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Palavras-Chave Resumo
execução penal/ falta grave/ celulares/ A Lei 11.466/2007 inseriu a posse, utilização
ilegalismo/ sociologia da prisão ou fornecimento de celular, rádio ou similar
como hipótese de falta grave, conforme o
art. 50, VII, da Lei de Execução Penal. Hoje, o
que se vê é a absorção da proibição dos ce-
SUMÁRIO lulares pelas práticas de gestão e construção
1. Introdução. 2. Notas metodológicas pre- da ordem interna, aqui tomadas a partir do
liminares. 3. Base teórica: o sistema disci- conceito foucaultiano de ilegalismo e de al-
plinar na crítica sociológica e jurídica. 3.1 gumas hipóteses fundantes da sociologia
Ilegalismos e a construção da ordem inter- das prisões. A pesquisa traz recorte empírico
na nas prisões; 3.2 Do sistema disciplinar e com todos os casos de falta grave em uma
a discricionariedade administrativa da auto- unidade de Curitiba/PR em 2017, totalizando
ridade penitenciária. 4. As faltas graves re- 16 (dezesseis), colocando a questão de quais
ferentes a posse ou uso de telefone celular seriam os parâmetros determinantes para
(ou componente acessório) no ano de 2017 imputação de responsabilidade disciplinar
na Casa de Custódia de Curitiba (CCC). 5. por telefones celulares ou similares apreen-
Considerações finais. Referências. didos a este ou àquele preso. A partir da aná-
lise dos processos e observação participante,
evidencia-se como na grande maioria dos
casos os presos que assumem a responsabi-
lidade pelos itens apreendidos o fazem por
não terem família na região ou por terem
uma pena remanescente alta, tendo por ob-
jetivo a contraprestação pecuniária ou outros
favores, não sendo os verdadeiros donos dos
aparelhos. A aplicação da sanção disciplinar,
André Ribeiro Giamberardino1
com conhecimento da falsidade da confis-
são, indica que o Estado opera como gestor
1 Professor Permanente do Programa de Pós-graduação em Direito de ilegalismos e não a partir do binômio líci-
da UFPR e Colaborador do Programa de Pós-graduação em Sociolo-
gia da UFPR. to/ilícito oriundo da norma jurídica.
Revista de Estudos Empíricos em Direito
Brazilian Journal of Empirical Legal Studies
vol. 6, nº 2, ago 2019, p. 58-77
59
Porém, tal condição cria limites éticos à uti- Na mesma linha a ponderação de S. Chauvin:
lização de alguns instrumentos como, por
exemplo, a entrevista. Fundamental escla-
recer, desde logo, que os instrumentos me- A observação incognito, além disso, colo-
ca um problema deontológico, já que ela
todológicos aqui utilizados foram prevalen- priva os atores de um consentimento in-
temente a análise documental de processos formado de sua participação na pesquisa.
As informações colhidas sobre eles são
de execução penal que são públicos, inclu- feitas à revelia. Esta recriminação clássica
sive no que tange ao conteúdo dos depoi- feita à observação dissimulada, não pode,
no entanto, ser mantida senão radicali-
mentos prestados pelas pessoas presas no zando sua especificidade e exagerando o
âmbito dos respectivos processos adminis- caráter informado do consentimento dos
pesquisados em outros métodos. Na rea-
trativos disciplinares. lidade, uma observação completamente
às claras é praticamente impossível, salvo
Em conjunto à análise documental de tais se o meio estudado for um recinto social
processos, não parece haver qualquer pro- com poucas pessoas e pouco transitado.
(Chauvin, 2015, p. 129-130).
blema na sua compreensão a partir de ele-
mentos fornecidos por observação parti-
cipante, sobretudo no que se refere a falas
O que se destaca é um papel ativo do ob-
de pessoas presas e de servidores do esta-
servador como modificador do contexto
belecimento penal que não são reduzidas
e ao mesmo tempo como receptáculo de
a termo nos autos; muitas delas, inclusive,
influências do próprio contexto observado
realizadas em um momento formal que é a
(Haguette, 2000, p. 73). Trata-se de coletar
sessão do Conselho Disciplinar da unidade
dados “através de sua participação na vida
para julgamento da falta grave mas que, por
cotidiana do grupo ou organização que es-
opção da autoridade administrativa e para
tuda” (Becker, 1999, p. 47), ao invés de se
fins de celeridade e agilidade, não são in-
buscar demonstrar relações entre variáveis
seridas na ata da reunião, a qual segue um
abstratamente definidas, buscando com-
modelo padrão bastante sucinto.
preender as interações e o comportamento
Afinal, a observação participante pode ser dos atores sociais diante de situações que
vista mais como estratégia de coleta de fazem parte da rotina. Daí a relevância, se-
dados que como método de pesquisa pro- gundo o autor, de se estabelecer interações
priamente dito (Haguette 2000, p. 70), com diretas com os participantes no intuito de
bastante flexibilidade quanto ao papel do compreender e desvelar as interpretações
observador ser encoberto ou explícito: que eles têm sobre os acontecimentos ob-
meias palavras, um verdadeiro teatro que Para Harcourt, a noção de ilegalismos popu-
traz à cena a falácia do sistema disciplinar lares, fundamental para uma concepção de
em meio a tantas outras falácias caracterís- poder disciplinar positivo/produtivo, pode
ticas do discurso penitenciário, mas que em ser interpretada como resposta a leituras de
seu conjunto determinam uma bem-suce- base marxista que conceberam a constru-
dida gestão diferenciada de ilegalismos. ção do sistema penal como mera reação a
movimentos populares e classes inferiores
(Harcourt, 2015, p. 256-258). Foucault afir-
3. Base teórica: o sistema disciplinar na mou depois, em Vigiar e Punir, que a prisão
crítica sociológica e jurídica e as penas
peito à legalidade “não passava de estraté- Sykes e E. Goffman, segundo a qual há uma
gia no jogo do ilegalismo” (Foucault, 2015, p. cultura própria das prisões, apartadas que
133). De forma mais clara: estão da sociedade livre e como “institui-
ções totais”.
para induzir cooperação, as fortes pres- logo, sua distinção para com a relação jurí-
sões em prol da corrupção dos servidores
na forma de amizade, reciprocidade, e a dica existente entre o condenado o Estado
transferência de responsabilidades para que se refere à pena como consequência
as mãos de presos de confiança – esses
são todos problemas estruturais no siste-
do delito, ou seja, a obrigação de sujeição
ma de poder nas prisões e não inadequa- à pena nos termos e limites estabelecidos
ções individuais (Sykes, 1954, p. 61)
pela sentença condenatória. O liame jurídi-
co existente entre o condenado e a Admi-
nistração Pública – a autoridade penitenci-
A ordem é, portanto, produto de negocia- ária responsável pelo estabelecimento onde
ção (Morgan e Liebling, 2007, p. 1126) e ainda cumprirá pena – é o que se denomina rela-
que o papel exercido pelos agentes peniten- ção jurídico-penitenciária, a qual inicia com
ciários seja muito relevante nesse sentido, o ingresso no estabelecimento e se extin-
“o equilíbrio prisional resulta de complexa gue com a sua saída.
interação entre diversos atores do sistema
penal” (Bodê de Moraes, 2013, p. 131). No Bra- Tal relação foi por longo tempo tida como
sil, as conclusões são similares, como por meramente administrativa e mesmo como
exemplo se lê da pesquisa seminal de Co- relação de sujeição. Não obstante, sua natu-
elho em unidade prisional do Rio de Janei- reza é de direito público e deve atender ao
ro, no final da década de 80 (Coelho, 1987), reconhecimento do espaço de execução da
e dos trabalhos contemporâneos sobre as pena como jurisdicionalizado, o que signifi-
relações entre as dinâmicas das redes crimi- cou, ao menos em tese, a extensão do princí-
nais organizadas fora do cárcere e a ordem pio da legalidade à execução penal. Trata-se
prisional (Adorno e Salla, 2007; Dias, 2013). de uma posição bastante recente e vincu-
lada ao advento do Estado Social e Demo-
crático de Direito, da mesma forma como o
3.2. Do sistema disciplinar e a discricionarieda- reconhecimento do recluso como sujeito de
de administrativa da autoridade penitenciária direitos se relaciona ao amplo movimento
de reconhecimento dos direitos humanos
que seguiu à Segunda Guerra Mundial, e
Sob um prisma estritamente jurídico, os te- do qual é decorrência o documento deter-
mas do sistema disciplinar na execução pe- minando as “Regras Mínimas para o Trata-
nal e a discricionariedade administrativa da mento dos Presos”, aprovado no 1º Congres-
autoridade penitenciária são bastante pro- so nas Nações Unidas sobre Prevenção do
blemáticos e sofrem de enorme lacuna teó- Crime e Tratamento de Delinquentes (Ge-
rica, especialmente no campo do que seria nebra, 1955), e atualmente denominado Re-
um direito administrativo penitenciário, o gras de Mandela.
qual possibilitaria maior controle, pelo direi-
Se o prisma fosse estritamente normativo,
to, dos procedimentos e atos praticados em
não deveriam pairar dúvidas sobre a inci-
âmbito prisional.
dência do princípio da legalidade na execu-
Entende-se por relação jurídico-adminis- ção penal. Porém, uma perspectiva crítica
trativa aquela forma de relação jurídica na e sociológica reconhece a tensão imanente
qual uma das partes é ou atua em nome da entre norma jurídica e poder disciplinar no
Administração Pública. Ressalva-se, desde ambiente prisional. Nos casos em tela, espe-
A teoria parece poder ser visualizada como de poderes e o temor de que a intervenção
“sociológica”, ou seja, descritiva do “ser”, e judicial prejudicasse os objetivos imediatos
assim capaz de “dizer a verdade”. Caso tal da administração do estabelecimento peni-
leitura passasse a ser também “prescriti- tenciário, que são a manutenção da ordem
va”, como um “dever ser”, transformar-se-ia e da segurança internas. Por exemplo, na
em ideologia tecnocrática inaceitável. Mas decisão da Corte da Virgínia no caso Ruffin
como teoria “sociológica”, tem respaldo vs. Commonwealth (1871), indicando o con-
científico: mesmo com o domínio crescente denado como “escravo do Estado” (Hawkins,
do “jurídico”, existem ainda espaços que são, 1976, p. 136).
inegavelmente, de relações sociais de sujei-
A ampliação da possibilidade de questio-
ção dominadas unilateralmente por pode-
namento judicial da situação das prisões se
res que se subtraem, total ou parcialmente,
deu a partir de algumas decisões históricas,
a qualquer predeterminação legal. Trata-se,
desde Coffin vs. Reichard (1944), trazendo
novamente, da gestão de ilegalismos, e não
o princípio segundo o qual o “prisioneiro
da legalidade. Tal teorização não diz respei-
mantém todos os direitos de um cidadão
to aos limites que o direito pode ou poderia
normal a não ser aqueles expressamente,
colocar sobre as relações de domínio. Estas
ou por implicação necessária, afastados ju-
jamais poderão ser completamente preen-
ridicamente”, até sucessivos julgamentos
chidas ou hegemonizadas pelo “direito”, na
que, a partir da década de 60 (Fragoso e Ca-
medida em que sempre haverá, mormente
tão e Sussekind, 1980, p.19), e especialmente
no campo carcerário, um núcleo resistente
com Monroe vs. Pape (1961), passaram a ad-
e refratário, mesmo se mínimo, que perma-
mitir a apreciação judicial da ilegalidade das
necerá dele “livre”.
condições carcerárias.
A teoria da supremacia especial veio a per-
der espaço doutrinário justamente com a Estabeleceu-se, então, a necessidade de se
afirmação do Estado de Direito por meio de realizar, no caso concreto, um juízo de pon-
decisões do Tribunal Constitucional alemão deração entre os interesses do recluso e do
(Miranda Rodrigues, 2002, p. 81), adotan- estabelecimento, porém com um impor-
do como parâmetros a limitação do poder tante ganho: em nenhuma hipótese, mes-
perante os cidadãos e a transformação das mo com motins ou perturbações excep-
“relações de poder” em relações jurídicas de cionais da ordem interna, a administração
direitos e deveres. penitenciária teria legitimidade para negli-
genciar direitos fundamentais dos reclusos
De outro lado, a doutrina norte-americana
não atingidos pela sentença condenatória,
das “hands-off” declinava a intervenção do
como, por exemplo, o direito à alimentação.
Poder Judiciário na tutela de relações que
concerniam exclusivamente à Administra- O princípio da individualização da sanção
ção Pública, legitimando, assim, uma po- disciplinar é previsto pelo art. 45, §3º, da LEP,
lítica de afastamento e não-interferência proibindo a responsabilização coletiva e ob-
na execução penal. Pode-se mencionar ao jetiva. O princípio exige a comprovação da
menos dois fundamentos comumente ar- autoria do imputado pela respectiva falta
guidos pela doutrina do hands-off (Vogel- disciplinar, cumprindo a mesma função do
man, 1971, p. 53): o princípio da separação princípio da culpabilidade, pois “não será
Relação de faltas graves envolvendo celular ou similar (art. 50, VII, LEP)
*** Mov.: “Movimento” se refere à referência para localização do ato processual no processo eletrônico.
saltando-se que tal discricionariedade não Em todos eles porém, foram aplicadas as
está abarcada pelas normas legais na medi- sanções administrativas em seu grau máxi-
da em que a lavratura do ato, em tese, é ato mo, as quais tiveram esgotados seus efeitos
de ofício e sua não realização poderia confi- antes mesmo da análise judicial.
gurar crime contra a administração pública.
No caso nº. 6, em seu depoimento prestado
Mas se estamos diante de ilegalismos dos
na unidade prisional, o preso afirmou:
quais apenas alguns serão alçados à condi-
ção formal de “falta disciplinar”, a abstenção
de atos de ofício diante de infrações é uma muitas coisas acontecem dentro desse
prática muito mais complexa e que se inse- lugar e ninguém sabe como acontece, e
a palavra do funcionário tem a fé pública,
re na teia de interações fundadas na coope-
somos tachados como mentirosos e pra
ração visualizadas, descritivamente, como evitar problema a pais de famílias que es-
elementos essenciais para construção da tão para ir embora em um ano ou dois,
assim como tenho alguns anos a cumprir
ordem interna. e para evitar problemas aos meus com-
panheiros assumi a posse dos objetos.
É na análise das “falas” de presos e servido-
res extraídas prevalentemente dos autos de
procedimento administrativo disciplinar, Há referência, portanto, à assunção da pro-
mas também das interações e manifes- priedade pelos objetos apreendidos para
tações nas sessões de julgamento, que se evitar que “pais de família” – que têm a ex-
pode compreender a questão de pesquisa pectativa da visita de seus filhos, portanto
colocada no início, ou seja, quais seriam os – e “que estão para ir embora” – cientes de
critérios e parâmetros para imputação da que a confirmação judicial de falta grave in-
responsabilidade pela prática da infração terrompe a contagem do requisito tempo-
disciplinar, quando registrada. ral para progressão de regime (Súmula nº.
Já no caso nº 1, seguindo sempre a numera- 534, do STJ) – sejam prejudicados.
ção da coluna à esquerda na tabela acima No caso nº. 8, o preso afirmou no proces-
transcrita, tem-se um caso de “confissão so administrativo disciplinar que “não tem
impossível”: o preso afirmou na unidade pri- dinheiro para comprar celular, mas estava
sional que os 7 (sete) celulares apreendidos guardando os telefones e por isso assumiu a
seriam de sua propriedade. Em juízo, negou posse”, evidenciando que a ação é valorada
que seriam efetivamente seus e a falta foi como mercadoria ou “serviço” que pode ser
afastada. prestado a título de pagamento de dívidas,
Situação similar à do caso nº. 13, em que o contraprestação por favores anteriores ou
preso assumiu ser dono de 3 (três) celulares por remuneração direta. Em juízo, no mes-
no procedimento administrativo, e em juí- mo processo, ele ainda agrega outro dado:
zo dito que o fez porque foi ameaçado. No
caso nº. 2 há assunção da responsabilidade
Eu teria que assumir, pois eu era a pessoa
pelos objetos, tanto em juízo como na fase que possuía mais condenações dentro
administrativa, tendo a falta também sido da cela. Eles me dariam R$1500 (R$500
por aparelho) para assumir os objetos.
afastada por ausência de credibilidade e Usei uma vez dos aparelhos. Cada telefo-
factibilidade da própria confissão realizada. ne custa R$10.000 dentro da unidade.
A utilização da expressão “eu teria que as- direito à progressão de regime ou ao livra-
sumir” indica não exatamente uma escolha, mento condicional; c) porque são remune-
mas a adesão a regras de organização inter- rados ou devem quitar dívidas através do
na. O fato de ter uma pena remanescente serviço de “guardar” os aparelhos e assumir
longa a ser cumprida é mencionado, aqui, a responsabilidade em caso de apreensão.
como justificativa racional para a assunção
Tais padrões foram, por mais de uma vez,
da responsabilidade, evitando prejuízos a
explicados pela chefia de segurança da uni-
outros que estejam próximos de alcançar o
dade prisional aos membros do Conselho
requisito objetivo para a progressão de regi-
Disciplinar durante as reuniões, sem que
me ou para o livramento condicional.
isso interferisse na posição unânime em
No caso nº. 7, a pessoa presa admitiu “estar prol da aplicação de falta grave. Como bem
guardando” o celular para terceiro, no mes- indicou Cicourel, é fundamental identificar
mo sentido acima indicado. No caso nº 9, os “constructos de senso comum” que deli-
afirmou que “não era seu, estava apenas mitam a compreensão das coisas pelos ato-
levando para dentro”. No nº. 12, o acusado res sociais:
afirma claramente que “às vezes guarda ob-
jetos para presos de vários outros barracos”.
Se é correto supor que as pessoas, na sua
Outras afirmações marcantes como “eu as- vida cotidiana, ordenem seu meio, atri-
buam significados e relevâncias a obje-
sumo a responsabilidade para não compli- tos, fundamentam suas ações sociais em
car os demais” (nº. 14); “eu estava em pos- racionalidades de senso comum, não se
pode fazer pesquisa de campo ou usar
se destes objetos até mesmo porque seria
qualquer outro método de pesquisa nas
desta maneira que conseguiria falar com a ciências sociais sem levar em considera-
Direção, porque quero ser transferido para ção o princípio da interpretação subjeti-
va. Enquanto conversa com as pessoas
Santa Catarina, onde reside minha família. investigadas no campo, fazendo pergun-
Aqui não tenho nada, nem família, sacola, tas estruturadas ou não estruturadas em
situação de entrevista ou usando o ques-
nada. Esta foi a maneira que infelizmen- tionário, o observador científico deve
te eu achei para chamar atenção” (nº. 15) levar em conta os constructos de senso
comum empregados pelo ator na vida
indicam algumas permanências nas justi- cotidiana se quiser compreender os sig-
ficações conferidas às supostas confissões, nificados atribuídos às suas perguntas
pelo ator, qualquer que seja a forma pela
todas sempre chanceladas pelo respectivo qual elas foram apresentadas ao ator. (Ci-
Conselho Disciplinar sem maiores questio- courel, 1980, p. 110).
namentos6: a) presos que assumem a res-
ponsabilidade porque não tem família na
região e, portanto, não têm visita; b) porque Observando ser imprescindível a articula-
têm longa pena remanescente e estão mais ção de crítica estrutural em conjunto ao re-
distantes do que os demais do alcance do ferido princípio da interpretação subjetiva, o
que se buscou minimamente fazer a partir
6 Mencionaria ainda situação fora do espectro da pesquisa, pois ocor-
rida em sessão de julgamento do Conselho Disciplinar da CCC em 27 das discussões teóricas articuladas acima, o
de março de 2018, em que o preso que assumiu a responsabilidade
pelos itens proibidos apreendidos sequer fazia parte do cubículo/cela que se pode constatar é que, fundadas em
no qual os itens foram encontrados. O colegiado do Conselho se recu-
sou a aceitar a confissão neste caso (“gente, aí já é demais”, afirmou normas impositivas criadas pela população
uma das técnicas) mas ao invés de afastar a falta por ausência de
qualquer prova de autoria, o PAD foi enviado a diligências porque, carcerária, em atitudes de solidariedade
segundo fala da chefia de segurança, “alguém terá que assumir até
a próxima reunião”. ou em movimentos de natureza comercial,
as práticas de falsa assunção de responsa- Em síntese, dos 16 casos do ano de 2017 en-
bilidade são naturalizadas e não são vistas caminhados pelo presídio ao juízo de exe-
como um “problema jurídico” pelos mem- cução penal, em somente 5 deles a falta foi
bros do Conselho Disciplinar. confirmada (casos nº. 3, 5, 6, 7 e 8) e em 9
ocasiões a falta foi afastada em juízo (casos
A própria defesa técnica – destacando-se
nº 1, 2, 9, 10, 11, 13, 14, 15 e 16). Os outros 2 pro-
aqui que o lugar do pesquisador era justa-
cessos se referem a um em que o incidente
mente sobreposto ao papel exercido como
não foi apreciado, sem maiores explicações
defensor público – muitas vezes também
(nº 4) e um último sem processo executório,
adere a tal naturalização, buscando priori-
tendo a sanção sido aplicada exclusivamen-
tariamente evitar os riscos de aplicação de
te em âmbito administrativo (nº. 12).
outras sanções, de natureza média, aos de-
mais presos do cubículo “que não assumi- Vale notar que em 6 situações (casos nº 1, 2,
ram” nenhum objeto. O Estatuto Penitenci- 9, 13, 14 e 16) vários objetos foram assumidos
ário do Estado do Paraná prevê falta média pela mesma pessoa, tendo a falta sido afas-
consistente em “dificultar averiguação, tada judicialmente exatamente por ausên-
ocultando fato ou coisa relacionada com a cia de credibilidade da confissão e de outras
falta de outrem” (art. 62, III). Embora aplicá provas de autoria.
-la a todos os presos de cela seja evidente e
Em apenas 2 situações (casos nº. 3 e 5) as
inadmissível sanção coletiva, o controle ju-
circunstâncias são “regulares”: apenas um
dicial a posteriori frequentemente esbarra
aparelho apreendido, confissão na fase ad-
na perda de objeto, posto que já exauridas
ministrativa e em juízo, com homologação
as sanções exclusivamente administrativas
judicial da falta. E em ambas, os imputados
consistentes em isolamento e suspensão de
afirmaram fazer uso dos celulares somente
direitos por até 20 dias.
para contato com a família.
Não se trabalha, a rigor, com o conceito ju-
Além das relações comerciais e dinâmicas
rídico de prova, mas sim com concepção
de opressão que podem se fazer presentes
estratégica de poder disciplinar segundo a
nas interações da população carcerária, a
qual o que importa é haver um “culpado”,
indiferença do Conselho Disciplinar à lógi-
seja quem for ou em quais circunstâncias,
ca do in dubio pro reo e a exigência de “um
pois é este o elemento que se faz importan-
culpado”, com medidas de retaliação caso
te nas dinâmicas de afirmação – meramen-
ninguém assuma a responsabilidade pelos
te simbólica – da autoridade penitenciária e
objetos, contribui para a concretização des-
manutenção da ordem interna. Não haven-
se grande “teatro da disciplina”.
do mecanismos eficientes de investigação
e instrução, prevalece a lógica de que sim- Como se vê, não há parâmetros estáveis,
plesmente afastar a falta por insuficiência coerentes e consolidados na análise do Po-
de provas de autoria equivaleria a “liberar” a der Judiciário das situações descritas, mas
utilização de celulares no interior das gale- é possível constatar, ao menos na pequena
rias. Trata-se de uma postura caracterizável amostra indicada, uma tendência a repelir
como gestão estratégica de ilegalismos, e imputações de responsabilidade artificiais e
não de combate efetivo a determinada prá- escancaradamente distantes da realidade.
tica infracional.
alcançado. Ainda que não tenha sido objeto nização. A abordagem por meio da noção
direto desta pesquisa, pode-se afirmar com foucaultiana de ilegalismo vem enfatizar o
tranquilidade que a regra é a apreensão escopo de gestão diferencial, e não de su-
de celulares utilizados para o contato com pressão, dos ilegalismos, os quais “não são
a família e amigos (vide observação acima nem disfunções das tecnologias políticas e
sobre os casos nº. 3 e 5), não para cometer nem exceções de suas práticas legais, mas
crimes. E o que dizer de eventual inserção sim parte absolutamente constitutiva do
e manutenção de celulares pelo próprio Es- exercício do governo” (Hirata, 2014, p. 101).
tado para fins de monitoramento de movi-
Ainda assim, diversas medidas poderiam
mentos ilícitos, como parte das chamadas
ser adotadas como forma de redução de
“ações de inteligência”?
danos e minimização das violações de direi-
Os resultados da amostra empírica delimi- tos, tais como a abertura de maior controle
tada a uma unidade prisional de Curitiba/ judicial sobre o sistema disciplinar através
PR indicam a imputação de responsabilida- da regulamentação do conceito de prova
de disciplinar pelas faltas graves a presos sa- nos processos administrativos disciplinares,
bidamente inocentes, mas que “assumem” a alteração do art. 50, VII da LEP inserindo
a responsabilidade por não terem família na a necessidade de elemento subjetivo espe-
região (não perdendo visitas com a suspen- cial vinculando o objetivo do uso do celular
são decorrente da sanção administrativa) , à prática de novos crimes ou mesmo a ins-
por terem uma pena remanescente alta (es- talação de telefones públicos monitorados
tando mais distantes do que os demais do nas penitenciárias e cadeias públicas, como
alcance do direito à progressão de regime já vem sendo proposto em alguns projetos
ou ao livramento condicional) ou ainda ten- de lei em tramitação no Congresso Nacio-
do por objetivo uma contraprestação pecu- nal. Nenhuma delas, porém, alteraria a con-
niária ou outros favores. Coberto de razão figuração das interações do ambiente pri-
está Roig quando afirma que “o proibicio- sional e os mecanismos de construção de
nismo generalizado que envolve esta falta sua ordem interna como pautadas não pelo
disciplinar (...) acaba fomentando a corrup- binômio lícito/ilícito, mas sim pela diretriz
ção, troca de favores, privilégios espúrios e de gestão diferenciada de ilegalismos.
produção de danos (custos sociais) desne-
cessários à maioria das pessoas presas que
não possuem propósitos ilícitos” (Roig, 2018,
242). Referências
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