1997), em que a possibilidade de
reconhecer a realidade fica anulada, em que o aparelho perceptivo é
fortemente atacado. Encontra-se aqui o extremo da tendência, em algum
grau sempre presente, da recusa, da negação da percepção dos aspectos
mais conflitantes da vida.
Como em muitas outras temáticas, também aqui a psicanálise encontra a
filosofia. Afinal, a percepção, ou melhor, a maneira como a concebemos,
reclama uma definição que não é apenas técnica ou teórica, em sentido
mais restrito. Percebemos o mundo e a nós mesmos diretamente ou apenas
através da mediação da consciência? Existe percepção inconsciente, ou a
percepção é sempre consciente? Assim, talvez ainda nos reste definir com
mais precisão como é que a psicanálise concebe a percepção, qual é o lugar
que esta experiência possui em sua construção teórica e em sua prática
clínica e, também qual é a relação que ela estabelece com as teorias
filosóficas. Neste trabalho escolhemos a obra do filósofo Merleau-Ponty
como polo para o diálogo com a teoria freudiana da percepção. A obra de
Merleau-Ponty, além de ser referência central nos estudos filosóficos
contemporâneos sobre a percepção, revela um autor com muito interesse
pelas investigações psicanalíticas. A. Green (1964), em um ensaio sobre a
obra de Merleau-Ponty, escrito por ocasião da publicação póstuma do livro
do filósofo, O Visível e o Invisível (Merleau-Ponty, 1964), já apontava,
embora sem desenvolver, a possibilidade de se vincular o pensamento de
Freud ao de Merleau-Ponty, através do tema da percepção: “Não
reencontramos no papel preponderante que Freud atribui à identidade de
percepção fazendo-a prevalecer sobre a identidade de pensamentos, uma
outra formulação da ideia de Merleau-Ponty sobre a oposição entre a
percepção e a reflexão?“ (1964, p. 1035).
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Não se realiza o diálogo entre a filosofia e a psicanálise sem riscos. (Cf.


Monzani, 1991) No caso das teorias de Merleau-Ponty e Freud há que se
reconhecer, entre outros aspectos, os diferentes pontos de partida e os
diferentes objetivos de cada autor. O ponto de partida de Freud é
eminentemente clínico, e no início neurológico, enquanto o trabalho de
Merleau-Ponty parte de uma interrogação de ordem diretamente
epistemológica para buscar a seguir a elaboração de uma ontologia. Não
que estas dimensões propriamente filosóficas estejam ausentes do campo
de interesse de Freud e dos psicanalistas, mas é certo que não são o foco
central de seus trabalhos. A especificidade de cada campo de conhecimento
precisa ser respeitada. Não se trata neste trabalho, consequentemente, de
estabelecer semelhanças apressadas ou parentescos inexistentes entre as
duas teorias.
Outra forma em que habitualmente a percepção aparece nos textos
psicanalíticos contemporâneos, é através da concepção de que certas
experiências afetivas, de grande intensidade, vividas na infância não são
passíveis de representação; aparece assim também associada ao relato
clínico de casos com pacientes considerados mais graves, em que estas
experiências infantis não puderam encontrar lugar na trama de
representações do psiquismo figurando, portanto, como um “corpo
estranho”. Aparece também vinculada a descrições clínicas em que a
percepção pode emergir tanto do paciente como do analista, tanto de forma
consciente como de forma inconsciente, como algo inicialmente não
mediado por representações. Com isso, acrescenta-se à técnica
psicanalítica uma possibilidade a mais de manejo das experiências psíquicas
transubjetivas vividas no contexto transferencial- contratransferencial. Como
escrevem Botella e Botella (1988) sobre o uso técnico de material não-
representacional:

São fenômenos particulares, mas não excepcionais do processo analítico, ‘acidentes’ da


análise, reveladores das falhas da neurose infantil. Utilizar meios que não dependam
sempre do domínio do aplicável, do voluntariamente repetível, tal seria o paradoxo e a
originalidade do ofício do analista e da técnica psicanalítica. (p.27).
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Quanto à questão da representação e do irrepresentável, trata-se de ampliar


e verificar os limites ou as fronteiras do analisável. E neste sentido cabe a
pergunta, será que é possível uma coincidência absoluta entre
representação e objeto, entre representação e experiência? Ou há sempre
como sugere Gagnebin (1992 p.256), provavelmente inspirada pelo livro O
Visível e o Invisível de Merleau-Ponty (1964), em toda representação uma
dobra de irrepresentável?
Esta autora ainda nos sugere a instigante concepção do irrepresentável
como instaurador: “Sem dúvida, função e não substância, o irrepresentável
se junta a outras técnicas do negativo e parece se revelar um operador
psíquico indispensável” (Gagnebin, 1992, p.272).

Tanto na filosofia como na psicanálise uma série de questões marca o tema


da percepção, de uma forma geral. São questões que circunscrevem um
campo de investigação. A seguir apresentarei algumas destas questões,
procurando configurar o horizonte mais amplo deste tipo de investigação:

- Será que é possível afirmar, universalmente, que todo conhecimento


se inicia por um ato perceptivo que se efetiva através dos órgãos dos
sentidos?
- Será que a percepção visa fundamentalmente um processo de
adaptação, necessário em função das alterações constantes que se
produzem tanto no mundo exterior como no mundo interno?
- Será que só percebemos objetos concretos, externos e presentes no
mundo exterior ou percebemos também objetos ideais e imaginados?
- Como deve ser formulada a relação entre o ato perceptivo e a
representação que estabelecemos, supostamente no psiquismo, a partir
deste ato?
- Como caracterizar as relações entre percepção e consciência, entre
percepção e memória, e entre percepção e pensamento?
- Há influência dos processos afetivos na percepção?
- Qual a relação entre percepção e desejo?
- Até que ponto os desejos determinam os limites de nossa capacidade
de perceber o mundo e os outros?
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- Percepção é forma de acesso ao mundo ou é elemento que constitui


este próprio mundo?
- Qual a relação entre percepção e realidade?
- A percepção é passiva e, portanto, não “escolhe” o que percebe, ou
ela pode ser ativa e “escolhe” o que quer perceber?
- Será que vemos apenas aquilo que se convencionou que devemos
ver e assim recusamos, ou nem chegamos a perceber os aspectos que
fogem à expectativa consagrada? Deste ponto de vista, a atitude neurótica
seria menos uma distorção, do que a recusa em perceber certos aspectos,
como bem demonstrou Freud.
- Existe a possibilidade de um trabalho de “correção” perceptiva? É
também isto a terapia psicanalítica?

Não se trata, é evidente, de oferecer respostas a estas questões, mas de


registrar a complexidade e a riqueza de um tema que possui várias portas de
entrada. Enumerei estas questões com a intenção de retomá-las, na medida
do possível no decorrer deste trabalho, buscando um balizamento mais
amplo que circunscreva tanto as investigações psicanalíticas como o
trabalho de Merleau-Ponty sobre a percepção.
Um último aspecto que gostaria de registrar nesta introdução diz respeito à
forma de leitura das obras de Freud e Merleau-Ponty. Com certeza, por sua
complexidade e riqueza, são autores que exigem rigor e método na leitura
de seus textos. Como já sugeriu uma vez Mezan (1996), são autores que
merecem uma leitura sequencial, do começo ao fim de suas obras.
Merecem, também, que se privilegie seus próprios textos à releitura de seus
inúmeros comentadores. Com isso não quero sugerir que seja possível uma
leitura “neutra” ou objetiva; nem quero com isso pretender que minhas
análises possam prescindir dos textos dos vários grandes comentadores da
obra de cada um destes autores, aos quais recorrerei várias vezes neste
trabalho. Considero que qualquer leitura carregará sempre a marca desta ou
daquela influência já presente no caldo de cultura a que pertencemos. E é
importante, que sempre que possível estas influências possam ser
explicitadas. O que espero garantir é a presença de cada autor na
construção de argumentos vinculados às suas respectivas obras, o que me
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fará, às vezes, insistir em citações mais longas e em maior número do que


talvez fosse recomendável. Acredito que os textos de Freud e Merleau-Ponty
sempre apresentam melhor suas próprias intenções. Nem sempre autores
precisam de comentadores. Muitas vezes eles precisam apenas de leitores.

MERLEAU-PONTY, FREUD E OS DESTINOS DA PERCEPÇÃO


Principalmente a partir da publicação de sua tese Fenomenologia da
Percepção, em 1945, Merleau-Ponty passa a ser reconhecido como um
pensador que, na tradição inaugurada pela fenomenologia de Husserl,
coloca a percepção como tema central de suas investigações filosóficas.
Merleau-Ponty inicia seu trabalho com uma rigorosa crítica ao estudo da
percepção realizado pelas correntes empiristas e racionalistas na filosofia e
na psicologia. Em resumo, ele critica a concepção empirista por considerar
que nela a percepção é apenas um registro das informações sensoriais
recebidas do mundo exterior. Já a concepção racionalista, é criticada por
considerar o julgamento ou o pensamento como as únicas funções capazes
de dar sentido às impressões sensoriais, que por si só nada significariam.
Criticando os preconceitos clássicos presentes nas teorias da percepção
predominantes na filosofia e na psicologia, Merleau-Ponty afirma:

A percepção assim empobrecida torna-se uma pura operação de conhecimento, um registro


progressivo das qualidades e de seu desenrolar mais costumeiro, e o sujeito que percebe está
diante do mundo como o cientista diante suas experiências. Ao contrário, se admitimos que
todas essas “projeções”, todas essas “associações”, todas essas “transferências” estão
fundadas em algum caráter intrínseco do objeto, o “mundo humano” deixa de ser uma metáfora
para voltar a ser aquilo que com efeito ele é, o meio e como que a pátria de nossos
pensamentos. O sujeito que percebe deixa de ser um sujeito pensante “acósmico”... (1945,
p.32)

Merleau-Ponty apoia suas críticas na teoria fenomenológica formulada por


Edmund Husserl. Mas de Husserl ele herda uma concepção específica da
consciência e em suas obras iniciais vincula a percepção à noção de
consciência intencional, propondo o conceito de consciência perceptiva.
Apesar de se afastar da noção clássica de consciência, Merleau-Ponty não
abandona de vez a filosofia da consciência presente em Husserl. Será só em
seu último livro, O Visível e o Invisível, que Merleau-Ponty realizará a crítica
a estas concepções de seus primeiros textos.
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As proposições iniciais do autor em sua tese Fenomenologia da Percepção


(1945) traduzem com clareza suas primeiras posições, onde a crítica ao
modelo representacional da percepção e da consciência já pode ser notada:
“Sistema de potências motoras ou de potências perceptivas, nosso corpo
não é objeto para um "eu penso": ele é um conjunto de significações
vividas.” (1945, p179) E mais a frente:

Uma primeira percepção sem nenhum fundo é inconcebível. Toda percepção supõe um
certo passado do sujeito que percebe, e a função abstrata de percepção, enquanto encontro
de objetos, implica um ato mais secreto pelo qual elaboramos nosso ambiente. (1945,
p.326)

Além da influência das teses da Psicologia da Gestalt, das quais Merleau-


Ponty é herdeiro confesso no início de seu trabalho, podemos reconhecer
nestas frases temas próximos aos da investigação psicanalítica levada a
cabo por Freud em sua segunda tópica, como veremos mais à frente. Mas a
possibilidade de diálogo entre as pesquisas de Merleau-Ponty e Freud sobre
a percepção ficará ainda maior nos últimos escritos do filósofo francês,
basicamente em seu livro inacabado O Visível e o Invisível, publicado
postumamente, em 1964. Aprofundando sua concepção do corpo, Merleau-
Ponty propõe a noção de carne (chair):

A noção essencial para tal filosofia é a de carne, que não é o corpo objetivo, que não é
tampouco o corpo pensado pela alma (Descartes) como seu, que é o sensível no duplo
sentido daquilo que sentimos e daquilo que sente. (...) Portanto, a filosofia de Freud não é a
filosofia do corpo mas da carne. - O id, o inconsciente, - e o ego (correlativos) para serem
compreendidos a partir da carne. (1964a, pp. 313 e 324)

Nesta última fase de seu trabalho, Merleau-Ponty é claro quanto às


possibilidades de convergência entre fenomenologia e psicanálise. No
prefácio que escreve ao livro do psicanalista francês A. Hesnard, A Obra de
Freud (1960b), o filósofo comenta: ”Esta fenomenologia que desce a seu
próprio subsolo está mais do que nunca em convergência com a
investigação freudiana.” (1960b, p.10)

Merleau-Ponty referia-se aqui às propostas fenomenológicas das últimas


obras de Husserl. Esta fenomenologia, mais próxima das relações primeiras
do corpo com o mundo será a base dos trabalhos finais de Merleau-Ponty
que, não por acaso, toma também a psicanálise freudiana como referência
determinante.
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Para Merleau-Ponty, afirmar a objetividade da percepção ou a subjetividade


da percepção é estar cego para a permanente ambiguidade do ato
perceptivo; perceber é, ao mesmo tempo, abertura para o externo, para o
diverso, para o que se objetiva e “projeção” do próprio, do interno, daquilo
que se constrói como subjetivo. Para ser exato, é a própria oposição sujeito-
objeto que é abandonada nesta perspectiva. Ou como ele escreve em seu
último livro:

Nosso objetivo não é opor aos fatos coordenados pela ciência objetiva outro grupo de fatos-
sejam eles chamados “psiquismo” ou “fatos objetivos, ou “fatos interiores”- que “lhe
escapam”, mas mostrar que o ser- objeto e também o ser- sujeito, este concebido em
oposição àquele e relativamente a ele, não constituem uma alternativa, que o mundo
percebido está aquém ou além da antinomia, que o fracasso da psicologia “objetiva” deve
ser compreendido juntamente com o fracasso da física “objetivista”- não como uma vitória
do “interior” sobre o “exterior”, do “mental” sobre o “material, mas como apelo à revisão de
nossa ontologia, ao reexame das noções de“sujeito” e de “objeto”. As mesmas razões que
impedem de tratar a percepção como um objeto, também impedem de tratá-la como
operações de um “sujeito”, seja qual for o sentido em que possa ser tomada. (1964a, p.41)

Perceber a realidade é simultaneamente ser tocado pelo que nos circunda e


construir este mesmo entorno. Há, assim, uma mútua constituição entre o
que denominamos sujeito e objeto e entre percepção e realidade. A
percepção é assim ação constante psíquica/fisiológica, transformação,
construção e constituição; e o ato perceptivo é, simultaneamente, apreensão
e construção da realidade.
Desta forma, mais do que qualquer outro aspecto de nossa relação com o
mundo, é a percepção que coloca em xeque as noções de sujeito e objeto, e
exige um questionamento sobre a noção cristalizada de realidade que
costumamos possuir. Rojcewicz e Lutgens (1996) apontam, com razão, o
enquadre geral em que Merleau-Ponty inicialmente concebe sua
compreensão do ato perceptivo: a percepção emerge a partir de e é
alimentada por uma relação já estabelecida entre a pessoa e o mundo.
A percepção pode ser entendida como nossa relação originária com o
mundo; contato sensível que nos apresenta a realidade, ao mesmo tempo
em que a constrói. É assim que, mesmo em seu último livro (publicado
postumamente), insistia: “... é a partir da percepção e de suas variantes,
descritas tal como se apresentam, que tentaremos compreender como se
pôde construir o universo do saber.” (1964, p.208)
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E ainda apresentando, com muita clareza, o que entendia por sua polêmica
concepção de fé perceptiva (noção central em seu último livro):

A filosofia é a fé perceptiva interrogando-se sobre si mesma. Pode-se dizer dela, como de


toda fé, que é fé porque é possibilidade de dúvida e esse infatigável percurso das coisas,
que é nossa vida, também é uma interrogação contínua. Não é só a filosofia, no início é o
olhar que interroga as coisas. (1964a, pp.139-140)

Embora, com suas concepções sobre a percepção, Merleau-Ponty não


visasse, necessariamente, as situações descritas pela psicanálise, podemos
pensá-las como uma reflexão muito útil para uma investigação dos
diferentes aspectos desta teoria e da prática vinculada a ela. Na prática
clínica em particular, encontramos uma situação que exige um
questionamento constante dos processos perceptivos, assim como da
realidade. Não são poucos os momentos em que nos deparamos com uma
“reconstrução” da realidade, restabelecendo a sensação de uma experiência
originária com as coisas, com o outro, conosco mesmos, como acredito que
demonstram bastante bem as descrições clínicas de Freud.

A percepção é uma e muitas na obra de Freud. Assim como com várias


outras noções que percorrem toda a obra freudiana, também aqui não há
uma só definição ou concepção. Vale afirmar que não há uma teoria clara
sobre a percepção na obra de Freud, pelo menos não com essa
denominação (Cf. Botella e Botella, 1995).
As contradições presentes no conjunto da teoria freudiana caracterizam
também suas formulações sobre a percepção. Ao mesmo tempo orgulhoso
herdeiro do legado associacionista e fisiologista e desbravador de uma
forma mais complexa de conceber o psiquismo, seus atos e processos,
Freud constrói vias de acesso ao ato perceptivo demarcadas por estas
contradições.
Em geral preso a um empirismo censurador, Freud resiste ao movimento
criativo de suas próprias descobertas clínicas, que no tocante à percepção o
levariam para bem longe do modelo vigente na psicologia e na filosofia.
As primeiras concepções de Freud sobre a percepção, nos anos 1891-1899,
refletem a influência das teorias empiristas, marca principal de seu trabalho
como neurologista. Estas concepções estão presentes em sua formulação
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de um aparelho de linguagem (Sobre a Concepção das Afasias, 1891) e na


formulação inicial de um aparelho psíquico, no Projeto de uma Psicologia de
1895 e na Carta 52 a Fliess, estes últimos, caracterizados, entre outros
aspectos, pela oposição determinante entre memória e percepção e por uma
preocupação em descrever diferentes níveis de registro do conteúdo
perceptivo no aparelho psíquico. Embora, desde o texto sobre as afasias,
Freud anunciasse uma concepção relativamente complexa e inovadora da
relação entre percepção e representação psíquica do objeto percebido,
estes textos iniciais mostram também sua preocupação com uma
representação verdadeira da realidade. Em muitas passagens a percepção
surge como um registro passivo da realidade. Assim, ao lado de sua busca
por uma possível correspondência entre a função perceptiva e sua
localização neurológica, há a tentativa de garantir uma correspondência
verdadeira entre o objeto externo da percepção e a representação psíquica
deste objeto. Há pouco lugar para as construções próprias daquilo que
Freud chamará a seguir de “realidade psíquica”. O abandono da “Teoria da
Sedução” a partir de 1897, com Freud reconhecendo que as cenas de
sedução não teriam ocorrido, mas eram fantasias imaginadas por seus
pacientes, tem portanto importância decisiva na transformação de uma teoria
da constituição do aparelho psíquico e também de que referência teórica
deveria balizar suas concepções sobre a percepção. É claro que em se
tratando de Freud estas posições nunca são simples ou únicas.
Já em A Interpretação dos Sonhos (1900), Freud inclui uma concepção
nova, a partir do reconhecimento da função do desejo na construção das
representações psíquicas. (Cf. Perron, R., 1995) Se a representação traz a
marca do desejo ela já não pode mais ser o reflexo fiel das percepções e a
própria concepção de uma representação verdadeira da realidade precisa
ser revista. O reaparecimento da percepção, neste caso, é a realização do
desejo e o investimento total da percepção a partir da excitação da
necessidade é o caminho mais curto em direção à realização do desejo. O
desejo articula-se a uma alucinação. A fidelidade a uma suposta realidade
externa sofre inevitáveis abalos. Um percurso pelos textos posteriores de
Freud sugere, cada vez mais, que as percepções são regidas pela dinâmica
psíquica e não podem ser simples reflexo da realidade externa.
15

O vocábulo alemão Wahrnehmung, equivalente a percepção, utilizado por


Freud em seus textos, revela ao mesmo tempo uma significação específica e
a expectativa de realização de que seriam capazes os atos perceptivos.
Wahrnehmung, literalmente apreensão do verdadeiro (Wahr- verdade,
nehmen- tomar, pegar, apreender) implica a crença em uma possibilidade de
apreensão de uma imagem exata, verdadeira, do mundo exterior. Seria
possível argumentar a favor de certa relativização do conceito de verdade,
abrindo espaço para outra definição do que seria uma apreensão
verdadeira, em termos subjetivos. Mas acho que não seria por demais
restritivo reconhecer neste vocábulo alemão as fortes ressonâncias de um
uso empirista da percepção. Este parece ser o horizonte fundamental que
rege as preocupações de Freud em seus trabalhos iniciais.
Outro ponto a destacar e que vai em direção oposta, é a preocupação
freudiana em apresentar, ao lado das percepções externas, o que ele
denomina de percepções endopsíquicas. As relações entre as percepções
internas e externas são múltiplas, revelando a complexidade própria das
concepções de Freud sobre a constituição e o funcionamento do aparelho
psíquico, mas revelam a marca própria de um pensador que reconhece a
importância do que ele mesmo chamou de realidade psíquica.
A seguir apresento várias formas em que o conceito percepção aparece nos
textos de Freud, revelando a diversidade de seu uso e sua “dupla face”,
tanto aberta para o mundo externo como para o mundo interno: äussere
Sinneswahrnehmung ( percepção sensorial externa), innere Wahrnehmung
(percepção interna), Wahrnehmungssystem (sistema perceptivo)
Wahrnehmung im Schlaf (percepção no sono), Akustische Wahrnehmung
(percepção acústica), Selbstwahrnehmung (auto-percepção),
Triebwahrnehmung (percepção pulsional), Wahrnehmungsapparat (aparelho
perceptivo), reale Wahrnehmung ( percepção real), endopsychische
Wahrnehmung (percepção endopsíquica), Wahrnehmungsreste (restos
perceptivos), aktuelles Wahrnehmungsmaterial (material perceptivo atual),
Wahrnehmungsidentität (identidade perceptiva), Wahrnehmungsereignis
(acontecimento perceptivo), Wahrnehmungsreiz (sensação perceptiva),
Verdrängung unerwünschter Wahrnehmung (repressão de percepção não
16

desejada) e Wahrnehmungsbeugung (flexão perceptiva- no sentido de


negação da percepção).
Estes diversos conceitos e usos da noção de percepção no texto freudiano
apontam para uma série de articulações no interior da teoria, que pretendo
comentar no decorrer deste artigo. Por enquanto, vale apenas registrar que
percepção não é apenas uma noção descritiva para Freud, descritiva de
uma função corporal ou de uma função da consciência. É, isto sim, mais
uma das noções constituintes de sua cerrada “trama de conceitos”.

PERCEPÇÃO E REPRESENTAÇÃO EM FREUD

Que as primeiras representações, representações- coisa sejam corporais,


ninguém contesta. Freud, que nunca perdeu de vista que a fonte original das
manifestações psíquicas estava no corpo, vê a “alucinação primitiva” como
equivalente do objeto percebido e investido na sua ausência. ( Isto é, um
investimento alucinatório da lembrança da satisfação). (Nicolaïdis, 1989,
p.63)
Percepção: objeto presente. Representação: objeto ausente. Corpo: fonte
original das manifestações psíquicas. Esta é uma forma condensada e talvez
por demais simplificada de apresentar as relações e as diferenças entre
percepção e representação, e o lugar do corpo nos textos de Freud. Mas
pode ser útil manter esta distinção presente neste percurso pela obra
freudiana. Retomando a definição de Lalande em Seu Vocabulário técnico e
crítico de filosofia, Laplanche e Pontalis (1986) apontam para concepções
semelhantes de representação e percepção ao definirem representação
como “o que forma o conteúdo concreto de um ato de pensamento e em
especial a reprodução de uma percepção anterior.” (p.582) A complexidade
da noção de representação exige, no entanto, uma verificação mais
cuidadosa das preocupações e intenções de Freud. (Cf. Nicolaïdis, 1989;
Garcia-Roza, 1995 e Hanns, 1996)
Toda a questão que se coloca, e para mim ela é fundamental para se pensar
a teoria freudiana, é se a percepção pode ou não fornecer uma
representação verdadeira da realidade. A percepção, vinculada às funções
do ego é o que sustenta, para Freud, a possibilidade do princípio e da prova
17

de realidade. Deste ponto de vista ela nos possibilitaria a distinção entre


realidade e fantasia, entre mundo externo e mundo interno. Mas como nos
lembram Botella e Botella (1995), a percepção e uma “noção situada nos
limites da teoria analítica: aqueles do psíquico- somático, aqueles do
psíquico- mundo exterior”.(p.29) Assim , talvez mais do que algo que garanta
uma distinção precisa entre o que é externo e o que é interno, ou que
garanta uma representação psíquica que seja fiel ao real externo, a
percepção é o que desafia a teoria psicanalítica, aquela que faz com que a
teoria precise se confrontar com seus próprios limites e busque ser bem
mais do que uma teoria das representações psíquicas. E com Freud ela é,
muitas vezes, mais do que isso.
Considerando o texto Sobre a Concepção das Afasias, de 1891, como
inaugural das concepções de Freud sobre o aparelho psíquico, o que está
longe de ser consenso entre os comentadores da obra freudiana , depara-se
com um Freud claramente vinculado aos problemas da neurologia de sua
época e se referindo à percepção dentro deste contexto. Logo no início do
texto, comentando as teorias de Wernicke, ele escreve:
Quanto a saber até onde é possível localizar as funções psíquicas ele responde que só as
mais elementares podem sê-lo. Uma percepção visual deve ser reportada no córtex à
terminação central do nervo ótico, uma percepção auditiva à região do nervo acústico. Tudo
que ultrapassa isto, como a combinação de diversas representações em um conceito e
outras coisas semelhantes, é uma operação de sistemas de associação, que religa
diferentes áreas corticais entre elas e não pode, portanto, ser localizado em uma área única.
[1891(1992), p.41]
Destaquei esta citação apenas para registrar as referências iniciais de
Freud, e a forma como o tema da percepção aparece originalmente em suas
investigações. Já neste texto, Freud deixa claro que procura ao máximo
separar o ponto de vista psicológico do ponto de vista anatômico; no
entanto, esta tensão entre um substrato real e o plano da experiência
psicológica, embora fortemente nuançado no decorrer de sua obra, jamais
será completamente abandonada. Freud realiza neste estudo inicial a
formulação de um aparelho de linguagem, em que merece destaque a
introdução de duas noções que estarão presentes de forma central em sua
posterior construção de um aparelho propriamente psíquico: representação-
objeto [posteriormente, representação- coisa] (Objectvorstellung) e
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representação- palavra (Wortvorstellung). A introdução destas noções e do


que elas implicam, permitirá a Freud, posteriormente, a elaboração de uma
complexa rede de conceitos que visam descrever o funcionamento psíquico
(as distinções entre processos primários e secundários - entre o
funcionamento do sistema inconsciente e do sistema consciente), assim
como de sua apreensão dos estímulos externos e internos. Anuncia-se
também, neste seu trabalho inicial, o grande tema diretamente articulado à
percepção em toda obra freudiana: o da complexidade das formas de
representação e de inscrição no psiquismo das experiências vividas.
Em um trabalho anterior (Coelho Junior,1995) eu afirmei, um pouco
precipitadamente, que Freud não teria questionado, no início de sua obra, o
papel da percepção como mediadora entre mundo interno e mundo exterior
e que assim a percepção ocuparia para Freud, de forma geral, o lugar de
uma receptadora passiva do mundo exterior. Avaliando este meu trabalho
em uma banca de titulação acadêmica, o Professor Luis Alfredo Garcia-Roza
afirmou estar surpreendido com esta minha posição, já que em sua
concepção, Freud, já em seu texto Sobre a Concepção das Afasias,
apresenta uma verdadeira teoria da percepção revolucionária em relação à
psicologia da época. Segundo sua leitura, o aparelho psíquico, nestas
primeiras formulações de Freud, não se constituiria a partir da percepção,
mas a partir de signos de percepção. O sistema psíquico funcionaria assim,
com signos e não a partir de uma captação passiva da realidade externa.
Ainda segundo Garcia-Roza, mesmo que a percepção tivesse acesso à
realidade externa, o aparato psíquico só tem acesso aos signos de
percepção. No volume 2 de sua Introdução à metapsicologia freudiana,
Garcia-Roza (1991) ao comentar aspectos do texto Sobre a Concepção das
Afasias, já insistia nestes pontos:
Nesse aparelho, as palavras (ou as representações-palavra) adquirem seu significado pela
relação que a imagem acústica do complexo representação-palavra mantém com a imagem
visual do complexo formado pelas associações de objeto. E, aqui, Freud inova em termos
de uma teoria da percepção. O que se contrapõe à palavra não é o objeto. (p.31)

Aprofundando seu argumento, logo a seguir ele afirma:


Nesse aparelho, a representação-objeto não está ali pronta, à espera da representação-
palavra para que se produza o significado. Melhor dizendo, a percepção não oferece objetos
19

com os quais a palavra vai se articular para obter seu significado. A percepção pura e
simplesmente não oferece objetos. Aquilo que ela recebe do mundo não são imagens de
objetos, mas imagens elementares (visuais, táteis, acústicas etc.) que vão constituir o
complexo das associações de objeto (e não da representação-objeto ). (idem)

Estas observações pedem um exame cuidadoso. Iniciar desta forma uma


apresentação sistemática da concepção freudiana da percepção poderia nos
levar a um difícil compromisso com a originalidade de Freud, também neste
âmbito. Não creio que Garcia-Roza pretendesse generalizar sua afirmação
sobre a possível originalidade de Freud no que diz respeito ao estudo da
percepção, no texto Sobre a Concepção das Afasias, para toda a obra de
Freud. Afinal, também sobre a percepção Freud teve muito mais do que uma
teoria. Muitos outros comentadores da obra freudiana nos auxiliarão nesta
tarefa de esmiuçar a concepção, ou melhor, as concepções freudianas da
percepção.

Um texto de difícil estatuto, Projeto de uma Psicologia de 1895, (Freud,


[1895]1995) não publicado por Freud, mas revalorizado nas últimas décadas
por inúmeros comentadores, apresenta diversas concepções centrais sobre
o binômio percepção- representação, que serão retomados em vários textos
posteriores. Texto complexo, que permite diferentes interpretações 5,
apresenta a constituição do psiquismo através da distinção inicial entre as
funções de percepção e memória e suas sugeridas materializações em
diferentes neurônios: “Há, por conseguinte, neurônios permeáveis (que não
opõem resistência e que não retêm nada) que servem à percepção, e
impermeáveis (dotados de resistência e que embargam Q’n), os portadores
da memória e, assim, provavelmente dos processos psíquicos em geral.
Daqui por diante chamarei o primeiro sistema de neurônios de Φ e o último
de Ψ. “ ( [1895]1995, p. 13) Deve-se supor duas classes de neurônios : uma
que não se altera com as excitações e outra que se altera. Além disso, como
aponta Gabbi Junior em uma nota da tradução, “... a percepção é pensada
como voltada para fora [e] a memória como algo interno mas que pode,
como veremos, transformar o interno em externo (alucinação).” (nota 27)

5
Pode-se comparar, por exemplo, só para ficar nos comentadores brasileiros, as diferentes leituras de
Garcia- Roza (1991) e Osmir Faria Gabbi Jr., nas notas de sua tradução do Projeto (Freud, 1995).
20

Estes dois aspectos são centrais nesta concepção inicial de Freud. O


psiquismo possui simultaneamente a capacidade de estar aberto para todas
as excitações novas vindas de fora e de ser capaz de reter representações
que constituiriam o psiquismo (interno) propriamente dito. A quantidade de
energia e seus investimentos caracterizariam a dinâmica psíquica. Todas as
funções psíquicas são explicadas em termos quantitativos. Um pouco mais a
frente Freud afirma: “O sistema Ψ, de acordo com o nosso melhor
conhecimento, não tem ligação com o mundo externo e só recebe Q, de um
lado, dos próprios neurônios Φ, e, de outro lado, dos elementos celulares no
interior do corpo...” ([1895] 1995, p.19) Falta integrar a consciência e,
portanto, o plano qualitativo, neste sistema basicamente quantitativo e
relacioná-la à percepção:
Onde se originam as qualidades? Não no mundo externo, pois segundo nossa intuição
científico naturalista, à qual a psicologia também aqui [neste ‘Projeto’] deve ser submetida,
externamente há somente massas e nada mais. Talvez no sistema Φ ? Tal hipótese
concorda com o fato de que as qualidades estão ligadas à percepção, mas contradiz tudo
que com direito defende que o lugar da consciência está em níveis mais elevados do
sistema nervoso. Portanto no sistema Ψ. Ora, contra tal hipótese há uma importante
objeção. Através da percepção são ativados conjuntamente os sistemas Φ e Ψ ; porém há
um processo psíquico realizado exclusivamente em Ψ o reproduzir ou recordar, e este,
falando genericamente é sem qualidade. A recordação não traz de norma nenhum tipo
especial de qualidade perceptiva. Então é preciso ter a coragem de supor que haveria um
terceiro sistema de neurônios; poderíamos chamar de ω, estimulado junto com a percepção
e não com a reprodução, e cujos estados de excitação dariam como resultado as diferentes
qualidades, ou seja, seriam as sensações conscientes. ([1895]1995, pp. 22-23)

Esta longa citação justifica-se não só por introduzir a questão da qualidade


(que permanecerá de difícil solução até o final da obra de Freud) e um
neurônio próprio à percepção, mas também por estabelecer com mais
clareza a distinção entre a percepção e sua reprodução psíquica. Mas como
Freud pressupõe um modelo quantitativo apoiado na concepção de
investimentos de energia sobre os neurônios, um problema sério ainda
permanecia sem solução até este momento do Projeto. A partir da oposição
central prazer- desprazer (eixo central para a compreensão dos processos
qualitativos), da noção de desejo, vinculada à vivência de satisfação, e da
noção de investimento, restava explicar como é possível diferenciar, no
21

interior do psiquismo, as excitações provenientes de uma percepção real,


das excitações provenientes do investimento realizado sobre uma
recordação, seja de prazer, seja de dor. Ou seja, como diferenciar
percepção de alucinação. Freud introduz então o ego, (ou o eu), como uma
organização que deverá inibir processos psíquicos primários e permitir esta
distinção, fornecendo o signo de realidade 6. Freud esclarece:

A partir dos desenvolvimentos {feitos} até agora, segue-se que o eu em Ψ, que, de acordo
com suas tendências, podemos tratar como o sistema nerv[oso] em seu conjunto, sofre
duas vezes, através de processos não influenciados em Ψ, desamparo e dano. Ou seja,
uma primeira vez, quando no estado de desejo, ocupa de novo a recordação de objeto e
então recorre a uma eliminação; neste caso tem de faltar a satisfação porque o objeto não
tem existência real , mas só existe em representação de fantasia. No início, Ψ é incapaz de
acertar essa diferença porque só pode trabalhar de acordo com a sequência de estados
análogos entre seus neurônios. Assim é preciso um critério que venha de outro lugar para
diferenciar entre percepção e representação. (...) Destarte, é a inibição do eu que possibilita
um critério de diferenciação entre percepção e recordação.( [1895] 1995, pp. 38-39).

Em outra nota critica da tradução, Gabbi Jr. aponta com razão que ”Freud
explicita que o termo percepção refere-se... a uma ocupação em Ψ a partir
de Φ e não a uma ocupação de ω. Toda vez que a quantidade induzida por
um objeto externo ultrapassa um certo limiar, esta propaga-se através de Φ,
desperta em Ψ uma representação que lhe corresponde e excita ω.”
([1895]1995, nota 364, p.183). Assim, o investimento no neurônio garante a
existência do signo de realidade, confirmando a presença do objeto
percebido e a consciência deste objeto. Este processo descreve “o
mecanismo por meio do qual se dá um processo no eu que procura
estabelecer um caminho entre a representação do objeto desejado e a
representação do objeto percebido.” ([1895]1995, nota 364, p.183)

Mais à frente Freud estabelecerá relações nítidas entre a percepção, o


pensamento e a realidade:

Portanto meta e final de todos os processos de pensar é levar a um estado de identidade


(...) Se, após a conclusão do ato de pensar, chegar o signo de realidade para a percepção,
6
Cf. Laplanche e Pontalis (1985), p.490 e Coelho Junior (1995) , pp. 30-33.
22

obtém-se o juízo de realidade para a percepção, a crença, e alcança-se a meta da


totalidade do trabalho. ([1895]1995, p.46)

Ou ainda:
A situação psíquica é ali a seguinte : no eu domina a tensão de apetite, em consequência a
representação do objeto amado ( a representação de desejo) é ocupada. A experiência
biológica ensinou que esta r [epresentação] não deve ser ocupada tão fortemente a ponto
de ser confundida com uma p [ercepção] , e que se tem de adiar a descarga até que de R
procedam os signos de qualidade, como prova de que R é agora real, é uma ocupação de p
[ercepção]. (...) A diferença entre R e a p [ercepção] vinda dá, então, a ocasião para o
processo de pensar, que chega ao seu fim quando as ocupações de p [ercepção]
excedentes são transladadas, por meio de um caminho encontrado, para ocupações de R
[epresentação] e. então, é alcançada a identidade. ( [1895]1995, p.76)
A descrição do processo psíquico que busca uma identidade entre o objeto
percebido e o objeto representado faz de Freud, neste texto, um aplicado
aluno da tradição filosófica ocidental. É claro que nada é assim tão simples
em se tratando de Freud.
O próximo texto em que Freud apresenta um novo modelo do aparelho
psíquico e retoma em novos termos a relação entre percepção e
representação é a Carta 52 a Fliess, de 6 de dezembro de1896. Freud relata
a seu amigo:
Como você sabe, estou trabalhando com a hipótese de que nosso mecanismo psíquico
tenha-se formado por um processo de estratificação: o material presente sob a forma de
traços mnêmicos fica sujeito, de tempos em tempo, a um rearranjo, de acordo com as
circunstâncias - a uma retranscrição. Assim o que há de essencialmente novo em minha
teoria é a tese de que a memória não se faz presente de uma só vez, e sim ao longo de
diversas vezes, [e] que é registrada em vários tipos de indicações. ( [1896]1986, p.208)
A seguir Freud apresenta um esquema em que o aparelho psíquico aparece
composto dos seguintes elementos, ordenados de forma linear, seguindo
uma seqüência temporal:

-W [Wahrnehmungen (percepções)] são os neurônios em que se originam as percepções,


às quais a consciência se liga, mas que, em si mesmas, não retêm nenhum traço de que
aconteceu. E isso porque a consciência e a memória são mutuamente exclusivas.
-Wz [Wahrnehmungszeichen (indicação da percepção)] é o primeiro registro das
percepções; é totalmente inacessível à consciência e se organiza de acordo com
associações por simultaneidade.
23

-Ub [ Unbewussstsein (inconsciência) ] é o segundo registro, disposto de acordo com outras


relações, talvez causais. Os traços de Ub. talvez correspondam a lembranças conceituais; é
igualmente inacessível à consciência.
-Vb [Vorbewusstsein (pré- consciência)] é o terceiro registro, ligado à representação-
palavra e corresponde ao nosso ego oficial. As catexias[ investimentos] provenientes de Vb
tornam- se conscientes de acordo com certas regras; e essa consciência secundária do
pensamento é posterior no tempo e, provavelmente, está ligada a ativação alucinatória das
representações- palavra, de modo que os neurônios da consciência sejam também
neurônios perceptivos e desprovidos de memória em si mesmos.
Se eu pudesse fornecer uma explicação completa das características psicológicas da
percepção e dos três registros, teria descrito uma nova psicologia. ([1896] 1986, p.209)

Esta longa citação revela a preocupação de Freud em estabelecer, em


detalhes, o caminho percorrido de uma percepção aos seus sucessivos
registros no aparelho psíquico. Todos estes registros são representações? E
se são, de que tipo são? Laplanche (1988), comentando esta passagem da
Carta 52 afirma que ela revela “... um modelo semiológico, mas não um
modelo linguístico: os sistemas são feitos de sinais, de traços de natureza
diferente; mas os sinais linguísticos só aparecem com a “terceira
reescritura”, a do pré- consciente.” (p.93) E pouco mais a frente ele conclui:
”Assim, no próprio lugar do traço de percepção, do Wz, o que é registrado
antes mesmo de ser traduzido uma primeira vez, passivamente registrado, o
que é preciso situar é uma “mensagem de si mesmo ignorada”, um
significante enigmático.” (p. 94) O percurso da noção de significante
enigmático já é longo na obra de Laplanche e não pretendo reproduzí-lo
aqui. Quero apenas caracterizar uma forma de interpretação do conteúdo da
Carta 52, que apresenta novas aberturas para a relação entre percepção e
representação.
Primeiro, é importante destacar o fato de Freud insistir em registros ou
índices inconscientes, e que estes seriam os iniciais. Embora Freud ainda
não esteja aqui se referindo a um sistema inconsciente, o fato dos registros
da percepção não estarem diretamente vinculados ou associados à
consciência não pode ser desconsiderado. A percepção em si está vinculada
à consciência, mas os registros não. Isto abriria espaço para que
pudéssemos reconhecer, em Freud, a possibilidade de percepções
24

inconscientes? Ou registros de percepção que são inicialmente


inconscientes? Que força Freud atribuiria a estes primeiros registros? Qual
o caminho percorrido por estes registros em um sistema inconsciente e qual
a possibilidade de não se vincularem efetivamente a representações?
Questões que se afastam em parte do texto freudiano e acabam sendo um
convite à especulação. Retomarei alguns destes pontos mais a frente. Mas
não posso deixar de enfatizar a forma como Freud concebe os processos de
estratificação e sua proposição que os mater5iais presentes sob a forma de
traços mnemônicos de tempo em tempo são rearranjados segundo novas
circunstâncias. Esta concepção, que nos remete à idéia de camadas de
inscrição, permite não somente uma nova teoria da memória, mas uma visão
bastante transformada das formas de registro de percepções e suas
transformações no tempo. Não é um só registro e um só registro para
sempre. Isto talvez seja óbvio para nós pós- freudianos, mas é aspecto
fundamental para que se possa compreender todo princípio de mudança e
transformação presente no trabalho psicanalítico.

O primeiro modelo do aparelho psíquico de fato publicado por Freud é o do


Capítulo VII de A Interpretação dos Sonhos (1900). Este modelo caracteriza
o que ficou conhecido como a primeira tópica. O aparelho apresenta uma
sequência que vai da extremidade perceptiva à extremidade motora.

Toda a nossa atividade psíquica inicia-se a partir de estímulos (internos ou externos) e


termina em enervações. (...). Na extremidade sensória [sensiblen Ende], fica um sistema
que recebe percepções; na extremidade motora fica outro, que abre o portão de acesso à
atividade motora. Os processos psíquicos, em geral, avançam da extremidade perceptual
[Wahrnehmungsende] para a extremidade motora. (1900, pp. 513- 514)

Mantém- se aqui a marca já presente nos textos anteriores, em que a


extremidade perceptiva caracteriza-se por sua permeabilidade e que
percepção e memória são funções que não podem ser realizadas pelo
mesmo sistema. Há então uma extremidade responsável pela captação
sensorial e a seguir, um sistema onde se encontram os traços mnêmicos
(Erinnerungsspur). A novidade deste modelo e também sua complicação,
fica por conta da posição que Freud coloca a consciência: na extremidade
25

oposta à da percepção. Entre o sistema mnêmico e a consciência


encontram- se os sistemas inconsciente, pré- consciente e por fim a
extremidade motora que é onde Freud situa a consciência.
Se é verdade que na primeira tópica o papel da percepção está vinculado ao
registro das excitações internas e externas e à constituição tanto das
representações de pulsões, como de traços mnêmicos de objetos reais, é
também verdadeiro que Freud, já em A Interpretação dos Sonhos, como nos
lembra Perron (1995), inclui neste modelo que podemos considerar clássico
da relação percepção – representação, um novo elemento, que é o desejo
[Wunsch]. Freud afirma que
...a imagem mnésica de uma certa percepção se conserva associada ao traço mnésico da
excitação resultante da necessidade. Logo que esta necessidade aparece de novo,
produzir-se- á, graças à ligação que foi estabelecida uma moção psíquica que procurará
reinvistir a imagem mnésica desta percepção e mesmo invocar esta percepção, isto é,
restabelecer a situação da primeira satisfação: a essa moção é que chamaremos de desejo
[Wunsch]; o reaparecimento da percepção é a realização de desejo [Wunscherfüllung].
(1990, 539)

Esta e outras passagens permitem que um comentador como Perron (1995)


afirme que, “de 1895 - Projeto a 1938 – Esboço, um percurso considerável
irá conduzi-lo [Freud] a colocar que toda percepção, longe de ser uma
imagem exata do objeto, é construída pela atividade psíquica.”(p.500)
Freud retomará alguns aspectos das concepções de identidade
apresentadas no Projeto, ainda no capítulo VII de A Interpretação dos
Sonhos (1900), ao constituir uma das oposições fundamentais de sua obra,
no que diz respeito à noção de percepção: aquela que opõe identidade de
percepção a identidade de pensamento. Ao explicitar as características que
diferenciam o processo primário do processo secundário, ele afirma:

O processo primário esforça- se em garantir a descarga da excitação para com isso, com a
ajuda da quantidade de excitação assim acumulada, estabelecer a identidade de percepção
[Wahrnehmungsidentität]; o processo secundário, no entanto, abandonou esta intenção e
estabeleceu outra em seu lugar, o estabelecimento de uma identidade de pensamento
[Denkidentität] (1900, p.571).
26

A identidade de percepção ocorre através da força do desejo. A


representação da percepção do objeto da satisfação é reinvestida por força
do desejo. O reaparecimento da percepção é a realização do desejo. O
desejo realiza-se, assim, através de uma alucinação. Freud descreve este
processo como uma atividade psíquica primitiva, que precisa ser substituída,
já que a identidade de percepção precisaria ser estabelecida não entre
representações no mundo interno, mas entre uma representação e um
objeto do mundo externo (Aussenwelt) (1900, p.540) São exatamente estas
formulações que levaram A. Green (1964) a ver entre as concepções de
Freud e as de Merleau-Ponty uma aproximação possível, onde teríamos
como equivalentes, ao menos descritivamente, as oposições identidade de
percepção e identidade de pensamento em Freud e percepção e reflexão,
em Merleau-Ponty. Talvez o que precisasse ser discutido neste nível é se
justamente Merleau-Ponty não dá à percepção uma valorização excessiva,
ao apresentá-la como o fundamento de todo ato de conhecimento, enquanto
Freud parece fazer o contrário, ao estabelecer uma certa sequência no
desenvolvimento psíquico em que caberia à percepção (ou pelo menos
neste modelo à identidade de percepção) o lugar do primitivo, do que precisa
ser superado. E ainda resta a questão sobre se o que Freud e Merleau-
Ponty entendem por percepção corresponde ao mesmo fenômeno.

MERLEAU-PONTY E O PRIMADO DA PERCEPÇÃO


Para Merleau-Ponty, como se sabe, a percepção tem um papel fundamental
com relação ao conhecimento: “... subtraímos à percepção a sua função
essencial, que é a de fundar ou de inaugurar o conhecimento...” (1945, p.24)
Mas, por outro lado, “a percepção não é uma ciência do mundo, não é nem
mesmo um ato, uma tomada de posição deliberada; ela é o fundo sobre o qual
todos os atos se destacam e ela é pressuposta por eles.” (1945, prefácio, p.V)
Assim, é possível dizer, com Merleau-Ponty, que não há como prescindir da
percepção em qualquer processo que vise ou busque o conhecimento mas
que, ao mesmo tempo, não devemos tomá-la ingenuamente como uma
ciência do mundo.
É importante, ainda, enfatizar a relação que Merleau-Ponty estabelece entre
percepção e sentido:
27

Ora, aqui os dados do problema não são anteriores à sua solução, e a percepção é justamente
este ato que cria de um só golpe, com a constelação dos dados, o sentido que os une – que
não apenas descobre o sentido que eles têm, mas ainda faz com que tenham um sentido.
(1945, p.46)

O sentido não é propriedade nem dos objetos nem da consciência soberana


de um sujeito. O sentido emerge de um ato perceptivo.
Ao descrever a complexidade vivida, a psicanálise sempre mostrou aspectos
que dificilmente podem ser explicados por construções teóricas, que partem
de um conhecimento estabelecido a priori. Há, nas articulações pré-
reflexivas, o estabelecimento de uma situação que não é da ordem do
entendimento racional, das construções acabadas de uma teoria. Mas, nem
por isso, precisam torna-se propriedade de um irracionalismo. Não se trata,
é evidente, da impossibilidade da construção de um conhecimento, ou do
reconhecimento de um saber que se estabelece a partir de uma prática
vivida, mas sim, de tornar evidente que a intervenção de um pensamento
que se dê de fora da própria situação vivida (como se isso fosse possível),
correrá sempre o risco de constituir-se a partir de si mesmo, ou seja, de
encontrar no mundo aquilo que nele já havia colocado. Seria necessário
descrever uma vivência que se dá, enquanto contato primordial, no plano do
pré- reflexivo, portanto, ante- racional, e não anti-racional. Dando ênfase à
percepção, Merleau-Ponty não poderia evitar o enfrentamento com as
noções de consciência e experiência:

Ser uma consciência, ou, antes, ser uma experiência, é comunicar interiormente com o
mundo, com o corpo e com os outros, ser com eles em lugar de estar ao lado deles.
Ocupar-se da psicologia é necessariamente encontrar, abaixo do pensamento objetivo que
se move entre as coisas inteiramente prontas, uma primeira abertura às coisas sem a qual
não haveria conhecimento objetivo. O psicólogo não podia deixar de redescobrir- se
enquanto experiência, quer dizer, enquanto presença sem distância ao mundo, ao corpo e
ao outro, no momento mesmo em que ele queria perceber-se como objeto entre os objetos.
(1945- p. 113)

De início, é preciso explicitar que na concepção fenomenológica que


Merleau-Ponty procura seguir, a noção de consciência possui um significado
distinto daquele que normalmente encontramos nos textos de psicologia e
psicanálise. A consciência é abertura ao mundo, já que é consciência
28

intencional. Esta herança husserliana devidamente absorvida e transformada


terá grandes implicações na construção de uma teoria da percepção.
Considerando-se mais próximo dos textos finais de Husserl, ao contrário de
seu amigo Sartre que baseou seus primeiros trabalhos filosóficos nas obras
iniciais do criador da fenomenologia, Merleau-Ponty procura fundamentar a
relação original do corpo com o mundo através da percepção. Em 1933, ele
realiza o primeiro esboço de um projeto sobre a natureza da percepção; logo
no início do texto lemos:

Parece-me que, diante do estado presente da neurologia, da psicologia experimental


(particularmente da psicopatologia) e da filosofia, seria útil retomar o problema da
percepção e particularmente da percepção do corpo próprio. (1996- p.11)

Já no ano seguinte, em um novo esboço daquele que viria a ser um grande


projeto sobre a percepção, ele escreve:

Um novo estudo da percepção pareceu justificado pelo desenvolvimento contemporâneo


das pesquisas filosóficas e experimentais:

- pela aparição, na Alemanha, notadamente, de novas filosofias que colocam em questão as


idéias diretrizes do criticismo, até então dominantes na psicologia como na filosofia da
percepção;

- pelo desenvolvimento da fisiologia do sistema nervoso;


- pelo desenvolvimento da patologia mental e da psicologia da criança;
- enfim, pelo progresso de uma nova psicologia da percepção na Alemanha (Gestalt
Psychologie). (1996- p.17)

Embora na década de 50 Merleau-Ponty tenha passado a ser um


interessado leitor dos textos psicanalíticos e um forte interlocutor de
psicanalistas franceses, entre eles Lacan, neste momento de seu trabalho a
psicanálise aparecia fundamentalmente vinculada a teorias filosóficas e
psicológicas que eram foco de sua crítica. Referindo-se às contribuições que
a Fenomenologia de Husserl pode trazer à psicologia da percepção,
Merleau-Ponty deixa claro o seu projeto, que desde o início não se
caracteriza por oposições radicais ou maniqueísmos ingênuos:

Mas devemos insistir sobre esse fato que elas [as análises propriamente fenomenológicas ]
não visam substituir a psicologia. A renovação da qual se trata não é uma invasão. Trata-se
de renovar a psicologia sobre seu próprio terreno, de verificar seus métodos próprios
29

através de análises que fixem o sentido sempre incerto de essências fundamentais como
aquelas de “representação“, “lembrança”, etc. (1996 pp.22-23).

E aqui a percepção e o corpo têm papel fundamental na construção do


projeto filosófico de Merleau-Ponty. Na Fenomenologia da Percepção ele
procura situar a consciência no corpo e o corpo no mundo. Para Merleau-
Ponty já não basta falar em consciência intencional. Essa consciência ainda
corre o risco de querer inaugurar o mundo e torná-lo um simples correlato do
pensamento. A consciência deve ser compreendida sempre como
consciência perceptiva, consciência que mantém, em sua ligação
incondicional com o corpo, um permanente diálogo com o mundo, e é desse
diálogo que emergem os sentidos:

No que concerne à consciência, temos que concebê-la não mais como uma consciência
constituinte e como um puro ser-para-si, mas como uma consciência perceptiva, como
sujeito de um comportamento, como ser-no-mundo ou existência... (1945 p.404)

Consciência como consciência perceptiva, como ser-no-mundo, como


existência. Podemos assim apreender o difícil movimento de Merleau-Ponty,
da tradição filosófica em que foi formado, onde a consciência, o
pensamento, o cogito cartesiano são fundamentos quase intocáveis, em
direção inicialmente a uma filosofia fenomenológica existencial e
posteriormente, abrindo campo a uma ontologia do sensível que terá com a
psicanálise uma interlocução central.

Confrontando-se com questões muito próximas das de Freud no Projeto e na


Carta 52, Merleau-Ponty investiga, na Fenomenologia da Percepção, as
relações entre a memória e a percepção:

Se enfim se admite que as recordações não se projetam por si mesma nas sensações, e que a
consciência as confronta com o dado presente para reter apenas aquelas que se harmonizam
com ele, então reconhece-se um texto originário que traz em si seu sentido e o opõe àquele
das recordações: este texto é a própria percepção. ( 1945 p.29)

E logo a seguir:
Agora se manifesta o verdadeiro problema da memória na percepção, ligado ao problema geral
da consciência perceptiva. Trata-se de compreender como, por sua própria vida e sem trazer
em um inconsciente mítico materiais complementares, a consciência pode, com o tempo,
alterar a estrutura de suas paisagens - como, em cada instante, sua experiência antiga lhe está
presente sob a forma de um horizonte que ela pode reabrir, se o toma como tema de
conhecimento, em um ato de rememoração, mas que também pode deixar “à margem”, e que
30

agora fornece imediatamente ao percebido uma atmosfera e uma significação presentes. Um


campo sempre à disposição da consciência e que, por essa razão, circunda e envolve todas as
suas percepções, uma atmosfera, um horizonte ou, se se quiser, “montagens” dadas que
atribuem uma situação temporal, tal é a presença do passado que torna possíveis os atos
distintos da percepção e da rememoração. (1945, p.30)

As diferenças com Freud são muitas, mas nota-se aqui um esforço claro em
ampliar ao máximo o horizonte da experiência de uma consciência
perceptiva. Não é de se estranhar que na década seguinte Merleau-Ponty
viesse a construir uma concepção própria do inconsciente, em grande
medida apoiado nas transformações que ele aqui realiza em sua teoria da
percepção.

Em um capítulo posterior da Fenomenologia da Percepção em que procura


investigar a vivência perceptiva através da percepção erótica, Merleau-Ponty
se aproxima dos relatos psicanalíticos, mas aqui, muito mais para criticá-los
do que para dialogar com eles:

Adivinha-se aqui um modo de percepção distinto da percepção objetiva, um gênero de


significação distinto da significação intelectual, uma intencionalidade que não é a pura
‘consciência de alguma coisa'. A percepção erótica não é um cogitatio, um ato de pensar,
que visa um cogitatum, um objetivo a ser pensado; através de um corpo, a percepção
erótica visa um outro corpo, ela se forma num mundo e não numa consciência. Há uma
compreensão erótica que não é da ordem do entendimento, pois o entendimento
compreende percebendo uma experiência sob uma ideia, ao passo que o desejo
compreende cegamente, ligando um corpo a um corpo. (1945, p.183)

Percebe-se, nesse momento, como Merleau-Ponty tenta se afastar de uma


filosofia da consciência. É no corpo que deve ser procurada uma ordem
perceptiva, uma forma de compreensão que prescinda do modelo
consciência- objeto de consciência. O que ele parece visar aqui é um gênero
de significação distinto da significação estabelecida pela consciência e,
através da percepção erótica, ilustrar com um exemplo extremo, uma forma
de relação corpo- mundo que ele acredita prevalecer, ou pelo menos ser
inaugural no âmbito da experiência humana. Uma passagem como esta,
embora pudesse tomar o modelo de compreensão psicanalítica da
experiência sexual como um modelo a ser criticado, como um modelo que
buscasse explicações na ordem do entendimento, “percebendo uma
experiência sob uma ideia”, revela também uma grande abertura para a
31

compreensão psicanalítica do desejo, que seria aquele que “compreende


cegamente, ligando um corpo a um corpo.”
Através de análises como esta, Merleau-Ponty tenta mostrar que a relação
inaugural do homem com o mundo parte sempre da percepção, através de
uma relação direta corpo- mundo. Para ele, claramente, o ato perceptivo
não é primeiro um ato de pensamento; ao contrário, é sempre a relação
direta, inaugural entre corpo e mundo. Não toco uma mão- ideia, uma pedra-
ideia, um mundo- ideia, toco com meu corpo o mundo.

Este é o caminho que levará Merleau-Ponty a deslocar definitivamente da


consciência para o corpo vivido o ato de conhecer. Para ele não é mais à
consciência que se pode atribuir o conhecimento, mas sim a um "corpo-
conhecedor". Assim, Merleau-Ponty procura ir além da própria noção de
consciência perceptiva, que apesar de conter a noção de consciência,
buscava romper o dualismo percepção- pensamento, tentando romper
também o dualismo consciência- mundo. O pensamento, como ato de
consciência, não é mais situado como centro soberano do processo de
conhecimento, e a percepção não é mais o plano das distorções, das
ilusões, a sede do engano. A percepção situa-se, deste modo, como o
fundo, a experiência primeira e imediata, sobre a qual se destacam os atos
reflexivos e que deve ser, portanto, pressuposta por eles. Percepção e plano
pré- reflexivo aparecem neste contexto como duas formas de nomear o
plano de referência para a gênese dos sentidos. A experiência perceptiva é
uma experiência pré- reflexiva. É uma experiência inaugural. De que modo
esta experiência inaugural poderia se assemelhar às descrições
psicanalíticas de um inconsciente como sucessão de inscrições, segundo
um dos modelos freudianos de constituição do aparelho psíquico?

AS CONCEPÇÕES FINAIS DE FREUD E MERLEAU-PONTY SOBRE A


PERCEPÇÃO

Em Além do Princípio de Prazer (1920), no capítulo 4, que ele abre deixando


claro que o que se segue é especulação, Freud se propõe a traçar um perfil
evolutivo da nossa capacidade de apreensão dos estímulos externos. Ele
32

retoma idéias contidas em seus primeiros textos e afirma que nos


organismos altamente desenvolvidos a camada cortical da antiga vesícula
que recebia impactos incessantes de estímulos, encontra-se agora nas
camadas mais profundas do cérebro e especializadas em órgãos para a
recepção selecionada de certas quantidades de estimulações, internas ou
externas. A percepção resulta da recepção de estímulos pelos órgãos
sensoriais, possuindo característica ativa :
O intuito principal da recepção de estímulos é descobrir a direção e a natureza dos
estímulos externos [äusseren Reize]. (...) Nos organismos altamente desenvolvidos, a
camada cortical receptiva da antiga vesícula há muito tempo já se retirou para as
profundezas do corpo. (...) Essas partes são os órgãos dos sentidos, que consistem
essencialmente em aparelhos para a recepção de certos efeitos específicos de estimulação,
mas que também incluem disposições especiais para maior proteção contra quantidades
excessivas de estimulação e para a exclusão de tipos inapropriados de estímulos. (1920,
p.237).
A percepção é assim, caracterizada como a possibilidade de
reconhecimento (no sentido de apreensão pelos órgãos dos sentidos) de
algum estímulo que atinge o organismo, sendo que a “interpretação” dessa
percepção é feita pelo aparelho psíquico:
A maior parte do desprazer que experimentamos é um desprazer perceptivo
[Wahrnehmungsunlust] Esse desprazer pode ser a percepção de uma pressão por parte das
pulsões [Triebe] insatisfeitas, ou ser a percepção externa [äussere Wahrnehmung] do que é
aflitivo em si mesmo ou que excita expectativas desprazerosas no aparelho psíquico [ou
anímico], portanto, o que é por ele reconhecido como um perigo. (1920, p. 221).
Em passagens como esta fica sempre marcada certa ambiguidade com
relação ao que é a percepção. Seria a percepção fundamentalmente o
processo determinado pelos órgãos dos sentidos situando-se como externa
ao aparelho psíquico ou ela é constituinte do aparelho? No aparelho
encontra-se a própria percepção ou apenas os traços e as diferentes formas
de representação psíquica dos estímulos percebidos? Isto nos remete para
as três acepções de percepção como uma função, como o ato que exerce
esta função e como o resultado deste ato. Função e ato seriam externos ao
aparelho psíquico e só o resultado seria propriamente psíquico? E o
resultado, as representações, seriam reproduções fiéis do objeto ou do
fenômeno que gerou os estímulos?
33

Vários outros textos da segunda tópica retomam questões anunciadas em


Além do Princípio de Prazer. O principal talvez seja O Ego e o Id, de 1923,
que reservarei para análise nos dois próximos eixos. Mas em outro texto
fundamental do período da segunda tópica A Negação (1925), Freud aborda
estas questões por um ângulo diferente:
Não se trata mais de uma questão de saber se aquilo que foi percebido (uma coisa) será ou
não integrado ao ego, mas uma questão de saber se algo que está no ego como
representação pode ser redescoberto também na percepção (realidade) É, como se pode
notar, novamente uma questão sobre o externo e o interno. O que é irreal, meramente uma
representação e subjetivo é apenas interno; o que real está também lá fora. (1925b, p.375)
E pouco mais à frente:
...todas as representações se originam de percepções e são repetições dessas. Assim,
originalmente a mera existência de uma representação constituía uma garantia de realidade
daquilo que era representado. A antítese entre subjetivo e objetivo não existe desde o início.
Surge apenas o fato de que o pensar tem a capacidade de trazer diante da mente, mais
uma vez, algo que já tinha sido percebido, reproduzindo-o como representação sem que o
objeto externo ainda tenha de estar lá. Desta forma, o objetivo primeiro e imediato do teste
de realidade [Realitätsprüfung] não é encontrar na percepção real [realen Wahrnehmung ]
um objeto que corresponda ao representado, mas reencontrar tal objeto, convencer-se de
que ele está lá.... A reprodução de uma percepção como representação nem sempre é uma
repetição fiel [getrue Wiederholung]; pode ser modificada por omissões ou alterada pela
fusão de diferentes elementos. (1925b, p. 375)
Freud não pode ser mais claro: a reprodução de uma representação nem
sempre é uma repetição fiel. A representação é irreal, subjetiva e interna. O
real é o que é externo e pode ser apreendido pela percepção. Mas quais
seriam os diferentes elementos que por fusão modificariam a representação
e impediriam que ela fosse uma repetição fiel? Por que, muitas vezes
ocorrem omissões? Freud não dá resposta a estas perguntas neste texto.
Resta saber se Freud acredita que o trabalho terapêutico da análise teria
condições de transformar os processos psíquicos a ponto de ser possível
uma representação que seja uma repetição fiel. Ou seja, será que ele
postula um psiquismo e uma apreensão da realidade que em sua
constituição traga já em si a impossibilidade de que as representações
sejam repetições fiéis, ou o contrário, as distorções não são uma condição
inerente à percepção e ao psiquismo e seriam, portanto, de fato, distorções?
É claro que nos casos de patologias mais severas esta distinção pode ser
34

feita de forma mais consensual, mas o que dizer da grande gama dos ditos
“normais”? Por enquanto estas questões ficam sem resposta.
Freud, ainda neste texto, não parecia ter muitas dúvidas quando afirma que
“originalmente a existência da representação é já a garantia da realidade do
representado.” (1925b, p.375) Conhecemos a ambiguidade de Freud com
relação a este tema, mesmo porque não é de todo incoerente com a teoria
supor representações de objetos irreais ou de processos puramente
fantasiados. Mas vale lembrar que é o mesmo Freud que afirma que toda
fantasia se apoia sobre um grão de realidade. Estas oposições entre interno
e externo, entre real e fantasiado estão no centro de toda discussão
metapsicológica. Em muitos momentos Freud parece que se vê obrigado a
tomar um partido, em outros ele parece aceitar mais tranquilamente a
ambiguidade imposta pelos fatos.
Outro ponto que merece destaque neste texto, A Negação, é o fato de Freud
afirmar a qualidade ativa das percepções, possivelmente mobilizadas a partir
de representações. Esta inversão é de grande importância. Assim, não
teríamos apenas percepções que geram representações, mas também
representações que “forçariam” a necessidade de percepções:
...em nossa hipótese, a percepção não é meramente um processo passivo, ao contrário, o
ego envia periodicamente pequenas quantidades de investimento para o sistema perceptivo
[Wahrnehmungssystem], com o que este sistema recolhe o estímulo externo... ( 1925b,
p.376)
Aspecto semelhante já tinha sido apontado por Freud em outro texto
publicado no mesmo ano, mas escrito um ano antes, Nota sobre ‘o bloco
mágico (1925 a). Neste texto, referindo-se à qualidade ativa da percepção,
Freud sugere que “é como se o inconsciente estendesse sensores ao mundo
externo através do sistema P- Cs. [W-Bw ] e os retirasse rapidamente assim
que eles de lá tivessem recolhido as excitações. “(1925a, p.369)
Representações inconscientes impulsionam o processo perceptivo? É claro
que neste texto Freud está mais preocupado em descrever o funcionamento
do que ele chama de “aparelho perceptivo de nosso psiquismo ou de nossa
alma” [unsere seelischen Wahrnehmungsapparat] e para isso ele estabelece
as comparações com o ‘bloco mágico’. Mas é possível supor que Freud
reconheça aqui, também, a possibilidade determinante da ativação
35

perceptiva através de processos inconscientes. E esta é uma posição


fundamental em sua concepção de nossa relação com a realidade.
Muitas questões ainda podem ser derivadas da relação entre percepção e
representação em Freud. Realizado este primeiro percurso, no entanto,
acredito que seja possível afirmar que para Freud percepção e
representação podem ser concebidas, em alguns momentos, em sintonia
com a tradição da filosofia e da psicologia de sua época. Mas é impossível
também, não reconhecer as contribuições inovadoras apresentadas por
Freud. Como lembra André Green (1964), com razão, é “impossível julgar
suas [Freud] opiniões sobre as ‘representações’ inconscientes como aquelas
de uma psicologia da percepção qualquer.“ (p. 1045) Freud possui uma
teoria própria sobre as Vorstellungen, que de fato exige com que se as
conceba sem a referência determinante quer seja da filosofia clássica, quer
seja das teorias psicológicas de sua época.
O tema da percepção está diretamente ligado à totalidade da investigação
freudiana, não só no viés mais especulativo da teoria, no questionamento
dos traços originais que constituiriam o psiquismo, mas fundamentalmente
na própria trajetória da teoria com relação às noções de realidade externa e
realidade psíquica. Mesmo que se pressuponha uma autonomia quase
absoluta das representações psíquicas com relação à realidade exterior
(situação que faria a psicanálise se aproximar perigosamente de uma
posição solipcista) não há como recusar à percepção seu lugar constante no
próprio cotidiano da prática psicanalítica, ou seja no trabalho clínico. A
situação clínica só se torna possível porque há percepções de parte a parte.
Poderíamos dizer, basicamente percepções auditivas, mas sabemos que
também estão presentes as visuais, as olfativas e as enigmáticas
“percepções internas” ou endopsíquicas.

Atento a todas as ambiguidades presentes na obra freudiana, Merleau-Ponty


ao se aproximar da noção do inconsciente recusa explicitamente sua relação
com as representações.  
36

Criticando a noção de uma consciência que pudesse prescindir da


percepção, do corpo e do mundo, sendo assim auto- evidente a si mesma,
Merleau-Ponty faz crítica semelhante à noção de inconsciente7:
A ideia de uma consciência que seria transparente por si mesma, e cuja existência se
tornaria, então, a consciência que ela tem de existir não é tão diferente da noção de
inconsciente: é, de ambos os lados, a mesma ilusão retrospectiva; introduz-se em mim, a
titulo de objeto explícito, tudo o que eu poderei, a seguir, aprender de mim mesmo (1945,
p.436).

Nesta passagem fica claro que Merleau-Ponty pressupõe um inconsciente


que é concebido a partir do modelo da consciência, pensado como mais um
campo de representações (que ele sempre criticou em bloco, não parecendo
se interessar pela distinção freudiana entre representação–coisa,
propriamente inconsciente e representação- palavra). Esse inconsciente
traria em si os mesmos problemas da noção clássica de consciência: se
destaca da experiência, fundamentalmente da relação sensível que se dá
através do corpo, e refugia-se no plano das representações. É o
inconsciente tributário da consciência, talvez muito marcado por uma leitura
exclusiva do inconsciente como resultado da repressão de conteúdos
originalmente conscientes. Não creio que a preocupação central de Merleau-
Ponty, neste momento de sua obra, seja analisar ou discutir a formulação
freudiana do inconsciente, mas sim caracterizar, com um exemplo a mais, a
concepção de psiquismo e existência que ele critica desde seus primeiros
textos. Trata-se de opor ao modelo representacional uma concepção que
privilegie o acesso ou contrato direto entre corpo e mundo, entre um corpo e
outro.
Sem dúvida, um dos aspectos mais originais da psicanálise com relação a
uma teoria da percepção está vinculado às investigações do que Freud
chamou de percepções endopsíquicas ou percepções internas. Embora em
algumas passagens de sua obra esta noção apareça confundida com a de
projeção, em muitas outras passagens ela revela a preocupação de Freud
com a percepção dos afetos e sentimentos, às vezes adjetivados como
inconscientes. Estas percepções em geral se ligam a percepções e
sensações originárias do mundo externo, o que torna todo o processo ainda

7
Em outro texto, [Coelho Junior, N. (1991)], desenvolvi com maior profundidade este tema que, no
entanto, recebe aqui uma nova análise no que diz respeito às críticas de Merleau-Ponty à concepção
freudiana do inconsciente. Cf. também a interessante análise de Petra HERKERT (1987) em seu livro
Das Chiasma, onde ela discute a crítica de Merleau-Ponty ao inconsciente freudiano.
37

mais complexo. Já em A Psicopatologia da Vida Cotidiana (1901), Freud se


referia a percepções endopsíquicas. Este tema das percepções internas e
sua relação com as representações assume importância fundamental tanto
no plano clínico como no plano metapsicológico. Como ter acesso (perceber)
ao que sinto e penso? De fato, principalmente através dos textos da
segunda tópica, ao revalorizar a percepção endopsíquica, Freud inaugura
uma outra concepção teórica sobre a percepção e sua simetria com as
representações.
Em A Psicopatologia da Vida Cotidiana (1901) Freud postula uma espécie
de relação entre os fatores psíquicos e a realidade, em que as ações dadas
sobre o meio são influenciadas e mediadas por uma espécie de
compreensão ou possibilidade de relação determinada pelo que chama de
“reconhecimento obscuro”, no qual o indivíduo identificaria
inconscientemente no ambiente algo seu.
Creio, de fato, que grande parte daquela concepção mitológica do mundo que ainda perdura
nas entranhas das religiões mais modernas não é outra coisa que psicologia projetada no
mundo externo. A obscura percepção ( poderíamos dizer a percepção endopsíquica,) de
fatores psíquicos e relações no inconsciente se espelham (...) na construção de uma
realidade sobrenatural... (1901, p.918)

Os processos que separam os conteúdos inconscientes dos conscientes


ganham aqui uma variação importante. Na percepção endopsíquica, o que
foi reprimido atua não como material transformado, e sim do modo como
está presente no inconsciente. É claro que para que isso ocorra, o conteúdo
inconsciente precisa passar pelos processos de deslocamento ou
condensação, sendo então, tolerado pela percepção consciente. O reprimido
está presente e é com sua configuração primária que determina o significado
daquilo que é percebido.
Em Delírios e Sonhos na Gradiva de Jensen (1907), Freud utiliza-se dos
delírios de um personagem para entender como algo que esteve reprimido
pôde ainda assim causar influência sobre seu comportamento. A percepção
é assim, determinada por fatores internos dos quais muitas vezes não se
tem consciência, já que são apenas por eles que se pode dar um sentido à
realidade. Pode-se afirmar que há consciência sobre a forma como se
entende o mundo, mas não do processo, do conteúdo ou das associações
que foram sendo configuradas ao longo da vida através das experiências
adquiridas e que acabam configurando essa forma particular de percepção
sobre o mundo.
38

Freud fornece inúmeros exemplos deste tipo de presença dos conteúdos


inconascientes em nossa forma de perceber o mundo. Ainda em Delírios e
Sonhos na Gradiva de Jensen (1907) ele escreve: “Após ter feito sua própria
infância coincidir com o passado clássico, o que para ele era muito fácil,
houve uma perfeita analogia entre o soterramento de Pompéia, que fez
desaparecer, mas ao mesmo tempo preservou o passado, e a repressão, da
qual tinha conhecimento através do que poderíamos chamar de percepção
“endopsíquica“ [“endopsychische” Wahrnehmung.] A percepção
endopsíquica seria uma espécie de percepção inconsciente do que está no
psiquismo, são representações que aparecem como uma projeção no
mundo externo. A percepção endopsíquica é uma espécie de projeção dos
processos que ocorrem internamente. É como uma percepção interna
inconsciente que é tida como uma percepção externa consciente. A
separação entre o que é externo e interno fica assim, comprometida. Assim
Freud definia em uma passagem de sua apresentação do caso do “homem
dos ratos“( 1909):
...a repressão não se efetua por meio da amnésia, mas sim através da ruptura de conexões
causais devidas a uma retirada de afeto [Affektenziehung]. Essas conexões reprimidas
parecem persistir em algum tipo de configuração muito vaga (que eu, em outro lugar,
comparei a uma percepção endopsíquica) sendo, por um processo de projeção, assim
transferidas para o mundo externo, onde dão testemunho daquilo que foi apagado da
consciência”. (1909, p.90).

Na percepção endopsíquica, atribui-se ao exterior aquilo que na realidade


deriva do interior. É a percepção, através dos órgãos do sentido, daquilo que
insiste no inconsciente, é a percepção de algo que está reprimido. O
resultado dos processos de pensamento são conscientes, assim como o
resultado da percepção endopsíquica também é consciente; ela inclusive é
um processo de pensamento, mas a possibilidade de existência da
percepção desse pensamento é creditada ao exterior e não como resultado
de uma elaboração interna que determinou a mesma percepção.

Freud avança no desenvolvimento destas ideias no importante Totem e tabu


(1912-13):
A projeção de percepções internas [innerer Wahrnehmungen] para fora é um mecanismo
primitivo, a que estão sujeitas, por exemplo, nossas percepções sensoriais
[Sinneswahrnehmungen], e que assim, normalmente desempenha um papel muito grande
na determinação da forma que toma nosso mundo exterior. Sob condições cuja natureza
39

não foi ainda suficientemente estabelecida, as percepções internas de processos


emocionais e de pensamento [Gefühls und Denkvorgängen] podem ser projetadas para o
exterior da mesma maneira que as percepções sensoriais. (...)Foi apenas após a linguagem
de pensamento [Denksprache] abstrato ter sido desenvolvida, ou seja, apenas após os
resíduos sensoriais das representações- palavra [Wortvorstellungen] terem sido ligados aos
processos internos, que os últimos pouco a pouco foram se tornando capazes de serem
percebidos [wahrnehmungsfähig]. Antes disso, em virtude da projeção das percepções
internas para fora, os homens primitivos chegaram a uma imagem [Bild] do mundo externo
que nós, com nossa percepção consciente [Bewusstseinwahenehmung] intensificada, temos
hoje de traduzir novamente para a psicologia (1912-13, pp. 354-55)
No importante texto metapsicológico “O Inconsciente”(1915), Freud, apoiado
em Kant, reafirma o fato da percepção possuir determinações subjetivas:
Não nos resta na psicanálise outra alternativa do que sustentar que os processos anímicos
[seelischen Vorgänge ] são em si inconscientes, e comparar a percepção deles por meio da
consciência à percepção do mundo externo por meio dos órgãos sensoriais. (...) Assim
como Kant nos advertiu para não desprezarmos o fato de que as nossas percepções estão
subjetivamente condicionadas [subjektive Bedingheit ], não devendo ser consideradas como
idênticas ao que, embora incognoscível [unerkennbaren], é percebido, assim também a
psicanálise nos adverte para não estabelecermos uma equivalência entre as percepções
conscientes [Bewusstseinswahrnehmung] e os processos mentais inconscientes que
constituem seu objeto. (1915, pp.129- 130)
É possível argumentar que há uma mudança na obra de Freud quanto à
forma de tematizar a percepção na formulação de sua segunda tópica. Com
a introdução de uma nova concepção do aparelho psíquico, de uma nova
teoria da angústia e das pulsões, Freud passa a considerar a percepção a
partir de um novo enfoque. Botella e Botella (1995) sugerem que “a
segunda tópica é o produto da necessidade de poder pensar o psiquismo
enquanto conjunto de fenômenos submetidos a mudanças; em suma, em
termos de processo e não unicamente de conteúdos representacionais e de
sistemas.” (p.354) Ao retomar em seu texto de 1923, O Ego e o Id, a noção
de percepções endopsíquicas (endopsychischen Wahrnehmungen ou innere
Wahrnehmungen ) que já aparecia, Freud afirma:

Enquanto a relação existente entre as percepções externas (äusseren Wahrnehmungen) e o


ego é bastante evidente, aquela que liga as percepções internas (inneren Wahrnehmungen)
ao ego exige um exame especial. Ela nos faz questionar se temos realmente o direito de
relacionar toda consciência ao superficial sistema Percepção- Consciência. (1923, p. 290)
40

Freud considera a seguir, neste texto, que as percepções endopsíquicas


emergem de camadas mais profundas do aparelho psíquico. São mais
primitivas e mais elementares que aquelas provenientes do exterior. Assim,
uma concepção ampliada da percepção começa a se delinear. Um pouco
mais a frente, ainda em O Ego e o Id, fazendo corresponder às percepções
endopsíquicas as sensações inconscientes, Freud escreve:
Abreviando, e de uma maneira que não é de toda correta, falamos de sensações
inconscientes e insistimos em sua analogia com as representações inconscientes, o que
não é de todo justificável. A diferença é basicamente que para as representações
inconscientes chegarem à consciência precisam primeiro criar uma série de elementos de
ligação, enquanto que as sensações se propagam diretamente. Com outras palavras: a
distinção entre consciência e pré- consciente não se coloca para as sensações, uma
sensação ou é consciente ou é inconsciente, mas jamais pré- consciente. Mesmo que uma
sensação esteja associada a representações- palavra, ela se torna consciente não em
função desta representação, mas diretamente. ( 1923, p.291)

Aparece assim, claramente, a discussão sobre o estatuto das


representações na segunda tópica, abrindo alternativas à simetria percepção
- representação. Passagens como estas apresentam novas possibilidades
ao estudo da percepção e, a nosso ver, transformam Freud em um instigante
interlocutor de Merleau-Ponty no debate sobre a percepção. As distinções
entre percepção interna e externa e as distinções entre os binômios
percepção - realidade e percepção - alucinação, que percorrem vários
momentos da obra de Freud, possibilitam diferentes níveis de
questionamento. Tomar como foco a passagem da simetria percepção -
representação para a abertura ao plano irrepresentável nos processos
perceptivos, é um dos recortes possíveis no estudo da noção de percepção
na obra de Freud. Ao optar por este recorte, esse trabalho inclui-se na série
de estudos contemporâneos que têm colocado em questão o plano das
representações como eixo predominante para a compreensão do legado
freudiano.8

Mas, acima de tudo, considerando o conjunto das ideias de Freud, é


possível afirmar que estamos diante de uma dialética muito particular entre
percepções internas e percepções do mundo externo e que seria na

8
Cf. SCHNEIDER, M. Afeto e Lingugem nos Primeiros Escritos de Freud, São Paulo, Ed. Escuta, 1994;
BOTELLA,C. e BOTELLA, S. "Le statut métapsychologique de la perception et l'irrepresentable", Revue
Française de Psychanalyse, 1-1992; BOTELLA,C. e BOTELLA,S. "Sur le processus analytique: du
perceptif aux causalités psychiques",Revue Française de Psychanalyse, Paris, 2-1995;
41

ambiguidade deste campo que a psicanálise constitui sua teoria e sua


prática.
Mas, se as aproximações, mesmo críticas, entre as concepções freudianas e
a fenomenologia de fato existem, as comparações e "diálogos" entre
Merleau-Ponty e Freud quanto ao tema da percepção precisam ser sempre
conduzidos com cautela e rigor.
Para finalizar, insisto, que na obra de Merleau-Ponty, como venho
procurando demonstrar neste texto, a percepção ocupa lugar central no
questionamento da oposição clássica sujeito - objeto, constituindo-se em
conceito chave na descrição das relações intersubjetivas, e na construção
de uma nova proposta ontológica, a ontologia do ser bruto. Em seu último
livro, Merleau-Ponty fala em fé perceptiva para denominar a relação mais
direta entre corpo e mundo, fundamento de toda possibilidade de
conhecimento, a marca clara do conhecimento pré- reflexivo.
Na obra de Freud, por outro lado, a oposição externo - interno é mantida,
sendo que o foco da investigação freudiana é predominantemente a
dimensão intrapsíquica. A noção de percepção endopsíquica é analisada em
seus efeitos na dinâmica do aparelho psíquico, seja na primeira tópica, seja
na segunda. As relações entre psiquismo e mundo externo têm sua ênfase
colocada no psiquismo e não na relação. Esta é uma das distinções que faz
com que todo esforço de comparação entre as duas obras, no que concerne
ao estudo da percepção, precise ser feito levando em conta diferenças de
ordem epistemológica e também as evidentes diferenças da função do
conceito na construção da teoria.

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