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Neuroperformance I (versão beta)1

André Luiz Rodrigues Bezerra2

The encounter between two disciplines doesn't take place when one begins to reflect on the other, but
when one discipline realizes that it has to resolve, for itself and by its own means, a problem similar to
one confronted by another.
(DELEUZE, 1986)

Me proponho aqui a investigar, mesmo que de maneira concisa, algumas aproximações


entre questões correspondentes a linguagem da Arte da Performance em diálogo com o campo
das neurociências. Meu intuito não é o de usar um para responder a questões, ou suspeitas do
outro, mas de dissertar sobre algumas perspectivas em que olhares construídos nos dois campos
podem colaborar para uma discussão interessante entre arte e ciência no espaço de cruzamento
entre os conhecimentos e modos de saber contemporâneos.
Dessa forma, procurarei compor o meu texto a partir de algumas questões fragmentadas,
porém recorrentes, que têm vez ou outra, emergido em textos e discussões com os quais tenho
me deparado em diferentes encontros em diferentes partes do Brasil dedicados ao campo da
Arte da Performance.
Como artista falarei de questões referentes a neurociência de maneira aproximada,
através de estudos conduzidos, sobretudo fora do país, no que diz respeito às artes visuais e
outras artes do corpo, em especial a dança, criando pontes possíveis entre o conhecimento já
produzido com foco no estudo do cérebro e arte. Dessa feita, embora me relacione com um
campo de referências que se agregam ao meu pensamento, devido à falta de publicação de
referências específicas no campo da Arte da Performance ligado as neurociências algumas
questões são teses levantadas para abrir uma discussão neste espaço de contato.

Cérebro e Experiência
A visão de Performance de que falarei aqui é aquela da pessoa, que fala de mim e das
práticas que coletivamente vivi junto ao Coletivo ES3, sendo esta um ente contaminado e
invadido por diversos momentos de encontro com outros performers por todo o Brasil.
Considerando a performance uma duna móvel (território e milhões de singularidades que
poeiram e entram em todos os lugares), adianto que o que aqui falo não é absoluto e tampouco
superlativo, é tão somente o que deixo impresso nesse momento de minha experiência em

1
self.response.write { ‘ <h1> Desenvolvimento Aberto </h1> ‘ }
2
É Mestre em Performance Arte pelo Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas da UFRN e
performer integrante do Coletivo ES3 em Natal (RN).
performance, para além daquilo que porventura minha voz em outro momento haverá de colocar
de outra forma já modificada por “estar sendo” (ter sido) eu um criador nessa linguagem.
Dito isso, ao meu ver, esta pessoalidade, mesmo heteronímia, que existe na performance
é sinal de uma indivisível experiência que se liga a performance como linguagem. Diferente do
que anunciam outras linguagens, talvez a palavra mais insistente que tenho encontrado em
portfólios de performers, sites, textos críticos e teóricos sobre o tema, seja o da “escapabilidade”
da performance, sua tendência de beber em muitos lugares, tempos e situações e sair trôpega por
aí encontrando outros caminhos e formas de andar para além da normose compulsória daquilo
que se aprende a ser, ou que se entende que deve ser igual aos demais.
A esse nível de fuga de constante da performance se liga o termo “experiência”.
Compreendida como espaço de subjetividades em encontro/troca (nem sempre amistosos, ou
harmônicos em seus efeitos), a experiência aparece para nomear o momento de porosidade da
performance, o momento em que a ação deixa de ser uma questão isolada daquele que propõe e
passa a ser uma proposta/questionamento ativada na vida do outro, que se vê, direta, ou
indiretamente, implicado naquele instante.
Jorge Bondía Larrosa, (2002) ao falar sobre a experiência e o saber da experiência
aponta esse lugar de afetação e singularidade que a experiência possui:
Começarei com a palavra experiência. Poderíamos dizer, de início, que a
experiência é, em espanhol, “o que nos passa”. Em português se diria que a
experiência é “o que nos acontece”; em francês a experiência seria “ce que
nous arrive”; em italiano, “quello che nos succede” ou “quello che nos
accade”; em inglês, “that what is happening to us”; em alemão, “was mir
passiert”. A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos
toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca. A cada dia se
passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece.
(LARROSA, 2002, p. 21)

A experiência falaria diretamente daquilo que nos acontece, que “no calor do
momento” nos faz sair da “temperatura ambiente”, que no instante que nos acomete e
depois nos tira do lugar que supúnhamos entender sobre nós e o mundo.
O cérebro humano em sua complexidade e em suas dimensões neurais
gigantescas há muito deixou de ser entendido como unidade desincorporada e abstrata
de pensamento puro. Como coloca Antonio Damasio (1996), o cérebro é compreendido
como corpo e assim como as mãos são especialistas em pegar, o cérebro é um
especialista em processos e conexões, o que não implica que toda uma gama de sistemas
sensoriais e propioceptivos não estejam envolvidos em ambas as ações. Assim, queria
deixar claro que ao falar de cérebro falo de um lugar incorporado e que a ideia de mente
é um processo global em que se processam múltiplas instâncias incorporadas que
dependem do input e feedback de diferentes instâncias corporais.
Adentrar esta percepção significa, ao meu ver, ter uma noção diferenciada do
que é a ação em performance. Implicados na performance no momento presente,
performer e público/co-participantes/testemunhas/errantes, supostamente ativariam
células nervosas relacionadas as áreas premotora e parietal, similares aquelas que
“acendem” nos estudos de imagem cerebral referentes à dança. Como coloca Patrick
Haggard (2006):
First, neuro-imaging studies have found a specific region of the visual system
at the back of the brain which ‘lights up’ when looking at human bodies. This
area appears to be tuned to recognise configurations of the body in the same
way that other brain regions are known to recognise faces. Second, studies in
animals and humans have identified an important brain circuit concerned
with representing the actions of other individuals: the so-called ‘mirror
system’. The original studies in animals found that individual nerve cells in
parietal and premotor areas were activated both when actually making a
particular kind of action (such as grasping with the hand) and when watching
another animal perform exactly the same action. Neuro-imaging studies in
humans showed activity in the same areas in the same circumstances. Mirror
neurons link actions that we see others perform to the motor programmes that
we would use to perform the same actions ourselves3. (HAGGARD, 2006)

Essas áreas estariam conectadas a visualização de ações realizadas por outros


sujeitos que reconhecemos em nosso próprio corpo através do nosso córtex visual e
pode ser observada tanto no trato com a dança, como em contato com trabalhos que
envolvem a percepção visual de objetos em movimento, ou obras com ênfase nesse
princípio, como ressalta Semir Zeki4 (1998).
Antes de me focar novamente na performance, já tendo destacado essas
perspectivas de percepção visual da ação, gostaria também de sublinhar o chamado
“sistema espelho” composto pelos conhecidos “neurônios espelho”, que unem ações que
vemos outros realizarem (como pegar um copo) a referências de movimento anteriores
ativando os programas motores da nossa mente como se estivéssemos realizando a ação
nós mesmos.
3
Palestra transcrita e publicada realizada durante participação do neurocientista cognitivo em simpósio no
Sadler’s Well Theater em Londres, no dia 07 de novembro de 2006. Disponível em:
http://www.gulbenkian.org.uk/. Acessado em: 12 de setembro de 2015. “Primeiro, pesquisas em
neuroimagem encontraram uma região específica do sistema visual na parte de trás do cérebro, que
“acende” quando olhamos para corpos humanos. Essa área parece estar sintonizada para reconhecer
configurações de corpo da mesma forma que outras áreas do cérebro são conhecidas por reconhecer
rostos. Segundo, estudos em animais e seres humanos identificaram um importante circuito cerebral
preocupado em representar as ações de outros indivíduos: o assim chamado “sistema espelho”. Os
estudos originais em animais descobriram que células nervosas individuais nas áreas parietal e premotora
eram ativadas tanto quando eles de fato faziam um tipo particular de ação (como pegar um copo) quanto
quando assistindo um outro animal realizar a mesma ação. Pesquisas em neuroimagem em humanos
mostraram atividades nas mesmas áreas nas mesmas circunstâncias. Neurônios espelho conectam ações
que nós vemos outros realizarem as programações motoras que nós usaríamos para realizar nós mesmos
estas ações” (tradução nossa).
4
ZEKI, Semir. “Art and the Brain”. Daedalus. v.127, n.2. jul./set. p. 71-103. London, 1998.
O “sistema espelho” é o mesmo responsável pelo desejo de bocejar quando
vemos outros bocejarem, ou pelo desconforto corporal quando vemos outros sofrerem
traumas corporais, como em vídeos de acidentes, filmes de horror e situações do dia-a-
dia.
Contudo escapa ainda a isso um fator interessante, o de que a experiência em
performance muitas vezes toma ações comuns, ou relações que socialmente comumente
estabelecemos com os objetos e situações, e os faz desviar de seu lugar usual no mundo
estabelecendo outras ações e modos de relação para com objetos e situações.
Nesse sentido, a performance em ação deixa de ser um espaço “espelhado”
comum ao fulerar (MEDEIROS, 2011) os modos usuais de relação com a vida? E além
de questionar o espaço referencial em que os neurônios espelhos nos implicam na ação,
expande a lógica cognitiva retirando o público/co-participantes/testemunhas/errantes de
uma leitura linear da situação apresentada para um espaço de complexidade, no qual a
resposta direta não é a mais adequada e uma abordagem não-linear é posta em
evidência?
Afinal de contas, para nos implicar em um espaço em que algo não apenas
acontece, mas nos acontece a experiência em performance teria que através de algum
processo incitar a agir de outra maneira aquilo que parece linearmente conformado nos
nossos espaços de ação, metaforicamente desentranhando (DUARTE, 2004) noções
anteriormente averiguadas e acomodadas de nossas possibilidades de escolha,
consciência e convivência
Percebo esse tipo de aproximação em trabalhos como os do Corpos Informáticos
em “Enceradeiras” (2010), compondo diferentes possibilidades de convivência e
elaboração poética da ação do encerar, ou de Rodrigo Munhoz em “O Amor é Kraft”
(2015), criando com o público um embrulho gigante que redimensiona camada a
camada seu corpo e sua presença no espaço, ou em “Se...” (2015) de Flávio Rabelo,
compondo diferentes relações com taças de vinho a partir de questionamentos escritos
ao público.
Nessas e em outras proposições enxergo esse potencial em que a ação em
performance, implicando de maneira direta, ou indireta, o público/co-
participantes/testemunhas/errantes, atravessa o espaço dos neurônios espelho, ativando
uma sequência de inputs que referenciam movimentos e sensações passadas, como
observado em outros estudos de caso nas artes do corpo, mas hic et nunc cria problemas
complexos no qual abordagens de leitura linear da situação não dão conta da
experiência vivida.
Sem desenhar definições conclusivas, como já dito, essa é uma possibilidade que
me põe a pensar como o uso de exames de neuroimagem poderiam apontar para tipos
específicos de cognição relacionados a experiência da performance, ao lidar com índices
como a imprevisibilidade da ação, a extemporaneidade das condições e a produção de
insights (possíveis respostas de base não-linear para problemas complexos) para lidar
com os problemas avivados pelo performer.

Experiência e Combinação
Dentro do momentum da experiência como a discuti no tópico anterior, há
também uma questão desafiadora que emerge com frequência nas pesquisas atuais no
campo da neurociência, qual seja, como ocorre a combinação de impulsos de diferentes
partes do cérebro que se preocupam com questões específicas (como cor, forma, ângulo,
etc.)?
Diante dos estudos de neuroimagem temos acesso a secções ativadas por
diferentes experiências do sujeito, cada qual conjugando nos dois hemisférios distintos
pontos de resposta, a partir dos quais padrões de leitura científica aparecem para indicar
que sistema específico de neurônios, que conjunto específico de sinapses, responde a
que estímulo.
Como se dá a combinação dessas diferentes respostas em uma leitura unificada
ainda é estranha ao campo da neurociência, o que, por sua vez, permite caracterizar
diferentes aspectos de uma experiência em seus espectros proprioceptivos e emocionais,
observar seus aspectos globais e localizados, mas resiste como incógnita os processos
através dos quais nós identificamos esses diversos estímulos de maneira unificada.
Adereçar esse problema interfere diretamente no espaço de discussão que teci
anteriormente, porque de maneira mais complexa é necessário entender que o nosso
cérebro modifica e/ou modula o mundo a todo instante, e aquilo que é visto, tocado,
cheirado, movido, desequilibrado, excitado, pelo/no corpo provém de articulações
internas divididas em diversas instâncias.
Assim com o input de uma série de dados (informações sensíveis) de uma ação
em performance estaríamos não apenas presenciando, ou criando, modificações que
acontecem no mundo, mas também alterando múltiplos e particulares formas de
modelar o mundo dentro do nosso corpo?
De tal forma, teríamos a singularidade da experiência posta em evidência? Isto é,
traríamos à tona que outro ponto presente em performances diversas, o de que cada
subjetividade articula de forma particular e pode ler de maneiras distinta uma mesma
ação, é inerente ao nosso modo de perceber e de produzir cognitivamente o mundo?
Uma afirmação que diferentes pessoas que presenciam ações de performance já
fizeram a mim e minha companheira de coletivo, como também me fiz quando comecei
a ver performances e colaborar com performances que vi e que convidavam/abriam para
que o público/co-participantes/testemunhas/errantes tomasse parte da ação: eu sinto e
leio esse trabalho dessa forma, mas todos parecem discordar e mesmo argumentar como
suas visões possuem base em dados oferecidos pela ação.
Sem apelar para jargões facilitadores, ou extremos, que abrem para o “pode ser
qualquer coisa”, ou “tanto faz o que você viu” e ainda o “isso é coisa de maluco”, é
possível compreender que, se em situações diárias estamos constantemente construindo
mundos distintos em nossas mentes (vide o vestido branco e dourado/ azul e preto que
criou atualmente espaços homéricos de discussão on-line) a partir de informações
sensíveis similares, nesse olhar para um problema atual da neurociência podemos
averiguar uma pista para o porquê experiências tão diversas emergem de uma mesma
performance, é possível também apontar como a reperformance ultrapassa a mera
repetição enquanto ação, e ainda como uma experiência ou imagem fisicamente
desconfortável para um corpo pode ser visto como delicada para outro.
Para além dos elementos diversos que compõem a ação, é necessário que se
comece a abrir espaço para compreender o papel que a percepção e cognição das
informações sensíveis para o próprio sujeito detém nesse contexto, junto as questões
culturais que reforçam os modelos de leitura de mundo deste ou daquele corpo em
específico.
Esse espaço de contato entre neurociência e Arte da Performance no que
concerne a combinação, unificação dos impulsos cerebrais, e criação e modulação das
informações exteriores percebidas pelo corpo, me veio à mente pela primeira vez
quando estudava a proposição de arte contextual por Jan Świdziński (2005).
Świdziński propõe que o corpo em performance e seus percursos que compõem
todos os momentos anteriores a ação em performance se constituem como
entrelaçamentos incondicionais que interferem no trabalho artístico. Assim sendo, as
conversas que o performer tem, o caminho que ele faz até o local da performance, o que
ele come nos dias e semanas antes da ação, a temperatura do ambiente, a toxicidade do
ar, os encontros, traumas, aprendizados e sonhos, interferem como um campo unificado
sobre o que é o corpo do performer na ação, porque são o corpo do performer. Da
mesma feia se daria com o público/co-participantes/testemunhas/errantes.
O contexto nessa proposição é corpo e é incorporado a cada instante. Por uma
sequência de processos não enumeráveis, como uma soma de sequências infinitas, que o
corpo toma como naturais e o performer insiste em revolver e investigar, a unificação
desses momentos que se tornam corpos é tão inexplicável quanto inextrincável.
Como se unificam essas sequências de informações percebidas separadamente
por nosso corpo e tão sem esforço se tornam o corpo e o excitam continuamente a
continuar se adaptando e articulando é extraordinariamente uma das questões que
jamais pensei me deparar quando pulava entre leituras dos escritos de Świdziński e
vídeos de conferências do pesquisador e neurocientista Miguel Nicolelis.

Uma pausa, não um fim


Mesmo brevemente, espero ter colaborado para iniciar essa discussão. Se meu
espaço por ora se encerra atendendo a um convite mais que alegre, deixo claro que esse
texto é mais amplo e que tenho escrito mais sobre o assunto desde o momento que tracei
essas linhas. Quem sabe a superfície de sua íris, sua retina, os braços de nervos e
axônios e dendritos e sinapses e gânglios simpáticos e parassimpáticos voltem a se
encontrar com a continuidade dessas hipóteses integradas e provocadas por outros
campos de investigação, em especial a neurociência, e como ela me vem à cabeça
quando penso sobre performance/performer e corpo5.

REFERÊNCIAS
AQUINO, Fernando & MEDEIROS, Maria Beatriz. Corpos informáticos.
Performance, corpo, política. Brasília: PPG-Arte/UnB, 2011.

DAMÁSIO, Antonio. O Erro de Descartes: emoção, razão e o cérebro humano. São


Paulo: Companhia da Letras, 1996.

______. O Mistério da Consciência: do corpo e das emoções ao conhecimento de si.


Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

DUARTE, Luiz F. D. A sexualidade nas ciências sociais: leitura crítica das
convenções. In: Piscitelli, Adriana; Gregori, Maria F.; Carrara, Sérgio. (Org.).

5
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memory used = 21KB , alloc = 1.5MB , time = 21D
Sexualidades e Saberes: Convenções e Fronteiras. Rio de Janeiro: Editora Garamond,
2004.

BONDIA, Jorge Larrosa. Notas sobre experiência e o saber de experiência. In: Revista
Brasileira de Educação. n. 19. p. 20 – 28, jan./abr. São Paulo: 2002.

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