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Portugal
à Coronhada
Tradução de
Ricardo Noronha
lisboa:
tinta‑da‑ china
MMXI
Este livro é publicado no âmbito do Projecto «A Formação do Poder de Estado em Portugal:
Processos de Institucionalização de 1890 a 1986» (PTDC/HIS-HIS/104166/2008), que Índice
decorre no IHC-UNL e é apoiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia.
introdução 11
.I.
o portugal liberal
(1834‑1890)
A reconstrução do Estado 21
Protestos populares e
repressão no «país mais liberal» 45
Um Portugal impossível de administrar 77
«… Se vossa senhoria inventar outro meio
para dispersar multidões» 119
isbn 978-989-671-086-6
Depósito Legal n.º 328924/11
.III.
ditadura e democracia
(1926‑2000)
anexos
Notas 373
Principais fontes consultadas 417
Bibliografia 419
Abreviaturas 453 Carga da PSP sobre operárias em Alcântara, Lisboa, 1943.
introdução
— Ah! Não há desordens! — concedia Meneses. — Não há porque
este país é manso, é quietíssimo, ninguém quer fazer mal algum; e
tanto que há um exército muito pequeno, em todo o país há sossego.»1
introdução
vam nos areais de Aveiro e o assalto aos náufragos por parte das comuni‑ quente, como aconteceu em muitos lugares em 1862, 1867, ou até 1908,
dades de pescadores4. Numa perspectiva mais abrangente, constata‑se que os registos de propriedade ou do recrutamento militar já tivessem
que boa parte da conflituosidade social portuguesa foi uma resposta à sido incendiados aquando da chegada dos soldados, paralisando a vida
carestia ou escassez de trigo e de outros víveres, mas, acima de tudo, administrativa, ao mesmo tempo que uma lei do silêncio protegia pos‑
que houve tensões, mobilizações e protestos de resistência ao Estado, teriormente os responsáveis. «Os raios do poder central [chegavam]
às suas imposições normativas e inovações na cobrança fiscal. Para pro‑ frouxos e descorados às extremidades», queixava‑se um governador
testar, os portugueses do século xix costumavam recorrer a formas de civil em 18586.
acção locais e comunitárias provenientes do Antigo Regime: as pesso‑ Outros problemas surgiam quando os destacamentos militares che‑
as reuniam‑se ao toque dos sinos, interpelavam as elites das localida‑ gavam finalmente ao local do motim. Era então comum que a multidão
des para que exercessem uma função mediadora junto das autoridades os recebesse com vivas ao exército e gritos de «os soldados não dispa‑
nacionais, atacavam os funcionários do poder central e saqueavam os rarão contra o povo». De qualquer forma, se as pessoas continuassem
edifícios e arquivos públicos. A par da permanência desse repertório tra‑ aglomeradas em bandos vociferantes, a ilusão de que «os filhos do povo
dicional de protesto, os portugueses adoptaram, ao longo do século xix, não feririam as suas mães e irmãos» desvanecia‑se e, obedecendo às or‑
novas formas de mobilização, características da política moderna: dens, os agentes da autoridade disparavam contra a multidão, provocan‑
apresentaram petições, recolheram assinaturas, organizaram comícios, do mortos e feridos, ainda que por vezes a única justificação fosse a de
percorreram as cidades em cortejos multitudinários, concentraram‑se que «era necessário manter o prestígio da autoridade».
a reconstrução do estado
a reconstrução do estado
alicerces sociais nas classes urbanas e em parte da fidalguia da pro‑
víncia, ao passo que a maior parte da população — rural e apegada à
autoridade da Igreja — não tinha preferências políticas e, se expres‑
sava alguma, optava pelo pretendente absolutista1.
Os liberais dividiram‑se desde cedo em várias facções, que, apesar
de sempre terem sido grupos complexos e fluidos, se organizaram
nominalmente a partir de 1836, em torno de questões constitucio‑
nais: os «cartistas» defendiam a Carta de 1826 — que contemplava
o sufrágio indirecto e outorgava um importante poder moderador
à Coroa —, enquanto os «setembristas» preferiam uma constitui‑
ção resultante da soberania nacional. As duas primeiras décadas de
Monarquia Constitucional conheceram uma vida agitada de pro‑
nunciamentos, levantamentos armados, mudanças de constituição,
insurreições e guerras civis, um panorama que não deve impedir um
retrato estruturado dos conflitos, das decisões governativas e do de‑
senvolvimento institucional.
Os liberais construíram uma nova ordem política e administra‑ de do Estado, ao mesmo tempo que as diversas organizações armadas
tiva. Ainda que alguns historiadores tenham dado pouca relevância — sectores do exército, batalhões de voluntários, guerrilhas — se imis‑
à ruptura histórica que isso implicou, para Alexandre Herculano — cuíam nas disputas entre facções políticas. A sua autonomia reduzia a
simultaneamente historiador e protagonista — «durante o estrondo governabilidade e apenas cooperavam com os juízes e os delegados do
das armas de 1833‑34, foi levada a cabo uma grande, séria e profun‑ Governo em função dos seus cálculos de vantagem política. Em muitas
da revolução». No grupo dos derrotados desta guerra sem quartel regiões serranas do Algarve, das Beiras e de Trás‑os‑Montes, os juízes e
encontrava‑se a maior parte da alta aristocracia e boa parte do clero. os funcionários da administração liberal encontravam‑se isolados num
Comparando o que sucedia em Portugal com o resto da Europa, no ambiente miguelista e hostil. A pulverização do poder era tal que, para‑
reino luso consumou‑se uma das rupturas mais nítidas com o An‑ lelamente aos projectos de organização formal do poder, os governantes
tigo Regime. Com a guerra, a violência política que acompanhou a liberais cooptaram os cabecilhas de grupos violentos — guerrilheiros,
vitória, o exílio e a extinção das grandes casas aristocráticas e as po‑ bandoleiros, chefes dos clãs familiares — e investiram‑nos de autorida‑
líticas dos vencedores — sobretudo as que diziam respeito ao poder de pública. Salteadores e contrabandistas, como o bando de Quingostas
da Igreja — o Portugal liberal operou uma radical viragem de página em Viana do Castelo, receberam garantias administrativas de impuni‑
institucional2. dade relativamente aos seus crimes anteriores, caso se transformassem
Os liberais tiveram de proceder à reconstrução do reino sobre em «colunas ambulantes de polícia» dedicadas a perseguir desertores ou
novas bases: edificar um sistema de governo, pôr em marcha as ad‑ a vigiar as fronteiras contra as guerrilhas carlistas e miguelistas, que co‑
ministrações locais e regionais, cobrar impostos, recrutar soldados e laboravam de forma estreita4.
estabelecer um sistema judicial. Para além disso, deviam conseguir A partir de 1834, as esperanças dos absolutistas portugueses
22 23
que a autoridade de cada uma das administrações fosse respeitada assentavam na sorte do carlismo espanhol. Após a sua derrota em
e as suas decisões acatadas. Finalmente, ao edificar um sistema de 1839, a actividade guerrilheira em Portugal entrou em decadência.
portugal à coronhada
a reconstrução do estado
governo, deviam procurar os mecanismos adequados para manter a Não obstante, a permanência das condições que a tornavam possível
ordem pública. Por um lado, mecanismos que se ajustassem aos prin‑ tornou‑se evidente seis anos mais tarde, em 1846‑47, durante a re‑
cípios constitucionais e doutrinários do liberalismo; por outro, que volta da Maria da Fonte e a guerra civil da Patuleia (que coincidiram
fossem eficazes e, acima de tudo, leais às autoridades constituídas. com a guerra dos matiners na Catalunha)5.
A tarefa não era fácil. Por um lado, porque, apesar de ter termi‑ Para além das guerrilhas, a população descontente recorria a tu‑
nado em 1834, a guerra civil era ainda travada em várias zonas do país multos e motins, muito frequentes nas zonas serranas durante estes
por bandos de guerrilheiros e outros grupos armados. Alguns destes anos. Nalguns casos, aclamava‑se D. Miguel e tentava‑se restaurar
grupos declaravam‑se miguelistas; outros constituíam o «partido» li‑ as autoridades tradicionais; noutros, o que motivava os protestos
beral no território, sem que isso os impedisse de resistir ao controlo era o chamado cisma religioso, e, noutros, as leis da saúde que proi‑
do Governo central. Os combatentes vitoriosos mostravam‑se zelo‑ biam os enterros nas igrejas. Também houve várias resistências co‑
sos em conservar a sua autonomia, manter a pressão sobre os digni‑ lectivas às pretensões fiscais do Estado liberal e motins originados
tários miguelistas desmobilizados e garantir o predomínio regional pela subida dos preços ou pela escassez de bens essenciais. Diversas
dos seus patrões3. mobilizações opunham‑se simplesmente às ordens da autoridade
Depois da guerra civil, o Estado português apresentava um claro dé‑ pública, que via o «furor popular» impedir a execução de sentenças
fice de institucionalização. Não havia certezas acerca da solidariedade e obrigava a que a força acudisse em auxílio das decisões judiciais e
entre as pessoas e organizações que formavam os alicerces da autorida‑ administrativas6.
.II.
A Crise do Liberalismo
e a República
(1890-1926)
o ultimatum de 1890
e o reforço do estado
nota biográfica
(Lisboa, ICS, 2003).
foi composto em caracteres
Hoefler Text e impresso na
Guide, Artes Gráficas, em
papel Oria de 80 gramas, numa
tiragem de 1000 exemplares,
no mês de Maio de 2011.