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Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Centro de Ciências Sociais


Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

Isadora Tavares Maleval

Entre a “arca do sigilo” e o “tribunal da posteridade”: o (não) lugar do


presente nas produções do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
(1838-1889)

Rio de Janeiro
2015
Isadora Tavares Maleval

Entre a “arca do sigilo” e o “tribunal da posteridade”:


o (não) lugar do presente nas produções do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
(1838-1889)

Tese apresentada, como requisito parcial para


obtenção do título de Doutor, ao Programa de Pós-
Graduação em História, da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro. Área de Concentração: História
Política.

Orientadora: Prof.ª Dra. Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves

Rio de Janeiro
2015
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/CCSA

M248 Maleval, Isadora Tavares.


Entre a “arca do sigilo” e o “tribunal da posteridade: o (não)
lugar do presente nas produções do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro /Isadora Tavares Maleval. – 2015.
348 f.

Orientador: Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves.


Tese (doutorado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.
Bibliografia.

1. Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro – Teses. 2.


Brasil – História – Império, 1838-1889 – Teses. I. Neves, Lúcia
Maria Bastos Pereira das, 1952- II. Universidade do Estado do Rio
de Janeiro. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. III. Título.

CDU 981”1838/1889”

Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta tese, desde que citada a fonte.

___________________________ _________________________
Assinatura Data
Isadora Tavares Maleval

Entre a “arca do sigilo” e o “tribunal da posteridade”:


o (não) lugar do presente nas produções do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
(1838-1889)

Tese apresentada, como requisito parcial para


obtenção do título de Doutor, ao Programa de Pós-
Graduação em História, da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro. Área de Concentração: História
Política.

Aprovada em 24 de fevereiro de 2015.


Banca Examinadora:

___________________________________________________
Prof a. Dra Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves (Orientadora)
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas – UERJ
___________________________________________________
Prof a. Dra. Lucia Maria Paschoal Guimarães
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas – UERJ
___________________________________________________
Prof a. Dra. Márcia de Almeida Gonçalves
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas – UERJ
___________________________________________________
Prof. Dr. Rodrigo Turin
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
___________________________________________________
Prof. Dr. Valdei Lopes de Araújo
Universidade Federal de Ouro Preto

Rio de Janeiro
2015
DEDICATÓRIA

Aos meus presentes: Amparo e Jougi.


AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiramente pela orientação sempre atenta e prestimosa de Lúcia Maria


Bastos Pereira das Neves. Desde a graduação sei que posso contar com seus conselhos e com
seu apoio, e isto foi e é essencial. Minha gratidão por todos esses anos de convivência é imensa,
assim como o meu carinho.
Devo especiais agradecimentos ao professor Rodrigo Turin, pelos comentários
oportunos e sugestões no exame da qualificação. O mesmo à professora Lucia Guimarães, que,
além disso, me apoiou de maneira sempre muito afetuosa ao longo de toda minha trajetória
acadêmica e que se deixou arrebatar tanto quanto eu pelos meandros do IHGB e seus segredos.
À Márcia Gonçalves, professora querida que me inseriu no contexto do Brasil-Império
na graduação e na paixão pelas histórias de vida no mestrado, pela disponibilidade em ler e
avaliar criticamente este trabalho. Ao professor Valdei Lopes de Araújo, agradeço pela
aceitação em compor a banca que irá julgar esta tese e pelas recomendações feitas relativas à
mesma nos vários encontros acadêmicos possibilitadores desses diálogos.
Com Tânia Bessone tenho um grande débito por ter sido quem me introduziu no mundo
da pesquisa e pelo carinho e alegria sempre espontâneos. Tampouco posso esquecer de
mencionar a professora Armelle Enders, que me acolheu em Paris quando de minha bolsa
sanduíche e cujas aulas, já em terra brasilis, foram responsáveis por eu finalmente ler Walter
Scott e Chateaubriand – algo que vinha postergando, para meu azar, como concluí, havia algum
tempo. Não posso deixar de homenagear igualmente ao professor Manoel Salgado Guimarães
(in memoriam), cujos ensinamentos aprendidos há uma década fazem parte constante de minhas
reflexões sobre a práxis de professora-historiadora.
Estendo minha gratidão aos amigos que fiz nesses anos de história, sobretudo à Júlia
Ribeiro Junqueira, por dividir comigo angústias mas também viagens e queijos finos, e à Juliana
Gagliardi, cuja perspicácia nunca suplantou a delicadeza que só mesmo uma poetiza poderia
ter. Ao Paulo Miguel Fonseca pelo afeto que sei sincero (e é recíproco) e aos amigos Ana Luíza
Falcão e Paulo Henrique da Silva Pacheco pelas risadas mesmo em tempos de crise. Impossível
não mencionar, também, de forma saudosa o Gabriel Labanca, que foi, além de um amigo
divertidíssimo, responsável por fazer-me reconsiderar muitos posicionamentos em relação à
vida e à (escrita da) história.
Às meninas do “troisième étage” da Maison du Brèsil, Ana Cláudia Soares, Érika
Sabino de Macêdo, Gracielle Ferreira Andrade, Jackeline Conrado e Luna Gonçalves, pela
prestimosidade, que se revestiu rapidamente de amizade, em terras estrangeiras. Em especial,
agradeço à Daiane Moura de Aguiar que se mostrou uma grande amiga em todos os momentos,
dos mais felizes aos mais mórbidos: não fosse por ela eu, muito provavelmente, não teria
encontrado a Sepulture de Moura no cemitério de Père-Lachaise!
Agradeço ainda a minhas amigas de sempre, Fernanda Diniz Peixoto, Juliana Carvalho
e às irmãs Bárbara e Marcela Dias Skaba, pelo apoio e pela presença. A gratidão abrange
também Rodrigo Molardi, Yuri Siqueira e Marco Antônio de Carvalho. À Simone Damasceno
da Cunha sou grata pela afeição e pelas “quentinhas” que no momento final da tese fizeram
toda a diferença.
À família Guimarães Yamashita, meu muito obrigada por me acolher como nova
integrante, pelo apoio constante e pelos rodízios de comida japonesa com muita conversa e
risadas.
Ao meu pai, in memoriam, por ter sido o primeiro historiador que amei, e à minha mãe,
a quem dedico este trabalho, por ser a grande responsável por tudo isso, em quem me inspirei,
mesmo sem o perceber, na luta e no estudo.
Essa tese é igualmente dedicada ao Jougi, maior presente que a história me
proporcionou. Sem a sua cumplicidade nos dias de calmaria mas, principalmente, nos de
“fúria”, tudo teria sido mais difícil.

Por fim, agradeço ao auxílio financeiro concedido pela Fundação Carlos Chagas Filho
de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro durante o doutorado e também no período
do sanduíche na França, que foi fundamental para que eu me dedicasse inteiramente a essa
pesquisa. Não posso deixar de agradecer também ao Programa de Pós-Graduação em História
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, por abrigar este projeto quando ele ainda era
embrionário, e particularmente à Daniela, que, sempre solícita, me acudiu em momentos
necessários.
[...] Peço-te o prazer legítimo
E o movimento preciso
Tempo, Tempo, Tempo, Tempo
Quando o tempo for propício
Tempo, Tempo, Tempo, Tempo

De modo que o meu espírito


Ganhe um brilho definido
Tempo, Tempo, Tempo, Tempo
E eu espalhe benefícios
Tempo, Tempo, Tempo, Tempo

O que usaremos pra isso


Fica guardado em sigilo
Tempo, Tempo, Tempo, Tempo
Apenas contigo e migo
Tempo, Tempo, Tempo, Tempo

E quando eu tiver saído


Para fora do teu círculo
Tempo, Tempo, Tempo, Tempo
Não serei nem terás sido
Tempo, Tempo, Tempo, Tempo [...]

Caetano Veloso

[...] falar do passado é o mais fácil que há, está tudo escrito, é só repetir,
papaguear, conferir pelos livros o que os alunos escrevam nos
exercícios ou digam nas chamadas orais, ao passo que falar de um
presente que a cada minuto nos rebenta na cara, falar dele todos os dias
do ano ao mesmo tempo que se vai navegando pelo rio da História
acima até às origens, ou lá perto, esforça-nos por entender cada vez
melhor a cadeia de acontecimentos aonde estamos agora [...], dá muito
trabalho, exige constância na aplicação [...].
José Saramago
RESUMO

MALEVAL, Isadora Tavares. Entre a “arca do sigilo” e o “tribunal da posteridade”: o


(não) lugar do presente nas produções do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. 2015.
348 f. Tese (Doutorado em História) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.

Esta tese investiga, através das produções do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
entre 1838 e 1889, sobretudo o seu periódico, os limites para a escrita da história do presente
no século XIX. Os sócios, imbuídos de um discurso que por vezes legitimava essa prática por
considerá-la pertinente em uma associação próxima ao imperador D. Pedro II, em geral a
desqualificavam em prol de uma concepção moderna de história na qual o afastamento
temporal, combinado à imparcialidade, era condição fundamental para se chegar à verdade dos
fatos, e de contingências políticas do próprio tempo. Assim, a partir da análise do cotidiano da
associação extraiu-se uma sequência de procedimentos que levou à consideração de que a força
da censura foi muito maior do que a da permissividade em relação ao tratamento de fatos
coetâneos naquele momento. A utilização de outras fontes de pesquisa, como memórias
históricas e autobiografias produzidas fora do grêmio, além da análise das produções do Institut
Historique de Paris, permitiu a ampliação da problemática e a conclusão de que se não havia
um único conjunto de regras a partir do qual o historiador devia se pautar, mesmo no IHGB,
fora dele essa diversidade era ainda maior – e nisso incluía-se o problema da história
contemporânea.

Palavras-chave: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Historiografia. Arca do sigilo.


Tribunal da posteridade. Presente. Segundo Reinado.
ABSTRACT

MALEVAL, Isadora Tavares. Between the “ark of secrecy” and the “tribunal of posterity”:
the (non) place of the present on the productions of the Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro. 2015. 348 f. Tese (Doutorado em História) - Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.

This thesis investigates, through the production of the Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro between 1838 and 1889, especially its journal, the limits for the writing of present’s
history in the nineteenth century. The associates, imbued with a speech that sometimes
legitimized this practical, considering the relevance of the close association between the
institution and the Emperor D. Pedro II, generally disqualified it on favor of a history’s modern
conception at which the temporal distance, combined with impartiality, was an essential
condition to get to the truth of the facts, in addition to the political contingencies of the own
time. Therefore, starting from the association’s daily analysis it was possible to extracted a
sequence of procedures that led to the consideration that the strength of censorship was much
bigger than the permissiveness of regarding the treatment of recents facts at this proper time.
The use of other sources of research, such as historical memories and autobiographies produced
outside the society, as well as analysis of the productions of the Institut Historique of Paris,
allowed the enlargement of the question and the conclusion that if it wasn’t one single rule
which could be guide the historian, even in IHGB, out of this association, the diversity would
be even bigger – and the problem of contemporary history would be included on it.

Key-Words: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Historiography. Ark of secrecy.


Tribunal of posterity. Present. Second Monarchy.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.......................................................................................................... 11
1 O IHGB COMO REPOSITÓRIO DO PRESENTE (1838-1850).......................... 28
1.1 O tribunal da história................................................................................................ 34
1.2 Doação e arquivamento de documentos................................................................... 47
1.3 Vetos e censuras.......................................................................................................... 57
1.3.1 As rejeições sofridas por José Ignácio de Abreu e Lima............................................. 57
1.3.2 A expulsão de Benoit Jules Mure................................................................................. 65
1.4 A “arca do sigilo”....................................................................................................... 75
1.5 O lugar do presente nas Ephemerides....................................................................... 85
2 SI LOIN, SI PROCHE: O IHGB, O INSTITUT HISTORIQUE DE PARIS E O
PRESENTE................................................................................................................. 96
2.1 Tradição ou traição?.................................................................................................. 96
2.2 Do diletantismo vieram frutos................................................................................. 103
2.2.1 As folhas periódicas.................................................................................................... 104
2.2.1.1 Do método da história................................................................................................. 104
2.2.1.2 Da Revolução.............................................................................................................. 112
2.2.2 Os congressos anuais.................................................................................................. 118
2.2.2.1 Da finalidade da história e suas utopias....................................................................... 122
2.2.2.2 Da confiabilidade do historiador................................................................................. 127
2.2.2.3 Da história como filosofia........................................................................................... 130
2.2.2.4 Do presente que bate à porta........................................................................................ 133
3 O IHGB COMO PREPARADOR DA HISTÓRIA (1850-1889)........................... 139
3.1 A era das consolidações............................................................................................. 139
3.1.1 Um forte combatente às narrativas sobre o presente.................................................... 142
3.1.2 O não lugar dos Fastos do feliz e glorioso reinado do Sr. D. Pedro II........................ 151
3.2 O presente que se tornou passado........................................................................... 158
3.2.1 A Revolução Pernambucana....................................................................................... 160
3.2.2 A Independência......................................................................................................... 166
3.2.3 As rebeliões do período regencial e a Farroupilha..................................................... 176
3.3 O presente sobre o qual era permitido tratar........................................................ 186
3.3.1 A Guerra do Paraguai................................................................................................. 186
3.3.2 A Abolição................................................................................................................. 200
4 O IHGB COMO INQUIRIDOR DO PASSADO RECENTE................................ 210
4.1 Dezessete em pauta.................................................................................................... 210
4.1.1 Quando a história narrada é a história vivida............................................................... 216
4.1.2 Quando se fala a serviço da posteridade...................................................................... 228
4.2 Leituras da Sabinada................................................................................................ 234
5 ESCRITAS DE SI PARA A POSTERIDADE........................................................ 246
5.1 Precaução na escrita autobiográfica de Caetano Lopes de Moura........................ 247
5.1.1 O homem em meio a um turbilhão............................................................................. 249
5.1.2 O homem em meio aos livros..................................................................................... 265
5.1.3 Os leitores da autobiografia........................................................................................ 273
5.2 Nostalgia e redenção nas Memórias do Visconde de Taunay................................. 277
5.2.1 O adeus ao IHGB........................................................................................................ 279
5.2.2 O retorno da “arca do sigilo”....................................................................................... 286
5.2.3 As Memórias............................................................................................................... 290
5.2.3.1 O Brasil experimentado pelo militar e a crítica a José de Alencar............................... 290
5.2.3.2 Antônia, a guaná......................................................................................................... 299
5.2.3.3 O Conde d’Eu e os momentos finais da guerra.......................................................... 305
5.2.3.4 As intempéries da memória........................................................................................ 311
CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................. 321
REFERÊNCIAS....................................................................................................... 325
ANEXO A – Memórias históricas publicadas na Revista (1850-1889)................ 343
ANEXO B - Crônicas ou outros gêneros publicados na Revista (1850-1889)..... 347
ANEXO C - Sepulture de Moura no cemitério de Père-Lachaise, Paris.............. 348
11

INTRODUÇÃO

Poucas questões movem tanto o ser humano quanto o segredo. O medo de que
algo considerado tão terrível a ponto de merecer as mais capciosas tentativas de
esconderijo seja exposto faz parte de mitos e narrativas que nos constituem enquanto
sociedade. Na dúvida sobre o conhecimento de alguma informação que possa ser
perigosa, o ideal é mantê-la em sigilo.
Idealiza-se o que não está exposto, como se, somente por esse fato, crescesse em
importância em relação àquilo que é aparente1. A invisibilidade planejada de algo provoca
os nossos ânimos mais primitivos: é preciso fazer ver, saber o que não querem deixar que
se saiba. Não é à toa que a curiosidade é o início de praticamente todo impulso humano
cognitivo, desde as invenções de máquinas cada dia mais rebuscadas, até teses de
doutorado etc.
Este caso não foi diferente. Em 2011, no momento em que iniciei meu
doutoramento, “segredo” parecia ser a palavra da moda. Ao menos para mim, que me
deixava guiar por ela e seus sinônimos. A atenção redobrava-se quando estava associada
a outros termos, como “história”, “política nacional” e, provavelmente o mais atraente
deles, “presente”. Imersa no estudo da retórica oitocentista do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro (IHGB) que limitava, na maior parte das vezes, ao sigilo o tempo
presente, inadvertidamente, me deparava com chamadas como essas:
O impeachment do ex-presidente e atual senador Fernando Collor (PTB-AL)
foi retirado dos painéis de fatos históricos da nova galeria do chamado “túnel
do tempo” do Senado, inaugurada nesta segunda-feira (30) pelo presidente da
Casa, José Sarney (PMDB-AP).
Para Sarney, o impeachment de Collor “foi um acidente que não deveria ter
acontecido” e, por tal motivo, foi retirado da lista de fatos expostos nos 16
painéis da galeria2.

Para Sarney, “questões históricas devem ser encerradas”. “Acho que os nossos
antepassados nos deixaram um país com fronteiras tranquilas, sem nenhum
atrito com países que tenham fronteira com o Brasil. A nossa história foi
construída não com batalhas, foi construída com a capacidade de os nossos
antepassados de negociarem a formação do país, de maneira que tenho muita

1
SIMMEL, George. “A sociologia do segredo e das sociedades secretas”. Revista de Ciências Humanas.
Florianópolis: EDUFSC, Vol. 43, N. 1, p. 238, abr. 2009.
2
Disponível em <http://g1.globo.com/politica/noticia/2011/05/senado-retira-impeachment-de-collor-da-
nova-galeria-de-fatos-historicos.html>. Acesso em: 04 jul. 2011.
12

preocupação de que hoje tenhamos oportunidade de abrir questões históricas,


que devem ser encerradas para [sempre] em um interesse nacional” 3.

No texto de Sarney [...] há uma série de situações que poderiam justificar a


manutenção do sigilo eterno sobre documentos. “Pôr em risco a vida, a
segurança e a saúde da população” é um dos exemplos de situações em que
estaria justificada a renovação do sigilo4.

Retirando-se alguns nomes e situações específicas da história do Brasil dos


séculos XX e XXI – “Fernando Collor”, “José Sarney”, “impeachment” –, as afinidades
dessas notícias com meu objeto de estudo são imensas. Ainda que a preocupação nos três
exemplos citados acima não fosse de foro historiográfico, mas notadamente político, as
propostas de silenciamento seguiam argumentações aproximadas às que encontrei na
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, minha principal fonte de pesquisa.
Em que pese também a outra ordem de motivação para o sigilo nos casos mais
atuais, relacionada principalmente ao contexto da política brasileira após o período da
ditadura militar5, as justificativas para propor o ocultamento remontam à constituição do
Estado nacional no oitocentos, vislumbrada, desde há muito, como branda e sem
traumas6. A fala de José Sarney, veiculada na segunda notícia, nesse sentido, é
contraditória em um aspecto: retoma a identidade construída penosamente ao longo do
século XIX e consubstanciada no XX, calcada na idealização de nossa “pacífica”
formação nacional, ao mesmo tempo em que demonstra preocupação justamente com a
abertura de determinados arquivos, que exporiam questões que não devem ser lembradas,
em função do “interesse nacional”. O último trecho também exibe a mesma inconsistência

3
Disponível em <http://g1.globo.com/politica/noticia/2011/06/governo-ainda-nao-tem-posicao-sobre-
sigilo-eterno-de-documentos-diz-lider.html>. Acesso em: 04 jul. 2011.
4
Disponível em <http://g1.globo.com/politica/noticia/2011/06/nao-podemos-fazer-o-wikileaks-da-
historia-do-brasil-diz-sarney.html>. Acesso em: 06 jul. 2011.
5
Apesar de, com relação à segunda citação, estar em pauta também a questão das fronteiras com
documentos que remontam à Guerra do Paraguai e que ainda se encontravam, na ocasião, em sigilo.
6
A discussão sobre a permanência da categoria de documentos sigilosos teve início com o projeto
enviado ao Congresso pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 2009. No ano seguinte, a
Câmara aprovou o texto com uma modificação substancial: limitava a uma única vez a possibilidade de
renovação do prazo de sigilo. Os documentos classificados como “ultrassecretos” deviam ser divulgados
em, no máximo, 50 anos. Os ex-presidentes da República Fernando Collor e José Sarney, contudo,
defenderam a manutenção do sigilo eterno de documentos históricos oficiais do Brasil, sobretudo aqueles
que dizem respeito às relações internacionais/diplomáticas com os países vizinhos. Apesar dessa
oposição, o Senado aprovou o fim do sigilo eterno de documentos, em outubro de 2011, e a então
presidente Dilma Rousseff sancionou a lei no mês seguinte. Cf. os links
<http://g1.globo.com/politica/noticia/2011/10/senado-aprova-fim-do-sigilo-eterno-de-documentos.html>;
<http://noticias.r7.com/brasil/noticias/dilma-sanciona-lei-que-acaba-com-sigilo-eterno-de-documentos-
20111118.html>. Acessados em: 05 jan. 2015.
13

dos argumentos de Sarney, que considerava apropriada a condução de determinados


documentos ao “sigilo eterno”. Se o Brasil possui, como disse o então senador, fronteiras
bem definidas e estabelecidas em conformidade com os países limítrofes e se nossa nação
é assentada em bases sólidas e incontestáveis, por que esconder tais informações? E em
que medida estas poriam em risco “a vida, a segurança e a saúde” de nossa população?...
Não se tratava, por outro lado, de refletir sobre a prática historiográfica, nos
termos em que esta tese se propõe a fazer. As colocações de José Sarney se enquadram
muito mais na lógica da política atual e, até certo ponto, na preocupação com a proteção
individual. Possivelmente, tais documentos que, segundo ele, deviam ser postos em
“sigilo eterno”, seriam testemunhos de tempos em que sua atuação política já era notória.
Sem necessitar aprofundar-se demasiadamente na biografia do senador, é sabida sua
longa trajetória no poder, que remonta ao regime ditatorial, culminando na presidência
do país, entre 1985 e 1990, e em sua alta posição no Senado federal desde então.
Entretanto, as informações contidas no primeiro recorte apresentado acima não
deixam de se enquadrar em um tipo de perspectiva historiográfica. Ainda que não possa
ser alinhada à posição de história acadêmica, produzida junto a universidades e centros
de pesquisa, é de se notar que a construção de uma galeria do “túnel do tempo” pelo
Senado tivesse a intenção de “contar uma história”, por meio de fotos e comentários, da
instituição. Mas, nesse caso, a opção pelo ocultamento de um fato de importância capital
é justificada pela simples ideia de que “não devia ter acontecido” e, por isso, não havia
porque ser contado. A fraqueza dessa argumentação foi tamanha que, a despeito dos
esforços de Sarney, o impeachment do ex-presidente Fernando Collor passou a figurar na
galeria. Há limites até para o segredo.
Essas polêmicas podem ser inseridas no contexto mais amplo de busca pelo
reconhecimento dos crimes cometidos durante os regimes ditatoriais no Brasil, através da
criação da Comissão Nacional da Verdade (CNV)7, em 2012, e de contestação da Lei da
Anistia, sobretudo pelas famílias que tiveram seus entes torturados e mortos no período
de 1964 a 1985 por agentes militares8. A abertura dos arquivos está no centro dessas

7
“A Comissão Nacional da Verdade foi criada pela Lei 12528/2011 e instituída em 16 de maio de 2012.
A CNV tem por finalidade apurar graves violações de Direitos Humanos ocorridas entre 18 de setembro
de 1946 e 5 de outubro de 1988”. A legislação da CNV está disponível em
<https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12528.htm>. Acesso em: 05 jan. 2015.
8
Segundo essa legislação, promulgada em agosto de 1979, “É concedida anistia a todos quantos, no
período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos
ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores
da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos
14

discussões, entendendo-se a documentação que ainda não pode ser consultada como o
meio para se alcançar a verdade dos fatos. Colaborar com possíveis julgamentos,
penalizando culpados e inocentando vítimas, e fazer conhecer o que se passou com
centenas de desaparecidos, são algumas das repercussões esperadas pelos grupos que
pressionam nos últimos anos pelo fim do sigilo. Seu objetivo é “fazer justiça”, não aquela
evocada tão comumente pelo IHGB oitocentista, sob a lógica do “tribunal da
posteridade”, mas uma justiça do presente no presente. Ainda que não vivamos mais o
período ditatorial, sua história ainda é demasiadamente próxima. Aqueles que o
vivenciaram, sobretudo os seus opositores, ainda têm de conviver com os traumas de um
passado que não passou totalmente. Essa tônica é confirmada no recente discurso da
presidente Dilma Rousseff, durante a cerimônia de entrega do Relatório da CNV:
“Mereciam a verdade aqueles que continuam sofrendo como se morressem de novo, e
sempre, a cada dia”9. A despeito do esforço que tal tarefa exigirá, faz-se indispensável
que o doloroso passado recente saia dos arquivos para figurar em dissertações e teses,
livros didáticos e autos judiciais.

Nisto consiste a tese que ora se apresenta: a dificuldade em se tratar de uma


história próxima. Os dados até aqui levantados em relação às discussões mais atuais sobre
o assunto, entretanto, servem apenas como reflexão inicial. Meu objeto de estudo, que
será inventariado ao longo dos próximos cinco capítulos, centra-se num período um
pouco mais longínquo, de 1838 a 1889. Seu foco, portanto, não poderia ser a ditadura
militar brasileira, mas a associação de história, o IHGB, criada durante as Regências, e
sua opção, quase constante, pelo sigilo em relação ao tempo presente.
Também como essas atuais querelas em torno da abertura ou não de determinados
documentos postos em segredo de Estado, no passado o IHGB evitou constantemente
tornar públicas informações sobre a história mais atual que colocasse em xeque a “paz
nacional”. Só que, naquele tempo, o medo era outro, da desintegração do recém-
construído Estado brasileiro. A fraqueza da unidade do Império constituído por D. Pedro

Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com
fundamento em Atos Institucionais e Complementares e outros diplomas legais”. A Lei n. 6.683 está
disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6683.htm>. Acesso em: 05 jan. 2015.
9
Notícia de 10 de dezembro de 2013, veiculada no Portal G1. Disponível em
<http://g1.globo.com/politica/noticia/2014/12/dilma-chora-ao-receber-relatorio-final-da-comissao-da-
verdade.html>. Acesso em: 06 jan. 2015.
15

I em 1822 repercutiu por muito tempo e foi matéria de atenção dos membros do Instituto
durante boa parte do oitocentos. Determinados temas, por esse motivo, passaram a
constituir os anais de uma “história maldita”, por assim dizer. A repulsa em tratar do
presente, portanto, se fazia por meio de escolhas – tal como hoje.
Que escolhas foram essas? Quais as justificativas para realizá-las? No capítulo 1,
tento demonstrar um pouco dessas apreensões ao longo da primeira década do IHGB. A
forte insegurança dos anos de 1830 e de 1840, devido à crescente insatisfação originada
pela política regencial e a consequente explosão de revoltas em várias províncias do
Império, repercutiu silenciosamente nas produções do Instituto. A análise das atas das
sessões promovidas pela agremiação ao longo daquele período, publicadas em seu
periódico, possibilitou o acúmulo de amostras da imensa dificuldade que existia entre os
associados de discutir o tempo presente através de uma abordagem historiográfica. A
própria percepção de história que tinham naquele momento vivia um período que pode
ser considerado como de transição: a necessidade, que invocavam, de recuo temporal (o
tão aclamado “distanciamento”) como condição sine qua non para a escrita da história se
articulava com a obrigação de abordar o presente, de modo a glorificar as ações do reinado
do patrono da instituição, D. Pedro II. Novos modelos de escrita da história conviviam,
nesse sentido, com formas mais tradicionais, herdeiras da Antiguidade clássica10. Como
resultado de tantos estímulos contraditórios, observo uma série de projetos, nem sempre
cumpridos, que caminhavam em ambas as direções. De um lado, por exemplo, o da “arca
do sigilo” (1847), que apontava para um esforço de materializar a segurança necessária a
determinados escritos sobre os acontecimentos recentes sem prejuízo da atualidade (expor
pessoas a constrangimentos desnecessários ou trazer à tona ódios há pouco apaziguados),
nem da posteridade (que receberia a documentação necessária para elaborar uma história
sobre aquele tempo). Do outro, a escrita das Ephemerides (1839), espécie de prelúdio de
história do tempo presente11 dentro do Instituto, proposta por ninguém menos que o
secretário perpétuo da instituição, Januário da Cunha Barbosa.

10
Para François Hartog, o início do século XIX é marcado por um conflito entre dois regimes de
historicidade. No caso francês, ao qual o autor se detém, havia uma concomitância entre uma nova
maneira de escrita da história e outra, cultivada desde os autores antigos, através da fórmula da historia
magistra vitae. Ver, do autor: “Temps et histoire. ‘Comment écrire l’histoire de France?’”. In: Annales.
Histoire, Sciences Sociales, n. 6. P. 1221, 1995. Disponível em <http://www.persee.fr>. Acesso em: 06
jan. 2015.
11
Ainda que seja sabido que as discussões sobre a história do tempo recente são muito próximas –
remontam ao surgimento do Instituto de História do Tempo Presente na França em 1978. Para a ideia de
um princípio de história do tempo presente no IHGB oitocentista, ver CÉZAR, Temístocles.
16

Do cotidiano da associação, foi possível extrair uma sequência de procedimentos


que tornou possível a compreensão de que a força da censura foi muito maior do que a da
permissividade em relação ao tratamento de fatos coetâneos. A prática de arquivamento,
presente desde os primórdios do IHGB, foi a ação necessária e recorrentemente utilizada
naquele momento inicial, bem como o veto à publicação de textos de temática
considerada imprópria pelo recorte temporal escolhido. A censura e a rejeição, no entanto,
não eram práticas voltadas apenas a textos ou fontes sobre o presente; acabaram
encaminhadas também a pessoas – por isso, as saídas de José Ignácio de Abreu e Lima
(1844) e de Benoit Jules Mure (1847) da agremiação mereceram nosso destaque.
Por outro lado, procurei demonstrar proibições menos contundentes (ou físicas),
mas que figuraram por meio de usos retóricos com as expressões “tribunal da história” e
“tribunal da posteridade”. Nesse ponto, a associação da disciplina à prática judicial é
notória12. Em muitos casos, a aplicação desses termos emergiu para dar aplicabilidade à
lógica arquivística da associação no tocante aos conturbados acontecimentos a partir do
começo do século, como 1817, 1822 e 1831, sem contar as rebeliões do período regencial
e o início da Farroupilha. A recolha de indícios desses acontecimentos formaria o
conjunto de dados a serem disponibilizados aos homens do futuro, estes sim capazes de
julgar com competência e imparcialidade a tumultuada história da primeira metade do
oitocentos.
As definições historiográficas a partir das quais os sócios do IHGB baseavam-se
nos primórdios da instituição possivelmente teriam a ver com modelos escolhidos como
paradigma. Nesse caso, além da referência recorrente a determinados autores e suas

“Presentismo, memória e poesia. Noções da escrita da História no Brasil oitocentista”. In: PESAVENTO,
Sandra. Escrita, linguagem, objetos: leituras da história cultural. Bauru: EDUSC, 2004.
12
Essa relação figura desde a Antiguidade. Tucídides entendia a história como uma investigação, no
sentido judicial. Não à toa, o “indício” era por ele entendido como uma testemunha que deveria sofrer
questionamento, da mesma forma que um juiz faria em um tribunal. Já Luciano de Samósata inferia que o
historiador deve julgar, mas de uma maneira específica: “[...] não como os juízes que examinam um fato
passado para dar uma solução no presente, mas como uma espécie de juiz que, fazendo a história do
presente, não pode pôr sua esperança senão no futuro, uma vez que deve ser exatamente o contrário dos
que são elogiados e se guiam pela adulação”. Numa análise mais atual sobre o assunto, Jean-Clément
Martin indica que a diferença entre a atividade do historiador e a do juiz está nas diferentes conexões que
eles estabelecem com outros domínios (no caso do primeiro, com a memória e a construção de identidade,
e, no último, em relação à paz social) e na temporalidade abarcada: o juiz age conforme a urgência,
enquanto o historiador necessita de tempo e recuo. Cf. HARTOG, François. Evidência da história: o que
os historiadores veem. Belo Horizonte: Autêntica, 2013a, p. 81-82; BRANDÃO, Jacyntho Lins Brandão.
“A história justa”. In: SAMÓSATA, Luciano. de. Como se deve escrever a história. Tradução, notas,
apêndices e ensaio de Jacyntho Lins Brandão. Belo Horizonte: Tessitura, 2009, p. 144; e MARTIN, Jean-
Clément. “O tratamento histórico frente à verdade judicial. Juízes e historiadores”. In: Direito e
Sociedade, n. 38, p. 7, 1998.
17

visões de história pelos membros, é possível supor que algumas associações congêneres
serviram de exemplo para o nosso Instituto. Por isso, no capítulo 2 procurei analisar as
produções do Institut Historique de Paris (IHP), tido como a maior fonte de inspiração
para o estabelecimento do IHGB. Recorri ao exame do Journal de l’Institut Historique,
das publicações avulsas decorrentes dos congressos de história por ele organizados, além
das atas manuscritas das reuniões da instituição13, com o intuito de investigar a existência
de limites impostos à história contemporânea pela mesma e, caso a constatasse, até que
ponto ela teria servido de parâmetro para as censuras promovidas pelo IHGB em relação
ao tempo presente.
De um modo geral, a historiografia francesa do início do século XIX possuía
menos restrições a narrativas sobre o tempo próximo porque havia uma necessidade
premente em tratar da Revolução Francesa. A própria lógica da história necessitava dessa
reflexão, tendo em vista que 1789 rompeu não só com a ordem política e social, mas
inclusive com a cultura historiográfica14. O IHP não foi estranho a esse processo e, ainda
que desestimulasse discussões “partidárias” sobre fatos mais recentes em suas produções,
não deixou de abordar o movimento revolucionário e suas consequências mais imediatas.
Da instituição francesa, portanto, a primeira geração do IHGB apropriou-se de outros
ideais que não o da recusa à história do presente.

O capítulo 3 retoma o IHGB em duas temporalidades-chave: as décadas de 1850


e 1860, que eu denomino de “era das consolidações”, por ter sido o momento em que a
governabilidade de D. Pedro II assumiu ares mais precisos e equilibrados em relação à
política e à unidade nacionais; e os anos de 1870 a 1880, compreendidos por boa parte da
historiografia como o início da derrocada do Império do Brasil. Dentro desse amplo
recorte, utilizei os dados contidos na Revista do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro para investigar se houve mudanças na forma de os sócios se relacionarem com
o tempo presente naqueles dois períodos, cujas problemáticas contextuais eram já outras
que não aquelas dos primórdios da instituição.

13
Essas fontes foram consultadas na Bibliothèque de l’Arsenal, em Paris, durante o período em que
realizei o doutorado sanduíche financiado pela FAPERJ.
14
KOSELLECK, Reinhart. “Historia Magistra Vitae – Sobre a dissolução do topos na história moderna
em movimento”. In: _____. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de
Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006, p. 50, p. 52 e p. 58-59.
18

De fato, o presente é uma categoria provisória. Por isso, na primeira parte do


capítulo, procurei debater sobre esse movimento, que transforma o presente em passado.
Uma série de temáticas negadas peremptoriamente pelas comissões do IHGB nas décadas
iniciais, por conta de sua delimitação temporal, passa a figurar como matéria de estudos,
até certo ponto especializados, no periódico da associação a partir de meados do
oitocentos. A Revolução Pernambucana, a Independência, as rebeliões do período
regencial e a Farroupilha superaram, ainda que muito gradativamente, o território do
presente. Assim, além da argumentação que validava tais matérias como objeto de estudo
historiográfico (pelo distanciamento que promoveria a imparcialidade ou pela
inteligibilidade que só o recuo temporal poderia garantir), o arrefecimento de
constrangimentos sociais (devido à morte de quem atuou ativamente em boa parte
daqueles eventos) e a mudança da situação política do país colaboraram para entender a
medida que define o que seria ou não presente e, nesse sentido, o que faria ou não parte
do ofício do historiador.
Essa medida, contudo, nem sempre é precisa. No mesmo momento em que
homens como Manoel Duarte Moreira de Azevedo mergulhavam na análise dos
acontecimentos marcantes das primeiras quatro décadas daquele século, outros, como
Joaquim Manuel de Macedo, permaneciam rechaçando as narrativas sobre a atualidade.
A negação à história do Segundo Reinado era, muitas vezes, o tópico com que todos
concordavam.
A imprecisão acima referida pode ser caracterizada pelos exemplos com os quais
finalizo o capítulo: a Guerra do Paraguai e a abolição da escravatura. Nesses casos, a
premissa tão comumente adotada pelo IHGB em relação ao tempo presente é
momentaneamente esquecida. Sobretudo no que diz respeito à Guerra do Paraguai, a
tensão entre as demandas epistemológicas da narrativa histórica e as prerrogativas
políticas resolve-se a partir da inserção da disciplina na esfera pública. Ou, de forma mais
simplificada, entra em pauta o papel do historiador como agente de seu tempo15, disposto
a colaborar com o ideal nacional frente ao inimigo externo.

15
TIBURSKI, Eliete. Escrita da história e tempo presente no Brasil oitocentista. 2011. Dissertação
(Mestrado em História) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2011, p. 96.
19

Era movediço o terreno em que pisava o historiador – este “novo personagem no


mundo das letras”16 –, mesmo para quem estava dentro do Instituto que havia buscado,
desde sua fundação, delimitar o conjunto de procedimentos próprios à disciplina. Ao
averiguar as discrepâncias de tratamento em relação a um mesmo tema, desmistifica-se a
ideia de que o IHGB era uma esfera homogênea, produtora de um discurso único e
coerente. Discursos justapostos e contraditórios faziam parte da rotina da agremiação,
como foi o caso da publicação nas páginas da Revista do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro de quatro trabalhos que abordavam o mesmo assunto, sob diferentes prismas
políticos, históricos e metodológicos. Refiro-me à Sabinada, que, na década de 1880 foi
alvo de investigação por Joaquim Portela, Moreira de Azevedo e Augusto Vitorino Alves
do Sacramento Blake.
A comparação entre essas memórias foi abordada no capítulo 4, que inicialmente
trouxe à tona o cotejo de outros dois trabalhos, desta vez sobre a Revolução
Pernambucana, feitos por sócios da agremiação. Só que, diferentemente do caso da
Sabinada, uma dessas publicações não foi chancelada pelo IHGB, ou seja, não passou
pelo crivo da comissão de redação de seu periódico ou da comissão de história. O uso,
portanto, da História da Revolução de 1817 de Pernambuco, escrita pelo Monsenhor
Francisco Muniz Tavares, como fonte, amplia a compreensão de como esses indivíduos
se portavam fora do espaço do Instituto em relação à problemática da história do tempo
presente e às regras do “tribunal da posteridade”. Comparada ao artigo que saiu na revista
do IHGB intitulado “Luís do Rego e a posteridade”, de Joaquim Fernandes Pinheiro, a
história de Muniz Tavares estabeleceu outros protocolos de leitura para o movimento de
1817, inclusive no que diz respeito ao julgamento dos atores que participaram de seu
drama e à legitimidade das fontes que seriam indispensáveis ao historiador que se
debruçasse sobre o assunto. O fato de ter sido escrita pouco tempo depois dos
acontecimentos e de seu autor ter sido um personagem atuante neles também é um
diferencial em relação ao que a instituição, de forma geral, acordava para a escrita da
história do Brasil.

16
O historiador passava a ser aquele que compartilhava com outros especialistas de características e
tradições, ao mesmo tempo em que desenhava uma nova especialidade para a atividade letrada – “[...]
escrever a história do Brasil a partir de procedimentos adequados, capazes de assegurar a verdade do
narrado, segundo os protocolos em construção que começa[vam] a vigorar para esse tipo de escrita
peculiar”. GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. Livro de fontes de historiografia brasileira. Rio de
Janeiro: EdUERJ, 2010, p. 12.
20

Assim, se não é possível negligenciar a inexistência, em todo o século XIX, de


um único conjunto de regras a partir do qual o historiador devia se pautar, mesmo no
IHGB, fora dele essa diversidade era ainda maior. É notável, nesse aspecto, que, mesmo
aqueles que tiveram alguma proximidade com a instituição, longe dela estabeleciam outro
tipo de relação com a historiografia em geral, e contemporânea, em particular. Indo ao
encontro dessa problemática, no capítulo 5 apresentei produções de outro tipo de gênero
que, a esse despeito, aprimoram a discussão proposta pela tese, no sentido de que são
histórias de si escritas por sócios da instituição17. Conforme argumentei ao longo do
capítulo, (auto)biografias podem, em certa medida, ser consideradas narrativas sobre o
tempo presente: por mais tempo que uma pessoa viva, a história por ela contada
inescapavelmente é contemporânea.
Além disso, tanto a “Biografia do Dr. Caetano Lopes de Moura escrita por ele
mesmo”, quanto as Memórias do Visconde de Taunay foram elaboradas com a decisão
de se fazerem póstumas e, como tal, lidas pelo menor número possível de pessoas
contemporâneas. Lopes de Moura iniciou a tarefa por incumbência de D. Pedro II e
endereçou-lhe a narrativa sob a forma de carta com a recomendação de que sua publicação
só se fizesse após sua morte. Já Taunay, aparentemente, empreendeu a tarefa por conta
própria e teve muito mais liberdade em tratar de assuntos polêmicos do que Lopes de
Moura, não apenas por não possuir um interlocutor direto com o peso de nosso segundo
imperador, mas porque projetava a divulgação de seus escritos em um tempo ainda mais
longínquo – cerca de cinquenta anos no futuro. Para conseguir esta façanha, a biografia
do Visconde foi recolhida na “arca do sigilo”, no momento em que esta, finalmente,
tornou-se uma realidade, logo após o golpe republicano.

***

Cheguei a essa conformidade de escrita depois de muito pensar sobre as hipóteses


iniciais que figuravam no meu projeto elaborado em 2010. Do contato com as fontes,
evidentemente, muito foi modificado até alcançar o formato que ora sai à luz. Aquilo que
me parecia, de início, como totalmente acertado foi tomando contornos mais complexos
à medida que articulei leituras teóricas à constante análise documental. Se antes me

17
Na verdade, por um sócio correspondente e um antigo sócio.
21

parecia evidente o “não-lugar”18 do presente nas produções do IHGB entre 1838 e 1889,
hoje atenuar essa certeza se afigura não só como uma premissa interessante, mas como
algo muito mais aproximado à realidade sobre a qual me debrucei ao longo desses quatro
anos.
Evidentemente, essa “nova” proposição não invalida boa parte das reflexões que
fiz no início. Sigo entendendo que houve uma substancial transformação em fins do
século XVIII e início do XIX no que diz respeito ao que se compreendia por história. Se
até então o topos19 magistra vitae dava conta das apreensões desse tipo de atividade, a
partir daquela passagem temporal houve uma crescente disciplinarização da história e sua
percepção de “ciência factual e objetiva” tomou, pouco a pouco, o lugar da função
moralizante implícita na chave ciceroniana20. Esse desenvolvimento conceitual – cuja
modificação ocorre no significado do conceito, não necessariamente na palavra, que
seguiu, em português, sendo “história”21 – trouxe consigo rupturas nos procedimentos
técnicos adotados por quem se dedicasse então ao ofício.
Uma delas foi a descrença nos sentidos humanos e na sua capacidade reveladora22.
Dentro dessa chave, a historiografia moderna mobilizou pressupostos que deviam
deslegitimar, por exemplo, a testemunha ocular. Só que, diferentemente do que pensei a
priori, seu uso continuou sendo feito. Conquanto o historiador moderno não deva narrar

18
Importante informar que meu uso da expressão “não-lugar” foge à categoria antropológica instituída
por Marc Augé, segundo a qual “O não-lugar é diametralmente oposto ao lar, à residência, ao espaço
personalizado. É representado pelos espaços públicos de rápida circulação – como aeroportos, estações de
metrô e pelas grandes cadeias de hotéis e supermercados”. Para mim, neste trabalho, “não-lugar” indica,
tão somente, a reflexão sobre se haveria ou não espaço para o tempo presente nas produções do IHGB.
Cf. AUGÉ, Marc. Não-lugares. Campinas, SP: Papirus, 1994.
19
“Topos”, categoria muito utilizada nas análises de Reinhart Koselleck, é um lugar predefinido “[...]
onde podemos articular a experiência”. Cf. ARAUJO, Valdei Lopes de. “Sobre a permanência da
expressão magistra vitae no século XIX brasileiro”. In: NICOLAZZI, Fernando Nicolazzi et. al. (Orgs.).
Aprender com a história?: o passado e o futuro de uma questão. Rio de Janeiro: FGV, 2011, p. 133-134.
20
O que não significa que ela tenha sido abandonada completamente. Como argumenta Valdei Lopes de
Araujo, mais do que dizer que a história moralizante desapareceu no século XIX, deve-se pensar na
maneira como ela se perpetuou naquele contexto – como ela foi repensada para dar conta das novas
aspirações. A esse respeito, conferir Ibidem, p. 131.
21
Ibidem, p. 145.
22
ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2009, p. 84-85. Para a autora, o
moderno conceito de história remonta aos séculos XVI e XVII.
22

o que “viu e viveu”23, ele pode empregar o testemunho como prerrogativa de autoridade24.
Porém, não se pode negar que há uma série de obstáculos decorrentes dessa utilização,
tendo em vista o grande impacto emocional daquele que ao mesmo tempo observa e atua
sobre os acontecimentos. Isso dificultaria, ainda, a imparcialidade, que desde tempos
longínquos é um dos fundamentos sobre os quais se deve assentar um trabalho de
história25. Sem embargo, seu uso é ratificado pela tradição antiga, que remonta a
Tucídides, segundo a qual não se deve abrir mão da crítica incessante aos testemunhos26,
assim como a qualquer outro tipo de fonte.
Por outro lado, são inegáveis as novidades experimentadas pela história entre os
séculos XVIII e XIX27. A catalogação de fontes que viabilizariam as grandes sínteses
partia, agora, de um lugar: o historiador passava a ser identificado a um grupo ou a uma
instituição que o certificava enquanto profissional28. Ele, dentro desse quadro, não podia
ser mais o panegirista de outrora, ou mesmo o cronista que se limitava a descrever,
friamente, os sucessos contemporâneos. Sua obra passava a ser avaliada por um grupo de
iguais, a partir de novas regras, que levavam em conta a imparcialidade com que

23
Eric Hobsbawm, por conta dessa problemática, fez referência às dificuldades pelas quais passou ao
escrever sobre o tempo presente em A era dos extremos: “[...] ninguém pode escrever sobre seu próprio
tempo de vida como pode (e deve) fazer em relação a uma época conhecida apenas de fora, em segunda
ou terceira mão, por intermédio de fontes da época ou obras de historiadores posteriores. Meu tempo de
vida coincide com a maior parte da época de que trata este livro e durante a maior parte de meu tempo de
vida - do início da adolescência até hoje - tenho tido consciência dos assuntos públicos, ou seja, acumulei
opiniões e preconceitos sobre a época, mais como contemporâneo que como estudioso. Este é um dos
motivos pelos quais, enquanto historiador, evitei trabalhar sobre a era posterior a 1914 durante quase toda
a minha carreira, embora não me abstivesse de escrever sobre ela em outras condições”. HOBSBAWM,
Eric. A era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Cia. das Letras, 1995, p. 7.
24
TIBURSKI, Eliete. Op. cit., 2011, p. 85.
25
Desde, pelo menos, Cícero e Luciano de Samósata. OLIVEIRA, Maria da Glória de. “Brasileiros
ilustres no tribunal da posteridade: biografia, memória e experiência da história no Brasil oitocentista”.
VARIA HISTORIA. Belo Horizonte, vol. 26, n. 43, p. 289, jan/jun 2010.
26
Tucídides também entendia que o historiador devia narrar aquilo que ele mesmo vivenciou (algo que
denominava de “autópsia”) e que esse era o tipo de história mais confiável. Quando isso não era possível,
o autor grego indicava a possibilidade de uma “autópsia indireta”, ou seja, o uso de testemunhos. Ver
HARTOG, François. Op. cit., 2013a, p. 13-14.
27
ARAUJO, Valdei Lopes de. Op. cit., p. 143. A história moderna passou a aliar a tradição antiquária e
erudita, centrada na coleta e estudo crítico de documentos, às preocupações filosóficas desenvolvidas no
século XVIII e à forma narrativa.
28
Sobre o “lugar social” do historiador, ver CERTEAU, Michel de. “A operação histórica”. In: Jacques
Le Goff & Pierre Nora (org.). História: Novos Problemas. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988, p. 18.
23

desenvolveu seu trabalho, as fontes nele utilizadas e a crítica a partir da qual direcionou
a investigação29.
É necessário assumir que, dentro desse quadro, o estudo do tempo presente não
foi completamente excluído das preocupações dos historiadores. O caso é que ele se
tornou cada vez menos conceituado, pois generalizou-se uma crença, entre aqueles que
se propunham a discutir sobre a disciplina, de que o distanciamento temporal em relação
aos fatos narrados garantia uma apreensão mais inteligível dos acontecimentos, além de
imparcial e, portanto, fidedigna do objeto de pesquisa. Por isso a história do presente
tornou-se cada vez mais fraca e o passado deixou de ser reconstruído com base
unicamente na memória e na tradição oral, passando a sê-lo através de procedimentos
críticos30.
Essas constatações apontam para a dificuldade em delinear o campo
historiográfico na passagem entre os séculos. Justamente por esse motivo, a criação do
IHGB em 1838 representou um novo momento na tentativa de definição do ofício do
historiador. Não é à toa, portanto, que determinados tópicos foram privilegiados ao longo
dos primeiros anos da instituição. Um deles, por exemplo, buscava delimitar as
temporalidades que integrariam a história do Brasil. Muito foi discutido a respeito desse
esforço de periodização e, ainda assim, conviviam dentro do Instituto diferentes
perspectivas daquilo que comporia os anais da história antiga, moderna e contemporânea
do Brasil31.
Tais problemáticas configuram uma verdadeira disputa pela reconstrução do
passado, tal como concluiu Manoel Salgado Guimarães32. Isto explica porque os sócios
continuaram, durante todo o período monárquico, a utilizar a máxima ciceroniana para
demonstrar a validade da disciplina33, ao passo que estimulavam uma compreensão da

29
ARAUJO, Valdei Lopes de. A experiência do tempo. Conceitos e narrativas na formação nacional
brasileira (1813-1845). São Paulo: Hucitec, 2008, p. 39.
30
KOSELLECK, Reinhart. “Ponto de vista, perspectiva e temporalidade. Contribuição à apreensão
historiográfica da história”. In: Op. cit., 2006, p. 174.
31
O adjetivo “contemporâneo” remonta ao século XV, enquanto a expressão “história contemporânea”
teria aparecido primeiramente nos Pensées de Blaise Pascal (1670), apesar de só ter se generalizado no
século XIX, depois do choque cultural e cognitivo da Revolução Francesa. HOUSSO, Henry. La dernière
catastrophe. L’histoire, le présent, le contemporain. Paris: Éditions Gallimard, 2012, p. 29-30. Abordei
um pouco da temática da periodização no capítulo 1.
32
GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. Op. cit., 2010, p. 15.
33
Ainda que seja possível distinguir diferentes modos pelos quais o topos era utilizado pelos letrados do
século XIX. Valdei Lopes de Araujo, ao comentar a bibliografia atual que trata da temática, demonstra
24

história a partir de sua ênfase narrativa e de inteligibilidade de fatos que não eram
passíveis de repetição34, mas submetidos a um trabalho de seleção e enredamento
específicos35. Reconheciam, nesse sentido, que ela devia ser antes de tudo filosófica,
preocupada em encontrar uma ordem racional e progressiva na sucessão cronológica36.
Havia, além disso, uma conduta de recusa às “paixões”, entendidas como toda e
qualquer emoção mais exacerbada que pusesse em risco a objetividade do historiador ao
interpretar, através da crítica das fontes, o processo escolhido para investigação. Esse foi
mais um argumento utilizado de forma constante para a condenação de escritas da história
mais imediata, justamente por conta da dificuldade que existia nessas narrativas em não
tomar partido (em benefício ou prejuízo) de um dos lados expostos37. A limitação era
agravada pelo esforço de encontrar fontes que dessem conta do período38.
Este é o ponto em que a problemática epistemológica da história se encontra com
os dilemas de ordem prática da mesma, no que se refere ao campo propriamente político39.

que há uma dupla função do uso da expressão no oitocentos: de um lado, uma mera repetição protocolar
(fórmula de legitimação da história como atividade digna de atenção e de patrocínio) e, de outro, o uso do
topos com seus decorrentes efeitos práticos. Sobre este último caso, a recente historiografia tem tratado da
questão a partir de dois prismas. O primeiro, de que a historia magistra vitae seria aquela que ensina pelo
exemplo e pela imitação (topos apropriado a partir da Antiguidade clássica), e o segundo, que entende a
expressão tão comumente presente nas produções do IHGB na perspectiva de que é possível ensinar e
moralizar através da história, mesmo que não pelo exemplo (já que não existiria mais a probabilidade de
repetição das ações do passado no futuro). Nesse sentido, sugiro o texto do autor já mencionado. Op. cit.,
131-148.
34
GUIMARÃES, Manoel Salgado. “Entre as luzes e o romantismo: as tensões na escrita da história do
Brasil oitocentista”. In: _____. (Org.). Estudos sobre a escrita da história. Rio de Janeiro: 7Letras, 2006,
p. 69.
35
Idem. Op. cit., 2010, p. 14.
36
PAYEL, Pascal. “A constituição da história como ciência no século XIX e seus modelos antigos: fim
de uma ilusão ou futuro de uma herança?”. História da Historiografia. Ouro Preto: UFOP, n. 6, março
2011, p. 110.
37
Luciano de Samósata já indicava que o historiador não deveria “tomar partido”, mas olhar todos os
lados da questão trabalhada. Ver SAMÓSATA, Luciano de. Op. cit., 2009, p. 75.
38
Para Temístocles Cezar a maior dificuldade em se elaborar uma história imediata reside no problema
das fontes. Citado em TIBURSKI, Eliete. Op. cit., 2011, p. 93.
39
Devo mencionar que meu projeto insere-se na abordagem da história política, a partir de um foco
cultural. A renovação dessa historiografia nos últimos anos, possibilitada em grande parte pelo grupo
liderado por René Rémond na França, auxiliou essa combinação. A noção do que seria o “político” foi
ampliada: enquanto na perspectiva historicista do século XIX, dava-se em função do poder do Estado, às
suas relações e grandes personagens, a partir da década de 1980, ela passou a ser associada a qualquer
prática que contivesse uma relação de poder implícita. Além disso, do ponto de vista da história cultural,
importa identificar o modo como “[...] em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade
cultural é construída, pensada, dada a ler”. Cf. RÉMOND, René (Org). Por uma História Política. Rio de
Janeiro: FGV, 2003; e Roger Chartier. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa. Difel,
1990. Para uma teoria que leve em conta o âmbito do político interagindo com outros campos, como a
25

O IHGB, pode-se dizer, insere-se nessa dupla perspectiva, à medida que vinculava
determinadas preocupações de cunho historiográfico a anseios políticos bem definidos:
apoio e lealdade à casa imperial. Neste sentido, entendo que o segundo conjunto de
argumentações que aparecem recorrentemente na Revista do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, no sentido de censura à história viva, como a entendia Alphonse
de Beauchamp40, impõe o reconhecimento dessa associação. Isto porque, incontáveis
vezes, era em função da política41 que se recusava a publicação de documentos ou
trabalhos com temática contemporânea. Em certa medida, mais do que uma questão de
pensar sobre a história, os sócios do IHGB queriam evitar para si ou para a instituição
situações de grande desconforto. Esquivavam-se de trazer à tona determinados
acontecimentos recentes devido à possibilidade de haver quem os tivesse presenciado,
suscitando possíveis embaraços.
Tais cuidados indicavam a existência de rivalidades no campo da política
nacional. Para que se concretizasse a ambicionada unidade nacional era necessário omitir
sobre aquilo que a pudesse colocar em xeque. Por isso, havia a necessidade de encobrir
as diferentes forças que postularam, nas primeiras décadas do século XIX, projetos
políticos diversos para a nação brasileira.

***

Feitas essas explicações, devo reconhecer minha imensa dívida para com a
produção historiográfica brasileira que, desde a década de 1980, vem privilegiando o
IHGB como objeto de estudo. Das clássicas análises de Arno Wehling, Manoel Salgado
Guimarães e Lucia Guimarães, as quais, inclusive, já apontavam para a prática censora
do Instituto em relação ao tempo presente sob alegações de foro historiográfico e político,

cultura e a sociedade, ver ROSANVALLON, Pierre. Por uma história do político. São Paulo: Alameda,
2010.
40
Beauchamp costumava usar de forma recorrente essa expressão,“histoire vivante”. Ele próprio foi um
estudioso que não poucas vezes escreveu histórias contemporâneas. A esse respeito, ver MEDEIROS,
Bruno. Plagiário, à maneira de todos os historiadores: Alphonse de Beauchamp e a escrita da história na
França nas primeiras décadas do século XIX. 2011. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade
de São Paulo, São Paulo, 2011, p. 34.
41
Deve-se entender, neste caso, a política – tal qual a noção de “poder” – numa ampla perspectiva, que
não se restrinja às relações estritamente governamentais; ela incorpora também as do cotidiano. Para a
concepção de “micro-poder”, ver FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal,
1985.
26

à bibliografia mais recente sobre a produção oitocentista do IHGB42, minha deferência se


fará notar nas páginas que seguem.
Antes, porém, de permitir ao leitor que se aprofunde nas minhas investigações,
necessito esclarecer determinadas escolhas que fiz em termos de formatação da tese. A
ortografia nas citações das fontes foi atualizada, apesar de ter mantido a forma original
nas referências bibliográficas. O mesmo foi feito com nomes próprios.
As citações em francês no texto foram traduzidas livremente por mim, constando
sua referência original em nota de rodapé.

***

O presente é teimoso, tem sua força. Mesmo quando silenciado, ele retorna – nem
que seja sob a forma de trauma43. A história não se esquece dele jamais, pois é a partir
dele que o historiador se posiciona, articula suas questões, projeta seus problemas. Tal
máxima, já clássica na historiografia44, faz notar essa tensão constante, do presente que
pode não estar exposto, mas que nunca desaparece completamente.
Não por acaso, iniciei este trabalho retomando discussões mais atuais sobre a
relação entre o presente e o segredo. Mas se ontem ela se fazia necessária por conta de
particularidades do contexto, hoje a constante intervenção política sobre a produção da
história mais recente é, antes de tudo, perigosa. Quando perguntado sobre o projeto de
“sigilo eterno” de documentos, proposto por Sarney e Collor, em junho de 2011, o
historiador José Murilo de Carvalho assumia que risco maior do que o apontado pelos
então senadores da República, de trazer a público determinados fatos da história
contemporânea, através da abertura completa dos arquivos, era o de o não fazer:
Se há riscos, é mais uma razão para abrir os arquivos. Mitos têm que ser
destruídos em nome da maturidade democrática. [Ernest] Renan dizia que
nações se criam à base de esquecimento, ocultação e mesmo mentira

42
Apenas para citar alguns deles: os estudos de Fabiana Dias, Hugo Hruby, Maria da Glória de Oliveira,
Rodrigo Turin e Valdei Lopes de Araújo. Os dados completos desses trabalhos encontram-se nas
“Referências bibliográficas”.
43
Trabalho, aqui, com a conceituação freudiana. Cf. FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. Rio de
Janeiro: Imago, 1980; e Idem. Totem e Tabu. Rio de Janeiro: Imago, 1999. Para uma abordagem sobre o
trauma mais ligada à historiografia, ver POLLACK, Michael. Memoria, olvido e silencio. La Plata: Al
Margen, 2006; e KAUFMANN, Susana Griselda. “Sobre violencia social, trauma e memoria”. In: Anais
do Seminario memoria colectiva y represión - SSRC, 1998. Disponível em:
<http://www.cholonautas.edu.pe/modulo/upload/GKauffman.pdf>. Acesso em: abr. 2013.
44
BLOCH, Marc. Apologia da história, ou, O ofício de historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
27

histórica45. Mas hoje não se trata mais de construir a nação. Ela já existe. E
para mantê-la, hoje, é necessário construir a sociedade democrática. Isso inclui
o direito de informação sobre a própria história. A política do sigilo, do
segredo, da ocultação, inviabiliza uma escrita confiável dessa história. Perde o
historiador, perde o cidadão, perde o país46.

Cf. RENAN, Ernest. “O que é uma nação?”. In: ROUANET, Maria Helena Rouanet (Org.).
45

Nacionalidade em questão, Cadernos da Pós/Letras: UERJ, 1997, p. 19.


46
Entrevista de José Murilo de Carvalho à Folha on line. Disponível em
<http://www1.folha.uol.com.br/poder/932109-fiquei-desapontado-com-apoio-de-dilma-ao-sigilo-diz-
historiador.shtml>. Acesso em: 07 jan. 2011.
28

1 O IHGB COMO REPOSITÓRIO DO PRESENTE (1838-1850)

O estabelecimento do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB),


conforme aponta vasta bibliografia1, deve ser inserido no contexto político do período
regencial. A insegurança gerada pela constante possibilidade de desintegração do
território explica, certamente, a motivação que levou à execução do projeto2. Não à toa,
as expectativas em torno da criação de um gigantesco arquivo onde seriam guardados
documentos relativos a tudo o que dizia respeito à história do país se encontravam com a
necessidade de escrever uma história nacional. A unidade, que com muita dificuldade
estava sendo perpetuada no âmbito político, era uma possibilidade, ainda que distante, no
campo da escrita da história e do estabelecimento de uma memória brasileiras.
A primeira década da agremiação pode ser caracterizada, em termos de produção
intelectual, pela relutância de seus membros em trabalhar de forma detida sobre assuntos
que dissessem respeito a momentos temporalmente próximos. A compreensão da prática
historiográfica, desse modo, passava pelo estatuto conferido ao presente. Permeada por
caracteres antigos e modernos, a história estimulada pelo IHGB ora rechaçava duramente
o contemporâneo de suas investidas, ora instigava a abordagem de determinados assuntos
da atualidade. Ainda que fosse premente o recurso à censura do tempo presente pela
instituição, em alguns momentos em que a urgência política se fazia sentir, em função,
evidentemente, da exaltação e salvaguarda do governo de D. Pedro II e da unidade
territorial do Império, os constrangimentos epistemológicos da disciplina histórica
ficavam em segundo plano.
Antes, porém, de entrar nessa discussão é necessário entender a constituição de
tal categoria temporal. O próprio Instituto estimulou essa problemática em seus anos
iniciais, tendo em vista que a configuração do campo historiográfico devia passar pela
delimitação dos tempos, ora entendida pela chave das “épocas”, ora como esforço de

1
Entre outros: GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal. “Debaixo da imediata proteção de Sua Majestade
Imperial: O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1838-1889)”. Revista do IHGB. Rio de Janeiro, a.
156, nº 388, p. 459-613, jul-set. 1995; e GUIMARÃES, Manoel Salgado. “Nação e Civilização nos
trópicos: o IHGB e o projeto de uma história nacional”. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, nº1, v. 1, p. 3-
27, 1988.
2
O surgimento do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro deu-se o a partir de um projeto oriundo de
outra instituição de notória importância no cenário do Império: a Sociedade Auxiliadora da Indústria
Nacional. Sobre isso, ver o verbete de Lucia Guimarães em VAINFAS, Ronaldo (Dir.). Dicionário do
Brasil imperial (1822-1889). Rio de Janeiro: Objetiva, 2002, p. 679-680.
29

periodização. Logo em 1838 Januário da Cunha Barbosa fazia o pedido de que fossem
elaborados estudos pelos sócios que determinassem as “verdadeiras épocas da história do
Brasil”, pois somente após atingir essa tarefa seria possível produzir a tão esperada
“História Geral do Brasil”3.
Em resposta, os sócios Lino de Moura, José Silvestre Rebelo e Raimundo José da
Cunha Matos leram, durante uma sessão, memórias em que apresentavam suas visões
sobre o assunto. Mas apenas o texto de Matos foi publicado, ainda que décadas mais tarde,
na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro4. Pouco se sabe sobre o porquê
dessa publicação tardia. Entende-se, entretanto, que, a despeito de ele não estar contido
nas primeiras edições do periódico, sua leitura pode colaborar com o entendimento do
esforço de periodização promovido pela primeira geração do Instituto.
Segundo o marechal, a história do Brasil devia ser dividida em três épocas: a dos
aborígines ou autóctones; a do descobrimento do território pelos portugueses e da
administração colonial; e, por fim, aquela que unisse “[...] todos os conhecimentos
nacionais desde o dia em que o povo brasileiro se constituiu soberano e independente, e
abraçou um sistema de governo imperial, hereditário, constitucional e representativo”, ou
seja, a partir de 18225. Cunha Matos pouco comentou a respeito das duas últimas épocas:
todo o trabalho focaliza a primeira, apesar de o autor indicar grandes dificuldades ao seu

3
ARAUJO, Valdei Lopes de. A experiência do tempo: conceitos e narrativas na formação nacional
brasileira (1813-1845). São Paulo: Aderaldo & Rothschild, 2008, p. 171. Januário da Cunha Barbosa
(1780-1838) foi, com certeza, um dos homens mais atuantes do Instituto. Nascido no Rio de Janeiro,
tornou-se presbítero secular. Foi pregador da Capela Real e lente de filosofia, sendo nomeado catedrático
em 1814. Teve notória importância no contexto da Independência, como se verá. Em 1823 serviu de
cônego da Capela Imperial. Foi eleito deputado à Assembleia Geral na primeira legislatura e designado
diretor da Imprensa Nacional. Após a Abdicação, fez parte do conselho diretor da Sociedade Defensora,
junto com Evaristo da Veiga. Fundou, com Cunha Matos, o IHGB, do qual fora secretário perpétuo até
sua morte. Foi autor de muitas obras, dentre as quais se destacam as de oratória sacra. Cf. GUIMARÃES,
Lucia. “Januário da Cunha Barbosa”. In: VAINFAS, Ronaldo Vainfas (Dir.). Op. cit., 2002, p. 394-395.
4
Daqui por diante denominada apenas como Revista. Raimundo José da Cunha Matos (1776-1844)
nasceu em Faro, Portugal. Serviu ao exército português em São Tomé e Princípe e, em 1815, foi nomeado
governador interino dessa colônia. Dois anos depois foi transferido para o Brasil na qualidade de vice-
inspetor do Arsenal do Exército do Rio de Janeiro. Aderiu à Independência e obteve o posto de marechal.
Elegeu-se deputado, comandou a Escola Militar do Rio de Janeiro e foi um dos fundadores, junto com
Januário da Cunha Barbosa, do IHGB. Publicou algumas obras de cunho político e faleceu no Rio de
Janeiro. Ver GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. Livro de fontes de historiografia brasileira. Rio de
Janeiro: EdUERJ, 2010, p. 41.
5
MATOS, Raimundo José da Cunha. “Dissertação acerca do sistema de se escrever a história antiga e
moderna do Império do Brasil”. RIHGB, tomo XXVI, p. 129, 1863.
30

estudo, devido à falta de registros disponíveis para o seu tratamento. Por isso mesmo,
apresentou um plano metodológico com possibilidades documentais para o período6.
Também a terceira época apresentava problemas de definição. Possivelmente, isso
teria a ver com as dúvidas sobre datas tão politicamente carregadas, como 1808, 1822 e
18317. Apesar de invocar os obstáculos envoltos nesse período, Matos não foi além;
acabou centrando sua análise em questões de método e na rejeição de uma história geral,
indo de encontro aos anseios da instituição, ou, mais especificamente, aos de seu
secretário perpétuo8.
No mesmo texto, verifica-se uma distinção dentro da problemática da
periodização, assetanda em diferentes apreensões do conceito de história. A definição das
épocas, que em primeiro lugar se revestia de uma preocupação com a periodização da
história geral, passou a incorporar a tarefa de estabelecer uma cronologia exaustiva e
crítica do Império do Brasil. Para Valdei de Araujo, na bifurcação desses dois caminhos,
confrontavam-se “[...] uma compreensão moderna de época, enquanto período histórico
com identidade e definição intrínsecas, e uma compreensão tradicional, ligada à
cronologia, que entendia as épocas como simples marcos temporais”9. Matos, nesse
sentido, acabou tratando mais fortemente da cronologia, em sua acepção mais antiga10.
Através do estímulo à produção de memórias que versassem sobre o “Modo pelo
qual se deve escrever a história do Brasil”, o IHGB também procurou delimitar os
procedimentos que uma narrativa sobre o passado deveria conter. A definição das

6
Segundo Valdei de Araujo, Matos queria provar a antiguidade do Novo Mundo, por isso centrou sua
análise na “primeira época”. Cf. ARAUJO, Valdei Lopes de. Op. cit., 2008, p. 163. Para Manoel Salgado
Guimarães o texto de Matos continha dois esforços: estabelecer a cronologia necessária para a escrita da
história do Brasil e submeter os escritos (documentos) à crítica, o que explicava o conjunto de referências
por ele elencado na memória. Ver GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. “A disputa pelo passado na
cultura histórica oitocentista do Brasil”. In: CARVALHO, José Murilo de (Org.). Nação e cidadania no
Império: novos horizontes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 115.
7
ARAUJO, Valdei Lopes de. Op. cit., 2008, p. 172.
8
Ibidem, p. 173. Para Matos, era impossível escrever uma história geral naqueles tempos: primeiro, havia
que se escrever a história das províncias, separadamente.
9
Ibidem, p. 173 (grifos do autor).
10
Essa perspectiva foi reiterada em outro trabalho de Matos, “Épocas brasileiras, ou sumário dos
acontecimentos mais notáveis do Império do Brasil”. Nele o historiador era visto como aquele que
completaria as lacunas factuais e o passado devia ser submetido a um levantamento exaustivo de todas as
cadeias causais. Também neste caso, Matos atentava para a impossibilidade de uma história geral: devia-
se antes preencher as lacunas. Além disso, haviam as limitações de ordem política: no manuscrito, os anos
de 1830-1831 e de 1833-1838 permaneceram em branco. Ibidem, p. 174-175.
31

categorias temporais, fosse como periodização ou sob a lógica da cronologia, não podia
ser esquecida nesse contexto. O artigo de Henrique Julio de Wallenstein, preterido pelo
de Karl Friederich Phillipe von Martius naquele mesmo concurso de 1847, adotava a
“compreensão tradicional” citada no parágrafo anterior. De modo geral, isso contribuiu
para que não recebesse o prêmio do Instituto, ainda que seja digna de nota sua publicação
na Revista muitos anos mais tarde.
Wallestein propunha que a escrita da história do Brasil devia seguir o “sistema de
décadas”. Sua proposição se organizava unicamente pelo critério cronológico, não
fornecendo ao leitor contemporâneo nem o sentido, nem a finalidade do trabalho
historiográfico – características indispensáveis à moderna compreensão de história11.
Nesse caso, a especificidade do presente em relação ao passado se dava apenas por uma
lógica sequencial na qual as partes não apresentavam qualidades particulares. A
instituição das temporalidades, desse modo, não partia de uma problematização do
historiador, mas era entendida quase como um dado a priori.
A narrativa da nossa história se iniciaria, para Wallestein, a partir de 1500 e se
estenderia até a Independência e a coroação de D. Pedro I. A partir daí, não havia mais
história, “[...] porque escrever a história contemporânea nenhum historiador nacional o
deve fazer para se não expor a juízos temerários, e a outros inconvenientes, que trazem
consigo os respeitos humanos. Arquivem-se os documentos, e o tempo virá”12. A proposta
de Wallestein, portanto, delimitava o presente a partir de 1822, aparentemente da mesma
forma que Cunha Matos e sua “terceira época”.
Muito mais aproximado às exigências do IHGB estava o plano de escrita da
história promovido por Von Martius. A obviedade dessa afirmação está no fato de a sua
memória ter sido premiada pela agremiação tempos depois de já ter sido publicada em
sua Revista13. Apesar dela não estar diretamente relacionada à questão da periodização,
como as outras, é possível inseri-la nessa discussão. Ao conceber a história como gênero
filosófico, Von Martius entendia o presente como parte da ordem interna da história, de
seu sentido. Segundo ele, importava menos ao historiador narrar simplesmente os fatos

11
GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. Op. cit., 2007, p. 100.

WALLESTEIN, Henrique Julio de. “Memória sobre o melhor plano de se escrever a história antiga e
12

moderna do Brasil segundo a proposição do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro’. RIHGB, tomo
XLV (Parte Primeira), p. 160, 1882.
13
A publicação foi feita na Revista de 1844 e o prêmio saiu em 1847.
32

temporalmente do que fornecer uma proposta de inteligibilidade para o passado,


submetido a um trabalho de seleção e enredamento específicos14. Inclusive por esse
motivo, talvez seja mais difícil delimitar o espaço do presente e por conseguinte sua
distinção das demais categorias temporais nesse trabalho de Von Martius do que nos
anteriores.
É inegável que a Independência era vista, praticamente de forma unânime nos
trabalhos citados, como um marco que separava passado e presente. Também Januário da
Cunha Barbosa, em seu relatório de 1840, assim se expressou ao destacar a importância
do IHGB no cenário brasileiro. Em suas palavras, a agremiação trouxe luz à história
nacional, cujos reflexos deviam ser projetados não apenas ao futuro,
[...] como também sobre os fatos, que enchem o largo período de 322 anos, que
começando da feliz descoberta de Pedro Álvares Cabral, terminou com a
proclamação da nossa gloriosa Independência, desprendida nas margens do
Ipiranga dos lábios do Senhor D. Pedro I15.

Assim sendo, o cônego compreendia, de forma aproximada a Cunha Matos e


Wallestein, o passado como o período estabelecido desde a chegada dos portugueses ao
continente americano à Independência do Brasil. Conclui-se, portanto, que a partir de
1822 a instância temporal seria de outra natureza; talvez sua própria vivência pessoal
explique este sentimento de compreender os anos desde a Independência como tempo
presente.
No entanto, não é menos exato admitir que para aquela primeira geração do
Instituto a história contemporânea podia também ser delimitada a partir de 181716.
Constituía-se, portanto, desde outro momento chave para a história do país: a Revolução
Pernambucana. É notório o fato de que os primeiros documentos sobre a rebelião foram
publicados na Revista somente a partir da década de 1860, quando já não era mais
considerada história recente17.
Determinando tal território, identificam-se também objetos da lembrança e,
inversamente, do silenciamento. O advento da maioridade de D. Pedro II, em 1840, era
entendido como um recomeço pelo IHGB, tanto no campo político, quanto histórico. Por
consequência, o Segundo Reinado buscava suas origens numa época distante, anterior à

14
GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. Op. cit., 2007, p. 101.
15
BARBOSA, Januário da Cunha. “Relatório do secretário perpétuo”. RIHGB, tomo II, p. 584, 1840.
16
GUIMARÃES, Lucia. Op. cit., p. 517-519, 1995.
17
Ibidem, p. 519.
33

Independência. Nesse sentido, o Instituto definia também o passado remoto, cujos marcos
cronológicos estavam entre os anos de 1500 e 1816 e que era, por definição, aquilo que
podia ser trabalhado pela instituição sem prejuízo algum18.
A notória predileção por expurgar os fatos coetâneos da produção institucional
justificava-se por uma compreensível preocupação política. Em muitas ocasiões, como
será analisado neste capítulo, evitava-se trazer à tona aquilo que remetia ao presente,
tendo em vista a ideia de que, pela proximidade temporal, pessoas que vivenciaram tais
eventos ainda podiam estar vivas, o que acarretaria em constrangimentos de foro não
apenas individual, como também social. À tão almejada unidade nacional era
imprescindível o silenciamento, sobretudo daquilo que podia promover seu
questionamento mais direto, como era o caso de todo o período entre 1817 e 1838. A
demonstração de forças antagônicas que reivindicaram, no início do oitocentos, projetos
políticos distintos para o país representava justamente aquilo que devia ser omitido para
que a nação brasileira tomasse forma junto ao reinado de D. Pedro II19.
Por outro lado, a justificativa para tais lapsos de memória em relação à história
recente nem sempre se dava apenas em função da questão política. Dotados de forte apelo
retórico20, os discursos dos sócios do IHGB argumentavam em favor da ideia de que o
afastamento temporal era necessário para o estabelecimento de uma coerente escrita da
história. Articulando conceitos como posteridade, imparcialidade e verdade, procuravam

18
GUIMARÃES, Lucia. Op. cit., p. 520, 1995. Michel de Certeau entendia a separação entre passado e
presente como o fundamento da operação historiográfica moderna. Em outros termos, segundo Pierre
Nora, a exclusão do contemporâneo do campo da história é justamente o que garante sua especificidade,
sobretudo com a fundação da história científica no final do século XIX. Delimitou-se, então, como sendo
do domínio da história somente o passado; o presente era encargo da política e o futuro, de Deus. NORA,
Pierre. “Pour un histoire contemporaine”. In: _____. Présent, nation, mémoire. Éditions Gallimard, 2011,
p. 68-69. Ver também: HARTOG, François. Evidência da história: o que os historiadores veem. Belo
Horizonte: Autêntica, 2013a, p. 22.
19
De acordo com Ernest Renan, uma atitude fundamental para a consolidação de uma nação era
justamente o esquecimento, pois a “[...] investigação histórica traz de volta à luz fatos de violência
ocorridos na origem de todas as formações políticas”. Ou seja, a unidade nacional, sempre conseguida de
forma brutal, deveria ser lembrada apenas como resultado – a própria unidade, nunca através do processo
(violento) que a constituiu. RENAN, Ernest. “O que é uma nação?”. In: ROUANET, Maria Helena
(Org.). Nacionalidade em questão, Cadernos da Pós/Letras: UERJ, 1997, p. 12-43.
20
Entende-se por retórica a utilização de argumentos que visam um determinado objetivo de
convencimento, ou mesmo de persuasão. Cf. PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie.
Tratado da argumentação. A nova retórica. São Paulo: Martins Fontes, 1996; e CARVALHO, José
Murilo de. “História intelectual no Brasil: a retórica como chave de leitura”. Topoi, Rio de Janeiro, nº 1,
jan-dez. 2000, p. 123-152. Neste último, o autor demonstra como o ensino da retórica em Portugal e,
posteriormente, no Brasil foi importante. No século XIX, com a criação das escolas de direito no Brasil e
do Colégio Pedro II, situado no Rio de Janeiro, a exigência da retórica era uma constante, tanto nos
exames admissionais, quanto nas cadeiras cursadas.
34

convencer aos ouvintes/leitores de que estudar o presente era um erro, tendo em vista que
o objeto narrado teria como testemunha o próprio narrador, cujo olhar, jamais imparcial,
produziria análises cheias de “paixões”, isentas de crédito científico. De igual modo,
entendia-se em algumas situações que a distância promovida pelo correr do tempo era a
condição fundamental para o entendimento da própria experiência, que só assim se
tornaria inteligível21.

1.1 O tribunal da história

Horas se passarão, que ocuparão anos inteiros aos futuros


escritores: a intimidade dos fatos é tão grandiosa que só o espaço
dos tempos é capaz de abrangê-la e apreciá-la.
Manoel de Araújo Porto-Alegre 22

Deixareis monumentos gloriosos / A uma longa e feliz


posteridade / E ganhando obtereis com tanta glória / Um nome
eterno nos padrões da história.
Santa Rita Durão23

Referências ao que o Instituto pretendia empreender como história se configuram


desde o discurso inaugural feito por Januário da Cunha Barbosa. Nas palavras do cônego,
a agremiação era encarregada “[...] de eternizar pela história os fatos memoráveis da

21
Uma das condições indispensáveis para a elaboração de uma “história científica” seria a “visão
retrospectiva”. FERREIRA, Marieta de Moraes. “História do tempo presente: desafios”. In: Cultura
Vozes, Petrópolis, v. 94, n. 3, p. 111-124, maio/jun., 2000.
22
“Ata da sessão de 20 de abril de 1843”. RIHGB, tomo V, p. 261, 1843. Manoel (ou Manuel) de Araújo
Porto-Alegre (1806-1879) nasceu em Rio Pardo, Rio Grande do Sul. Mudou-se para o Rio de Janeiro, em
1826, onde ingressou na Academia Imperial de Belas-Artes. Aluno de Jean-Baptiste Debret, em 1831,
acompanhou o mestre em seu retorno à França e permaneceu na Europa até 1837, por motivos de estudo.
Retornando ao Brasil, assumiu o cargo de professor da Academia de Belas-Artes e se tornou, em 1840,
pintor oficial da Corte. Em 1854 foi nomeado diretor da Academia pelo próprio D. Pedro II. Foi também
professor de arquitetura da Escola Militar e diretor da seção de numismática, belas-artes e arqueologia do
Museu Nacional, além de membro correspondente do Instituto Histórico de Paris e da Academia Real de
Ciências de Lisboa. Depois de 1859 atuou como diplomata, sendo cônsul-geral na Prússia e em Portugal.
Foi membro atuante do IHGB. Ver NEVES, Lúcia Bastos Pereira das. “Manuel de Araújo Porto-Alegre”.
VAINFAS, Ronaldo (Org.). Op. cit., 2002, p. 513-514.
23
Caramuru: poema épico. Canto X, est. 38. Citado no relatório feito por Januário da Cunha Barbosa no
5º aniversário do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro no dia 10 de dezembro de 1843. RIHGB,
tomo V, p. 30, 1843.
35

pátria, salvando-os da voragem dos tempos e desembaraçando-os das espessas nuvens


que não poucas vezes lhes aglomeram a parcialidade, o espírito de partido, e até mesmo
a ignorância”24. É, assim, notória a importância conferida à forma com que os fatos da
nossa história deviam ser interpretados, longe do “espírito de partido”, ou seja, de
opiniões e julgamentos parciais. Sobre isto, Januário indicava um determinado momento
da história recente como fonte de preocupação, como consta no seguinte trecho da sua
preleção:
O coração do verdadeiro patriota brasileiro aperta-se dentro do peito quando
vê relatados desfiguradamente até mesmo os modernos fatos da nossa gloriosa
independência. Ainda estão eles no alcance das nossas vistas, porque apenas
dezesseis anos se tem passado dessa época memorável da nossa moderna
história, que acrescentou no Novo Mundo um esperançoso Império no catálogo
das nações constituídas, e já muitos se vão obliterando na memória daqueles a
quem mais interessam, só porque têm sido escritos sem a imparcialidade e
necessário critério, que devem sempre formar o caráter de um verídico
historiador25.

A apreensão com a narrativa dos fatos da Independência, considerados ainda


passado recente, muitos deles obscurecidos por trabalhos de “falsos” historiadores, era
recorrente nas sessões da agremiação. Januário da Cunha Barbosa, tendo sido homem
com atuação de destaque naquele movimento, apresentava seu argumento de que tratar
daquele acontecimento era tarefa de um historiador “verdadeiro”, cuja escrita levasse em
consideração “necessário critério”, com destaque para a ideia de imparcialidade.
Apontava para o fato de que muito sobre a Independência já estava sendo esquecido, a
despeito da proximidade do evento com o presente – o fato de ainda estar “ao alcance das
nossas vistas”. Por causa de interesses pessoais, sua história estava sendo deturpada.
Em outras partes do discurso nota-se a apropriação de Cícero por Januário
Barbosa. Da obra do filósofo foi extraída a compreensão da história como “testemunha
dos tempos” e “escola da vida”. Tal captação do conceito não fora gratuita. Como é

24
BARBOSA, Januário da Cunha. “Discurso”. RIHGB, tomo I, p. 9, 1839. Este pensamento tem raízes na
Antiguidade clássica. Luciano de Samósata, em seu manifesto Como se deve escrever a história, escrito
no século II d.C., aconselhava o historiador a ser antes de tudo imparcial. A escolha dos fatos narrados e
dos testemunhos tinha de ser feita levando em conta esse princípio: os primeiros tinham de ser passíveis
de comprovação; se atuais, era necessário presenciá-los ou confiar em quem os expõem com mais
integridade, “[...] aquelas pessoas que parece que não amputariam ou acrescentariam algo aos
acontecimentos, por compaixão ou hostilidade. Então, deve-se ser também hábil para visar e dispor o que
é mais convincente”. O historiador deve ainda evitar tomar partido, olhar os dois lados, ter visão de
conjunto. SAMÓSATA, Luciano de. Como se deve escrever a história. Tradução, notas, apêndices e
ensaio de Jacyntho Lins Brandão. Belo Horizonte: Tessitura, 2009, p. 75.
25
BARBOSA, Januário da Cunha Barbosa. “Discurso”. RIHGB, tomo I, p. 10, 1839.
36

sabido, naquele momento fundacional do Instituto conviviam diferentes noções de


história e uma delas se enquadrava na lógica magistra vitae26, o que pode ser verificado
a partir da constante apresentação do termo nas produções do IHGB.
Na ótica antiga, o passado fornecia o conjunto de exemplos que podiam vir a ser
aplicados no presente e no futuro, definindo a história como meio para promover o
aprendizado. A permanência desse topos no século XIX brasileiro, entretanto, expõe
diferentes releituras para a função moralizante da história. Nem sempre o seu uso
propunha um sentido prático, de esclarecer o modo pelo qual o passado ensina. Em muitos
casos, inclusive, estima-se que a repetição protocolar da expressão fazia parte de um
lugar-comum nos círculos letrados, como uma fórmula retórica responsável pela
legitimação da história como atividade digna de atenção e, inclusive, de patrocínio do
Estado. Em outros, sobretudo relacionados a gêneros biográficos (elogios fúnebres e
necrológios, por exemplo), é possível verificar o seu sentido clássico, de lição pelo
modelo e imitação, através da narrativa de uma vida tida como exemplar. Por fim, a
expressão aparece na rotina do IHGB propondo o ensinamento através da história, por
um viés moralizante, ainda que não por meio do exemplo e da repetição27.
Havia, não obstante, um entendimento mais moderno do conceito de história,
evidenciado a partir do que dizia o cônego sobre a narrativa dos eventos da
Independência. Ao demonstrar a fragilidade do que já vinha sendo escrito a respeito
daquele fato histórico, apresentava, por oposição, o que devia ser feito pela instituição
dali por diante. Neste sentido, se por um lado era necessário trazer “à luz política” escritos
de brasileiros sobre aquele e outros momentos da história do país, por outro, indicava a
conservação de documentos em arquivos, “para que a posteridade deles se
aproveitasse”28. O cônego parecia indicar que as garantias epistemológicas de uma
verdadeira história passavam por um duplo processo: o esforço da crítica documental,
entendendo, assim, o documento como a única fonte de verdade e, por isso, a necessidade

26
KOSELLECK, Reinhart. “Historia Magistra Vitae – Sobre a dissolução do topos na história moderna
em movimento”. In: _____. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de
Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006, p. 41-60.
27
De forma geral, essas são as três linhas de análise evidenciadas pela historiografia atual sobre o
emprego da fórmula magistra vitae pelos sócios do IHGB oitocentista. ARAUJO, Valdei Lopes de.
“Sobre a permanência da expressão magistra vitae no século XIX brasileiro”. In: NICOLAZZI, Fernando
Nicolazzi et. al. (Orgs.). Aprender com a história?: o passado e o futuro de uma questão. Rio de Janeiro:
FGV, 2011, p. 131-148. Retornarei a essa problemática em outros momentos da tese.
28
BARBOSA, Januário da Cunha. “Discurso”. RIHGB, tomo I, p. 11, 1839.
37

de criar um imponente arquivo no IHGB; e o afastamento temporal, haja visto que o


tempo seria tido como o mais eficaz antídoto para as paixões e os interesses humanos.
Quanto mais distante temporalmente, portanto, mais fácil para o historiador atingir a
imparcialidade e a perspectiva correta que levariam à melhor apreciação investigativa29.
Aliando as perspectivas conceituais, Januário apresentava o tipo de história a ser
elaborada no seio do Instituto. Dentro desse modelo, verdade e imparcialidade aparecem
como noções centrais. Ainda que fizessem parte das aspirações próprias da historiografia
desde Luciano de Samósata e Cícero30, no século XIX, à articulação entre os conceitos
foram agregados novos pressupostos, justamente quando a história passava a ser dotada
de caráter eminentemente pragmático. Nessa ótica, integrava um discurso contra o juízo
do presente, por meio da expressão “tribunal da história”, estendendo-se a possibilidade
de atingir uma história verdadeira e imparcial sobre aquilo que não se desejava, ainda,
arbitrar ao futuro31:
Os crimes, posto que seguidos de um sucesso aparentemente feliz, não deixam
de ser detestáveis no tribunal da história, se a imparcial pena dos sábios os
descreve em sua verdadeira luz. O circunspecto gênio do historiador,
sentando-se sobre a tumba do homem, que aí termina suas fadigas, despreza
argumentos de partido e conselhos de lisonja, portando-se em seus juízos como
austero sacerdote da verdade32.

Eis o dilema dos historiadores modernos: introduzir juízo nas narrativas, fazendo
justiça à memória dos mortos33, ou permitir que a história proferisse por si própria seu
veredito. Para este último caso, recorria-se à evocação da experiência da história como
um “tribunal”, que parecia absolver o historiador de toda e qualquer suspeita de ser
parcial, revestindo o preceito retórico de “deixar falar por si mesma a verdade da história”
de ambições científicas34. Sintomática, nesse caso, é a expressão utilizada por Januário

29
ARAUJO, Valdei Lopes de. Op. cit., 2008, p. 152.
30
Cf. OLIVEIRA, Maria da Glória de. “Brasileiros ilustres no tribunal da posteridade: biografia, memória
e experiência da história no Brasil oitocentista”. VARIA HISTORIA. Belo Horizonte, vol. 26, n. 43, p. 289,
jan/jun 2010.
31
Ibidem, p. 298.
32
BARBOSA, Januário da Cunha. “Discurso”. RIHGB, tomo I, p. 13-14, 1839 (grifos nossos).
33
Jules Michelet pode ser visto como a representação desta percepção do historiador como aquele que
tem uma dívida para com os mortos. A esse respeito, ver HARTOG, François. Op. cit., 2013a, p. 150.
34
OLIVEIRA, Maria da Glória de. Escrever vidas, narrar a história. A biografia como problema
historiográfico no Brasil oitocentista. 2009. Tese (Doutorado em História). Universidade Federal do Rio
de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009, p. 161.
38

Barbosa para identificar o trabalho do historiador, que deveria se sentar sobre a “tumba
do homem”. A referência à morte e, consequentemente, a um dado futuro (posterior à
própria vida) é o que caracteriza seu entendimento sobre aquele ofício: o futuro garantirá
que o presente se torne passado, possibilitando que a história seja feita legitimamente.
Complementando essa noção, indicava a busca pela verdade como a principal obsessão
do historiador, algo que só podia ser feito seguindo rígidos critérios que desprezassem
motivações pessoais. Daí a utilização de expressões como “argumentos de partido” e
“conselhos de lisonja” para representar aquilo que devia ser negligenciado pelo estudioso
da história.
Em metáfora muito semelhante à utilizada por Januário Barbosa, Manoel de
Araújo Porto-Alegre, ao fazer o elogio dos membros falecidos no ano de 1848, indicava
a morte como território do historiador, equiparando-o, inclusive, ao do poeta:
O poeta e o historiador, sentados sobre as pedras que cobrem essas paixões
finadas, poderão através das novas tempestades, do burburinho
contemporâneo e dos interesses do dia, navegar sem estorvos e protestos nesse
mundo do passado, tão plácidos e firmes como o Índio do Amazonas reclinado
na sua rede atada aos ramos de um cedro gigantesco, que desce ao grado da
corrente, embalado pela tormenta e acariciado pela esposa que lhe prepara a
comida35.

Entenda-se aqui morte não apenas no sentido figurado, como também literal. No
último trecho, inclusive, a ocasião era a de rememorar os mortos, colaborando com o
fortalecimento da memória institucional. Metaforicamente, o distanciamento promovido
pela morte, em ambos os casos, é comparável ao que se esperava em relação ao presente:
apenas com o seu fim é que a verdade podia vir à tona.
No primeiro caso, o discurso de Januário, a referência é ao fato de que à história
cabia tratar daquilo que já acabou, tornando-se passado. Seu campo era definido pela
negação de ligações afetivas com o historiador, que devia tratar de fazer sua narrativa
com completa imparcialidade. No segundo, identifica-se uma morte individual que
impulsionava também um apelo à coletividade da instituição. Entende-se, neste caso, que
a vida, posto que finda, se tornava passível de ser contada em seus pormenores.
Deduz-se, portanto, que a imparcialidade é feita da mesma matéria que a morte:
ambas possuíam sua identidade marcada pelo desaparecimento da vida. Daí a associação
constante feita pelos sócios do IHGB entre os conceitos de posteridade e de

35
PORTO-ALEGRE, Manoel de Araújo. “Histórico Geral dos membros falecidos”. RIGHB, tomo XI, p.
179, 1848 (grifos nossos).
39

imparcialidade. Araújo Porto-Alegre já dissera em 1844, em situação semelhante à


anteriormente apresentada, que “[...] a posteridade despe o manto das paixões mundanas,
para trajar a toga do Anjo da imparcialidade, e distinguir o aparente do real, o falso do
verdadeiro”36. À posteridade era conferido o papel de juíza dos acontecimentos,
justamente por contemplar o distanciamento temporal que promovia a imparcialidade;
esta, por conseguinte, só existia em função desse mesmo deslocamento temporal
garantido pelo futuro. Uma boa chave para compreender a relação entre esses dois
conceitos é dada pelo mesmo sócio em 1849:
[...] a posteridade é de uma imparcialidade constante para com o passado: é o
tribunal da civilização, e a depositária que entesoura todas as riquezas que lhe
foram legadas por seus antepassados: a severidade contemporânea é adoçada
pela indulgência dos vindouros: o trabalho do homem de gênio é como um
monumento visto ao longe: admira-se a sua massa imponente, a harmonia de
suas linhas gerais, os contornos de suas partes, sem se descer à análise
microscópica de seus mais pequeninos detalhes. A posteridade aceita a obra
como uma herança pingue; estima-a e a considera como produto de uma mão
desconhecida que a mimoseara: não há mais o indivíduo, não há mais o terrível
eu, que é o gérmen de todos os senões das obras humanas 37.

O tribunal da história – ou, como será visto adiante, o “tribunal da posteridade” –


foi um topos recorrentemente utilizado pelos membros do IHGB para ajudar na definição,
então incipiente, dos objetos e da forma de narrar a história. A problemática do presente
deve ser incluída nessa tematização, tendo em vista que a ideia de um tribunal futuro
rechaçaria qualquer possibilidade de ajuizar sobre e no presente. Há, contudo, que
especificar as argumentações que, ao longo da primeira década do grêmio, apareceram
para justificar os usos da expressão. Assim, se por um lado entendia-se que a distância
temporal garantiria menor emotividade em relação ao objeto narrado e, portanto, menos
perigo de incorrer em uma narrativa parcial – prenhe de “paixões”38 –, por outro, o avanço

PORTO-ALEGRE, Manoel de Araújo. “Elogio dos sócios do Instituto, mortos neste 6º ano
36

Acadêmico”. RIHGB, tomo VI, p. 36, 1844.


37
“Ata da sessão de 15 de dezembro de 1849”. RIHGB, tomo XII, p. 555, 1849.
38
Argumentação que já aparecia desde Luciano de Samósata, segundo quem a história deveria, acima de
tudo, ser “livre de espírito” e não temer ninguém nem esperar nada, “[...] senão será igual aos maus juízes
que, por favor ou por ódio, julgam em vista da recompensa”. O bom historiador conjugaria uma série de
fatores, excluindo-se as paixões que só fariam cegá-lo. Em resumo, ele não poderia ter medo; tinha de ser
“[...] incorruptível, livre, amigo da franqueza e da verdade; como diz o poeta cômico, alguém que chame
os figos de figos e a gamela de gamela, alguém que não admita nem omita nada por ódio ou por
amizade; que a ninguém poupe, nem respeite, nem humilhe; que seja juiz equânime, benevolente como
todos a ponto de não dar a um mais que o devido; estrangeiro nos livros e apátrida, autônomo, sem rei,
não se preocupando com o que achará este ou aquele, mas dizendo o que se passou”. SAMÓSATA,
Luciano de. Op. cit., 2009, p. 67 e p. 71 (grifos nossos).
40

do tempo poderia possibilitar um acréscimo de sentido e de compreensão dos eventos


impossíveis em uma análise direta. Neste caso, o historiador do futuro se encontrará numa
posição privilegiada frente ao cronista dos acontecimentos contemporâneos: a
investigação histórica, partindo da exigência da verdade, deverá se pautar na acuidade
documental, associada ao afastamento temporal do historiador em relação ao objeto de
sua investigação39.

A Independência, já se disse, foi um assunto bastante citado pelos membros do


IHGB em seus anos iniciais. Apesar de não ter sido naquele momento considerada parte
integrante da história a ser escrita, devido aos poucos anos passados e à presença de
testemunhas vivas do evento, ela foi alvo constante de reflexão. O caso era de não tratar
historicamente 1822, mas discutir como isto seria feito depois, apresentando aos
historiadores do futuro o caminho que deveriam percorrer para elaborar uma narrativa
fidedigna. Compreende-se, portanto, a proposta lida em 16 de março de 1839, em sessão
ordinária, na qual se admitia “[...] encarregar uma comissão de apresentar uma memória
sobre os fatos que deram lugar à proclamação da independência do Brasil”40.
Elaborada por Eusébio de Queiroz Mattoso Câmara, a proposição foi aceita pelos
demais sócios no mês seguinte. A aprovação veio junto com o convite de que os senhores
Joaquim Gonçalves Ledo, José Clemente Pereira e Januário da Cunha Barbosa fossem os
responsáveis por formar uma comissão “[...] encarregada de coligir e escrever tudo aquilo,
que possa esclarecer ao historiador sobre a gloriosa época da nossa independência”41.
Nota-se que a ideia central era de preparar aquilo que podia servir aos historiadores; não
se pretendia, portanto, fazer a história da Independência42.

39
OLIVEIRA, Maria da Glória de. Op. cit., 2009, p. 162-163.
40
“Ata da sessão de 16 de março de 1839”. RIHGB, tomo I, p. 51, 1839. Interessante comentar que, nesse
caso, há certa permissividade para tratar do presente em memórias. Em relação ao exemplo mencionado,
dificilmente haveria uma proposta no sentido de tratar o mesmo tema – a Independência – em termos de
uma história. Tanto é assim que Francisco Adolfo de Varnhagen, quando da escrita de História Geral do
Brasil, lançada na década de 1850, incluía em sua narrativa o advento da emancipação política ao final da
primeira edição da obra. Nas edições posteriores, entretanto, aquele movimento fora excluído do texto
para depois servir de base para a escrita de outro livro, desta vez sobre a história da Independência – que
só foi publicado postumamente, em 1916, pela Revista. Essa análise, contudo, será retomada em momento
oportuno.
41
“Ata da sessão de 10 de abril de 1839”. RIHGB, tomo I, p. 112, 1839.
42
A partir da concepção moderna de história, verifica-se uma distinção entre fazer história (âmbito do
político) e de fazer a história (trabalho para o historiador). Cf. HARTOG, François. Op. cit., 2013a, p. 23.
41

Outro ponto a ser observado diz respeito à escolha das pessoas responsáveis pela
elaboração do projeto. Ela demonstra o posicionamento do IHGB em relação aos grupos
políticos que atuaram no período, tendo em vista a notória presença dos três sócios
mencionados nos acontecimentos que deram origem a 1822 e a forte oposição destes em
relação ao grupo liderado por José Bonifácio de Andrada e Silva. José Pereira e Januário
Barbosa participaram do Dia do Fico. O cônego foi, ainda, um dos mentores da
Representação do Rio de Janeiro, dirigida a D. Pedro, incitando-o a desobedecer às
ordens vindas de Portugal, quando seu pai anunciava, segundo a decisão tomada pelas
Cortes, que devia retornar a Portugal. Atuou também nas gestões para fazer do príncipe
“protetor e defensor perpétuo e constitucional” do Brasil e dos atos que culminaram na
convocação da Assembleia Geral Brasiliense, este último considerado importante passo
para o rompimento do Brasil com a metrópole. Ademais, Gonçalves Ledo e Januário
Barbosa fundaram o periódico Reverbero Constitucional Fluminense e, juntamente com
Pereira, formaram o que hoje se chama elite brasiliense43, facção inclinada ao liberalismo
mais radical. Vale lembrar ainda que, após a Independência, Januário foi preso e
deportado para a França, junto com outros companheiros da maçonaria, por ordem de
José Bonifácio, então ministro44.
Fica clara, portanto, a abordagem através da qual a narrativa sobre a
Independência se guiaria. As palavras de Januário da Cunha Barbosa no relatório anual
de 1841 sobre o grupo responsável pelo referido estudo são sintomáticas: “Eles farão
pública e bem fundada a relação de fatos, que eles dão gloria imortal como principais
colaboradores da independência da pátria; sua justiça se fará manifesta, apesar do
esquecimento em que são tidos”45.
Januário Barbosa, no mesmo texto, relembrou o projeto do qual foi incumbido,
juntamente com os outros dois colegas. Chegava mesmo a mostrar o interesse da proposta,

43
A utilização do conceito foi inaugurada por Roderick Barman, em seu livro Brazil: the forging of a
nation (1798-1852). Stanford: University Press, 1988, p. 76-77.
44
Notória foi, portanto, a atuação desses homens na maçonaria no período imediatamente anterior à
emancipação do Brasil: Gonçalves Ledo e Januário Barbosa eram membros da loja Grande Oriente. Para
a relação de Januário da Cunha Barbosa e os outros dois sócios do IHGB com a Independência, ver o
verbete sobre o cônego feito por Lucia Guimarães em VAINFAS, Ronaldo (Dir.). Op. cit., 2002, p. 394-
395.
45
BARBOSA, Januário da Cunha. “Relatório dos trabalhos do Instituto durante o terceiro ano social”.
RIHGB, tomo III, p. 530, 1841.
42

frisando novamente o fato de que os membros eleitos para dela tratar na comissão especial
tiveram grande parte na “glória da Independência do Brasil”. O trabalho, apesar de ainda
não ter ido a público naquele ano, estaria bem adiantado e serviria “[...] para
esclarecimento de alguns pontos da época principal da história do Império, que alguém
pretende desfigurar”. Pretendia-se, assim, que a elaboração de tal memória pudesse
colaborar com um conhecimento verdadeiro sobre o acontecido. Não obstante, devido a
“circunstâncias imperiosas, mas não invencíveis”, a memória estava sendo adiada para
“tempo oportuno”46 – tempo este que, ao que parece, nunca chegou realmente, pois o
estudo não foi concluído. A proximidade com o período narrado pode explicar a definição
de um prazo mais longo para que o assunto pudesse ser destrinchado sem grandes
problemas.
Ainda sobre a relação entre a agremiação e a Independência, vale recordar as
palavras de Araújo Porto-Alegre em 1848, quando boa parte dos homens que atuaram
naquele movimento (incluindo Januário Barbosa) já havia falecido. Sobre eles, dizia:
Todos esses protagonistas do grande drama, que verteram lágrimas de dor e de
prazer, que sofreram dos homens, e que foram arrastados em triunfo; que
beberam na taça do desterro o fel da prescrição, e que ocuparam os mais altos
cargos da sociedade, hoje repousam sentados em um solo de luz e de eterna
serenidade: hoje, sorrindo-se para a terra que os viu nascer, aguardam o
grande restaurador do passado, o juiz que os há de julgar perante a
humanidade, e colocá-los no competente posto!47

Substituindo o ideal cristão do Juízo Final, ao futuro era delegada a tarefa de julgar
tais acontecimentos, já que no presente isso ainda não era possível. A história trazia, com
isso, uma força tão moralizante, quanto assustadora. Essa metáfora, da história como
tribunal, segundo Koselleck, “[...] se alimenta da pressuposição de uma justiça que se
realiza através da história”48. Em passagem anterior, Porto-Alegre comentava justamente
sobre esse papel restaurador do futuro, o que fazia muito sentido no caso dos participantes
de 1822:
A posteridade não tem culpa da injustiça dos contemporâneos, antes ela é
o vingador supremo, o justo reparador daqueles que sofreram
injustamente: a posteridade releva sempre os desvios do homem, uma vez que

46
Ibidem, p. 530.
47
PORTO-ALEGRE, Manoel de Araújo. “Elogio Histórico Geral dos membros falecidos”. RIGHB, tomo
XI, p. 177, 1848 (grifos nossos).
48
KOSELLECK, Reinhart. “A configuração do moderno conceito de história”. _____ (Et. al.). O
conceito de história. Belo Horizonte: Autêntica, 2013, p. 147-150.
43

ele lhe consagre uma flor do seu engenho, um legado de sua riqueza intelectual,
ou um fato que lhe sirva de proveito49.

Por cooptar a função de “tribunal” para si, a história faria justiça à memória dos
mortos, vingaria suas penas e repararia suas perdas. Não é à toa que o autor apresenta a
posteridade em oposição à contemporaneidade no quesito julgamento. A primeira sabe
julgar, é a única, em realidade, capaz de fazê-lo corretamente – ao contrário dos
contemporâneos que são, quase que por natureza, injustos. O que garante a justiça da
posteridade em contraposição à injustiça da contemporaneidade é um só fator: a passagem
do tempo. Somente ela possibilita o esfriamento das emoções, garantindo uma apreensão
menos pessoal do objeto de investigação.
Aparentemente indo de encontro a essa perspectiva, Januário Barbosa propôs que
o IHGB assumisse a tarefa de produzir uma espécie de diário político do Segundo
Reinado: as Ephemerides50. Outra sugestão do cônego que também demonstra a
preocupação em preparar a história do presente a ser apresentada ao futuro, ainda que sob
outro aspecto, foi esta: atento à dificuldade dos oradores do Instituto em esclarecer
determinados aspectos das vidas dos sócios falecidos, quando era necessário elaborar a
biografia dos mesmos para ser lida em sessão solene, propôs que os membros fossem
avisados a mandar os tais “esclarecimentos” sobre a própria vida, em “[...] memória
lacrada, e com declaração no sobrescrito, ao arquivo do Instituto [...]”. Por fim, não
poderia ser esquecido que havia um prazo para que as memórias fossem abertas, “[...]
quando constar a morte do sócio a que pertencem”51.
O cuidado em criar a memória da instituição era uma constante naqueles anos e
as biografias dos falecidos que dela fizeram parte existiu como prática do IHGB ao longo
de todo o oitocentos, e mesmo posteriormente. A ideia de facilitar essa atividade deixava
transparecer outro tipo de procedimento que trouxe marcas muito profundas ao cotidiano
da associação: o arquivamento de documentos de cunho memorialístico ou autobiográfico

49
PORTO-ALEGRE, Manoel de Araújo. Op. cit., p. 169, 1848 (grifos nossos).
50
“Ata da sessão de 18 de maio de 1839”. RIHGB, tomo I, p. 114, 1839. Assim como na maior parte das
vezes, as sugestões do cônego eram prontamente aceitas pela agremiação e logo postas em prática. A
atuação do religioso na instituição já foi matéria de muitos trabalhos acadêmicos. Chega-se a constatar
que, até sua morte, em 1846, Januário foi o grande responsável pela rotina da agremiação. Por isso,
muitos projetos por ele encabeçados eram rapidamente aceitos pelos demais sócios, que pareciam
concordar com sua liderança. A identidade do IHGB, que ainda estava sendo gestada naquele seu
primeiro decênio, muito lhe deveu. Lucia Guimarães chama-o de o grande executivo do IHGB. Op. cit., p.
484, 1995.
51
“Ata da sessão de 19 de maio de 1841”. RIHGB, tomo III, p. 234, 1841 (grifos nossos).
44

até, pelo menos, a morte de seus autores. Esta ideia de preservar os homens de possíveis
constrangimentos em vida, ao mesmo tempo em que se objetivava guardar em lugar
seguro aquilo que poderia ser vislumbrado no futuro e serviria a um propósito importante
para a instituição, aparece no IHGB ao longo de todo o período monárquico, o que pode
ser verificado através da análise de sua Revista. Neste sentido, Januário demonstrou a
validade de o Instituto se tornar um grande arquivo para servir aos historiadores do futuro:
O Instituto Histórico e Geográfico tomou a seu cargo reunir primeiramente
documentos incontestáveis, despi-los de quaisquer sombras que os possam
tornar duvidosos, e assim oferecê-los a futuros historiadores como
indispensável material sobre que trabalhe a sua crítica e a sua filosofia52.

Essa tarefa foi levada a sério pelos membros da agremiação, fato ao qual o próprio
faz referência no ano seguinte: “[...] aumenta-se de dia a dia o depósito de fatos históricos,
que devem servir mais comodamente aos nossos futuros historiadores, que nos arquivos
do Instituto encontrarão copioso cabedal sobre que trabalhe a sua crítica” 53. Tal encargo
permaneceria intacto mesmo após seu falecimento, vale notar.
O estabelecimento do arquivo do Instituto era, em parte, justificado em função das
questões do presente. Assim, além de documentos isolados, trabalhos sobre momentos
recentes que pudessem motivar constrangimentos eram indicados para serem guardados
nas dependências do IHGB. Dizia a esse respeito o secretário perpétuo que
Muitos escritos se têm apresentado, que o Instituto julga não dever ainda
publicar, talvez por circunstâncias mui recentes da nossa história, e talvez por
menos perfeitos na compreensão de fatos que devem fazer o seu complexo. As
Memórias do primeiro gênero têm sido recolhidas no Arquivo para serem
publicadas quando não envolvam comprometimento; e as do segundo foram
reenviadas aos seus autores com observações da Comissão de censura, para se
darem à luz pública depois de refundidas 54.

Esse trecho, que deixa clara a postura do IHGB em relação a estudos que tinham
como foco os fatos recentes, apresenta também a prática recorrente da instituição em
avaliar trabalhos a ela remetidos por seus sócios. Seguindo o modelo das academias
setecentistas, o espírito associativo era pensado em termos da concepção de um programa
de trabalho coletivizado, cujas tarefas eram distribuídas entre os associados, enquadrando

52
BARBOSA, Januário da Cunha. “Relatório dos trabalhos do Instituto durante o quarto ano social”.
RIHGB, tomo IV (Suplemento), p. 5, 1842.
53
BARBOSA, Januário da Cunha. “Relatório lido no ato de solenizar-se o 5º aniversário do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro”. RIHGB, tomo V, p. 6, 1842.
54
Ibidem, p. 19-20.
45

a produção individual em limites estabelecidos55. Daí a presença constante de


mecanismos censórios para definir o que podia ou não ser produzido pelos seus
membros56.
Ao invés de uma junta de censores, no caso das academias, o que existia no
Instituto eram comissões. De acordo com os Estatutos de 1838, o IHGB esclarecia o papel
das comissões de geografia e história: deveriam receber as memórias, documentos e
artigos oferecidos por sócios ou não sócios e, a partir de suas análises, produzir pareceres
indicando-os ao periódico, à publicação avulsa, ou, ainda, ao arquivo da instituição. Tais
pareceres tomavam por base critérios tanto acadêmicos, quanto da conveniência da
publicação do trabalho avaliado. Além disso, a relevância dos escritos só era observada
caso eles se coadunassem com a crítica documental e estivessem de acordo com o
posicionamento político que, então, se estabelecia como consensual pela instituição. Por
fim, o julgamento e a aceitação de tais trabalhos levava em conta a abordagem de temas,
eventos ou circunstâncias que pudessem afetar pessoas vivas – o que devia ser evitado a
todo custo57.
Entende-se, neste caso, a assertiva de Januário na passagem citada. A publicação
de escritos apresentados ao Instituto devia passar por um crivo que levava em conta a
proximidade das circunstâncias neles contidas. A menos que não comprometessem nada
nem ninguém – o que era raro, tratando-se da narrativa de momentos atuais –, dificilmente
poderiam ser publicados. Mais certo era se tornarem parte do arquivo do Instituto, de
onde sairiam em época oportuna.
Exemplo da restrição do IHGB a trabalhos que não se enquadravam naqueles
moldes foi o do programa histórico apresentado por Alexandre Maria de Mariz Sarmento
em fevereiro de 184158. Nele pretendia-se trabalhar com as sociedades secretas

55
Havia um princípio acadêmico “[...] então em vigor de impessoalizar e coletivizar a produção”. Ver a
esse respeito SOUZA, Roberto Acízelo de. O Império da Eloquência. Rio de Janeiro: EdUERJ/EdUFF,
1999, p. 19-20.
56
Fabiana Dias, em sua dissertação de mestrado, indica que a prática censória do IHGB era uma herança
das academias ilustradas. DIAS, Fabiana. Por entre legados e demandas: um estudo sobre os programas
históricos apresentados no IHGB (1838-1856). 2009. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade
do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009, p. 75.
57
Ibidem, p. 75.
58
O referido programa histórico indagava: “Quais as sociedades secretas se têm estabelecido no Brasil e
desde quando, ou sejam nele inventadas, ou trazidas e imitadas de outros países; os fins do seu instituto; o
seu aumento e estado atual, ou a sua decadência e extinção; que influência hajam tido, e porque meios, na
moralidade do povo, nas suas opiniões religiosas e políticas, e nos acontecimentos mais notáveis do
país?”. “Ata da sessão de 13 de fevereiro de 1841”. RIHGB, tomo III, p. 134, 1841.
46

estabelecidas no Brasil, especialmente a maçonaria. Em resposta à intenção de Sarmento,


alguns meses mais tarde, Januário reprovava o programa, comentando que tal assunto
“[...] fosse discutido em tempo mais oportuno, atendendo ainda existirem pessoas que
pode[riam] ser comprometidas com tal discussão”, e recebeu o apoio dos demais
membros do grêmio59. Nesse caso, a forte oposição do cônego se explica pelo fato de
coexistirem, dentro do Instituto, herdeiros de facções maçônicas antagônicas, sendo o
próprio Januário representante de uma delas, “pró-Joaquim Gonçalves Ledo”, que
contrariava, à época da independência, o grupo liderado por José Bonifácio 60. Tal
procedimento repressor, por certo, reiterava a regra da agremiação, que indicava que todo
e qualquer constrangimento devia ser evitado.
Manoel Ferreira Lagos, lendo seu relatório sobre o que foi feito pelo Instituto no
ano de 1844, insistia nas palavras do secretário perpétuo sobre o arquivamento de estudos
da história recente do país:
[...] muitos [trabalhos] têm sido lidos em nossas sessões, que o Instituto julga
não dever ainda publicar, ou por versarem sobre fatos mui recentes da nossa
história, ou por menos exatos em seu contexto; e todos eles se acham
recolhidos em nosso arquivo para saírem à luz em tempo oportuno 61.

Assim, seguindo o caminho delineado pelo cônego, a solução muitas vezes


encontrada era a de recolher documentos ou trabalhos que não podiam ser ainda
publicados – fosse por tratarem da história recente do país, fosse por incorrerem em
visíveis inexatidões – aos arquivos do Instituto para, talvez, um dia merecerem lugar nas
páginas da Revista ou de outra publicação sob o crivo do grêmio. É sobre tal prática que
trata o próximo tópico.

59
“Ata da sessão de 19 de maio de 1841”. RIHGB, tomo III, p. 235, 1841.
60
DIAS, Fabiana. Op. cit., 2009, p. 76-77.
61
LAGOS, Manoel Ferreira. “Relatório dos trabalhos do Instituto no sexto ano acadêmico”. RIHGB,
tomo VI (Suplemento), p. 13, 1844.
47

1.2 Doação e arquivamento de documentos

O Sr. Cunha Mattos compreendera a suprema utilidade de ir


edificando o edifício da história do Brasil, à proporção que ele ia
caminhando na carreira da sua existência. Juntando pois os seus
esforços ao proverbial empenho do Sr. cônego Januario da Cunha
Barbosa, lançaram a primeira pedra fundamental nos alicerces
deste edifício, que é a arca onde se salvam do dilúvio do tempo
os códices, os escritos e os monumentos da história deste
território, que assombra a imaginação, ainda a mais gigante,
quando o pretende sondar ou percorrer.
Francisco Manoel Raposo de Almeida62

A justificativa para a criação do IHGB estava fundada, entre outros aspectos, na


promoção da coleta de documentos. Na famosa assertiva inaugural lê-se que “[...] coligir,
metodizar, arquivar e publicar os documentos necessários para a história do Brasil”63
eram algumas das principais funções a serem exercidas pela instituição. Estimulava-se,
desse modo, não apenas a doação de tudo aquilo que podia interessar à produção
intelectiva de trabalhos dos mais diversos gêneros, como o próprio estabelecimento de
um arquivo central com escritos sobre o Brasil. Tamanho foi esse afã arquivístico que,
em 1849, o próprio imperador fez um apelo para que a coleta de dados cedesse lugar à
escrita da história nacional. Na sessão pública, D. Pedro II indicava os benefícios
conseguidos pela instituição, em termos da grande quantidade de fontes arquivada sob

62
ALMEIDA, Francisco Manoel Raposo de. “Elogio histórico do marechal Raimundo José da Cunha
Matos”. RIHGB, tomo XI (Suplementar), p. 237, 1848. Raposo de Almeida (1807-1886), nascido na Ilha
de São Miguel dos Açores, era bacharel em direito e doutor em cânones pela Universidade de Coimbra.
Transferiu-se para o Brasil por motivos políticos. Montou uma tipografia no Espírito Santo e colaborou
na imprensa. Fundou, entre outros, o periódico Gazeta dos tribunais. Foi deputado geral por Santa
Catarina, além de membro do Conservatório Dramático Brasileiro e sócio-correspondente do IHGB desde
1847. Faleceu em Taubaté. Ver IHGB. Dicionário de historiadores, geógrafos e antropólogos
brasileiros. Rio de Janeiro: O Instituto, 1993, vol. 4, p. 140-141.
63
Algo que foi reiterado em 1842: “[O Instituto,] Criado para coligir e guardar todos os documentos
relativos à história e geografia do Brasil, a sua mais grata e gloriosa tarefa será a de traçar, com a severa
pena do historiador fiel e imparcial, os atos do paternal governo de Vossa Majestade Imperial; a sabedoria
de seus Conselhos; a justiça, a prudência, a benignidade da sua administração; sua prestante e eficaz
proteção às Ciências, às Letras e às Artes. Tudo isto, Senhor, será o objeto dos cuidados e assíduos
trabalhos do Instituto, para serem um dia transmitidos à mais remota posteridade”. “Ata da sessão de 21
de abril de 1842”. RIHGB, tomo IV, 215, 1842.
48

seus auspícios, ao passo que alertava para a falta de trabalhos que utilizassem tão
imponente arcabouço documental64.
A partir deste dado é possível verificar que ao menos uma das tarefas propostas
pela agremiação em sua abertura foi cumprida: a intenção de salvar “do dilúvio do tempo”
os “monumentos da história”, tal como exposto por Francisco Manoel Raposo de Almeida
dez anos após a fundação do IHGB, estava sendo perseguida com vontade pelos membros
da agremiação. O chamado dos sócios fundadores Januário da Cunha Barbosa e
Raimundo José da Cunha Matos para que o Instituto centralizasse documentos
“preciosos” que restavam espalhados pelas províncias do Império foi atendido com
louvor65. De vários cantos do Brasil, e até do mundo, eram enviados papeis a serem
estocados no arquivo do Instituto. Sobre a história considerada recente, então, essa lista
só tinha a crescer.
Uma primeira referência nesse sentido foi a doação de José Ignácio de Abreu e
Lima, comentada em sessão de outubro de 1839. Além da sua obra Bosquejo histórico,
político e litterario do Brazil, cujo exemplar presenteado passou a fazer parte da
biblioteca do Instituto, Abreu e Lima oferecia um manuscrito relativo à Revolução
Pernambucana: era uma carta legítima escrita do punho de Caetano Pinto de Miranda
Montenegro. A oferta, apesar de recebida com “especial agrado” pelos sócios, foi
remetida à comissão de história, posto que Abreu e Lima tinha a intenção de que o
documento fosse publicado pelo IHGB – o que acabou não acontecendo66.
Entretanto, à medida que o tempo passava teve início a busca por documentos da
referida rebelião de 1817. Em sessão de 14 de setembro de 1848 aprovava-se, por esse
motivo, notificar ao presidente de Pernambuco “[...] a fim de se obter a coleção das
defesas dos réus da rebelião que teve lugar naquela província em 1817, documentos
arquivados na secretaria da província [...]”, além da Nobliarchia Pernambucana,

64
ROCHA, João Cezar de Castro. “História”. In: JOBIM, José Luís (Org.). Introdução ao Romantismo.
Rio de Janeiro: Eduerj, 1999, p. 45. Vale notar que, naquele primeiro decênio, o Instituto primava muito
por se tornar um depósito de documentos, ao passo que a produção historiográfica era muito pequena.
Esse fato demonstra que suas portas estavam muito mais abertas para a memória, do que para a história.
Cf. GUIMARÃES, Lucia. Op. cit., 1995.
65
“Breve notícia sobre a criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro”. RIHGB, tomo I, p. 4,
1839.
66
“Ata da sessão de 22 de outubro de 1839. RIHGB, tomo I, p. 282, 1839. Este desfecho será comentado
em tópico subsequente.
49

existente no convento dos beneditinos de Olinda67. Ainda sobre a Revolução


Pernambucana, o Instituto recebia da França, no ano seguinte, o códice com o interessante
título Guerra civil, ou sedições de Pernambuco: exemplo memorável aos vindouros,
enviado pelo sócio-correspondente Caetano Lopes de Moura68.
Outra oferta, desta vez relativa a um documento sobre a Confederação do
Equador, foi feita pelo sócio recém-chegado Manoel José de Albuquerque, em janeiro de
1840: a ata da Proclamação da Confederação do Equador, instituída pela sua província –
o Ceará – em 26 de agosto de 1824. Em suas palavras, tal documento, conservado em seu
poder desde 1825, era raro, além de “[...] bem interessante, por ser uma peça
comprobatória de uma das revoluções mais notáveis do Brasil”. Além da ata,
Albuquerque enviava à instituição uma gravura do selo que usava a Câmara Municipal
da cidade de Fortaleza no tempo do governo rebelde. O IHGB fez questão de agradecer
ao sócio pelas doações que durante tanto tempo permaneceram em suas mãos antes de
passar ao arquivo da instituição69.
Sobre o mesmo evento foi enviado ao IHGB, em 1848, o manuscrito Itinerário
que fez Fr. Joaquim do Amor Divino Caneca, saindo de Pernambuco a 16 de Setembro
de 1824 para a província do Ceará Grande, pelo sócio-correspondente Filipe Lopes
Neto. Além do agradecimento padrão, os membros presentes na reunião indicaram o
trabalho à comissão de redação, para que fosse dado parecer se o mesmo poderia ser
publicado70.
Bem antes, em novembro de 1839, o cônego Januário fazia uma lista de
documentos e obras doados no ano social na primeira sessão pública aniversária do
Instituto. Dentre os títulos comentados, nota-se a doação feita pelo sócio correspondente
Sampaio Vianna “[...] de um folheto ali [na Bahia] impresso sobre os memoráveis
acontecimentos dos dias 14, 15 e 16 de Março de 1838”, muito provavelmente se
referindo aos momentos finais da Sabinada71. Já na sessão de julho de 1843, lia-se sobre

67
“Ata da sessão de 14 de setembro de 1848”. RIHGB, tomo X, p. 407, 1848.
68
“Ata da sessão de 21 de junho de 1849”. RIHGB, tomo XII, p. 287, 1849.
69
“Ata da sessão de 25 de janeiro de 1840”. RIHGB, tomo II, p. 144, 1840.
70
“Ata da sessão de 20 de julho de 1848”. RIHGB, tomo X, p. 393, 1848. Não há notícias de que isso
ocorreu, nem mesmo do parecer que deveria ter sido feito.
71
Também comenta sobre a doação do sócio efetivo Matoso da Câmara do folheto escrito por José de
Saldanha, intitulado Breve História da Revolução dos dias 6 e 7 de Abril de 1831, no Rio de Janeiro.
BARBOSA, Januário da Cunha. “Relatório do Secretário Perpétuo”. RIHGB, tomo I, p. 215-216, 1839.
50

a doação feita pelo Senador José Bento Leite Ferreira de Mello sobre os movimentos
rebeldes paulista e mineiro de 1842. Ela consistia em “[...] respostas (impressas) dadas ao
Senado por ele e pelo Exm. Sr. Senador José Martiniano de Alencar, sobre a pronúncia
contra ambos feita pelo Juiz Municipal da 2ª vara Bernardo Augusto Nascentes de
Azambuja [...]”, no processo organizado na Corte sobre os dois movimentos. Também
apresentava as respostas dadas ao Senado na mesma ocasião “[...] pelos Exms. Senadores
Diogo Antonio Feijó e Nicolau Pereira de Campos Vergueiro, sobre a pronúncia de
cabeças de rebelião, contra eles proferida pelo Chefe de Polícia da Província de S. Paulo,
J. A. G. de Menezes, no processo da revolta de 17 de Maio de 1842”72.
Desse modo, era grande a quantidade de documentos enviados ao Instituto que
relatavam acontecimentos da primeira metade do século XIX, sobretudo em relação a
alguma rebelião travada contra as autoridades instituídas. Dali a algum tempo, quem sabe
não serviriam para escrever a história de tão funesta época?
Outra consideração que merece destaque a partir da análise das doações feitas ao
Instituto no período indicado é a importância conferida à questão sulista. Enquanto durou
a Farroupilha, e mesmo com sua conclusão, parecia haver forte interesse em manter um
arquivo que contivesse dados sobre as províncias rebeladas, tanto por parte da direção do
IHGB, quanto dos seus associados. Para isso, contudo, a documentação ofertada não
necessariamente era referente ao período em que durou a rebelião. O foco de interesse
sobre o sul do país estava em recortes cronológicos anteriores a 1835, talvez como forma
de tentar entender o porquê da eclosão da referida revolta.
Uma amostra disso foi a doação, em agosto de 1840, feita por José Joaquim
Machado de Oliveira de uma série de manuscritos oriundos do sul do Brasil. O destaque
maior não era conferido, entretanto, aos documentos que estavam sendo doados, mas
àqueles que ainda não o tinham sido. Em suas palavras, possuía, além do que fora
ofertado, outros documentos “[...] relativos à guerra do Sul começada em 1816; e por
considerá-los não inteiramente destituídos de merecimento, julgo que podem ter
semelhante destino; o que assim acontecerá logo que sejam trasladados em melhor
letra”73. Isso foi feito cerca de quatro anos depois, quando a Memória sobre a campanha

72
“Ata da sessão de 6 de julho de 1843”. RIHGB, tomo V, p. 380-381, 1843.
73
“Ata da sessão de 31 de agosto de 1840. RIHGB, tomo II, p. 423, 1840.
51

de 1816 na fronteira da Província de S. Pedro contra o exército de Artigas escrita pelo


Capitão Diogo Arouche de Moraes Lara foi finalmente entregue ao IHGB74.
O IHGB recebia documentação vinda não só do Brasil, como de outros países. De
Portugal, por exemplo, chegou uma série de documentos remetida por Antonio de
Menezes Vasconcellos de Drumond, ministro plenipotenciário na Corte de Lisboa e
sócio-correspondente da instituição75. Como conta em carta datada de outubro de 1840,
remetida juntamente com algumas ofertas, Drumond poderia ter enviado outros
documentos, não fosse uma prevenção que impôs a si próprio:
Eu possuo muitos papeis relativos à nossa história moderna destes últimos
vinte anos. Bem vejo que deles não devemos fazer ainda uso, pois é muito cedo
para julgar de ações cujos autores estão ainda entre nós; hei de porém tratar de
os colecionar para os depositar no arquivo do nosso Instituto, donde sairão
algum dia analisados pelo juízo crítico e imparcial da posteridade no curso da
nossa história76.

Adotando postura totalmente sintonizada com os anseios do Instituto Histórico,


Drumond tratou de demonstrar o respeito às leis do tribunal da posteridade77. Preocupava-
se em colecionar os papeis sobre a história recente – ou “moderna”, como invoca – para
depois enviá-los ao IHGB, onde seriam guardados por mais algum tempo até poderem se
tornar fonte de algum estudo crítico, desconectado de julgamentos pessoais.
No ano seguinte, Drumond endereçava novos manuscritos ao Instituto. Sobre
esses, esclarecia serem documentos originais: o primeiro era sobre a vistoria feita pelo

74
“Ata da sessão de 22 de fevereiro de 1844”. RIHGB, tomo VI, p. 126, 1844.
75
Antônio Menezes Vasconcelos de Drummond (1794-1874) nasceu no Rio de Janeiro. Em 1809 foi
convidado a trabalhar na chancelaria do reino recém-instalado no Brasil. Foi um dos políticos que se
destacou no processo que culminou com a Independência. Amigo dos Andradas, partiu com eles para a
oposição em 1823. Foi um dos fundadores, no mesmo ano, do jornal O Tamoyo, além de seu redator
principal. Saiu do país na época do fechamento da Constituinte e instalou-se em Paris, onde manteve
contato com José Joaquim da Rocha e com José Bonifácio. Retornou ao Brasil em 1829. Na década de
1830, iniciou a carreira diplomática. Foi encarregado de negócios interino e cônsul geral na Prússia e na
Saxônia. Em 1834, foi encarregado de negócios na Sardenha. No ano seguinte, passou aos Estados
Pontifícios. Em 1836 foi elevado à condição de Ministro Residente nos Estados Pontifícios e, anos mais
tarde, acreditado na Sardenha, tornou-se 1º Ministro Plenipotenciário de Lisboa (1839-1853). Foi
exonerado do cargo por ter denunciado abusos de uma indústria que exportava seus produtos para o Brasil
de forma pouco ética. Publicava com frequência no Journal de Voyages e nos Archives geographiques du
19 ème siècle. Escreveu trabalhos sobre a diplomacia brasileira em relação a países como Grã-Bretanha e
Guiana Francesa. Coligiu documentos de interesse para a história do Brasil, muitos deles enviados ao
IHGB, do qual fora eleito sócio-correspondente em 1839 e sócio honorário em 1842. Faleceu em Paris.
Ver IHGB. Dicionário de historiadores, geógrafos e antropólogos brasileiros. Rio de Janeiro: O
Instituto, 1996, vol. 5, p. 49-51.
76
“Ata da sessão de 16 de janeiro de 1841”. RIHGB, tomo III, p. 122, 1841.
77
GUIMARÃES, Lucia. Op. cit., p. 529, 1995.
52

corpo de engenheiros e mestrança na varanda onde foi aclamado rei D. João VI; já o
segundo referia-se à quantidade de madeira que se tirou do “desmancho” da dita varanda.
A aclamação de D. João VI foi a primeira em que o monarca esteve presente no Brasil,
daí a justificativa para o envio de tais papeis ao Instituto, que teriam suma importância
para a história a ser escrita sobre aquele tempo: “[...] os vindouros examinarão estes
documentos para ler neles os usos do nosso século, as seguranças que se tomavam, e até
onde chegavam os nossos conhecimentos na construção de semelhantes edifícios”78.
Drumond mostrava, uma vez mais, o conhecimento que tinha sobre questões
relativas à historiografia. Tanto que se vê em posição de dissertar um pouco mais
detidamente sobre esse ofício, sempre tendo em vista a colaboração que o Instituto devia
dar para a posteridade:
A história recolhe tudo, nada lhe é indiferente, desenha a fisionomia do tempo
no físico e no moral; e a perda de uma só notícia, por mais insignificante que
seja, é uma lacuna que fica em suas páginas. Muito circunspecto deve pois ser
o nosso Instituto em recolher e classificar tudo o que se passou e teve lugar na
coroação do nosso atual Imperador, na corte, nas províncias, até nos países
estrangeiros, para deixarmos em limpo esses documentos à posteridade79.

Novamente, percebe-se o entrosamento do discurso de Drumond com o que o


IHGB esperava de seus sócios. Em 1842, comentava-se em sessão que a mais grata tarefa
de responsabilidade do grêmio devia ser a de “[...] traçar, com a severa pena do historiador
fiel e imparcial, os atos do paternal governo de Vossa Majestade Imperial [...]”, tendo em
mente transmitir todos os feitos do monarca “à mais remota posteridade”80 – passagem
quase análoga à proferida por Drumond em sua carta. A instituição devia glorificar as
ações do governo de D. Pedro II, ainda que elas representassem uma história do tempo
presente. Essa tensão entre ser um braço da monarquia, prestando-lhe serviços através do
trabalho intelectual, e manter os protocolos epistemológicos da imparcialidade, associada
ao recuo temporal, caracterizou as produções do Instituto Histórico ao longo de todo o
século XIX.

78
“Ata da sessão de 5 de dezembro de 1841”. RIHGB, tomo III, p. 504, 1841.
79
Ibidem, p. 504.
80
“Ata sessão de 21 de abril de 1842”. RIHGB, tomo IV, p. 215, 1842.
53

Em momento anterior, na sessão de 21 de junho de 1841, dentre outras doações,


sinalizou-se aquela feita por Emílio Joaquim da Silva Maia81 das Memorias historicas,
politicas, e philosophicas da revolução do Porto em Maio de 1828 de seu pai Joaquim
José da Silva Maia82. A edição da obra, cuja publicação deveu-se a Emílio, foi dedicada
ao IHGB para ser protegida “com o vosso nome”: “Com a segurança, pois do vosso apoio
vão estas Memórias sair à luz e não duvido, que seja bem aceita pela honra, que lhe fazeis,
consentindo, que eu estampe na sua frente o nome do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro”83.
Tendo em suas mãos os manuscritos desde 1834, Emílio Maia, no “Prefácio do
Editor”, falava sobre as razões que o levou a publicá-los em 1841. A obra, escrita por seu
pai nos anos de 1829 e 1830, evocava o interesse por aquele tempo que “[...] parece hoje
de pouca monta, quando mais afastados daquela época os sofrimentos se têm arrefecido
com a vitória que alcançaram depois os Constitucionais Portugueses contra a
usurpação”84. Indicava ainda que
Se algum interesse tem essas Memórias é o de serem escritas na época em que
os fatos não podiam ser contestados, e em que a causa constitucional se achava
abandonada à sua própria sorte; então não podíamos julgar os homens, como
hoje, por seus feitos posteriores.

81
Emílio Maia (1808-1859) nasceu na Bahia, onde residiu por dezesseis anos. Em 1823, foi para Portugal
junto com sua família, por conta da influência de seu pai. Lá obteve grau de bacharel em filosofia. Cinco
anos mais tarde, foi para a Inglaterra, onde se engajou no corpo de voluntários acadêmicos que apoiou os
movimentos liberais do Porto, e para a França. Após uma rápida passagem pelo Rio de Janeiro, em 1829,
retornou à capital francesa, onde se graduou bacharel em ciências físicas e matemáticas. Em 1833 recebeu
também o diploma de doutor em medicina pela faculdade de Paris. No ano seguinte, voltou a seu país
natal, residindo no Rio de Janeiro até sua morte. Foi um dos fundadores do IHGB e membro honorário da
Academia Imperial de Medicina, além de professor do Colégio Pedro II. Ver a esse respeito GARCIA,
Lúcia. “Emílio Joaquim da Silva Maia: um intelectual no Império do Brasil”. RIHGB. Rio de Janeiro,
a.168 (437), p. 74-75, out./dez. 2007.
82
Ibidem, p. 74-75. A doação foi feita em 19 de maio do mesmo ano, de acordo com a dedicatória
autógrafa no exemplar doado. “Ata da sessão de 21 de junho de 1841”. RIHGB, tomo III, p. 245-246,
1841. O autor, natural da cidade do Porto, justamente o foco da referida obra, viveu muitos anos na Bahia
– onde não por acaso nasceu Emílio –, como negociante matriculado. Daí se retirou rumo à sua terra natal
juntamente com a divisão portuguesa, em 1823, quando a província abraçou a causa da independência.
Este pormenor já demonstra qual lado Joaquim Silva Maia escolheu no importante movimento pós-1822
no Brasil. Redator dos periódicos Semanário Cívico (1821-1823) e A Sentinella Brasiliense (1823),
rogava pela manutenção dos laços entre Brasil e Portugal, algo que de certo modo permeou sua trajetória
ao longo dos anos, mesmo na década de 1830, quando retornou ao Brasil e passou a redigir O Brasileiro
Imparcial (1830-1831). Tendo suas escolhas políticas entendidas muitas vezes como retrógradas, foi alvo
de manifestações polêmicas até a morte.
83
MAIA, Joaquim José da Silva. Memorias históricas, políticas e filosoficas da Revolução do Porto em
maio de 1828, e dos emigrados portuguezes pela Hespanha, Inglaterra, França e Belgica. Rio de Janeiro:
Typographia de Laemmert, 1841, p. VI. Arquivo do IHGB, Rio de Janeiro, Brasil. Ref.: 16,2,10.
84
Ibidem, p. VII.
54

Finalmente, concluo este Prefácio assegurando de novo, que a obra que vai sair
à luz não sofreu a menor alteração, e que ela conserva todo o interesse daquela
época, se já não se esvaneceu pelo lapso de 12 anos, que tem decorrido com
bem variados sucessos85.

A esse respeito, antecipava as possíveis críticas pela escolha de editar tal trabalho:
“[...] muita gente pensará que fui guiado, publicando estas Memórias, por motivos
pessoais e não por amor ao público”86. Alertava que houve sim um apreço pessoal pela
empreitada – queria “pagar um tributo” à memória do pai, conforme indicou em outro
trecho –, o que não excluía, por outro lado, o interesse pela “moderna história de
Portugal”, que matinha tantos laços com o Brasil87. Isso porque, assim como seu pai,
Emílio Maia entendia a história do Brasil em termos de continuidade com a história lusa.
Portugal era por ele visto como “nosso progenitor” e, da mesma forma que o passado e o
presente da nação brasileira estavam conectados com sua antiga metrópole, o aprendizado
rumo ao futuro também se estabeleceria por meio dessa perspectiva. Maia compreendia
que os acontecimentos da história moderna portuguesa muito teriam a servir ao Brasil
recém-independente e à construção de sua história nacional88. Tudo isso, enfim,
justificava a publicação das memórias paternas e a consequente oferta feita ao Instituto.
A despeito de a instituição estabelecer os limites para o que era considerado
história recente (a partir de 1817, como já foi visto), Emílio Maia não via grandes
problemas com a publicação, em 1841, do manuscrito de seu pai sobre os acontecimentos
de 1828 no Porto. Em sua opinião, um tempo considerável havia se passado e algum
julgamento podia ser feito, ao contrário da época em que seu pai escreveu, totalmente
imerso nos episódios. Isso porque esse tipo de narrativa, elaborada durante o desenrolar
do próprio evento, possuía um entrave poderoso: a interpretação apenas do imediatamente
próximo, do agora. Perdia-se, desse modo, a percepção de que havia um processo se
desenrolando. Por esse motivo, quem escrevia no e sobre o presente teria necessariamente
que se eximir de julgar os homens, porque a intelegibilidade da experiência só se tornaria
possível com o movimento do tempo, quando poderia ser abarcada em toda sua
completude. Assim, se na década de 1820 isso ainda não era exequível, dez anos depois

85
Ibidem, p. IX.
86
Ibidem, p. VI.
87
Ibidem, p. VI.
88
GARCIA, Lúcia. Op. cit., p. 77, 2007.
55

o cenário era outro. Para Emílio, esse lapso possibilitava que o foco das análises de seu
pai se transmutasse em um passado já afastado e acabado e, portanto, passível de ser
compreendido e avaliado89.
Se por um lado essa postura de Maia parecia destoar um pouco do que vinha sendo
discutido no IHGB sobre a impossibilidade de se tratar da história recente, por outro vale
lembrar que a doação ao Instituto não pressupunha a publicação da obra pela instituição,
visto já ter sido feita pelo próprio sócio. As Memorias historicas, politicas, e
philosophicas da revolução do Porto em Maio de 1828 de Joaquim José da Silva Maia
não trariam muitos problemas, tendo em vista que sua publicação, além de póstuma, não
estava diretamente atrelada ao IHGB – apesar do pedido de Emílio para que o Instituto
desse seu aval ao livro, o que ficaria estampado na publicação. Além disso, seu autor,
como bom partidário da união entre Brasil e Portugal mesmo após a Independência,
possuía pensamento semelhante ao do grêmio, interessado em contar de forma linear e
sem rupturas a história brasileira a partir da portuguesa.
Em outras ocasiões, Emílio da Silva Maia demonstrou com produção intelectual
própria que realmente compartilhava dessa premissa com o pai. E, também, que não via
problemas em tratar de temas considerados recentes pelo IHGB, como foi o caso dos seus
Estudos Históricos sobre Portugal e Brasil, série de dezoito documentos que
permaneceram guardados nos arquivos do Instituto e até hoje não foram publicados90.
Tais manuscritos tratam dos principais acontecimentos que permearam a vida política e
cultural dos dois países, desde os feitos lusitanos do século XV até a Revolução do Porto.
Dos dezoito volumes que compõem o conjunto, doze livros foram utilizados para tratar
do período entre 1807 e 182191. A não publicação dos Estudos pelo Instituto e o fato de
permanecerem inéditos podem corroborar a visão de que o IHGB resolveu por bem

89
O que se depreende dos trechos citados: “[...] então não podíamos julgar os homens, como hoje, por
seus feitos posteriores”, “[...] quando mais afastados daquela época os sofrimentos se têm arrefecido [...]”
e “[...] ela [a obra] conserva todo o interesse daquela época, se já não se esvaneceu pelo lapso de 12 anos,
que tem decorrido com bem variados sucessos”. MAIA, Joaquim. Op. cit., 1841, p. VII e p. IX.
90
GARCIA, Lúcia. Op. cit., p. 107, 2007. De acordo com a autora, os manuscritos foram copiados por
Pinto Bueno em 1864. Como não eram datados, estima-se que foram escritos na primeira metade do
século XIX. Sabe-se, porém, que o Estudo Primeiro foi escrito em 1855, quatro anos antes da morte de
Emílio Maia.
91
O último livro diz respeito à revolução ocorrida na Bahia em 1821. Parece-me que Maia incorporou
neste tópico anotações já desenvolvidas em outro trabalho seu feito em 1852. Refiro-me à Historia da
Revolução efetuada na Bahia no dia 10 de fevereiro de 1821, que também se encontra no Arquivo do
IHGB. Ref.: Lata 26, doc. 11.
56

guardá-los pela forte presença da história recente do Brasil (e de Portugal) em suas


páginas, sobretudo o complicado período que antecedeu à formação do Estado
independente.
Após a morte de Emílio da Silva Maia, como de praxe, a instituição teve de render
homenagens ao sócio fundador. Através da fala de Joaquim Manuel de Macedo, em 1859,
tem-se a construção da imagem do morto como homem de letras e de ciência, isento em
relação às questões políticas da época92. Ainda que em relação à sua produção intelectual
Maia tenha demonstrado forte preocupação em refletir sobre o tempo presente, ele nunca
chegou efetivamente a se envolver em revoltas ou a ter cargos políticos, como indicou
Macedo. Foi através da pena e não da espada que Maia apoiou determinadas bandeiras,
como, por exemplo, a do estreitamento dos laços entre Portugal e Brasil – herança de seu
pai. Ao Instituto coube a tarefa de tornar-se o depósito para seus trabalhos sobre a história
dos dois países. Não se sabe até que ponto isso foi uma escolha do próprio Silva Maia ou
uma imposição do IHGB; só se tem notícia que, no caso dos Estudos Históricos sobre
Portugal e Brasil, os dezoito manuscritos foram ofertados ao Instituto pela viúva do
desembargador Antonio Ferreira de Souza Pitanga, provavelmente já no século XX.

Ao longo dos anos, o arquivo do IHGB só parecia aumentar93. Nas mais diversas
situações adotou-se protocolo semelhante em relação ao lugar conferido à documentação
sobre a história recente. Normalmente, os documentos eram guardados na instituição para
servirem, no futuro, ao propósito de escrever a história daquele tempo94. Referendando
essa posição, recorre-se novamente a uma fala de Januário da Cunha Barbosa, que dizia
que o aumento diário do depósito de fatos históricos da instituição “[...] devem servir

92
MACEDO, Joaquim Manuel de. “Discurso do Orador do Instituto Histórico”. RIHGB, tomo XXII, p.
704-712, 1859. Entre outros aspectos, Macedo destacava o fato de Maia não ter se envolvido “[...] nas
lutas dos ardentes comícios públicos, nem nos certames arrebatados da imprensa política”. Macedo tinha
em comum com Maia, além da atuação no IHGB, o Colégio Pedro II, onde ambos lecionavam.
93
Claro está que as ofertas não eram apenas relativas a documentos do presente ou do passado recente.
Comuns também eram doações de documentos oficiais, tais como leis, relatórios e/ou atas de assembleias
provinciais. Esse foi o caso do sócio Francisco do Rego Barros, então presidente de Pernambuco, que
ofereceu uma coleção de leis de sua província, além de dois relatórios sobre os anos de 1839 e 1840 que
abordavam sua presidência. Acredita-se que a doação desse tipo de fonte era algo em sintonia com aquela
ideia de que o IHGB seria o centro catalisador de todo o Império, para onde as diferentes regiões
deveriam se guiar, inclusive em termos de arquivar documentação. BARBOSA, Januário da Cunha.
“Relatório do secretário perpétuo”. RIHGB, tomo II, p. 601, 1840.
94
Não se pode esquecer o exemplo dado por Lucia Guimarães sobre a documentação de Silvestre
Pinheiro Ferreira a respeito da Independência: apenas muitos anos após sua morte, em 1888, é que elas
seriam publicadas na Revista. GUIMARÃES, Lucia. Op. cit., p. 519, 1995.
57

mais comodamente aos nossos futuros historiadores, que nos arquivos do Instituto
encontrarão copioso cabedal sobre que trabalhe a sua crítica”95.
A preocupação com os documentos presumia uma atenção para com os fatos que
seriam julgados pelo tribunal da história. Sobre isto, havia a necessidade também de
arquivar tudo aquilo relativo à atualidade, ao governo de D. Pedro II. Pois a proposta não
era de apenas conservar documentos, mas de convertê-los em fontes primárias para o
historiador do futuro96:
Fundado debaixo de seus auspícios, este literário estabelecimento parece
destinado a marcar os fastos memoráveis do reinado do Sr. D. Pedro II; nem
escapam ao buril da história tantos acontecimentos que se vão sucedendo, e
que levarão o nome de tão amável Príncipe à mais remota posteridade,
acompanhado dos gloriosos epítetos de protetor das letras, ciências e artes,
amigo e pai de seus patrícios e súditos. Todos esses acontecimentos ficarão
assim mais estampados na memória dos homens, do que escritos, passados
anos, e já decaídos de suas primitivas cores97.

1.3 Vetos e censuras

1.3.1 As rejeições sofridas por José Ignácio de Abreu e Lima

Ao lado do arquivamento de documentos doados a pedido do próprio remetente,


conforme foi visto, era prática constante no IHGB não permitir a publicação de escritos
que versassem sobre a história mais recente do Brasil. O já mencionado manuscrito
ofertado por José Ignácio de Abreu e Lima98 pode servir ao propósito de averiguar tal

95
BARBOSA, Januário da Cunha. “Relatório lido no ato de solenizar-se o 5º aniversário do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro”. RIHGB, tomo V, p. 6, 1843.
96
Para entender esse processo de “conversão” do documento em fonte primária, ver CERTEAU, Michel
de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006, p. 81.
97
BARBOSA, Januário da Cunha. “Relatório lido no ato de solenizar-se o 5º aniversário do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro”. RIHGB, tomo V, p. 7, 1843.
98
Nascido em Pernambuco, Abreu e Lima (1794-1869) teve uma vida muito conturbada. Da formação
militar, adquirida através do curso feito na Real Academia Militar, passou a prisioneiro político (devido
ao envolvimento de seu pai, o “Padre Roma”, com a Revolução Pernambucana) e, após conseguir fugir da
prisão na Bahia, a exilado na Venezuela, depois de uma rápida passagem pelos Estados Unidos. Acabou
combatendo pela independência das colônias espanholas na América, motivo pelo qual passou a ser
chamado de “General de Bolívar”. Quando finalmente conseguiu voltar para o Brasil, em 1832, passou a
desempenhar o papel de jornalista polêmico, publicando em periódicos que ele mesmo editava suas
opiniões a respeito, principalmente, do ex-imperador D. Pedro I, de quem era adepto, depois de sua
58

prática. Na sessão do dia 22 de outubro de 1839 discutiu-se sobre a doação do documento


que era descrito por seu despachante como de extrema necessidade para a compreensão
da “nossa moderna história”99. Referia-se, então, a uma carta endereçada ao Conde da
Barca de autoria de Caetano Pinto de Miranda Montenegro, escrita à época da Revolução
Pernambucana. Segundo Abreu e Lima, o dito documento representava “[...] parte
original das circunstâncias, que deram lugar à infausta revolução da província de
Pernambuco [...]”, e sua autenticidade era incontestável100. Tais definições serviam ao seu
objetivo de justificar o pedido feito ao IHGB: a publicação o “quanto antes” de tão
valoroso registro histórico.
Cerca de dois meses mais tarde, a comissão de história deu seu veredito ao pedido
de Abreu e Lima. Nas palavras do segundo secretário, Manoel Ferreira Lagos, os
membros da comissão entenderam que,
[...] conquanto um tal documento seja na verdade de muito preço, não convém
todavia publicá-lo já pelo comprometimento que a sua publicação poderia
levar a pessoas ainda existentes; e por isso a comissão é de parecer que o
sobredito documento seja guardado nos arquivos do Instituto até que todos os
nomes nesse documento mencionados tenham comparecido perante o tribunal
da posteridade101.

Assim, a despeito da vontade do sócio, sua oferta foi arquivada. A opinião de que
um documento sobre 1817 devia não só fazer parte do arquivo do IHGB, como também
ser publicado em seu periódico, já naquele ano de 1839, não encontrou muito eco entre
seus pares. Fica claro, de acordo com a comissão de história, que o comprometimento que
a publicidade de tal documento poderia acarretar a pessoas ainda vivas fazia com que

partida para Portugal. Para Abreu e Lima, a Abdicação foi a causadora da maioria dos problemas do
Brasil, e o resgate da figura de D. Pedro I seria de central importância para garantir a unidade do Império.
Foi também autor de uma série de livros, professor de matemática e editor de pasquins. Em 1855 publicou
pela Tipografia Universal a obra O socialismo, apresentando uma definição original do conceito,
compreendendo-o a partir de uma perspectiva evolucionista, como “um desígnio da Providência”, que só
poderia ser atingido a partir da união entre família, religião e propriedade. Morreu em sua terra natal.
ENGEL, Magali Gouveia. “José Ignácio de Abreu e Lima”. In: VAINFAS, Ronaldo (Dir.). Op. cit., 2002,
p. 436-437; e MATTOS, Selma Rinaldi Mattos. Para formar os brasileiros. O compêndio da história do
Brasil de Abreu e Lima e a expansão para dentro do Império do Brasil. 2007. Tese (Doutorado em
História) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007, p. 23-32.
99
“Ata da sessão de 22 de outubro de 1839”. RIHGB, tomo I, p. 282, 1839.
100
“Ata da sessão de 22 de outubro de 1839”. RIHGB, tomo I, p. 282, 1839. O Conde da Barca era
Antonio de Araújo e Azevedo, então secretário de Estado. Já Caetano Pinto de Miranda Montenegro
atuava como o presidente da província de Pernambuco quando estourou a Revolução de 1817. De acordo
com Lucia Guimarães, esse documento evidenciava certa simpatia de Caetano Montenegro para com a
rebelião. Op. cit., p. 518, 1995.
101
“Ata da sessão de 19 de dezembro de 1839”. RIHGB, tomo I, p. 294-295, 1839 (grifos nossos).
59

fosse mister guardá-lo até época pertinente. O tribunal da história, nesse caso, era clamado
por conta da necessidade de arrefecimento das emoções que ainda existiam em relação ao
conflituoso evento.
Tal decisão acabou se transformando em uma espécie de exemplo para outros
casos semelhantes, como apontou Lucia Guimarães. Ainda de acordo com esta
especialista, é necessário compreender os motivos que levaram os membros da comissão
a rejeitarem o pedido de Abreu e Lima. Dois importantes sócios do IHGB estiveram
envolvidos da Revolução Pernambucana: o general Francisco Soares de Andréa e um dos
fundadores do IHGB, o marechal Raimundo da Cunha Matos. Este último teria tido papel
de destaque na luta contra os rebeldes pernambucanos102. Publicar uma carta do período
em que transcorreu referida rebelião era algo que feria, portanto, um dos critérios que
embasavam a avaliação da comissão de história.
Vale notar ainda que, pela primeira vez, a expressão “tribunal da posteridade”
surgia na Revista para servir, como argumento, ao propósito de embarreirar o
aparecimento de referências a períodos conturbados da política nacional mais recente. De
uma maneira geral, essa locução sintetizava anseios que serão retomados a todo o
momento dentro da agremiação: o afastamento temporal para a justa avaliação do objeto
investigado, a partir do princípio de imparcialidade e de isenção emocional, bem como a
ideia de que o que ocorre no presente só deve ser apreendido no futuro, quando tornar-se-
á plenamente perceptível aos observadores, porque visualizado em seu conjunto.

Apesar da tentativa de o Instituto aparentar forte unidade de pensamento e ação


entre seus membros, a censura ao pedido de Abreu e Lima demonstra a dificuldade dessa
coesão103. Esta não foi, contudo, a última vez que o general sofreu represálias por parte
de outros sócios da agremiação. Aparentemente, tanto este exemplo, quanto outro que o
seguiu, servem para demonstrar o embate de opiniões destoantes entre Abreu e Lima e

102
GUIMARÃES, Lucia. Op. cit., p. 518, 1995.
103
O IHGB procurava sempre demonstrar nas páginas de sua Revista um consenso e uma unidade que
dificilmente existia fora delas. As discussões sobre quais deveriam ser os pressupostos a serem seguidos
no Instituto eram constantes, e demonstravam opiniões conflitantes que não apareciam na publicação:
“Tais intervenções se efetivavam, portanto, apenas no âmbito da oralidade, mesmo porque não seria
conveniente difundir a heterogeneidade que havia por detrás daquela aparente harmonia”. DIAS, Fabiana.
Op. cit., 2009, p. 22. Cf. HRUBY, Hugo. Obreiros diligentes e zelosos auxiliando no preparo da grande
obra: a História do Brasil do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1889-1912). 2007. Dissertação
(Mestrado em História) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2007, p.
21.
60

demais membros do Instituto Histórico. E, de formas distintas, remetem para aspectos


relativos aos limites para o desenvolvimento de uma história que abordasse o presente.
Ao falar sobre seu Compendio de História do Brasil, ofertado ao Instituto em
setembro de 1843, o escritor comentava as noções de verdade e imparcialidade, e de que
forma elas estavam presentes em seu texto104. A opinião do general pernambucano sobre
tais quesitos soava um tanto específica: “Em quanto à verdade e à imparcialidade, tenho
a suave consolação do que me dita a minha própria consciência, e isto me basta por
ora”105. Em seu manual de história, Abreu e Lima reportava-se mais à sua “consciência”
e, portanto, a critérios subjetivos, do que aos de uma história crítica, partindo de
documentos e do olhar imparcial do historiador106. Apesar de esse não ter sido o principal
foco da crítica de Francisco Adolfo de Varnhagen na grande polêmica por eles
encabeçada em relação ao compêndio, demonstra o quanto Abreu e Lima divergia do que
estava sendo proposto no IHGB em termos de escrita da história.
Meses antes de ser publicada a análise feita por Varnhagen, outro sócio, José
Joaquim Machado Oliveira, criticou em sessão do Instituto o trabalho de Abreu e Lima.
Sentindo-se lesado, justamente por ter feito parte de alguns acontecimentos descritos no
livro, Machado de Oliveira apontava erros no manual, que se referiu à sua administração
no Pará (1832-1833) ligada “[...] ao partido dirigido pelo Cônego Batista, a quem atribui
os males e vicissitudes por que tem passado a mesma Província”107. Esperava, assim, que
o diagnóstico dado ao livro levasse em conta também este aspecto. Na mesma sessão,
Januário da Cunha Barbosa comentou, em resposta, que o referido parecer já tinha sido
feito pela comissão de história e que, portanto, não havia como entrar em novos detalhes.

104
O Compendio da Historia do Brasil (daqui por diante denominado apenas como Compendio) foi
publicado, em 1843, pelos Laemmert. No mesmo ano, houve duas edições do livro: a primeira, que
continha dois tomos e muitas notas de pé-de-página, além da transcrição de muitos documentos, acabou
substituída por uma segunda edição que tinha apenas um tomo. Muita coisa foi “enxugada”, sobretudo, as
estampas, retratos e documentos, nessa segunda edição. Não há certeza sobre qual das duas edições foi
doada ao IHGB.
105
“Ata da sessão de 14 de setembro de 1843”. RIHGB, tomo V, p. 396-397, 1843.
106
Em alguns trechos do Compendio é possível perceber o forte cunho memorialístico da narrativa, como
quando fala a respeito da Revolução Pernambucana e da participação de seu pai, o “Padre Roma”, nela.
MATTOS, Selma. Op. cit., 2007, p. 28-30. Para isto, o próprio Abreu e Lima atentava no “Prefácio” de
seu livro: “[...] no que toca à revolução de Pernambuco em 1817, extratei a história ultimamente
publicada pelo Dr. Muniz Tavares, com pequenas alterações na parte de que eu estava totalmente
informado”. ABREU E LIMA, José Ignácio de. Compendio da Historia do Brasil. Tomo I. Rio de
Janeiro: Typographia Universal de Laemmert, 1843, p. IX-X (grifos nossos).
107
“Ata da sessão de 16 de novembro de 1843”. RIHGB, tomo V, p. 536, 1843.
61

Vale notar o caráter pessoal desta crítica sofrida por Abreu e Lima. Por tratar de
momentos tão recentes, ele incorreu no erro sobre o qual o IHGB tanto prevenia:
comentou sobre a participação de pessoas ainda vivas nos eventos narrados. A fala de
Machado de Oliveira parece servir de exemplo ao que o Instituto vinha advertindo. Seu
clamor por justiça se faz compreensível a partir dessa perspectiva: as supostas inverdades
pronunciadas por Abreu e Lima em seu livro acabaram surtindo um efeito de crítica
pessoal.
Na mesma ocasião, a comissão de história foi chamada a dar seu parecer à obra.
Foram encarregados desta tarefa Bento da Silva Lisboa e Diogo Soares da Silva Bivar,
que acabaram sendo substituídos unicamente por Varnhagen108. Comenta-se que sobre tal
decisão parece ter pesado a mão sempre vigilante do secretário perpétuo, o cônego
Januário109.
Varnhagen apresentou, então, aquilo que denominou de “Primeiro Juízo” a
respeito do Compendio, e que deu início a uma acirrada polêmica com o general
pernambucano. O foco da crítica despendida por Varnhagen teria sido, sobretudo, o fato
de o escritor ter copiado exaustivamente o livro Histoire du Brésil (1815) do francês
Alphonse de Beauchamp – que, por sua vez, já seria um plágio do texto History of Brazil
de Robert Southey (1810). Para Varnhagen, a não utilização de fontes e da crítica das
mesmas por parte de Abreu e Lima representava um grande absurdo, que destoava
totalmente dos pressupostos fixados pelo IHGB naqueles tempos110.
O veto de Varnhagen ao manual de Abreu e Lima deve ser compreendido, então,
no âmbito da prática historiográfica e das transformações que estavam ocorrendo na
maneira de representar o passado111. De acordo com o parecerista, Abreu e Lima cometeu
falhas gravíssimas: não só escolhera não escrever a história do Brasil partindo de critérios
de uso costumeiro de historiadores modernos (como era o caso de Southey, para quem

108
Vale notar que Varnhagen ainda não era o autor do célebre História Geral do Brasil nessa época, mas
alguém que também galgava seu espaço dentro do Instituto.
109
MATTOS, Selma. Op. cit., 2007, p. 178-179.
110
Para uma análise mais detalhada da querela, ver o trabalho de MEDEIROS, Bruno Franco. Plagiário,
à maneira de todos os historiadores: Alphonse de Beauchamp e a escrita da história na França nas
primeiras décadas do século XIX. 2011. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade de São
Paulo, São Paulo, 2011, p. 86-106; e MATTOS, Selma. Op. cit., 2007, p. 178-197.
111
MEDEIROS, Bruno. Op. cit., 2011, p. 91.
62

Varnhagem rendeu todos os elogios112), como optou justamente por copiar um autor tão
depreciado quanto Beauchamp. Na análise de Varnhagen, o plagiário francês não merecia
nenhuma recomendação.
A análise de Varnhagen evidencia disputas no campo da recém-inaugurada
historiografia brasileira – levando em conta, evidentemente, o protagonismo pretendido
pelo próprio IHGB. O projeto de escrita da história levado a cabo por Abreu e Lima
ligava-se a formas mais tradicionais, as quais vinham, desde o início do oitocentos, sendo
deslegitimadas por uma “crescente historicização da realidade”, bem como pela
necessidade de documentos originais oriundos de arquivos para atestar a veracidade do
passado a ser representado. Este era o tipo de história defendido por Varnhagen e que
encontrava oposição na figura “retrógrada” de Abreu e Lima113.
O uso que Abreu e Lima fez da história contemporânea em seu Compendio
também foi alvo de críticas, como o exemplo de Machado de Oliveira dá prova. Parece
que, também nesse aspecto, o autor se espelhou nas ideias do historiador francês, segundo
quem uma das dificuldades (senão a única) em escrever a história do presente era o fato
de ela não possuir um modelo ou guia. Ele mesmo, entretanto, não deixou de levar à frente
muitos escritos que tinham como foco a história contemporânea da França; vários de seus
trabalhos foram sobre essa temática.
Abreu e Lima, seguindo Beauchamp, comentava que o oitavo capítulo de seu
compêndio foi escrito de seu “próprio punho”, sem referência a outrem, por se tratar da
história recente do Brasil. Justificou sua atitude de não recorrer a outros escritos para
elaborar seu próprio trabalho, como fez no restante do livro, justamente pela falta de um
modelo, já que “nada havia escrito desta época”114. Usou, então, tipos de fontes que
pudessem auxiliá-lo na tarefa: testemunhas ainda vivas que estiveram presentes nos
acontecimentos narrados e/ou sua própria memória a respeito dos mesmos.
A despeito de fazer questão de escrever sobre o passado recente do Brasil, Abreu
e Lima chegou a atentar para as dificuldades de tal empreitada. Além de não haver nada
que pudesse ser “copiado”, um grande problema ao escrever sobre o presente era, segundo

112
Ibidem, p. 93-94. Southey foi citado por Varnhagen como seguidor de todos os historiadores
“modernos e de bom critério”, porque, além de utilizar vasto arcabouço documental para fazer sua crítica,
fazia citações à margem do texto e colocava em notas “os fundamentos do seu juízo e discurso”.
113
Ibidem, p. 96.
114
ABREU E LIMA, José Ignácio de. Op. cit., 1843, p. X.
63

o general, a inconveniência em tornar público o conteúdo de alguns episódios, assim


como os personagens neles envolvidos. Parecia, então, atento às discussões que vinham
sendo efetivadas no Instituto, algo que sentiu na pele quando do veto à publicação do
documento por ele ofertado em 1839.
Apesar disso, levou adiante a ideia de comentar fatos contemporâneos em seu
manual, contentando-se em os assinalar sem muita reflexão115. Digna de nota, contudo, é
a quantidade de páginas reservadas a esse período em seu livro: 203, de um total de 456
páginas! Ou seja, 45% do compêndio era relativo ao tempo recente, ou à época
“moderna”, como Abreu e Lima costumava indicar – os anos entre 1808 e 1841.
Apenas o relato sobre os momentos posteriores à emancipação política do Brasil
rendeu um terço do texto116. O autor não hesitou em se apresentar como um cronista
naquela ocasião e recorreu à própria experiência vivida para a escrita da história do seu
tempo117. Para evitar maiores problemas, chegou a omitir nomes de algumas pessoas que
figuraram nos fatos narrados “[...] para evitar queixumes, e talvez ressentimentos
daqueles com quem vivemos de parceria”. Nesse sentido, indicava sua atuação mais como
próxima a de um “simples cronista” do que a de um historiador, por deixar de aprofundar
suas opiniões sobre os acontecimentos expostos e sobre pessoas neles envolvidas118.
Segundo ele, a dificuldade em tratar da história recente residia em larga medida na
acanhada possibilidade de ser totalmente imparcial. Por isso, havia tentado não
comprometer nenhum homem ainda vivo, fazendo o possível para se referir aos
acontecimentos “[...] como se passaram, e deixando à posteridade o direito de julgá-
los”119. Mesmo com esses cuidados, a reclamação feita por Machado de Oliveira
demonstra o malogro de Abreu e Lima em sua pretensão de não ferir ninguém com sua
escrita.

115
MEDEIROS, Bruno. Op. cit., 2011, p. 89-90.
116
MATTOS, Selma. Op. cit., 2007, p. 122. Para a autora, Abreu e Lima propunha uma periodização
própria, que não respeitava nem a divisão de Januário Barbosa – que dividia a história do Brasil em
“época antiga” e “moderna” –, tampouco as três “épocas” de Raimundo Cunha Matos.
117
Ibidem, p. 146.
118
ABREU E LIMA, José Ignácio de. Op. cit., 1843, p. XI.
119
Ibidem, p. XII.
64

Os desentendimentos em relação ao Compendio acarretaram a saída de Abreu e


Lima em 1844 da instituição, após grande parte dos sócios, incluindo o cônego Januário,
terem apoiado a dura crítica de Varnhagen ao livro120.
Illmo Sr. – Em vista do Parecer da Comissão de Redação da Revista Trimensal
do Instituto histórico, exarado na sessão de 19 de Janeiro último, e que vem
impresso à página 124 do n. 21 da mesma Revista, acerca do Primeiro Juízo
do Sr. Francisco de Adolpho Varnhagen, sobre o meu Compêndio da História
do Brasil, não me é lícito nem decoroso continuar a pertencer à mesma
associação, portanto devolvo a V. S. o Diploma de Membro Honorário, que
me foi conferido pelo mesmo instituto em 6 de novembro de 1839, esperando
que com esta devolução seja meu nome riscado da lista de seus sócios. Deus
Guarde a V. S. Rio de Janeiro 23 de abril de 1844. J. I. de Abreu e Lima 121.

A exclusão de Abreu e Lima da lista dos associados do Instituto está, portanto,


ligada à desfavorável recepção de suas ideias, constatada desde 1839 com a doação da
carta de Caetano Montenegro. Tanto na censura à publicação do documento (ofertado
para este fim, vale lembrar), quanto na crítica negativa sofrida por seu manual de história,
fica perceptível a sua falta de sintonia com os ideais do IHGB.
A instituição, ao tentar promover a ideia de que havia uma homogeneidade de
pensamento e ação em torno de um projeto comum entre seus membros, acabou por não
aceitar a forma como Abreu e Lima se posicionava em termos de escrita da história –
inclusive no que diz respeito aos usos que fez do presente. A atitude um tanto quanto
autoritária do Instituto teria motivado, inclusive, o sócio a se retirar não só da agremiação,
mas também do Rio de Janeiro, retornando à sua terra natal, em 1844122. O lado polemista
de Abreu e Lima, contudo, não deixou que a querela terminasse por aí: mesmo após
retornar a Pernambuco, escreveu três textos publicados pela Tipografia de M. Faria, em
resposta ao Instituto nas figuras de Varnhagen e de Januário da Cunha Barbosa123.

120
Januário da Cunha Barbosa, segundo Abreu e Lima em seu texto “Resposta do General ao Cônego”, já
o vinha insultando publicamente desde 1834, da época em que era diretor do Correio Oficial e da Mutuca
Picante. MATTOS, Selma. Op. cit., 2007, p. 186-187.
121
ABREU E LIMA, José Ignácio. Resposta do General J. I. de Abreu e Lima ao Cônego Januário da
Cunha Barbosa ou análise do primeiro juízo de Francisco Adolf de Varnhagen acerca do Compendio da
Historia do Brazil. Pernambuco: Typographia de M. F. de Faria, 1844, p. 8.
122
MATTOS, Selma. Op. cit., 2007, p. 148. Abreu e Lima sofreu também outros desafetos no Rio de
Janeiro. Foi o caso das inúmeras tentativas do general em aconselhar D. Pedro II e oferecer-lhe seus
serviços militares, quando da rebelião sulista dos Farrapos, por exemplo. O monarca nunca parece ter lhe
prestado alguma atenção.
123
Ibidem, p. 185-187. Foram eles: “Ao Público”, “Resposta do General ao Cônego” e “Análise do
Primeiro Juízo”, ambos de 1844.
65

1.3.2 A expulsão de Benoit Jules Mure

Atitude semelhante, ainda que mais contundente, teve a corporação em relação a


outro sócio. Uma vez mais, antagonismos entre os membros e suas concepções de
história, como também de visão de mundo, acabaram tendo como desfecho a saída de um
deles daquela instituição.
Isso se deu no ano de 1847, quando um golpe terrível abateu o Império do Brasil:
o primogênito do imperador e, portanto, sucessor ao trono brasileiro, D. Afonso, faleceu
precocemente. Como era de se supor, a notícia estarrecia tanto a família real, quanto
aqueles que se preocupavam com o futuro do Brasil enquanto Império. O IHGB, portanto,
não podia deixar de estar atento a esse contexto.
A primeira iniciativa tomada foi propor uma solenidade “[...] para comemorar a
saudade que nos deixa tão inesperado e doloroso sucesso [...]”124. Para tanto, foi realizada
uma reunião na sala das sessões do Instituto em que, além do discurso do orador, seriam
lidas “peças” de outros sócios que quisessem dar sua contribuição àquela manifestação
de solidariedade ao imperador e ao Império. A proposta indicava ainda a publicação em
quinhentos exemplares das peças recitadas em “[...] um volume de formato grande,
dedicado pelo Instituto aos Augustos Pais do Príncipe falecido”125.
Aos que desejassem participar da solenidade apresentando seus trabalhos, bastava
demonstrar tal desejo e escrever a peça que seria lida no dia do festejo fúnebre. Já para a
publicação, os autores deviam mandar os textos para serem submetidos à aprovação antes
de impressos – o que só seria feito após a sessão extraordinária126.
Esta, ocorrida no dia 1º de julho daquele mesmo ano, foi feita de acordo com os
pressupostos anteriormente estabelecidos. De uma forma geral, os discursos lidos na
ocasião manifestavam a dor pela perda do príncipe, além da solidariedade para com a casa
imperial127. Os sócios faziam questão de demonstrar o quanto a perda fora sentida pela

124
“Ata da sessão de 17 de junho de 1847”. RIHGB, tomo IX, p. 289, 1847.
125
Ibidem, p. 290.
126
Ibidem, p. 292.
127
Os discursos foram lidos pelos sócios Santiago Nunes Ribeiro, Emílio Joaquim da Silva Maia,
Francisco Manoel Raposo de Almeida, Joaquim Norberto de Sousa Silva, Rodrigo de S. José, Benoit
Jules Mure e Francisco de Paula Menezes. Como também já tinha sido acordado, seriam feitas as
alocuções pelo presidente e pelo orador do Instituto. O acesso a esses discursos foi possível graças à
publicação dos mesmos em um tomo suplementar da Revista de 1848.
66

instituição. Apontavam, ainda, para uma tentativa de justificar tal acontecimento em certa
medida inexplicável: ocorrera por conta da tão temida Providência divina – “A
Providência! A Providência, que nos quis mostrar na humanação de um anjo o terrível
exemplo de sua onipotência!”128.
A Providência explicaria, ainda, a má direção que alguns pareciam tomar no
Brasil, rebelando-se contra a unidade política e, consequentemente, contra o poder
imperial, como pretendia demonstrar Manoel de Araújo Porto-Alegre:
Ela quis que numa época vertiginosa, que no seio de um povo ingrato a tantos
benefícios do Céu, se operasse este grande sacrifício, para que os Brasileiros
melhor soubessem apreciar sua ventura na América; para que eles olhassem o
Trono como o paládio de sua grandeza e de sua única felicidade; para que eles
no meio do sobressalto de um golpe extraordinário, encarando o passado,
calculando o futuro, se abraçassem, se unissem, e recuassem diante do abismo
medonho, que mais de vez tem cavado a cegueira de mesquinhas paixões129.

A morte do príncipe era vista como uma espécie de “sacrifício”, necessário


também em outras épocas da história, como ocorrera com Joanna D’Arc na França. A
esse respeito, Luiz Antonio de Castro foi categórico: “Um sacrifício precioso por um
resgate, ou bem uma provação em troca da iniciação dos homens em um maior grau de
perfeição, são coincidências que a cada passo nos patenteia tanto a história antiga como
a moderna”130.
Vida e morte de D. Afonso, assim, apareciam como parte das circunstâncias
promovidas pela Providência – crença que caracteriza uma determinada visão de história
empreendida pelos agremiados. No discurso de Luiz Antonio de Castro não existia a
possibilidade de coincidências. De acordo com o sócio, não foi por mero acaso que “[...]
desde o reinado do Senhor Dom João IV sobre a augustíssima Casa de Bragança [...]” os
“[...] primogênitos têm sido feridos de morte prematura [...]”131. Declarava que esse tipo
de sacrifício foi necessário para que a monarquia portuguesa pusesse fim ao julgo
espanhol, em dado momento de sua história. Da mesma forma, a morte do príncipe

128
“Discurso do orador Manoel de Araújo Porto Alegre”. RIGHB, tomo XI (Suplementar), p. 12, 1848.
129
Ibidem, p. 12.
130
“Recordação pelo sócio Luiz Antonio de Castro”. RIGHB, tomo XI (Suplementar), p. 64, 1848.
131
Ibidem, p. 65.
67

brasileiro era uma forma de sacrifício que expurgaria o grande mal do Brasil: o
“esquecimento da pátria”, no dizer de Araújo Porto-Alegre132.
Assim, os discursos feitos na solenidade em homenagem ao príncipe falecido
pareciam estar em concordância e apresentavam pontos bem próximos no que diz respeito
ao entendimento de seus autores sobre o que foi o terrível acontecimento. Claro está que,
ao lado desse tipo de retórica, os sócios apresentavam suas condolências ao imperador
pondo em destaque sua benevolência sempre que necessário – procedimento adotado não
somente no evento em questão, mas em diversas ocasiões.
Na sessão do dia 3 de julho de 1847, portanto dois dias após a solenidade, veio à
tona a questão da publicação133. A reunião iniciou-se com a proposta de que a votação
para a impressão dos discursos proferidos no dia 1º fosse feita por escrutínio secreto,
como queria Araújo Porto-Alegre. Contra essa ideia, Raposo de Almeida pedia que não
houvesse segredo, que os sócios declarassem “[...] aberta e francamente, se houve algum
trabalho impróprio de ato tão solene como foi a reunião de 1º de Julho”. Em seguida,
referia-se ao trabalho do Dr. Bento Mure, que, segundo ele, não deveria ser de forma
alguma publicado, “[...] não só por conter muitas ideias extemporâneas e ofensivas na sua
parte prosaica, mas ainda por se achar já impressa a parte poética, o que vai de encontro
ao programa publicado pelo Instituto”134.
De acordo com a ata da sessão publicada na Revista, houve forte discussão e,
dentre os sócios nela envolvidos, ao que parece, apenas o Dr. Freire Alemão opunha-se
ao parecer de Raposo de Almeida, ao indicar que o merecimento ou não dos trabalhos
apresentados não dizia respeito ao talento literário de seus artífices. Seguiu-se a opinião
de Gonçalves de Magalhães, favorável ao que foi exposto por Alemão, mas indicando
que “[...] pelo que acaba de ouvir, todos os Srs. membros presentes são de voto de que os

132
“Discurso do orador Manoel de Araújo Porto Alegre”. RIGHB, tomo XI (Suplementar), p. 12, 1848.
133
Presentes naquela ocasião estavam além do presidente (José Feliciano Fernandes Pinheiro, Visconde
de S. Leopoldo), do 1º vice-presidente (Candido de Araújo Vianna), dos 1º e 2º secretários (Manoel
Ferreira Lagos e “Dr.” Francisco de Paula Menezes, respectivamente) e do orador da instituição (Manoel
de Araújo Porto Alegre), os sócios Joaquim Norberto de Sousa Silva, Francisco Manoel Raposo de
Almeida, Luis Antonio de Castro, Antonio Álvares Pereira Coruja, o coronel José Joaquim Machado de
Oliveira e os “Drs.” (assim denominados na ata) Emílio José da Silva Maia, Francisco Freire Alemão,
Ludgero da Rocha Ferreira Lapa, Antonio Rodrigues Cunha, Antonio Pereira Pinto, José Mauricio Nunes
Garcia, Domingos José Gonçalves de Magalhães e Francisco de Paula Menezes.
134
“Ata da sessão de 3 de julho de 1847”. RIHGB, tomo IX, p. 411, 1847.
68

discursos devem ser impressos, menos o do Sr. Dr. Mure; e que esta opinião igualmente
é a sua”135.
Ao final da ata, comenta-se que este último parecer de Magalhães foi aprovado
unanimemente pelos membros do Instituto presentes na sessão136. Era necessário, então,
fazer pública a decisão, começando pelo aviso ao próprio autor que não teria seu trabalho
publicado. Assim, a partir da sessão seguinte, do dia 10 de julho, ocorre a publicação na
íntegra, nas páginas da Revista, da correspondência entre o Dr. Mure e o 1º secretário do
IHGB, Manoel Ferreira Lagos.
A primeira carta, datada do dia 4 de julho, de autoria do 1º secretário, explicava
ao Dr. Mure137 que seu discurso não poderia ser publicado na produção que estava no
prelo138. No dia seguinte, o médico respondia questionando a decisão, tendo em vista que
o Instituto havia comunicado que todas as peças seriam publicadas. Argumentava, ainda,
que caso o veredicto fosse mesmo irremediável, a posse do discurso deveria ser-lhe
restituída139. A resposta do secretário veio em seguida. Indicava que o manuscrito oficial
do discurso continuaria depositado no arquivo do Instituto, alertando para que a reparação
que Mure desejava não seria possível. Além disso, lembrava que o IHGB já havia

135
Ibidem, p. 411.
136
Ibidem, p. 411.
137
Benoit Jules Mure (1809-1858), conhecido no Brasil como Dr. Bento Mure, era francês. Frequentou a
Faculdade de Medicina de Montpellier e fez também algumas aulas em Paris, onde teria conhecido o
médico alemão Samuel Christian Friedrich Hahnemann, autor do livro Organon da arte de curar, que deu
origem ao princípio da homeopatia. Essa experiência parece ter tido suma importância na vida de Mure,
que se tornaria um grande incentivador e divulgador daquela medicina. Viveu em seu país natal até 1837,
quando resolveu sair pela Europa Meridional para tornar conhecida a prática da homeopatia. Em 1840
aportou no Rio de Janeiro com a intenção de fundar no Brasil uma colônia societária francesa que
representasse o interesse da Union Industrielle de Paris. Mais do que uma comunidade “industrial”, ao
que parece, Bento Mure intencionava criar um falanstério, nos moldes preconizados por Charles Fourier:
uma sociedade pautada na propriedade comunitária, na qual todos exerceriam atividades compatíveis com
suas vocações, aliando trabalho e lazer, e onde os bens produzidos na colônia fossem distribuídos
proporcionalmente às necessidades de cada família. As autoridades imperiais aprovaram o projeto de
Mure e concederam terras e empréstimos financeiros ao médico francês. Mure criou, então, a Colônia
Societária do Sahy, na província de Santa Catarina, que recebeu colonos franceses com o intuito principal
de fabricar máquinas a vapor. Antes da derrocada deste projeto, chegou a fundar no Sahy o primeiro
Instituto Homeopático do país, como parte da Escola Suplementar de Medicina Homeopática. Foi para o
Rio de Janeiro em 1843, onde criou o Instituto Homeopático do Brasil, juntamente com o Dr. Vicente
José Lisboa, em evidente oposição à “antiga medicina”, a alopatia, e com forte preocupação de cunho
social. Retornou à sua terra natal em 1848 e faleceu no Egito. AZEVEDO, Luana Oliveira de. Um
Império e duas medicinas. A introdução da Homeopatia no Brasil na década de 1840. 2008. Monografia
(Graduação em História) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008.
138
“Ata da sessão de 10 de julho de 1847”. RIHGB, tomo IX, p. 415, 1847.
139
Ibidem, p. 416.
69

decidido, tempos antes, que os discursos passariam por uma aprovação prévia, antes de
impressos, ao contrário do que Mure mencionara em sua carta140.
A resposta de Mure foi clara: apenas havia relegado seu direito de autoria do
manuscrito por acreditar que o mesmo seria publicado e, já que “uma das partes” havia
descumprido seu papel, a outra – no caso, ele mesmo – não via o porquê de seguir os
ditames da instituição. Assim sendo, declarava que:
[...] à vista do injustificável ato de confiscação que quer me fazer sofrer o
Instituto, declaro que me julgo novamente dono e legítimo proprietário do meu
trabalho, apesar do Instituto não me o querer restituir: protesto contra
semelhante arbitrariedade, e novamente reclamo o meu manuscrito, que,
conforme os programas publicados, não podia ter sido submetido a uma,
talvez, parcial censura141.

A instituição, representada por Ferreira Lagos naquela troca de missivas, alegou


então que apenas reintegraria a posse do trabalho de Mure a seu autor caso este fizesse
uma pública forma da peça e a entregasse para ser arquivada no Instituto. Além disso,
Lagos esclarecia que o Sr. Dr. Mure seria “[...] excluído do número dos membros do
Instituto, exigindo-se o respectivo diploma na ocasião de lhe fazer a devida
participação”142.
Expulso do IHGB, do qual fora sócio desde 1845, Bento Mure, ainda em uma
última carta endereçada à instituição, comentou que era de seu desejo “[...] publicar este
discurso e a nossa correspondência, visto o que ela tem tido de extraordinário, e ser ele
[o discurso] a causa”143. Acreditava ainda que a deliberação repressora foi ditada por “[...]
uma maioria de médicos, um voto desfavorável e aliás não muito imparcial, na existência
da luta de princípios e opiniões que em medicina se ventila atualmente”144. Por fim,
não aceitou devolver o diploma de sócio correspondente do Instituto.
Desnecessário mencionar que tal escolha foi malquista pelos membros do Instituto
Histórico. Todo o impasse teve fim com uma nota na ata da sessão de 22 de julho: após
ávida discussão entre os sócios, ficava decidido que
[...] por todas as folhas diárias se faça constar oficialmente ao público que o
Sr. Dr. Mure fora riscado da lista dos membros do Instituto; e outros são de

140
Ibidem, p. 416.
141
Ibidem, p. 417 (grifos nossos).
142
Ibidem, p. 417.
143
“Ata da sessão de 22 de julho de 1847”. RIHGB, tomo IX, p. 423, 1847.
144
Ibidem, p. 423 (grifos nossos).
70

parecer que a sociedade se conserve por ora na expectativa do procedimento


futuro do mesmo Sr. Dr. Mure, a fim de deliberar quando por ventura ele faça
uso de qualquer modo de um diploma, que já lhe não compete. Prevalece afinal
a última opinião, ordenando igualmente o Instituto que na Revista Trimensal,
nas respectivas atas, seja transcrita toda a correspondência movida a tal
respeito145.

Resta saber no que consistia o dito discurso, que sofreu críticas tão fortes a ponto
de relegar seu autor à exclusão da lista de sócios da agremiação. Para tanto, recorre-se à
pública forma de “La mort de S. A. I. Don Alphonse”, ode par le Docteur Bento Mure,
que se encontra ainda hoje nos arquivos do Instituto, conforme fora ordenado ao médico
quando de sua expulsão.
Escrito em francês, o documento constitui-se de duas partes: o discurso proferido
pelo então sócio da instituição e a “Ode”, que já havia sido publicada anteriormente146.
Logo no início da preleção, Mure indicava que aquele trágico acontecimento poderia
colaborar com o desenvolvimento “[...] de fecundos ensinamentos e de misteriosas
esperanças [...]”147. Clamando os auspícios da Providência, explicava todo o processo
com a noção de sacrifício: o Brasil devia perder seu herdeiro para que algo melhor
surgisse depois.
De primeira, o discurso parecia se enquadrar naquela mesma temática proposta
pelos demais sócios que apresentaram suas condolências à família imperial. Só que, ao
contrário de seus colegas, Mure percebia nos desígnios da Providência algo ainda mais
avassalador: era o progresso da humanidade que estava em jogo – e “progresso” entendido
do ponto de vista científico. Mas, diferentemente do que se poderia supor a priori, a
ciência não deveria ser isenta de concepções morais, ou até mesmo religiosas. Mure

145
Ibidem, p. 423-424.
146
O autor considerou pertinente reiterá-la naquela ocasião, posto que não seria apenas “[...] uma ficção
poética [...]”, e sim uma forma de “[...] pensamento profundo e real [...]”, visando compreender o “[...]
sentido verdadeiro [...]” do triste acontecimento. MURE, Bento. “La mort de S. A. I. Don Alphonse”, ode
par le Docteur... [Discurso manuscrito]. 1847. 7 f. Arquivo do IHGB, Rio de Janeiro, Brasil. Ref. Lata
119 – Doc. 7, f. 4 (tradução livre). Do original: “C’est ce que j’ai cherche à exprimer dans l’ode suivante,
que j’ai déja publiée, mais que je sous demande la permission de lire et de la joindre à ce discours parce
qu’elle ne renferme pas pour moi une fiction poétique mais une pensée profonde et réelle, et donne le
sens véritable du triste et touchant évènement que l’Institut a voulu consacrer par cette reunion”.
147
Ibidem, f. 1 (tradução livre). Do original: “Monsieurs – Je croiras manquer à un devoir sacré envers
Dieu, envers mes semblabes et envers moi même, si par quelque consideration humaine je manquais à
venir rendre témoignage sur les cendres du Prince enlevé prématurement au Brésil, et redire les sens
profundement vrai de cette mort pleine de feconds enseignements et de mystérieuses esperances”.
71

acreditava que ela, e sobretudo a medicina, deveria tornar-se cristã148. Fazia clara apologia
à homeopatia, demonstrando-a, partindo da citação do nome de Hahnemann, seu grande
inspirador, como a oposição a certa tradição que supunha “pagã e materialista”.
Assim, aquela morte tão sentida servia para que a humanidade pudesse,
finalmente, dar um novo passo149. Qual seria este? Claro está que teria a ver com essa
“nova” medicina pregada pelo Dr. Mure. Uma medicina que levasse em conta os
pressupostos que comentara anteriormente, que fosse uma “ciência cristã”. Uma
medicina, por fim, que devia ocupar lugar certo no Brasil, o que complementava mais
uma vez a sua ideia de que a morte do futuro herdeiro ao trono brasileiro tinha sua razão
de ser:
O Brasil, escolhido por Deus para ser o primeiro teatro da redenção física da
humanidade, o Brasil, cujo futuro social e político depende da Homeopatia,
repousava ainda encadeado sob os laços da ciência antiga respeitando ainda os
velhos dogmas da doutrina oficial. Os inovadores, depois de inumeráveis
combates, sentiam dobrar-se sua coragem, a calúnia venenosa acompanhava
todos os seus passos, a perseguição iluminava suas classes, quando Deus se
levantou e com um golpe imprevisto deu testemunho, ainda uma vez, de seu
desejo de salvar os homens sem eles, e pode-se dizer, apesar deles150.

O Brasil era, pelos próprios desígnios divinos, o ambiente prenhe de


possibilidades para uma transformação brusca no domínio científico; era o lugar por
excelência do progresso da homeopatia. Essa mesma ideia está presente na “Ode”151:

148
Para ele, o progresso científico e, em consequência deste, o progresso na medicina dizia respeito a uma
nova forma de tratar os pacientes, adotando concepções menos materiais e mais sentimentais e religiosas.
Esse ideal médico estava articulado a uma percepção de “socialismo” como exercício de vida, mais do
que apenas uma teoria. Havia uma militância principalmente na prática e, através dela, a religião tornava-
se uma ciência e a ciência era dotada de um conteúdo espiritualista “[...] de tal forma a dissipar neste
campo também, a contradição entre fé e conhecimento, pois o objetivo do socialismo é promover a
conciliação universal, a união de contrários”. Cf. GALLO, Ivone. “O socialista da província do Rio de
Janeiro: um olhar sobre o socialismo do século XIX”. Anais do XIX Encontro Regional de História:
Poder, Violência e Exclusão. ANPUH/SP – USP. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008, p. 8.
149
MURE, Bento. Op. cit., 1847, f. 2 (tradução livre). Do original: “[...] le bruit de cette mort inattendue
aprenne à tous que l’humanité allait faire un nouveau pas”.
150
Ibidem, f. 3 (tradução livre). Do original: “Le Brésil choisi par Dieu pour être le premier theatre de la
redemption physique de l’humanité, le Brésil dont l’avenir social et politique dépend de l’Homoeopathie,
languissait encore enchainé sous les liens de la science ancienne et respectait encore les vieux dogmes de
la doctrine officielle. Les novateurs, après d’innombrables combats, sentaient fléchir leur courage; la
calomnie empoisonneuse accompagnait tous leurs pas, la persecution éclaircissait leurs rangs, lorsque
Dieu se leva et par un coup imprevu temoigna encore une fois de sa volonté de sauver les homes sans
eux, et l’on peut dire malgré eux”.
151
Os temas abordados na forma poética são os mesmos contidos no discurso anterior: o fato de o
príncipe ter morrido por uma vontade divina e como essa morte, vista como um sacrifício, poderia levar
ao progresso da humanidade. A associação à homeopatia se faz de forma menos clara, assim como a
crítica à medicina tradicional, o que não quer dizer, por outro lado, que não apareçam de forma indireta
nesta parte do texto.
72

[...] Este século onde tudo se regenera,


Onde tudo renasce, onde tudo perece.
Este século abre uma nova era
Para a matéria e para o espírito.
Aqui nasce um novo império,
Aqui a ciência se inspira
Ao sopro do verbo salvador.
Novo saber, nova terra.
Ondas novas, novo Hemisfério,
Brilha o signo redentor152.

Retornando ao texto inicial, verifica-se que a “utilidade” da morte de D. Afonso


estava, acima de tudo, no entendimento de que a medicina tradicional nada pôde fazer
naquela ocasião. Mure parecia querer convencer seus ouvintes de que, caso tratado com
homeopatia, o príncipe sobreviveria. A responsabilidade fora dos “Médicos do Palácio”
que nada fizeram frente aos claros indícios da doença que se manifestara, inclusive
através da sua irmã de leite, que teve os mesmos sintomas da tísica153 que ele apresentou.
Mure acusou, então, claramente os médicos que trataram o doente:
Que vos direi mais, Senhores? Contar-vos-ei como o veneno que devia fazer
morrer essa tenra flor, lhe foi posto no leite, de uma Tísica que, apesar dos
sinais mais evidentes de sua doença, frustrou a vigilância dos Médicos do
Palácio; como esse fatal instrumento de uma prova tão cruel veio trazer à
Homeopatia a prova que lhe era necessária; como a cegueira dos Médicos
impediu-lhes de tomar qualquer precaução e de aceitar os preservativos que
nós lhes oferecíamos.
Nada prevalece contra os desígnios do Alto, o Príncipe D. Afonso devia
morrer, e nós devíamos dar testemunho dessa morte a fim de que ela fosse mais
útil ao mundo do que a vida dos grandes monarcas.
[...] Como poder-se-ia ter duvidado de que a fonte da doença do Príncipe tinha
sido reconhecida e assinalada pelos discípulos de Hahnemann, Deus quis que
o leite envenenado que ele recebera, produzisse na filha da ama de leite os
mesmos efeitos que nele. A irmã de leite do Príncipe Don Alphonse morreu
com os mesmos sintomas que Sua Alteza Imperial apresentara 154.

152
MURE, Bento. Op. cit., 1847, f. 5 (tradução livre). Do original: “[…] Ce siècle où tout se régénère, /
Où tout renâit, où tout périt / Ce siècle ouvre une nouvelle ère / Pour la matière et pour l’esprit. / Ici nait
un novel empire, / Ici la science s’inspire / Au soufflé du verbe sauveur. / Nouveau savoir, nouvelle terre.
/ Flots nouveaux, nouvel Hemisphere, / On luit le signe rédempteur”.
153
Também conhecida como “tuberculose pulmonar”. Na época, era crença comum na medicina que a
tuberculose podia ser passada para os bebês através do leite materno. Já há algum tempo esta hipótese
caiu por terra; foi comprovado que o contágio se dá através do bacilo de Koch presente em gotículas
expelidas pelas vias aéreas superiores de um indivíduo com infecção. Nesse caso, a possibilidade de
passar o bacilo à criança em estágio de amamentação pode ocorrer pelo contato íntimo entre a mulher e o
bebê, não pelo leite em si.
154
MURE, Bento. Op. cit., 1847, 3-4 (tradução livre). Do original: “Que vous dirai je de plus,
Monsieurs? Vous conterai-je comment le poison, qui devait faire périr cette tender fleur, lui fut verse
dans le lait d’une Phthisique qui, malgré les signes les plus évidents de sa maladie, déjoua la surveillance
des Médicins du Palais; comment ce fatal instrumment d’une si cruelle épreuve vint apporter à
l’Homoeopathie la preuve qui lui était nécessaire; comment l’aveuglement des Medicins les empécha de
prendre aucune précaution et d’accepter les préservatifs que nous leur offrions. / Rien ne prevaut contre
les desseins d’en haut, le Prince Don Alphonse devait perir, et nous, nous devions Porter témoignage de
cette mort afin qu’elle fut plus utile au monde que ne l’a été la vie des plus grands monarques. / [...]
73

Apesar da constatação de que nada mais podia ser feito para que o príncipe
voltasse à vida, Mure reiterava a noção de que, mesmo em tão pouco tempo, o pequeno
já havia feito muito. A importância de sua breve existência se explicava principalmente
através de sua própria morte, um verdadeiro ensinamento aos que aqui permaneceram.
Assim, Bento Mure pareceu utilizar o espaço que lhe foi conferido no púlpito do
IHGB para propagandear a homeopatia. Em não raros momentos chegou a ser franco e
direto ao dizer que essa medicina era superior à tradicional e que o príncipe teria alguma
chance contra sua doença caso tratado adequadamente pela homeopatia. Como isso não
ocorreu, melhor admitir essa morte como uma advertência. Ela devia servir para ensinar
a todos qual a melhor forma de curar. O progresso humano prescindia, portanto, dessa
lição para que pudesse seguir o seu caminho desenhado pela Providência divina.
Vale notar o que representava a expulsão do homeopata francês naquele
momento155. Muito atuante na imprensa, Bento Mure esteve à frente de muitas
controvérsias sobre a questão médica na década de 1840. Escreveu diversas vezes ao
Jornal do Commercio156, ora para se defender das acusações de “charlatanismo” feitas à
prática homeopática157, ora para atacar a medicina alopática, ancorada sobretudo nos
representantes da Academia Imperial de Medicina158. Permaneceu à frente desses
embates até praticamente o seu retorno à França, em 1848. E, mesmo fora do Brasil,
continuou por algum tempo a empreender a divulgação da homeopatia pelo mundo.

Comme on aurait pu douter que la source de la maladie du Prince avait été reconnue et signalée par les
disciples de Hahnemann, Dieu voulut que le lait empoisonné qu’il avait reçu, produisit chez la fille de sa
nourrice les mêmes effets que chez lui. La soeur de lait du Prince Don Alphonse est morte avec les mêmes
symptomes que Son Altesse Impériale a presentés”.
155
Fernando Faria indica que o Dr. Duque-Estrada e o Dr. Emílio Germon eram os únicos médicos que
praticavam a homeopatia no Brasil antes de Bento Mure se afixar no território nacional. FARIA,
Fernando Antonio. Querelas brasileiras: homeopatia e Política Imperial. Rio de Janeiro: Notrya, 1994, p.
15.
156
Ibidem, p. 18. O Jornal do Commercio foi o maior veículo utilizado pela propaganda homeopática
desde a década de 1840.
157
Ibidem, p. 10. De acordo com Faria, a introdução da homeopatia no início da década de 1840 “[...] e
sua identificação com o charlatanismo foi uma decisão oportuna para o poder médico da época: reforçou
a articulação entre o controle da saúde da população e o controle do exercício profissional”.
158
A Academia Imperial de Medicina, criada em 1835 (mas que já existia desde 1829 com o nome de
Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro), tinha por objetivos: assessorar o governo, distinguir a
legitimidade das outras “artes de curar”, entre outros. Era, ao fim e ao cabo, a grande autoridade em
matéria de ciência médica no Império do Brasil. AZEVEDO, Luana. Op. cit., 2008, p. 32-33.
74

Faleceu, inclusive, enquanto fundava, a convite, a Escola Homeopática do Cairo, no


Egito, dez anos após sair do Brasil.
A partir de uma breve análise da trajetória de Mure, sobretudo no Brasil, entende-
se que ela, por si só, já era motivo para granjear a má receptividade do francês no
Instituto159. Importante lembrar que o número de médicos que faziam parte como
membros assíduos da instituição naquele ano de 1847 era considerável. Além de
Francisco Freire Alemão, Emílio Silva Maia, Francisco de Paula Menezes e José
Maurício Nunes Garcia, membros do estabelecimento que mais se opunha à prática da
medicina homeopática, a Academia Imperial de Medicina160, também estavam na sessão
que promoveu o veto à publicação do discurso de Mure os médicos Antonio Rodrigues
Cunha, Ludgero da Rocha Ferreira Lapa e Gonçalves de Magalhães161.
O discurso pronunciado possivelmente foi recebido como uma afronta aos demais
membros do IHGB e à plateia da sessão extraordinária – quiçá à própria família real. Usar
um ritual daquele porte para propagandear uma prática médica, que não aquela mais
tradicionalmente adotada na Corte, deve ter causado um forte mal-estar entre os
convidados presentes. A responsabilidade que Mure parecia querer associar aos médicos
do príncipe por sua morte tampouco deve ter sido benquista pelos seus ouvintes.
Enquanto para os demais oradores a Providência era clamada para explicar a
situação trágica a partir da perspectiva de que o Império necessitava de um sacrifício para
mudar seu rumo, pondo fim aos regionalismos e aceitando o poder centrado no Rio de
Janeiro e na figura do imperador162, para Mure os desígnios divinos explicavam o
acontecimento por outro viés. O sacrifício foi feito para o Brasil tomar o lugar que lhe
caberia na história humana: o de precursor das novidades, do progresso da humanidade –

159
É possível que o único amigo que Bento Mure tivesse no IHGB fosse Manoel de Araújo Porto-Alegre.
DEL PRIORE, Mary. Do outro lado: a história do sobrenatural e do espiritismo. São Paulo: Planeta,
2014, p. 80-81.
160
Alemão foi inclusive presidente da Academia Imperial de Medicina em 1832, 1838 e 1839. Consultar:
Dicionário Histórico-Biográfico das Ciências da Saúde no Brasil (1832-1930). Disponível em
<http://www.dichistoriasaude.coc.fiocruz.br>. Acesso em: 09 nov. 2011. Lembrando que Silva Maia e
Paula Menezes estavam tanto na sessão que votou pela censura da publicação do discurso de Mure,
quanto apresentaram seus trabalhos na sessão extraordinária para homenagear o príncipe morto.
161
Este último, apesar da formação em medicina, nunca chegou a exercer a profissão, segundo
GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal. “José Gonçalves de Magalhães”. In: VAINFAS, Ronaldo (Dir.).
Op. cit., 2002, p. 216. Não obtive confirmação se esses três médicos também faziam parte da Academia
Imperial de Medicina.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. “A herança colonial – sua desagregação”. In: _____(Org.). História
162

Geral da Civilização Brasileira (tomo II – O Brasil Monárquico, vol. 1). São Paulo: Difel, 1965, p. 9-39.
75

da homeopatia, enfim. Sua fala na solenidade em homenagem a D. Afonso evidenciou


que o francês não fazia parte daquela associação que se queria tão homogênea e unida:
sua permanência na instituição poderia representar um perigo para os desígnios por ela
esboçados desde sua origem. E, através da publicação nas páginas de sua Revista da
correspondência com o médico, o IHGB parecia relegar à posteridade o julgamento dos
fatos transcorridos naquele ano de 1847.

1.4 A “arca do sigilo”

[...] como a exclusão de outros ocorre especialmente quando se


trata de coisas de grande valor, é fácil chegar psicologicamente à
conclusão inversa de que aquilo que se nega a muitos deve ser
particularmente valioso. [...] o conteúdo do que é silenciado cede
em importância ao simples fato de permanecer oculto aos demais.
George Simmel163

Muito já disse o sociólogo sobre a importância do segredo para a vida em


sociedade. Segundo ele, se em Estados “antigos” o segredo servia de apoio para a
manutenção de certa mística em torno dos governos e dos governantes, a partir do fim do
século XVIII e, sobretudo, ao longo do XIX, a publicidade acabou se impondo aos
assuntos de Estado, “[...] a tal ponto que os próprios governos publicam oficialmente os
dados que até então todo o regime devia manter secretos se quisesse sustentar-se”164. Tal
processo acabaria, de acordo com essa concepção sociológica, tendo seu auge no advento
das democracias atuais, à medida que partem do princípio de que todos devem conhecer
os fatos que são de seu interesse, para melhor intervir na resolução de possíveis
problemas. Esta, inclusive, seria a condição prévia para a manutenção de um regime
democrático165.

SIMMEL, George. “A sociologia do segredo e das sociedades secretas”. Revista de Ciências


163

Humanas. Florianópolis: EDUFSC, Vol. 43, N. 1, p. 237, Abril de 2009.


164
Ibidem, p. 240.
165
Para Simmel, a modernidade política é responsável por uma substancial mudança: se antes o segredo
de Estado era o que importava para a manutenção do regime, agora ele era deslocado para o âmbito
particular, individual (tendo em vista a ascensão do próprio indivíduo com a modernidade). Ibidem, p.
227 e p. 239.
76

Ainda que a existência de segredos de Estado permaneça até hoje como uma
prática manifesta166, a perspectiva esboçada por Simmel pode servir, em certa medida, à
análise de Estados cuja modernidade política já era verificada na passagem do século
XVIII para o XIX. Não deve ser aplicada, portanto, a países como o Brasil, cuja vida
política possuía fortes traços de “Antigo Regime” ao longo de todo oitocentos167.
Diversos exemplos disso já foram, de certo modo, comentados até aqui. Tomando
como ponto de partida a ideia difundida e amplamente aceita de que o IHGB possuía
íntima ligação com a política imperial, compreende-se por consequência a ação de
censurar tantos documentos, relatos e trabalhos, que diziam respeito a momentos
malquistos da história recente do país. Os argumentos utilizados para respaldar essa
“retórica do sigilo”168 – ou retórica “do segredo”, para utilizar o conceito elaborado por
Simmel – partiam da moderna perspectiva historiográfica, não deixando de lado, contudo,
o aspecto político da situação. Segredar significava, então, proteger a política imperial e
o Estado nacional brasileiro.
Dentro desse quadro, para além do âmbito das ideias, os membros da agremiação
chegaram às “vias de fato”, ao projetar algo que se assemelhava à sua concretização, no
sentido material. Os possíveis segredos estariam seguros no projeto de Francisco Freire
Alemão169:

166
Basta citar, como exemplo, a querela entre o governo norte-americano e a WikiLeaks, organização
transnacional sem fins lucrativos que expõe, desde 2010, uma série de documentos confidenciais dos
EUA sobre, principalmente, suas relações diplomáticas.
167
Outro autor que se propôs a tratar do lugar reservado ao segredo no Absolutismo foi Koselleck.
Segundo ele, Hobbes e Locke foram dois pensadores que, de maneiras distintas, demonstraram a
importância do segredo para as sociedades de Antigo Regime: o primeiro, indicando a divisão do homem
moderno entre a esfera pública e a privada, o que constituiria a “gênese do segredo”; o segundo,
apontando para o fato de essa divisão ter se estabelecido não apenas em relação ao indivíduo, como
também na esfera das “sociedades” – nos clubes onde os filósofos se dedicavam a investigar as “leis
morais”. Ainda de acordo com o autor, o Iluminismo foi marcado fortemente por formações sociais que
se calcavam no segredo, tais como a República das Letras e a maçonaria. Ambas atuaram como resposta
ao sistema absolutista e acabaram por dar início ao seu processo de esfacelamento. KOSELLECK,
Reinhart. “A estrutura política do Absolutismo como pressuposto do Iluminismo”. _____. Crítica e Crise.
Uma contribuição à patogênese do mundo burguês. Rio de Janeiro: EdUERJ; Contraponto, 1999, p. 19-
48.
168
Utilizo a expressão com a intenção de nomear algumas formas de argumentação usadas em discursos
políticos e historiográficos com a finalidade de justificar o segredo em que eram colocados documentos e
fatos considerados perigosos.
169
Freire Alemão (1797-1874) nasceu na freguesia de N. Sra. do Desterro de Campo Grande, no Rio de
Janeiro. Filho de lavradores, ingressou em 1817 no Seminário de São José, mas não prosseguiu na
carreira religiosa. Em 1821 começou a dedicar-se ao magistério particular e ingressou na Academia
Médico-Cirúrgica do Rio de Janeiro. Diplomado cirurgião em 1829, Alemão conseguiu apoio para cursar
medicina em Paris, da onde retornou com o grau de doutor. Em 1833 entrou para a cadeira de botânica e
77

Proponho que no Instituto haja uma arca fechada com duas chaves, uma das
quais guardará o Exmo Ministro do Império, ou o diretor do Arquivo Público
Nacional, para que nela se conservem debaixo de sigilo as notícias históricas
contemporâneas que alguém queira enviar ao mesmo Instituto, notícias que
virão lacradas em cartas, e só serão abertas no tempo em que seu autor o
determinar [...]170.

A proposta feita em dezembro de 1847 foi aprovada em fevereiro de 1850. A


comissão composta por Manoel de Araújo Porto-Alegre e Manoel Ferreira Lagos (além
do próprio Freire Alemão) deu um parecer certeiro a respeito da “arca do sigilo”, como
passou a ser denominado o projeto, no qual foram dadas como certas a importância e a
utilidade que este instrumento teria para o Instituto naqueles tempos de catalogação de
fontes e consequente produção da história. Nas palavras dos sócios,
Escritos há, certamente, muito úteis e preciosos para a história de um país, cuja
imediata impressão pode acarretar, além de grandes desgostos a seus autores,
incalculáveis perturbações, e comprometer não só a paz interna, como a
externa; e outros, que envolvendo personalidades contemporâneas e
descarnando os fatos, ou divulgando segredos, trariam um sem número de
inimizades e deslocações pessoais, mormente em épocas de transição, e num
país como o nosso, onde as bases de uma longa experiência não podem ainda
frutificar, e onde a tolerância das nações velhas ainda não chegou 171.

Este trecho refere-se, portanto, à ideia de que a arca devia servir a um propósito
fundamental naquele contexto de recentes disputas protagonizadas por forças políticas
antagônicas. Para muitos autores, a década de 1850 representou o momento de
consolidação da ordem imperial, tendo o fim da rebelião sulista dos Farrapos contribuído
muito para tal interpretação. Trazer à tona “um sem número de inimizades e deslocações
pessoais” podia demonstrar, justamente, aquilo que se queria esquecer. Tal lapso de
memória seria possível com a arca do sigilo, já que ela funcionaria como um instrumento
que garantiria o esquecimento momentâneo de determinado objeto.
Essa argumentação se ajusta perfeitamente ao que parece ser uma dupla tarefa a
que a instituição histórica se propunha naquele momento. Se, de um lado, zelar pela

zoologia da Academia Imperial de Medicina e, em 1841, foi nomeado médico da Imperial Câmara.
Lecionou medicina na Escola Central a partir de 1858. No ano seguinte, foi nomeado presidente da
comissão científica mandada ao norte do país, na qual trabalhou até 1861. Foi membro do IHGB, onde
atuou na Comissão de Arqueologia e Etnografia por muitos anos e, como já foi dito, da Academia
Imperial de Medicina. Um pouco antes de falecer foi nomeado membro honorário do IHGB. Cf.
Dicionário Histórico-Biográfico das Ciências da Saúde no Brasil (1832-1930). Disponível em
<http://www.dichistoriasaude.coc.fiocruz.br>. Acesso em: 09 nov. 2011; SOUZA, João Francisco de.
Freire Alemão, o botânico. Rio de Janeiro: Pongetti, 1948; e VAINFAS, Ronaldo. “Francisco Freire
Alemão”. In: _____ (Dir.). Op. cit., 2002, p. 290.
170
“Ata da sessão de 9 de dezembro de 1847”. RIHGB, tomo IX, p. 567, 1847.
171
“Ata da sessão de 16 de fevereiro de 1850”. RIHGB, tomo XIII, p. 133, 1850.
78

tranquilidade que levaria à prosperidade do Império fazia com que se segredassem os


resquícios de momentos de extrema turbulência dentro do Brasil, de outro lado, tais
momentos não podiam ser simplesmente apagados dos anais da história. Para isso, o
arquivamento tornou viável a segurança da documentação que narrava esses
acontecimentos; mais uma vez, à posteridade era garantido o acesso aos mesmos: atuando
como juiz capacitado do passado estava o historiador do futuro172.
Por outro lado, se a imprensa já era responsável por narrar o que estava
acontecendo em tempo real, para que guardar tão sigilosamente toda essa documentação?
O foco da escrita jornalística não era pautado nos acontecimentos do presente?
Nesse caso, a distinção entre o jornalismo e a história, centrada em parte na ideia
de que o presente só poderia ser objeto do primeiro, se fez frequente no século XIX.
Enquanto o jornalista trabalhava com o evento “quente”, a partir do contato direto com o
que deveria ser descrito, o historiador teria, necessariamente, de abarcar o acontecimento
“frio”173. Isso produzia, portanto, uma aura de desconfiança em relação ao jornalista, que
escrevia no e sobre o presente. Mesmo no caso em que a imprensa podia ser vista como
fonte para a produção de uma narrativa histórica, em um futuro mais ou menos distante,
algumas premissas deviam ser assumidas:
A imprensa em uma sociedade como a nossa, e no estado em que nos achamos,
não satisfaz o historiador: escrevemos atualmente com muita paixão; todos os
fatos são desfigurados por ambos os lados que pleiteiam interesses, e que
defendem individualidades: aquilo que mais importa à história e sua filosofia
sobre a origem dos acontecimentos, e causa produtora de tais e tais resultados,
se acha baralhado debaixo das formas de uma lógica capciosa, e no meio de
declamações vagas, onde os indivíduos substituem as ideias 174.

Segundo os pareceristas, a escrita “apaixonada”, atributo inerente à natureza da


imprensa, repercutiria no trabalho do historiador que utilizasse jornais e panfletos como
fonte de pesquisa. Nesse quadro, a própria condição de verdade, perseguida com afinco
pelo tribunal da história, estaria comprometida. Era necessário, portanto, contrabalançar
esse tipo de fonte a outras, pois a imprensa, por si só, não poderia satisfazer ao historiador.
A arca do sigilo poria fim a essa lacuna.

Ainda segundo o parecer: “Para os homens associados em grupos, que se rateiam contínua proteção e
172

mútua segurança, não há outro juiz que o escritor e outro tribunal além da história”. Ibidem, p. 134.
173
PEREIRA, Mateus. A máquina da memória. Almanaque Abril: o tempo presente entre a história e o
jornalismo. Bauru: EDUSC, 2009, p. 221-224.
174
“Ata da sessão de 16 de fevereiro de 1850”. RIHGB, tomo XIII, p. 133, 1850.
79

Conclusivamente, a comissão indicava, uma vez mais, a importância da existência


de um depósito, onde se assegurasse o esconderijo passageiro175 daquilo que, naquele
momento, devia ser segredado, recorrendo, novamente, à lógica da posteridade como
juíza dos acontecimentos do presente:
A comissão crê que um utilíssimo resultado se colherá da criação deste arquivo
secreto, além dos que já teve a honra de ponderar: a arca do sigilo vai ser o
depósito da consciência íntima de muitos escritores, que não levarão à
sepultura verdades essenciais à história de um país, vai ser o juiz póstumo do
caráter de todos os autores principais da cena do nosso mundo, e revelar
fatos que tornariam a história obscura, forçando os escritores futuros a tatearem
no mundo das conjecturas e das probabilidades. Além disto, o temor dos
escritos secretos dos contemporâneos, da divulgação de crimes documentados,
o pressentimento de uma funesta herança para os descendentes daqueles que
souberam iludir seus contemporâneos, fará com que muitos homens recuem e
que procedam mais assisadamente nos seus atos alistando-se de preferência no
mundo do idealismo, no domínio da razão, do que num pernicioso e temporário
individualismo176.

Indicava-se, ainda, que havia possibilidade de ensinamento através do próprio


presente. Os homens aprenderiam não tanto pelo exemplo e pela imitação do passado,
como no uso clássico da expressão historia magistra vitae, mas em decorrência da
inquietação por saber que informações de atividades coevas estavam sendo ocultadas
premeditadamente. Sem chance de conhecer o que foi guardado, e simplesmente pelo
desassossego de saber que algo foi posto em sigilo, os contemporâneos poderiam se tornar
mais cautelosos em seus atos, sobretudo os políticos, preferindo o “bem comum” –
associado provavelmente à idealizada unidade nacional – ao “pernicioso” individualismo.
Após a elaboração desse parecer, os comentários que giraram em torno da arca do
sigilo passaram a focalizar o regulamento que guiaria o funcionamento da mesma, tais
como o seu formato e demais características materiais. Em sessão de 30 de agosto daquele
mesmo ano entraram em discussão os artigos. Abaixo, segue sua descrição:
1º O instituto terá uma arca do sigilo, onde guardará todos os manuscritos
secretos que se não podem publicar sem época determinada.
2º Pedirá para isso a competente autorização ao governo imperial.
3º A arca do sigilo será feita de madeira incorruptível, precintada de ferro, e
com duas fechaduras de patente cujas chaves sejam diferentes.
4º As duas chaves serão entregues e guardadas da maneira seguinte: a 1ª nas
mãos do presidente do Instituto; a 2ª nas do Exm. Ministro do Império, ou de
quem ele determinar.
5º A arca do sigilo só se abrirá em sessão ordinária do Instituto, e na presença
dos claviculários ou seus delegados.
6º Este ato não será executado sem proposta anterior do 1º secretário, e por
convite oficial do mesmo para a seguinte sessão.

175
Como o próprio Freire Alemão indicou na formulação do projeto, o depósito tinha caráter temporário.
176
“Ata da sessão de 16 de fevereiro de 1850”. RIHGB, tomo XIII, p. 134, 1850 (grifos nossos).
80

7º As memórias depositadas serão previamente numeradas e inventariadas,


segundo o título que trouxerem, o formato, a qualidade do papel que as
envolver e outros quaisquer sinais que as possam bem caracterizar.
8º Além do selo e precauções do autor, o Instituto as fará selar de novo.
9º Na arca do sigilo haverá uma cópia do termo que se lavrar em sessão, em
um livro próprio para isso, a qual será assinada pelos claviculários e pelos
secretários.
10º Feito o depósito, se fechará imediatamente a arca, e cada um dos
claviculários levará a chave.
11º O Instituto convidará por meio de uma circular e de anúncios, que fará
reproduzir em todos os jornais do Império, para que todos os seus sócios e
literatos que, por terem presenciado, ou por informações de pessoas fidedignas,
souberem de circunstâncias de nossos acontecimentos políticos, civis e
religiosos, e que estejam ainda mal avaliados pela voz geral, ou pelos escritores
públicos, hajam de relatá-los com toda a imparcialidade, e remeter à mesa seu
trabalho, dando-lhe a segurança de ser guardado com todo o segredo, até a
época em que se determinar sua publicação.
12º Toda memória enviada ao Instituto para depósito temporário na arca do
sigilo deve ser lacrada pelo próprio autor.
13º E virá acompanhada de uma carta ao 1º secretário com a assinatura do
autor, ou sem ela; e neste último caso, além do prazo marcado para a
publicação, enviará o autor um sinal, ou dístico por onde se possa testemunhar
a identidade do nome do autor a que se refere.
14º Chegado o tempo da abertura das cartas e das memórias, o presidente do
Instituto convocará o mesmo para em sessão assistir à abertura da arca do
sigilo, e depois de extraído e verificado o manuscrito, segundo a carta que o
acompanhou, será aberto e lido imediatamente, e se for muito longo, se
procederá à continuação de sua leitura nas sessões seguintes.
15º Das memórias julgadas dignas de imediata publicação se tirará uma cópia,
ficando o autógrafo depositado no arquivo do Instituto; porém se o seu valor
for de alguma sorte duvidoso, será nomeada uma comissão para extratar dela
o que se julgar de importante à história.
16º Se qualquer eventualidade ocasionar a suspensão dos trabalhos do
Instituto, ou a sua dissolução, a arca do sigilo passará para o arquivo público
nacional177.

A análise dos artigos apresenta a importância conferida ao apelo ritualístico da


arca do sigilo. A maneira pomposa como deviam ser nela colocados os documentos faz
supor a importância dos mesmos, percebidos praticamente como “vestígios de uma
estranha civilização”, parafraseando o artista contemporâneo178. Toda a referência aos
materiais a serem utilizados, bem como a indicação a diferentes formas de lacrar tudo que
fosse posto na arca dá o tom, uma vez mais, da forte conotação de segredo existente nos

177
“Ata da sessão de 30 de agosto de 1850”. RIHGB, t. XIII, p. 414-415, 1850.
178
Referimo-nos à música de Chico Buarque de Holanda, “Futuros Amantes”, em cujos versos incluem-
se: “Sábios em vão / Tentarão decifrar / O eco de antigas palavras / Fragmentos de cartas, poemas /
Mentiras, retratos / Vestígios de estranha civilização”. Disponível em <http://letras.mus.br/chico-
buarque/66065/>. Acesso em: 26 mar. 2013.
81

papeis a serem guardados. A mística a que se refere Simmel está presente neste processo.
Imagina-se, por esse motivo, a curiosidade que tantos mistérios acarretariam179.
Além disso, a colocação de documentos na arca passava por uma política de
Estado, o que pode ser verificado por meio da leitura do artigo quarto, no qual se presume
que uma das cópias da chave do cofre ficava a cargo do ministro do Império. Outro
exemplo disso é o artigo 11, segundo o qual o sigilo necessitava de publicidade: através
de circulares e anúncios feitos em jornais seriam chamados aqueles que quisessem relatar
quaisquer circunstâncias de acontecimentos ainda “mal avaliados pela voz geral”.
O chamado público garantiria, por sua vez, a imparcialidade. O fato de que vários
relatos de distintas pessoas fossem chamados a fazer parte da arca colaborava com o que
os membros do IHGB entendiam à época por um arquivo “imparcial” sobre a história
contemporânea. Também neste caso, a distinção em relação à imprensa, que só via um
lado de toda a situação, se faz pungente. Entretanto, deve-se supor que essa conclamação
de vozes partisse também de uma nada objetiva seleção. A referência a “pessoas
fidedignas”180 utilizadas como fonte expõe tal fragilidade. Afinal, que pessoas seriam
essas?
Do mesmo modo, faz-se necessário comentar a associação entre as palavras
“segurança” e “segredo” no artigo citado. Essa combinação remonta ao início do projeto
anunciado por Freire Alemão, em 1847, segundo o qual a justificativa para a elaboração
da arca do sigilo estava no fato de que qualquer informação relevante sobre o presente
estaria afiançada naquele depósito. Assim, a segurança se fazia em função do segredo;
ninguém precisaria ter medo de escrever o que quer que fosse, pois havia a garantia do
próprio tempo a seu favor. Não por acaso, era necessário que o depositante esclarecesse
qual a data propícia para retirar da arca os documentos nela colocados. Possivelmente,
essa projeção levaria em conta um futuro no qual grande parte dos contemporâneos aos
escritos estivessem mortos (incluindo o próprio autor), ou que a situação política já fosse
outra radicalmente distinta daquela atualidade. A exposição previa um contexto em que
já não houvesse perigo algum de expor os testemunhos guardados, então inseridos no
campo do passado.

179
SIMMEL, George. Op. cit., 2009, p. 238: “Do mistério e do segredo que rodeiam tudo o que é
profundo e importante, surge a falácia de que tudo o que é secreto deva ser também profundo e
importante. O instinto de idealização e temor natural do homem atuam juntos diante do desconhecido,
aumentando sua importância pela fantasia e consagrando-lhe uma atenção que não teríamos prestado a
uma realidade que se expressasse claramente”.
180
Ibidem, p. 415.
82

O forte cunho ritualístico referente aos tópicos sobre a arca do sigilo pode ser
também verificado no artigo 14, que trata da abertura “das cartas e memórias” que seriam
ali contidas. A abertura da arca devia ser um evento à parte dentro da instituição e, quiçá,
para a própria sociedade imperial. Na ocasião, o manuscrito recém-descoberto seria lido
imediatamente, a menos que fosse demasiadamente longo; nesse caso, a leitura devia ser
feita nas sessões da agremiação subsequentes. A presença do autor, caso houvesse essa
possibilidade, no momento de abertura da arca, era mais uma garantia de veracidade da
documentação e do caráter litúrgico da reunião.
Durante aquela mesma sessão do dia 30 de agosto, a proposta dos artigos sofreu
algumas emendas. A revisão dos artigos insistia na atenção à forma da arca: ao invés de
madeira, seria feita de ferro, advertindo para o material que conferia maior proteção e
longevidade ao arquivo secreto. Reitera-se, nesse sentido, a importância simbólica que
essa dimensão material refletia, entre outros aspectos de cunho prático:
Ao 2º - Para a execução dos artigos que se referem ao governo se pedirá a
competente autorização ao governo imperial.
Ao 3º - Em lugar de madeira incorruptível, diga-se ferro.
Ao 4º- acrescente-se: ‘Quando o Exm. Ministro do Império for presidente do
Instituto, a segunda chave será entregue ao diretor do arquivo público.
Ao 5º Suprimam-se as palavras – ou seus delegados.
Ao 11 – Diga-se: o Instituto convidará por meio de convites especiais, de
anúncios publicados nos jornais e circulares, etc.
O art. 13 substitua-se pelo seguinte, que ficará como parte do art. 12. – ‘E virá
acompanhado de uma carta ao 1º secretário com assinatura do autor, ou de
pessoa conhecida.
Ao 15 – Uma vez aberta a memória, antes do Instituto ter um pleno
conhecimento de sua matéria, será remetida a uma comissão especial, a fim de
dar juízo sobre o seu valor181.

A primeira década do IHGB foi marcada por uma série de vetos a projetos que
visavam expôr análises ou fontes de determinados períodos da história recente do Brasil.
A arca do sigilo, totalmente imbuída desse espírito censor em relação ao presente, ia além
da dimensão discursiva: ela consolidava a prática do arquivamento de documentos
contemporâneos ao criar um local impenetrável onde os segredos da nação estivessem
completamente seguros182.

181
Ibidem, p. 415-416.
182
A palavra “arca”, de acordo com o dicionário de Antonio Moares e Silva, significa “cofre de alguma
corporação”, um local que guardaria coisas valiosas para um grupo de pessoas. Cf. Diccionario da lingua
portugueza, Tomo Primeiro (A-K), p. 107. Disponível em: http://www.brasiliana.usp.br. Acesso em: 26
mar. 2013.
83

Por outro lado, a despeito de conclamar o público a deixar documentos ou


memórias no cofre, fazendo supor que era algo aberto a quem quisesse fazê-lo, vale a
pena refletir sobre o aspecto de formação desse depósito. Assim como Michel de Certeau,
salienta-se o fato de que a própria seleção de documentos contribui para o estabelecimento
dos mesmos como fontes históricas183. Essa triagem, relacionada àquilo que devia ser
posto na arca, antecipava ao historiador do porvir as fontes legítimas para um estudo
plausível sobre o oitocentos. Nesse sentido, a garantia de proteção não era dada a qualquer
documento, mas somente àqueles que auxiliariam o futuro a desbravar o presente. O
IHGB preocupava-se com tal seleção porque intencionava direcionar essa “descoberta”.
Nas palavras de Lucia Guimarães, havia uma “idealização do futuro à custa da
manipulação do presente”184.

A partir do que foi discutido em 1850, é possível perceber a valorização da arca


do sigilo pelos sócios do IHGB: ela foi tida como de extrema necessidade, assunto de
prioridade máxima. Apesar da empolgação, com o passar do tempo minguaram as
referências ao projeto. Menções pontuais à arca aparecem em algumas passagens da
Revista, normalmente relacionadas à lembrança do empreendimento formulado por Freire
Alemão, que não chegou a ser cumprido durante o regime monárquico185.
Em 1852, por exemplo, no relatório anual lido por Joaquim Manuel de Macedo,
há referência ao fato de que o Instituto primava, desde sua fundação, não apenas em
cooperar com a criação da história dos três séculos de colonização portuguesa na
América; era de sua alçada trabalhar também para não caírem no esquecimento os fatos
transcorridos na própria época. Em suas palavras, “[...] também se desvela em ir

183
CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006, p. 81.
184
GUIMARÃES, Lucia. Op. cit., p. 531, 1995.
185
Em sua dissertação de mestrado, Loyane Ferreira indica o fato de Ernesto Ferreira França Filho ter
doado seus Apontamentos diplomáticos sobre os limites do Brasil ao IHGB para serem colocados na arca
do sigilo, em 1849. A publicação na Revista só foi feita muitos anos mais tarde, na década de 1870. Esta
informação, contudo, não foi por mim atestada. Como mencionado, ainda em 1856 reclamava-se sobre o
fato de a arca não ter sido feita, o que impossibilitaria que França Filho tenha depositado seu trabalho na
mesma. Aqui, aventa-se a hipótese de que o documento tenha sido realmente entregue ao Instituto em
1849, como se pode averiguar nos seus arquivos, para ali ser guardado momentaneamente, mas não à
arca, pensada enquanto o projeto a que me refiro. Cf. FERREIRA, Loyane Aline Pessato. A soma de luzes
na construção da felicidade pública e a reflexão sobre o passado português: política e história na Revista
do IHGB (1838-1889). 2009. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Estadual de Campinas,
Campinas, 2009, p. 267.
84

daguerreotipando a atualidade no registro de suas obras”186. O melhor meio de garantir


isso estava no programa pensado em 1847:
O nosso consócio o Sr. Dr. Freire Alemão havia precedentemente proposto a
criação de uma arca de sigilo; a comissão a que fora remetida essa proposta,
considerou-a, adotou-a, e ofereceu um projeto sobre a matéria, que depois de
acuradamente discutido passou a fazer parte das leis do Instituto, tendo
merecido a aprovação do governo imperial. Escritos há certamente muito
preciosos, e de uma utilidade incontestável para a história de um país; mas que
podem acarretar com a sua imediata publicação, além de graves desgostos a
seus autores, incalculáveis perturbações, e não só comprometer a tranquilidade
do interior como a paz do exterior: e também outros, que envolvendo
personalidades contemporâneas, e descarnando os fatos, ou divulgando
segredos, trariam em resultado um sem número de inimizades, e deslocações
pessoais, mormente em épocas de transição, e num país como o nosso, onde as
bases de uma longa experiência não podem ainda frutificar, e onde a tolerância
das nações velhas não teve tempo de chegar 187.

A aceitação do projeto tinha a ver com o que de mais positivo ele possuía: a
possibilidade de perpetuar a tranquilidade interna e externa do país, ao mesmo tempo em
que era coletado e guardado o arcabouço documental do presente para uso das gerações
futuras. Macedo chegava a copiar em alguns trechos o parecer feito pela comissão de
1850188.
Após quatro anos de novo silêncio sobre o assunto, outra anotação demonstrava
que a concretização da arca não havia sido feita: Guilherme Schüch de Capanema
propunha que fosse “[...] o sr. tesoureiro encarregado de informar acerca do custo de um
cofre que sirva para arca do sigilo e se as posses do instituto permitem a sua aquisição”189.
Conquanto essa sugestão tenha sido aprovada pelos demais sócios, a execução do projeto
permaneceu no ostracismo. Uma hipótese a ser levantada, a partir do que disse Capanema,
seria a de que a feitura da arca traria muitas despesas ao Instituto, algo que talvez não
fosse possível naquele momento.

MACEDO, Joaquim Manuel de. “Relatório do primeiro secretário interino”. RIHGB, tomo XV, p. 488,
186

1852.
187
Ibidem, p. 509-510.
188
Confrontando as duas passagens é possível perceber a repetição. Conforme admitia a comissão anos
antes, no trecho já citado, “Escritos há, certamente, muito úteis e preciosos para a história de um país,
cuja imediata impressão pode acarretar, além de grandes desgostos a seus autores, incalculáveis
perturbações, e comprometer não só a paz interna, como a externa; e outros, que envolvendo
personalidades contemporâneas e descarnando os fatos, ou divulgando segredos, trariam um sem número
de inimizades e deslocações pessoais, mormente em épocas de transição, e num país como o nosso, onde
as bases de uma longa experiência não podem ainda frutificar, e onde a tolerância das nações velhas ainda
não chegou”. “Ata da sessão de 16 de fevereiro de 1850”. RIHGB, tomo XIII, p. 133, 1850.
189
“Ata da sessão de 5 de setembro de 1856”. RIHGB, tomo XIX (Suplemento), p. 27, 1856.
85

Aos poucos, mesmo essas parcas alusões somem por completo das páginas da
Revista. A sugestão de Freire Alemão não foi materializada durante o governo de D.
Pedro II, apesar da forte aceitação dos sócios ao projeto, o que demonstra a sua sintonia
com os anseios da instituição no que diz respeito a uma política de segredo sobre o
presente. A sua concretização deu-se já no período republicano, quando os documentos
de Manuel Francisco Correia e as Memórias do Visconde de Taunay foram depositados
na arca do sigilo190. Havia uma razão para requisitar a antiga iniciativa: assim como em
1847, o período inaugurado em 1889 evidenciava a dificuldade em tratar do que era mais
próximo temporalmente. O posicionamento do IHGB frente à nova ordem republicana, e
toda a complexidade advinda desse quadro, estimulava uma nova retórica do segredo
sobre a história recente.

1.5 O lugar do presente nas Ephemerides

A costumeira presença de D. Pedro II nas sessões do IHGB possibilitava ao


Instituto saber o que era de interesse do monarca. Exemplo disso foi dado em 1849,
quando o imperador reclamava que muito já havia sido reunido em termos de documentos
e de trabalhos sobre as gerações passadas, e que era tempo de tornar “[...] aquela a que
pertenço digna realmente dos elogios da posteridade”191. Nos dizeres de Rodrigo Turin,
ao IHGB era dada a obrigação de “[...] cantar, tal como um aedo moderno, as glórias do
Brasil à posteridade”192. Sugeria-se, desse modo, um projeto de “história do tempo

190
Este assunto será retomado no quinto capítulo. Importante ressaltar, contudo, que a arca do sigilo de
1890 era um espaço específico dentro do arquivo do Instituto, não exatamente um cofre, como se
pretendia de início. O aspecto simbólico da própria arca, presente fortemente na elaboração dos seus
estatutos iniciais, não encontra tanto eco nos anos finais do oitocentos e iniciais do novecentos. Vale notar
que até hoje existe no IHGB uma espécie de pasta onde se encontram documentos variados, como os
papeis de Hélio Vianna, denominada “arca do sigilo”. Agradeço por essas informações que me foram
passadas por Nayara Emerick Lamb e pela Profª. Drª. Lucia Guimarães.
191
Segue o trecho completo: “[...] é de mister que não só reunais os trabalhos das gerações passadas, ao
que vos tendes dedicado quase que unicamente, como também, pelos vossos próprios, torneis aquela a
que pertenço digna realmente dos elogios da posteridade: não dividi pois as vossas forças, o amor da
ciência é exclusivo, e, concorrendo todos unidos para tão nobre, útil, e já difícil empresa, erijamos assim
um padrão de glória à civilização da nossa pátria”. “Ata da sessão de 15 de dezembro de 1849”. RIHGB,
tomo XII, p. 552, 1849.
192
TURIN, Rodrigo. “Uma nobre, difícil e útil empresa: o ethos do historiador oitocentista”. História da
historiografia, n. 2, p. 16, março 2009.
86

presente”193 para a instituição, a despeito de suas variadas tentativas de distanciamento


em relação às questões cotidianas.
Essa preocupação, contudo, não era apenas do imperador. Pouco tempo depois do
estabelecimento da agremiação, em maio de 1839, Januário da Cunha Barbosa já aventava
a possibilidade de determinado tratamento a ser dado ao presente. Referia-se às
Ephemerides, nas quais seriam anotados por dia os fatos que mais interessariam à história
do país194. A seu cargo ficariam os sócios Ataíde Moncorvo e Alexandre Maria de Mariz
Sarmento, responsáveis pela escrita dos acontecimentos daquele corrente ano195.
A forte liderança do cônego Januário na instituição fez com que seu projeto logo
tomasse forma junto a um dos membros designados a levarem-no à frente196. Moncorvo
apresentou, em janeiro do seguinte ano, o trabalho para o qual foi nomeado – tratar dos
fatos ocorridos entre 1º de maio e 31 de dezembro de 1839. Após fazer leitura das
Ephemerides na sessão do grêmio, o sócio foi reeleito para continuar a tarefa, desta vez
para contar o que ainda aconteceria daí para frente, entre janeiro e junho daquele ano de
1840197. Mais uma vez, Moncorvo não recusou a tarefa a que foi incumbido e, em julho,
apresentava a seus consócios nova parte das Ephemerides. Por essa ocasião foi convidado
a continuar o trabalho, tratando dos fatos daquele momento até o fim de 1840198.
Em agosto daquele mesmo ano, uma nova proposta era introduzida no seio da
agremiação localizada no Rio de Janeiro. Com projeto que se assemelhava à escrita das
Ephemerides, José Clemente Pereira incitava seus colegas a criar um livro que teria por
título Chronica do Senhor D. Pedro II199, e que se nomeasse uma comissão de cinco
membros “[...] encarregada de coligir e coordenar os fatos mais notáveis ocorridos

193
Cf. CÉZAR, Temístocles. “Presentismo, memória e poesia. Noções da escrita da História no Brasil
oitocentista”. In: PESAVENTO, Sandra. Escrita, linguagem, objetos: leituras da história cultural. Bauru:
EDUSC, 2004.
194
De acordo com o dicionário de Antonio Moraes Silva, a palavra “efemérides” significava diários ou
“[...] livros em que [se] aponta por dia alguma coisa”. SILVA, Antonio Moraes. Diccionario da lingua
portugueza. Lisboa: Typographia Lacerdina, 1813, p. 522. Disponível em <http://www.brasiliana.usp.br>.
Acesso em: 21 ago. 2013.
195
“Ata da sessão de 18 de maio de 1839”. RIHGB, tomo I, p. 114, 1839.
196
Não se sabe porque Sarmento, encarregado de escrever parte das Ephemerides, não o fez.
197
“Ata da sessão de 11 de janeiro de 1840”. RIHGB, tomo II, p. 143, 1840.
198
“Ata da sessão de 18 de julho de 1840”. RIHGB, tomo II, p. 410, 1840.
199
Daqui por diante denominada apenas como Chronica.
87

durante o ano para os apresentar na sessão anual do mesmo Instituto, e serem transcritos
no dito Livro [...]” da seguinte forma: a história de um ano devia ficar consignada na
Chronica do seguinte200.
Em sessão próxima foi aprovada a proposta com algumas emendas: no lugar de
cinco, seriam três os membros da comissão; e a apresentação do trabalho, ao invés de ser
feita anualmente, deveria realizar-se de seis em seis meses. Os membros encarregados de
fazer parte da referida comissão também foram nomeados naquele momento. Seriam eles:
o mentor do projeto, conselheiro Pereira, como relator; além de Diogo Soares da Silva de
Bivar e Euzébio de Queiroz Matoso da Câmara, como adjuntos201.
Januário Barbosa chegou a mencionar a Chronica em seu relatório anual de 1840,
esboçando simpatia ao projeto, ao mesmo tempo em que esclarecia que após a leitura do
trabalho, feita de seis em seis meses e, no caso de ser ele aprovado, deveria ser recolhido
ao arquivo do Instituto, “[...] a fim de que sirva aos escritores da nossa História”202.
Entende-se que, também neste caso, a escrita sobre o presente devia ser endereçada ao
futuro.
Se a princípio a Chronica parecia rivalizar com a escrita das Ephemerides, ao que
tudo indica, tais esforços pareceram se complementar dentro do IHGB203. Quanto às
Ephemerides, em fevereiro de 1841 comentava-se sobre a apresentação de Ataíde
Moncorvo a respeito da última metade do ano anterior, ao mesmo tempo em que indicava

200
“Ata da sessão de 1 de agosto de 1840”. RIHGB, tomo II, p. 415, 1840. A história como um simples
registro dos acontecimentos, sob a forma de crônicas ou de anais ainda era muito utilizada, sobretudo nas
primeiras décadas do oitocentos no Brasil. NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das; MACHADO,
Humberto. O Império do Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 194. Vale lembrar ainda que a
palavra “crônica” referia-se, em sua acepção original, à cronologia. Escrever uma crônica era, portanto,
equivalente a narrar temporalmente os eventos considerados importantes, sem aprofundar-lhes as causas,
fato que não impediu na época medieval e mesmo na moderna, um testemunho extremamente elogioso
dos reinados, visando algumas benesses. Há, ainda, o caso particularíssimo de Fernão Lopes, que já se
preocupava com as fontes e sua interpretação na busca das causas dos eventos, enaltecendo a sua
“imparcialidade” face aos cronistas coevos. MOISÉS, Massaud. “Crônica”. In: _____. Dicionário de
termos literários. São Paulo: Cultrix, 2004, p. 110; e MALEVAL, Maria do Amparo Tavares. Fernão
Lopes e a retórica medieval. Niterói: EdUFF, 2010. Cf. SILVA, Antonio Moraes. Op. cit., 1813, p. 350.
201
“Ata da sessão de 17 de agosto de 1840”. RIHGB, tomo II, p. 422, 1840.
202
BARBOSA, Januário da Cunha. “Relatório do secretário perpétuo”. RIHGB, tomo II, p. 595, 1840.
203
Para Lucia Guimarães, inclusive, os dois projetos teriam se fundido, restando às Ephemerides maior
notoriedade. Op. cit., p. 532, 1995.
88

Diogo Bivar204 como o seu novo redator205. À frente, portanto, dos dois projetos, Bivar
apresentou as Ephemerides do primeiro semestre de 1841 em uma sessão de abril daquele
mesmo ano206. Em setembro, continuou a leitura referente à segunda parte do ano207.
Vale notar que tanto Moncorvo, quanto Bivar levaram a cabo a tarefa de escrever
as Ephemerides da maneira como o secretário perpétuo havia ordenado: após indicar a
data, o acontecimento era narrado sem muita apreciação. Exemplo disso foi o comentário
sobre o dia 16 de maio de 1839, feito por Moncorvo: “Decreto Nomeando o Conde de
Lager, Ministro da Repartição da Guerra”. Pontual, sem muitas delongas. Em outros
casos, contudo, a narrativa até poderia ser ampliada, chegando a constituir uma pequena
crônica. A seguir, um trecho escrito por Bivar evidencia tal prática:
1841
Janeiro 17
As operações do Exército Imperial no Rio Grande até 24 de Dezembro
continuaram a ser favoráveis à causa da legalidade. O sítio de Porto Alegre
levantado, descontinuado o da Villa de S. José do Forte, desalojados os
rebeldes de todo o território compreendido entre o do Taquary, a Serra e a
Costa do mar até S. José, a perda de mais 1200 cavalos e a defecção de mais
de 500 homens que os abandonaram parece serem [sic] os resultados até então
obtidos pelas Armas Imperiais208.

Em novo relatório, Januário da Cunha Barbosa indicava ambos os projetos (o das


Ephemerides e o da Chronica) como de suma importância para o Instituto. Abordou
primeiro o que denominou de as “Ephemerides histórico-políticas”, “[...] cujo valor será
bem apreciado nas gerações futuras”. A continuação da referida obra, levada a cabo por
Bivar, era responsável por garantir o registro dos fatos, “[...] muitos dos quais fugiriam

204
Diogo Soares da Silva de Bivar (1785-1865) nasceu em Estremadura, Portugal. Estudou direito em
Coimbra. Quando houve a invasão napoleônica, foi preso e deportado para a Moçambique. Ao chegar à
Bahia, obteve a concessão do governo daquela capitania de permanecer preso no Forte de São João.
Permaneceu na Bahia, depois de anistiado, e mais tarde transferiu-se para o Rio de Janeiro. Atuou como
orador, jornalista e foi um dos fundadores do Conservatório Dramático Brasileiro. Teve obras publicadas
em Portugal e no Brasil. Pertenceu ao Conselho do imperador e tornou-se sócio efetivo do IHGB em
1839. Faleceu no Rio de Janeiro. Ver IHGB. Dicionário de historiadores, geógrafos e antropólogos
brasileiros. Rio de Janeiro: O Instituto, 1996, vol. 5, p. 32.
205
Segundo a ata, Moncorvo havia pedido o afastamento do cargo para conseguir atender “[...] aos
imensos trabalhos de que se acha sobrecarregado”. “Ata da sessão de 04 de fevereiro de 1841”. RIHGB,
tomo III, p. 132, 1841.
206
“Ata da sessão de 22 de abril de 1841”. RIHGB, tomo III, p. 229, 1841.
207
“Ata da sessão de 13 de setembro de 1841”. RIHGB, tomo III, p. 371, 1841.
208
BIVAR, Diogo. Efemérides brasileiras. [Manuscrito]. Março de 1839 a março de 1841. Arquivo do
IHGB, Rio de Janeiro, Brasil. Ref. Lata 45, doc. 8, f. 19. Nota-se que, apesar de constar o nome de Bivar,
também as Ephemerides escritas por Moncorvo se encontram na mesma pasta. Sobre a forma de escrita
das Ephemerides ser semelhante a uma crônica, retornarei adiante.
89

de nossa lembrança no correr dos tempos [...]”, que serviriam de matéria para os escritores
da história do Brasil poderem trabalhar. Para satisfazer tal anseio, o Instituto deliberou
ainda sobre o outro projeto, através do qual se organizaria a Chronica – além de um
relatório a ser feito pelo próprio cônego, juntamente com Araújo Porto-Alegre, sobre “[...]
os fatos pertencentes ao memorável acontecimento da sagração e coroação de S. M. I. o
Senhor D. Pedro II [...]”209.
Embora a acolhida dos dois projetos tenha sido semelhante, sua realização não
teve o mesmo efeito. As Ephemerides continuavam sendo desenvolvidas no IHGB, apesar
de sua inconstância210, enquanto a Chronica caía em ostracismo. Apesar do prelúdio de
que as Ephemerides fossem publicadas, pelas palavras de Januário Barbosa em 1842211,
da pena de Moncorvo e Bivar sabe-se apenas que restaram os cadernos manuscritos, que
permanecem no arquivo do IHGB.
A tal respeito interessa notar, ainda, a alteração feita por Bivar do título – de
“efemérides” para “crônica”, como foi o caso da Chronica de 1842, escrita por ele em
1843. Tal mudança evidencia a herança quatrocentista a que o autor parecia se reportar.
Também os temas recorrentes dos escritos daquele sócio demonstram o que compreendia
como de importância central para ser passado à posteridade. Segundo Lucia Guimarães,
Bivar costumou registrar temas heterogêneos, que iam desde a questão cultural, como o
cotidiano carioca, até os negócios públicos. Com o passar do tempo, contudo, eles
cederam lugar à seleção de fatos políticos. Gostava, por exemplo, de assinalar a vitória
do governo central sobre as “franquias provinciais” sempre que possível212.

BARBOSA, Januário da Cunha. “Relatório dos trabalhos do Instituto durante o terceiro ano social”.
209

RIHGB, tomo III (Suplemento), p. 529-530, 1841.


210
Houve leitura das Ephemerides por Diogo Bivar em três sessões do Instituto: em 09 de julho de 1842
e, mais de um ano depois, em 31 de agosto e em 28 de setembro de 1843. Ver: “Ata da sessão de 9 de
julho de 1842”. RIHGB, tomo IV, p. 223, 1842; “Ata da sessão de 31 de agosto de 1843”. RIHGB, tomo
V, p. 393, 1843; e “Ata da sessão de 28 de setembro de 1843”. RIHGB, tomo V, p. 403, 1843. Tal
inconstância foi esclarecida pelo autor em agosto de 1843: “[...] uma série não interrompida de cuidados
domésticos, de trabalhos profissionais, e de comissões extraordinárias, para as quais tem sido
ultimamente chamado, lhe hão impedido de levar ao cabo as Ephemerides do ano próximo passado; mas
que conta concluí-las por todo o mês de Agosto, para o que não poupará esforços; e quando as apresentar
exporá verbalmente as razões da demora, esperando no entretanto a indulgência do Instituto, ao qual
assegura a sua inteira dedicação, e a boa vontade com que se empregará sempre em tudo o que lhe for
incumbido”. “Ata da sessão de 3 de agosto de 1843”. RIHGB, tomo V, p. 385-386, 1843.

BARBOSA, Januário da Cunha. “Relatório dos trabalhos do Instituto durante do quarto ano social”.
211

RIHGB, tomo IV (Suplemento), p. 22, 1842.


212
GUIMARÃES, Lucia. Op. cit., p. 532-533, 1995. Cf. BIVAR, Diogo. Chronica de 1842.
[Manuscrito]. Arquivo do IHGB, Rio de Janeiro, Brasil. Ref. D. 133.21.
90

Se a publicação autônoma idealizada por Januário Barbosa não ocorreu, ao menos


uma parte das Ephemerides saiu à luz, incorporada à Revista do IHGB de 1843. O
“Appendice Chronica do anno de 1842”, que, como o próprio título já indica, fazia parte
da Chronica de 1842, versava sobre os seguintes temas: dívida pública do Brasil; rendas
internas; correio geral; rendas gerais de importação e exportação; comércio, exportação
de café, açúcar e couros; comparação da exportação de 1841 e 1842; importação; balança
de comércio; importação e exportação comparadas; câmbios; metais; descontos;
companhias públicas; navegação; divisão política e judiciária; notícias diversas;
observações meteorológicas; população; emigração; instrução pública; cursos jurídicos;
faculdades de medicina; belas artes; Colégio Pedro II; aula de comércio; aulas do
município; e Santa Casa de Misericórdia. O redator esclarecia que o trabalho ora editado
era parte das Ephemerides, que ainda haviam de ser, futuramente, publicadas em corpo
separado. Apesar disso, julgou “[...] dever publicá-lo [este apêndice] quanto antes na
revista, para não perder o merecimento de ser conhecido e apreciado pelo seu valor
intrínseco [...]”213.
Com o passar do tempo, a intenção de publicação arrefeceu, assim como o projeto.
Em dezembro de 1844, Manoel Ferreira Lagos comentava em seu relatório que Diogo
Bivar ainda não tinha lido as Ephemerides de 1843. Este, em resposta, indicou que o faria
sem falta até o final do primeiro quartel de 1845, o que de fato não ocorreu 214. Bivar
chegou a exprimir a dificuldade em conseguir as informações necessárias para a escrita
das Ephemerides. Uma possibilidade para garantir tal objetivo foi informada pelo mesmo
a Januário Barbosa, em carta datada de 18 de novembro de 1844. Indicava a organização
de um banco de dados destinado a “[...] formar um juízo mui aproximado à verdade do
andamento das nossas relações comerciais e do estado da nossa população e fazenda
pública”215. A empreitada não foi adiante, pois as províncias não responderam ao seu
apelo216. Uma última menção ao projeto é feita em junho de 1845, quando se declarou,

213
BIVAR, Diogo. “Appendice Chronica do anno de 1842”. RIHGB, tomo V, p. 413, 1843.
214
LAGOS, Manoel Ferreira. “Relatório dos trabalhos do Instituto no sexto ano acadêmico”. RIHGB,
tomo VI (Suplemento), p. 12, 1844.
215
“Carta do conselheiro Diogo Soares da Silva de Bivar, ao cônego Januário da Cunha Barbosa, dizendo
que, em virtude de não ter recebido as informações pedidas, não pode preparar as Efemérides do ano de
1843”. Arquivo do IHGB, Rio de Janeiro, Brasil. Ref.: Lata 142, pasta 45. Citado em Lucia Guimarães.
Op. cit., p. 533, 1995.
216
Ibidem, p. 533.
91

em sessão ordinária, a troca de Bivar por Coutinho, que a partir dali seria o responsável
pela escrita das Ephemerides217.
A despeito de sua interrupção, é de se notar que a leitura das Ephemerides teve
por anos, entre 1840 e 1843, lugar garantido nas sessões do IHGB, ao contrário da
Chronica, que nunca chegou a sair do papel. A seu respeito, foram feitos alguns
comentários nas sessões do Instituto lembrando a importância que teria sua execução e
pedindo que não caísse no esquecimento. O primeiro deles foi feito em maio de 1848 por
Manoel Ferreira Lagos, que listava muitas disposições da agremiação não cumpridas,
apesar de serem de sumo interesse para o Instituto. Dentre elas, constava a elaboração da
Chronica. Lembrava, então, a conveniência da proposta, clamando por sua “satisfatória
execução”. Propunha, por fim, que se nomeasse uma comissão para compilar os fatos
desde 1840 até o fim de 1847; e outra que se incumbisse daquele corrente ano em
diante218. Concordando com Lagos, Raposo de Almeida levantou sua voz em outra
sessão. Apesar disso, a discussão sobre o retorno da Chronica foi adiada para quando o
presidente do grêmio pudesse estar presente na casa219, mas nunca se chegou a nenhuma
conclusão a seu respeito. Assim, sem muito porquê, a elaboração da Chronica terminou
antes mesmo de ter começado.
No ano seguinte, os membros do IHGB festejaram as novas instalações do
Instituto. Por essa ocasião, o imperador pronunciou o discurso em que reclamava aos
associados maior interesse na produção de trabalhos que tivessem como foco a sua própria
geração. A instituição, próxima à tradição das academias setecentistas, devia levar em
consideração as pressões exercidas pelo monarca; havia de glorificar suas ações, o que
evidenciaria o poder de negociação da mesma em relação ao representante máximo do
Estado imperial220. Apesar disso, ao fim da primeira década de sua existência, e a despeito
das tentativas feitas com as Ephemerides e a Chronica, a incumbência dada pelo
imperador não havia sido cumprida.

“Ata da sessão de 19 de junho de 1845”. RIHGB, tomo VII, p. 269, 1844. Não se sabe a qual
217

“Coutinho” se referem, mas acredita-se que seja a Aureliano de Sousa e Oliveira Coutinho.
218
“Ata da sessão de 4 de maio de 1848”. RIHGB, tomo X, p. 256-257, 1848.
219
“Ata da sessão de 5 de junho de 1848”. RIHGB, tomo X, p. 391, 1848.
220
ARAUJO, Valdei Lopes de. Op. cit., 2008, p. 151.
92

O fracasso dos projetos não diminui, no entanto, o fato de que eles proporcionaram
uma abertura no tratamento da história contemporânea dentro do IHGB221. Ainda assim,
suas justificativas não se opõem diretamente às noções anteriormente esboçadas, de
entender o Instituto como um depósito do tempo presente: ao final, compreendia-se a
necessidade de reunir os fatos que deviam ser do interesse da posteridade. O elogio da
monarquia e do imperador devia ecoar às futuras gerações. Assim, da mesma forma que
se arquivavam os documentos da atualidade, os fatos deste momento eram selecionados
para constar da história a ser promovida pelos homens do futuro. Em ambos os casos a
preocupação se dava em função de catalogar aquilo que seria trabalhado pelo historiador
do porvir e julgado convenientemente pelo tribunal da posteridade.
Além disso, a frustração das Ephemerides não impediu que o tempo presente
permanecesse sendo (re)construído nos arquivos do IHGB, através da documentação
doada para este fim, ou sendo matéria de gêneros outros que não a história. Fora do
Instituto, os jornais eram os responsáveis por levar a cabo tal tarefa. Curioso pensar que
muitos daqueles sócios que se esquivavam de tratar sobre as questões da atualidade
fossem os mesmos a descrevê-las em periódicos. Relembra-se que foi no século XIX que
se deu a divisão do trabalho entre historiadores e jornalistas. Enquanto os primeiros
investigariam pacientemente o passado, ao jornalista cabia o imediato, o inacabado222.
O jornalista223 participava da própria fabricação do evento, promovendo uma
intrínseca relação entre memória e história, enquanto que para o historiador, cada vez
mais, estas duas instâncias deviam ser vistas em constante oposição224. Por esse motivo,
os jornais até podiam ser tidos como fonte, mas nunca como “a” história. Apesar de toda

Temistocles Cezar fala de um “prelúdio de produção da história do tempo presente” pelo IHGB. Cf.
221

Op. cit., 2004.


222
BÉDARRIDA, François. “Le temps présent et l’historiographie contemporaine”. Vingtième Siècle.
Revue d’histoire, 69, p. 153, janviers-mars 2001. Ver também o trabalho de PEREIRA, Mateus. Op. cit.,
2009, p. 22-25. De acordo com Koselleck, a historiografia que tratava da atualidade, continuou a ser
cultivada no início do século XIX, embora tenha deslizado para um gênero “inferior”, praticado por
jornalistas. Op. cit., 2006, p. 293.
223
Ou o publicista, que, segundo terminologia de Maurice Block, era um “escritor dos novos tempos”, um
homem que, sem ser exclusivamente historiador ou filósofo, podia ser um ou outro, pois misturava a
filosofia, a literatura e a história, unindo sob “[...] uma forma impressionante e rápida todos os elementos
das questões à medida que eles se sucedem [...]”, condensando em algumas páginas a vida de uma época.
BLOCK, Maurice. Dictionnaire général de la politique. Tome second (B-Z). Paris: Librairie Académique
Didier, 1884, p. 745 (tradução livre). Disponível em:
<https://archive.org/stream/dictionnairegn02bloc#page/n7/mode/2up>. Acesso: 29 dez. 2014.
224
PEREIRA, Mateus. Op. cit., 2009, p. 222 e p. 228. Segundo o autor, quanto mais a história se tornou
acadêmica, com o fortalecimento dos cursos universitários, mais esta característica se mostrou evidente.
93

a paixão que tais escritos carregavam, o trabalho do jornalista, ao ser confrontado com
outras fontes, podia garantir um retrato minimamente verossímil da época estudada. A
esse respeito, alertava Antonio Drumond:
Seria de toda recomendação que o Instituto colecionasse os Jornais Brasileiros
em sua Biblioteca, desde o primeiro que se publicou nessa Corte sob o título –
Gazeta do Rio de Janeiro. – Semelhante completa coleção virá a ser de muito
socorro ao futuro historiador para escrever com acertada crítica uma época da
história do Brasil225.

Esse lugar garantido ao presente na imprensa por certo contrastava com aquilo
que era discutido dentro das portas do Paço Imperial, onde se localizava então o IHGB.
Ainda que propostas no estilo das Ephemerides e da Chronica apontem para a
possibilidade de tratar do cotidiano no Instituto, o malogro dos mesmos demonstra as
dificuldades que circundavam essa tarefa. Os planos de escrita do tempo presente toparam
com uma sucessão de vetos e censuras, e, mesmo quando foram aceitos pelo Instituto, se
depararam com obstáculos resultantes das demandas políticas e epistemológicas da
historiografia oitocentista.
Nesse sentido, outros tipos de gênero possuíam maior alcance para discorrer sobre
o presente. Foi o caso de algumas memórias históricas226, cujo exemplo de maior monta
a ser dado é o do estudo de Gonçalves de Magalhães sobre a Balaiada227. Escrito a partir
do seu testemunho sobre o movimento, tratava-se de um evento muito recente e que não

225
“Ata da sessão de 33 de outubro de 1845”. RIHGB, tomo VII, p. 566, 1845.
226
De um modo geral, esse gênero se constituía por meio da compilação documental ou através de
relatos descritivos e, em grande parte, testemunhais sobre determinados acontecimentos da história
imediata das províncias do Império. O uso recorrente dessa forma de registro corresponde, sem dúvida,
“[...] à concepção cumulativa de construção do conhecimento histórico em que o momento do arquivo, ou
seja, o trabalho de fixação da memória, dos testemunhos e de ordenação dos vestígios do passado,
constitui-se em precondição incontornável para a escrita da história”. Cf. OLIVEIRA, Maria da Glória de.
Op. cit., 2009, p. 23.
227
MAGALHÃES, Domingos José Gonçalves de. “Memoria historica e documentada da revolução da
provincia do Maranhão desde 1839 até 1840”. RIHGB, tomo X, p. 263-362, 1848. Gonçalves de
Magalhães (1811-1882) nasceu no Rio de Janeiro, onde formou-se em medicina. Nunca chegou a exercer
esse ofício, pois dedicou sua vida aos estudos de filosofia e às letras. Em Paris, na década de 1830,
publicou Suspiros poéticos e saudades, por muitos considerado o marco inaugural do nosso Romantismo.
Criou, também na capital francesa, a revista Nictheroy em colaboração com Francisco Salles Homem,
Manoel de Araújo Porto-Alegre e Eugène de Monglave. Atuou como secretário de Caxias no Maranhão e
no Rio Grande do Sul, na época da Farroupilha. Após 1847, foi designado cônsul-geral no Reino das
Duas Sicílias e ocupou postos na chancelaria brasileira em outras cidades europeias. Representou o
Império, como ministro residente, na Áustria, Estados Unidos, Argentina e Santa Fé. Além de sócio do
IHGB, foi professor do Colégio Pedro II. Escreveu o poema épico A Confederação dos Tamoios, em
1856, além de vasta bibliografia. Cf. GUIMARÃES, Lucia. “José Gonçalves de Magalhães”. In:
VAINFAS, Ronaldo (Dir.). Op. cit., 2002, p. 216-217.
94

apenas foi bem aceito pelo IHGB, como foi por ele premiado e publicado na Revista,
pouco tempo depois do fim da própria rebelião, em 1848.
Enviado como secretário de Luís Alves de Lima e Silva ao Maranhão, Magalhães
já era, então, participante ativo nas discussões sobre as diretrizes que o Brasil deveria
tomar em momentos turbulentos228. Quando o general – o futuro Duque de Caxias –
chegou à província rebelada para acabar com a revolta, teve de contar com a atenção de
Magalhães para algumas questões centrais, tais como as medidas voltadas para o
aperfeiçoamento das instituições educacionais e religiosas229. O prestígio do literato era
notável.
A narrativa ressalta os problemas que Lima e Silva enfrentou ao chegar ao
Maranhão, como a falta de verbas e as cisões dentro do próprio exército. A situação
calamitosa descrita por Magalhães colabora com a exaltação do presidente da província
em exercício, haja visto que, a despeito de tantas algúrias, ele conseguiu ter êxito em
pacificar a região. Magalhães, sempre que possível, ressaltava as habilidades militares do
general e administrativas do presidente230.
Para o autor, seu estudo se enquadrava na lógica da história magistra vitae. Como
Cícero, indicava que o estudo do passado devia ser antes de tudo útil porque faria
compreender o presente e projetar o futuro231. Isso possivelmente foi levado em conta
pela comissão do IHGB responsável por apreciar o texto. De acordo com o parecer, a
memória interessava não tanto pelo conteúdo, que em alguns pontos não fora aprovado
nem mesmo pelos sócios da instituição (apesar de não reconhecerem exatamente quais
haviam sido eles), mas por sua forma: era um bom trabalho histórico em confluência com

228
TIBURSKI, Eliete. Escrita da história e tempo presente no Brasil oitocentista. 2011. Dissertação
(Mestrado em História) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2011, p. 51.
229
Ibidem, p. 62.
230
Ibidem, p. 59.
231
Ibidem, p. 81. Luciano de Samósata também trata recorrentemente do tema da utilidade da história.
Para ele, o maior exemplo de um bom historiador foi Tucídides, que assumia a máxima de que a história
tinha de ser antes de tudo útil “[...] de modo que, se alguma vez, de novo, acontecerem coisas
semelhantes, se poderá, [...] consultando-se o que foi escrito antes, agir bem com relação às circunstancias
que se encontram diante de nós”. Por isso o historiador deve sempre ter em mente a posteridade, não
escrever visando só o presente. SAMÓSATA, Luciano. Op. cit., 2009, p. 71 e p. 83.
95

a poesia. O autor, nesse sentido, teve a gravidade exigida para tratar do espinhoso tema,
fazendo reviver os fatos para o próprio leitor se sentir uma testemunha ocular232.
Raros são os trabalhos feitos sobre acontecimentos políticos por autores
contemporâneos, que reúnam tantos requisitos de perfeita exatidão e
imparcialidade como esse de que ora nos ocupamos. O seu autor achou-se
colocado na mais feliz condição para bem observar os sucessos que narra,
sem alterá-los pelas paixões próprias, que comumente conturbam o juízo
do historiador. Estranho aos partidos, que lutavam entre si nesse período
calamitoso da história da província do Maranhão, ele pôde apreciar o
encadeamento de causas diversas, que trouxeram consigo aquela medonha
explosão da guerra civil e da anarquia, e distinguir a natureza e diversidade de
elementos que a formavam233.

Para o IHGB, o trabalho reunia três de alguns dos elementos mais importantes
para uma obra de história, ainda que ela não se assumisse inteiramente como tal: a “cor
local”234, a testemunha ocular e o juiz imparcial. Magalhães, como poeta que era, soube
trazer à narrativa sua vivacidade. Como observador direto, podia ter sido censurado pela
visão parcial sobre o assunto – como era frequente na associação –, o que de fato não
ocorreu. Pelo contrário: entendeu-se que, justamente por ter sido testemunha ocular,
possuía autoridade para tratar do assunto como poucos; seu reconhecimento, portanto,
passava pelo papel que teve no conflito235. Tudo isso justificaria o parecer de que a obra
e seu autor não incorreram no erro comum a quem escreve sobre e no presente. A palavra
final que demarcava a “Memoria historica e documentada da revolução da provincia do
Maranhão desde 1839 até 1840” como um trabalho sério e com muito maiores louvores
do que problemas foi a de que seu autor conseguiu ser um “juiz imparcial”236.
Ao contrário da sentença do Instituto, não há dúvidas de que “partidos” foram
tomados por Gonçalves de Magalhães – só que a escolha, aparentemente, foi acertada.

232
TIBURSKI, Eliete. Op. cit., 2011, p. 84. Para F. Hartog, esta seria uma premissa recorrente da retórica
desde Aristóteles: fazer ver o que não está mais visível, algo como uma “ilusão de presença”. Ver Op. cit.,
2013a, p. 12.
233
“Ata da sessão de 22 de julho de 1847”. RIHGB, tomo IX, p. 425, 1847 (grifos nossos).
234
Tratarei da temática da “cor locar” em momento oportuno.
235
Nesse caso, o papel da testemunha ocular deslocou-se: de presença física para autoridade e fonte.
HARTOG, François. Op. cit., 2013a, p. 221 e p. 226.
236
TIBURSKI, Eliete. Op. cit., 2011, p. 85. Segundo Paul Ricoeur, como juiz, o historiador deveria se
preocupar com a prova e o exame crítico dos testemunhos. Mas, diferentemente dele, o historiador não
julga – deixa este papel para a posteridade. Citado em Ibidem, p. 87.
96

2 SI LOIN, SI PROCHE: O IHGB, O INSTITUT HISTORIQUE DE PARIS E O


PRESENTE

[...] será mais que um centro de trabalho e de comunicações


intelectuais; ele terá sucesso em estabelecer essa unidade de
objetivo e de método que falta aos sábios europeus; ele irá
preparar uma história e criará os historiadores.
Philippe Buchez1

2.1 Tradição ou traição?

O surgimento do IHGB, em 1838, não representou um fato isolado. Em termos de


academias literárias ou científicas no Brasil, notória é a existência de instituições criadas
ao longo do período colonial e após o estabelecimento da Corte no país, em 18082. Se
esta avaliação quiser dar conta do mundo ocidental, sobretudo da Europa, a quantidade
será ainda maior e mais evidente. De modo geral, portanto, o IHGB não foi a primeira
agremiação erudita que pretendia unir homens de letras.

1
SOCIÉTÉ DES ÉTUDES HISTORIQUES. Congrès historique européen, reuni a Paris, au nom de
l’Institut Historique, dans la salle Sr.-Jean, de l’Hôte-de-Ville. Discours et compte-rendus. Novembre-
décembre 1835, p. 502 (tradução livre). Do original: “[...] sera plus qu’un centre de travail et de
communications intellectuelles; il parviendra à établir cette unité de but et de méthode qui manque aux
savans européens; il préparera une histoire et créera des historiens”. Philippe Buchez (1796-1865) teve
uma interessante trajetória política. Ajudou a fundar o “carbonarismo” francês, antes de se tornar saint-
simoniano e “neocatólico”, doutrina que supunha a conciliação entre catolicismo e ideais sociais
revolucionários. Iniciou um movimento político de operários – algo como um “esboço” de sindicato. Com
o golpe de Estado de 1852 finalizou sua carreira política. Escreveu uma História Parlamentar da
Revolução Francesa, que foi considerada uma das fontes mais completas para o assunto, além da célebre
Introduction à la science de l'histoire ou Science du développement de l'humanité. Cf. FARIA, Maria
Alice de Oliveira. Brasileiros no Instituto Histórico de Paris. São Paulo: Conselho Estadual de Cultura,
1970, p. 25.
2
“No Brasil do século XVIII, com extensões que tanto regridem ao XVII quanto avançam pelo XIX, foi
comum a congregação de intelectuais em instituições chamadas academias”, que tinham interesse amplo:
pela poesia, pela história e pelas ciências da natureza – além de servir tanto à “mentalidade cultista”,
quanto como “instrumento das luzes”. A título de exemplo, é possível mencionar a Academia Brasílica
dos Esquecidos (1724-1725), a Academia Brasílica dos Renascidos (1759) e a Sociedade Bahiense dos
Homens de Letras (1810) – todas localizadas na Bahia. SOUZA, Roberto Acízelo de. O Império da
Eloquência. Rio de Janeiro: EdUERJ, EdUFF, 1999, p. 18. Outro exemplo de agremiação científica é a
própria Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional, criada em 1827, e que serviu de base (inclusive de
locação) para o IHGB. A esse respeito ver o verbete de Lucia Guimarães em VAINFAS, Ronaldo (Dir.).
Dicionário do Brasil imperial (1822-1889). Rio de Janeiro: Objetiva, 2002, p. 679-680.
97

No que concerne às muitas tradições às quais se relacionou o Instituto, além das


academias setencentistas, encontram-se o legado iluminista português3 e as sociedades
que começavam a se definir como “históricas” na primeira metade do século XIX. Dentre
estas, destaca-se a produção do Institut Historique de Paris (IHP), criado na França,
também na década de 1830. A ligação entre as duas instituições não é nenhuma surpresa.
Januário da Cunha Barbosa e Raimundo José da Cunha Matos esclareciam-na desde a
inauguração do IHGB, ao postular que: “O Instituto abrirá correspondência com o
Instituto Histórico de Paris, ao qual remeterá todos os documentos da sua instalação
[...]”4.
Levada a cabo pelo polemista Eugène de Monglave5, que viria a ser então seu
secretário perpétuo, com ajuda do historiador das Cruzadas, Joseph François Michaud6,

3
Segundo Manoel Guimarães, o IHGB devia muito à tradição particular do iluminismo português,
“marcadamente católico e conservador”. Ver do autor: “Nação e Civilização nos trópicos: o IHGB e o
projeto de uma história nacional”. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, nº1, v. 1, p. 14, 1988.
4
“Breve notícia sobre a criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro”. RIHGB, tomo I, p. 7,
1839.
5
Eugène de Monglave (1796-1873) foi uma curiosa personalidade. Visto por muitos como um
aventureiro, pôs-se a serviço do exército português no Brasil (1814) e em Portugal (1819): no primeiro
caso, como oficial do Estado-maior e diretor da Instrução Pública e, no segundo, para lutar ao lado dos
liberais pelo regime constitucional. Retornando ao seu país natal, foi para Paris, em 1823, onde passou a
publicar muitas obras de caráter político, inclusive panfletos que criticavam o governo, o que lhe garantiu
multas e prisões. Amante das “coisas do Brasil”, traduziu para o francês Marília de Dirceu, em 1825, e O
Caramuru, em 1829, além de editar a correspondência entre D. Pedro I e seu pai, D. João VI. Quando do
retorno do imperador do Brasil para Europa, na década de 1830, Monglave apoiou a causa de D. Maria e,
consequentemente, a de D. Pedro I, opondo-se a D. Miguel, em Portugal. Fundou o Institut em 1833,
contando, praticamente, apenas com o apoio de Michaud. Talvez por isso se sentisse um pouco dono da
agremiação, o que justifica seu autoritarismo na mesma, acarretando em muitas brigas com outros sócios.
Por razões delicadas e ainda pouco esclarecidas, afastou-se do IHP em 1846 e passou a exercer, como
principal atividade, a docência no Instituto de Surdos-Mudos de Paris, ainda que nunca tenha deixado de
promover a história, publicando frequentemente no periódico Le Biographe et l’historien. Seu
falecimento, em 1873, não foi sequer comentado pela instituição que era sua “menina dos olhos”. Para a
biografia de Monglave, ver ENDERS, Armelle. Os vultos da nação: fábrica de heróis e formação dos
brasileiros. Rio de Janeiro: FGV, 2014, p. 89-90; e DESLANDRES, Paul. Les débuts de l'Institut
Historique (1834-1646). Extrait de la Revue des Études Historiques, nº julliet-septembre 1922. Paris:
Librairie Auguste Picard, p. 5-6. Ver também: FARIA, Maria Alice. Op. cit., 1970, p. 13-15; e
LUSTOSA, Isabel. “O séjour de D. Pedro I em Paris e a imprensa francesa: familiaridade e exotismo”. In:
História, São Paulo, v. 31, n. 2, p. 171-190, jul./dez. 2012.
6
Joseph François Michaud (1767-1839) foi membro de uma das mais importantes sociétés savantes da
França – a Académie Française. Monarquista na época da Revolução Francesa, promoveu diversas
polêmicas na imprensa após 1789, o que fez com que fosse exilado e preso. Seu jornal La Quotidienne era
um dos principais veículos de transmissão de suas mensagens. Publicou também um livro de versos
denominado Le Printemps d’un proscrit, que obteve grande sucesso por seu caráter anti-revolucionário.
Após sua morte, o IHP rendeu-lhe homenagem no Congresso de 1839. O elogio fúnebre, feito pelo colega
Mathieu-Guillaume-Thérèse Villenave, destacava o forte espírito partidário do “presidente perpétuo”,
que, a esse despeito, era um “homem bom”. Pouco diz, entretanto, a respeito de suas constantes mudanças
ideológicas: de crítico da Revolução, passando por defensor da dinastia napoleônica, até incentivador do
restabelecimento dos Bourbons, em 1815. FARIA, Maria Alice. Op. cit., 1970, p. 15-16.Ver também
98

o primeiro presidente da instituição, o IHP obteve registro junto ao Ministério da


Instrução Pública de Paris em novembro de 1833. Sua constituição definitiva ocorreu em
abril de 1834, dando origem a “[...] uma das mais conceituadas agremiações eruditas do
fim do século XIX e do século XX [...]”, a Société des études historiques7.
Dentre os objetivos do Institut destaca-se o incentivo aos estudos históricos na
França e no estrangeiro, fazendo uso de correspondência com outras instituições
congêneres, fundando sucursais, publicando material, criando uma biblioteca especial e
organizando sessões gerais e particulares, congressos anuais e cursos públicos e gratuitos
de história8. Os sócios seriam responsáveis por levar à frente pesquisas de grande
abrangência: da geografia antiga até o estudo de manuscritos – passando pelo interesse
pelas línguas, literaturas, ciências, artes, antiguidades, monumentos, moedas e “impressos
curiosos de todos os países e épocas”. Tais elementos garantiriam lançar luz sobre “tudo
que constitui a ciência histórica”9.
Era, portanto, vasto o campo que o Institut se propunha a abranger. Ao contrário
do que afirmava Philippe Buchez no trecho com o qual se iniciou este capítulo, Maria
Alice Faria vê nesse aspecto uma oposição ao caráter especializado que a história
paulatinamente passará a ter com o decorrer do século XIX10. Sobretudo nos anos iniciais,
o IHP tinha uma produção dispersa, na qual reinava um caráter de improvisação e de
amadorismo – algo que também se modificou com o passar do tempo.
De acordo com Michaud, a perspectiva de “ciência histórica” possuía uma
utilidade fundamental, a de ser um “ensinamento moral”: o conhecimento dos tempos

VILLENAVE, Mathieu-Guillaume-Thérèse. “Joseph Michaud, qui fut président à vie de l’Institut


historique, et que l’Academie française, et l’Académie des inscriptions se faisaient gloire de compter
dans leur sein”. In: SOCIÉTÉ DES ÉTUDES HISTORIQUES. Congrès historique européen, reuni a
Paris, au siège de l’Institut Historique. Discours et compte-rendus. Septembre-octobre 1839, p. 515-534.
7
O IHP transmutou-se na Société des études historiques em março de 1872. Seu fim provável, segundo
Maria Alice de Oliveira Faria, se deu logo após a Segunda Guerra Mundial. Ver, da autora, “Monglave e
o Instituto Histórico de Paris”. In: Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, n. 2, p. 47,
1967.
8
“54e séance du Conseil de l’Institut Historique”. Registres de l'Institut historique, devenu la Société des
études historiques. Arquivo da Bibliothèque de l’Arsenal, Paris, França. Ref. MS 9186, f. 181.
9
BUCHEZ, Philippe. “Discours d’ouverture du Troisième Congrès Historique”. In: SOCIÉTÉ DES
ÉTUDES HISTORIQUES. Journal de l’Institut Historique. 1837, p. 52 (tradução livre). Do original: “Il
s’occupe de recherches sur la géographie ancienne, la chronologie, les langues, les littératures, les
sciences, les arts, les antiquités, les monuments, les monnaies, les manuscrits, les imprimés curieux de
tous les pays, de tous les âges, et généralement de tout ce qui constitue la science historique”.
10
FARIA, Maria Alice. Op. cit., 1970, p. 48.
99

passados funcionava como forma de iluminar aquilo que os “sábios de hoje gostariam de
situar à geração presente”11. Essa mesma questão – da finalidade ou objetivo da história
– era vista com tanta importância dentro do IHP que será o tema de abertura do seu
primeiro congresso, em 1835.
Um dos princípios básicos da associação em sua primeira década foi o de expandir
acepções relacionadas à cultura francesa, ainda que entendida em um sentido universal,
de civilização. Nesse caso, o entrosamento com instituições e letrados pelo restante da
França e pelo mundo afora foi de extrema importância, no sentido de promover o Institut,
bem como sua visão civilizadora12. Essa concepção aliava-se perfeitamente a uma ideia
que vez por outra aparecia nos discursos proferidos nas sessões ou nos congressos
promovidos pelo IHP: a de que, ainda que a agremiação fosse uma reunião de homens de
diversas posições políticas, seu espaço garantia uma “tendência pacífica”13, o respeito a
todas as nuanças de posição14. Sua pretensa função não era julgar os homens e seus ideais
políticos, o que podia criar um ambiente de brigas e dissenções, mas pensar no bem
comum, através da pesquisa da origem e da marcha do progresso das nações, dos impérios
e das religiões15. O IHP, assim, respaldava no futuro seu ideal de história. E era em função
dele que deviam ser esquecidas as querelas partidárias que tanto mal já haviam causado
à França e, consequentemente, à humanidade.
Retomando um aspecto citado anteriormente, o intercâmbio de ideias não se dava,
contudo, através de via de mão única da França para o Brasil. A grande quantidade de
brasileiros no quadro de sócios do IHP demonstra a participação, ainda que pequena, dos

11
MICHAUD, Joseph François. “Discours d’ouverture du Première Congrès Historique”. In: SOCIÉTÉ
DES ÉTUDES HISTORIQUES. Congrès historique européen, reuni a Paris, au nom de l’Institut
Historique, dans la salle Sr.-Jean, de l’Hôte-de-Ville. Discours et compte-rendus. Novembre-décembre
1835, vol. 1, p. 2-3.
12
GUIMARÃES, Manoel Salgado. “Entre amadorismo e profissionalismo: as tensões da prática histórica
no século XIX”. In: Topoi, Rio de Janeiro, p. 191, dez. 2002.
13
MICHAUD, Josephe François. “1ère Assemblée général de l’Institut Historique”. Registres de l'Institut
historique, devenu la Société des études historiques. Arquivo da Bibliothèque de l’Arsenal, Paris, França.
Ref. MS 9185, f. 4 (tradução livre). Do original: “Cette pensée est la seule que preside à la création de
notre Institut: sa tendance sera tout pacifique, toute de bien individuel [et] general”.
14
MONGLAVE, Eugène de. “Des travaux de l’Institut Historique, depuis sa fondation le 24 décembre
1833, jusqu’à ce jour 11 septembre 1837”. In: SOCIÉTÉ DES ÉTUDES HISTORIQUES. Journal de
l’Institut Historique. 1837, p. 52.
15
MICHAUD, Joseph François. “1ère Assemblée général de l’Institut Historique”. Registres de l'Institut
historique, devenu la Société des études historiques. Arquivo da Bibliothèque de l’Arsenal, Paris, França.
Ref. MS 9185, f. 2 (tradução livre).
100

mesmos na agenda da agremiação francesa16. Tal aspecto pode ser justificado muito por
conta da gerência de Monglave, que morou algum tempo no país e permaneceu em
contato com seus letrados. Desse contato, surgiu, em parte, a ideia de estabelecer um
instituto histórico no Brasil. Cunha Barbosa e Cunha Matos, membros do IHP desde 1835
e 1837, respectivamente17, tão logo tiveram seu projeto de fundar o IHGB aprovado em
sessão da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional, enviaram à congênere francesa
notícias de tal estabelecimento, além de esclarecerem a dívida para com o IHP, que lhe
serviu de base. Era, portanto, com orgulho que Monglave anunciava que a nova
associação do Império do Brasil não se esquivava em declarar sua descendência em
relação ao Institut e que, em igual medida, desejava com pressa colocar-se sob sua égide
e “implorar” pelos seus conselhos18.
A semelhança das propostas das duas instituições não deve, contudo, esconder
suas diferenças. Cada qual à sua maneira, as associações adotaram determinados
protocolos no que diz respeito à compreensão e à produção historiográfica, além dos usos
do tempo presente. Até porque, comparativamente, elas foram constituídas em contextos
distintos, com preocupações que impulsionavam questionamentos específicos em relação
ao estudo do passado. Uma, nascida no período final das regências e consolidada a partir
da ascensão de D. Pedro II, ainda menino, como imperador do Brasil; a outra, vivenciando
a Monarquia de Julho com o reinado Luís Felipe de Orléans, o primeiro “rei dos
franceses” (e não da França), tentando pôr fim às sucessivas querelas políticas e sociais
ainda reminiscentes da Revolução de 1789.
Se o primeiro caso aponta para a fusão entre a instituição histórica e o governo (na
figura do próprio Imperador), o segundo já não pode ser interpretado da mesma maneira.
Enquanto o IHGB concentrava letrados de posição política bem definida e praticamente

16
Especula-se que haviam cerca de 50 brasileiros no IHP entre 1834 e 1856. Muitos notórios sócios do
IHGB faziam parte da instituição francesa, tais como Francisco de Sales Torres Homem, Manoel de
Araújo Porto-Alegre e Gonçalves de Magalhães, além de Cunha Barbosa e Cunha Matos. Na prática,
contudo, eles pouco atuaram na agremiação. FARIA, Maria Alice. Op. cit., 1970, p. 55 e 71.
17
Ibidem, p. 92 e 96. Januário da Cunha Barbosa fazia parte da classe de História das Línguas e
Literaturas, ao passo que Cunha Matos compunha a de Ciências físicas, sociais, matemáticas e filosóficas.
18
De acordo com Monglave, Januário da Cunha Barbosa e Cunha Matos fundaram a associação, e “[...]
n’a pas rougi de déclarer en naissant qu’il descendait de nous, qui s’est hâté de se placer sur notre égide,
d’implorer nos conseils [...]”. Ver “Compte-rendu des travaux de l’Institut historique”. In: SOCIÉTÉ
DES ÉTUDES HISTORIQUES. Congrès historique européen, reuni a Paris, au siège de l’Institut
Historique. Discours et compte-rendus. Septembre-octobre. 1839, p. 24.
101

homogênea, os exaltadores da monarquia brasileira19, o IHP agregava indivíduos com


distintas vivências políticas: de monarquistas a republicanos, de críticos da Revolução
Francesa a seus apreciadores20. Assim, ainda que por vezes o IHP seja caracterizado como
uma sociedade conservadora, nota-se que sua composição era bem mais complexa.
Talvez por isso fosse tão necessária a garantia de que dentro dele reinaria a paz e que seu
espaço era o de discussões de assuntos “puramente de história”21.
Por outro lado, nota-se que o intercâmbio entre os dois países esclarece o
nascimento da disciplina histórica nos Trópicos. Armelle Enders indica que, dentre os
regimes conhecidos pela França no oitocentos, o governo de Luís Felipe “[...] foi
certamente o que mais seduziu o liberalismo moderado das elites imperiais [...]”. Tal
aproximação se fez notar no IHGB: seus fundadores tinham muitos pontos em comum
com os “reformadores europeus da história” e os pensadores liberais franceses –
continuamente citados pelos nossos letrados22.
Ainda segundo a especialista, o Brasil viu o interesse pela história surgir em
circunstâncias semelhantes às responsáveis pela reforma histórica na França restaurada:
Privados do espaço público [...], os liberais se refugiaram nos estudos,
mergulharam no passado da França, querendo nele encontrar um futuro mais
condizente com suas aspirações. Deixando de lado a Antiguidade clássica,
apropriaram-se de épocas e de um gênero que, antes deles, estavam reservados
somente aos seus adversários políticos. Tratava-se, segundo a célebre
expressão formulada por Guizot em 1820, de “retomar o fio dos tempos”, de
descobrir, por trás dos avanços e recuos, o sentido de uma história que era a
dos povos modernos23.

Da mesma forma, os primeiros associados do IHGB partilhavam com os liberais


franceses a concepção de uma história filosófica que, diferentemente do foco dado em

19
O que não significa que no IHGB não houvesse divisões políticas. Enders alerta para o fato de que ele
admitia, sem discriminações, conservadores e liberais. Mas essas duas bandeiras, a despeito de suas
diferenças, possuíam, naquele momento, uma plataforma comum: a integralidade do Poder Moderador e o
governo pessoal de D. Pedro II. Cf. ENDERS, Armelle. Op. cit., 2014, p. 89.
20
O próprio Monglave fazia parte da geração conhecida como “enfants du siècle”, os herdeiros da
Revolução, “[...] a mais atingida das gerações de Napoleão”. FARIA, Maria Alice. Op. cit., 1967, p. 44.
Deslandres indica que a instituição francesa agrupava “ultras” e “republicanos avançados” – opiniões
adversas em relação à monarquia burguesa e à restauração. Op. cit., 1922, p. 26.
21
“Status constitutifis de l’Institut Historique”. Registres de l'Institut historique, devenu la Société des
études historiques. Arquivo da Bibliothèque de l’Arsenal, Paris, França. Ref. MS 9185, f. 11.
22
ENDERS, Armelle. Op. cit., 2014, p. 90.
23
Ibidem, p. 125.
102

anais e efemérides, pudesse fornecer um contexto para a ação política24 – apesar de ainda
se pautarem em determinados atributos clássicos para o discurso historiográfico.
Por outro lado, a referência a François Guizot deve ser tomada com cautela. O
político – então Ministro da Instrução Pública, que promoveu a reforma no sistema
escolar25 – e historiador francês manteve com o IHP posição ambígua e, não raro,
mostrava-se como opositor de seus ideais. No mesmo ano em que Monglave e Michaud
fundavam a agremiação, Guizot criou a Société de l’Histoire de France que,
diferentemente de sua similar, dispunha-se a realizar um trabalho mais acadêmico e
crítico e menos erudito em relação à história26.
Tal oposição chegaria a tocar em aspectos de cunho prático. Monglave, por
diversas vezes, reclamou da falta de apoio do Ministério de Guizot e de Narcisse-Achille
Salvandy, seu sucessor, ao Institut quando, por exemplo, este desejava levar à frente o
projeto dos cursos de história. Em sua ótica, o secretário perpétuo evidenciava a
discrepância no tratamento dado à Société de l’Histoire de France, cujos projetos eram
prontamente aceitos pelo Estado27.
Assim, ainda que seja notória a ligação entre as historiografias brasileira e
francesa em desenvolvimento no oitocentos, há que se fazer este tipo de ressalva: o
passado constituía-se então em objeto de disputa28 e, por isso mesmo, a história tornou-
se um importante artigo para diferentes grupos, apresentando-se distintamente a partir de
específicas preocupações contemporâneas. E se o IHGB esclareceu incontáveis vezes o
laço que o unia à tradição reputada ao IHP29, em outros momentos ele caiu na tentação de
a trair, demonstrando preocupação análoga à da outra instituição em editar e publicar as

24
Ibidem, p. 125.
25
GUIMARÃES, Manoel. Op. cit., p. 185, dez. 2002.
26
Ibidem, p. 187. A Société, além disso, agregava majoritariamente historiadores liberais.
27
“34e séance du Conseil de l’Institut Historique”. Registres de l'Institut historique, devenu la Société des
études historiques. Arquivo da Bibliothèque de l’Arsenal, Paris, França. Ref. MS 9185, f. 249. Vale notar
o caráter muito mais oficial da agremiação fundada por Guizot do que em relação à de Monglave. A
Société ainda hoje é vista como a mais importante instituição histórica da França.
28
GUIMARÃES, Manoel. Op. cit., p. 184, dez. 2002.
29
A partir da leitura do discurso inaugural de Januário da Cunha Barbosa é possível identificar uma
premissa compartilhada entre as duas instituições: a primeira etapa de pesquisa documental propunha a
reunião de material espalhado pelas diversas cidades (no caso francês) e províncias (no caso brasileiro).
GUIMARÃES, Manoel. “A disputa pelo passado na cultura histórica oitocentista do Brasil”. In:
CARVALHO, José Murilo de (Org.). Nação e cidadania no Império: novos horizontes. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2007, p. 115.
103

fontes para a história nacional30. A compulsão pela organização desta história era um
aspecto que aproximava o IHGB muito mais à Société do que à instituição de Monglave.
Resta saber em que medida o grêmio brasileiro tomava de parâmetro as produções do IHP
também em relação ao tempo presente.

2.2 Do diletantismo vieram frutos

O método de trabalho do Institut foi influenciado pela forma de organização


adotada pelos seus associados, principalmente pela hierarquia que regia o grupo. Estava
dividida em classes: num primeiro momento eram doze, depois passaram para seis e, por
fim, para quatro – História Geral e da França; História das Línguas e Literaturas; História
das Ciências Físicas, Matemáticas, Sociais e Filosóficas; e História das Belas-Artes31.
Estas especialidades garantiam que os assuntos tratados em suas sessões e,
posteriormente, nos congressos de história promovidos pela associação, sofressem
apreciações mais elaboradas. As classes eram administradas por um grupo dirigente, que,
juntamente com o Bureau da instituição (composto pelo presidente, vice-presidente e
secretário perpétuo), formava o “Conseil” do IHP32. Enquanto o Bureau se reunia em
Assembleias gerais, o Conseil conferenciava em momento específico – tal era o caráter
hierárquico dominante naquela sociedade.
Em relação às produções, destacam-se o periódico da instituição, os cursos de
história e os congressos que organizou. De acordo com Mathieu-Guillaume-Thérèse
Villenave, presidente do quinto congresso de história, eram três as “alavancas para
impulsionar a civilização”: os jornais ou folhas periódicas; as associações conhecidas
pelo nome de academias, institutos, sociedades savantes, literárias ou artísticas; e os
congressos33. Fica clara a associação com os trabalhos levados à frente pelo IHP, ainda

30
GUIMARÃES, Manoel. Op. cit., p. 187, dez. 2002.
31
Tal modificação ocorreu em 1836. DESLANDRES, Pierre. Op. cit., 1922, p. 7-8.
32
Cf. “Status constitutifis de l’Institut Historique”. Registres de l'Institut historique, devenu la Société des
études historiques. Arquivo da Bibliothèque de l’Arsenal, Paris, França. Ref. MS 9185, f. 5-15.
33
VILLENAVE, Mathieu-Guillaume-Thérèse. “Discours de clôture”. In: SOCIÉTÉ DES ÉTUDES
HISTORIQUES. Congrès historique européen, reuni a Paris, au siège de l’Institut Historique. Discours
et compte-rendus. Septembre-octobre. 1839, p. 566.
104

que haja um esquecimento – um tanto quanto peremptório – em relação aos cursos de


história por ele promovidos.
Em todos os casos, por outro lado, vislumbra-se o objetivo da associação em
publicizar aquilo que se desenvolvia em seu seio, algo esboçado desde seus primeiros
estatutos; em colaborar com a marcha da civilização através da palavra, passada escrita
ou oralmente. A comunicação com o público, como consta da primeira edição do
periódico, em 1834, era de fundamental importância para se atingir a utilidade “atual,
real, positiva” da história34.

2.2.1 As folhas periódicas

2.2.1.1 Do método da história

O Journal de l’Institut Historique35, em seus primeiros anos, continha as seguintes


sessões: Mémoires, espaço dedicado à publicação de trabalhos, na maior parte das vezes,
inéditos; Rapports d’ouvrage français et étrangers; Correspondance; Extraits des
procès-verbaux36; Chronique; e o Bulletin bibliographique, em que era feita uma seleção
de trabalhos de cunho histórico publicados naquele período37. Esporadicamente, eram
publicados na revista relatórios e/ou informes sobre os congressos, sobretudo após seu
segundo número38.

34
BROUSSAIS, Casimir. “Introduction”. In: SOCIÉTÉ DES ÉTUDES HISTORIQUES. Journal de
l’Institut Historique. 1834, p. 1 (tradução livre). Do original: “[...] l’utilité actuelle, réelle, positive, que la
société peut retirer des études historiques, telles que nous les entendons”.
35
Em 1841 o nome do periódico foi modificado, incluindo-se o “L’Investigateur”, o que sugere uma
tentativa de ampliar seu público leitor. GUIMARÃES, Manoel. Op. cit., p. 190-191, dez. 2002. Daqui por
diante denominado apenas como Journal.
36
Eram publicadas as atas das sessões das classes e da Assembleia Geral, ainda que de forma muito mais
resumida em comparação ao que constava dos manuscritos.
37
Ainda que essa ideia de “trabalhos de cunho histórico” fosse um tanto quanto abrangente no IHP, como
já comentei. Cf. DESLANDRES, Paul. Op. cit., 1922, p. 25.

Para entender a divisão do periódico, ver BROUSSAIS, Casimir. “Introduction”. In: SOCIÉTÉ DES
38

ÉTUDES HISTORIQUES. Journal de l’Institut Historique. 1834, p. 3.


105

A definição daquilo que constituía a história e seu processo de escrita aparece


pontualmente nos números do periódico. No primeiro, editado em 1834, Frédéric
Boissière elaborou, em três artigos, um estudo sobre o método histórico na sessão de
Mémoires39. Começava indentificando “método” como o passo inicial para toda e
qualquer renovação da ciência filosófica40. A própria constituição da ciência histórica
deveria, portanto, acompanhá-lo41.
Nesse sentido, propunha a pergunta que até hoje é foco de incessante reflexão: o
que é a história? Para respondê-la, Boissière narra seu percurso desde a Antiguidade
clássica até o tempo presente. Se no seu início, ela era percebida como a narrativa dos
acontecimentos materiais que influenciaram o desenvolvimento político de um Estado
(como as guerras, por exemplo), com as Repúblicas antigas, ela teria se mostrado ao
interesse popular – sendo cada evento preparado e discutido no fórum. Além disso, e este
é um aspecto fundamental, a história era escrita no dia a dia, tendo em vista a necessidade
que tinha de captar a impressão do momento e de a reproduzir “antes que pudesse se
resfriar”42. E se houve quem pudesse exemplificar tal perspectiva, este fora Tucídides43.
Essa noção, tão cara aos antigos, possuía entraves. Numa história em que se “conta
por contar” não é possível reconhecer o “[...] encadeamento moral das causas e dos
resultados”44. Qualquer que fosse o estilo narrativo do escritor, ele não faria mais do que
uma história política, ou seja, “[...] uma história destinada a representar os interesses dos
povos e não o desenvolvimento do homem”45.

39
BOISSIÈRE, Frédéric. “Exposition et discussion générale des Doctrines Historiques de la méthode
historique”; “De la méthode historique. IIe article M. de Barante”; e “De la méthode historique. IIIe
article MM. Augustin et Amédée Thierry”. In: SOCIÉTÉ DES ÉTUDES HISTORIQUES. Journal de
l’Institut Historique. 1834, p. 4-9; p. 205-211; e p. 325-333, respectivamente.

Idem. “Exposition et discussion générale des Doctrines Historiques de la méthode historique”. In:
40

SOCIÉTÉ DES ÉTUDES HISTORIQUES. Journal de l’Institut Historique. 1834, p. 5.


41
Ibidem, p. 8.
42
Ibidem, p. 8 (tradução livre). Do original: “L’histoire fut d’abbord regardée comme le récit des
événements matériels qui avaient influé sur le développement politique d’un État; comme la narration des
guerres, des négotiations, des batailles, etc. Puis, dans les republiques antiques, l’histoire s’animait de
l’intérêt populaire qui s’attachait à chaque événement préparé et discuté sur le forum. [...] Du reste, elle
dût écrire au jour le jour, car il fallait saisir l’impression et la reproduire avant qu’elle pût se refroidir”.
43
Ibidem, p. 8.
44
Ibidem, p. 8 (tradução livre). Do original: “On conçoit que dans une histoire écrite au jour le jour, qui
raconte pour raconter, on ne saurait rencontrer l’enchaînement moral des causes et des résultats”.
45
Ibidem, p. 8 (tradução livre). Do original: “[...] une histoire destinée à représenter les intérêts des
peuples et non le développement de l’homme”.
106

Assim como o historiador antigo, o medieval teria escrito sob o peso das
motivações que o envolviam. Expunha, nesse sentido, os “fatos históricos nos termos das
preocupações contemporâneas”, desenvolvendo “a ideia de tempo” – algo que não
deixava de ter certa validade, a despeito das críticas que pudessem ser endereçadas a essa
noção46.
Mas era necessário reiterar que não só de fatos políticos se fazia a história. Em se
tratando de uma perspectiva que será cara à historiografia do século XX, sobretudo a
partir do “impacto” promovido pelos Annales47, Boissière estabelecia que a preocupação
da história deveria ser integrada por várias esferas, num “todo” composto pela filosofia,
pelas artes, indústria, costumes e, em outros termos, através das ideias do verdadeiro, do
belo, do útil e do bom – igualmente possuidores de uma história48.
A coordenação e a sistematização dos fatos, na ampla perspectiva tratada acima,
devia ter lugar com a ciência moderna, notadamente, com a filosofia da história e sua
preocupação com projetos de futuro:
Finalmente, após expandir assim o domínio da história, depois de entender e
coordenar os fatos, depois de encontrar as fontes de aproximação que haviam
escapado aos seus antecessores, a ciência moderna deseja sistematizar seus
fatos, pondo-lhes em ação; ela deve resultar nas conclusões que importam tanto
ao passado como ao futuro da humanidade49.

O segundo artigo retoma a oposição entre historiografia antiga e moderna,


indicando novamente o caráter imediatista dos autores clássicos, que escreviam sob
aspirações do presente, dotando a narrativa de um “colorido todo local” e “quente” das

46
Ibidem, p. 8 (tradução livre). Do original: “[...] le narrateur du moyen-âge [...] expos les faits
historiques sous les préocupations contemporaines, ou, en langage plus philosophique, qui développe
l’idée de temps, elle est nécessaire, indispensable”.
47
Ainda que essa ideia de “revolução” possa ser contestada, tendo em vista que os Annales não afastaram
tão radicalmente o aspecto político da história, como foi alardeado por autores como Peter Burke e
Jacques Revel. Para atenuar essa perspectiva de que os Annales inauguraram o “[...] marco zero da
renovação historiográfica que derrubou as correntes vigentes no século XIX”, ver GOMES, Tiago de
Melo. “A força da tradição: a persistência do Antigo Regime historiográfico na obra de Marc Bloch”. In:
VARIA HISTORIA, Belo Horizonte, vol. 22, n. 36, p. 443-459, jul/dez 2006. Vale notar, ainda, que o
caminho apontado pela primeira geração da “escola” francesa encabeçada por Lucien Febvre e Marc
Bloch estava relacionado à aproximação da história com as ciências sociais.
48
BOISSIÈRE, Frédéric. “Exposition et discussion générale des Doctrines Historiques de la méthode
historique”. In: SOCIÉTÉ DES ÉTUDES HISTORIQUES. Journal de l’Institut Historique. 1834, p. 8.
49
Ibidem, p. 9 (tradução livre). Do original: “Enfin, après avoir agrandi ainsi le domaine de l’histoire,
après avoir étendu et coordonné les faits, après avoir trouvé des sources de rapprochement qui avaient
échappé à ses devanciers, la science moderne a voulu systématiser ces faits, les mettre en action; il a
voulu en faire résulter des conclusions qui importassent au passé comme à l’avenir de l’humanité”.
107

emoções que animavam a sociedade50. De forma semelhante ao que se expôs em algumas


passagens do capítulo anterior em relação ao IHGB, Boissière relacionava o avanço
temporal como necessidade básica para o ofício do historiador, haja visto que ele não só
colaboraria com a análise mais imparcial por conta do esfriamento das paixões
momentâneas, como pela inteligibilidade adquirida pelo futuro daquilo não podia ser
perceptível aos observadores contemporâneos:
Ela [a historiografia clássica] se apresenta como um tipo de memória, onde o
autor conta o que ele viu ou o que ele apreendeu de testemunhos oculares,
memória interessante, mas incompleta, que pressiona de perto os eventos para
poder considerar suas causas e seus resultados, e por suas impressões do
momento [...]51.

De início, para contrapor tais ideias, o articulista expõe o trabalho de um seu


contemporâneo, Amable-Guillaume-Prosper Brugière, o barão de Barante52, que podia
personificar a historiografia moderna em muitos aspectos, ainda que não em todos.
Segundo Boissière, o messieur de Barante tratou de construir a história sob novas bases,
partindo do uso de fontes distintas – desde crônicas a letras políticas, passando por cartas.
Seu método consistia em comparar tais documentos para fazer ressurgir os “fatos em toda
a sua exatidão”53. Tentava dar conta de um “todo” – na perspectiva esboçada no seu

50
BOISSIÈRE, Frédéric. “De la méthode historique. IIe article M. de Barante”. In: SOCIÉTÉ DES
ÉTUDES HISTORIQUES. Journal de l’Institut Historique. 1834, p. 205-206 (tradução livre). Do
original: “Nous avons dit dans notre premier article que l’histoire antique avait été écrite sous les
inspirations contemporaines, qu’elle était empreinte d’un coloris tout local, et chaude, pour ainsi dire,
des passions qui animaient la société”. Mais à frente, tratarei da temática da “cor local”.
51
Ibidem, p. 206 (tradução livre). Do original: “Elle présentait une sorte de mémoire, où l’auteur
racontaint ce qu’il avait vu ou ce qu’il avait appris de témoins oculaires, mémoire intéressant, mais
incomplet, qui serrait de trop près les événemens pour pouvoir considérer leurs causes et leur résultats,
et par les impressions du moment [...]”.
52
Januário da Cunha Barbosa muito se utilizou das ideias esboçadas por Barante para elaborar o discurso
de abertura do IHGB, em 1839. Ele julgou conveniente “copiar” o autor francês em sua compreensão da
narrativa histórica como capaz de restituir os eventos a seus cenários originais, conferindo novamente
vida àquilo que, pela passagem do tempo, estava condenado à morte. Assim como a poesia, a história
falaria à imaginação, apesar de ter que ater-se à verdade positiva dos fatos: “A imaginação como
instrumento para a narrativa do historiador permitiria que a existência de povos e indivíduos do passado
pudesse ser evocada e novamente trazida à vida diante de nossos olhos”. Entretanto, assim como
Boissière, Barbosa também concebia a história como “lógica processual que ligasse passado e presente”,
diferentemente de Barante, que parecia entender tais instâncias separadamente. Cf. GUIMARÃES,
Manoel. Op. cit., 2007, p. 107; e CÉZAR, Temístocles. “Lição sobre a escrita da história: historiografia e
nação no Brasil do século XIX”. In: Diálogos, DHI/UEM, v. 8, n. 1, p. 19-21, 2004.
53
BOISSIÈRE, Frédéric. “De la méthode historique. IIe article M. de Barante”. In: SOCIÉTÉ DES
ÉTUDES HISTORIQUES. Journal de l’Institut Historique. 1834, p. 206 (tradução livre). Do original:
“Pour reconstruire l’histoire sur de nouvelles bases, il résolut d’éviter tous les défauts de ses devanciers,
de tenir compte des différences de lois, de moeurs, de costumes, d’idées courantes et de langage habituel,
que le temps avait apportées dans la societé. [...] il a lu les chroniques, les chartres, les lettres politiques,
108

primeiro artigo –, sem privilegiar estudos relacionados apenas à política e seus eventos,
e era visto pelo articulista como um escritor imparcial (ainda que esse termo não apareça
no texto), ao menos em relação a seu próprio tempo, pois “Historiador do décimo quinto
século, ele esquece o décimo nono que o envolve [...]”54. Prosper de Barante estaria, dessa
forma, distante do perigo do anacronismo, hoje considerado um dos grandes inimigos do
ofício do historiador.
O que a princípio parece uma qualidade exaltada por Boissière, aos poucos se
mostra como o seu contrário. Fazendo crítica à obra de Barante, o autor do texto indicava
que aquele historiador não empregava algumas das mais importantes categorias da ciência
moderna. Seu trabalho esquivava-se de ser uma narrativa dos eventos e, sobretudo, da
ligação entre eles, distanciando-se daquilo que conformava a disciplina: ser uma
“exposição completa da vida passada”55.
O sentido da história deveria ser pautado nos valores humanos defendidos pelo
discurso e que conformam a ação, já anteriormente citados: o verdadeiro, o belo, o útil e
o bom, além do santo56. Para Boissière, tais princípios seriam valores responsáveis pela
ação do homem na história, assim como a religião, a arte, a legislação, a ciência e a
indústria são categorias que se apresentam em todas as épocas e em todos os povos, mas
que mudam de acordo com a necessidade e o contexto57.

les ordonnances, etc., et les a comparées entre elles pour en faire ressortir les faits dans toute leur
exactitude”.
54
Ibidem, p. 207 (tradução livre). Do original: “Historien du quinzième siècle, il oubliera le dix-neuvième
qui l’enveloppe [...]”.
55
Ibidem, p. 208-209 (tradução livre). Do original: “L’histoire est l’exposé complet de la vie passée de
l’humanité [...]”.
56
Nota-se, nessa passagem, uma clara alusão a ideias que constituíam o fundo discursivo na perspectiva
da retórica clássica, sobretudo em sua vertente aristotélica, e na posterior revalidação cristã por Santo
Agostinho (que, por sua vez, era leitor de Cícero). De acordo com a retórica clássica, são três os gêneros
do discurso: o judicial, que objetiva o justo ou o injusto, através da acusação ou da defesa de um réu
diante dos juízes, pautando-se, sobretudo, nos fatos passados; o deliberativo ou político, que preocupa-se
com o útil e o prejudicial por meio do aconselhamento de uma ação futura, tendo por principal recurso o
exemplo; e o demonstrativo ou epidítico, que estabelece o elogio ou a censura do nobre ou do vil,
corroborando com uma situação considerada constante. Assim, se para Aristóteles, o belo, o justo e o útil
são categorias de argumentação para justificar o elogio (ou a ofensa), a honestidade (ou a desonestidade)
e o aconselhamento político visando à utilidade da proposta, respectivamente, na concepção agostiniana,
o santo e o verdadeiro também são chamados a fazer parte do jogo argumentativo. MALEVAL, Maria do
Amparo Tavares. Fernão Lopes e a retórica medieval. Niterói: EdUFF, 2010, p. 70-83.

BOISSIÈRE, Frédéric. “De la méthode historique. IIe article M. de Barante”. In: SOCIÉTÉ DES
57

ÉTUDES HISTORIQUES. Journal de l’Institut Historique. 1834, p. 209.


109

Nesses termos, se Prosper de Barante foi capaz de fazer uma obra de qualidade,
com muita erudição, ele pecou por não adotar procedimentos científicos ou filosóficos.
Para Boissière, ele não discutiu a verdade das informações e a autoridade ou
verossimilhança dos testemunhos; acreditou neles sem ressalvas e optou por contar uma
história narrada por seus próprios artífices58. Faltou-lhe o método crítico, portanto. Isso
porque não é possível acreditar piamente nas fontes contemporâneas, escritas sob o calor
do momento, como faz Barante, pois
[...] os contemporâneos não veem mais que peças isoladas da história que eles
constroem com seu suor e seu sangue; colocados muito próximos, eles não
podem apreciá-la em suas conexões, em marcar a tendência, a utilidade e os
meios. Ainda assim o Sr. de Barante se coloca voluntariamente nessa situação,
ele aceita seus julgamentos [dos contemporâneos], são eles que falam através
de sua boca59.

Tal como a observação territorial que, para ser completa, deve ser feita de um
local afastado que comporte a visão total do conjunto a ser abarcado, na prática
historiográfica o avanço do tempo promove uma análise mais viável, porque plena, do
objeto investigado. Logo, à medida que o presente torna-se passado, ele é reconhecido
como alvo legítimo do trabalho historiográfico. E, apesar de Barante não fazer uma
história contemporânea, ele pecava ao confiar inteiramente nas fontes coetâneas aos
eventos narrados, deixando-as “falar através de sua boca”. Não podia, assim, ser
considerado um historiador competente, no sentido moderno do termo.
Mais grave ainda, ao expor os fatos de modo a conservar sua fisionomia
contemporânea, Barante acabou fugindo da utilidade máxima da história: seu caráter
progressivo e de projeção para o futuro.
Em nossa opinião, a história é um vasto livro, resultado da experiência da
humanidade, que cada geração ilumina a cada novo dia ao aplicar os
ensinamentos, que ela completa com suas ações, que ela renova pela sua
inteligência; é um monumento gigantesco ao qual cada raça acrescenta uma
pedra, que cada povo eleva um pouco, que cada século refaz com novos
materiais e que nunca termina60.

58
Ibidem, p. 209. Ver também a p. 211.
59
Ibidem, p. 210 (tradução livre). Do original: “[...] les contemporains ne voient que pièce à pièce
l’histoire qu’ils construisant avec leur sueur et leur sang; placés trop près, ils ne peuvent l’apprécier
dans ses rapports, en marquer la tendance, le but et les moyens. Pourtant M. de Barante se place
volontairement dans leur situation, il accepte leur jugement, ce sont eux qui parlent par sa bouche”.
60
Ibidem, p. 209 (tradução livre). Do original: “A notre avis, l’histoire est un vaste livre, résultat de
l’expérience de l’humanité, que chaque génération éclaire d’un nouveau jour en s’en appliquant les
enseignemens, qu’elle complette par ses actions, qu’elle renouvelle par son intelligence; c’est un
monument gigantesque auquel chaque race ajoute une pierre, que chaque peuple exhausse d’une coudée,
que chaque siècle refait avec des matériaux nouveaux et qui n’est jamais achevé”.
110

A condenação ao trabalho de Barante reside, portanto, no fato de o escritor ter


estudado o passado especificamente no seu tempo, sem relacioná-lo com o presente e o
futuro, deixando de lado o aspecto filosófico da história. Não se importou com aquilo que
lhe era fundamental: seu plano geral, a harmonia das revoluções, a regularidade dos
eventos e a filosofia que os domina. Fugiu, portanto, de arcar com a “profunda lição” que
“mostra o futuro no passado” e que indica o “nosso ponto de partida e de chegada”61. Para
Boissière, o objetivo da história era simples: “[...] buscar, em suas diversas formas, o
elemento constante da humanidade”, a sua lei62.
Ele também desaprovara, como se viu, a crença ilimitada de Barante em relação a
suas fontes, o que aponta igualmente para um entendimento moderno do conceito de
história pelo articulista. Apesar de contemporâneos, Barante e Boissière estavam em
lados dissonantes nesse quesito63. Ao assinalar o quanto o primeiro deixou de fazer a
crítica aos testemunhos, ou de elaborar uma história que promovesse um projeto de futuro,
Boissière reiterava algo que já aparecia desde o seu primeiro artigo: a escolha voluntária
em celebrar o novo regime de historicidade, entendendo-o como superior ao modelo mais
antigo64.
No seu último artigo, igualmente publicado no Journal de 1834, o autor seguia
utilizando autores contemporâneos para exemplificar a questão do método na história.
Conectando o trabalho dos irmãos Augustin e Amédée Thierry ao de Barante, demonstra
que todos fariam parte de uma mesma “família de historiadores”, ainda que entre eles os
procedimentos metodológicos fossem aplicados a diferentes sortes de fatos. O último
tentava reabilitar a ação do tempo na história, garantindo a cada século sua fisionomia

61
Ibidem, p. 211 (tradução livre). Do original: “[...] c’est ne plus une haute leçon, un profond
enseignement qui montre l’avenir dans le passé, qui nous indique à la fois notre point de départ et notre
but”.
62
Ibidem, p. 211 (tradução livre). Do original: “[...] suivre, sous ces formes diverses, l’élément constant
de l’humanité, et marquer ainsi l’harmonie des différentes époques qui les amènent, c’est-à-dire, la loi
qui les domine”.
63
Ainda que, como já foi mencionado pelo próprio Boissière, a obra de Barante também não deixasse de
conter quesitos que configuravam uma prática historiográfica moderna.
64
A categoria regime de historicidade foi criada por François Hartog como instrumento heurístico da
investigação histórica, que permite compreender “como uma sociedade trata seu passado e trata do seu
passado”, colocando em foco os “modos de relação com o tempo”. Ver do autor, Regimes de
historicidade: presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013b, p. 28-29.
111

nativa. Os demais, também rastreando as pegadas do tempo, faziam-no através da


concepção de “raça” – aqui entendida como “classe”65.
Por Augustin ter sido o mais destacado dos irmãos, foi nele que Boissière centrou
seu artigo. De início, ele esclarecia o caráter político da história praticada por aquele
historiador: jornalista liberal da Restauração, Augustin Thierry estudou a Inglaterra
naquilo em que sua história se assemelhava à da França. Fazia-o para compreender seu
tempo, sobretudo no que diz respeito às crises revolucionárias e, para tal, utilizava a
categoria de “raça”, opondo a nobreza e a classe média66. Segundo o artigo, seus
personagens eram “massas de homens” e seu foco, o “destino dos povos”. Não havia
espaço para personagens célebres, o que, pode-se dizer, aproximava o texto de Thierry a
uma história social, mesmo em uma dada vertente de nossa atual concepção: seus heróis
eram os vencidos, os oprimidos, “plebeus como ele”67.
Messieur Thierry era conduzido, assim, por opiniões políticas. Corria o risco de
ser parcial, já que omitia conscientemente algumas faces da questão. Contentava-se em
buscar os antecedentes liberais da restauração, em mostrar que a liberdade “é tão antiga
na França quanto o despotismo”. Fazia, portanto, uma história que interessava a apenas
um grupo, fugindo do grande objetivo que a disciplina tinha, que era justamente o de
interessar ao conjunto da humanidade68.

65
BOISSIÈRE, Frédéric. “De la méthode historique. IIIe article MM. Augustin et Amédée Thierry”. In:
SOCIÉTÉ DES ÉTUDES HISTORIQUES. Journal de l’Institut Historique. 1834, p. 325. Essa concepção
de “raça” esteve presente em muitas obras do século XIX, desde os romances históricos de Walter Scott,
até trabalhos historiográficos, como os de Augustin Thierry. Nesse último caso, o conceito era usado para
tentar entender o processo revolucionário iniciado em 1789. Isso porque, para Thierry, grupos diferentes
disputaram entre si porque viriam de origens distintas. Ver a esse respeito, entre outros: MOUSSA, Sarga
(Coord.). L’idée de “race” dans les sciences humaines et la littérature (XVIIIe-XIXe siècle), Paris:
L’Harmattan, 2003. Vale lembrar também o uso do termo por Von Martius no conhecido texto “Como se
deve escrever a história do Brasil”, premiado no IHGB.

BOISSIÈRE, Frédéric. “De la méthode historique. IIIe article MM. Augustin et Amédée Thierry”. In:
66

SOCIÉTÉ DES ÉTUDES HISTORIQUES. Journal de l’Institut Historique. 1834, p. 326.


67
Ibidem, p. 327-328 (tradução livre). Do original: “Les personnages de ce beau drame ne sont pas des
hommes, des rois, des héros, mais de grandes masses d’hommes et des populations tout entières; [...] Les
herós du drame de M. Thierry n’est pas le peuple vainqueur, chevalerie brillante dont les fêtes sont des
tournois, [...] mais le peuple vaincu, souffrant, opprimé [...] Car ces hommes sont ses pères, les aïeux de
la classe à laquelle il consacre as plume, ce sont des plébéiens comme lui, comme ceux dont il revendique
les droits”.
68
Ibidem, p. 331-332 (tradução livre). Do original: “M. Thierry est conduit par ses opinions politiques et
par son amour exclusif pour la narration à négliger toutes ces faces de la question. Il se contente de
rechercher les antécédens des libéraux de la restauration, de montrer que la liberte est aussi ancienne en
France que le despotisme. [...] L’historien, en se plaçant dans une position partielle, s’expose à voir
l’ensemble lui échapper. Tandis qu’il se passionne pour les intérêts d’un peuple, il oublie les intérêts de
l’humanité, il prend parti pour une existence particulière dans le mouvement de toutes choses”.
112

Nesse caso, o que faltava a Thierry não era exatamente aquilo que condenava
Barante. O aspecto inacabado do texto de Boissière não ajuda muito a concluir se para
ele também Thierry parecia extrair dos antigos parte de sua inspiração. Tudo indica que
não era esse o ponto de discordância entre os dois. Thierry utilizava procedimentos
modernos de escrita da história, que não deixava de revelar um projeto de futuro. Ao que
parece, Boissière não concordava era com a natureza deste projeto, notadamente liberal.
Mas estas são apenas conjecturas. No final do último artigo o autor sinalizava para
uma continuação, que não chegou a acontecer. O abandono da empreitada se
consubstanciou anos depois com a prematura morte de Boissière69, mas os extratos que
legou à posteridade colaboram com o entendimento tanto da questão metodológica, mais
diretamente esboçada, como com a tentativa de definição daquilo que caracterizava o
trabalho do historiador naquele momento.

2.2.1.2 Da Revolução

Continuando a percorrer os rastros do Journal, sua sessão “Rapports d’ouvrage


français et étrangers” era o espaço destinado a dar notícia e – por que não? – avaliar
trabalhos franceses ou estrangeiros, cuja temática fosse entendida como pertencente à
história – o que não era tarefa difícil, tendo em vista a gama de possibilidades para aquilo
que os membros do IHP consideravam como tal.
Digna de nota foi uma crítica publicada naquela sessão, feita pelo membro da
segunda classe, messieur Jean, ao livro de Cyprien Desmarais intitulado Histoire des
histoires de la révolution française pour servir de complément à tous les écrits publiés
sur cette époque. Segundo o parecer, Desmarais, também sócio do IHP, elaborou um
estudo que, apesar de não se encaixar nos propósitos mais diretos dos trabalhos do Institut,
trouxe à tona questões altamente importantes para o interesse e a apreciação da história
contemporânea70.

69
Frédéric Boissière tinha somente 24 anos quando faleceu, segundo notícia publicada no Journal. Havia
entrado no IHP por recomendação de Michelet e trabalhava numa “teoria aplicável de ensino”, que nunca
chegou a ser concluída. Ver “Chronique”. In: SOCIÉTÉ DES ÉTUDES HISTORIQUES. Journal de
l’Institut Historique. 1837, p. 137.
70
JEAN, J. S.. “Rapport sur l’ouvrage de M. Cyprien Desmarais, ayant pour titre, Histoire des histoires
de la révolution française, pour servir de complément à tous les écrits publiés sur cette époque”. In:
113

A discordância inicial dera-se em função de o autor não se aplicar à investigação


dos fatos da Revolução de 1789, e sim ao exame das consequências dos mesmos71.
Paradoxalmente, Jean indicava residir aí o mérito daquele trabalho, ainda que não
deixasse de se preocupar com o perigo em que tal análise incorria: o de narrar “em
presença de contemporâneos sobre uma história toda contemporânea”72. Sua dificuldade
era grande, pois deveria ter em mente
[...] se portar pelo espírito do futuro antes dele, sondar e pressentir os
julgamentos de uma posteridade que não existe ainda! Não é tudo: ele terá que
lutar contra uma multidão de preconceitos contemporâneos; porque as crenças
dos contemporâneos sobre sua própria história se estabelecem bem mais cedo
a partir das paixões políticas do que a partir dos próprios fatos73.

Jean atentava para a necessidade do recuo temporal como meio de garantir uma
análise mais coerente sobre a Revolução Francesa. Essa mesma ótica justificava a recusa
a uma história do presente, sempre envolta pelas crenças dos contemporâneos, que os
perturbavam a ponto de cegá-los. O próprio Desmarais devia ser incluído neste presságio,
por também ter sido ator naquilo que contava. Até porque, como já alertou uma
celebridade literária da época, ninguém poderia tratar de maneira distanciada da
Revolução, pois não houve quem fosse somente espectador dos eventos: “Todos os
indivíduos, desde o camponês até o monarca, estiveram envolvidos nessa admirável
tragédia”74.
Assim, aquele que escrevia sobre o período próximo estava imerso em uma dupla
problemática, vivendo no presente os preconceitos contemporâneos e tendo que se
preocupar com e, em certa medida, adiantar os julgamentos que somente o futuro poderia
realizar corretamente. O tribunal da posteridade, ainda que não apareça expressamente no

SOCIÉTÉ DES ÉTUDES HISTORIQUES. Journal de l’Institut Historique. 1835, p. 219. Não tive acesso
a informações a respeito da biografia desse autor.
71
Ibidem, p. 219.
72
Ibidem, p. 219 (tradução livre). Do original: “Il écrit en présence de ses contemporains sur une histoire
toute contemporaine [...]”.
73
Ibidem, p. 219 (tradução livre). Do original: “[...] il doit se porter par l’esprit bien avant dans l’avenir,
sonder et pressentir les jugemens d’une posterité qui n’existe point encore! Ce n’est pas tout: il aura à
lutter contre une foule de préjugés contemporains; car les croyances des contemporains sur leur propre
histoire s’établissent bien plutôt d’après les passions politiques que d’après les faits eux-mêmes”.
74
CHATEAUBRIAND, François-René de. “Introduction”. In: _____. Essai historique, politique et moral
sur les révolutions anciennes et modernes, considérées dans leurs rapports avec la Révolution française
(1797). Œuvres complètes de Chateaubriand. Paris: Garnier, T.I, 1861 (tradução livre). Do original: “Tous
les individus, depuis le paysan jusqu’au monarque, ont été envelóppés dans cette étonnante tragédie”.
114

artigo, era chamado a fazer parte da argumentação. Com o passar do tempo, a justiça, que
de início aparecia quase como uma impossibilidade, já que confusa e obscura em função
das paixões, se fazia sentir mais forte – como um “murmúrio longínquo” que, aos poucos,
vai ficando mais claro. Tal era o sentimento de justiça que o escritor deveria ser capaz de
desenvolver75. Tal, consequentemente, foi o fracasso de Desmarais.
O articulista apresentava, desse modo, uma série de motivos pelos quais o livro se
mostrou inepto. Apesar disso, afirmava que se ele, Desmarais, não fez um bom livro, não
deixou de efetuar uma boa ação. O autor, ao fim, atendeu ao objetivo a que se propôs, e
não havia porque deixar de aplaudir à “verdade de seus julgamentos”, ainda que,
conforme indicava Jean, fossem a aplaudi-lo “[...] homens que professam opiniões
políticas opostas àquelas que o autor elaborou com toda sua convicção” 76. Um aspecto
muito positivo da referida obra era o seu caráter erudito, por se tratar de um estudo “de
todos os escritos sobre a revolução francesa”77, o que não era pouco: como o próprio título
do trabalho já indicava, aqueles eram tempos em que se publicava exaustivamente sobre
a Revolução. A despeito de todas as críticas feita a esse tipo de produção, o início do
século XIX foi um período em que muita coisa foi escrita a respeito do passado mais
recente. Obras, sobretudo, de forte caráter memorialístico, escritas por testemunhas que
buscavam compreender o que se passou, ou que se perguntavam sobre o papel que seus
pais tiveram nos acontecimentos78.
Além disso, Jean se sentia forçado a compartilhar da provocadora análise do autor
do texto, que responsabilizava os enciclopedistas e as Luzes pelos infortúnios da
Revolução79. Nas últimas passagens do livro, Jean via um algo mais a ser elogiado: no

75
JEAN, J. S.. Op. cit., 1835, p. 219-220.
76
Ibidem, p. 220 (tradução livre). Do original: “[...] l’auteur de l’histoire des histoires de la révolution
avait atteint le but qu’il s’était proposé, lorsque nous avons entendu applaudir à la vérité de ses
jugemens, à la justesse de ses aperçus, par des hommes qui professent des opinions politiques opposées à
celles dans lesquelles l’auteur a puisé un grand nombre de ses convictions”. Sobre o papel do historiador
como o responsável por administrar o legado dos mortos, seu “dever de justiça”, ver HARTOG, François.
Evidência da história: o que os historiadores veem. Belo Horizonte: Autêntica, 2013a, p. 150; e
OLIVEIRA, Maria da Glória de. Escrever vidas, narrar a história. A biografia como problema
historiográfico no Brasil oitocentista. 2009. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal do Rio
de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009, p. 161.
77
JEAN, J. S.. Op. cit., 1835, p. 220 (tradução livre). Do original: “[...] Il suppose une étude particulière
de tous les écrits sur la révolution française”.
78
CHARLE, Christophe. Discordance des temps: une brève histoire de la modernité. Paris: Armand
Colin, 2012, p. 29.
79
JEAN, J. S., Op. cit., 1835, p. 220.
115

capítulo intitulado “A revolução e a anarquia”, Desmarais demonstrava dedicação ao


“espírito de reforma e de progresso”, inimigo dos excessos80. A avaliação final indicou a
instigante tarefa na qual mergulhou Desmarais, que buscou traçar a delicada linha entre
o referido espírito de reforma e o revolucionário, a qual proporcionou a conciliação do
autor com todos os homens esclarecidos, “amigos de seu país”81. Reiterava, por fim, o
caráter notável do texto, assumindo-o como uma contribuição para o progresso da ciência
política, que era a ciência da humanidade. E o objetivo daquele rapport não poderia ser
outro que não o de contribuir para o aprimoramento do referido trabalho82.
O fato de essa crítica ter se desenvolvido de maneira tão ambígua ajuda a
compreender alguns pontos centrais da constituição do Institut Historique de Paris e do
campo da pesquisa histórica na França oitocentista. Uma questão era central naquele
contexto: a impossibilidade de negligenciar o processo revolucionário. Por isso, a menção
ao movimento é recorrente no periódico, como no comentário de Félix de Parieu ao
terceiro volume do livro de Eugène Labaume, Histoire monarchique et constitutionelle
de la Révolution Française, que trata do evento propriamente dito. Em sua opinião, o
texto apresenta reflexões feitas por um espírito de “moderação e de imparcialidade” –
caráter que, segundo o articulista, era muito raro “em nossos dias”83.
Apesar disso, Parieu questionava se, de acordo com os estatutos do IHP, era
possível opinar, sem riscos, a respeito de fatos ainda tão “quentes” da atualidade, como
eram-no os do fim do século anterior. Ainda havia muito em jogo:
Nossos pais, que atuaram sob bandeiras muitas vezes inimigas, não estão no
meio de nós? E os filhos, embora professem de vez em quando outras opiniões,
não estão sempre prontos a se levantar para defender a honra ou a memória de
seus pais? Não coloquemos os pés nesse solo perigoso se queremos continuar
amigos84.

80
Ibidem, p. 221 (tradução livre). Do original: “Il fait voir dans ce chapitre qu’il est surtout dévoué à
l’esprit de réforme et de progrès, mais qu’il est ennemi des excès”.
81
Ibidem, p. 221.
82
Ibidem, p. 221.
83
PARIEU, Félix de. “Rapport sur l’ouvrage de M. Eugène Labaume, Histoire monarchique et
constitutionelle de la Révolution Française”. In: SOCIÉTÉ DES ÉTUDES HISTORIQUES. Journal de
l’Institut Historique. 1837, p. 27 (tradução livre). Do original: “[...] contient le récit des faits, accompagné
d’un très petit nombre de réflexions, conçues, généralement, dans un esprit de modération et
d’impartialité.
Ce caractère, trop rare de nos jours, privera peut-être le livre de M. Labaume des applaudissents des
coteries [...]”. Não consegui encontrar dados biográficos desse autor.
84
Ibidem, p. 27-28 (tradução livre). Do original: “Nos pères, qui en furent les acteurs sous des drapeaux
souvent ennemis, ne sont-ils pas assis parmi nous? Et les fils, quoique professant souvent d’autres
116

Essa era a complicada situação da escrita da história da Revolução Francesa


naqueles idos de 1830. Por um lado, fazia-se urgente seu tratamento pela mesma geração
que a experimentara direta ou indiretamente; por outro, isso significava entrar em uma
seara de difícil acesso. E se o alerta feito por Parieu tinha sua razão de ser, não era menos
digna de nota a observação do messieur Alix no congresso de 1837, de que o processo
revolucionário já podia passar aos anais da história e, portanto, ser examinado e julgado
com cautela. Todo o forte sentimento – ou a “paixão”, recurso linguístico tão comumente
utilizado nesses casos – que existia já havia arrefecido, cedendo lugar à “calma”, amiga
da avaliação justa de todos os eventos85: “Nós nos encontramos, por fim, na melhor
posição para apreciar de forma saudável as coisas, para julgar com sabedoria e para
apreender a verdade”86.
Em percepção que se ajusta perfeitamente à análise que François Hartog faz sobre
o período87, Alix entendia o século XIX como uma época de transformação, onde tudo
tendia a mudar, para o bem ou para o mal, para o progresso ou para a decadência. E tudo
mudava constantemente, rapidamente88. Assim, o tempo, porque acelerado, havia se
entreposto entre os dramáticos eventos de 1789 e o presente. A história da Revolução era
possível porque jazia no território do passado.
Vivendo naquele ambiente da primeira metade do século, e tendo, provavelmente,
testemunhado (ou, como diria François-René Chateaubriand, atuado sobre) os
acontecimentos mais dramáticos pós-1789, a geração de homens agrupados no IHP sabia

opinions, ne sont-ils pas toujours prêts à se lever pour défendre l’honneur ou la mémoire de leur pères?
Ne posons donc pas le pied sur ce sol dangereux si nous voulons rester amis”.
85
ALIX, M. de. “Déterminer les causes qui ont arrété ou faussé la civilisation des peuples de l’antiquité
(Troisième Congrès Historique)”. In: SOCIÉTÉ DES ÉTUDES HISTORIQUES. Journal de l’Institut
Historique. 1837, p. 171 (tradução livre). Do original: “Mais actuellement que la lutte est terminée et que
l’on possède les institutions qu’on voulait conquérir, nous examinons tout avec calme et sans passion
[...]”.
86
Ibidem, p. 171 (tradução livre). Do original: “Nous nous trouvons enfin dans la meilleure position pour
apprécier sainement les choses, pour juger avec sagesse et pour saisir le vraie”.
87
Para Hartog, o próprio tempo era então percebido como aceleração. Cita, nesse aspecto, Chateaubriand,
como a perfeita demonstração de que o tempo corria mais rápido do que a pena que escrevia sobre ele;
havia um descompasso entre a “vida miserável do historiador” e o movimento rápido da história. Ver do
autor: “Chateaubriand: entre o antigo e o novo regime de historicidade”. In: _____. Op. cit., 2013b, p.
111-112.
88
PARIEU, Félix de. Op. cit., 1837, p. 173.
117

da necessidade de cicatrizar as feridas abertas pela experiência revolucionária89. Da


mesma forma que o autor d’O gênio do cristianismo, também pertencente à “geração de
Napoleão”, muitos dos sócios do Institut percebiam-se “entre dois tempos”, habitando um
presente inapreensível, tentando vislumbrar um futuro imprevisível, a partir de um
passado, ele próprio, incompreensível90. O processo revolucionário havia sido “a pedra
no meio do caminho”. Pedra esta que não só foi responsável por mudar o caminho, como
fazer pensar sobre o mesmo91. Não adiantava, portanto, tentar ignorar a Revolução; mais
certo seria pacificá-la através da história. E foi o que o IHP tentou fazer.
Outro exemplo que pode ser destacado em relação ao interesse em promover o
estudo do processo revolucionário foi a publicação de um manuscrito de Napoleão que
teria sido “esquecido” na ilha de Elba92 na sessão, que nem sempre aparecia nos números
da revista, de “Documents historiques curieux ou inédits”. A despeito das diferenças de
opiniões e ideologias políticas dentro do IHP, é perceptível a curiosidade gerada em torno
da figura de Napoleão, e até mesmo uma tentativa de reavaliar o “mito” do imperador dos
franceses, talvez em função de sua morte, em 1821, ou por conta da situação política
atual, a qual requeria apoio, inclusive, dos partidários do finado Corso. Não é à toa que
na década de 1840 suas cinzas foram repatriadas para ter lugar não mais na longínqua
Santa Helena, onde falecera, mas no megalomaníaco sarcófago localizado na cripta da
capela de Saint-Louis des Invalides, parte do complexo do Hôtel des Invalides, uma das
principais atrações turísticas parisienses dos dias de hoje.

O interesse pautado pela história mais recente, que não privilegiava apenas a
Revolução, vale notar, encontrava-se também em outra sessão do periódico, intitulada
“Chroniques”. Nela eram descritos os acontecimentos do cotidiano não só da instituição,
mas, principalmente, de fora dela. O falecimento de personalidades artísticas ou políticas
era tema recorrente. Mais ainda eram-no os comentários acerca do “aparecimento” de

89
GUIMARÃES, Manoel. Op. cit., p. 196-198, dez. 2002.
90
Para Hartog, Chateaubriand engloba características próprias à “geração de Napoleão”: o sentimento de
ter vivenciado uma mudança de tempo, o ineditismo da queda da “mais antiga” monarquia do mundo.
Encontrava-se, nesse sentido, entre o “mundo perdido” do Antigo Regime e o futuro, visto por ele como
obstáculo. Ver a esse respeito: Op. cit., 2013b, p. 93-132.
91
Referência direta ao conhecido poema de Carlos Drumond de Andrade.

“Documents historiques curieux ou inédits. Manuscrit de Napoléon, oublié a l’Ile d’Elbe”. In:
92

SOCIÉTÉ DES ÉTUDES HISTORIQUES. Journal de l’Institut Historique. 1837, p. 262-268.


118

vestígios arqueológicos do período romano e medieval na França. Vez por outra também
eram encontradas ruínas de origem, supostamente, gaulesas93.
A este tipo de notícia era dado o maior destaque, comprovando o que Pierre Nora
já havia dito a respeito da grande importância conferida à questão patrimonial desde fins
do século XVIII até meados do XIX na França94. Nesse sentido, tanto aquelas descobertas
eram laureadas como um grande acontecimento, como havia muita reclamação nas
páginas do Journal a respeito do “vandalismo” com que eram tratados os monumentos95,
atentando para algo que Victor Hugo descrevia em seu Notre-Dame de Paris: a falta de
cuidado com o patrimônio histórico da França96. Havia uma notória preocupação com o
futuro daquilo que passava, paulatinamente, a ser considerado como o patrimônio, não só
francês, mas da humanidade.

2.2.2 Os congressos anuais

Se o Journal e os congressos de história parecem ter tido sua viabilidade garantida


desde muito cedo na agenda do Institut, o mesmo não pode ser dito a respeito dos seus
cursos. Apesar de estarem presentes, enquanto projeto, a partir dos primeiros estatutos de
1834, ainda em 1838 havia muita reclamação nas reuniões da Assembleia Geral e do
Conseil a respeito da demora em sua execução.
Ao que tudo indica, a responsabilidade por ainda não haver nenhum curso
oferecido pela instituição recaía sobre o Ministério da Instrução Pública. Uma troca de
cartas entre Monglave (representando a instituição) e o então ministro, Narcisse-Achille

93
A França vivia, naqueles anos, uma verdadeira “moda gaulesa”, da qual não escapou nem mesmo o
principal propagador do espiritismo, Allan Kardec – pseudônimo de origem presumivelmente gaulesa
utilizado por Hipolyte Rivail. DEL PRIORE, Mary. Do outro lado: a história do sobrenatural e do
espiritismo. São Paulo: Planeta, 2014, p. 45.
94
NORA, Pierre. “L’explosion du patrimoine”. In: _____. Présent, nation, mémoire. Éditions Gallimard,
2011, p. 96-114.
95
Como exemplo, ver “Chroniques”. In: SOCIÉTÉ DES ÉTUDES HISTORIQUES. Journal de l’Institut
Historique. 1836, p. 278.
96
HUGO, Victor. Notre-Dame de Paris - 1482. São Paulo: Estação Liberdade, 2011, p. 145-177. Tal
como Chateaubriand, o romancista preocupava-se, sobretudo, com a arquitetura de estilo gótico, por ele
entendida como a “única autenticamente nacional”. A esse respeito ver CHARLE, Christophe. Op. cit.,
2012, p. 39.
119

de Salvandy, por cerca de um ano, demonstra bem a falta de prestígio do IHP perante o
governo francês97. Após ignorar uma quantidade relevante de pedidos por parte de
Monglave, o ministro indicava que os cursos não poderiam ser legalizados enquanto o
próprio IHP restasse na ilegalidade. Isso porque, segundo Salvandy, a instituição não teria
existência oficial, pois não havia sido autorizada por uma ordenação real98.
Depois de nova leva de missivas – e de muitas reclamações do IHP por conta da
recusa não só do estabelecimento do curso de história, como de sua própria legitimidade
enquanto instituição –, a permissão foi concedida em dezembro de 1838. Os primeiros
cursos oferecidos pelo IHP, já no ano seguinte, versavam sobre “Antiguidades
parisienses”, e foram ministrados por ninguém menos que Alex Lenoir, que, além de
membro do Institut, tivera papel fundamental na política de formulação de um patrimônio
histórico logo após a Revolução. Àqueles seguiram-se os cursos de “História da França”,
“História da Filosofia” e “História da literatura francesa no século XIX”, a cargo,
respectivamente, de Henri Prat, Armand Fouquier e Alphonse Fresse-Montval99.
Concordando com o “esquecimento” de Villenave mencionado no início do
capítulo, é notório que, embora fizessem parte dos projetos do IHP, os cursos nem de
longe protagonizaram os esforços da agremiação, muito mais focados nas folhas
periódicas e nos eventos acadêmicos. Enquanto o Journal era o meio de garantir a
ampliação quase irrestrita do que era discutido no Institut, podendo ser enviado para todas
as partes do mundo, os congressos devem ser identificados como a execução do que havia
de mais importante para a agremiação. Ainda que entendidos como um meio para obter o
conhecimento, tampouco seria irresponsável considerá-los como um fim último, porque
toda a agenda da instituição, desde seu início, parece girar em torno desses eventos.
Mesmo com as dificuldades financeiras e todos os problemas internos pelos quais passou
em seus anos iniciais, os congressos tinham sua vez garantida no IHP, anualmente. Houve
tempo em que nem sequer sua localização era certa, o que não impediu que ocorresse
conforme o previsto. Todos os cuidados para sua realização eram necessários porque,

97
“34e séance du Conseil de l’Institut Historique”. Registres de l'Institut historique, devenu la Société des
études historiques. Arquivo da Bibliothèque de l’Arsenal, Paris, França. Ref. MS 9185, f. 249.
98
“49e séance du Conseil de l’Institut Historique”. Registres de l'Institut historique, devenu la Société des
études historiques. Arquivo da Bibliothèque de l’Arsenal, Paris, França. Ref. MS 9185, f. 284.
99
Ver, a respeito dos cursos promovidos pelo IHP, GUIMARÃES, Manoel. Op. cit., p. 195, dez. 2002.
120

citando Philippe Buchez, o congresso era a “questão de vida” do instituto – o que o


“popularizava”, garantindo-lhe “longa existência”100.
A própria organização em forma de congressos já abre para uma série de
problemáticas. Como o presidente Michaud mencionou no discurso de abertura do evento
de 1835, eles eram considerados de certo modo inéditos dentro do campo intelectual da
época, uma maneira de ligar pessoas de diferentes lugares do país e do mundo para trocar
informações e estudos. No tempo em que a imprensa (e a impressão propriamente dita)
tinha papel fundamental na divulgação de ideias, um evento desse porte garantiria
igualmente a circulação de ideias, mas de forma ainda mais direta. Inclusive, uma das
partes mais interessantes desses eventos era quando tinham início as discussões: as
questões eram apresentadas e, posteriormente, poderiam sofrer apreciações por quem se
interessasse em fazê-las. Autor e plateia se relacionavam prontamente – algo, sem dúvida,
extraordinário.
Os encontros acadêmicos tiveram sua primeira edição dois anos após o
estabelecimento da agremiação, em 1835. Sua execução começara, entretanto, a ser
pensada algum tempo antes nas Assembleias Gerais e nas reuniões do Conseil e das
classes. Os interessados em apresentar questões a serem tratadas no evento deviam expô-
las na sessão da classe ligada à temática da questão (por exemplo, uma questão sobre artes
deveria ser exposta à classe de História das Belas-Artes, e assim por diante). A partir daí,
a questão era analisada pela referida classe e, caso aceita, passava ao Conseil do Institut,
que também a avaliava.
As apreciações eram quase sempre positivas. Houve, todavia, censuras que
contrariavam a suposta liberdade de expressão tão aclamada pelo IHP101. Sobre isso
avisou Monglave quando da preparação do primeiro congresso: as classes podiam mandar
o que quisessem, mas nem tudo faria parte do encontro. Esse tipo de gerenciamento era
necessário no momento em que muitos olhares estariam postos no Institut102.
Assim foi que na Assembleia Geral de 24 de junho de 1836 houve violenta
discussão entre alguns membros do Institut em torno de uma questão enviada sobre o

100
“2e séance du Conseil de l’Institut Historique”. Registres de l'Institut historique, devenu la Société des
études historiques. Arquivo da Bibliothèque de l’Arsenal, Paris, França. Ref. MS 9185, f. 175.
101
Censura que não ocorria apenas quando da organização do congresso. Maria Alice de Faria cita o caso
da intervenção arbitrária de um voto numa resenha, em que o aparteante achou perigosas certas opiniões
sobre a abolição da escravidão e a unificação da Itália. Ver Op. cit., 1970, p. 50.
102
“2eme séance du Conseil de l’Institut Historique”. Registres de l'Institut historique, devenu la Société
des études historiques. Arquivo da Bibliothèque de l’Arsenal, Paris, França. Ref. MS 9185, f. 176.
121

protestantismo. Aparantemente, o tema religioso ainda era de grande gravidade para ser
tratado no evento daquele ano. Pelo menos essa foi a resposta dada pelo messieur Savant
ao seu colega, Gaussuron Despreaux, quando este demonstrou irritação pelo veto do
Conseil à questão. Para Savant, determinados temas tinham que ser rejeitados para não
favorecer “discussões perigosas”103. A oposição era validada por Buchez, segundo quem
os ditames do Conseil deviam ser reconhecidos, pois eram respaldados pelo estatuto da
sociedade. Sua onipotência estava, portanto, legitimada institucionalmente – e contra ela
não cabia nenhum questionamento. Na mesma perspectiva, o senhor Pierre Joseph
Spiridon Dufey de l’Yonne tentava diminuir o mal-estar, apesar de agravá-lo, indicando
que a questão sobre o protestantismo era “difusa e irritante”, como outras que também
haviam de ser limadas pelo grupo diretor da agremiação104.
E foram. Cerca de três anos após o ocorrido, era a vez do sócio Auguste Savagner
brigar contra o que considerava uma injustiça de seus colegas: ter sua proposta de questão
para o congresso de 1839 anulada. A pergunta dupla sobre como era o ensino da história
na França nos dias atuais e quais os meios possíveis para aperfeiçoá-lo105 foi considerada
demasiadamente política por questionar, segundo entenderam os algozes, a liberdade no
ensino público da disciplina106. Fugia, portanto, do foco do IHP de promover conversas
sobre a história que não transbordassem para querelas partidárias. A discussão teve lugar
em sucessivas sessões e, por fim, a questão acabou sendo definitivamente excluída do
programa do congresso, como consta no livreto do mesmo107. Todo esse procedimento
demonstra o cuidado dos membros do IHP com o que devia ser discutido no evento, bem
como a rigidez e o controle conduzidos pelo Bureau da instituição, sobretudo pela figura
sempre presente de Monglave. Indica também a preocupação com determinados temas

103
“22e Assemblée général de l’Institut Historique”. Registres de l'Institut historique, devenu la Société
des études historiques. Arquivo da Bibliothèque de l’Arsenal, Paris, França. Ref. MS 9185, f. 111
(tradução livre). Do original: “[...] a éxciter des discussions dangereuses dans le congrès et au dehors
[...]”.
104
Ibidem, f. 108-111.
105
A questão se expressava nos seguintes termos no original: “Quel a été jusqu’à presente l’enseignement
historique en France et quel sont les moyens de le perfectionner?”. Ver: “47e Assemblée général de
l’Institut Historique”. Registres de l'Institut historique, devenu la Société des études historiques. Arquivo
da Bibliothèque de l’Arsenal, Paris, França. Ref. MS 9186, f. 44.
106
Ibidem, f. 45.
107
SOCIÉTÉ DES ÉTUDES HISTORIQUES. Congrès historique européen, reuni a Paris, au siège de
l’Institut Historique. Discours et compte-rendus. Septembre-octobre 1839, p. 2.
122

que poderiam gerar constrangimentos para o Institut e a sociedade parisiense como um


todo. Afinal, aquele era o momento para se expor opiniões a quem as quisesse ouvir.

2.2.2.1 Da finalidade da história e suas utopias

Em outros casos não havia censura, mas longuíssimas discussões para se chegar a
um ponto de concordância sobre a forma como as questões deviam ser elaboradas. Foi o
que ocorreu na 8ª sessão do Conseil, em junho de 1835, sobre o tema do objetivo ou
finalidade da história, proposto pela primeira classe da instituição.
“Qual é a finalidade da história? A história é ela uma ciência? Qual é a diferença
entre uma ciência e um saber?”108 foi o conjunto de questões provocou os ânimos dos
agregados ao Bureau da instituição. Para Buchez, apenas a primeira pergunta possuía
validade, pois as demais acabavam enveredando para questionamentos demasiadamente
complexos – o que acabou acontecendo durante a própria sessão: um dos sócios opinou
que a história não podia ser considerada uma ciência, mas “uma narrativa da onde deriva
a filosofia da história”109. Outro questionou se havia, afinal, alguma utilidade para a
história. Um terceiro concordou com o comentário feito por Buchez, mas indicava um
complemento para a pergunta nesses termos: “[...] qual foi até aqui e qual deverá ser a
finalidade da história?”110. A opção escolhida por votação no Conseil, contudo, foi a de
Buchez111.
Muito mais do que disputar a nomenclatura ou o estilo correto em que devia ser
feita a pergunta, os sócios pareciam competir por uma dada compreensão da questão, o

108
“8e séance du Conseil de l’Institut Historique”. Registres de l'Institut historique, devenu la Société des
études historiques. Arquivo da Bibliothèque de l’Arsenal, Paris, França. Ref. MS 9185, f. 191 (tradução
livre). Do original: “quel est le but de l’histoire? L’histoire est-elle une science? Quelle différence y a t-il
entre une science et un savoir?”.
109
Ibidem, f. 191 (tradução livre). Do original: “[...] un récit, d’où découle infinte la philosophie de
l’histoire”.
110
Ibidem, f. 191 (tradução livre). Do original: “[...] quel a été jusqu’ici et quel devrait être le but de
l’histoire?”.
111
“9e séance du Conseil de l’Institut Historique”. Registres de l'Institut historique, devenu la Société des
études historiques. Arquivo da Bibliothèque de l’Arsenal, Paris, França. Ref. MS 9185, f. 193.
123

que já apontava para as possibilidades das respostas a serem dadas por eles mesmos ou
por outrem. A indagação era importante e merecia o trabalho.
Ainda assim, todo esse cuidado não freou a forte discussão que o tema provocou
em pleno evento, ocorrido nas dependências do Hôtel-de-ville em novembro de 1835.
Três oradores mesclaram-se para tratar da temática: os messieurs Roux, Roujoux e
Charles Dain112.
O primeiro, de forma geral, tratou da questão a partir de uma perspectiva cristã e
moralizante. Segundo ele, antes da revelação de Cristo, era impossível compreender o
mundo como domínio do homem e, portanto, da história. Isso porque o dogma que regia
a sociedade antes da chegada do filho de Deus não visava ao futuro 113 – o que, segundo
o orador, era no que consistia a finalidade mesma da história: a “[...] prevenção do futuro
na ordem da livre atividade humana” 114. E todo o seu valor prático caracterizava-se desse
modo.
Já a resposta de Roujoux se deu por meio de um esboço do desenvolvimento da
prática historiográfica. Comentava, nesse sentido, sobre os homens que se dedicaram ao
estudo dos acontecimentos passados, desde a Antiguidade até aqueles dias atuais. E
concluía que, de maneira geral, faltou a muitos deles, como a Gibbon, Hume e Voltaire,
imparcialidade.
Tal perspectiva, entretanto, não invalidava completamente os esforços desses
escritores. Isso porque, antes de qualquer outra coisa, eles eram homens, que possuíam
certas crenças e marcavam uma determinada posição no mundo. “Ao traçar a imagem dos
outros, ele [o historiador] pinta a si mesmo; seu estilo se anima ou se acalma segundo a
energia das paixões que ele descreve [...]”115. Sem isso, a história perderia sua “cor local”,
seu interesse dramático – tão essencial à disciplina:
[...] é impossível que seu coração não exponha qualquer uma dessas dobras,
quando sua pena desenrola sob os olhos do leitor essa série de eventos, de

112
Apenas consegui fazer o levantamento biográfico do terceiro personagem, como será visto adiante.
113
SOCIÉTÉ DES ÉTUDES HISTORIQUES. Congrès historique européen, reuni a Paris, au nom de
l’Institut Historique, dans la salle Sr.-Jean, de l’Hôte-de-Ville. Discours et compte-rendus. Novembre-
décembre 1835, vol. 1, p. 22.
114
Ibidem, p. 17 (tradução livre). Do original: “[...] la prévoyance de l’avenir dans l’ordre de la libre
activité humaine”.
115
Ibidem, p. 37 (tradução livre). Do original: “En traçant l’image des autres, il se peint lui-même; son
style s’anime ou se calme selon l’énergie des passions qu’il décrit [...]”.
124

personagens, de crimes e de belas ações, de vícios e de altas qualidades, que


ele coordena e compara com maior ou menor talento 116.

Charles Dain fechou a apresentação do assunto de maneira um tanto quanto


desconcertante. Conhecido seguidor das doutrinas fourieristas, opositor de historiadores
e filósofos cristãos, além de abolicionista117, Dain causou sensação ao pronunciar o seu
discurso, segundo o qual a finalidade da história não devia ser outra que não a de resolver
os problemas sociais. Criticou severamente um dos mais notáveis sócios do IHP, Buchez,
autor da Introduction à la science de l'histoire ou Science du développement de
l'humanité. Para Dain, ao retomar a história do Cristianismo, ele havia “desnaturalizado”
o passado. Da mesma forma condenava Augustin Thierry que, ainda que por motivações
distintas das de Buchez, acabava por desnaturalizar os fatos, demonstrando-os apenas
através de suas (forçadas) ligações118.
Dain, nesse sentido, desaprovava o método histórico em voga, segundo o qual
procurava-se o abstrato antes de se verificar o concreto, a razão dos fatos em lugar de se
atentar para os mesmos. A história, segundo o palestrante, devia se pautar no estudo do
homem, na análise de seus gostos, de suas propensões, de suas necessidades; análise
integral, inclusive, do que Charles Fourier havia chamado de “atração passional”. Tudo
isso tendo em mente fornecer o meio para determinar a constituição social mais de acordo
com seus gostos, propensões e necessidades. Para acabar, enfim, com os problemas
sociais119.
Retomou, vez por outra no discurso, o tema da necessidade da paixão na história,
em perspectiva que se destoava da de muitos historiadores do oitocentos, mas que o
identificava de forma indubitável ao fourierismo. A doutrina, entre outros pontos, opunha
o homem racional, das Luzes, ao homem passional. O sistema social que visava à
harmonia acima de todas as coisas não deveria deixar de lado o aspecto emotivo, muito

116
Ibidem, p. 36-37 (tradução livre). Do original: “[...] il est impossible que son coeur ne mettre pas au
jour quelques-uns de ses replis, quand sa plume déroule sous les yeux du lecteur cette série d’événemens,
de caractères, de crimes et de belles actions, de vices et de hautes qualités, qu’elle coordonne et compare
avec plus ou moins de talent”. Sobre a abordagem da “cor local” retornarei adiante.
117
BOUCHET, Thomas. “Charles Dain”. Dictionnaire biographique du fouriérisme. Disponível em:
<http://www.charlesfourier.fr/spip.php?article844>. Acesso: em 22 maio 2014.
118
SOCIÉTÉ DES ÉTUDES HISTORIQUES. Congrès historique européen, reuni a Paris, au nom de
l’Institut Historique, dans la salle Sr.-Jean, de l’Hôte-de-Ville. Discours et compte-rendus. Novembre-
décembre 1835, vol. 1, p. 53.
119
Ibidem, p. 65-66.
125

pelo contrário. O pavor de Fourier pela Revolução Francesa é exposto por meio de seu
discurso anti-iluminista120. Afinal, o que deu início à guerra civil, senão o elogio à razão?
Assim como Newton havia descoberto a harmonia do universo, Fourier
intencionava a harmonia social. E se no caso do universo isso era conseguido através da
atração dos corpos físicos, no da sociedade era a atração das paixões a responsável por
equilibrar o todo121. O cerne do que era exposto por Dain estava nessas constatações,
motivo pelo qual o autor reiterava o quanto era indispensável ordenar as paixões em um
ambiente social harmônico e estabelecer a unidade na terra122 – a verdadeira unidade, não
aquela propagada por nomes como Buchez123 a favor da Igreja católica. Nisso residia a
importância do estudo da história.
Paixão, harmonia e unidade. A estas palavras Dain dera um efeito que algum mal
estar deve ter causado aos ouvintes presentes naquela sessão do congresso. A discussão
que se seguiu às três exposições sobre o tema do objetivo da história, entretanto, não foi
centrada apenas na fala deste indivíduo. O primeiro comentarista a opiniar sobre as
memórias lidas criticava o fato de que nenhum discurso havia tratado verdadeiramente
do que era o objetivo da história, mas do que cada um de seus autores entendia por ela.
Somente Buchez, ao iniciar o evento, havia tocado naquele ponto: a finalidade da história
residia em evitar ou prevenir os erros do futuro a partir do estudo do passado. Ela aplicava
as mais importantes lições a serem aprendidas124.
Em outras palavras, o entendimento do but da história deveria esclarecer sua
ligação com o futuro, ou melhor, a qual projeto de futuro ela se vincularia. Messieur
Roujoux, que talvez tenha sido o que menos tocou na temática, respondeu ao

120
Fourier perdeu parte de sua fortuna familiar após 1789, além de ter sido alistado para o combate até
1796, quando foi reformado. Ele conservou dessas experiências um ódio profundo pela guerra e pela
Revolução, sobretudo em sua fase mais radical. Isso explicaria, inclusive, o porquê de o fourierismo não
apresentar-se como forma de ruptura radical ou de luta armada contra o poder estabelecido. Ver
CHARLE, Christophe. Op. cit., 2012, p. 69.
121
Ibidem, p. 70.
122
SOCIÉTÉ DES ÉTUDES HISTORIQUES. Congrès historique européen, reuni a Paris, au nom de
l’Institut Historique, dans la salle Sr.-Jean, de l’Hôte-de-Ville. Discours et compte-rendus. Novembre-
décembre 1835, vol. 1, p. 55.
123
Buchez que, como será visto, foi durante muito tempo adepto do saint-simonismo e chegou a fundar
outro tipo de doutrina, baseada em seus fundamentos aliados ao Cristianismo.
124
SOCIÉTÉ DES ÉTUDES HISTORIQUES. Congrès historique européen, reuni a Paris, au nom de
l’Institut Historique, dans la salle Sr.-Jean, de l’Hôte-de-Ville. Discours et compte-rendus (vol. 1).
Novembre-décembre 1835, p. 66.
126

questionamento feito pelo ouvinte indicando que o objetivo da história era esclarecer os
homens pelos exemplos do passado e abrir a rota do progresso da civilização. Os demais
reiteraram o que já haviam dito anteriormente: Roux, sublinhando a prevenção do futuro
na ordem da livre atividade humana; e Dain, destacando que não pactuava com nenhum
sistema que fizesse girar a história a partir do Cristianismo, e para quem o fim último da
disciplina consistia na busca do equilíbrio social125.
O destaque dado ao caráter fourierista do discurso de Charles Dain deixa entrever
o que o motivou a participar do congresso, especificamente respondendo àquela questão.
O reconhecimento do fourierismo como uma doutrina “utópica”, expressão que surgiu
para desprestigiar o movimento por outros “socialismos” do século XIX126, assinala o
aspecto de futuro inerente a ele. As utopias do inicío do oitocentos eram antes de tudo
projetos de futuro: do saint-simonismo ao fourierismo, passando por outras, como o
comunismo icariano127, o que todas tinham em comum era a esperança em novas (e
melhores) sociedades que sucederiam as atuais. E a história não podia ter outra finalidade
que não essa, de estar voltada para o futuro ideal. Ela era resumida como a coordenação
das lembranças com as esperanças, da tradição com a previsão128.
Aliás, voluntariamente ou não, o IHP acabou cedendo algumas vezes seu espaço
à utopia em seus anos iniciais. Em suas fileiras interviam adeptos de várias doutrinas que
viam o futuro de maneira idealizada. Homens que talvez fossem menos categóricos do
que Charles Dain em relação ao tema, como o saint-simonista Philippe Buchez129, tão
desabonado pelo primeiro. Buchez, inclusive, era esperado a dar sua contribuição à
abordagem da questão da finalidade da história, como também a responder aos
comentários que lhe foram dirigidos por Dain. A esse respeito, contudo, preferiu não dar
ampla notícia, dizendo apenas que:
[...] ele [Charles Dain] concluiu que a história tem por utilidade o estudo do
homem individual, isso que não pode ser exato; porque a história não nos

125
Ibidem, p. 66-69.
126
CHARLE, Christophe. Op. cit., 2012, p. 57.
127
Sobre os icarianos, ver Ibidem, p. 61.
128
Ibidem, p. 61.
129
Ibidem, p. 66. Buchez se considerava um dos herdeiros diretos do próprio fundador da doutrina. Assim
como outros, partiu para novos projetos, apesar de continuar a se perceber como fiel ao princípio de
transformação social pregado por Saint-Simon. A fundação do “socialismo cristão” (ou do
“neocatolicismo”, como preferem alguns) pelo sócio do IHP era, portanto, justificada como uma
retomada de aspectos fundamentais da ideologia que foram negligenciadas pelos seus difusores.
127

apresenta nada além de fatos e de seres sociais, nada de parecido a que certos
filósofos chamam de homem primitivo ou natural 130.

A despeito de ambos serem indivíduos ligados a uma compreensão “utópica” de


sociedade, saint-simonistas e fourieristas não concordavam em relação à forma como ela
deveria ser alcançada131. Talvez isto explique porque Dain praticamente clamou a Buchez
que participasse da discussão, pois os dois representavam concorrentes visões de história,
malgrado elas se assentassem no futuro.
Esse jogo de réplicas e tréplicas entre os letrados também ajuda a identificar os
diferentes entendimentos que uma mesma questão suscitava, o que se coaduna com a
constatação de Guimarães sobre a existência, naquele período, de uma “disputa de
monopólio da fala com relação ao passado”132 que, de certo modo, podia ser associada
também ao presente e ao futuro. Colabora, consequentemente, com indicações no sentido
de identificar os critérios para o trabalho do historiador, naquele momento ainda pouco
exatos.

2.2.2.2 Da confiabilidade do historiador

Ao final daquele mesmo evento, um certo senhor Bonvalot leu trabalho no qual
buscou traçar um panorama dos “níveis de confiabilidade para os historiadores”. Essa
análise levava em conta o lugar de onde se narra por aquele que narra – “lugar” num
sentido metafórico, mas também literal: tanto em relação ao espaço, quanto ao tempo.
Mais especificamente, buscava medir o grau de confiança do escritor a partir da
proximidade e do seu contrário, o distanciamento, em relação ao objeto descrito.
De início, Bonvalot contribuiu com a primeira questão do congresso, de maneira
a introduzir o assunto. Para ele, o grande objetivo da história, entendida como a pesquisa

130
SOCIÉTÉ DES ÉTUDES HISTORIQUES. Congrès historique européen, reuni a Paris, au nom de
l’Institut Historique, dans la salle Sr.-Jean, de l’Hôte-de-Ville. Discours et compte-rendus. Novembre-
décembre 1835, vol. 1, p. 72 (tradução livre). Do original: “En effet, il a conclu que l’histoire avait pour
but l’étude de l’homme individuel, ce qui ne peut être exact; car l’histoire ne nous presente que des faits
et des êtres sociaux, mais jamais rien de semblabe à ce que quelques philosophes ont bien voulu appeler
l’homme primitif ou naturel”.
131
Para as diferenças entre as doutrinas, ver CHARLE, Christophe. Op. cit., 2012, p. 68, 75 e 79.
132
GUIMARÃES, Manoel. Op. cit., p. 184, dez. 2002.
128

e o encadeamento dos fatos, era a descoberta da verdade133. Mas como ela devia ser
conseguida tem a ver com o processo de trabalho do historiador. Nesse sentido, o autor
tratou da questão das fontes, que lhe pareceu ser central.
Antes, porém, marcou posição numa querela que já vinha de longo tempo. Entre
antigos e modernos, Bonvalot reservava sua admiração aos primeiros 134. Isso porque os
historiadores precisavam de testemunhos cada vez mais intermediários em relação ao que
era contado. Ao contrário de um Xenofonte ou de um César, o historiador moderno não
trata nem do que viu, nem do que ouviu de quem viveu os acontecimentos. Assim, a
narrativa possuía sempre um ruído135. Como num telefone sem fio, à medida que a
mensagem é passada, ela acaba se perdendo. Evidentemente, não foi de Bonvalot essa
metáfora, mas ela ajuda a explicar o sentido que o orador buscava dar à questão. Os
historiadores, utilizando recurso semelhante àquele, acabavam recebendo os ecos dos
julgamentos dos contemporâneos – que por si só já podiam ser precipitados136.
Bonvalot tratava, então, da relação primordial entre o uso de fontes escolhidas
pelo historiador, o lugar da onde ele narra e o tal “grau de confiança” que ele merece.
Para isso, listava três momentos: o primeiro, do “historiador como autor e ator”; o

133
BONVALOT, M.. “Du degré de confiance que méritent les historiens”. In: SOCIÉTÉ DES ÉTUDES
HISTORIQUES. Congrès historique européen, reuni a Paris, au nom de l’Institut Historique, dans la
salle Sr.-Jean, de l’Hôte-de-Ville. Discours et compte-rendus. Novembre-décembre 1835, vol. 1, p. 260.
Não tive acesso a informações a respeito da biografia desse autor.
134
Ibidem, p. 260. A querela entre os antigos e os modernos foi um movimento intelectual do final do
século XVII. Teve início com Charles Perrault em uma sessão da Académie Française, em cuja fala
buscou demonstrar a superioridade dos modernos frente aos antigos. Para Perrault, a vantagem dos
modernos consistia no progresso científico e pela sua literatura. Contrapunha-se, portanto, à grande parte
dos homens de letras do período, que viam na Antiguidade um modelo para imitação. Essa disputa
percorreu décadas e ecoou até o “século da história”. Não é à toa que o historiador Alphonse de
Beauchamp, por exemplo, esclarecesse o quanto preferia a historiografia antiga, segundo a qual o
depoimento era fundamental, e a história era “viva”. Chateaubriand também fazia tilintar a polêmica em
pleno século XIX, quando apontava no Cristianismo um aspecto de superioridade dos modernos em
relação aos antigos – entendendo-se “moderno” no seu sentido primeiro, de ruptura com a Antiguidade, a
partir das invasões bárbaras e da integração da cultura clássica pela cultura cristã. Sobre a querela entre os
antigos e os modernos, ver DEJEAN, Joan. “A invenção de um público para a literatura”. In: _____.
Antigos contra Modernos: as Guerras Culturais e a construção de um fin de siècle. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2005, p. 61-118. Ver também CHARLE, Christophe. Op. cit., 2012, p. 23-24.
Sobre o gosto de Beauchamp pelos antigos, ver MEDEIROS, Bruno Franco. Plagiário, à maneira de
todos os historiadores: Alphonse de Beauchamp e a escrita da história na França nas primeiras décadas
do século XIX. 2011. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011.
135
BONVALOT, M.. Op. cit., 1835, p. 260. Curioso o fato de o autor não ter feito referência a Tucídides,
que é, ao menos desde Luciano de Samósata, visto como o modelo de escrita da história sobre o tempo
presente. SAMÓSATA, Luciano. Como se deve escrever a história. Tradução, notas, apêndices e ensaio
de Jacyntho Lins Brandão. Belo Horizonte: Tessitura, 2009, p. 37 e p. 71.
136
BONVALOT, M.. Op. cit., 1835, p. 260.
129

segundo, do “historiador contemporâneo sem ser ator”; e o terceiro, “do historiador que
não é contemporâneo, nem ator”137.
A relação de confiança se estabeleceria a partir da distância que separa o autor de
seu objeto. Dentro do panorama esboçado, a história mais verídica era aquela feita pelo
historiador, que, apesar de possivelmente tomado de espírito partidário, trata do período
próximo ao que vive138. O escritor que narra o que experimentou teria em mãos todos os
elementos da verdade, segundo Bonvalot. E poderia transmitir essa verdade, caso
conseguisse ser sincero e imparcial. Para isso, devia tentar obliterar-se do “orgulho
nacional”, que provocava o mesmo efeito do amor próprio, “alterando os fatos”139.
Já sobre o segundo caso, do historiador contemporâneo que não teve atuação
direta nos acontecimentos narrados, Bonvalot entendia esse tipo de distanciamento como
um obstáculo para estabelecer a verdade. Indicava residir nele o grande perigo de se
compreender o passado de formas diferentes à medida que o presente muda, pois a
afinidade com o objeto se torna cada vez menor. Era o caso, inclusive, da Revolução
Francesa que, apesar de narrada por contemporâneos, passava a ser entendida
diferentemente a partir da ótica da República, da Restauração ou da Monarquia de Julho,
e não pelo que foi no seu próprio tempo140.
O historiador que merecia o menor grau de confiança, nessa mesma lógica, era
aquele que não era contemporâneo, nem ator dos fatos narrados. Apesar disso, Bonvalot
reiterava que mais suspeito devia ser aquele que escrevia sob influência dos preconceitos
nacionais, do espírito de casta ou de partido141. A imparcialidade era vista como uma
qualidade e, mais do que isso, como uma característica basilar para a escrita da história.
Só através dela era possível realizar plenamente o dever da disciplina de desvendar a
verdade e, nessa ótica, o próprio futuro: “Os historiadores devem ser como os faróis

137
Ibidem, p. 261 (tradução livre). Do original: “Historien Auteur et Acteur”, “Historien contemporain
sans être acteur” e “Historien ni contemporain, ni acteur”.
138
Ibidem, p. 261.
139
Ibidem, p. 261 (tradução livre). Do original: “Ici l’historien a entre les mains tous les élémens de la
vérité, et il nous la transmettra s’il veut être sincère, impartial. Mais les passions s’eveillent, travaillent,
altèrent les faits. [...] L’orgueil national produit quelquefois le même effet que l’amour-propre, il avengle
l’esprit, ferme les yeux à la lumière, à la vérité”. Tal citação transmite a percepção que já se encontrava
em Luciano, de que o historiador devia ser, acima de tudo, “[...] estrangeiro nos livros e apátrida,
autônomo, sem rei [...]”. SAMÓSATA, Luciano. Op. cit., 2009, p. 71.
140
BONVALOT, M.. Op. cit., 1835, p. 262.
141
Ibidem, p. 262-263. Aqui, vale a mesma ressalva feita em nota anterior em relação a Luciano.
130

acesos nas encostas dos mares para guiar os navegantes perdidos na obscuridade das
noites e tempestades...”142.
Assim, o orador partia do princípio de que, para relatar um drama, devia-se estar
no teatro onde ele se passa e contemplá-lo sem paixão, com imparcialidade143. Tal
percepção, muito mais aproximada à historiografia antiga do que à moderna, opõe-se ao
que se convencionou para a operação da historiográfica no correr do oitocentos. O
entendimento de Bonvalot sobre o oficio do historiador com certa dificuldade encontraria
eco entre seus colegas do Institut Historique. No IHGB, fundado três anos mais tarde, o
esforço seria possivelmente maior, devido ao constrangimento promovido por esta
instituição em relação à história do tempo próximo e à política por ela instaurada de evitar
ao máximo a utilização do próprio testemunho como fonte.

2.2.2.3 Da história como filosofia

O primeiro congresso efetivado pelo Institut fez refletir a diversidade na prática


historiográfica do início do oitocentos. Aos poucos, a associação e seus produtos
passaram a se definir melhor, organizando-se de maneira menos diletante. Foi o caso do
evento de 1837, que parece ter tido um caráter mais pragmático. Uma das questões
apresentadas, inclusive, propunha-se a enquadrar as principais histórias gerais da França
produzidas até então, por meio de exame crítico. Tal pesquisa, lida por Emile Lambert,
acabou expondo a concepção de história mais em voga dentro do IHP. Segundo o autor,
era necessário ao homem civilizado conhecer o passado para conjecturar sobre o futuro.
Havia, portanto, um caráter prático, de ensinamento através da história – não passível de
ser replicado, quase como uma verdade144.
Criticava, nessa ótica, grande parte das histórias produzidas até o século anterior
no país, que contavam os fatos e estabeleciam uma cronologia sem atentar para a

Ibidem, p. 263 (tradução livre). Do original: “Les historiens doivent être comme des phares allumés
142

aux rivages des mers pour guider les navigateurs égarés dans l’obscurité des nuits et des tempêtes...”.
143
Ibidem, p. 261.

LAMBERT, Emile. “Faire l’examen critique des principales histoires générales de France (Troisième
144

Congrès Historique)”. In: SOCIÉTÉ DES ÉTUDES HISTORIQUES. Journal de l’Institut Historique.
1837, p. 109. Não tive acesso a informações a respeito da biografia desse autor.
131

apreciação dos mesmos e a filosofia da história. Mesmo naquele momento, eram


produzidas obras cujos autores não tinham em mente esse tipo de apreciação e que
acabavam por atuar, por fim, como crônicas145. Importava, nesse sentido, trabalhar com
a história universal, fazendo a apreciação comparativa das diferentes civilizações, através
do uso crítico de documentos “positivos”: memórias e textos originais que
demonstrassem opiniões contrárias146.
Outro aspecto detalhado por Lambert é o de que o historiador devia escrever com
a “pluma de um cronista e o pincel de um pintor” (como o fizeram Plutarco, Tucídides e
Chateaubriand), pois a apresentação da “cor local” era fundamental 147. A recorrente
utilização dessa expressão no discurso historiográfico do século XIX, como já deram
prova outras passagens citadas, indica uma aproximação entre a história e a pintura. Tal
percepção expressa um anseio estético, além de compôr a construção do argumento
historiográfico: a “cor local” toma uma dimensão imagética “[...] que permite ao
historiador não somente relatar, mas também mostrar o passado e a paisagem ao
leitor”148. “O colorido era indispensável à história, quer nos livros, quer nas telas”149. Não
seria irresponsável, portanto, indicar que a pintura fora um dos principais meios de
divulgação da história na década de 1830, tanto na França, quanto no Brasil. Artistas
plásticos eram considerados “historiadores” nos dois países, o que ajuda a entender, por
exemplo, a quarta sessão do Institut Historique, devotada às belas-artes.

145
Esse havia sido o caso, já citado no artigo de Boissière, dos estudos de Prosper de Barante.
146
LAMBERT, Emile. Op. cit., 1837, p. 111.
147
Ibidem, p. 113 (tradução livre). Do original: “Il faudrait qu’il écrivit les siècles passés avec la plume
du chroniqueur et avec le pinceau qui imprime la couleur locale aux hommes et aux choses par la vérité
et la sensibilité du récit; qu’il écrivît enfin, si c’est possible, comme Châteaubriand, Plutarque et
Thucydide à la fois”.
148
CARDOSO, Eduardo Wright. A cor local e a escrita da história no século XIX: o uso da retórica
pictórica na historiografia nacional. 2012. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Ciências
Humanas e Sociais da Universidade Federal de Ouro Preto, Ouro Preto, 2012, p. 9 (grifos nossos). Para o
autor, o discurso narrativo da “cor local” deriva do campo da técnica pictórica e, a partir da década de
1820 (por influência de Chateaubriand, que a teria empregado pela primeira vez em 1811), virou uma
expressão da moda nas letras francesas. Na França, o uso do termo era empregado sobretudo por
historiadores “nativistas” ou românticos, como Barante e Augustin Thierry. Essa expressão terá ampla
exposição entre historiadores brasileiros como Varnhagen. Ibidem, p. 15-16.
149
ENDERS, Armelle. Op. cit., 2014, p. 200.
132

“A história não é apenas para nós a narrativa do passado; ela é a narrativa do


passado para a inteligência do futuro”150: outro orador resumia assim a utilidade da
história, retomando o famoso tema do primeiro congresso. Segundo ele, a história devia
ser positiva e imparcial (sem “favor ou ódio”), elaborada a partir da crítica e voltada para
o que estava por vir, para o avenir. Devia, ainda, conservar em cada elemento sua
fisionomia, em cada povo sua nacionalidade, mas tendo em vista explicar as leis eternas
da humanidade151.
Naquele contexto, algumas características se distinguem quando o assunto era
definir a história e dotá-la de um sentido: sua capacidade educadora, sua preocupação
universalista e a apreensão de suas leis, responsáveis por dirigir a sociedade. Essas
imagens, por sua vez, salientam a opinião, praticamente unânime, de que a história devia
preparar um projeto de futuro. Além dos discursos anteriormente referidos, outros
comentários caminharam no mesmo sentido de promover uma história filosófica152.
A história, entendida em sua dimensão universal, devia ser capaz de desvendar a
marcha do conjunto da humanidade e de promover um painel da história da civilização.
Nesse sentido, a história particular da França, que possuía importância suficiente no IHP
para receber um espaço dentro da primeira classe, era fomentada naquilo que sua
dimensão tinha de universal. A herança do século XVIII é evidente: Paris deveria ser,
como outrora, a capital da República das Letras153.

150
ROLLIN, M.. “Considérations sur la grandeur et la décadence des Romains, l’Esprit des lois en 1748
(Troisième Congrès Historique)”. In: SOCIÉTÉ DES ÉTUDES HISTORIQUES. Journal de l’Institut
Historique. 1838 (Déuxieme Partie), p. 57 (tradução livre). Do original: “L’histoire n’est plus seulement
pour nous le récit du passé; elle est le récit du passé pour l’intelligence de l’avenir”.
151
ROLLIN, M.. Op. cit.. 1838 (Déuxieme Partie), p. 57-58.
152
Cf. ALIX, M.. “Quelles sont les principales difficultés que presente l’étude de la philosophie de
l’histoire?”. In: SOCIÉTÉ DES ÉTUDES HISTORIQUES. Congrès historique européen, reuni a Paris,
au siège de l’Institut Historique. Discours et compte-rendus. Septembre-octobre 1839, p. 389. Ver
também a discussão que se seguiu à exposição da memória na sessão consecutiva: “Onzième séance
(Samedi 5 Octobre 1839)”. In: SOCIÉTÉ DES ÉTUDES HISTORIQUES. Congrès historique européen,
reuni a Paris, au siège de l’Institut Historique. Discours et compte-rendus. Septembre-octobre 1839, p.
445-449.
153
GUIMARÃES, Manoel. Op. cit., p. 184-200, dez. 2002.
133

2.2.2.4 Do presente que bate à porta

Pelos estatutos, as reuniões no Instituto Historique deviam ater-se apenas a temas


relacionados à história. Ainda que houvesse uma larga abertura para o que eram
considerados assuntos dessa qualidade, era notório o esforço em se evitar matérias
recentes, sobretudo se relacionadas à política. A explicação para isso pode ser dada em
função da própria base da instituição, formada por indíviduos que dificilmente pactuavam
das mesmas posições154.
Apesar de não ser, nem de longe, a mesma censura velada que existia na congênere
brasileira, o grupo do IHP tentava se dissociar das querelas mais pungentes do seu tempo.
Pensava o presente naquilo que ele teria de contribuição na lógica das leis da humanidade
e do seu progresso civilizador. Ainda assim, como já foi afirmado, a Revolução Francesa
era temática cara aos membros da sociedade, que, não sem antes tomar precauções ao seu
tratamento, aparecia recorrentemente nas suas assembleias e publicações.
Em termos de atualidades, ainda que houvesse uma tentativa de afastamento do
campo político, pode-se dizer que o IHP foi palco de algumas discussões importantes. No
terceiro congresso, por exemplo, houve, sem dúvida, uma das maiores contendas da
associação em sua primeira década. Trata-se da discussão promovida pela fala da madame
Louise Dauriat, “Qual é no século XIX a influência do cristianismo na política europeia?”,
que descambou para um discurso pró-participação das mulheres na sociedade francesa155.

154
Inclusive, o mesmo personagem podia mudar drasticamente de opinião com o passar dos anos, como
fora o caso de tantos homens daquele contexto pós-revolucionário. Esta assertiva pode ser exemplificada
a partir da análise da trajetória de alguns indivíduos da geração que vivenciou o final do século XVIII e as
primeiras décadas do XIX. Dentro do próprio IHP, pode-se mencionar Monglave, Michaud e Buchez,
como atestam as referências biográficas destes personagens citadas em notas anteriores.
155
DAURIAT, Louise. “Quelle est au XIXe siècle l’influence du christianisme sur la politique
européenne? (Troisième Congrès Historique)”. In: SOCIÉTÉ DES ÉTUDES HISTORIQUES. Journal de
l’Institut Historique. 1837, p. 56-60. Numa das passagens que demonstram claramente esse apelo feito
por Dauriat em relação aos direitos civis femininos (comparada, inclusive, ao fim da escravidão), lê-se:
“Bien au-dèla de cette Europe, de vrais évangélistes fécondent leur sainte mission; ils rendent la liberté
aux esclaves, et aux femmes leurs droits civils, politiques et religieux. Il y a maintenant dans ces
lointaines contrées un progrès qui doit humilier les facultes intellectuelles et morales des législateurs
européennes: oui, pour les femmes, il est des droits civils, politiques et religieux; l’exercice leur en
appartient aussi bien qu’aux hommes, et selon leurs aptitudes physiques, intellectuelles et morales”.
Ibidem, p. 60. Vale notar, ainda, que Louise Dauriat provocou os ânimos não apenas dentro do Institut por
conta de sua participação no congresso de 1837. Naquele mesmo ano, ela havia dirigido à Câmara dos
Deputados e à Câmara dos Pares uma Demande en révision du Code Civil, na qual detalhava todos os
artigos do referido Código que pareciam discriminar as mulheres, sobretudo os que instituíam sobre a
tutela marital. Evidementemente, o pedido de Dauriat foi recusado por ambas as Câmaras. Desde a
década de 1820, essa curiosa personagem protagonizava querelas na sociedade parisiense. Seu curso de
134

Dauriat, já havia algum tempo, demonstrava interesse em adentrar o séquito, então


composto unicamente de homens, da associação e teve seu pedido negado por uma
condição primária: ser mulher156.
A proposta da oradora para responder à referida questão foi aceita seguramente
porque o tema, a princípio, parecia não revelar nada de perturbador aos censores da
instituição, muito pelo contrário. Entretanto, os poucos comentários que teceu na ocasião
em relação às mulheres e à necessidade de elas conseguirem maior espaço político e social
– respaldando tais ideias através do cristianismo157 – foram suficientes para promover um
verdadeiro tribunal, no qual ela desempenhou o mais infame dos papeis: o de ré158. A
própria autora comentava, com sarcasmo, que teve que responder a nada menos que vinte
homens que se opuseram veementemente às suas palavras159!
Numa época em que o feminismo galgava lugar, o tratamento do assunto numa
instituição conservadora – como a classificam muitos estudiosos – não poderia ter melhor
acolhida. Após ter sua posição rechaçada pelos participantes do evento, Dauriat ainda
tentou argumentar, mas foi em vão. Como herança do acontecido, nos eventos seguintes,
os discursos que iniciavam ou finalizavam os congressos passaram a trazer uma palavra
de “encorajamento” às mulheres, que poderiam “abrilhantar” os seminários do Institut
com sua presença, embora somente na plateia160. E, caso quisessem responder às questões

Histoire religieuse et universelle, por exemplo, foi fechado pelo prefeito por conta de seu “liberalismo”
exacerbado. Necessário comentar, por fim, sobre seu conhecido posicionamento saint-simoniano, numa
época em que, tanto os discípulos desta doutrina, quanto os do fourierismo, denunciavam o caráter
mercantil do casamento e preconizavam o fim do sistema do dote. HOUBRE, Gabrielle. “Como a
literatura chega às jovens. França, primeira metade do século XIX”. In: Tempo, Rio de Janeiro, n. 9, p. 25,
jul. 2000.
156
Dauriat havia enviado uma memória em que argumentava a favor da admissão das mulheres como
membros do IHP. Sua demanda foi indeferida porque, segundo parecer do Conseil, ainda não havia
chegado a época de revisão dos estatutos. Ver “Extrait des procès-verbaux”. In: SOCIÉTÉ DES ÉTUDES
HISTORIQUES. Journal de l’Institut Historique. 1837, p. 183-186.
157
Como na passagem já selecionada. DAURIAT, Louise. Op. cit.. 1837, p. 60.
158
As críticas ao trabalho de Dauriat aparecem em aproximadamente quinze páginas do Journal. O único
que esteve mais próximo a defender a oradora foi Monglave. Ver “Suite de la Neuvième séance du
Troisième Congrés Historique (Jeudi 21 Septembre 1837)”, “Dixième séance (Dimanche 24 Septembre
1837)” e “Suite de la Dixième séance (Dimanche 24 Septembre 1837)”. In: SOCIÉTÉ DES ÉTUDES
HISTORIQUES. Journal de l’Institut Historique. 1838 (Première Partie), p. 113-115; p. 115-128; e p.
145-146, respectivamente.

“Suite de la Dixième séance du Troisième Congrés Historique (Dimanche 24 Septembre 1837)”. In:
159

SOCIÉTÉ DES ÉTUDES HISTORIQUES. Journal de l’Institut Historique. 1838 (Première Partie), p.
147-148.

Ver, como exemplos: “Suite et fin de la Quinzième et dernière séance Troisième Congrès Historique
160

(Mercredi 4 Octobre 1837)”. In: SOCIÉTÉ DES ÉTUDES HISTORIQUES. Journal de l’Institut
135

em outras ocasiões, era necessário enviar o trabalho para que um homem fizesse a leitura
do mesmo no momento do evento, depois, evidentemente, de passar pelo crivo do Institut.
Apesar das precauções para se abster de tratar dos assuntos mais controversos do
momento, é notável que o próprio exame do passado invocasse uma motivação do
presente, responsável por formular as perguntas, como disse tão bem Marc Bloch161.
Assim, em outro caso, foi dado foco ao problema da escravidão, partindo do estudo de
um contexto distante – a Antiguidade –, mas por conta de uma urgência do presente:
abolir ou não abolir?
Nesse sentido, Martin de Paris, ao pretender “Determinar os períodos principais
da legislação sobre os escravos, entre os Gregos e Romanos antes da era cristã”162,
concluía que a escravidão, que começou como um direito do vencedor sobre o vencido,
naquele recuado período, não tinha mais espaço nos dias atuais. Ela estava sendo
perpetuada “pelo luxo e pelo absolutismo” e, por tal motivo, deveria ser extinta através
de uma política que se inspirasse na religião e na filosofia163.
A inteligibilidade do passado dependia, portanto, dos anseios do presente, que
formulava projetos de futuro, tal como indicara Boissière no início das atividades do
Institut Historique de Paris. O alicerce da história, o que a constituía, era a ligação entre
os tempos, sem a qual não seria possível estabelecer uma filosofia. Era concebida como

Historique. 1838 (Douxième Partie), p. 61; e “Première séance (Dimanche 15 Septembre 1839)”. In:
SOCIÉTÉ DES ÉTUDES HISTORIQUES. Congrès historique européen, reuni a Paris, au siège de
l’Institut Historique. Discours et compte-rendus. Septembre-octobre 1839, p. 10-11.
161
Ver a esse respeito, Apologia da história, ou, O ofício de historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2001. Outros assuntos também tiveram pertinência naquele momento e foram objeto de discussão nas
sessões dos congressos do IHP, tais como a questão da pena de morte e da propriedade literária. Sobre o
fim da pena de morte foi lida uma memória acerca de um caso em que houve sua abolição numa ilha da
Oceania de autoria de L. G. Rienzi (também no Congresso de 1837). SOCIÉTÉ DES ÉTUDES
HISTORIQUES. Journal de l’Institut Historique. Paris: Institut Historique, 1838 (Deuxième partie), a
partir da p. 6. Já a questão da propriedade literária foi objeto de estudo no evento de 1839, em memória
lida por L. Malioche (“histoire de la législation qui a régi la propriété intellectuelle chez tous les peuples
et à toutes les époques”). Cf. SOCIÉTÉ DES ÉTUDES HISTORIQUES. Congrès historique européen,
reuni a Paris, au siège de l’Institut Historique. Discours et compte-rendus. Septembre-octobre 1839, a
partir da p. 142.
162
PARIS, Martin de. “Detérminer les périodes principales de la législation sur les esclaves, chez les
Grecs et les Romains avant l’ère chrétienne”. SOCIÉTÉ DES ÉTUDES HISTORIQUES. Congrès
historique européen, reuni a Paris, au nom de l’Institut Historique, dans la salle Sr.-Jean, de l’Hôte-de-
Ville. Discours et compte-rendus. Novembre-décembre 1835, vol. 1, p. 95-123. Não tive acesso a
informações a respeito da biografia desse autor.
163
Ibidem, p. 123. Vale lembrar que o fim da escravidão era, na França, um assunto recorrente, em pauta
desde a Convenção republicana de 1794, quando os jacobinos votaram pela abolição nas colônias. A esse
despeito, Napoleão revogou a legislação em 1804. Somente em 1848 houve a emancipação real dos
escravos nos territórios franceses, após novo período revolucionário.
136

plano geral, em que os eventos fossem demonstrados em sua regularidade, e as


revoluções, em sua harmonia164. Era o “ensinamento moral”, como caracterizou Michaud,
e o estudo das leis da humanidade, de acordo com alguns sócios165.
Em tais termos, a herança das academias setecentistas é aparente. Ao mesmo
tempo em que o IHP assumia releituras da perspectiva de história como mestra da vida166,
salta aos olhos a forte presença da filosofia da história e o caráter universalista que lhe
era empregado167. Ao contrário do que acontecia no IHGB, o foco da instituição
parisiense não era a história nacional, mas a maneira como a história francesa se vinculava
a todas as outras para compor uma história universal e, desse modo, compreender o
progresso da humanidade. Entender a marcha da civilização e explicitar o papel da França
nesse processo faziam parte dos objetivos centrais do Institut168.
Nesse quadro, a preocupação com 1789 provavelmente foi das mais pungentes.
Como incluir a Revolução dentro do painel que estava se estabelecendo? De que maneira
aquele fato colaborava com o progresso da humanidade? Em certa medida, a história
promovida pelo IHP procurava responder a tais questionamentos e, por sua via, a
Revolução deveria deixar de ser uma ameaça, passando a ser incorporada como passado,
como parte do “caminhar” para o futuro. Ela tinha que ser “dosmeticada” pela história169.
Não fora gratuito, portanto, que o primeiro congresso da instituição se iniciasse
nos seguintes termos:
Faz quarenta e cinco anos, essa noite, que a essa hora, a Bastilha desmoronou
perante as chamas: esse foi o sinal de uma revolução. Vosso manifesto,
Senhores, será este de uma dessas regenerações pacíficas, que não tem
necessidade de se juntar às armas, nem de confiar à boca dos canhões 170.

164
BOISSIÈRE, Frédéric. Op. cit., 1834, p. 211.
165
Tais passagens já foram anteriormente citadas.
166
Conforme já referi em capítulo antecedente.
167
GUIMARÃES, Manoel. Historiografia e Nação no Brasil (1838-1857). Rio de Janeiro: EdUERJ,
2011, p. 99-105.
168
Ibidem, p. 102-103. Nisso havia um traço de solidariedade entre as duas instituições. Se, para o Brasil
recém-fundado, a civilização era um status a ser alcançado, muito havia o que se imitar da França,
percebida como a sua principal representante. Representação esta consolidada pelo esforço do próprio
IHP, que propunha a divulgação da “missão civilizadora” da cultura francesa.
169
GUIMARÃES, Manoel. Op. cit., p. 196-198, dez. 2002.
170
SOCIÉTÉ DES ÉTUDES HISTORIQUES. Congrès historique européen, reuni a Paris, au nom de
l’Institut Historique, dans la salle Sr.-Jean, de l’Hôte-de-Ville. Discours et compte-rendus. Novembre-
décembre 1835, p. VIII (tradução livre). Do original: “Il y a quarante-cinq ans, ce soir, qu’à cette heure,
la Bastille s’écroulait dans les flammes: ce fut le signal d’une révolution. Votre manifeste, Messieurs, ce
137

Ou ainda:
Parece hoje que nossas querelas políticas, que nossas ardentes quimeras
querem sair no frio positivo do passado; parece, hoje, que se ama mais um fato
que uma opinião; e, como prova, vejam em seus bancos, Senhores, homens de
opiniões diferentes aproximados pelo amor dos estudos históricos. É preciso
que nosso Instituto marche à frente desse pacífico movimento do espírito
humano; é preciso que ele seja a coluna luminosa nessa santa viagem que faz
a inteligência entre as nações que não existem mais171.

O passado recente da nação francesa, longe de ser mantido em sigilo era, portanto,
o motor que impulsionava o conhecimento histórico. A Revolução, ainda que próxima
temporalmente, fazia parte do cotidiano da instituição histórica, ao menos como
problemática a ser desenvolvida – enquanto fato trágico e ao mesmo tempo necessário na
marcha do tempo.
Havia, portanto, uma visão hegemônica da história que não repudiava
radicalmente o presente. No entanto, os dados até aqui levantados apontam claramente
para que essa visão não era homogênea172, pois vozes destoantes pregavam, ora o
afastamento temporal em relação ao narrado, ora a necessidade de tratar de temas que
ainda se encontravam sob o “calor” dos fatos.
Ainda assim, pode-se dizer que o presente, sobretudo aquele relacionado à
Revolução, fazia parte das preocupações do IHP e não era por ele tão taxativamente
censurado, como ocorria de forma recorrente na primeira década do IHGB. O que não
impedia que a associação francesa se orgulhasse de assumir uma postura apartidária em
relação à atualidade. Sempre que necessário, reiterava-se que aquele não era espaço para
discussões ou opiniões individuais de cunho político. Acima de tudo, o IHP devia ser o
espaço onde reinaria a paz que, possivelmente, não poderia existir fora de seu círculo, em
tão delicado momento.

serait celui d’une de ces régénérations pacifiques, qu’il n’est pas besoin d’attacher à des balles, ni de
confier à la bouche des canos”.
171
Ibidem, p. VIII (tradução livre). Do original: “Il semble aujourd’hui que nos quereles politiques, que
nos ardentes chimères veulent s’éteindre dans le froid positif du passé; il semble, aujourd’hui, qu’on
aime mieux un fait qu’une opinion; et, pour preuve, voyez sur vos bancs, Messieurs, des hommes
d’opinion différent rapprochés par l’amour des études historiques. Il faut que notre Institut marche à la
tête de ce pacifique mouvement de l’esprit humain; il faut qu’il soit la colonne lumineuse dans ce saint
voyage que fait l’intelligence parmi les nations que ne sont plus”.
172
Nem em relação ao presente, nem ao futuro, pois, como tratei anteriormente, no IHP conviviam tanto
aqueles que viam o porvir como utopia, quanto os que o entendiam como parte do ciclo iniciado pelo
passado.
138

Era lá que se encontravam letrados de todos os credos políticos, mas que, a esse
despeito, se respeitavam e que estavam ligados uns aos outros com o único e exclusivo
propósito de dar uma contribuição à Clio e, nesse sentido, em estabelecer um projeto de
futuro pacífico. Como disse um sócio, era o Institut o ambiente propício para se despir do
“homem político”, separando-se de todas as “paixões do momento”173. Evidentemente,
essa era uma visão idealizada da instituição e da relação entre seus membros. Não raras
vezes ela se mostrou inverossímil.

173
Casimir Broussais. “Discours d’ouverture”. In: SOCIÉTÉ DES ÉTUDES HISTORIQUES. Journal de
l’Institut Historique. 1838 (Primière Partie), p. 3 (tradução livre). Do original: “Un bienfait des études
historiques, c’est d’écarter de nous les passions du moment: c’est de nous soustraire à cette influence de
l’actualité qui altere si souvent à notre insu notre impartialité. Sachons donc dépouiller pour quelques
instants l’homme politique, et apprenons à lire dans l’histoire, ce dépôt de la sagesse et de la folie du
passé”.
139

3 O IHGB COMO PREPARADOR DA HISTÓRIA (1850-1889)

3.1 A era das consolidações

Durante a década de 1850, ocorreu uma série de consolidações, tanto no campo


político do Império brasileiro, quanto no que dizia respeito ao Instituto Histórico. Com
relação ao primeiro caso, vasta bibliografia aponta para que, após a derrota da
Farroupilha, da Praieira e dos movimentos liberais de 1842, e com o afastamento da
facção áulica na política, teve início o período de Conciliação, sob a liderança do marquês
de Paraná1. Aqueles foram tempos de conformação do ideal nacional e de unidade
territorial, além de relativa trégua nas lutas partidárias2.
Esse quadro só foi possível tendo em vista os acontecimentos a partir de 1848, que
incluem, além dos já citados: a vitória sobre o argentino Manuel Rosas – e a consequente
estabilização da situação política na região do Prata (1852); a organização do corpo
diplomático brasileiro (1851); a criação das províncias do Amazonas (1850) e do Paraná
(1853); e a aprovação do Código Comercial, o fim do tráfico negreiro e a legislação sobre
a propriedade fundiária – Lei de Terras (1850)3. Soma-se a isso o crescimento econômico
condicionado à expansão cafeeira4. A despeito de ainda existirem demandas políticas e
sociais antagônicas ao projeto imperial, os anos de 1850 trouxeram relativa estabilidade
ao cetro bragantino.
O IHGB, fundado sob os auspícios da casa imperial, sentiu tais mudanças. Após
o primeiro decênio da instituição, cuja expressividade se deu muito em função do cônego
Januário Barbosa, como foi verificado, a agremiação se consolidou em termos
institucionais, vendo sua parceria com D. Pedro II só aumentar. Em 1841, o imperador
cedeu espaço dentro do próprio Paço Imperial ao Instituto e, em 1849, houve a instalação

1
NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das; MACHADO, Humberto. O Império do Brasil. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1999, p. 239-245.
2
Ibidem, p. 246.
3
Ibidem, p. 244.
4
GUIMARÃES, Manoel Salgado. Historiografia e nação no Brasil (1838-1857). Rio de Janeiro:
EdUERJ, 2011, p. 78.
140

de novas dependências para a agremiação, cujas sessões ordinárias e extraordinárias D.


Pedro II passou a frequentar rotineiramente5.
Verifica-se ter sido esse também o momento de consolidação de determinadas
posições historiográficas dentro do IHGB, ainda que conviventes com apreensões mais
antigas do conceito. O ideal de imparcialidade foi ainda mais solicitado dentro daquele
modelo, assim como uma compreensão de história como juíza dos acontecimentos, fatos
estes que justificavam proibições nas produções do grêmio concernentes a momentos
recentes ou demasiadamente complicados. Daí a argumentação em torno das chaves
“tribunal da história” e “tribunal da posteridade” para denotar o distanciamento crítico e
temporal necessários para uma correta forma de escrita da história.
De modo quase consensual, como se verá, o Instituto abria caminho em duas
frentes de trabalho. Por um lado, pretendia-se recolher “os feitos do passado”, na tentativa
de escrever uma história sobre o mesmo. Por outro, a busca era por guardar o “livro de
ouro”, em que seriam registrados “[...] os grandes acontecimentos da nossa idade, para
ser deixado como um precioso legado às gerações futuras”. Era tarefa do IHGB, portanto,
garantir “[...] as pedras que devem servir de alicerces do mais soberbo monumento, a
história [...]”6 – ou seja, preparar os subsídios para uma futura escrita da história daquele
tempo.
Os destinatários deste tipo de mensagem eram, inquestionavelmente, os
historiadores do porvir. Somente eles, e não os cronistas7, poderiam lançar luz sobre a
história recente. O peso de tal argumentação residia na ideia de que a imparcialidade era
a maior qualidade do historiador, chegando mesmo a ser imprescindível a seu trabalho.
Somente o mau historiador, ou aquele que nem sequer poderia ser denominado como tal,
é que sacrificava a imparcialidade “[...] às paixões mesquinhas dos partidos”8.

5
Ibidem, p. 78. Ver também GUIMARÃES, Lucia. “Debaixo da imediata proteção de Sua Majestade
Imperial: O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1838-1889)”. Revista do IHGB. Rio de Janeiro, a.
156, nº 388, p. 486, jul-set. 1995.
6
“Relatório do primeiro secretário o Dr. Joaquim Manuel de Macedo”. RIHGB, tomo XVIII, p. 484 e
510-511, 1855.
7
PORTO-ALEGRE, Manoel de Araújo. “Iconografia Brazileira”. RIHGB, tomo XVIII, p. 354, 1855: “A
futuros escritores está reservada esta bela e tão proveitosa tarefa, e é a eles a quem consagro estas mal
traçadas notas, que talvez lhes servirão quando escreverem a história como deve ser, e não como a
compreendeu a maior parte dos nossos cronistas”.
8
“Ata da sessão de 19 de setembro de 1856”. RIHGB, tomo XIX, p. 33, 1856.
141

Com o intuito de colaborar com a história em formação, inclusive sobre o tempo


contemporâneo, alguns sócios chegavam a dizer que era aceitável escrever memórias ou
crônicas daquele momento. Para Manoel de Araújo Porto-Alegre, por exemplo, as
primeiras eram percebidas como “[...] um manancial poderoso para os que bem desejam
cultivar os estudos históricos”9. Da mesma forma, os cronistas eram por ele considerados
apenas “auxiliares da história geral”10.
Já a tarefa do historiador era de outra natureza. Ainda que recaísse também sobre
ele o trabalho de legar algo ao futuro, distintas eram as suas motivações, sendo a principal
delas preparar “[...] os espíritos para o futuro na indicação moral dos resultados da
experiência humana”. O tom da avaliação deste trabalho centrava-se no preenchimento
do que se esperava daquele que se incumbisse da história – ser um “benemérito da pátria
e da humanidade” 11.
Nota-se que a tão almejada imparcialidade do historiador não bloqueava o seu
instinto patriótico. Muito pelo contrário: a qualidade de seu trabalho devia ser associada
ao seu amor ao país12. Critério e espírito configuravam, desse modo, certa concepção
historiográfica em voga13.
Por outro lado, os sócios construíam paulatinamente uma imagem da instituição
como espaço isento de influências políticas. Assim como a história a ser escrita em seu
seio, o IHGB se comportava, partindo dessa ótica, como um verdadeiro asilo, “[...] campo
neutro para as opiniões [...]”, local preocupado exclusivamente com as letras14.

9
“Relatório do 1º Secretário o Sr. Manoel de Araújo Porto-Alegre”. RIHGB, tomo XX, p. 41, 1857.
10
“Relatório do 1º Secretário o Sr. Manoel de Araújo Porto-Alegre”. RIHGB, tomo XXI, p. 464, 1858.
11
Ibidem, p. 465.
12
TURIN, Rodrigo. “Uma nobre, difícil e útil empresa: o ethos do historiador oitocentista”. História da
historiografia, n. 2, p. 17-18, março 2009.
13
“Relatório do 1º Secretário o Sr. Manoel de Araújo Porto-Alegre”. RIHGB, tomo XXI, p. 466, 1858: “É
grande, majestoso e sobre-humano aquele momento em que o historiador eleva a sua cadeira às alturas de
um sugesto [sic] da justiça divina, e aí faz comparecer todo o passado, revogado pelo seu espírito e
processado pelo seu critério”. Levando em consideração o caso alemão, nota-se a importância do conceito
de espírito (Geist) em relação aos de cultura e formação (Kultur e Bildung, especificamente). De acordo
com Mannheim, na Alemanha do oitocentos, para o estabelecimento da formação apropriada, era
fundamental ao indivíduo saber reconhecer e apreciar a cultura, em seu sentido amplo de totalidade –
nesse caso, os valores culturais objetivos constituiriam o espírito, uma espécie de “[...] conjunto
materializado e socializado de significados”. MANHEIM, Karl. Sociologia da Cultura. São Paulo:
Perspectiva, 1974, p. 41.
14
“Discurso do presidente o Sr. Visconde de Sapucaí”. RIHGB, tomo XXX (Parte Segunda), p. 492,
1867. Ver também o “Discurso do Exm. Sr. presidente Visconde de Bom Retiro”. RIHGB, tomo XL
(Parte Segunda), 543, 1877: “A melhor harmonia há reinado, sem exceção, entre nossos consócios, que,
142

Era nesse misto de imparcialidade e patriotismo que a história do Brasil começava


a ser escrita. O espaço para os fatos atuais dentro desse quadro, contudo, era reservado a
outro tempo – quando deixaria de ser presente para se tornar passado. Assim, com a
evocação de um tribunal da história, transferia-se para o seu próprio decurso o trabalho
de avaliar sobre o que os historiadores oitocentistas desejavam se abster, ou, tão somente,
delegar aos seus sucessores15.
Alguns agremiados se notabilizaram enquanto paladinos de tal posicionamento.
Vale notar uma vez mais que o IHGB era formado por um grupo de homens que nem
sempre concordavam amplamente com tudo que era ajustado. Apesar dessa constatação,
verifica-se que determinados sócios pareciam representar os ditames da instituição em
termos do que era decidido como consenso. Se na primeira geração do IHGB evidencia-
se Januário da Cunha Barbosa como o seu principal gerenciador, nas décadas seguintes
outros nomes arcariam com essa tarefa. Dentre estes, indica-se a atuação de Joaquim
Manuel de Macedo, por motivos que ficarão claros adiante.

3.1.1 Um forte combatente às narrativas sobre o presente

Tinha contudo legítima veia literária, e os seus discursos no


Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, proferidos em voz
clara, pausada e um tanto plangente, produziam impressão
compatível com aquele sonolento local, cuja influência tive,
depois, de experimentar no caráter também de orador.
Alfredo Taunay 16

segundo aliás era de esperar, consideram as salas do Instituto terreno neutro por excelência, onde não se
fazem sentir as opiniões partidárias, onde pessoas de opostas comunhões, olvidando (em boa hora o digo)
divergências políticas, vivem em fraternal e íntima convivência, e, honra lhes seja feita, curando
exclusivamente dos nobres encargos, que, movidos por patriótica espontaneidade, tomaram por timbre
desempenhar”. Vale lembrar que essa visão foi retomada em outros momentos, como na passagem para a
República. Ela se fazia necessária pela dificuldade que era para o Instituto se colocar frente às novas
situações advindas com a troca do regime político. HRUBY, Hugo. Obreiros diligentes e zelosos
auxiliando no preparo da grande obra: a História do Brasil do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
(1889-1912). 2007. Dissertação (Mestrado em História) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul, Porto Alegre, 2007.
15
OLIVEIRA, Maria da Glória de. “Brasileiros ilustres no tribunal da posteridade: biografia, memória e
experiência da história no Brasil oitocentista”. VARIA HISTORIA. Belo Horizonte, vol. 26, n. 43, p. 298,
jan/jun 2010.
16
TAUNAY, Alfredo D’Escragnolle. Memórias. Rio de Janeiro: Edições Melhoramentos, [1948], p. 56.
143

A prática da oratória foi uma das inúmeras atividades que Joaquim Manuel de
Macedo exerceu ao longo de sua trajetória17. Mesmo que nem sempre de fala muito
palatável, como se conclui da leitura da passagem anterior, Macedo foi por décadas orador
do IHGB, além de professor de Corografia e de História do Brasil no Colégio Pedro II18.
A oratória, igualmente necessária no campo político, fez parte da vida de Macedo
enquanto membro do Partido Liberal, por diversas vezes eleito para cargos públicos. Nas
legislaturas de 1864-1866, 1867-1868 e 1878-1881, por exemplo, atuou como deputado
provincial e geral.
Mas foi com a escrita que seu nome se fez conhecido através dos tempos.
Sobretudo por conta de seus romances, tais como A Moreninha – leitura obrigatória, ainda
hoje, para se entender o gênero no século XIX. Autor de diversas crônicas e peças de
teatro, Macedo foi igualmente importante na imprensa de sua época, tendo escrito para
muitos periódicos, como o Minerva Brasiliense e o Jornal do Commercio.
No campo da historiografia, publicou o opúsculo intitulado “Dúvidas sobre alguns
pontos da História Pátria” na Revista de 1862. Nele foram discutidas questões referentes
à invasão holandesa no Brasil. Escreveu também os quatro volumes do Ano Biográfico
Brasileiro (1876-1880), a Ephemerida Histórica do Brasil, a qual deixou incompleta19, e
uma memória sobre a Guerra do Paraguai20. Por fim, mas nem por isso menos importante,

17
Nascido em São João de Itaboraí, numa família de pequenos proprietários rurais, Joaquim Manuel de
Macedo (1820-1882) seguiu para a Corte para estudar medicina. Concluiu o curso em 1844, mas nunca
chegou a atuar nessa profissão. Faleceu no Rio de Janeiro, após ter escrito romances, crônicas e peças de
teatro, e atuado em diferentes áreas, tais como a educação, a política e a imprensa, como será visto. Além
do IHGB, foi sócio do Conservatório Dramático Brasileiro. NEVES, Lúcia Maria Bastos das. “Joaquim
Manuel de Macedo”. In: VAINFAS, Ronaldo (Dir.). Dicionário do Brasil imperial (1822-1889). Rio de
Janeiro: Objetiva, 2002, p. 408-410. Toda a análise da trajetória de Macedo contida neste tópico baseia-se
nas seguintes leituras: MATTOS, Selma Rinaldi de. “Joaquim Manuel de Macedo – uma figura na
sombra”. In: _____. O Brasil em lições: a história como disciplina escolar em Joaquim Manuel de
Macedo. Rio de Janeiro: Access, 2000, p. 9- 18; MACEDO, Joaquim Manuel de. Labirinto (organização,
introdução e notas Jefferson Cano). Campinhas, SP: Mercado das Letras, Cecult; São Paulo: FAPESP,
2004, p. 7-34; e STRZODA, Michelle. O Rio de Joaquim Manuel de Macedo: jornalismo e literatura no
século XIX. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2010, p. 19-60.
18
No início de 1849, foi criada a cadeira de História do Brasil no Colégio Pedro II (CPII), primeiro
ministrada por Gonçalves Dias e, depois, por Joaquim Manuel de Macedo. Vale notar que Macedo teve
alunos ilustres ao longo de sua trajetória como professor do CPII. Pode-se lembrar do já citado Alfredo
Taunay, dentre outros; foi, ainda, professor das filhas da princesa Isabel na década de 1860. Sobre a
metodologia de Macedo em sala de aula, Vieira Fazenda comentou em suas memórias: “Nunca pude
compreender como, sendo Macedo homem ilustrado, não permitisse a seus alunos apreciar a nossa
história com um pouco de filosofia. Era repetir o que estava no compêndio e nada mais”. Citado em
MACEDO, Joaquim Manuel de. Op. cit., 2004, p. 8.
19
Existe um exemplar da obra no IHGB. Cf. MACEDO, Jaquim Manuel de. Ephemerida Histórica do
Brasil. Rio de Janeiro: Typ. Globo, 1877. Ref. 91.1.47.
20
Como será visto mais adiante, este trabalho foi lido nas sessões do IHGB no ano de 1866. Não se tem
notícia de sua publicação.
144

levou à luz alguns dos mais expressivos manuais de história nacional de que se tem
notícia: as Lições de História do Brasil para uso dos alunos do Imperial Colégio do D.
Pedro II, publicadas entre 1861 e 1863, e as Lições de História do Brasil para uso das
escolas de Instrução Primária, editadas em seguida. Só para se ter uma ideia da
notoriedade dessas obras no campo do ensino de história, basta indicar que foram feitas
novas edições das mesmas até a década de 192021.
Diferente do que comumente acontecia, Macedo adentrou o grêmio do IHGB com
apenas 25 anos de idade. Já havia, então, publicado A Moreninha e defendido sua tese no
curso de medicina22. De resto, aquela parece ter sido uma aposta do Instituto – que, com
o passar dos anos, se mostrou bem sucedida.
Pode-se resumir a trajetória de Macedo dentro do IHGB da seguinte forma: após
ter sido aceito para o grêmio em 1845, tornou-se 2º secretário em 1848 e 1º secretário em
1851, quando passou também a membro da comissão de trabalhos históricos. Entre 1857
e 1879 atuou como orador da instituição e, em 1869, foi promovido a sócio honorário.
Serviu, sucessivamente, aos cargos de 3º, 2º e 1º vice-presidente do Instituto. Mesmo
doente, a partir de 1876, continuou a trabalhar ativamente pelo/no IHGB até praticamente
sua morte, em 1882.
A atitude altiva de Macedo no IHGB rendeu vasta produção publicada na Revista.
A análise do periódico permitiu verificar a composição desta produção, que vai desde os
relatórios que Macedo escreveu na condição de 1º secretário, até os pareceres feitos como
representante das comissões do Instituto e, em menor escala, as suas propostas de projetos
e publicação de trabalhos23. Macedo se revelou, por outro lado, um verdadeiro biógrafo e
não é exagero indicar que a maior função exercida por ele no IHGB foi a de orador – o
que significava lembrar, a cada sessão aniversária, a vida dos sócios falecidos ao longo
do ano anterior. Com isso, nota-se que a parte mais constante de sua produção publicada

21
MATTOS, Selma. Op. cit., 2000, p. 17.
22
Macedo defendeu em 1844 a tese “Considerações sobre a nostalgia” para concluir a Escola de
Medicina. Nunca chegou, contudo, a atuar nessa área. Como ajuíza Selma Mattos, “[...] do médico só
restaria a lembrança no tratamento carinhoso que muitos lhe dispensavam ao chamá-lo ‘Doutor
Macedinho’”. Ibidem, 10-11.
23
Com relação a estes dois últimos quesitos, só consegui levantar uma proposta de projeto para a criação
de uma comissão central, “[...] coadjuvada por outras filiais nas províncias ou comissários, que se
encarreguem da história particular das cidades, vilas, etc. do Brasil” e uma publicação, referente ao
opúsculo acima mencionado (“Dúvidas sobre alguns pontos da História Pátria”). “Ata da sessão de 19 de
outubro de 1848”. RIHGB, tomo X, p. 550, 1848.
145

na Revista se caracteriza como apontamentos biográficos, sobretudo sob a forma de


“Elogios Fúnebres”, ainda que “acadêmicos”24.
Fosse relatando os acontecimentos do ano social da instituição, incluindo os
trabalhos a que deveria dar algum veredito, fosse relembrando seus mortos, Macedo se
preocupava muito em detalhar de que forma compreendia o trabalho do historiador.
Escrever biografias fez com que utilizasse os preceitos mais rigorosos da história, até
porque não compreendia os dois gêneros como totalmente antagônicos25. Assim, por
diversas vezes expressou o que entendia ser de fundamental importância para a pesquisa
histórica, tanto para a produção de uma obra de história propriamente dita, quanto para
outros tipos de estudos que podiam se utilizar dela: a exigência da verdade. Para isso,
esclarecia que “[...] os contemporâneos dos varões notáveis são apenas testemunhas, e o
juiz é somente a posteridade”26. Argumentava, desse modo, que a falta de “partido” – tão
cara à historiografia – era impossível em uma escrita da história contemporânea.
Ainda que Macedo não possa ser considerado um grande historiador, no sentido
mais literal do termo, já que poucos são os títulos de história que produziu, sua atuação
como avaliador de trabalhos de cunho historiográfico, ou mesmo como professor da
disciplina, permite indicá-lo como alguém que sabia das discussões mais recentes em
torno da mesma. Tinha noção, portanto, de que a imparcialidade era uma das principais
qualidades do bom historiador e, por tal motivo, falar sobre o tempo presente era tarefa
de difícil concretização em termos de escrita da história. Os exemplos a seguir
demonstrarão o quão extremoso foi Macedo no repúdio à narrativa de fatos recentes.
Na década de 1850, quando fazia parte do Conselho da Instrução Pública,
convocado pela Inspetoria Geral da Instrução Primária e Secundária do Município da
Corte (IGIPSC)27, avaliou uma série de manuais escolares de história, dentre os quais o

24
O próprio Macedo indica uma distinção do “elogio acadêmico” de um finado para um elogio
meramente laudatório, que só visava a disfarçar através do “[...] panegírico dos mortos a lisonja
incensadora dos vivos”. Enquanto o primeiro primava pela verdade, apesar de conter, inevitavelmente,
sentimentos de estima e de saudade, o último se inseria somente na lógica da lisonja. “Discurso do orador
Joaquim Manuel de Macedo”. RIHGB, tomo XXVI, p. 925, 1863. Ver sobre esse respeito, OLIVEIRA,
Maria da Glória de. Op. cit., p. 289, jan/jun 2010.
25
OLIVEIRA, Maria da Glória de. Op. cit., p. 298, jan/jun 2010.
26
“Discurso do orador Joaquim Manuel de Macedo”. RIHGB, tomo XXVI, p. 925-926, 1863.
27
Então presidida por Euzébio de Queirós, a IGIPSC tinha função de analisar os manuais adotados nas
escolas públicas, fazendo correções (que eram pedidas aos autores dos livros), e substituindo-os também,
quando necessário. A Inspetoria era também responsável por convocar o Conselho da Instrução Pública,
que examinava os métodos e sistemas de ensino, além de avaliar os manuais escolares. Importante
146

de José Pedro Xavier Pinheiro, Epítome de História do Brasil28. Segundo a visão de


Macedo, os fatos narrados no livro que traziam à tona os anos entre a Independência do
Brasil e o início do reinado de D. Pedro II não deviam ser merecedores de um relato
voltado ao ensino da mocidade. Xavier Pinheiro estava no rol dos que faziam história,
motivo pelo qual não podia assumir posição de juiz ante os acontecimentos
contemporâneos: “[...] entendo que não é ele, como historiador, o juiz mais próprio para
sentenciar em causas, em que foi parte”29. Neste sentido, indicava o caminho a ser seguido
por outros autores ou professores da disciplina:
Escrevendo ou ensinando a História Pátria nós nos devemos limitar, quando
chegamos aos acontecimentos da nossa época, aos dramas em que também
tivemos papéis a representar, nós nos devemos limitar, digo, a resumir esses
acontecimentos em datas que os façam lembrar, sem ajuntar apreciações de
fatos e de princípios. Nossas ideias políticas, os partidos que contaram em suas
fileiras nossos parentes, nossos amigos, ou a nós mesmos, nossas perversões,
simpatias, antipatias muitas vezes nos podem induzir ao erro, e tornar-nos
evidentemente parciais30.

Por outro lado, atentava para as possibilidades de comentar os fatos mais


contemporâneos nas aulas de história, de modo a incutir no público estudante
determinadas considerações acerca daqueles anos, principalmente, sobre questões
políticas pertinentes. Esse tipo de explanação devia ser, porém, de caráter bem sintético,
conforme ele próprio fazia em suas aulas de história: “[...] na cadeira de História Pátria,
de que sou professor no Imperial Colégio de Pedro 2º tenho sempre me abstido de entrar
nessas questões, e me limito a dar [aos] meus alunos, apenas a cronologia
contemporânea”31.
A ideia era apresentar ao leitor uma simples cronologia da história recente. O erro
de Xavier Pinheiro, ao que tudo indica, fora a falta de concordância com esse tipo de
premissa, fazendo exortações maiores a respeito dessa parte da história além do que era
“permitido” dentro do modelo historiográfico desejado pelo IHGB. Assim, se o autor do
manual fizesse as modificações referentes a esse quesito reclamado por Macedo, o livro

mencionar que essa avaliação era feita por pessoas de confiança das autoridades, sobretudo, por
professores.
28
O referido manual foi objeto de estudo aprofundado em minha dissertação de mestrado.
29
Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro. Série Instrução Pública. Códice 11.1.6, 1859, f. 59.
30
Ibidem, f. 59.
31
Ibidem, f. 59.
147

poderia ser publicado e utilizado pelo ensino primário do Município da Corte, conforme
atesta o próprio parecerista: “[...] se for aquela parte da História Contemporânea
substituída por uma simples cronologia, ou por apreciações, e [remida] de juízos do autor
a sujeito dos acontecimentos, e dos partidos políticos”32.
Seguida por outros avaliadores do livro33, a opinião de Macedo acabou se
tornando a palavra final sobre o assunto. Apesar disso, a trajetória do manual de Xavier
Pinheiro seguiu caminho um pouco distinto daquele apresentado pelo orador do IHGB.
Publicado inúmeras vezes e utilizado no ensino da história do Brasil, o compêndio
alcançou o lugar a que desde o início pretendeu se destinar. Acabou sendo bem-sucedido
em termos de vendas no comércio editorial e de utilização por parte do ensino nas escolas.
Assim o demonstram seu grande número de reedições, bem como os pedidos do livro
feitos por professores encontrados no Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro34.
Entretanto, nunca deixou de escrever a respeito de fatos muito próximos e a cada
edição nova do manual a narrativa era acrescentada, abordando os anos mais recentes.
Supondo que realmente admitisse a fórmula do professor de história do Brasil do Colégio
Pedro II, Pinheiro devia ter feito apenas uma cronologia dos anos posteriores à
Independência do Brasil – o que não foi, de modo algum, o caso. Tomando como
parâmetro a quinta edição, datada de 1873, pode-se concluir, a partir do simples ato de
abrir o livro nas páginas finais, que o autor narrou de forma detalhada os acontecimentos
mais próximos ao período de publicação desta edição – a Guerra do Paraguai, finda em
187035.
De todo modo, notória foi a crítica feita ao conteúdo do manual, pouco condizente
com as expectativas da instituição que determinava as formas de escrita da história no
Brasil Imperial e que tinha em Macedo uma de suas personalidades máximas. Ainda que
fosse um livro voltado ao ensino, o epítome de Pinheiro foi julgado de acordo com as

32
Ibidem, f. 60.
33
Podemos citar o nome de Joaquim Mendes Malheiros, que aparece na documentação. Vale notar que o
parecer de Macedo data de 28 de fevereiro de 1859, enquanto o de Malheiros foi feito no dia 19 de abril
do mesmo ano.
34
O livro foi, primeiramente, premiado, de acordo com documentação levantada no AGCRJ. Série
Instrução Pública. Códice 11.1.6, 1859, f. 221, 231 e 242.
35
PINHEIRO, José Pedro Xavier. Epítome da História do Brasil desde o seu descobrimento até a
conclusão da Guerra do Paraguay (adoptado para uso das aulas publicas de ensino primário). 5ª edição,
Rio de Janeiro: E. & H. Laemmert, 1873.
148

premissas historiográficas do período, sobretudo no que dizia respeito à imparcialidade


do historiador ao debruçar-se sobre seu objeto de estudo e à necessidade de recuo
temporal para atingi-la.
Pouco mais de um ano depois de ter feito o referido parecer, e sem mudar o tom
da discussão sobre o não lugar da história do presente, Macedo escrevia para o Jornal do
Commercio, no folhetim intitulado Labirinto36 a seguinte recomendação:
Ninguém pode considerar perdido o tempo que se emprega em acender uma
luz nas noites do passado da nossa história, e em preparar elementos para que
os vindouros escrevam a da nossa época, de que aliás nós outros ou não
podemos, ou dificilmente poderíamos tratar com a indispensável e completa
imparcialidade porque todos temos mais ou menos nela pecadilhos e
escorregaduras [sic], ou enfim predileções, simpatias, antipatias e relações que
nos tornam suspeitos37.

Macedo relatava na ocasião os trabalhos produzidos pelo IHGB, desde a


historiografia desenvolvida por seus sócios, até a organização de uma rica biblioteca e a
crítica a autores estrangeiros. O orador da instituição pretendia, por meio desse relato,
demonstrar a importância conferida ao Instituto, enquanto lugar por excelência da
produção de uma história e de uma memória nacionais. A documentação levantada sobre
o presente deveria ser, nesse sentido, resguardada para o interesse dos historiadores do
futuro, que tratariam dela com a desejada imparcialidade – um eco na imprensa do que já
vinha sendo tão difundido dentro do Instituto Histórico.
Outros exemplos demonstram o apreço de Macedo em propagandear uma
determinada perspectiva historiográfica, crítica em relação ao tratamento dado aos fatos
recentes. Tal preocupação pode ser verificada nos elogios históricos feitos por Macedo
aos sócios falecidos do IHGB. A despeito de estar presente em diversas situações, essa
preocupação foi por ele expressa através da concatenação das mesmas ideias: a visão da
história como juíza, cuja imparcialidade só podia ser atingida no futuro.
Ao tratar do falecimento de Cassiano Spiridião de Mello e Matos, em 1857,
indicava a posteridade como verdadeira juíza dos “[...] homens que têm direito a ser
lembrados pela história [...]”, sobretudo dos políticos, que “[...] antes de todos devem

36
A explicação sobre a escolha do nome foi dada pelo próprio Macedo: “O nosso Labirinto, portanto,
refletirá, à semelhança de um espelho, a vida da nossa sociedade, e portanto um labirinto social, onde
todos se acham às tontas com os erros, que são muitos, os despropósitos não poucos, e apenas encontram
raros os acertos, que já parecem milagres”. MACEDO, Joaquim Manuel de. Op. cit., 2004, p. 15.
37
Ibidem, p. 284.
149

recomendar-se mais ou menos à indulgência daquela”38. Por ocasião da morte de Sergio


Teixeira de Macedo, dez anos depois, alertava para o fato de que a avaliação da sua
atuação no parlamento e no governo pertencia ao futuro, tendo em vista que a geração
contemporânea jamais podia ser insuspeita39. Quando foi a vez de falar sobre José
Joaquim Machado de Oliveira, deixou de fora a apreciação sobre grande parte das
questões políticas do passado recente pelos mesmos motivos apontados anteriormente40.
Neste sentido, o orador via-se, sempre que necessário, na obrigação de argumentar sobre
o papel de juiz a ser creditado ao porvir, sobretudo quando se tratava dos eventos mais
atuais e de seus protagonistas.
Verifica-se através desses exemplos que, enquanto à posteridade era atribuída a
condição de foro de justiça das ações dos homens, aos sócios do IHGB restava o epíteto
de testemunhas de seu próprio tempo41. Guardar a história contemporânea para os
historiadores do futuro era, assim, tarefa que merecia especial atenção por parte do
Instituto Histórico. Na mesma medida, a publicação de biografias – como aquelas que o
próprio Macedo escrevia – servia ao propósito de fazer com que a posteridade pudesse
melhor julgar aquele tempo.
Cumpre pois que, registrando em nossos arquivos os acontecimentos da nossa
época e os feitos dos nossos beneméritos, cumpre que, colhendo no livro dos
túmulos as páginas soltas da vida dos nossos homens notáveis, forjemos a
chave com que para eles devem ser abertas as portas daquele panteão na
posteridade. [...] o IHGB coligindo e publicando as biografias de cada um
deles, vai recomendando os nomes e os feitos dos beneméritos ao tribunal da
posteridade, que os deve julgar em última instância, marcando o lugar que lhe
compete na galeria da história [...]42.

Outra opinião recorrente nos discursos de Macedo era em relação ao próprio


entendimento do que representava “fazer história”. Propunha, então, uma diferenciação
entre aqueles que eram, efetivamente, considerados historiadores de outros, responsáveis
pela sua preparação. Como exemplo para este último caso, estava Ignacio Accioli, que,

38
“Discurso do orador, o Sr. Joaquim Manuel de Macedo”. RIHGB, tomo XX, p. 74, 1857.
39
“Discurso do orador o Sr. Dr. Joaquim Manuel de Macedo”. RIHGB, tomo XXX (Parte Segunda), p.
526, 1867.
40
“Discurso do orador o Sr. Dr. Joaquim Manuel de Macedo”. RIHGB, tomo XXXI (Parte Segunda), p.
425, 1868.
41
OLIVEIRA, Maria da Glória de. Op. cit., p. 290, jan/jun 2010.
42
“Discurso do orador do Instituto Histórico o Sr. Dr. Joaquim Manuel de Macedo”. RIHGB, tomo XXII,
p. 705-706.
150

de acordo com Macedo, havia sido além de um verdadeiro “perscrutador do passado”, um


apreciador dos acontecimentos contemporâneos, “[...] esmerilhando a verdade entre os
embustes, os desvios, as sombras, e nas tempestades, na confusão e no caos das paixões
políticas”. Segundo o orador, Accioli não podia ser considerado nem um Heródoto, nem
um Tácito, nem, ao menos, um Thierry43; havia deixado, porém, para os futuros
historiadores um legado imenso, “[...] um tesouro incalculável de conhecimentos e de
fatos verificados. Não foi um grande historiador, mas foi um consciencioso preparador
da história”44. Assim como apontou em outra ocasião, da mesma forma que havia os “[...]
filósofos investigadores dos fatos que arrasam os segredos dos tempos que já foram”,
existiam aqueles que tratavam dos acontecimentos contemporâneos, “[...] de que outros
mais tarde serão juízes”45. Ambas as tarefas mereciam destaque por colaborarem com a
construção da história nacional.
Os comentários que Macedo rendeu a trabalhos produzidos pelos sócios, na
qualidade de secretário do Instituto, também demonstravam sua preocupação em deixar
para a posteridade o tratamento da história recente. Explicitava em seus relatórios o perigo
que era tratar do presente, tendo em vista o fato de que os historiadores, por mais que
tentassem, nunca se mostrariam “menos homens”46. A atualidade, nesse caso, nunca devia
ser objeto da história. Podia, sim, ser registrada e “entesourada”, a fim de fazer parte dos
seus anais no futuro47.
O IHGB, nesse sentido, formava o cabedal de testemunhos a ser utilizado por
aquele tempo. Com base na preparação dessa história ainda por fazer, podia-se garantir à
geração contemporânea viver para sempre; a história, assim como a entendiam os antigos,
era responsável pela imortalidade humana. Nas palavras de Macedo, “A luz que dimana

43
Heródoto, Tácito e Thierry eram modelos de escrita da história a todo momento retomados pelo IHGB.
44
“Discurso do orador o Sr. Dr. Joaquim Manuel de Macedo”. RIHGB, tomo XXVIII (Parte Segunda), p.
348, 1865.
45
“Discurso do orador o Dr. Joaquim Manuel de Macedo”. RIHGB, tomo XXXIV (Parte Segunda), p.
405-406, 1871.
46
“Relatório do primeiro secretário Dr. Joaquim Manuel de Macedo”. RIHGB, tomo XVI, p. 581, 1853.
47
“Relatório do 1º secretário o Sr. Dr. Joaquim Manuel de Macedo”. RIHGB, tomo XIX, p. 92, 1856:
“[...] o instituto histórico e geográfico do Brasil, coligindo e registrando os acontecimentos do passado e
da atualidade, entesourando elementos para os livros do futuro, pode dizer-se o preparador de um
processo grandioso, no qual serão juízes os historiadores da posteridade”.
151

do seio do instituto vai brilhar além dos horizontes da nossa idade, e a voz que ele
desprende há de retumbar na posteridade e ser ouvida pelos vindouros”48.
O lado censor de Macedo não deixou de se fazer sentir nos exemplos acima, tanto
em sua atuação como orador, quanto como secretário. Isso pode ser verificado na maneira
como apontou os limites para o trabalho do historiador, através da indicação de que os
acontecimentos contemporâneos só podiam fazer parte de uma história a ser construída
no futuro, ainda que formada a partir de subsídios coletados no presente.
Sua firmeza como censor apareceu, por outro lado, em momentos em que
realmente atuara como avaliador de trabalhos ou projetos. Fora do IHGB, citou-se seu
trabalho como parecerista do IGIPSC. A seguir, tratar-se-á da atuação de Joaquim Manuel
de Macedo como consultor dentro da agremiação, iniciando uma querela pontual que teve
como foco a produção de uma história do presente.

3.1.2 O não lugar dos Fastos do feliz e glorioso reinado do Sr. D. Pedro II

[...] desejarei mesmo ser julgado sem paixão, [...] do juízo ou


censura apaixonada dos sócios apelarei para o tempo que é um
galante homem que faz justiça a todo o mundo [...].
Felizardo Pinheiro de Campos49

Nem tudo correu às mil maravilhas quando Pinheiro de Campos propôs que o
IHGB elaborasse um livro intitulado Fastos do feliz e glorioso reinado do Sr. D. Pedro

48
Ibidem, p. 93.
49
CAMPOS, Felizardo Pinheiro de. Bosquejo do atual reinado desde a declaração da maioridade de S.
M. I. [Manuscrito]. s/d. f. 01. Arquivo do IHGB, Rio de Janeiro, Brasil. Ref. Lata 03 – Pasta 18. Felizardo
Pinheiro de Campos (1813-1889) nasceu no Rio de Janeiro. Tornou-se bacharel em ciências jurídicas e
sociais através do Curso Jurídico de São Paulo, em 1834. A partir de então passou a atuar como
advogado. Foi também professor de Retórica e Poética, além de lecionar História, Geografia e Francês
nas localidades onde viveu no país, como Ayuruoca. Foi também juiz municipal e de órfãos e delegado de
polícia em Cabo Frio, depois de recusar a nomeação para cônsul geral nos EUA. Quando retornou ao Rio
de Janeiro, em 1863, entregou-se exclusivamente ao exercício da advocacia até sua morte. Cf. ALVES,
Comendador José Luiz. “Elogio dos sócios falecidos desde 15 de Dezembro de 1888 até hoje”. RIHGB,
1890, tomo LIII (Parte Segunda), p. 616-617, 1890.
152

II. O ano era 1863 e a proposta era de que constassem na obra “[...] todos os fatos de
importância política, moral e religiosa a juízo do Instituto” sobre aquele tempo50.
Levado à votação, o projeto acabou sendo avaliado pela comissão de história, após
pedido de urgência feito pelo proponente51. Além de Joaquim Manuel de Macedo, a
referida comissão era composta por Joaquim Norberto de Sousa Silva.
O processo, inaugurado com a proposta de Pinheiro de Campos, durou alguns
meses. Após a divulgação do parecer da comissão, um conjunto de respostas, numa
espécie de jogo de réplicas e tréplicas, deu o tom da discussão acerca do objeto de disputa
– ao fim e ao cabo, um trabalho que tinha por objetivo a escrita da história contemporânea
do Brasil.
Macedo, como relator da comissão, leu o parecer da mesma em sessão. Nele,
indicava a impossibilidade de o Instituto arcar com semelhante projeto, tendo em vista
que, apesar das “[...] nobres intenções e patrióticos sentimentos que inspiraram esta
proposta”,
Sujeito às impressões veementes da atualidade, às paixões, ao espírito do
partido, à simpatia, e, em uma palavra, sendo ator no drama de que procura dar
conta, aquele que escreve sobre a história contemporânea do seu país escreve
um pouco a sua própria história, preside ao processo das ideias que tem
sustentado e das ideias que tem combatido; e por consequência aparece aos
olhos da posteridade como parte interessada com pretensões de ser juiz52.

A história contada nos Fastos do feliz e glorioso reinado do Sr. Dom Pedro II não
deixaria de se constituir na história da nação brasileira em sua época mais
contemporânea53, motivo pelo qual não devia ser escrita. Mesmo sendo um relato
sintetizado daquele momento da história do Brasil, a obra em destaque passaria por
desnecessária e acabaria não efetuando aquilo a que se propunha: registrar os momentos
grandiosos do Segundo Reinado54. Desnecessária, em primeiro lugar, por não poder ser

50
“Ata da sessão de 13 de março de 1863”. RIHGB, tomo XXVI, p. 842, 1863.
51
“Ata da sessão de 24 de abril de 1863”. RIHGB, tomo XXVI, p. 851, 1863.
52
“Ata da sessão de 8 de maio de 1863”. RIHGB, tomo XXVI, p. 854-855, 1863.
53
Ibidem, p. 856: “O digno autor da proposta pensou como todos, e como não podia deixar de pensar, que
o Sr Dom Pedro II e a nação brasileira tem uma só história, história que não se pode separar, e portanto os
Fastos do feliz e glorioso reinado do Sr. Dom Pedro II, seriam forçosamente a história contemporânea do
Brasil”. Daqui por diante denominado apenas como Fastos.
54
Segundo o dicionário de Antonio Moraes Silva, a palavra fastos significava, entre outras coisas, “os
sucessos notáveis do ano”, o mesmo que “feliz”, “próspero” e o contrário de “nefasto”. Ver: Diccionario
da lingua portugueza, Tomo Primeiro (A-K), p. 600. Disponível em: http://www.brasiliana.usp.br.
Acesso em: 21 de agosto de 2013.
153

considerada uma proposta inovadora. Observando o histórico de projetos e de trabalhos


do Instituto, era possível notar que a ideia de registrar de forma resumida os fatos mais
recentes já havia sido começada, tempos atrás. Bastava, então, continuar a escrita das
Ephemerides, cuja idealização deveu-se a Januário da Cunha Barbosa, logo nos anos
iniciais da agremiação55.
Por outro lado, não atingiria o fim a que se propunha de início, pois se fosse escrita
em forma de simples resumo, sem grandes exortações, acabava não demonstrando bem o
quão glorioso estava sendo o governo de D. Pedro II. E havia ainda a inconveniência de
se delimitar com precisão as regras pelas quais o(s) redator(es) pudessem registrar os fatos
sem deixar escapar “[...] palavras de uma dissimulada apreciação”56. Nesse sentido, até
mesmo a escolha do título era criticado pelo parecer da comissão de história57.
Além disso, o requerimento feito por Pinheiro de Campos pedia que a obra fosse
feita sob a proteção do IHGB, fato que trazia ainda maior discórdia, visto que
Trabalhos suspeitos de parcialidade seriam sempre; mas a responsabilidade
deles pesaria sobre seus autores e a posteridade esmerilharia nesses escritos
a verdade dos fatos, comparando-os uns com os outros e com todos os
impressos, memórias, livros e documentos do nosso tempo. Mas o que um
indivíduo pode fazer neste sentido, não convém que o faça o Instituto Histórico
e Geográfico do Brasil, pelo caráter que tem, e pelas condições de sua
organização e de sua alta importância58.

O IHGB não podia se associar à tarefa, por correr o risco de tornar-se


contraproducente com sua própria natureza, definida desde a fundação, ocorrida em 1838.
Tratava-se, afinal de contas, de uma querela a respeito da forma como o Instituto
entendia a ação de preparar a história. Assim como em outras situações, conforme já se
verificou, Macedo indicou o trabalho de recolhimento de dados sobre o presente para a
utilização dos historiadores do futuro como algo sumamente importante para o IHGB. A
seriedade de tal empreitada fazia com que fosse impensável correr-se o risco de ser
parcial, também nesta tarefa. Por esse motivo, julgava perigosa a “[...] apreciação do
merecimento dos fatos a registrar [...]”, necessária nesse tipo de obra. Isto porque, tendo

55
“Ata da sessão de 8 de maio de 1863”. RIHGB, tomo XXVI, p. 856-857, 1863. Nota-se que a escrita
das Ephemerides deveu-se a Ataíde Moncorvo e Diogo Bivar, conforme já visto no capítulo anterior.
56
Ibidem, p. 856.
57
Ibidem, p. 857: “[...] devendo além disso considerar-se que seria mal cabido o título brilhante de –
Fastos do feliz e glorioso reinado do Sr. Dom Pedro II, em um registro tão simples, seco e árido”.
58
Ibidem, p. 857.
154

em vista ser impossível descrever tudo o que ocorria no Segundo Reinado em tempo real,
era imprescindível que se fizesse uma seleção dos fatos narrados, o que configurava, de
acordo com Macedo, “[...] uma obra incompleta pelo esquecimento premeditado de fatos
[...]”59.
O parecer, assinado pelos dois sócios, propunha que o projeto de Pinheiro de
Campos fosse arquivado. Apesar disso, o autor respondeu sustentando a proposta. Em
sua defesa, indicava que, caso respeitasse os desígnios da comissão, nunca seria possível
ao IHGB ter “[...] uma coleção de fatos coligidos e metodizados pelo Instituto com relação
ao atual reinado”60.
Assim como a comissão de história, Pinheiro de Campos relembrou um projeto
anterior e com objetivos similares ao seu. Também nele constava a ideia de coligir os
momentos mais importantes do reinado de D. Pedro II, sob o título de Chronica do Senhor
D. Pedro II. Se, desde a década de 184061, tivesse começado a ser desenvolvido pelo
Instituto, “[...] já teríamos hoje um rico reservatório de fatos, que abrilhantariam as
páginas da nossa história”62. Mas, como este não foi o caso, restaria ao IHGB dar início
ao trabalho naqueles anos de 1860, esperando com isso garantir à instituição sua “missão
e principal incumbência”: “[...] preparar os materiais para um dia formar-se a história do
país, etc., etc”. Segundo o proponente, portanto, o IHGB não deveria se ver na qualidade
de historiador, mas de “compilador dos fatos”63.
A tréplica do Instituto foi contundente. Desta vez representada por Joaquim
Norberto de Sousa Silva, a comissão de história apontava a inutilidade dos Fastos, posto
que os acontecimentos mais atuais já eram visualizados pela geração “que vive”,
desenrolando-se no dia a dia. Acabavam gravados na memória coletiva automaticamente.
Os fastos do governo de D. Pedro II eram, por si só, tão grandiosos, que não necessitavam
ser escritos sob os auspícios do Instituto. E, caso isto ocorresse, havia o perigo de que
pudessem “[...] desaparecer no oceano dos tempos como esses acontecimentos frívolos e

59
Ibidem, p. 855.
60
Ibidem, p. 857-858.
61
O projeto em questão foi apresentado ao IHGB por José Clemente Pereira em 1840, como tratado no
capítulo anterior.
62
“Ata da sessão de 8 de maio de 1863”. RIHGB, tomo XXVI, p. 858, 1863.
63
Ibidem, p. 858.
155

dignos de eterno esquecimento, que se abismam no golfão [sic] do passado com os


próprios anos que os presenciaram”64!
Ao encontro dessa mesma ideia, Sousa Silva assinalava a imprensa como aquela
que, naturalmente, escrevia no cotidiano a história do Segundo Reinado. Não havia
necessidade alguma de o Instituto se embrenhar em tarefa que já era, portanto, da alçada
da imprensa e da própria nação brasileira, conforme dito anteriormente65.
Para pôr fim à discussão, Antonio Pereira Pinto corroborou com o parecer de seus
colegas. Segundo ele, o historiador que, no futuro, se responsabilizasse a contar os feitos
do Império tinha obrigatoriamente que recorrer à documentação guardada para esse fim.
Questionava, neste sentido, a relevância do relato pretendido por Campos, ao entender
que os documentos – esses sim! – seriam, em um futuro um pouco longínquo, as fontes
essenciais de pesquisa dos historiadores. Para que, então, o Instituto devia se preocupar
em escrever “[...] em seu seio uma crônica que não podia ter a autenticidade daqueles
documentos?”66.
Mesmo após tantas demonstrações de recusa aos Fastos, Pinheiro de Campos
continuou na tarefa de tentar conferir alguma legitimidade ao seu projeto. Em junho de
1863 chegou a propô-lo novamente com algumas modificações:
Proponho que o Instituto nomeie uma comissão composta de cinco dos mais
respeitáveis membros, maiores de 60 anos de idade e que pela sua alta e a mais
elevada posição social se possa razoavelmente entender que não nutrem mais
aspirações algumas, aos quais incumba a tarefa de registrar exatamente tudo
quanto o imperador disse e fizer digno de menção interessante para o bem do
Estado, devendo este trabalho à proporção que se for fazendo, ficar escrito em
folhas de pergaminho depois de assinadas por toda a comissão e guardado em
um cofre, o qual não se abrirá senão depois da morte do Imperador. Com estes
materiais assim coligidos, com a imparcialidade humanamente possível, se
escreverá a história do seu reinado67.

À forte crítica feita por Macedo – de que um registro daquele porte seria tudo
menos imparcial –, respondia que se a narrativa fosse feita por senhores maiores de 60
anos de idade e que já não tivessem maiores aspirações na vida – fossem elas políticas,
ou de qualquer outra ordem –, ela teria sua credibilidade restaurada. Soma-se a isso o fato

64
Ibidem, p. 859.
65
Ibidem, p. 860: “Os Fastos do reinado de SM o Sr Dom Pedro II aí estão; e a posteridade não condenará
o Instituto Histórico por deixá-los de coligir, quando toda a nação o colige”.
66
Ibidem, p. 860. Mais uma vez, há referência à perpetuação da presença de uma história-crônica nos
círculos letrados do Brasil oitocentista.
67
“Ata da sessão de 05 de junho de 1863”. RIHGB, tomo XXVI, p. 870-871, 1863.
156

de que tais escritos restariam guardados em local seguro – um cofre –, de onde só sairiam
após o falecimento de D. Pedro II.
A contrarreposta, desta vez, foi dada pelos sócios Manoel Ferreira Lagos e
Caetano Alves de Sousa Filgueiras. Segundo eles, a proposta continuava sendo a mesma
que já havia sido, por escrutínio, declarada inconsistente. Apesar de louvarem os “[...]
sentimentos patrióticos de seu autor”, desconsideravam as alterações feitas, indicando o
mesmo fim que seus colegas lhe haviam dado: o arquivamento68.
Notável é a insistência de Pinheiro de Campos em levar à frente a execução de seu
projeto. Não satisfeito em ouvir tantas negativas, começou, em julho daquele mesmo ano,
a ler um trabalho seu intitulado Bosquejo do atual reinado desde a declaração da
maioridade de Sua Majestade Imperial ou Apontamentos para a história do Brasil –
inegavelmente os Fastos sob nova roupagem69. Uma hipótese para entender tanta
obstinação é a de que ele já havia escrito boa parte dos comentários que comporiam a
obra, o que se depreende dessa leitura feita logo depois da censura da comissão de
história. E ela não foi a única: de 1863 a 1865, Pinheiro de Campos levou à frente em
várias sessões a leitura do Bosquejo – ora com o título mencionado acima, ora com o de
Fastos do feliz reinado do Sr. D. Pedro II70, caracterizando uma nada inconsciente
confusão.
Ao que tudo indica, os demais sócios simplesmente passaram a aceitar a atitude
de Pinheiro de Campos. A respeito dela, no entanto, não falavam muito. Prova disso foi
o tratamento dado ao Bosquejo nas páginas da Revista. Joaquim Caetano Fernandes
Pinheiro, por exemplo, ao abordar em seu relatório anual as atividades do Instituto
naqueles idos de 1863, chegou a comentar o trabalho de Pinheiro de Campos nos
seguintes termos: “A natureza do assunto e o temor que me acompanha de requeimar a

68
Ibidem, p. 971.
69
“Ata da sessão de 03 de julho de 1863”. RIHGB, tomo XXVI, p. 877, 1863. De acordo com Moraes e
Silva, bosquejo significava um “[...] primeiro debuxo, ou pintura, que não levou ainda a última mão, ou
retoque”. Antonio Moraes e Silva. Op. cit., p. 192.
70
“Ata da sessão de 04 de agosto de 1865”. RIHGB, tomo XXVIII (Parte Segunda), p. 300, 1865. Houve
a leitura do Bosquejo também nas sessões de 3 de julho e 4 de dezembro de 1863; 1º de julho, 5 de agosto
e 21 de outubro de 1864. Cf. RIHGB, tomo XXVI, p. 877 e 908, 1863; e RIHGB, tomo XXVII (Parte
Segunda), p. 367, 372 e 383, 1864.
157

pena na lava ardente de apreciação dos fatos contemporâneos, veda-me de aquilatar, como
devera, o trabalho do nosso ilustrado colega”71.
Posteriormente, na mesma exposição, lembrou que a proposta do sócio havia sido
avaliada e negada por critérios que levavam em conta “[...] os inconvenientes que
enxergava em constituir-se o Instituto contraste de fatos que por contemporâneos não
podem ser com imparcialidade julgados [...]”, e terminava propondo que fosse arquivada
a proposta do colega, recomendação esta por grande maioria adotada72.
No ano seguinte, adotando a mesma postura, Fernandes Pinheiro dizia somente
que
Prosseguiu o Sr. Dr. F. Pinheiro de Campos na leitura do seu Bosquejo
historico do reinado do Sr. D. Pedro II. Atuando ainda em meu espírito os
motivos de abstenção que a tal respeito guardei no precedente relatório, peço
vênia para sobre ele correr a cortina do silêncio 73.

Em 1865, como se tornara habitual, o secretário reforçava a impossibilidade de


tratar da empreitada de Pinheiro de Campos, que continuava sendo lida nas sessões. Mais
uma vez, argumentava com o fato de que “Razões imperiosas, que já submeti ao vosso
discernimento, impõem-me silêncio a respeito deste trabalho do nosso colega”74.
Também em 1871 apareceram notícias do Bosquejo, ainda que parcas. Em dezembro
daquele ano, ele constava na lista de trabalhos indicados para serem desenvolvidos no
ano seguinte75. Depois disso, porém, sumiram as menções ao projeto no periódico do
IHGB.
Por algum motivo, a teimosia de Pinheiro de Campos foi respeitada. No
manuscrito ofertado ao Instituto, o autor agradece a consideração de seus colegas em
aceitar a leitura do Bosquejo nas sessões da agremiação:
Semelhante deliberação do Instituto [refere-se ao arquivamento de suas
propostas], que muito respeito, e a maneira polida com que ela se houve,
conquanto não tivesse o poder de fazer esfriar o meu ardente desejo de ver
realizar a ideia amadurecida na conhecida inteligência do nosso ilustrado
consócio José Clemente Pereira [...], todavia entrariam em agraço [sic] e me

71
“Relatório do primeiro secretário o Sr. Cônego Doutor Joaquim Caetano Fernandes Pinheiro”. RIHGB,
tomo XXVI, p. 918, 1863.
72
Ibidem, p. 921.
73
“Relatório do primeiro secretário o Sr. Cônego Dr. J. C. Fernandes Pinheiro”. RIHGB, tomo XXVII
(Parte Segunda), p. 394, 1864.
74
“Relatório do primeiro secretário o Sr. Cônego Dr. J. C. Fernandes Pinheiro”. RIHGB, tomo XXVIII
(Parte Segunda), p. 334-335, 1865.
75
“Ata da sessão de 01 de dezembro de 1871”. RIHGB, tomo XXXIV (Parte Segunda), p. 351, 1871.
158

fariam desistir da empresa começada, se a mesma Comissão [de história] não


procurasse manter o meu direito de exibir em desencargo de consciência
perante o Instituto, como o faço agora, os meus apontamentos 76.

Apesar de não poder ter seus Faustos escritos e publicados sob a vênia do IHGB,
não deixou de dividir publicamente o que havia escrito com os demais membros do
grêmio. Como forma de protesto brando, o grupo se recusou a dar-lhe crédito pelo
trabalho. A este, conforme alegou Fernandes Pinheiro, só restava o silêncio – ainda que
um silêncio consciente e marcado para sempre nas páginas da Revista. Quem sabe
Pinheiro de Campos não foi ouvido e o grêmio não visava legar ao “galante homem” fazer
justiça ao seu esforço?

3.2 O presente que se tornou passado

Com o passar dos anos, aquilo que era considerado pelo IHGB presente ou
passado recente, e sobre o qual não era tolerado falar, tornou-se passado acabado77. Com
isto, muitos homens que atuaram nos acontecimentos já haviam comparecido perante o
tribunal da posteridade. Assim, a partir da década de 1850, uma série de artigos, memórias
e obras de cunho historiográfico foi publicada na Revista, cujo objeto referia-se aos
acontecimentos da primeira metade do século XIX. Notável foi a quantidade de menções
feitas a eventos como as rebeliões do período regencial a partir da época citada. Em menor
escala, foram feitas abordagens sobre a Revolução Pernambucana, a Independência, a
Confederação do Equador, entre outros tipos de motins, além da questão de fronteiras ou
sobre a diplomacia brasileira78, conforme se verifica nas tabelas abaixo79:

76
CAMPOS, Felizardo Pinheiro de. Bosquejo do atual reinado desde a declaração da maioridade de S.
M. I. [Manuscrito]. s/d. f. 01. Arquivo do IHGB, Rio de Janeiro, Brasil. Ref. Lata 03 – Pasta 18.
77
Para a compreensão do presente como fim do passado, ver ARAUJO, Valdei Lopes de. A experiência
do tempo: conceitos e narrativas na formação nacional brasileira (1813-1845). São Paulo: Aderaldo &
Rothschild, 2008, p. 154-155.
78
Vale comentar que não serão trabalhados neste tópico todos os assuntos contidos nas tabelas
apresentadas. Foram escolhidas para análise as temáticas da Revolução Pernambucana e da
Independência – que aparecem na Revista principalmente sob a forma de fontes primárias publicadas –, e
das revoltas do período regencial (incluindo a Farroupilha).
79
A lista completa dos trabalhos referidos nas tabelas acima encontra-se nos “Anexos”.
159

Tabela 1
Memórias históricas publicadas na Revista do IHGB (1850-1889)
TEMAS Década de 1850 Década de 1860 Década de 1870 Década de 1880
Revolução Pernambucana (1817) I I
Independência (1822) I III
Confederação do Equador (1824) I
Período Regencial (1831-1840) VII VII
Maioridade (1840) I I
Farroupilha (1835-1845) I
Outras rebeliões IV I
Questão de fronteiras / diplomacia I I

Tabela 2
Crônicas ou outros tipos de gêneros publicados na Revista do IHGB (1850-1889)
TEMAS Década de 1850 Década de 1860 Década de 1870 Década de 1880
Revolução Pernambucana (1817)
Independência (1822) I
Confederação do Equador (1824)
Período Regencial (1831-1840) I
Maioridade (1840)
Farroupilha (1835-1845)
Outras rebeliões
Questão de fronteiras / diplomacia I

A exposição que se segue buscará demonstrar que a esmagadora maioria das


publicações mencionadas nas tabelas pode ser caracterizada, sobretudo, como subsídios
para a construção de uma história futura sobre os eventos do início do século. Nota-se,
neste caso, o aparecimento de uma quantidade expressiva de memórias baseadas em
documentos inéditos sobre os temas daquele período na Revista.
Outro grupo de publicações foi, sem dúvida, ainda mais constante nas páginas do
periódico: o de documentos que deviam atuar como fontes primárias em trabalhos
posteriores. Muitos deles haviam sido guardados sob a mais sigilosa proteção por anos a
fio, até que o IHGB se encarregasse de defini-los como resquícios de um outro tempo –
do presente que se tornou passado.
160

3.2.1 A Revolução Pernambucana

Quando José Ignácio de Abreu e Lima teve seu pedido censurado em 1839 muito
estava em jogo. O entendimento de que a Revolução de 1817 fazia parte do passado
recente brasileiro definiu por décadas a forma de o IHGB tratar aquele acontecimento.
Isso explica, inclusive, a inexistência de comentários a respeito da doação, feita em 1841
por ninguém menos que Januário da Cunha Barbosa, da primeira edição da obra de
Francisco Muniz Tavares, História da Revolução de Pernambuco de 181780. O silêncio
sobre o referido trabalho perdurou por anos e anos.
Assim, no mais das vezes, o tratamento aplicado a 1817 era o sigilo. Apenas em
1848 começaram a surgir parcas informações sobre a rebelião na Revista. De início, elas
apareceram, na realidade, em forma de apelo à busca de fontes para a escrita futura da
história sobre a Revolução. Em resposta, ainda que timidamente, foram feitas doações de
documentos e estudos sobre o evento, como foi o caso da coleção das defesas dos réus da
rebelião, da Nobliarchia Pernambucana e do opúsculo Guerra civil, ou sedições de
Pernambuco: exemplo memorável aos vindouros, conforme tratado no capítulo anterior.
Adotando o tratamento dado a documentos considerados problemáticos por trazer
à tona questões mal resolvidas, todas essas doações seguiram para os arquivos do IHGB.
Somente em 1853 uma delas mereceu destaque nas páginas da Revista: o manuscrito da
Guerra civil ou sedições de Pernambuco, doado ao Instituto em 1849 por Caetano Lopes
de Moura e de autor desconhecido, ganhou sua versão datilografada81. Podia, a partir de
então, ser lido Brasil e mundo afora.

80
“Ata da sessão (extraordinária) de 25 de novembro de 1841”. RIHGB, tomo III, p. 503, 1841.
81
Quando da publicação na Revista, indica-se o nome de Filipe Lopes Neto como aquele que teria
ofertado o manuscrito. O comentário sobre a doação na ata da sessão de 1849, contudo, referia-se a
Caetano Lopes de Moura como o remetente. A confusão foi desfeita em 1920, quando Estevão Porto
enviou uma carta ao IHGB perguntando quem teria feito a remessa. Segundo o diretor do Instituto, foi
Caetano Lopes de Moura o responsável pelo envio do documento ao imperador diretamente da Europa.
Na realidade, Felipe Netto obteve posteriormente o manuscrito e sua cópia, que ofereceu ao IHGB, em
1853. Cf. “Ata da 207ª sessão em 21 de junho de 1849”. RIHGB, tomo XII, p. 287, 1849; RIHGB, tomo
XVI, 1853, p. 5-132; e “Carta de Estevão Porto ao IHGB sobre o manuscrito – Guerra Civil, ou Sedição
de Pernambuco, e oferecido ao Instituto pelo Imperador D. Pedro II”. Arquivo do IHGB, Rio de Janeiro,
Brasil. 1920. Ref.: 16,2,10. Sobre o conteúdo do manuscrito, Lucia Guimarães o entende como favorável
ao governo do Rio de Janeiro. Ver da autora: “Entre a monarquia e a república: a Revolução
Pernambucana de 1817 e suas representações no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro”. In: LESSA,
Mônica; FONSECA, Silvia Carla (Orgs.). Entre a monarquia e a república: imprensa, pensamento
político e historiografia (1822-1889). Rio de Janeiro: EdUERJ, 2008, p. 155.
161

Uma verdadeira avalanche de textos publicados no periódico do Instituto sobre a


rebelião ocorreu na década seguinte. Não por acaso, aqueles foram tempos de extrema
consternação dentro da agremiação, devido ao alto número de perdas de sócios. Muitos
deles estiveram envolvidos direta ou indiretamente nos acontecimentos de 1817, como
foi o caso de Manoel do Monte Rodrigues de Araújo, homenageado no discurso proferido
por Joaquim Manuel de Macedo:
O jovem Manoel do Monte não tomou parte nesse movimento político [a
Revolução Pernambucana]; acompanhou-o porém em espírito, como ele
mesmo dizia, e formou votos pelo seu triunfo; havia naquela revolução um
sentimento decididamente nacional que despertava as simpatias dos
pernambucanos; religioso estudante não podia ser indiferente a ele; porque a
pátria é o céu do coração, como o céu é a pátria das almas dos justos 82.

A principal justificativa para censurar documentos ou trabalhos sobre os fatos


ocorridos em 1817 perdia sua razão de ser. Aos poucos, toda uma geração que havia
presenciado e/ou atuado naquele acontecimento desaparecia. A Revolução Pernambucana
passava, então, lentamente, ao tribunal da história.
Nesse contexto, o primeiro trabalho elaborado dentro dos portões do IHGB, por
assim dizer, saiu à luz. Aparentemente uma crítica ao livro de monsenhor Muniz Tavares,
“Luís do Rego e a posteridade. Estudo Histórico sobre a Revolução Pernambucana de
1817”, de autoria de Joaquim Fernandes Pinheiro, à época 1º secretário da instituição,
constava das páginas da Revista de 1861. O texto, uma forma de homenagear o major
nomeado por D. João VI para reprimir a rebelião pernambucana, inaugurava uma
verdadeira leva de publicações sobre 1817 – sobretudo de documentos – no periódico da
instituição e ditava também o tom a ser adotado pelo Instituto em suas análises posteriores
sobre o evento.
Curioso notar que o próprio autor da memória foi o responsável por avaliá-la na
sessão aniversária daquele ano. Fernandes Pinheiro, em seu relatório, comentava sobre o
trabalho a que se dedicou para a escrita de “Luís do Rego e a posteridade”, elaborado a
partir da crítica de fontes legítimas por ele selecionadas. Seriam elas
[...] valiosos documentos com que a benignidade do governo imperial e a
solicitude de um prestante amigo me haviam honrado, examinei, estreme de
cor política, alheio às recriminações ou vindictas, e com a imparcialidade de
que Tácito prezava-se de guardar para com a memória de Othon ou de Vitellio,
essa época de nós mais arredada pela transformação das ideias do que pelo
lapso do tempo83.

82
“Discurso do orador o Sr. Dr. Joaquim Manuel de Macedo”. RIHGB, tomo XXVI, p. 938, 1863.

“Relatório do primeiro secretário cônego Dr. Joaquim Caetano Fernandes Pinheiro”. RIHGB, tomo
83

XXIV, p. 775, 1861.


162

Aparentemente, aquele ano de 1861 ainda era considerado próximo dos eventos
pernambucanos. O autor da memória e do relatório pareceu querer se justificar por
escrever tal trabalho, indicando que, apesar de a rebelião não estar suficientemente
distante em relação ao tempo de escrita, o estava pela “transformação das ideias”. Vale
notar nesse caso o contexto em que Pinheiro produzira tais comentários. Naquela época,
o país já se consolidara como uma nação forte, una e indivisível – sob o comando do
imperador. Comentar a respeito de uma tentativa de separação provincial com o
estabelecimento de um governo republicano já não era motivo para maiores temores.
No ano seguinte, em 1862, era fundado o Instituto Arqueológico e Geográfico de
Pernambuco (IAGP), também conhecido como o Leão do Norte. Ao mesmo tempo em
que essa fundação fortalecia alguns objetivos instituídos pelo IHGB desde seu início84,
deixava transparecer a constituição de uma história regional, na qual os fatos nacionais
passaram a ser narrados a partir de outra perspectiva, menos centralista e unitária que a
produzida na Corte85. O primeiro presidente do IAGP foi Muniz Tavares, um dos grandes
incentivadores do projeto. A nomeação se deu como forma de deferência por sua
participação no movimento de 1817, fato que já demonstra clara discrepância entre a
instituição pernambucana e a localizada no Rio de Janeiro no tratamento conferido ao
evento.
Também em 1862, o IHGB publicava as “Atas da Câmara do Crato de 11 de maio
de 1817 até 27 de janeiro de 1823”, uma descrição das atividades da Câmara no contexto
do movimento de 181786. Em 1864, Fernandes Pinheiro, assim como Macedo, elaborou
a biografia de Manoel do Monte, nascido na província de Pernambuco, “guarida de nossas
liberdades”87. Explicava, a respeito da Revolução de 1817, seu papel de “precursora da

84
Refiro-me à proposta de estabelecimento de sucursais em outras províncias. GUIMARÃES, Lucia.
“IHGB”. In: VAINFAS, Ronaldo (Dir.). Dicionário do Brasil imperial (1822-1889). Rio de Janeiro:
Objetiva, 2002, p. 381.
85
MELLO, Evaldo Cabral de. Rubro Veio: o imaginário da restauração pernambucana. Rio de Janeiro:
Topbooks, 1997, p. 68.
86
“Atas da Câmara do Crato de 11 de maio de 1817 até 27 de janeiro de 1823”. RIHGB, tomo XXV, p.
43-61, 1862.
87
PINHEIRO, Joaquim Caetano Fernandes. “D. Manoel do Monte Rodrigues de Araujo, Bispo do Rio de
Janeiro, Conde de Irajá”. RIHGB, tomo XXVII (Parte Segunda), p. 194, 1864.
163

nossa emancipação política”, o que já havia sido comentado em seu estudo sobre Luís do
Rego.
Além disso, a rebelião, segundo essa ótica, foi causada por uma reação ao
elemento português, além do crescimento das ideias liberais “propagadas pelas lojas
maçônicas”88. Curioso perceber que, ao contrário do que havia dito três anos antes, em
1864 já se considerava que tais fatos pertenciam ao “domínio da história”89.
Nos anos que se seguiram, foi ainda mais intensa a publicação de enxertos sobre
1817. Em 1866 eram publicados na Revista os “Documentos sobre a revolução
pernambucana de 1817” e os “Novos documentos sobre a administração de Luiz do Rego
em Pernambuco”, ambos copiados de outros existentes no Arquivo Público90. No ano
seguinte era a vez da publicação de “Outros documentos sobre a Revolução
Pernambucana de 1817 e sobre a administração de Luiz do Rego” e “Documentos para a
História da Revolução de 1817 em Pernambuco – Interrogatórios mais importantes
extraídos do processo existente no Arquivo Público”91. Em 1868 a Revista saiu com nova
lista de interrogatórios dos réus da Revolução92.
Foi grande, portanto, o espaço reservado no periódico para a publicação de
subsídios sobre a Revolução de 1817 na década de 1860. Aquele foi o tempo também da
elaboração de “Luís do Rego e a posteridade”, que estimulou a ideia de que o movimento
pernambucano inaugurou o processo que culminaria na Independência do Brasil93. N’ “A
Confederação do Equador”, de autoria de Antonio Pereira Pinto, a mesma noção era
reiterada: “A revolução de 1817, nós o cremos, era a revolução do Ipiranga, era o grito da
independência”94. A esse despeito, verifica-se que, em grande parte das vezes, a intenção

88
Ibidem, p. 196.
89
Ibidem, p. 197.
90
RIHGB, tomo XXIX (Parte Primeira), p. 201-292 e p. 293-334, 1866.
91
RIHGB, tomo XXX (Parte Primeira), p. 75-189 e p. 357-500, 1867.
92
RIHGB, tomo XXXI (Parte Primeira), p. 213-264, 1868.
93
Essa ideia já se apresentava no texto de Muniz Tavares. A esse respeito, retornarei no próximo capítulo.
Importante notar, contudo, que a associação entre 1817 e 1822 ganhará força impar na instituição após a
comemoração do centenário da Revolução, em 1917, a partir das apresentações de Afonso Celso e
Barbosa Lima. GUIMARÃES, Lucia. Op. cit., 2008, p. 159; cf. BARRA, Sérgio da Silva. “A
historiografia de 1817: uma perspectiva comparada”. Anais o 3º Seminário Nacional de História da
Historiografia: aprender com a história? Ouro Preto: Edufop, 2009.
94
Nesse trabalho, Pereira Pinto tentou, entre outros aspectos, discordar daqueles que viam a natureza da
rebelião de 1817 como republicana. Ver: “A Confederação do Equador. Notícia histórica sobre a
Revolução Pernambucana de 1824”. RIHGB, tomo XXIX (Parte Segunda), p. 43, 1866.
164

ao trazer à tona tais documentos era de desqualificar o movimento como algo de


importância apenas local95.
Os anos de 1870 foram menos profícuos para a publicidade da Revolução
Pernambucana na Revista. Os “Documentos para a História da Revolução do Ceará em
1817” estiveram presentes nas edições de 1874 e de 1875 e se apresentaram como
registros da expansão da rebelião para uma das províncias próximas96. Apareceram
transcrições pequenas sobre a Revolução através da narrativa de sócios falecidos.
Macedo, por exemplo, ao homenagear Felix Peixoto de Brito comentava a participação
do sócio nos acontecimentos da rebelião, descrita como “inoportuna”, “romanesca”,
oriunda das “academias” e das sociedades secretas, mas que, no final das contas, “[...]
teve ao menos a grandeza de uma ideia política”97.
Nos anos seguintes, pareceu cessar o interesse pela revolta na publicação do
IHGB. Muito mais digna de nota para os sócios da agremiação era tratar da Guerra do
Paraguai ou, na década seguinte, da abolição da escravatura. 1817, ao menos na Revista,
era posto de lado naqueles anos finais do regime monárquico. Fora do IHGB, contudo,
permaneceu sendo matéria de destaque. Não por acaso, nova edição da História da
Revolução de Pernambuco de 1817 apareceu em 1884, sob a supervisão de Maximiano
Lopes Machado, através do IAGP. A tentativa de Lopes Machado era de, claramente,
reabilitar a obra de Muniz Tavares contra as interpretações negativas que já estavam em
vias de se tornar canônicas entre estudiosos do evento. Referia-se às duras críticas feitas
por nomes como Francisco Adolpho de Varnhagen e João Manuel Pereira da Silva, cujas
obras, respectivamente, História Geral do Brasil e História da Fundação do Império
brasileiro, trataram de denegrir tanto a rebelião, quanto o trabalho sobre ela feito por um
de seus participantes. Para esses autores, o movimento tinha sido apenas uma sublevação
localizada, na qual tanto os rebeldes, quanto a repercussão de suas atuações eram vistos
sem importância alguma no contexto político da época98.

95
GUIMARÃES, Lucia. Op. cit., 2008, p. 155.
96
RIHGB, tomos XXXVII e XXXVIII (Parte Primeira), p. 123-194, 1874; p. 153-220, 1875.
97
“Discurso do orador o Sr. Dr. Joaquim Manuel de Macedo”. RIHGB, tomo XLI (Parte Segunda), p.
474, 1878.
98
GUIMARÃES, Lucia. Op. cit., 2008, p. 155-156.
165

Maximiano Lopes de Machado, além de membro atuante do IHGB naqueles anos,


foi destaque no Leão do Norte. No ano anterior à publicação da edição renovada da obra
de Muniz Tavares – da qual não apenas foi o editor, mas também o responsável por
escrever uma introdução e notas ao trabalho – publicou na revista do IAGP o artigo
intitulado “Ideia geral de Pernambuco em 1817”, que fazia parte da série Revoluções do
Brasil99. Responsável pela fundação do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano
(1905), Lopes Machado escreveu ainda uma História da Província da Paraíba, que só
saiu publicada em 1912. Foi um homem, portanto, interessado em incentivar a produção
intelectual de narrativas sobre a história da região mais ao norte do Brasil da qual a
Revolução de 1817 era parte tão essencial. É sintomático que, apesar de ter feito parte do
IHGB por tanto tempo, não ter sido através dele que levou à frente tais intenções.
O empreendimento de Lopes Machado surtiu efeitos. A obra de Muniz Tavares,
reeditada sob sua supervisão, começou a ganhar maior terreno e a contrabalançar as
demais análises sobre 1817. Um comentário de Tristão de Alencar Araripe, publicado na
Revista de 1885, ilustra um pouco essa situação. Ao criticar alguns pontos do trabalho de
Pereira da Silva, indicava que essas incorreções também se deviam ao fato de seu autor
não ter utilizado o texto de Muniz Tavares, um excelente subsídio para se compreender a
Revolução Pernambucana:
Admira, que na exposição de alguns fatos o Sr. Dr. Pereira da Silva se afaste
do sentimento geral e do modo porque os contam ainda hoje testemunhas
presenciais; e tanto mais é de admirar esse desvio, quando o autor tinha em
vistas a excelente e mui preciosa obra de monsenhor Muniz Tavares, sobre a
revolução de 1817. [...]
Muitos dos fatos, narrados pelo sincero historiador de 1817, temos ouvido
referir por contemporâneos, pela mesma forma por que ele os conta 100.

É válido destacar que a interpretação de Muniz Tavares sobre 1817 arrecadou


maior notoriedade após o advento do regime republicano. A nova edição de seu livro
revista por Oliveira Lima, em 1917, coroou a reabilitação da obra perante a historiografia,
inclusive no IHGB. A comemoração do centenário da Revolução Pernambucana dentro
da agremiação, por sua vez, indicava outro tipo de reabilitação: a do próprio movimento
como mito de origem do Brasil independente e, concomitantemente, da República101.

99
Para uma biografia mais detalhada de Maximiano Lopes Machado, consultar:
<http://www.ihgp.net/memorial6.htm>. Acesso em: 12 set. 2013.
100
ARARIPE, Tristão de Alencar. “Independência no Maranhão”. RIHGB, tomo XLVIII (Parte Segunda),
p. 177, 1885. Sobre este trabalho de Araripe retornaremos mais adiante.
101
GUIMARÃES, Lucia. Op. cit., 2008, p. 157-159.
166

3.2.2 A Independência

Como tratado no capítulo anterior, a Independência foi alvo de discussão desde o


primeiro ano de existência do Instituto. Isso não quer dizer, contudo, que naquela época
conseguiu ser objeto de análises de cunho histórico. Falar sobre 1822 ainda era, na
primeira década do IHGB, aludir a um passado recente, fora do domínio da história. O
interesse pela Independência se manifestava, então, em avaliar como este evento devia
ser tratado pela historiografia no momento em que isso se tornasse oportuno – o que
aconteceu a partir da década de 1850.
Joaquim Manuel de Macedo, em seu relatório de 1856, ao tratar sobre a doação
do livro Le Brésil, de Charles Reybaud, apontava que o estudo possuía muitos pormenores
sobre a atualidade, o que bastava para que ele se abstivesse de “[...] avançar qualquer
juízo na intenção de apreciar o [...] livro”102. A tal despeito, julgou ser conveniente
comentar de forma detida a parte relativa à Independência na obra, que “[...] podia já ser
discutida sem que disso se ressentisse a prudência”103. Além disso, Macedo indicava certo
fenômeno que se assemelha ao que Reinhart Koselleck nomeou de “aceleração do
tempo”104. Nas palavras do 1º secretário do IHGB,
É verdade que [d]a nossa regeneração política pode-se dizer um fato ainda
contemporâneo; mas como pensa um grande escritor, “não há mais história
contemporânea, o dito de ontem parece já bem longe abismado na sombra do
passado. As perspectivas recuam quando a grandeza e a multidão dos objetos
e dos acontecimentos se interpõem entre o olhar e a memória” 105.

O tempo, em sua análise, tornou-se de tal modo fluído e acelerado, que o que antes
era considerado presente, rapidamente já deixara de sê-lo. Isto justificaria o fato de a
Independência poder ser considerada, naquele tempo, parte da história. Resta saber se
Macedo concordava totalmente com essa assertiva, ou se ela só possuía legitimidade ao

102
“Relatório do 1º. Secretário o Sr. Dr. Joaquim Manuel de Macedo”. RIHGB, tomo XIX (Suplemento),
p. 107, 1856.
103
Ibidem, p. 107.
104
KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de
Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006, p. 37.
105
“Relatório do 1º. Secretário o Sr. Dr. Joaquim Manuel de Macedo”. RIHGB, tomo XIX (Suplemento),
p. 107, 1856.
167

tratar sobre os eventos de 1822, já que para outras situações, como foi visto, ele foi
ferrenho opositor da escrita da história contemporânea106.
O primeiro trabalho publicado na Revista sobre os eventos relacionados à
Independência apareceu em 1859. De autoria de Felipe José Pereira Leal, se constituía
em uma memória sobre os acontecimentos que tiveram lugar no Pará nos anos de 1822 e
1823. Tratava-se, portanto, de uma análise sobre a repercussão da emancipação política
na parte norte do país, que, de modo geral, ainda se encontrava na ocasião “obediente” a
Portugal107.
No mesmo ano, o periódico publicava a “Correspondência relativa aos sucessos
dados em Portugal, e no Brasil, de 1822-1823”108, dando continuidade à produção de
fontes para o estudo do movimento de Independência. Em 1874, com a mesma motivação,
o Instituto levava à publicidade uma série de documentos intitulada “Independência do
Império do Brasil. Descrição dos fatos de Marinha, que se deram desde que se projetou a
Independência do Império do Brasil, até o final da luta”109.
Também em 1874 saiu publicada na Revista uma espécie de crônica assinada pelo
cônego Fernandes Pinheiro que tinha como mote os momentos que anteciparam o
processo de Independência. Naquele momento, cerca de meio século havia se passado
desde o evento e, com ele, duas gerações se haviam sucedido. Já era chegado o tempo de
verificar aqueles acontecimentos perante o tribunal da história: “É, pois, tempo de
liquidarmos a verdade e de fazermos cabal justiça a quem for de direito (sue cuique

106
Macedo seguiu, então, sua avaliação sobre a parte do texto de Reybaud que tratava sobre a
Independência. Comentou sobre algumas inexatidões, “[...] desculpáveis em um escritor estrangeiro [...]”,
sobretudo no que dizia respeito à forma como descrevia os irmãos Andradas e o padre Diogo Antonio
Feijó, entre outros pormenores. Dizia ele: “[...] contentar-nos-emos, porém, com a simples menção de que
o sr. Reybaud foi de uma severidade bem sensível e às vezes injusto no juízo que faz dos três ilustres
irmãos Andradas; que não acertou quando diz que José Bonifácio e Martim Francisco tinham assento na
constituinte portuguesa, e aí defendiam com Antonio Carlos a causa da independência do Brasil. Desses
três distintos Brasileiros só o último, como todos sabemos, esteve naquela constituinte; mas esse era
como Platão, valia uma assembleia inteira; naquelas lutas ardentes do parlamento Antonio Carlos era, em
esforço e valentia, como os paladinos de Tasso e de Ariosto.
O sr. Reybaud é ainda inexato quando trata do padre Diogo Antonio Feijó, e expondo os seus relevantes
serviços confunde o regente com o ministro”. Ibidem, p. 107-108.
107
“Memória pelo Sr. Phelippe José Pereira Leal sobre os acontecimentos políticos que tiveram lugar no
Pará em 1822-1823”. RIHGB, tomo XXII, p. 161-200, 1859.
108
RIHGB, tomo XXII, p. 413-439, 1859.
109
RIHGB, tomo XXXVII (Parte Primeira), p. 195-212, 1874.
168

tribuere)”110. De modo geral, comentava a respeito de alguns eventos que foram


responsáveis pelo processo que culminou na Independência: a Revolução Francesa, por
ele descrita como “[...] o choque elétrico que despertou do seu secular letargo os
timoneiros políticos descuidosos do futuro, e levando o baixel do Estado a soçobrar de
encontro aos recifes e parceis dos ódios e descontentamentos”111, o Vintismo português112
e a não aceitação de retorno para Portugal do príncipe regente, dando vitória para os
desejos do “partido brasileiro”113.
O cônego, refletindo sobre seu próprio trabalho, indicava no relatório daquele ano
que, ao “rastrear” as causas para o Fico, acabou encontrando “[...] uma série de
movimentos revolucionários, que pensei poder caracterizar com o título de Motins
políticos e militares do Rio de Janeiro”114. O referido esboço teve como guia a
correspondência inédita “[...] do abalizado publicista Silvestre Pinheiro Ferreira” 115, a
mesma que havia sido doada ao Instituto muitos anos antes e que seria publicada no
periódico da agremiação na década de 1880116.
Em outros momentos, os associados voltavam a mencionar os fatos de 1822 como
próximos temporalmente, indicando que o papel da instituição naquele momento ainda
era o de organizar os dados sobre o acontecimento para que os historiadores do futuro por
ele se responsabilizassem. Exemplo disso foi o parecer feito pela comissão de admissão
de sócios em 1877 a respeito da tentativa de José Maria Latino Coelho adentrar o grêmio.

110
PINHEIRO, Joaquim Caetano Fernandes. “Motins políticos e militares no Rio de Janeiro. Prelúdios da
Independência do Brasil”. RIHGB, tomo XXXVII (Parte Segunda), p. 341, 1874.
111
Ibidem, p. 341.
112
Refiro-me ao descontentamento dos portugueses devido a seu papel secundário dentro do Império após
a vinda da família real para o Brasil em 1808, que deu origem a uma série de movimentos de cunho
liberal na década de 1820 em Lisboa e no Porto. SOUZA, Iara Lis Carvalho. “D. João e as vicissitudes do
Reino”. _____. Pátria Coroada: o Brasil como corpo político autônomo (1780-1831). São Paulo:
UNESP, 1998, p. 39-90.
113
PINHEIRO, Joaquim Caetano Fernandes. Op. cit., p. 363-364, 1874.
114
“Relatório do primeiro secretário o Sr. Cônego Dr. J. C. Fernandes Pinheiro”. RIHGB, tomo XXXVII
(Parte Segunda), p. 460-461, 1874.
115
Ibidem, p. 460-461.
116
GUIMARÃES, Lucia. Op. cit., p. 519, 1995. As “Cartas sobre a revolução do Brasil pelo conselheiro
Silvestre Pinheiro Ferreira” apareceram na Revista de 1888. Em nota, explicava-se que “Estas memórias
compreendem três cadernos de cartas autografadas de Silvestre Pinheiro Ferreira a um seu amigo. Dois
cadernos com cópias conferidas e numeradas, e os pareceres autógrafos dos ministros Conde de Palmela,
Ignacio da Costa Quintela e conselheiro Thomaz Antonio de Villanova Portugal, e outros documentos
importantes”. RIHGB, tomo LI (Parte Primeira), p. 239-378, 1888.
169

Para tal, Coelho enviou ao Instituto seu trabalho intitulado Elogio Histórico de José
Bonifácio de Andrada e Silva, que, como a comissão o caracterizou, não se tratava apenas
de uma biografia de Bonifácio, mas de uma “[...] página brilhante da história de duas
nações irmãs, em uma quadra difícil e melindrosa, grave e complicada [...]”. Era, portanto,
um trabalho historiográfico, escrito em conformidade com uma das maiores qualidades
do historiador moderno: a imparcialidade, “[...] que só tem na mente a justiça, por norte
a verdade, e por objeto o fato que se propõe a narrar ou a esclarecer”. Segundo Olegário
de Aquino e Castro e Joaquim Nabuco de Araújo, autores do parecer, o Elogio Histórico
de José Bonifácio de Andrada e Silva reunia como atributo, além da busca pela verdade,
a correta forma de contá-la117.
O parecer, positivo em relação ao trabalho apresentado por Latino Coelho,
consequentemente conduziu à sua admissão como sócio do IHGB118. Entretanto, após
indicar todos os pontos de destaque do opúsculo, a comissão admitia que ainda era cedo
“[...] para pronunciar-se a última palavra sobre assuntos que se prendem à nossa história
política em tempos de tão agitadas comoções [...]”. A solução, nesse caso, era que a
geração contemporânea atuasse como “obreiros do porvir”, preparando os subsídios “[...]
para o soberbo monumento da história da nossa pátria”119. Mais uma vez a máxima do
“tribunal da posteridade” era clamada para cuidar da história recente da nação brasileira,
ainda que ela não fosse tão recente assim.
Nota-se, portanto, que a forma como os escritos sobre a Independência eram feitos
revelava se eles poderiam ser considerados subsídios para os futuros estudiosos do tema,
ou trabalhos históricos. Aparentemente, a linha que definia esses dois polos era tênue e
dependia muito da avaliação feita pelos sócios do Instituto. Sobre o caso citado acima,
não fica clara a opinião definitiva da comissão de admissão de sócios: por um lado, tratou
o texto de Coelho como um trabalho histórico sobre o período da Independência, através
da análise da trajetória de José Bonifácio; por outro, o entendeu como documento para
ser utilizado pela posteridade a fim de estabelecer as “verdades” sobre os fatos, tendo em

117
“Ata da sessão de 26 de outubro de 1877”. RIHGB, tomo XL (Parte Segunda), p. 514-515, 1877.
118
O que, de fato, ocorreu na sessão de 09 de novembro de 1877.
119
De acordo com o parecer, “A nós cabe a missão de honrar a memória dos grandes homens; à
posteridade o encargo de julgá-los”. “Ata da sessão de 26 de outubro de 1877”. RIHGB, tomo XL (Parte
Segunda), p. 519-520, 1877.
170

vista que, naquele momento, isso ainda não era possível. Apesar dessas opiniões de certo
modo conflitantes a respeito do trabalho de Coelho, sua aceitação fora inegável.

Na década de 1880, dois trabalhos sobre a Independência saíram impressos na


Revista, sendo que um deles foi publicado repetidamente: “O Dia 28 de Julho. Uma
página da História do Maranhão”, de Cézar Augusto Marques. A primeira edição deste
estudo foi feita no periódico de 1884 e a segunda no de 1886 120. Os textos tratavam do
período pós-Independência na província do Maranhão, que ainda se encontrava sujeita à
Constituição portuguesa. As análises sobre os fatos que compõem a memória são
intercaladas com documentos. Entre outros aspectos, o autor buscava diminuir a
importância de Lord Cochrane nos acontecimentos maranhenses.
Importante perceber que, para Cézar Marques, os eventos do ano de 1822 já
haviam comparecido junto ao tribunal da posteridade:
Já são passados muitos anos... Já houve tempo de sobra para o arrefecimento
de ódios e paixões políticas...
Muitos, ou melhor, quase todos esses heróis, quase todos esses combatentes
em arraiais contrários, já gozam o descanso do túmulo.
Para eles raiou a posteridade, que lhes fará justiça, [...] pois que a lousa do
sepulcro é o crisol da verdade, o escudo onde se embotam as espadas dos
nossos inimigos, por mais pequeninos e mesquinhos que sejam, e finalmente a
taça onde se mirram os lábios da calúnia por mais negra e calculada 121.

Tristão de Alencar Araripe122 argumentou sobre o mesmo tema, em um texto


publicado na Revista de 1885. Em “Independência no Maranhão”, assim como Marques,

120
Poucas são as diferenças entre as duas edições. Uma delas diz respeito ao fato de o autor tentar
diminuir – e praticamente anular, diga-se de passagem – a atuação de Lord Cochrane no apoio do
Maranhão à emancipação política brasileira. Na primeira versão, de 1884, Cézar Marques dizia que o
Lord “[...] em coisa alguma concorreu para essa gloriosa página da História do Maranhão”. Já na
seguinte, de 1886, esta frase simplesmente desaparecera. Cochrane ainda era visto por Marques como de
pouca importância para os acontecimentos, mas não mais era negada a ele a evidência de que participara
dos acontecimentos. Apesar de o autor não dar muita notoriedade ao Lord no que dizia respeito ao
Maranhão, o fez tendo em vista a emancipação política em outras províncias. RIHGB, tomos XLVII e
XLVII (Parte Segunda), p. 246-247, 1884; p. 301-310, 1886.
121
MARQUES, Cézar Augusto. Op. cit., p. 246-247, 1884.
122
Tristão de Alencar Araripe nasceu na cidade de Icó, no Ceará, em 1821, e faleceu no Rio de Janeiro
em 1908. Formado pela Faculdade de Direito de São Paulo, em 1845, participou ativamente da vida
política do Segundo Reinado. Membro do Partido Conservador, foi eleito para diversas legislaturas na
Assembleia Geral como representante do Ceará. Foi também chefe de polícia no Espírito Santo, ministro
do Supremo Tribunal de Justiça do Império, conselheiro do Imperador, presidente da província do Rio
Grande do Sul e do Pará. Pertenceu à Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro e, em 1870, foi eleito
sócio-correspondente do IHGB, passando a sócio honorário em 1888 e sócio benemérito em 1898. Dentre
sua vasta publicação, destacam-se os títulos referentes à legislação civil e penal, assim como artigos e
análises de obras publicadas, e obras de cunho historiográfico. Ver: IHGB. Dicionário de historiadores,
geógrafos e antropólogos brasileiros. Rio de Janeiro: O Instituto, 1993, vol. 4, p. 15-16.
171

evidenciava que a região já estava em vias de apoiar o Império do Brasil quando Lord
Cochrane apareceu na província. Em suas palavras, a chegada do almirante fora um
“acidente” e ocorreu no momento em que o Maranhão “[...] já estava na comunhão do
império”123. O fato de ter sido agraciado com o título de marquês do Maranhão por D.
Pedro I não queria dizer que o governante considerava o Lord responsável pela
independência daquela província. Para Araripe, essa foi a forma encontrada pelo
imperador para reconhecer outros serviços prestados pelo almirante ao longo do processo
de emancipação política do país.
Para elaborar sua análise, ele indicou duas obras sobre os referidos acontecimentos
às quais iria se contrapor. A primeira era a narrativa escrita pelo próprio Lord Cochrane
publicada em 1859, na qual este indicava ter sido a independência no Maranhão concluída
mais por um golpe de astúcia do que pela proeza militar: ao chegar na região, o almirante,
com apenas um navio, aportou e revelou às autoridades portuguesas que lá se
encontravam que o seu exército estava pronto, contando com um grande número de
embarcações de guerra para tomar o Maranhão, como tinha sido feito com a Bahia. Assim,
através desse blefe, não tinha sido necessária a guerra para garantir o lugar da província
no Império do Brasil124.
A segunda obra era a de João Manuel Pereira da Silva125, História da Fundação
do Império do Brasil. Segundo Araripe, seu autor não foi feliz ao tratar dos
acontecimentos em terras maranhenses, sobretudo por ter se pautado justamente na
narrativa de Lord Cochrane. Uma série de incongruências foi apontada por Araripe,
partindo do princípio de que Pereira da Silva deveria ter criticado mais os escritos de
Cochrane, no sentido de corrigir muitas de suas assertivas. Reiterava, de modo

123
ARARIPE, Tristão de Alencar. Op. cit., p. 160, 1885.
124
Ibidem, p. 160.
125
João Manuel Pereira da Silva (1817-1898) nasceu em Iguaçu, filho de um negociante português.
Cursou a faculdade de direito em Paris. Nessa época, escreveu artigos para a revista Nichteroy. Foi
deputado provincial e geral pelo Partido Conservador, além de senador e Conselheiro do Império.
Escreveu alguns trabalhos ficcionais, mas, sem dúvida, tornou-se mais conhecido pelos não-ficcionais,
como o Parnaso Brasileiro, o Plutarco Brasileiro e os Varões ilustres do Brasil durante os tempos
coloniais. Como historiador, além da História da Fundação do Império do Brasil, em sete tomos,
produziu e publicou outros estudos com a temática do tempo recente, como o Segundo período do
Reinado de Dom Pedro I no Brasil e a História do Brasil de 1831 a 1840. Foi um dos fundadores da
Academia Brasileira de Letras e sócio do IHGB. Faleceu em Paris. Para a biografia de Pereira da Silva,
ver o site da Academia Brasileira de Letras, disponível em:
<http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=671&sid=313>. Acesso em: 02 jan.
2015.
172

semelhante a Cézar Marques que, quando da chegada de Lord Cochrane ao Maranhão, só


a capital desta província e Alcântara ainda não tinham aderido à causa da independência.
A vitória dos independentes deveu-se aos cearenses e piauienses, que colaboraram com a
luta no Maranhão, e aos próprios maranhenses, não ao Lord Cochrane126.
Em anexo, Araripe expôs alguns documentos, inclusive uma carta endereçada a
Pereira da Silva na qual indicava os erros cometidos pelo autor no emblemático livro que
estava sendo utilizado, inclusive, pela mocidade brasileira. Havia assistido aos exames
finais no Colégio Pedro II, na qualidade de delegado imperial, e notou que um dos alunos
examinados indicou que a “[...] aquisição do Maranhão para a causa da independência
nacional” devia-se ao Lord Cochrane127. Já que essa informação não constava das Lições
de História do Brasil, o manual de história usado na instituição de ensino escrito por
Joaquim Manuel de Macedo, Araripe concluiu que o aluno só podia ter se orientado pela
obra de Pereira da Silva128. Tal fato merecia destaque, pois, de acordo com Araripe, a
mocidade brasileira estava desconhecendo os fatos tal como eles realmente ocorreram.
Desmistificar a atuação de Lord Cochrane naquela ocasião para evitar que outros
brasileiros fossem contaminados com o erro em que incorrera Pereira da Silva foi,
inclusive, o motivo que levou o autor a escrever sua memória sobre o dia 28 de julho no
Maranhão129. Por fim, Araripe anexou também uma lista em que corrigia os erros contidos
na obra de Pereira da Silva. Na realidade, esta parte já havia sido publicada em 1863, sob
o título de “Retificações Históricas” – cuja motivação residia no fato da grande
quantidade de “[...] inexatidões de nome de personagens históricos, e equívocos ou
descuidos de narração [...]” no texto daquele autor130.

126
ARARIPE, Tristão de Alencar. Op. cit., p. 162-163, 1885. Ceará e Piauí já haviam sido incorporados
ao Império brasileiro. No caso do Piauí, interessante perceber na narrativa de Araripe a importância
conferida ao seu pai, Tristão Gonçalves de Alencar Araripe, nos eventos que culminariam no “[...] bom
êxito da empresa”. Ibidem, p. 164.
127
Ibidem, p. 169-170. A carta é datada de 19 de novembro de 1872.
128
Ibidem, p. 170-171. Nas palavras de Araripe: “O sapiente mestre, autor desse compêndio (Dr. Joaquim
M. de Macedo) refere singelamente o fato, escrevendo apenas: ‘Lord Cochrane navegou para o
Maranhão, onde fez-lhe a junta provisória imediatamente entrega da praça, e aderiu à causa da
independência’ [...] Com efeito o autor da História da fundação do império do Brasil narra o
acontecimento da proclamação da independência no Maranhão de forma tal que baseia a opinião
proferida no exame.
É V. Ex. o escritor dessa obra, tão conhecida e apreciada entre nós, tão rica de fatos e tão abundante de
crítica; mas nem por isso deixa ela de oferecer passagens carecedoras de retificação”.
129
Ibidem, p. 171.
130
Ibidem, p. 173.
173

Esses extratos reforçam a perspectiva depreciativa que havia em relação à obra de


Pereira da Silva, que foi um dos únicos a consagrar esforços ao estudo do Brasil
independente ainda durante o século XIX. O sucesso editorial de sua grandiosa História
da Fundação do Império do Brasil esbarrou na má receptividade que ela teve no ambiente
letrado da época. O autor, pode-se dizer, foi vítima de suas escolhas, pelo fato de ter
selecionado tratar da história do reinado de D. Pedro I no decurso do de seu sucessor131.
Isso explica o porquê de sua obra não ter recebido enfoque positivo no IHGB, à excessão
de um comentário elogioso feito pelo cônego Fernandes Pinheiro ao primeiro volume, em
1864132.
Outro sócio, Conrad Jacob Niemeyer, escreveu uma pequena memória ao IHGB,
apontando, em 1872, algumas imprecisões que Pereira da Silva cometeu em seu trabalho
intitulado Segundo período do Reinado de Dom Pedro I no Brasil (1871), cuja matéria
era a mesma do segundo tomo da História da Fundação do Império do Brasil133. É de ser
esperar que tais trabalhos provocassem os ânimos de muitos contemporâneos, pois eles
retratavam aquela época de maneira extremamente crítica, justamente no momento em
que D. Pedro II inaugurava uma estátua equestre em homenagem a seu pai, numa tentativa
simbólica de restaurar a sua imagem. Provavelmente, qualquer obra que se dispusesse a
depreciá-lo em tal contexto seria taxativamente condenada134.
De um modo geral, Pereira da Silva nunca chegou a ser reconhecido como um
bom historiador. João Capistrano Honório de Abreu, já no período republicano,
reclamava sobre a falta de rigor científico (e a demasiada “imaginação literária”) daquela
obra que se propunha a ser uma história do Primeiro Reinado135. Em comparação, a
História da Independência do Brasil, escrita por Francisco Adopho de Varnhagen, teve
outro tipo de acolhida pelo IHGB.

131
ENDERS, Armelle. “João Pereira da Silva, Francisco Adolfo de Varnhagen et les malheurs de
l’histoire moderne du Brésil”. Revista de História (ed. especial), p. 118, 2010. Segundo a autora, a
História da Fundação do Império do Brasil foi, incontestavelmente, um dos principais best-sellers do
Segundo Reinado.
132
Ibidem, p. 121.
133
Ibidem, p. 121. Ao menos o recorte cronológico era o mesmo nas duas obras.
134
Ibidem, p. 123.
135
Ibidem, p. 121-122. Outro crítico voraz de Pereira da Silva, fora do IHGB, foi Prezalindo Lery dos
Santos, que, em 1880, indicou que o autor não soube guardar, mesmo escrevendo alguns anos depois
daquilo que relatava, “[...] a imparcialidade e a frieza de historiador diante de acontecimentos que se
passaram em uma época de efervescência política em que as paixões tudo cegavam”.
174

Vale comentar, ainda que brevemente, sobre a trajetória desse trabalho, por
motivos que ficarão claros a seguir. Parte das análises sobre os acontecimentos de 1822
já faziam parte da primeira edição da História Geral do Brasil, finalizada em 1857.
Inclusive, a intenção inicial do autor era de que a narrativa se esticasse até 1825, ano de
nascimento de D. Pedro II. No entanto, a partir da segunda edição do texto, publicada em
1877, foram suprimidas as passagens finais, que se referiam propriamente à nossa
emancipação política136. Esse tema só voltou a ser explorado pelo escritor na sua história
sobre os anos de 1821 e 1822, impressa postumamente na Revista do IHGB de 1916. A
análise histórica de tais fatos era uma tarefa demasiadamente “espinhosa” para sair à luz
tão prematuramente137. Quem indicou essa dificuldade foi o próprio Varnhagen, ao final
da primeira tiragem de seu trabalho mais conhecido:
A história geral dos primeiros anos do império [...] não a poderíamos nós por
enquanto escrever tão conscienciosamente, como desejáramos; não só porque
as contemplações e resguardos que se devem aos vivos pediriam uma redação
que não ataria bem com a imparcialidade que guardamos pelo passado, como
porque os documentos e correspondências dos estadistas que nessa época
figuraram só agora começaram a ser dadas ao prelo. De trinta e três anos é a
vida de uma geração; e por conseguinte, enquanto não passem outros trinta e
três, a história daqueles primeiros é história contemporânea, que por si própria
se extrema da história geral da civilização do país138.

136
Temístocles Cézar demonstra uma série de modificações feitas na segunda edição da obra. Segundo
ele, em grande parte das vezes, Varnhagen buscou não apenas corrigir os erros da primeira edição, mas
também retirar marcas de subjetividade mais visíveis no texto. Ver: “Em nome do pai, mas não do
patriarca: ensaio sobre os limites da imparcialidade na obra de Varnhagen”. História, São Paulo, v. 24, n.
2, p. 218, 2005. É substancial a mudança na parte final do livro: onde na primeira edição constavam os
acontecimentos do ano de 1822, na segunda restavam comentários sobre 1820 e uma passagem em que
Varnhagen assegurava que a escrita da sua História da Independência já havia sido efetivada. Em suas
palavras, “Essa nossa História da Independência já se acha escrita, e será publicada apenas consigamos
elucidar algumas poucas dúvidas que ainda temos. [...]”. VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História
Geral do Brazil. Tomo II (2ª ed.). Rio de Janeiro: E. & H. Laemmert, 1877, p. 1200.
137
GUIMARÃES, Lucia. Op. cit., p. 571, 1995. Varnhagen faleceu em 1878. Esse texto foi produzido por
ele na década de 1870, quando vivia em Viena. Cf. GUIMARÃES, Manoel. Op. cit., 2011, p. 195.
138
VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História Geral do Brazil. Tomo II (1ª ed.). Rio de Janeiro: E. &
H. Laemmert, 1857, p. 442. Na Introdução da História da Independência do Brasil, o autor comentava
uma vez mais as dificuldades em analisar época tão complexa da nossa história e antecipava, de certo
modo, a ideia de uma possível publicação póstuma: “Nunca nos passou pela mente a ideia da audaz
empresa de escrever uma História especial da Independência, e muito menos ainda a de publicá-la em
vida, depois de havermos, por vários motivos, abandonado o projeto, que chegáramos a conceber, de
esboçar em grandes traços certa crônica que devia abranger sua época. [...] Não desconhecemos que o
simples título desta obra revela tão grande responsabilidade, não só para o Brasil como para com
Portugal, e que, escrita com o amor à verdade que nela nos guiou, acima de todas as considerações
humanas, como deve ser escrita toda história que aspira a passar à posteridade, não será provavelmente
agora tão bem recebida, como o seria uma espécie de novo memorandum justificando só os direitos de
uma das partes contendoras. O autor, porém, propôs-se a escrever uma história e não a adular ou lisonjear
os sentimentos ou prevenções de uns, nem de outros, nem por considerações com os descendentes vivos,
embora poderosos, de uma a outra parte, tratou de calar censuras, quando as julgou cabidas e justas”. Cf.
VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História da Independência do Brasil até o reconhecimento pela
antiga metrópole, compreendendo, separadamente, a dos sucessos ocorridos em algumas províncias até
essa data. Brasília: Senado Federal, 2010, p. 11-12.
175

Curioso observar as diferenças entre as duas composições que se propunham a


analisar a Independência do Brasil. Enquanto Pereira da Silva publicou os sete tomos de
sua História da Fundação do Império do Brasil na década de 1860 e não poupou críticas
a D. Pedro I, Varnhagen, que não viu sua obra impressa, foi mais benevolente com o
monarca; os alvos de suas críticas mais tenazes não foram outros que não os irmãos
Andrada e Silva, sobretudo José Bonifácio139. Além disso, diferentemente do primeiro
autor, que usava principalmente testemunhas oculares anônimas como fonte – o que lhe
rendeu outra leva de críticas –, o historiador sorocabano citava seus testemunhos,
inclusive quando se referia a si próprio140.
Ademais, a História da Independência do Brasil, permaneceu reclusa por um
tempo determinado, até certo ponto, em função dos próprios temores de seu autor141, ao
passo que Pereira da Silva teve seu trabalho proscrito em várias situações pela instituição
histórica mais importante do Império. Varnhagen sequer passou pelo constrangimento de
ver seu estudo avaliado e/ou censurado, porque ele só foi impresso muitos anos depois de
sua morte. Por conseguinte, o intervalo que separou o tempo de escrita do tempo de
publicação isolou ainda mais o período narrado no território do passado; quase um século
já havia transcorrido entre os eventos descritos no livro e o presente.
Se o oitocentos primou por uma história que ressaltava a construção nacional, esta
não podia ser ainda a da Independência. O foco recaía sobre o “berço da nação”, o período

139
ENDERS, Armelle. Op. cit., p. 124, 2010.
140
Ibidem, p. 125 e p. 128. Importa comentar também, nesse caso, que o fato de Varnhagen ter sido
testemunha ocular adquiria um caráter de prova. A experiência tornava-se garantia de verdade,
comprovação cabal do relato que estava sendo feito. TIBURSKI, Eliete. Escrita da história e tempo
presente no Brasil oitocentista. 2011. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, Porto Alegre, 2011, p. 118 e p. 136. Varnhagen usou testemunhos de muitos sócios do
IHGB, inclusive o de Januário da Cunha Barbosa. “Essa consciência da pluralidade de interpretações de
um mesmo evento é um dos grandes estímulos para sua historicização. Afinal, pela narrativa era possível
alinhar um número variado de representações sem necessariamente confrontá-las”. Cf. ARAUJO, Valdei
Lopes de. Op. cit., 2008, p. 182.
141
Os papeis manuscritos foram encontrados no arquivo do Barão do Rio-Branco e enviados ao Conde de
Afonso Celso, então presidente do IHGB, por Lauro Muller, em maio de 1916. Não se sabe ao certo
porque Varnhagen evitou a publicação do trabalho – se ele realmente optou pela não publicação, ou se ela
não ocorreu devido a situações para além de seu controle. Estima-se apenas que, após sua morte, a
História da Independência do Brasil tenha ficado um tempo em posse da viúva. Cf. VARNHAGEN,
Francisco Adolfo de. “Historia da Independencia do Brasil, ate ao reconhecimento pela antiga metrópole,
comprehendendo, separadamente, a dos successos occorridos em algumas províncias ate essa data”.
RIHGB, tomo LXXIX (Parte I), p. 7 e p. 11, 1917 [1916].
176

colonial142, conquanto o IHGB, a partir dos anos de 1850, começasse a construir o


arcabouço para a história contemporânea, que incluía a fundação do Império brasileiro.

3.2.3 As rebeliões do período regencial e a Farroupilha

Ainda mais espinhoso era tratar do conturbado período regencial. Por décadas, o
IHGB recusou tal tarefa, assumindo sempre que necessária a máxima de que o futuro dela
se encarregaria. Da mesma forma que os exemplos anteriores, movimentos como a
Sabinada, a Cabanada e a Farroupilha ganharam espaço na Revista a partir da década de
1850. Imperioso reiterar, contudo, que, além de citado em trabalhos de cunho biográfico,
tais como elogios fúnebres ou apontamentos biográficos de sócios falecidos, pouco se
comentou a respeito do período regencial na Revista. Essa situação pode ser verificada
até, pelo menos, a década de 1870, quando surgiram estudos mais aprofundados sobre
tais assuntos.
Um dos responsáveis mais imediatos por essa transformação foi, sem dúvida,
Moreira de Azevedo143. Ao longo dos anos, pode-se conferir a ele a autoria de nove
trabalhos relacionados aos anos entre 1831 e 1840. Tanto foi assim que, em 1874, o
cônego Fernandes Pinheiro já atribuía a ele a elaboração de “[...] substanciosos estudos
relativos ao proceloso período, durante o qual o cetro adamantino era empunhado por
mãos infantis”144.
O primeiro deles foi publicado na Revista de 1871, tendo por título “Sedição
militar na Ilha das Cobras em 1831”. Nele, Azevedo examinou a atuação dos partidos

142
ENDERS, Armelle. Op. cit., p. 128, 2010.
143
Moreira de Azevedo (1832-1903) nasceu em Itaboraí. Estudou no Colégio Pedro II, o que lhe garantiu
o diploma de bacharel em Letras. Trabalhou na mesma instituição, como professor da cadeira de História
Antiga, entre os anos de 1863 e 1888, quando acabou jubilado por motivo de doença. Foi 1º secretário do
IHGB por cerca de 20 anos. Publicou inúmeros artigos literários e historiográficos, sobretudo na Revista,
como será visto, além de obras como: O Rio de Janeiro, sua história, monumentos e homens notáveis, Os
franceses no Brasil, Mozaico brasileiro, História Pátria, Brasil de 1831 a 1840 e Compendio de história
antiga. Faleceu no Rio de Janeiro. Ver: “Discurso do orador do Instituto Desembargador Antonio Ferreira
de Souza Pitanga”. RIHGB, tomo LXVI (Parte Segunda), p. 341-342, 1903.
144
“Relatório do primeiro secretário o Sr. Cônego Dr. J. C. Fernandes Pinheiro”. RIHGB, tomo XXXVII
(Parte Segunda), p. 458-459, 1874.
177

políticos e da imprensa periódica145, entre outros aspectos, naquele evento, que foi um de
muitos que se seguiram à Abdicação de D. Pedro I. Segundo o autor, a sedição da Ilha de
Cobras não foi um simples movimento de soldados amotinados, mas sim uma grande
conspiração tramada “contra a lei e a pátria”. Felizmente, ainda em suas palavras, “a
prontidão e civismo dos cidadãos” puseram fim à revolta, salvando a pátria da “anarquia,
do despotismo e da guerra civil”146.
Em 1873, “Os tiros no Teatro. Motim popular no Rio de Janeiro”, que tinha por
tema o “desastroso” acontecimento do dia 28 de setembro de 1831 no Teatro de S. Pedro,
saiu na Revista. No momento em que se apresentava o drama O Estatutário, houve um
grande tumulto fora do teatro, provocado a partir de uma discussão entre um tenente e um
oficial do estado-maior, Antonio Caetano e Paiva, respectivamente. Este último,
português de nascimento, queria prender o primeiro, o que foi interpretado pela população
insurgente como prisão de um nacional por um “estrangeiro”147.
A condenação de Azevedo recaía sobre o ódio, muitas vezes descabido, entre as
facções, fato demonstrado pela forma como narrou a interpretação dos editoriais de
Saturnino de Sousa e Oliveira nos jornais Nova Luz e Jurujuba sobre os revoltosos na
ocasião. Segundo os insurgentes, Saturnino era considerado aliado aos portugueses, ao
que Azevedo se opunha:
De feito mostrou-se esse cidadão prudente e firme nessa noite de confusão e
desordem, soube sustentar a dignidade de seu cargo, sem abusar da força que
estava sob seu comando; não foi além dos seus deveres, conservou-se nos
limites da lei, e conseguiu restabelecer a ordem e o sossego 148.

Essa maneira de encarar o movimento rendeu elogios dentro do Instituto. O


cônego Fernandes Pinheiro, no relatório anual, indicava o trabalho de Moreira de
Azevedo como imune de “exageração partidária”, focalizando os fatos sob o prisma de
nada além da verdade – conseguida através de uma “exuberância de provas”. Aplaudia
igualmente a forma como narrou a atuação de Saturnino de Sousa e Oliveira e as injustiças

145
“Relatório do primeiro secretário o Sr. Cônego Dr. J. C. Fernandes Pinheiro”. RIHGB, tomo XXXIV
(Parte Segunda), p. 393, 1871.

AZEVEDO, Manoel Duarte Moreira de. “Sedição militar na Ilha das Cobras em 1831”. RIHGB, tomo
146

XXXIV (Parte Segunda), p. 292, 1871.


147
Idem. “Os tiros no Teatro. Motim popular no Rio de Janeiro”. RIHGB, tomo XXXVI (Parte Segunda),
p. 352-353, 1873.
148
Ibidem, p. 357-358.
178

por ele sofridas. Por fim, concluía que “Para tão honroso empenho, fio, terá o nosso
instituto trazido copiosíssimo [sic] cabedal”149.
No ano seguinte, era a vez de nova série de trabalhos sobre os momentos que se
seguiram à Abdicação. “Sedição militar de Julho de 1831” e “Motim político de 3 de
Abril de 1832 no Rio de Janeiro” acompanharam a trilha dos trabalhos anteriores,
buscando analisar os acontecimentos daqueles anos infaustos. A primeira memória tinha
como tema o papel da imprensa a partir do final do reinado de D. Pedro I. As agitações
políticas, em grande parte estimuladas pela própria, faziam com que os jornais se
transmutassem em pasquins, “[...] e substituíam aos argumentos as injúrias, aos
raciocínios os insultos; invés de educar a imprensa pervertia o povo, e não assemelhava-
se à pomba da Arca de Noé, mas à cruz de fogo dos escoceses, que sempre anunciava
destruição e sangue”150. Também a atuação da força militar era criticada, posto que,
“indisciplinada e arrogante”, ao “[...] invés de garantir os cidadãos debelava-os; já não
era um elemento de ordem, um sustentáculo da lei, mas um corpo anárquico que alçava a
cabeça logo que havia um motim, quando não era o primeiro a atear o facho da
revolução”151.
A grande bandeira levantada pelos rebeldes era a do fim da regência e da
Assembleia Geral. Desejavam a Constituinte e a deportação dos supostos “inimigos da
nação”152, os quais não foram nomeados por Moreira de Azevedo. Apesar da confusão
generalizada, notável teria sido o patriotismo dos “bons cidadãos”, que reprovaram a
rebeldia dos soldados e os excessos do partido exaltado, aproximando-se da “causa da
lei” e tomando em armas para defender a pátria. Começava, então, o início do fim da
revolta. Quando a causa da legalidade saiu vencedora, ainda restavam alguns
“demagogos”, “[...] que ensaiavam as cenas que os comunistas deviam de representar em

149
“Relatório do primeiro secretário o Sr. Cônego Dr. J. C. Fernandes Pinheiro”. RIHGB, tomo XXXVI
(Parte Segunda), p. 614-615, 1873.
150
AZEVEDO, Manoel Duarte Moreira de. “Sedição militar de Julho de 1831 no Rio de Janeiro”.
RIHGB, tomo XXXVII (Parte Segunda), p. 179-180, 1874. Mais tarde, comentou: “Nesses dias de ódios,
de lutas intestinas, em que a imprensa representava distintamente os dois partidos que pugnavam na arena
pública, se os periódicos moderados louvavam os esforços do governo em prol da tranquilidade e
segurança social, os exaltados injuriavam seus adversários políticos, e arrastados pelas paixões e lutas
propunham medidas que nem sempre eram consentâneas com a razão e o direito”. Ibidem, p. 189.
151
Ibidem, p. 180.
152
Ibidem, p. 183-185.
179

nossos dias com mais horror e descaro [...]”153. O fim do conflito já era, contudo, uma
questão de tempo.
Já a segunda memória centrava-se no período de extrema agitação política após a
instauração da regência provisória. Por conta da oposição da Câmara dos deputados em
relação ao governo e pelas acirradas discussões que se deram em seu seio foi que a
rebelião tomou forma. Por tal motivo, a regência transmutou-se em permanente, o que
originou uma “maior conflagração de ideias e opiniões”154. Nesse contexto, constituíram-
se os dois partidos, moderado e exaltado. O primeiro, que buscava organizar a sociedade
defensora da independência nacional, tinha como nomes fortes os de Evaristo, Feijó,
Vasconcellos, Vergueiro, Lino Coutinho, entre outros155. Enquanto isso, o partido
exaltado lutava pela República. Nas palavras de Moreira de Azevedo, desejava
estabelecer uma
[...] nova organização política, chamava pela liberdade, mas não pela ordem;
não queria o termo da revolução; julgava que era preciso solapar e destruir tudo
para reorganizar uma nova ordem de coisas; alçava o facho da revolução em
todas as províncias, e criava a sociedade federal156.

Neste caso, interessa comentar, ainda que rapidamente, sobre a utilização do


conceito de revolução empreendida pelo autor. Tal como aponta Koselleck, este termo
sofreu mutações ao longo do tempo, no que diz respeito aos seus possíveis significados.
Para o caso francês e alemão, por ele trabalhados, sobretudo a partir da Revolução
Francesa, o conceito passou a compreender a noção de ruptura em relação a uma situação
anterior – aludindo à desordem, golpe ou guerra civil157. Até então, em linhas gerais,
configurava-se em um conceito mais ligado à astrologia: uma revolução significava um
movimento cíclico158. Relacionando o conceito à política, tinha-se, então, revolução como
restauração. Esse havia sido o caso, por exemplo, da Revolução Inglesa de 1640. O tempo
histórico, fechado em si mesmo, era passível de repetição. De acordo com essa concepção,

153
Ibidem, p. 188-189.

AZEVEDO, Manoel Duarte Moreira de. “Motim político de 3 de Abril de 1832 no Rio de Janeiro”.
154

RIHGB, tomo XXXVII (Parte Segunda), p. 368, 1874.


155
Ibidem, p. 368-369.
156
Ibidem, p. 369.

KOSELLECK, Reinhart. “Critérios históricos do conceito moderno de revolução”. In: _____. Op. cit.,
157

2006, p. 61.
158
Ibidem, p. 63.
180

“Todas as posições políticas permaneceram neutralizadas em conceito trans-histórico de


revolução”159. Assim, segundo Koselleck, 1789 inaugurou um novo entendimento para o
conceito. Se antes revolução compreendia uma volta ao passado, a partir de então
começava a designar um olhar em direção ao futuro. Além disso, devia ser entendido do
ponto de vista social: de política a revolução passava à emancipação de todos os homens
e à transformação da estrutura social160.
No mundo oitocentista luso-brasileiro, esta era uma questão ainda mais complexa.
Revolução passou a ser entendida em sentido moderno, denominando crises e rupturas
políticas, sobretudo após 1831161, ainda que continuasse a se conectar muito fortemente
às concepções de regeneração e reforma, no plano político, ou, ainda, com a acepção de
movimento da natureza e de visão astronômica. Outro fator curioso neste contexto é a
forte ligação do conceito à ligação divina e providencial162.
O trecho citado acima demonstra que Moreira de Azevedo entendia o conceito, ao
menos dentro da temática recortada para análise, a partir de sua acepção mais moderna.
Para ele, “revolução”, significava um rompimento com uma situação anterior: “era
preciso solapar e destruir tudo para reorganizar uma nova ordem de coisas”, tendo em
vista a inauguração de uma “sociedade federal”. Essa seria a intenção do partido exaltado,
que lutava pela liberdade “sem limites, as garantias sem termo”. Segundo Azevedo, a
despeito de os partidos terem se excedido em suas crenças (o exaltado mais do que o
moderado, vale notar), deverá o historiador reconhecer que “[...] de qualquer lado havia
homens de boa fé, que bem guiados se não entregariam ao frenesi das paixões, pois só
almejavam a felicidade da pátria”163.
Também naquele contexto, criou-se o partido caramuru que, ao lado dos
exaltados, tentou destituir o governo, em julho de 1831. O apaziguamento da situação

159
Ibidem, p. 65.
160
Ibidem, p. 71.
161
“[...] foi no momento da abdicação de Pedro I, em 7 de abril de 1831, que o conceito moderno de
revolução veio a integrar mais diretamente o vocabulário político brasileiro, passando a data a representar
para muitos a da verdadeira independência do Brasil. Rompia-se definitivamente com Portugal, pois
agora assumia um rei nascido e criado no Brasil”. NEVES, Lúcia Bastos das; NEVES, Guilherme Pereira
das. “Revolução – Brasil”. In: SEBÁSTIAN, Javier Fernández (org.). Dicionário Iberconceptos, v. 2. No
prelo.
162
Ibidem.
163
AZEVEDO, Manoel Duarte Moreira de. Op. cit., p. 369, 1874.
181

ocorreu apenas em 1833, com a lei de 8 de outubro, “[...] lei equitativa, sábia, que
reabilitou muitos cidadãos que haviam conspirado contra o regime legal na corte e nas
províncias”. Ao invés de usar a vingança, tornando os partidos irreconciliáveis, “[...]
pregou o perdão, a misericórdia para com os vencidos, e concorreu assim para acabar com
o período da agitação e desordem, e iniciar o da ordem e do sossego [...]”164.
As fontes utilizadas por Azevedo foram, além da imprensa, os testemunhos orais.
Estes, vistos na ocasião como mais seguros em relação aos jornais “apaixonados” de
então, foram citados pelo autor como de extrema importância para a construção do texto.
Em alguns momentos, o autor chegava a identificar no testemunho oral a principal prova
de sua argumentação. Por exemplo: “[...] acresce que todas as testemunhas do tempo, que
consultamos, asseveraram-nos ter sido o major Luiz Alves de Lima quem dirigiu a força
de permanentes”165.
Moreira de Azevedo foi o responsável pela escrita de mais quatro trabalhos
publicados na Revista sobre o período regencial, além de um que tinha como tema a
Maioridade e outro que tratava da Revolta Liberal mineira de 1842. Dentre os primeiros,
chama a atenção uma memória sobre a Sabinada, no contexto de produção de uma série
de estudos sobre o mesmo acontecimento no periódico entre 1882 e 1887166. Notável,
ainda, foi a oferta de Azevedo de sua História Pátria, o Brasil de 1831 a 1840, ao Instituto
em 1884 – quase uma compilação dos textos sobre os movimentos do período regencial
apresentados ao IHGB e publicados em sua Revista167.
De menos monta foi a produção de outros sócios do Instituto sobre os anos de
1831 a 1840. Da pena de Tristão de Alencar Araripe veio à luz duas memórias, uma sobre
a Cabanada e a outra sobre a Maioridade – além, evidentemente, do texto sobre a
Farroupilha, o qual será analisado mais adiante. A primeira não saiu publicada na Revista,

164
Ibidem, p. 381.
165
Ibidem, p. 375.
166
A citação recai sobre os trabalhos dos sócios Joaquim Pires Machado Portela e Augusto Vitorino
Alves do Sacramento Blake (ver “Anexo A”). Este tema será melhor descortinado adiante, em capítulo
subsequente.
167
“Ata da sessão de 27 de junho de 1884”. RIHGB, tomo XLVII (Parte Segunda), p. 562, 1884. Através
de uma primeira abordagem, percebe-se que a forma narrativa é um pouco diferente daquela que Moreira
de Azevedo costumava apresentar ao Instituto como memórias. AZEVEDO, Manoel Duarte Moreira de.
História Pátria, o Brasil de 1831 a 1840. Rio de Janeiro: Garnier, 1884. Ref. IHGB: 71.4.2.
182

muito embora tenha sido lida em pelo menos duas sessões promovidas pela agremiação.
Já a segunda fez parte do periódico no ano de 1881168.
Podem, ainda, ser citados os trabalhos de J. M. Pereira de Alencastre, Augusto
Marques e Balthazar da Silveira, cuja temática residia sobre a Balaiada169. Paulino
Nogueira tratou de outro movimento do período regencial, conhecido como a “Insurreição
do Crato”, que, com seu fim, levou à execução de Pinto Madeira, em novembro de
1834170.
Ainda próxima, a Farroupilha também rendeu comentários nas atas das sessões do
IHGB. Em 1854, o sócio Sebastião Ferreira Soares submeteu à apreciação do Instituto
alguns documentos relativos à rebelião no Rio Grande do Sul171, os quais demonstravam,
segundo a leitura feita, “[...] que a terminação da guerra fratricida naquela província,
dependia mais de meios brandos e conciliadores, do que de atos coercitivos [...]”, e que a
paz na região, apesar de ter sido perturbada por causa da “[...] prepotência dos delegados
do governo central [...]”, era almejada por todos os dissidentes172. Após o comentário feito
por Soares, os membros presentes na sessão indicaram que os documentos deveriam ser
arquivados e que o doador poderia apresentar suas conclusões sobre os mesmos em sessão
específica. Daí explicar-se a leitura ocorrida posteriormente das “Considerações sobre a
revolução Rio-Grandense e análise da carta oficial e itinerário militar do intitulado
ministro da guerra dos dissidentes, Manoel Lucas de Oliveira, dirigida ao conselheiro
Manoel Antonio Galvão” pelo mesmo sócio173.
Tanto a doação, quanto a consequente interpretação dos documentos feita por
Soares, foram comentadas por Joaquim Manuel de Macedo. No relatório daquele ano

168
“Ata da sessão de 07 de outubro de 1881”. RIHGB, tomo XLIV (Parte Segunda), p. 413, 1881; “Ata da
sessão de 27 de outubro de 1882”. RIHGB, tomo XLV (Parte Segunda), p. 475, 1882; e ARARIPE,
Tristão de Alencar. “Notícia sobre a Maioridade”. RIHGB, tomo XLIV (Parte Segunda), p. 167-210,
1881.
169
As referências completas dos trabalhos em questão encontram-se nos “Anexos”.
170
NOGUEIRA, Paulino. “Execução de Pinto Madeira perante a história”. RIHGB, tomo L (Parte
Primeira), p. 125-212, 1887.
171
Referia-se a “[...] um autógrafo do ofício do intitulado ministro da guerra da república de Piratiny,
Manoel Lucas de Oliveira, dirigido ao falecido ministro do império, Manoel Antonio de Galvão,
acompanhando um itinerário da campanha pacificadora do sr. marquês de Caxias, na província do Rio
Grande de S. Pedro do Sul, desde Dezembro de 1843 até ao ano de 1845 [...]”. “Ata da sessão do dia 25
de agosto de 1854”. RIHGB, tomo XVII, p. 600, 1854.
172
Ibidem, p. 601.
173
“Ata da sessão do dia 29 de setembro de 1854”. RIHGB, tomo XVII, p. 604, 1854.
183

social, o 1º secretário indicava que os escritos doados, apesar de elaborados com


escrupulosa imparcialidade, contraditoriamente ainda estavam prenhes de “prevenções e
espírito de partido”. Por esse motivo eles só podiam ter um destino: o “asilo seguro no
nosso arquivo”. Ainda assim, reconhecia como positivo o trabalho de Soares, que sujeitou
os referidos documentos à crítica, após tê-los enviado para serem acolhidos “sob os
cuidados da nossa associação”174.
Fazia-se necessário, acima de tudo, demonstrar como a clemência imperial fora
generosa com os rebeldes do sul. O fim da rebelião havia transformado “os súditos
dissidentes em fortes colunas do trono” e, por esse motivo, segundo Macedo, interessava
preparar a história que no futuro seria escrita sobre aquele acontecimento, que ora restava
esquecido. Para isso, o IHGB devia recolher os documentos, além de trabalhos impressos
ou manuscritos, que se debruçavam sobre a Farroupilha. No caso das anotações de Soares,
que traziam muitas revelações e esclarecimentos sobre “a luta fratricida no Rio Grande
do Sul”, elas seriam certamente utilizadas e comparadas com trabalhos do mesmo gênero
“algum dia”175. Por fim, Macedo indicava que a agremiação tomou o procedimento
padrão para esse tipo de situação: mandou guardar os documentos e a memória no arquivo
“[...] como costuma proceder sempre que se trata de questões contemporâneas de
semelhante natureza”176.
Aquele dia havia chegado. Na sessão de 22 de agosto de 1879, o conselheiro
Tristão de Alencar Araripe começou a ler parte de um trabalho seu, intitulado “Guerra
civil do Rio Grande do Sul”. Pedindo a palavra, alegou que por muito tempo havia
hesitado em apresentar esse trabalho ao grêmio “[...] desconfiando da insuficiência dele
e temendo ser enfadonha a leitura [...]”. A tal despeito, indicava que o mérito do estudo
residia não na análise propriamente dita, mas “[...] na coleção dos documentos que
formam a parte principal dele [...]”177. A composição do texto, apresentado como
memória, ia justamente naquela direção: estabelecia um determinado protocolo de leitura,

174
“Relatório do primeiro secretário o Dr. Joaquim Manuel de Macedo”. RIHGB, tomo XVII
(Suplemento), p. 18-19, 1854.
175
Ibidem, p. 35-36.
176
Ibidem, p. 36.
177
“Ata da sessão de 22 de agosto de 1879”. RIHGB, tomo XLII (Parte Segunda), p. 242, 1879.
184

no qual a análise empreendida tinha como função apresentar uma primeira reflexão sobre
as fontes relacionadas ao tema178.
A permissão para falar do evento, mais de trinta anos depois, inseria-se, então, em
outra ótica: da mesma forma que eram arquivados no IHGB os documentos sobre a
atualidade, os fatos deste momento eram selecionados para constar da história promovida
pelos homens do futuro. Em ambos os casos a preocupação se dava em função de
catalogar aquilo que seria trabalhado pelo tribunal da posteridade. Como apontava
Araripe,
Membro deste Instituto, corre-me a obrigação de satisfazer os encargos dos
nossos estatutos, que impõem-nos [sic] o dever de contribuir para o aumento
do cabedal que devemos preparar para os futuros escritores: quis eu por isso
começar a pagar o meu tributo; e se a complacência dos meus dignos consócios
convidar-me, prosseguirei em outras tentativas179.

Naquele primeiro momento, Araripe explicava como teve acesso à documentação:


“Visitando a secretaria da presidência do Rio Grande do Sul, [me] deparei com um livro
toscamente encadernado, que por curiosidade examinei”180. Ao passar à leitura do texto
citado, percebeu sua importância por conter o registro da correspondência da campanha
pelo general imperial que por último havia dirigido a guerra na região. Deu início, então,
à cópia da documentação e, posteriormente, à organização da mesma:
Despertou-me então o desejo de coordenar as cópias que tinha, e vendo-as
lacunosas no seguimento da correspondência deliberei completá-las. Para isso
examinei gazetas no arquivo público, e fui colhendo os documentos que
pareceram úteis para dar noção do acontecimento a que me tenho referido 181.

O resultado dessa empreitada era o trabalho que tinha em mãos na referida sessão,
o qual foi lido nela e seguidamente em sessões posteriores. A resposta do Instituto veio
algum tempo depois, em novembro daquele mesmo ano. O parecer indicava que o
trabalho apresentado por Araripe podia ser recomendado partindo apenas do nome de seu
autor, o que respaldava uma forte conotação retórica, reiterada pelo argumento de
autoridade182.

178
Cf. LAMB, Nayara Emerick. História de Farrapos: biografia, historiografia e cultura histórica no Rio
Grande do Sul oitocentista. 2012. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade do Estado do Rio
de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012, p. 49.
179
“Ata da sessão de 22 de agosto de 1879”. RIHGB, tomo XLII (Parte Segunda), p. 243, 1879.
180
Ibidem, p. 243.
181
Ibidem, p. 243.
182
“Ata da sessão de 07 de novembro de 1879”. RIHGB, tomo XLII (Parte Segunda), p. 302, 1879.
185

A obra era dividida em duas partes, uma expositiva e a outra documental. A


primeira narrava os acontecimentos daquele movimento político, a partir de três períodos
distintos, assim indicados pelos comentaristas do trabalho:
O primeiro é aquele em que o movimento manteve-se dentro da união nacional,
procurando os agitadores obter a reparação de apregoadas ofensas recebidas
do governo imperial, e de direitos que julgavam conculcados [sic], e que em
nome da província buscavam vindicar.
No segundo período os agitadores passaram à rebelião, rompendo o vínculo da
comunhão brasileira e proclamando o sistema republicano.
Durante o terceiro período a revolução decai e o governo central consegue
chamar os rebeldes ao grêmio do Império183.

Já a parte documental é constituída de peças públicas e particulares, de “notória


autenticidade”, as quais, dispostas por ordem de matérias e de datas, mostram a série dos
principais acontecimentos da revolução desde o seu começo em 20 de setembro de 1835
até seu fim, em 1º de março de 1845. A pretensão do autor em copiar toda essa quantidade
de documentação era a de que cada leitor poderia formar por si próprio um juízo sobre os
fatos e os protagonistas da rebelião184 – de preferência, seguindo a orientação proposta
por ele mesmo na memória.
Ainda segundo o parecer feito pelos sócios do IHGB, “Guerra civil do Rio Grande
do Sul” tinha tudo para se tornar “[...] um verdadeiro processo da revolução rio-
grandense”, através do qual o leitor poderia conhecer suas causas, a intenção dos seus
artífices e, finalmente, “[...] o esforço com que o governo central manteve a integridade
do Império”185. A publicação da obra ocorreu por partes na Revista, já na década de 1880.
Está contida em quatro edições do periódico186, três das quais relativas estritamente à
parte documental, o que demonstra novamente a preocupação de Araripe em, antes de
tudo, preparar o arcabouço de fontes sobre a Farroupilha. O trabalho, conforme
observado, obteve prestígio dentro do IHGB. Articulava-se facilmente com os ideais
empreendidos pela agremiação, da qual Araripe fazia parte de forma notória.

183
Ibidem, p. 302.
184
Ibidem, p. 302-303.
185
Ibidem, p. 303.

ARARIPE, Tristão. “Guerra Civil do Rio Grande do Sul. Memória acompanhada de documentos”.
186

RIHGB, tomo XLIII (Parte Segunda), p. 115-364, 1880; ____. “Guerra Civil do Rio Grande do Sul.
Memória acompanhada de documentos (Parte Documental)”. RIHGB, tomos XLV, XLVI e XLVII (Parte
Segunda), p. 33-236; p. 165-564; p. 47-237.
186

Fora da sede do Império, contudo, as reações à obra foram adversas. No Rio


Grande do Sul, principalmente, foram propagadas inúmeras críticas ao texto de Araripe,
como as de Carlos Von Koseritz, na Gazeta de Porto Alegre, segundo quem “Desde a
primeira até a última página do livro, ouve-se ali a voz da legalidade, esta voz, ainda
saturada das paixões do momento, injusta sempre, é frequentemente cruel para com os
rebeldes da Esparta do Sul”187. Como em outras situações, opiniões conflitantes
configuravam disputas pela memória de um momento-chave da história nacional. E o
IHGB permanecia fiel aos propósitos da monarquia ao respaldar a visão de Araripe de
que a Farroupilha carecia de motivações justas, ou mesmo de que a rebelião havia sido
imposta contra a vontade da própria população local por conta de interesses pessoais de
alguns caudilhos rio-grandenses188. Ajudava também a reforçar a ideia de que a
integridade nacional havia sido conseguida através de grande luta, possível apenas pelo
empenho das instituições imperiais189.

3.3 O presente sobre o qual era permitido tratar

3.3.1 A Guerra do Paraguai

Diferente do rotineiro, o IHGB tratou de opinar exaustivamente sobre a Guerra do


Paraguai no período em que esta transcorreu. Além das referências a ela feitas nas sessões
da agremiação, houve a leitura de memórias e outros trabalhos que tinham como objeto o
evento contemporâneo – tarefa levada a cabo até mesmo pelos sócios mais avessos ao
tratamento de fatos recentes, como Joaquim Manuel de Macedo. Diante do imperativo
político, os constrangimentos epistemológicos da disciplina histórica em relação ao

187
Citado em LAMB, Nayara Emerick. Op. cit., 2012, p. 49-50.
188
Ibidem, p. 50-51.
189
Ibidem, p. 53.
187

tempo presente pareceram sucumbir e o cotidiano da instituição acabou sendo fortemente


marcado em função do conflito bélico que teve início em 1864.
A intervenção do Brasil na guerra civil uruguaia190, negando a tentativa de
mediação estabelecida pelo Paraguai na ocasião, foi o estopim para o início da disputa na
região mais ao sul da América. Em novembro de 1864, o Paraguai declarava guerra ao
Brasil com a apreensão do navio Marquês de Olinda e com a invasão do Mato Grosso,
no mês seguinte. A mesma postura era direcionada à vizinha Argentina, que se recusou a
colaborar com a chegada dos paraguaios ao Rio Grande. Também ela teve suas terras
invadidas, em março de 1865.
Meses depois, Brasil, Argentina e Uruguai, após a vitória dos colorados, formaram
a Tríplice Aliança, cujas motivações eram, em linhas gerais, acabar com a ditadura de
Solano López, garantir o livre acesso fluvial na região e obter ganhos territoriais em favor
da Argentina e do Brasil. O conflito iniciado tomaria gigantescas proporções, pelo
altíssimo número de mortos ao longo dos quase seis anos em que perdurou e pelas suas
consequências, sobretudo no que diz respeito ao Brasil e ao Paraguai.
O IHGB, cuja parceria em relação ao governo imperial era inegável, encarregou-
se de dar todo o apoio à causa do Brasil. A primeira menção à Guerra foi feita numa
sessão em julho de 1865. Propunha-se que o Instituto nomeasse uma comissão para
apresentar ao imperador “[...] um voto de sincera gratidão pela resolução que tomou de
dirigir-se à província de S. Pedro do Sul, para com sua presença animar as operações de
guerra em que o Brasil se acha empenhado contra o Paraguai [...]”, ao mesmo tempo em
que manifestava o desejo da agremiação de ver “[...] coroada com a vitória a luta a que o
Império foi provocado”191.
A preocupação com a luta armada surtiu efeitos inclusive na produção da
instituição, como alertava o presidente Visconde de Sapucahy na sessão magna
aniversária ocorrida em dezembro daquele mesmo ano. A pouca quantidade de trabalhos

190
O Uruguai, na ocasião, vivia uma disputa política. De um lado, encontravam-se os blancos, então no
poder, que pretendiam adotar posição favorável à nacionalização das fronteiras, fato que prejudicava o
grande número de brasileiros residentes na região e a prática de circulação de gado e escravos entre os
dois países. De outro, estavam os colorados, apoiados pelos brasileiros e argentinos, que também tinham
interesses em afastar os blancos da cena política. Consultar verbete escrito por Ronaldo Vainfas sobre a
Guerra do Paraguai no Dicionário do Brasil imperial (1822-1889). Rio de Janeiro: Objetiva, 2002, p.
322-325; e IZECKSOHN, Vitor. “A Guerra do Paraguai”. In: GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo
(Orgs.). O Brasil Imperial, volume II: 1831-1870. 2ª edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011,
p. 385-424.
191
“Ata da sessão de 07 de julho de 1865”. RIHGB, tomo XXVIII (Parte Segunda), p. 287-288, 1865.
188

realizados pelos sócios se justificava pelos ânimos agitados desde o início do ano social,
por conta das “[...] deploráveis ocorrências nascidas da traiçoeira invasão do ditador do
Paraguai nas províncias do Mato Grosso e de S. Pedro do Rio Grande do Sul”. A calma
– necessidade básica para as criações literárias – não podia ser alcançada em tão
turbulento período192. Além da preocupação com as tropas brasileiras, havia outro motivo
para a anormal rotina da agremiação: a ausência de D. Pedro II, o “sol” que “aquecia e
dava cor às sessões”. O Imperador estava então cumprindo seu papel de voluntário
número um nas terras do sul193.
O Brasil vinha conseguindo algumas vitórias substanciais sobre o Paraguai, como
foi o caso da rendição de Uruguaiana, em setembro de 1865, e a vitória dos aliados na
batalha de Tuiuti, em março de 1866. Os membros do Instituto Histórico, alguns deles
presentes no campo de batalha, davam seu apoio também no plano acadêmico, através de
estudos que se debruçavam sobre o evento. Exemplo disso foi o de Joaquim Manuel de
Macedo que, em agosto de 1866, começou a leitura do trabalho intitulado Memória sobre
a Guerra do Paraguai no IHGB. Em pelo menos mais duas sessões, a leitura persistiu194.
A apresentação do dito trabalho, elaborado por tão notável sócio, repercutiu
positivamente no Instituto. O cônego Fernandes Pinheiro chegou a explicar o motivo que
levou Macedo a escrever uma memória sobre aqueles acontecimentos: eles jamais
deveriam ser esquecidos. Curioso observar que o mesmo Macedo responsável por tão
duras críticas à elaboração de formas de escrita sobre o presente pudesse criar uma obra
voltada ao Instituto que tratava da história contemporânea. E ela estava longe de constituir
uma crônica em que seria feita uma breve exposição dos fatos – o trabalho era algo bem
mais complexo, conforme indicava Fernandes Pinheiro:
Não penseis, porém, que o escrito do nosso ilustrado consócio seja uma pálida
crônica, uma árida exposição dos fatos; é uma narração viva e animada, uma
larga e suculenta discussão das causas e dos efeitos, uma escrupulosa análise

“Discurso do Presidente o Sr. Visconde de Sapucahy”. RIHGB, tomo XXVIII (Parte Segunda), p. 332,
192

1865.
193
Ibidem, p. 332. Ver também “Relatório do Primeiro Secretário o Sr. Dr. J. Caetano Fernandes
Pinheiro”. RIHGB, tomo XXVIII (Parte Segunda), p. 334, 1865: “[...] acontecimentos, porém,
extraordinários, e que todos conhecem e apreciam, privaram-nos por algum tempo da augusta presença do
nosso magnânimo protetor, que, ao ouvir os gemidos das vítimas de S. Borja, Itaqui e Uruguaiana, correra
à extremidade meridional do Império para castigar o audacioso e pérfido invasor”.
194
“Ata da sessão de 30 de agosto de 1866”. RIHGB, tomo XXIX (Parte Segunda), p. 350, 1866; “Ata da
sessão de 13 de setembro de 1866”. RIHGB, tomo XXIX (Parte Segunda), p. 353, 1866; e “Ata da sessão
de 11 de outubro de 1866”. RIHGB, tomo XXIX (Parte Segunda), p. 358, 1866.
189

dos erros e dos acertos, abrilhantado tudo com as graças daquele mimoso estilo
que todos lhe conhecemos e apreciamos195.

A escrita desse trabalho deve ser analisada sob o prisma do que representava a
Guerra do Paraguai naquele momento. Diferentemente das lutas políticas do período
regencial, por exemplo, o conflito configurava uma disputa externa. O inimigo não estava
dentro do Brasil, mas fora dele. Era, inclusive, visto como antagonista em suas escolhas
políticas e na sua apresentação como nação. As imagens criadas no período para
demonstrar a barbárie na qual viviam os paraguaios, comparada com a civilização
brasileira, sob a égide da monarquia, serviram muito bem ao propósito de legitimar um
discurso nacional196.
Ao contrário do período regencial, cujas rebeliões demonstravam a falta de coesão
em torno de um projeto comum a todo o Império brasileiro, a guerra inaugurada na década
de 1860 trazia visibilidade à própria integridade nacional e à união de esforços comuns
dentro do país. O medo que se tinha de trazer à tona questões das décadas de 1830 e 1840
na época próxima não tinha sua razão de ser naquele momento em relação à Guerra do
Paraguai. Talvez isso explique, em parte, o aparecimento de trabalhos sobre esse evento
no IHGB no período mesmo em que ele transcorria.
A unidade garantida pela adesão contra o inimigo comum pode ser verificada pela
frequência das manifestações populares durante o início do embate. O grande espaço
reservado às notícias da guerra nos jornais do país demonstra, inclusive, a consolidação
de um sentimento de patriotismo197. Não à toa que homens de vários cantos do país saíram
de suas províncias para lutar contra López. Ao menos no começo do conflito, a
mobilização para a luta fora surpreendente.

195
“Relatório do primeiro secretário o Sr. Cônego Dr. J. C. Fernandes Pinheiro”. RIHGB, tomo XXIX
(Parte Segunda), p. 436, 1866.
196
A associação do Paraguai com a barbárie se dera desde o início da Guerra, quando os jornais
brasileiros amplificavam a repulsa contra as ações dos paraguaios, enfatizando as atrocidades por eles
cometidas contra civis. Tais notícias, somadas aos discursos oficiais, colaboraram com a referida
associação. “O regime ditatorial de López, sua economia dirigida de forma centralizada e a composição
racial predominantemente indígena daquele país eram contrastadas à imagem do sistema político imperial
(simbolizada pela monarquia constitucional existente no império), a sua economia baseada na agricultura
de exportação e suas potencialidades demográficas. Tal visão reforçava a missão civilizatória do governo
imperial e o papel regenerador da Guerra do Paraguai”. IZECKSOHN, Vitor. Op. cit., 2011, p. 396-397.
197
Segundo Izecksohn, sociedades patrióticas foram espontaneamente criadas em todas as províncias para
coletas de donativos e organização de voluntários. Ibidem, p. 397.
190

Tal situação também se alterou com o tempo, apesar de o apoio do Instituto às


decisões do imperador, inclusive em relação à continuação da Guerra, permanecer
irrestrito198. Ainda naquele ano de 1866, as tropas brasileiras viram-se diante de alguns
desagradáveis acontecimentos. Em setembro, saíram derrotadas da batalha de Cuiupaiti,
no momento em que sua principal aliada, a Argentina, tinha suas forças divididas, por
conta de uma guerra civil interna.
Disputas políticas entre os comandantes militares também parecem ter dificultado
bastante a situação do Brasil. Com a designação do marquês de Caxias para o comando
das tropas, o liberal Manuel Marques de Sousa (barão de Porto Alegre), um dos principais
comandantes militares brasileiros, pediu exoneração ao ministro da Guerra. A presença
de Caxias naquele posto provocou mudanças inclusive na política imperial. Membro
influente do Partido Conservador, a sua liderança e as medidas por ele tomadas à frente
do exército acabaram por forçar rupturas na ação administrativa governamental, em parte,
conduziria à queda do gabinete progressista e à ascensão de um novo governo
conservador199.
1867 prometia ser mais um ano dedicado à Guerra do Paraguai. O conflito
persistia não apenas no front, como também nas páginas da Revista do IHGB. O novo
comentário foi feito uma vez mais pelo cônego Fernandes Pinheiro, que demarcava o
terceiro ano do conflito, incrivelmente descrito como “[...] um dos mais maravilhosos
espetáculos de que faça menção a história”. Os brasileiros, percebidos como um povo
pacífico e laborioso, foram feridos pelo déspota do Paraguai e, como não lhes coubesse
outra alternativa, acabaram por entrar na luta:
Ao reclamo da pátria trocou o lavrador seus inofensivos instrumentos pelas
mortíferas armas da guerra; deixou o artesão a oficina pelo acampamento;
fechou o estudante os livros para empunhar a espada, ou a escopeta; e o sábio,
interrompendo as cogitações do seu gabinete, foi pôr os segredos da ciência à
mercê do implacável mister de destruir os homens 200.

198
Para confrontar as distintas visões sobre a Guerra do Paraguai (dentro do IHGB e fora dele), ver o
trabalho de Tiago Araújo, A identidade nacional brasileira na Guerra do Paraguai (1864-1870). 2012.
Tese (Doutorado em História) – Universidade de Brasília, Brasília, 2012. Interessante a análise do autor
sobre as correspondências de Benjamin Constant à família, as quais faziam uma série de críticas ao
conflito e às lideranças brasileiras, sobretudo a Caxias, demonstrando que o apoio à causa brasileira não
era tão amplo como o IHGB desejava aparentar.
199
IZECKSOHN, Vitor. Op. cit., 2011, p. 408-411.
200
“Relatório do primeiro secretário o Cônego Dr. J. Caetano Fernandes Pinheiro”. RIHGB, tomo XXX
(Parte Segunda), p. 495, 1867.
191

O forte sentimento de união advindo do conflito era demonstrado pelo primeiro


secretário:
Fomos todos nós testemunhas do ardente entusiasmo com que milhares de
voluntários se alistaram nas bandeiras da honra, da nobre abnegação com que
imolaram nas aras do dever as mais caras afeições da alma, do inexcedível
denodo com que nos campos de batalha emularam com os mais legendários
heróis antigos e modernos201.

Indicava, ainda, que o intuito do Brasil ao protagonizar a peleja na parte meridional da


América não era dilatar as fronteiras à custa da derrota do inimigo, ou firmar um
“predomínio sobre seus vizinhos”, mas para vingar todas as humilhações já sofridas, “[...]
abater as muralhas dessa nova China” e franquear os rios, “que também são nossos”202.
Naquela mesma sessão aniversária, Macedo, como de costume relembrando os
mortos do Instituto, intuiu a necessidade também de comentar sobre o evento, que, afinal
de contas, já havia sido por ele investigado no ano anterior. Inclusive, justificava a
viabilidade de tratar da atual Guerra, demonstrando as finalidades do IHGB: “arquivar e
perpetuar os acontecimentos”203. Assim, silenciar sobre o conflito com o Paraguai não só
era algo irresponsável, como também incongruente com os princípios da própria
instituição. É interessante analisar a linha retórica adotada por Macedo para possibilitar o
tratamento dentro do IHGB daqueles fatos contemporâneos. A argumentação seguia a
mesma lógica evidenciada em situações anteriores. Para Macedo, era imprescindível que
o Instituto se encarregasse de preparar a história do futuro sobre os eventos do presente.
A instituição tornava-se o panteão nacional, onde combatentes e ex-combatentes
deviam ser lembrados e admirados como heróis. A seguir, a passagem que revela tais
esclarecimentos:
O Instituto Histórico e Geográfico do Brasil, que tem por fim arquivar e
perpetuar os acontecimentos – fastos e infastos da nossa histórica, quebraria
suas penas, encerraria seus arquivos, se não lhe fosse dado, como há de sê-lo,
como é absolutamente indispensável que o seja, mesmo à custa de sacrifícios
ainda maiores, do que aqueles que já temos feito, escrever neles o
assentamento da desafronta nacional, e a punição do déspota do Paraguai que
nos ultrajou.
É por isso, e por dever que ele se levanta respeitoso, e em pé, e cheio de
gratidão e de entusiástico arrebatamento, ufanoso das proezas dos intrépidos e
inexigíveis guerreiros da pátria, em pé em sinal de culto, transportado pela
admiração, pagando tributo sagrado aos que morrem e aos que vencem

201
Ibidem, p. 495.
202
Ibidem, p. 495-496.

“Discurso do orador o Sr. Dr. Joaquim Manuel de Macedo”. RIHGB, tomo XXX (Parte Segunda), p.
203

539-540, 1867.
192

combatendo, aclama seus feitos, e em nome do Brasil e do Imperador brada


aos irmãos que lá no Paraguai batem-se, morrem e vencem:
– Aos bravos, aos heróis que morrem, renome e glória!
– Aos bravos, aos heróis que combatem – avante! avante!204

No ano seguinte, após as primeiras vitórias na região da Fortaleza de Humaitá, o


IHGB dava sinais de quão importantes haviam sido essas batalhas. Por esse motivo, os
sócios se organizavam para enviar uma comissão ao imperador e aos comandantes com a
finalidade de felicitá-los pelos sucessos das armas imperiais de fevereiro, além de propor
para sócio honorário Joaquim José Ignacio, o visconde de Inhaúma, à época comandante
em chefe da força naval do Brasil na Guerra. Tal honraria só não fora estendida também
ao marquês de Caxias porque ele já possuía o referido título205. O agradecimento de
Caxias foi recebido em sessão seguinte, juntamente com a constatação de que o Instituto
devia guardar o fato ocorrido no dia 19 de fevereiro em seu “arquivo das tradições”.
Também Inhaúma agradecia as palavras de apoio do Instituto e o título que lhe fora
conferido206.
A completa ocupação da Fortaleza de Humaitá sob o comando de Caxias em
agosto de 1868 foi ainda mais laureada pelos membros do IHGB. Ao final do ano, o
cônego Pinheiro lembrava o grande feito da rendição das tropas paraguaias naquela região
pelos brasileiros – uma atuação que, segundo ele, vencera o “impossível”207. Indicava,
além disso, aquela que veio a ser uma das obras mais consultadas sobre a Guerra do
Paraguai: La retraite de Laguna, de autoria de Alfredo de Escragnolle Taunay, então
oficial do Exército brasileiro. Escrito primeiramente em francês, o livro era uma descrição
daquilo que Taunay viu no tempo em que passou no campo de batalha. Como disse o
secretário, o trabalho fora feito “[...] à guisa de Xenofonte, com singular modéstia e
invejável candura”208. Serviu, inclusive, para a admissão de Taunay como sócio-
correspondente do IHGB em maio do ano próximo209.

204
Ibidem, p. 539-540.

“Ata da sessão extraordinária de 5 de março de 1868”. RIHGB, tomo XXXI (Parte Segunda), p. 314-
205

315, 1868.
206
“Ata da sessão de 8 de maio de 1868”. RIHGB, tomo XXXI (Parte Segunda), p. 320-322, 1868.
207
“Relatório do Primeiro Secretário Cônego Dr. J. Caetano Fernandes Pinheiro”. RIHGB, tomo XXXI
(Parte Segunda), p. 413-414, 1868.
208
Ibidem, p. 419.
209
“Ata da sessão de 28 de maio de 1869”. RIHGB, tomo XXXII (Parte Segunda), p. 253, 1869.
193

Em 1869, outras vitórias do Brasil na Guerra eram destaque nas sessões do


Instituto Histórico. Em agosto, mencionava-se a de Pirebebuhy e a ocupação de Ascurra,
“[...] nas gloriosas jornadas das cordilheiras, último reduto da tirania paraguaia [...]”210,
referindo-se àquilo que ficou conhecido pela historiografia sobre o evento como a
“Campanha da Cordilheira”211 – período em que Solano López, após a tomada de
Assunção pelas forças da Tríplice Aliança, se refugiou nas montanhas. Evidentemente
que os comentários eram sempre complementados com propostas de felicitações do
Instituto, através de cartas ou mesmo de membros que estavam no campo de batalha, aos
comandantes brasileiros212.
Naquele mesmo ano, Alfredo Taunay publicava na Revista o opúsculo “Viagem
de regresso de Mato Grosso à corte”, no qual descrevera seu retorno ao Rio de Janeiro
após ter feito parte na comissão de engenheiros que foi ao Mato Grosso para repelir a
presença paraguaia na província. Como se tornará habitual em seus escritos, Taunay
escolhia fazer uma miscelânea; o artigo abarcava desde aspectos da natureza e geografia
locais até informações de cunho etnológico e acontecimentos propriamente da guerra213.
Repetidamente, conforme José Ribeiro de Sousa Fontes indicava em seu relatório
de dezembro, havia certa dificuldade em manter a rotina de trabalhos da instituição
mediante o prevalecimento da Guerra contra o Paraguai. Ao menos esta vez, é feita uma
referência (quase uma crítica) à longa durabilidade do conflito: “[...] o ânimo de um povo
pacífico como o nosso, fatigado pelas comoções que essa guerra justa, sim, porém mais
duradoura do que ninguém previa, pouco tenha podido prestar-se às aturadas e fatigantes
investigações reclamadas para estudos históricos”214.
A visão de que a Guerra do Paraguai era uma guerra “justa” ou mesmo “santa”
era recorrente dentro da agremiação. Além de exemplos já mencionados, há ainda mais

210
“Ata da sessão de 27 de agosto de 1869”. RIHGB, tomo XXXII (Parte Segunda), p. 270, 1869.
211
IZECKSOHN, Vitor. Op. cit., 2011, p. 413.
212
Nas atas constam também as respostas às felicitações feitas, como, por exemplo a do Conde d’Eu,
então comandante em chefe das forças brasileiras, em dezembro de 1869. “Ata da sessão de 03 de
dezembro”. RIHGB, tomo XXXII (Parte Segunda), p. 288, 1869.
213
TAUNAY, Alfredo d’Escragnolle. “Viagem de regresso de Mato Grosso à corte”. RIHGB, tomo
XXXII, p. 5-52, 1869. A produção de Taunay sobre a Guerra do Paraguai será analisada no último
capítulo.

“Relatório do segundo secretário o Sr. Dr. José Ribeiro de Sousa Fontes”. RIHGB, tomo XXXII (Parte
214

Segunda), p. 310, 1869.


194

um dado por Macedo em seu discurso ao falar sobre Joaquim José Ignacio, morto em
março daquele ano215. Comentava então a participação decisiva de Inhaúma no conflito,
o que lhe garantiu, ainda mais depois de falecido, lugar certo no panteão dos heróis
nacionais.
A guerra santa da desafronta nacional enraizava-se no Paraguai; o bravo
marinheiro foi chamado para substituir no comando em chefe da esquadra em
operações ao Sr. visconde de Tamandaré, o nosso Bayardo do mar. A 5 de
Dezembro de 1866 parte remoçado pela consciência do dever e pela glória de
ir vencer ou morrer pela pátria. De novo saúda o oceano e aclama a bandeira
dos seus amores, o oceano que em horrível borrasca já lhe tinha devorado um
irmão ilustre, a bandeira, por cuja honra nessa mesma guerra já lhe tinha
morrido impávido um filho herói216.

Também naquele ano de 1869 era feita a leitura pelo sócio Moreira de Azevedo
de uma memória sobre um evento da Guerra do Paraguai, intitulada “O combate da ilha
do Cabrita”. Publicada na Revista de 1870, tinha início com uma ponderação: de que o
momento de escrita ainda era contemporâneo ao do conflito, fato que dificultava a
averiguação dos acontecimentos da guerra. A necessidade do afastamento temporal se
fazia premente para a obtenção da verdade histórica217 – explicação, contudo, que não foi
suficiente para evitar a análise do autor sobre um dos primeiros “e mais importantes”
combates contra o déspota paraguaio218.
Passada a Guerra do Paraguai, com a vitória em Cerro-Corá e a morte de Solano
López, em março de 1870, novas tentativas de interpretar o período foram feitas no
IHGB219, a começar pela definição de quais documentos deviam ser utilizados nessa
empreitada. Datado de 16 de julho, um corpus documental era apresentado ao Instituto
por um sócio que esteve no campo de batalha e que, por tal motivo, havia procurado obter
“[...] a maior soma possível de documentos, que por qualquer modo pudessem ser de
utilidade para o fim que tinha em vista”. A finalidade a que se reportava era a de que

215
Inhaúma, a despeito de estar no Paraguai, faleceu por motivo de doença.

“Discurso do orador o Sr. Dr. Joaquim Manuel de Macedo”. RIHGB, tomo XXXII (Parte Segunda), p.
216

335, 1869.

AZEVEDO, Manoel Duarte Moreira de. “O combate da Ilha do Cabrita”. RIHGB, tomo XXXIII (Parte
217

Segunda), p. 6, 1870.
218
Ibidem, p. 8.
219
Também foram feitos comentários nas sessões do IHGB sobre o fim da Guerra. Os sócios indicavam
as felicitações que deviam ser dadas ao mais alto comando brasileiro, representado pela figura do Conde
d’Eu, e ao imperador. Ver a esse respeito: “Ata da sessão (extraordinária) de 21 de março de 1870” e “Ata
da sessão (extraordinária) de 04 de maio de 1870”. RIHGB, tomo XXXIII, p. 359-361, 1870.
195

devia ser dado ao Instituto e, em maior instância, ao Brasil, compreender a Guerra que se
desenvolveu contra o Paraguai, elucidando seus pontos menos claros e suas questões mais
duvidosas, “[...] de modo a facilitar as apreciações da história”220.
A referida coleção de documentos não vinha isolada. Era publicada juntamente
com algumas interpretações, daí ser intitulada “Breves considerações acerca de alguns
documentos trazidos do Paraguai pelo Dr. João Ribeiro de Almeida”. O autor indicava
como edições de suma importância para o conhecimento da Guerra as de Taunay – além
da Retirada de Laguna, lembrava as Correspondencias e o Diario do Exercito221.
Aparentemente, a leitura destas obras e dos documentos que o próprio Almeida levava,
naquele momento, à luz era fundamental para uma análise bem construída dos
acontecimentos dos últimos anos222.
O compendiador chegava a algumas conclusões a partir das fontes por ele
selecionadas. Em primeiro lugar, à ideia de que a abolição da escravatura feita no
Paraguai não havia existido, apesar do que tentou ser demonstrado por meio do decreto
“que declarava o ventre livre” no país223. Outra consideração, que se ligava a esta, é a da
importância do Conde d’Eu para o fim da luta armada, inclusive por sua participação no
“real” processo de abolição. O governo provisório instalado na República do Paraguai,
por querer atribuir apenas a si próprio o mérito pelo fim da escravidão, omitiu a
participação do príncipe do Brasil naquele processo. Assim, por meio da documentação
levantada e que estava sendo posta a público naquele momento pelo IHGB, Almeida
pretendia acabar com essas “injustiças”, que eram perniciosas a uma escrita da história
sobre a guerra do Paraguai. Em suas palavras, “[...] não desejo que fato tão notável,

220
RIHGB, tomo XXXIII (Parte Segunda), p. 186, 1870.
221
Ibidem, p. 187. Quanto às Correspondencias, não foi constatado se se tratam dos excertos publicados
por Taunay no Jornal do Commercio no período da guerra. Não há notícias de que o autor publicou um
livro com este título.
222
Almeida fez um inventário dos documentos que colecionara. Além do jornal Semanário, indicava uma
série de decretos, atas de sessões da Assembleia de Assunção, entre outros. Ibidem, p. 189-194.
223
Ibidem, p. 203-204: “Eis como se achava abolida a escravidão no Paraguai: o liberto tinha de servir até
aos 25 anos, isto é, mais de três quartos da vida média provável naquele país, sobretudo em condição
servil; e, o que mais é, podia ainda ser vendido, embora por diminuto preço, enquanto não completasse 15
anos. [...] Em definitiva, a escravidão nunca fora abolida no Paraguai, e o decreto que declarara o ventre
livre, já em si mesmo tão deficiente e pouco protetor do liberto, acabara por ser completamente
menoscabado”.
196

impulso tão nobre como generosa resolução fiquem desconhecidos, e a outros possa o
historiador mais tarde atribuir aquilo mesmo que só pertence ao excelso príncipe [...]”224.
O trabalho de Almeida fora citado por José Ribeiro de Sousa Fontes no relatório
sobre o ano social. Além de esclarecer o quanto a guerra havia mudado a rotina da
instituição – como de praxe, notava-se a pouca quantidade de estudos produzidos no
Instituto –, evidenciava a enorme contribuição daquele sócio, que não havia se esquecido,
na qualidade de membro do Instituto, que devia colecionar documentos “[...] com os quais
elucidasse pontos pouco claros, relativos à história da nossa guerra e conseguintemente à
da pátria”225. Indicava, além disso, que o trabalho era recomendável, não apenas pelo
critério e clareza no estilo, como pelo fato de ter sido Almeida “testemunha de muitos
fatos que relata”226.
Também o discurso do orador da instituição era feito em função do fim da Guerra
do Paraguai. Neste caso, ninguém menos que Alfredo Taunay era responsável por fazer
os elogios aos sócios falecidos em 1870, o que, evidentemente, cedia espaço a alguns
comentários sobre o conflito. Autor de análises diversas sobre o evento, Taunay reiterava
a união da nação brasileira contra o inimigo paraguaio. “Tudo movia-se ao chamado da
pátria” foram suas palavras227. Mesmo aqueles que não foram à luta armada propriamente
dita estavam em consonância com a causa do Império brasileiro:
Todas as classes se confundiam: uns ofereciam sua vida, outros seu dinheiro,
estes seus filhos, aqueles seus parentes, seus escravos, e eles mesmos, com os
corações a pulsarem de dor e de patriotismo, os vinham entregar aos vapores,
que a todo o instante partiam prenhes de gente para um verdadeiro sorvedouro
de vidas228.

Taunay chegava inclusive a concluir que aquela havia sido “a mais bela fase do
reinado de D. Pedro II”229, pois, a despeito de todo o sofrimento e terror vivenciados pelos
soldados no campo de batalha, ela representava a união de todos contra um. A população

224
Ibidem, p. 205.

“Relatório do segundo secretário o Dr. José Ribeiro de Sousa Fontes”. RIHGB, tomo XXXIII (Parte
225

Segunda), p. 429, 1870.


226
Ibidem, p. 430.
227
“Discurso do orador o Sr. Dr. Alfredo d’Escragnolle Taunay”. RIHGB, tomo XXXIII (Parte Segunda),
p. 448, 1870.
228
Ibidem, p. 448-449.
229
Ibidem, p. 449.
197

em peso se colocou ao lado do “defensor perpétuo da integridade nacional” em direção à


província do sul, que se encontrava em poder das tropas inimigas em 1865230. Haveria
exemplo mais belo do que este para demonstrar a união dos brasileiros231?
Ainda nos anos que se seguiram ao fim da Guerra do Paraguai muito foi dito a seu
respeito no IHGB. Em 1871, Joaquim Manuel de Macedo se referia à luta armada como
nascida da “ofensa da honra” e ataque aos direitos do Brasil, que de “má vontade” aceitou
entrar na guerra. Isso porque a índole do país e do governante seria avessa à violência232.
Na Revista de 1873 era a vez de o trabalho do sócio Francisco Ignacio Marcondes
Homem de Mello sair à luz. A despeito de também tratar de momento anterior ao início
da Guerra, Mello indicava a importância de sua “Viagem ao Paraguai em fevereiro e
março de 1860” para compreender mais quais eram as características dos paraguaios e,
em certa medida, o que levou o país a declarar guerra aos vizinhos. Testemunha de muitos
acontecimentos, o autor indicava que percorrera o Paraguai e que não percebera nenhum
“[...] vestígio, que indique a civilização, ou o desenvolvimento de um povo”233.
O texto, seguido por “Cartas ao Sr. Tenente-Coronel Benedicto Marcondes
Homem de Mello”, trazia então uma série de comentários acerca da Guerra propriamente
dita. Uma vez mais, a “índole do brasileiro”, “fria e meditativa”, não era vista como
violenta ou inclinada a desafetos militares. Sua entrada na Guerra, nesse sentido,
explicava-se pela ideia de justiça: os brasileiros foram ofendidos em seus direitos, o que
lhes deu força para lutar contra o Paraguai234 e vencê-lo, varrendo, desse modo, “todos os
vestígios de um poder selvagem”235. Isso porque cabia ao Brasil o papel de baluarte da
civilização, contra o barbarismo dos paraguaios, com seus traços “rudes e grosseiros da

230
Ibidem, p. 450.
231
Taunay tivera parte nos acontecimentos, apesar de se encontrar, naquela época, no Mato Grosso.
Quando ficou sabendo da presença do imperador no Rio Grande, ao lado das tropas, “[...] o abalo que ele
[o próprio Taunay] e seus companheiros tiveram foi imenso. As ações grandiosas ferem o sentimento com
descarga elétrica”. Ibidem, p. 450.

“Discurso do orador o Dr. Joaquim Manuel de Macedo”. RIHGB, tomo XXXIV (Parte Segunda), p.
232

407-408, 1871.
233
“Viagem ao Paraguai em fevereiro e março de 1860 pelo Dr. Francisco Ignacio Marcondes Homem de
Mello, sócio do IHGB. Cartas ao Sr. Tenente-Coronel Benedicto Marcondes Homem de Mello”. RIHGB,
tomo XXXVI (Parte Segunda), p. 16, 1873.
234
Ibidem, p. 16.
235
Ibidem, p. 20.
198

raça indígena”236. Assim, apesar do título do opúsculo, seu autor se detém muito no
período da Guerra e reitera uma visão já consolidada no IHGB sobre a mesma.
Em 1881, os militares José Antônio Correia da Câmara (visconde de Pelotas) e
Francisco Manuel Barroso da Silva (barão do Amazonas) eram admitidos como sócios
honorários do Instituto. Mesmo após a mudança ocorrida em 1851 nos Estatutos do IHGB
em relação à política de admissão de sócios237, os títulos conferidos aos dois homens eram
justificados por sua participação na Guerra contra o Paraguai 238, não por mérito literário
ou acadêmico.
Já em outra ocasião, um indivíduo foi admitido por sua produção literária, que
dizia respeito à Guerra do Paraguai. Foi Antonio José Victorino de Barros em outubro de
1883. Graças ao trabalho Guerra do Paraguai – O almirante Visconde de Inhauma, misto
de biografia e memória histórica, Victorino de Barros passou ao grêmio do Instituto. A
seu favor, a comissão de história indicou os pontos positivos do texto, um estudo
resumido sobre a guerra que o Brasil sustentou contra o Paraguai “[...] em defesa da
dignidade nacional [...]”239. O autor, de acordo com o parecer assinado por Olegário
Herculano d’Aquino e Castro, Joaquim Norberto de Sousa Silva e Moreira de Azevedo,
tratou de coligir os fatos daquela época cronologicamente, coordenando-os num “resumo
imparcial”240. Por fim, indicava-se a utilização do trabalho de Barros como um “[...]
proveitoso subsídio para a história da guerra do Paraguai [...]”241.
Algo semelhante ocorrera em 1889, após a República ter sido recém-inaugurada.
Admitia-se a entrada na agremiação de João Vicente Leite, autor de obra sobre a Guerra
do Paraguai, “[...] fato que nos deu glória, mas que nem por isso deixamos de deplorar
como fatal sucesso dos destinos humanos [...]”242. Pela alocução feita por Joaquim
Norberto de Sousa Silva, o merecimento do autor era evidente, pois não apenas conseguiu
escrever uma obra imparcial, como patriótica:

236
Ibidem, p. 16.
237
GUIMARÃES, Lucia. Op. cit., p. 487-488, 1995.
238
“Ata da sessão de 07 de julho de 1881”. RIHGB, tomo XLIV (Parte Segunda), p. 366, 1881.
239
“Ata da sessão de 26 de outubro de 1883”. RIHGB, tomo XLVI (Parte Segunda), p. 601, 1883.
240
Ibidem, p. 601.
241
Ibidem, p. 602.
242
“Ata da sessão de 29 de novembro”. RIHGB, tomo LII (Parte Segunda), p. 533, 1889.
199

O vosso patriotismo não vos impediu a imparcialidade, e expusestes os fatos


dessa luta internacional com clareza e justiça; fostes sincero nos vossos estudos
históricos, nos quais os futuros escritores encontrarão informações exatas e
dignas da história, que só é valiosa e aceitável, quando respeita a verdade, e
portanto a justiça243.

Nota-se, nesse caso, que não havia antagonismo entre o que se entendia por
imparcialidade e patriotismo. Muito pelo contrário: a rigorosa exatidão diante dos temas
estudados, necessárias para se chegar à verdade, casavam-se com o sentimento patriótico.
Daí concluir-se, juntamente com Rodrigo Turin, que o “amor à verdade” para aqueles
homens deveria manter-se em perfeito equilíbrio com o “amor à pátria”244.
Novo trabalho sobre a Guerra do Paraguai foi lido no Instituto por um de seus
sócios. Joaquim Pires Machado Portela, atuando como 1º secretário interino em 1886,
comentava a respeito d’ “A redempção da Uruguayana”, de autoria de Augusto Fausto de
Souza. Referia-se à obra como um histórico das operações militares durante a invasão
paraguaia ao Rio Grande do Sul no ano de 1865. O mérito dela, de acordo com Portela,
era o de abordar o tema “à verdadeira luz”, esclarecendo pontos até então escondidos.
Além do que, mesmo aqueles que já se dispuseram a comentar o assunto, até aquele
momento, o fizeram com “[...] narrações mais ou menos apaixonadas ou escritas sobre
bases nem sempre merecedoras de crédito”245. Desse mal não sofrera o autor que procurou
se manter fiel aos princípios indispensáveis a quem quer que escreva um trabalho de
cunho histórico: a imparcialidade e a clareza246.
No ano seguinte, “A redempção da Uruguayana” constava da edição da Revista.
Como que complementando a análise de Portela, o autor indicava o motivo de ser seu
trabalho digno de relevância – era um escrito imparcial sobre os momentos iniciais da
Guerra do Paraguai:
Agora que tem decorrido mais de 20 anos depois desses sucessos, agora que
os espíritos, mais apaziguados, estão livres das influências perturbadoras do
momento; em que pela ação do tempo, a reflexão calma e desapaixonada pode
explicar fatos dantes obscuros, mais fácil será a realização da tarefa, para quem
tentar empreendê-la. Por muito tempo afagamos esse projeto, e para sua

243
Ibidem, p. 533.
244
Para exemplificar esse entendimento, Turin recorreu a ninguém menos que Francisco Adolfo de
Varnhagen, que escrevia em nome do imperador. Método historiográfico e nacionalismo se
complementariam na pena do sorocabano. TURIN, Rodrigo. Op. cit., p. 17-18, março 2009. Ver também
a esse respeito: HRUBY, Hugo. Op. cit., 2007, p. 94.
245
“Relatório do Sr. 1º secretário interino Dr. Joaquim Pires Machado Portela”. RIHGB, tomo XLIX
(Parte Segunda), p. 504, 1886.
246
Ibidem, p. 505.
200

execução fomos tomando nota de acontecimentos de que éramos testemunha


ocular, reunindo todos os documentos que poderiam justificar nossas opiniões
e procurando esclarecer tudo o que parecia pouco inteligível; convencido hoje
da impossibilidade, por motivos de interesse particular, de fazer um trabalho
completo, nos resolvemos a apresentar, não a crônica completa da invasão
desde os primeiros sucessos que lhe serviram de prólogo, mas somente a
narração singela do cerco da Uruguaiana, período curto mas importantíssimo,
por encerrar lições e originar reflexões do maior valor, tanto político como
histórico247.

Ao contrário do que havia sido feito antes, escritos cuja proximidade temporal em
relação ao tema deixavam transparecer “impressões partidárias”, o texto escapava a essas
características, tanto pelo afastamento, quanto pelo recorte apresentado e pelas fontes
utilizadas248. Finaliza a análise indicando que aquela luta nos campos do sul merece
destaque nos anais da história militar brasileira, por ter sido uma vitória da “civilização”
e da “humanidade”249.
Referindo-se à abolição da escravatura e ao jubileu do grêmio, era feita uma
felicitação ao Conde d’Eu no ano de 1888. A Guerra do Paraguai também surgia na
argumentação, relacionada à abolição no Brasil. O fim da escravidão no Paraguai, obra
do príncipe consorte, acabou por ter ressonância no país, colaborando com o
acontecimento “[...] que ora engrandecemos [...]”250. Tal associação não fora gratuita: em
1888 o Instituto e sua Revista foram palco de intensa mobilização em torno da questão do
fim da escravidão, conforme será visto a seguir.

3.3.2 A Abolição

Na sessão do dia 16 de maio de 1888, três dias depois da assinatura da Lei Áurea,
o presidente Joaquim Norberto de Sousa Silva lia uma alocução sobre o fim da escravidão
no Brasil. O feito inaugurava, em suas palavras, “nova época nos anais da história” do
país. Por esse motivo, propunha que o Instituto rendesse as mais diversas homenagens ao

247
RIHGB, tomo L (Parte Primeira), p. 2, 1887.
248
Ibidem, p. 2.
249
Ibidem, p. 56.
250
TAVORA, Franklin. “A extinção da escravidão no Brasil. – O Jubileu do Instituto Histórico”. RIHGB,
tomo LI (Parte Primeira), p. XXI-XXII, 1888.
201

acontecimento: parabenizar o imperador através de um telegrama, tendo em vista que ele


se encontrava então na Europa; saudar Sua Alteza Imperial, a princesa Isabel – o que
ficaria a cargo do orador; enviar mensagens de agradecimento e louvor às câmaras
legislativas e ao ministério; lançar, na ata da sessão, um voto de louvor à imprensa, “[...]
que cooperou para o triunfo incruento da causa da abolição”; e, por fim, fazer um busto
do finado consócio Agostinho Marques Perdigão Malheiro, que havia escrito anos antes
a obra Escravidão no Brasil, cujo objetivo foi “[...] lançar as bases para a abolição da
escravidão”251.
Tais propostas sofreram pequenas emendas feitas por Cézar Marques e
Sacramento Blake252. Indicavam, além de Malheiro, o nome de José Maria da Silva
Paranhos, o visconde de Rio Branco, como personalidades responsáveis por inaugurar o
arcabouço para o fim do trabalho escravo no Brasil. No caso de Rio Branco, sugeriram
que a Lei de 28 de setembro de 1871 fora igualmente importante para o início da
realização da abolição253. As felicitações foram igualmente estendidas ao Conde d’Eu.
Por intermédio de Maximiano Marques de Carvalho, o IHGB projetou também a
construção de uma estátua em homenagem à princesa Isabel, fato que não se realizara por
contestação da própria254.
No dia a dia dos trabalhos do Instituto seus membros idealizavam novas formas
de comemorar a recente lei. Segundo Maximiano de Carvalho, a abolição já podia ser
considerada parte da história do Brasil255. Como o IHGB tinha por encargo a escrita da
história nacional, “[...] conforme os acontecimentos os mais públicos, os mais justos e os
mais úteis se vão sucedendo”, nada mais normal do que comentar sobre o fato nesses
termos256.

251
“Ata da sessão extraordinária de 16 de maio de 1888”. RIHGB, tomo LI (Parte Segunda), p. 210-211.
252
Além de homenagear o papel da imprensa no contexto da abolição, pediam para incluir a passagem:
“[...] e a todos aqueles que, de qualquer modo, contribuíram para o triunfo incruento da santa causa da
redenção”. Ibidem, p. 211.
253
Ibidem, p. 211.
254
A princesa, ao ser consultada sobre o projeto da criação de uma estátua de bronze, no campo da
aclamação em sua homenagem, disse que não podia anuir a tal projeto – resposta que o autor da proposta
considerou, na ocasião, uma demonstração de humildade da regente. “Ata da sessão extraordinária de 22
de junho de 1888”. RIHGB, tomo LI (Parte Segunda), p. 220-221.
255
“A lei de 13 de Maio, que emancipou um milhão de escravos no Brasil, já pertence à história”. “Ata da
sessão de 15 de junho de 1888”. RIHGB, tomo LI (Parte Segunda), p. 217.
256
Ibidem, p. 217.
202

O entendimento do fim da escravidão se dava em função de seu aspecto positivo.


A postura do Império brasileiro era contrastada à de outros países que fizeram a abolição
a partir de muita luta e violência:
Se há fatos notáveis e grandiosos na história do nosso país, que devam ser
perpetuados na memória das gerações futuras, por honra nossa e glória da
nação que constituímos, é sem dúvida um deles e dos mais brilhantes o da
proclamação da liberdade da raça escrava, que infelizmente, até há pouco,
nodoou a nossa vida social. As festivas aclamações e aplausos com que, sem a
mínima perturbação da ordem pública, foi entre nós efetuada essa revolução
incruenta, que em outros países tem custado porfiosas lutas e dolorosos
sacrifícios, vieram claramente demonstrar inteiro acordo entre a opinião
popular e a vontade do parlamento e da coroa, no arrojado cometimento, que
hoje nos enche de orgulho e íntima satisfação 257.

Esta passagem demonstra, mais uma vez, a concepção difundida dentro do IHGB
a respeito da índole pacífica do Brasil em comparação a outras nações. Enquanto aqui a
abolição se dera de forma tranquila, “sem a mínima perturbação pública”, em outros
lugares se estabeleceram “porfiosas lutas e dolorosos sacrifícios”. Ao passo que, no
Brasil, a vontade geral era a mesma e clamava pela liberdade dos escravos, entre os povos
estrangeiros houve disputas pelo fim da escravidão que demonstravam iminente falta de
unidade interna. Ao menos era essa a imagem que pretendia ser passada à posteridade
pelos consócios.
Também a tentativa de criar símbolos para lembrar o dia 13 de maio fora uma
constante naquele ano de 1888 dentro do IHGB. Não obstante a coluna de bronze com a
imagem da princesa, proposta por Maximiano de Carvalho, o Instituto pretendia cunhar
uma medalha258, além de moedas comemorativas, destinadas à princesa Isabel e a seu
marido, bem como a outras autoridades e corporações nacionais e estrangeiras259.
Além disso, os membros da agremiação indicavam a necessidade de escrever uma
memória “[...] contendo a história resumida de tudo quanto se refere ao assunto de que se
trata, desde a fundação do império até à data da áurea lei de 13 de Maio de 1888” 260. O

257
“Ata da sessão de 10 de agosto de 1888”. RIHGB, tomo LI (Parte Segunda), p. 257.
258
“Ata da sessão de 15 de junho de 1888”. RIHGB, tomo LI (Parte Segunda), p. 218. A ideia era que a
medalha tivesse “[...] no anverso a efígie de S. A. Imperial circulada destas palavras: S. A. a Princesa
Imperial Izabel, a Redemptora, Regente do Império em nome de S. M. o Senhor D. Pedro II. E no reverso
a integra da lei n. 3.353 de 13 de Maio de 1888”. A deliberação a respeito da feitura da medalha ocorreu
em sessão extraordinária no dia 12 de outubro. Nela, instituía-se que fossem feitas 2 medalhas de ouro, 50
de prata e 500 de cobre bronzeado, entre outros pormenores. Ver “Ata da sessão extraordinária de 12 de
outubro de 1888”. RIHGB, tomo LI (Parte Segunda), p. 288-289.
259
“Ata da sessão de 10 de agosto de 1888”. RIHGB, tomo LI (Parte Segunda), p. 258.
260
Ibidem, p. 258.
203

trabalho deveria ficar a cargo de algum sócio ou comissão do IHGB e ser apresentado na
última sessão ordinária do ano para, depois, estar sujeito à apreciação do Instituto, para o
caso de publicação na Revista ou em separado. Mesmo que mais de uma memória fosse
apresentada por qualquer consócio, haveria uma aceitação a priori e ela seria examinada
a fim de sair publicada. Com isso, entendia-se que o IHGB estava cumprindo com a tarefa
a que se propôs desde sua fundação: a de “[...] perpetuar nas páginas da história a memória
de um dos fatos, que assinalam o desenvolvimento e progresso da nossa sociedade”261.
Todas essas medidas foram comentadas por Norberto de Sousa Silva na sessão
magna aniversária daquele ano. De primeira, expunha os trabalhos do IHGB em termos
de continuidade com o que havia sido instituído em 1838: arrecadar e arquivar novos
documentos e apresentar os produtos das investigações feitas em seu seio 262. A seguir,
indicava o fim da escravidão no Brasil, conseguido através de “[...] uma das mais justas
leis, que Deus haja inspirando à humanidade”, e que não poderia deixar de ser
comemorado pelo Instituto263. Daí a elaboração da medalha com a efígie da regente do
Império, do livro “[...] contendo a história da escravidão com os documentos respectivos
[...]” e da coluna elevada em uma das praças da capital, “[...] simbolizando a áurea lei que
nivelou as condições de todos os habitantes do império, levantou o nível da moral,
santificou os costumes, purificou o lar doméstico e tornou livre o trabalho na pátria
livre”264.
O primeiro passo já havia sido dado: a medalha estava sendo cunhada. Quanto à
memória sobre a escravidão, esta seria escrita pelo 1º vice-presidente do Instituto265. Por
fim, Norberto de Sousa Silva comentava a respeito da forte esperança que nutria em
relação ao país: nada mais poderia atrapalhar o progresso do Império266.

261
Ibidem, p. 259. As propostas foram encaminhadas por Olegário Herculano de Aquino e Castro,
Henrique Pedro Carlos de Beaurepaire Rohan (visconde de Beaurepaire Rohan) e o José de Miranda da
Silva Reis (barão de Miranda Reis).

“Alocução do Sr. presidente comendador Joaquim Norberto de Souza Silva”. RIHGB, tomo LI (Parte
262

Segunda), p. 323.
263
Ibidem, p. 323.
264
Ibidem, p. 323.
265
Severiano Fonseca, em seu relatório lido na mesma sessão aniversária, dizia, no entanto, que não havia
ainda quem se dispusesse a escrever a memória. “Relatório dos trabalhos anuais de 1888 apresentado na
sessão magna aniversária de 15 de Dezembro pelo 1º secretário interino Dr. João Severiano da Fonseca”.
RIHGB, tomo LI (Parte Segunda), p. 331.
266
A citação completa: “Temos as maiores e mais gratas esperanças de que assoberbaremos todas quantas
dificuldades se nos antolham, aplainando a estrada que desbravamos, há cinquenta anos. Marcha o
204

Na mesma ocasião, João Severiano da Fonseca apresentava o relatório anual no


qual indicava semelhante entusiasmo pela abolição. A ideia, ora concretizada, teria tido
início dentro do IHGB por meio do trabalho de um de seus sócios, Perdigão Malheiro,
em seu livro Escravidão no Brasil, lido nas sessões do grêmio no ano de 1866.
Concordava, portanto, com as declarações de Joaquim Norberto de Sousa Silva logo após
a assinatura da Lei Áurea, segundo quem Malheiro era responsabilizado por ter sido o
iniciador de uma tradição de pensar o fim da escravidão no Brasil.
Nessa direção, Fonseca citava Franklin Távora que, já em 1881, tinha mencionado
o mesmo papel atribuído ao estudo de Malheiro:
Desse livro, dedicado ao Brasil, já dizia o fulgurante e nunca assaz sentido
Franklin Tavora, orador do Instituto, em 1881, – “livro que iniciou uma
reforma humanitária, uma revolução eminentíssima que vai-se realizado na
nossa pátria, sem saírem do livro, do jornal, da associação pacífica, do
parlamento – os que a promoveram,” – e que, eu continuo, sem sair do livro,
do jornal, [...] no meio de flores e de vivas, de hinos e de festas, – do maior
entusiasmo, do mais arroubado delírio, da mais pacífica exaltação, que já as
nações têm visto267.

Também em 1888, o mesmo sócio reiterava a ideia de que Malheiro havia sido o
fundador da ideia de abolição, desta vez no opúsculo “A extinção da escravidão no Brasil
– O Jubileu do Instituto Histórico”. Publicado na Revista daquele ano, espécie de reunião
das homenagens feitas pelo IHGB às autoridades imperiais268, o trabalho indicava a
relevância de se fazer um busto em homenagem àquele sócio que “[...] procurou lançar
os fundamentos da extinção do cativeiro”269.
A reverberação dessa ideia é digna de nota. O protagonismo que se queria atribuir
a Perdigão Malheiro permite algumas considerações. Em primeiro lugar, imputa-se ao

império progressivamente não tendo por obstáculo senão a sua própria grandeza, e nós marcharemos
também a pari-passu de seu progresso. Estará muito longe o porvir, como perguntava Casimiro de
Abreu? O que parecia ontem uma dificuldade, um sonho, uma utopia, é hoje uma realidade! Findou-se a
escravidão, a luta de trezentos anos! a luta do opróbrio, da dor e dos ais!... Livre o trabalho na pátria
livre, acodem falanges estrangeiras de novos agricultores, que acodem nova pátria mais feliz, mais
prospera para seus filhos, e o império do Cruzeiro se povoa. Eis a indústria ostentando aí os seus
progressos, e ao canto do cativeiro, cujas endeixas se desprendiam com as lágrimas de uma infeliz raça,
substitui o hino do trabalho da esperança e da prosperidade”. “Alocução do Sr. presidente comendador
Joaquim Norberto de Souza Silva”. RIHGB, tomo LI (Parte Segunda), p. 325, 1878.
267
“Relatório dos trabalhos anuais de 1888 apresentado na sessão magna aniversária de 15 de Dezembro
pelo 1º secretário interino Dr. João Severiano da Fonseca”. RIHGB, tomo LI (Parte Segunda), p. 329-330.
268
Faz citação das cartas endereçadas à princesa Isabel, ao Conde d’Eu, ao imperador, além dos membros
da Câmara dos Deputados, do Senado e do governo.
269
TAVORA, Franklin. Op. cit., p. XIX, 1888.
205

sócio o pioneirismo na reflexão sobre o fim do trabalho escravo duas décadas antes de
este acontecer efetivamente. Deixando de lado outros indivíduos ou grupos que pensaram
a abolição nos anos anteriores ao seu concreto estabelecimento – inclusive dentro do
IHGB, como se verá –, cria-se a ilusão de que Malheiro fundou o próprio gérmen para a
ruptura270.
Consequentemente, o IHGB passava a ser entendido como o palco onde teve
início a discussão sobre a abolição: Malheiro era seu sócio e fez a leitura, pela primeira
vez, de Escravidão no Brasil nos seus salões. A partir dos comentários de Norberto de
Sousa Silva, Severiano da Fonseca e Franklin Távora, alguns dos representantes máximos
naquela época do Instituto Histórico271, é possível chegar à conclusão pretendida pelos
sócios de que o IHGB instituiu toda uma tradição de pensar o fim da escravidão, muito
antes de ele se tornar uma realidade.
Também nessa ótica, o visconde do Rio Branco (igualmente membro do IHGB)
era associado à abolição. Távora, em seu opúsculo, copiou a carta endereçada ao
Ministério (dentre outras), na qual se indicava a importância do organizador do Ministério
de 7 de março de 1871, que estabeleceu a Lei do Ventre Livre. Esta era entendida como
o início de um ciclo que perdurou 17 anos, “[...] dentro do qual se formou e
definitivamente amadureceu o fruto da abolição do cativeiro no Império [...]”272.
Complementa-se, dessa forma, a ideia de que a abolição foi gestada através de grandes
nomes do Instituto Histórico.
Outra chave introduzida no texto de Távora273 e amplificada nos discursos dos
sócios do IHGB, como já evidenciado, foi a associação do fim da escravidão a conceitos
como “civilização” e “progresso”:
Com a extinção do estado servil o gênio da história nacional ganhou novo
critério. Ele está agora completo com a parte de liberdade que lhe faltava para

270
Ainda que o abolicionismo, entendido como movimento político e social, tenha começado na década
de 1880, verifica-se certa oposição à escravidão desde os anos 1850, com o surgimento de sociedades
emancipacionistas após a Lei Euzébio de Queiróz. Na década de 1860, grande parte das manifestações
antiescravistas se deu no âmbito de reformas da instituição escravista – mais do que da abolição
propriamente dita, como se pretendia após 1880. Conforme alguns estudiosos do assunto, não se pode
falar, com isso, de abolicionismo antes de 1880, mas sim de “movimento emancipacionista”. Ver verbete
sobre o abolicionismo no Dicionário do Brasil Imperial, dirigido por Ronaldo Vainfas. Op. cit., 2002, p.
19-20.
271
Eram, respectivamente, o presidente, o 1º secretário e o 2º secretário do IHGB.
272
TAVORA, Franklin. Op. cit., p. XXIII-XXIV, 1888.
273
Vale lembrar que o texto de Távora foi escrito em 31 de maio de 1888 e publicado na Parte Primeira
da RIHGB de 1888.
206

ser digno de uma nação que rende culto nas aras da civilização. O nosso
historiador terá d’ora em diante homens para submeter à sua análise fisio-
psicológica, terá um povo verdadeiramente livre para estudar e julgar nos seus
sentimentos e na sua evolução274.

Vale a pena dedicar um pouco mais de tempo a essa discussão. A abolição se


encontrava imersa no quadro de mudanças julgadas importantes para que o país atingisse
o tão almejado patamar da civilização, e isso muito antes da assinatura da lei de 1888. Tal
temática, a da civilização, fora muito valorizada pelos homens desde o Iluminismo.
Casada com o ideal de progresso, influenciou muito os escritos de história do oitocentos,
estabelecendo inclusive termos contrastantes, como natureza, selvageria e barbárie275.
Colaborava, por fim, com a própria forma de vislumbrar a história, partindo de critérios
bem definidos de progressão. A civilização tornava-se, nesse sentido, o processo
fundamental da história e seu resultado276. E sua gradação permitia, por sua vez,
estabelecer um ponto fulcral no qual todas as sociedades deveriam chegar: uma
civilização nos moldes da Europa.
Já no período inicial do IHGB tinha-se em mente que um país que se queria
importante dentro das Américas e respeitado pela Europa não devia perpetuar a
escravidão africana. A esse respeito, não é necessário ir muito longe: o próprio Von
Martius, em texto premiado pelo grêmio sobre como deveria ser escrita a história do
Brasil, indicava o elemento negro como fator de impedimento ao processo da civilização
no país277. E, bem antes disso, em 1839, um estudo de autoria de Januário da Cunha
Barbosa, publicado na primeira edição da Revista, atentava para tal problemática278. A
discussão em pauta era sobre a situação do indígena naquela época. Como se sabe, aqueles

274
TAVORA, Franklin. Op. cit., p. XVIII, 1888.

STAROBINSKI, Jean. “A palavra ‘civilização’”. In: _____. As máscaras da civilização: ensaios. São
275

Paulo: Cia das Letras, 2001, p. 16.


276
De acordo com Beneviste, “Da barbárie original à condição presente do homem em sociedade,
descobria-se uma gradação universal, um lento processo de educação e de depuração, em suma, um
progresso constante na ordem do que a civilidade, termo estático, já não bastava para exprimir e que era
preciso chamar de civilização para definir-lhe simultaneamente o sentido e a continuidade”. Citado em
Ibidem, p. 15-16.
277
GUIMARÃES, Manoel. “Nação e Civilização nos trópicos: o IHGB e o projeto de uma história
nacional.” Estudos Históricos. Rio de Janeiro, n 1, v. 1, 1988, p. 17.
278
BARBOSA, Januário da Cunha. “Programa – Se a introdução dos escravos Africanos no Brasil
embaraça a civilização dos nossos indígenas, &c., desenvolvido na sessão de 16 de Fevereiro por Januário
da Cunha Barbosa, secretário perpétuo do Instituto”. RIHGB, tomo I, p. 123-129, 1839.
207

eram tempos em que o interesse pelo índio era enorme, não apenas por seu papel na
produção identitária da nação brasileira, como também pela questão da mão de obra, fonte
de preocupação de letrados, além de senhores de terras, fabricantes de mercadorias e
comerciantes279.
A intenção do cônego não era indagar se os índios deveriam servir como mão de
obra ao país, porque isto já era dado como certo por Januário Barbosa. A questão era
refletir sobre a forma como isso seria feito dali por diante. A solução dada pelo autor era
simples: a catequese podia ser a responsável por promover a civilização dos indígenas,
assim como havia sido feito pelos jesuítas tanto tempo antes. Ele acreditava que o motivo
para o índio não ter sido utilizado como mão de obra nada tinha a ver com o “mito” criado
de que ele era pouco afeito ao trabalho bruto. O que teria acontecido, ainda segundo o
cônego, foi o descontrole provocado pelo tráfico negreiro, a ânsia que este despertou
devido à expectativa de lucro desenfreado de contrabandistas. Com a incorporação dos
africanos no país, houve o prejuízo da “civilização dos nossos indígenas”, tendo em vista
a facilidade que existia em comprar o negro e, por isso mesmo, a falta de necessidade em
tratá-lo com maior consideração, o que justificava a utilização massiva da violência:
A escravidão dos negros nem aproveita à civilização dos índios, nem à sua
própria, nem aos progressos da nossa indústria; os danos que daí resultam são
desgraçadamente conhecidos, e sua cobiça poderá negar resultados que a
inteligência, ainda a menos perspicaz, percebe e calcula280.

Da mesma forma, em sua argumentação, o negro aparece como uma negação à


civilidade, tanto por seu papel de escravo, quanto pela deturpação que fazia aos “bons
modos” que os indígenas podiam ter no trabalho, caso colonizados: “Os negros, portanto,
servem de embaraço à civilização dos índios; e o que mais é, servem não pouco de retardar
a nossa própria civilização, o que deixo de tratar, por não ser deste programa” 281. Mais
do que a pouca afeição ao trabalho do negro africano, a própria instituição escravocrata
era a fonte do descontentamento de Januário da Cunha Barbosa e a justificativa para sua

279
GUIMARÃES, Manoel. Op. cit., 1988, p. 21.
280
BARBOSA, Januário da Cunha. Op. cit., 1839, p. 128 (grifos nossos). Sobre o termo “indústria”, vale
a pena tecer alguns comentários. Esse conceito era percebido na época como “[...] conjunto de operações
que concorrem para a produção de riquezas [...]”, sobretudo no que diz respeito à agricultura, que era,
àquele tempo, a base econômica do Brasil. “Indústria”, portanto, naquele momento, tinha a ver com a
capacidade humana de transformar o que é naturalmente dado, não tendo, assim, o sentido moderno de
produção extensiva de mercadorias pela máquina. GUIMARÃES, Lucia. “Sociedade Auxiliadora da
Indústria Nacional”. In: VAINFAS, Ronaldo (Dir.). Op. cit., 2002, p. 679-680.
281
BARBOSA, Januário da Cunha. Op. cit., 1839, p. 128.
208

opinião de que os índios deviam ser a força motora da economia do país, através da
utilização de sua mão de obra282.
Retomando o destaque promovido pelo IHGB quando da abolição da escravatura,
vale mencionar a necessidade que existia na época de criar toda uma infraestrutura que
auxiliasse o desenvolvimento capitalista do Brasil, eliminando o atraso e os resquícios da
sociedade colonial. O trabalho escravo se enquadrava nessa lógica e era visto por muitos
como um elemento que dificultava o ingresso do Império no rol das nações civilizadas –
e consequentemente seu progresso. O IHGB, imbuído dos ideais do seu tempo, no que
dizia respeito a infundir nos trópicos uma civilização, tomando o mundo europeu como
paradigma, adotava papel condizente com o de uma instituição localizada no centro de
todas essas preocupações: a cidade do Rio de Janeiro. O seu crescimento ao longo do
século XIX era seguido de um discurso igualmente crescente sobre o progresso técnico e
científico, sobretudo nas três últimas décadas do século XIX283.
Além disso, a escravidão havia muito se constituíra em um grande problema de
ordem prática. Como já foi comentado, a própria economia do país exigia que algo fosse
feito no sentido de solucionar as questões que emergiram desde o fim do tráfico negreiro.
A falta de mão de obra era vivenciada no país e inúmeros funcionários do governo
refletiam a respeito da melhor maneira de sanar esse problema284.

282
Logo no início dessa memória, o autor comenta que não podia ser patrono da escravidão, tendo em
vista que considerava a liberdade “[...] como um dos melhores instrumentos da civilização dos povos”.
Após citar Padre Antonio Vieira, indicava ainda que “[...] a escravidão foi um forte embaraço à
civilização dos índios; pois que eles, segundo o testemunho do mesmo padre Vieira, só fugiam da
catequese por medo da escravidão, e desconfiados da falta do cumprimento de promessas, que se lhes
faziam. [...]”. Ibidem, p. 123-127.
283
Nota-se que esse tipo de percepção intelectual em relação ao negro como opositor e até mesmo
dificultador da civilização produzida no interior do IHGB não destoava da vivência cotidiana daqueles
homens no espaço urbano do Rio de Janeiro. Levando em consideração a superexposição que o negro e o
mulato, fosse escravo ou liberto, tinham na cidade, é possível formular a hipótese de que para os sócios
do Instituto era muito difícil dotar esse tipo de mão-de-obra de algum traço de civilidade. Cf. AZEVEDO,
André Nunes de. “A capitalidade do Rio de Janeiro. Um exercício de reflexão histórica”. In: Rio de
Janeiro: capital e capitalidade. Rio de Janeiro: UERJ/SR-3/Sepext, p. 59, 2002. Sobre a forte presença
negra no cotidiano da cidade, ver SILVA, Marilene Rosa Nogueira da. Negro na rua: a nova face da
escravidão. São Paulo: Hucitec, 1988; e KARASCH, Mary. “Carregadores e propriedade: as funções dos
escravos no Rio de Janeiro”. In: _____. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo,
Companhia das Letras, 2000, p. 259-291.
284
MATTOS, Ilmar de. O Tempo Saquarema. São Paulo: Hucitec, 1987, p. 238. Para exemplificar a
preocupação do governo com a questão da mão-de-obra no período estudado, ver PINHEIRO, José Pedro
Xavier. Importação de trabalhadores Chins. Memória apresentada ao Ministerio da Agricultura,
Commercio e Obras Publicas e impressa por sua ordem. Rio de Janeiro: Typographia de João Ignacio da
Silva, 1869. O autor da referida memória pretendia argumentar a favor da importação de asiáticos para
trabalhar no Brasil, em substituição à mão de obra de origem africana.
209

Tanto a problemática da civilização, quanto a da escassez de mão de obra eram


fonte de preocupação também para abolicionistas atuantes na política e na imprensa desde
a década de 1870, como José do Patrocínio e Joaquim Nabuco. Segundo eles, as
inevitáveis transformações deveriam ocorrer de forma lenta e gradual, sem alterações
abruptas. Eram contrários, inclusive, a qualquer tipo de violência que os cativos pudessem
utilizar para conseguirem a emancipação285. Parece que foram ouvidos. O desenrolar dos
fatos acabou se mostrando de acordo com os anseios desses homens: a abolição se dera
sem grandes assombros, ainda que tenha sido fruto de muitas lutas não comentadas nos
círculos letrados. E em maio de 1888, o término da instituição que perdurara tanto tempo
era aclamado em periódicos como A Gazeta da Tarde, em cujas páginas liam-se a
importância do fato para o Brasil sair de uma posição de inferioridade perante as demais
nações civilizadas286.
A imprensa abolicionista tocava em alguns (poucos) pontos que muito se
assemelhavam aos escritos publicados na Revista de 1888. A crença dos sócios do IHGB
de que o país, daquele momento em diante, passava a um novo patamar social e de que
isto tinha sido conseguido através de uma “revolução pacífica” parecia explicar todo o
movimento, ao mesmo tempo em que tentava garantir a opinião dos homens do futuro a
esse favor. Restava saber se os próximos historiadores estariam dispostos a arcar com a
“nova história” que devia ser escrita, levando em conta o povo livre “para estudar e julgar
nos seus sentimentos e na sua evolução”, de acordo com Franklin Távora. A queda do
regime escravocrata abria o caminho para os novos sentidos a serem atribuídos à história
e para a incorporação de novos atores sociais, até então praticamente invisíveis.

285
MACHADO, Humberto. “Ordem, Progresso e Civilização na Campanha Abolicionista do Rio de
Janeiro”. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH. São Paulo, julho 2011, p. 1-3.
286
Ibidem, p. 7.
210

4 O IHGB COMO INQUIRIDOR DO PASSADO RECENTE

Muito já foi dito a respeito dos limites impostos pelo IHGB para o tratamento de
eventos pertencentes a um tempo próximo. Da mesma forma, entendeu-se que com o
correr dos anos o presente tenha, pouco a pouco, deixado de o ser – transformando-se em
passado e, portanto, apto a fazer parte do território do historiador. O início do século
XIX, por tanto tempo considerado temática non grata pelo Instituto, passava a ter um
espaço cada vez maior dentro dos trabalhos de seus associados. Foi o caso da Revolução
Pernambucana, que na década de 1860 foi tomada para objeto de análise por Joaquim
Fernandes Pinheiro (em resposta à obra de Francisco Muniz Tavares, História Revolução
de Pernambuco de 1817); e o da Sabinada, cuja presença foi marcante na Revista na
década de 1880. A permissão para tratar de tais assuntos justificou-se pelo afastamento
temporal, pelas mudanças políticas do país e pelos consecutivos falecimentos de pessoas
que atuaram frente a tais acontecimentos, conforme se verificou em capítulo anterior.
Resta, agora, perceber de que forma tais eventos foram narrados e questionar sobre as
conflitantes interpretações que um mesmo fato suscitava dentro e fora do IHGB. Através
da abordagem dessas querelas intelectuais, será possível compreender noções caras à
historiografia do oitocentos, como a preocupação com o alcance da “verdade histórica” e
a importância conferida à legitimação de determinados tipos de fontes primárias, sem a
qual a primeira tarefa se mostrava inalcançável.

4.1 Dezessete em pauta

Se indispensável fosse apresentar somente um movimento de caráter político, cuja


história tenha sido vista e revista de diferentes modos ao longo do tempo, a Revolução de
1817 em Pernambuco poderia, certamente, ser destacada. Basta indicar que, em cem anos,
ela passou de tenebrosa a necessária, de absurda a inevitável.
Da negação do movimento à sua comemoração participaram diversos
personagens: os que o vivenciaram, o testemunharam, ou que dele sentiram apenas as
consequências mais imediatas; e aqueles, por fim, que já o conheceram a partir da ótica
da posteridade – como “passado”, morto e acabado –, e que puderam, por isto mesmo,
211

associá-lo de maneira terminante a outros fatos anteriores e posteriores para formar um


único processo, ressignificando 1817 como mito fundador de outros tantos movimentos
políticos de destaque (a Independência, a República), ou, tão somente, como continuador
de outros (as independências da América inglesa e espanhola, a Revolução Francesa).
Distantes desta última perspectiva estavam, portanto, os que, logo após o desfecho da
rebelião, se propuseram a analisá-la1. Ainda sob o impacto da violência do movimento,
ou sob sua acalorada idealização, suas opiniões foram constantemente avaliadas, a ponto
de estimularem estudos cada vez mais focados no assunto, com o passar dos anos.
Os depoimentos mais taxativos contra o movimento tiveram como porta-vozes
algumas testemunhas oculares, como Louis-François de Tollenare e Antonio de Moraes
e Silva, e nomes de importância no cenário letrado brasileiro, que sobre ele se
debruçaram, como João Manuel Pereira da Silva e Francisco Adolfo de Varnhagen2. Estes
últimos, além de criticarem os acontecimentos derradeiros de 1817, expuseram opinião
negativa em relação a um de seus personagens mais atuantes, não à toa também seu
primeiro “historiador”3: Monsenhor Francisco Muniz Tavares, autor de História da
Revolução de Pernambuco de 1817. A publicação desta obra feita sob (o que ainda era
considerado) o calor do momento, em 1840, foi um aspecto que certamente causou muitos
desafetos, mas não o único.
Tal qual a rebelião propriamente dita, o livro de Muniz Tavares só terá sua
reabilitação completa com o centenário do movimento, em 1917. Não sem antes ser alvo

1
Esta afirmação, contudo, deve ser relevada. Como será visto, análises do século XIX já propunham
interpretar a Revolução Pernambucana dentro de uma ótica de processo em relação a eventos do passado
e do presente.
2
De acordo com Costa Porto, o viajante francês Tollenare, que não tinha preocupação alguma de “posar”
para a posteridade, escreveu seu testemunho através de diário íntimo. Ainda assim, procurou manter
“linha serena de imparcialidade e isenção” – apesar de se apresentar pouco favorável à rebelião da qual só
via o “lado inquietador”. Moraes e Silva, por sua vez, chegou a fazer parte do conselho consultivo do
comando revolucionário – o que não foi suficiente para que visse, posteriormente, com simpatia o
movimento. Para ele, “[...] tudo quanto se fizeram a 6 de março teria sido autêntica ‘borracheira’”.
Varnhagen pode ser considerado o “insuperável demolidor” da insurreição de 1817 e via a importância do
movimento sob a ótica de sua derrota: o triunfo das forças monárquicas era a vitória da unidade nacional.
Por fim, Pereira da Silva desqualificava 1817 como uma “sublevação localizada” e diminuía sua
importância dentro da história do país. Ver as notas do Prof. Costa Porto em TAVARES, Monsenhor
Francisco Muniz. História da Revolução de Pernambuco de 1817. Recife: Governo do Estado; Casa Civil
de Pernambuco, 1969, p. VI-XIII; e GUIMARÃES, Lucia. “Entre a monarquia e a república: a Revolução
Pernambucana de 1817 e suas representações no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro”. In: LESSA,
Mônica; FONSECA, Silvia Carla (Orgs.). Entre a monarquia e a república: imprensa, pensamento
político e historiografia (1822-1889). Rio de Janeiro: EdUERJ, 2008, p. 155-156.
3
Muniz Tavares era visto por alguns como o cronista da Revolução de 1817, não como seu historiador.
Tal perspectiva será retomada adiante.
212

direto da crítica de um dos membros mais importantes do IHGB, seu primeiro secretário
a partir de1859, Joaquim Fernandes Pinheiro4, em estudo denominado “Luís do Rego e a
posteridade”, publicado em 1861 no periódico da instituição. É sobre esta disputa de
escritas, que tinham por foco a Revolução Pernambucana, que centrar-se-ão as páginas
que seguem.
Antes, porém, de entrar nessa discussão, interessa entender o que foi esse
movimento que eclodiu em 1817. Para tanto, faz-se necessário prestar atenção menos ao
tempo em que ele perdurou e mais às ideias que o promoveram e que explicam, em certa
medida, a extremada violência com que as forças legais o reprimiram. O componente
ideológico da revolta talvez seja, neste sentido, um dos pontos mais interessantes para a
historiografia que trata do evento.
No entanto, vale comentar, ainda que rapidamente, sobre os fatores de cunho
“prático” que colaboraram com o crescente descontentamento social momentos antes da
eclosão da revolução. Sabe-se que o que hoje é considerado como o Nordeste do país
passava, naquele momento, por uma forte recessão econômica. Aliado a esse fator,
Pernambuco tinha como governador a figura controversa de Caetano Pinto de Miranda
Montenegro. De maneira geral, à exceção de Muniz Tavares, pouco se diz de positivo em
relação à sua administração na província. Isto se deve a uma série de medidas que tomou,
como a de ampliação da arrecadação fiscal visando à manutenção da Corte e à conquista
da Guiana Francesa. Em seu governo ocorreu também um atraso significativo no
pagamento dos militares – fato que desagradou sobremaneira esta parcela da população
pernambucana5.
Além disso, aqueles eram tempos de um crescente sentimento de lusofobia,
sobretudo na capital da província. De acordo com Luiz Carlos Villalta, isso se explica por

4
Joaquim Fernandes Pinheiro (1825-1876) nasceu no Rio de Janeiro. Formou-se doutor em teologia pela
Universidade de Roma e tornou-se cônego honorário da imperial capela, além de professor de retórica,
poética e literatura do Imperial Colégio de Pedro II. Atuou em diversas sociedades letradas de renome,
tais como o Instituto Histórico francês, as Academias de Ciências de Madri e de Lisboa e as Sociedades
Geográficas de Paris e de Nova York. Publicou diversas obras nas áreas de teologia moral e colaborou
com muitos periódicos, como o jornal Guanabara, o Jornal do Commercio, o Diario e o Globo. Foi
agraciado com o título de comendador da Ordem de Cristo e, antes de seu falecimento abandonou a
carreira eclesiástica para se dedicar ao magistério. Para maiores informações sobre a biografia de
Fernandes Pinheiro, ver: ARAÚJO, José Tito de Nabuco, “Discurso do orador interino”. In: RIHGB, tomo
XXXIX (Parte Segunda), p. 508-512, 1872.
5
VILLALTA, Luiz Carlos. “Pernambuco, 1817, ‘encruzilhada de desencontros’ do Império luso-
brasileiro. Notas sobre as ideias de pátria, país e nação”. In: Revista USP, São Paulo, n. 58, p. 60,
junho/agosto 2003.
213

um sem números de situações em que os naturais da terra viam-se desprestigiados em


função dos portugueses. No que diz respeito ao comércio, por exemplo, evidencia-se o
forte monopólio exercido pelos portugueses à época. Havia uma divisão também nas
tropas que explica, em parte, esse descontentamento: dentro da hierarquia militar esses
últimos eram sempre favorecidos; compunham as tropas de linha, enquanto os nascidos
em Pernambuco só poderiam contar com fazer parte das tropas auxiliares6.
Tal situação, associada à circulação de ideais de cunho revolucionário e
notadamente liberal, estimulou o espírito de revolta. Os exemplos do Haiti, bem como o
das ex-colônias hispânicas, também colaboraram para que determinados grupos dessem
seu apoio ao movimento. Mas, se para os envolvidos no “mundo do trabalho”7, o que
ocorreu à antiga colônia francesa dava esperanças de uma mudança mais definitiva, outra
parte dos insurgentes preferia se guiar por modelos que apresentavam rupturas menos
drásticas e que pouco modificariam a ordem social.
A composição heterogênea dos rebeldes esclarece tais distinções no interior do
movimento. Para Guilherme Mota, a insurreição pernambucana foi, acima de tudo, um
movimento “escravocrata, descolonizador e aristocrático”, mas que carregou, em seu
desenrolar, uma “vertente antiaristocrática”. Foi, ao mesmo tempo, uma rebelião
promovida pelos oligarcas, proprietários brancos e escravocratas, mas que acabou tendo
como meta um sistema nivelador com ideias de igualdade social e racial 8. Ainda sobre a
questão escravista, nota-se que ela era uma temática controversa dentro do movimento.
As ações promovidas no interior do governo provisório sempre tentavam afastar a ideia
de uma ruptura drástica para o fim da escravidão – o que explica o surgimento de uma
proclamação em defesa da abolição lenta, regular e legal9.
O movimento se assemelhava, ainda, a outros anteriores ocorridos no Império
luso-brasileiro, como as rebeliões de Minas Gerais (1788-1789) e da Bahia (1793-1798),
que, grosso modo, alertaram para a possibilidade de fragmentação. Da mesma maneira
que ocorreu na Bahia, uma de suas principais bandeiras a participação dos despossuídos

6
Ibidem, p. 60-61.
7
Ibidem, p. 61. Tal expressão remonta à topologia criada por MATTOS, Ilmar de. O Tempo Saquarema.
São Paulo: Hucitec, 1987.
8
Citado em VILLALTA, Luiz Carlos. Op. cit., p. 67-68, 2003.
9
MELLO, Evaldo Cabral de. A outra Independência. O federalismo pernambucano de 1817 a 1824. São
Paulo: Ed. 34, 2004, p. 52.
214

no jogo político, esbarrando no problema escravista e na discussão das possibilidades


para a abolição. Além disso, adotou, assim como nos casos dos insurgentes mineiros e
baianos, uma nova forma de governo: o sistema republicano10.
A procura por uma linha de continuidade do movimento em relação a outros fez
nascer parte das justificativas das forças rebeldes para levá-lo à frente. Tal linearidade foi
encontrada dentro da própria identidade provincial, com a Revolta dos Mascates (1710).
Neste caso, percebe-se o crescimento de uma noção que seria cara também a 1817: a ideia
de que a Coroa portuguesa devia à aristocracia pernambucana a restauração da capitania
em 1654 e, portanto, que a ela devia ser dado um tratamento especial11. Nota-se, de uma
forma geral, que o reconhecimento da legitimidade da Revolução Pernambucana estava
diretamente ligado às Guerras Holandesas e ao fato de que a expulsão dos inimigos
externos só ocorreu pela luta dos homens da região12. Estabelecia-se, enfim, com a
justificativa de que os Braganças haviam descumprido o pacto firmado com a antiga
capitania, de acordo com o mito constitucional de que “[...] a restauração do domínio
português no século XVII tivera a contrapartida de isenções de natureza fiscal e
administrativa por parte da Coroa [...]” naquela região. Nada mais justo, portanto, do que
assumir Dezessete como a “segunda restauração de Pernambuco”, em evidente referência
à luta contra a Holanda13.
Outra chave para explicar (e, mais do que isso, justificar) a mudança política com
o estabelecimento da República era a da tirania do governo – ora concebido como
português, ora como o localizado no Rio de Janeiro. Após 1808, a voracidade fiscal tendo
em vista manter a Corte na capital carioca era tamanha que possibilita o esclarecimento
de todo o período de reivindicações federalistas de 1817 a 182414.

10
Apesar disso, como disse Muniz Tavares, o movimento pouco teve de popular e a República fundada
em Pernambuco em 1817 era, na verdade, “fruto do exercício da vontade de poucos”. Citado em
VILLALTA, Luiz Carlos. Op. cit., p. 69.
11
MELLO, Evaldo Cabral de. “A ferida de de Narciso”. In: _____. A ferida de Narciso. Ensaio de
história regional. São Paulo: Senac, 2001, p. 41.
12
Idem. Op. cit., 2004, p. 43. Havia uma ideia de que a região entre o Ceará e o São Francisco, que
correspondia ao antigo Brasil holandês, constituía uma “latente entidade estatal” desde as diretrizes
constitucionais de 1799.
13
Ibidem, p. 45-46.
14
Ibidem, p. 29-30.
215

Tratando mais propriamente da rebelião, pode-se dizer que Caetano de Miranda


Montenegro acabou tendo papel fundamental para sua eclosão. Fontes indicam que ele
sabia a respeito do movimento e que nada fez para contê-lo15. Isso ajudou a aumentar a
sua imagem negativa, da qual já se comentou. Apenas quando já não era possível
esquivar-se da revolta que estava se desenvolvendo, foi que Montenegro ordenou a prisão
de militares que dele fariam parte, o que desencadeou uma insubordinação geral nas
fileiras do regimento de artilharia da Fortaleza de Cinco Pontas16. Isso deu início ao
levante17 e ao estabelecimento, com a fuga do governador para o Rio de Janeiro, de um
governo provisório instalado no início de março18.
O novo governo instaurado tratou logo de se organizar. O primeiro (e talvez mais
significativo) passo para isso foi a criação de uma “lei orgânica” – espécie de constituição
temporária da nova sociedade. Entre outros aspectos, ela definia para Pernambuco a
soberania popular19, o regimento republicano, a liberdade de imprensa, de consciência e
de religião como princípios fundamentais20. Já outros temas, ainda mais radicais, como a
igualdade de direitos, não foram tratados pela legislação provisória21.
Para alguns autores, como o próprio Muniz Tavares, a revolução tinha em mira o
Brasil, não apenas Pernambuco. Mais coerente é a análise de que o governo republicano
pretendia ampliar-se para as províncias vizinhas, obtendo sucesso no Rio Grande do
Norte e no Ceará22. No entanto, em maio daquele mesmo ano, já havia sucumbido.

15
VILLALTA, Luiz Carlos. Op. cit., p. 70-71, 2003.
16
Ibidem, p. 71.
17
Comandado pelo negociante Domingos José Martins, pelo ex-magistrado e ouvidor Antônio Carlos de
Andrada (irmão de José Bonifácio) e pelo padre João Ribeiro. Ibidem, p. 73.
18
Faziam parte da administração do governo provisório: Manuel Correia de Andrade, Domingos José
Martins, José Luís de Mendonça, Domingos Teotônio Jorge – representantes, respectivamente, da pasta
da agricultura, comércio, magistratura e forças armadas – e o padre Miguelinho. Ibidem, 69.
19
Para os revolucionários, a “soberania popular” opunha-se, fundamentalmente, à tirania e ao despotismo,
mas não era aberta à toda a população – a cidadania era restrita, compartilhada por uma parcela
privilegiada da sociedade, excluindo-se as camadas populares, sobretudo os escravos. Ibidem, p. 76.
20
Ibidem, p. 71.
21
MELLO, Evaldo de. Op. cit., 2004, p. 50.
22
Ibidem, p. 43 e p. 45. Para o historiador, “As previsões de que os acontecimentos em Pernambuco
desaguariam na independência de todo o Brasil não significa que Dezessete se propusesse a promovê-la”.
216

A máxima de que a tradição revolucionária pernambucana seria o embrião da


Independência e da República ecoou durante o século XX. Na historiografia regional,
contudo, há uma ideia ainda mais forte, de que os habitantes de Pernambuco desejavam
mais do que uma emancipação de Portugal ou do Rio de Janeiro e da constituição de um
governo de natureza republicana; sua aspiração era a de preservar a autonomia local no
âmbito nacional que se construía, no oitocentos, no centro-sul. Para os rebeldes, a
liberdade pernambucana era o que convinha. Assim, para além da constituição de um
regime republicano ou separatista, era o caráter autonomista que importava aos artífices
de 181723.

4.1.1 Quando a história narrada é a história vivida

Narrarei o que vi, e o que pessoas de suma probidade referiram-


me; falo em presença de contemporâneos, estes decidirão.
Francisco Muniz Tavares24

A quem cabe julgar a história?


Contrariando um dos tópicos mais utilizados pelo IHGB em suas primeiras
décadas – o de que a única juíza legítima do presente é a posteridade –, Tavares
estabelecia que, pelo menos no que diz respeito à sua história da rebelião de 1817, a tarefa
devia ser dada aos contemporâneos, que, como ele, vivenciaram os acontecimentos
daquela conjuntura de Pernambuco.
Tal aspecto evidencia desde já opiniões destoantes entre o autor da História da
Revolução de Pernambuco de 1817 e do grupo diretor do Instituto Histórico localizado

23
O foco era a descentralização, não o fim da monarquia. MELLO, Evaldo de. “O descompasso”. In:
_____. Op. cit., 2001, p. 78-80.
24
TAVARES, Monsenhor Francisco Muniz. Op. cit., 1969, p. 27. Nascido no Recife, Muniz Tavares
(1793-1876) formou-se doutor em teologia em Paris e, posteriormente, foi feito monsenhor. Foi também
escritor, historiador e deputado nas Cortes de Lisboa, entre 1820 e 1822, e na Assembleia Geral,
Constituinte e Legislativa do Império do Brasil, em 1823 e, depois, entre 1845 e 1847. Foi o primeiro
presidente do Instituto Arqueológico e Geográfico de Pernambuco, o qual ajudou a fundar, em 1862, e
sócio correspondente do IHGB. Recebeu muitas honrarias, como a de dignitário da Ordem do Cruzeiro, e
teve muitas obras publicadas. Para uma biografia mais detalhada do autor, ver o link:
<http://www2.camara.leg.br/a-camara/conheca/historia/presidentes/francisco_tavares.html>. Acesso em:
05 ago. 2014.
217

no Rio de Janeiro25. Aquele que narrou foi também ator em sua trama; não à toa,
provocava o leitor ao dizer que escreveu o que “viu e ouviu” – utilizando como subsídio
de trabalho, ao mesmo tempo, sua própria trajetória e a de pessoas próximas, esperando
que sua absolvição fosse feita já no presente. Nesse contexto, Tavares evocou em seu
livro a imagem de determinados personagens da rebelião e a maneira como o fez em cada
caso específico, como será visto, também pode explicar a repercussão por vezes negativa
que seu texto gerou, algo que pode ser melhor evidenciado a partir de sua comparação
com a de outras produções do IHGB sobre o mesmo assunto, anos mais tarde.
José Antônio da Costa Porto, na introdução à 4ª edição (publicada em 1969) do
livro de Tavares, demonstrava que, a despeito da grande relevância da obra, esta não
poderia ser considerada de história. Em sua opinião, haveria um exagero em enquadrá-la
como tal; mais certo seria denominá-la como uma “crônica dos acontecimentos”, um
compêndio que podia auxiliar analistas posteriores a examinar com profundidade o
evento26.
Relembrando que no momento em que escrevia Muniz Tavares a definição do que
era história carecia de contornos precisos, a assertiva de Costa Porto atinge um ponto
fundamental: a análise de Tavares sobre o movimento pernambucano não era exemplo de
um texto de história, ou do que foi considerado como história com o passar do século XIX
e início do século XX. Ele não apresentava as qualidades de uma obra historiográfica,
entre outros aspectos, porque não abordava dimensões fundamentais para aquela: não
estabelecia relações de causa e de consequência para o evento narrado, fato que
empobrecia a análise e descaracterizava a noção de processo histórico27.
No início do texto, Tavares apontava para elementos que podem ter colaborado
com o parecer feito por Porto. Demonstrava então qual perspectiva historiográfica
pretendia adotar em seu trabalho, e sua escolha destoa de maneira substancial à forma de

25
Nota-se que, apesar de Muniz Tavares ter sido sócio correspondente do IHGB desde 1845, sua
participação nas atividades da agremiação foi praticamente nula.
26
“De Muniz Tavares, digamos, mais uma vez, seria exagerado dizer que foi um historiador, no sentido
mais rigoroso do termo, sendo sua contribuição mais uma crônica dos acontecimentos, reunindo o
material, rico, sobre o qual os analistas posteriores poderão lastrear o exame de profundidade da
Revolução de 1817”. TAVARES, Monsenhor Francisco Muniz. Op. cit., 1969, p. XXIV.
27
“Ora, se a ‘história’ da Revolução de 1817 – a sua interpretação, sua análise, a concatenação de seus
episódios em termos de relação da causalidade – ainda está por escrever – a sua ‘crônica’ –, a narração
serena dos episódios que tece, – temo-la, completa, lúcida, austera e nobremente ordenada na obra
clássica do Mons. Francisco Muniz Tavares [...]”. Ibidem, p. XVII.
218

história que passou a ser legitimada como ideal até o momento em que intelectuais como
Costa Porto atuavam. Nas palavras de Tavares, a história “[...] é a experiência das nações,
é a conselheira mais sábia dos Reis: aquele, que bem a escreve, presta mui relevante
serviço; desejava prestá-lo[,] eis a razão desta obra”28. Assemelhava-se, desse modo,
muito mais aos cronistas medievais e renascentistas que narravam a vida dos reis e lhes
davam conselhos para bem administrar do que ao historiador moderno, que deveria se
pautar pela crítica documental e pelas noções de isenção e imparcialidade – ainda que a
real existência destas em qualquer trabalho historiográfico deva ser relevada. Vale notar,
mesmo assim, que Porto garante ao leitor que Tavares alcançou o “amor à verdade”, “o
equilíbrio em se não deixar apaixonar”, o que era algo difícil, tendo sido ele um “[...]
participante, não através de mera atitude liricamente simpática, mas por ação” do
movimento29.
Contradições à parte, é possível perceber que Tavares adotou uma interpretação
de história que se distanciava daquela que já possuía uma crescente relevância no
momento em que escreveu. E se o fez conscientemente ou não, o fato é que não deixava
de considerar sua obra como sendo de história – algo que pode ser constatado através da
escolha do título do texto.
Seguindo a escrita de Tavares, nota-se a valorização que propunha para a rebelião,
indicando-a, e talvez sendo o primeiro a fazê-lo, como uma antecipadora da
Independência do Brasil do jugo colonial. A revolução que lhe garantiu quatro anos de
reclusão na Bahia fazia parte de um movimento iniciado com a Guerra Holandesa: a
participação dos pernambucanos na luta contra um inimigo externo, ao passo que Portugal
pouco ou quase nada fizera para a sua expulsão.
A revolução de Pernambuco de 1817, bem que mui pouco durasse, fará sempre
época nos anais do Brasil; tempo virá, talvez, em que o dia seis de março, no
qual ela foi efetuada, será para todos os brasileiros um dia de festa nacional.
Pernambuco já se tinha assaz ilustrado na sanguinolenta luta, que por longo
decurso de anos, desprovido de meios, abandonado a si só, valorosamente
sustentara contra uma das mais poderosas nações marítimas da Europa,
defendendo a sua honra, o seu território, a despeito das reiteradas ordens do
tímido Bragança30.

28
Ibidem, p. 27.
29
Ibidem, p. XXIV.
30
Ibidem, p. 27.
219

1817 fazia parte de uma identidade própria à região, que havia muito se revoltara
contra aqueles que pretendiam extorqui-la. Se no século XVII, essa figura era
representada pela Holanda, no início do XIX, eram os portugueses e, posteriormente, a
Corte no Rio de Janeiro que faziam suas vezes. Tavares preludia então aquilo que, ao
longo do tempo, se tornaria uma análise recorrente sobre a rebelião pernambucana; refere-
se a ela como um primeiro passo para 1822:
[...] foi essa a província, quem primeiro deu o sinal ao Brasil de ter chegado o
momento tanto suspirado de entrar no gozo dos bens imensos, que a cobiça
portuguesa por espaço de três séculos extorquia; [...]. Desgraçadamente não foi
seguida, sucumbiu; mas não pereceu o germe plantado e regado com o sangue
dos seus mártires: em tempo oportuno frutificou e não deixará de crescer com
vigor31.

Assim, ao contrário do que apontava Costa Porto em 1969, acredita-se que o autor não
deixou de efetuar relações de causas e efeitos em sua obra. Na introdução dela, indicava
o papel da província em guerras do passado e como precursora da emancipação futura –
uma maneira de trazer à tona tais relações.
Outro aspecto que deve ser mencionado é o fato de que, naquele primeiro
momento, o autor procurou não discriminar os motivos que levaram ao malogro da
movimentação de 1817, apesar de assumir que os erros que colaboraram com seu fim
fariam parte do “domínio da história” e a sua divulgação seria uma verdadeira “lição da
posteridade”32. Nesse sentido, apresentava determinado entendimento de história que
chegava, de certo modo, a contradizer o que havia dito anteriormente sobre aqueles que
deveriam julgar seu trabalho – a posteridade julgaria, senão todo o evento (ou mesmo da
história por ele escrita), ao menos os erros que culminaram com o seu fim. Sob esse
prisma, seu trabalho era uma forma de vingar a dor dos bons pernambucanos que, como
ele, sofreram injustiças e violências sem tamanho. O próprio historiador-personagem
atuava então como um magistrado, cujo encargo era o de administrar o legado dos mortos
(e possivelmente de alguns vivos) e intermediar/interpretar suas vozes junto à
posteridade33: “Exporei com religioso escrúpulo as sevícias praticadas contra os infelizes

31
Ibidem, p. 28.
32
Ibidem, p. 28.
33
OLIVEIRA, Maria da Glória de. Escrever vidas, narrar a história. A biografia como problema
historiográfico no Brasil oitocentista. 2009. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal do Rio
de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009, p. 156.
220

patriotas pernambucanos: assim a humanidade ultrajada será vingada com a execração


dos bárbaros, que as ordenaram, e dos vis que as executaram”34.

O primeiro capítulo trata do panorama da província em 1817, sobretudo no que


diz respeito aos problemas que enfrentava no campo da agricultura e aos altos impostos
cobrados pela Coroa portuguesa. Em sua opinião, por muito menos as colônias inglesas
haviam, anos antes, renegado sua identidade colonial, tornando-se independentes35.
No segundo capítulo, seu foco estava em comentar sobre a origem da revolução:
a rivalidade entre brasileiros e portugueses e o crescente descontentamento com a situação
colonial que deu origem a tantas outras rebeliões no século XVIII (tais como a Revolta
dos Mascates, em 1710, e a Inconfidência mineira, de 1789). Cita novamente o
movimento de independência estadunidense e também o da América hispânica. Curioso
notar a necessidade do autor em estabelecer ligações com tais acontecimentos, de modo
a dotar 1817 com um ar de processo inescapável36 – algo que será resgatado pela
historiografia posterior, principalmente no século seguinte.
De acordo com Tavares, a Revolução de 1817 devia ser analisada como parte de
uma movimentação mais ampla no sentido de romper com uma ordem pré-estabelecida
de natureza colonial. O erro dos rebeldes, contudo, foi tentar imitar o que foi feito no
restante das Américas sem atentar para a “natureza” política do Brasil. Nesse sentido, a
crítica do autor à rebelião da qual participou era em relação ao fato de ela ter tentado
implantar um regime republicano, imitando os Estados Unidos da América.
[...] eles [os rebeldes de 1817] imaginavam que qualquer instituição
caracterizada útil era aplicável a todos os povos, sem se lembrarem que com
facilidade pode-se transplantar a lei, mas não o espírito da Nação; não
pensavam que no Brasil existia um trono, e ocupado por um Rei naturalmente
bom, circunstância, que muito diversificava a posição respectiva 37.

Sintomático perceber que “eles” – e não “nós” – erraram ao adotar a República


como modelo político38. Essa maneira de Tavares se expressar demonstra a ocorrência de

34
Ibidem, p. 28.
35
TAVARES, Monsenhor Francisco Muniz. Op. cit., 1969, p. 33.
36
Ibidem, p. 36: “O Brasil estimulado por exemplos de tanta magnitude, e com a consciência da própria
força era impossível que permanecesse na inação”.
37
Ibidem, p. 36-37.
38
A adoção do sistema republicano talvez pudesse ser explicada pelo grande número de maçons no
movimento – os “amantes da República”, conforme indica o autor. Ibidem, p. 37.
221

uma oposição dentro do próprio movimento, que será explorada em alguns momentos no
decorrer do texto.
Os capítulos que seguem dão conta dos acontecimentos da revolução, desde seu
estopim até seu encerramento com a vitória das forças legalistas. Ainda assim, vez por
outra, Tavares dava uma pausa em seu estilo narrativo linear de descrição de fatos e
apresentava opiniões a respeito dos acontecimentos e de seus artífices. Aos “bravos”
caberia o elogio do escritor e, em consequência, o da posteridade39. Era o caso de José
Martiniano de Alencar40 e, principalmente, o de José Inácio Ribeiro de Abreu e Lima, o
padre Roma, que morreu de forma heroica em função da causa41. Foi também o exemplo
do grande mártir da (posterior) Confederação do Equador, Frei Caneca, que teve sua
prisão narrada de forma apaixonada pelo autor e também espectador do drama:
Com a cabeça descoberta aqueles quatro indivíduos [referia-se a Pedro
Pedroso, José Mariano de Albuquerque Cavalcanti, Antonio Carlos Ribeiro de
Andrada e Frei Caneca] precediam a marcha dos outros, que em fila
caminhavam rodeados por um forte destacamento; a música militar os
acompanhava a fim de convidar com o seu som todas as classes da povoação
a serem testemunhas da lúgubre procissão. O pranto das esposas, dos filhos,
dos parentes desses presos, era o canto de glória, que ouviam com deleite os
promotores do espetáculo42.

Com repugnância pela situação de Frei Caneca e demais sentenciados à prisão,


Tavares concluía dizendo que tal circunstância demonstrava “[...] como eram tratados os
vassalos de um rei absoluto” 43. Dirigia-se ao leitor para fazer esta constatação, talvez para
que ele “decidisse” ou julgasse o correr daqueles fatos, retomando a ideia que constava
da introdução do texto.
O desenrolar dos acontecimentos dependia, nesse sentido, de decisões superiores:
“Tudo era envolvido em mistério, tudo terror”44. O próprio futuro de Tavares era incerto.
Por isso, naquele momento da narrativa, é possível sentir a carga de sentimentos do autor

39
“Mil louvores aos bravos, que assim se distinguem: são estes os atos, que imortalizam o homem, e que
o escritor público deve gloriar-se de transmiti-los à posteridade como modelos de imitação”. Ibidem, p.
48.
40
Ibidem, p. 90.
41
Ibidem, p. 96-97.
42
Ibidem, p. 197.
43
Ibidem, p. 197.
44
Ibidem, p. 203.
222

em relação ao tema sobre o qual trabalhava, a tal ponto que o próprio se desculpava por
tamanha parcialidade: “O leitor desculpar-me-á, se desço a tais particularidades; o horror,
que ainda sinto, não me detém a pena”45. Apesar disso, não deixou de comentar sobre
momentos ainda mais dramáticos em que não só esteve presente, como foi deles
protagonista. Foi o caso de sua própria prisão e da vida que passou a levar na cadeia.
Descrevia, com paixão, as péssimas condições em que se encontrava em tal situação:
A barba e as unhas cresciam com a poeira, porque faltava a água necessária, e
tocar em navalha, tesoura, ou garfo, era delito imperdoável. Nojentos vermes
devoravam a pele daquelas múmias viventes; a morte começou a dizimá-los; e
se alguns sobreviveram; deve-se à graça inefável da Onipotência Divina 46.

Enquanto vivia sua desgraça pessoal, Tavares também teve que chorar por
companheiros que se encontravam em situação ainda pior. Descreveu então os momentos
finais de Domingos Teotônio Jorge, considerado, por alguns, um dos líderes da
revolução47, enforcado pela participação no movimento. Após colocar no papel as
palavras que Teotônio teria dito em seu momento final, o autor alertava para o péssimo
caráter dos responsáveis por cuidar dos presos ou por tirar-lhes a vida. Teotônio, de
acordo com ele, mal terminou de se despedir quando jazia sufocado pelas mãos do
carrasco. Em suas palavras finais, ele se portara como um verdadeiro herói para a causa;
preocupava-se não com o fim de sua própria vida, mas pelo que dela pensariam os
pósteros – incluindo seu próprio filho48.
A morte veio, mas não foi suficiente para terminar os castigos de Teotônio. Com
terror, Tavares lembrava que, assim como ocorrera a outros sentenciados, ele teve sua
cabeça e mãos distribuídas em diferentes lugares, sendo que a primeira foi “[...] suspensa
em altos postes, e patentes [sic] ao público em estado de putrefação”. Os réus condenados
à morte tiveram, ainda, seus corpos sem vida “[...] ligado[s] à cauda de um cavalo e
arrastado[s] pelas ruas do Recife”49.

45
Ibidem, p. 203.
46
Ibidem, p. 204.
47
Como já foi dito, Teotônio foi o responsável pelas Forças Armadas durante a instalação do governo
provisório. VILLALTA, Luiz Carlos. Op. cit., p. 69, 2003.
48
“‘Meus patrícios, a morte não me aterra, aterra-me a incerteza do juízo da posteridade. Eu deixo um
filho em tenra idade, ele é vosso; não o abandoneis, ensina-lhe o caminho da virtude e da honra’ [...]”.”.
TAVARES, Monsenhor Francisco Muniz. Op. cit., 1969, p. 207-208.
49
Ibidem, p. 208.
223

Muniz Tavares, querendo mostrar como era grande a perfídia das forças legalistas
no julgamento dos participantes de 1817, criticava a falta de possibilidade de defesa dos
suspeitos que eram enviados para outra província, longe de seu “país natal” – ou seja,
Pernambuco. Isto justificava-se, segundo ele, porque as autoridades só se interessavam
em descobrir réus e aplicar-lhes severas penas. A possibilidade de defesa dos acusados
estava fora de questão50.
Todas essas atrocidades só tiveram fim graças aos acontecimentos do outro lado
do Atlântico. Com a Revolução do Porto, a sorte dos presos na Bahia mudou
substancialmente: houve uma soltura coletiva e teve fim o processo. Entendia-se que a
causa pela qual lutaram era “a causa da humanidade”, que aspiravam a um “governo livre”
e que foi por causa da liberdade que desejaram ser independentes51. Ideias, portanto, que
se assemelhavam ao que estava sendo discutido pelos liberais portugueses52. Estes
acontecimentos em terras portuguesas seriam decisivos para o Brasil, como se sabe, assim
como para a trajetória individual de Muniz Tavares. Após ter sua liberdade restaurada,
tornou-se deputado nas Cortes, onde tomou posição crucial contra Luís do Rego Barreto,
como se verá a seguir.
Se até aqui se verificou que Tavares procurou efetivamente vingar os “bons”, não
é menos verdade que ele se esforçou igualmente para encontrar e culpabilizar os “maus”
dessa história. Demonstrava que alguns deles estavam dentro do próprio governo
provisório. A eleição do mesmo, feita por poucos, em um Estado que se pretendia livre,
foi marcada pela mais vil tirania53. Segundo ele, “Um grande erro dos diretores da
revolução tinha sido a negligência do primeiro dever dos governos livres, isto é, a reunião

50
“Arrancar do seu país natal presumidos delinquentes, e acarretá-los para outra Província a fim de serem
aí julgados, é uma atrocidade, é por si só um castigo severo, e faz supor com fundamento que a
autoridade, que assim comanda não deseja descobrir senão réus para deleitar-se na aplicação das penas:
porquanto em tal modo priva a defesa; as testemunhas, que hão jurado contra, não podem ser
confrontadas, nem contrariadas, nenhuma apresenta-se em favor; as mesmas despesas do processo muito
mais custosas não contando as que se fazem para o sustento da vida”. Ibidem, p. 214.
51
Ibidem, p. 217-218.
52
Ainda que seja reconhecido que essas ideias funcionariam bem à realidade portuguesa, não à das
colônias. Com o passar do tempo, os portugueses passaram a demonstrar cada vez mais uma veia
autoritária em relação ao Brasil, tratando, inclusive, de diminuir sua legitimidade conquistada com os
decretos de D. João VI, entre outras questões. Para muitos autores do século XIX, como Caetano Lopes
de Moura, tal situação era uma verdadeira afronta ao Brasil e foi o principal motivo para que a
independência ocorresse em 1822. Conferir, a esse respeito, de minha autoria: Histórias do Brasil para a
mocidade: os epítomes de José Pedro Xavier Pinheiro e Caetano Lopes de Moura (1850 -1870).
Dissertação de mestrado em História apresentada à UERJ, 2010, p. 97-98.
53
TAVARES, Monsenhor Francisco Muniz. Op. cit., 1969, p. 57-58.
224

dos escolhidos do povo em corpo constituinte, e legislativo; o interesse de todos deve ser
tratado por todos”54. Os conselheiros do governo provisório, até por seu vasto saber,
falharam também ao não enxergar o precipício em que caía, pouco a pouco, a causa
pernambucana. Entre outros aspectos, Tavares aponta o erro em que incorreram quando
da criação do decreto que pretendia manter (e estimular) as rivalidades entre portugueses
e pernambucanos55. Outra falta cometida por eles foi contar com o apoio de nações como
os Estados Unidos56.
Mas, sem dúvida alguma, para Tavares, o maior vilão estava do outro lado dessa
história. Era o enviado por D. João VI para reprimir os partidários da República em
Pernambuco e governar a província, Luís do Rego Barreto57. Desde sua chegada à região,
o autor esforçou-se por demonstrar os mais odiosos aspectos que rodearam seu governo.
Em suas palavras:
[...] com a sua vinda aumentou-se o terror, afeição vil, que mais degrada o
homem fazendo pensar que com repetidas baixezas pode melhorar a triste
condição. Foi recebido com júbilo, e recompensou com escárnio. Por sua
ordem foram sequestrados todos os bens dos presos, dos quais as inocentes
esposas e filhos ficaram igualmente expostos aos horrores da mendicidade58.

Ainda que não fosse o único responsável por tudo de ruim que acontecia na
província, Rego era permissivo em relação a muita coisa que deveria ser vista como
detestável59. Segundo Tavares, “Por ordem vinda do Rio de Janeiro foi suspendida a
carnificina para ser manejada por juízes togados os quais procrastinando os tormentos
dessem a aparência de justiça”60. Criticava, assim, o governador em exercício também
por ele representar os mandos de D. João VI e seu séquito que se encontrava no Rio de

54
Ibidem, p. 151.
55
Ibidem, p. 103.
56
Ibidem, p. 104. Ainda do lado rebelde, Tavares cita negativamente o nome de José Mariano, que,
durante o combate do Porto de Pedras, abandonou os companheiros em plena luta: “Segundo o seu modo
de pensar a maior importância do negócio consistia na salvação da sua pessoa”. Ibidem, p. 129.
57
Luís do Rego Barreto (1777-1840) foi um militar português que atuou ativamente na luta contra as
tropas napoleônicas. Foi enviado ao Brasil, onde derrotou a insurreição de Pernambuco. Permaneceu
nesta província até 1821, quando retornou à Europa. Maiores informações sobre a biografia de Rego serão
trazidas adiante.
58
TAVARES, Monsenhor Francisco Muniz. Op. cit., 1969, p. 206.
59
Segundo o autor, o “[...] governador [era] sempre criminoso; porque se não comandava o delito, o
permitia”. Ibidem, p. 209.
60
Ibidem, p. 209.
225

Janeiro. A própria devassa feita em Pernambuco não tinha como propósito julgar os
rebeldes, mas “[...] despovoar totalmente Pernambuco dos indivíduos, que tinham tido a
fortuna de aí nascer: e era este o máximo dos crimes”61.
Os absurdos atos de Luís do Rego foram, nesse sentido, de grande monta. Mesmo
quando a situação modificou-se na década de 1820 e os rebeldes foram libertados,
demonstrou mais uma vez grande falta de caráter ao se denominar liberal – ou, de acordo
com Tavares, um “improvisado liberal” –, proclamando as bases da futura constituição62.
Sua real intenção, na visão do autor, era se passar por liberal somente para, dessa forma,
perpetuar-se no governo da província63, nada mais.
Apesar disso, Tavares se dizia desfavorável ao atentado sofrido por Rego na
época64, sobretudo pela repercussão que ele gerou. O trágico evento fez com que as
suspeitas recaíssem sobre os pernambucanos, sobretudo os ex-defensores da causa de
1817. Nesse sentido, os que retornaram da Bahia eram vistos como conspiradores, o que
em nada colaborava com a memória da Revolução ou dos revolucionários65.
Assim, o que aconteceu em julho deu motivos para que Rego continuasse a travar
guerra contra os participantes do movimento. Justificando suas atitudes a partir do
atentado, enviou presos a Portugal de forma inescrupulosa, sem nem ao menos promover
inquérito cabível para apurar os fatos66. Contra tamanha tirania, Muniz Tavares, então
deputado nas Cortes de Lisboa, fez valer sua voz – e a longa citação dessa fala em sua
História da Revolução de Pernambuco de 1817 demonstra o quanto sua narrativa tinha
de pessoal e passional:
O autor desta história sentiu o seu dever, alçou-se, pediu a palavra e orou da
maneira seguinte [...] que Luiz do Rêgo Barreto avezado a exercitar com furor
o regime despótico, havendo no inteiro curso da sua vida, e em particular no
governo, que ainda ocupa, dado mui evidentes provas do seu aferro à
abominada monarquia absoluta, era quase impossível que cordialmente

61
Ibidem, p. 212.
62
Ibidem, p. 219-220.
63
Ibidem, p. 221.
64
Muitas incertezas ainda cobrem a origem de tal atentado, ocorrido em 20 de julho de 1821. O fato é que
Luís do Rego foi baleado e seu perseguidor, lançado ao rio. O governador de Pernambuco em exercício
teria ido então para a casa de Antonio de Moraes e Silva, a fim de se restabelecer. CARVALHO, Marcus
de. “Cavalcantis e cavalgados: a formação das alianças políticas em Pernambuco, 1817-1824”. In: Revista
Brasileira de História, vol. 18, n. 36, São Paulo: 1998.
65
TAVARES, Monsenhor Francisco Muniz. Op. cit., 1969, p. 222-223.
66
Ibidem, p. 224.
226

abraçasse o sistema liberal, que prostrava o seu orgulho insensato, e destruía


os ambiciosos planos, que em sua ligeira cabeça havia concebido. [...] Vós
vedes, ilustres deputados, a singular confirmação da constitucionalidade: um
desesperado, que talvez teria motivo de desafrontar-se de injúria privada, tenta
assassiná-lo, e eis que toda a província é indistintamente caluniada, e
perseguida, os melhores pernambucanos garroteados sem nenhuma forma de
processo [...] É constitucional Luiz do Rêgo, Monstro! [...] Não temais que
Pernambuco arvore o estandarte da rebelião contra as sábias reformas, que para
o bem geral da humanidade intentais fazer, vos engana o tirano, crê que com
esta vaga acusação vos incutirá o terror. [...] eles só querem um governo justo,
um governo liberal: um tal governo é garantido com a Constituição, que se vai
organizar, e que ansiosamente todos esperam. [...] Sejam postos imediatamente
em liberdade os míseros pacientes, que a vós por meu órgão recorrem, e sejam
restituídos à sua pátria à custa do Tesouro Nacional, pois que obrigá-los ao
pagamento das despesas de uma tão longa viagem seria impor-lhes pesada
multa, que de certo não merecem. [...] a Justiça é a única sólida base dos
governos67.

O pedido de Tavares foi aprovado unanimemente. Tempos depois, os presos


retornaram ao Brasil e foram colocados em liberdade68. Uma mudança de rumos também
atingiu Luís do Rego. Em outubro de 1821 ele retornou para a Europa, após a Convenção
de Beberibe, que elegeu nova Junta Governativa para a província de Pernambuco69.
Meses antes, em abril daquele mesmo ano, outro personagem citado
negativamente por Tavares passou por destino semelhante. Fazendo um balanço do
reinado de D. João VI no Brasil até seu regresso a Portugal, o historiador indicava, a
despeito das virtudes “particulares” do monarca, que ele não poderia ser considerado um
bom rei, sobretudo por seu “despotismo violento”, aliado à “dilapidação das finanças do
Estado”, decorrente, entre outros aspectos, da “[...] distribuição irregular das
recompensas, a impunidade dos delitos nas classes superiores, o manejo dos negócios
públicos por pessoas ou decrépitas, ou ignorantes”. Nas palavras do autor, tais aspectos
revelavam os principais motivos para decadência de Portugal e o “desgosto do Brasil”70.
Tavares carregou nas penas também ao tratar de outro “vilão” em sua história da
rebelião pernambucana. Desta vez, considerava como tal uma instituição, não um ser
humano. Referia-se então à escravidão no Brasil. Partidário da abolição, o autor o
demonstrou em diversas ocasiões, trazendo à tona o argumento de que a escravidão era

67
Ibidem, p. 225-227.
68
Ibidem, p. 228.
69
Esse nome deve-se à reunião entre os representantes da Junta de Goiana (formada por militares,
milicianos, plantadores e ex-rebeldes de 1817) e o general português Luís do Rego ter tido lugar na
povoação de Beberibe, localizada entre Recife e Olinda. Para maiores detalhes sobre o evento, ver
CARVALHO, Marcus de. Op. cit., 1998.
70
TAVARES, Monsenhor Francisco Muniz. Op. cit., 1969, p. 131-132.
227

perniciosa, pois encarregava-se de espalhar a “depravação” entre os “filhos da pátria”.


Aproveitava a escrita do texto para fazer um apelo aos representantes da “nação
brasileira” no sentido de que tal “nódoa” – trazida pelos primeiros e “desumanos” colonos
– fosse apagada da história do país71. A história que ele escreveu tinha como mote,
portanto, não apenas o “dever de justiça” em relação aos rebelados de 1817; mas uma
expectativa em relação ao futuro do Brasil, que aparece na lógica do aconselhamento (aos
reis) e do apelo (aos representantes da nação), por exemplo, nesse caso da crítica à
escravidão.
Além disso, de maneira geral, pode-se dizer que a escrita de Muniz Tavares foi
pautada no testemunho e na experiência vivida, o que explica a pouca quantidade de
especificações das fontes das quais dispôs e o quase inexistente apoio de notas de
rodapé72. É bem verdade que, ao fim do texto, há um comentário sobre alguns dos
trabalhos utilizados como subsídio para escrever o livro. Ainda assim, tratam-se
principalmente de testemunhos oculares: as Notas dominicais, de Louis-François de
Tollenare, e as Viagens, de Henry Koster73. Expõe, vagamente, o emprego de documentos
provenientes de arquivos, como os do Instituto Histórico, os do Ministério das Relações
Exteriores e a seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional, além do Arquivo Público74.
Em toda sua análise sobre 1817, o autor procurou descrever os acontecimentos de
forma linear e contínua, mesmo que fizesse muito mais do que isso. Ao ajuizar, ele
próprio, sobre os fatos dos quais participou, demonstrava querer se fazer ouvir (ou, no
caso, ler) como testemunha dos eventos. Como em outros trabalhos desse tipo, o “dever
de memória”75 era o que movia a pena de Muniz Tavares – e, junto com ele, vinha o de
redimir ou culpabilizar os homens por seus atos.

71
Ibidem, p. 155.
72
Sobre a importância das notas de rodapé para o estabelecimento de uma historiografia moderna, ver
GRAFTON, Anthony. As origens trágicas da erudição. Pequeno tratado sobre a nota de rodapé.
Campinas, SP: Papirus, 1998.
73
Em relação ao primeiro, indicava que o depoimento fora feito de forma “familiar e sugestiva”, o que
tornava agradável a leitura das memórias do autor. Ainda assim, garantia que o testemunho era insuspeito,
“[...] ainda que possa aqui e acolá ser influenciado por simpatias ou antipatias pessoais”. Sobre o segundo,
dizia apenas que foi também “testemunha da revolução de 1817”, o que parece ter sido suficiente para
que fosse usado como fonte. TAVARES, Monsenhor Francisco Muniz. Op. cit., 1969, p. 231-232.
74
Ibidem, p. 233.
75
Necessário indicar, entretanto, que a expressão foi cunhada principalmente para tratar dos traumas
causados pelas guerras do século XX. Seu uso tem início na França na década de 1950 e diz respeito ao
exemplo de pessoas que passaram pela experiência dos campos de extermínio nazistas (e outros horrores
da Segunda Guerra) e sobreviveram. Narrar o que aconteceu, nesses casos, mais do que um projeto
228

4.1.2 Quando se fala a serviço da posteridade

Os homens não são tão maus como parecem. É a posteridade


quem melhor os julga; e felizes daqueles que deixam documentos
que desfaçam a calúnia dos contemporâneos, e os apresentem tais
quais foram.
Joaquim Fernandes Pinheiro76

O diálogo entre Fernandes Pinheiro e Muniz Tavares esteve mais para briga.
Considerando a epígrafe com a qual se inicia este tópico, ficam claras as discordâncias
entre os dois em relação a quem caberia o juízo dos acontecimentos. Se para Tavares eram
os contemporâneos que deviam “decidir” sobre os eventos de 1817 por ele descritos, para
Pinheiro tal papel cabia aos homens do futuro – e somente a eles77.
“Luís do Rego e a posteridade” teria, nesse sentido, uma dupla função. De um
lado, atuava como resposta direta ao livro de Muniz Tavares, sobretudo no que este disse
a respeito do então governador de Pernambuco após a eclosão da Revolução. Resposta
direta, ainda que não tenha sido imediata: a sua publicação, em 1861, com o respaldo do
IHGB, denotava um grau maior de afastamento do objeto narrado, ao contrário do que foi
feito pelo autor da História da Revolução de Pernambuco de 1817. Em termos temporais,
haviam se passado quase 50 anos da rebelião. Politicamente falando, muito havia mudado
desde então; e pessoas que atuaram de forma efetiva nos acontecimentos já não se
encontravam mais naquele mundo. Assim, pode-se dizer que Pinheiro escrevia com a
legitimidade de quem narrava sobre 1817 do futuro e esperando que sua mensagem
fizesse a diferença para os vindouros, no sentido de ajudá-los no julgamento dos eventos
de 1817. Funcionava, deste modo, como uma espécie de “aprimorador” dos dados sobre

artístico representava uma motivação para continuar a viver e uma forma de honrar a memória dos que
não tiveram o mesmo destino. Ver HEYMANN, Luciana. “O ‘devoir de mémoire’ na França
contemporânea: entre a memória, história, legislação e direitos”. Rio de Janeiro: CPDOC, 2006.
76
PINHEIRO, Joaquim Fernandes. “Luís do Rego e a posteridade: Estudo histórico sobre a revolução
pernambucana de 1817”. RIHGB, tomo XXIV, p. 354, 1861.
77
“Razão tinham os antigos quando estabeleceram os juízos dos mortos; porque necessário é que
desapareça o homem da superfície da terra para que se lhe faça justiça, para que com imparcialidade se
julgue dos seus atos. Pairam ainda por algum tempo em derredor dos túmulos o espectro das paixões, e
releva que se haja ele ausentado para que sua final sentença profira a história”. Ibidem, p. 353.
229

a rebelião, garantindo à posteridade um retrato mais verídico da mesma e,


consequentemente, um julgamento justo do que se passou e dos seus responsáveis.
O fato de que Pinheiro escrevia já sob o crivo da posteridade é mencionado no
início do texto pelo próprio autor. Sua vontade era a de demonstrar e combater uma série
de erros em relação à Revolução Pernambucana a partir da análise crítica de documentos
resgatados por Joaquim Norberto de Sousa e Silva na Secretaria do Império – um conjunto
que, de acordo com ele, consistia na “justificação de Luís do Rego”. A partir de tais fontes
seria possível desfazer a “calúnia dos contemporâneos”, apresentando os fatos “tais quais
foram”78.
Uma nova luz estava sendo lançada sobre 1817. Graças à documentação levantada
por Sousa Silva – outro notável sócio do IHGB à época, vale lembrar – e à distância de
Pinheiro em relação ao tema de estudo, aquela era a oportunidade de estabelecer a
“verdade” dos fatos e, principalmente, de resgatar a imagem de Luís do Rego, que havia
sido descrito de forma tão maliciosa por Muniz Tavares. Os equívocos em que caíra este
último, contudo, fariam parte de “reminiscências de outra era” e eram explicados pela
carência de documentos, como também pelo fato de ter ele “tomado parte tão ativa nos
acontecimentos que historia[va]”79. “Luís do Rego e a posteridade”, como o próprio título
demonstra, restabelecia os fatos “em toda sua genuinidade”80, posto que escrito pela e
para a posteridade, e não por um contemporâneo (e para seus pares).
Pinheiro, ainda que rapidamente, tratou das causas da revolução, indicando a luta
para expulsar os holandeses da região no século XVII e a Revolta dos Mascates como
exemplos que demonstravam certa tradição guerreira dos pernambucanos, bem como as
crescentes tensões entre portugueses e “brasileiros”, de suma importância para entender
os acontecimentos de 1817. Utilizando como fonte os escritos de Hipólito da Costa no
Correio Brasiliense, o autor apresenta o forte despotismo vivido no Brasil naquela época,
de modo geral, e na região mais ao Norte, em particular. A esse despeito, entendia que
Pernambuco era governado por um “magistrado integérrimo [sic], de maneiras afáveis e
conciliadoras”, que era Caetano Pinto de Miranda Montenegro81. Apesar dele,

78
Ibidem, p. 354.
79
Ibidem, p. 354.
80
Ibidem, p. 355.
81
Ibidem, p. 358.
230

“lamentáveis abusos” estavam se propagando na capitania e o quadro “poético” de Muniz


Tavares não era nem de longe verídico. De acordo com uma testemunha ocular, citada no
mesmo periódico, era verdadeiramente tenebroso o estado em que se encontrava a
“capitania”, e não faltavam críticas ao próprio Caetano Montenegro – contradizendo o
que o próprio autor havia dito anteriormente82.
Diferentemente de Muniz Tavares, Pinheiro parecia dar uma atenção especial às
fontes usadas, como já se percebeu83. Ao tratar dos fatos que deram início à Revolução,
esclarecia que teve conhecimento dos mesmos através “dos mais valiosos e autênticos
documentos”84. Foi graças a eles que não incorreu nos mesmos erros que seu antecessor
ao qualificar, por exemplo, de ilegal a eleição do governo provisório. Tavares, por estar
dentro do movimento, via aquela como um elemento de tirania num governo que se
pretendia livre. Para Pinheiro, só mesmo alguém muito envolvido com a causa não
poderia ver que “ilegal era tudo o que se havia praticado e continuava a praticar” no
Pernambuco revolucionário85.
No entanto, não concordava com Varnhagen, que chamava de ridículo o programa
da República instaurada pelas forças rebeldes. Analisando essa documentação, indicava
a grande generosidade dos “patriotas” – ou seja, os revolucionários – que utilizavam as
palavras de “perdão e esquecimento do passado” e se recusavam a insultar a
administração anterior e a realeza86. Assim, demonstrava o oposto de Muniz Tavares no
que diz respeito à forma como os dirigentes da República se portaram no poder. Se para
Tavares, os atos autoritários promovidos pelo grupo diretor do movimento e o estímulo
deste em promover antigos ódios colaboraram com o fim da Revolução, para Pinheiro
isto estava longe de ser verdade. O que havia culminado com a vitória das forças legalistas
em Pernambuco teria sido a promoção de alguns “corifeus da revolta” e o decreto que

82
Ibidem, p. 358.
83
Interessante constatar também o grande uso que faz de notas, informando as fontes das quais se
utilizava.
84
PINHEIRO, Joaquim Fernandes. Op. cit., p. 361, 1861 (grifos nossos). Vale notar que o autor do texto
escreveu, no ano de sua publicação, em seu relatório anual ao IHGB, sobre o próprio, indicando tratar-se
de um trabalho subsidiado por fontes legítimas tratadas com a devida imparcialidade. Tal circunstância
foi descrita no capítulo anterior.
85
Ibidem, p. 367.
86
Ibidem, p. 367.
231

elevou de forma excessiva os soldos de poucos – fatos que terminaram por despopularizar
o movimento87.
Assim como o “ilustre historiador” Muniz Tavares88, Pinheiro também apontava
os responsáveis pelos mais trágicos momentos em que figurou a rebelião. Mas, ao
contrário do primeiro, destacava, entre outros, o marechal Cogominho, não Luís do Rego.
Em relação a Cogominho, chegou a criticar o fato de ele ter, sumariamente, sido
responsável pela morte do padre Roma – fuzilado por sua ordem no Campo da Pólvora89.
Já sobre Luís do Rego, foco do texto de Pinheiro, restava protestar contra as
injustiças que sofreu na obra de Muniz Tavares. Nesse ponto, para reanimar a memória
do capitão português, Pinheiro utilizou a força de um testemunho90 de alguém que chegara
juntamente com Rego à província em guerra, além de, novamente, o Correio Brasiliense
e um conjunto de missivas trocadas entre o próprio Luís do Rego e o ministro português
Tomás Antônio de Vila Nova Portugal. A confrontação de tais fontes garantiria a
veracidade da narrativa e sua principal função, que era a de mostrar um outro lado de
Rego que não tivera lugar no livro de Tavares. Desse modo, o autor aliava o compromisso
do historiador com a verdade e a imparcialidade – a partir do estudo crítico de fontes
legítimas – ao pressuposto de um tribunal da história, que visava reabilitar o personagem
em questão em nome do sentido de justiça91.
O posto de vilão serviria muito mais, a partir de tais indícios, ao vice-almirante
Rodrigo Lobo ou ao desembargador Bernardo Teixeira92. Sobre este último, por exemplo,
dizia Pinheiro que havia sido o verdadeiro responsável pelos desumanos aprisionamentos
dos rebeldes – algo que, de acordo com o autor, havia provocado a indignação do
governador em exercício93.

87
Ibidem, p. 369.
88
Ibidem, p. 370.
89
Ibidem, p. 371. Sobre o padre Roma, havia dito anteriormente que “[...] ainda está impresso na
memória dos baianos os últimos instantes do padre Roma, – cuja heroica morte remiu os erros e as
fraquezas do homem”. Ibidem, p. 369-370.
90
Não se sabe ao certo quem era a testemunha em questão. Parece-me que a referência aqui seja a José
Caetano da Silva Coutinho. Ibidem, p. 384.
91
OLIVEIRA, Maria da Glória de. Op. cit., 2009, p. 157.
92
PINHEIRO, Joaquim Fernandes. Op. cit., p. 386 e p. 390-391, 1861.
93
Ibidem, p. 390-391.
232

O diálogo com o trabalho de Tavares – sempre posto às claras – fez com que
Pinheiro mais uma vez elucidasse que o protagonista de sua história era Luís do Rego. E
foi nesse sentido que pretendeu elaborar seu estudo: mostrou não só o papel central de
Rego para o desenrolar dos acontecimentos narrados, como também qualificou-o como o
benfeitor daquela história. Ao analisar os últimos trechos do livro de Muniz Tavares,
justamente sobre a administração de Rego em Pernambuco, o autor atacou
veementemente a forma como ela foi qualificada: “Mais fácil é romantizar e faire de
sentiment, como dizem os franceses, do que governar um país que acaba de sair do vértice
revolucionário, e Deus livre ao Sr. Moniz Tavares de se achar nas críticas conjunturas em
que se viu o general Rego”94.
O apreço de Fernandes Pinheiro pelo uso de fontes que considerava legítimas,
demonstrado desde o início de seu texto, parece não ter sido um empecilho para, na maior
parte do tempo, se apoiar nos escritos de seu protegido 95. Em muitos momentos é a voz
de Luís do Rego, quase sem filtro, que é ouvida. Sendo assim, até que ponto seria possível
alcançar a tão citada imparcialidade?
E quando recorria a outros testemunhos oculares (o que era recorrente)? No que,
além de apoiar lados distintos, ele se distinguia tanto em sua forma de escrita da história
de Muniz Tavares?
Uma pista para elucidar esta questão é dada pelo autor. Após narrar alguns fatos
que demonstravam, mais uma vez, a boa índole de Luís do Rego, em contraposição à
vilania de alguns “oficiais corrompidos e perversos”96, Pinheiro se escorou em uma
testemunha ocular, “[...] que há pouco escrevia na calma das paixões, e em face da
imparcialidade do túmulo”97, ou seja, que já havia comparecido perante o tribunal da
posteridade. Assim, diferia-se de Muniz Tavares, que carregou nas tintas por ainda estar
“obcecado pela paixão”, por não conseguir enxergar a “conduta do fiel servidor do
estado” e acabar caindo em verdadeiros “devaneios poéticos” promovidos por uma
“brilhante imaginação” – fatos que prejudicavam, nas palavras de Fernandes Pinheiro, “a

94
Ibidem, p. 394.
95
Apoiava-se, sobretudo, nas referidas cartas trocadas entre Rego e Tomás Antônio.
96
PINHEIRO, Joaquim Fernandes. Op. cit., p. 398-399, 1861. Sobre este ponto, Pinheiro diz ainda que:
“Quereis saber, senhores, a que se reduz todo esse calculado e feroz sistema de perseguições com tão
vivas cores descritas pelo Sr. Muniz Tavares? – A alguns abusos de autoridade policial, altamente
desaprovados pelo governador [...]”. Ibidem, p. 400.
97
Ibidem, p. 399.
233

verdade histórica”98. Os testemunhos que utilizava eram de outra categoria, posto que se
encontravam, em sua maioria, distantes – inclusive pela barreira da morte – dos
acontecimentos. Além disso, Pinheiro indagava-os de modo a instituí-los como fontes
legítimas de credibilidade99.
Em tempo: se houve deslizes por parte de Luís do Rego, eles deveriam ser
relevados, tendo em consideração que o governador em exercício não era mais do que um
executor de ordens superiores e haja visto que, sempre que possível, ele buscava conciliar
tais ordens com o “bem estar dos governados”100. Em sua conclusão, Pinheiro parecia
querer dar um tom definitivo ao tema, ainda que, desde o início, indicasse que “Luís do
Rego e a posteridade” devia ser mais um componente para que os homens do futuro
chegassem à verdade dos fatos sobre a Revolução Pernambucana. Apesar disso,
demonstrava o quanto seu estudo era completo, citando novamente as fontes utilizadas
para levá-lo a termo: “Combinam os testemunhos dos contemporâneos e a voz pública,
firmada nas tradições, em proclamar os notáveis melhoramentos que em todos os ramos
da pública administração recebeu Pernambuco do general Luiz do Rego Barreto” 101. E
praticamente faz eco ao seu querido protagonista ao citá-lo, nas últimas linhas do texto:
“POSTO QUE AS PROFECIAS SE TENHAM REALIZADO NÃO ME ARREPENDO
DO QUE FIZ”102!
Desse modo, aliando alguns dos mais importantes pressupostos para a elaboração
da escrita da história naquele tempo, Pinheiro tentou demonstrar a veracidade de seu
discurso, sobretudo a partir do uso que fez de fontes consideradas legítimas. Apesar disso,
e ao contrário do que fez Tavares, não esclareceu se o texto em questão era de história.
Durante todo o tempo, o que se percebe é uma necessidade de demonstrá-lo como um
relato para a posteridade, ainda que se apresentasse em forma de texto já completo e
prenhe de crítica documental – além de pretender-se como “imparcial”103. Requisitos,
portanto, que eram atribuídos à moderna historiografia.

98
Ibidem, p. 402.
99
OLIVEIRA, Maria da Glória de. Op. cit., 2009, p. 158.
100
PINHEIRO, Joaquim Fernandes. Op. cit., p. 403, 1861.
101
Ibidem, p. 403.
102
Ibidem, p. 406. Ao final do texto, seguem-se as notas com algumas (longas) transcrições de
documentos utilizados. Ibidem, p. 407-490.
103
O que, conforme foi visto, estava longe de ser genuíno.
234

4.2 Leituras da Sabinada

Tida por alguns como uma “simples revolta de rua”104, a Sabinada possui alguns
números que merecem destaque: entre insurgentes e legalistas, cerca de mil e oitocentos
mortos; presos, quase três mil revolucionários – tudo isso, em apenas quatro meses de
duração! Menos certeiras são as motivações que permitiram sua existência e as
características que passou a ter após a tomada do poder pelos amotinados.
Na recente historiografia sobre o evento105, alguns elementos são postos em
evidência para explicar a revolta separatista baiana. No plano político, listam-se: a
preponderância do Rio de Janeiro como centro político e administrativo desde 1808 (algo
reafirmado em 1822); a regência de Pedro de Araújo Lima (adepto da centralização e do
conservadorismo), em substituição à de Diogo Antônio Feijó (mais aberto à autonomia
das províncias e ao federalismo); e a dominação local restrita à aristocracia rural do
Recôncavo. No plano social, as análises dos estudiosos demonstram: a instabilidade
social provocada pela questão racial (vale lembrar que apenas dois anos separam a
Sabinada da Revolta dos Malês); a insatisfação dos oficiais às reformas militares da
década de 1830 (sobretudo com a criação da Guarda Nacional); e o crescente sentimento
de lusofobia na capital baiana. Soma-se a esses fatores uma forte recessão econômica em
Salvador no início do século.
Reportando-se uma vez mais à historiografia atual sobre o evento, é necessário
comentar, ainda que brevemente, sobre a composição social dos rebelados,
resumidamente ligados às camadas médias e baixas da população de Salvador, tais como:
profissionais liberais (médicos, advogados e jornalistas), empregados públicos, pequenos
comerciantes, artesãos, oficiais do exército, oficiais de milícias, população livre de cor e

104
A expressão pejorativa foi cunhada por Wilson Martins, em sua História da inteligência brasileira,
citada por SOUZA, Paulo César de. A Sabinada: a revolta separatista da Bahia: 1837. São Paulo:
Companhia das Letras, 2009, p. 13.
105
A análise a seguir foi feita a partir das seguintes leituras: ENGEL, Magali Gouveia. “Sabinada”. In:
VAINFAS, Ronaldo (Dir.). Dicionário do Brasil imperial. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002, p. 666-668;
GRINBERG, Keila. “A Sabinada e a politização da cor na década de 1830”. In: GRINBERG, Keila;
SALLES, Ricardo (Orgs.). O Brasil Imperial, volume II: 1831-1870. 2ª edição. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2011, p. 269-296; KRAAY, Hendrik. “‘Tão assustadora quanto inesperada’: a
Sabinada baiana, 1837-1838”. In: DANTAS, Monica Duarte (Org.). Revoltas, motins, revoluções:
homens livres pobres e libertos no Brasil do século XIX. São Paulo: Alameda, 2011, p. 263-294; e
SOUZA, Paulo César de. Op. cit., 2009.
235

escravos (sobretudo os nascidos no Brasil)106. Importante notar, juntamente com Hendrik


Kraay, que cada grupo possuía motivações distintas para fazer parte da rebelião, o que
inclusive pode explicar a sua mudança de foco ao longo do curto tempo em que figurou107.
A revolta, estourada em 7 de novembro de 1837, começou com a tomada do forte
de São Pedro, de onde partiram os líderes da rebelião em direção à Câmara Municipal,
com o intuito de legitimar o novo governo firmando, em ata, suas prerrogativas. Esse
primeiro documento, redigido pelo médico Francisco Sabino e pelo bacharel José Duarte
da Silva, assinado por cerca de cem indivíduos, declarava a província desligada do
governo central do Rio de Janeiro. Previa também a instalação de uma Assembleia
Constituinte (o que nunca chegou a ocorrer) e nomeava Inocêncio da Rocha Galvão
presidente da província. Como este se encontrava nos Estados Unidos, seu vice, João
Carneiro da Silva Rego, passou a exercer a presidência interina. A secretaria do novo
Estado ficou a cargo do principal líder da rebelião, o Dr. Sabino.
Dois dias após o estabelecimento da primeira ata, uma substancial modificação
foi pedida por um grupo ao vice-presidente: o “lapso da pena” da ata deveria ser reparado;
o caráter provisório da separação da província tornar-se-ia parte integrante do primeiro
documento. Com isso, os rebeldes indicavam o desejo de não ir contra o poder do
imperador menino. Evidenciavam, assim, que enquanto este não fosse o governante da
nação brasileira, a Bahia tinha razões para ser independente. Com a maioridade, esse
cenário mudaria e a província novamente poderia fazer parte do Império brasileiro. Essa
emenda passou a figurar no texto inicial, conforme consentimento da Câmara, em 11 de
novembro – desta vez, com apenas vinte e nove assinaturas.
Muito se tem discutido a respeito das distintas motivações da Sabinada e dos
caminhos por ela tomados na literatura historiográfica: o entendimento da revolta por
vezes como republicana, outras como “igualitária” (inclusive do ponto de vista racial108)

106
Além disso, a participação de liberais exaltados foi notória enquanto principais iniciadores do
movimento, tendo em vista sua postura contrária ao poder centrado no Rio de Janeiro.
107
Kraay indica, como sintoma dessas discrepâncias, a perda de controle da rebelião pelos seus líderes
políticos. Toma como exemplos que evidenciam essa mudança a libertação dos escravos “brasileiros” a
partir de fevereiro de 1838 e a hostilidade crescente em relação aos estrangeiros (sobretudo portugueses).
Op. cit., 2011, p. 271-278.
108
A fundação do Batalhão “Libertos da Pátria”, constituído de negros libertos pelo governo rebelde,
juntamente com outras questões, talvez possibilitasse o entendimento da Sabinada como uma revolta
abolicionista, o que é taxativamente condenado por Keila Grinberg e Paulo César de Souza. Segundo eles,
a questão racial era muito complexa naquele contexto e os partidários da revolta estavam divididos no que
dizia respeito à abolição. O próprio Sabino, mulato, vale dizer, não se posicionava de maneira clara a esse
respeito. De acordo com SOUZA, Paulo César de, Op. cit., 2009, p. 167: “Eles não foram radicais, não
236

e de cunho liberal, se intercalam entre historiadores que buscam compreendê-la levando


em conta seu tempo e lugar. A disparidade das análises demonstra o caráter ambíguo da
Sabinada109, e quanto a isso, não cabe aqui discernir.
Após grande pressão exercida pelas forças legais, localizadas no Recôncavo
baiano, onde conseguiram a guarita dos poderosos senhores de engenho, a capital acabou
sucumbindo em março de 1838. A escassez de alimentos, graças ao bloqueio feito em
torno da capital (garantido, em certa medida, pela própria geografia local) e as investidas
das tropas imperiais acabaram por se impor, pondo fim ao movimento110. A seguir,
revoltosos foram julgados, exilados, presos e até mesmo assassinados pelos legalistas,
provocando uma onda de horror que, para alguns, parecia até maior do que aquela
promovida pela rebelião. O seu principal líder, contudo, acabou sendo anistiado com o
decreto assinado por D. Pedro II, após a maioridade. Sabino viveu, então, o resto de sua
vida exilado em Goiás, sem poder retornar à Bahia. Menos sorte tiveram outros rebeldes,
perseguidos e mortos antes da lei da anistia.
Da mesma forma como ocorreu com outros movimentos contestatórios ao governo
imperial, a Sabinada pouco foi mencionada na Revista do IHGB, em suas décadas iniciais.
Documentos sobre a rebelião até foram aceitos para fazer parte do grande arquivo da
instituição, mas a história produzida a partir deles só foi levada a cabo em momento
oportuno, quando houvesse garantias da total imparcialidade do historiador desse evento.
O primeiro comentário acerca da Sabinada apareceu em 1882. “A Sabinada da
Província da Bahia em 1837”, de autoria do sócio Joaquim Portela, buscava, em linhas
gerais, dialogar com trabalhos anteriores e externos ao IHGB, que de alguma forma
analisaram o evento. As obras de destaque para tal empreendimento foram a Historia do
Brasil de 1831 a 1840 e a Historia do Brazil, elaboradas, respectivamente, por Joaquim
Manuel Pereira da Silva e José Ignacio de Abreu e Lima. Alvos da crítica de Portela, tais
trabalhos teriam cometido muitas incorreções acerca do movimento baiano, no que diz
respeito a alguns detalhes (nomes de seus participantes, datas, números). A esse respeito,

tocaram nas raízes. Foram incapazes de pensar além do horizonte ideológico de uma sociedade
escravista”.
109
“A Sabinada foi um movimento caótico nas ações e contraditório nas intenções”. SOUZA, Paulo César
de. Op. cit., 2009, p. 178.
110
Ibidem, 2009, p. 95-96. Talvez mais importante para a queda dos sabinos tenha sido a própria postura
adotada pelos mesmos, “[...] a inconsciência das reais condições à sua volta”: “Em vez de impor uma
revolução, tentavam administrá-la”.
237

indicava a existência no Arquivo Público do Império de cópias autênticas de alguns


documentos, com os quais se poderiam provar “[...] umas inexatidões cometidas por dois
distintos escritores da história pátria, quando tratam da revolução denominada da
Sabinada na província da Bahia”111.
Conclamando o que chamou de “amor da verdade histórica”, Portela, após uma
brevíssima introdução sobre o tema (apenas duas páginas), anexou dois documentos para
serem usados como fontes para um futuro trabalho historiográfico acerca da rebelião: uma
carta de João Crisóstomo Callado, marechal de campo do lado legalista, e outra de
Antonio Pereira Barreto Pedroso, nomeado por Araújo Lima presidente da província
baiana em 1837. Ambas datavam do fim da rebelião, em 17 de março de 1838 e,
possivelmente, eram direcionadas ao regente, como forma de prestar contas à nação
brasileira da derrocada do governo sabino. A elaboração de uma história verdadeira sobre
a Sabinada passava, portanto, por uma prévia discriminação das fontes a serem utilizadas
para tal empreendimento – algo que, conforme será visto, não foi uma preocupação
isolada de Portela.
O segundo estudo sobre a Sabinada publicado na Revista foi realizado por Manoel
Duarte Moreira de Azevedo, que, desde a década anterior, empreendeu uma série de
trabalhos cujas temáticas inseriam-se no complicado período pós-independência do
Brasil112. A rebelião baiana não deixou de figurar nessa galeria, como atesta a impressão
no periódico de 1884 da “Sabinada da Bahia em 1837”. Aqui, o caráter quase meramente
introdutório do texto de Portela fica para trás: Azevedo elaborou em vinte páginas uma
memória histórica seguida de documentos anexos.
Aspectos relativos à motivação que levou à rebelião foram apresentados pelo
autor: o fato de o poder central estar, à época, “atarefado” com a guerra rio-grandense e
a mudança do regente113, bem como “a veemência da linguagem da imprensa”, a má
administração da Bahia feita por Francisco de Souza Paraíso e, por fim, “a temeridade e
orgulho de gênios exaltados e ambiciosos”114. O triunfo do movimento na capital baiana

PORTELA, Joaquim Pires Machado. “A Sabinada da Província da Bahia em 1837”. RIHGB, tomo
111

XLV, p. 13, 1882.


112
Conforme já tratado em capítulo anterior.

AZEVEDO, Manoel Duarte Moreira. “Sabinada da Bahia em 1837”. RIHGB, tomo XLVII (Parte
113

Segunda), p. 284-285, 1884.


114
Ibidem, p. 302.
238

não foi, contudo, expandido para outras localidades da província. A isso, Azevedo imputa
“a voz do patriotismo” daqueles que se recusaram a fazer parte do governo sabino 115 –
muitos, por esse motivo, tiveram que emigrar116. O amor à pátria foi também citado pelo
autor para condenar a guerra civil que se instalou na Bahia: “Iniciada estava a luta de
irmãos contra irmãos. [...] Em vez de viverem unidos [...] para amarem e defenderem a
pátria, erguem-se uns contra os outros, [...] ensopam o pavilhão nacional no próprio
sangue da nação”117.
Já tratando do fim da Sabinada, Azevedo comentava sobre uma das piores
atrocidades cometidas pelos rebeldes: ao perceber que a vitória das forças legais estava
próxima, atearam fogo à cidade, sob as ordens do Dr. Sabino, “tal era o seu caráter cruel
e vingativo”118. Essa conjectura foi produzida a partir da leitura das fontes, sobretudo
jornais, aos quais Moreira de Azevedo teve acesso – questão que será retomada adiante.
Após o fim da rebelião e a anistia concedida por D. Pedro II quando de sua
aclamação como imperador, uma grande injustiça teve lugar, segundo Azevedo. Sabino,
que, de acordo com o autor, fora o grande incitador da revolta, um homem sem honra,
“[...] que excitara seus amigos a romperem as leis da nação para inaugurar outro governo
e outros princípios, fugiu na hora da vitória dos adversários, abandonou sua causa e seus
amigos, e foi ocultar-se entre as roupas de um armário [...]”119, acabou em liberdade pelo
resto da vida.
Sobre a questão das fontes, pode-se dizer que Azevedo buscava expor de quais
tipos dispunha e de que maneira foram utilizadas. Os testemunhos presenciais ajudaram
a compor a memória, da mesma forma que as fontes impressas. Ao tratar da acomodação
das forças imperiais no Recôncavo, especificamente em Pirajá, quando do início da
rebelião, indicava a referência ao juiz de direito Antônio Simões da Silva120: “Referiram-
nos este fato o próprio Dr. Simões e outras testemunhas coevas de subido critério, e em

115
Ibidem, p. 286.
116
Ibidem, p. 291: “Tudo denunciava a reprovação do povo contra o governo rebelde que se estabelecera
na metrópole da província”.
117
Ibidem, p. 290.
118
Ibidem, p. 297.
119
Ibidem, p. 302.
120
Este foi convidado por João Carneiro a ser chefe da polícia rebelde, mas esquivou-se da proposta, por
não abraçar a causa.
239

documentos publicados por João Chrysostomo Callado121 sobre os acontecimentos,


[...]”122.
Com a pretensão de legitimar ainda mais suas análises, esclarecia as demais fontes
utilizadas naquele trabalho:
Sem o subsídio de documentos não tem significação completa os fatos
históricos, e nem são vistos pelo verdadeiro aspecto. Dissemos não ter sido
premeditado o ataque da cidade, e semelhante acerto vem expendido em
artigos publicados no Jornal do Commercio de 1838, relativos a esta revolta,
e também no relatório dos acontecimentos memoráveis dos dias 13, 14, 15 e
16 de Março de 1838 na cidade da Bahia, mandado imprimir pelo marechal
Callado123.

Estas informações serão necessárias para a compreensão dos próximos trabalhos


sobre a Sabinada a serem investigados, ambos de autoria de outro sócio do Instituto, o
dicionarista Augusto Vitorino Alves do Sacramento Blake124, e publicados na Revista em
1885 e 1887.
Importa salientar o comentário feito por Moreira de Azevedo durante a sessão
magna aniversária do Instituto Histórico, em 1884. Nele, ao resumir o conteúdo dos
trabalhos apresentados à instituição naquele ano social, referia-se de forma específica ao
de Blake, lido em algumas sessões:
Apresentou o Sr. Dr. Sacramento Blake o trabalho intitulado Considerações
sobre a Revolução de 1837 na Bahia e o Dr. Francisco Sabino Alvares da
Rocha, no qual procurou o ilustre autor pintar com cores favoráveis e
humanitárias o corifeu dessa rebelião, o Dr. Sabino. Averiguar qual a
existência dos vultos eminentes que passaram, eis um dos encargos da história;
assim sempre são úteis as pesquisas e apreciações dos fatos para ser conhecida
a verdade histórica; todavia para dar mais valia e peso às suas asserções
seria conveniente ter-se baseado o digno escritor em alguns
documentos125.

121
Vale lembrar que um desses documentos já havia sido publicado por Portela na Revista de 1882.
122
AZEVEDO, Manoel Duarte Moreira. Op. cit., p. 288, 1884.
123
Ibidem, p. 296.
124
Sacramento Blake (1827-1903) nasceu na Bahia e fez sua formação em medicina na mesma província.
Trabalhou para o corpo de saúde do exército, motivo pelo qual seguiu até o Estado Oriental do Uruguai,
em 1852. Atuou também como médico durante a campanha contra o Paraguai. Publicou diversas obras
relativas a assuntos médicos, porém tornou-se mais conhecido por seu Diccionario Bibliographico
Brazileiro. Ver: “Discurso do orador do Instituto”. RIHGB, tomo LXVI (Parte Segunda), p. 333-335,
1903.

AZEVEDO, Manoel Duarte Moreira. “Relatório do Sr. 1º secretário”. RIHGB, tomo XLVII (Parte
125

Segunda), p. 623, 1884 (grifos nossos).


240

Esse pequeno fragmento já explicita as destoantes opiniões sobre o evento e seu


principal nome, o Dr. Sabino. Da mesma forma, há uma distinta compreensão do uso de
fontes primárias dispensado pelos autores.
Como a observação de Azevedo apontou, a primeira memória sobre a Sabinada
escrita por Blake foi lida no ano de 1884, durante as sessões. A publicação de “A
Revolução da Bahia de 7 de Novembro de 1837 e o Dr. Francisco Sabino Alves da Rocha
Vieira” na Revista ocorreu, contudo, no ano seguinte. Conforme o título já atesta, servia
para elucidar alguns pontos considerados mal explicados pelo autor, sobretudo no que
dizia respeito à trajetória de Sabino. Pretendia, por esse motivo, fazer “[...] sucintas
reflexões acerca do que nessa memória se refere ao Dr. Francisco Sabino Alves da Rocha
Vieira, erradamente apontado como o motor dos acontecimentos políticos designados
com aquele título, e ainda hoje tão injusta e cruelmente depreciado em seu caráter”126.
Assim como Fernandes Pinheiro pretendeu reabilitar a memória de Luís do Rego,
Blake sentia ter o “dever de justiça” em relação a Sabino127. Nesse trabalho, o líder da
revolta separatista devia merecer mais crédito pelos historiadores, não tanto por sua
posição política, mas pela própria biografia individual. Médico “de elevado mérito”, um
“perfeito cavalheiro”, um “homem de bem”: este era Sabino, não o monstro que tantos,
como Moreira de Azevedo, retrataram128.
Este infausto julgamento tinha sua razão de ser: as fontes utilizadas não foram as
melhores possíveis. Segundo Blake, Azevedo incorreu em grave erro ao utilizar “[...]
publicações escritas naquela época sob o influxo do espírito partidário e sob a
efervescência de ódios políticos”129, referindo-se, sobretudo, à imprensa.
Que prova séria podem fornecer folhas dominadas por ódios rancorosos,
entranhados, ou por boatos muito de propósito espalhados pelas ruas e praças
em momentos de tanto tumulto e agitação; só e exclusivamente com o fim de
desacreditar, deprimir, inutilizar adversários? Deve o historiador imparcial e
probo recolher tais boatos, forjados na cegueira infrene das paixões políticas,
sem prova de qualidade alguma, e, com a calma que lhe é indispensável,
transmiti-los à posteridade?130

BLAKE, Augusto Sacramento. “A Revolução da Bahia de 7 de Novembro de 1837 e o Dr. Francisco


126

Sabino Alves da Rocha Vieira”. RIHGB, tomo XLVIII (Parte Segunda), p. 245-246, 1885.
127
OLIVEIRA, Maria da Glória de. Op. cit., 2009, p. 156-157.
128
BLAKE, Augusto Sacramento. Op. cit., p. 245-246, 1885.
129
Ibidem, p. 246.
130
Ibidem, p. 251.
241

Para evidenciar o erro cometido pelo colega, contrapõe as fontes por ele utilizadas
às suas. Praticamente baseando-se apenas no testemunho oral, Blake recupera aos poucos
o verdadeiro caráter de Sabino: possuidor de “[...] uma sorte de imã, uma certa força
magnética que atraía aqueles, com quem por acaso se comunicasse”131. Em nota de
rodapé, indicava que, após a leitura destas palavras nas sessões de 1884132, teve “[...] a
felicidade de ouvir o meu honrado consócio, o Sr. general Beaurepaire Rohan, que
conhecera o Dr. Sabino, confirmar essa asserção”133.
O seu próprio testemunho era dotado de legitimidade, e a ele recorre para
argumentar a favor do médico baiano. Nessa direção, o carinho de Sabino para com as
crianças dava provas do seu bom caráter: “O mais obscuro dentre vós, o último até na
ordem cronológica, esse que vos dirige neste momento a palavra e que vos agradece a
atenção, que lhe dispensais, foi uma dessas tenras criaturas, que experimentaram a
amabilidade, os carinhos do Dr. Sabino”134. Assim, somam-se aos testemunhos obtidos
por Blake ao longo de sua vida (e no próprio IHGB) o seu próprio para resgatar a memória
positiva de Sabino. Exemplo disso foi quando o autor trabalhou a questão dos criminosos
incêndios na cidade de Salvador no período final da rebelião. Segundo Moreira de
Azevedo, eles tinham sido causados única e exclusivamente pela vilania do médico
mulato, como prova de seu mau caráter. Blake possuía outra hipótese, que pretendia
provar por meio de testemunhos autênticos, dentre os quais a fala paterna:
Em minha opinião e segundo ouvi sempre aos caracteres mais sensatos da
Bahia, muitos dos quais existem ainda, a nenhuma das autoridades constituídas
do novo estado se pode atribuir esse ato de loucura e de perversidade.
A opinião geral é, que esse ato lamentável, irrefletido, partiu da soldadesca
vencida, na vertigem do momento, no desespero da causa, ou mais
provavelmente com o fim de ocupar por esse lado a atenção dos vencedores,
enquanto deles se pudesse escapar com mais facilidade.
Compulsai essa imensidade de processos instaurados contra os que se achavam
então na capital da Bahia, e bem poucos vereis, onde se não acuse pelo crime
de incendiário. Meu pai, que foi sempre conhecido como um exemplar de
sisudez, de mansidão, de paz, em um processo, que lhe foi intentado nessa
ocasião, também foi acusado como tal 135.

131
Ibidem, p. 249.
132
O que mostra que antes de publicar na Revista de 1885, Blake havia feito uma revisão de seu texto.
133
BLAKE, Augusto Sacramento. Op. cit., p. 246, 1885.
134
Ibidem, p. 248.
135
Ibidem, p. 252-253.
242

Segundo Blake, o problema das fontes utilizadas por Azevedo para compor seu
trabalho residia no fato de que elas não possuíam isenção alguma. Eram fragmentos de
uma “imprensa eivada de ódios”, parcial, portanto. Nesse sentido, Blake promovia uma
releitura da própria revolta, da mesma forma que fez com a biografia de Sabino, atentando
para o uso correto de fontes legítimas, algumas das quais estariam “sumidas”, como a ata
da revolução. A partir desse tipo de documentação, era possível evidenciar o que os
testemunhos orais já apontavam: que a revolução de 7 de novembro “efetuou-se
pacificamente”, sem derramamento de sangue, e com uma popularidade ímpar (inclusive
entre os homens de “certa importância” da Bahia)136.
Assim, contrariando análises anteriores sobre a rebelião, Blake impunha uma nova
versão dos acontecimentos. Imputava a responsabilidade do mesmo não a Sabino, ou às
classes baixas da sociedade soteropolitana. Categórico, responsabilizava “pessoas
altamente colocadas”, “homens que figuraram na alta representação do país”, pelo início
do motim. O planejamento da revolução de 7 de novembro havia sido feito no Rio de
Janeiro, não na Bahia137 e tinha a ver com a regência de Feijó: “[...] a revolução de 7 de
Novembro foi mais um meio traçado no Rio de Janeiro pelos adversários do regente para
obrigá-lo a largar o poder”138. Mais uma vez, a responsabilidade de Sabino pela rebelião
é diminuída: “Se ele fosse o motor dela, não seria proclamada apenas a separação da
província durante a menoridade do segundo imperador; [...] seria logo proclamada a
república”139.
Mas por que então a rebelião foi denominada em homenagem a Sabino? Ao
responder a essa assertiva, a ingenuidade de Blake chega a ser comovente: “Foi por causa
de ser ele o vulto mais simpático, a primeira ilustração nessa revolução, que se tem dado
a ela o título de Sabinada”140.

136
Ibidem, p. 248.
137
Ibidem, p. 256.
138
Ibidem, p. 258.
139
Ibidem, p. 258. O grande “defeito” de Sabino, para Blake, era o fato de ele ter sido um “republicano”.
140
Ibidem, p. 259. Não foram, contudo, os protagonistas e nem as testemunhas do movimento que assim o
denominaram, mas sim as primeiras análises sobre o episódio. Para aqueles, existia apenas uma “revolta”
ou “revolução”; no máximo, mencionavam sobre a “Sabinada Carneirada”. LOPES, Juliana Serzedello
Crespim. Identidades políticas e raciais na Sabinada (Bahia, 1837-1838). 2008. Dissertação (Mestrado
em História) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008, p. 15-16.
243

Com a mudança na regência, segundo Blake, não havia motivos para a eclosão da
rebelião, tendo em vista que ela tinha sido tramada no Rio de Janeiro por opositores de
Feijó. O autor preferiu não explicar essa contradição, limitando-se a dizer que “[...] a
história dessa revolução se envolve em uma obscuridade tal, que até hoje não houve quem
se atrevesse a escrever sobre ela, e muito menos a devassar-lhe os mistérios”141. Chega
mesmo a denunciar que nem os documentos indispensáveis para a escrita daquela história
estariam disponíveis. Eles “[...] desapareceram... e desapareceram, porque convinha, que
assim sucedesse”142. A própria ata de 7 de novembro estava desaparecida, conforme já
havia dito anteriormente, o que dificultava o acesso à “verdade” dos fatos sobre a
Sabinada. Uma mea culpa é feita sobre esse pormenor em 1887: na nova versão de seu
trabalho, confessa a “ilusão” de que a ata inicial estaria perdida, assim como a da “contra-
revolução”, como denomina o documento de 11 de novembro. O que desapareceu
“porque assim o convinha” foi o processo da revolução143.
Outro dado levantado por Blake nesta última memória foi sobre o ínfimo número
de assinantes da segunda ata, se comparado com o da primeira. Mais uma vez, uma
testemunha presencial, o conselheiro Luiz Antonio Barbosa de Almeida, é chamada a
explicar o acontecido. Segundo o espectador, a câmara se encontrava abarrotada de gente,
pois “todos sem dúvida aderiam ao movimento”, quando houve um tiroteio na praça do
Palácio, onde estava a tropa de linha, a guarda nacional e o corpo de polícia, fazendo com
que a população se dispersasse em pânico144.
Blake finalizou o trabalho, após dar ênfase a pontos já tratados no de 1885,
exaltando mais uma vez a injustiça cometida contra Sabino, exilado no fim da vida,
tragando a “[...] ingratidão daqueles a quem com dedicação e sacrifícios servira”145.

Os dois discursos de Blake foram apreendidos de formas distintas pelos demais


sócios do IHGB. Augusto Fausto de Souza, 1º secretário da instituição em 1887, leu na

141
BLAKE, Augusto Sacramento. Op. cit., p. 259, 1885.
142
Ibidem, p. 260.

BLAKE, Augusto Sacramento. “A Revolução da Bahia de 7 de Novembro de 1837 e o Dr. Francisco


143

Sabino da Rocha Vieira (lido na sessão de 9 de novembro de 1887)”. RIHGB, tomo L (Parte Segunda), p.
179, 1887.
144
Ibidem, p. 187.
145
Ibidem, p. 194-195.
244

sessão magna aniversária daquele ano em seu relatório suas impressões sobre as duas
memórias de Blake (a de 1885 e a de 1887). Tais, ao que tudo indica, foram muito
favoráveis ao apelo de Blake. Indicava, ainda, que uma terceira memória poderia vir à
tona, para dar conta da última fase da vida de Sabino, exilado em Mato Grosso devido ao
medo de que revelasse “certas verdades, arrancasse certas máscaras”146.
Outra opinião, destoante da primeira, surgiu a partir da lembrança do finado João
Maurício Wanderley (barão de Cotegipe), em 1889, pelo presidente do Instituto, Joaquim
Norberto de Sousa Silva. Ao falar daquele ilustre consócio, morto no início do ano social,
Sousa Silva indicava que ele nutria profunda mágoa com relação aos trabalhos de Blake;
ele que, como testemunha ocular da Sabinada, sabia serem injustas as acusações feitas
pelo outro consócio, às quais pretendia responder em forma de um novo trabalho sobre a
rebelião. Esse projeto não chegou a ser executado devido à prematura morte de Cotegipe.
Entretanto, caso fosse levado à frente, poderia colaborar com a descoberta da “verdade
dos fatos”147 que envolveram a Sabinada, de acordo com o presidente do IHGB.
A partir da discussão trazida à tona, algumas considerações fazem-se pertinentes.
Em primeiro lugar, as distintas análises sobre a Sabinada na Revista do IHGB
demonstram a existência de uma disparidade ideológica entre os membros da agremiação.
Reitera-se, desse modo, a noção de que o Instituto não era uma esfera homogênea,
produtora de um discurso único. Apesar do controle das atividades e de um regimento
bem restrito, gerenciados por um grupo diretor, conviviam nele discursos justapostos e
contraditórios, elaborados por sujeitos que possuíam distintas concepções políticas e
historiográficas. Nos três estudos publicados sobre a Sabinada evidencia-se como um
mesmo tema sofreu apreciação por diversos sócios, que acabaram por disputar o crivo de
“verdade histórica” para seus trabalhos.
Sobre esta última questão, vislumbra-se um segundo ponto digno de observação:
essa disputa por uma apreciação “verdadeira” sobre a rebelião acabava por se configurar
num primeiro momento como uma contenda em torno das fontes utilizadas para as
análises – algo que também ficou perceptível nos dois textos sobre a Revolução
Pernambucana de 1817. Nesse sentido, conforme se verificou, os trabalhos por vezes

146
SOUZA, Augusto Fausto de. “Relatório do Sr. 1º secretário interino”. RIHGB, tomo L (Parte
Segunda), p. 409, 1887. Vale lembrar que Sabino, apesar de início ter sido banido para Goiás, foi viver
depois de um tempo em Mato Grosso, onde faleceu.

O barão foi, inclusive, advogado de “alguns dos implicados na rebeldia”. “Ata da sessão de 1º de
147

março de 1889”. RIHGB, tomo LII (Parte Segunda), p. 374, 1889.


245

privilegiavam os depoimentos calcados na oralidade, outras atentavam para o uso de


documentos escritos, ou de quais testemunhos mereceriam confiança. Estava em jogo
questionar a autenticidade da história – e, assim, delimitar o que a constituiria – num
plano mais amplo, além de fundamentar a construção de uma dada memória sobre as
revoluções da primeira metade do século XIX.
A busca por uma história imparcial da Sabinada passava, portanto, por essas
questões. O que se faz notório, contudo, é o fato de que toda a argumentação utilizada
para denegrir ou exaltar determinado tipo de fonte esbarra em componentes limítrofes
para o que poderia ser aceito em termos de isenção. O testemunho de pessoas que ainda
viviam, ou do próprio autor, como foi o caso de Blake, parece apresentar apenas um lado
da questão; da mesma forma que a utilização da imprensa “apaixonada”, pura e simples,
no caso de Moreira de Azevedo, faria interrogar sobre sua intenção ao narrar a revolução
baiana148.

148
Vale lembrar, contudo, que Moreira de Azevedo não utiliza apenas jornais partidários da legalidade,
mas também testemunhos presenciais e documentos oficiais. Aqui, levanto a questão elaborada por Blake,
com certo estranhamento.
246

5 ESCRITAS DE SI PARA A POSTERIDADE

O IHGB, desde seu início, incorporou a função de relembrar vidas. Ao final de


cada ano eram feitos discursos sobre os sócios falecidos e em cada um deles esboçava-se
detalhes de suas trajetórias existenciais1. O orador responsável por levar esta tarefa à
frente tinha que apresentar em seu texto os momentos mais relevantes, que explicavam a
importância dos finados para o mundo e, mais especificamente, para o Brasil. Um
levantamento era feito e datas, personagens e locais eram distribuídos por entre a
narrativa; como também recursos retóricos, visando relatar a vida para obter um efeito
moral, político ou religioso. Eram vidas exemplares, em alguma medida2.
E quando a vida narrada era a do próprio narrador3? Se a biografia no Brasil
oitocentista tinha como função ensinar às gerações futuras, a autobiografia não estava tão
distante dessa perspectiva, ainda que a dramaticidade neste caso tenda a ser ainda maior.
É o relato que garante a perpetuidade de si mesmo; e o julgamento pelos homens do futuro
poderá ser positivo ou negativo levando em conta esse testemunho. Como se o próprio
réu tivesse a possibilidade de dizer algo que o fizesse ser absolvido4.
As autobiografias de Caetano Lopes de Moura e de Alfredo d’Escragnolle Taunay
se enquadram nessa concepção. Ambas foram escritas por homens de letras associados,
em algum momento, ao IHGB. Inseriam-se no conjunto de suas obras individuais,
figurando como sua criação. Ainda que naquele tempo houvesse problemas na definição
do que era considerado propriedade artística e literária, pode-se dizer que as memórias de

1
Isso também era feito em outras ocasiões, como em sessões ordinárias (após o falecimento de alguém)
ou na Revista, em que eram publicados esboços biográficos na seção intitulada Biografia de Brasileiros
Distinctos por Lettras, Armas, Virtudes, a partir de 1839.
2
Os usos da biografia no IHGB estariam, assim, mais associados ao paradigma clássico. MADELÉNAT,
Daniel. La biographie. Paris: PUF, 1984, p. 36. Nos últimos anos, é grande a quantidade de trabalhos cuja
análise centra-se nas relações entre a escrita de biografias e a operação historiográfica dos sócios do
IHGB ao longo do século XIX. Para citar apenas dois deles, ver ENDERS, Armelle. “‘O Plutarco
Brasileiro’. A produção dos vultos nacionais no Segundo Reinado”. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, p.
42-62, 2000; e OLIVEIRA, Maria da Glória. Escrever vidas, narrar a história. A biografia como
problema historiográfico no Brasil oitocentista. 2009. Tese (Doutorado em História) – Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.
3
Neste caso, a identidade entre autor, narrador e personagem pressupõe o estabelecimento de um pacto: o
leitor sabe quem escreve e sob qual ponto de vista. LEJEUNE, Philippe. Pacto autobiográfico: de
Rousseau à internet. Belo Horizonte: UFMG, 2008, p. 24-25.
4
Recorro, uma vez mais, à problemática do “tribunal da posteridade”.
247

Caetano e de Alfredo eram posses de seus autores5. E, como tal, foram pensadas e
redigidas a partir de suas experiências, inclusive na ligação com o Instituto localizado no
Rio de Janeiro.
Além disso, o traquejo com a escrita, em certo grau, induz a uma conscientização
maior na elaboração das memórias. Não se pode, por essa razão, ignorar que haviam
motivações previamente definidas pelos autores para efetuar a escrita de suas vidas. E,
mais do que isso: que essas motivações relacionavam-se com outro tempo, mais ou menos
distante, dependendo do caso, do presente. Até porque uma vida, por mais longa que seja,
é curta nos termos da história. Falar de si é falar do presente, é escrever uma história
contemporânea, permeada de personagens contemporâneos. Também neste caso, como
em tantos outros analisados nos capítulos anteriores, há a premissa do afastamento
temporal, senão por uma preocupação fundamentalmente historiográfica ou política, ao
menos pelo anseio de proteção individual e familiar. Eram escritos que sobreviveriam aos
seus autores e cujo postulado era justamente este, de serem conhecidos apenas post-
mortem6.

5.1 Precaução na escrita autobiográfica de Caetano Lopes de Moura

Durante muito tempo D. Pedro II nunca saiu do seu país natal. O conhecimento
sobre outros lugares, como a Europa, vinha das suas muitas leituras, que iam desde
romances até jornais e obras científicas do Velho Mundo. Era um aficionado, por
exemplo, pelos romances de Walter Scott e, não por acaso, quando foi pela primeira vez
à Europa intencionou visitar a região da Escócia, perfazendo um verdadeiro roteiro à la
Waverley7. O projeto não pôde ser levado à frente por motivos de ordem prática, para a
infelicidade do monarca.

5
Para a discussão sobre a função autor ver CHARTIER, Roger. “Figuras do autor”. In: _____. A ordem
dos livros. Brasília: UNB, 1994, p. 41-42; e FOUCAULT, Michel. “O que é um autor?”. In: _____. O que
é um autor? Lisboa: Vega, 1992, p. 29-87.
6
Ainda que, conforme exporei nas páginas que seguem, hajam notórias diferenças entre as duas
produções.
7
Waverley (1814) foi o primeiro romance escrito por Walter Scott. A viagem do imperador se deu em
1871. Ele chegou a ir para a Inglaterra em julho, onde se encontrou com a Rainha Vitória. Em seu diário,
ela conta que o monarca brasileiro desejava conhecer a Escócia por conta de sua grande admiração por
Scott e depois ir para Viena e Coburgo para visitar o túmulo de sua filha. Para esta informação, consultar
248

A leitura no Brasil dessas obras era facilitada por sua tradução para o francês, pois,
como se sabe, grande parte dos leitores brasileiros era conhecedora desta língua. D. Pedro
II, obviamente, não fugiu a esta prática8. É de notar, contudo, que novas edições em
português do próprio Scott na década de 1830 puderam ampliar o contato dos brasileiros
com tais textos. Outros best-sellers do início do século XIX, como os de autoria de
Fenimore Cooper (em língua inglesa) e os de François-René Chateaubriand (em francês),
também passaram por esse processo. Muitos dos textos que hoje são considerados os
pioneiros do Romantismo9 foram trazidos para Brasil em nosso idioma naquela época. E
o responsável por boa parte desse trabalho de tradução foi um “natural da Bahia” que
viveu na Europa praticamente toda sua vida.
A primeira vez que D. Pedro II tomou conhecimento do nome “Caetano Lopes de
Moura” foi, possivelmente, pela leitura de algum frontispício de O Talisman ou Os
natchez, saídos pela Livraria Aillaud em 1837. Da mesma Europa que tanto interessava
ao monarca por motivos óbvios vieram as primeiras traduções para o português de títulos
de sucesso da literatura universal. A editora parisiense teve seu valor: empregou suas
forças na publicação desses livros em português, ao mesmo tempo em que fazia sair à luz
textos de origem portuguesa e brasileira em francês para os conterrâneos conhecerem
mais das duas culturas. Era o local privilegiado de encontro de intelectuais luso-
brasileiros, residentes ou de passagem por Paris10.
A Livraria Aillaud empregou também Caetano Lopes de Moura, o tradutor,
escritor, professor, médico, o “mulato baiano soldado de Napoleão”; o homem que, por
motivos que ficarão claros ao longo deste tópico, caiu nas graças do imperador do Brasil
a ponto de receber dele uma incumbência de grande importância: escrever sua
autobiografia.

BARMAN, Roderick. Citizen Emperor: Pedro II and the Making of Brazil, 1825-1891. Stanford,
California: Stanford University Press, 1999, p. 237.
8
Apesar de D. Pedro II ter logo começado a ler também em inglês. Ibidem, p. 56.
9
VEIGA, Cláudio. Um brasileiro soldado de Napoleão. São Paulo: Ática, 1979, p. 196-197.
10
Ibidem, p. 107.
249

5.1.1 O homem em meio a um turbilhão

Ao se tentar elaborar o resumo de uma vida, qualquer que seja ela, de primeira,
atentar-se-ia para a cronologia, as datas de nascimento e de morte que impõem uma
associação entre essa vida individual e a coletividade histórica em que esteve imersa.
Outros dados seriam chamados a fazer parte desse esboço: nome dos pais, naturalidade,
o que fez, com quem se casou, etc. Um parágrafo daria conta de uma trajetória.
Tomando esse modelo de empréstimo, ter-se-ia que Caetano Lopes de Moura foi
alguém que nasceu em 1780, na Bahia, e morreu em 1860, em Paris; que atuou como
professor de latim, mas também como cirurgião das tropas da Legião Portuguesa durante
as guerras napoleônicas, além de ter sido agrônomo, tradutor e escritor. Da família, que
era de origem humilde: seu pai, Maximiano Lopes de Moura, era carpinteiro e de cor
parda11; da vida afetiva, que foi casado duas vezes e teve três filhos legítimos12.
Através dos marcos temporais e espaciais – 1780-1860 e Bahia-Paris – seria
possível aventar algumas hipóteses do que vivenciou. Mas, para isso, é necessário obter
mais algumas informações sobre, por exemplo, o momento em que ele saiu da Bahia em
direção à Europa; se fez esse caminho destinado a Paris mesmo, ou se passou por outros
locais até estabelecer-se na morada final, seu túmulo no Père-Lachaise.
Caso houvesse necessidade de fazer este resumo de modo a incutir no leitor um
interesse mínimo por essa vida específica – algo que, provavelmente, já aconteceu em
decorrência da notícia de que o próprio imperador do Brasil solicitara a autobiografia –,
poder-se-ia acrescentar a informação de que Caetano Lopes de Moura foi um homem em
meio ao turbilhão de acontecimentos gerados a partir da Revolução Francesa. Até aí, nada
de muito original, tendo-se em conta que qualquer um, estando na Europa ou nas colônias
(sobretudo americanas), acabaria diretamente ou não sendo tocado pelo movimento
revolucionário. Na França, evidentemente, esse toque foi mais sentido. O restante da
Europa logo vivenciou-o também. E daí por diante.

11
A mãe de Caetano se chamava Maria Theodora da Conceição. Ibidem, p. 10.
12
Caetano teve uma filha antes do primeiro casamento. Sabe-se dela apenas que teve um filho, chamado
Jules Gaëtan de Nugon, que foi inclusive enterrado junto com o avô no Père-Lachaise. O primeiro filho
de sua união legal nasceu em 1815. Ibidem, p. 49.
250

Por onde andou Lopes de Moura? Por que dizer que ele esteve em meio a tal
“turbilhão” e em que medida se deixou influenciar por ele? Novos esclarecimentos
devem, então, ser dados e já há muito perdeu-se de vista a primeira proposta, de efetuar
o resumo de uma vida. Ainda que de forma solta, seria necessário relatar que Moura viveu
na Europa o período napoleônico em seu auge e em sua decadência, mas também a
Revolução do Porto, em 1820, e as Revoluções de 1830 e de 1848. Que ele acompanhou,
do outro lado do Atlântico, os acontecimentos no Império do Brasil, desde os marcos
essenciais para o seu desenvolvimento como tal: a partida de D. João VI e sua Corte de
Portugal em direção ao Rio de Janeiro e seu retorno alguns anos depois; a proclamação
da Independência do Brasil, feita pelo filho daquele soberano, em 1822, assim como o
retorno de D. Pedro I para Portugal na década de 1830. Por fim, que Lopes de Moura,
também de longe, se manteve informado sobre o período regencial e o Golpe da
Maioridade daquele que viria a ser não só o soberano do país, como também seu mecenas,
Pedro de Alcântara. Nesse ponto, o ideal de síntese já estaria corrompido, ao contrário do
interesse do leitor em conhecer essa vida, que, presume-se, só pode ter aumentado.
Essas esparsas informações ajudam a compreender algumas particularidades de
tal personagem, mas ainda não explicitam o porquê de o imperador ter tido um súbito
interesse pelo baiano. Para entender esta motivação, recorre-se à narrativa da “Biografia
do Dr. Caetano Lopes de Moura escrita por ele mesmo”13, que se iniciava com uma
afirmação de suma importância para a trajetória que será descrita. Dizia ele: “Sou pardo,
como foram meu pai e minha mãe; meu avô e avó foram também dessa cor entremeia,
que alguns brancos desestimam por isso, que lhes traz à memória a de alguns
antepassados”14. Para alguém que veio ao mundo na última quadra do século XVIII, este
não tinha como ser um dado fortuito.
Da infância, contou apenas como resolveu se tornar professor a partir dos estudos
feitos nas Aulas Régias de gramática latina, língua grega, retórica e filosofia. Depois
houve também as de matemática, todas na Bahia. Sobretudo a gramática latina teria
grande peso em sua formação e seria muito útil para as atividades que posteriormente

13
Consultei os fascículos que saíram na Revista da Academia Brasileira de Letras.
14
MOURA, Caetano Lopes de. “Biografia do Dr. Caetano Lopes de Moura escrita por ele mesmo”.
Revista da Academia Brasileira de Letras. Rio de Janeiro, v. 4, p. 277, abril 1912.
251

viria a desempenhar. Do desejo de se tornar professor veio, após ter tido uma grave
doença, o de ser médico15.
Apesar de ser supostamente de família humilde, com poucas posses, o autor-
personagem acabou indo para a Europa junto com seu amigo Pedro Gomes Ferrão Castelo
Branco16 com a ajuda do pai de outro colega seu, para quem dava aulas17. Ausentou-se de
sua terra natal após o fracasso da Conjuração dos Alfaiates 18, aproximadamente no ano
de 1802, apesar de essa informação não constar na autobiografia. Há especulações de que
Caetano, então com vinte anos de idade, teria participado da rebelião. A viagem pode,
nesse sentido, ser vista como uma fuga e o forte desejo que o mulato indicava nos seus
escritos de ir para a França poderia corroborar tal hipótese19.
Estabelecido primeiramente em Lisboa, Lopes de Moura retomou o sonho de ir
para a França, aquela sua grande conhecida através da leitura de romances. Havia,
inclusive, aprendido o francês com outro colega, que o ensinava em troca de aulas de
latim20. A mesada paterna, contudo, não era suficiente para consumar tal aspiração.
Caetano tornou-se conhecido de algumas figuras importantes na metrópole e acabou
recebendo as promessas de ajuda do negociante João da Silva e Oliveira, que acabaram
por se concretizar21.
Esteve em alto-mar quando a Inglaterra rompeu a Paz de Amiens com a França,
em março de 180322. Seu navio foi, por isso, apreendido e Caetano acabou em Postmouth.
Durante os três meses em que ali ficou, procurou aprender o idioma inglês e não se meter

15
Ibidem, p. 283.
16
Ibidem, p. 286-287. A amizade entre os dois havia esfriado tão logo chegaram ao Velho Mundo. Ferrão
teve um fim de vida dramático: apaixonado por uma das filhas de José Bonifácio, que se encontrava com
a família em Coimbra, acabou suicidando-se ao ver seus intentos amorosos malogrados.
17
Ibidem, p. 284-285.
18
A Conjuração dos Alfaiates (1797) teve a Revolução Francesa por inspiração e contou com o apoio de
vários setores da sociedade soteropolitana. Inclusive um primo de Domingos Borges de Barros, que viria
a ser amigo de Caetano Lopes de Moura em Paris, esteve nela envolvido e acabou exilado na Inglaterra.
DEL PRIORE, Mary. Condessa de Barral: a paixão do Imperador. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008, p. 41.
19
É o biógrafo de Caetano quem elabora essas conjeturas. VEIGA, Cláudio. Op. cit., 1979, p. 30-32.
20
MOURA, Caetano Lopes de. Op. cit., p. 281, abril 1912.
21
Ibidem, p. 288.
22
O rompimento do acordo deu-se em função do fortalecimento do império colonial francês, a
ascendência da França no continente europeu e a ruína iminente do comércio inglês. VEIGA, Cláudio.
Op. cit., 1979, p. 35.
252

em maiores problemas, pois aqueles eram tempos difíceis: “Requintavam nessa época os
ingleses e os Franceses no rancor e aversão que uns aos outros em todo tempo
professavam [...]”23.
Depois desse período, conseguiu efetivamente chegar à França, onde iniciou os
estudos em medicina na cidade de Ruão24. Dedicou-se então à botânica, disciplina que
lhe seria útil em futuro não muito próximo25. Vale notar que sua chegada em terras
francesas ocorreu no momento em que a popularidade de Napoleão no país só crescia.
Aos poucos, a situação política ia se complexificando. Um amigo seu, a quem
ajudou por ser português “como ele”26, resolveu ir para a cidade de Caen, também na
região da Normandia. Neste ponto da narrativa, Caetano rapidamente comentava sobre
aquele contexto vivido pela Europa: “[...] por não se achar bloqueado [o porto de Caen],
concorriam [para lá] os navios das poucas nações, que na conflagração geral em que ardia
a Europa, haviam podido conservar a neutralidade, uma das quais era a portuguesa”27.
Neutralidade que se rompeu quando a França declarou guerra a Portugal.
Estima-se que partiu para Paris em 1807 para concluir seus estudos em medicina
justamente em meio a estes acontecimentos:
[...] bloqueiam os Ingleses todos os portos, cessa toda a correspondência com
o Ultramar, parte para o Brasil o Augusto avô de Vossa Majestade Imperial e
vimo-nos todos quantos aqui estávamos estudando, reduzidos à dura condição
de prisioneiros, expostos às vexações dos empregados subalternos da polícia a
quem éramos suspeitosos28.

Ainda assim, ele tentava continuar sua rotina, assistindo às aulas na faculdade de
medicina. Mas, apesar da formação feita entre Ruão e Paris, Lopes de Moura nunca foi
um médico diplomado. Sua legitimação como médico-cirurgião adveio com a prática. E,
no momento em que sua trajetória coincidiu inescapavelmente com a dos dramáticos
acontecimentos iniciados pela política expansionista napoleônica, começou a atuar como

23
MOURA, Caetano Lopes de. Op. cit., p. 289, abril 1912.
24
Ibidem, p. 290.
25
MOURA, Caetano Lopes de. “Biografia do Dr. Caetano Lopes de Moura escrita por ele mesmo”.
Revista da Academia Brasileira de Letras. Rio de Janeiro, v. 5, p. 75, julho 1912. Caetano chegou a
receber prêmios pela Escola Botânica.
26
Dizia Caetano sobre Joaquim Teodoro: “[...] achando-se necessitado e sendo Português (éramos então
todos) [...]”. MOURA, Caetano Lopes de. Op. cit., p. 291, abril 1912.
27
Idem. Op. cit., p. 75, julho 1912.
28
Ibidem, p. 77.
253

ajudante de cirurgião na Legião Portuguesa, que nada mais era do que uma missão de
oficiais portugueses incorporados ao Exército francês.
Na autobiografia contou que a decisão de entrar para o Exército veio dos
conselhos de dois professores seus e do senhor Abade Correa da Serra, que, compadecidos
da situação em que ele se encontrava, aconselharam-no que requeresse exame para ser
empregado “na qualidade de ajudante de cirurgia”. Foi então nomeado 2º ajudante e
recebeu ordem de incorporar-se ao 11º Regimento de Linha, que nesse tempo fazia parte
da divisão do general Bondet, em Lyon. Depois, foi para Paris com essa mesma
guarnição29, onde se encontrou com alguns conhecidos, como o Visconde de Asseca, que
era naquele tempo ajudante do general Gomes Freire de Andrade, “[...] a quem os destinos
guardavam por prêmio do mais extremado valor, e acrisolado patriotismo uma morte
afrontosa”30. Após a apresentação feita através do Visconde, Caetano e o general tiveram
longa conversa, que culminou na deliberação de sua passagem para a Legião Portuguesa,
onde passou a exercer o cargo de 1º ajudante de cirurgia e, consequentemente, a ter
melhor salário31.
Por ter sido incorporado à Legião Portuguesa, não mais viveria sob tantas
suspeitas, apesar de sua ascendência, em plena guerra contra Portugal 32. Conseguiria
também um soldo com que podia ao menos sobreviver em tempos tão difíceis. Além
disso, é bem possível que Caetano, assim como outros, tivesse sido induzido pela
propaganda napoleônica que buscava apresentar a Inglaterra como a verdadeira inimiga
de Portugal, não a França33. A empolgação com Napoleão era, nesse sentido, legítima e
dela dão conta muitos trechos da autobiografia, como se verá.
Mesmo assim, não deixou de ser penoso o tempo – cerca de cinco anos – em que
Caetano esteve a serviço daquela divisão. A primeira incumbência já demostrou o que o

29
Ibidem, p. 78.
30
Ibidem, p. 79. O general Gomes Freire de Andrade liderou uma conspiração em 1817 contra D. João VI
em Portugal e, por tal motivo, foi preso e condenado à morte. Acabou enforcado no Forte de São Julião
da Barra, em Oeiras.
31
Ibidem, p. 79.
32
Muitos portugueses e brasileiros eram vistos com desconfiança na França naquele momento. Alguns
passaram por episódios desastrosos: José Antônio Soares de Souza, colega de estudos de Caetano, foi
internado em Chateauroux, e Domingos Borges de Barros fugiu para os EUA em 1810. Talvez o próprio
Caetano tenha passado pela fiscalização da polícia francesa. VEIGA, Cláudio. Op. cit., 1979, p. 43 e p.
45.
33
Ibidem, p. 45.
254

aguardava: teve de ir a pé de Paris a Grenoble34, onde trabalhou em um hospital de guerra.


De Grenoble, passou para a Alsácia; o destino final era a Áustria.
Esse trajeto, além de intenso fisicamente, permitiu a convivência nada fácil de
Caetano com soldados portugueses grosseiros, acostumados a destratar cirurgiões, a quem
viam de maneira aproximada aos barbeiros. O preconceito era agravado pela
característica que Caetano carregava estampada em seu corpo e, possivelmente, na
maneira como falava: “O acidente da cor e a terra da minha naturalidade, longe de serem
conciliadores da consideração deles para comigo, deviam motivar-lhes aversão, senão
desprezo”35. Não poucas vezes passou por situações como esta, que descrevia com
tristeza:
[...] ouvi ao Alferes da 1ª companhia dizer para o Capitão, provavelmente
aludindo à minha cor: “Era o que nos faltava.” “Calemo-nos, tornou com mais
siso o Capitão, não o julguemos pela casca, que vejo-lhe nos olhos bastante
viveza e pode ser que seja a melhor coisa que conosco levamos”36.

Aos poucos, o mulato foi reconhecido por seu trabalho e inteligência. Sobre isto
também não faltarão relatos na escrita memorialista37.
Outras intempéries surgiram em meio à movimentação da guerra. Já na Baviera,
às margens do Danúbio, as tropas não conheceram outro alojamento que não o
descampado; seria assim dali por diante. Próximo a Viena, Caetano acampou em
Eberdorf, onde viu de pertinho Napoleão pela primeira vez:
[...] o ruflo dos tambores nos denunciou era chegado o homem extraordinário,
que tendo remido a França dos horrores da guerra civil e das extorsões e
gargantoices [sic] dos diretores, e ensanchando-a [sic] com a conquista dos
reinos confiantes, a governava ao sabor de sua vontade.
Escuso fazer aqui o seu retrato, por isso, que não há terra por mais remota que
seja, onde se não encontre algum transunto dele, direi tão somente que tinha
nos olhos tal viveza, que, quem neles acertasse de pôr os seus havia
forçosamente de descê-los ao chão, que tal era o lume que deles dardejava.
Tinha-o eu visto já por diversas vezes em Paris, mas nunca o havia de tão perto
contemplado38.

34
As guerras napoleônicas eram, sobretudo, guerras de movimento. Ibidem, p. 45.
35
MOURA, Caetano Lopes de. Op. cit., p. 82, julho 1912.
36
Ibidem, p. 83.
37
Ibidem, p. 84.
38
Ibidem, p. 85.
255

Caetano esteve ainda em Wagram, palco da sangrenta batalha vencida pela


França. Os horrores da guerra são retratados na passagem seguinte, e dão pistas do
trabalho que ele costumava fazer em tal contexto:
[...] no meio da infernalidade [sic] de tiros de artilharia e de espingardaria,
desestimando o perigo iminente em que estava posto, desvelava-me no
curativo dos feridos, quer fossem Portugueses, quer Franceses; [...] Como
nesse mesmo tempo chovessem sobre nós os tiros, confesso que estremeci
sobre o meu próprio destino e desejei ver-me dali longe; [...] continuei no
exercício de minha profissão desde as dez horas da manhã até às quatro da
tarde, sendo tantas as amputações que tive de fazer, que estive a ponto de não
poder concluir a derradeira por me sobrevirem vômitos, por não ter tido vagar
para tomar a menor refeição [...]. Assim que tive de atravessar o campo de
batalha e o horroroso espetáculo que ele oferecia ainda se me não apagou de
todo da memória.
Requintam os homens em crueldade e correm parelhas com as feras. Estava o
campo todo estradado de cadáveres; seria porém impossível estremarem-se os
dos Franceses dos Alemães [...]39.

Ao contrário de Austerlitz, contudo, a vitória em Wagram não satisfez


completamente Napoleão, por ter sido cara e sem o caráter decisivo da primeira40.
O retorno a Paris começava a acontecer; ele se concretizaria três meses após a
evacuação de Viena41. Sem Caetano o saber de início, ou sem querer dizê-lo na
autobiografia, a reunião na capital francesa que contou com a presença ilustre do
imperador tinha como objetivo não só premiar a Legião Portuguesa por sua atuação em
Wagram, mas sobretudo conclamar uma nova missão: a terceira invasão a Portugal42.
Sobre isso, nenhuma palavra foi dita por Lopes de Moura. Concentrou-se em
narrar a bela festa em meio ao Jardim das Tulherias, na praça do Carrousel, e suas
tentativas de falar diretamente com Napoleão. Ao contrário do que pensou um coronel a
quem se dirigiu com tão intento, não queria (ou não podia confirmá-lo na autobiografia)
aceitar o título que estava sendo conferido a muitos portugueses, da Legião de Honra43,
posto que isso significaria aceitar sua desnaturalização: “[...] me desobriguei de
manifestar-lhe [ao coronel] a repugnância que tinha em aceitar um distintivo que, em meu
entender, em certo modo me afrancesava e quase que me desnaturava da pátria [...]”. O

39
Ibidem, p. 88-89.
40
VEIGA, Cláudio. Op. cit., 1979, p. 53.
41
MOURA, Caetano Lopes de. Op. cit., p. 90, julho 1912.
42
VEIGA, Cláudio. Op. cit., 1979, p. 62.
43
A Legião de Honra foi uma condecoração honorífica francesa criada em maio de 1802 por Napoleão.
256

conteúdo do pedido era outro: garantir a confirmação do cargo em que ele tinha servido
na qualidade de serventuário. Isso porque Caetano havia trabalhado como cirurgião-mor
praticamente todo o tempo em que esteve em campo. Após muito solicitá-lo, acabou tendo
a importante conversa com o imperador dos franceses, que teria respondido
afirmativamente aos seus apelos44.
Antes disso acontecer (se é que realmente aconteceu), Napoleão tinha falado aos
portugueses sobre a necessidade de invadir Portugal. Preparou psicologicamente esses
soldados para efetuar a intervenção que, de início, poderia parecer uma traição. A
motivação apresentada pelo imperador, contudo, não daria margem para dúvidas, haja
visto que a ideia não era somente invadir a terra natal de tantos portugueses, mas libertá-
la de seus verdadeiros inimigos, os ingleses45. Nada disso aparece na autobiografia, assim
como outras importantes informações.
Após iniciada a marcha da Legião Portuguesa para a “terrinha”, ela recebe novas
ordens de ir para Chateauroux46. Partiu depois para Grenoble, onde Caetano passou a
atuar na inspeção dos recrutas. Na mesma época, começou a reclamar às autoridades
competentes de que a efetividade da mercê que teria sido prometida por Napoleão nunca
chegou a ser cumprida47. A vida financeira de Caetano complicou-se e isto o teria levado
a cometer uma série de graves infrações, concedendo isenções fraudulentas a recrutas que
se apresentavam, por obrigação, ao Exército48. É claro que os superiores não aprovaram
essa conduta dele e de seu parceiro, o cirurgião Benoist Nicola Lapierre. Assim, baseadas
em relevantes suspeitas, as autoridades resolveram punir os dois médicos. A situação foi
tão crítica que Lapierre chegou a tentar o suicídio. Caetano, menos desesperado, acabou
licenciado no dia 16 de janeiro de 181449. Sincronicamente, a França começava a ser
invadida e tinha início a derrocada de Napoleão50.

44
MOURA, Caetano Lopes de. Op. cit., p. 93, julho 1912.
45
VEIGA, Cláudio. Op. cit., 1979, p. 62.
46
Ibidem, p. 66.
47
Ibidem, p. 67-68.
48
Ibidem, p. 72.
49
Ibidem, p. 73.
50
Ibidem, p. 74.
257

Na biografia endereçada a D. Pedro II, por motivos óbvios, esses acontecimentos


não são mencionados. Caetano contava, tão somente, que ficou quatro meses em Paris,
onde cumpriu as formalidades e exames exigidos para conseguir o doutorado, e sobre a
tradução de um trabalho do Barão Perey para o português 51. Comentava então sobre a
partida para Bourges e Toul, na Lorena, e sobre a campanha da Rússia, quando viu-se
dispensado52. Sem dar muitos detalhes desse acontecido, ele articulou uma espécie de
teoria da conspiração. Tudo teria começado bem antes, quando foi vítima de um general
que queria ver-se livre de sua presença. Por conta da trama deste indivíduo foi que acabou
sendo mandado para Grenoble, onde ficou incumbido do serviço no hospital e na prisão
militar daquela praça, que passou a receber detidos russos53. E o mais importante: ele
mesmo desejou colocar fim à carreira militar.
[...] determinei de aproveitar aquela ocasião para dar renúncia a um gênero de
vida, que não me levara a abraçar o gosto, e dado que me ponderassem que
com mais dois anos de serviço, teria jus ao soldo dos reformados, com o que
poderia procurar-me uma honesta subsistência, quis antes deve-la à minha
própria indústria e trabalho, por me não desbatizar do nome de brasileiro54.

Nesse sentido, em sua versão dos acontecimentos, ele próprio pediu a demissão e
escolheu entregar-se à prática da medicina como civil.
[...] transbordou-se de contentamento o coração, quando me vi de militar
transfigurado em paisano, como quem, depois de haver cursado por mil
trabalhos e mágoas, tinha afinal alcançado aquilo a que estendia o pensamento,
quando da pátria se partira. O que mais então me relevava era ajuntar o
necessário para a ela tornar-me55.

Tudo isso ocorreu entre 1811 e 1814. Neste último ano, Napoleão abdicou,
partindo para a Ilha de Elba. A França passou então a ser governada pela dinastia dos
Bourbons, com Luís XVIII.
Corria o ano de 1815 e já os povos começavam a respirar de tão cansadas
guerras, debaixo do governo do Conde de Provença, que havia sido sublimado
ao trono com o nome de Luís XVIII, quando na entrada do mês de Março se

51
Era o tratado de Perey sobre as feridas provocadas por armas de fogo. MOURA, Caetano Lopes de. Op.
cit., p. 93, julho 1912.
52
Para trabalhar na área burocrática. Ibidem, p. 94.
53
Comentava ele sobre este episódio: “[...] parti [para Grenoble] envolto em lágrimas de despeito, e
dizendo mal à minha ventura, por me ver esbulhado da glória que fantasiava adquirir na próxima
campanha.” Ibidem, p. 94.
54
Ibidem, p. 95 (grifos nossos).
55
MOURA, Caetano Lopes de. “Biografia do Dr. Caetano Lopes de Moura escrita por ele mesmo”.
Revista da Academia Brasileira de Letras. Rio de Janeiro, n. 10, p. 205, out. 1912 (grifos nossos).
258

difundiu a notícia, que alçando o degredo a que havia sido mandado, tinha o
Imperador desembarcado no golfo Juan, donde se encaminharia para
Grenoble56.

A tentativa de golpe de Napoleão, em 1815, não mobilizou Lopes de Moura. Ao


contrário de grande parte da população de Grenoble, que fazia de tudo para facilitar a
entrada do ex-imperador e que, depois, uniu-se aos seus novos esforços, ele preferiu
manter-se seguro na atual vida como médico. Talvez o capítulo de sua despensa possa
justificar o fato de ter preferido manter-se alheio às lutas de Napoleão para se restabelecer
no poder. O caso é que essa decisão muito o tocou e não poucas vezes ele pareceu ter
dificuldades em conservá-la. Uma passagem da autobiografia em que relata o momento
que Napoleão chega a Grenoble exemplifica o desassossego de Caetano:
[...] quais festejavam sua vinda com luminárias, quais entrados de temor se
acolhiam às casas de campo e povoações vizinhas. Segui o exemplo dos
primeiros [...] e passei a noite desvelado e repartido entre o desejo de não
mudar de teor de vida e o receio de me tornar suspeitoso ao Governo, se
porventura ao Imperador lhe sucedessem bem as coisas [...] devolvia-se-me o
coração para a milícia, ou fossem saudades do recamo de ouro, da farda, que
ainda via pendurada à porta do adélo [...]57.

Mas, no final das contas, entendeu que deveria continuar em sua nova vida pacata,
pois desejava retornar à pátria cada dia mais. Queria estar novamente na Bahia e para
isso empenhou todos os esforços58. Havia, ainda, outra questão: como estrangeiro que
era, não seria conveniente tomar partido entre Napoleão ou Luís XVIII. Não havia certeza
de quem venceria essa disputa. Apesar dos anseios de Caetano, Napoleão não era mais o
herói invencível de outrora59.
Interessa notar que essa decisão de Caetano acabou lhe granjeando uma ótima
consideração entre os habitantes que continuaram em Grenoble. Ele sem dúvida alguma
encontrou significativo conforto com o reinado de Luís XVIII. Trabalhava então como
médico com grande clientela; muitos de seus pacientes, inclusive, o escolhiam por
considerá-lo apoiador da Restauração60. O respeito que nutria por Napoleão, contudo,

56
Ibidem, p. 206.
57
Ibidem, p. 207.
58
Ibidem, p. 208.
59
Ibidem, p. 209.
60
Ibidem, p. 209. “[...] quando, com a partida do Imperador, ficou a cidade despejada de quantos me
conheciam por haverem comigo militado, muitos dos quais eram da minha profissão, particularidade que
fez muito para que se me aumentasse o número dos fregueses, fazendo muitos, principalmente os que
259

nunca se afastou de Caetano. Sofreu, mesmo sem o expor na época, pelas sucessivas
derrotas do antigo imperador francês, sobretudo por Waterloo, pela segunda abdicação e
pelo exílio em Santa Helena61. Quase como forma de penitência escreveria, anos mais
tarde, a biografia do Corso62.
Com o tempo, decidiu voltar para Paris, onde receberia notícias do Brasil e de
Portugal mais facilmente63. Na capital desde 1819, passou a se relacionar com membros
da colônia portuguesa, sobretudo nobres64. O Conde de Linhares, por exemplo, tornara-
se seu amigo, depois que Lopes de Moura prestou assistência médica à sua filha65.
Esses encontros eram necessários, pois Caetano vivia (mais) um período de
extrema dificuldade. Além de ser estrangeiro – e com passagem pela Legião Portuguesa,
ainda por cima –, ele não possuía o título de doutor66. A facilidade que encontrou para
clinicar durante as guerras napoleônicas sem diploma, dado o caráter de urgência daquela
situação, não se apresentava mais. Diversas vezes Caetano pediu ao Ministério da Guerra
que lhe enviasse comprovações de sua atuação como cirurgião-mor da Legião Portuguesa.
Após uma série de missivas, conseguiu uma declaração do ministro, em que constava tal
informação67. O diploma oficial de médico, porém, nunca foi feito68. A amizade de seus

pertenciam à nobreza, eleição de mim para tratá-los em suas moléstias, na suposição de que era adito ao
seu partido [...]”.
61
VEIGA, Cláudio. Op. cit., 1979, p. 76-77: “Napoleão não será para ele um simples tema literário, [...]
mas [...] uma lembrança bem pessoal que traz à tona os momentos mais exaltantes de sua vida”. Veiga
caracteriza Caetano como “bonapartista encoberto ou acautelado”.
62
A biografia feita por Caetano Lopes de Moura teve como fonte principal a obra de Adolphe Thiers,
Histoire du Consulat et de l’Empire, uma série de vinte volumes publicados entre 1845 e 1862. Nela, o
baiano expôs sua admiração por Napoleão, que teria regenerado a sociedade francesa. Apesar de censurá-
lo por ter se tornado imperador, Caetano nunca deixou de estimar o Corso, que, derrotado, permanecia
tendo a glória, o gênio e a grandeza moral. NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. Napoleão
Bonaparte: imaginário e política em Portugal (c. 1808-1810). São Paulo: Alameda, 2008, p. 56-57.
63
MOURA, Caetano Lopes de. Op. cit., p. 210, out. 1912.
64
VEIGA, Cláudio. Op. cit., 1979, p. 80 e p. 84.
65
MOURA, Caetano Lopes de. Op. cit., p. 215, out. 1912. O Conde de Linhares era filho de D. Rodrigo
de Sousa Coutinho.
66
VEIGA, Cláudio. Op. cit., 1979, p. 79-80.
67
No segundo pedido feito ao Ministro da Guerra, Caetano chegou a comentar sobre o desejo de voltar ao
Brasil e de lá se estabelecer na profissão – motivo pelo qual necessitava do certificado. Ibidem, p. 80-81.
68
Ibidem, p. 81-82.
260

concidadãos do Brasil e de Portugal foi, portanto, essencial para que conseguisse


sobreviver na capital francesa.
A situação, portanto, era precária. Caetano começou então a trabalhar com as
letras, como acontecia sempre que se encontrava com problemas financeiros. Escreveu
na autobiografia que, por medo de distanciar-se da língua materna e, consequentemente,
de suas origens e pensando no retorno à Bahia, cuja ambição nunca o abandonou, passou
ao estudo dos “nossos bons escritores”69. Vez por outra encontrava-se em bibliotecas e
numa dessas ocasiões fez um trabalho para o inglês Bruce-Whyte, que procurava por
alguém que pudesse lhe auxiliar no estudo dos doze cantos de Africa de Petrarca. Após
ter contratado fracassadamente três latinistas franceses para o trabalho, Caetano, por
indicação de um amigo, foi ter com ele. A primeira impressão de Whyte, contudo,
relembrou o “acidente de cor” que já havia exposto Caetano a muitos obstáculos:
Esteve o inglês algum tempo indeciso se aceitaria ou não a minha proposta e
no modo com que de tempos em tempos em mim punha a furto os olhos,
conjeturei duvidava da minha suficiência, atenta a cor particular de minha tez,
para um mister em que três literatos franceses haviam desacertado; como se os
dotes de entendimento coubessem em partilha e vínculo de morgado somente
aos que têm a pele branca70.

Por necessidade, acabou fazendo o trabalho, que pareceu ter agradado muito ao
inglês, ao ponto de ele não acreditar na autoria de Caetano:
[...] me perguntou como quem não podia acreditar houvesse um homem da
minha cor engenho para tanto, se fora eu quem fizera aquele papel e como com
todo o enfado lhe tornasse que sim, chamou-me a exame pedindo-me lhe
explicasse certa passagem difícil que se encontra no meio do 1º canto 71.

Muitos anos se passaram até que Caetano pudesse ler o agradecimento feito pelo
senhor Whyte ao trabalho que teve naquela ocasião. Esta devia ser mais uma prova de
sua grande inteligência, que fazia saltar aos olhos mesmo dos mais incrédulos, daqueles
que o julgavam por sua tez72.
Encontrava-se em Paris quando correu a notícia da Revolução do Porto. Pouco
depois, inclusive, muitos daqueles que resolveram não prestar juramento às Cortes foram

69
Os “nossos bons escritores” eram, sobretudo, os clássicos portugueses, como Luís de Camões. A
autobiografia em vários momentos dá a entender que Caetano percebia-se em primeiro lugar como luso-
brasileiro. Não havia como ser diferente: enquanto viveu na Bahia, o Brasil era colônia de Portugal.
70
MOURA, Caetano Lopes de. Op. cit., p. 212, out. 1912.
71
Ibidem, p. 212.
72
Ibidem, p. 213-214. Quem lhe mostrou o livro em que constava a dedicatória foi Ferdinand Denis.
261

se abrigar na capital francesa e tornaram-se seus pacientes73. Logo ficou sabendo também
a respeito da Independência do Brasil, que, segundo contou posteriormente em seu
manual de história, o Epítome Chronologico de Historia do Brasil (1860), só ocorreu
devido a “uma série de decretos absurdos” produzidos pelas Cortes portuguesas,
intencionando fazer com que o Brasil retornasse à antiga posição de colônia. Para o autor,
ficava claro que, até aquele momento, nunca houve por parte dos brasileiros indicação de
desejos separatistas74. Caetano tratou da Independência de forma ainda mais delicada na
autobiografia:
O ano de 1821 havia deixado o Brasil prenhe de acontecimentos que deviam
decretoriamente, no que se lhe seguiu de 1822, abrir a porta a uma nova ordem
de coisas, o que com efeito se verificou, sendo aclamado Imperador o Augusto
Pai de Vossa Majestade Imperial, o Senhor D. Pedro I75.

Vivendo em Paris no meio de tantos portugueses, ele decidiu assumir posição de


brasileiro, jurando fidelidade à Constituição do Brasil outorgada em 1824:
Como porém fosse indispensável para a consolidação da dita nova ordem das
coisas, o reconhecimento das diversas potências da Europa, o Comendador
Domingos Borges de Barros, que nesse tempo se achava nesta Capital, tomou
sobre si o diligenciar, ao princípio de seu próprio modo e logo depois
oficialmente. Era eu assíduo em casa desse meu patrício, e logo que foi
publicada a Constituição não me descuidei de dar o meu nome, para que no
porvir se não pudesse duvidar de minha naturalidade 76.

O escritor tentou descrever de forma apaziguadora as relações entre Brasil e


Portugal, antes e depois de 1822. Poucos traumas, muito em comum: tal era, segundo ele,
a relação entre os países separados pelo Atlântico. Assim foi, portanto, a relação que ele
próprio manteve com ambos.
Apesar disso, outro fato narrado na autobiografia de maneira sutil mostra que
Caetano desde cedo percebeu o quanto lhe seria positivo assumir efetivamente posição
de brasileiro. Como se depreende da passagem acima citada, era então muito amigo de

73
Ibidem, p. 214: “[...] duplicou-se-me a freguesia, em razão do grande número de fidalgos e de pessoas
de distinção que, por não quererem prestar juramento às Cortes, se passaram para esta Capital, muitas das
quais eram já do meu conhecimento; a estas juntaram-se outras, que se tinham ausentado do Brasil por
ocasião dos acontecimentos que motivaram a partida do Augusto Avô de Vossa Majestade Imperial, o Sr.
Rei D. João VI”.
74
MOURA, Caetano Lopes de. Epítome Chronologico da Historia do Brasil. Paris: JP Aillaud, 1860, p.
266. Trabalhei com este material em minha dissertação de mestrado.
75
Idem. Op. cit., p. 215-216, out. 1912.
76
Ibidem, p. 216 (grifos nossos).
262

Borges de Barros quando recebeu dele um pedido inusitado: que fosse, como espião, para
Portugal averiguar boatos que ouvira em conversa com Chateaubriand a respeito de uma
possível invasão portuguesa ao Brasil77. Caetano já havia sido incumbido pelo Conde de
Linhares de ir resolver algumas pendências suas naquele país, mas de início a demanda
não lhe agradou. Com o apelo do Borges de Barros, contudo, a situação modificou-se.
Caetano utilizou a desculpa de trabalhar para Linhares – ainda mais por ser ele sobrinho
do Marquês de Palmela – e acabou destinando-se a Lisboa, em 182478. Chegando à
cidade, alojou-se na casa do Visconde de Asseca e encontrou-se com o “agente secreto”
que lhe daria as informações pedidas por Borges de Barros, Clemente Alvares de Oliveira
Mendes e Almeida79. No final das contas, soube que a reconquista do Brasil não passava
de um blefe: “[...] era opinião geral que todas aquelas bravatas e carrancas de ousadia, a
nada mais armavam, que atemorizar-nos, para virmos quanto antes a concerto, como ao
depois se verificou”80.
Levou essa feliz notícia ao Borges de Barros. O regresso a Paris, entretanto,
acabou não sendo positivo para Caetano. O tempo que passou em Portugal foi suficiente

77
VEIGA, Cláudio. Op. cit., 1979, p. 92-93. Borges de Barros (1779-1855) também teve uma trajetória
interessante e em alguns pontos comum à de Caetano Lopes de Moura. Nasceu na Bahia, no seio de uma
família com posses mas de procedência heterogênea. Seu bisavô, João, lutou na expulsão dos holandeses
na Batalha dos Guararapes. Sua mãe tinha raízes africanas, motivo que explica sua pele “morena”. Além
disso, um tio seu casou-se com uma mulata com quem teve 12 filhos. Essa proximidade com a negritude
pode explicar porque Barros empenhou muito de seu tempo na luta pela abolição. Foi tradutor de De
Parny, que, também como ele, era mestiço, viera das colônias e pregava contra a escravidão. Outra
bandeira extremamente moderna que levantou em vida foi a da emancipação política feminina. Estudou
em Coimbra e foi para Paris em 1806, provavelmente por conta de sua sociabilidade maçônica. Naquele
tempo, escreveu um dicionário português-francês-português e teve um filho com uma griselle, uma
prostituta, chamado Alexandre Sebastião, que chegaria a morar com sua família legítima na adolescência
e a quem sempre auxiliou. Novamente na Bahia na década de 1810, casou-se e teve dois filhos com D.
Maria do Carmo de Gouveia Portugal. A menina veio a ser a Condessa de Barral. Seguiu novamente para
a Europa ao ser designado deputado nas Cortes de Lisboa. Uma das mais importantes atividades que
exerceu na vida pública foi quando, nomeado encarregado dos negócios brasileiros na França, partiu para
Paris para conseguir o reconhecimento da Independência do Brasil por aquele governo, em 1824.
Também foi nomeado senador pela Bahia e teve a incumbência de arranjar o segundo casamento de D.
Pedro I com D. Maria Amélia. Foi agraciado com o título de Visconde da Pedra Branca. Faleceu em sua
terra natal. Para a biografia de Domingos Borges de Barros, ver NEVES, Lúcia Bastos das. “Domingos
Borges de Barros”. In: VAINFAS, Ronaldo (Dir.). Dicionário do Brasil imperial (1822-1889). Rio de
Janeiro: Objetiva, 2002, p. 213-214; e DEL PRIORE, Mary. “Domingos, um dos ‘homens bons’”. In:
_____. Op. cit., 2008, p. 37-65.
78
VEIGA, Cláudio. Op. cit., 1979, p. 217. Como o Conde era sobrinho do Marquês de Palmela, Ministro
dos Negócios Estrangeiros, a entrada de Caetano foi facilitada.
79
Ibidem, p. 96. Clemente A. de Oliveira Mendes e Almeida, o “agente do Brasil”, foi um dos que
ajudaram, em 1822, na fuga de deputados brasileiros para Londres.
80
MOURA, Caetano Lopes de. Op. cit., p. 221, out. 1912.
263

para que perdesse sua clientela. Desta vez, por conta de necessidade financeira, aceitou
prontamente uma nova proposta do Conde de Linhares de retornar a Portugal para
administrar suas fazendas. As muitas conversas que tiveram sobre agronomia e a
confiança que Caetano lhe inspirava explicam o que motivou o pedido do Conde. Os
problemas financeiros, aliados ao desejo imenso de rever o Brasil, justificam a aceitação
da proposta pelo mulato baiano81. Além disso, havia pouco Caetano se desentendera com
Borges de Barros: este, a princípio, prometera enviá-lo ao Rio de Janeiro com algumas
incumbências. Mas, ao fim, Barros optou por mandar seu filho bastardo. A raiva de
Caetano foi imensa. Tempos depois tentou relevar a atitude do amigo, pensando no que
faria se estivesse em seu lugar82.
Passado o aborrecimento, ou ainda sob efeito dele, Lopes de Moura aceitou o
cargo para trabalhar na propriedade agrícola do Conde de Linhares, a Quinta de Lagoalva,
próxima a Santarém. E como modéstia não era seu forte, não deixou de se gabar, em sua
autobiografia, da alta produtividade acarretada pelo fruto de seu trabalho83.
Esteve em Portugal quando D. João VI faleceu, em 1826. Presenciou a guerra civil
que teve início naquela ocasião, por conta da disputa pelo trono entre os irmãos D. Miguel
e D. Pedro, depois de este último ter abdicado em favor de sua filha, D. Maria da Glória.
Não por acaso, as propriedades onde Caetano trabalhava foram confiscadas e o Conde
teve de fugir para o Brasil84. Em meio àquele tempo de crise, Caetano procurou não se
“[...] tornar suspeitoso nem a um, nem a outro partido [...]”85. Da mesma maneira como
havia se posicionado outrora em relação à disputa pelo trono francês, preferiu se dissociar
das querelas políticas. Naquele momento, sendo brasileiro era, portanto, um estrangeiro
em Portugal e deveria, por esse motivo,

81
Ibidem, p. 221: “Estas e outras razões que tão bem me soavam nos ouvidos, antes de minha ida a
Lisboa, neles embaçavam depois que de lá me tornara; que não era já para Portugal que o coração me
chamava, mas sim para a Pátria, de que havia tão largo tempo que me achava arredado, e para onde já se
me antolhava que tornava”.
82
Ibidem, p. 222: “Abrasei-me em cólera no primeiro súbito com uma nova que afundava as minhas mais
caras esperanças e quase que disse mil leis do Borges, mas logo depois tornando sobre mim e pondo os
olhos nos filhos que ao redor de mim brincavam, escusei-lhe a parcialização, com que naquela se havia
por amor do seu”. Reitera-se que, como Borges de Barros, Caetano também tinha uma filha ilegítima.
83
Ibidem, p. 222-223.
84
Ibidem, p. 224.
85
Ibidem, p. 225.
264

[...] ter na mão o prumo, joeirava 86 quanto dizia ou escrevia não me escapasse
uma palavra, cujo sentido por ambíguo pudesse ser interpretado em abono ou
desabono, já de uns, já de outros; e ainda assim pouco faltou [para] que não
fosse parar à cadeia, por terem minha mulher e filhos, posto em cima do meu
retrato, em dia de meus anos, segundo o costume de França, um ramalhete de
flores em que desgraçadamente entravam algumas perpétuas amarelas que
nesse tempo eram tidas por símbolo da Constituição. Salvou-me o bom nome
que tinha adquirido e sobretudo, o ser de uma profissão, em que todos
interessam, e que a todos pode ser útil87.

Houve na mesma época um surto de cólera na região em que se encontrava.


Utilizou seus conhecimentos médicos nessa ocasião, o que, parece, ajudou-o a se ver livre
do mal entendido comentado acima88.
Continuou em Portugal até a vitória de D. Pedro, ocorrida em 1834. Para alguns,
essa seria a confirmação de que Caetano apoiava intimamente o outro irmão89. O fato é
que naquele ano, por ocasião da morte de sua esposa, resolveu partir de volta à França,
com os três filhos: “Enquanto assim me desvelava em dar a outros a vida, foi Deus servido
afligir-me privando dela a minha mulher”90. Apenas um deles acabou se estabelecendo
com o pai naquele país, pois os demais faleceram91. Ao narrar esse momento triste, depois
de perder quase toda sua família, Caetano esclarecia ao seu leitor sobre a dificuldade em
descrevê-lo: “Passarei, Imperial Senhor, pelas tristes particularidades e horríveis
peripécias da lastimosa tragédia de que fui juntamente ator e espectador, porque sinto
quebrar-se-me o coração e renovarem-se as sobressaradas feridas”92. A despeito do
grande drama pessoal por que passou naquele período, ele escolheu tratar de outros tipos
de acontecimentos, de foro mais profissional e menos íntimo – pistas que apontam para a
forma como pretendeu se expor na autobiografia.

86
Caetano tomou de empréstimo uma expressão que combinava com sua atividade naquela época:
“joeirar” significa o ato de separar o joio do trigo.
87
MOURA, Caetano Lopes de. Op. cit., p. 225-226, out. 1912.
88
Ibidem, p. 226.
89
No meio da guerra civil entre os partidários de D. Pedro e D. Miguel, Caetano tinha amigos nos dois
lados: Gameiro Pessoa (Visconde de Itabaiana), Marquês de Palmela e Conde de Linhares entre os do
primeiro; e Visconde de Asseca, Visconde de Santarém e Frei José Inácio Roquete entre os do segundo.
VEIGA, Cláudio. Op. cit., 1979, p. 101-102.
90
MOURA, Caetano Lopes de. Op. cit., p. 227, out. 1912.
91
Ibidem, p. 228. Caetano considerava que a sua esposa fora a responsável pela frágil saúde dos filhos:
“[...] havia infelizmente a mãe lhes dado com o leite uma constituição débil e predisposta à fatal queixa de
peito [ou seja, à tuberculose]”. Esta era uma crença comum na medicina daquele tempo, como já
comentei no primeiro capítulo desta tese.
92
Ibidem, p. 228.
265

5.1.2 O homem em meio aos livros

A França para onde Caetano retornou era já outra, a de Luís Felipe, o monarca
mais próximo do liberalismo de D. Pedro do que do absolutismo de D. Miguel 93. Sem
outros meios de subsistência94, começou a atuar aos cinquenta anos na tradução de livros
ingleses e franceses para a língua portuguesa e na escrita de textos próprios publicados
pela Livraria Aillaud. Sua única alternativa foi esta: “viver da pena”95.
Conforme tratado anteriormente, a Livraria Aillaud foi o ponto de apoio de luso-
brasileiros e de franceses entusiastas das coisas de Portugal e do Brasil 96. Seu foco era a
publicação de obras didáticas e de caráter utilitário, livros maçônicos, traduções de
clássicos para o português e de autores de língua portuguesa. Estima-se que de quinhentos
livros escritos em português publicados na França na primeira metade do século XIX,
cem foram editados pela Livraria Aillaud. Pode-se dizer também que sua produção foi
impulsionada pela chegada dos partidários de D. Miguel a Paris97.
Foi lá que Lopes de Moura conheceu e tornou-se amigo do Visconde de Santarém
e também do famoso brasilianista Ferdinand Denis. O primeiro, reconhecidamente um
exilado miguelista, escreveu inúmeros trabalhos historiográficos tendo Caetano como seu
consultor. Já Denis, que na mocidade conheceu a Bahia e por ela se encantou, foi um
grande companheiro de Caetano, a quem estimulava com conversas regadas à saudade

93
VEIGA, Cláudio. Op. cit., 1979, p. 105. Inclusive quando D. Pedro I esteve na França, em 1831, Luís
Felipe lhe garantiu um tratamento prestigioso. Sobre isso, ver LUSTOSA, Isabel. “O séjour de D. Pedro I
em Paris e a imprensa francesa: familiaridade e exotismo”. In: História, São Paulo, v. 31, n. 2, p. 175-
176, jul./dez. 2012.
94
Caetano havia perdido todo o dinheiro que tinha guardado com um negociante que fugiu. MOURA,
Caetano Lopes de. Op. cit., p. 229, out. 1912.
95
Ibidem, p. 229. Caetano publicou livros também nas editoras Baudry e Didot, mas em escala
infinitamente menor do que produziu pela Livraria Aillaud. VEIGA, Cláudio. Op. cit., 1979, 117-118.
96
O próprio fundador da Livraria se incluía nessa comunidade. Nascido em Portugal, filho de pai francês
e mãe portuguesa, Jean-Pierre Aillaud foi cônsul de Portugal em Caen. Seu estabelecimento teve início
em 1806 e continuou ativo por muitos anos, mesmo após sua morte, em 1852. Foi um dos responsáveis
pela origem da tipografia E. & H. Laemmert no Rio de Janeiro. Cf. HALLEWELL, Laurence. O livro no
Brasil (Sua história). São Paulo: EDUSP, 2005, p. 160-161.
97
VEIGA, Cláudio. Op. cit., 1979, p. 108.
266

dos tempos idos nos Trópicos e a quem deu muitas dicas de pesquisa, sendo um dos
responsáveis pelo arquivo da Bibliothèque de Sainte-Genèvieve98.
Na lista de publicações de Caetano Lopes de Moura por aquela editora, sobressai
uma esmagadora quantidade de traduções elaboradas desde a década de 1830, como as
dos romances de Walter Scott, mas também as de livros “científicos”, como o Diccionario
geographico, historico e descriptivo do Império do Brasil, cuja autoria é de J. G. R. Millet
de Saint-Adolphe, publicado em 184599. Traduzir poderia ser, inclusive, uma maneira de
ficar mais próximo da pátria:
Abaixei os ombros à carga, porque não podia ao fazer, e botei-me a traduzir
quanto lhe aprouve [ao Aillaud] com os olhos do entendimento virados para
a Pátria, na esperança, de que se porventura, os do corpo os fechasse à
mão da morte, não ficaria meu corpo sepultado no esquecimento 100.

Foi pela Livraria Aillaud que também saíram à luz seus próprios livros. O primeiro
deles foi Mitologia da Mocidade (1840), ao que se seguiu O livro indispensável ou
novíssima coleção de receitas concernentes às artes, ofícios e economia doméstica e
rural, coligidas das obras mais célebres, recentemente publicadas em França e
Inglaterra (1845), Harmonias da creação (1846) e a biografia de seu grande herói, o
imperador dos franceses, intitulada História de Napoleão Bonaparte desde o seu
nascimento até à sua morte (1846)101. O último foi o Epítome Chronologico de Historia
do Brasil, publicado no ano de sua morte, em 1860, mas que já vinha sendo gestado desde
1854102.

98
Ferdinand Denis foi autor de vários trabalhos sobre o Brasil, como o Résumé de l’histoire du Brésil
(1825) e de Résumé de l’histoire littéraire du Portugal, suivi de l’histoire du Brésil (1826), além de ter
sido o responsável pela publicação na Revue des deux mondes de uma síntese da obra de Saint-Hilaire,
Voyages dans l’intérieur du Brésil. Ele é considerado um dos grandes divulgadores do Brasil na França
no início do século XIX. LUSTOSA, Isabel. Op. cit., p. 173-174, jul./dez. 2012. Vale notar ainda que
Denis fez um verbete sobre Caetano Lopes de Moura na Nouvelle encyclopédie générale. Para Cláudio
Veiga, os dois amigos “[...] serviram de intermédio entre a literatura francesa e a literatura brasileira.
Ferdinand Denis tanto ajudou o romantismo português e brasileiro a tomar consciência de si mesmo,
como revelou à França a literatura em língua portuguesa e a natureza americana. Lopes de Moura revela
aos leitores de Portugal e do Brasil a literatura em língua francesa, tanto obras escritas originalmente em
francês, como obras de outras literaturas cuja tradução francesa foi o texto piloto para traduções em outras
línguas”. VEIGA, Cláudio. Op. cit., 1979, p. 110-111.
99
Caetano teria atuado em 2/3 de sua produção (de mais de 30 livros) como tradutor. VEIGA, Cláudio.
Op. cit., 1979, p. 118.
100
MOURA, Caetano Lopes de. Op. cit., p. 229, out. 1912 (grifos nossos).
101
VEIGA, Cláudio. Op. cit., 1979, p. 114 e p. 213-214.
102
Ibidem, p. 127.
267

Dentro desse período extremamente produtivo, houve algumas pausas: entre os


anos de 1841 e 1843, quando Moura fez alguns trabalhos de pesquisa para o Visconde de
Santarém, como já se comentou; depois, no período de 1847 a 1858, quando esteve
unicamente a serviço do IHGB e de D. Pedro II. Por motivos evidentes, interessa discutir
mais a respeito deste último momento.
Era comum o imperador atuar como mecenas de artistas, homens de letras e
cientistas. O processo que o levou a pagar pelos serviços de Lopes de Moura, entretanto,
possui algumas particularidades. Naquele tempo, determinados indivíduos do contato do
monarca estiveram em Paris e se encontraram com Caetano. Noticiaram então a situação
de pauperismo em que ele vivia. Mesmo escrevendo e traduzindo muitos trabalhos, a vida
em Paris não era nada barata. Aparentemente, D. Pedro II havia se sensibilizado com a
situação difícil por que passava o baiano103.
Além disso, houve uma troca de correspondências entre Lopes de Moura e a
mordomia imperial, intermediada pelo IHGB. Em 1844, a reedição do Castrioto Lusitano,
de Rafael de Jesus, feita por Moura, foi dedicada ao monarca brasileiro. Dois anos depois,
ele ofereceu ao IHGB a tradução do Diccionario geographico, historico e descriptivo do
Império do Brasil, anteriormente mencionado. Na sessão do dia 18 de março daquele
mesmo ano, foram propostos os nomes do autor e do tradutor do livro como sócios-
correspondentes da instituição. A aceitação veio em menos de um mês depois104. Lopes
de Moura passou, então, a se associar à agremiação tão estimada pelo imperador do Brasil.
O pedido de pensão, e sua confirmação, veio em seguida105.
Após isto, a comunicação com a mordomia imperial, sobretudo através da figura
de Paulo Barbosa da Silva106, passou a ser constante. Caetano, inclusive, encontrou-se
com este personagem em Paris, quando ele lá esteve em 1854107. As cartas do baiano ao

103
Um dos que comentaram a respeito da situação de pobreza em que vivia Caetano foi Inácio Accioli.
Ibidem, p. 143.
104
Ibidem, p. 142-143.
105
Caetano Lopes de Moura passava, então, a receber uma pensão anual no valor “[...] de 4.800 francos
para coligir nas bibliotecas da França os materiais relativos à história do Brasil [...]”. LAGOS, Manoel
Ferreira. “Relatório dos trabalhos do Instituto Histórico e Geográfico”. RIHGB, tomo XI (Suplementar),
p. 91, 1848.
106
VEIGA, Cláudio. Op. cit., 1979, p. 171. Paulo Barbosa foi mordomo-mor nos períodos de 1823 a 1846
e de 1855 a 1868.
107
Ibidem, p. 91.
268

mordomo demonstram a amizade que existia entre os dois. Os assuntos tratados vão desde
questões mais corriqueiras (perguntas sobre a saúde, informações sobre o tempo
parisiense, encontro com conhecidos em comum, etc.) até as mais formais, que tinham a
ver com o trabalho de Caetano ou o recebimento de sua pensão. Inclusive o tom com que
escrevia nesses casos era outro, mais formal e menos próximo; reiterava, em certos
momentos, que falava ao mordomo-mor da casa imperial, não ao “cordial amigo”. Em
outras cartas, as entonações se misturavam: pedia, como amigo, que Barbosa auxiliasse
em alguma questão relativa ao imperador108.
Através dessa correspondência é possível saber de acontecimentos que não foram
narrados na autobiografia escrita em 1852. Quando estouraram os movimentos
revolucionários de 1848, por exemplo, Caetano escreveu cartas nas quais falou sobre a
impossibilidade de cumprir com o cronograma de pesquisas em arquivos e bibliotecas de
Paris. Isso porque a cidade estava em polvorosa, literalmente: “De tão sérias e, ao mesmo
tempo, deleitáveis ocupações, vieram distrair, Imperial Senhor, os acontecimentos
políticos ocorridos nesta capital [...]”. Desejava o consentimento – e, claro, a colaboração
financeira – do monarca para partir para Roma, onde, garantia, havia muito o que coletar
a respeito da “história e do Reinado de Vossa Majestade Imperial”109.
Como Roma também sucumbiu às insurreições, Caetano partiu para a Bélgica.
Nos cerca de três anos em que lá esteve, consultou bibliotecas em Bruxelas, Antuérpia e
Gand, mas sem muito encontrar que pudesse interessar à história do Brasil. Retornou a
Paris em 1851, onde assistiu à vitória do sobrinho de seu estimado imperador à
presidência da República. Nesse tempo prestou assistência médica a Odorico Mendes e à
sua família110, além de testemunhar a movimentação que deu início ao conflito entre a
França e a Rússia e a Guerra da Criméia111.
Sendo pensionista do Estado imperial brasileiro, Caetano trabalhou sobretudo na
pesquisa histórica, enviando dados coletados e cópias de documentos sobre o Brasil

108
MOURA, Caetano Lopes de. “Cartas (Cópia xerox) de ... ao gen. Paulo Barbosa da Silva, Mordomo
da Casa Imperial”. 1851-1859. 6 docs. Arquivo do IHGB, Rio de Janeiro, Brasil. Ref. Lata 490 – Pasta
34.
109
VEIGA, Cláudio. Op. cit., 1979, p. 115-116.
110
O que teria motivado, segundo escreveu na autobiografia, uma pausa na escrita da mesma. Por isso o
trabalho é dividido em duas partes. MOURA, Caetano Lopes de. Op. cit., p. 205, out. 1912.
111
VEIGA, Cláudio. Op. cit., 1979, p. 116.
269

pertencentes a arquivos europeus112. Sabia bem no que consistia este trabalho, o qual já
havia feito na época em que consultava o Visconde de Santarém. Em carta remetida ao
imperador, anexada a dois manuscritos, Caetano confirmava que conhecia a necessidade
da utilização de fontes legítimas para a escrita da história do Brasil113:
Como em tudo quanto diz respeito à história só aquilo que é provado e
justificado com documentos autênticos e contemporâneos merece crédito, e
que na falta destes quanto escrevemos ficará sendo duvidoso e problemático,
continuarei, Imperial Senhor, a mandar copiar onde quer que eles se acharem,
e conforme as minhas faculdades, os que me parecer[em] que podem servir
para esclarecer alguns dos pontos duvidosos de nossos anais 114.

Mas o baiano acabou respondendo também por outras incumbências. A demanda


para que escrevesse suas memórias de vida é dessa época. Da mesma forma, foi solicitado
por D. Pedro II para dar parecer ao poema de Francisco Gonçalves de Magalhães,
Confederação dos Tamoios, em 1856115. Cuidou, ainda, da impressão de livros destinados
ao Instituto Imperial dos Meninos Cegos a partir de 1857, por incumbência do próprio
Ministro do Império, Luís Pedreira do Couto Ferraz116.

112
Como haviam poucos documentos relativos ao Brasil nos arquivos franceses, Caetano importou muita
coisa de Portugal. Ibidem, p. 151.
113
Dizia ele: “Altamente persuadido e capacitado da insuficiência e falta dos documentos, de que se deve
achar necessitado todo aquele que se determinar a escrever a história do vasto Império, que tanto tem
florescido debaixo do Paternal Governo de Vossa Majestade Imperial, tomei a resolução de ir aos poucos
coligindo os que para esse efeito me parecessem mais conducentes, e começando pelos mais antigos
mandei vir de Évora os que nesta ocasião tenho a honra de levar à Augusta Presença de Vossa Imperial
Majestade”. MOURA, Caetano Lopes de. “Carta (cópia) do Dr. ... ao Imperador D. Pedro II, remetendo e
comentando 2 manuscritos: ‘Regimento dado a Antonio Cardoso de Barros, provedor mór da fazenda que
primeiro foi ao Brasil’ e ‘Foral da capitania da Bahia e cidade de S. Salvador’”. 1855, f. 2. Arquivo do
IHGB. Ref. Lata 8 – Pasta 20.
114
Ibidem, f. 6.
115
Na ocasião, alinhou-se à opinião de Francisco Adolfo de Varnhagen contra o trabalho do poeta
romântico, apesar de as críticas ao poema serem de natureza distinta. Enquanto Moura deu mais ênfase ao
questionamento da forma como foi feito o poema (questões mais ligadas à língua e à poética, portanto),
Varnhagen o fez por seu conteúdo, no que dizia respeito à importância dada à tragédia indígena como
mito fundador da nacionalidade brasileira. Isso porque Magalhães acreditava na utilidade do exemplo que
um herói indígena poderia dar à nação em construção e parecia aproveitar alguns pressupostos
historiográficos para comprovar sua “teoria”. Já Varnhagen argumentava, em 1877, que a origem dos
tupis não era americana, mas sim indo-europeia, o que colocaria em xeque o argumento indianista de que
eles tinham direito à posse dos territórios americanos. Via, nesse sentido, os índios como os verdadeiros
conquistadores do território do Brasil, e não os portugueses. Para o historiador oitocentista, o elemento
europeu é que deveria ser visto como base da nacionalidade. Cf. PUNTONI, Pedro. “O sr. Varnhagen e o
patriotismo caboclo: o indígena e o indianismo perante a historiografia brasileira”. In: JANCSÓ, István
(Org.). Brasil: formação do Estado e da nação. São Paulo: Hucitec, 2003, p. 633-675; e WEHLING,
Arno. Estado, História, Memória: Varnhagen e a construção da identidade nacional. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1999, p. 160-165.
116
VEIGA, Cláudio. Op. cit., 1979, p. 157.
270

Além do pagamento pelos seus serviços, o imperador agraciou o mulato baiano


de outras formas. Entre 1852 e 1857 Caetano recebeu consecutivamente os títulos de
cavaleiro da Ordem da Rosa, de médico honorário da Imperial Câmara e de oficial da
Ordem da Rosa117. Além disso, D. Pedro II confirmou a pensão de sua segunda esposa,
Anne Gagnière, em caso de viuvez118. Este havia sido um pedido recorrente de Caetano
à mordomia imperial, reiterado até mesmo na sua autobiografia119.
Paris se tornava uma cidade cada vez mais cara. Em 1857, mesmo com a pensão
imperial, Caetano voltou a trabalhar para a Livraria Aillaud, naquele tempo com o nome
de Casa da Va. J.-P. Aillaud e Cia. Nas cartas trocadas com Paulo Barbosa, ele comentava
a reforma urbana de Georges-Eugène Haussmann e as mudanças que ela estava
promovendo em toda a urbe: a Paris retratada nos livros de Victor Hugo desaparecia120.
Ademais, a reforma arquitetônica conduzia a um aumento exponencial nos preços e
Caetano reclamava ao amigo sobre os acréscimos no aluguel e na comida121.
A morte apareceu antes que o autor visse o último de seus trabalhos sair publicado.
D. Pedro II, ao saber da notícia, aprovou as despesas do funeral e ordenou a compra de
uma sepultura perpétua no Père-Lachaise, além de confirmar o pagamento da pensão à
viúva122. Dois anos depois, em 1862, o ministro Marques Lisboa adquiriu, naquele mesmo

117
Ibidem, p. 171.
118
Ibidem, p. 147.
119
MOURA, Caetano Lopes de. Op. cit., p. 230, out. 1912: “De tantos desastres, enfados e contrastes da
fortuna desapressaram-me as mercês de Vossa Majestade Imperial, e como me achasse só, e sem ter quem
de mim cuidasse, determinei de casar segunda vez, e houve Deus por bem deparar-me uma mulher, como
me era mister, cujos desvelos e atenções me vão prolongando a existência, de sorte que nada mais tenho
que pedir a Deus, senão que se digne conservar a Augusta Pessoa de Vossa Majestade Imperial, e de
mover-lhe o magnânimo coração, já de si mesmo tão inclinado à beneficência, para que defira com
benignidade a humilde súplica que me ânimo por esta ocasião a fazer subir à Augusta Presença de Vossa
Majestade Imperial.” Anne Gagnière casou-se com Caetano por volta de 1856 e era quarenta anos mais
nova que ele. VEIGA, Cláudio. Op. cit., 1979, p. 115 e p. 170.
120
VEIGA, Cláudio. Op. cit., 1979, p. 176-178. Na edição revista e difundida que fez do Tratado de
geografia universal de Adriano Balbi, em 1858, Caetano comentava a situação atual do reinado de
Napoleão III, no momento em que seu tio tinha a memória reabilitada – passava a ser chamado de
Napoleão I e sua estátua coroava a coluna da Praça Vendôme.
121
MOURA, Caetano Lopes de. “Cartas (Cópia xerox) de ... ao gen. Paulo Barbosa da Silva, Mordomo
da Casa Imperial”. 1851-1859. 6 docs. Arquivo do IHGB, Rio de Janeiro, Brasil. Ref. Lata 490 – Pasta
34.
122
VEIGA, Cláudio. Op. cit., 1979, p. 180. A pensão a Anne Gagnière foi paga até 1862.
271

cemitério, um terreno de dois metros para nele levantar o jazigo, cujos cuidados ficaram
depois a cargo da Condessa de Barral123.
Em sua primeira viagem à Europa, aquela cujo planejamento inicial incorporava
a peregrinação pelos locais descritos nos romances de Walter Scott, D. Pedro II esteve
em Paris e visitou o cemitério. Certamente procurou o pequeno mausoléu com a inscrição
Sepulture de Moura124. Mesmo depois, estando novamente no Brasil, enviou uma carta à
sua grande amiga, em que se mostrava preocupado com a situação do jazigo, haja vista a
constante ocorrência naquela época de desabamentos no Père-Lachaise. A Condessa de
Barral, em resposta, indicava ter ido ao cemitério fiscalizar e garantia o bom estado da
sepultura. Tanto cuidado mostra que, mesmo em seu leito de morte, Caetano era visto
com importância por várias notabilidades do Império, em função, primeiramente, do
próprio imperador. Hoje a situação é bem diferente: a decadência da Sepulture de Moura
salta aos olhos de qualquer transeunte125.
A primeira homenagem póstuma a Lopes de Moura ocorreu no IHGB, quando
Joaquim Manuel de Macedo proferiu o elogio fúnebre que fez menção ao sócio-
correspondente como um “notável brasileiro”:
[...] exemplo raro de energia de vontade em um combate incessante contra a
má fortuna, e de inabalável constância em uma nobre vocação contrariada na
infância pela autoridade paterna, por longo tempo depois pela mais cruel
pobreza, deixou-nos o nosso ilustrado consócio o Dr. Caetano Lopes de Moura,
que morreu esse ano em Paris.
Triste, mas admirável é a longa e trabalhosa vida deste notável brasileiro, de
quem a cidade da Bahia pode ufanar-se de ter sido o berço126.

A autobiografia saiu publicada pela Revista da Academia Brasileira de Letras


somente em 1912, conforme será visto. Vinte anos depois, o mesmo periódico promoveu
uma edição destinada à comemoração do centenário de Walter Scott. Lopes de Moura foi
lembrado por Afonso Celso, devido ao fato de ter sido ele o grande responsável pelo
conhecimento dos romances do autor inglês em solo brasileiro. O discurso, proferido em
sessão pública do dia 29 de setembro de 1932, salientava a produção bibliográfica do “[...]

123
Ibidem, p. 181.
124
VEIGA, Cláudio. Op. cit., 1979, p. 181.
125
Estive durante o período de minha bolsa sanduíche em Paris no Père-Lachaise e visitei o túmulo de
Caetano Lopes de Moura, que se encontra em péssima situação. A comparação entre a foto tirada na
década de 1960 ou de 1970 por Cláudio Veiga e a minha, de 2014 (em “Anexo C”), dá conta de
demonstrar o crescente abandono do mausoléu ao longo do tempo.
126
Citado em VEIGA, Cláudio. Op. cit., 1979, p. 183.
272

denodado, galhardo, senão heroico, mulato baiano [...]”127, mas não deixava de
demonstrar a vida especial que teve Lopes de Moura, sobre a qual teve notícia a partir da
biografia escrita pelo próprio:
Foi, de certo, muito acima do comum a vida deste homem que, jovem, de
origem humilde, paupérrimo, contando apenas com a sua inteligência, vontade
e energia, deixa afoitamente o berço colonial, parte para o Velho Mundo, [...]
e em 60 anos de ausência da Pátria, à qual em mais de uma ocasião quis
voltar, não esquece, antes esmeradamente cultiva o idioma nacional, do que
deixou memoráveis documentos, como as traduções de Walter Scott, a quem
associou seu nome128.

A origem humilde e a cor da pele de Caetano muito o constrangeram. A


autobiografia relatou situações em que essas características pesaram bastante e
aumentaram consideravelmente as dificuldades para sua sobrevivência129. Salta aos olhos
de alguém como Afonso Celso, portanto, as maneiras encontradas por aquele personagem
para se tornar respeitável para além de condições tão duras. A escrita autobiográfica,
usada como fonte pelo literato em 1932, estimulou esse apelo pela heroicização de seu
próprio autor, salientada num dos mais importantes palcos de legitimação intelectual: a
Academia Brasileira de Letras.
Esta deve ser considerada uma das explicações para o pedido imperial da escrita
autobiográfica. Além disso, deve-se supor que o fato de que Lopes de Moura fosse, em
muitos aspectos, quase o sintoma de uma época também tenha colaborado para o interesse
de D. Pedro II por sua trajetória. Isto porque ela foi marcada por importantes mudanças
políticas e sociais, na Europa e no Brasil. Caetano esteve efetivamente presente nesses
acontecimentos, atuando de forma direta – como no caso das guerras napoleônicas – ou
indireta – como por meio de suas pesquisas em arquivos europeus sobre o Brasil, base
para a construção de uma história nacional a ser desenvolvida, sobretudo, pelo IHGB.

127
CELSO, Afonso. “Caetano Lopes de Moura (Resumo do discurso do sr. Affonso Celso, proferido na
sessão pública de 29 de setembro de 1932)”. Revista da Academia Brasileira de Letras. Rio de Janeiro, v.
40, n. 129, p. 275, set. 1932.
128
Ibidem, p. 275 (grifos nossos).
129
Os problemas causados por sua cor de pele foram recorrentemente descritos por Caetano na
autobiografia, como se viu. Apesar disso, o baiano não se pronunciou em nenhum momento sobre a
escravidão no Brasil. No seu manual de história, comentou por alto sobre essa instituição: em 1808, após
a vinda da família real, “[...] fizeram-se novos regimentos a respeito da arqueação dos navios da costa da
Mina, e do modo por que deviam ser tratados os escravos, o que não deixou de suavizar de certo modo a
triste condição daqueles infelizes [...]”. Para ele, mais perniciosa era a “escravidão colonial”, finalizada
por D. João VI. MOURA, Caetano Lopes de. Op. cit., 1860, p. 233 e p. 239-240.
273

5.1.3 Os leitores da autobiografia

Entende-se que, a partir da autobiografia elaborada por Lopes de Moura, muitos


brasileiros conheceriam alguns fatos históricos, sobretudo os ocorridos na Europa. Afinal,
era um relato de alguém que viveu naquele ambiente tenso, que conheceu personagens
importantes e que teria muito a contar para os homens que não vivenciaram nada disso.
O primeiro leitor teria sido o suplicante, o próprio imperador do Brasil. Já foi
demonstrado que Afonso Celso, na década de 1930, também teve contado com o texto.
Houve, sem dúvida, outros leitores; mas quem?
Vale a pena, neste ponto, avaliar a forma como Caetano empreendeu outra tarefa
intelectual: a produção do manual de história já mencionado, o Epítome Chronologico de
Historia do Brasil. Neste caso, em muitos momentos do texto indicava que, para além de
um resumo de outros livros130, ele também devia ser considerado um trabalho de
história131. E, como tal, reconhecia até que altura era permitido tratar: o período
imediatamente posterior à abdicação de D. Pedro I. Os fatos transcorridos a partir do
período regencial, porque considerados presente, não poderiam compor uma obra de
história. Seriam material para gerações seguintes: “Chegados somos à época em que
naturalmente deve findar a nossa história, pois é certo que os acontecimentos ocorridos
nos anos posteriores pertencem propriamente aos escritores dos séculos que estão por
vir”132.
Algo semelhante foi feito em sua autobiografia. O mulato baiano finalizou o texto,
em termos de questões políticas, com a guerra civil levada a cabo por D. Pedro e D.
Miguel em Portugal. Depois desse acontecimento, restringe-se a comentar muito pouco
sobre sua vida dedicada às letras em Paris, através da Livraria Aillaud. Portanto, cerca de
duas décadas são peremptoriamente omitidas do relato.
Além disso, há uma comprovação de que a Lopes de Moura interessava postergar
suas memórias ao futuro, adotando uma postura que muito se assemelhava à do IHGB em

130
Segundo o dicionário de Antonio Moraes e Silva, um epítome, assim como um compêndio, seria um
livro que deveria conter “o resumo do mais substancial, ou das noções elementares de alguma arte,
ciência, preceitos”. A. Moraes e Silva. Dicionário da lingua portuguesa - volume 1. 1813, p. 427.
131
Naquele trabalho, Caetano Lopes de Moura também utilizou, quando achou necessário, documentos
para subsidiar sua narrativa, inclusive transcrevendo-os no livro. Foi o caso, por exemplo, do diretório
para “a civilização e conversão dos Brasís em 95 artigos”. Caetano L. de Moura. Op. cit., 1860, p. 156-
157.
132
Ibidem, p. 326.
274

ocasiões análogas. Isto pode ser verificado através do pedido feito ao próprio D. Pedro II,
no momento em que lhe destinava, em forma de carta, seus escritos memorialísticos:
“Como, porém, para escrever a história de tão longa e tão atabalhoada vida, tenho de
falar de pessoas que ainda estão neste mundo, e de coisas que tomam, talvez, em meu
próprio louvor, praza a Vossa Majestade Imperial havê-la, desde já, por póstuma”133.
Sua vontade foi respeitada: a narrativa ficou protegida até o ano seguinte à sua
morte. Nessa ocasião, D. Pedro II ofereceu a primeira parte do manuscrito aos arquivos
do IHGB, depois de mandá-la a Cândido José de Araújo Viana para que a lesse134. O
original da segunda parte ficaria retido ainda alguns anos com o monarca, no Arquivo do
Grão-Pará. A publicação só saiu cinquenta anos após o tempo da escrita, em 1902, pelo
Jornal do Commercio. Editada posteriormente por Alberto de Oliveira, apareceu em três
fascículos na Revista da Academia Brasileira de Letras com o título já mencionado,
“Biografia do Dr. Caetano Lopes de Moura escrita por ele mesmo”.
Sobretudo a segunda parte da obra apresentava problemas para possíveis leitores
contemporâneos. Neste caso, é exequível citar a alusão que Caetano fez ao bastardo do
Visconde da Pedra Branca, Alexandre Sebastião Borges de Barros, que, na época em que
estava sendo produzida a autobiografia, litigava a herança do pai com sua meia-irmã, a
Condessa de Barral135. Talvez este fato auxilie na compreensão do que motivou o sigilo
do imperador em relação ao documento, guardando-o por mais tempo em seu arquivo
pessoal.
O sumiço daquela fração do texto incomodou até mesmo Max Fleiuss anos depois
da publicação dos dois extratos pelo Jornal do Commercio e pela Revista da Academia

133
Citado em C. Veiga. Op. cit., 1979, p. 169 (grifos nossos).
134
O envio ao IHGB foi comentado na sessão do dia 17 de maio de 1861. RIHGB, tomo XXIV, p. 703,
1861. Segundo Ernesto da Costa Araújo Viana, “O Dr. Caetano Lopes de Moura escreveu esta sua
biografia em Paris, a 15 de Julho de 1852. Endereçou-a juntamente com uma suplica ao Imperador D.
Pedro II. Este, depois de confiar os manuscritos para lê-los a meu avô, o Marquês de Sapucaí, ofereceu-os
ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em cujo arquivo se acham”. Esta citação encontra-se em
nota no início da autobiografia publicada pela Revista da Academia Brasileira de Letras. MOURA,
Caetano Lopes de. Op. cit., p. 277, abril 1912.
135
VEIGA, Cláudio. Op. cit., 1979, p. 169. Como citei na nota 77, Alexandre foi morar com a família de
Borges de Barros aos 15 anos. O pai colaborou com sua formação e o ajudou profissionalmente, mas
nunca quis atrapalhar os direitos da filha legítima. Chegou a colocar Alexandre no cargo de secretário da
legação de que era ministro. Após o malogro na função, decidiu enviá-lo ao Brasil, no lugar de Caetano
Lopes de Moura. Com o falecimento de Domingos Borges de Barros, Alexandre moveu um processo
contra Luísa (a Condessa de Barral) por ter sido excluído do testamento. DEL PRIORE, Mary. Op. cit.,
2008, p. 60 e 131.
275

Brasileira de Letras. Em 1932, o então secretário do IHGB perguntava a Victor Vianna136


sobre a segunda parte da autobiografia, pois no arquivo do Instituto, apesar do que disse
seu pai em artigo publicado naquele primeiro periódico, só havia um manuscrito de vinte
e nove folhas, sem designar partes. O Conde de Afonso Celso desejava consultar os
originais completos137 e, por esse motivo, Fleiuss pedia ao amigo informação sobre se
não estaria a tal parte sumida no “[...] acervo deixado pelo saudosíssimo Araújo Viana
[...]”138. Até hoje, contudo, somente o início da autobiografia – as mesmas vinte e nove
folhas – acha-se no IHGB139.

“De vossa Majestade Imperial, o mais humilde súdito e criado [...]”140 era uma
forma adotada frequentemente em cartas ou dedicatórias para os governantes do Antigo
Regime141; foi como Caetano Lopes de Moura escolheu terminar sua escrita de si. Ele
nunca perdeu de vista o destinatário de sua biografia, o qual, inclusive, havia ordenado
sua elaboração. Sabia da importância desse trabalho, como também dos riscos em levá-
lo à frente. Por isso, a narrativa é coesa, sem muitos parêntesis que normalmente
caracterizam uma narrativa memorialística142.
São patentes as omissões realizadas pelo autor, quando, por exemplo, pouco fala
de sua vida particular143, de suas preferências políticas e de algumas “máculas” em sua
trajetória. Como argumentou seu biógrafo, Cláudio Veiga,

136
Victor Vianna era filho de Ernesto Araújo Viana, responsável pela publicação da autobiografia de
Caetano no Jornal do Commercio e, portanto, bisneto do Marquês de Sapucaí.
137
Para elaborar o discurso sobre Caetano no centenário de Walter Scott.

FLEIUSS, Max. “Carta (cópia) de ... a Vitor Viana perguntando-lhe sobre uma 2ª parte de um
138

manuscrito de Caetano Lopes de Moura, doado ao IHGB pelo marquês de Sapucaí...”. 1932. Arquivo do
IHGB, Rio de Janeiro, Brasil. Ref. Lata 564 – Pasta 17.
139
MOURA, Caetano Lopes de. “Biografia do Dr. ..., escrita pelo mesmo”. s/d. Arquivo do IHGB, Rio de
Janeiro, Brasil. Ref. Lata 113 – Pasta 8.
140
Idem. Op. cit., p. 230, out. 1912.
141
Para uma análise da prática das dedicatórias no Brasil, ver DELMAS, Ana Carolina Galante. “Do mais
fiel e humilde vassalo”: uma análise das dedicatórias impressas no Brasil joanino. 2008. Dissertação
(Mestrado em História) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008.
142
Tratarei dessa característica no tópico subsequente.
143
Caetano nada disse a respeito de sua filha ou de seu neto ilegítimos. Além disso, apesar de tratar um
pouco da infância na autobiografia, é notório que ela apareça mais em Harmonias da Creação. VEIGA,
Cláudio. Op. cit., 1979, p. 170.
276

Omissões, deformação do passado são uma necessidade do gênero


[autobiográfico] e tudo concorre para a fidelidade, não propriamente histórica,
mas mitológica que cada autobiografado persegue, ao retratar-se. Além do
mais, o autorretrato de Lopes de Moura devia ter o estilo e a compostura de
uma autobiografia ad usum Imperatoris144.

O que importava ser dito era que ele era alguém que respeitava o imperador, na
qualidade de seu súdito. O fato de ter vivido a maior parte de sua vida longe do país natal
não diminuía esse amor, muito pelo contrário, pois foram as circunstâncias que o levaram
a isso, como esclarece em vários momentos do texto, como no seguinte: “Desterrado da
Pátria por amor das letras, quando solteiro, e por amor dos filhos depois de casado [...]”145.
Não por acaso, é fácil encontrar trechos em que Caetano tratava da sua naturalidade – era
“Natural da Bahia”146, como vinha estampado nos frontispícios de suas obras – e da
saudade da pátria – referindo-se, provavelmente, mais à sua província natal do que ao
Brasil, que sequer existia como Império independente na época em que o deixou.
Mesmo aquilo que poderia ser tido como uma lacuna em uma biografia tão
homogênea, Caetano relatou de forma tranquila: sua idolatria para com Napoleão, por
exemplo. Não seria no mínimo estranho um luso-brasileiro se posicionar de forma tão
decidida favoravelmente ao imperador francês, que tantos danos causou a Portugal? Não
o era para Caetano. Ou, ao menos, para aquilo que desejava aparentar. O fato de ter
servido nas tropas napoleônicas entre soldados portugueses não deveria ser visto como
algo incompatível com sua naturalidade, tampouco com seu apoio incondicional ao
Império do Brasil e à figura de D. Pedro II.
Reitera-se, portanto, que os acontecimentos narrados, bem como a forma como
escolheu fazê-lo, tinham que demonstrar uma vida quase sempre coerente147, ao menos
em um aspecto: o amor à pátria e o desejo de a ela sempre retornar. Inúmeras passagens
citadas neste capítulo demonstram tal assertiva. O próprio pedido feito em nome do
imperador por José Maria Velho da Silva148 a corrobora. Segundo o mordomo, a escrita

144
Ibidem, p. 170.
145
MOURA, Caetano Lopes de. Op. cit., p. 223, out. 1912.
146
VEIGA, Cláudio. Op. cit., 1979, p. 13.

Produção que caracteriza uma “ilusão biográfica”. BOURDIEU, Pierre. “A ilusão biográfica”. In:
147

FERREIRA, Marieta; AMADO, Janaína (Orgs.). Usos e abusos da História Oral. Rio de Janeiro: Ed.
Fundação Getúlio Vargas, 1996, p. 183-191.
148
Substituto de Paulo Barbosa que, na época, era representante do Império em países europeus. Conferir
o verbete feito por L. Guimarães, “Paulo Barbosa da Silva”. In: VAINFAS, Ronaldo (Dir.). Op. cit.,
2002, p. 569.
277

da biografia era justificada pelo reconhecimento de que Lopes de Moura vivera uma vida
longe do Brasil, mas sem nunca esquecê-lo:
Sua Majestade, o Imperador, me encarrega de participar a V. Sa. o quanto
estimaria possuir alguns dados sobre a sua vida! Os acontecimentos principais
da existência de um brasileiro de tanto apreço para as pátrias letras e que,
apesar de arredado por várias décadas do seu solo natural, nunca deixou de lhe
votar o mais entranhado amor, não podem deixar de interessar fortemente o
Mesmo Augusto Senhor que os espera de sua boa vontade para servi-lo com
diligência149.

Desse modo, fosse omitindo dados que fizessem o leitor duvidar de sua
integridade ou de seu amor ao Império150, Caetano Lopes de Moura empreendeu uma
escrita autobiográfica que levou em conta as expectativas do monarca dos Trópicos. O
trabalho de escolha daquilo que devia ou não ser dito foi feito com primor pelo mulato
baiano. Ainda assim, mesmo com todas as precauções tomadas, o “Dr.” não deixava de
nutrir receio de que sua vida fosse lida por um amplo público no presente. Isto era tarefa
para os homens do futuro, definitivamente.

5.2 Nostalgia e redenção nas Memórias do Visconde de Taunay

E basta de pescado. Afinal o meu leitor de 1943 interessar-se-á


por todas essas coisas? [...] A disposição dominante, avassaladora
acentua-se logo, dizer mal, tanto mal quanto bem nos mereça o
nosso próprio eu. Que condescendência então! Deveras, porém,
não me sinto sempre contente comigo mesmo. Recapitulando a
minha vida, olhando para o passado, acho que deixei escapar bem
boas ocasiões de aparecer, de me distinguir, de prestar bons
serviços a mim e ao meu país.
Por vezes, imaginei que me falta um quid, um bocadinho, quase
nada para ser personalidade acima do vulgar e merecer a
popularidade que jamais consegui em torno do meu nome, por
pouco tempo que fosse. Decerto, na minha existência não fui um
raté, isto é, quem se supondo muito e crendo-se destinado a
grande porvir, ficou em caminho e nada pode conseguir.
Mas também nunca afirmei, na carreira das armas, do
professorado, das letras, da política, por atos incontestáveis, e

149
Citado em VEIGA, Cláudio. Op. cit., 1979, p. 168.
150
Império primeiramente luso-brasileiro, vale lembrar.
278

brilhantes provas, a culminância a que por vezes acreditei poder


aspirar.
Faço, já o disse antes, grande cabedal da Retirada da Laguna e de
Inocência, mas chegarão, porventura, esses dois livros à
posteridade? Serão lidos, emergirão do enorme acervo de obras,
romances, tratados condenados à eterna escuridade [sic]? Quanto
ambiciono para Inocência o destino de Paulo e Virgínia! É a
minha aspiração póstuma.
Alfredo Taunay151

De Paulo e Virgínia pouco se ouve falar hoje no Brasil152. O mesmo não se aplica
a Inocência e A Retirada da Laguna, cuja popularidade, ainda que mais restrita aos
âmbitos acadêmicos, faz coro às ambições de seu autor. A escrita de suas Memórias não
pretendia dar conta “apenas” da breve permanência do narrador neste mundo. Deixava
antever um projeto, ou, antes, um pedido assinado, timbrado e lacrado pelo Visconde de
Taunay: ser lembrado para além de sua própria existência. E o que poderia ser melhor
para isso, senão a obra que deixava?
Quando o filho Afonso Taunay foi aceito como sócio do IHGB, em 1911, muito
foi dito em relação à importância do Visconde para as letras brasileiras. A entrada de
Afonso, inclusive, era justificada pela obra do seu genitor, que tinha nele excelente
zelador153. Simbolicamente, ele passava a ocupar a cadeira do “Xenofonte brasileiro”,
alcunha tantas vezes dadas a Alfredo Taunay e, desse modo, a reabilitar a imagem do pai
dentro da instituição da qual, anos antes, ele havia escolhido se despedir154.
Igualmente emblemático foi o ritual de consagração do filho a partir da memória
do pai. A sessão que deu as boas-vindas a Afonso Taunay ao Instituto foi a mesma em
que se inaugurou o quadro pintado por Eduardo Sá em homenagem a Alfredo. A
representação do Visconde com uniforme de engenheiro militar, o que muito dizia sobre

151
TAUNAY, Alfredo d’Escragnolle. Memórias. São Paulo: Edições Melhoramentos, [1948], p. 161.
152
Originalmente escrito em francês e publicado em 1787, Paul et Virginie é um romance de Bernadin de
Saint-Pierre que teve um enorme sucesso editorial nos séculos XVIII e XIX. D. Pedro II foi um dos
ávidos leitores deste romance. BARMAN, Roderick. Op. cit., 1999, p. 56. Importante salientar que, para
estudiosos da área da História do Livro e da Leitura, o romance segue sendo um importante objeto de
estudo.
153
Afonso, como será visto, foi o grande responsável pela organização da obra de Alfredo Taunay no
século XX.
154
“Ata da sessão de 16 de agosto de 1911”. RIHGB, tomo LXXIV, p. 546-547, 1911: “Filho do eminente
Visconde de Taunay, que foi vulto distintíssimo nas letras pátrias e operoso sócio do Instituto, o Dr.
Afonso Taunay trabalha, como se vê, por honrar brilhantemente as tradições paternas e está no caso de vir
prestar-nos auxílio valioso, ocupando a nobre cadeira do autor da Retirada da Laguna, do Xenofonte
brasileiro, cuja perda prematura ainda hoje lamentamos com viva saudade”.
279

qual memória do personagem estava sendo reiterada, era também uma forma de dar fim
à antiga querela: “[...] colocando a efígie do seu extinto orador, na galeria dos seus
máximos associados, homenageia o Instituto um dissidente; faleceu o visconde de Taunay
afastado do grêmio a que, durante mais de vinte anos, servira dedicadamente”155. Para
entender a importância deste ato, faz-se necessário voltar alguns anos no tempo, mais
especificamente ao início do regime republicano.

5.2.1 O adeus ao IHGB

A ruptura política fez surgir uma época de grandes expectativas. A novidade


atingia de formas distintas os contemporâneos; enquanto para uns era necessário tentar se
enquadrar na nova ordem, para outros não havia benefício que sobrevivesse ao fim do
Império. O IHGB, ainda que composto majoritariamente de monarquistas naquele início
de vida republicana156, teve que se adequar aos novos tempos. Até mesmo por uma
questão prática: subsistia basicamente através de subvenção estatal. Assim, em 1891, não
só pareceu aceitar o novo regime, como deu ao chefe do governo provisório, Deodoro da
Fonseca, o título de presidente honorário do Instituto157.
O mesmo não conseguiu fazer o Visconde de Taunay. Já afastado da vida política
desde 1889, era a vez de dar adeus à agremiação, que passou então a abrir “[...] de par em
par as suas portas aos grandes e quase analfabetos argentários, crismando os sócios

155
“Atas da sessão de 15 de agosto de 1912”. RIHGB, tomo LXXVI (Parte Segunda), p. 438, 1913.
156
Quanto a essa informação, há controvérsias. Enquanto Ângela de Castro Gomes e Maria de Lourdes
Janotti apontam para essa associação entre o IHGB e o antigo regime, mesmo após 1889, Hugo Hruby
demonstra, através de levantamento sucinto dos sócios à época, que o IHGB esforçava-se para estabelecer
laços com a República. HRUBY, Hugo. Obreiros diligentes e zelosos auxiliando no preparo da grande
obra: a História do Brasil do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1889-1912). 2007. Dissertação
(Mestrado em História) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2007, p.
50-53.
157
“Atas da sessão de 17 de abril de 1891”. RIHGB, tomo LIV, p. 183-184, 1891. Ver também artigo
publicado no Jornal do Commercio na mesma data: “Na sessão de anteontem [?] foram eleitos
presidentes honorários desta associação [o IHGB] o Sr. Sady Carnot, presidente da República Francesa, e
o Sr. general Manoel Deodoro da Fonseca.” TAUNAY, Visconde de. “Incidente entre o ... e o Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, pelo fato de haver sido proposto o general Manoel Deodoro da Fonseca
presidente honorário desse Instituto (Recortes do Jornal do Commercio)”. Arquivo do IHGB, Rio de
Janeiro, Brasil. Ref. Lata 330 – Pasta 6.
280

beneméritos, mas chupando-lhes bons cobres”158. A mesma desmoralização política e


econômica da República que narrava em seu livro O encilhamento (1894) estaria presente
na instituição que, até pouco tempo antes, era um dos grandes símbolos da impecabilidade
do Império. Frente a tais transformações, Taunay ausentou-se impetuosamente da
academia responsável por alegrias que haviam ficado no território do passado:
Abstraindo de personalidades, levantou a imprudente proposta gravíssimo
problema de ordem moral, que o Instituto Histórico resolveu de modo mais
deprimente e menos digno possível.
Quando a academia de medicina e outras associações científicas e literárias,
onde de todo o tempo existiram elementos de republicanismo e patente
oposição à monarquia não se lembraram de manifestações daquela ordem, foi
o Instituto Histórico que rompeu a marcha.
Bom proveito lhe faça.
Tenho, aliás, por certo, que o mesmo Sr. marechal Manoel Deodoro da
Fonseca, deverá ter ficado bem desagradavelmente surpreendido com a tal
pretendida prova de apreço e com o juízo exarado sobre os seus serviços por
quem viveu mais de quarenta anos só de meigo influxo e da constante afeição
do Sr. D. Pedro II.
Quanto a mim, declaro: Desta data em diante não faço mais parte desse
instituto159.

Maior clareza para o motivo do rompimento, impossível. O incidente entre


Taunay e o IHGB está eternizado nas páginas do Jornal do Commercio de abril de 1891,
onde o então orador da associação160 se exprimiu contrariamente à proposta de eleição de
Deodoro da Fonseca para presidente honorário do grêmio:
Sinceramente sinto não haver assistido à sessão de sexta-feira última [do
IHGB], pois teria com energia impugnado a proposta da aclamação do Sr.
generalíssimo Manoel Deodoro da Fonseca a presidente honorário.
Entendo que aquele cidadão nada tem com essa associação e que ela coisa
alguma deveria ter com S. Exa.
Lamento deveras, que o Instituto Histórico, no meio dos contínuos sarcasmos
de que é vítima, não queira assumir o papel de retraimento e modéstia, único
que lhe quadra, entregue só aos trabalhos da sua competência e, exatamente
pela natureza e feição deles, mais voltado para as coisas de outrora, do que
para os triunfadores e poderosos do dia161.

158
TAUNAY, Visconde de. O encilhamento. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1971, p. 192.
159
Idem. “Incidente entre o ... e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, pelo fato de haver sido
proposto o general Manoel Deodoro da Fonseca presidente honorário desse Instituto (Recortes do Jornal
do Commercio)”. Arquivo do IHGB, Rio de Janeiro, Brasil. Ref. Lata 330 – Pasta 6. Trecho extraído do
Jornal do Commercio de 23 de abril de 1891.Taunay era, na época, um dos sócios mais ativos do IHGB:
atuava desde 1869 como seu orador.
160
Cargo que Taunay assumiu na década de 1870, substituindo Joaquim Manuel de Macedo.
161
TAUNAY, Visconde de. “Incidente entre o ... e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, pelo fato
de haver sido proposto o general Manoel Deodoro da Fonseca presidente honorário desse Instituto
(Recortes do Jornal do Commercio)”. Arquivo do IHGB, Rio de Janeiro, Brasil. Ref. Lata 330 – Pasta 6.
Trecho extraído do Jornal do Commercio de 21 de abril de 1891.
281

O periódico, que foi palco de muitas polêmicas do período, abriu espaço para
comunicar as respostas da instituição ao Visconde de Taunay. Com as assinaturas de
vários sócios importantes162, o IHGB se pronunciou contra os comentários de Alfredo
naquele veículo, indicando que não cabia a ele “[...] o direito de desvirtuar as intenções
dos seus consócios com insinuações odiosas, que o ilustre visconde não quereria que
alguém suscitasse quando ele no seio da mesma corporação aplaudia [...] não os
triunfadores de hoje, porém o dominador de ontem”163. Reiteravam que, além disso, a
proposta fora aceita por unanimidade entre os presentes na sessão. A ata da mesma foi,
inclusive, anexada ao texto publicado no jornal.
Curiosa, no entanto, foi a tréplica do presidente do Instituto, também inserida na
publicação. De primeira, Joaquim Norberto de Sousa Silva diminuía a importância da
honraria conferida a Deodoro, dizendo que o diploma de presidente honorário não
garantia nenhuma interferência do nomeado nos negócios da instituição. Quando muito,
podia assistir às sessões, mas nunca tomando para isso a “cadeira imperial de seu protetor”
– a menos que houvesse deliberação do Instituto aceitando tal aspiração. No mesmo texto,
ele justificava a proposta como a maneira encontrada pelos agremiados para
contrabalançar o privilégio que havia sido dado ao presidente da França, que, valia notar,
tinha demonstrado um grande respeito pelo imperador no exílio, quando teve a
“consideração de ir diretamente a Cannes” somente para cumprimentá-lo164.
Mas o elemento surpresa do texto está no fato de que Sousa Silva assumia não ter
tido responsabilidade sobre o que se passara. Ouviu que a proposta já estava deferida
através do primeiro secretário da associação José Alexandre Teixeira de Melo com total
espanto, sobretudo porque “estava alheio a tudo”, apesar de constar sua assinatura “em
primeiro lugar”. Aparentemente, segundo contou, havia assinado a proposta sem saber do
que se tratava, confiando na pessoa que lhe havia entregue os papeis:
[...] assinei a proposta antes de abrir-se a sessão, entre outros papeis do
expediente, sem ler e sem consciência do que assinava, como faço confiando

162
Ibidem. Trecho extraído do Jornal do Commercio de 22 de abril de 1891. Foram eles: Joaquim
Norberto de Sousa Silva, Olegário Herculano de Aquino e Castro, Tristão de Alencar Araripe, Cézar
Augusto Marques, Manuel Francisco Correia, Henri Raffard, José E. Garcez Palha, Barão de Alencar,
Barão de Capanema, José Luiz Alves, José Domingues Cadeceira, Augusto Victorino Alves do
Sacramento Blake, Feliciano Pinheiro de Bittencourt, Visconde de Beaurepaire Rohan e José Alexandre
Teixeira de Melo. As assinaturas constavam, na realidade, da ata da sessão do IHGB.
163
Ibidem. Trecho extraído do Jornal do Commercio de 22 de abril de 1891.
164
Ibidem. Trecho extraído do Jornal do Commercio de 24 de abril de 1891.
282

naqueles que me apresentam o que depende de minha assinatura, no meio da


confusão que me cercava [...]165.

Indicava, ainda, profunda tristeza pela saída do “eloquente orador” da instituição


levado sem dúvida pela “[...] publicação intempestiva da proposta, e que pareceu feita
como resposta de todos os signatários ao mesmo senhor [...]”, a qual, aliás, ele não havia
previamente autorizado, como seria o certo a se fazer166.
Sousa Silva quis ainda esclarecer que nunca foi oportunista; que havia sido
“monarquista pessoal” porque prezava tudo o que foi feito para o país pelo imperador.
Lamentava, nesse sentido, a injustiça por ele sofrida ao ser expulso do próprio país,
mesmo após ter salvado “[...] três repúblicas americanas das mais atrozes tiranias [...]”.
Via-se, a si próprio, como “tradicionário” e preferia se afastar da política atual. Foram
suas as dramáticas palavras, que bem poderiam ter sido ditas pelo Visconde de Taunay:
“Vivo alheio a tudo porque pertenço ao passado”. Por fim, indicava a intenção de suprimir
para sempre a classe de presidentes honorários do Instituto167.
Teixeira de Melo, sentindo-se no direito de responder às acusações de Sousa Silva,
também publicou um pequeno artigo no Jornal do Commercio. A respeito da acalorada
discussão, dizia ele que nunca soube dos anseios do presidente do IHGB em honrar o
senhor Carnot pelos motivos citados no periódico. Além disso, negava, ainda que de
forma indireta, que o presidente do Instituto desconhecesse o assunto da proposta por ele
assinada168. Silva, em matéria seguinte, indicava tão somente que deixaria “[...] de
responder ao Sr. Dr. Teixeira de Mello, para mostrar-lhe que não cai em erro”169.
Essas passagens mostram que não havia um consenso completo de como a
instituição histórica deveria se portar frente aos novos tempos republicanos 170. Seu
próprio presidente não se sentia à vontade em assumir compromisso sobre a grande
honraria conferida ao novo chefe da nação. Por outro lado, apenas Taunay pareceu se

165
Ibidem. Trecho extraído do Jornal do Commercio de 24 de abril de 1891.
166
Ibidem. Trecho extraído do Jornal do Commercio de 24 de abril de 1891.
167
Ibidem. Trecho extraído do Jornal do Commercio de 24 de abril de 1891.
168
Ibidem. Trecho extraído do Jornal do Commercio de 25 de abril de 1891.
169
Ibidem. Trecho extraído do Jornal do Commercio de 27 de abril de 1891.
170
Há trabalhos que se dedicaram a analisar o IHGB na transição do Império para a República. HRUBY,
Hugo. Op. cit., 2007; e GUIMARÃES, Lucia. Da Escola Palatina ao Silogeu: Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro (1889-1938). Rio de Janeiro: Ed. Museu da República, 2006.
283

ressentir tanto, a ponto de deixar para sempre a associação. Formalizando o pedido feito
no Jornal do Commercio, ele anunciava ao primeiro secretário da instituição seu
desligamento total do IHGB em bilhete datado de 14 de maio de 1891171. O medo de que
algo semelhante ocorresse na Academia Brasileira de Letras fez com que Taunay, ao
saber da ideia de sua constituição, em 1896, escrevesse uma carta a José Veríssimo
pedindo que ela fosse criada sem vínculos com a República172.
De forma geral, os anos finais da trajetória de Taunay podem ser caracterizados
por um sentimento: desgosto. Com a partida de D. Pedro II, por quem nutria profunda
admiração, teve início uma nova era, que, na qualidade de ruptura, afastava-se da
constância que caracterizava o Império. Não era irrisória, portanto, a preocupação que
demonstrava, enquanto pai, com o futuro de sua prole. Em carta destinada a Afonso, por
exemplo, prevenia sobre as futuras dificuldades, uma vez que não se podia mais contar,
como outrora, com a segurança advinda da influência do sobrenome: “Não há dúvida, que
precisas estudar bem e te encarreirares convenientemente, porquanto cada qual hoje,
sobretudo e no estado atual das coisas, só deve contar consigo só”173. Se antes, no tempo
do Império, tudo era facilitado pela posição e importância paternas, agora restava confiar
no “[...] esforço próprio, tanto mais quanto escassearam e muito os recursos com que
podíamos contar”174.
O novo tempo impôs-se ao antigo, do Império e da figura sempre bondosa do
imperador175. Na ótica de Taunay, iniciava-se o período marcado pela “enfermidade
moral”176, que afetava todas as esferas da sociedade, incluindo sua economia. Assim, a
política econômica instituída por Rui Barbosa, que tinha por objetivo o incentivo à

171
O pedido se fez da seguinte forma: “Peço a VSa queira comunicar ao Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro que desde o dia 21 de Abril corrente passado me considero desligado dessa Associação,
sentindo não ter podido prestar-lhe mais serviços do que nas minhas forças lhe prestei, desde 1869”.
TAUNAY, Alfredo d’Escragnolle. “Carta de ... ao 1º secretário do Instituto Histórico, desligando-se das
funções que exercia”. 1891. 1 f. Arquivo do IHGB, Rio de Janeiro, Brasil. Ref. Lata 331 – Doc. 15.
172
ANHEZINI, Karina. “Comemoração, memória e escrita da história: o ingresso de Afonso de Taunay
no IHGB e a reintegração do pai”. In: Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH. São
Paulo: USP, 2011, p. 3.
173
Citado em Ibidem, p. 5.
174
Ibidem, p. 5. Verifica-se, contudo, que ser filho do Visconde de Taunay continuou garantindo a
Afonso muitas facilidades, inclusive a de ser admitido como sócio do IHGB.
175
TAUNAY, Visconde de. Op. cit., 1971, p. 30-31.
176
Ibidem, p. 115.
284

industrialização177 e se baseou na liberação de créditos bancários por meio das incessantes


emissões de moeda, não podia representar outra coisa que não a falsidade do regime
republicano.
Não por acaso, O encilhamento é uma história de amor e de traição. O triângulo
amoroso formado por Laura, Menezes e Alice é a metáfora do episódio que dá título ao
livro: a primeira personagem atua como a personificação, por sua grande perfídia e
amoralidade, da “miragem do encilhamento”178. Dona de grandes encantos, Laura
mostrava-se fácil a quem a quisesse como amante, apesar de casada. Já Menezes fora por
ela ludibriado, apaixonando-se perdidamente; da mesma forma, deixou-se enfeitiçar pelas
promessas de enriquecimento rápido através do encilhamento. Contudo, após muitas
decepções, o protagonista se desfaz do caso e consegue retomar o caminho “do bem”, ao
lado de Alice, prima benevolente da vilã da história. Abandona igualmente, antes de ter
mais prejuízos, suas atividades na bolsa.
O romance era, portanto, uma crítica direta à República e ao seu modelo
econômico. Escrito no momento em que o próprio Taunay vivia as algúrias de ter perdido
grande parte de sua fortuna179, O encilhamento saiu editado pela primeira vez na Gazeta
de Notícias, em 1893180. Nesta ocasião, e quando saiu em forma de livro pela Livraria
Magalhães, no ano seguinte, a novela foi assinada por “Heitor Malheiros”. O pseudônimo
só seria abandonado na segunda edição do texto, publicada postumamente, em 1923. E a
responsabilidade por este feito recaía sob os ombros do filho Afonso, como em tantas
outras ocasiões181.

177
Ao contrário do Império, que privilegiava a agricultura. TAUNAY, Visconde de. Op. cit., 1971, p. 71-
72.
178
HOHLFELDT, Antônio. “O encilhamento: um estudo literário como narrativa histórica metonímica”.
In: Letras de Hoje. Porto Alegre, v. 33, n. 3, p. 122-123, setembro 1998.
179
Taunay foi vítima do encilhamento, como escrevem no prefácio de Memórias seus filhos, Afonso e
Raul: “[...] graças às consequências de tal período de insônia coletiva, perdera a situação em que se
encontrava, em fins de 1889, de homem largamente abastado”. Cf. “À guisa de introito”. In: TAUNAY,
Alfredo d’Escragnolle. Op. cit., [1948], p. 10.

Para essas informações, ver o prefácio escrito por Afonso Taunay à publicação. “Duas palavras”. In:
180

TAUNAY, Visconde de. Op. cit., 1971, p. 7.


181
Ibidem, p. 7. Afonso foi o principal responsável pela ampla reedição e organização de textos do
Visconde de Taunay. Outros estudiosos que se detiveram a reunir sistematicamente as publicações de
Taunay foram Augusto Alves do Sacramento Blake, Arthur Motta e Odilon Nogueira de Matos. Sobre
isso, ver MARETTI, Maria Lídia Lichtscheidl. O Visconde de Taunay e os fios da memória. São Paulo:
Editora UNESP, 2006, p. 53 e 105.
285

O texto, irônico e mordaz, foi a forma encontrada por Taunay para levar a público
sua opinião sobre os últimos acontecimentos. Apesar de sempre ter buscado adotar uma
postura de clara discordância em relação a eles, como dá prova a sua conturbada saída do
IHGB, Taunay preferiu se esconder atrás de Heitor Malheiros182. Medo de represálias que
pudessem trazer novas dificuldades para si e sua família? Possivelmente. Já havia perdido
o montante de suas economias, e, muito além disto, a alta posição política e social que
possuiu até 1889.

182
Taunay recorreu muitas vezes ao uso de pseudônimos para seus escritos. O mais conhecido deles é
Sylvio Dinarte, que assinou muitos de seus romances, contos e peças teatrais, além do livro Céus e terras
do Brasil. Houve, ainda, Eugenio de Mello, Jorge Palmer, Flávio Elysio e, evidentemente, Heitor
Malheiros. Na imprensa, foram adotados os pseudônimos A Sentinela, Tory, A velha de Syracusa,
Carmontaigne, André Vidal, Mucio Scaevola, entre outros. Maria Lídia L. Maretti verifica nessa
tendência uma prática que não era apenas de Taunay, mas uma constante no século XIX, e que tinha a ver
com o preconceito que ainda existia contra o gênero romanesco (sobretudo a literatura), visto como um
“gênero secundário”, no dizer de Brito Broca. Além disso, discorre sobre o fato de que Taunay precisava
de uma liberdade para escrever e publicar com a qual não contava em vida. Daí a adoção dos
pseudônimos. MARETTI, Maria Lídia Lichtscheidl. Op. cit., 2006, p. 57 e p. 86-87. Para José Murilo de
Carvalho, tanto o pseudônimo, quanto o anonimato eram recursos “[...] aceitos como prática legítima no
ambiente de grande liberdade de opinião que marcava a época”. Para o especialista, entretanto, nenhum
dos dois significaria muita coisa, pois nos parcos círculos da elite letrada imperial, “[...] o segredo não
resistia por muito tempo”. CARVALHO, José Murilo de. “Apresentação”. In: ALENCAR, José de.
Cartas de Erasmo. Organização e apresentação de J. M. de Carvalho. Rio de Janeiro: ABL, 2009, p. X.
Ainda que seja possível concordar com as duas análises, considero relevante o desejo de Taunay de se
proteger dos problemas que poderiam ser causados por seus textos, sobretudo no caso de O encilhamento.
Forçoso comentar, nesse sentido, que o autor estava tratando de um tema real, com personagens reais.
Apesar de ter modificado o nome de alguns deles no texto final, era possível ao leitor contemporâneo
identificar a quem ele se referia. Sobre isso, ver CARVALHO, Veridiano. “Prólogo”. In: TAUNAY,
Visconde de. Op. cit., 1971, p. 14: “Narrados como estão no romance os fatos, as denominações
metafóricas são substituídas, mentalmente com os nomes verdadeiros, pelo leitor que os conheceu ou teve
deles notícias em 1890, 1891 e 1892”. Antônio Hohlfeldt comenta sobre o artifício utilizado por Taunay
para mudar os nomes dos personagens “reais” por outros semelhantes (Mayermeyer aparece como
Mayrink, o Barão de Lamarim é, na verdade, o Barão de Alto Mearim, e assim por diante), garantindo
uma identificação entre os nomes, a priori, mas também os elementos de verossimilhança com a
realidade. Ver Op. cit., p. 120, setembro 1998.
286

5.2.2 O retorno da “arca do sigilo”

Grato, bem grato, me é, desde já, pensar que um dia possam os


meus compatriotas do futuro encontrar, no meio de muitas
reminiscências pessoais, por vezes demasiado minuciosas,
informações que não serão de todo inúteis ao conhecimento dos
fatos gerais em que me achei envolvido e ao estudo dos homens
com que lidei em vida.
Alfredo Taunay183

Era grande a mágoa: o sobrenome “Taunay” não abria mais portas, como falou ao
filho; o prestígio fora rompido. Sobre ele, em outra ocasião, o Visconde devotou
numerosas páginas. E, assim como fez com O encilhamento, preferiu se precaver dos
possíveis problemas que tais escritos poderiam lhe causar. Daí a ideia de recolher na “arca
do sigilo” os papeis que começou a escrever logo após o fim da monarquia, em 1890, sob
o título provisório de Trechos de minha vida184.
Em agosto de 1892 foram colocados os quatro primeiros tomos da autobiografia
– já nomeada como Memórias – na arca do sigilo do IHGB, “[...] envoltos em papel
impermeável, arsenicado [sic], e, novamente, em papel alcatroado, sendo o invólucro, em
diferentes pontos, lacrado, com o sinete do depositante, sobre uma rede de fios
metálicos”185. Tal ato foi feito sob a tutela de um amigo, o conselheiro Manuel Francisco
Correia, já que àquela altura Taunay não mais fazia parte do grêmio – o que não foi,
entretanto, motivo para que deixasse de delegar a ele suas memórias de vida.

183
TAUNAY, Visconde de. “Ofício (minuta) do ... no IHGB solicitando sejam guardados na Arca do
Sigilo os quatro volumes de suas Memórias, a fim de serem publicados somente depois de 1943.
Acompanha resposta (minuta) do Instituto”. 1892, f. 1. Arquivo do IHGB, Rio de Janeiro, Brasil. Ref.
Lata 575 – Pasta 47.
184
Só se tem essa informação através do que escreveram Afonso e Raul de Taunay na edição impressa
das Memórias. Mesmo na carta que Taunay enviou ao IHGB com o pedido para que seus escritos fossem
guardados na “arca do sigilo”, o autor refere-se a eles como suas Memórias. Talvez tenha havido uma
confusão dos filhos do memorialista, pois em 1922 Afonso publicou outro compêndio de textos do pai
intitulado Trechos de minha vida. Cf. “À guisa de introito”. In: TAUNAY, Alfredo d’Escragnolle. Op.
cit., [1948], p. 9; e Idem. “Ofício (minuta) do ... no IHGB solicitando sejam guardados na Arca do Sigilo
os quatro volumes de suas Memórias, a fim de serem publicados somente depois de 1943. Acompanha
resposta (minuta) do Instituto”. 1892. 4 f. Arquivo do IHGB, Rio de Janeiro, Brasil. Ref. Lata 575 – Pasta
47. Ver ainda MARETTI, Maria Lídia Lichtscheidl. Op. cit., 2006, p. 168.
185
TAUNAY, Afonso e Raul de. “À guisa de introito”. In: TAUNAY, Alfredo d’Escragnolle. Op. cit.,
[1948], p. 10.
287

Interessante constatar que Correia havia recentemente confiado ao Instituto um


invólucro depositado na arca para ser retirado três meses após sua morte, contendo
escritos em que discutia os episódios sobre a Questão Militar do final do Império e
defendendo-se por ter aceito a proclamação da República, vista por ele como a única
maneira de não se afetar a integridade nacional. Apesar disso, chegou a atacar o que
considerou como atos ditatoriais do governo após 1889, ainda que declarasse não
acreditar na restauração monárquica. Conforme o planejado, esses manuscritos só foram
publicados postumamente, em 1911, na Revista do IHGB186.
Correia foi, inclusive, o primeiro a fazer uso da arca do sigilo no instante em que
ela era relembrada pelo Instituto. O projeto foi retomado no artigo 68 dos estatutos de
1890, depois de jazer tanto tempo no esquecimento: “O Instituto terá uma arca de sigilo,
onde guardará todos os manuscritos secretos, que devam ser publicados em época
determinada”187. De forma semelhante aos tópicos regulamentadores do funcionamento
da mesma, elaborados em 1850 – e analisados em capítulo anterior –, os novos estatutos
indicavam uma série de proposições para a utilização da arca, além de outras informações
que iam desde o material a ser utilizado para sua confecção, até os aspectos ritualísticos
em torno da entrada e da saída dos documentos nela depositados. A longa citação a seguir
é necessária por trazer à tona tais indicações:
§1. A arca de sigilo será feita de ferro e com duas fechaduras de patente, cujas
chaves sejam diferentes.
§2. As duas chaves serão entregues e guardadas da maneira seguinte: a 1ª nas
mãos do presidente do Instituto, e a 2ª nas do tesoureiro.
§3. Feito o depósito se fechará imediatamente a arca, sendo entregues as
chaves a cada um dos claviculários.
§4. A arca de sigilo só se abrirá em sessão ordinária do Instituto e na presença
dos claviculários.
§5. Os manuscritos aí depositados serão previamente numerados e
inventariados, segundo o título que trouxerem, com indicação de formato,
qualidade do papel, que os envolver e outros quaisquer sinais, que os possam
bem caracterizar.
§6. Além do selo e precauções do autor, o Instituto os fará selar de novo.
§7. Na arca de sigilo haverá uma cópia do termo que se lavrar em sessão, em
livro próprio para isso, a qual será assinada pelos claviculários e pelos
secretários.

186
Manuel Francisco Correia foi senador entre os anos de 1877 e 1889. Trabalhou, portanto, junto com
Taunay, que exerceu a mesma função entre 1886 e 1889. Além disso, teve outros importantes cargos no
governo imperial, como o de ministro dos Negócios Estrangeiros no Gabinete Rio Branco, presidente do
Tribunal de Contas da União e conselheiro do Estado. Sobre o conteúdo desses manuscritos e de outros
materiais enviados por Correia para serem guardados na “arca do sigilo”, ver HRUBY, Hugo. Op. cit.,
2007, p. 193-194.

“Estatutos do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro”. RIHGB, tomo LIII (Parte Segunda), p. 649,
187

1890. Com a República houve a renovação do veto à história contemporânea. Ver a esse respeito:
OLIVEIRA, Maria da Glória de. Op. cit., 2009, p. 186.
288

§8. Toda a memória ou documento enviado ao Instituto para depósito


temporário na arca de sigilo deve ser lacrado pelo próprio autor, e virá
acompanhado de uma carta ao 1º secretário com assinatura do autor ou de
pessoa conhecida, com declaração do tempo em que deverá fazer-se a abertura.
§9. Chegado o tempo da abertura das cartas ou documentos, o presidente do
Instituto convocará sessão para a abertura da arca de sigilo, e depois de extraído
e verificado o manuscrito, segundo a carta, que o acompanhou, será aberto e
lido imediatamente, e se for muito longo, prosseguirá a leitura nas sessões
seguintes.
§10. Terminada a leitura da memória ou documento, o Instituto, antes de dar-
lhe o conveniente destino, o submeterá à apreciação de uma comissão especial
para se pronunciar sobre o seu merecimento 188.

A análise superficial dos parágrafos permite levantar um aspecto gritante de


diferenciação em relação ao projeto de 1850. Se naquele tempo a relação do IHGB com
o governo era fundamental, e aparecia inclusive nas cláusulas que estabeleciam o futuro
uso da arca do sigilo189, quarenta anos depois não se verifica a mesma afinidade. A recente
mudança de regime político pode, nesse sentido, explicar tal procedimento, ao mesmo
tempo em que justifica a própria retomada da arca190. No entanto, de modo geral, há mais
semelhanças do que disparidades nas duas propostas191.
Retomando o que é central neste momento, entende-se que a intenção de Taunay
era de escrever mais do que aqueles quatro tomos e de, aos poucos, reunir os excertos
novos junto aos antigos no arquivo do Instituto. Como, porém, os últimos anos de sua
vida foram turbulentos e sua saúde viu-se cada vez mais debilitada, não conseguiu
completar o feito a que se propôs; o trabalho ficaria limitado até a década de 1870, com
o quarto tomo que já se encontrava na arca.
A publicação, muitos anos mais tarde, foi levada à frente pelo trabalho dos filhos
do memorialista, Afonso e Raul Taunay – sobretudo pelo primeiro –, e incluiu artigos
esparsos que o Visconde havia escrito e publicado na imprensa: “A minha escolha
senatorial”, que saiu à luz em 1897, e outros estudos contidos em Reminiscencias e
Homens e Cousas do Império192 que seus descendentes consideraram “[...] perfeitos

“Estatutos do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro”. RIHGB, tomo LIII (Parte Segunda), p. 649-
188

650, 1890.
189
Conforme tratei no primeiro capítulo, havia, por exemplo, a indicação de que uma das chaves deveria
ser entregue ao Ministro do Império.
190
Argumento que também foi elaborado no primeiro capítulo deste trabalho.
191
Verifica-se, por outro lado, que o aspecto ritual está muito mais presente nos tópicos de 1850 do que
neste de 1890.
192
Esses dois trabalhos foram editados e publicados por Afonso Taunay, que, em 1908, imprimiu
Reminiscencias pela primeira vez. Era um volumoso compêndio de escritos deixados por seu pai,
289

capítulos suplementares destas Memórias”193. Isso justifica o porquê de a narrativa


impressa ir até 1886, ainda que os cadernos guardados no IHGB fossem tão somente até
o período imediatamente anterior à conclusão da Guerra do Paraguai.
Antes da publicação, contudo, deveriam ser respeitadas as observações feitas pelo
Visconde de Taunay no momento em que foram deixadas as páginas da autobiografia aos
cuidados do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Inclusive a ideia de deixá-las na
arca surgiu depois de ele ter estabelecido a necessidade de marcar um largo lapso de
tempo para a entrega dos manuscritos ao público. A publicação teria data certa: “Estas
Memórias só podem, só devem ser entregues à publicidade depois de 22 de fevereiro de
1943, isto é completos cem anos da época do meu nascimento, ou cinquenta anos de 1893
[...]”194, que era quando intencionava encontrar lugar seguro onde deixar os manuscritos.
Mas não foi preciso procurar muito.
À entrada dos documentos na arca juntou-se o pedido de Taunay para que o
Instituto conservasse “sob zelosa custódia” os quatro cadernos, cuja publicação só poderia
ser realizada, como já dito, após o dia 22 de fevereiro de 1943. Para isso, era necessário
consultar o descendente direto mais próximo do autor, “[...] a quem ficaria o direito de
alargar o prazo marcado e o encargo de rever todo o manuscrito e as provas
tipográficas”195.
A saída dos documentos deu-se um pouco depois do prazo inicial estipulado pelo
autor. No dia 20 de dezembro de 1946 o Instituto fez a entrega ao “ilustre historiador”
Afonso de Taunay, há muito sócio da instituição, e ao seu irmão, o comandante Raul, dos
quatro volumes “devidamente lacrados” que se encontravam “em depósito no Instituto”.
Respeitando os anseios do autor, o IHGB entregou os originais aos seus filhos196. A
primeira edição da obra saiu dois anos depois, em 1948.

publicados, alguns deles, na imprensa fluminense e paulista. Na segunda edição de 1923, Afonso
considerou melhor – por razões de mercado editorial, como deixa entrever no “Prefácio” da obra – dividir
a matéria, publicando nessas novas Reminiscencias apenas dois terços do que constituía a primeira
edição. O restante faria parte de Homens e Cousas do Império. Ver: TAUNAY, Afonso. “Prefácio”. In:
TAUNAY, Visconde de. Reminiscencias. São Paulo: Melhoramentos, 1923.
193
TAUNAY, Afonso e Raul de. “À guisa de introito”. In: TAUNAY, Alfredo d’Escragnolle. Op. cit.,
[1948], p. 13.
194
Ibidem, p. 9.
195
Ibidem, p. 9.
196
“Em data de 20 de dezembro, a secretaria do Instituto fez a entrega ao ilustre historiador Afonso de
Taunay, nosso nobre consócio, e a seu digno irmão Comandante Raul d’E. Taunay, em 4 volumes,
devidamente lacrados, as ‘Memórias’ do seu pai Visconde de Taunay, cujo texto se achava em depósito
290

Nota-se, entretanto, que algumas partes da autobiografia já haviam sido


publicadas antes da introdução dos papeis na arca do sigilo, na Gazeta de Notícias. Mais
tarde outros excertos foram impressos no Jornal do Commercio, na Gazeta de Petrópolis,
na Tribuna de Petrópolis e num almanaque do Rio Grande do Sul197. Quando da entrada
de Afonso no IHGB, e com o intuito de reintegrar seu pai à instituição, foram lidas
passagens, então inéditas, das Memórias, do que se depreende que havia cópias (ao menos
de partes) do manuscrito em poder da família. Naquele evento, o filho considerou que
seria oportuno apresentar episódios vinculados à escrita das obras principais de seu pai –
na tentativa, quem sabe, de criar um “roteiro para a sua futura produção”198. Porém, o
grosso do texto só poderia ser editado para publicação conforme a regra deixada pelo
autor em 1892.

5.2.3 As Memórias

5.2.3.1 O Brasil experimentado pelo militar e a crítica a José de Alencar

Tantas precauções eram justificadas. A trajetória do Visconde de Taunay


representava em muitos pontos a própria trajetória do Segundo Reinado. E o momento
então era outro.
Nascido em 22 de fevereiro de 1843, Taunay era filho do pintor, professor e diretor
da Academia Imperial de Belas Artes, além de preceptor de D. Pedro II, Félix Emílio
Taunay, e neto de Nicolas-Antoine Taunay, famoso artista que veio com a Missão

no Instituto. / Segundo disposição do notável homem de letras esses escritos só seriam dados à
publicidade 50 anos após a sua morte, ocorrida em 1899, – se assim o entendessem os seus descendentes
diretos. / Com esse propósito, de abertura dos pacotes e leitura do respectivo texto, foi que o Instituto
Histórico fez a entrega dos referidos originais aos seus filhos”. Ver “Ata da sessão de 20 de dezembro de
1946”. RIHGB, volume 193, p. 197, outubro-dezembro 1946.
197
TAUNAY, Afonso e Raul de. “À guisa de introito”. In: TAUNAY, Alfredo d’Escragnolle. Op. cit.,
[1948], p. 10.
198
Além dos fragmentos das Memórias, Afonso leu na sessão trechos de outras obras do pai, como
Inocência, A Retirada da Laguna, Diário do Exército e Céus e terras do Brasil. ANHEZINI, Karina. Op.
cit., 2011, p. 12-13.
291

Francesa para o Brasil em 1816. Faleceu em função de problemas provocados pelo


diabetes em 1899, debilitado moral e economicamente, segundo comentou-se. Taunay foi
mais do que um personagem; almejou ser a personificação de um tempo.
A afeição que tinha pela monarquia não se explicava apenas pelo viés da ideologia
política. Taunay possuía uma relação de proximidade com o regime, assentada na
amizade inconteste com o próprio imperador, herdada de seu pai. Isso porque Félix Emílio
era presença frequente em São Cristóvão, para onde levava jornais europeus, além de
grandes clássicos da literatura, a serem lidos conjuntamente com D. Pedro II199. Por essas
e outras ocasiões, Alfredo, desde a meninice, acostumara-se a estar na presença do
monarca.
Disso dão provas muitas páginas das Memórias. Ao tratar da infância, Taunay
sempre que possível procurou demonstrar a proximidade de seus entes queridos para com
a família imperial. Mas não era só no âmbito da casa que o imperador esteve presente na
sua vida: matriculado no Colégio Pedro II, Taunay incontáveis vezes aproximou-se do
governante que, não por acaso, dava nome à instituição200.
Do estabelecimento de ensino mais notório do século XIX Taunay conseguiu o
título de bacharel em letras201. O próximo passo era o de escolher uma carreira e, a
despeito de seus desejos de cursar medicina, acabou optando por iniciar a formação no
curso de ciências físicas e matemáticas da Escola Militar em 1859. Essa foi a imposição
familiar202.
Assentou praça no Exército a partir de 1861, como soldado do 4º batalhão de
artilharia a pé. Em 1864 matriculou-se no curso de engenharia militar da Praia Vermelha
e foi promovido a segundo-tenente de artilharia. No mesmo ano teve início a Guerra do
Paraguai, que deixou, sem sombra de dúvida, marcas profundas na trajetória de Alfredo
Taunay. Foi enviado, em 1865, para o Mato Grosso na comissão de engenheiros203. Dali

199
TAUNAY, Alfredo d’Escragnolle. Op. cit., [1948], p. 20 e 26.
200
Ibidem, p. 58. Como se sabe, o monarca assistia com frequência aos exames dos alunos e sempre que
possível observava a rotina da instituição.
201
Mas não sem antes amargar para conseguir ser aprovado. Ibidem, p. 43.
202
Ibidem, p. 69.
203
Incorporou-se ao corpo de exército que partiu de São Paulo com destino ao Mato Grosso com a missão
de repelir os paraguaios daquela província. Mas só chega ao teatro da guerra em 1867, devido à demora,
como conta nas Memórias, do comandante da tropa em sair de Campinas. Ibidem, p. 119-129.
292

por diante, vivenciaria as experiências que mais lhe renderam subsídios para a escrita –
atividade que acabou por torná-lo conhecido (e pela qual quis ser conhecido). É notório,
inclusive, que a maior parte das páginas que compõem suas Memórias se referem
exclusivamente ao período da guerra e à produção literária a ela ligada204.
Aliás, escrever sobre aquele tempo foi uma das mais recorrentes atividades do
Visconde de Taunay. Daí veio o epíteto de “Xenofonte brasileiro”: assim como o autor
da Antiguidade, que narrou os eventos da “retirada dos dez mil”, dos quais participou na
qualidade de comandante205, Taunay escreveu imensa obra que tinha como foco o que viu
e ouviu na terrível guerra contra o país vizinho. O trabalho mais prestigioso foi sem
dúvida alguma A Retira da Laguna, que narrou a derrota de uma pequena coluna brasileira
enviada ao sul do Mato Grosso para dali reprimir o inimigo 206. Assim o próprio se
exprimiu incontáveis vezes na autobiografia:
Talvez para sempre, pode parecer imodéstia de minha parte; mas não sei, nutro
a ambição de que hão de chegar à posteridade duas obras minhas A Retirada
da Laguna e Inocência... Quem me dera a segurança de Horácio, a convicção
do grande cinzelador de versos imperecíveis – Non omnis moriar!207

Muitos autores concordam ainda hoje com o Visconde de Taunay. A Retirada da


Laguna é sua obra-prima, uma fonte imprescindível para qualquer um que planeje estudar
a Guerra do Paraguai. Sua primeira versão foi feita em francês, logo após o primeiro
retorno de Taunay ao Rio de Janeiro, em 1868208; a versão integral só foi impressa em
1871, por ordem do Visconde de Rio Branco. Foi traduzida pela primeira vez para o

204
Na edição de 1948, das 371 páginas escritas por Taunay para compor suas Memórias (excluindo-se,
portanto, a introdução escrita pelos filhos e os anexos por eles incluídos), cerca de 280 se referiam
propriamente ao período da guerra contra o país vizinho.
205
Xenofonte relatou sobre a “retirada dos dez mil” em um dos sete volumes da Anábasis, que narra
acontecimentos ocorridos entre 401 e 399 a.C. Curioso notar, além disso, que o próprio Taunay devia
intuir, de antemão, a comparação que dele seria feita em relação ao historiador da Antiguidade. Ele
inclusive esclarece nas Memórias que, dentre as leituras dos clássicos que fez em plena Guerra do
Paraguai, estavam dois volumes da obra de Xenofonte. TAUNAY, Alfredo d’Escragnolle. Op. cit.,
[1948], p. 377.
206
Em 1867 a coluna da qual fazia parte Taunay chegou à região do rio da Apa e invade o norte do
Paraguai. Mas, por falta de armamentos e alimentos, o comandante-em-chefe da expedição teve de iniciar
a retirada. TAUNAY, Alfredo d’Escragnolle. A Retirada da Laguna. Organização de Sergio Medeiros.
São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 26.
207
TAUNAY, Alfredo d’Escragnolle. Op. cit., [1948], p. 97.
208
O motivo para que o texto fosse escrito em francês e não em português é desconhecido. Maria Lídia
Maretti propõe, entretanto, uma hipótese: Taunay quis limitar a quantidade de leitores no período em que
ainda transcorria a guerra. MARETTI, Maria Lídia Lichtscheidl. Op. cit., 2006, p. 60-61.
293

português em 1874, por Salvador de Mendonça, e sua edição definitiva, que saiu
publicada em Paris com prefácio e revisão de Xavier Raymond, data de 1879209.
Taunay também serviu-se daquele período de sua vida para elaborar outros
trabalhos, tais como o Relatório geral da comissão de engenheiros (1867), redigido ao
longo da campanha do Mato Grosso; Scenas de viagem (1868), em que narrou a viagem
de reconhecimento que fez, em 1866, pelo sul daquela província, durante a qual travou
contato com índios de diversas etnias210; Diário do Exército (1870), sobre a ocupação do
Paraguai e a morte de Solano Lopes; Narrativas militares (1878), conjunto de contos
numa conformação entre romance, epístola e história211; e Céus e terras do Brasil (1881),
que conta com relatos de viagem do autor e, portanto, não poderia deixar de trazer a
descrição das regiões que visitou por ocasião da Guerra. Impossível não mencionar
também “Viagem de regresso”, artigo publicado na Revista do IHGB em 1869212.
Além dessa escrita “oficial” sobre a guerra, Taunay utilizou as experiências que
teve a seu favor em outros tipos de textos. Em Inocência (1872) – que, na qualidade de
romance, é visto pelo autor com a mesma importância que A Retirada da Laguna –, a
natureza que é descrita é a do “sertão” do Brasil 213. Esta palavra foi usada pelo literato
para nomear a região quase despovoada e inculta que ele percorreu, e que ia desde
Uberaba até a fronteira com o Paraguai, abrangendo o sul das províncias de Goiás e Mato
Grosso. Região ao mesmo tempo “esplendorosa” e inóspita214.

209
Sobre as edições da obra, ver a “Cronologia” contida em A. d’Escragnolle-Taunay. Op. cit., 1997, p.
25-30.
210
Esta obra inclui, ainda, um vocabulário da língua guaná ou chané. MEDEIROS, Sérgio. “A volta de
Ierecê”. In: MEDEIROS, Sérgio (Org.). Ierecê a guaná. São Paulo: Iluminuras, 2000, p. 11.
211
Para Patrícia Munhoz, Taunay intencionava com o livro trazer à luz o que fora escondido, talvez para
revelar o sistema militar injusto e ineficaz. Citando o próprio autor: “[...] e como esse serviço de tão
elevadas consequências não foi ainda devidamente reconhecido e aquilatado pela nação e pelo governo,
no livro histórico ou no romance buscarei sempre trazê-lo à luz”. MUNHOZ, Patrícia. Hibridismo e
conflitos morais em Narrativas militares (1878), do Visconde de Taunay. 2008. Dissertação (Mestrado em
Letras) – Universidade Estadual Paulista, Botucatu, 2008, p. 107.

TAUNAY, Alfredo d’Escragnolle. “Viagem de regresso de Mato Grosso à corte”. RIHGB, tomo
212

XXXII, p. 5-52, 1869. Comentei sobre esse artigo no terceiro capítulo.


213
Em várias passagens do texto o autor cita as referências daquele tempo em que passou no “sertão”
usadas para compor o ambiente e os personagens de Inocência. Ao tratar do caminho que a tropa
percorreu do sertão de Camapuã à entrada de Sant’Ana do Parnaíba, conta que encontrou-se com um
anão, “[...] mudo, mas um tanto gracioso, sobretudo ágil nos movimentos, que me serviu de tipo ao Tico
do meu romance Inocência”. Idem. Op. cit., [1948], p. 270. Outros exemplos nas páginas 273 e 275.
214
Idem. Op. cit., 1997, p. 16.
294

Essa experiência possibilitou, portanto, uma nova visão do país por Taunay, que
até então nunca havia saído do Rio de Janeiro. A própria ideia de nação brasileira
construída pelo autor em seus vários trabalhos demonstra uma espécie de associação entre
a imagem do Brasil que recebeu do Romantismo e a que obteve a partir da bagagem
adquirida por sua participação na Guerra do Paraguai215.
Por conta deste conflito, Taunay conheceu muito bem o “sertão paradisíaco”, ao
contrário de outros autores nacionais, como José de Alencar, que tratavam da natureza216
e dos habitantes do interior do país sem nunca terem posto os pés fora de seus gabinetes.
Ou dos internacionais, como o ilustre Chateaubriand, que adorava tratar de temáticas
nativistas em seus romances, ao que tudo indica desconhecendo a realidade delas. Taunay,
inclusive, chega a comparar os dois autores naquilo que eles distorciam em relação à
natureza e ao índio:
Parecendo muito nacional [, Alencar] obedecia mais do que ninguém à
influência dos romances franceses. [...] Dos índios fez Alencar heróis de
verdadeiras fábulas, oriundas dos Natchez, Atala e Réné217, a falar com
linguagem poética e figurada de exuberância e feição oriental218.

Taunay, inversamente, pôde confrontar na prática as ideias de Rousseau sobre o


“bom selvagem”, pois viveu naquele ambiente hostil “[...] a doçura da vida não civilizada
e o contato do homem bom de índole, mas inculto e agreste”219:
Conheci-os bem de perto, com eles convivi seis meses a fio e pude observá-los
detidamente. E eram aborígenes de procedência e cunho mais elevados, chanés
de Mato Grosso que se dividem em quatro numerosos grupos – chooronós ou
guanás, kinikinaus, laianos e terenas.
Decerto tinham fraseologia por vezes pitoresca, mas daí a conversações todas
de tropos e elegantes imagens há um mundo220.

215
Para uma análise mais detalhada dessa contradição, ver MARETTI, Maria Lídia Lichtscheidl. Op. cit.,
2006, p. 71.
216
Nota-se que a natureza que aparece na obra de Taunay é vista mais como algo a se enfrentar do que a
ser contemplado. Ibidem, p. 92.
217
Referências aos famosos romances de Chateaubriand.
218
TAUNAY, Alfredo d’Escragnolle. Op. cit., [1948], p. 166.
219
Ibidem, p. 186.
220
A crítica de Taunay consistia na forma como o indígena se expressava nas obras de Alencar. Ibidem, p.
166. Importante comentar o uso que Alencar faz da tradição medieval em seus escritos indigenistas. A
esse respeito, ver MOISÉS, Massaud. “Vestígios da Idade Média na ficção romântica brasileira”. In:
LEÃO, Ângela Vaz; BITTENCOURT, Vanda (Orgs.). Anais do IV Encontro Internacional de Estudos
Medievais. Belo Horizonte: PUC Minas, 2003, p. 59-73.
295

Para os estudiosos da literatura de Taunay, se há uma marca que possa defini-la,


indiscutivelmente é a do uso da experiência vivida para criar enredos ficcionais221. Daí a
contrariedade de Taunay com os romances indigenistas de Alencar, exposta nas
Memórias:
[...] não conhecia absolutamente a natureza brasileira que tanto pretendia
reproduzir nem dela estava imbuído.
Não lhe sentia a possança e verdade. Descrevia-a do fundo do seu gabinete,
lembrando-se muito mais do que lera do que daquilo que vira com os próprios
olhos222.

Por isso, preferia os romances urbanos do escritor, como contou em um artigo


publicado em Reminiscencias. O primeiro livro citado era Minas de prata (1862-1865),
que o Visconde considerava uma das obras-primas de Alencar, porque com menor
“possança imaginativa” que O Guarani (1857), por exemplo223. Não podia deixar de
mencionar também um dos últimos e mais importantes romances do literato cearense,
Senhora (1875), verdadeiro testemunho dos tempos que agora jaziam em um remoto
passado:
Releiam-no quantos já outrora o conheceram; assim avivarão, sem nenhuma
decepção ou quebra, gratíssimas recordações de tempos que já se distanciam
bem do modo de viver presente e do círculo social em que hoje nos debatemos,
opressos, tristes, cheios de apreensões e incertezas, entregues só às
preocupações de existência material, cada vez mais difícil e conturbadora,
alheios de todo às doces alegrias desse ambiente mental, formado pelas
ciências, as artes e as letras, que tanto ameniza a existência humana 224.

Senhora era, portanto, uma obra sobre a Corte; e dela emergiam imagens que tanto
saudosismo provocavam em Taunay, daquilo que se perdeu com a República.
Reminiscencias, como o título escolhido por Afonso aponta, também não deixava
de ser uma reunião de textos de cunho memorialístico. A obra continha artigos que se

221
Antonio Candido acentua a ideia de “experiência” como ingrediente decisivo para a produção literária
do escritor: “[...] nem bacharel nem médico, mas militar, enfronhado em problemas práticos, é
particularmente um caso raro na literatura do tempo, para a qual trouxe uma rica experiência de guerra e
de sertão, depurada por sensibilidade e cultura nutridas de música e artes plásticas. Esta combinação de
senso prático e refinamento estético fundamenta as suas boas obras e compõe o traçado geral da sua
personalidade”. CANDIDO, Antonio. “A sensibilidade e o bom senso do Visconde de Taunay”. In:
MEDEIROS, Sérgio (org.). Op. cit., 2000, p. 95. A experiência dava a Taunay subsídios para a criação
artística. Nota-se, entretanto, que não só os enredos especificamente ficcionais eram compostos pelo autor
a partir do uso do vivido. Seus trabalhos etnológicos, geográficos, históricos e memorialísticos também
traziam à tona essa característica.
222
TAUNAY, Alfredo d’Escragnolle. Op. cit., [1948], p. 166.
223
TAUNAY, Visconde de. Op. cit., 1923, p. 91.
224
Ibidem, p. 211.
296

centravam em alguns homens públicos do Império com os quais Taunay teve alguma
proximidade: Gaspar da Silveira Martins, Zacarias de Góes e Vasconcellos, Salles Torres
Homem, José de Alencar e Benjamin Constant. Era, portanto, sobretudo a atuação política
desses personagens que interessava ao autor tratar.
No entanto, no (grosso) capítulo que levava o nome de Alencar, não havia como
não falar de sua produção literária225. Se existia algo que Taunay considerava digno de
elogio na postura política do cearense era a sua capacidade de dar seriedade ao trabalho
de literato. Embora pela “[...] secura de gênio e [pel]os modos altaneiros e orgulhosos
[...]” Alencar não tenha se tornado um porta-voz dos letrados, ele merecia todos os seus
aplausos, quando “[...] batia o pé, no Senado como ministro da justiça, ao temido Zacarias
e Vasconcelos”226.
Como se sabe, os artigos que compõem Reminiscencias haviam sido publicados
na imprensa, possivelmente com algum pseudônimo. Ainda assim, é notória a diferença
na entonação que utilizou em diversas ocasiões para tratar de temas idênticos, nas duas
obras227. No caso de Alencar, parecia delinear, sutilmente, uma crítica aos seus escritos
sobre a natureza e o índio brasileiro, como na passagem a seguir, que trata de O Guarani:
Suscitam ainda hoje o máximo interesse quase todas as suas páginas, acalmada
a fogosidade com que nós, moços outrora, as acolhemos, exceção feita do
rebuscado da forma e das pieguices, que em algumas lhes diminuem e
empanam o valor real.
Nem se lhe leve a mal o convencionalismo das suas sorridentes paisagens e
grandiosas perspectivas, quase todas mais criação da ardente e prodigiosa
fantasia, do que da observação exata da natureza ou do conhecimento pleno do
cenário em que deviam mover-se e agir os seus simpáticos heróis e adoráveis
tipos de mulher [...]228.

Tom bem mais brando do que o adotado nas Memórias, sem dúvida alguma.
Já no âmbito político, que era, no final das contas, o que interessava ao autor
expressar nos artigos que compunham Reminiscencias, o que foi dito sobre Alencar
assemelhava-se ao que Taunay desenvolveu na outra obra. Nas Memórias, o autor

225
Ibidem, p. 81-213.
226
Ibidem, p. 166.
227
Importante comentar que Afonso Taunay teria modificado alguns escritos de seu pai para a publicação
de Reminiscencias, adotando uma nuança mais afável em alguns textos, diferente dos originais, que eram
mais combativos. Não se sabe, nesse sentido, se o texto sobre José de Alencar teria passado por esse
tratamento. MARETTI, Maria Lídia Lichtscheidl. Op. cit., 2006, p. 171.
228
TAUNAY, Visconde de. Op. cit., 1923, p. 87. Nesse ponto, Taunay comenta também sobre outro livro
do autor, O Gaúcho, em que o contraste verificado era ainda mais flagrante – “[...] um filho do Rio
Grande do Sul não pode absolutamente conhecer a feição particular de sua província natal”.
297

demonstrou certa condescendência em relação a Alencar por sua atuação política – eram,
ambos, do Partido Conservador229 –, quando, por exemplo, ele se revoltou ao ser preterido
por D. Pedro II na escolha senatorial, que deu lugar a seu primo, Jaguaribe. Porém, como
de praxe, era forçoso justificar as ações do imperador: Alencar havia voltado atrás em sua
palavra de que, assim como os demais ministros, não se candidataria às eleições
senatoriais. Passados alguns meses, ele anunciou ao imperador que pleiteava o cargo de
senador pelo Ceará e pediu a demissão do cargo que então ocupava 230. D. Pedro II,
devastado por tal atitude, teria dito: “Na minha opinião, o Sr. depois sobretudo do que
conversamos, está moralmente inibido de se declarar candidato”231. Como em outras
ocasiões, foi em forma de diálogo que Taunay escolheu representar a querela política que
se inaugurou entre o romancista e o monarca, fazendo com que, de um lado, garantisse
uma aura de verdade, de testemunho (como se o próprio Taunay estivesse na cena que se
desenrolava) e, de outro, dando uma tonalidade de drama à situação.
Alencar teria então teimado contra as ordens do imperador e acabou sendo
rechaçado ao posto a que havia, erroneamente, segundo Taunay, se candidatado. Isso
explica, inclusive, a mudança de posição do escritor: se antes, inclusive em suas Cartas
de Erasmo, defendia acima de tudo o poder pessoal de D. Pedro II, agora ele passava a
ser o foco das suas críticas mais tenazes232. Dizia Taunay a esse respeito que “Desde então
José de Alencar fez quanto mal pôde, na tribuna e na imprensa, ao soberano embora
guardando forma respeitosa e declarando-se adstrito ao regime monárquico”233.

229
Ibidem, p. 89. Segundo Taunay, Alencar passou a se consagrar mais à política em 1860, quando filiou-
se ao Partido Conservador, “[...] a que prestou, cumpre reconhecer, em vários períodos de renhida peleja
jornalística os mais reais e valiosos serviços, discutindo e agitando, sempre com incontestável
competência, grande energia e brilho de linguagem, todos os assuntos do momento”. Em outra passagem,
Taunay demonstrava inclusive admiração pelo colega, que caracterizava como não sendo um “[...]
homem a seguir a trilha batida e corriqueira da politicagem”. Ibidem, p 147.
230
Idem. Op. cit., [1948], p. 166-167.
231
Ibidem, p. 167.
232
TAUNAY, Visconde de. Op. cit., 1923, p. 85. Mesmo tentando apaziguar um pouco a querela política
entre Alencar e D. Pedro II, Taunay desde o início do texto demonstrava certa antipatia pela carreira
política do romancista cearense, que com trinta anos foi nomeado consultor do ministério da justiça –
“[...] nem grandes obstáculos tivera que vencer na vida para chegar a essa invejável posição”. Sobre a
produção de Alencar conhecida como Cartas de Erasmo, ver a “Apresentação” de José Murilo de
Carvalho em ALENCAR, José de. Cartas de Erasmo. Organização de José Murilo de Carvalho. Rio de
Janeiro: ABL, 2009, p. VII-XXXI.
233
TAUNAY, Alfredo d’Escragnolle. Op. cit., [1948], p. 166-168.
298

Em “A minha escolha senatorial”, excerto adicionado na forma impressa das


Memórias234, Taunay reiterava seu apoio às decisões do imperador, incluindo-se a
contenda em torno de José de Alencar:
Estudem-se bem as indicações da Coroa, nesse longo reinado de cinquenta
anos, e nelas se achará impresso o cunho da honestidade de intenções e de
pausada ponderação, com que, em tão momentoso assunto, de contínuo
procedeu D. Pedro II.
Se, no fim, buscava conciliar, para evitar conflitos amargos e mal
interpretados, as conveniências partidárias dos gabinetes ministeriais com a
sua opinião de estadista e o conhecimento exato que tinha dos homens
públicos, jamais abriu completamente mão da interferência que a lei orgânica
da nação lhe outorgara sem limitação alguma 235.

Afinal, não havia de ser Taunay, ele próprio, um dos senadores do Império, assim
designado pelo governante? No mesmo texto, o memorialista narra uma conversa que
teria tido com D. Pedro II sobre a eleição da qual participava para representar o Senado
pelo Paraná, e na qual fica clara a predileção do imperador pelo ainda jovem Taunay:

[Perguntava o imperador:] – Então, como vai a sua eleição senatorial?


[...]
– A eleição far-se-á em junho próximo, e tenho quase certeza de que ocuparei
o primeiro lugar da lista tríplice que tem de ser presente à Vossa Majestade.
– Ah, bem...
E com expressão risonha, repassada, aliás, da muita bondade que costumava
dispensar-me, dando-me por vezes, em momentos mais expansivos, provas de
absoluta confiança na minha discrição e sisudez de caráter, acrescentou,
voltando-se para minha mulher:
– Mas sinceramente seu marido não tem, quando muito, mais que ar de simples
deputado provincial e já é candidato à senatoria!
Fiquei um tanto tolhido, mas repliquei apressado:
– A lei, senhor, não fala do ar, não cura do aspecto físico e de aparências
enganadoras e sim da idade. Essa a tenho, além da que determina a
Constituição do Império.
Sorriu-se o monarca.
– Já sei... já sei... Lembro-me, perfeitamente, que seu pai veio de propósito a
São Cristóvão anunciar-me o seu nascimento e foi, deixe-me dizer-lhe, em
janeiro ou fevereiro de 1843.
– 22 de fevereiro desse ano, confirmei. Muito me lisonjeia que a memória de
Vossa Majestade tenha retido tão insignificante fato 236.

Mais uma vez, Taunay utiliza-se do diálogo para apresentar uma situação de seu
passado. E, dessa forma, pretendia esclarecer a grande intimidade de que dispunha com
o imperador, que se lembrava da época de seu nascimento.

234
Este artigo também foi publicado pela primeira vez em forma de livro na primeira edição das
Reminiscencias (1908) e depois em Homens e Cousas do Império (1924).
235
TAUNAY, Alfredo d’Escragnolle. Op. cit., [1948], p. 428.
236
Ibidem, p. 440.
299

Como D. Pedro II pareceu dar a entender pelo interesse pessoal que nutria pela
eleição ao Senado e a posição de Taunay nela, este acabou sendo eleito pelo imperador
dentre os membros da lista tríplice para o Paraná. Assim que recebeu a notícia, Taunay
foi agradecer ao monarca em São Cristóvão e ouviu dele a promessa de que apoiaria seus
projetos237.
A oposição que Taunay demonstrava por seu colega conservador Alencar era,
portanto, justificada pelo incontestável zelo que nutria por todas as ações de D. Pedro II.
Já em relação à carreira ligada às letras, Taunay, como se viu, invejava o sucesso do autor
de O Guarani e Iracema (1865), sobretudo por estes serem romances que retratavam um
terreno do qual ele se considerava muito maior conhecedor. As críticas negativas, muito
mais impactantes nas Memórias do que em Reminiscencias, traziam à tona essa disputa.
Nessas ocasiões, o autor enveredava uma vez mais no caminho da mágoa. Sentia-se
menosprezado, porque se considerava importante, tanto na literatura, quanto na política
– ainda que sempre procurasse dar maior ênfase à primeira. A autobiografia, pode-se
dizer, era uma escrita de ambição. O autor, também protagonista da história, queria ter na
morte o reconhecimento que pensava não ter tido em vida.

5.2.3.2 Antônia, a guaná

Taunay acreditava verdadeiramente que Inocência lançaria as bases da autêntica


literatura brasileira, “[...] ao unir a reprodução da fala sertaneja com ‘descrições
perfeitamente verdadeiras’ da natureza”238. Em outros textos, foi mais além, e trouxe à
tona o grande personagem do movimento romântico nacional: o índio. A novela “Ierecê
a guaná”, incluída em Histórias brasileiras (1874), fruto dos meses em que conviveu com

237
Ibidem, p. 446. A carreira política de Taunay pelo Partido Conservador iniciou-se em 1872, quando foi
eleito deputado por Goiás. Em 1876 foi nomeado presidente da província de Santa Catarina. No ano
seguinte, afastou-se da política com a caída do seu partido e viajou para a Europa. Retornou ao Brasil em
1880 e, em 1881, elegeu-se deputado por Santa Catarina. Nesta posição, votou com os liberais pela
libertação dos escravos. Quatro anos depois tornou-se presidente da província do Paraná, onde assentou
milhares de colonos europeus, e, em 1886, reelegeu-se deputado por Santa Catarina. Meses depois foi
escolhido para senador desta província. TAUNAY, Alfredo d’Escragnolle. Op. cit., 1997, p. 25-30.
Procurei não tratar muito neste capítulo da carreira política de Taunay por esta não ser pontualmente
descrita em suas Memórias, como se verá.
238
Idem. Op. cit., [1948], p. 168.
300

os índios, observando seus costumes e aprendendo sua língua, representava algo inédito
no cenário intelectual brasileiro da época. Taunay se gabava repetidamente de ter sido o
único escritor de sua geração a passar por esse tipo de experiência239. Daí o despeito em
relação ao sucesso de José de Alencar, que via o índio como um ser idealizado e, por isso
mesmo, irreal, e que obteve enorme sucesso ainda em vida240.
Falando da proximidade de Taunay com os indígenas, impossível não mencionar
um episódio dos mais inesperados de serem trazidos para sua autobiografia: o tórrido
romance que teve com uma “[...] rapariga da tribo chooronó (guaná propriamente dita) e
da nação chané”. Amante de um oficial do exército, o tenente Lili, a jovem Antônia (tinha
15 ou 16 anos) foi buscada “além de Aquidauana” para acompanhá-lo. Ao vê-la, Taunay
foi consumido por ardente sentimento:
E tão sedutora me pareceu que fiquei tolhido de surpresa e admiração e de
súbito inflamado, achando-a muito, mas muito acima de quanta descrição me
havia sido feita, até pela boca do Lili, que se gabara, a mim, da formosura da
amante241.

O desejo foi tamanho que Taunay acabou por tentar raptar a formosa índia. Porém,
só conseguiu consumar suas vontades depois de chegar a um acordo com o pai de
Antônia: teria de entregar-lhe “[...] um saco de feijão, outro de milho, dois alqueires de
arroz, uma vaca para corte e um boi [para] montaria [...]”242. Além disso, deveria haver o
pleno consentimento de Antônia em deixar Lili.
Essa era a triste realidade das mulheres da região. Tratadas como mercadorias,
valendo-se da presença das tropas para conseguirem alimento para si e para sua família,
como Antônia houve várias. Tanto que um colega de Taunay, que o ajudava a intermediar
a “venda” – ainda que esse termo não apareça no texto, e que tenha sido acordado que ela
teria de consentir em ficar com Taunay – da índia, indignava-se com tantos pedidos do
pai da menina, dizendo que “Todas as índias juntas, [...] e mais algumas brancas por cima,

239
MEDEIROS, Sérgio. “Introdução”. In: TAUNAY, Alfredo d’Escragnolle. Op. cit., 1997, p. 17.
240
Apesar disso, em Reminiscencias, Taunay chegava a comentar sobre o medo de Alencar em não ser
lembrado pela posteridade, algo que os dois tinham em comum, e a “apoiar” o colega, dizendo: “Qual,
porém, a inteligência, por mais alevantada, valente e confiante em si, que não agite inquieta essa dolorosa
perplexidade, a indagar consigo mesmo, se o melhor e o mais sincero dos seus esforços poderá por
ventura escapar do desastre irremediável e do esquecimento eterno?”. TAUNAY, Visconde de. Op. cit.,
1923, p. 88.
241
TAUNAY, Alfredo d’Escragnolle. Op. cit., [1948], p. 201.
242
Ibidem, p. 201.
301

não valem todo esse despotismo de cobreira!”243. Mais ainda que Taunay, para conseguir
o que queria, deu de presente à jovem um colar de contas de ouro, que havia lhe custado
cerca de 50 contos de réis. No dia seguinte ao acerto ele alcançou seu intento, não sem
antes tentar aplacar a fúria de Lili244.
Foi graças a esse relacionamento com a índia que Taunay teve um período
agradável em meio aos desalentos da guerra. “A bela Antônia apegou-se logo a mim e
ainda mais eu a ela me apeguei”; “Embelezei-me de todo por esta amável rapariga e sem
resistência me entreguei exclusivamente ao sentimento forte, demasiado forte, que em
mim nasceu”; ao lado dela haviam transcorrido “[...] dias descuidosos e bem felizes,
desejando de coração que muito tempo discorresse antes que me visse constrangido a
voltar às agitações do mundo [...]”245: estes trechos expõem uma afeição aparentemente
legítima do moço bem-nascido e culto por uma índia em plena Guerra do Paraguai. Ainda
que fosse comum esse tipo de relação entre oficiais e as mulheres da região, não deixa de
ser curioso o tom de forte nostalgia do qual se utiliza Taunay para descrever aquele tempo
de sua vida. Se a motivação política seria suficiente para que as Memórias passassem
tanto tempo acolhidas no IHGB, a exposição de tamanha intimidade do autor, não apenas
pelo que narra, mas pela forma como o narra (quase uma indecência para a época),
também pode explicar os anseios pelo sigilo.
Ao que parece, ainda que haja censura em relação ao concubinato entre Alfredo e
Antônia, tal relacionamento foi realmente muito importante para o escritor, a ponto de
ocupar páginas e páginas de seu esboço autobiográfico e de não ter sido limado pelos seus
filhos quando de sua publicação. Taunay chegou inclusive a tentar rever Antônia em outra
ocasião, ao se despedir do Mato Grosso246. Este reencontro fez ressurgir todo o sentimento
que Taunay nunca esqueceu: “Em mim deixou indestrutível lembrança de frescor, graça
e elegância, sentimento que jamais as filhas da civilização, com todo o realce do luxo e
da arte, poderão destruir nem desprestigiar!...”247. Após esse último encontro, da índia

243
Ibidem, p. 202.
244
Ibidem, p. 202.
245
Ibidem, p. 207.
246
Ibidem, p. 220-222.
247
Ibidem, p. 222. Taunay, parece, nunca esqueceu Antônia. Tanto que procurou saber o que lhe teria
acontecido: “Não me olvidei, jamais, dessa graciosa criatura, e nisso cumpri a palavra; mas nunca mais
lhes pus os olhos em cima. Sei, porém, que não foi de todo infeliz. Casou-se com um alferes e teve dois
filhos. Enviuvando, tornou a casar, creio que com um oficial também. Vive hoje em Corumbá ou Cuiabá
302

ficou a nostalgia: “Pensando por vezes e sempre com sinceras saudades daquela época,
quer parecer-me que essa ingênua índia foi das mulheres a quem mais amei”248. O caso
com Antônia garantiu pitadas de romance à obra de Taunay. Aos olhos do memorialista,
ali estava a verdadeira Iracema, porque concreta, não “a virgem dos lábios de mel” que
Alencar tornaria imortal. Será mesmo?
Fora das Memórias, o romance com Antônia inspirou a escrita do conto “Ierecê a
guaná”, já mencionado249. Nele, o aventureiro Alberto Monteiro, em viagem pelo interior
do Brasil, acabava se estabelecendo, no período em que convalescia de uma doença, na
aldeia dos quiniquinaus, próxima ao distrito de Miranda. Lá ele conhece o velho Morevi,
índio “mandingueiro” que lhe oferece sua neta, Ierecê, em “casamento” 250. Ao contrário
do acordo que o próprio Taunay teve que travar com o pai de Antônia no seu passado
“real”, Alberto só precisou aceitar a proposta de Morevi para ter Ierecê como sua
companheira. Esta pouco pareceu se importar com a combinação; sua atenção estava toda
voltada para o colar de contas de ouro que Alberto lhe dera251 – representação semelhante,
ainda que distinta em muitos pontos, do que ocorreu a Taunay quando tentava “ganhar”
Antônia.
A índia guaná – pois, como explica Morevi, sendo filha de pai guaná e mãe
quiniquinau, era considerada da primeira nação – é descrita por Taunay como “mulher de
altura regular e porte elegante” e em vários aspectos se aproxima do retrato exposto nas
Memórias sobre Antônia252. O conto narra o aprendizado de Alberto na língua chané,

e deve ter quarenta e dois anos, o que significa que há de estar velha e feia même, pois as índias cedo,
muito cedo, perdem todos os encantos e regalias da mocidade”.
248
Ibidem, p. 207.
249
Nota-se, entretanto, que “Ierecê a guaná” não era um retrato fiel do passado de Taunay. O próprio
protagonista do conto, Alberto, a despeito das semelhanças (inclusive de nome), era bem diferente de
Alfredo. Segundo Sérgio Medeiros, o protagonista era um “dândi com tédio”, enquanto o escritor foi
alguém que acalentava se distinguir pelas letras. Mesmo o relacionamento descrito era de natureza
distinta daquele narrado nas Memórias: enquanto para Alberto, Ierecê foi, no máximo, foco de um
interesse exótico, para Alfredo Taunay, Antônia foi uma “das mulheres que mais amou” em sua vida.
MEDEIROS, Sérgio. “As vozes do Visconde de Taunay”. In: MEDEIROS, Sérgio (Org.). Op. cit., 2000,
p. 124.
250
TAUNAY, Alfredo d’Escragnolle. “Ierecê a guaná”. In: MEDEIROS, Sérgio (Org.). Op. cit., 2000, p.
31.
251
Ibidem, p. 32.
252
Ibidem, p. 30-31.
303

falada por terenas, laianos, quiniquinaus e guanás, e o cotidiano do casal253. Ierecê, aos
poucos, ia se civilizando; ao mesmo tempo, permanecia nela o que agradava o
“português”254, o que era considerado por ele “bom e poético”: “[...] assim,
frequentemente entretecia capelas e colares de flores para os cabelos e braços e todos os
dias renovava a elegante palma ou a folha de samambaia mimosa que, segura por delgado
cordão, lhe acariciava a fronte como verdejante penacho”255.
Desse modo, é possível constatar a existência, nesse texto de Taunay, de aspectos
de atração e repulsa em relação ao modo de ser do índio, a tensão do civilizado em face
do bárbaro256. O desfecho do conto, por esse motivo, só poderia tomar uma direção: a
separação dos amantes. E, enquanto para Alberto, era a civilização que o esperava de
volta (e para onde ele se dirigia com manifesta felicidade), para Ierecê foi impossível
retomar a mesma vida que tinha antes, só lhe restando a morte257. Uma coisa era certa:
tanto no passado nostálgico do maduro Taunay, descrito nas Memórias, quanto no tempo
recente que inspirou “Ierecê a guaná”, a possibilidade de que o romance do homem branco
com a índia prevalecesse era inviável. Sobre isso, Taunay dá pistas ao narrar a despedida
final de Alberto e Ierecê: “As suas relações que aqui eram muito lícitas e naturais tornar-
se-iam em qualquer outra parte quase impossíveis e motivos justo de escândalo”258. Nessa
mesma lógica, compreende-se, em parte, o motivo de resguardar as Memórias, levando
em consideração a exposição – tão calorosa – do envolvimento entre os namorados.
Nota-se, por outro lado, que, se o uso da experiência vivida (no caso, da relação
com Antônia) contribuiu para a escrita do conto, isso não foi assumido por Taunay no
momento da publicação do mesmo. Tampouco aparece essa referência em outros
trabalhos do autor. Há menção à Antônia no opúsculo “Os índios do distrito de Miranda”,

253
Ibidem, p. 33.
254
Segundo o próprio Taunay conta, assim eram denominados todos os que não eram índios no Mato
Grosso. Ibidem, p. 35.
255
Ibidem, p. 35.

MEDEIROS, Sérgio. “As vozes do Visconde de Taunay”. In: MEDEIROS, Sérgio (Org.). Op. cit.,
256

2000, p. 126.
257
Ibidem, p. 131.
258
TAUNAY, Alfredo d’Escragnolle. “Ierecê a guaná”. In: MEDEIROS, Sérgio (Org.). Op. cit., 2000, p.
52.
304

publicado em Scenas de viagem259. O tom seco e objetivo, que muito tem a ver com o
caráter etnológico do texto, entretanto, não permite a um leitor desavisado perceber nada
além do interesse científico do escritor em relação ao povo indígena:
O guaná, no distrito [de Miranda], quase tem desaparecido nas raças branca,
índia ou negra, que o cercam. Vimos porém uma índia, chamada Antônia, filha
de um pai quiniquinau e mãe guaná, que sobre ser verdadeiro tipo de beleza
pela venustade do rosto, delicado da epiderme e elegância do corpo, tinha suma
graciosidade e donaire260.

Somente com a maturidade advinda pela idade e com o respaldo garantido pela
arca do sigilo foi que Taunay assumiu de maneira tão escancarada seu amor por Antônia.
Aos leitores da década de 1940 caberia julgar de maneira positiva ou negativa –como
sentimento verdadeiro ou como motivo “justo de escândalo” – aqueles dois meses no
Mato Grosso em plena Guerra do Paraguai. A omissão não foi, portanto, mecânica.
Sérgio Medeiros verificou, inclusive, uma supressão que Taunay fez em A
Retirada da Laguna em relação à índia: em dado momento do texto original, o nome e a
pessoa de Antônia estão rasurados. Conclui, como nós, que Taunay só se sentiu à vontade
para assumir o que aconteceu no distrito de Miranda muito tempo depois, em uma obra
que, ainda por cima, seria publicada postumamente261. Apenas no final de sua vida
conseguiu revelar os detalhes do romance real, muito provavelmente rememorado de
forma idealizada262. Em que pesem as diferenças, sendo Antônia ou Ierecê, a índia de
Taunay não deixava de ser uma personagem, tanto quanto a Iracema de Alencar263.

259
Utilizei a mais recente edição do texto, publicada na coletânea organizada por Sérgio Medeiros.
TAUNAY, Alfredo d’Escragnolle. “Os índios do Distrito de Miranda”. In: MEDEIROS, Sérgio. Op. cit.,
2000, p. 57-72.
260
Ibidem, p. 59.

MEDEIROS, Sérgio. “As vozes do Visconde de Taunay”. In: MEDEIROS, Sérgio (Org.). Op. cit.,
261

2000, p. 120.
262
Ibidem, p. 127.
263
Para Lúcia Sá, a história de Iracema e de Ierecê tinha mais em comum do que Taunay gostaria de
supor. Apesar do realismo da obra do Visconde, ele não conseguiu fugir de muitos clichês românticos da
época. Ver da autora “Índia romântica. Brancos realistas”. In: MEDEIROS, Sérgio (Org.). Op. cit., 2000,
p. 139. Já Haroldo de Campos entende que Ierecê, como personagem, está mais próxima da Atala de
Chateaubriand, do que de Iracema. CAMPOS, Haroldo. “Do verismo etnográfico à magia verbal”. In:
MEDEIROS, Sérgio (Org.). Op. cit., 2000, p. 166. A título de curiosidade, destaco que Taunay em sua
autobiografia não cita “Ierecê a guaná” em nenhum momento. Aliás, o único romance que é mencionado
(inclusive de forma exaustiva) é Inocência. Parece supor que só ele mereceria a apreciação da
posteridade.
305

5.2.3.3 O Conde d’Eu e os momentos finais da guerra

Curioso observar que, mesmo tendo escrito incessantemente sobre a Guerra do


Paraguai, Taunay ainda se dispusesse a fazê-lo em sua autobiografia. Medeiros, no
prefácio à edição de 1997 d’A Retirada da Laguna, parece dar pistas para compreender
essa obsessão: existiam aspectos que só poderiam ser trazidos à tona de forma completa
naquela ocasião. Por isso, na referida edição, o organizador faz um trabalho de
complementar o texto com notas e um apêndice, cujo conteúdo foi extraído das
Memórias264.
As Memórias serviriam, assim, como o espaço para tratar sem rodeios de temas
que já haviam sido explorados com cautela por Taunay em outros textos. Por precaução
do autor, certos trechos problemáticos, que foram suprimidos em suas publicações em
vida, ganhavam abertura nessa escrita de si para a posteridade. Foi o caso das duras
críticas feitas aos romances nativistas de José de Alencar e da revelação do caso com
Antônia.
No entanto, o trabalho de memória nem sempre é linear e coeso:
Toda a nossa vida é tão complexa, tão cheia de minúcias e incidentes, que se
torna impossível narrá-la com o seguimento que tiveram os fatos. Terei, assim,
não poucas vezes, de retroceder sobre os meus passos e, abrindo longos
parênteses, referir-me a fatos atrasados e que, por singular fenômeno
mnemônico, de súbito, quando menos se espera, se apresentam à memória, ao
tratarmos de assuntos totalmente diversos e muito posteriores265.

As idas e vindas no tempo fazem parte dessa escrita que pensa o passado sem
nunca esquecer do presente. Por isso, o texto é permeado inteiramente por críticas ao
regime republicano.
Mas, antes de entrar nesse importante tópico, julga-se necessário expor outros
momentos descritos por Taunay em sua autobiografia. Tinha muito a falar, por exemplo,
sobre a expedição com destino ao Mato Grosso. De início, tratou de sua longa estadia em
Campinas, regada a festas que pouco lhe fizera lembrar que aqueles eram tempos de

264
Medeiros diz na “Introdução” o seguinte: “No Apêndice, apresentamos trechos das Memórias em que
Taunay narra, de forma saborosa e reveladora, experiências que viveu na guerra antes, durante e depois
dos acontecimentos relatados em A retirada da Laguna: virão à tona fatos que ele preferiu omitir desta
obra, escrita inicialmente para o público francês”. TAUNAY, Alfredo d’Escragnolle. Op. cit., 1997, p. 24.
265
TAUNAY, Alfredo d’Escragnolle. Op. cit., [1948], p. 97 (grifos nossos).
306

guerra266. Contou também sobre o coronel Drago, responsável pela expedição. Para
Taunay, ele foi incompetente e por isso houve tanta demora até a tropa chegar ao Mato
Grosso267.
Taunay polemizava, como em outros tempos268, em relação à própria validade da
comissão de engenheiros, da qual fazia parte, naquele contexto269. O alto comando da
guerra parecia não saber diferenciar o que era necessário do que não era. E era notável
que muitos de seus superiores permanecessem gerenciando de longe, definindo os
destinos de todos aqueles homens a partir do Rio de Janeiro270. Sequer conheciam o “país
real”271.
A chegada ao distrito de Miranda – palco do saudoso namoro com Antônia – e a
exploração do rio Aquidauana são descritas exaustivamente272. Sua passagem por Nioac
e Apa também merece muitas páginas, além, claro, do momento em que alcançou
Laguna273. A descrição dos eventos transcorridos nessas localidades é, por sua vez,
entremeada com comentários a respeito dos trabalhos que escreveu sobre cada ocasião, o
que, novamente, indica certa preocupação do autor em complementar as narrativas, dando
unidade à obra. O que não foi possível explorar em A Retirada de Laguna e nos outros
tantos textos que retrataram o período estava sendo feito nas Memórias.
Seu retorno ao Rio de Janeiro se deu em 1867, quando era tido como morto,
porque a notícia veiculada na imprensa da época (e chancelada pelas autoridades) era de
que a comissão da qual fazia parte havia sucumbido274. Foi o escolhido, naquela ocasião,

266
Ibidem, p. 119-120.
267
Ibidem, p. 128.
268
Taunay foi um articulista polêmico, que com frequência se manifestava em jornais, sobretudo no
Jornal do Commercio (o que explica a divulgação neste periódico de sua saída intempestiva do IHGB, em
abril de 1891) e na Gazeta de Notícias. A esse respeito, ver MARETTI, Maria Lídia Lichtscheidl. Op.
cit., 2006 p. 46.
269
TAUNAY, Alfredo d’Escragnolle. Op. cit., [1948], p. 139.
270
Ibidem, p. 142. Os planos de guerra não levaram em conta a natureza porque quem os fez não a
conhecia. Cf. MARETTI, Maria Lídia Lichtscheidl. Op. cit., 2006, p. 93.
271
Segundo Maria Lídia Maretti, Taunay parecia questionar, em boa parte de sua obra, a unidade nacional
que era baseada num enganoso conhecimento do território além da Corte. Ibidem, p. 70.
272
TAUNAY, Alfredo d’Escragnolle. Op. cit., [1948], p. 188-199.
273
Ibidem, p. 226-236.
274
Ibidem, p. 286.
307

para levar ao governo imperial as notícias do corpo expedicionário. Sua presença na


capital fez com que ficasse sabendo mais facilmente os comentários gerais sobre a guerra.
Foi como informou-se do burburinho causado por muitas críticas dirigidas ao então
Marquês de Caxias, comandante-em-chefe das tropas brasileiras, a quem Taunay via com
admiração275.
Ao longo dos dois anos em que permaneceu na capital, muita coisa aconteceu.
Para Taunay, veio a promoção a primeiro-tenente (1867) e a capitão do Exército (1868),
além da publicação do Relatório geral da comissão de engenheiros, de Scenas de viagens
e da primeira edição em francês d’A Retirada da Laguna. Para o Brasil, a continuação da
guerra contra o país vizinho tomou aspectos cada vez mais dramáticos. Havia forte
pressão para que o conflito tivesse fim. Caxias, inclusive, considerou por encerrada sua
missão quando ocupou Assunção, tanto que retornou ao Rio de Janeiro em fevereiro de
1869276. Isso não foi bem visto pelo imperador, que não desejava ainda o fim da guerra e
o acordo de paz com o Paraguai; queria, antes, a captura de Solano López277.
Como em tantas outras ocasiões, e a despeito de sua consideração por Caxias,
Taunay referendava a opinião do monarca278. Assim foi que, em 1869, acabou retornando
ao campo de batalha, só que desta vez como secretário de estado-maior do Conde d’Eu,
recém-nomeado comandante-em-chefe das forças brasileiras em operação no Paraguai,
no lugar, justamente, de Caxias. A convivência com o marido da princesa Isabel não foi,
contudo, fácil. Apesar de tentar ser imparcial ao contar sobre o comando do Conde –
focalizando seu profissionalismo e uma série de qualidades que possuía e que
justificavam a sua alta posição no Exército brasileiro279 –, Taunay deixou transparecer,
sem filtro, a forte inimizade que marcou a relação dos dois.
As tensões, conforme o memorialista queria demonstrar, inseriam-se no âmbito
pessoal. A primeira delas surgiu em função de uma provável discordância política entre
ele e seu comandante. Taunay atuava, então, como correspondente do Jornal do
Commercio, escrevendo para ele notícias da campanha. Porém, o príncipe desejava que o

275
Ibidem, p. 297-301. Vale lembrar que Caxias se tornou Duque em 1869.
276
Ibidem, p. 305.
277
Ibidem, p. 306-307.
278
Ibidem, p. 307.
279
Ibidem, p. 310. Taunay chega a escrever uma espécie de lista em que enumera as qualidades e os
defeitos do Conde d’Eu!
308

destinatário de tais relatos fosse o periódico A Reforma, conhecidamente de cunho liberal.


Essa discussão com o Conde d’Eu foi tão hostil, que, em parte, consolidou em Taunay
sua identidade política conservadora, algo que julgava ter se iniciado nos tempos da
Escola Militar280. Acabou, nesse sentido, por não ceder às expectativas do príncipe,
supondo que o Jornal do Commercio era uma “folha de feição imparcial”, além de ter
muito maior circulação do que A Reforma281. Taunay reclamava que o Conde d’Eu, por
seu papel hierárquico e por ser genro de quem era, não devia adotar (ao menos tão
escancaradamente) preferências políticas, mas ser neutro282.
Esse trabalho como correspondente do Jornal do Commercio, ao que tudo indica,
promoveu ainda mais Taunay como o escritor principal da Guerra do Paraguai. Por outro
lado, fez com que angariasse a antipatia do príncipe, sentida em incontáveis momentos283.
A falta de convites do Conde para “comer na mesma mesa”, o que seria comum no
ambiente em que estavam e pela posição que ambos ocuparam, foi narrada várias vezes
nas Memórias, o que demonstra o rancor de Taunay por ter sido preterido284. Para alguém
tão vaidoso, o confesso afastamento do príncipe denotava grave ofensa.
O desejo de se tornar próximo do Conde d’Eu tinha uma motivação óbvia: o
estreitamento ainda maior de relações com a família imperial. Há, ainda, outro aspecto
que deve ser mencionado, relativo à participação de Taunay na discussão sobre a
imigração e a naturalização de estrangeiros285. Mesmo antes de sua carreira política pelo
Partido Conservador, em função de sua própria condição de filho de um imigrante francês,
Taunay preocupava-se com o assunto, e chegou a tentar trocar de sobrenome –
aportuguesando-o para “Toné”, o que foi taxativamente negado por seu pai, como narra
na autobiografia286. Tudo para facilitar sua aceitação nos meios em que trabalhou (de

280
Ibidem, p. 320-321. Como argumentei em outra nota, Taunay fez uma imponente carreira política
representando o Partido Conservador na Câmara e no Senado, após a guerra contra o Paraguai.
281
Ibidem, p. 321.
282
Ibidem, p. 321. Cita, nesse ponto, a amizade do príncipe com Joaquim Manuel de Macedo, importante
figura do Partido Liberal, como já comentei em outro capítulo.
283
Ibidem, p. 324-326; p. 329-331; p. 338 e p. 376.
284
Ibidem, p. 328 e p. 376
285
Essa foi, sem dúvida alguma, uma das maiores bandeiras levantadas por Taunay em sua vida política.
É possível citar, ainda, a sua participação na discussão sobre a abolição da escravatura e o casamento
civil. Por conta dessas bandeiras, se desentendeu diversas vezes com o Partido Conservador. MARETTI,
Maria Lídia Lichtscheidl. Op. cit., 2006, p. 36 e p. 133.
286
TAUNAY, Alfredo d’Escragnolle. Op. cit., [1948], p. 63.
309

primeira, no Exército e na literatura). Sua atuação posterior como deputado e senador


também demonstrou o empenho em pôr fim à xenofobia287. Faz sentido, portanto, crer
que havia a expectativa de que o príncipe lhe fosse mais próximo até por conta da origem
francesa comum e da necessidade de ambos demonstrarem, como “estrangeiros”, o
quanto poderiam contribuir para o Brasil.
No entanto, se houve esperança de que Taunay pudesse se aproximar do Conde
d’Eu nesta nova etapa da guerra, como dão provas algumas passagens do texto, a
realidade se mostrou completamente diferente288. Taunay criticava também a afinidade
do príncipe com Pinheiro Guimarães, por quem tinha particular implicância, sobretudo
pelo modo como se expressava (negativamente) em relação ao comando de Caxias289. Já
Taunay, devido a repulsa de Gastão de Orléans, se aproximou do general João de Souza,
que havia sido o braço direito do antigo comandante e que o apoiou na crítica à
permanência do conflito armado290. Outro amigo feito no período foi ninguém menos que
o general Osório, que teve que sair prematuramente da guerra por conta de uma ferida no
maxilar291.
Ainda que o memorialista tentasse restringir sua oposição ao Conde d’Eu ao
âmbito pessoal, em alguns trechos, inclusive na própria controvérsia sobre o Jornal do
Commercio, ele deixava escapar que tampouco concordava com algumas medidas
tomadas por seu superior, na qualidade de comandante. Foi o caso também do grave
problema do fornecimento de provisões para o Exército que, possivelmente, deu-se em
função de um erro administrativo do príncipe292. Comparando essa escrita com a dos
artigos que compõem Reminiscencias, é possível constatar novamente o tom mais brando
com que o autor tratou dos mesmos assuntos na segunda obra. Nela, Taunay elogiava a
conduta “impecável” do Conde d’Eu quando assumiu o comando da Guerra do Paraguai.
Esclarecia as “qualidades de notável estrategista”, além de reclamar que ainda não havia

287
MARETTI, Maria Lídia Lichtscheidl. Op. cit., 2006, p. 111-119.
288
TAUNAY, Alfredo d’Escragnolle. Op. cit., [1948], p. 319. Chegou a dizer, em dado momento, que,
diferentemente da primeira despedida, “Agora tudo para mim eram esperanças, sonhos de ambição!”.
289
Ibidem, p. 328.
290
Ibidem, p. 329.
291
Ibidem, p. 352.
292
Ibidem, p. 338. Refere-se, nesse ponto, ao problema com a firma Lesica e Lanus.
310

sido feita justiça ao príncipe: caberia à posteridade apreciar a sua direção na Campanha
da Cordilheira293...
Em meio aos dramas da guerra, Taunay lia D. Quixote, talvez para conseguir,
assim como o protagonista do clássico de Cervantes, emergir em outro mundo, distante
de tantas aflições294. No ponto em que narra a subida da Cordilheira, ele descreve os
incontáveis mortos que viu pelo caminho e a miséria do povo paraguaio – episódios que,
mesmo vinte anos depois, preferia esquecer: “[...] nem quero recordar-me das cenas que
[lá] se passaram [...]”295. É sintomático que, também neste ponto, a experiência do
narrador se sobressaia à do cronista do Império. Apesar de toda a adoração de Taunay por
D. Pedro II, o que viveu naqueles tempos foi suficiente para que, ainda que não
discordasse veladamente do imperador, ao menos aquiescesse com Caxias, de que a
guerra havia se tornado uma mera (e sem sentido) perseguição a López pelas selvas
paraguaias296. O choque, a tristeza e o cansaço se misturavam confusamente aos
sentimentos de respeito às instituições e de lealdade ao monarca. Os ânimos estavam tão
acirrados que na descrição que faz da ocupação de Caacupê, nem mesmo o príncipe
escapou do forte desânimo que a todos atingia; encontrava-se profundamente irritado,
melancólico e tinha “[...] acessos de apatia quase completa [...], falando de contínuo na
necessidade de regressar ao Rio de Janeiro, incorrendo, portanto, na mesma falta que
tantas censuras haviam valido ao Duque de Caxias”297.
Acabado o período, definitivamente concluso desde Campo Grande, dos
grandes movimentos de guerra, entregue o final da campanha aos azares da
perseguição feita por guerrilhas, que não lhe competia comandar nem dirigir,
ao Conde d’Eu se afigurou que nada mais tinha que fazer naquela terra
paraguaia tão devastada e melancólica. [...] Estou bem certo, repito, que se não
se arriscasse a incorrer na censura tão acremente feita a Caxias, teria de
Assunção partido para o Brasil, dispensando licença do Governo e do
Imperador. Não lhe era, porém, mais dado assim proceder 298.

293
TAUNAY, Visconde de. Op. cit., 1923, p. 150-151.
294
Idem. Op. cit., [1948], p. 350. Taunay reclamou, com tristeza, que seu exemplar de D. Quixote fora
saqueado no meio do caminho. É comum em toda a autobiografia comentários de leituras que Taunay fez
ao longo da vida, tais como os livros traduzidos por Caetano Lopes de Moura (os romances históricos de
Walter Scott, e os livros de Chateaubriand e James Fenimore Cooper), além dos autores clássicos já
citados, e dos românticos brasileiros, como Alencar e Macedo.
295
Ibidem, p. 343.
296
Ibidem, p. 366.
297
Ibidem, p. 366. É sabido que a Guerra do Paraguai realmente afetou os nervos e a saúde de Gastão
d’Orléans. Ele só recuperou seu equilíbrio psicológico e seu bem-estar físico na década de 1880.
298
Ibidem, p. 378.
311

As Memórias abordam, ainda, a chegada da tropa ao povoado de Curuguati. Nessa


fase da escrita, Taunay, já cansado e adoentado, escolheu citar trechos do Diário do
Exército299 sobre a região e os acontecimentos que lá se passaram. O término da Guerra
do Paraguai nem chega a ser tratado nos manuscritos depositados na arca do sigilo.
Afonso Taunay, para a publicação das Memórias, incorporou notas avulsas deixadas por
seu pai que tratam do fim daquele conflito bélico. Reitera-se, assim, o aspecto incompleto
da autobiografia, que tampouco chegou a mencionar a carreira política de Taunay300, ou
o casamento, em 1874, com Cristina Teixeira Leite, herdeira dos barões de Vassouras –
uma das mais antigas e importantes famílias fluminenses –, e o nascimento dos filhos do
casal.

5.2.3.4 As intempéries da memória

Volvamos depressa os olhos para o consolador passado.


Alfredo Taunay301

Seguindo a cronologia, sequer o golpe republicano, seguido pelo exílio de D.


Pedro II, deveria fazer parte do texto. No entanto, Taunay comentou sobre esses fatos
exaustivamente ao longo de todo o trabalho, justificando-o pelo caráter maleável da
escrita autobiográfica. Essa pressão da “memória involuntária” revela “[...] a influência
do presente (da rememoração) sobre o passado, que não pode mais ressurgir com as
garantias pretendidas de pureza, isenção ou neutralidade”302. Daí a explicação para abrir
tantos “parêntesis”, conforme o trecho citado anteriormente. Taunay, ainda nesse ponto,

299
Essa publicação teve origem como encomenda do Conde d’Eu para servir como registro militar do
cotidiano da expedição durante a Campanha da Cordilheira. SOUZA, Michelli Moretti de. As
singularidades de Memórias, de Visconde Taunay: forma, valor e lugar. 2008. Dissertação (Mestrado em
Letras) – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campo Grande, 2008, p. 28.
300
O texto que trata dessa parte da trajetória de Taunay também fazia parte das “notas esparsas” que
foram anexadas por Afonso e Raul na publicação das Memórias.
301
TAUNAY, Visconde de. Op. cit., 1923, p. 125.
302
MARETTI, Maria Lídia Lichtscheidl. Op. cit., 2006, p. 157.
312

expõe uma característica que foi muito presente em toda sua obra, incluindo a ficcional:
a tentativa de estabelecer diálogos com os leitores. É comum abrir o livro a esmo e
encontrar menções ao “meu leitor de 1943”303 – ideia que teria sido tomada de Henri
Brûlard: “Achei curiosa esta referência e a adotei”304. Esse tipo de “intromissão”
normalmente vinha acompanhada de alguma reflexão sobre os outros tantos textos que o
autor desenvolveu305.
Igualmente comum é encontrar comentários a respeito do exercício de memória,
como na passagem seguinte, em que discorria sobre a escrita d’A Retirada da Laguna:
Afinal, um belo dia, resolvi encetar o trabalho tantas vezes adiado, e sentei-me
diante de tiras de papel cortado, resolvido firmemente a enchê-las.
Aí, porém, reconheci grandes lacunas nas reminiscências. Os sucessos não se
me apresentavam claros no desenrolar cronológico, confundiam-se as datas, os
dias e até os meses. De fatos capitais até, e indispensáveis à narração não tinha
senão lembrança vaga e mal esboçada, flutuando tudo numa indecisão, que
logo me tirou o desejo de continuar, tão falto de elementos para fazer coisa que
prestasse. [...]
Certa noite, acordei, a horas mortas, perdi de todo o sono e na vigília, todos os
fatos da Retirada se me reproduziram, de modo tão claro e tão terrível, que tive
violentos calafrios e tremi de emoção e positivo medo.
Não perdi, porém, o momento de súbita inspiração. Acendi a vela, saltei da
cama e durante mais de duas horas seguidas, tomei febrilmente notas de toda
a minha tétrica história306.

A preocupação em lembrar tudo como realmente aconteceu, tal como o Funes de


Borges307, é reiterada em outro trecho, no qual Taunay alude ao árduo trabalho de “juntar
elementos de recordação”, fincando, no passado, “[...] pontos mnemônicos [...] à beira do
caminho andado [...]”308. Por isso, nas Memórias há muitas alusões às lacunas que o autor
não consegue transpor ao contar sobre o que foi. Taunay indica que, por conta dessas

303
Ver, por exemplo, TAUNAY, Alfredo d’Escragnolle. Op. cit., [1948], p. 161 e p. 186. Dizia ele, numa
ocasião, em nota, que: “Contei este episódio nas primeiras páginas da Retirada da Laguna, cuja consulta
talvez interesse o leitor de 1943, caso o livro não se tenha imposto à atenção da posteridade. Daí quem
sabe?”. Ibidem, p. 189.
304
Ibidem, p. 186. Refere-se a Henrique Beyle-Sthendhal, que, em sua autobiografia, reportava-se ao
“leitor de 1892”.

Maria Lídia Maretti trabalha com a noção de “narrador intrusivo” ao analisar os discursos de Taunay.
305

Ver Op. cit., 2006, p. 201.


306
TAUNAY, Alfredo d’Escragnolle. Op. cit., [1948], p. 303.
307
Refiro-me ao conto de Jorge Luís Borges, cujo protagonista não consegue se esquecer de nada, a tal
ponto que o tempo que demora para lembrar do que passou coincide com o tempo da experiência
lembrada. Ver do autor, “Funes, o memorioso”. In: BORGES, Jorge Luís. Ficções. São Paulo:
Companhia das Letras, 2007, p. 99-108.
308
TAUNAY, Alfredo d’Escragnolle. Op. cit., [1948], p. 153-154.
313

dificuldades, uma narrativa memorialística certeira só poderia ser aquela sobre o tempo
mais próximo:
A vida ainda tinha que me proporcionar bem bons trechos, que deveras
compensaram largamente não pequenas contrariedades e até grandes
aborrecimentos, conforme irei contando com mais método, à medida que
as datas se forem tornando mais frescas e recentes 309.

Ele aproximava-se, nesse sentido, mais da perspectiva de história dos antigos. Não
à toa era considerado o “Xenofonte brasileiro”, pois tratou, em grande parte de sua obra,
de relatar aquilo que testemunhou, a partir de uma confiança inabalável nos seus sentidos,
ou seja, na própria memória dos eventos vividos. Por esse motivo, sua convicção em
contar “o que realmente aconteceu” era maior quanto menor era o lapso temporal entre o
evento narrado e a narrativa propriamente dita. O “ruído” se tornaria, desse modo,
desprezível310.
De certa forma, mesmo a propensão do autor em aludir às incertezas da memória
acaba comportando uma ideia de “narrativa genuína”311. Quando Taunay afirma contar o
que “tem certeza”, ou quando assume que existem lacunas, é como se firmasse um
contrato de sinceridade com o leitor312. Por descrever o que viveu, muito mais do que
autor, se apresentava como testemunha e sujeito de sua história313. Exatamente por isso,
como consta no prólogo d’A Retirada da Laguna, haveria verdade na narrativa
empreendida:
Resta-nos solicitar toda a indulgência para uma narrativa que não aspira a
outros méritos senão àqueles dos próprios fatos relatados; foram extraídos de
um diário escrito durante a campanha. O leitor vai descobrir aqui muitas
incorreções, superfluidades, fatos repetidos: acreditamos poder deixá-los; são
sinais de que se fala a verdade314.

309
Ibidem, p. 244 (grifos nossos).
310
Refiro-me aqui a uma situação que analisei no segundo capítulo desta tese. Conferir a p. 128.
311
SOUZA, Michelli Moretti de. Op. cit., 2008, p. 21.
312
LEJEUNE, Philippe. Op. cit., 2008, p. 26.
313
Na escrita auto-referencial, como a entende Ângela de Casto Gomes, a noção de “verdade” passa a ter
forte vínculo com as ideias de foro íntimo e da experiência de vida dos autores, pois é entendido que,
através da sinceridade do autor, é possível almejar a verdade dos fatos. Na subjetividade do
autor/testemunha/sujeito está assentada sua autoridade como prova. GOMES, Ângela de Castro. Escrita
de si, escrita da história. Rio de janeiro: FGV, 2004, p. 10-15.
314
TAUNAY, Alfredo d’Escragnolle. Op. cit., 1997, p. 33 (grifos nossos).
314

A partir dessa perspectiva, intui-se que Taunay se percebia como alguém que tinha
a responsabilidade de dar sua opinião sobre o que achasse necessário. Ao lembrar do
passado, com profundo saudosismo, ele evidenciava sua tristeza pelo presente, no
momento em que impunha a si uma crescente “automarginalização”315. Em diversos
momentos das Memórias ele se revolta contra o novo regime, que pôs fim a tudo aquilo
que ele tanto amava – às cerimônias316, às hierarquias, à tradição do Império e, acima de
tudo, a D. Pedro II. E era sempre com notória inquietação que ele se insurgia contra a
República:
Como poderia eu, (entre parêntesis) conciliar toda essa série de gratas
reminiscências, tão suaves ao meu espírito e que rodeiam a ideia da monarquia
de tamanho prestígio, como sagradas tradições, com a atual ordem das coisas?
Não, não; é de todo impossível! Fora o abandono vil e miserável dos melhores
e mais puros sentimentos, que se aninham no peito humano. A outros, que não
experimentara, desde criança, o influxo de tantas impressões, a volubilidade
de opiniões317.

Para Taunay, o Brasil tinha chegado a um invejável patamar nos anos finais do
governo de D. Pedro II. Era, na década de 1880, uma monarquia constitucional que havia,
inclusive, abolido a escravidão318. “Quando exatamente alcançáramos o ideal por que
tanto parecia almejar o Brasil – o monarca constitucional a reinar só sem governar –
apontou-se a D. Pedro II o caminho do exílio!”319. A apatia do povo e a esperteza dos
políticos, inclusive de senadores e conselheiros de Estado, era equiparada por Taunay à
ingratidão dos filhos que maltratam seus pais na velhice. A eles, caberá à história o
julgamento, “[...] descarnando os horrores morais desta dolorosa época...”320.
Agora, o Brasil era apenas mais uma República, frente a tantas outras. Seu
diferencial se fora. É possível verificar grande parte das críticas feitas por Taunay à
República, principalmente acerca da “amoralidade” deste regime – tópico de relevância
em O encilhamento, conforme se verificou –, condensadas na seguinte passagem:

315
MARETTI, Maria Lídia Lichtscheidl. Op. cit., 2006, p. 148.
316
A nostalgia aparece, por exemplo, quando narra o ritual de sua colação de grau de bacharel em letras
no Colégio Pedro II. TAUNAY, Alfredo d’Escragnolle. Op. cit., [1948], p. 60.
317
Ibidem, p. 61.
318
Como já comentei em outra nota, a abolição foi uma das bandeiras que Taunay levantou enquanto
político. MARETTI, Maria Lídia Lichtscheidl. Op. cit., 2006, p. 36.
319
TAUNAY, Alfredo d’Escragnolle. Op. cit., [1948], p. 164.
320
Ibidem, p. 164.
315

Ah! República, república! Bem a definiu não me lembro mais quem: “É o


regime em que cada qual está pronto a sacrificar ao interesse geral o interesse...
dos outros”.
Está é a grande verdade! Choque contínuo de ambições pessoais, todos se
supõem aptos ao mando supremo, fazendo do cargo que ocupam ocasião de
opressão e vexame, tudo no meio de vãs e insanas declamações, em que
retumbam a todo o instante pomposos vocábulos, honra, dignidade,
consciência, liberdade! [...]
Mais livres hoje no Brasil, do que éramos no tempo da monarquia? Mas é
legítima irrisão!
Outrora, tínhamos ufania que atualmente ninguém pode mais nutrir, de
havermos nascido em país sul-americano, exceção de quantos nos rodeavam.
Pertencemos na hora presente à regra geral. Somos simplesmente tão boa
república sul-americana como qualquer outra; temos pronunciamentos,
contínuas deposições, mortandade a valer, bombardeios de navios, lutas
fratricidas, enfim todo o cortejo próprio das nações felicitadas pelas
constituições organizadas e interpretadas, pelos democratas do nosso
continente321.

O tema claramente provocava os ânimos do autor. Antes, foram apresentados


vários exemplos do quanto Taunay esbravejou contra o regime republicano, o que explica
até mesmo seu rompimento com o IHGB, em 1891. É possível unir num mesmo conjunto
de textos antirrepublicanos o romance O encilhamento, diversas páginas das Memórias e
das Reminiscencias, além do opúsculo, organizado e publicado por Afonso Taunay,
Império e República (1933). Este último era, na verdade, um aglomerado de textos que
haviam sido publicados na imprensa do Rio de Janeiro e de São Paulo depois de 1889.
Neles, Taunay, com a acidez que lhe era particular quando tratava do assunto, propunha
comparações entre os dois sistemas de governo, fazendo elogios constantes ao ex-
imperador, lamentando sua queda e criticando os atos republicanos. Vale notar, por fim,
que grande parte desses artigos era assinado com pseudônimos – uma prática constante
do autor, como se averiguou322.
O que enraivecia Taunay era o que considerava um desconhecimento político
daqueles que elogiavam o novo regime. Para ele, o Brasil ainda se encontrava,
evolutivamente falando, num degrau baixo em termos de educação política. Havia, nesse
sentido, necessidade de um poder superior, como foi, no passado, o de D. Pedro II. Pois
foi o monarca o responsável por conter os ímpetos distintos, os diferentes partidos e seus
militantes: “O que deu tanta ponderação à marcha do Império, nos quarenta e nove anos
do reinado de D. Pedro II, foi a serenidade do monarca, colocado, já pela Lei, já pelo

321
Ibidem, p. 164.
322
Sobre Império e República, ver MARETTI, Maria Lídia Lichtscheidl. Op. cit., 2006, p. 45.
316

esforço próprio e constante, acima das paixões e do jogo dos interesses”323. Era disso que
necessitava o país: um poder acima dos outros para acalmar os ânimos e fazer surgir as
reformas de que o Brasil carecia. Só que esse poder não devia ser de qualquer um, mas
prevalecer parte das instituições monárquicas. Até porque, como contou em outros
momentos de suas Memórias, Taunay parecia não acreditar muito nos partidos políticos.
Fez parte do Partido Conservador, mas em vários episódios pareceu não se enquadrar
nele324. O que não queria dizer que se sentisse tentado a mudar de partido, pois, para ele,
“[...] conservadores e liberais, quando em oposição, profligavam rudemente o Monarca,
nele vendo o esteio e ponto de partida de todos os abusos, para, uma vez no poder, o
apresentarem, nos discursos de defesa, como o tipo mais perfeito do príncipe
constitucional!”325.
A despeito da revolta pelo fim da monarquia constitucional brasileira, Taunay
sabia que a República era irreversível. Tanto que não se envolveu, como outros, no
movimento pró-restauração: não aderiu a campanhas sistemáticas e coletivas pelo retorno
da monarquia no Brasil326. A República era, acima de tudo, algo a ser lamentado – e
Taunay se esforçou muito em fazê-lo327.
Da polêmica que resultou na saída do escritor do IHGB à elaboração das
Memórias, pouco tempo se passou. A entrada dos manuscritos na arca do sigilo poderia
significar uma trégua entre o indivíduo e a associação328, mas as pazes só vieram

323
TAUNAY, Alfredo d’Escragnolle. Op. cit., [1948], p. 370.
324
MARETTI, Maria Lídia Lichtscheidl. Op. cit., 2006, p. 34 e p. 69.
325
TAUNAY, Alfredo d’Escragnolle. Op. cit., [1948], p. 371.
326
MARETTI, Maria Lídia Lichtscheidl. Op. cit., 2006, p. 47-48.
327
Ibidem, p. 67. Para a autora, o sentimento que mais caracteriza a obra de Taunay é o de nostalgia do
que poderia ter sido o período monárquico, mais do que o que ele realmente foi.
328
Vale notar que houve uma tentativa, em dezembro de 1892, por parte de Cézar Augusto Marques, para
que a querela toda fosse esquecida e que Taunay fosse readmitido no grêmio. Em seu favor, Marques
indicava a consideração de Taunay em remeter à “Arca de segurança” do Instituto suas memórias: “A esta
prova de confiança seguiram-se outras três, qual o brinde de três escritos seus para abrilhantarem as
páginas de nossa Revista. / Já se vê, que a calma iluminou-lhe o espírito. / Lembrou-se ele de nós, e como
mandam as regras de cavalheirismo vamos dar-lhe as boas-vindas, apertar-lhe a mão, e convidá-lo para
continuar em nossa oficina o trabalho, que deixou interrompido”. Ao apelo de Marques, contudo, pareceu
não haver resposta por parte do Instituto e Taunay continuou dele afastado. TAUNAY, Alfredo
d’Escragnolle. “Requerimento do Dr. Cézar Augusto Marques para que seja relevado e esquecido o
protesto do Visconde de Taunay sobre um ato praticado dentro da lei orgânica do IHGB e que taxou de
ofensiva ao Imperador D. Pedro II”. 1892. 4 f. Arquivo do IHGB, Rio de Janeiro, Brasil. Ref. Lata 575 –
Pasta 45.
317

postumamente, com a admissão de Afonso Taunay, em 1911. Além do já citado discurso


feito pelo filho em favor da memória do pai, e da inauguração do quadro pintado em
homenagem ao Visconde, não foi esquecido o fato de que os papeis da autobiografia ainda
se encontravam guardados no IHGB. Sobre isto, Afonso comentava que as Memórias
representavam o afinco com que seu pai sempre se dispôs a narrar o que viveu. E como
“historiador”, faltaria à sua missão acaso, ao reproduzir “aspectos pitorescos dos
acampamentos”, deixasse de fazer “[...] a crítica severa dos homens e das coisas de guerra,
dos chefes e dos comandados”329. Somente por isso, para estar habilitado a tratar com
verdade, sem temer ferir “superiores, companheiros de armas e contemporâneos”330 foi
que Taunay optou pela restrição dos escritos na arca. Fosse por ignorância ou por
esperteza, para Afonso, o que seu pai teria a dizer de mais embaraçoso, e que poderia lhe
angariar ódios e inimizades, estava ligado aos sucessos da Guerra do Paraguai. Em sua
opinião, foi isso que motivou a recolha da autobiografia na arca do sigilo até, pelo menos,
1943.
Evidentemente, este era um ponto fundamental. O que Taunay comentou sobre o
Conde d’Eu nas Memórias é um excelente exemplo que se coaduna com a argumentação
de Afonso. Há, no entanto, outros aspectos que merecem observação mais atenta. Em
primeiro lugar, acredita-se que a marcante nostalgia de Taunay pelo Império e o seu
consequente ataque à República era, sim, motivo de cautela. Ainda que em diversas
ocasiões o autor tivesse se exposto publicamente como antagonista à nova ordem das
coisas, sempre que possível ele o fazia com precaução. Foi o caso, como se demonstrou,
do uso constante de pseudônimos em suas publicações, fosse na imprensa periódica ou
na edição de livros de sua autoria. Importa comentar, também, que não era só sobre os
“companheiros” de guerra que Taunay se propunha a falar o que seu capricho mandasse.
Nesse sentido, o tratamento dado a José de Alencar, sobretudo em relação à sua carreira
literária, foi de cunho notadamente condenatório. Por fim, estima-se que comentários de
foro íntimo feitos nas Memórias tampouco apareceriam em escritos prontos para serem
publicados. É o caso, mais do que evidente, da narrativa de seu namoro com a índia
Antônia.

329
“Ata da sessão de 15 de agosto de 1912”. RIHGB, tomo LXXV, p. 443-444, 1912.
330
Ibidem, p. 443-444.
318

Esses indícios ajudam a compreender o desejo de Taunay pelo sigilo. Há também


um tópico menos explícito, mas que não deve ser preterido. A perda do passado (do
Império) fazia com que Taunay não visse no presente maiores possibilidades de
felicidade. Ainda assim, o retorno ao que existia antes só era possível através do trabalho
intelectual, da escrita memorialística. Taunay, então, só poderia se voltar para o futuro –
embora fosse ele incerto devido ao rompimento brusco com a monarquia, iniciado em
1889331. Ao escrever suas memórias e, mais do que isso, ao planejar sua preservação na
arca do sigilo por tantos anos, Taunay confiava que no momento em que elas saíssem a
público, ele próprio ressurgiria em todo seu esplendor. Afinal, a escrita, desde tempos
longínquos, não é a melhor maneira de se tornar imortal? E não foi ele mesmo tantas
vezes responsável por fazer ressuscitar os mortos, ainda que momentaneamente332?
Taunay possivelmente imaginava o leitor de 1943 abrindo o livro com suas
histórias de vida, redescobrindo o literato que havia escrito Inocência e A Retirada da
Laguna, que então já seriam consideradas obras-primas brasileiras. A esse interlocutor,
convidava para entrar em seu mundo, conhecer seus infortúnios, seus amores, suas
batalhas – contra o Paraguai, contra a “má literatura” e contra a República. A ele, e só a
ele, seria guardado o majestoso papel de juiz. E porque Taunay se considerava um
habilidoso orador – modéstia nunca foi o seu forte! –, o veredito teria que ser o melhor
possível: “Permita a justiça da posteridade que eu consiga a posição de que me acho digno
e para a qual trabalhei com todo o esforço, vencendo, não raras vezes, desalentos
violentos”333. Morto senão pela tristeza, como suas heroínas Ierecê e Inocência, mas com
ela, só então ele seria feliz de novo.

***

331
Para analisar a mudança na forma de sentir o tempo, lembrar as noções delineadas por François
Hartog. Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2013b.
332
Refiro-me ao papel de Taunay como orador de elogios fúnebres no IHGB (mas também em outras
ocasiões). MARETTI, Maria Lídia Lichtscheidl. Op. cit., 2006, p. 194.
333
TAUNAY, Alfredo d’Escragnolle. Op. cit., [1948], p. 165. Interessante lembrar a ocasião em que
Taunay fez o discurso proferido “à beira do túmulo” de José de Alencar, em 1877. Nele, propõe ao
público a visualização de uma figura imaginária, que teria surgido no momento das homenagens ao
literato. Esta figura era a posteridade, “[...] cujo aparecimento insólito teria acontecido excepcionalmente,
dada a grandeza do homenageado, e como forma de evitar o aniquilamento aventado na série de perguntas
que faz, aniquilamento que é comum aos ‘meros mortais’”. MARETTI, Maria Lídia Lichtscheidl. Op. cit.,
2006, p. 205-206.
319

Quando Caetano Lopes de Moura iniciou a narrativa de sua vida ele sabia
exatamente a quem ela estava destinada. Foi um trabalho encomendado pelo imperador
do Brasil no momento em que ele se consolidava no poder, e isso fez toda a diferença.
Lopes de Moura soube trazer para a escrita detalhes de sua trajetória que interessariam ao
monarca, ao mesmo tempo em que preferiu silenciar sobre aquilo que o desabonaria frente
a seu benfeitor.
Alfredo d’Escragnolle Taunay também tinha em mente os possíveis leitores de
suas Memórias. De um futuro distante, tais indivíduos teriam acesso às páginas prenhes
de segredos. Sua escrita não precisou, portanto, ser tão comedida. Ao contrário do que
aconteceu ao mulato baiano, a autobiografia surgiu para Taunay como uma necessidade
sua, um desejo incontido de narrar o que viveu o mais que lhe fosse permitido. O ponto
final de seu texto foi dado pelo inescapável; somente a morte silenciou-o.
Antes de qualquer coisa, Caetano e Alfredo eram testemunhas oculares que
escreviam sobre seu próprio tempo. Isso fez com que ambos adotassem uma postura de
cautela em relação à publicidade de seus textos. Afinal, haveria algo mais importante a
ser preservado do que a própria história?
O aspecto de proteção familiar tampouco deve ser esquecido. Caetano deixou
claro ao final de sua narrativa que se preocupava com sua esposa, a única pessoa que
ainda dependia financeiramente dele. Alfredo possivelmente se inquietava com as
dificuldades pelas quais passariam seus descendentes, já que, desde 1889, ser um Taunay
não significava mais possuir privilégios. A completa publicação das Memórias, sem
censuras, com seu conteúdo sarcástico e até chocante em alguns pontos, não podia
comprometer ainda mais a sua família. Daí a precaução não só de pedir a publicação
póstuma, como Caetano, mas de garantir que ela só ocorresse no espaço de uma geração
depois de sua morte.
Realmente, os dois foram testemunhas e assim se posicionaram em sua escrita.
Não havia como ser diferente, em se tratando de autobiografias. Entretanto, a distinção
das motivações dos dois autores ajuda a compreender as escolhas feitas para a composição
de suas obras. Sobretudo Taunay parecia querer estampar em cada página sua identidade
como testemunha. Este traço não se encontra apenas nas Memórias, mas em praticamente
tudo o que ele escreveu. A legitimidade de sua obra, como um todo, era calcada na
experiência vivida. Ele foi sua própria fonte.
320

A análise das duas autobiografias traz à tona problemáticas de extrema


importância: as relações entre história de vida e história coletiva; os limites entre a
memória e a história; e o comprometimento mais ou menos explícito do autor com
determinados valores e com o contexto em que viveu e escreveu. Faz também pensar
sobre as possibilidades e as dificuldades de se fazer a história contemporânea. Isso
porque, conforme dito no início deste capítulo, a escrita de uma vida, por mais longa que
seja, não deixa de ser uma produção que tem como foco o tempo presente. Implica,
necessariamente, em tratar de fatos recentes e de pessoas contemporâneas. Dentro da
lógica oitocentista delineada tão precisamente pelo IHGB, faz por merecer, portanto,
todas as precauções: do singelo pedido de proteção de Caetano ao decidido recurso de
Alfredo pela arca do sigilo.
321

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com o final do século XIX, e o fortalecimento de determinadas práticas


historiográficas, o presente foi taxativamente rejeitado no território da história. Em 1900,
segundo escreveu Gérard Noiriel, a maioria dos historiadores ligados às universidades
francesas era medievalista, enquanto que, na Alemanha, os mais conhecidos e influentes
dedicavam-se ao estudo das épocas antiga e medieval1. No Brasil, é possível confirmar a
mesma tendência: havia uma predileção por sínteses que dessem conta do afastado
período colonial.
Alguns autores identificam o fim do oitocentos como o do primado do historiador
profissional sobre o amador. Como tal, alguns pressupostos esclareciam essa atividade.
O evento, assim que “produzido”, passava a pertencer à história que o transformaria em
“elemento histórico erudito”, mas somente após vários anos decorridos de sua conjuntura.
Essa espera era necessária para que os “traços do passado pudessem ser arquivados e
catalogados” e para se alcançar uma das condições indispensáveis à história científica: a
visão retrospectiva2.
A história recente, consequentemente, tornava-se cada vez mais monopólio dos
historiadores diletantes. De modo geral, entendia-se que sua apreensão não demandava
uma farta cultura clássica, nem procedimentos eruditos do método histórico3. Além disso,
o desprestígio do tempo presente entre especialistas justificava-se em função de se
considerar este campo como próximo da ação política: aqueles que não podiam fazer a
história se contentavam em fazer história, no sentido tão bem explicitado por François
Hartog4. Essa situação modificou-se apenas no último quartel do século XX. Para Marieta
de Moraes Ferreira, isso se deve ao rompimento da identificação do passado como único

1
Citado em ROUSSO, Henry. La dernière catastrophe. L’histoire, le présent, le contemporain. Paris:
Éditions Gallimard, 2012, p. 73.
2
Ou seja, a possibilidade de trabalhar com processos históricos cujo desfecho já é conhecido. Cf.
FERREIRA, Marieta de Moraes. “História do tempo presente: desafios”. In: Cultura Vozes, Petrópolis, v.
94, n. 3, p. 111-124, maio/jun. 2000.
3
A recusa do presente, nessa ótica, passou a influenciar enormemente a desqualificação do testemunho
direto pela historiografia.
4
HARTOG, François. Evidência da história: o que os historiadores veem. Belo Horizonte: Autêntica,
2013a, p. 23.
322

objeto da história, além da expansão dos debates acerca da memória e de suas relações
com a história e, finalmente, pelo reconhecimento de que o passado é uma categoria
construída pelo presente, a partir de suas necessidades5.
Por outro lado, tal movimento – do repúdio quase total à inserção da história do
presente na historiografia –, que durou mais de um século, concentrou-se sobretudo no
cenário acadêmico europeu, mais precisamente na França. Isto porque a consolidação da
história nas universidades francesas, a partir de 1870, confirmou o despontar do
historiador como profissional, que possui formação e mercado de trabalho específicos.
No Brasil, pelo contrário, até aproximadamente a década de 1930, o “lugar social” 6 dos
historiadores definia-se por sociedades como o IHGB que, em muitos aspectos,
permaneceu sendo uma associação composta por “amadores”, ainda que incentivasse o
estabelecimento de uma história pragmática. Uma presumível ausência de critérios
profissionais ou científicos para a escrita da história no Brasil, no sentido antes esboçado,
sugestionava que somente os indivíduos “amantes das letras” (denotando uma busca a
partir do prazer) debruçar-se-iam sobre esse tipo de investigação.
Em que pese a generalidade dessas considerações, é fato que nos anos finais do
século XIX o IHGB também primou por uma forte repressão à história contemporânea,
senão pelas implicações teóricas e metodológicas, pelas contingências do próprio
presente. Um novo ciclo inaugurado com a República requisitava renovadas proibições
em relação ao tempo próximo. Não à toa, foi nesse período que a “arca do sigilo” deixou
de ser um projeto frustrado e, por isso, frequentemente lamentado pelos sócios da
agremiação, para se concretizar.
Retomava, portanto, a mesma circunspeção que se fez notar tantas vezes, ao longo
do regime monárquico, de manter o presente sob vigilância constante, ainda que essa
reserva se fizesse mais forte em momentos pontuais. Apresentei, ao longo da tese, dois
deles: a primeira década do IHGB, caracterizada pela prudência em relação aos
acontecimentos desde 1817; e, justamente, a partir da proclamação da República, período
de fortes incertezas para o Instituto, até então amalgamado com o governo imperial e seu

5
Op. cit., p. 111-124, maio/jun. 2000.
6
CERTEAU, Michel de. “A operação histórica”. In: LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre (Org.). História:
Novos Problemas. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988, p. 18.
323

representante máximo7. Essa demarcação evidencia a forte conotação política da


disciplina histórica em todo o século XIX8.
Conquanto seja possível destacar essas duas temporalidades, a interdição do
presente no IHGB permeou todo o extenso recorte cronológico abarcado neste trabalho.
Houve impedimentos a propostas que ensaiavam historiar sobre a atualidade, como no
caso dos Fastos do feliz e glorioso reinado do Sr. D. Pedro II, na década de 1860, ou em
situações específicas, como eram-nas as recorrentes críticas de Joaquim Manuel de
Macedo a qualquer abordagem tida como historiográfica que pretendesse focalizar
eventos contemporâneos.
O dever político tanto assegurava o esforço pelo sigilo do presente, quanto, pelo
contrário, concedia brechas que possibilitavam momentaneamente o tratamento do
mesmo. Foi o que se viu durante a Guerra do Paraguai e logo após a abolição da
escravatura; para essas questões, o IHGB deu o destaque que muito penosamente foi
garantido a outros fenômenos (a Revolução Pernambucana, a Independência, as rebeliões
do período regencial etc.) pelo menos cinquenta anos depois da época em que ocorreram9.
Assim, era em função da imensa dívida para com a monarquia que o IHGB
escolhia aquilo que estava ao alcance de se tornar parte dos anais da história. Ao
intencionar prestar esse tipo de serviço ao Império, o grupo de letrados circunscrito ao
Instituto se aproximava muito mais dos objetivos e métodos das academias setecentistas10
do que à pesquisa científica que se desenvolveu ao longo do oitocentos. Os sócios
esbarravam frequentemente em incumbências políticas que muitas vezes iam de encontro
às perspectivas historiográficas que estavam em aprimoramento.
Este aspecto, contudo, não é uma especificidade apenas brasileira, haja visto que,
mesmo na França de finais do século XIX, o impulso pela autonomia da disciplina teve
de conviver com a constante atenção do novo regime político. Com a emergência da III

7
Ainda que meu recorte temporal tenha ido até 1889, por meio da análise das Memórias do Visconde de
Taunay elaborei algumas considerações a respeito do início do período republicano no Instituto.
8
Cf. FURET, François. “O nascimento da história”. In: ______. A Oficina da História. Lisboa: Gradiva,
1980, p. 109-135.
9
Essa “regra dos cinquenta anos” teve reflexos até bem pouco tempo, conforme relatou Pierre Nora: “La
règle des cinquante ans, assouplie récemment pour certains dépôts, grâce aux efforts des chercheurs,
condamne trop souvent l’histoire contemporaine à l’achasse au trésor...”. NORA, Pierre. “Pour un
histoire contemporaine”. In: _____. Présent, nation, mémoire. Éditions Gallimard, 2011, p. 76.
10
SOUZA, Roberto Acízelo de. O Império da Eloquência. Rio de Janeiro: EdUERJ/EdUFF, 1999, p. 19-
20.
324

República, houve um forte empenho para tomar o controle das instâncias de produção da
memória coletiva do país11 e a história estava entre elas, incontestavelmente.
Não se deve duvidar, por outro lado, que um dos ânimos que movia o IHGB e que
explicou o seu surgimento era o de refletir sobre os procedimentos heurísticos e
metodológicos da história. Argumentei em vários momentos da tese sobre as tentativas
feitas no sentido de padronizar aquilo que era tido como principal para o ofício do
historiador, como, por exemplo, o empenho em organizar uma periodização para a
história do Brasil, a discussão sobre o crédito de determinadas fontes em detrimento de
outras, além do entendimento da disciplina como um todo. Embora não tenha havido um
consenso sobre como se devia escrever a história, a simultaneidade de propostas aponta
para tentativas nesse sentido e expõe a riqueza conceitual do período.
Tal complexidade, portanto, refletiu na maneira com que os sócios do Instituto se
portavam em relação aos usos do presente na história. Essa questão se adequa a uma série
de reflexões críticas sobre o campo e pode ser transplantada até os dias de hoje. O
interesse ou o desprezo pela história mais contemporânea sempre acaba levando em
consideração demandas mais práticas, de âmbito político e social, que inserem o
historiador no seu próprio tempo, malgrado sua especialização estar focada no passado.
Além disso, partindo desse debate, é possível evidenciar os principais critérios da
constituição da história disciplinar no século XIX e, posteriormente, de sua consolidação
como campo de saber científico. A visão que o historiador deve ter do evento narrado
(próxima ou retrospectiva?), a busca pela imparcialidade, a oposição entre subjetividade
e objetividade e a definição de fontes para a consequente crítica são alguns deles.

11
FERREIRA, Marieta de Moraes. Op. cit., p. 111-124, maio/jun. 2000.
325

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MAIA, Joaquim José da Silva. Memorias históricas, políticas e filosoficas da


Revolução do Porto em maio de 1828, e dos emigrados portuguezes pela Hespanha,
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MATOS, Raimundo José da Cunha. “Dissertação acerca do sistema de se escrever a
história antiga e moderna do Império do Brasil”. RIHGB, tomo XXVI, p. 121-143,
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MOURA, Caetano Lopes de. “Biografia do Dr. Caetano Lopes de Moura escrita por ele
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_____. Epítome Chronologico da Historia do Brasil. Paris: JP Aillaud, 1860.

PINHEIRO, Joaquim Fernandes. “Luís do Rego e a posteridade – Estudo histórico


sobre a revolução pernambucana de 1817”. RIHGB, tomo XXIV, p. 333-490, 1861.

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PINHEIRO, José Pedro Xavier. Epítome da História do Brasil desde o seu


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Agricultura, Commercio e Obras Publicas e impressa por sua ordem. Rio de Janeiro:
Typographia de João Ignacio da Silva, 1869.

PINTO, Antonio Pereira. “A Confederação do Equador. Notícia histórica sobre a


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au nom de l’Institut Historique, dans la salle Sr.-Jean, de l’Hôte-de-Ville. Discours et
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341

SOCIÉTÉ DES ÉTUDES HISTORIQUES. Congrès historique européen, reuni a Paris,


au siège de l’Institut Historique. Discours et compte-rendus. Septembre-octobre 1839.
Paris: Au secrétariat de l’Institut Historique; H.-L. Delloye, 1840.

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TAUNAY, Alfredo D’Escragnolle. A retirada de Laguna: episódio da guerra do


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_____. Memórias. Rio de Janeiro: Edições Melhoramentos, [1948].

_____. O encilhamento. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1971.

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TAVARES, Monsenhor Francisco Muniz. História da Revolução de Pernambuco de


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successos occorridos em algumas províncias ate essa data”. RIHGB. Rio de Janeiro:
Imprensa Nacional, p. 5-598, 1917 [1916].

_____. História da Independência do Brasil até o reconhecimento pela antiga


metrópole, compreendendo, separadamente, a dos sucessos ocorridos em algumas
províncias até essa data. Brasília: Senado Federal, 2010.

_____. História Geral do Brazil. Tomo II (1ª ed.). Rio de Janeiro: E. & H. Laemmert,
1857.

_____. História Geral do Brazil. Tomo II (2ª ed.). Rio de Janeiro: E. & H. Laemmert,
1877.
342

WALLESTEIN, Henrique Julio. “Memória sobre o melhor plano de se escrever a


história antiga e moderna do Brasil segundo a proposição do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro’. RIHGB, tomo XLV (Parte Primeira), p. 159-160, 1882.
343

ANEXO A - Memórias históricas publicadas na Revista (1850-1889)

1. Sobre a Revolução Pernambucana:


a) (Autor desconhecido). “Guerra civil ou sedições de Pernambuco. Exemplo memorável
aos vindouros” (manuscrito oferecido ao Instituto pelo Sócio correspondente o Sr. Dr.
Felipe Lopes Netto). RIHGB, tomo XVI, p. 5-136, 1853.

b) PINHEIRO, J. C. Fernandes. “Luís do Rego e a posteridade – Estudo Histórico sobre


a revolução pernambucana de 1817”. RIHGB, tomo XXIV, p. 353-490, 1861.

2. Sobre a Independência:
a) LEAL, Felipe. “Memória pelo Sr. Phelippe José Pereira Leal sobre os acontecimentos
políticos que tiveram lugar no Pará em 1822-1823”. RIHGB, tomo XXII, p. 161-200,
1859.

b) MARQUES, Cézar Augusto. “O Dia 28 de Julho. Uma página da História do


Maranhão”. RIHGB, tomo XLVII (Parte Segunda), p. 239-248, 1884.

c) ARARIPE, Tristão de Alencar. “Independência no Maranhão”. RIHGB, tomo XLVIII


(Parte Segunda), p. 159-180, 1885.

d) MARQUES, Cézar Augusto. “O Dia 28 de Julho”. RIHGB, tomo XLVII (Parte


Segunda), p. 301-310, 18861.

3. Sobre a Confederação do Equador:


a) PINTO, Antonio Pereira. “A Confederação do Equador. Notícia histórica sobre a
Revolução Pernambucana de 1824”. RIHGB, tomo XXIX (Parte Segunda), p. 36-200,
1866.

1
Mesmo trabalho publicado na Revista de 1884.
344

4. Sobre o período regencial (1831-1840):


a) AZEVEDO, Manoel Duarte Moreira de. “Sedição militar na Ilha das Cobras em 1831”.
RIHGB, tomo XXXIV (Parte Segunda), p. 276-292, 1871.

b) AZEVEDO, M. D. Moreira de. “Os tiros no Teatro. Motim popular no Rio de Janeiro”.
RIHGB, tomo XXXVI (Parte Segunda), p. 349-358, 1873.

c) AZEVEDO, M. D. Moreira de. “Sedição militar de Julho de 1831 no Rio de Janeiro”.


RIHGB, tomo XXXVII (Parte Segunda), p. 178-190, 1874.

d) AZEVEDO, M. D. Moreira de. “Motim político de 3 de Abril de 1832 no Rio de


Janeiro”. RIHGB, tomo XXXVII (Parte Segunda), p. 367-382, 1874.

e) AZEVEDO, M. D. Moreira de. “Motim político de 17 de Abril de 1832 no Rio de


Janeiro”. RIHGB, tomo XXXVIII (Parte Segunda), p. 127-142, 1875.

f) AZEVEDO, M. D. Moreira de. “Motim político de Dezembro de 1833 no Rio de


Janeiro. Remoção do tutor do Imperador”. RIHGB, tomo XXXIX (Parte Segunda), p. 25-
50, 1876.

g) AZEVEDO, M. D. Moreira de. “O Dia 30 de Julho de 1832”. RIHGB, tomo XLI (Parte
Segunda), p. 227-236, 1878.

h) PORTELA, Joaquim Pires Machado. “A Sabinada da Província da Bahia em 1837”.


RIHGB, tomo XLV (Parte Segunda), p. 13-20,1882.

i) AZEVEDO, M. D. M. “Sabinada da Bahia em 1837”. RIHGB, tomo XLVII (Parte


Segunda), p. 283-306, 1884.

j) BLAKE, A. V. A. Sacramento. “A Revolução da Bahia de 7 de Novembro de 1837 e o


Dr. Francisco Sabino Alves da Rocha Vieira”. RIHGB, tomo XLVIII (Parte Segunda), p.
245-264, 1885.
345

l) MARQUES, Cézar Augusto. “O ‘Bemtevi’ periódico maranhense e seu redator o Sr.


Estevão Raphael de Carvalho”. RIHGB, tomo XLIX (Parte Segunda), p. 289-294, 1886.

m) SILVEIRA, Balthazar da. “Resposta às Breves Reflexões que o Exm. Sr. Conselheiro
D. Francisco Balthazar da Silveira fez sobre o Bemtevi e seu redator o Sr. Estevão
Raphael de Carvalho”. RIHGB, tomo XLIX (Parte Segunda), p. 295-300, 1886.

n) NOGUEIRA, Paulino. “Execução de Pinto Madeira perante a história”. RIHGB, tomo


L (Parte Primeira), p. 125-212, 1887.

o) BLAKE, Sacramento. “A Revolução da Bahia de 7 de Novembro de 1837 e o Dr.


Francisco Sabino da Rocha Vieira (lido na sessão de 9/11/1887)”. RIHGB, tomo L (Parte
Segunda), p. 177-196, 1887.

5. Sobre a Maioridade:
a) AZEVEDO, M. D. Moreira de. “Declaração da Maioridade do Imperador em 1840”.
RIHGB, tomo XLII (Parte Segunda), p. 5-38, 1879.

b) ARARIPE, Tristão de Alencar. “Notícia sobre a Maioridade”. RIHGB, tomo XLIV


(Parte Segunda), p. 167-210, 1881.

6. Sobre a Farroupilha:
a) ARARIPE, T. A. “Guerra Civil do Rio Grande do Sul. Memória acompanhada de
documentos”. RIHGB, tomo XLIII (Parte Segunda), p. 115-364, 18802.

7. Outras rebeliões:
a) (Autor desconhecido). “Memória sobre os acontecimentos dos dias 21 e 22 de Abril de
1821 na Praça do Commercio do Rio de Janeiro, Escripta em Maio do mesmo anno por
uma testemunha presencial. Offerecida ao Instituto em Sessão de 16 de Março de 1839,

2
Verifica-se a continuação do trabalho de Alencar Araripe nas edições da Revista de 1882, 1883 e 1884.
Estes excertos, contudo, continham especificamente a parte documental utilizada pelo autor para escrever
a memória histórica. Cf. RIHGB, tomos XLV, XLVI e XLVII (Parte Segunda), p. 33-236; p. 165-564; p.
47-237.
346

pelo sócio José Domingues de Athaide Moncorvo”. RIHGB, tomo XXVII (Parte
Primeira), p. 271-290, 1864.

b) RUBIM, Braz da Costa. “Memória sobre a Revolução do Ceará em 1821”. RIHGB,


tomo XXIX (Parte Segunda), p. 201-263, 1866.

c) AZEVEDO, M. D. Moreira de. “O dia 9 de Janeiro de 1822”. RIHGB, tomo XXXI


(Parte Segunda), p. 33-61, 1868.

d) AZEVEDO, M. D. Moreira de. “Movimento político de Minas Gerais em 1842”.


RIHGB, tomo XLVII (Parte Segunda), p. 5-38, 1884.

8. Questão das fronteiras / diplomacia:


a) OLIVEIRA, J. J. Machado de. “Memória histórica sobre a questão de limites entre o
Brasil e Montevidéu”. RIHGB, tomo XVI, p. 385-425, 1853.

b) OLIVEIRA, J. J. Machado de. “Recordações históricas que se prendem especialmente


à campanha de 1827, na Guerra travada entre o Brasil e a República Argentina sobre a
questão da província cisplatina, e durante o comando do tenente-general Marquês de
Barbacena, general em chefe do exército que operou naquela campanha”. RIHGB, tomo
XXIII, p. 497-584, 1860.
347

ANEXO B - Crônicas ou outros gêneros publicados na Revista (1850-1889)

1. Sobre a Independência:
a) PINHEIRO, J. C. Fernandes. “Motins políticos e militares no Rio de Janeiro. Prelúdios
da Independência do Brasil”. RIGHB, tomo XXXVII (Parte Segunda), p. 341-366, 1874.

2. Sobre o período regencial:


a) ALENCASTRE, J. M. Pereira de. “Notas diárias sobre a revolta civil que teve lugar
nas províncias do Maranhão, Piauí e Ceará pelos anos de 1838, 1839, 1840, 1841, escritas
em 1834 à vista de documentos oficiais”. RIGHB, tomo XXXV (Parte Segunda), p. 423-
484, 1872.

3. Questão das fronteiras / diplomacia:


a) (Autor desconhecido). “História da Campanha do Sul em 1827 – Batalha de Ituzaingo
oferecido pelo Visconde de Barbacena”. RIHGB, tomo XLVII (Parte Primeira), p. 289-
554, 1886.
348

ANEXO C – Sepulture de Moura no cemitério de Père-Lachaise, Paris

À esquerda, foto de Cláudio Veiga (1979, p. 261), possivelmente tirada entre as décadas
de 1960 e 1970.
À direita, a situação do jazigo em 2014.

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