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O processo antigo era formado por ritos, verdadeiras cenas, em que as partes juravam,
autor pela demanda justa, de boa-fé, e réu por ter boa defesa. A prova, desde tempos
imemoriais, se dava diante de Deus, significando que o vencedor tinha a verdade divina
consigo. Foi assim em Roma e foi assim no direito germânico. Isto passou para o direito
lusitano, através das manquadras, cujas origens germânicas ou romanas gera muita
controvérsia na doutrina portuguesa2.
De fato, o comportamento das partes em juízo sempre esteve sob consideração da lei.
Desde o Direito Romano, e também na tradição luso-brasileira, sempre se impôs
regulamentação nesse sentido, contra o abuso, a malícia, a insinceridade e a má-fé no
processo. É obrigatória a menção aos textos, colhidos das seguintes passagens de Gaio3:
G. 4, 171. Reprime-se a temeridade não só dos autores como também dos réus,
ora mediante penas pecuniárias, ora pelo juramento religioso, ora pela ameaça
de infâmia. A pena pecuniária o pretor a institui em certos casos contra os réus
recalcitrantes, sob a forma de uma acepção em dobro (dupla), como , por ex.,
nas ações judicati (de coisa julgada), depensi (de quantia paga), de dano
injusto, de legados per damnationem. Em outros como nos de pecúnia credita
(quantia certa emprestada) e pecúnia constituta (constituto), permite-se fazer
sponsio, mas na acepção certae credita pecuniae, a sponsio é pela terça parte do
valor da acepção, e na acepção constituta pecúnia, pela metade
1
Artigo se refere ao capítulo 6 da dissertação de mestrado do autor: “O Princípio da Moralidade no Processo
Civil: Um Ensaio de Teoria Geral do Direito”, PUCSP, 2000.
2
Como se pode ver pelo livro de Eduardo Vera-Cruz Pinto, As Origens do Direito Português, a Tese Germanista
de Teófilo Braga.
3
CORREIA, Alexandre e SCIASCIA, Gaetano. Direito Romano. São Paulo: Saraiva, 1951, vol. 2, p. 285-.
2
G. 4, 174. Também a má-fé por parte do autor é reprimida, ora pela acepção de
malícia ora pela contrária, ora pelo juramento, ora pela reestipulação.
G. 4, 179. Em todos os casos nos quais se pode propor acepção contrária, pode-
se também agir por malícia porém só se admite a propositura de uma ou outra
das duas ações. Por onde, obtendo o réu o juramento de que o autor não agirá
com intenção dolosa não se lhe deve dar o processo contrário, por não caber
processo de calúnia.
G. 4, 181. Contra quem pode sofrer a reestipulação penal não se pode propor a
acepção de malícia, nem reclamar o juramento religioso; pois é evidente que
em tais casos não se aplica o processo chamado contrário”.
também da actio dupli, que é uma ação de regresso, uma ação indenizatória por
responsabilidade, sempre pelo valor superior ao dano, por acréscimo de terça parte ou metade,
pelo dobro, triplo, quádruplo.
A ação contrária produzia resultados mais fortes no mundo prático do que a ação de
malícia, pelo seu fundamento, que poderia ser a injúria ou o dolo da mulher na administração
de bem de nascituro, pelos quais respondia o autor sempre que não se provasse a causa, ainda
que, induzido por alguma opinião, acreditasse estar agindo legitimamente. Mas, um
mecanismo inteligente evitava esta circunstância drástica da ação contrária, e consistia,
exatamente, numa outra forma de repressão ao mau comportamento em juízo, que é o
juramento do autor de não agir dolosamente, uma vez prestado, impedia a propositura da
mencionada ação contrária.
Mas a pior de todas as penas que poderia recair sobre o autor era a infâmia, “os
denominados juízos infamantes, derivados dos processos de furto, rapina e injúria; e, mais
tarde, das ações de sociedade (pro sócio), fidúcia, tutela, mandato e depósito, baseadas na
boa-fé”.4
Alexandre Correa e Gaetano Sciascia5 anotam que “os criadores do Direito tiveram
muito cuidado em que os homens não movessem demandas fàcilmente; em que também
pomos estudo. E isto pode conseguir-se mui fàcilmente reprimindo-se a temeridade tanto dos
autores como dos réus, ora com uma pena pecuniária, ora por um juramento religioso, ora
pelo medo à infâmia.”
A noção de que o réu não expõe suas alegações sem antes ter jurado que veio se opor
julgando ter uma boa defesa é muito importante para dar ao direito de defesa seu verdadeiro
contorno e limite. Uma hipertrofia perniciosa do conceito fez corrente a idéia de que direito
de defesa é direito de falar qualquer coisa, por pueril ou até mesmo cínica que seja a assertiva
defensal, se tomada a circunstância pelo critério do senso comum, pelo modo como agiria
qualquer pessoa de bem, quando, em verdade, direito de defesa é oportunidade de defesa, se
houver defesa justa.
4
TUCCI, José Rogério Cruz e AZEVEDO, Luiz Carlos. Lições de História do Processo Civil Romano. São
Paulo: RT, 1996, p. 131.
5
CORREIA, ob. cit., p. 631-3.
4
direito americano e inglês - , respondendo por ação indenizatória em quantia sempre maior
que o equivalente ao dano.
O caráter público da ofensa que se perpetra pela ação imoral em juízo deve ser
remarcado, pois o juramento deferido às partes é imposto pelo pretor, que dispõe sobre o
processo. Isso mostra como é sem razão o argumento, que tanto tempo esteve em voga, de que
o abuso do processo não poderia ser punido em face do princípio dispositivo, numa visão
exclusivamente privatística do processo. Felizmente hoje já está bem combatida pela doutrina
essa idéias, não restando dúvida de que seu caráter público exige moralidade no decorrer.
Sempre tiveram atenção na lei processual as ações das partes em juízo atentatórias à
boa administração da justiça. É antiga a regulamentação minudente do tema na tradição do
direito lusitano, que vigeu no Brasil, ultimamente através das Ordenações Filipinas, até que
entrasse em vigor o Código Civil (Ordenações Filipinas, livs. II e III, p. 618 e ss.):
Todo o que demandar em Juízo sobre ação pessoal por qualquer divida, que lhe
deva, se demandar maliciosamente mais do que na verdade lhe é devido,
vencerá somente aquela parte, que provar ser-lhe devida, e o réu será absolutio
na parte em que se mostrar não ser obrigado: e quanto às custas, será o autor
condenado em tresdobro na parte, em que o réu for absoluto, por demandar
maliciosamente o que lhe não era devido, e o réu será condenado somente nas
custas singelas daquela parte, em que for condenado. Porém, se o autor antes
da lide contestada se descer de demandar o que assim pedia mais do que lhe era
devido, podel-o-ha-fazer, sem ser condenado em custas em dobro, nem
tresdobro, mas pagará as custas singelas, que até li foram feitas da parte, que
couber à quantidade, de que se desceu, quando de todo se não descer da dita
demanda. E se se descer de toda demanda, será condenado em todas as custas
singelas.
1. Porém, se o réu provar que o autor com engano o fez obrigar por escritura
publica, ou perante testemunhas, em mais, do que na verdade lhe devia, se o
autor per tal obrigação, assim enganosamente feita, demandar o réu em Juízo, o
réu seja absoluto, assim do que na verdade for devido, como do mais, que per
engano foi acrescentado. E posto que depois de citado o réu, se queira o autor
arrepender, não deixará de incorrer na dita pena. E se além do dito engano
entrar simulação, incorrerá nas penas conteúdas do Livro quarto, Título 71:
“Dos Contatos simulados”.
Se alguma pessoa citar outra, e der petição por escrito, ou por palavra contra
ela, antes de vir o tempo, ou condição, em que lhe é obrigado fazer, ou pagar
alguma cousa (quer o réu pareça em Juízo por si, ou por seu Procurador, quer
não), tal pessoa não será recebida em Juízo a fazer tal demanda, e pagará ao
citado as custas em dobro, que lhe fez fazer. E se depois que o dito tempo, ou
condição vier, o quiser tornar a demandas por mesmo, não será a isso recebido,
sem primeiro pagar as ditas custas, seja já lhas não tiver pagas. E além disto,
haverá o réu todo aquele tempo, que faltava, para haver de ser demandado,
quando o autor primeiramente o demandou, com outro tanto.
Se alguma pessoa for obrigada a outra em alguma divida, e lhe pagou toda, ou
parte della, e o que a recebeu, demandar outra vez o que já tem recebido, e lhe
for provado, seja o autor condenado, que torne ao réu em dobro tudo o que já
dele tinha recebido, com as custas em dobro; ou se ainda é devedor em alguma
parte da divida, desconte-se-lhe della o dito dobro, se alquilo, que lhe ainda
dever, para isso bastar: e não bastando, paga-lho o autor por seus bens. Porém,
se o autor antes da lide contestada se quiser descer do que assim pedia, que já
em si tinha, pode-lo-á fazer sem pena alguma, somente pagará as custas em
dobro á parte, que lhe fez fazer, até se descer da demanda.
Sendo algum demandado em Juízo per ação real por cousa, que possua, e sendo
perguntado pelo Juiz se está em posse della, o negar, provando o autor, como
ele estava em posse della, logo sem outro processo, nem labelo, nem
contestação será privado da posse da dita cousa, e será trespassada ao autor, e
se o réu quiser haver a cousa, será feito do réu autor, e do autor réu. E isto foi
assim dado por pena ao réu, por negar ao Juiz possuir a cousa, e lhe ser
provado o contrario.
E isto haverá lugar, quando o réu negar em Juízo possuir a cousa, e o autor lhe
provar o contrario; mas se o réu depois que houver negado possuí-la, antes que
o autor prove o contrario, confessar star em posse della, não haverá a dita pena,
porém, poderá o autor, se quiser, dizer que não quer aceitar a confissão assim
feita pelo réu, e que quer dar sua prova, como o réu a possui. E recusando o
autor de aceitar dita confissão, o réu será privado da posse como dito he. E
fazendo o réu confissão, depois que o autor tiver provado, como estava em
posse da cousa, já a tal confissão lhe não aproveitará, mas será privado da dita
posse.
6
E no caso onde o autor tivesse provado, como o réu estava em posse da cousa,
e o réu dissesse e alagasse ser sua, oferecendo-se a tal razão lhe não
aproveitará, nem será redebido a ela; porque este caso especialmente em
Direito é privilegiado, assim como o caso de esbulho, onde a tal razão não se
recebe, mas o esbulhado antes de outra cousa é restituído á sua posse, de que
foi esbulhado.
E depois que, no caso acima dito, o autor for entregue da posse, se o réu quiser
provar como a cousa é sua, e lhe pertence de direito, será recebido a isso em
novo Juízo, e ser-lhe-á feito cumprimento de direito; e poderá ainda em esse
novo Juízo mudar a negação sobre a posse, e dizer que estava em posse da
cousa, se se entender ajudar da posse, por dizer que a possuiu por muitos
tempos com algum titulo, de que se possa causar prescrição, por conservação
de todo o seu direito, ou por alguma outra razão, de que se possa com direito
ajudar: porque sem embargo, que seja em si contrario, pode-lo-á fazer, pois que
os Juizes são diversos, ainda que seja entre as mesmas pessoas: contanto que
alegue justa razão, per que se mova a revogar a dita confissão, assim como
alagando ignorância córada por causa de alguma justa razão, que houve, a não
saber que possuía a dita coisa ao tempo, que negou possuí-la.
Tanto que em qualquer feito a lide for contestada, logo o Juiz, de seu officio
sem outro requerimento das partes, dará juramento de calúnia, assim ao autor,
como ao réu, o qual juramento será universal para todo o feito. E o autor jurará,
que não move a demanda com tenção maliciosa, mas por entender que tem
justa razão para a mover e prosseguir até fim. E o réu jurará, que justamente
entende defender a demanda, e não alagará, nem provará em ela cousa alguma
per malicia, ou engano, mas que verdadeiramente se defenderá até fim do feito
segundo sua consciência. E se cada uma das partes sem justa razão recusar o
dito juramento, sendo autor, perderá toda ação, que tiver, e se for réu, será
havido por confessado o que lhe o autor demandar. E posto que conforme o
Direito hajam de haver a dita pena, queremos que seja assim julgado per
sentença.
saber e diligencia cousa alguma, por que o direito de suas partes possa perecer,
nem alegarão per si, nem lhes darão conselho, que aleguem, ou provem cousa,
ou razão, per que a demanda seja indevidamente prolongada, ou a parte
contraria danificada. E este juramento farão os Procuradores das partes em seu
nome, como Procuradores, além do juramento, que fazem as partes principiais.
E acontecendo, que a parte principal seja absente de tão longa distancia, que
não possa ser achado para dar a seu Procurador poder, per que possa fazer o
dito juramento, nem menos tirar Carta para onde a parte contraria estiver, será
dado juramento ao Procurador, ainda que para isso não tenha especial
mandado, e dar-se-á na forma acima declarada. Porém, o feito não se retardará
por causa do dito juramento.
E tanto que assim os ditos juramentos de calúnia forem dados, se assentará nos
feitos por termo, como as partes ou seus Procuradores os receberam. E
achando-se que fizeram nos feitos, ou alegaram alguma causa, que não deviam,
por malicia, serão acusados e punidos por perjuros.
O Código Civil ainda em vigor traz alguns dos institutos que vimos nas Ordenações.
Quando o Autor cobra antes de vencida a dívida, ou cobra dívida já paga, ou pede mais do
que lhe é devido, fica condenado a esperar o mesmo tempo que faltava, descontar juros
contratados e pagar em dobro pelas custas, no primeiro caso, e a pagar em dobro ao réu o
pedido indevido, no segundo caso, e o mesmo valor que foi indevidamente cobrado do réu, no
terceiro caso (arts. 1530-32). Ressalve-se que a lei romana é melhor, pois prevê uma regra de
equalização na sua aplicação, quando se trate de pessoa simples e sem malícia.
Genericamente visto que há um arsenal legal para coibir no direito processual civil
brasileiro a malícia processual, não sendo agora o momento de se fazer uma verificação do
direito positivo e da jurisprudência sobre o tema, já que o trabalho segue na linha de apontar
as grandes questões que envolvem a discussão da relação entre moral e direito, ficando para
um próximo e específico trabalho tal abordagem complementar, vamos prosseguir para ver
qual o tratamento que dá a doutrina processual quanto ao dever de veracidade, começando por
uma abordagem negativa, ou seja, começando por verificar o que venha a ser a mentira na
temática moral, para depois verificar o tema da verdade no processo.
1.1. A Mentira
A questão da mentira é tema central da filosofia moral. Schopenhauer7, na sua
contundente refutação a Kant, quanto a este não admitir a mentira em qualquer hipótese como
uma ação moral, defende que a mentira pode ser usada no limite da autoconservação, numa
verdadeira legítima defesa:
“Posso, portanto, sem injustiça, contrapor à mera presunção de dano por meio
da astúcia, uma astúcia prévia e não preciso, por isso, dar satisfação a quem
espreita indiscretamente minhas relações privadas nem com a resposta quero
manter segredo disto, para indicar o lugar onde está um segredo perigoso para
mim e talvez vantajoso para ele, em todo o caso, que lhe outorga poder sobre
mim: (...) [Querem saber um segredo e por isso serem temidos. Juvenal,
Saturae 3, 113].
“Mas estou então autorizado a repeli-lo com uma mentira, a seu próprio risco,
caso ela o induza a um engano prejudicial. Pois, aqui, a mentira e o único meio
de precaver-se contra a curiosidade indiscreta e a suspeita. Fico pois na posição
de autodefesa. "Ask me no questions, and I tell you no lies" [não me faças
perguntas e não te direi mentiras] é aqui a máxima correta. Aliás, entre os
11
ingleses, para quem a acusação de mentira vale como a mais pesada afronta e
que por isso mentem menos do que as outras nações, todas as perguntas
indiscretas que se referem às relações dos outros são consideradas, de acordo
com isso, como má educação, que a expressão "to ask questions" indica.
Também toda pessoa sensata procede de acordo com o principio acima
estabelecido, mesmo se ela possuir a mais estrita integridade. Por exemplo, se
ela estiver voltando de um lugar distante, onde recebeu dinheiro, e um viajante
desconhecido que a acompanha perguntar, como de costume, primeiro de onde
vem e depois para onde vai e, aos poucos, também o que ela possa ter feito em
tal lugar - então a primeira responderá com uma mentira, para evitar o risco do
roubo. Quem for encontrado na casa de um homem cuja filha ele namora e for
perguntado sobre a causa de sua presença inesperada dará sem hesitação uma
resposta falsa, se for esperto. E assim apresentam-se muitos casos em que a
pessoa razoável mente, sem nenhum escrúpulo de consciência. É somente este
modo de ver que afasta a contradita o gritante entre a moral que é ensinada e a
que é exercida diariamente pelos mais íntegros e melhores. Todavia tem de ser
rigorosamente mantida a limitação proposta ao caso da autodefesa, pois, fora
disso, esta doutrina daria lugar a abusos abomináveis, porque, em si, a mentira
é um instrumento.
“Mas como, apesar da paz no país, a lei permite a todos levar armas e usá-las, a
saber, no caso da autodefesa, assim a moral consente, para o mesmo caso, e só
para este, o uso da mentira. Excetuado o caso da autodefesa contra a força ou a
astúcia, toda mentira é uma injustiça e por isso a justiça exige veracidade
diante de todos. Mas, contra a reprovação incondicional da mentira sem
exceções, que está na essência da própria coisa, fala o fato de que há casos em
que mentir é até mesmo um dever, sobretudo para os médicos. Do mesmo
modo, existem mentiras nobres, (...) em todos os casos em que alguém quer
chamar para si a culpa de um outro. Finalmente, o fato de que até Jesus Cristo
disse uma vez, intencionalmente, uma inverdade (João 7, 8). De acordo com
isso diz diretamente Campanella, nas suas Poesie Philosoficbe, Madrigale 9:
"Bello il mentir, se a fare gran ben'si trova" [belo é o mentir, se promove um
grande bem]. Do contrário, porém, a doutrina corrente da mentira necessária é
um lamentável remendo no vestido de uma moral mesquinha. A dedução que
Kant motivou e que aparece em vários compêndios, da ilegitimidade da
mentira, a partir da faculdade de falar, é tão chã, infantil e insossa que, só para
ironizá-la, se poderia tentar lançar-se nos braços do diabo e dizer com
Talleyrand: "L'homme a reçu la parole pour povoir cacher sa pensée" [O
homem recebeu a palavra para poder ocultar seu pensamento]. O horror
incondicional e ilimitado que Kant mostrava, em cada ocasião, pela mentira
baseava-se quer na afetação, quer no preconceito: no capitulo da sua Doutrina
da virtude que trata da mentira, ela a descreve com todos os predicados
desonrosos, mas não dá nenhum fundamento para sua condenação, o que seja
de maior efetividade. Declamar é mais fácil do que provar, e moralizar, mais
fácil do que ser verdadeiro. Kant teria feito melhor se tivesse desencadeado
aquele zelo contra a alegria maligna. É esta, e não a mentira, o vício
propriamente diabólico. Pois ela é o oposto exato da compaixão e não é senão a
crueldade impotente, grata ao acaso que fez por ela o sofrimento que ela, com
tanto gosto, observa e que foi incapaz de causar. Pois que, de acordo com o
princípio da honra cavalheiresca, a reprovação da mentira seja tomada como
12
tão grave e lavada com o sangue do culpado não reside no fato de que a
mentira seja injusta, pois então a culpabilidade de uma injustiça exercida com
violência teria de mortificar do mesmo modo, o que reconhecidamente não
acontece. Mas repousa no fato de que, de acordo com o princípio da moral
cavalheiresca, o direito funda-se na força. Ora, quem para cometer uma
injustiça lança mão da mentira prova que lhe falta a força ou a coragem para
aplicação desta. Toda mentira testemunha o medo: isto é o que o condena à
morte”.
O longo trecho de Schopenhauer foi necessário para mostrar por palavras suas mais
convincentes, uma abordagem bem realista da vida, nada formalista, que mostra a mentira, em
certas circunstâncias, como autodefesa ou para fazer o bem, como necessária e lícita enquanto
ação moral. Mas só neste campo limitado, pois fora dele, devemos tomar a mentira em má
conta, hipóteses em que veicula a astúcia, como uma força que reclama a reação do direito.
Este trecho sobre a mentira é sacado para evidenciar o absurdo a que chegou o
positivismo jurídico, ao permitir afirmações como a de um Couture8, grande expoente da
cultura jurídica latino-americana, que em 1939, no bom propósito de tratar sobre o tema,
deixa bem claro o pensamento dominante, de que a “regra moral do processo civil é
atualmente uma expressão um pouco artificial; (...) não podemos infelizmente fazer nossa a
expressão dos civilistas e dizer, com RIPERT, que o direito na sua parte mais técnica
permanece dominado pela regra moral. Apenas podemos afirmar, após alguns séculos de
evolução, que a legislação, a doutrina e a jurisprudência mais recentes já começaram a luta
contra a fraude, o dolo e a simulação no juízo”.
Ainda em Moacir Amaral Santos9, para bem remarcar a mentalidade que impera na
seara processual nesse tema, se colhe o motivo pelo qual a maioria da doutrina entende que
não há dever de veracidade no processo, em termos de que:
"o dever da verdade está implícito, assim, numa das máximas do próprio
processo dispositivo: "Da mihi factum”, diz o juiz às partes, e lhe darei o
direito – “dabo tibi jus”.
“Dir-se-á que nisso não vai senão mero dever moral. Tratando-se do processo
do tipo dispositivo, em que é assegurada às partes a liberdade de deduzir os
fatos e dar-lhes a prova naquilo que se conforme com os seus interêsses, e em
que o juiz julgará segundo o alegado e provado ("secundum allegata et probata
judex judicare debet"), propõe-se o Estado a fazer justiça com base na verdade
formal, a que resulta do processo ("quod non est in actis non est in mundo"),
8
COUTURE, Eduardo Jose. Oralidade e regra moral no processo civil. Rio de Janeiro: Revista Forense, 1939,
Vol. LXXVII, Fasc. 427, pp. 21-9.
9
SANTOS, Moacir Amaral. Limites às atividades das partes no processo civil. Rio de Janeiro: Revista Forense,
1958, Vol. 175, Fascs. 655 e 656, pp. 37-43.
13
“Mas verdade formal não quer dizer verdade consentida, fruto de disposição
dos interessados, nem que da verdade tem apenas as vestes, a forma. Verdade
formal é a que se obtém através de um procedimento condicionado a formas,
que não podem ser relegadas; é a verdade que resulta necessàriamente dêsse
procedimento como pressuposto idôneo para obtê-la. Assim, a verdade que se
alcança por meio do processo é formal porque resultante dos meios e formas
autorizados pela disciplina jurídica e declarada no momento exato em que essa
mesma disciplina exige a sua declaração. Esgotados os atos processuais, na
ordem do procedimento predeterminado pela regulamentação jurídica, nada
mais há a fazer senão a proclamação da sentença, na qual se contém, explícita
ou implícita, a verdade formal, a verdade jurídica, contra a qual seriam inúteis
as investidas da verdade absoluta se com ela não coincidisse, porque findo o
procedimento destinado a reduzi-la à substância”.
O outro lado da questão, como já pôde entrever pelo próprio texto acima citado, diz
respeito ao tema da verdade, cujo conceito de verdade formal foi construído exatamente como
um dos sustentáculos da teoria privatística do processo.
1.2. A Verdade
10
SOBRINHO, Elicio de Cresci. Dever de Veracidade das Partes no Processo Civil. Lisboa: Edições Cosmos,
1992, passim.
14
São Tomás de Aquino repete conceito de lsaac Ben Salomon, de que a Verdade é a
adequação do intelecto e da coisa. Aristóteles afirma que a verdade está no intelecto e no
objeto a medida da verdade. Essa proposição permite uma noção que mais tarde viria
denominar-se de nominalista, em oposição à noção metafísica platônica. São Tomás inverte
essa afirmação aristotélica, afirmando a noção metafísica de verdade assim: "O intelecto
divino está apto a medir, não é medido; mas o nosso intelecto é medido, não apto a medir, em
relação às coisas naturais, e apto a medir só em relação às artificiais".
11
ABBAGNANO, ob. cit., (DF), v. Verdade, p. 957-61.
15
Daí surge o segundo aspecto a ser abordado pelo processualista italiano: 2) Qual o
enquadramento que a teoria processual dá à verdade do fato no processo?
12
TARUFFO, Michele. La prova dei fatti giuridici. Milano: Giuffrè, 1992, passim. Este tópico será doravante
desenvolcvido com base nesta obra de Taruffo.
16
de que no processo não se discute apenas fato que, muitas vezes, pode até ser incontroverso,
sem pôr fim ao litígio.
Nesse ponto, Michele Taruffo faz uma importante afirmação: as regras legais que
disciplinam a prova e o acertamento do fato no processo não são exaurientes na regulação do
objeto normatizado, mas são, ao contrário, sobretudo nos ordenamentos modernos, residuais,
porque se contrabalançam com o princípio da amplitude da prova e do convencimento do juiz.
Aceita que o processo se contente com a verdade relativa, mas relativa pela própria
impossibilidade prática de se chegar à verdade absoluta, seja pelo tempo, pois o processo deve
terminar, seja pela incapacidade humana de conhecer a verdade em alguns casos, seja pela
limitação da norma.
17
Lembra, no entanto, que esse é um modo óbvio de pensar. Não é só no processo que a
verdade é, nesse sentido, relativa, mas uma relatividade de grau, em função da possibilidade
cognitiva e não uma relatividade em função de diferença qualitativa da verdade real.
A conclusão é coerente com tudo o que disse anteriormente. A verdade legal não é
verdade, porque se afasta da noção metafísica da verdade. A única verdade é a verdade
metafísica que está em Deus, é a verdade que não se põe a prova. Não é relativa, porque deve
ser o mais próximo possível da verdade real, portanto não pode ser admitida como verdade
formal, senão como uma verdade relativa em função das impossibilidades práticas de se
atingir a verdade absoluta, mas não uma verdade relativa qualitativamente diferente da
absoluta. Não é verdade absoluta porque a verdade em seu sentido nominal jamais será
absoluta.
Tudo converge, como se buscou demonstrar, para que temas como a prova judicial e a
verdade dos fatos afirmados pelas partes no processo, sejam pensados por uma concepção do
processo como meio de realização da Justiça, em primeiro plano, portanto, comprometido
com a verdade material, tanto quanto possível, em razão mesmo das limitações teóricas e
práticas já apontadas, e, em segundo plano, como meio de solucionar os conflitos levados ao
Judiciário, que não pode permitir a não solução da lide.
O processo tem regras que devem ser respeitadas. É garantia mínima do contraditório
que as partes saibam qual o procedimento de antemão e que esse procedimento seja
respeitado. Mas essas regras não se prestam a ser referidas como regras do jogo, no sentido
18
Um exemplo prático é bom para aclarar a idéia veiculada: A parte se defende, contesta
cinco dos seis fatos afirmados na inicial e pede a improcedência da ação, protestando pela
produção de provas. Aquele fato sobre o qual não se manifestou é incontroverso, não
suscetível de ser objeto de prova, pela letra expressa da lei processual.
Mas, numa circunstância como essa, ele deve ser objeto de prova. Primeiro porque o
réu se defendeu, não é lídimo dizer que tenha se quedado inerte se pediu a improcedência do
pedido. Pelo princípio da isonomia, se ao juiz compete instar ao autor para emendar a inicial,
pois não lhe é dado indeferi-la sem que dê a oportunidade de emenda, que pode se referir,
inclusive, à narrativa da inicial, portanto à própria colocação dos fatos e a sua concatenação
com o pedido que dele decorre em articulação com o direito, se assim é para o autor, o juiz
deve também instar o réu a manifestar-se expressamente de fato da inicial ao qual não se
referiu, porque a apresentação da defesa e o pedido de improcedência são incompatíveis com
a presunção de disposição do direito.
Assim também deve ser interpretada a revelia. Não é justo deferir ao autor algo que
lhe não pertence pela omissão involuntária, mormente em tempos como o que vivemos, em
que as partes têm prazo exíguos e o processo tão dilatada duração. As omissões involuntárias
das partes não podem servir de solução abreviada do conflito sem que o Judiciário se
manifeste expressamente, com cognição plena e exauriente, sobre as questões que lhe são
levadas.
As disposições do art. 334 são uma válvula de escape do sistema para a situação em
que não há como decidir. Não podem ser usadas como regra de solução simples e fácil do
conflito, sem a apreciação de veracidade do alegado pelas partes. Ao juiz compete buscar a
verdade, desde que não haja disposição expressa de direitos das partes e de que não haja
omissão abusiva, protelatória do réu.
Este é um limite apontado e que favorece o réu de boa-fé, que não pode ver seu
patrimônio sair das mãos por decisão judicial em virtude de mero acidente de percurso,
através de um presunção formalista e draconiana. O limite oposto está, justamente, na
sinceridade da defesa, pelos argumentos que são alinhavados, seja na questão de fato seja na
questão de direito, quanto à tese jurídica defendida.
As lides trabalhistas são exemplo de lide civil (não-penal) em que grassa solto o abuso
do direito de defesa, toda vez que na ação se verifica o não pagamento do direito trabalhista
reclamado. Nada explica a afirmação inicial de não dever, se da simples constatação dos fatos
se deduz o não pagamento, sem que haja qualquer controvérsia válida em torno dele, a
explicar a legitimidade em não pagar. É mais do que comum ações trabalhistas de horas extras
contra bancos, sempre provadas ao final em favor dos empregados, sem que essa
19
circunstância refletia em qualquer tipo de responsabilidade pela falta de verdade, pelo não
pagamento sem qualquer motivo justo.
Nestes casos é que a doutrina de Ripert13 cai como uma luva, pois, lembrando a
passagem de Schopenhauer, o não cumprimento do contrato faz da promessa de pagamento
uma mentira, a ser combatida pelo direito. O controle de moralidade pelo critério da mentira é
puro e eficaz. Não há ciência em se coibir a mentira, assim verificada toda vez que o
descumprimento da obrigação civil se der sem motivo plausível. É preciso dar sentido às
obrigações assumidas e esse sentido está na moralidade que as integra, pela sua própria
condição de obrigações jurídicas.
2. Advogado
As partes no processo civil falam através de seus procuradores, que têm a capacidade
postulatória para tanto. Capacidade postulatória é o pressuposto processual subjetivo
consistente na qualidade de poder falar em juízo por representação através de mandato
judicial.
Nos termos do art. 133 da CR/88 e do EOAB está adstrita ao profissional advogado
regularmente inscrito a exclusividade na titularidade da capacidade postulatória. Esta
representação pela qual a parte fala em juízo por seu advogado leva a que se entenda que a
responsabilidade por danos que a parte adversa venha a ter em virtude do processo seja
encargo da parte e não do advogado.
O advogado responde pela veracidade dos fatos alegados pelo autor, naqueles casos
em que se puder razoavelmente a ele imputar negligência no dever de apurar as circunstâncias
em torno da causa antes de patrociná-la. Se o advogado ajuíza ação sem ao menos se dar ao
trabalho de verificar a veracidade da informação está em co-autoria com a parte no ilícito
moral perpetrado e deve responder no limite de sua responsabilidade.
Não se admite é que o advogado sirva de meio para circunstâncias em que as partes se
servem do processo com abuso. Exige-se do advogado que seja o primeiro fiscal do processo,
sobretudo nas questões éticas. Esse trabalho começa na primeira entrevista, quando o
advogado deve exortar o consulente a cumprir seus deveres para com os outros e abster-se de
lesar direito alheio sem justo motivo.
13
RIPERT, Georges. A Regra Moral nas Obrigações Civis. São Paulo: Saraiva, 1937, passim.
20
ADVOGADO
§ 7.
(...)
Item: por quanto a experiência tem mostrado que as sobreditas interpretações
dos Advogados consiste ordinariamente em raciocínios frívolos, e ordenados
mais a implicar com sophismas as verdadeiras disposições das Leis, do que a
demonstrar por elas a justiça das partes: Mando que todos os Advogados que
commetterem os referidos attentados, e forem nelles convencidos do dôlo,
sejão nos autos a que se juntarem os Assentos, multados pela primeira vez em
50$000 réis para as despezas da Relação, e em seis mezes de suspensão; pela
segunda vez em privação dos grãos, que tiverem da Universidade; e pela
terceira em cinco anos de degredo para Angola, se fizerem assignar
clandestinamente as suas Allegações por differentes pessoas; incorrendo na
mesma pena os assignantes, que seus nomes emprestarem para a violação de
Minhas Leis, e perturbação do socego publico dos Meus Vassalos.
Commentario.
29. Este § augmentou as penas, que a Ord. liv. 1 tit. 48 § 7 impunha aos
Advogados que aconsselhassem contra as Ord. e Direito expresso. Para
intelligencia dele cumpre notar que os raciocínios podem ser frívolos, isto he,
vãos, e destituídos de fundamento:
1°. sendo feitos sobre juízos, que repousando sobre o testemunho da nossa
consciência , ou dos sentidos, não admittem outra alguma demonstração.
2°. sendo feitos sem princípios, que sejão claros, e certos que o juízo ou
conclusão, que tento demonstrar. Pois hum raciocínio he como hum processo,
que eu faça hum juízo qualquer, para demonstrar que he verdadeiro, falso,
provavel, duvidoso.
E este processo não se pode fazer, sem provas, bem como sem elas he baldado
o litigar.
14
APÊNDICE ÀS ORDENAÇÕES FILIPINAS. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, vol. II, p. 451-3.
21
37. Huma só regra, diz o P. Feijó no seu Theatro Critico tom. 8 Disc. 2, he
bastante para a solução de todas as especies de sophismas. Vem a ser observar,
se entre as vozes, de que se usa no argumento, ha alguma, cuja significação
seja ambigua em ordem ao inteiro da disputa. Observada a ambiguidade da
palavra, deve obrigar-se o arguente a determina-lhe a significação; porque feito
isto a falacia fica patente. (...).
Dólo
“Aquelles mesmos que tem igual talento, não vêem muitas vezes os objectos
pelo mesmo lado, de forma que ás vezes de motivos oppostos: hum move-se
com alquilo, que outro vê com indifferença; aquele occupa-se com o todo,
est’outro limita-se aos detalhes, aquell’outro cuida vêr relações novas, est
unusquisque in suo sensu abundat.
“A não haverem pois graves indicios do dólo, melhor será desattender, do que
condemnar o Advogado.
39. Finalmente exige a nossa Lei, que antes de ser condenado o Advogado, se
ajunte aos Autos o Assento tomado sobre a interpretação da Lei acerca da qual
ele forjou com dólo os raciocinios frivolos, ou sophismas.
A lei antiga está a mostrar a sua sabedoria sem fim. Uma lei que hoje não se vê, com
tal preocupação em catalogar – de forma inteligente – os comportamentos levianos mais
usuais na prática da advocacia. Pode se ver com clareza e sem medo que é possível
minimamente, por disposições abrangentes e em boa linguagem, ter uma certa previsão e
delimitação do ilícito no comportamento do procurador em juízo.
Para os dias de hoje, a lei filipina é até muito sofisticada, vazada em termos
aristotélicos como está. Mas há muito de aproveitável, faz parecer que a prática judiciária não
mudou tanto de lá para cá, permanecendo viva a necessidade de regulação.
mão de argumento fundado em juízo contrário ao senso comum; argumenta sem princípios,
ou quando parte para interpretar a lei sem aplicar as regras de interpretação, ou o faz sendo a
lei clara o bastante para não precisar interpretação, ou quando alega sem ter como provar. A
lei faz o rol dos sofismas mais freqüentes: 1) o primeiro sofisma consistente em atribuir o
caráter de necessário àquilo que é acidental; 2) o segundo sofisma se dá quando de um
princípio verdadeiro só em parte, se argumenta como se ele fosse verdadeiro em toda a sua
extensão; 3) o terceiro sofisma existe quando se toma como causa de uma coisa aquilo que
realmente não é causa dela; 4) o quarto sofisma aparece quando o argumento prova uma coisa
diversa daquela que se pretende provar; 5) e o quinto sofisma se faz ao argumentar com
aquilo mesmo que se pretende provar ou quando a conclusão serve de prova ao princípio de
onde ela é deduzida.
Evidentemente que essas são meras indicações que podem servir de guia para o juiz na
sua vida diária, depois de absorver e entender bem o que significa cada sofisma e como
podem ser utilmente aplicados na prática, consideradas as circunstâncias culturais locais. Mas
serve ao intento de mostrar a possibilidade de se refrear melhor a má atuação do advogado no
processo, que no direito costumeiro germânico sempre constituiu uma tônica, ante a
desconfiança em relação aos advogados15, influência que teria contaminado D. Afonso IV, ao
proibir advogados na sua Corte.
Obviamente que não se está aqui a vilipendiar esta que é uma das funções básicas na
administração da Justiça, sem a qual nem mesmo se pode falar em Justiça, mas o exemplo
histórico serve para enfatizar o problema, mostrando a que ponto pode chegar a
incompreensão para com a advocacia, induzida, normalmente, pelos abusos de alguns, que
acabam refletindo na imagem de todos.
Note-se, por fim, que este pensamento, sabidamente exagerado, trás em si uma
preocupação que é a mesma que aqui se quer discutir, aquela relativa aos limites da atuação
lícita do advogado, que pode, facilmente, agir com fins escusos, que não a defesa da lei e da
justiça, mas por subterfúgios através dos quais procura vantagem indevida para seu cliente16.
Em relação à advocacia, o melhor que poderia acontecer é que todos fossem treinados
para evitar os conflitos e procurar solucioná-los sem ir ao Judiciário, através de uma maior e
preponderante atuação preventiva dos advogados nos negócios jurídicos privados que, uma
vez formulados com a assistência técnica eficiente, ganhariam em certeza, diminuindo a carga
de conflituosidade.
O que se prega, portanto, é apenas uma maior ênfase para o trabalho preventivo,
preparatório dos negócios jurídicos, para evitar negócios desequilibrados, em que
15
PINTO, Eduardo Vera-Cruz. As Origens do Direito Português. Lisboa: Associação Acadêmica da Faculdade
de Direito de Lisboa, 1996, p. 326-8.
16
Aos melindrosos de plantão, desde já é bom que fique marcado, que este trabalho não é um libelo contra a
advocacia, nem muito menos contra o direito de defesa, ambos caros pilares da democracia, erigidos à custa de
muitas vidas ao longo da história. O esforço é para entenderem que é a sua tônica um enfoque crítico no aspecto
da moralidade no processo, pelo qual se busca realçar, exatamente, o lado feio da humanidade.
24
necessariamente a consulta ao Judiciário será buscada. Sai mais barato para o cliente uma
minuta de contrato, evitando ou diminuindo as chances de litígio, do que uma boa demanda,
depois que o prejuízo já se concretizou. E para o advogado o trabalho de assistir a um negócio
jurídico também pode ser mais vantajoso, pois não depende de terceiros ( a máquina
judiciária) para exercer sua função, obtendo resultado mais rápido e potencialmente um maior
número de clientes, na medida que a assessoria extrajudicial tende a ser bem mais barata do
que a assessoria judicial.
Com isso, evidentemente que não se estaria eliminando os conflitos, cuja propensão
faz parte da natureza humana, mas poderia haver uma boa diminuição, se os advogados
exortassem seus clientes firmemente a não demandarem sem razão, a cumprirem com suas
obrigações contraídas, não se prestando a aventuras e, sobretudo não se utilizando do processo
para dilatar o tempo e assim pressionar o adversário para um negócio. Mas se uma tendência
assim de se universalizar a advocacia para um atendimento extrajudicial mais eficaz, evitando
maus negócios o quanto possível, fosse levada a efeito, certamente os escritórios teriam mais
clientes e esses teriam um serviço preventivo, que é mais barato e dá mais segurança.
3. Conclusão
Esperamos ter conseguido mostrar que aproximar a moral do direito serve a uma maior
racionalização da conduta das partes no processo, contribuindo para a diminuição da
litigiosidade e para que se instaure um ambiente de maior segurança e certeza jurídica, através
do exemplo, pelo qual se dá a conscientização de todos quanto aos seus próprios deveres
éticos para com os demais. Nesse sentido, é na previsibilidade do comportamento das partes
envolvidas no processo e na constante fiscalização desse comportamento e punição das
transgressões que estará a certeza e segurança jurídica, mais até do que na própria letra da lei,
que pode ser burlada, exatamente no momento de sua discussão em juízo, por meio do
processo.
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