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portugal à coronhada

Diego Palacios Cerezales

Portugal
à Coronhada

Protesto Popular e Ordem Pública


nos Séculos xix e xx

Tradução de
Ricardo Noronha

lisboa:
tinta­‑da­‑ china
MMXI
Este livro é publicado no âmbito do Projecto «A Formação do Poder de Estado em Portugal:
Processos de Institucionalização de 1890 a 1986» (PTDC/HIS-HIS/104166/2008), que Índice
decorre no IHC-UNL e é apoiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia.

introdução  11

.I.
o portugal liberal
(1834­‑1890)

A reconstrução do Estado  21
Protestos populares e
repressão no «país mais liberal»  45
Um Portugal impossível de administrar  77
«… Se vossa senhoria inventar outro meio
para dispersar multidões»  119

© 2011, Diego Palacios Cerezales


e Edições tinta­‑da­‑china, Lda.
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Tels: 21 726 90 28/9 | Fax: 21 726 90 30
E­‑mail: tintadachina@netcabo.pt a crise do liberalismo
www.tintadachina.pt e a república (1890-1926)
Título: Portugal à Coronhada —
Protesto Popular e Ordem Pública nos Séculos xix e xx O ultimatum de 1890 e o
Autor: Diego Palacios Cerezales reforço do Estado  165
Tradução: Ricardo Noronha As repúblicas: vigilância popular
Revisão: Tinta­‑da­‑china
Capa: Vera Tavares e nacionalismo autoritário  211
Composição: Tinta-da-china

1.ª edição: Junho de 2011

isbn 978-989-671-086-6
Depósito Legal n.º 328924/11
.III.
ditadura e democracia
(1926­‑2000)

«Ser forte para não ser brutal»  261


Relíquia de entre guerras? A internacionalização
dos custos repressivos  283
Revolução e democracia:
«… Não é preciso bater no povo»  333

anexos

Notas  373
Principais fontes consultadas  417
Bibliografia  419
Abreviaturas  453 Carga da PSP sobre operárias em Alcântara, Lisboa, 1943.

nota biográfica  455


introdução
Um país manso… ou os custos da repressão

L isboa, Câmara dos Deputados, Junho de 1854. Rodrigo Meneses


enumerava os «excessos» que havia presenciado nas festas de San‑
to António. Tratava­‑se do padroeiro de Lisboa e, durante três noites,
as ruas enchiam­‑se de gente, bailes, comida e cortejos. «As disposições
relativas à pirotecnia não são respeitadas», dizia, «e o povo diverte­‑se a
assustar com petardos os cavalos dos fidalgos e a travar o passo às car‑
ruagens das senhoras.» Quando ia prosseguir a sua intervenção sobre a
necessidade de introduzir reformas na polícia para civilizar os costumes
populares, uma voz interrompeu­‑o:
11

«— Mas não há desordens!

introdução
— Ah! Não há desordens! — concedia Meneses. — Não há porque
este país é manso, é quietíssimo, ninguém quer fazer mal algum; e
tanto que há um exército muito pequeno, em todo o país há sossego.»1

Durante a segunda metade do século xix, era habitual invocar a supos‑


ta «índole pacífica do povo português» para explicar a tranquilidade do
país. A vida política alcançou paz, sem guerras civis, insurreições, revo‑
luções ou pronunciamentos. Essa tranquilidade contrastava com a tur‑
bulenta vida política do vizinho espanhol e, também, com a do próprio
Portugal das décadas anteriores.
As cortes portuguesas aboliram, em 1852, a pena de morte para os
delitos políticos e, em 1867, para os penais, numa decisão pioneira de
que se orgulhavam os liberais lusos. Na Espanha de Isabel II, pelo con‑
trário, os militares intervinham frequentemente na política, a amea­‑
ça armada do carlismo mantinha­‑se latente, os caminhos, apesar do
desenvolvimento da Guarda Civil, estavam infestados de bandoleiros
e, quando havia protestos populares, as capitanias gerais assumiam as em praças a exigir trabalho e, sobretudo no último quartel do sécu‑
tarefas de ordem pública, suspendiam as garantias constitucionais e re‑ lo, entraram em greve. Estas novas formas de acção adaptavam­‑se às
corriam ao fuzilamento, frequentemente à revelia dos direitos e liber‑ transformações do espaço político e económico, que acompanharam o
dades garantidos pelas constituições. Nada de semelhante ocorria em desenvolvimento demográfico e económico ao longo do século, com a
Portugal, o que indicava, para muitos comentaristas, a natureza distin‑ urbanização e a proletarização, mas que também correspondiam à im‑
ta dos dois povos. Como gostavam de afirmar os liberais lusos, Portugal portação de experiências dos movimentos sociais de outros países5.
era um «enclave europeu na África que começa nos Pirenéus»2. Independentemente das causas de cada mobilização, os episódios
A imagem de um povo português pacífico e respeitador da lei e da de conflitualidade alteravam aquilo a que as autoridades chamavam
autoridade não era partilhada por outros observadores da época. Para «ordem pública», ou seja, essa «situação e estado de legalidade normal
Oliveira Martins, um dos intelectuais mais influentes da geração de em que as autoridades exercem as suas funções e os cidadãos respei‑
1870, os portugueses tinham um temperamento «violento e ardente», tam e obedecem sem protestos». Para que os cidadãos cumprissem
como demonstrava a instabilidade política das décadas de 1830 e 1840; as obrigações que lhes eram impostas, os governantes utilizavam os
para o historiador Alexandre Herculano, albergavam a «impaciência e meios coercivos do Estado e, como Portugal era o único país da Eu‑
impetuosidade própria das raças latinas» enquanto, para o rei D. Pedro V, ropa continental que, durante a segunda metade do século xix, não
«o primeiro instinto» dos portugueses era «resistir à autoridade»3. contava com um corpo de gendarmeria, isso significava mobilizar o
Para lá dos debates sobre o carácter nacional, oscilando entre a doci‑ exército. A  afirmação da autoridade estatal apresentava geralmente
lidade e a revolta, a segunda metade do século xix português está rechea­‑ problemas logísticos. Quando os protestos tinham lugar longe dos
da de episódios de protesto popular semelhantes aos de outros países. quartéis, as tropas costumavam chegar demasiado tarde para os con‑
12 13
Também se registaram diversos casos de violência social que provoca‑ ter, já que as comunicações eram más e, apesar dos esforços governa‑
ram o escândalo no Parlamento, como o saque dos barcos que encalha‑ mentais, a ferrovia e o telégrafo se desenvolviam lentamente. Era fre‑
portugal à coronhada

introdução
vam nos areais de Aveiro e o assalto aos náufragos por parte das comuni‑ quente, como aconteceu em muitos lugares em 1862, 1867, ou até 1908,
dades de pescadores4. Numa perspectiva mais abrangente, constata­‑se que os registos de propriedade ou do recrutamento militar já tivessem
que boa parte da conflituosidade social portuguesa foi uma resposta à sido incendiados aquando da chegada dos soldados, paralisando a vida
carestia ou escassez de trigo e de outros víveres, mas, acima de tudo, administrativa, ao mesmo tempo que uma lei do silêncio protegia pos‑
que houve tensões, mobilizações e protestos de resistência ao Estado, teriormente os responsáveis. «Os raios do poder central [chegavam]
às suas imposições normativas e inovações na cobrança fiscal. Para pro‑ frouxos e descorados às extremidades», queixava­‑se um governador
testar, os portugueses do século xix costumavam recorrer a formas de civil em 18586.
acção locais e comunitárias provenientes do Antigo Regime: as pesso‑ Outros problemas surgiam quando os destacamentos militares che‑
as reuniam­‑se ao toque dos sinos, interpelavam as elites das localida‑ gavam finalmente ao local do motim. Era então comum que a multidão
des para que exercessem uma função mediadora junto das autoridades os recebesse com vivas ao exército e gritos de «os soldados não dispa‑
nacionais, atacavam os funcionários do poder central e saqueavam os rarão contra o povo». De qualquer forma, se as pessoas continuassem
edifícios e arquivos públicos. A par da permanência desse repertório tra‑ aglomeradas em bandos vociferantes, a ilusão de que «os filhos do povo
dicional de protesto, os portugueses adoptaram, ao longo do século xix, não feririam as suas mães e irmãos» desvanecia­‑se e, obedecendo às or‑
novas formas de mobilização, características da política moderna: dens, os agentes da autoridade disparavam contra a multidão, provocan‑
apresentaram petições, recolheram assinaturas, organizaram comícios, do mortos e feridos, ainda que por vezes a única justificação fosse a de
percorreram as cidades em cortejos multitudinários, concentraram­‑se que «era necessário manter o prestígio da autoridade».
a reconstrução do estado

C omo construir uma ordem legítima? Como reconstruir a


autoridade do Estado? Em 1834, depois de vencerem a guerra
civil, os liberais foram confrontados com estas perguntas. Haviam
derrotado o partido absolutista de D. Miguel e, durante a contenda,
colocaram um ponto final no Antigo Regime. Uma vez no poder, era
necessário fazer funcionar uma Monarquia Constitucional e todo
um novo organigrama administrativo que entrava em conflito com
os usos e as tradições de parte da população. A reconstrução do Es‑
tado colidia também com a patrimonialização do poder local pelas
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elites da província, favorecidas por três décadas de crises e guerras.
Para além disso, do ponto de vista social, o liberalismo tinha os seus

a reconstrução do estado
alicerces sociais nas classes urbanas e em parte da fidalguia da pro‑
víncia, ao passo que a maior parte da população — rural e apegada à
autoridade da Igreja — não tinha preferências políticas e, se expres‑
sava alguma, optava pelo pretendente absolutista1.
Os liberais dividiram­‑se desde cedo em várias facções, que, apesar
de sempre terem sido grupos complexos e fluidos, se organizaram
nominalmente a partir de 1836, em torno de questões constitucio‑
nais: os «cartistas» defendiam a Carta de 1826 — que contemplava
o sufrágio indirecto e outorgava um importante poder moderador
à Coroa —, enquanto os «setembristas» preferiam uma constitui‑
ção resultante da soberania nacional. As duas primeiras décadas de
Monarquia Constitucional conheceram uma vida agitada de pro‑
nunciamentos, levantamentos armados, mudanças de constituição,
insurreições e guerras civis, um panorama que não deve impedir um
retrato estruturado dos conflitos, das decisões governativas e do de‑
senvolvimento institucional.
Os liberais construíram uma nova ordem política e administra‑ de do Estado, ao mesmo tempo que as diversas organizações armadas
tiva. Ainda que alguns historiadores tenham dado pouca relevância — sectores do exército, batalhões de voluntários, guerrilhas — se imis‑
à ruptura histórica que isso implicou, para Alexandre Herculano — cuíam nas disputas entre facções políticas. A sua autonomia reduzia a
simultaneamente historiador e protagonista — «durante o estrondo governabilidade e apenas cooperavam com os juízes e os delegados do
das armas de 1833­‑34, foi levada a cabo uma grande, séria e profun‑ Governo em função dos seus cálculos de vantagem política. Em muitas
da revolução». No  grupo dos derrotados desta guerra sem quartel regiões serranas do Algarve, das Beiras e de Trás­‑os­‑Montes, os juízes e
encontrava­‑se a maior parte da alta aristocracia e boa parte do clero. os funcionários da administração liberal encontravam­‑se isolados num
Comparando o que sucedia em Portugal com o resto da Europa, no ambiente miguelista e hostil. A pulverização do poder era tal que, para‑
reino luso consumou­‑se uma das rupturas mais nítidas com o An‑ lelamente aos projectos de organização formal do poder, os governantes
tigo Regime. Com a guerra, a violência política que acompanhou a liberais cooptaram os cabecilhas de grupos violentos — guerrilheiros,
vitória, o exílio e a extinção das grandes casas aristocráticas e as po‑ bandoleiros, chefes dos clãs familiares — e investiram­‑nos de autorida‑
líticas dos vencedores — sobretudo as que diziam respeito ao poder de pública. Salteadores e contrabandistas, como o bando de Quingostas
da Igreja — o Portugal liberal operou uma radical viragem de página em Viana do Castelo, receberam garantias administrativas de impuni‑
institucional2. dade relativamente aos seus crimes anteriores, caso se transformassem
Os liberais tiveram de proceder à reconstrução do reino sobre em «colunas ambulantes de polícia» dedicadas a perseguir desertores ou
novas bases: edificar um sistema de governo, pôr em marcha as ad‑ a vigiar as fronteiras contra as guerrilhas carlistas e miguelistas, que co‑
ministrações locais e regionais, cobrar impostos, recrutar soldados e laboravam de forma estreita4.
estabelecer um sistema judicial. Para além disso, deviam conseguir A partir de 1834, as esperanças dos absolutistas portugueses
22 23
que a autoridade de cada uma das administrações fosse respeitada assentavam na sorte do carlismo espanhol. Após a sua derrota em
e as suas decisões acatadas. Finalmente, ao edificar um sistema de 1839, a actividade guerrilheira em Portugal entrou em decadência.
portugal à coronhada

a reconstrução do estado
governo, deviam procurar os mecanismos adequados para manter a Não obstante, a permanência das condições que a tornavam possível
ordem pública. Por um lado, mecanismos que se ajustassem aos prin‑ tornou­‑se evidente seis anos mais tarde, em 1846­‑47, durante a re‑
cípios constitucionais e doutrinários do liberalismo; por outro, que volta da Maria da Fonte e a guerra civil da Patuleia (que coincidiram
fossem eficazes e, acima de tudo, leais às autoridades constituídas. com a guerra dos matiners na Catalunha)5.
A tarefa não era fácil. Por um lado, porque, apesar de ter termi‑ Para além das guerrilhas, a população descontente recorria a tu‑
nado em 1834, a guerra civil era ainda travada em várias zonas do país multos e motins, muito frequentes nas zonas serranas durante estes
por bandos de guerrilheiros e outros grupos armados. Alguns destes anos. Nalguns casos, aclamava­‑se D. Miguel e tentava­‑se restaurar
grupos declaravam­‑se miguelistas; outros constituíam o «partido» li‑ as autoridades tradicionais; noutros, o que motivava os protestos
beral no território, sem que isso os impedisse de resistir ao controlo era o chamado cisma religioso, e, noutros, as leis da saúde que proi‑
do Governo central. Os combatentes vitoriosos mostravam­‑se zelo‑ biam os enterros nas igrejas. Também houve várias resistências co‑
sos em conservar a sua autonomia, manter a pressão sobre os digni‑ lectivas às pretensões fiscais do Estado liberal e motins originados
tários miguelistas desmobilizados e garantir o predomínio regional pela subida dos preços ou pela escassez de bens essenciais. Diversas
dos seus patrões3. mobilizações opunham­‑se simplesmente às ordens da autoridade
Depois da guerra civil, o Estado português apresentava um claro dé‑ pública, que via o «furor popular» impedir a execução de sentenças
fice de institucionalização. Não havia certezas acerca da solidariedade e obrigava a que a força acudisse em auxílio das decisões judiciais e
entre as pessoas e organizações que formavam os alicerces da autorida‑ administrativas6.
.II.
A Crise do Liberalismo
e a República
(1890-1926)
o ultimatum de 1890
e o reforço do estado

E m A Europa Transformada, Norman Stone caracteriza a déca‑


da de 1890 como a da «estranha morte do liberalismo». Os sin‑
dicatos de massas, o catolicismo político, as ligas, o militarismo e o
novo imperialismo marcavam a vida política da Europa, e tudo isso
enquanto o mundo atravessava uma forte transformação económica
e financeira. Do mesmo modo, a historiografia portuguesa costuma
situar o início da crise do liberalismo português na viragem protec‑
cionista que se seguiu ao Congresso Agrícola de 1888 e, sobretudo, na
reacção do sistema político ao ultimatum britânico de 18901.
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O ano de 1890 havia começado com novas demonstrações da
organização do movimento operário. Em Janeiro, teve lugar em Lis‑

o ultimatum de 1890 e o reforço do estado


boa uma manifestação pelo estabelecimento de bolsas de trabalho,
à semelhança do que acontecia em França, e quatro meses depois
celebrou­‑se pela primeira vez em Portugal o 1.º de Maio, em articu‑
lação com o movimento internacional pela jornada de oito horas.
Para não assustar o Governo, as associações operárias de Lisboa
colaboraram com a polícia: não formariam grandes cortejos na rua
e dirigir­‑se­‑iam antes, em pequenos grupos, ao cemitério, onde ho‑
menageariam o pioneiro José Fontana no seu túmulo e profeririam
alguns discursos. No  Porto, a celebração foi mais aguerrida, várias
fábricas encerraram e milhares de operários realizaram um comício
num descampado dos arredores2.
Apesar disso, desde 12 de Janeiro de 1890 que o ultimatum reti‑
rara ao movimento operário o protagonismo que este ambicionava.
Numa nota diplomática, a Grã­‑Bretanha havia ameaçado Portugal
com a guerra se as expedições portuguesas continuassem a competir
com as britânicas na África central. O Governo, nas mãos do Partido
Progressista, aceitou as imposições britânicas, mas estas foram re‑ assegurar a disciplina e a lealdade do exército, também ele afectado
cebidas pela opinião pública como uma humilhação e deram início a pela crise de patriotismo.
uma vaga de mobilizações nacionalistas no Portugal urbano, dirigi‑ Durante as jornadas de Janeiro de 1890, os regimentos aristocrá‑
das contra os britânicos e a «traição» do Governo. ticos estacionados nas imediações de Belém mantiveram um estado
Tratando­‑se de uma questão de honra nacional, as ruas de Lisboa de prevenção rigorosa, não fossem as multidões dirigir­‑se ao palácio.
encheram­‑se de gente, numa «ardente ebulição de protestos, injúrias Do ponto de vista do Governo, a crise tornava necessário acumular
e vociferações» contra os «governantes cobardes» que haviam ven‑ meios repressivos e, durante os dois anos seguintes, com a agitação
dido a sua honra e desconfiado do valor dos portugueses. Sem uma latente e os constantes protestos nas ruas, «foi necessário que não
liderança clara e com os republicanos tão aturdidos com os aconteci‑ faltasse um só dia a prata com que pagar à tropa, aos marinheiros e
mentos como os governantes monárquicos, os populares limitaram­ à polícia», diria Mariano de Carvalho, ministro da Fazenda em 1891,
‑se a percorrer Lisboa e a apedrejar as redacções da imprensa pró­ «pois de outra forma a ordem púbica correria um enorme risco»4.
‑governamental. No dia seguinte, centenas de soldados confraterni‑ Em Janeiro, o Governo regenerador aumentou em 150 homens a
zavam com os lisboetas e partiam, juntamente com eles, as janelas Polícia Civil de Lisboa e garantiu a lealdade dos oficiais do exército
dos ingleses que residiam na cidade. Todos os locais de sociabilidade e das tropas, com os decretos de 11 de Fevereiro de 1890, que expri‑
urbana — cafés, teatros, escolas, clubes, jornais, associações de es‑ miam o compromisso do Governo com uma política de defesa que
tudantes e de comércio — se tornaram fóruns espontâneos, onde as visava a autonomia militar do país: autorizava­‑se o Governo a refor‑
pessoas discutiam os acontecimentos e, ao menor incentivo, canta‑ çar a defesa do porto de Lisboa, a reorganizar o exército e a marinha,
vam em coro A Portuguesa, um novo hino patriótico de tonalidades bem como a criar um fundo permanente para a defesa nacional. Para
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belicistas. As reuniões camarárias de Lisboa, Porto e outras cidades além disso, estes decretos permitiam ao Governo conferir mais for‑
lideraram, em conjunto com os republicanos, a apresentação de pe‑ ça e prestígio às Guardas Municipais de Lisboa e do Porto — que,
portugal à coronhada

o ultimatum de 1890 e o reforço do estado


tições iradas ao Parlamento e ao Governo. Numa tentativa de dar recordemo­‑lo, eram forças com estatuto militar às ordens dos res‑
continuidade aos protestos e usá­‑los como uma plataforma de re‑ pectivos governos civis5.
generação moral do país, formou­‑se no Porto uma Liga Patriótica De todas as autorizações de 11 de Fevereiro, a única que foi posta
suprapartidária. Circulou também por todo o país uma subscrição em prática até meados de Maio foi a reorganização da Guarda Muni‑
de recolha de dinheiro para a compra de navios de guerra que desa‑ cipal, cujos efectivos de cavalaria em Lisboa e no Porto duplicaram,
fiassem a armada britânica3. à custa de uma pequena redução da infantaria. Dentro do repertório
A ocupação das ruas e praças, os gritos, os gestos simbólicos, repressivo disponível, a cavalaria municipal era a força que poderia
como a faixa negra na estátua de Camões, em Lisboa, eram emble‑ enfrentar, com mais eficácia, lealdade e menor grau de letalidade, as
mas de despeito perante a humilhação, ou quiçá uma expressão de mobilizações colectivas. O  exército, mais independente enquanto
orfandade representativa em que o Governo deixara os cidadãos, ao instituição, não oferecia tanta confiança como a Guarda Municipal,
atraiçoar o orgulho nacional. que se converteu «num corpo de autênticos Janízaros», segundo di‑
O Governo progressista demitiu­‑se. O rei D. Carlos, que havia riam posteriormente os republicanos que a iriam enfrentar nas ruas6.
subido ao trono em 1889, entregou o Governo ao Partido Regene‑ As mobilizações colheram de surpresa os republicanos, que não
rador. O novo gabinete devia não apenas enfrentar a negociação de organizaram nem dirigiram as multidões durante as jornadas de 13 de
um tratado com a Grã­‑Bretanha que estabelecesse um statu quo em Janeiro e de 11 de Fevereiro desse ano. Agora sim, analisaram a situa‑
África, como também uma grave crise financeira e, para além disso, ção e organizaram logo um comité para conduzir os movimentos das
.iii.
Ditadura e Democracia
(1926­‑2000)
«ser forte para não ser brutal»

U ma imagem puramente negativa da vida política e social da


República, entendida como «desordem», serviu para justificar o
golpe militar de 28 de Maio de 1926: «A indisciplina, a debilidade dos
governos, os compadrios e as cumplicidades equívocas», escreveu
mais tarde Salazar, «engendraram a anarquia nas fábricas, nos servi‑
ços, na rua. […] Um regime de insegurança, de revolta, de greves, de
atentados, estabeleceu­‑se no país.» A desordem fora um tema recor‑
rente na boca de toda a classe política, e a consequente necessidade
de restaurar a ordem foi um dos principais leitmotifs da ditadura mi‑
261
litar iniciada em 1926: era essa «a grande batalha» e, para a vencer, era
necessário «patriotismo e apoio da força física» 1.

«ser forte para não ser brutal»


A «Revolução Nacional», como a direita radical gostava de apelidar o
golpe de 28 de Maio, retomava o fio das numerosas conspirações dos anos
anteriores. Neste caso, porém, tratava­‑se de um movimento puramente
militar e alheado das querelas entre os partidos. Depois de 1919, o corpo
de oficiais havia adquirido uma nova coesão e definido uma ideologia de
missão nacional redentora. Havia na conjura militares vinculados à direita
radical, monárquicos e republicanos conservadores, tendo o golpe con‑
tado inclusivamente com o beneplácito de outubristas, que confluíam
no desejo de afastar do Governo o pegajoso Partido Democrático de
António Maria da Silva. Mas foi essa componente militarista a triunfar,
com um discurso suprapartidário de «regeneração nacional» no qual se
reconheciam tanto os generais republicanos — que então controlavam
a hierarquia do exército — como os jovens tenentes da direita radical,
que comandavam os regimentos com maior capacidade de combate.
Esses tenentes radicais mantiveram um protagonismo peculiar durante
a ditadura militar e muitos deles serviriam, posteriormente, de apoio
militar a Salazar no seu braço­‑de­‑ferro com os generais que tinham um monárquica — também diligenciavam para encontrar um espaço no
posicionamento um pouco mais liberal, entre os quais se pode incluir novo regime4.
Carmona, presidente da República entre 1926 e 19512. Para explicar o resultado da luta entre os distintos projectos, é
A ditadura militar portuguesa somava­‑se à alternativa autoritária preciso ter em conta as quatro grandes insurreições do «reviralho»,
que estava a ser experimentada na Europa, com os exemplos da Itá‑ que, como diria o general Carmona, «serviram para ver onde esta‑
lia de Mussolini e da Espanha de Primo de Rivera na boca de todos. vam os inimigos». As revoltas de Fevereiro de 1927, Julho de 1928
A ditadura governou com as garantias suspensas, proibindo as greves, e Abril e Agosto de 1931 só foram dominadas após combates com
censurando a imprensa e encarcerando e deportando os opositores. centenas de mortos, seguidos de uma vintena de execuções sumá‑
Houve algumas tentativas de cooptar o movimento operário, imitan‑ rias e mais de um milhar de deportações para as colónias. O núcleo
do o que o general Miguel Primo de Rivera estava a fazer em Espanha, principal do reviralho era constituído pelo radicalismo republicano
mas os contactos iniciais evidenciaram imediatamente a inviabilida‑ «outubrista», que matinha inicialmente oficiais e sargentos nas for‑
de do projecto. A  repressão das organizações sindicais arruinou um ças armadas e na GNR, pretendendo uma refundação radical da Re‑
movimento que já estava muito debilitado, e a CGT, ainda que tenha pública e não uma restauração do regime derrubado em 1926. Isso
feito vários apelos à greve geral após 1926, nunca alcançou mobiliza‑ não impediu que as insurreições contra a ditadura mobilizassem
ções semelhantes às do seu período de esplendor, em 1919­‑1922. Poste‑ também sectores «democráticos» e, a partir de 1930, opositores ao
riormente, o prestígio internacional da URSS e a adequação da cultura regime de diferentes filiações. Tal como acontecera em 1911­‑1912,
organizativa comunista à clandestinidade fizeram com que o Partido quando as incursões monárquicas favoreceram o republicanismo
Comunista Português (PCP) substituísse, durante a década de 1930, intransigente, entre 1927 e 1928 o combate ao reviralho direccionou
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o anarco­‑sindicalismo como principal referência da militância prole‑ o rumo dos acontecimentos a favor dos sectores intransigentes da
tária. Em 1934, quando o Governo impôs o decreto de corporativiza‑ ditadura militar5.
portugal à coronhada

«ser forte para não ser brutal»


ção dos sindicatos, a CGT e o PCP promoveram uma greve geral revo‑
lucionária, mas a insurreição teve pouca amplitude territorial e os seus
focos foram facilmente isolados e derrotados pela GNR e pelo exér‑ Uma ditadura em busca de alicerces
cito. As organizações patronais, por seu lado, receberam com agrado
a solução autoritária, pois há anos que reclamavam uma política enér‑ A ditadura não tinha um plano claro para a reorganização das for‑
gica contra o sindicalismo. A ditadura permitiu impor a redução dos ças de segurança. Antes da primazia de Salazar, as reformas da ad‑
salários reais, contra a qual a CGT tivera êxito anteriormente, bem ministração «caracterizavam­‑se por uma grande carência de princí‑
como um agravamento das condições de trabalho3. pios doutrinários». Nalguns casos, houve plena continuidade com
Para além da «restauração da ordem», entre 1926 e 1930 faltou à os últimos anos da República e, por exemplo, o coronel Ferreira do
ditadura um rumo institucional claro. Boa parte dos militares pre‑ Amaral — no comando da polícia de Lisboa desde 1923 e responsável
tendia restabelecer as liberdades, uma vez construído um aparelho pela desarticulação da Legião Vermelha — manteve o posto até se
de Estado forte e eliminado o domínio dos «democráticos» sobre a aposentar, em 1930. Em 1927, a iniciativa das reformas policiais nem
máquina administrativa. As  direitas radicais e fascistas, pelo con‑ sequer pertencia ao Ministério do Interior, e os militares da direita
trário, queriam construir uma ordem política nova, não liberal, radical sem responsabilidades políticas, como o oficial da marinha
e apostavam no corporativismo. Entretanto, os políticos civis das Mendes Norton, pareciam mandar mais nas forças policiais do que
diferentes famílias conservadoras — direita republicana, católica e Costa Macedo, o «soldado desconhecido» titular do Ministério6.
IGAI Inspecção­‑Geral da Administração Interna
MNEJ Ministério dos Negócios Eclesiásticos e da Justiça
MAI Ministério da Administração Interna
MI Ministério do Interior nota biográfica
MR Ministério do Reino
OE Ordem do Exército
PCP Partido Comunista Português
PIDE Polícia Internacional e de Defesa do Estado
PPD Partido Popular Democrático
PS Partido Socialista Diego Palacios Cerezales é doutor em ciência política
PSP Polícia de Segurança Pública pela Universidade Complutense de Madrid, onde actual‑
PVDE Polícia de Vigilância e Defesa do Estado mente lecciona e investiga. É também mestre em ciências
REAP Relatório sobre o Estado da Administração Pública sociais pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade
SDCI Serviço de Detecção e Coordenação de Informações de Lisboa, investigador associado do Instituto de História
Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa e secretá‑
rio de redacção da revista Historia y Política. Trabalha sobre
os movimentos sociais, a polícia e o Estado em Espanha e
em Portugal durante os séculos xix e xx. Tem diversos arti‑
454 455
gos publicados, para além do livro O Poder Caiu na Rua. Crise
de Estado e Acções Colectivas na Revolução Portuguesa, 1974-1975
portugal à coronhada

nota biográfica
(Lisboa, ICS, 2003).
foi composto em caracteres
Hoefler Text e impresso na
Guide, Artes Gráficas, em
papel Oria de 80 gramas, numa
tiragem de 1000 exemplares,
no mês de Maio de 2011.

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