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[Ano]

PET- História USP


[Nome da empresa]
[Data]
VI Encontro de Pesquisa na Graduação em História
Presidência da Republica
Jair Messias Bolsonaro

Tutor PET-História
Prof. Dr. Jorge Luís da Silva Grespan
Membros PET
Alexandre Yip Chan
Ministério da Educação
Milton Ribeiro Ana Beatriz Machado da Silva Domingues
Secretaria de Educação Superior Ana Caroline de Andrade Ferreira
Wagner Vilas Boas de Souza Bruna Maria dos Santos
Coordenação Geral de Relações Estudantis Camila Campos Claro Olandim
Antônio Corrêa Neto Henrique da Silva Barbosa
Isabella Oliveira Caffer
Julia Geiling Cardoso Falcone
Lucas Barreto dos Santos
Lucas Eroico
Mariana Tezoto de Lima
Pietra Augusto Barroso Luz
Universidade de São Paulo – USP Reitor
Sarah Roberta Moreira
Prof. Dr. Vahan Agopyan
Ulisses Marques Rocha Franco
Vice-Reitor
Vitor Sposito de Faria
Prof. Dr. Antonio Carlos Hernandes
Pró-Reitor de Graduação Ex-bolsistas que participaram do
Prof. Dr. Prof. Edmund Chada Baracat VI EPEGH
Pró-Reitora de Cultura e Extensão Aléxia Sayuri Hino
Profa. Dra. Maria Aparecida de Andrade Aline Porfirio
Moreira Machado
Anna Carolina P. de Araujo
Eduardo R. M. Costa
Eloísa Martins Galvão
Giovanna Rocha Delela
Giulia Tofanini de Sousa
Ivan Grecco de Vasconcelos
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Leticia Maria de A. Nogueira
Humanas - FFLCH (Apoio)
Mariana Cristina Ribeiro Bolorini Pereira
Direção
Rafael Mastronardi
Profa. Dra. Maria Arminda do Nascimento
Tailane Machado Santos
Arruda
Vice Direção Thaiane Cristina S. Rosa
Prof. Dr. Paulo Martins Victória R. da Silva Santos
Chefia do Departamento de História
Prof. Dr. João Paulo Garrido Pimenta USP – Pró-Reitoria de Graduação
Prof. Dr. Rafael de Bivar Marquese
Rua da Reitoria, 374 – 2º andar – Cidade
Comissão de Graduação
Universitária – São Paulo/ SP
Profa. Dra. Gabriela Pellegrino Soares
USP – Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Rua
da Reitoria, 374 – 3º andar – Cidade
Universitária – São Paulo/ SP
USP - PET-História
Av.Prof. Lineu Prestes, 338 - Butantã, São Paulo
VI EPEGH
ENCONTRO DE PESQUISA NA GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

Organização

MARIA CRISTINA CORTEZ WISSENBACH

STELLA MARIS SCATENA FRANCO VILARDAGA

JORGE LUÍS DA SILVA GRESPAN

PET-HISTÓRIA USP

DPTO. DE HISTÓRIA/FFLCH-USP

São Paulo

2021
Copyleft © 2018 by Programa de Educação Tutorial da História USP (PET-História USP)

Esta publicação não tem fins lucrativos e está vedada sua reprodução para fins comerciais.

Capa

Aline Porfirio e PET História USP

Diagramação

Aline Porfirio e PET História USP

Revisão de diagramação

PET-História USP

Nota: a revisão gramatical é de plena responsabilidade dos autores

[2021]

Av.Prof. Lineu Prestes, 338 – Butantã, São Paulo CEP 03178-200 – São Paulo – SP

Catalogação na Publicação
Serviço de Biblioteca e Documentação
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
Maria Imaculada da Conceição – CRB-8/6409

E56 Encontro de Pesquisa na Graduação em História (6. , 2018 : São Paulo, SP).
Anais [recurso eletrônico] : VI Encontro de Pesquisa na Graduação em História, 05 a 09
de novembro de 2018 / Organização: Maria
Cristina Cortez Wissenbach, Stella Maris Scatena Franco Vilardaga, Jorge
Luís da Silva Grespan. -- São Paulo : FFLCH/USP, 2021.
19.750 Kb ; PDF.

ISBN 978-65-87621-39-5

1. História (Congressos). 2. Pesquisa acadêmica (Congressos). I.


Wissenbach, Maria Cristina Cortez. II. Vilardaga, Stella Maris Scatena
Franco. III. Grespan, Jorge Luís da Silva. IV. PET-História USP. V. Título: VI
Encontro de Pesquisa na Graduação em História.

CDD 907
Sumário
Apresentação ..................................................................................................... 10
“Adornando as Bestas”: a figuração de animais em rituais de sacrifício na
cerâmica ática do século V a.C............................................................... 13
“Era barulho o silêncio”: poesia, vácuo de censura e resistência à
ditadura militar brasileira. ..................................................................... 32
“Eu uso telefone como todo mundo usa”: o celular no cotidiano das
pessoas com deficiência visual .............................................................. 41
A construção da visão sobre os povos indígenas em Minas Gerais pelos
relatos de August Saint Hilaire.............................................................. 61
A dialética em Hegel e Marx .......................................................................... 68
A expressão de "feminilidade" na obra "Guitarrista e duas figuras
femininas" de Marie Laurencin ............................................................. 76
A figura de Napoleão Bonaparte como indivíduo histórico-universal na
Filosofia da História de Hegel ............................................................... 92
A memória do Regime Militar do MAC-USP: "Entre Atos 1964/68" e "Um
dia terá que ter terminado: 1969/1974". .............................................. 108
A Monumentalidade como forma de afirmação do poder tirânico: o caso
do Templo de Hera no governo de Polícrates de Samos ................. 125
A Praga de Justiniano Reavaliana................................................................ 142
A Primeira Visitação do Santo Ofício à capitania de Pernambuco – o
processo crime de Felícia Tourinha..................................................... 157
A questão social na perspectiva da Doutrina da Segurança Nacional de
Golbery do Couto e Silva: a miséria como vulnerabilidade e o Bem
Estar em seu limite................................................................................. 166
Populismo, um conceito em movimento. ................................................... 179
Alianças e Casamentos Interdinásticos no Antigo Oriente Próximo - a
perspectiva egípcia nos séculos XIV-XIII a.C. ................................... 188
A representação da mulher no quadro interior com figuras femininas
(1936), de André Lhote .......................................................................... 200
Antonio Gramsci na transição democrática brasileira.............................. 210
As Paston Letters: “Worship”, “good lordship” e o sistema de serviço
honroso na Inglaterra do séc. XV ........................................................ 221
Aspectos da religiosidade grega nas apoikiai da Sicília e em suas metrópoles: o
caso de Gela e Lindos ............................................................................... 235
Bioarqueologia: um processo histórico ....................................................... 252
Cartas para Nelson: resistência e memória da Ditadura Militar
Brasileira .................................................................................................. 259
Cinema e ditadura militar o Brasil: o filme como forma de resistência . 276
Crítica de arte no feminino? Uma análise da produção de Aracy de
Amaral a partir do arquivo do IEB ..................................................... 286
Diário de Bitita: Carolina, a filha da pós-abolição e a personificação da
liberdade em cárcere ............................................................................. 300
Elementos para a Unidade: a escravidão no processo de independência
(1808-1824) .............................................................................................. 309
Emigração da Europa no século XIX: el breve panorama das causas e
consequências ......................................................................................... 321
Estudos de casos de defloramento na cidade de São Paulo (1860-
1870) ......................................................................................................... 339
Compartilhamento de experiências: O projeto Memórias da Luta
Antimanicomial...................................................................................... 362
Expedição Roncador-Xingu (1943-1948): a tensão entre integrar e
preservar os indígenas do Brasil Central ........................................... 373
Imagens da Idade Média: Análise de Materiais Didáticos de História da
Rede Pública de Ensino ......................................................................... 389
Imagens em sala de aula: o uso de pinturas históricas nos livros didáticos
do 7º ano do Ensino fundamental. ...................................................... 401
Memória e Imprensa: uso e apropriações da biografia de Sebastiana de
Mello Freire ............................................................................................. 418
O sexo feminino e o Echo das Damas: a luta pela emancipação feminina na
imprensa carioca no final século XIX .................................................. 440
Os amigos do riso: Philogelos e a piada na antiguidade.......................... 450
Relações de poder, diplomacia e cultura material: o caso do Peru-EUA, suas
motivações, desafios, desdobramentos e resultados ............................... 462
Caso Volkswagen: A intensa vigilância ao trabalhador (1964-1985) ............... 473
A vida paralela vendida pelas propagandas de cigarro: uma análise da
reinvenção pessoal e do escapismo da monotonia no ato de fumar
(em São Paulo e Rio de Janeiro do século XX)................................... 489
Os Cortejos Históricos Portugueses (1940 e 1947): nacionalismo e o
aparato cultural durante o Estado Novo............................................ 500
O persa nas fontes gregas: a alteridade na tragédia Os persas de Ésquilo
e nas representações iconográficas...................................................... 514
Os heróis e a morte: histórias do mundo antigo........................................ 524
Fronteiras criminais do Nazismo: lei e moral no discurso de Konrad
Morgen .................................................................................................... 537
Inês de Castro: relatos e narrativas de vida e morte ................................. 550
Historiografia urbana no IV Centenário do Rio de Janeiro: Coleção “Rio 4
séculos” e as representações da cidade .............................................. 563
A cooperativização no regime do Khmer Vermelho (1973-1975) ........... 588
O antifeminismo e o antissufragismo em publicações das revistas
ilustradas humorísticas “O Malho” e “Careta” (1917-1932) ........... 604
O correr do relógio francês em um Marrocos imóvel: tempo e
orientalismo em Pierre Loti .................................................................. 622
O projeto franquista para a América Latina e a apropriação cultural
pinochetista ............................................................................................. 635
A contribuição da experiência internacional ao anarquismo de
Buenaventura Durruti ........................................................................... 648
Visualidade e Poder: a atuação das imagens na construção política do
Principado de Augusto ......................................................................... 661
Os embaixadores do comércio de escravos na América Portuguesa:
diplomacia entre tensões e tradições (1795-1805) ............................. 682
Os espaços-tempo no Brasil dos séculos XVIII e XIX ............................... 691
Memórias da experiência religiosa de origem africana e afro-brasileira
em Taubaté nas últimas décadas do séc. XIX e no pós-abolição .... 720
O culto de Epona em Roma: estudo de caso dos altares dedicados à Epona
pelos Equites Singulares Augusti ............................................................ 732
Sérgio Buarque de Holanda e a mudança dada a visão dos
bandeirantes em seus escritos do período de Monções à Caminhos
e Fronteiras............................................................................................... 746
Apresentação

Realizado pelos integrantes do Programa de Educação Tutorial (PET) do


curso de História da Universidade de São Paulo (USP), o Encontro de Pesquisa na

Graduação em História (EPEGH) é um evento que ocorre bienalmente, que tem como
finalidade possibilitar aos alunos da graduação um espaço para a apresentação de
seus respetivos trabalhos de pesquisa acadêmica, assim como a troca de experiência

metodológica, teórica e de relação humana entre os participantes. Ante a escassez


de espaços que possibilitem essa interação social e acadêmica entre os graduandos
em nosso curso, o EPEGH é visto por nós como uma atividade salutar para a
formação acadêmica e profissional dos envolvidos.

O Programa de Educação Tutorial é uma iniciativa do Governo Federal, que foi

oficialmente instituída pela Lei n. 11.180/2005 e regulamentada pelas Portarias


n. 3.385/2005, n. 1.632/2006 e n. 1.046/2007. Trata-se de um laboratório, composto por

um grupo de estudantes da graduação, juntamente com um tutor, que tem como


objetivo principal realizar atividades norteadas pelo princípio da indissociabilidade

entre ensino, pesquisa e extensão. A principal finalidade do PET é, sobretudo,


proporcionar aos estudantes de graduação uma formação ampla, que priorize a
autonomia de seus integrantes. Haja isso em vista, também é levado em conta que

um dos principais objetivos do PET é o de formular novas estratégias que


possibilitem o desenvolvimento e a modernização do ensino superior no país. Assim,
os estudantes que integravam o laboratório em 2006 começaram a delinear as

primeiras ideias do que posteriormente viria a ser o Encontro de Pesquisa na


Graduação em História (EPEGH), hoje em sua sexta edição.

Dentre as preocupações que presidiram a criação desse evento, podemos

destacar: a ampliação da formação para além da grade curricular; o

compartilhamento de metodologias de pesquisa entre os alunos; a expansão dos


laços entre o PET-história e o restante da comunidade universitária; e a
possibilidade de participação em um evento acadêmico. Utilizando esses princípios

10
norteadores, foi concebido um evento capaz de fornecer aos graduandos uma
experiência rica no que tange à pesquisa e ao convívio acadêmico. É pertinente
ressaltar que os resultados alcançados com a atividade foram satisfatórios, ao ponto

de mantermos uma periodicidade do evento, para que essa experiência fosse longa
e duradoura na vida universitária, como de fato tem sido.

A realização da sexta edição do evento se deu entre os dias 05 e 09 de


novembro de 2018. Contando com 27 mesas de apresentações, presididas,
preferencialmente. por mestrandos; 107 apresentações, todas de graduandos de

todo o país, estudantes ou não de História, porém todas as apresentações tiveram


ligação com a disciplina histórica.

Desse modo, foi dada aos alunos que apresentaram seus trabalhos a
oportunidade de manter registro dessa mesma apresentação por meio desta

publicação. Essa oportunidade se mostra valiosa uma vez que são poucas as
oportunidades de publicação de trabalhos para alunos de graduação.

A equipe PET História agradece mais uma vez as experiências recebidas

durante o evento e todo o processo de criação deste material. O compartilhamento


de pesquisas é um espaço importante não só para conhecer novos temas, mas

também para ter uma visão das pesquisas atuais de História.

Por fim, o sucesso em realizar essa última edição, contudo, só foi possível em
virtude do apoio que nos foi concedido por diferentes pessoas e entidades.

Agradecemos, primeiramente aos nossos três tutores que nos acompanharam nesses
dois anos desde o planejamento do evento até o lançamento dos Anais: Profa. Dra.
Maria Cristina Cortez Wissenbach; Profa. Dra. Stella Maris Scatena Franco e Prof.

Dr. Jorge Luís da Silva Grespan. Somos também imensamente gratos a todos os
estudantes de graduação, da USP e de outras instituições, que apresentaram seus

trabalhos e tornaram possível a realização daquilo que o Encontro se propõe a ser:


um espaço para que essas pessoas estabeleçam interações e trocas das suas
pesquisas, o que é fundamental para a formação acadêmica das humanidades como

um todo. É importante também agradecer aos nossos colegas que já não mais são

11 VI EPEGH
bolsistas do Programa, cuja participação foi crucial para a organização e a realização
do evento. Aos alunos da pós-graduação, já mencionados anteriormente,
agradecemos por terem aceitado os convites de desempenhar o papel de mediadores

nos debates. Agradecemos também ao Departamento de História, ao CAHIS que


foi um grande parceiro nessa edição do evento. E, por fim, aos servidores da nossa

faculdade que, devido a sua atenção e dedicação, foram um suporte imprescindível


para a construção desse espaço.

Esperamos que tenham uma boa leitura e que possam aproveitar os artigos

aqui reunidos, assim como nós aproveitamos a oportunidade de organizá-los.

Bolsistas do Programa de Educação Tutorial da História-USP

12
“Adornando as Bestas”: a figuração de animais em rituais de
sacrifício na cerâmica ática do século V a.C.

ERIK DE LIMA CORREIA1

RESUMO: Este trabalho tem como objetivo entender o ritual de sacrifício animal
na perspectiva dos artesãos que produziam vasos de cerâmica áticos no século V
a.C., por meio da forma como eles figuravam animais. Muitas cenas deste tipo de
ritual foram figuradas em vasos cerâmicos por artesãos da região da Ática, mas a
bibliografia não é consistente quanto aos animais que nelas estavam presentes.
Nesse sentido, pretende-se analisar os animais escolhidos, como eram figurados e
também a forma de interação destes com outros elementos presentes nas cenas nos
vasos de cerâmica pintados.
PALAVRAS-CHAVE: Ritual de sacrifício animal; Figuração de animais; Vasos de
cerâmica áticos.

1 Graduação em História pela UNIFESP – EFLCH. Bolsista de Iniciação Científica PIBIC/CNPQ.

13 VI EPEGH
1. INTRODUÇÃO
Este trabalho tem como objetivo entender o ritual de sacrifício animal por
meio da perspectiva dos artesãos que produziam vasos de cerâmica pintados na
região da Ática no século V a.C. A figuração de animais será o principal meio para
compreender essa perspectiva, tendo em vista a inconsistência na bibliografia
frente não só às cenas da fase de “pré-sacrifício”, mas também quanto aos animais
presentes nelas no quesito da escolha dos mesmos, da forma de figuração e da
interação com os demais elementos da cena. Durante muito tempo, vasos cerâmicos
gregos que possuem cenas figurando o contexto mítico em sua estrutura receberam
muita atenção pelos estudiosos da área de estudos sobre a cerâmica antiga. No
entanto, em resposta a esse foco dominante em cenas míticas, nos últimos anos tem
aumentado a atenção dos estudiosos para cenas que figuram o cotidiano dos gregos
antigos (BUNDRICK, 2008: 283). Podemos dizer que o contexto ritual também faz
parte desse cotidiano figurado e muitos artesãos, principalmente os do século V
a.C., produziram inúmeros vasos com cenas de culto, inclusive de cenas que
figuram o ritual de sacrifício de animais.

1.1. O ritual de sacrifício animal


Para os gregos e romanos antigos, o sacrifício animal era o principal meio de
comunicação com a esfera divina. Em sua essência, esse tipo de ritual se
apresentava como uma forma de agradar aos deuses e de pedir por seus favores
e/ou algum tipo de ajuda para apaziguar a ira de alguma entidade (EKROTH, 2014:
324).
Para os gregos antigos, no entanto, haviam duas formas distintas de
sacrifício de animais: as thysia, que eram sacrifícios em que apenas uma pequena
parte do animal era oferecida aos deuses (JAMESON, 2014: 199), normalmente a
cauda, o fêmur ou a gordura, enquanto o resto era consumido por quem participava
(EKROTH, 2014: 325-7); e as sphagia, um tipo de sacrifício em que não havia a
consumação, mas sim a destruição da vítima por completo (BURKERT, 1985: 54),
além de serem menos frequentes (EKROTH, 2014: 327). As thysia normalmente
estavam ligadas à alguma festividade que ocorria dentro da cidade ou no ambiente
privado. No público, eram sempre precedidas por uma procissão em que o cortejo,

ERIK DE LIMA CORREIA 14


que se localizava fora dos limites da cidade, vinha ao encontro do santuário do deus
ou herói para qual a festividade estava sendo oferecida. Um contexto com música,
dança e interação entre os cidadãos era sempre primordial para a execução do rito
(EKROTH, 2014: 325-7). Quanto às sphagia, seus objetivos estavam relacionados
com a purificação, a divinação, o culto aos mortos, etc (BURKERT, 1985: 54).

1.2. Os vasos de cerâmica áticos


Os vasos de cerâmica áticos são vestígios importantes da cultura material
daquela sociedade2. Há inúmeros tipos de vasos cerâmicos, diferenciados seja por
seu formato, função, cronologia ou por estilo de produção. No entanto, me aterei
aqui a dois tipos principais de estilos, muito presentes no período que esse estudo
trata: a estilo de figuras negras e a estilo de figuras vermelhas.
O vaso de cerâmica ático associado com as figuras negras e figuras
vermelhas era feito de argila rica em ferro que era queimada no forno até obter
uma cor alaranjada. O verniz era preparado com a mesma argila e de forma
diversificada. Pintores do estilo de figuras negras esboçavam a cena, preenchiam
a figura com verniz e entalhavam detalhes com um instrumento afiado; pintores
do estilo de figuras vermelhas contornavam seus esboços, adicionavam linhas
interiores e preenchiam o plano de fundo com verniz negro, mantendo as figuras
com a mesma coloração alaranjada da argila após a queima (MANNACK, 2012:
46).
O estilo de figuras negras pode ser definido da seguinte forma: figuras,
podendo ser animais ou humanas, pintadas em silhueta negra, com seus detalhes
entalhados com um buril e, em alguns casos, eram adicionados pigmentos rubro
avermelhados ou brancos (MANNACK, 212: 47). Já nas especificidades do estilo de
figuras vermelhas, ao contrário das do estilo de figuras negras, era seu plano de
fundo que era preenchido com uma coloração negra. As figuras presentes, os
objetos, os humanos, os animais, etc., ficavam da cor alaranjada e as linhas eram

2 Trato nesta pesquisa com as Cerâmicas Áticas (provenientes da região de mesmo nome) devido ao
seu número substancial tanto de peças, quanto das cenas de sacrifício que são estudadas neste
trabalho.

15 VI EPEGH
criadas com um pincel ao invés de um buril e por vezes ganhavam detalhes
pintados com verniz negro (COOK, 1997: 155).
Muitos vasos com cenas figurando o ritual de sacrifício animal foram
produzidos durante o século V a.C. Van Straten, em seu livro Hiera Kala: images
of animal sacrifice in Archaic and Classical Greece, apresenta um enorme catálogo
tanto de figurações de vasos de cerâmica quanto de relevos votivos relacionados ao
ritual. O estudioso, ao tratar dos vasos pintados, separa as cenas em três fases
distintas3: a fase de “pré-sacrifício”, que mostra animais vivos e inteiros em
variadas cenas do ritual; a fase de “sacrifício”, que mostra o animal sendo abatido;
e a fase de “pós-sacrifício”, onde não é mais possível identificar o animal na cena
(VAN STRATEN, 1995: 09-10). Para essa pesquisa, portanto, centralizarei apenas
em cenas de “pré-sacrifício”, e o foco será nos animais que estão figurados nelas,
tendo em mente que a bibliografia não é consistente em relação aos animais
escolhidos pelos artesãos, como estão figurados e como interagem com outros
elementos presentes nas cenas. A compreensão desses elementos se torna
importante para entender a perspectiva dos artesãos áticos do século V a.C. em
relação aos rituais de sacrifício animal.
As fases iniciais do ritual são bastante frequentes, demonstrando desde
figurações ricas em detalhes até imagens um pouco mais sintetizadas em que é
possível ver apenas o animal e algum condutor (Ibdem: 13). As cenas dessa fase
também podem ser divididas em duas formas: cenas em que há uma procissão
sacrificial (pompe4) e cenas em que rituais preliminares são realizados diante de
um altar (archestai5) (Idem). Mesmo que o foco da pesquisa seja a figuração de
animais, entender o que eram as procissões e também quais eram esses rituais
preliminares é fundamental para mapear elementos que estavam presentes no
cotidiano ritualístico na Antiguidade.
O livro de Van Straten, mesmo que ofereça riqueza de detalhes e explicações
ao tratar das figurações vasculares, aborda o assunto da escolha dos animais de

3 Uso aqui os termos “pré-sacrifício”, “sacrifício” e “pós-sacrifício”, tendo em mente que no original,
o autor utiliza-se das expressões “pre-killing”, “the killing” e “post-killing”.
4 Autores, como Walter Burkert (1985), usam os termos originais, pompe ou pompei.
5 Termo original utilizado por Gebauer (2002); mas também há o termo katarchestai, utilizado por

Ekroth (2014).

ERIK DE LIMA CORREIA 16


forma um pouco sintética. O pesquisador explica que essas escolhas podem estar
ligadas à presença de um gosto estilístico de um mercado e que os artesãos queriam
figurar sacrifícios que demonstravam sinais de riqueza e suntuosidade,
principalmente quando relacionadas às figurações de procissões (Ibdem: 179). Um
bom exemplo é o fato dos artesãos figurarem, na maioria das vezes, animais
bovinos, que são mais caros6. No entanto, isso deixa um impasse em relação à
figuração de outros tipos de animais nas cenas, como carneiros, bodes e porcos.
Vários tipos de animais eram sacrificados em cultos: touros, vacas, bezerros,
carneiros, ovelhas, bodes, cabras, porcos e leitões. Os animais bovinos,
principalmente o touro, eram considerados os mais nobres para o sacrifício
(BURKERT, 1985: 51). Por outro lado, os carneiros eram os mais comuns, seguidos
pelos bodes e pelos porcos (Idem). Em relação aos preços, claramente era possível
perceber que, pelo seu tamanho, por sua forma de criação e por sua “nobreza”, os
bovinos eram os mais caros, seguidos pelos porcos, carneiros, bodes, e por último,
pelos leitões, que eram muito mais baratos (VAN STRATEN, 1996: 175;
JAMESON, 2014: 209)7.

2. ANÁLISE DOCUMENTAL
Como poderíamos analisar essas figurações? Antes de tudo, os artesãos não
estavam preocupados com elementos técnicos do processo ritualístico, mas sim em
mostrar os elementos que eram mais importantes no ritual, tanto em termos de
estética quanto de simbolismo. A figuração do ritual era uma referência recorrente
do que deveria ser feito (LISSARRAGUE, 2012: 566). Nessa perspectiva, é
impensável deixar de questionar o que o artesão procurava figurar de mais
importante; os animais figurados podem entrar nesse contexto.
Para analisar as figurações, propõem-se três pontos a serem levados em
consideração: a cena e seu contexto; o animal como um todo; e a interação deste

6 Jameson (2014: 29), assim como Van Straten (1995) trazem tabelas de preços de vários animais
usados para o sacrifício.
7 Animais bovinos adultos custavam de 40 a 90 dracmas; animais ovinos e caprinos adultos

custavam de 10 a 17 dracmas; porcos custavam de 20 a 40 dracmas; por fim, os leitões que poderiam
custar até 3 dracmas.

17 VI EPEGH
com outros elementos presentes na cena. Como ressaltado acima, os dois tipos de
cenas, as procissões e os rituais preliminares no altar, devem ser levados em conta
frente a escolha do animal. Para isso, analisar a cena como um todo é fundamental
para contextualizar o animal. Em seguida, deve ser feita a descrição do tipo do
animal e de toda sua anatomia, sexo, como ele foi e/ou está figurado na cena,
tomando também como foco suas posições na cena, tendo como pressuposto que
uma imagem é um lugar, um espaço onde sinais ocorrem, posicionados de acordo
com os critérios espaciais – esquerda/direita, alto/baixo, na frente ou atrás
(DURAND, 1989: 120). Por fim, é preciso entender como o animal está interagindo
com os outros elementos da cena. Para tal, é importante descrever os gestos, os
movimentos das figuras humanas e dos animais, os objetos presentes na cena e que
tenham relação com os animais, assim como o ritual de sacrifício. Torna-se
extremamente relevante observar, por exemplo, se há uma corda no animal, se há
adornos, etc.
A primeira cena (Imagem 1), datada entre 500 e 450 a.C., é um lécito de
figuras negras e no vaso há a figuração de uma cena de procissão sacrificial. Da
esquerda para direita, a cena possui quatro figuras, sendo três figuras femininas e
uma figura animal. As figuras femininas estão de quíton e himation longo, com
cabelos presos e aparentam estar dançando. Provavelmente são Mênades em
contexto de uma procissão dionisíaca. Na cena podemos ver ramos de hera, muito
comum em cenas de figuras negras, principalmente as arcaicas (VAN STRATEN,
1995). As Mênades ocupam grande parte da cena, e parece que o foco está nelas.
No entanto, volto minha atenção para o animal. O mesmo é do tipo bovino,
mas como não é possível perceber seu sexo devido à sua disposição na cena (no
centro, atrás de uma Mênade), não posso afirmar se é um touro ou uma vaca. O
animal está voltado para a direção direita. Da cabeça à cauda: o animal possui
chifres, sua cabeça é grande e possui focinho, e há detalhes na feição do mesmo,
como olhos e orelhas. Há detalhes também bem definidos, destacando alguns
elementos como o ombro e pescoço. Sua cauda é longa, com ponta, e bem
característica do tipo do animal. O mesmo aparenta estar em movimento devido à
posição de seus membros dianteiros e não possui adornos. Aparentemente não há

ERIK DE LIMA CORREIA 18


uma reação direta entre as outras figuras e o animal. Ele anda como se estivesse
sozinho, sem ninguém o guiando ou manipulando.
A segunda cena (Imagem 2) é um pouco diferente. Datada do mesmo período,
a peça é um Estamno de figuras vermelhas. A cena figurada é o que chamamos de
“cena de ritual preliminar diante de um altar”, ou archestai; o intrigante é que não
há altar na cena, mas, a partir dos outros elementos, pode-se afirmar que a mesma
pode corresponder a esse momento. A cena possui quatro figuras: da esquerda para
a direita, uma figura masculina barbada, olhando para a esquerda, com seu braço
direito à frente e com seu braço esquerdo, levantado acima, segura uma flauta
dupla, aulos que provavelmente faz parte de um contexto musical, sendo a música
um elemento essencial para os diversos tipos de culto grego, incluindo sacrifícios
(CERQUEIRA, 2001: 81). Em seguida, há uma figura masculina, sem barba e
usando quíton curto, segurando firme o chifre de um animal do tipo bovino, sendo
este o manipulador do animal, distinguível por suas vestes (VAN STRATEN, 1995:
14). Abaixo do pescoço do animal há um objeto que aparenta ser uma bacia larga,
que pode ser um sphageion, objeto utilizado para recolher do animal seu sangue
que seria utilizado para outras finalidades depois do sacrifício (EKROTH, 2014:
325). Logo em seguida vemos o animal propriamente dito. Perto do tronco do
mesmo há uma figura masculina, barbada, usando quíton e himation, fazendo um
sinal com a mão direita em direção ao efebo. Em sua mão esquerda há um cajado
que encosta no chão. Provavelmente este homem barbado é um sacerdote, um
hiereus. A imagem não está muito clara por conta de detalhes danificados na fi-
guração.
Ao descrever o animal, pode-se afirmar claramente que é do tipo bovino. Do
focinho à cauda, o mesmo possui um chifre, que está sendo segurado pelo
manipulador, uma feição e um focinho bovino, com olhos e orelha características
da espécie. Seu pescoço é bem grande e há detalhes nos ombros do animal em
relação aos seus membros dianteiros. Os mesmos estão bem detalhados, mostrando
a separação dos cascos. Logo em seguida não é possível perceber muito bem a parte
do resto do tronco do animal, devido a figuração vascular estar um pouco
danificada. É possível perceber apenas um pedaço, mas não é possível definir o sexo
do animal por não ser possível ver, na cena, genitálias ou mamas. Os membros

19 VI EPEGH
traseiros estão bem detalhados e há detalhes dos ossos e do casco da besta. Uma
parte de sua cauda é perceptível logo no final, também sendo bastante
característica do tipo do animal. Devido à posição de suas patas e do contexto da
cena, a figura não sugere movi- mento. O sinal que restringe o animal que pode ser
visto é o fato do efebo estar segurando os chifres do mesmo; esse seria o sinal de
interação e reação do animal com os outros elementos da cena, sendo apresentada
aqui, também, a força do efebo.
Na terceira cena (Imagem 3) há um grande diferencial. A figuração se
encontra em uma cratera em sino de figuras vermelhas, datada entre 475-450 a.C.
Na cena são perceptíveis seis figuras vivas, sendo cinco em forma humana e uma
em forma animal. Da esquerda para direita temos um efebo com uma coroa de
louros, quíton e himation tocando flauta, novamente em um contexto musical. Em
seguida, um efebo assistente, o manipulador do animal, que está se ajustando para
segurar a besta pelo pescoço. O jovem também possui uma coroa de louros. Em
seguida há o que aparenta ser um sacerdote, homem barbado, usando quíton e
himation e em sua cabeça usa coroas de louros e está lavando as mãos numa bacia
de água lustral, o chérnips, que é um tipo de bacia com água trazida pelo assistente
para que o sacerdote lave suas mãos antes do sacrifício. Em seguida temos outro
efebo com coroa de louros e com quíton e himation. O mesmo se ocupa segurando
dois objetos: o primeiro é uma bacia de água lustral, chérnips, definida
anteriormente; com a mão direita segura o que a princípio aparenta ser uma
pátera, objeto utilizado no ritual para libações. Há na cena, também, uma figura
entronada que a princípio aparenta ser o deus Apolo devido a seus atributos
principais: ser efebo e estar segurando com o braço esquerdo um cajado de louros.
Outros elementos na cena podem identificar o deus, como a trípode délfica, por
exemplo (cf. LARSON, 2007: Cap. 07).
Em relação ao animal presente na cena, devido a imagem não estar muito
boa, o mesmo aparenta ser do tipo caprino, ou seja, um bode. A anatomia acaba
sendo um pouco difícil de caracterizar. No focinho percebe-se a presença de uma
barbicha. Outro ponto importante são os chifres. Não tem como perceber o chifre
totalmente, apenas um detalhe e o mesmo aparenta estar se projetando em direção
oposta à sua cabeça. Carneiros tem o chifre muito curvado e, quando crescem, ficam

ERIK DE LIMA CORREIA 20


evidentes em uma curva fechada, como uma espiral, ao contrário dos bodes. Na
maioria das vezes os chifres de bodes nascem para fora numa curvatura não tão
evidente, em formato de arco. Por fim, o rabo do animal aparenta ser muito curto,
outra característica caprina. O animal aparenta ter um tamanho proporcional de
bode e está sendo segurado pelo pescoço pelo efebo, sendo mostrado aqui um sinal
de restrição. O animal está parado devido ao contexto da cena. Por fim, não é
possível ver genitálias nem mamas no animal, mas seu sexo pode ser distingui- do
através das características de bode já citadas. A interação do animal está
diretamente interligada ao efebo assistente.
A figuração vascular a seguir (Imagem 4) possui em sua composição duas
cenas de ritual de sacrifício, uma em cada lado. Ambas as figurações sem
encontram numa taça em figuras vermelhas, datada entre 475-450 a.C. Esse
material se distingue dos anteriores por se apresentar em duas cenas do ritual de
sacrifício, parecidas em contexto, mas com animais diferentes.
A primeira cena aparentemente é uma cena de uma transição entre a pompe
e a archetai sendo que a mesma não possui um altar. A cena possui três figuras,
sendo duas humanas e um animal. Da esquerda para direita vemos a primeira
figura que, pelas suas vestes e sua forma, aparenta ser um sacerdote: homem com
quíton e himation, cajado, barbado, faz um gesto de “recebimento” em direção ao
animal.
A segunda figura humana aparenta ser um assistente: um efebo, com quíton
curto. Com sua mão esquerda segura um cesto sacrificial, ou kanoun, elemento
presente tanto em cenas de pompe como cenas de archestai. Com seu braço direito
instrui o animal a ir em direção do sacerdote. Se há algum objeto nessa mão não é
possível ver, pois esta parte está um pouco danificada. Por fim, há o animal indo
em direção ao sacerdote. Na cena é possível ver, também, pilares jônicos que podem
representar estruturas de um templo.
O animal presente nesta primeira cena possui características ovinas. Chifre
de carneiro, corpo de carneiro e cauda longa. Seu chifre é curvado, quase numa
espiral. É possível perceber a genitália do animal, assim como seu saco escrotal,
sendo assim um macho. A proporção do animal é grande, em relação a outros
carneiros que aparecem em outras cenas. Pode-se interpretar que o artesão não se

21 VI EPEGH
preocupou tanto com a proporcionalidade nesse caso, ou que outros artesãos que
figuram carneiros menores estejam preocupados em trazer um ponto importante
que ocorria na realidade do ritual: muitos animais eram sacrificados
razoavelmente jovens (JAMESON, 2014: 217-8; EKROTH, 2014: 334).
A segunda cena é similar a anterior: Uma cena de pompe para archestai,
com três figuras, sendo duas humanas e outra animal. Da esquerda para direita
temos uma figura que aparenta ser um sacerdote. O mesmo usa quíton e himation
e segura em suas mãos ramos: na esquerda ramos de louro e na direita o que
aparenta ser uma coroa de louros, ou fitas, possivelmente para adornar a besta. A
segunda figura é um efebo com quíton curto e segura uma corda. Essa corda, que
prende o animal aparentemente é a interação entre ambos, assim como um sinal
de restrição. O efebo segura, com a mão esquerda, a corda e aponta com o braço
direito em direção ao sacerdote. O animal é do tipo bovino e usa adornos em seus
chifres. No resto da cena é possível ver pilares jônicos representando estruturas de
um templo, assim como na anterior.
O animal desta segunda cena é do tipo bovino. Da cabeça à cauda, é possível
ver seus chifres, e alguns detalhes que parecem ser adornos. Sua cabeça está
abaixada, o que muitos pesquisadores tendem a explicar como forma de acepção do
animal para seu sacrifício (cf. VAN STRATEN, 1995; BURKERT, 1985;
BURKERT, 1983). Há uma corda em seus chifres sendo segurada pela figura
humana, que demonstra, assim, um sinal de restrição e interação do animal com o
assistente. Suas orelhas são bem grandes e estão baixas. É um animal bem
musculoso e rígido, de pescoço grande, sendo assim um animal de grande porte. É
possível ver os detalhes dos ombros do animal. Outro ponto a se destacar é o fato
do animal estar em movimento, como o anterior, indo em direção a seu destino. O
animal está muito bem centralizado na cena, sendo possível ver todo o seu corpo.
Há detalhes perceptíveis de suas costelas. A cauda do mesmo é grande e
característica de um animal bovino. É possível ver suas genitálias e seu saco
escrotal, sinalizando ser um macho. Sendo assim, o animal é claramente um touro
pronto para seu sacrifício.

ERIK DE LIMA CORREIA 22


3. CONCLUSÕES PARCIAIS
Devido ao trabalho estar ainda em curso, serão apresentadas aqui algumas
conclusões parciais referentes às cenas que foram apresentadas acima. O foco deste
trabalho está relacionado com a inconsistência da bibliografia que está envolvida
com a temática. Muitas vezes este tipo de cena é trabalhado de forma genérica sem
levar em conta outros fatores. Este trabalho propôs entender os critérios de escolha
dos animais nas figurações, assim como são figurados e suas interações com outros
elementos nas cenas.

3.1. Escolha dos animais


Muitos pesquisadores tendem a afirmar que certos elementos presentes nas
cenas estão relacionados com questões genéricas. É perceptível que, na realidade,
a economia influenciava na escolha dos animais nos rituais, além de outros
elementos como tipos de culto, a cidade, etc; (GEOGOURDI, 2010: 99-100;
EKROTH, 2014: 331). No entanto, quando tratamos das figurações, essa questão
se torna evidente em relação aos gostos de uma clientela, de um mercado local e de
artesões, mas neste trabalho focaremos neste último. Normalmente, pinturas
vasculares tem em sua maioria animais bovinos sendo figurados, diferente de
calendários sacrificiais que mostram um grande número de animais dos tipos
ovinos e caprinos (VAN STRATEN, 1995: 175; EKROTH, 2014: 333). Se tomarmos
os calendários como uma clara representação real dos rituais, tendo em mente que
eles fazem parte das leis sagradas e normas de culto (cf. LUPU, 2009), vemos que
esses tipos de animais eram sacrificados mais do que animais bovinos, tendo em
vista a distinção de seus preços.
Nesse sentido, o que levava o artesão a escolher determinado animal para
figurar? Como ressaltado acima, cenas com animais bovinos são maioria, mas
outros animais também são figurados, como carneiros, bodes e porcos. Van Straten
explica que bovinos são figurados devido a sua suntuosidade e nobreza. O artesão
possivelmente queria passar a nobreza de um ritual rico e festivo (VAN STRATEN,
1995: 179), no entanto essa afirmação pode ser usada para explicar a alta
densidade de figurações com animais bovinos, apenas. O que proponho aqui é que,
para os outros tipos de animais como ovinos, caprinos e suínos, o fato de serem

23 VI EPEGH
escolhidos pode estar ligado ao gosto do artesão ou oficina, além de aspectos mais
profundos do culto. Tomo como exemplo a Imagem 3, apresentada anteriormente,
que mostra a cena de um bode pronto para ser sacrificado e na mesma cena temos
um deus, nesse caso Apolo, figurado. Interpreto aqui a intenção do artesão de
mostrar um aspecto do culto de Apolo com um pouco mais de profundidade. Mesmo
que a escolha dos animais para certos deuses ainda seja um grande debate,
inscrições afirmam que deuses como Apolo favoreciam em seu culto muitas vezes
animais do tipo caprino (RICHTER, 1972: 426-7, apud JAMESON, 2014: 215).

3.2. Forma dos Animais


Além da escolha, a forma como os animais são figurados é importante para
entender as intenções dos artesãos. Compreendo aqui como forma de figuração a
anatomia do animal, disposição do animal e outros detalhes como adornos e sexo.
Algumas figurações são sintéticas em relação à forma do animal, e os artesãos dão
ênfase a outros elementos da cena. Isso pode depender diretamente do objetivo do
artesão e o contexto da cena. Como pode ser visto da Imagem 1, o animal está com
belos detalhes, mas a disposição do mesmo na cena é uma característica
secundária. O foco do artesão nessa cena era destacar as Mênades e o contexto
dionisíaco e o animal entra no segundo plano. Uma cena que mostra o animal com
clara evidência, mesmo danificada, é a Imagem 2, deixando em evidência um
animal de grande porte, possivelmente um touro, sendo segurado por um
assistente. O sacerdote presente na cena está atrás da figura do touro e, com isso,
percebe-se que nessa cena o artesão buscou destacar o animal, seus detalhes e suas
funções no ritual.
Outros elementos a serem destacados são os contextos da cena em relação à
ideia de movimento do animal na mesma, assim como sua anatomia e sexo.
Normalmente animais sendo figurados em cenas de procissões (pompe) aparentam
estar em movimento, seguindo o cortejo junto aos outros participantes. Em relação
a cenas de rituais preliminares no altar (archestai), os animais costumam estar
parados, esperando pelo seu sacrifício. Em algumas poucas cenas, os artesãos
buscaram, provavelmente, expressar uma ideia de movimento, objetivando figurar
a transição do fim de uma cena de pompe e o início de uma cena de archestai, como

ERIK DE LIMA CORREIA 24


podem ser vistas em ambas as cenas da Imagem 4. Em relação a anatomia, muitas
vezes alguns artesãos exageravam as pro- porções do animal, como no caso de um
carneiro na primeira cena da Imagem 4. Contudo, em outros casos, alguns detalhes
são bem definidos, mostrando alguns elementos presentes no corpo do animal com
certa fidedignidade com o paralelo biológico, como no caso do bode na Imagem 3 e
do touro na segunda cena da Imagem 4.
Por fim, o sexo do animal é um aspecto interessante a ser levado em conta.
Em algumas figurações danificadas, pode haver a dificuldade de identificar o sexo
do animal, como na Imagem 1 e na Imagem 2, apenas sendo propostas algumas
suposições. O animal bovino na Imagem 1 pode ser um touro, tendo em vista que a
cena é claramente um contexto de procissão dionisíaca, sendo Dioniso um deus
masculino, pode-se supor que o animal seja do mesmo sexo, tendo em mente que,
na maioria das vezes, o sexo do animal sacrificado era o mesmo de seu deus
receptáculo (EKROTH, 2014: 333). Diferente das Imagens 1 e 2, nas Imagens 3 e 4
já é possível perceber, as vezes que sutilmente, o sexo do animal, tendo em vista
que ambas as cenas os artesãos se preocuparam em detalhar os órgãos sexuais dos
animais.

3.3. Interação com os animais


Ao tratar das interações dos animais, as ações de figuras humanas assim
como objetos relacionados ao culto devem ser levadas em consideração. Em muitas
cenas são perceptíveis ações e objetos que promovem uma interação entre o animal
e os outros elementos, enquanto outras cenas não. Na Imagem 1 é perceptível a
falta de destaque do animal; mas mais ainda, é o quão o artesão não se preocupou
em promover uma interação mais profunda entre o animal e os outros elementos
da cena. Isso tem a ver muito com seu objetivo, tendo em vista que provavelmente
ele queria destacar a procissão dionisíaca e a dança das Mênades.
Nas demais cenas, já é possível ver diferenças nos objetivos dos artesãos. Na
Imagem 2 é clara a interação entre o assistente e o touro, tendo em vista que o
efebo segura os chifres do touro com força. O animal na cena ganha mais destaque
devido ao objetivo central do artesão, que é mostrar a força do efebo (cf.
LISSARRAGUE, 2012). Na Imagem 3, temos outro efebo segurando, agora, um

25 VI EPEGH
bode pelo pescoço, outro elemento que indica um sinal de restrição do animal por
meio da ação de outro elemento da cena. Outro sinal de restrição do animal, agora
como um objeto, se encontra na segunda cena da Imagem 4. Na mesma, atada aos
chifres do animal, pode ser vista uma corda que é puxada pelo assistente do ritual.
Algumas outras figurações mostram muitas vezes esse elemento, sendo perceptível
a intenção do artesão de mostrar outras características desse sinal de restrição.
Enquanto que na Imagem 1, o animal ia para seu sacrifício sozinho, onde o
artesão não teve a intenção ou preocupação de sinalizar elementos restringindo o
animal, nas demais figuras podem ser vistos esses sinais. Van Straten (1995: 100-
1) ressalta que, diferentemente da tradição literária, em que aparentemente os
animais iam por livre vontade ao seu sacrifício, na maioria das cenas de cerâmicas
pintadas esses detalhes de restrição animal eram mais perceptíveis.
Por fim, considerando que estas são propostas parciais, é importante notar
que muitos elementos devem ser levados em conta nas cenas de rituais de sacrifício
em que aparecem animais figurados. Muitos destes elementos ganham pouco
destaque em outras bibliografias que tratam do assunto. Analisar estes animais
figurados é entender, mais profundamente, estes últimos como importantes
elementos presentes neste tipo de prática, sendo assim possível esboçar o
significado do ritual de sacrifício animal para os artesãos que figuravam estes tipos
de cena em vasos de cerâmica áticos.

ERIK DE LIMA CORREIA 26


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Classical Athens. Hesperia: The Journal of the American School of Classical Studies at
Athens, Vol. 77, No. 2 (Apr-Jun., 2008), pp. 283-334.

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American School of Classical Studies at Athens, Vol. 83, No. 4 (October- December 2014),
pp. 653-708.

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Ritual and Myth. Translated by Peter Bing. California: University of California Press,
1983.

. Greek Religion: archaic and classical. United Kingdom: Blackwell


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COOK, R.M. Greek Painted Pottery. 3rd Edition. Oxford: Routledge, 1997.

CERQUEIRA, F.V. Música e culto religioso. Estudo do acompanhamento musical das


procissões e sacrifícios atenienses. Clássica (São Paulo), São Paulo/SP, v. 13/14, p. 81-100,
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EKROTH, Gunnel. Animal Sacrifice in Antiquity. In: CAMPBELL, Gordon L. (Ed.).


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GEORGOUDI, Stella. Sacrificing to the Gods: Ancient evidence and Modern


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JAMESON, Michael H. Sacrifice and Animal Husbandry in Ancient Greece. In:


JAMENSON, Michael. Cults and Rites in Ancient Greece: essays of Religion and Society.
Cambridge: Cambridge University Press, 2014.

LARSON, Jennifer. Ancient Greek cults: a guide. New York: Routledge, 2007.

27 VI EPEGH
LISSARRAGUE, François. Figuring Religious Ritual. In: SMITH, Tyler J.;
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MANNACK, Thomas. Greek Decorated Pottery I: Athenian Vase-painting. In:


SMITH, Tyler J.; PLANTZOS, Dimitris (Eds.). A Companion to Greek Art. United
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University Press, 2006. p. 123- 182.

ERIK DE LIMA CORREIA 28


LISTA DE IMAGENS

Imagem 1: Cena de sacrifício: procissão sacrificial. Lécito em figuras negras,


atribuído ao Pintor de Diosphos, proveniência desconhecida. c. 500-450 a.C.
Metropolitan Museum, New York (NY), 41.162.255. Fonte:
<https://www.beazley.ox.ac.uk/xdb/ASP/recordDetails.asp?recordCount=8&start=
0

Imagem 2: Cena de sacrifício. Estamno em figuras vermelhas, atribuído ao Pintor


de Eucarides, proveniência desconhecida. c. 500-450. Musee du Louvre, Paris,

29 VI EPEGH
CP10754. Fonte:
https://www.beazley.ox.ac.uk/XDB/ASP/recordDetailsLarge.asp?recordCount=1&i
d={CA9F09DD-A08A-4DA6-814E
5F862291CDC9}&fileName=IMAGES100%2F202%2F202233%2EB2%2F&return
Page=&start=0

Imagem 3: Cena de sacrifício. Cratera em sino em figuras vermelhas, sem


atribuição de autoria, proveniente de Agrigento, Sicília. c. 475-450 a.C. Museo
Archeologico Regionale, Agrigento, 4688. Fonte:
<https://www.beazley.ox.ac.uk/XDB/ASP/recordDetails.asp?recordCount=2&start
=0>

ERIK DE LIMA CORREIA 30


Imagem 4: Cena de sacrifício. Taça em figuras vermelhas, atribuída ao Pintor de
Veios, proveniência desconhecida. c. 475-450. Museo Gregoriano Etrusco, Vatican
City, 16508. Fonte:
<https://www.beazley.ox.ac.uk/XDB/ASP/recordDetails.asp?recordCount=1&start
=0>

31 VI EPEGH
“Era barulho o silêncio”: poesia, vácuo de censura e
resistência à ditadura militar brasileira.

MARCUS VINICIUS DOS SANTOS CARDOSO1

RESUMO: Utilizando a obra Dentro da noite veloz, do poeta maranhense Ferreira


Gullar, publicada no ano de 1975, como documento histórico, pretende-se
estabelecer um diálogo entre poesia, resistência e censura, visando compreender a
forma como o eu-lírico do poema se posiciona perante o regime militar em voga no
momento. Após a investigação dos poemas, aplicando uma base teórica calcada no
entrelaçamento entre literatura e história, buscou-se compreender o
funcionamento da Censura Federal, visando observar a reação oficial contra a
resistência: como se deu a censura a livros durante a ditadura militar? Tentando
responder essa questão, e pelo fato da inexistência de documentos censórios contra
o livro de Ferreira Gullar, busca-se, através da análise de dossiês censórios contra
uma peça de teatro homônima ao livro, em que seu enredo consistia na leitura dos
poemas de Dentro da noite veloz. Ao fim, busca-se interpretar a relação de Ferreira
Gullar com o vácuo de censura existente e constatado com o estudo apresentado, e
a utilização desse ponto-cego da Censura Federal como meio para desmontar o
discurso ufanista difundido pelo governo militar entre 1964 e 1985.
PALAVRAS-CHAVE: Poesia; Censura; Resistência; Gullar; Ditadura.

1Licenciado e Bacharel em História pelo Centro Universitário Fundação Santo André, mestrando
pelo Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade de São Paulo.
marcuscardoso@usp.br

MARCUS VINICIUS DOS SANTOS CARDOSO 32


[...] E era interessante que isso acontece na área da poesia, por que a
poesia, qual censor vai se preocupar com a poesia? Tem mais o que fazer.
Tem o cinema que é uma arte... [não conclui], tem a televisão, que forma
opinião, tem o teatro que mobiliza, que é uma arte pública. E vai pensar
em poeta? Poeta não vai mexer com nada. Então a poesia ficou a salvo da
censura e “tchum”: quando você viu, explodiu. [...] (HOLLANDA, 2014)

Partindo desta fala de Heloísa Buarque de Hollanda, estruturou-se toda


uma problemática envolvendo poesia, resistência e censura, do qual foi parida a
monografia de conclusão do curso intitulada Existências resistentes,
resistências existentes: poesia e resistência à ditadura militar no Brasil, no
curso de História do Centro Universitário Fundação Santo André.
Iniciou-se, então, com a seguinte questão: como se deu a relação entre poesia
(publicada durante a ditadura) e o Estado autoritário brasileiro? Foi-se, assim,
delimitando o recorte histórico do trabalho. Após a escolha do livro Dentro da noite
veloz, de Ferreira Gullar, publicado em 1975, como fonte, foram analisadas as
formas de resistência encontradas nos poemas publicados naquele livro. Ferreira
Gullar, poeta maranhense, nasceu em 1930 e morreu em 2016, durante a produção
dessa pesquisa. No ano do golpe militar já tinha seu trabalho conhecido,
principalmente por ter desintegrado a linguagem em seu livro A luta corporal
(1950) e ter criado o movimento Neoconcreto. No início dos anos 1960 integra
os Centros Populares de Cultura (CPC), instituição marxista ligada a UNE, que
intencionava esclarecer às classes mais baixas sobre a luta de classes, utilizando a
arte como meio de comunicação. Ferreira Gullar se filia ao PCB no dia 2 de abril
de 1964, precisando exilar-se no início dos anos 1970, por conta de perseguições do
Estado e a iminência da morte perante os movimentos anticomunistas existentes
durante a ditadura.
Considerando a censura que já existia antes do período de 1964 mas que se
intensificou com a usurpação do poder pelos militares, a questão primordial foi:
Como Ferreira Gullar, através de seus poemas, utiliza a linguagem poética para
resistir, ou seja, denunciar e não aceitar, em tempos de silêncio forçado, as relações
autoritárias do governo? Fez-se, também, um estudo sobre a maneira como, no
livro, se encontram uma série de temas que, tratando da realidade brasileira,
desmonta o discurso ufanista que pautava a propaganda oficial durante a década
de 1970: a ideia do Brasil-Grande, Brasil-Potência, do “Ame-o ou Deixe-o”.

33 VI EPEGH
Para fazer essas discussões e análises, foi utilizada a base teórica sobre
literatura e história que se encontra no livro Literatura e Sociedade, de Antônio
Candido. Nela, encontra-se uma reflexão sobre criação literária e como ela está
amalgamada com o meio social em que foi produzida, estando impedida de fugir de
suas amarras temporais e espaciais (CANDIDO, 2014). Em sua obra, o autor
discorre que duas questões devem sempre ser feitas e, necessariamente,
encontrarem- se: Qual a influência exercida pelo meio social sobre a obra? E qual a
influência exercida pela obra de arte sobre o meio? Desta forma, segundo Candido,
é possível chegar a uma análise dialética do objeto de estudo. Toda obra de arte (e
nesse caso, a obra poética), parte e fala sobre as tensões e dicotomias da época em
que foi escrita. Então, sob essa visão, mesmo uma obra que se ambienta num futuro
distante, distópico ou utópico, se direciona a questões do momento em que foi
produzida: o presente do autor.
Outra obra seminal para compreender a relação entre literatura e história,
que faz parte da espinha dorsal deste trabalho de pesquisa, foi o livro A palavra
perplexa: Experiência histórica e poesia no Brasil nos anos 1970, da historiadora
Beatriz Vieira, em que desenvolve a relação específica entre poesia e História,
aprofundando a riqueza da utilização de obras literárias (e a poesia, especialmente)
como fontes históricas. Segundo Vieira, deve-se levar em consideração o eu-lírico
como forma principal de análise dos poemas, pois é através dele que o poeta se
expressa e constrói o discurso poético, como é visto no trecho.

Na composição do gênero lírico, não se encontra propriamente o eu do


poeta, mas uma voz em que o eu de todos nós se reconhece, o mesmo
ocorrendo para o tu a quem o eu se dirige, um tu que são todos. (VIEIRA,
2011: 383).

Desta maneira, diferenciou-se a pessoa Ferreira Gullar do eu-lírico que atua


nos poemas. Como explica Vieira, o poeta não precisa estar doente para escrever
sobre a doença ou para citar sua enfermidade. O eu do poema é uma construção,
uma criação literária que diz mais sobre o nós como sociedade do que sobre o “eu”
como indivíduo poeta, que cria um olhar sensível e provoca. Em certo sentido, é um
testemunho que, estetizado, transforma-se em documento para análise. O texto
poético, então, adquire um lugar privilegiado para a História e suas formas de
pesquisa.

MARCUS VINICIUS DOS SANTOS CARDOSO 34


Os pensamentos de Antônio Candido e Beatriz Vieira se atravessam na
medida em que se aproxima a questão da forma poética, que está intrinsecamente
ligada a sua linguagem. Essa distinção estética dos textos em prosa, ou seja, a
quebra da frase, o corte das palavras, a intercalação de espaços, todos esses
artifícios devem ser levados em consideração quando da análise do objeto, além,
claro, da polissemia das palavras e dos neologismos e licenças permitidas a essa
linguagem artística.
Com isso, e adicionando a visão crítica de literatura e de poesia desenvolvida
por Ezra Pound na obra ABC da Literatura, desenvolveu- se o conceito de
Artista=Antena, que tenta explicar a forma como os produtores de qualquer tipo
de arte estão sempre imersos em seu espaço-tempo (POUND, 2006). Assim,
transfiguram o real para, colocando em ficção ou em linguagem criativa, criar
discussões e criticar aspectos sociais que atingem a comunidade em que estão
inseridos. É através do lugar social que o artista dispõe na sociedade, da maneira
como ele enxerga o mundo, que as obras são pensadas e executadas, tendo papel
fundamental na construção da sociedade.
Utilizando essas bases teóricas, pode-se analisar o poema “Agosto 1964” que,
logo no título, te posiciona no tempo e te indica em qual momento histórico
brasileiro o eu-lírico se expressar. O início do poema, então, se situa,
espacialmente, na volta de um trabalhador para a casa, após um dia de trabalho:

Entre lojas de flores e de sapatos, bares,


mercados, butiques,viajo
num ônibus Estrada de Ferro - Leblon.
Volto do trabalho, a noite em meio,
fatigado de mentiras.
(GULLAR, 2013: 31)

Percebe-se, então, a criticidade com que o eu-lírico interpreta esse espaço em


que se encontra e pronuncia esses versos: as mentiras institucionais veiculadas
pelos generais para legitimar o golpe de Estado que haviam conseguido dar. Em
seguida, lê-se:

Ao peso dos impostos, o verso sufoca,


a poesia agora responde a inquérito policial-militar.
(GULLAR, 2013: 31)

35 VI EPEGH
Expresso, nesse trecho, temos a representação de uma forma coercitiva
policial aplicada contra os opositores do novo regime, e que cala: pois sufocar é
sempre esse ato de não permitir que se fale ou respire. Contando, também, que a
meta de quem sufoca é a morte do que está sendo sufocado. O inquérito policial-
militar é uma referência bastante pontual e, novamente, te transfere para o tempo
e espaço em que foi concebido o poema, pois, como escreve Sônia Regina Mendonça
e Virgínia Maria Fontes:

Enquanto ainda se viviam os tumultuados dias da “operação limpeza” que


se seguiu ao golpe, a “legitimidade” baseou-se, tão somente, no quadro
institucional dos chamados Inquéritos Policial- Militares. Fonte de poder
de fato para um grupo de agentes que configurou o primeiro núcleo do
aparato repressivo em gestação, os IPMs respaldaram o expurgos dos
elementos politicamente ligados ao regime deposto. Era o apogeu do
primeiro ciclo de coerção política[...] (MENDONÇA & FONTES, 1988: 43).

Assim, percebemos a realidade social entranhada na criação poética, ou seja,


Ferreira Gullar capta um mecanismo institucional do regime, que está na vida
secular da sociedade e transfigura esse real, indicando o sufocamento do poema e
a poesia sendo inquirida policialmente. Percebe-se também a violência e
o autoritarismo com que foi sendo adquirida uma suposta legitimidade social para
a sobrevivência do governo. Continuando, no próximo trecho do poema, o eu-lírico
se aprofunda nas questões arbitrárias que estavam rondando a vida do brasileiro
de oposição:

Digo adeus à ilusão


mas não ao mundo. Mas não à vida,
meu reduto e meu reino.
Do salário injusto,
da punição injusta,
da humilhação, da tortura,
do terror,
retiramos algo e com ele construímos um artefato
(GULLAR, 2013: 31)

Expõe-se aqui, então, uma gama de mecanismos utilizados para inibir as


críticas e levantes, que demonstram mais ainda o caráter autoritário do regime
militar. Pode-se entender que esse tipo de denúncia explícita no poema compreende
um ato de resistência tanto à Censura instalada no país quanto às ideias ufanistas
espalhadas oficialmente pelo regime, que negavam diversas dessas formas
MARCUS VINICIUS DOS SANTOS CARDOSO 36
inumanas de coerção, como a tortura e o terror. Interessante notar como que, nesse
momento mais pungente do poema, a escrita é dura, ríspida, como se recusasse a
utilização de metáforas, buscando um tom de denúncia que compete muito mais à
escrita informativa do que à escrita poética.
A última frase do poema, com seu tom esperançoso, mesmo depois de todas
as linhas anteriores serem pesadas e cruéis, demonstra essa saída que acontecerá
através da luta incessante, da resistência constante. O eu-lírico sugere que é
possível construir alicerces de uma sociedade mais justa a partir das crueldades e
do que está acontecendo: a completa crença na criação de mecanismos de luta rumo
a derrocada do governo.
Todas essas análises foram discutidas na primeira parte do trabalho,
buscando analisar as existências resistentes do período, ou seja, as lutas, surdas
ou explícitas, através da perspectiva da poesia, que se travaram nos anos de 1970
no Brasil, contra o regime autoritário. Observa-se, então, como o poeta absorve as
demandas e discussões da sociedade no momento histórico em que se encontra e
transmuta vida em arte, produzindo então uma reflexão sobre o tempo vivido.
Nesse sentido, os artistas soam como antenas, que captam sinais e os transformam,
com intuito de comunicar.
A segunda parte analisa as resistências existentes, a reação do regime
militar contra a obra de Ferreira Gullar. Segue-se, então, na direção da atuação do
Estado contra a obra, através da Censura, que atuava por meio do Departamento
de Censura a Diversões Públicas. Essa segunda parte contou com uma dificuldade
de pesquisa: Toda documentação do DCDP se encontra no Arquivo Nacional de
Brasília e somente uma parte do acervo está disponível on-line para consulta. Com
isso foi preciso ir atrás de outras formas de consultar o material. Através do Livro
Repressão e Resistência: censura a livros na ditadura militar, da professora Sandra
Reimão, que teve acesso aos documentos que se encontram em Brasília, foi possível
obter uma lista de livros censurados durante os anos da ditadura militar. A obra
de Ferreira Gullar, publicada em 1975, não se encontrava lá. Causou-se, pois, um
desconforto: como essa obra não foi censurada, sendo que tem um discurso anti-
ditadura tão pungente e explícito? Como um historiador, então, baseia sua
pesquisa num documento nunca produzido?

37 VI EPEGH
Vale esclarecer que a Censura no Brasil já existia antes do regime militar,
mas não possuía um viés policialesco. Nesse sentido, era uma profissão, até certo
ponto, glamourizada, atraindo intelectuais e pessoas altamente gabaritadas para
exercer tal função. Como explica Carlos Fico:

[A censura a diversões públicas] era antiga e legalizada, existindo desde


1945 e sendo familiar aos produtores de teatro, de cinema, aos músicos e a
outros artistas. Era praticada por funcionários especialistas (os censores)
e por eles defendida com orgulho. Amparava-se em longa e ainda viva
tradição de defesa da moral e dos bons costumes, cara a diversos setores
da sociedade brasileira. Durante a ditadura houve problemas e
contradições entre tais censuras. A principal foi a penetração da dimensão
estritamente política na censura de costumes — justamente em função da
mencionada vitória da linha dura caracterizada pelo AI-5. Aliás, tal
politização da censura de diversões públicas por vezes transpareceu a
impressão de unicidade das censuras durante o período. (FICO, 2004: 37)

Desmontando, então, uma ideia de que a ditadura atuava como um bloco


monolítico, foi possível perceber que haviam alguns pontos- cegos e falhas em suas
estruturas. Com essa questão, encontrou-se, nos documentos digitalizados no ANB
uma peça de teatro, encenada pelo grupo Em-cena-ação, em 1978 que,
basicamente, lia na íntegra alguns poemas escolhidos do livro, e tinha como título
da peça o mesmo nome da obra: Dentro a Noite Veloz. Mas ainda havia a dúvida:
Como o livro não sofreu nenhum tipo de censura e a peça havia sofrido cortes,
reproduzindo o mesmo conteúdo do livro? Como escreve Sandra Reimão:

Em casos como este, em que há uma interdição para exibições públicas,


mas o livro está publicado, ocorre um fenômeno curioso: algo “que não
pode ser visto por plateias adultas pagando ingresso, está ao alcance de
qualquer pessoa que saiba ler.” (REIMO, 2011: 35)

Isto leva a pensar que, então, a incongruência esteja estabelecida no interior


da Censura Federal, na sua aplicação e na forma com que era dirigida. Essa dúvida
permaneceu como questão principal. Então, pôde- se entrar em contato com um
documento emitido pelo diretor do DCDP ao Ministro da Justiça que, numa ocasião
de protestos contra a censura, movidos por escritores, músicos e artistas em geral,
faz um balanço das atividades censórias do ano de 1976. Nesse documento,
encontra-se a referência ao departamento de censura à livros, em que se esclarece

MARCUS VINICIUS DOS SANTOS CARDOSO 38


que as análises censórias a esse tipo de produção se davam, apenas, através de
denúncias. Macyr Coelho, diretor da Polícia Federal, descreve, então:

Quanto a livros, convém esclarecer, de logo, que este Departamento só


manda verificar aqueles remetidos pelos órgãos descentralizados, em
decorrência de solicitações recebidas, nas respectivas áreas, de pais,
professores, livreiros ou autoridades locais, que ao perceberem
inconveniências em algumas obras, no tocante à moral e aos bons
costumes, reclamam providência de autoridade, já que seria impossível
programar verificação de toda a produção literária posta em circulação no
Brasil. (REIMO, 2011: 159)

Nesse sentido, nenhum livro publicado passou por censura prévia


obrigatória, como acontecia com o teatro, o cinema, os jornais e a TV. A professora
Sandra Reimão, em sua obra já citada, argumenta que, por conta do chamado
“milagre econômico brasileiro”, a produção de livros no Brasil aumentou
exponencialmente, e a Polícia Federal e o DCDP não tinham um contingente de
censores suficiente para que todos os livros publicados passassem pelo crivo da
censura prévia (REIMO, 2011).
A partir disso, retorna-se para a fala de Heloísa Buarque de Hollanda, e
pode-se interpretar que a censura atuou de maneira diferente para livros em
relação ao procedimento seguido para obras teatrais, cinematográficas, televisivas
e jornalísticas. Com essa diferenciação, foi possível manter uma discussão e
expressões resistentes nas obras literárias e, mais ainda, nas obras poéticas, pois
o silêncio que agonizava os outros tipos de arte conseguiu voz nos livros, e essa fala
teve uma verve explosiva na poesia, que conseguiu atuar nesse vácuo de censura
formado.

39 VI EPEGH
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CÂNDIDO, Antônio. Literatura e Sociedade. 13ª ed. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul,
2014.

FICO, Carlos. Versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar. São Paulo:
ANPUH/Humanitas, 2004.

GULLAR, Ferreira. Dentro da noite veloz. 6ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2013.

HELOÍSA BUARQUE DE HOLLANDA – OCUPAÇÃO ZUZU (2014) – Parte 1/4.


Produção Audiovisual: Jahitza Balaniuk. Vídeo: André Seiti. Edição: Rodrigo Lorenzetti.
São Paulo: Itaú Cultural, 2014. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=a2juB5ncQvg. Acesso em: 14, abr. 2016.

MENDONÇA, Sonia Regina de; FONTES, Virginia Maria. História do Brasil


Recente: 1964-1980. São Paulo: Ática, 1988. (Série Princípios)

Peça Teatral Dentro Da Noite Veloz – Dossiê de documentos. Identificação: BR


RJANRIO TN.CPR.PTE.1218 - Dossiê. Disponível em:
http://sian.an.gov.br/sianex/Consulta/Pesquisa_Livre_Painel_Resultado.asp?v_CodRefere
ncia_ id=1052258&v_aba=1 Acesso em: 20, jun. 2016.

POUND, Ezra. ABC da Literatura. Tradução de Haroldo de Campos e José Paulo


Paes. 16ª ed. São Paulo: Cultrix, 2006.

REIMÃO, Sandra. Repressão e Resistência: Censura a Livros na Ditadura Militar.


São Paulo: EDUSP/ FAPESP, 2011.

VIEIRA, Beatriz. A palavra perplexa: Experiência histórica e poesia no Brasil nos


anos 1970. 1. São Paulo: Hucitec, 2011.

MARCUS VINICIUS DOS SANTOS CARDOSO 40


“Eu uso telefone como todo mundo usa”: o celular no
cotidiano das pessoas com deficiência visual

ALEXIA SAYURI HINO


ALINE PORFÍRIO
BEATRIZ GASQUES FAVILLA
DANIEL MERCADANTE LOSNACH
ELOÍSA MARTINS GALVÃO
FELIPE DE OLIVEIRA
GIOVANNA ROCHA DELELA
IVAN GRECCO DE VASCONCELOS
LAURA STOCCO FELICIO
MARIANA AMARAL FOLGUERAL
THAYS BUENO MURRACE
ULISSES MARQUES ROCHA FRANCO
VINICIUS PASCINI PRADO SILVA

RESUMO: Como parte da disciplina Introdução à Cultura Material oferecida pelo


Museu Paulista, esta pesquisa busca entender o smartphone enquanto objeto de
cultura material. Para tanto, baseia-se em uma análise morfológica associada aos
usos e apropriações deste objeto entre pessoas cegas e com baixa visão. Desta
forma, percebe-se seu script enquanto computador portátil e, como tal, viabilizador
de demandas específicas dos usuários, mas que ao mesmo tempo condiciona e se
relaciona mutuamente nas relações entre pessoa e artefato.
PALAVRAS-CHAVE: Cultura Material; Celular; Pessoas cegas e com baixa visão.

41 VI EPEGH
1. INTRODUÇÃO
Este artigo é fruto do trabalho final da disciplina de Introdução à Cultura
Material, oferecida pelo Museu Paulista, que teve como proposta realizar um
laboratório de estudos sobre o celular enquanto objeto de cultura material. Para
tanto, tentamos entender o celular como artefato, ou seja, objeto circunscrito às
relações de produção, sua apropriação e ressignificação por usuários cegos e de
baixa visão.
O celular aparece como artefato particularmente representativo de
transformações sociais na medida em que representa uma mudança profunda nos
meios de telecomunicação: durante os anos 1970, os celulares não aparecem como
objetos portáteis e móveis, mas como modo de comunicação voltado ao interior dos
carros. Na década seguinte, a portabilidade e mobilidade passam a qualificar o
artefato, o que amplia as possibilidades de relação com a forma de comunicação
nascente.
Ao longo dos anos 1990 uma segunda geração de celulares entra em
circulação. A miniaturização e a incorporação de mais funções, como mensagens de
texto e agenda telefônica, consolidam as relações pautadas no transporte constante
do aparelho móvel e permitem customizações do objeto a partir de demandas mais
particulares, mesmo circunscritas a determinado plano de ação. Em contrapartida,
tal processo estabeleceu fatores limitantes, como botões e telas pequenas, que
dificultam seu uso por pessoas cegas ou com baixa visão (GOGGIN, 2010).
Junto à miniaturização (SILVA, 2010) houve também um processo que o
tornou um aparelho dotado de uma visualidade cada vez maior: do início dos anos
2000 para os dias atuais em detrimento de telas maiores. A partir de 2007, surgem
os aparelhos de tipo smartphone. Trata-se de uma nova etapa do processo de
miniaturização e portabilidade, não mais do telefone, mas agora do computador.
Com isso, o celular deixou de ser um aparelho para ligações de voz e se tornou uma
tecnologia cultural central (GOGGIN, 2010). Nesse processo, os aparelhos
passaram a conter um número mínimo de teclas e concentram maioria de suas
funções no que é chamado touch screen.
Apesar de sua progressiva incorporação e agência nas relações sociais,
poucos são os levantamentos sistemáticos acerca deste objeto. Dentre os trabalhos

ALEXIA SAYURI HINO et al. 42


que objetivam o aparelho celular, podemos citar Heather Horst e Daniel Miller
(2006), que procuraram fazer um estudo antropológico acerca do relacionamento
dos jamaicanos com o celular enquanto meio de comunicação. No Brasil, Rodrigo
Leandro da Silva (2009) e Sandra Rúbia da Silva (2010) exploram
antropologicamente o celular em suas esferas de consumo e simbolismo e como
agente mediador de relações sociais e práticas socioculturais ao trabalharem
respectivamente, com funcionários da VIVO de Minas Gerais e com moradores do
Morro de São Jorge, Santa Catarina. Por fim, podemos citar André Lemos (2007),
que em um breve artigo retrata a relação dos moradores de grandes metrópoles
com as cidades, pensando o celular como facilitador de uma apropriação do meio
urbano.
No que diz respeito ao uso do celular por pessoas com deficiência os estudos
são mais raros, com destaque à Gerard Goggin (2010) que, ao explorar os contexto
de produção, representação, regulamentação e usos do celular, atenta-se nos modos
como pessoas com deficiência apropriam-se e se utilizam deste objeto. Tal
problemática sugere a dificuldade em pensar as particularidades das formas de
relação com o aparelho descoladas do padrão de visualidade. Frente a isso,
acreditamos que o estudo sobre os usos do celular por pessoas cegas ou com baixa
visão tem o potencial de deslocar a atenção para questões particulares apartadas
do padrão de normalidade.
Atualmente, a maioria dos smartphones apresenta uma ferramenta de
acessibilidade. No senso comum, a ideia de acessibilidade aparece associada às
adaptações físicas ao ambiente para aumento de mobilidade. Exemplos como
elevadores e rampas compõem o imaginário do coletivo em relação a esse conceito,
entretanto, tal perspectiva é incompleta. Por conta disso, optou-se por uma
definição que contempla a perspectiva das instituições visitadas e das pessoas que
foram entrevistadas para a realização desse trabalho, que é a definição da Lei
Brasileira de Inclusão, que situa a acessibilidade como “[...] a possibilidade de
qualquer pessoa, com ou sem deficiência, acessar um lugar, serviço, produto ou
informação de maneira segura e autônoma. Sem nenhum tipo de barreira”
(GABRILLI, 2016, p. 14).

43 VI EPEGH
O acesso à informação, espaço ou produto diz respeito às barreiras – físicas,
sociais ou de comunicação – e como derrubá-las, visando acesso democrático e
igualitário, independente das características pessoais. Portanto, a acessibilidade
não deve existir para suprir uma necessidade específica, mas sim para que as
diferenças entre sujeitos não constituam desvantagens.
No Brasil, há 207,7 milhões de pessoas, das quais 45,6 milhões têm algum
tipo de deficiência. A deficiência visual, a mais comum, atinge 6,5 milhões
(FUNDAÇÃO DORINA, [s.d.]). Pensando nesses dados, deveríamos questionar o
padrão de normalidade imposto, ampliar nosso entendimento sobre a diversidade
e enxergar a deficiência nas barreiras impostas às pessoas. Afinal, há
aproximadamente duas pessoas com deficiência em cada dez, com os mesmos
direitos de qualquer outro cidadão. Não faz sentido considerar grupos tão
numerosos como exceção, nem ver nessas pessoas uma falta que é simplesmente
uma expectativa social.
Nesse artigo, o enfoque recairá sobre as pessoas com deficiência visual. Para
tanto, é necessário esclarecer que os graus de visão abrangem um amplo espectro
de possibilidades. O termo deficiência visual não significa, necessariamente, total
incapacidade de ver. Pelo contrário, compreende desde pessoas com cegueira, perda
total da visão ou ausência de projeção de luz, até aquelas com baixa visão, que
seria:

(...) alteração da capacidade funcional da visão, decorrente de inúmeros


fatores isolados ou associados, tais como: baixa acuidade visual
significativa, redução importante do campo visual, alterações corticais e/ou
de sensibilidade aos contrastes, que interferem ou que limitam o
desempenho visual do indivíduo. (BRASIL, 2006, p.16).

Na medicina, os graus de visão são medidos segundo dois conceitos, 1)


acuidade visual: nível de alcance da visão a distância; 2) campo de visão: amplitude
da área alcançada pela visão. Segundo dados do Conselho Brasileiro de
Oftalmologia, a estimativa de cegueira no Brasil cresce segundo a idade e o nível
de desenvolvimento socioeconômico, fatores diretamente relacionados com as
condições de saúde ocular.

ALEXIA SAYURI HINO et al. 44


Enquanto as principais causas de cegueira e deficiência visual em adultos e
idosos estão associadas ao envelhecimento, a deficiência de visão em crianças está
associada às más condições de saúde pública, que por sua vez levam a erros de
diagnóstico de patologias de refração, principal causa de deficiência visual entre as
crianças brasileiras.
A partir das questões apresentadas, acreditamos que um estudo sobre os
usos do celular por pessoas cegas ou com baixa visão tem o potencial de elucidar as
falhas que tais ferramentas possam vir a apresentar, além das limitações de
projeto que desenvolvedores de aplicativos, sites e afins mostrem durante a criação
dos mais diversos recursos que venham a ser utilizados no celular.

1. BASES TEÓRICAS
Vivemos todos em um mundo material. Nosso corpo é material, e interagimos
a todo instante com o material que nos cerca e compõe nosso ambiente. O material
representa, é discurso (HODDER, 1982). Se durante o século XIX os objetos foram
entendidos dentro da sociologia como um mero receptáculo sobre o qual a sociedade
se projeta ou materializa (LATOUR, 1993), agora passam a ser considerados
também como agentes, isto é, construtores dessa sociedade que não se forma num
vácuo imaterial. Nesse sentido, a Teoria Ator-Rede do antropólogo francês Bruno
Latour serve como uma maneira de se interpretar o social não como uma explicação
das ações humanas, mas como algo a ser explicado através do conjunto das diversas
entidades humanas e materiais em redes de associação (LATOUR, 2005).
Como, então, olhar para essa materialidade? Existe a necessidade de se
começar pelo básico: a morfologia do objeto. Entender sua forma e composição abre
as possibilidades de se pensar as escolhas técnicas realizadas por seus produtores
e os aspectos sociais que estão envolvidos nisso (SCHIFFER; SKIBO, 1997). A
partir desta morfologia, podemos pensar de quais maneiras é possível a interação
com aquele objeto e se a tecnologia envolvida em sua obtenção ou produção acaba
por torná-lo uma prótese, isto é, uma extensão do corpo do usuário. Desta forma,
pretendemos apreender as maneiras pelas quais o elemento humano molda seu
comportamento e seu arcabouço simbólico através do contato com o elemento não-
humano. Dentre elas, ressaltamos o entendimento do objeto como sendo dotado de

45 VI EPEGH
um valor de uso na sociedade em que circula (MENEZES, s/d). A partir da
morfologia e do seu impacto com o usuário e da mudança comportamental e
simbólica deste último, podemos então tentar construir a rede de ações que
compõem essa interação.
Dentre os itens da cultura material com os quais interagimos, foi escolhido o
celular como objeto de estudo. Os celulares, segundo S. R. Silva (2010), modificam
de maneira multifacetada o cotidiano dos indivíduos com que interagem e
constituem parte importante de um estilo de vida, uma maneira de estar no mundo
– mediada pela tecnologia – cada vez mais característica da cultura
contemporânea.

2. METODOLOGIA

O grupo de pesquisa foi delimitado a partir de dois recortes: inicialmente,


usuários de celular; dentro desse campo, pessoas cegas ou que apresentam baixa
visão. Esse grupo foi escolhido levando em conta a primazia da visão como
mecanismo de interação com os celulares, especialmente com os modelos
smartphone. Colocando esse grupo sob análise, tivemos acesso a outras formas de
se relacionar com o objeto, baseadas em outros mecanismos de interação e
viabilizadas, em grande medida, pelo recente desenvolvimento dos recursos de
acessibilidade. Dois pressupostos, portanto, orientam a pesquisa: há pessoas cegas
e de baixa visão que utilizam celulares e há recursos que predispõem os aparelhos
ao uso por essas pessoas.
O processo de pesquisa compreendeu diferentes etapas, sendo elas:
levantamento bibliográfico, observação de campo e registro objetivo (BONI;
QUARESMA, 2005), além da posterior análise desses registros. No âmbito da
observação, os contatos iniciais com o grupo pesquisado se deram através de
instituições que prestam assistência a pessoas com deficiência visual e
desenvolvem trabalhos no campo da acessibilidade na cidade de São Paulo e na
zona metropolitana. As visitas institucionais propostas pelas entidades e o diálogo
com os funcionários foram de fundamental importância para ampliar o
conhecimento dos pesquisadores sobre deficiência visual e acessibilidade.

ALEXIA SAYURI HINO et al. 46


Em um segundo momento, foi estabelecido um contato individual com
pessoas que se dispuseram a participar da pesquisa, concordando com o termo de
participação livre proposto pelos pesquisadores. Optando por trabalhos de campo
na forma de entrevistas, produzimos registros de áudio que pudessem, uma vez
transcritos, ser tratados como fontes para a análise. Não foi estabelecido qualquer
controle em relação à duração das entrevistas e às falas dos entrevistados. Isso
permitiu que tanto entrevistadores quanto entrevistados tivessem liberdade para
elaborar conexões entre as temáticas que garantiram mais informações aos
pesquisadores e abordagens multidirecionais da questão. Embora houvesse um
roteiro padronizado de perguntas, os entrevistadores tiveram liberdade de elaborar
novas questões de acordo com a experiência relatada por cada indivíduo. Nenhuma
entrevista correu de forma exatamente igual às outras.
A proposta inicial para a observação de campo foi a produção de entrevistas
abertas focadas na história de vida e a relação de cada entrevistado com o celular.
Nessa fase, as entrevistas consistiram em conversas sobre o cotidiano do
entrevistado e aspectos mais básicos de seu uso do celular, como a frequência e as
funções, recursos e aplicativos utilizados.
Ao analisarmos o material da primeira exploração de campo, contudo, notou-
se que ele não compreendia aspectos fundamentais para o prosseguimento da
proposta do trabalho. Porém, essa exploração inicial nos indicou importantes
elementos para investigar, como as diferenças entre as pessoas cegas e as que
apresentam baixa visão no que tange ao uso do celular ou as especificidades da
acessibilidade em sistemas operacionais diversos. Uma vez que as perguntas
iniciais tinham caráter exploratório, a segunda proposta de pesquisa de campo
resultou de um roteiro de perguntas mais direcionado que focalizasse alguns
aspectos de interesse dos pesquisadores, como a dimensão gestual da relação
material com o objeto, a compreensão dos usuários sobre sua relação com o celular,
recursos de acessibilidade, entre outros tópicos. Ocorreu, em suma, uma virada
para uma metodologia mais ligada às entrevistas semiestruturadas (BONI;
QUARESMA, p. 75).
Para elaborar uma análise que pudesse apresentar situações conectadas com
a realidade do grupo observado e não somente deduções feitas pelos observadores,

47 VI EPEGH
o registro das entrevistas foi submetido a uma perspectiva que se aproxima em
grande medida das metodologias presentes nos estudos que se utilizam da História
Oral como fonte. Compreendemos a fala do entrevistado como relato, segundo a
concepção de Portelli (1996, p.7), atendendo ao anseio por uma metodologia que
fosse promotora do ponto de vista do entrevistado, levando em conta que a sua
forma de compreender, significar e expressar a sua relação com o objeto é também
uma dimensão fundamental dessa própria relação. O relato, portanto, compreende
as intenções da pesquisa de captar a complexidade das relações entre as pessoas e
os objetos de Cultura Material. Ele ajuda na demonstração das redes simbólicas,
gestuais, físicas e sociais que envolvem tanto o objeto quanto o usuário.

3. ANÁLISE MORFOLÓGICA
Para a análise morfológica foi escolhido como objeto a ferramenta de
acessibilidade pertencente ao celular, ou seja, o sistema que já vem da formatação
de fábrica. No sistema operacional Android a ferramenta é o TalkBack, este
permite um amplo uso pelo portador do celular: desde realizar ligações, nas quais
a ferramenta auxilia na discagem dos números indicando qual a pessoa está
apertando e confirmando se é esse mesmo o número desejado, até como leitor de
tela, jornal, etc. A ferramenta de acessibilidade do Android foi analisada com base
nos sete princípios do desenho universal (GABRILLI, 2016), sendo eles:
1) uso equitativo: a existência de uma ferramenta de acessibilidade intrínseca
ao celular permite a utilização do aparelho pelo vidente e pelo cego ou deficiente
visual de forma equivalente, ou seja, equitativo.
2) flexibilidade de uso: a possibilidade de configuração do TalkBack garante
uma adaptabilidade ao ritmo do usuário, flexibilizando o uso.
3) uso simples e intuitivo: pela característica do Android de ser um sistema
operacional livre não existe um padrão bem definido para as montadoras de
celular, o que dificulta a primeira configuração para o usuário não vidente,
exigindo uma ajuda.
4) informação perceptível: o TalkBack é a ferramenta mais importante para
esse princípio, já que ela comunica o usuário sobre o que aparece na tela.

ALEXIA SAYURI HINO et al. 48


5) tolerância ao erro: cumprido de forma parcial, o Android permite deixar ou
retirar de evidências aplicativos de acordo com o seu uso, porém de forma manual.
6) baixo esforço físico: princípio se cumpre pelas características básicas de
um celular.
7) tamanho e espaço para aproximação e uso: pelo processo de
computadorização do celular, esse princípio se cumpre, porém é focado para
atenção aos deficientes físicos.
Outro sistema operacional bastante utilizado pelos entrevistados era o iOS,
sua ferramenta de acessibilidade intrínseca é o VoiceOver responsável por ler
partes do conteúdo da tela seguindo o comando de toque do usuário. Segue a análise
segundo os sete princípios do desenho universal:
1) uso equitativo: a ferramenta de acessibilidade permite o uso equitativo.
2) flexibilidade do uso: apesar de ser mais engessado que o Android, ainda
permite uma configuração das ferramentas.
3) uso simples e intuitivo: como citado pelos entrevistados, é pouco intuitivo,
exigindo um treinamento prévio.
4) informação perceptível: após acionados os recursos de acessibilidade, eles
buscam facilitar o uso a partir da readaptação da forma que a pessoa se comunica
com o objeto.
5) tolerância ao erro: a ferramenta com a sua função de leitura passo-a-passo
da tela torna o uso mais seguro.
6) baixo esforço físico: de forma geral o celular exige pouco esforço físico.
7) tamanho e espaço de aproximação de uso: pelo processo de
computadorização do celular, esse princípio se cumpre, porém é focado para
atenção aos deficientes físicos.
Por fim, foi possível a criação da Tabela 1 (anexos)como forma de
sistematizar os dois sistemas. Dessa forma, podemos concluir que ambos os
sistemas cumprem positivamente o primeiro princípio (uso equitativo), sendo esse
o princípio mais significativo, pois permite que tanto o usuário cego ou com
deficiência visual e o vidente possam utilizar o aparelho. Os sistemas só tiveram
uma avaliação negativa ao que diz respeito ao uso simples e intuitivo, já que é
necessário um treinamento prévio ou a ajuda de um vidente para o primeiro uso.

49 VI EPEGH
4. ANÁLISE DAS ENTREVISTAS
Tendo em mente as premissas adotadas nesta pesquisa, a análise das
entrevistas proporcionou uma rica fonte de informações sobre o celular enquanto
objeto de cultura material e como tal, parte constituinte de uma dita sociedade.
Neste sentido, o seu uso e por que não dizer, os usos que o grupo de análise
entrevistado faz deste objeto, bem como as interpretações acerca dele e o seu
alcance no cotidiano dessas pessoas proporcionaram para este trabalho uma
análise ampla, que extrapola a materialidade e a interação física entre pessoa e
objeto e chega a problematizar o seu lugar em uma sociedade cada vez mais
conectada e vinculada à tecnologia.

5.1. A Primazia da Visão


O primeiro ponto a ser destacado faz referência ao plano de ação do celular.
Afinal, para que ele foi criado? Qual é a sua principal função na fala dos
entrevistados? Se partirmos de uma análise quantitativa, temos a comunicação
como a principal função cumprida pelo celular, ou seja, mandar mensagens e
realizar ligações, é, entre os entrevistados, o objetivo pelo qual ele foi criado.
Devemos considerar, no entanto, que o smartphone, objeto de análise desta
pesquisa, é caracterizado por ser um celular de acesso à internet e que se apresenta
fisicamente com a predominância de uma tela no formato touch screen que permite
o uso dos dedos como forma de interação. Aqui se apresenta a peculiaridade desta
relação entre o usuário e o objeto. Como já foi dito, as entrevistas foram feitas com
pessoas cegas e com baixa visão e que, em sua maioria, apresentaram no uso do
celular dificuldade perante os recursos de acessibilidade, seja ele de interação com
a tela ou de notarem que ao usarem esta ferramenta reduz o desempenho do
aparelho. A partir destas informações, podemos nos questionar: seria a visão um
elemento essencial de interação entre usuário e celular? Talvez mais importante
que compreender o “para que”, devemos também nos perguntar “para quem” este
objeto foi desenvolvido, a qual público ele se destina.
Podemos inferir através dos comentários dos entrevistados que favorece o uso
por pessoas videntes e que, ainda hoje, são muitos os problemas relacionados às

ALEXIA SAYURI HINO et al. 50


ferramentas de acessibilidade que estão embutidas no seu sistema operacional e
também nos aplicativos, que, na maioria das vezes, não são desenvolvidos para
pessoas com limitação de visão. Indício desta conclusão é a necessidade dentre os
entrevistados de serem ensinados a usar o celular, como é o caso do Entrevistado
1, ou o fato do Entrevistado 4 ser professor de acessibilidade em uma escola pública.
Isto também pode ser constatado pela análise do discurso da Entrevistada 8, que
atribui a habilidade no uso do celular ao período em que enxergava. Quando
perguntada sobre a fase de adaptação à perda
da visão, ela responde:

Não, não tive dificuldade, porque se você tem uma boa visão e na época eu
tinha. Então, eu não tinha dificuldade nenhuma com ele [...] Hoje eu tenho
mais porque é um aprendizado! É você, é como se estivesse começando tudo
novamente. Tem que aprender novamente. [...] Até 62 anos, eu enxergava
e lia tudo muito bem! Então, eu mexia no celular tranquilamente! Hoje, eu
já tenho dificuldade porque você já tem medo de mexer é, e apagar alguma
coisa que é importante, entendeu? (Entrevista 8, Anexo 10 do trabalho
completo, p. 103)

5.2. Tecnologia Assistiva


Ao mesmo tempo, percebe-se que quando comparados aos modelos
anteriores, os smartphones representam uma mudança no cotidiano das pessoas
cegas e com baixa visão. Mesmo que críticos aos recursos de acessibilidade, a
maioria tem respostas positivas sobre a presença do celular no seu dia-a-dia. Ele é
utilizado para realizar atividades das mais diversas, desde comunicação e do uso
de ferramentas como a câmera para tirar fotos e do fone para ouvir músicas, até
auxiliar a sua rotina em uma sociedade padronizada para videntes, como a leitura
de livros.
Tem-se aqui outra inferência a respeito do celular: entendê-lo como uma
tecnologia assistiva é uma possibilidade. As tecnologias assistivas são recursos e
serviços desenvolvidos para proporcionar ou ampliar as habilidades das pessoas
com deficiência e consequentemente promover uma vida independente. A
possibilidade de análise sugerida é que o celular se torna uma tecnologia assistiva
na medida em que substitui outros recursos, como as lupas eletrônicas e lunetas.
5.3. Celular como Computador Portátil

51 VI EPEGH
Voltamos então ao plano de ação anteriormente sugerido. Seria o celular um
objeto destinado puramente à comunicação? De que forma a nova geração, o
smartphone, supera a categoria de telefone portátil? Entre os entrevistados,
muitos mencionam o celular em comparação aos computadores, seja realizando
funções que já eram praticadas no computador, seja facilitando para que estas
atividades se desenvolvam. O Entrevistado 6, por exemplo, comenta:

Porque eu estava acostumado a usar o computador em casa e tudo [...] e


quando chegou o celular realmente todas aquelas tarefas domésticas [...]
que eu fazia no computador passaram a ser realizadas no celular. Pra que
que eu ia ligar o computador, [...] se eu não vou usar ele pra fazer uma
atividade que vai demandar um computador, né? Sei lá, fazer uma
transferência bancária, o pagamento de uma conta. São todas coisas que
eu nem fazia pelo computador (Entrevista 6, Anexo 8, p.89).

5.4. Aplicativos
Notou-se também que muitos usuários relatam utilizar o celular para
diversas atividades do cotidiano, como despertar, definir cores de roupas, assistir
TV, ouvir rádio, ler jornal, pegar ônibus, ler informações de preço no supermercado,
acessar redes sociais, pedir um táxi, ler notas de dinheiro, fazer transações
financeiras, marcar o ciclo menstrual, entre outros. A quantidade de atividades
relatadas nos levou a um assunto muito presente nas entrevistas: os aplicativos. É
através deles que a estrutura física do celular e as funções pré-dispostas em
recursos rígidos como o fone, o gravador ou a câmera extrapolam suas
potencialidades. Instalar um aplicativo é acoplar uma função, é proporcionar que,
através da internet, possam-se realizar atividades que não estão descritas no script
de um simples telefone móvel.
Sobre o assunto, destacam-se aqui alguns elementos a serem observados. O
primeiro são as funções que estes aplicativos cumprem. Pudemos perceber que eles
integram ao celular atividades do cotidiano, que poderiam ser feitas por outros
objetos, como é o caso do aparelho de GPS que foi substituído por aplicativos como
o Google Maps.
Em segundo lugar percebe-se o uso de aplicativos para aprimorar funções já
proporcionadas pelo celular, como é caso da Entrevistada 2: “Essa lupa que eu
estou te falando é um aplicativo que eu baixei, que é melhor do que a do celular [...]

ALEXIA SAYURI HINO et al. 52


Porque a imagem ela fica mais parada... assim, ela tem, a gente consegue focar
melhor” (Entrevista 2, Anexo 4, p.51).
Em terceiro e último lugar, destacamos a diversidade de aplicativos e até
mesmo a disponibilização de um grande número deles, funcionais ou não. Neste
sentido, muitos entrevistados relatam baixar aplicativos que acabam por não
utilizar.

5.5. Personalização - Cada Celular é Único?


Este consumo quase que instantâneo dos aplicativos escolhidos seleciona o
que é útil ou não dentro das perspectivas daquele consumidor que é o usuário do
celular. Usar ou não o aplicativo diz respeito às funções que aquela pessoa faz do
celular dentro da sua realidade que é quase única. Portanto, muitas informações
coletadas nas entrevistas nos levam a hipótese de que seria possível entender,
então o celular enquanto objeto único dependendo do seu usuário. Além dos
aplicativos, muitos outros itens que já são parte do celular como produto fabricado
permitem a personalização. Dentre os que podemos citar é a mudança da voz do
recurso de acessibilidade; e a possibilidade de alteração do tamanho da letra e do
contraste da tela que são elementos que dentre as pessoas com baixa visão
proporcionam o uso e interação para confortáveis.

Então tem sim, tem a voz da... tem várias vozes, tem voz feminina e tem
voz masculina. Eu prefiro a voz feminina... [...] tem a voz da Luciana, do
Felipe, que é masculino. Tem outras vozes, tem outros nomes, tem a voz
que você achar melhor para seus ouvidos, vamos se dizer assim (Entrevista
15, p.5).

Dentre os 15 entrevistados, a personalização do aparelho aparece de forma


hegemônica. A instalação de alguma ferramenta de acessibilidade em
conformidade às necessidades particulares é predominante nos usuários de
smartphones de modo que o celular não é incorporado enquanto estrutura fixa e
imutável, mas valorizado por sua abertura a demandas mais individualizadas.
Percebida como importante para a garantia de acessibilidade, a
personalização apareceu nas entrevistas de forma bastante positiva e, no geral,
associada à individualização socialmente legitimada, como indicou o Entrevistado

53 VI EPEGH
3 ao afirmar “eu acredito que tem que ser personalizado porque cada pessoa tem
seu grau de dificuldade visual” (Entrevista 3, Anexo 5, p.57). Assim, a ausência de
um padrão único dentre o grupo analisado reforça a necessidade de adaptação do
aparelho a demandas particulares.
Tal personalização, contudo, não garante por si uma inserção integral da
pessoa cega e de baixa visão nos meios digitais. Frente às problemáticas
apresentadas, o plano visual dos aparelhos celulares associado à abordagem
vidente de alguns aplicativos voltados ao grupo analisado constituem, por vezes,
empecilhos na medida em que reforçam a ideia de deficiência e normalidade. O
Entrevistado 4 aponta as limitações na afirmação de que certos aplicativos propõe
substituir a visão do usuário, como o BeMyEyes.

5.6. O Significado
O último elemento que podemos mencionar é a abrangência de sentidos que
é atribuído ao celular e o seu significado. Dentre as 15 pessoas que foram a base
desta pesquisa, no que entendemos como a compreensão da relação pessoa-objeto,
pudemos notar que o celular tem grande relevância, seja como tecnologia assistiva,
como já foi dito, seja como parte constituinte de um mundo conectado aos meios
eletrônicos. Dentre as impressões apresentadas ao final das entrevistas algumas
categorias podem ser abstraídas. A primeira delas é que o celular seria o mediador
da relação destas pessoas com outras (Entrevista 12, Anexo 14, p.133), ou até
mesmo com o que é chamado pelos entrevistados de “mundo” (Entrevista 2, Anexo
4, p.53) ou “mundo virtual” (Entrevista 5, Anexo 7, p.86). A segunda é de que um
grande número deles mencionou o celular como um objeto acoplado ao seu próprio
corpo, estando presente em todos os momentos do dia-a-dia, não saindo de casa sem
ele (Entrevista 14, Anexo 16, p.144). Ainda atrelado a esta ideia, o celular é
apresentado como sendo “tudo” e, neste sentido, gerando dependência, seja pelas
informações ali contidas (Entrevista 15, Anexo 17, p.151), seja por abranger um
grande número de funções no dia-a-dia. Segundo a Entrevistada 8 (Anexo 10,
p.103) “Você fica dependente! Parece que você não sabe fazer nada sem ele… [sem]
o celular” ou o Entrevistado 1:

ALEXIA SAYURI HINO et al. 54


Mas o celular hoje em dia é muito bom. É...tudo pra gente também, né?
Primeiramente Deus, em primeiro lugar, não podemos esquecer disso. Mas
depois o celular, porque você poder fazer de tudo com o celular, compra,
vendas, etc (Entrevista 1, Anexo 3, p.48)

5. CONCLUSÃO
A partir da análise morfológica do objeto e das entrevistas, percebemos o
celular enquanto artefato essencialmente personalizável. Seu script pressupõe
possibilidades diversas de transformação e acoplamento de funções e, dessa forma,
a particularidade dos smartphones reside na viabilização de certas demandas
sociais e individuais. Na relação analisada, a customização aparece como
ferramenta de acessibilidade na medida em que promove a incorporação de
demandas apartadas dos excludentes padrões de normalidade.
Uma vez que as relações entre usuário e aparelho não são determinadas
universalmente, mas se inserem em uma rede dotada de atores plurais (LATOUR,
2005), as formas de estímulos e apropriações não são uniformes e se associam ao
espaço de cada um dos atores dentro da sociedade.
Pensando, portanto, o aparelho celular enquanto artefato potencialmente
apropriado de formas particulares (MILLER, 2000), o usuário atua enquanto
define um programa de ação próprio, escolhendo aplicativos, os incorporando à
formatação desejada e ativando ou não as ferramentas de acessibilidade. O
aparelho atua, por sua vez, na medida em que, por exemplo, condiciona
determinados movimentos de memória corporal.
Cabe ainda destacar que o plano de ação visual dos smartphones constitui
uma problemática central na medida em que o uso que os entrevistados cegos e
com baixa visão fazem do aparelho e suas impressões a respeito dos limites que os
recursos de acessibilidade apresentam demonstram os problemas de um universo
voltado para o padrão de normalidade socialmente constituído. Desde as
configurações presentes no aparelho àquelas incorporadas e voltadas
especificamente a pessoas cegas e com baixa visão, o uso efetivo do celular e suas
potencialidades depende de uma combinação entre instalação de softwares,
aplicativos diversos e, ainda em alguns casos, auxílio de uma pessoa vidente.

55 VI EPEGH
A possibilidade de pensar o telefone como tecnologia assistiva a partir da
ação do usuário indica, por fim, a importância de pensar as relações de cultura
material em sua pluralidade. A “contradição” entre o aparelho celular,
predominantemente visual, e seu uso por pessoas cegas e de baixa visão aparece
apenas de forma aparente quando reconhecemos a agência de ambos os atores no
sentido de uma personalização, mesmo limitada, às demandas individuais do
usuário e no condicionamento, pelo aparelho, às novas formas de sociabilidade
reconhecidas nas entrevistas.

ALEXIA SAYURI HINO et al. 56


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59 VI EPEGH
LISTA DE TABELAS

ALEXIA SAYURI HINO et al. 60


A construção da visão sobre os povos indígenas em Minas

Gerais pelos relatos de August Saint Hilaire.

BEATRIZ MOLINA CAETANO1

RESUMO: A fim de abordar como objeto principal compreender e fomentar


discussões a partir da análise crítica da obra "Viagem às nascentes do Rio São
Francisco e pela província de Goyaz" produzida pelo viajante August Saint Hilaire,
desenvolvendo uma linhagem a partir dessas visitas o autor nos deixa algumas
características sobre o cenário brasileiro, contando como era a vida em 1800 por
aqui. Algo que nos chama atenção é a maneira que esse viajante não trabalha
apenas as paisagens encontradas por aqui, mas também sobre a população
brasileira e a diversidade encontrada, trazendo assim informações e observações
sobre as comunidades indígenas que viviam por onde passou. Portanto, com essa
fonte e também com a historiografia já produzida sobre os povos indígenas das
Minas Gerais do século XIX, buscamos compreender e estruturar
metodologicamente as características apontadas pelo viajante. Buscando assim,
compreender a construção de um pré-conceito baseado em uma cultura
eurocêntrica, logo formando uma imagem construída que perpassa até os dias de
hoje dos povos indígenas que se localizavam em especial na região das Minas e das
Gerais do século XIX.
PALAVRAS-CHAVE: Populações indígenas; Triângulo Mineiro; Viajantes;
Historiografia.

1 Graduanda em História pela Universidade do Triângulo Mineiro (UFTM).

61 VI EPEGH
O objetivo do atual artigo “A construção da visão sobre os povos indígenas
em Minas Gerais pelos relatos de August Saint Hilaire” busca investigar e
compreender o século XIX a partir de algumas obras do viajante August Saint
Hilaire. Homem nascido em 4 de outubro de 1779 em Orleans, centro-norte da
França, além de sua colaboração para a História era também um botânico e
naturalista pertencente ao primeiro grupo de viajantes vindos da Europa para
realizarem suas pesquisas de exploração no Brasil Colônia, durante os anos de
1816 a 1822, período no qual a corte portuguesa estava instalada no país, na cidade
do Rio de Janeiro. A partir desses relatos buscamos entender um pouco melhor
sobre a construção dessa imagem eurocêntrica dos povos indígenas que habitavam
a região do Sertão da Farinha Podre, na segunda metade do século XIX.
Quando buscamos pesquisas que tratam da relação entre História e
Questões Indígenas podemos perceber que esse é um assunto que têm se
desenvolvido bastante no âmbito acadêmico brasileiro, e isso ocorre devido ao
esforço de pesquisadores de diferentes áreas que se colocam à disposição para
perceber os intercâmbios intelectuais. Com isso, os pesquisadores de História
Colonial e Imperial no Brasil são capazes de elucidar momentos e recuperar
agentes históricos diversos, o que permite a elaboração de uma história plural,
perpassando assim a ideia de um povo indígena submisso e sim como sujeitos
históricos produtores da sua própria história, e assim, cada vez mais tornando a
história carregada de tensões e problemas sociais.
Com a realização destas visitas ao Brasil, Saint’Hilaire nos deixou algumas
obras publicadas sobre o cenário brasileiro contando como era a vida e as pessoas
em meados de 1800. Suas viagens perpassam por Minas Gerias, Rio de Janeiro,
Goiás, Espírito Santo, Porto Alegre, entre outras regiões do Brasil, tornando-o
assim um europeu que conhecia muito bem as paisagens, uma parcela da
população, a forma de governo e outras características que eram marcantes no
Brasil.
Por verificar a escassez no que se refere a pesquisas acerca da temática
indígena, principalmente, em contextos regionais, é necessário dialogar e entender
de que modo às relações textuais existentes na historiografia até então, verificando
que as pesquisas já realizadas que utilizam dessa temática como objeto de estudo

BEATRIZ MOLINA CAETANO 62


não sendo vistos como sujeitos históricos, e majoritariamente trabalhados na
questão literata e não Histórica. Como corolários dos apontamentos anteriores a
compreensão da produção historiográfica do Estado de Minas Gerais, por meio da
constituição de um banco de dados válido para que outros historiadores se
interessem sobre o tema, o que tornará o conjunto documental pesquisado acessível
a um número maior de pesquisadores.
Partindo desses três pontos chaves, que cercam as diretrizes desta pesquisa,
vejamos que os historiadores têm buscado um diálogo maior com esses viajantes
do primeiro quarto do século XIX. Entre os viajantes naturalistas do primeiro
quarto do século XIX, está2 Emmanuel Pohl (1782-1834) e August Saint-Hilaire
(1779-1853), que realizaram sua viagem científica pelo território brasileiro quase
ao mesmo tempo, inclusive percorrendo trechos comuns. Nosso foco por aqui é a
passagem de August Saint’Hilarie que adentrou em regiões até então pouco ou
nada conhecidas pelas demais nações europeias. Ao percorrer as províncias do
interior, este viajante vai se deparar não somente com uma natureza ainda pouco
estudada, como também como já dito com diversos povos indígenas em diferentes
estágios de aproximação com as frentes de colonização. Estes dois naturalistas são
também os responsáveis pelos únicos registros linguísticos conhecidos dos Cayapó
do Sul, do aldeamento de São José de Mossâmedes, Goiás. Para assim, podermos
entender a problemática na raiz do fato, é necessário buscarmos a origem dos povos
indígenas como sujeitos da História, ou melhor, sendo protagonistas de suas
próprias histórias.
Além desses relatos do viajante, a historiografia da História do Sertão da
Farinha Podre e sobre a História Indígena, algo que nos chama atenção nesses
viajantes é a maneira como trata a população brasileira e como apresenta a
diversidade aqui encontrada. Ao passarem em diferentes regiões e entrarem em
contato com diversas etnias, principalmente como os indígenas, portugueses
abrasileirados e negros, a partir disso, traçaram suas diferenciações feitas sobre os

2 Johann Baptist Emanuel Pohl, chegou ao Brasil como encarregado da parte de mineralogia,
assumindo depois a de botânica. Desligou-se da expedição e empreendeu uma viagem de quatro
anos pelo interior do Brasil, atravessando o Rio de Janeiro, Minas Gerais e Goiás. De sua viagem
publicou “Viagem no Interior do Brasil”. Empreendida nos anos de 1817 a 1821 e publicada por
Ordem de Sua Majestade o Imperador da Áustria Francisco Primeiro.

63 VI EPEGH
povos aqui encontrados, demonstrando o choque cultural entre o Sertão e as áreas
mais ao sul e litoral do país.
Tendo como base algumas perspectivas fundamentais para o
desenvolvimento do conhecimento histórico, enquanto análise das relações
políticas, sociais e culturais a partir de espaço de tempo e lugar determinado. Uma
figura que nos ajuda a descodificar essa criação e representação é o Historiador
Roger Chartier, a parte do imaginário temos como referência as obras do filósofo e
historiador Bronislaw Baczko, e da historiadora Sandra Jatahy Pesavento. Para
compreensão um pouco mais a fundo no conceito de etnogênese, as obras de Miguel
Bartolemé Guillaume Boccara. Portanto, temos assim algumas bases para
conseguirmos entender como a percepção de uma imagem eurocêntrica foi
construída desses povos indígenas presentes na região das Minas e das Gerais
durante a segunda metade do século XIX, para assim podermos entender e essa
representação continua se perpassando até os dias de hoje, formando assim, uma
relação de pré-conceitos já estabelecidos e resistência dos povos indígenas, visto
que nem sempre a historiografia se preocupou em utilizar dessa combinação como
objeto de estudo e análise.
Quando passa pela região hoje marcada como Triângulo Mineiro o viajante
nos apresenta a seguinte visão,

Não se imagine que toda esta população seja composta de homens de côr.
Na verdade, no caminho de S. Paulo a Goyaz atravessei aldeias de índios
mestiços dependentes do território de Araxá; mas a maior parte dos
habitantes •deste julgado é de brancos. (SAINT’HILARIE,1975: 205)

Podemos por este trecho identificar uma parcela da população e como ela se
formava na sociabilização de várias etnias. Quando os viajantes nos apresentam
suas ideias, uma leitura crítica tem de ser feita e é nesse instante que casamos a
história dos viajantes com a história oficial, causando assim o que chamamos de
choque de cultura. A partir das descrições de Saint’Hilarie podemos perceber como
o estereótipo indígena é marcado como inferior ao europeu, não que o viajante faça
essa comparação, mas entendendo o padrão de beleza europeu da época, é visível a
presença de um julgamento pelo desconhecido formado pelas índias e índios

BEATRIZ MOLINA CAETANO 64


encontrados por aqui, falando de sua cor, cabelo, nariz, seios e costumes
considerados como “feios” e selvagens, na origem da palavra.

Já entre Forquilha e Joaquim Marcos tinha encontrado, ao pé duma


arvore, duas índias, muito malvestidas, juntas a elas estava um grande
fardo de casca verde donde tencionavam a extrair estopa. Antes de deixar
a fazenda de Joaquim Marcos vi passarem, homem e uma mulher da
mesma raça. Ella estava vestida com uma saia e camisa 1 de tecido
grosseiro de algodão, como usam, em geral, nesse paiz, as mulheres pobres
do campo; o índio não trazia mais do que uma camisa e tinha na mão o seu
arco e um feixe de flechas. (SAINT’HILARIE, 1975: 38-39)

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Durante a produção acadêmica existe uma possibilidade de se orientar por
diversos caminhos, o destino que seguimos é de como essa construção da imagem e
representação se formou durante anos e continua se perpassando baseada em uma
historiografia básica voltada para o ensino eurocêntrico seguindo seus métodos e
análises, causando assim uma desvalorização dos nativos presentes no Sertão da
Farinha Podre.
Desta forma, acredito que podemos avistar um novo horizonte baseado em
um novo método de análise dessas fontes, ou melhor dizendo, desses relatos que
nos são apresentados e já discutidos exaustivamente podemos encontrar muitas
características diferentes do que já vemos. Quando entendemos que os povos
indígenas foram criados culturalmente diferentes dos povos europeus, podemos
entender o choque causado no encontro dessas duas culturas. Um estranhamento
nas vestes, no trabalho, na religião são os pontos mais gritantes entre as duas
culturas.
Sendo assim, podemos concluir que as influências europeias são tão
marcantes em nosso país, que até hoje reproduzimos falas marcadas por
preconceitos e xenofobia com nossos próprios povos nativos, classificando-os como
preguiçosos, “vermelhos”, incapazes, entre outros pelo simples fato de os princípios
orais serem outros.

65 VI EPEGH
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SANTOS, Yuri Leite. A presença e a imagem dos indígenas na História e


Historiografia do Triângulo Mineiro. 2014. 36 f. Trabalho de Conclusão de Curso
(Graduação em História) - Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2014.

SAMPAIO, P. M. Política indigenista no Brasil Imperial. GRINBERG, K. SALLES,


R. (org.). O Brasil Imperial - 1808-1831. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.

Revista do Arquivo Público Mineiro. Requerimento dos moradores de S. Domingos


do Araxá pedindo sua passagem para a Capitania de Minas. Belo Horizonte: Imprensa
Oficial de Minas Gerais, Ano/Volume 09, 1904, p.875 – 882.

Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Subsídios para a história da


Capitania de Goiaz (1756 – 1806). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, Tomo 84, 1919.

67 VI EPEGH
A dialética em Hegel e Marx

NICOLAS LABRIOLA SANTOS1

RESUMO: O objetivo deste pequeno estudo é comparar, de modo sucinto, as


dialéticas de Hegel e Marx, tendo como base o texto A Razão na História, do
primeiro, e principalmente o livro I do Capital, do segundo. Embora perpasse,
superficialmente, a concepção de História de cada autor, o principal objeto aqui é
delinear o modo como Marx se apropriou da dialética idealista hegeliana,
mantendo-a enquanto método de análise, mas invertendo os polos de positividade
e negatividade, em um movimento não apenas de inversão, mas como em “desvirar
do avesso”.
PALAVRAS-CHAVE: Karl Marx; G.H.F. Hegel; Dialética; Materialismo;
Idealismo.

1 Graduando em História pela Universidade de São Paulo. Email profissional: nicolas.labriola.


santos@usp.br

NICOLAS LABRIOLA SANTOS 68


1. INTRODUÇÃO
O posfácio à segunda edição alemã do capital é um dos raros momentos no
qual Marx aborda a dialética hegeliana diretamente. O pensador declara-a como
um “caroço racional” em meio a um “envoltório místico”. (GRESPAN, 2002, p. 26.).
O sentido de “místico” aqui é algo desprendido da materialidade, isto é, algo no
plano espiritual, como aparece na Ideologia Alemã, em um trecho em que Marx
critica o modo como o descolamento de ideias dominantes de seus produtores – uma
classe dominante - produz pela mistificação o entendimento de que algo ocorre
inexoravelmente de determinado modo, como na “verdadeira teodiceia” que é a
filosofia da história de Hegel:

Deve-se colocar uma ordem nessa dominação das ideias, demonstrar uma
conexão mística entre as ideias sucessivamente dominantes... (o que é
possível porque essas ideias, por meio de sua base empírica, estão
realmente em conexão entre si e porque, concebidas como meras ideias, se
tornam autodiferenciações, diferenças estabelecidas pelo pensamento.
(ENGELS & MARX, 2007, p. 50.)

Embora na referida edição deste texto esteja indicado que Marx pensou em
usar a palavra “lógica” ao invés de místico, o sentido se sustenta como algo
substancialmente fora de sua “base empírica”, cujo estabelecimento se dá “pelo
pensamento”. E nesse sentido é possível entender o “envoltório místico “de Hegel
como aquilo que tem o seu fundamento no “pensamento”, desconectando-se da
materialidade, em relação a qual as ideias dominantes não são, para Marx, “mais
do que a expressão ideal das relações materiais dominantes” (ENGELS & MARX,
2007, p. 47).
Podemos assim estabelecer uma primeira diferença entre os autores quanto
ao modo como relacionam o Ideal, o espiritual, no sentido daquilo que não é
material, com a materialidade: Se em Hegel a história não é senão a “obra de Deus”,
uma teodiceia , no sentido de um progressivo caminho da universalidade por meio
das particularidades, em Marx ela aparece como “nada mais do que o suceder-se
de gerações distintas, em que cada uma delas explora os materiais, os capitais e as
forças de produção a ela transmitidas pelas gerações anteriores”. No primeiro, o
Particular está a serviço do Universal, os acontecimentos empíricos se concatenam
por meio do místico, fora da materialidade, ao passo que no segundo, a história
69 VI EPEGH
apresenta-se na sua materialidade, isto é, os fatos se concatenam por meio de uma
materialidade que lhes sustenta. Assim, em suma, há um movimento em Hegel do
ideal para o material, de cima para baixo, e em Marx o oposto, de baixo para cima.
A partir dessa primeira constatação, tentarei compreender primeiramente
como Hegel apresenta a dialética no texto A Razão na História, para depois tentar
localizar nos textos de Marx como esse se apropriou da dialética idealista
hegeliana, para que possamos apontar algumas diferenças e semelhanças entre as
dialéticas no final de nosso pequeno estudo.

2. A DIALÉTICA IDEALISTA HEGELIANA


Em seu truncado e particularmente difícil estilo de escrita, Hegel nos expõe
em “A Razão na História" a ideia de que há uma história da humanidade, dita
história Universal, que se trata, na realidade, um testemunho da obra de deus,
como já foi dita. Esta História é a do “Espírito universal” que é seu sujeito:

A história universal filosófica] considera o princípio concreto e espiritual


dos povos e a sua história, não se ocupa de situações singulares, mas de
um pensamento universal, que se insinua através do todo. Este elemento
universal não pertence ao fenômeno contingente... A história tem perante
si o objeto mais concreto, que resume em si todas as diversas vertentes da
existência: o seu indivíduo é o Espírito universal. (HEGEL, 1995, p.35.)

Se o “Espírito universal” é o sujeito da história, ele é o “pensamento


universal” do qual a história se ocupa, de modo que elimine o “fenômeno
contingente” ao qual este “elemento universal não pertence”. Em outras palavras,
diante de todos os acontecimentos ocorridos, alguns interessam na medida em que
dizem respeito a um “elemento universal”, ao passo que o restante, “situações
singulares”, são contingentes. Isso implica dizer existe uma conexão entre uma
série de determinados acontecimentos históricos que é o “elemento universal”, por
meio do qual certas particularidades se conectam, movendo a história para um fim
último, qual seja, o fim Universal. Mas do que se trata o Espírito de Hegel?
Inicialmente, o espírito é uma consciência que tem a si mesmo como
conteúdo e cuja essência é produzir a si mesmo a partir de si mesmo.
(HEGEL,1995, p. 53). Assim, se ele é o sujeito da história universal, temos que esse

NICOLAS LABRIOLA SANTOS 70


produzir-se a partir de si mesmo ocorre na história, e que por meio disso que a
vemos conectada, ou seja, é o seu “elemento universal”. Deste modo, podemos
compreender essa relação entre o Particular e o Universal na história, qual seja, a
de que o por meio do Particular o Universal se realiza, até que chegue a um “fim
último”. Sem nos estendermos por todo o modo como Hegel descreve a história, nos
atentemos agora a esta relação entre o Particular e o Universal que é a espinha
dorsal de sua filosofia da história.
Primeiramente, universal e particular não são apenas diferentes, mas se
definem por oposição. Assim, um existe não apenas por si, mas em relação ao outro,
negando-o. Contudo, no desenrolar da História universal, este necessita do
particular para ser, para existir, e deste modo, ao negar o particular, ele acaba por
negar a si mesmo. Deste modo, temos que a oposição que constitui Particular e
Universal é contraditória, de modo que é possível definir, sinteticamente, a
dialética como uma oposição contraditória, sendo este seu elemento essencial.
No “fim último” da história encontramos o espírito universal realizado: “A
substância do espírito é a liberdade. O seu fim do seu processo histórico aduz-se
deste modo: é a liberdade do sujeito... A substancialidade do fim do espírito
universal alcança-se através da liberdade de cada um.” (HEGEL,1995, p. 60). O
fim da história se encontra em um momento no qual a “substância do espírito”
adquire existência, isto é, quando o universal predomina sobre o particular,
englobando-o, de modo que todos são livres na sociedade. Liberdade aqui, sendo a
substância do espírito, ou seja, aquilo de que ele é feito, consiste na capacidade que
o sujeito tem de se autorrealizar, uma vez que ser livre é a natureza do espírito.
Isso significa dizer que no fim da história os indivíduos são livres para realizarem
suas potencialidades, uma vez que a particularidade de suas realizações, que
poderiam pô-los em conflito pela negação uns aos outros, é completamente
englobada contraditoriamente pela Universalidade, que consegue resolver esses
conflitos. De um modo mais simples, o elemento negativo é envolvido pelo positivo,
que predomina.
Para Hegel, tal igualdade de liberdade é garantida pelo Estado, que “... está
bem constituído e é forte em si mesmo quando o interesse privado do cidadão está
unido ao seu fim geral e um encontra no outro a sua satisfação e realização”

71 VI EPEGH
(HEGEL,1995, p. 78.). O modo pelo “qual um encontra no outro a sua satisfação” é
por meio de uma igualdade jurídica, na qual todos são efetivamente iguais e livres.
Isso acontece, para Hegel, na emergência da sociedade burguesa.
Diante desta sumária exposição sobre a dialética idealista, podemos
perceber que ela se caracteriza primeiramente como uma oposição contraditória,
dentro da qual o aspecto positivo predomina, isto é, o Universal sobre o particular.
A natureza idealista desta dialética consiste, como vimos a partir de Marx, no seu
elemento místico, aquilo que não se fundamenta na materialidade. No caso, a
própria ideia de um “sujeito autodeterminante” é o cerne disso, o que encontramos
na definição de Espírito de Hegel, o sujeito da História Universal, que é a história
de como no fim das coisas o universal predomina sobre o particular, o positivo sobre
o negativo.
Agora, buscaremos compreender o modo como Marx se serve da dialética
para analisar o capitalismo para que possamos perceber semelhanças e diferenças
para com a dialética idealista hegeliana.

3. A DIALÉTICA MATERIALISTA DE MARX


Indo diretamente ao que nos interessa, no capítulo XXIV do primeiro volume
do Capital, Marx estabelece o “pecado original” do capitalismo: a cisão entre
trabalho e meios de produção:

Duas espécies bem diferentes de possuidores de mercadorias têm de


defrontar-se e entrar em contato; de um lado, possuidores de dinheiro,
meios de produção e meios de subsistência, que se propõe a valorizar a
soma-valor que possuem mediante a compra da força de trabalho alheia;
do outro, trabalhadores livres, vendedores da própria força de trabalho e,
portanto, vendedores de trabalho (MARX, 2013, P. 262.).

Por meio da propriedade privada, criam-se “duas espécies de possuidores de


mercadorias”, porque os trabalhadores só possuem sua força de trabalho como
mercadoria, uma vez que foram alijados dos meios de produção, ao passo que os
burgueses possuem dinheiro, meios de produção e meios de subsistência. O
dinheiro constitui aqui uma forma de valor que se opõe ao trabalho, já que este é
comprado pelo burguês do trabalhador, que não tem outra opção. Nesse sentido,

NICOLAS LABRIOLA SANTOS 72


“livre” aqui tem um duplo sentido, pois compreende primeiro o trabalhador que não
é um escravo, o que é o sentido positivo, e também compreende aquele que está
solto, alheio aos meios de produção, para o qual não resta outra opção que não
vender sua força de trabalho, e aqui temos um sentido negativo.
A ideia de que o dinheiro se opõe como forma de valor ao trabalho é
fundamental para que entendamos, como Marx explica no capítulo V, o fato de ser
por meio da diferença entre o valor de uso e o valor de troca da força de trabalho
que o capital se realiza, enquanto valor que se valoriza. Mas o que desejo
primeiramente salientar aqui é o fato de dinheiro e mercadoria aqui – salário e
força de trabalho- se estabelecerem em uma relação de oposição, como ocorre nos
primeiros níveis da dialética hegeliana. Observemos mais detidamente essa
oposição:

Para representar seu trabalho em mercadorias, ele [o trabalhador] tem de


representá-lo, sobretudo, em valores de uso, em coisas que sirvam para
satisfazer a necessidades de alguma espécie. (MARX, 2013, p. 149.).

O trabalho comprado pelo burguês tem de ser objetificado em algum valor


de uso, alguma mercadoria que por sua vez poderá ser vendida, a fim de que o valor
se valorize, isto é, que o capital se realize. Nesse sentido, o ato de vender essa
mercadoria- trabalhado objetificado- é realizar o seu valor de uso, de modo que
podemos dizer que o capital tem como substância o valor de uso, e assim podemos
dizer que capital e trabalho constituem uma oposição, pois são ambos valores de
uso. Mas ao integrar a si o trabalho, do qual depende para se realizar, o capital
entra em contradição, uma vez que está alicerçado na cisão fundamental que criou
a força de trabalho da qual depende, formando assim uma oposição contraditória,
semelhante ao que vimos em Hegel.
Esse é o caráter “vampiresco” do capital, que para ser necessita da força de
trabalho, da qual meio que “suga a vida” (GRESPAN, 2002, p. 40.). De todo modo,
o importante aqui é salientar que essa oposição contraditória me parece constituir
o cerne da dialética materialista, no que podemos observar uma semelhança com
Hegel.
Agora, em relação às diferenças, é preciso tomar um certo cuidado.
Primeiramente, podemos perceber que o movimento da dialética ocorre de maneira
73 VI EPEGH
inversa nos autores: se em Hegel o positivo engloba o negativo e predomina, em
Marx ocorre o inverso, com o predomínio da desigualdade social criada pelo
capitalismo por meio do pecado original da propriedade privada sobre a igualdade
jurídica, que se torna aqui algo aparente. Diante disso, é um tanto quanto tentador,
porque mais simples, argumentar que a dialética de um é simplesmente a inversão
da dialética do outro, que um é dialético no espírito e o outro na materialidade.
Ainda que a segunda afirmação não esteja errada, colocar dessa forma passa a
ideia de que a dialética de ambos é a mesma e apenas se dirige a objetos diferentes,
e aqui está a dificuldade.
Em Hegel, a dialética está direcionada essencialmente às ideias, ao espírito
e ela se dá nesse âmbito. Em Marx, isso se inverte, de modo que a dialética se dá
no âmbito da materialidade. Aparentemente, como vimos no início, trata-se do fato
de um conceber a dialética de cima para baixo e o outro de baixo para cima. Esse
raciocínio, contudo, tem o problema de desconsiderar o modo como os autores
observam a realidade mesma, porque verifica essa inversão apenas do lugar de
onde veem, e não no modo como veem.
O quero dizer com isso é a ideia de que Marx veste a camisa da dialética de
Hegel ao contrário, ou melhor, que a põe do lado certo, como vimos em aula. Isso
porque Hegel entende a dialética quase como um princípio universal na realidade,
como expõe no início do seu texto que a natureza se opõe ao espírito. Para ele, o
mundo é aparentemente caótico, conflituoso, mas em sua essência há uma dialética
que unifica as coisas em harmonia, por isso o fim da história ser harmônico em um
sentido de realização de uma natureza do homem. A dialética idealista hegeliana
tem uma ideia totalizante, e nesse sentido se opõe à materialista, pois esta é
encontrada especificamente no capitalismo, ou em algum nível em sociedades de
classe, mas não em tudo como em Hegel. Mas o essencial é que, oposto ao idealismo,
o materialismo marxista olha os conflitos e as contradições do mundo, que
aparentemente pode ser harmonioso, para se chegar a uma contradição essencial,
qual seja, a de capital e trabalho.
Deste modo, mais do uma inversão de cima para baixo, temos entre as
dialéticas uma inversão de dentro para fora, que assim me parece constituir o ponto
central da diferença entre elas.

NICOLAS LABRIOLA SANTOS 74


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ENGELS, F; MARX, Karl. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007.
GRESPAN, J. – “A dialética do avesso”. Crítica Marxista, nº 14. São Paulo: Boitempo, 2002,
pp. 26-47.

HEGEL, G. – A Razão na História. Introdução à filosofia da história universal.


Lisboa: Edições 70, 1995.

MARX, K. O Capital: Crítica da economia política. Livro I: O processo de produção


do capital. São Paulo: Boitempo, 2013.

75 VI EPEGH
A expressão de "feminilidade" na obra "Guitarrista e duas

figuras femininas" de Marie Laurencin

LETICIA ASFORA FALABELLA LEME1

RESUMO: O texto seguinte propõe refletir sobre a caracterização da feminilidade


na obra de Marie Laurencin a partir da análise do quadro “Guitarrista e Duas
Figuras Femininas” pintado por ela no ano de 1934 e doado pelo Banco Hipotecário
Lar Brasileiro S.A. ao Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (Masp)
em 1947, e desde então pertencente ao seu acervo. A obra é a única da artista
presente no museu e a partir dela é possível desvendar características do trabalho
de Laurencin que revelam suas tendências pictóricas, temáticas e seus interesses
e objetivos dentro da pintura, assim como sua inserção nas vanguardas
modernistas, tanto nas semelhanças com os movimentos quanto em sua
originalidade e características próprias. Primeiramente, será desenvolvida uma
breve reflexão sobre a historiografia da arte no que tange a abordagem destinada
ao estudo das mulheres pintoras, partindo para o caso específico de Laurencin
dentro da vanguarda parisiense, com enfoque na discussão do conceito da
feminilidade. Em seguida, após um panorama do percurso de Laurencin, serão
analisados os discursos sobre sua arte e os atributos da feminilidade dentro do
campo pictórico do quadro fonte.
PALAVRAS-CHAVE: Marie Laurencin; Feminilidade; MASP.

1Aluna de Graduação de Bacharelado e Licenciatura em História na Universidade Estadual de


Campinas, com Ênfase em História da Arte. Foi bolsista do programa Pibic - Unicamp, com
pesquisa intitulada "A expressão da 'feminilidade' na obra 'Guitarrista e duas figuras femininas' de
Marie Laurencin" entre agosto de 2018 e julho de 2019. E-mail: lefalabellas@gmail.com.

LETICIA ASFORA FALABELLA LEME 76


1. HISTORIOGRAFIA DA ARTE – O ESTUDO DAS MULHERES

ARTISTAS
São inúmeros os desafios no estudo de uma história da arte que se
desenvolve a partir de uma personagem feminina dentro de um universo onde,
mesmo na modernidade, os espaços destinados às mulheres eram restritos ou
determinados. Esses espaços são descritos pela historiadora Griselda Pollock, em
relação ao século XIX europeu - período de deflagração do modernismo a partir do
movimento impressionista -, em seu livro “Vision and Difference: Femininity,
Feminism and the Histories of Art”, e são esclarecedores sobre a estrutura na qual
estava pautada a produção artística, que permaneceu influente nas primeiras
décadas do século XX, na qual floresceu a produção de Marie Laurencin:

“Because there is a historical asymmetry - a difference socially,


economically, subjectively between being a woman and being a man in
Paris in the late nineteenth century. This difference - the product of the
social structuration of sexual difference and not any imaginary biological
distinction - determined both what and how men and women painted”
(POLLOCK, 1988. p.76)

A assimetria histórica da qual trata a autora se refletiria tanto na produção


dos artistas, quanto na recepção de sua arte pela crítica e pela população. O
argumento da historiadora procura demonstrar como as estruturas sociais, e não
a sina biológica, determinaram o cenário da arte ao longo do tempo, deixando as
mulheres em segundo plano, longe de se tornarem genialidades artísticas,
questionamento feito por outras pensadoras que trataremos em seguida.
Ao pensar especificamente sobre a modernidade, Pollock entende que a não
inserção de um nome feminino enquanto representante de uma vanguarda
moderna se dá, pois o que a história da arte modernista - assim como as anteriores
- celebra, é uma tradição seletiva que normaliza, enquanto um único modernismo,
um particular sistema de práticas baseado no gênero, reforçando as estruturas
presentes ao longo da história de exclusão feminina da primazia artística.
O questionamento sobre como estudar mulheres artistas também foi
comentado por Pollock, que aponta o papel duplo das historiadoras da arte que
estudam artistas mulheres: o de trazer à tona seus trabalhos, e o de desconstruir

77 VI EPEGH
discursos e práticas da história da arte em si mesma. Pollock desenvolve no
decorrer do livro que, no estudo das mulheres pintoras, não é possível ignorar o
fato de que os terrenos da prática artística e da história da arte são estruturados
dentro e fora de relações de poder baseadas no gênero. Sendo assim, é comum a
proposição de uma nova teoria de arte na historiografia voltada para pensar as
mulheres artistas, justamente pelo entendimento de que a maneira tradicional de
se fazer história da arte foi estruturada conceitualmente a partir de visões sobre a
arte masculina genializada. “To discover the history of women and art is in part to
account for the way art history is written … the way women artists are recorded is
crucial to the definition of art and artist in our society.” (Parker; Pollock, 1981)
Em diálogo com Linda Nochlin, Pollock aponta para sua proposta de uma
mudança de paradigma, que se daria a partir da insuficiência do modo padrão de
explicação para o estudo das mulheres dentro da arte. Pollock, ao comentar a
concepção de Nochlin, alerta para a necessidade da criação de um novo método de
análise textual, além de uma crítica à noção do belo e à genialização do autor,
corroborando argumentos que marginalizam as mulheres dentro da arte - o que
diferencia arte feminina e masculina a partir da menor capacidade artística do
primeiro sob o segundo, desconsiderando-se a rede complexa de fatores contextuais
determinantes provocadores dessas diferenças.
Tamar Garb, em uma reflexão sobre a emancipação da mulher enquanto
artista no século XIX, coloca a inexistência da genialidade feminina enquanto
sistematicamente limitada pela estrutura social: “Genius cannot develop without
culture; it is high culture which the State refuses to women and which it owes
them.” (GARB, 1994: p.175).
No questionamento sobre a influência do gênero na produção artística, Linda
Nochlin em “Porque não houve grandes mulheres artistas?” refuta construções de
arte sectarizadas também em questões temáticas: “De qualquer forma, a mera
escolha por determinado tema, ou a restrição por determinados assuntos, não pode
equiparar-se a um estilo, muito menos a um estilo feminino quintessencial.”
(NOCHLIN, 1971: p.6). Nochlin ainda destaca uma contradição na atribuição de
um rótulo de arte feminina:

LETICIA ASFORA FALABELLA LEME 78


“Se fragilidade, delicadeza e preciosidade devem ser tratados como
marcadores de um estilo feminino, não há nada frágil em Horse Fair de
Rosa Bonheur, nem frágil e introvertido nas enormes telas de Helen
Frankenthaler.” (NOCHLIN, 1971: p.6)

Além da limitação que esse rótulo impõe às mulheres, Nochlin aponta outra
contradição no sentido de que, se esta arte também fosse propriamente e
exclusivamente feminina, obras de artistas homens - ela fala especificamente sobre
Jan Steen, Chardin, Renoir e Monet - não abordariam temas como as crianças e a
vida doméstica. Ao reavaliar mitos e colocar novas questões a respeito dos grandes
pintores, a autora acredita que seria possível compreender essas divergências de
representatividade dentro da arte, pensando, “por exemplo, de quais classes sociais
era proveniente a maior parte dos artistas em diferentes momentos históricos,
quais castas e subgrupos.” (NOCHLIN, 1971: p.17). As questões que a autora
desenvolve no texto levam à conclusão que “a situação total do fazer arte, tanto no
desenvolvimento do artista como na natureza e qualidade do trabalho como arte,
acontece em um contexto social, são elementos integrais dessa estrutura social e
são mediados e determinados por instituições sociais específicas e definidas”
(NOCHLIN, 1971: p.20). Assim, ao pensar as mulheres na arte, é necessário
compreender tanto as condições de crescimento da artista, quanto às relações
estabelecidas entre sua produção e o ambiente artístico ao seu redor, entendendo
a crítica de arte, seus relacionamentos pessoais e profissionais enquanto fatores
que afetam sua produção.
Em relação à modernidade e à desigualdade de gênero que vai além da
categorização da arte enquanto feminina ou masculina, Mary Jo-Bonnet diz: “Une
chose est sûre, en tout cas: la modernité réactive les oppositions de sexe et de genre,
au lieu de les résorber comme on aurait pu s'y attendre avec l'évolution du statut
entre les sexes tendant vers l'égalité.” (BONNET, 2006: p.28).
A visão da autora é a de que, apesar de uma esperada tendência à
equalização de gênero na modernidade, ocorre o processo inverso em relação ao
lugar em que as mulheres ocupam. A escritora ainda fala sobre a aceitação da
mulher na modernidade, e diz, sobre os espaços destinados ao feminino: “C'est par
le biais du couple, et du mariage, c'est- à-dire des liens avec des hommes d'avant-
garde que les femmes sont acceptées sur les territoires du masculin” (BONNET,

79 VI EPEGH
2006: p.45). Nesse sentido, é possível observar uma continuidade tanto no que diz
respeito ao lugar da mulher dentro da sociedade, quanto na vida artística.
Pautando-se nessa discussão, ao tratar de uma personagem caracterizada e
diferenciada pela sua estética “feminina”, é necessário entender os atributos do
feminino no período, e, além disso, a formação da artista enquanto ser social
inserido em um contexto em transformação, mas que corrobora concepções do
passado sobre o lugar da mulher, principalmente dentro da arte.

2. DA ARTISTA
Marie Laurencin, nascida no ano de 1883 em Paris e vinda de uma família
não muito abastada, iniciou sua carreira artística como pintora de porcelana em
Sèvres, e em seguida estudou artes na L'Académie Humbert onde se especializou
na pintura à óleo e conheceu o pintor Georges Braque.
A partir de sua relação com o pintor, a artista foi inserida no grupo de
artistas que frequentavam o Bateau Lavoir, estúdio de Pablo Picasso em
Montmartre, e sede da construção de uma estética que seria entendida,
posteriormente, como cubismo. Laurencin, apesar de desenvolver uma estética
inteiramente própria, foi - e é frequentemente - relacionada ao cubismo enquanto
uma das únicas mulheres inseridas no movimento, e seu papel dentro dele foi
canonizado a partir da construção de paradigmas que, a partir de discursos
contemporâneos e historiográficos, se consolidaram enquanto indissociáveis à
figura da artista.
O ano de 1907 foi marcante para a carreira e vida de Laurencin, que foi
introduzida no cenário da pintura a partir de sua participação no Salão dos
Independentes, e posteriormente no Salão de Outono. No mesmo ano, a artista
conhece Guillaume Apollinaire, com quem inicia seu caso amoroso que duraria 7
anos, cujo relacionamento rendeu inúmeras declarações amorosas na produção do
poeta.
A relação de Laurencin com o poeta, assim como com outros artistas do
período, colocou sobre ela o papel de inspiração da ação vanguardista, no sentido
de atribuir à sua imagem a figura de musa. Essa visão é eternizada a partir de um
pintor da época, Henri Rousseau, que em seu quadro “La muse inspirant le poete”,

LETICIA ASFORA FALABELLA LEME 80


de 1909, retrata Laurencin ao lado de Apollinaire - onde o poeta segura uma pena
na mão direita e um papel na esquerda, representando a inspiração que a presença
da artista fornece à sua produção. Porém, essa perspectiva sobre a artista a coloca
em um espaço no qual sua produção própria é secundarizada em decorrência do
papel a ela destinado dentro da vanguarda, e também a encaixa em uma concepção
histórica feminina, categorizada a partir da visão da mulher enquanto musa, que
vem desde os escritos de Hesíodo na Grécia antiga, e se vê presente na
contemporaneidade.
Entre suas mais importantes participações em exposições, estão a da
chamada “sala 41” do Salão de Artistas Independentes de 1911 – uma das
principais manifestações cubistas em Paris - e no Armory Show - Exposição
Internacional de Arte Moderna - em Nova Iorque (1913), onde expõe junto a outros
pintores cubistas. Sua primeira exibição individual de pinturas aconteceu em 1912,
na Galerie Barbazanges.
O entorno de Laurencin influenciou seletas aventuras pictóricas pelas quais
são possível observar poucos experimentos estéticos da artista, que revelaram
preocupações dialogando com as questões pictóricas pensadas pelos modernistas.
No quadro “Les Jeunes Filles” - de 1911 e exposto por ela no Salão dos
Independentes -, por exemplo, fica clara a influência cubista na construção do
fundo, caracterizado pela geometrização dos edifícios em contraste com as quatro
figuras femininas em primeiro plano.
Também, não somente dentro da estética cubista, é possível perceber em
obras como “Baile elegante, baile no campo” de 1913, uma relação de movimento e
dinâmica a partir da dança no baile que manifesta elementos da questão presente
em um quadro célebre da arte moderna - o “Nu descendo uma escada” de Marcel
Duchamp, feito no ano anterior. Apesar desses poucos experimentos dentro da
estética vanguardista, a arte de Marie Laurencin permaneceu singular, e seguia
um caminho próprio em direção à uma padronização de tendências pictóricas
relacionadas ao tema, à representação e à paleta de cores, que se consolidariam
nos próximos anos e se manteriam após a Grande Guerra. No período da Primeira
Guerra Mundial a artista viu-se refugiada na Espanha em meio ao caos instaurado

81 VI EPEGH
em Paris, que atingiu também o grupo dos cubistas, levando à separação de alguns
de seus membros e à morte de Apollinaire.
Em sua volta a Paris, Laurencin foi responsável, além de seus quadros, pela
produção de uma série de ilustrações - a mais conhecida para a edição de 1930 de
“Alice no país das Maravilhas” de Lewis Caroll, considerada uma de suas grandes
obras de arte. Também, pelos cenários dos “Les Biches” da companhia Ballets
Russes de 1924 sob a direção de Serge Diaghilev, e ainda pela Comédie Française
de 1928.
Além disso, compõe a “Société des femmes artistes modernes” (FAM) ao lado
de artistas como Suzanne Valadon e Suzanne Duchamp, associação que foi criada
em 1931 por Marie-Anne Camax-Zoegger para a exposição de arte exclusivamente
feminina em salões anuais, que duraram até 1938. Neste meio tempo, Laurencin
pintou o quadro fonte desse trabalho. A criação da associação, segundo Mary-jo
Bonnet, contribuiu para juntar as forças entre as artistas mulheres do período para
mostrarem seu trabalho ao público:

“Dans le climat de double morale esthétique qui régnait alors, c’est un tour
de force d’avoir réussi à montrer ces œuvres au public, en constituant une
sorte de force collective qui atteste d’une réalité, d’une vitalité et d’un
regard autre qui a également droit de cité” (BONNET, 2006: p.45)

Em 2 de junho de 1936, Tarsila do Amaral, pintora brasileira que conhecera


Laurencin em Paris, publica uma crônica sobre ela no Diário de São Paulo,
republicada por Aracy Amaral em 2001 em uma coletânea denominada “Tarsila
cronista”. Na crônica, a artista conta como foi o encontro entre as duas em uma
recepção no apartamento de Rolf de Maré, em Paris. Sobre Laurencin, a artista
destaca que, apesar de ter feito parte do grupo dos cubistas, “Sua personalidade,
entretanto, se manteve intacta na rebeldia contra os cânones da nova corrente e
nunca se amoldou por completo à estética convencionadas” (AMARAL, 2001: p.75).
Também, Tarsila aponta para a mudança na pintura de Laurencin ao longo dos
anos, dando enfoque para a diferença no uso das cores.
Ao descrever sua pintura, a brasileira também destaca a feminilidade nas
obras de Laurencin, “saídas de uma mão artística tipicamente feminina na acepção
de delicadeza, sensibilidade, lirismo” (AMARAL, 2001: p.75). Para Tarsila, a

LETICIA ASFORA FALABELLA LEME 82


pintura de Laurencin se tornou seu autorretrato, cujo prazer de pintar “sem
preocupações técnicas” gerou censura por parte dos críticos, mas para a artista
trouxe felicidade e uma satisfação narcisista, e com um “estilo próprio, seus
quadros dispensam assinatura, suas tintas são inconfundíveis”. (AMARAL, 2001:
p.75).
Também escritora, Marie Laurencin publica em 1942 “Le Carnet des Nuits”,
obra em que a artista leva ao público diversos de seus diários e poemas. No texto,
ela revela muitos dos aspectos que a tornaram um símbolo da feminilidade, como
por exemplo suas declarações sobre as diferenças entre os homens e as mulheres
pintoras: “Si je me sens si loin des peintres, c’est parce qu’ils sont des hommes - et
que les hommes m’apparaissent comme des problèmes difficiles a à résoudre.”
(Laurencin, 1956: p.16).
No Brasil, Marie Laurencin é extensamente comentada ao longo do século
XX. Em pesquisa no site da hemeroteca digital, foram encontradas mais de 566
menções à artista somente nos arquivos do Rio de Janeiro e São Paulo. No ano de
1942, no jornal Carioca, em uma reportagem destinada à artista, denominada
“História de uma grande pintora Maria Laurencin”, fica clara a influência de suas
obras no país: “os colecionadores e vendedores de quadros arrebatavam-se os seus
quadros. O menor de seus desenhos alcançava preços consideráveis”.
No Correio da Manhã (RJ) - 1920 a 1929, a artista também é descrita: “Marie
Laurencin é a “enfant gaté” dos pintores francezes; ela adora a “Bibliotheque rose”
e que se lhe chame “Marie”; a sua especialidade são retratos e estes valem
actualmente cem mil francos. No seu “appartement (sans atelier)” no quarteirão
dos inválidos, todo Paris snob e rico se faz pintar.”
Também, diversos jornais do país reproduziam a imagem da artista em
conexão com o estigma da feminilidade, estruturado em sua terra natal e
disseminado nos trópicos. Através de colunas de moda, de comportamento feminino
e de arte, a figura de Laurencin era estampada ao povo brasileiro. Na edição 21506
do Correio da Manhã do Rio de Janeiro em 1963, Laurencin é indicada enquanto
referência de moda junto à Dior, Cardin e Givenchy, tendo junto a eles lançado a
moda de ornamentação nos cabelos utilizando flores naturais. Apesar do exemplo
tardio, em 1947 - ano de inauguração do Museu de Artes de São Paulo - a imagem

83 VI EPEGH
da artista já estava consolidada no país, como veremos a partir de discursos
importados de sua terra natal.

3. UNE FEMME TRES FEMININE


3.1. Discursos Sobre a Feminilidade
Tanto a produção literária e artística do período, quanto a historiografia
posterior, produziram paradigmas sobre Marie Laurencin e sua arte, que se
sustentaram e se tornaram a marca de sua obra. Nesse sentido, as características
presentes no quadro “Guitarrista e duas figuras femininas” - único da artista
presente no Museu de Arte de São Paulo -, assim como na obra em geral da artista,
produziram discursos sobre sua arte que se perpetuaram na categorização de uma
associação quase indissociável entre ela e o entendido enquanto arte “feminina” no
período.
Isto pode ser observado em publicações contemporâneas à artista,
principalmente de Guillaume Apollinaire, que desde 1908 escreve sobre ela em
diversos jornais - como em “La Revue des Lettres et des Arts”, onde, em reportagem
sobre o Salão dos Independentes, diz que não tem palavras para definir sua graça
francesa (de Laurencin), não tendo defeitos viris -, e a coloca enquanto o maior
nome da produção de artes com qualidades femininas. Ainda, o poeta diz que ela
não comete o erro da maioria das artistas de querer se sobressair aos homens,
perdendo nesse esforço o gosto e a graça. Também, diz que ela tem a consciência
das profundas diferenças que existem entre o homem e a mulher: diferença de
origem e diferença de ideal.
Em 1912, na La vie artistique, o poeta trata de uma exposição na Galeria
Barbazanges na qual Laurencin, a pedido de Delaunay, expôs algumas de suas
aquarelas. Lá, Apollinaire diz que a arte refinada e elegante de Laurencin é uma
das mais evidentemente originais da época. Também, ele faz uma associação entre
a obra da artista e dos pintores renascentistas franceses a partir dos sentimentos
e da inspiração que seus quadros trazem, apesar de, pictoricamente, suas obras
não estarem relacionadas à pintura renascentista.
No mesmo ano, no Le petit bleu, Apollinaire escreve a matéria “Chroniques
d’art L’art décoratif et la peinture féminine”, Apollinaire trata da exposição

LETICIA ASFORA FALABELLA LEME 84


internacional de artes decorativas e faz um comentário sobre a arte feminina, onde
indica que as artistas femininas trouxeram à pintura um sentimento novo, e as
define como possuintes de uma certa bravura para olhar para a natureza em seus
aspectos mais jovens. Também, aponta que essa nova delicadeza que está
intrínseca a mulher francesa como um sentimento inato do helenismo, que é
possível de ser encontrada em um patamar mais elevado nos trabalhos de
Laurencin expostos naquele momento na Galerie Barbazanges. Além disso,
compreende esses trabalhos enquanto livres, simples, e ausentes de toda tendência
doutrinadora ou social, e sobretudo espontâneos, que embelezariam o tempo que
eles viveram.
Sob uma mesma perspectiva, em “Chroniques d’art: les peintresses”,
Apollinaire trata sobre as exposições particulares de artistas mulheres, e coloca
que a modernidade tem permitido uma emancipação feminina dentro das artes
visuais. Ao tratar de Laurencin, diz que sua exposição mostrou o que poderia ser
esperado dela, apresentando um trabalho não encontrado em nenhuma outra
pintura, antiga ou moderna. O poeta diz que ela evoca acima de tudo a alegria e o
poder dos poetas da Plêiade - grupo de literatos considerados geniais, e além disso
coloca que sua visão sobre a caracterização feminina poderia ser, no futuro, um
marco de sua época, que para evocá-la seria dito “Une femme de Marie Laurencin”
como se diz “Une femme de Jean Goujon”, escultor francês do século XVI.
Em 1913, Apollinaire publica o livro “Les Peintres Cubistes - Méditations
esthétiques”, onde, após uma breve consideração sobre a pintura cubista, escreve
um capítulo sobre cada pintor presente no grupo do Bateau Lavoir - dentre eles um
pequeno capítulo destinado à Mademoiselle Marie Laurencin, única mulher
presente no livro. Neste capítulo, fala sobre a pintura feminina enquanto
possuidora de uma característica própria “Les femmes apportent dans l'art comme
une vision neuve et pleine d'allégresse de l'univers.” (APOLLINAIRE, 1913, p.91),
e liga de maneira indissociável Laurencin e a arte feminina, como se sua arte fosse
a expressão do que era entendido por feminino no período.
No Brasil, ela também foi reconhecida por essa característica, que, além de
sua ação entre os cubistas, a colocava em uma posição de referência quando se
tratava de uma arte feminina e delicada. Em 1956, o Correio Paulistano:

85 VI EPEGH
Pensamento e Arte (SP) escreve uma matéria sobre Marie Laurencin em
decorrência de sua morte, que evidencia essa visão sobre ela: “Culta, viajada, tendo
participado dos debates não só dos cubistas como dos abstracionistas, permanece
sempre ela mesma - encantadoramente feminina sempre!”.
O estigma da feminilidade que permeia toda a obra e vida de Laurencin foi
produzido a partir de discursos fundamentados por um modo de visão legitimado,
uma vez que estes são historicamente atribuídos ao masculino. É fundamental
perceber que eles evidenciam, em uma maior medida, o pensamento e as
características dos críticos, teóricos e literários homens do período, e em menor
medida as intenções da artista.
Atribuir a esses discursos um caráter historiográfico, como já vimos com
Pollock e Nochlin, é pensar de maneira simplista uma rede complexa de intenções
que compreendem o contexto e a arte de Laurencin, ao mesmo tempo que tentar
encaixá-la dentro do cânone modernista tradicional é reforçar as disparidades
entre a arte masculina e a arte feminina, uma vez que os padrões estéticos
valorizados foram produzidos por homens.

3.2. “Guitarrista E Duas Figuras Femininas” E A Feminilidade No Campo Pictórico.


“Guitarrista e duas Figuras Femininas”, em francês, “Guitarristes
Espagnoles”, é uma obra da artista Marie Laurencin, de 1934, doada pelo Banco
Hipotecário Lar Brasileiro S.A. ao Museu de Arte de São Paulo Assis
Chateaubriand (Masp) em 1947, e desde então pertencente ao seu acervo.
Antes de ser doada ao museu, a pintura pertencia à coleção particular de
Béatrix Reynal, poetisa uruguaia membro da resistência política francesa dos anos
40 e dos Diários Associados. Ela vivia no Rio de Janeiro com seu marido e pintor
Reis Júnior e serviu de ponte entre a França e o Brasil através de sua extensa
coleção de arte moderna - construída a partir, muitas vezes, de sua relação direta
com os pintores parisienses.
Segundo o “Jornal”, em reportagem de 1946, a atuação de Reynal na
resistência francesa nos últimos anos a teria levado a uma crise financeira, e a
doação dos seus quadros para o museu, que seria inaugurado no ano seguinte, se

LETICIA ASFORA FALABELLA LEME 86


tornaria a salvação para sua grande coleção - que incluia quadros de Monet, Utrillo,
Valadon, Vlaminck, entre outros.
Apesar de ser o único quadro da artista no Masp, “Guitarrista e duas figuras
femininas” revela muitas das características que se tornaram a assinatura da
artista, pois retrata mulheres em cenas de seus cotidianos - em um recorte de
classe, uma vez que pinta mulheres da média-alta sociedade -, com uma sutileza
pictórica e uma paleta de cores pastéis pautada no rosa, no cinza e no verde.
Na tela é possível observar, da esquerda para a direita, uma criança de
vestido rosa com mangas lilás, de perfil e olhando em direção à outras duas: uma
mulher com vestido branco, e a guitarrista vestida de azul segurando um pequeno
violão - em uma posição que sugere que ela estaria tocando-o. As três possuem
peles alvas e cabelos claros - de um loiro acinzentado - adornados por lenços e
chapéus, além de rostos marcados por olhos pretos. Ao contrário do nariz aparente
e dos olhos demarcados da criança divididos em pálpebra e pupila, as duas
mulheres à esquerda não possuem nariz nem pupilas, mas olhos todos preenchidos
de preto, cruzando seus olhares. Ambos os traços, dos olhos e dos narizes, são
característicos da pintora.
Em reportagem nacional sobre a artista no jornal Carioca, fica claro que
esses traços eram conhecidos: “É verdade, confessa, não gosto de nariz. Em menina,
adorava as bonecas porque o tem muito pequeno, e por sua cor esmaecida. Gosto
da mulher muito branca. Assim é meu único modelo.” Ainda no mesmo texto, o
autor faz uma descrição do estereótipo da pintura da artista, que “criou um rosto
feminino inconfundível: dois grandes olhos cheios de sombras, uma bôca cruel ou
carinhosa, em meio de uma brancura quase espiritual”.
Todas as três personagens do quadro estão sentadas sobre um gramado
verde, cor que se estende no horizonte formando árvores e se mesclando com o azul
do céu, em tons que compõem a paisagem - mas não se moldam em formas,
construindo a abstração do fundo. Tal paisagem encontra-se marcada, porém, do
lado direito do quadro, por blocos de cor que formam quase elementos geométricos,
dois arredondados - um azul e outro cinza - e dois retangulares, no canto superior:
um branco, e acima outro azul.

87 VI EPEGH
As personagens da pintura - assim como o fundo - tomam forma a partir das
pinceladas evidentes, sem um contorno marcado e com camadas de cores que se
sobrepõem e se espalham como manchas que compõem o campo pictórico. Trata-se
de uma cena ao ar livre, onde, além da paisagem e das personagens, pode-se
observar um elemento decorativo: um vaso branco à esquerda da guitarrista que
se encontra sombreado em cinza, cor que se estende até a ponta esquerda do quadro
e em sentido vertical - onde, no canto superior, se transforma em preto,
contrastando com a paisagem colorida e geométrica à direita do quadro. Na Revista
“O Cruzeiro” em 1936 - dois anos após a pintura do quadro, e antes de sua doação
ao Masp - em reportagem sobre a residência do casal Reis Júnior e Béatrix Reynal,
são descritas características da pintura de Laurencin que podem ser extraídas da
obra “Guitarrista e duas Figuras Femininas”, apresentada em seu nome em
francês - “Guitaristes Espagnoles”: “A exótica Marie Laurencin, que não se filia a
escola nenhuma, revela com “Guitaristes Espagnoles” o encanto do seu colorido, a
suavidade harmoniosa das suas tonalidades claras.”.
Além da composição formal, o tema da reunião musical ao ar livre presente
em “Guitarrista e Duas Figuras Femininas” pode ser relacionado com obras de
grandes pintores como Concerto campestre (1510) de Giorgione. Esse diálogo
demonstra o conhecimento que Laurencin tinha em relação à arte, e o seu interesse
em recriar esses temas à sua maneira - dentro de uma estética própria e resistente
em um ambiente onde o valorizado se aproximava do moderno, que remetia ao
masculino.

4. CONCLUSÃO
A expressão da “feminilidade”, colocada entre aspas pela discussão de gênero
e integrada à Laurencin pela construção histórica, no quadro “Guitarrista e Duas
Figuras Femininas”, se deu a partir do desenvolvimento da personalidade da
artista - que, em meio ao socialmente estimado, se tornou singular. A valorização
do compreendido por “feminino” se daria longe da consagração modernista da arte
masculina, o que não fez com que a artista mudasse sua perspectiva sobre a pintura
e sobre a vida.

LETICIA ASFORA FALABELLA LEME 88


Permeada por discursos e condecorada com o estigma da feminilidade, Marie
Laurencin e suas mulheres refletiam o espaço no qual a artista se viu inserida
desde sua criação, em Paris, até sua convivência com os artistas modernos e,
também, através do modo como ela foi inserida dentro da vanguarda.
No Masp, sua obra se torna ponte para a reflexão sobre o lugar da mulher
dentro da arte moderna, e constrói um elo entre o pensar a arte e os discursos sobre
ela - principalmente no âmbito do gênero, que tem despontado enquanto
preocupação para os historiadores, com o objetivo de esclarecer disparidades e
paradigmas sobre a arte feita por mulheres.

89 VI EPEGH
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
APOLLINAIRE, G. “Les Peintres cubistes: Méditations esthétiques.” Collection
Savoir, 1980(1965), Hermann, 293 rue Lecourbe, 75015 Paris.

__________. Chroniques d'art: 1902-1918. Coautoria de L. C Breunig. Paris:


Gallimard, 1996. 623p. (Collection folio/essais, 221). ISBN 207032753 (broch.).

BONNET, M.. “Les Femmes artistes dans les avant-gardes”, Odile Jacob, 2006.
Carioca (RJ) - 1935 a 1954 - Ano 1942, Edição 00376, História de uma grande pintora
Maria Laurencin: Disponível: http://memoria.bn.br Acesso em: 25 out. 2018

Correio Paulistano : Pensamento e Arte (SP) - 1952 a 1957, 17 de junho de 1956,


edição 00023, p. 7 Disponível: http://memoria.bn.br Acesso em: 25 out. 2018 GARB, T.
“Sisters of the Brush: women's artistic culture in late nineteenth-century.” Paris, New
Haven; London : Yale University Press, c1994. cap. 6

LAURENCIN, M. Le carnet des nuits. Genève: P. Cailler, 1956. 98p., il. (Collection
ecrits et documents de peintres, 1).

__________. “Guitarrista e duas figuras femininas”, 1934, Óleo sobre tela, 50.5x
61.5cm

NOCHLIN, L. Por que não houve grandes mulheres artistas? (1971), trad. Juliana
PARKER; POLLOCK. Old Mistresses; Women, Art and Ideology, London, Routledge &
Kegan Paul, 1981, reprinted Pandora Press, 1986, 3.

POLLOCK, G. Vision and Difference: Femininity, Feminism and the Histories of Art,
by Griselda Pollock. London: Rutledge, 1988 Vacaro, São Paulo: Ed. Aurora, 2016.

AMARAL, T. TARSILA cronista. Coautoria de Aracy A. Amaral. São Paulo, SP:


Edusp, 2001. 241 p., il. ISBN 8531406072 (broch.).

LETICIA ASFORA FALABELLA LEME 90


LISTA DE IMAGENS

Marie Laurencin, “Guitarrista e duas figuras femininas”, 1934, Óleo sobre tela,
50.5x 61.5cm.

91 VI EPEGH
A figura de Napoleão Bonaparte como indivíduo histórico-

universal na Filosofia da História de Hegel

LUIZ FELIPE DE OLIVEIRA1

RESUMO: O filósofo Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770 – 1831) possui uma das
mais notáveis obras filosóficas já escrita na história do Ocidente, despertando o
interesse de grandes estudiosos e críticos durante o século XIX. O presente artigo
busca estabelecer uma crítica ontológica, a partir do instrumental analítico
apresentado por György Lukács (1885-1971), em sua Ontologia, da visão hegeliana
sobre função social de Napoleão Bonaparte (1769-1821) em sua política de
expansão econômica, social e ideológica. Desse modo, objetivamos apreender,
primeiramente, qual o lugar ocupado pelo conceito de indivíduo histórico-
universal, que são, para o filósofo, indivíduos que potencializam tendências sociais
presentes no processo histórico e que em cujos fins particulares contém a vontade
do espírito universal. Em segundo lugar, como a figura de Napoleão é edificada
junto a esse complexo de conceitos filosóficos.
PALAVRAS-CHAVE: Filosofia da História de Hegel; Ontologia do ser social;
Indivíduo histórico-universal; Napoleão Bonaparte.

1 Graduando pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

LUIZ FELIPE DE OLIVEIRA 92


1. INTRODUÇÃO
O presente artigo, fruto de uma pesquisa de iniciação científica, tem como
objetivo efetuar uma crítica ontológica da visão de Hegel (1770-1831) sobre a
função social de Napoleão Bonaparte, em sua obra A Filosofia da História. Para
realização de tal projeto, partimos do instrumental analítico apresentado por Karl
Marx (1818-1883), em sua Ideologia Alemã e em sua Crítica à filosofia do Direito
de Hegel, e por György Lukács (1885-1971), em sua obra Para uma ontologia do
ser social. Tal escolha se deu devido ao fato de que para Marx o ponto de partida
são indivíduos em sua objetividade. Para ele, é através da produção dos seus meios
de vida, ou seja, a forma e o que produzem, que os homens produzem sua vida
material, de modo que eles são dependentes das condições materiais dessa
produção. É sempre a partir da análise da realidade objetiva que pode se
estabelecer a conexão entre a estrutura social e política e a produção, de modo que
“a produção de ideias, de representações, da consciência, está, em princípio,
imediatamente entrelaçada com a atividade material e com o intercâmbio material
dos homens” (MARX & ENGELS, 2007: 93). No entanto, como aponta Antonio Rago
Filho, “determinação social do pensamento não se confunde com determinação
mecânica nem com reflexo fotográfico, não é determinismo” (RAGO FILHO, 2013:
109). Os pressupostos de que partimos são os homens inseridos em sua
processualidade material e histórica em condições específicas. Consideramos os
indivíduos como dinâmicos, históricos, relacionais e a protagonistas de si mesmos.
Assim, ao debruçarmos no objeto principal da pesquisa, fez-se necessário realizar
uma análise imanente da obra, bem como fez-se necessário buscar a determinação
histórico-social do pensamento de Hegel.

2. DETERMINAÇÃO HISTÓRICO-SOCIAL DO PENSAMENTO


A obra de Hegel, nesse sentido, fora escrita em um período em que a
Alemanha ainda não estava unificada e o capitalismo era deveras atrasado em
relação às grandes potências (França e Inglaterra). Há, no entanto, um número
grande de diferentes interpretações acerca desse processo histórico. Leo Köfler
(1907-1995) afirma que é recorrente na historiografia a afirmação de que a
aristocracia prussiana é descendente da Ordem Teutônica, que possuía um caráter
93 VI EPEGH
puramente imperialista, justificando o caráter militar do Estado prussiano. O
ponto falho desta análise está no fato de que ela ignora importantes aspectos
sociais e o fato de que outras nobrezas da Europa apresentaram desenvolvimento
semelhante sem, porém, “ter” origem teutônica. O que Köfler apresenta como tese
é que as tentativas falhas de emancipação de classes durante a história alemã
levaram à formação de uma ‘rusticidade prussiana’. O autor mostra, como exemplo,
que a forte repressão das revoltas camponesas levou a consolidação definitiva do
modelo feudal. De igual modo, no momento em que a economia burguesa começava
a dar seus primeiros passos, ocorreu a Guerra dos Trinta Anos, que devastou a
Alemanha. Köfler afirma, então, que “el núcleo de la idea burguesa-revolucionaria,
la soberanía del pueblo, sigue siendo un fenómeno marginal” (KÖFLER, 1974: 406).
Tal processo histórico é definido pelo autor – e, evidentemente por outros autores
– como Via prussiana de objetivação do capital. É daí que podemos entender Karl
Marx, em sua Crítica da filosofia do direito de Hegel, quando afirma:

A história alemã, é verdade, orgulha-se de um desenvolvimento que


nenhuma nação no firmamento histórico realizou antes dela ou chegará
um dia a imitar. Tomamos parte nas restaurações das nações modernas,
sem termos tomado parte nas suas revoluções. Fomos restaurados
primeiramente porque outras nações ousaram fazer uma revolução e, em
segundo lugar, porque outras nações sofreram contrarrevoluções; no
primeiro caso, porque nossos senhores tiveram medo e, no segundo, porque
nada temeram. Tendo nossos pastores à frente, encontramo-nos na
sociedade da liberdade apenas no dia do seu sepultamento. (MARX,
2013:152)

Desse modo, “somos contemporâneos filosóficos do presente, sem sermos


seus contemporâneos históricos. A filosofia alemã é o prolongamento ideal da
história alemã” (MARX, 2013:156). É nesse sentido que Antonio Rago Filho afirma
que “Na formação alemã, a burguesia teve de se despojar das conquistas teóricas
do ‘período heroico’ da revolução democrático-burguesa. A partir daí,
impossibilitada de apanhar as coisas pela raiz, a ideologia burguesa retém a
superfície, a topicidade dos fenômenos” (RAGO FILHO, 2013: 114). A Alemanha,
ao contrário das nações modernas, não galgou os degraus intermediários de
emancipação política. Marx mostra que ainda que superasse tais obstáculos por via
teórica, na via prática eles ainda eram intransponíveis.

LUIZ FELIPE DE OLIVEIRA 94


2.1. A Ascensão da História como Objeto em Solo Alemão
Um texto interessante que se revelou de extrema importância para essa
pesquisa foi O romance histórico, de György Lukács, em que o autor afirma, logo
no início, que o romance histórico surgiu no início do século XIX nos idos da queda
de Napoleão Bonaparte. Na Alemanha, somente no iluminismo tardio a questão do
espelhamento artístico em épocas passadas apareceu com centralidade, ainda que
Lessing, grande expoente dessa corrente, sustentasse ainda que a história nada
mais seria que uma coletânea de nomes. Lukács mostra que já no “Sturm und
Drang” a questão da história aparece de modo mais consciente, sendo que em Götz
von Berlichingen, de Goethe, já ocorre um reflorescimento do drama histórico. O
que nos interessa nessa discussão é o fato de que Lukács observa que:

Essa ascensão consciente do historicismo, que encontra sua primeira


expressão teórica nos escritos de Herder, tem suas raízes na situação
particular da Alemanha, na discrepância entre o atraso econômico e
político do país e a ideologia dos iluministas alemães, que, apoiando-se em
seus predecessores ingleses e franceses, levaram as ideias do Iluminismo
a um patamar mais elevado. (LUKÁCS, 2011: 36-7).

Na França e na Inglaterra a situação seria bem diferente, na medida em que


a revolução burguesa e a constituição do Estado nacional condiziam a um mesmo
processo. Na Alemanha, Lukács mostra que o patriotismo burguês colide
diretamente com a desunião nacional, com a fragmentação política e econômica.
São diversas pequenas cortes que são um verdadeiro empecilho para que a unidade
alemã se efetue. O que ocorre, então, é um retorno à história alemã. Surge uma
esperança de um renascimento nacional que se nutre da busca pelo reavivamento
da grandeza passada, o que incorre necessariamente nas causas históricas da
ascensão e do declínio da Alemanha. É por essas particularidades que na
Alemanha a história se torna um importante objeto. É notável também a afirmação
do autor de que entre 1789 e 1814 a Europa passou por mais revoluções do que em
séculos inteiros, de modo que “a celeridade das mudanças confere a essas
revoluções um caráter qualitativamente especial, apaga nas massas a impressão
de ‘acontecimento natural’, torna o caráter histórico das revoluções muito mais
visível” (LUKÁCS, 2011: 38). Surge o sentimento de que existe uma história e que

95 VI EPEGH
ela é um processo de mudanças que interfere cotidianamente na vida dos
indivíduos.
Há também uma grande transformação qualitativa quanto ao modo em que
as guerras eram travadas, considerando que as guerras absolutistas eram
marcadas por conflitos entre pequenos exércitos mercenários. Com a Revolução
Francesa, a República Francesa foi obrigada a criar exércitos de massa para se
defender das ofensivas contrarrevolucionárias. Para tal, fora necessário a criação
de propagandas.
Lukács mostra então que o impacto de todas essas transformações reside no
fato de que se criaram possibilidades concretas para que os homens apreendessem
a si mesmos como seres historicamente determinados. O filósofo húngaro conclui,
portanto, que após a Revolução Francesa surgiu a necessidade de estabelecer uma
concepção que demonstrasse a necessidade histórica da Revolução, que, nas
palavras do autor, “apresentasse provas de que está fora o apogeu de um
desenvolvimento histórico longo e gradual, e não um súbito obscurecimento da
consciência da humanidade, uma cataclísmica ‘catástrofe natural’ da história da
humanidade” (LUKÁCS, 2011: 43). Ocorre, assim, uma mudança imprescindível
na visão do progresso em relação ao Iluminismo. Segundo Lukács:

O progresso deixa de ser visto como um progresso na luta essencialmente


anistórica da razão humanista contra a razão feudal absolutista. Segundo
essa nova concepção, a racionalidade do progresso humano é desenvolvida
de modo cada vez mais acentuado a partir do conflito interno das forças
sociais na própria história; de acordo com essa concepção, a própria
história deve ser a portadora e a realizadora do progresso humano.
(LUKÁCS, 2011:43)

Todo esse desenvolvimento histórico que Lukács descreve acerca do papel da


história encontra sua maior expressão em nada menos que no filósofo alemão Georg
Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831), cujo livro A Filosofia da História é objeto da
pesquisa. Hegel enxerga na história um processo impulsionado por forças motoras
intrínsecas a ela mesma, cujas consequências atingem todos os fenômenos da vida
humana. A vida da humanidade, assim, se apresenta como um grande processo
histórico. Surge, desta forma, um novo humanismo, uma nova concepção de
progresso tanto do prisma histórico quando do filosófico, em que busca “preservar

LUIZ FELIPE DE OLIVEIRA 96


as conquistas da Revolução Francesa como fundamento irrenunciável do futuro
desenvolvimento humano, que concebe a Revolução”.

3. A FILOSOFIA DA HISTÓRIA E A EVOLUÇÃO CONCEITUAL


Na Filosofia da história, Hegel parte da ideia de que tudo o que ocorreu e
tudo o que resultará na História é determinado por um processo racional, de modo
que “nela tudo aconteceu racionalmente, que ela foi a marcha racional e necessária
do espírito universal” (HEGEL, 2008: 18). Como bem observa Marcuse, em Razão
e Revolução, na Ciência da Lógica Hegel estuda a estrutura da razão enquanto na
Filosofia da História, ele expõe o conteúdo histórico da mesma. Para Hegel é no
campo da história universal que o espírito encontra sua realidade concreta, no
entanto, para que haja a compreensão desse processo, ele mostra que é necessário
conhecer a natureza do espírito e suas determinações abstratas. Nesse sentido,
Hegel afirma que:

A natureza do espírito é conhecida por meio de sua perfeita oposição. Como


a substância da matéria é o peso, assim devemos dizer que a substância, a
essência do espírito, é a liberdade. [...]. Concebemos a matéria como
pesada, desde que tenda para um ponto central: ela é essencialmente
composta, exige de forma particular, procura a sua unidade e, portanto,
procura superar- se a si mesma buscando também o seu contrário [...]. O
espírito, ao contrário, é exatamente aquilo que contém o ponto central: ele
não possui a unidade fora de si, ele a encontrou, Ele é em si mesmo e por
si mesmo. A matéria tem a sua substância fora de si; o espírito é o ser por
si mesmo. E isso é liberdade, pois quando sou dependente, então relaciono-
me a um outro que não sou eu; eu não posso existir sem um exterior; eu
sou livre quando estou em mim mesmo. Esse ‘estar em si mesmo’ do
espírito é a autoconsciência, a consciência de si mesmo. (HEGEL, 2008: 23-
4)

É nessa direção que Hegel indica que se se deve distinguir o fato de que sei
com o que eu sei, na autoconsciência esse procedimento não é necessário, pois, o
espírito conhece a si mesmo, ele é o juiz de sua própria natureza ao mesmo tempo
que ao voltar para si, ele se reproduz. Portanto, “pode-se dizer que história
universal é a representação do espírito no esforço de elaborar o conhecimento de
que ele é em si mesmo” (HEGEL, 2008: 24). Da mesma forma que a semente possui
em si, inicialmente, todas as características da árvore, como sabores e as formas,
de modo que processualmente os desenvolve, os primeiros traços do espírito contém

97 VI EPEGH
toda a sua história. É por isso que Hegel afirma que “a história universal é o
progresso na consciência da liberdade” (HEGEL, 2008: 25). Hegel mostra que,
enquanto a liberdade é um conceito interior, os meios de sua realização são
exteriores. Nesse sentido, ele se volta para as ações dos homens, suas necessidades,
paixões, interesses, caráter e talentos como força para realização de interesses.

3.1. A Filosofia da História e o Indivíduo Histórico-Universal


Portanto, a partir da análise interna de A Filosofia da História concluímos
que na história universal os seres humanos realizam sempre algo intencionado,
ainda que em seus interesses particulares resida o universal. Porém, nós nos
retemos na observação de que disso decorre uma contradição, pois, há dois
momentos que intervêm no objeto: a ideia e a paixão. Podemos nos questionar,
dessa forma, que, se o indivíduo realiza suas ações de acordo com seus desejos e
vontades, quando então a autoconsciência motiva as ações humanas? É nesse
momento que Hegel mostra que há outro aspecto nas grandes relações históricas.
Surgem possibilidades que se apresentam como vantajosas, necessárias e mesmo
essenciais e essas possibilidades se tornam históricas, carregando em si valores
maiores do que os previamente existentes na sociedade. Alguns indivíduos, assim,
transcendem essa relação de concretizar as ações mediante somente ao seu
interesse pessoal. Surge então os indivíduos históricos-universais, que são homens
históricos que conciliam o universal com seus interesses particulares: “de sorte que
esse domínio pessoal não foi apenas uma vitória particular, mas sim um instinto
que realizou aquilo que, em princípio, o seu tempo exigia” (HEGEL, 2008: 33).
Esses são, para o filósofo, os grandes homens da história, cujos fins particulares
contém a vontade do espírito universal e é nesse sentido que devem ser chamados
de heróis. Heróis, pois, “tiraram os seus objetivos e a sua vocação não apenas do
calmo e ordenado decorrer das coisas, por meio do sistema vigente, mas de uma
fonte cujo conteúdo oculto não serve a uma existência presente” (Idem), ou seja,
uma fonte cujo espírito interior ainda está submerso. Esses heróis esgotam-se em
si mesmos produzindo condições universais que parecem ser sua tarefa e sua obra.
É nesse sentido que Hegel afirma que:

LUIZ FELIPE DE OLIVEIRA 98


Tais indivíduos não tinham nos seus objetivos a consciência da ideia, mas
eram homens práticos e políticos. Porém, eram também pensadores que
tinham a visão do que era necessário e do que era oportuno. Tal era a
verdade da sua época e do seu mundo, a próxima raça que já estava contida
neles. Sua tarefa era conhecer esse valor geral, o próximo e necessário
nível mais elevado do seu mundo, transformá-lo em seu objetivo e nele
concentrar a sua energia. Os homens históricos-universais, os heróis de
uma época, devem, por isso, ser reconhecidos como sábios: suas ações, seus
discursos são o que existiu de melhor na época [...]. É por isso que os outros
seguem esses guias de almas, por sentirem neles a força irresistível do seu
próprio espírito vindo ao seu reencontro. (Idem)

Essas afirmações vão direto ao ponto principal da nossa pesquisa: buscamos


compreender como se dá a construção do conceito de indivíduo histórico-universal
e como o papel histórico ocupado por Napoleão Bonaparte se relaciona diretamente
com esse conceito, de modo a observar as tendências da época que impulsionavam
a construção de uma mitologia napoleônica.
No sentido de melhor compreender as formulações filosóficas de Hegel,
buscamos apoio no filósofo porto-riquenho Eliseo Cruz Vergara (1943), em sua obra
La concepción del conocimiento histórico en Hegel (VERGARA, 1997). Eliseo
afirma que sem dúvidas esse é o momento da filosofia de Hegel que mais recebe
críticas negativas. Isso se dá devido ao fato de que a linguagem metafísica e
metafórica empregada por Hegel obscurece sua mensagem, de modo que soa
minimamente estranho um filósofo que busca, de alguma maneira, superar as
filosofias e as teologias anteriores defender a ideia de que a ação dos indivíduos é
um instrumento que a razão, através de sua astúcia, utiliza para atingir seus fins.
No entanto, é necessário captar o sentido da mensagem que Hegel busca passar e,
nessa direção, Eliseo mostra que o propósito do filósofo alemão é defender, apesar
das dificuldades, seu ponto de vista de que na história o espírito pensa a si mesmo,
de como as tendências presentes na realidade histórica constituem possibilidade
de mudança.
É interessante a observação do filósofo porto-riquenho acerca dos indivíduos
histórico-universais, pois, ele mostra que Hegel elabora uma teoria quase
determinista, na medida que a contribuição do herói é importante não devido às
suas características particulares, mas sim devido seu interesse coincidir com as
possibilidades gestadas na realidade histórica. Essa coincidência entre as
tendências presentes no processo histórico e os interesses do herói leva-nos a

99 VI EPEGH
refletir sobre uma nova tese de Hegel sobre os heróis: a astúcia da razão. Nessa
direção, Hegel afirma que:

O interesse particular da paixão é, portanto, inseparável da participação


do universal, pois é também da atividade do particular e de sua negação
que resulta o universal. É o particular que se desgasta em conflitos, sendo
em parte destruído. Não é a ideia geral que se expõe ao perigo na oposição
e na luta. Ela se mantém intocável e ilesa na retaguarda. A isso se deve
chamar astúcia da razão: deixar que as paixões atuem por si mesmas,
manifestando- se na realidade, experimentando perdas e sofrendo danos,
pois esse é o fenômeno no qual uma parte é nula e a outra afirmativa. O
particular geralmente é ínfimo perante o universal, os indivíduos são
sacrificados e abandonados. A ideia recompensa o tributo da existência e
da transitoriedade, não por ela própria, mas pelas paixões dos indivíduos.
(HEGEL, 2008: 35)

Assim, os indivíduos são instrumentos inconscientes de uma racionalidade


que busca se realizar num determinado momento histórico, de modo que “as
individualidades, os seus objetivos e a sua satisfação são sacrificados [...] e os
próprios indivíduos são feitos [...] de meios” (Idem). A afirmação de que os
indivíduos são um mero meio traz a ideia de que eles são algo exterior ao fim e que
não faz parte dele. No entanto, Hegel mostra que mesmo as coisas mais simples
utilizadas como meio necessitam de ser de uma natureza que condiz com o objetivo
final, de modo a possuir em si algo que seja comum com tal fim. É interessante
também que Hegel sempre supõe que os indivíduos histórico-universais estão
sempre relacionados à esfera que constitui o meio e a encarnação da realização
plena da liberdade, que é o Estado: os indivíduos, no geral, são seres práticos e
políticos. São práticos, pois, um indivíduo histórico- universal não tem a calma
necessária para tecer muitas considerações, atendo-se ao seu objetivo. Hegel
menciona, como exemplo, Alexandre, César e Napoleão.
É interessante também as observações de György Lukács, em O romance
histórico, acerca da figura do indivíduo histórico-universal. Ao analisar o romance
de Walter Scott (1771-1832), o filósofo húngaro mostra que a temática scottiana se
remete frequentemente à “era dos heróis”, ao período da “infância humana”, no
entanto, o espírito da figuração do herói em Scott já é parte da “vida adulta”. O
herói do romance scottiano, assim, é próprio de seu gênero da mesma forma que
Aquiles e Odisseu são próprios da epopeia. Os heróis da epopeia, diz Hegel, são
indivíduos totais que catalisam em si as tendências que estão no processo histórico.
LUIZ FELIPE DE OLIVEIRA 100
Os principais personagens de Walter Scott são também personagens nacionais
típicas, mas em um sentido mais mediano. Lukács mostra, então, que o ponto
interessante dessa discussão é que essa figuração da grandeza histórica em
personagens específicos não é por um acaso: “Balzac entendeu de maneira muito
clara o segredo da composição de Walter Scott e afirmou que o romance deste chega
aos grandes heróis do mesmo modo que a história do seu tempo fomentava a
aparição deles” (LUKÁCS, 2011: 56). É nesse sentido que podemos traçar um
grande paralelo com a Filosofia da História, de Hegel, na medida que ambos
viveram praticamente em um mesmo período histórico: Scott nasceu em 1771 e
faleceu em 1832, enquanto Hegel nasceu em 1770, falecendo em 1831. Assim:

Também em Hegel o ‘indivíduo histórico-mundial’ surge das amplas bases


do mundo dos ‘indivíduos conservadores’. ‘Indivíduos conservadores’ é, em
Hegel, a caracterização resumida dos homens da ‘sociedade civil’, a
caracterização da contínua autorreprodução desta última por meio da
atividade daqueles indivíduos. A base é constituída da atividade pessoal,
privada, egoísta dos indivíduos. É nela e por meio dela que se afirma o
universal social. Nessa atividade, desdobra-se ‘a conservação ética’. Mas
Hegel pensa a sociedade não apenas no sentido dessa autorreprodução,
como algo estagnado; ela se situa no meio da corrente da história. Aqui, o
novo defronta-se com o velho como um inimigo, a transformação está
‘ligada a uma depreciação, desintegração e destruição das formas
anteriores da realidade’. Ocorrem grandes colisões históricas, nas quais
justamente os ‘indivíduos histórico-mundiais’ são portadores conscientes
do progresso histórico (do ‘espírito’, segundo Hegel), mas apenas no sentido
de que dão consciência e orientação clara ao movimento que já existe na
sociedade. (LUKÁCS, 2011: 57)

Dessa forma, a função dos indivíduos histórico-universais é dizer os homens


o que eles querem. Ele é, como aponta Hegel, o espírito oculto que lateja no presente
histórico e que ainda não se revelou, mas quer se manifestar. Observamos, então,
que tais indivíduos ocupam um lugar orgânico na filosofia e no romance histórico.
É nesse sentido que Lukács afirma que “essas obras figuraram os grandes homens
como base em sua missão histórica concreta, na totalidade de suas determinações
objetivas e sócio-históricas” (LUKÁCS, 2011: 378), de modo que quando o indivíduo
histórico-universal entra em cena, ele encontra uma solução aos problemas e põe a
ação na ordem do dia. Somente aí torna-se “compreensível para nós a gênese do
historicamente novo e, ao mesmo tempo, o papel do homem significativo nessa
evolução” (Idem). Portanto, tais indivíduos só se tornam histórico-universais

101 VI EPEGH
porque possuem em sua essência, em seus anseios, laços estreitos com a tarefa
histórica que eles têm de realizar.

3.2. A Figura de Napoleão Bonaparte como um “Teseu” na Obra de Hegel


No entanto, ainda que Hegel atribua essa qualidade a Napoleão Bonaparte,
ele não vai muito além dessa afirmação, inicialmente. É necessário, assim,
entender os seus pensamentos acerca da Prússia de sua época, bem como o papel
ocupado por Napoleão, em sua visão, dentro dessa determinação histórica. É
interessante que ao analisar a desunião política de seu país, bem como outras
questões, Hegel se vê impotente em encontrar uma solução para a situação.
Podemos, entretanto, observar que em seus escritos, desde The German
Constitution (1802), o filósofo sempre traz à tona a figura de Teseu, o herói grego.
Isso porque Teseu foi responsável por liquidar as confusões existentes na Atenas
de seu tempo. Thomas Bulfinch, grande estudioso da mitologia greco-romana,
afirma que “Teseu é um personagem semi-histórico. Registros constatam que ele
unificou várias tribos que habitavam o território da Ática, do qual Atenas se tornou
a capital” (BULFINCH, 2013: 240). Lukács, em The Young Hegel, mostra que
alguns autores, como Wilhelm Dilthey, afirmam que o Teseu de Hegel era
justamente Napoleão Bonaparte.
No que tange a situação específica da Prússia, Hegel não se iludia com as
lendas de Frederico, o Grande, de modo que ele não percebe nenhum interesse
nacional nas guerras travadas pela Prússia e tampouco vê méritos no
agigantamento da Prússia durante o século XVIII. Lukács mostra que essa visão
perdura até a queda de Napoleão e a Restauração. Em uma carta datada de
novembro de 1807, endereçada à Niethammer, Hegel afirma que:

So far we have seen that in all imitations of the French only half the
example is ever taken up. The other half, the noblest part, is left aside:
liberty of the people; popular participation in elections; governmental
decisions taken in the full view of the people; or at least public exposition,
for the insight of the people, of all the reasons behind such measures.
(HEGEL, 1984: 151)

Percebemos, assim, um descontentamento de Hegel com a política prussiana


que perdura grande parte da sua obra. Lukács, caminhando na mesma direção,

LUIZ FELIPE DE OLIVEIRA 102


afirma que a identificação de Napoleão como um Teseu para Hegel fica cada vez
mais evidente com o passar dos anos, o que por outro sugere que ele tinha ainda
esperanças na completa libertação nacional da Alemanha. Teseu, para Hegel,
deveria de ter magnanimidade ao ponto de conceder a população uma unidade.
Uma constituição como a que Teseu deu ao povo de Atenas, é, porém, contraditória
nos tempos modernos. Nessa direção, György Lukács afirma, em The Young Hegel,
que:

As to Theseus himself, we must not allow ourselves to be misled by Hegel’s


very general and in parts obscure language. Of course, for Hegel the
‘world-historical individual’ is always the executive organ of the world-
spirit. But, as we shall see at once, what always matters to him is the
hegemony of the historically necessary principle and Theseus is no more
than an organ, an instrument of world history, who is needed to carry out
the latest part of the process. The antithesis between the ‘world-historical
individual’ who has grasped the necessity for a general change after the
French Revolution, and the inert, retrograde German nation that has
fallen asleep in the midst of its wretched semi-feudal and petty-bourgeois
existence and that defends this existence against all attacks by appealing
to its private interests and particular nature. (LUKÁCS, 1975: 309-310)

Portanto, podemos afirmar, novamente, que Hegel não está preocupado com
o indivíduo específico, mas sim com o princípio histórico-universal que busca se
realizar em tal indivíduo e em um momento particular do tempo, usando-o como
instrumento para seus próprios fins. Mas o mérito do grande homem, do indivíduo
histórico- universal é justamente expressar a vontade absoluta, de modo que todos
reúnem em torno de si a sua bandeira. Foi assim que Teseu fundou o Estado de
Atenas e é assim que Hegel enxerga o expansionismo Napoleônico.
De fato, vemos que essas esperanças que Hegel nutria não eram infundadas.
Ao adentrar na questão da Alemanha durante a época de Napoleão, observamos
que não havia nenhuma tendência revolucionária, apesar de algumas tensões
sociais. No decorrer da Revolução Francesa, os prussianos observaram com
interesse as transformações na França, no entanto, ao serem invadidos, saqueados
e reorganizada, as opiniões ficaram mais divididas. É bastante claro, porém, que
após todas essas tensões a Alemanha surgiu sob uma nova forma e o Sacro Império
Romano sucumbiu definitivamente. Jacques Droz, historiador francês e
especialista na história germânica, ressalta que um ponto importante foi que com
a derrota dos Aliados pelas tropas napoleônicas, fora assinado o Tratado de
103 VI EPEGH
Lunéville (1801). O tratado buscava realizar uma racionalização dos territórios e
uma secularização dos bens eclesiásticos. Observamos, assim, que a expansão
Napoleônica é impactante justamente porque ela recebe apoio da maior parte da
população alemã, bem como da intelectualidade. Isso se dá, como vimos, pela
situação particular da Alemanha no momento da invasão e do papel da imprensa.
Podemos, com isso, melhor entender a atribuição de indivíduo histórico-universal
empregada por Hegel ao trabalhar a figura de Bonaparte. Napoleão é o homem
capaz de catalisar as tendências sociais colocadas no processo histórico e, através
de suas ações, realizar o desígnio do espírito universal. Napoleão tornava- se,
assim, o grande herói romântico do período. O historiador Eric J. Hobsbawm
afirma que em determinada época nenhuma sala da classe média estava completa
sem que houvesse a presença de seu busto, de modo que ele busca explicar uma
construção de um mito em torno da figura do Imperador.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A presente pesquisa buscou, portanto, a determinação histórica do
pensamento de Hegel, de modo a revelar as conexões e desconexões de sua filosofia
com a realidade. Foi imprescindível, dessa forma, o estudo da chamada via
prussiana de objetivação de capital, na medida que as conclusões das análises
proporcionaram a apreensão das raízes do idealismo alemão, cujo maior expoente
foi nada menos que Hegel. Vimos também a ascensão de uma consciência histórica,
em solo alemão, que palpita na literatura, na filosofia e nos meios intelectuais
muito devido as condições particulares alemãs. Adentramos, então, na obra
Filosofia da História, situando-a no conjunto filosófico do autor e desenvolvendo
seus preceitos filosóficos. A apreensão do lugar ocupado pelo conceito de indivíduo
histórico-universal foi de extrema importância para a conclusão da pesquisa, pois,
vimos que Hegel enxergava Napoleão Bonaparte tal. Napoleão surge em sua obra,
portanto, como um indivíduo capaz de catalisar as tendências sociais que estão
presentes no processo histórico. Foi importante, neste ponto, situarmos o
pensamento de Hegel como pertencente a uma tendência histórica existente em
seu presente, de modo que podemos afirmar a hipótese de que ele não foi o único a
enxergar em Napoleão uma grandiosidade ímpar, mas foi o único, entretanto, que

LUIZ FELIPE DE OLIVEIRA 104


desenvolveu uma fundamentação filosófica tão inovadora e profunda para
interpretar seu presente histórico, sendo sua filosofia considerada por muitos
autores o ápice da filosofia moderna. No entanto, foi de extrema importância
mostrarmos a limitação de seu pensamento, sendo necessário afirmar que sua
filosofia da história, ainda que represente uma inovação em seu tempo, se torna,
também, um instrumento legitimador de relações de poder dominantes, visto que
para ele os traços negativos da “raça” africana são devido a ausência de qualquer
consciência de universalidade. Portanto, procuramos apreender o lugar ocupado
pela figura de Napoleão Bonaparte na Filosofia da História, de modo a situar a
obra em seu tempo e em um conjunto de relações e tendências postas nesse
presente histórico.

105 VI EPEGH
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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107 VI EPEGH
A memória do Regime Militar do MAC-USP: "Entre Atos

1964/68" e "Um dia terá que ter terminado: 1969/1974".

ALÉXIA SAYURI HINO1

RESUMO: Este artigo contempla a primeira parte da pesquisa que busca


investigar e analisar os discursos curatoriais de duas exposições de arte. Pois
acredita-se que nos respectivos discursos curatoriais ocorre a legitimação
institucionalizada de um tipo de memória sobre o regime militar brasileiro (1964-
1985). As exposições em questão, realizadas pelo Museu de Arte Contemporânea
da Universidade de São Paulo (MAC- USP), trazem a proposta memorialística do
cruzamento da história do museu com o período ditatorial em um recorte temporal
de 1964-1974. Assim, a pesquisa tem como objetivo principal identificar se a
narrativa expositiva é ou não concomitante com a chamada “memória hegemônica"
sobre o período militar. Através de fotografias, listas de obras, plantas
expográficas, folders e textos curatoriais, foi possível reconstituir as exposições que
ocorreram em 2010-2011, nas duas sedes que o MAC-USP possuía na época – uma
na Cidade Universitária e outra no Ibirapuera.
PALAVRAS-CHAVE: Exposições; MAC-USP; Regime Militar; Curadoria;
Memória.

1 Estudante de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP

ALÉXIA SAYURI HINO 108


1. A MEMÓRIA DO REGIME MILITAR EM EXPOSIÇÕES DE ARTE:

O CASO DO MUSEU DE ARTE CONTEMPORÂNEA DA

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO (MAC USP)


O período histórico do regime militar brasileiro (1964-1985) demarcou a
última ditadura vivida pela sociedade brasileira. Como se caracterizou como um
regime de exceção historicamente muito recente, isso implica na existência de
muitas pessoas que viveram naquela época tragam consigo suas narrativas, suas
memórias em torno do assunto. De maneira que em 2014, nos 50 anos do golpe
militar, se evidenciou uma batalha memorialística, onde se encontravam grupos
que carregavam consigo uma memória e a vontade de transformá-la em uma de
suas fontes. Nas palavras de Rodrigo Patto Sá Motta: “(...) ocorreu uma verdadeira
invasão da memória no espaço público, acompanhada de febre comemorativa e da
afirmação de vários grupos que reclamam o reconhecimento de suas
representações e verdades (...) vista como uma ameaça ao predomínio da
historiografia como representação do passado.” (MOTTA, 2013, p. 61). Ou seja,
uma batalha travada com a memória e a historiografia, que para fins de
esclarecimento, memória e história não são sinônimos2.
Assim, o contexto mostrado anteriormente permitiu refletir na pesquisa em
andamento, que se é requerido a uma parte da população uma revisão no fazer
histórico onde suas memórias possam se encaixar, qual tipo de memória se
predomina do regime militar? A memória em questão é conceituada pelo professor
doutor Marcos Napolitano, intitulada como “memória hegemônica”, ou seja, a
memória predominante sobre o regime militar, construída através de demandas do
seu tempo, se caracteriza como uma memória crítica, porém de caráter liberal. Com
o intuito de apagar o papel dos liberais na constituição de um governo autoritário
e também de projetos da esquerda naqueles tempos, a memória hegemônica se

2Memória se constitui como uma construção cultural livre e a história possui um método científico
resultado de uma operação intelectual, de acordo com Marcos Napolitano (2015). Contudo nenhuma
das duas representam de fato a “verdade”, porém, a historiografia possui maior arcabouço teórico.

109 VI EPEGH
firmou como crítica àquele governo e posicionou a sociedade como vítima de todas
as atrocidades cometidas pelos militares. Essa memória construída teve bases de
legitimação na mídia, no campo artístico, em universidades e instituições políticas
ideológicas, também em museus. A pesquisa em questão tem como objetivo
investigar a memória hegemônica no último item: o espaço de museu, em
específico, museu de arte.
O museu escolhido para a investigação foi o Museu de Arte Contemporânea
da Universidade de São Paulo (MAC-USP) que elaborou em 2010-2011 uma série
de exposições de arte sobre o período do regime militar: “Entre Atos 1964/68” e
“Um dia terá que ter terminado 1969/74”. A realização dessas exposições foi
estimulada por uma iniciativa da Fundação Bienal de São Paulo com o lançamento
da 29ª Bienal de Arte de São Paulo, que trazia consigo a temática “Arte e Política”.
A Bienal criou uma rede de colaboração entre instituições culturais que
mobilizassem atividades relacionadas à temática proposta. Também parte-se da
hipótese que com o avanço revisionista ideológico e historiográfico sobre o regime
militar somados ao fato de que no ano de 2010 tramitava no Congresso Nacional a
lei que colocaria em voga a Comissão Nacional da Verdade. Percebe-se que a
relação da memória com o regime militar estava a todo vapor no período das
exposições.
De maneira que, a temática que envolve “arte e política” em um sentido
amplo, dialoga muito com o histórico do museu estudado. O MAC foi fundado em
1963, um ano anterior ao golpe, quando a coleção de Ciccillio Matarazzo e Yolanda
Penteado doaram a coleção do antigo Museu de Arte Moderna à Universidade de
São Paulo. A sua primeira sede se localizou no terceiro andar do prédio da Bienal
de São Paulo, tendo como seu primeiro diretor, o professor de História da Arte
Walter Zanini3, que se configurou como um componente de peso na história do

3Walter Zanini foi professor, historiador, crítico de arte e curador, e também ocupou o cargo de
primeiro diretor do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo. Sua gestão
marcou a história do museu por contribuir para abertura de um diálogo entre as obras modernas
presentes no acervo com as obras compostas por novas mídias. Sua política museológica exercida
no MAC favoreceu tal junção de acervos e possibilitou ao museu a adesão dessas obras de caráter

ALÉXIA SAYURI HINO 110


museu e da arte contemporânea no pós-década de 60. Em razão dele ultrapassar a
figura do museu tradicional em alocar a experimentação artística para dentro
desse espaço. Em um momento que a arte conceitual emergia e com ela, novos
suportes artísticos e novas temáticas entravam em voga, tal como críticas sociais
e políticas. Mesmo inserido em uma ditadura, o museu se consolidou como grande
fomentador artístico e amparo institucional para o campo de artes visuais da época,
com o lançamento de editais de eventos como “Jovem Gravura Nacional” (JGN),
“Jovem Desenho Nacional” (JDN) e o “Jovem Arte Contemporânea” (JAC), que
possuíam o intuito de premiar jovens artistas por suas obras e aderir às mesmas
ao acervo do museu, sendo assim, uma forma de acréscimo ao acervo moderno
doado pelos mecenas de artes. Assim, percebe-se que na proposta da Bienal, o MAC
possui um acervo muito propício à temática.
As exposições estudadas na pesquisa, com a curadoria das docentes do
museu - Cristina Freire, Helouise Costa e Ana Magalhães4 - retomam este período
pelo qual o museu passou em formato de uma sequência de narrativas curatoriais
que perpassam os planos da memória do museu e do regime militar. Tendo em
vista isso, a pesquisa precisou reconstituir as exposições ocorridas entre 2010-
2011, para poder analisar os discursos curatoriais que é onde se encontram tais
memórias que podem se configurar na linha da memória hegemônica ou não. Para

contemporâneo. Informações disponíveis em:


http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa547/walter-zanini
4 Ana Gonçalves Magalhães é historiadora da arte, professora livre docente, curadora e vice-

diretora do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC-USP), no momento


em que foi realizada essa pesquisa. Ela foi coordenadora da divisão de Pesquisa em Arte, Teoria e
Crítica do MAC-USP até agosto de 2018. Informações disponíveis em:
https://bv.fapesp.br/pt/pesquisador/33652/ana- goncalves-magalhaes/
Cristina Freire é professora titular e curadora do Museu de Arte Contemporânea da Universidade
de São Paulo (MAC-USP). Também possui o título de docente do programa de pós-graduação em
Estética e História da Arte da USP. Coordena o GEACC (Grupo de Estudos em Arte Conceitual e
conceitualismos no MAC. Foi vice-diretora do MAC durante o período de 2010-2014. Informações
disponíveis em: http://www.mac.usp.br/ mac/conteudo/academico/academico_cristina.asp
Helouise Costa é professora associada e curadora do Museu de Arte Contemporânea da
Universidade de São Paulo (MAC-USP) desde 1993. Também atua como professora no Programa
de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História e no programa de pós em Museologia,
ambos na Universidade de São Paulo. Costa foi vice-diretora do museu de 2006 a 2010 e no momento
da pesquisa é coordenadora da Divisão de Pesquisa em Arte, Teoria e Crítica do MAC-USP.
Informações disponíveis em: https://bv.fapesp.br/pt/pesquisador/31570/ helouise-lima-costa/

111 VI EPEGH
isso, foram utilizadas as plantas expográficas, fotografias, folders, textos da
diretoria, textos curatoriais e listas de obras. Contudo, faz-se necessário pontuar
que este artigo trata somente da primeira etapa da metodologia de pesquisa, que
consiste em desvendar o discurso curatorial, para depois ser conferido a base de
leituras sobre história, memória e museu. Contudo, até o momento da redação
deste artigo, pode-se ter uma ideia da memória construída nas exposições.
A exposição “Entre Atos 1964/68” foi realizada na sede da Cidade
Universitária da Universidade de São Paulo do dia 25 de janeiro até o dia 2 de
fevereiro de 2011. Essa mostra recortou os quatro anos iniciais do regime militar e
contou com artistas como Ivan Serpa, Marcelo Nitsche, Waldemar Cordeiro,
Antonio Roberto Aguilar, Amélia Toledo, Mira Schendel e Claudio Tozzi. Sua
curadoria foi dividida em três partes: “Figura”, “Gesto” e “Plano”. A exposição era
composta de quatro galerias de tamanhos diferenciados, sendo que as duas do
início do prédio eram da repartição “Figura” e as duas outras no fundo da exposição
sendo para “Plano” e “Gesto”.
As nomenclaturas que guiam o espaço expositivo e também a curadoria de
obras, de acordo com o texto curatorial apresentado tanto na exposição como no
folder, dizem a respeito de movimentos atrelados a correntes artísticas. Em um
recorte de 64 até 68, onde se encontra a transição de uma arte abstrata e
neoconcreta para o retorno de uma arte figurativa (JAREMTCHUK, 1999, p.38).
Porém, não seria uma arte figurativa qualquer, de acordo com Paulo Reis, mas sim
uma figuração muito influenciada pelas vanguardas internacionais que
realizavam uma figuração artística mais engajada e atrelada ao realismo social
(REIS, 2005, p.80). Então, percebeu-se que nesta exposição o movimento em
relação às obras estavam restritas a esse momento de transição artística possível
de se observar no acervo do museu. Em um movimento contrário à linha de
acontecimentos das correntes artísticas, as curadoras do MAC iniciaram a
exposição com as obras figurativas no seu início. Onde era possível encontrar obras
com muita temática de violência e de referências contextuais.

ALÉXIA SAYURI HINO 112


Como por exemplo as obras de João Suzuki “Exercício de integração nº 1”
(1966) e de Marcelo Nitsche “Aliança para o progresso” (1965). A obra de Suzuki
retratou, ao que tudo indica, uma cena de tortura, por retratar uma pessoa de
cabeça para baixo amarrada por fios. Ao lado dessa figura existe um homem de
social observando a cena. O cenário desta obra também é peculiar, por trazer no
fundo cores muito escuras e uma aparente estrutura de madeira na parte superior
com os fios que amarram a pessoa pendurada. A obra de Nitsche possui uma
tridimensionalidade e foi composta por planos em madeira, o terceiro plano compõe
a base da obra que forma um escudo com uma parte da estampa da bandeira
americana. No segundo plano é possível observar duas mãos realizando um aperto
de mão com pregos gravados em ambas, e o adereço que se encontra no primeiro
plano, se observa uma algema prendendo o “aperto de mão”.
Ambas obras se destacam na primeira galeria da exposição e foram
escolhidas para esse texto, afim de poder exemplificar o assunto retratado na
mostra para compreensão de seu movimento curatorial. O mesmo será feito em
outras partes da exposição e também na exposição “Um dia terá que ter terminado
1969/74” por conta das limitações da publicação. Assim, notou-se que a mensagem
introdutória na exposição “Entre Atos” recorta uma memória do regime militar
como sendo um período marcado por violência em seu início e desvenda o
alinhamento militar com as políticas estadunidense.
Por sua vez, em “Plano” e “Gesto” as obras expostas mudam totalmente o
seu caráter, seja pelo suporte ou por suas formas. Na galeria de “Plano”, o espaço
destinado foi dividido com a repartição de “Gesto”, então os tamanhos delas foram
muito menores em relação a “Figuras”. As obras de “Plano” predominaram as
formas geométricas e uma mescla de suportes tradicionais como a tela e o papel,
contudo o que se destacou nesta galeria foram as três vitrines que se encontravam
no fundo, pois nelas foram localizadas a única menção da história do museu, com
exceção dos textos curatoriais. As vitrines foram separadas de acordo com a
tipologia do documento, assim, a primeira vitrine continha catálogos das

113 VI EPEGH
exposições realizadas no MAC no período recortado pela exposição, que contava
com mostras do “Di Cavalcanti”, “Evandro Carlos Jardim”, “Oficina
Pernambucana” e “Cubistas e Futuristas”. A segunda vitrine obteve o enfoque em
fotografias dos eventos promovidos pelo museu, com a Jovem Gravura Nacional e
Jovem Arte Contemporânea. A terceira vitrine, foram expostos os catálogos desses
eventos do museu, contando também com o Jovem Desenho Nacional. Acredita-se
que o posicionamento desse material na repartição de “Plano”, está muito atrelado
com a sua produção exposta que caminhou mais na vertente do neoconcreto. Pois,
o neoconcretismo não rompia com a forma artística de maneira abrupta, e isso era
visto nessas edições dos eventos promovidos pelo MAC. A radicalização da forma
artística não era tão presente nas edições iniciais desses eventos, de acordo com
Daria Gorete Jaremtchuk (1999, P. 44).
A repartição de “Gesto” o movimento artístico destacado foi o abstracionismo
em principalmente no suporte de papel, contudo também se encontrava madeira.
As obras estavam dispostas com molduras e vidros, também foi possível observar
que a cor não se fez muito presente nesta repartição. “O poço” (1967/1969) de
Amélia Toledo foi o objeto artístico escolhido para ficar posicionado no fundo da
galeria com um enfoque de luz. Contudo, apesar do destaque dado a obra pela
curadoria, outro ponto chamou a atenção na análise realizada pela pesquisa, que
foi a natureza das obras que compunham as paredes, predominantemente de papel
e cores frias, a autoria das obras em sua grande maioria -16 artistas de 20 em um
total – foram contemplados com algum prêmio aquisição do museu. O que
possivelmente indicava uma curadoria com a pretensão de destacar o seu acervo
diverso e que o MAC abraçava diversas formas artísticas. Em “Gesto” o nome dado
a repartição não se faz uma alusão direta a um movimento artístico bem definido
como visto em “Figuras” e “Plano”, pode-se refletir que este nome pode estar
atrelado aos gestos abstratos presentes nas obras ou também, uma referência a
Néstor Garcia Canclini (2015) que faz referência ao gesto artístico de realizar
rupturas, com a finalidade de quebrar com padrões ou modos convencionais, porém

ALÉXIA SAYURI HINO 114


Canclini defende que essas rupturas são aderidas ao universo artístico reduzindo
o gesto de romper como uma convenção, no fim das contas.
Outro ponto que pode-se destacar na exposição “Entre Atos” era sua
composição cenográfica expositiva inserida no conceito do chamado “cubo branco”.,
uma tendência curatorial moderna. Essa forma de compor a exposição está
relacionada às paredes brancas para expor as obras de arte, que pretende interferir
de maneira mínima na interpretação das obras, ou seja, compor um espaço
considerado “neutro”. Essa tendência se iniciou com exposições de arte moderna, a
qual havia uma multiplicidade de estilos e que se caracterizava como uma forma
artística de caráter “mais individualista, menos coletivo, menos institucional (...)”
de acordo com Lisbeth Rebollo Gonçalves (GONÇALVES, 2004, p. 53). Dessa
maneira, a forma mais apropriada encontrada para expor tais obras, em um local
institucional como o museu e galerias, seria um espaço considerado como “neutro”.
Porém, foi verificado na obra de Brian O’Doherty que a neutralidade em um espaço
expositivo não se concretiza de fato, pois escolher paredes brancas já se assume um
posicionamento em relação a estética de toda composição, também pode-se somar
outros fatores como o modo de apresentação das obras (O’DOHERTY, 2002, p. 23).
A justificativa da escolha do branco para compor a exposição inicial pode indicar
relação com as divisões do período do regime militar. Pois, mais para frente do
artigo verifica- se que na exposição “Um dia terá que ter terminado 1969/74” apesar
da manutenção das paredes brancas, a composição cenográfica em conjunto com o
componente do prédio altera-se os sentidos. Então, as paredes brancas de “Entre
Atos” abrem margem para interpretação de que a cor se relaciona com o recorte do
período da ditadura, uma cor branda em conjunto com o chão cinza para
acompanhar o período inicial da ditadura.
Assim, as possíveis interpretações que podem ser feitas da narrativa
curatorial em contraponto ou concordância com a memória hegemônica se
encontram no ponto da relação da “violência” e da “sociedade vítima”. Em relação
a violência, a exposição permite uma interpretação que se concretiza a quebra de

115 VI EPEGH
uma ideia que o período inicial do regime militar foi sem violência, rompe-se com
a chamada “ditabranda”5 que caracteriza os primeiros anos do governo militar e
que compõe a narrativa da memória hegemônica. Logo no início da exposição, é
possível observar que obras em sua interpretação demonstram o contrário. A
memória hegemônica foi construída para creditar toda violência no pós-AI-5.
Contudo, ao destacar formas de violência no discurso curatorial, colaborou-se
também para uma narrativa da “sociedade vítima”, não inserindo no discurso uma
crítica a participação de setores sociais na instauração do regime autoritário, ponto
que contribui para um endossamento da memória hegemônica. Então percebe-se
que a memória da exposição em relação ao período não se fez totalmente em
alinhamento de uma legitimação da memória hegemônica, apesar de certos
conteúdos se relacionarem com a mesma. Em relação a memória construída do
MAC, a narrativa curatorial compõe um percurso que condiz com a fase que o
museu se encontrava: seu início. A aparição tímida do histórico do museu na
exposição revela muito de um museu que estava começando a se estruturar.
Também, a exposição de um acervo composto por formas ditas mais tradicionais,
possibilitam a interpretação de uma instituição capaz de abraçar muitas formas
artísticas.
A segunda exposição da série “Um dia terá que ter terminado 1969/74”
ocorreu no prédio da Fundação Bienal de São Paulo no Ibirapuera do dia 2 de
outubro de 2010 até o dia 7 de agosto de 2011. A mostra recortou os cinco anos após
a instauração do Ato Institucional nº 5 (AI-5), o que demarca o auge do governo de
exceção. Alguns artistas presentes nessa exposição eram: Artur Barrio, Mira
Schendel, Carlos Zílio, Sérgio Ferro, Paulo Herkenhoff, Regina Silveira e
Waldemar Cordeiro. Essa exposição foi realizada por um tempo em concomitância
com a 29ª Bienal de São Paulo, que ocorria no mesmo prédio, contudo o MAC se
instalava no terceiro andar. A 29ª Bienal ocorreu do dia 25 de setembro a 12 de

5Termo utilizado por Marcos Napolitano em “1964: História do Regime Militar Brasileiro”.
NAPOLITANO, Marcos. 1964. A história do regime militar brasileiro. São Paulo: Contexto, 2014.

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dezembro de 2010, com a temática de “Arte e política” e realizou uma parceria
entre instituições culturais para mobilizarem os acervos em torno desta temática,
dentre as instituições culturais estava o MAC.
A segunda exposição da série era dividida em duas galerias, sendo que a
galeria inicial era em formato retangular onde havia vitrines expositivas e
compartilhava o espaço com o “hall” de entrada da exposição que contava com duas
paredes, uma com o nome e texto curatorial da exposição e a outra encoberta com
uma montagem de fotografias dos eventos do MAC. A obra cerne da exposição que
também deu o nome da exposição se encontrava no início da mostra, a obra “São
Sebastião (Marighella)” (1969/70) de Sérgio Ferro em conjunto com uma carta
endereçada ao diretor do museu naquela época, Walter Zanini. A obra foi realizada
com um mistura de materiais (madeira, tecido gesso) e não possui um formato
tradicional, “São Sebastião (Marighella)” parece uma junção de cenas que é
possível observar um par de pernas de homem, furos, uma caixa com a imagem de
um santo e bandeiras de festa. A carta de Ferro a Zanini, de acordo com o texto
curatorial, indica que o a carta expressava a vontade de Ferro antes de ir para o
exílio, deixar a obra sob a guarda do MAC e que também expressa a vontade de
que logo o regime ditatorial se encerre, dessa passagem foi retirada o nome da
exposição.
Depois da obra de Ferro, é possível observar que na primeira galeria houve
uma diversidade de suportes artísticos expostos na parede inicial e que as vitrines
retomaram histórico do MAC através da exibição dos catálogos das exposições que
ocorreram entre 69-7, por exemplo, “28 artistas do acervo circulante” (1969),
“Fotografias de Cartier Bresson” (1970), “Vicente Rego Monteiro – Amélia Toledo
– Donato Ferrari – Mira Schendel” (1971), “Acontecimentos: 9º aniversário do
museu” (1972), “Novas doações e aquisições” (1973), “20’9” 6 artistas conceituais”

117 VI EPEGH
(1973), “Fotografia experimental polonesa” (1974), “Prospectiva 74” (1974) entre
outras exposições.6
O que pode-se inferir da memória construída nesta parte inicial da exposição
sobre o regime militar, recaiu de certa forma na obra de Ferro, que abriu a
possibilidade de duas interpretações sobre a obra, a posição e a escolha curatorial
da mesma. A obra em seu conteúdo realiza uma alusão ao assassinato de Carlos
Marighella que demarcou a desestruturação da guerrilha urbana e também a
repressão em 1969 contra os guerrilheiros (NAPOLITANO, 2017, p. 121). Assim, a
obra demarca a construção da memória do regime como um período violento e
repressivo. Também, traz à tona na exposição que inseridos neste recorte da
ditadura, os atores envolvidos neste período se destacam os guerrilheiros e os
agentes do governo em luta contra os mesmos.
Em relação a memória construída do MAC no percurso curatorial, tanto a
diversidade de suportes como as vitrines da primeira galeria, denunciam um
destaque institucional no período. Pois, a disposição das obras que compunham
uma parede com uma diversidade de suportes uma possível explicação para este
critério de escolha se baseia em expor a diversidade do acervo do MAC, uma vez
que a maioria das obras nesta parte da exposição foi composta por prêmios
aquisição de alguma Jovem Arte Contemporânea (22 obras presentes – 20 delas
eram prêmios aquisição). As vitrines, por sua vez, indicam para a memória que o
MAC obteve um papel ativo, mesmo inserido no contexto mostrado pela obra de
Ferro.
A segunda galeria expositiva tomava um espaço maior e também continha
vitrines posicionadas no centro da mesma. Observou-se que o suporte
predominante nesta galeria foi o papel, tanto nas paredes como nas vitrines.
Contudo, destacaram-se através da análise curatorial obras que diziam a respeito
dos atores históricos da época do regime militar, como foi visto nas obras de Carlos

6 A obra de Carolina Amaral Aguiar “Videoarte no MAC-USP: o suporte das ideias nos anos 1970”
(2007) no capítulo III é possível ter acesso a uma súmula de alguns desses eventos citados. AGUIAR,
Carolina Amaral de. Vídeoarte no MAC-USP: o suporte de ideias nos anos 1970. São Paulo, 2007.

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Zílio, Regina Silveira, Artur Barrio e o MAC novamente. Pois, as quatro formas
artísticas abordadas na narrativa curatorial, obtiveram destaque na cenografia e
trouxeram consigo aspectos do constructo da sociedade da época. A obra de Zílio,
“Para um Jovem de Brilhante Futuro” (1973/74) era composta por uma maleta (tipo
empresarial) com fotografias e pregos enfileirados dentro dela. O objeto artístico
de Zílio se constituía como um mala-armadilha, que pode ser interpretada como
um signo de uma alienação de classe, no sentido que a mala executiva representa
o símbolo de uma vida bem sucedida, porém, pode se demonstrar como uma grande
armadilha. Essa interpretação foi movida não somente com os conteúdos visuais
da obra, mas também pela leitura de Paulo Reis sobre a trajetória do artista na
exposição “Nova Objetividade Brasileira” (1967), onde o artista apresentou de
maneira semelhante uma obra sobre alienação e ignorância a respeito da
realidade. Reis escreveu que o artista tinha a ambição de juntar o fazer poético
com a luta política através da arte, de maneira que, a arte possibilitasse chances
de mudança sobre a consciência do espectador (REIS, 2005, p.145).
A obra de Regina Silveira ocupava uma grande parte da parede, pois ela era
um conjunto de 15 quadros feitos de serigrafia sobre papel que se intercalavam nas
cores preta e vermelha. O conjunto não possui título, mas compõe um álbum de
nome “Middle Class & CO” (1971), as serigrafias são compostas de várias formas,
onde dentro dessas formas estava estampada uma multidão. De acordo com Tadeu
Chiarelli as obras de Silveira em questão representam a “(..) dilaceração do
indivíduo na sociedade contemporânea”.7 Também, pode-se interpretar através da
escolha dessa obra para uma exposição que possui um cunho memorialístico do
regime militar, Silveira trouxe uma questão similar a de Zílio, no quesito de uma
alienação de classe, contudo, aqui foi mais específico referente a classe média.
Através do conjunto nota-se essa classe sempre no formato estabelecido, como uma

7 REGINA Silveira. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo:
Itaú Cultural, 2019. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa8084/regina-
silveira>. Acesso em: 15 de Jan. 2019. Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7

119 VI EPEGH
grande massa a ser manipulada, principalmente na época pelas mídias liberais
muito presente na época do regime.8
Artur Barrio, por usa vez, foi contemplado na exposição com duas de suas
produções. Ressalta-se aqui que tanto Barrio como Zílio, obtiveram obras expostas
também na 29ª Bienal que acontecia no mesmo prédio de “Um dia terá que ter
terminado”, então infere-se que os visitantes já tivessem tido um primeiro contato
com obras dos artistas. As obras presentes na exposição do MAC eram o registro
de uma performance em sequências de fotografias, na obra “Seis movimentos”
(1974) e uma vídeo-arte exibida em um pequeno televisor
“Sit....Cidade....y.....Campo...” (1970). A obra “Seis movimentos” retratou em
fotografias os seis passos de como cortar uma tela com a tesoura,9 o assunto
referente a obra diz mais a respeito as questões do “fazer artístico”, uma vez que
retoma uma crítica da estética artística. A obra “Sit....Cidade....y.....Campo...” foi
composta de um registro fotográfico de bengalas de pão amarradas como se fossem
dinamites, cada registro fotográfico se encontrava em um local diferenciado. As
fotos foram expostas em formato de vídeoslides e a interpretação desta obra,
inserida no contexto da exposição, retoma dois pontos interessantes abordadas na
mesma: a variação do suporte artístico, que no caso de Barrio está muito atrelada
a radicalidade, e também a guerrilha armada. Sobre a radicalidade artística de
Barrio, nesta obra em específico, Barrio não ousou tanto como fez em “Trouxas
ensanguentadas”10, contudo o artista utilizou de material orgânico para realizar

8 A classe média anterior ao golpe de 1964 com sua relativa ascensão social se viu ameaçada pela
crise econômica e pelos movimentos que organizavam os proletários e camponeses pela luta por
melhores condições de vida. Porém, a classe média sentiu sua posição social ameaçada, em
decorrência desses fatores citados, sendo assim, uma classe que foi muito suscetível aos discursos
anticomunistas da imprensa e de outras entidades civis e religiosas, que davam margem a ideia de
que os comunistas destruiriam a civilização cristã, a hierarquia considerada natural e liberdade
individual. (NAPOLITANO, 2017, p. 48)
9 Alusão a obra de Lygia Clark “Caminhando” em que a artista corta a faixa de Moebius.
10 A obra de Barrio, para Artur Freitas, foi a soma de duas ações do artista que ocorreram no Salão

Bússola no Museu de Arte Moderna no Rio de Janeiro (1969) e outra na mostra artística chamada
Do Corpo a Terra em Belo Horizonte (1970). A primeira ação que compunha Trouxas
ensanguentadas foi denominada de
“Situação…ORHHHHHHH…ou…5000…T.E…em.........N.Y...City......” no qual apresentou dois
objetos-trouxa-sacos recheados de lixo - que ficavam cercados de outros detritos no espaço do salão.
Esta situação composta por Barrio, convidava o espectador a participar da obra ao contribuir com

ALÉXIA SAYURI HINO 120


sua obra de arte e seu registro feito através de fotografias. A questão da guerrilha
armada se fez presente novamente na exposição, através da possibilidade desta
obra em especifico de Barrio fazer uma alusão aos atentados de bombas caseiras
ocorridos na cidade de São Paulo11 sob autoria da guerrilha armada.
Por último, na segunda galeria quem obteve destaque foram as vitrines que
continham arte-postal. Não foi possível realizar uma análise do conteúdo das artes
postais presentes na exposição, devido a uma limitação documental, contudo, foi
possível estudar a relevância deste suporte o papel do MAC neste contexto. A arte-
postal se formou como um suporte artístico e também um meio de comunicação
entre artistas na década de 1970, foi um espaço criado para se tecer críticas a
repressão e a falta de liberdade presente, no geral, na América Latina (LOPES,
2014, p.2659). Assim, uma forma de comunicação inserida em uma rede oficial foi
estabelecida entre esses artistas, contudo, sua mensagem tinha formas únicas e
“codificadas”. A arte-postal também entrava na questão da desistitucionalização
da arte, por ser um suporte artístico altamente reprodutível e seus materiais serem
efêmeros. O MAC estava inserido nesta rede de comunicação, apesar de ser uma
instituição, por ter constituído como um museu diferenciado foi possível que sua

mais lixo. Como finalização para essa primeira ação, o artista mergulhou no lixo que compunha sua
obra e inseriu dentro dos objetos- trouxa, carne crua. Feito isso, Barrio carregou os seus dois objetos-
trouxa com mais um punhado de lixo para fora do museu para consagrá-las como esculturas,
realizando assim, uma ação irônica referente a monumentalizarão de esculturas públicas. Por sua
vez, a segunda ação de Barrio, intitulada “Situação T/T,1” foi composta de três ações: a confecção
dos objetos-trouxa com carne crua, ossos, barro, espuma, etc, a segunda parte se concretizou com o
abandono desses 14 objetos-trouxa confeccionados num córrego em Minas Gerais. A terceira parte
se compôs do registro fotográfico da reação dos espectadores perante aos objetos-trouxas (FREITAS,
2013, p. 116- 155). Nota-se que esta obra composta por Barrio quebrou muitas barreiras estéticas
da arte, assim como denotou uma forte crítica ao espaço institucionalizado da arte. Porém, a obra
de Barrio ainda vai um pouco além de paradigmas artísticos, como também trouxe consigo uma
crítica social e política explícita, ao compor os seus objetos artísticos de matéria orgânica e deixá-
los em locais periféricos, ademais a associação direta que era possível realizar com os objetos-
trouxas e a violência militar.
Ressalta-se que a segunda ação de Barrio “Situação T/T,1” estava presente na 29ª Bienal de São
Paulo. De maneira que possibilita a interpretação do MAC compor em conjunto com a Bienal, por
um período de tempo, uma relação em referência aos nomes mais “famosos” da cultura engajada.
Não só Barrio, havia também artistas como Nelson Leirner, Antonio Dias, Amélia Toledo, Carlos
Zílio. Não restrita somente a “Um dia terá que ter terminado” mas também com “Entre Atos”.
11 Disponível em: https://acervofolha.blogfolha.uol.com.br/2018/04/20/1968-quarta-bomba-impacto-

de-explosao-na-sede-de-o-estado-de-s-paulo-atinge-raio-de-200-m/ Acesso em: 22 de janeiro de


2019.

121 VI EPEGH
inserção fosse possibilitada nessa rede comunicativa autônoma (SAYÃO, 2014, p.
245). Como resultado dessa conexão de artistas com o MAC foram realizadas
exposições tais como “Seis Artistas Conceituais” (1973) e “Prospectiva’74” (1974)
(SAYÃO, 2014, p. 245-246).
Referente a construção cenográfica, apesar do uso de cores brancas nas
paredes se manter nesta exposição, o sentido atribuído na composição do espaço se
difere de “Entre Atos”. O auto contraste realizado pelas paredes com o chão e o teto
escuros, possibilitou uma interferência visual muito apelativa à exposição, ainda
mais se levar em consideração, o recorte temporal do período da ditadura,
conhecido como “anos de chumbo”.
Diferente do que foi visto na primeira exposição da série, em “Um dia terá
que ter terminado” houve um movimento mais intenso de retomada histórica do
museu no período da ditadura com o grande painel de fotografias que recepcionam
os visitantes12, as vitrines da primeira galeria, a obra de Ferro e sua carta, sem
contar que a exposição continha muito mais texto explicativos. Também houve
muito mais frequência sobre as edições da Jovem Arte Contemporânea nesta
exposição do que a primeira da série. Este movimento curatorial acredita-se estar
relacionado com o espaço da Bienal, que carregava consigo uma carga histórica do
museu, onde teria sido palco de todos aqueles eventos mostrados13. Assim, denota-
se que o conjunto cenográfico em adição de uma maior composição visual
preocupada em retomar a história do museu compõe uma narrativa curatorial que
destaca o papel do museu em um período altamente repressivo, considerando que
o MAC a essa altura, já possuía mais “maturidade” como instituição museal e
assim mais relevância em paradoxo com um momento muito atrelado a censura e
repressão promovidas pelo Estado.

12 As fotos dessa composição, pelo que foi possível observar nas fotografias consultadas, eram
fotografias dos eventos do MAC, tais como a preparação das JACs, registro do espaço na época e
destaque para algumas reproduções de obras, algumas iguais as fotografias colocadas no folder.
13 A primeira sede do MAC foi o terceiro andar do prédio da Fundação Bienal (AGUIAR, 2007, p.79)

ALÉXIA SAYURI HINO 122


Assim, denota-se que a exposição “Um dia terá que ter terminado” trouxe
para a questão da memória um protagonismo do papel do museu em contraponto
a um período demarcado por violência e repressão construído desde o início da
mostra sob a égide da obra de Sérgio Ferro e intensificado pelas demais obras
analisadas. Onde, a narrativa curatorial obteve cuidado em construir um percurso
de um período repressivo com destaque aos seus principais atores, que através da
análise da exposição foram a guerrilha armada, o Estado repressor, a classe média,
classe trabalhadora e o museu. O MAC obteve destaque tanto na questão artística
como na questão conjuntural, no sentido que, o museu pode expor o seu acervo
diversificado e apresentar através dos catálogos e adesão da arte-postal, um
amparo institucional que resguardava a cultura engajada que emergia naquela
época. Em relação a conjuntura, o MAC se estabeleceu como porta-voz de uma
categoria artística que se sentia censurada e reprimida pelo governo autoritário.
Foi possível observar também que as exposições apresentam uma continuidade em
suas narrativas que caminhou para uma progressão da constituição do próprio
museu, de maneira que, “Entre Atos” obteve muito cuidado na construção de uma
narrativa que posicionasse o governo como autoritário desde o início, onde emergia
um tipo de arte crítica e um museu aberto a esse tipo de arte. Para que em
sequência, em “Um dia terá que terminado”, o papel do MAC, inserido em um
contexto demarcado por maior repressão, se concretizasse como o auge do refúgio
institucional para a arte engajada.

123 VI EPEGH
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ALÉXIA SAYURI HINO 124


A Monumentalidade como forma de afirmação do poder

tirânico: o caso do Templo de Hera no governo de Polícrates

de Samos

ALINE PORFIRIO1

RESUMO: Em vista dos estudos sobre o uso do culto religioso como artifício político
de governos tirânicos; juntamente com a análise de casos nos quais a
monumentalização de edifícios religiosos também foi utilizada por estes
governantes com o intuito de fortalecer seu poder, esta pesquisa tem como objetivo
principal analisar como Polícrates, tirano de Samos de 532 a 522 a.C,
aproximadamente, utilizou o culto à Hera, deusa de extrema importância para a
polis de Samos, e da monumentalização do seu santuário como forma de criar uma
base de apoio para o seu governo.
PALAVRAS-CHAVE: Monumentalidade; Samos; Tirania; Arqueologia;
Arquitetura.

1Graduando de História na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Esta apresentação


é fruto da sua pesquisa de Iniciação Científica realizada no LABECA-MAE-USP sob orientação da
Profa. Dra. Maria Beatriz Borba Florenzano com apoio da CNPq.
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SAMOS
Samos, nome que também é usado para referenciar a polis, é uma das
maiores ilhas do Egeu, tendo 477km de extensão, localizada na costa da Ásia
Menor. A história da ilha é marcada por seu forte comércio marítimo, possível
graças à sua localização. Uma mostra da grande influência marítima é a imensa
quantidade de oferendas de barcos de madeira no santuário (Figura 1).
Nossa principal fonte sobre a história de Samos é Heródoto, também sendo
possível nesse encontrar um rico relato sobre o reinado de Polícrates. O longo relato
da ilha é justificado por Heródoto da seguinte forma:

E falei mais extensivamente a respeito dos sâmios, porque eles realizaram


as três mais grandiosas dentre todos os helenos: do cume de uma
montanha com cento e cinquenta braças de altura, de lá até embaixo,
iniciaram a escavação de uma galeria subterrânea, de duas aberturas,
uma de cada lado; o comprimento dessa galeria subterrânea é de sete
estádios e sua largura e altura são de oito pés cada uma; por toda essa
galeria subterrânea foi escavada outra galeria subterrânea com a
profundidade de vinte côvados, e a sua largura é de três pés, através da
qual a água, que era proveniente de uma grande fonte, era conduzida por
canais construídos ao lado da galeria elevada até a cidade; o arquiteto
dessa galeria subterrânea foi o megarense Eupalino, filho de Naustrofo.
De fato, esta é uma das três obras; a segunda trata-se de uma parede
construída no mar que circunda o porto, sua profundidade é de vinte
braças, e o comprimento da parede é maior que dois estádios. E a terceira
obra dos sâmios é a construção de um santuário maior do que todos os
santuários que nós vimos, cujo o primeiro dos seus arquitetos foi Reco, filho
de Fileu, um homem nascido na região. Por causa dessas grandes obras eu
falei mais extensivamente a respeito dos sâmios.”
(Heródoto, III, 77-78)

É provável que a primeira forma política adotada por esses jônios tenha sido
monarquia. Nesse sentido entende-se que os reinados tenham durado até o século
VIII a. C. Depois disso o governo se dá principalmente pelos geomoroi, sendo este
um governo oligárquico hereditário formado por donos de terra como já indica o
nome que pode ser traduzido como “land-sharers” (SHIPLEY, 1987, p. 39). Essa
aristocracia jônica é marcada por ser descendente dos primeiros colonos da ilha.
No século VII o governo dos geomoroi só foi interrompido pelo governo do
tirano Demoteles. Entretanto, este foi morto e sucedido novamente pela
aristocracia. Essa forma de governo foi alterada novamente com o fim da batalha

ALINE PORFIRIO 126


de Mégara com Perinto.2 Quando ao retornar da guerra, os nove generais tomaram
o poder da polis auxiliados por prisioneiros mégaros que em seguida receberam
como recompensa a cidadania sâmia. Porém não sabemos que tipo de governo foi
implantado pelos nove generais, mas presume-se que não era muito diferente do
governo aristocrático dos geomoroi (SHIPLEY, 1987, p. 53).
Com o governo de Syloson I, acerca de 585 a.C, a polis entra em um período
de grande prosperidade; período que conhecerá o seu ápice no governo de Polícrates
e na criação do Império Egeu do Leste (SHIPLEY, 1987, p. 69). Syloson e Polícrates
provavelmente eram familiares, hipótese esta que pode ser sustentada pelo fato do
irmão deste último se chamar Syloson II. Essa provável dinastia foi continuada por
Aiakes I que em 560 a.C já era tirano e educou seu filho, Polícrates, tirano no qual
essa pesquisa tem foco, para que fosse o próximo governante, o que ocorreu; porém
é improvável que tenha havido uma sucessão direta desses tiranos, o mais provável
é que tenha existido governos intermediários dos geomoroi (SHIPLEY, 1987, p. 71).

O TIRANO
Essencialmente, tirano é aquele que usurpa o poder dos que legalmente
teriam esse direito (MOSSÉ, 1984, p. 173). Aristóteles considera os tiranos jônicos
como uma particularidade, pois estes surgem em sua maior parte de “famílias
notáveis” (Aristóteles, 1310b, 28-30).
A historiografia tinha duas leituras para a tirania grega. A primeira é que
a tirania é uma forma de governo temporária e transitória para a democracia.
Sendo assim, segundo essa leitura, a tirania tinha como função ajustar a polis para
o recebimento de uma forma de governo superior, a democracia. Essa leitura
apresenta dois principais erros, o primeiro é que ele tem em mente a história de
Atenas, colocando esta como um paradigma para outras polis. Ao estudar outras
polis é possível ver que essa estrutura nem sempre se aplica. Convém apresentar
o segundo erro após a apresentação da outra leitura de tirania.
Além dessa visão de tirania como uma etapa transitória, a outra ideia
considera a tirania como a pior forma de governo. Essa interpretação segue até

2Batalha essa que podemos localizar nos primeiros anos após a fundação de Perinto como colônia
de Samos, aproximadamente 602 a.C
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hoje, a palavra tirania tem uma grande carga negativa. Porém essa visão, assim
como a anterior, pode ser justificada pela hegemonia de fontes escritas
atenocêntricas (CONDILO, 2008, p. 63). Essas fontes atenienses apresentam a
tirania de forma negativa com o intuito de justificar as escolhas da polis feitas nos
séculos V e IV (FLORENZANO, 2011, p. 42). Ao estudar tirania é necessário ter
em mente que o autor da fonte possui uma interpretação negativa dessa forma de
governo.
Uma constante interpretação é a de que o surgimento do tirano se dá em um
contexto de crescimento comercial e marítimo. Dessa forma, o tirano surge como
representante dos mercados e marinheiros. Porém existem visões diferentes, como
a de Claude Mosse (1984, p. 165) que credita esse surgimento mais ao
fortalecimento do poder naval do que ao comércio marítimo. Já para Condilo a
tirania surge em “comunidades prósperas economicamente e isto fez com que
houvesse um fortalecimento do poderio naval” (2008, p. 26).
Além da explicação que relaciona a tirania com o comércio e poderio naval,
há ideias que relacionam o surgimento do tirano com as reformas hoplitas. As
reformas hoplitas ocorreram em decorrência das inovações técnicas, com a
utilização do bronze as lanças se tornando mais leves e capazes de serem usadas
em lançamentos. Além dessa mudança técnica houve uma mudança tática, a partir
desse momento passou-se a utilizar o modelo de falange. Nesse modelo os
guerreiros ficam numa formação em que o escudo de um protege o outro, sendo
necessário que todos andem em harmonia.
Considerando essa reforma, o tirano teria surgido como um representante
dos hoplitas. Nesse momento é importante lembrar que os hoplitas eram em sua
grande parte formados pela classe popular. Porém Condilo (2008, p. 29) questiona
essa ideia, pois isso é acreditar que os guerreiros da falange possuíam uma
consciência de classe
Feito todos esses adendos às explicações clássicas para o surgimento da
tirania, Camila Condilo acredita que esse sistema de governo surgiu com o

descontentamento da ordem aristocrática e, em virtude da sua perda de


seu domínio econômico, político e religioso, o que levou a disputas internas

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por poder, e, como uma outra face desta mesma questão, ao problema da
justiça e corrupção. (CONDILO, 2008, p. 32)

Mesmo que consideremos que o tirano não surgiu como representante


hoplita, podemos dizer que esse governante se utilizou dessas tropas para tomar o
poder (TRABULSI, 1984, p. 77).
O ponto comum dessas teorias é que o tirano surge como uma alternativa
para momentos difíceis da polis. Embora o tirano tenha uma sede por poder, ele
tende a ter como forma de alcançá-lo o bem estar local. Já que não possui apoio da
aristocracia, o tirano busca apoio nas classes mais baixas. E é a partir do incentivo
à justiça social que ele busca criar essa base de poder.
Além da ausência de apoio por parte da aristocracia, o tirano possui outra
dificuldade: a ausência de legitimação hereditária. Por chegar ao poder por meio
de um golpe no regime aristocrático hereditário, o tirano não consegue se legitimar
no poder como sendo parte da dinastia governante.
Dessa forma o tirano tem que buscar se legitimar de outras formas, sendo
elas: 1) privilegiando a coletividade, em especial as camadas mais pobres; 2)
reforma na religião, considerando que a religião de âmbito privado é a ancestral e
o tirano não consegue se legitimar por via desta, se torna necessário uma promoção
do culto público de deuses políades; 3) uso de regras normativas na sociedade, ao
contrário do modelo arbitrário utilizado pela aristocracia (CONDILO, 2008, p. 35).
Todas as teorias de tirania tratadas acima têm que ser usadas de forma
ponderada, é necessário lembrar que a tirania pode ter várias formas de acordo
com a localização e o tirano. É necessário ver cada caso específico para não utilizar
uma estrutura que não se encaixa.
O tirano tratado nessa pesquisa, Polícrates, se encaixa na particularidade
descrita por Aristóteles e apontada no início desse capítulo, ele já era membro de
uma família aristocrática. É bem provável que haja um grau de parentesco deste
com Syloson I. Além disso, Polícrates é filho de Aiakes, também um tirano de
Samos. Temos informações de que Polícrates tenha nascido em 570 a.C, ou não
muito antes disso. Seu pai, Aiakes I o educou com a intenção de que o sucedesse
(BARRON, 1964, p. 211), fato que ocorreu, mas não da forma esperada. Seu

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governo começa provavelmente em 532 e se encerra em 522 devido ao seu
assassinato por Oretes de Sardes.
Mesmo com o desejo de sucessão direta de seu pai, aparentemente entre o
governo de Aiakes e de Polícrates houve um intervalo no qual o governo esteve em
mãos do geomoros. E por esse motivo foi necessário que Polícrates articulasse um
golpe3, para isso ele contou com a ajuda dos seus dois irmãos, Pantagnoto e Syloson
II. Porém após conquistar o poder na ilha, Polícrates assassina o primeiro e expulsa
o segundo, tornando- se o único senhor de Samos.
Polícrates é tido como o primeiro homem, além de Minos de Cnossos, a
querer se tornar rei dos mares e tomar posse de todas as ilhas da Jônia. Em
Heródoto essa visão do tirano sâmio como homem ambicioso é bem aproveitada,
não só no modo da sua morte, como também em uma pequena história contada pelo
autor na qual o faraó Amásis aconselha Polícrates a tomar cuidado com suas
ambições para que os deuses não o punam, de forma que seria aconselhável para o
tirano se livrar de algo de extrema importância para ele. O tirano decide, então,
por jogar seu anel ao mar, porém alguns dias depois os cozinheiros encontram
dentro de um peixe o anel de seu senhor. Dessa forma, Polícrates pensa que esse é
um sinal divino e volta a acreditar na sua magnitude e nas suas ambições. Por
sinal, é sua ambição que o leva à morte, segundo as versões de Heródoto. Essa
pequena história serve-nos para perceber a visão que Heródoto tem do tirano.
Porém esse juízo de valor pode ser justificado pelo simples motivo do autor utilizar
fontes com visão ateniense que vê a tirania de forma pejorativa em oposição à
democracia (CONDILO, 2008, 65).
Foi durante o governo de Polícrates que Samos teve seu ápice de
prosperidade, tendo o tirano 100 pentecontarchos e 1000 arqueiros à sua
disposição. Essa prosperidade se deve à política de pirataria praticada pelo tirano;
porém, a força naval sâmia se dá anteriormente ao governo de Polícrates por conta
da importância dada pelos geomoroi ao comércio marítimo.
A prosperidade no período de Polícrates não se deu somente no quesito
comercial e marítimo. É possível ver uma valorização das artes. A grande

3Durante a pesquisa surgiram dúvidas, que permaneceram sem respostas, sobre o uso da palavra
golpe no caso de Polícrates, já que seu pai foi governante antes dele.
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quantidade de achados esculturais de mármores, torsos e fragmentos de estátuas
na Via Sacra podem indicar que Samos teve uma importante escola de escultores
no sexto século (KYRIELEIS, 1993, p. 118),

era proverbial entre os gregos, ao tempo de Heródoto, a fama da


prosperidade a que o tirano de Samos, no poder desde os anos trinta do
séc. VI a.C. tinha guindado a sua ilha; à riqueza, associou- se um
requintado mecenatismo, que atraiu à corte artistas célebres, me cujo
número figuram os nomes de Anacreonte e Íbico. (SILVA, 1995, p. 56)

Por conta da não aceitação dos governos tirânicos por parte da aristocracia
sâmia foi necessário para Polícrates criar uma base de governo com apoio da classe
mais baixa, no demos. E é a partir dessa necessidade que essa pesquisa pretende
estudar o uso por Polícrates do culto de Hera e da monumentalização do seu templo
como forma de criar uma base de apoio para o seu governo.

O URBANISMO DE POLÍCRATES
Heródoto justifica a significância de Samos para a sua narrativa por conta
de três das suas obras arquitetônicas: o túnel de Eupalinos; um novo cais com
quebra mar e o Heraion de Samos. Porém o autor não dá a autoria de tais obras
para Polícrates, essa associação é encontrada em Aristóteles, no seguinte texto:

Depauperar os cidadãos é também um procedimento próprio da tirania:


assim, os cidadãos com bens escassos vêem-se não só impedidos de
financiar uma falange de guardiães, como ficam demasiado absorvidos nas
suas preocupações diárias sem tempo sequer para conspirar. Exemplos
deste modo de actuar chegam- nos das pirâmides do Egipto, das oferendas
votivas dos Cipsélidas, da edificação do templo de Zeus Olímpico sob o
domínio de Pisistrátidas, e dos empreendimentos de Polícrates em Samos.
Todos estes exemplos significam o mesmo: privação do ócio e
empobrecimento dos governados. (ARISTÓTELES, 1998, p. 419)

A princípio, neste trabalho por questões de correspondência temporal,


construção da ideia nas fontes secundárias e bibliografia iremos considerar

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Polícrates como sendo responsável pelas três obras. A primeira delas, o túnel de
Eupalinos, que teria sido projetado por este, foi construído em cerca de 530 a.C
(WAERDEN, 1968, p. 82). Nessa época, além da intensificação das atividades
comerciais, mercantis e marítimas, a polis sâmia também contava com um
crescimento demográfico. Desta forma foram necessárias novas medidas que
assegurassem o bem-estar de todos na ilha.
Dentre as medidas necessárias, a de maior significância arquitetônica foi o
Túnel de Eupalinos (Figura 2). Além de assegurar o fornecimento de água para
uma parcela maior da população, esse túnel também foi criado com a intenção de
ser usado como uma opção de fuga em momento de guerra. Essa última função
poderia ser de utilidade para Samos, já que a polis começava a se consagrar como
uma potência marítima.
Ao contrário do caso do aqueduto de Eupalinos, temos poucas informações
sobre a outra grande construção de Samos, o molhe do porto, também chamado de
quebra-mar. Construído abaixo do mar, com uma profundidade de 35 metros e
comprimento de 300 metros. Por último, a terceira grande obra citada por Heródoto
é o grande Templo de Hera.

O TEMPLO DE HERA
Embora seja tido por Heródoto como o maior dos santuários gregos já visto,
o Heraion de Samos recebeu somente uma breve menção por Pausânias. E além do
grande Templo de Hera e do antigo altar nenhuma das outras estruturas do
santuário são citados em fontes antigas (KYRIELEIS, 1993, p. 99).
O santuário (Figura 3) está conectado à asty de Samos por uma via sacra, a
distância do território sagrado para a cidade era de quatro quilômetros. O
santuário era provavelmente acessado por outros povos via mar, antes mesmo na
instauração de uma polis na ilha. O santuário está em uma região de solo fértil e
pantanoso. Essa característica torna difícil a escavação do local, uma vez que a
presença de água interfere, sendo necessária uma constante retirada de excedente
líquido. Porém esse solo pantanoso ajuda na conservação de material orgânico,
tornando o Heraion um dos poucos sítios com uma abundância de oferendas em
madeira.

ALINE PORFIRIO 132


Na Figura 3, ao norte do sítio, é possível notar a presença de vários edifícios
identificados com a letra “T”. Estas são edificações que geram questões para os
pesquisadores, segundo Kyrieleis (1993, p. 103) é possível que sejam tesouros, já
que não há grandes diferenças estruturais entre um tesouro e um templo, além da
presença do altar. Porém, o autor também apresenta a possibilidades desses serem
templos menores que têm como altar o do Grande Templo de Hera, essa teoria é
sustentada pela posição desses edificações em relação ao altar, estão todos virados
para ele.
A primeira escavação realizada no santuário foi feita por Kavvadias e
Sophoulis em 1820-1822. Porém nesta escavação não foi possível identificar a
extensão do território do santuário, isto só foi descoberto na escavação de 1910-
1914, dirigida por Theodor Wiegand. Graças a esta escavação foi descoberto que o
templo se tratava de uma estrutura do período arcaico tardio, com dimensões
colossais, possuindo 55 por 108 metros e 155 colunas. Pela análise da fundação foi
possível localizar uma edificação anterior com dimensões parecidas, o Templo de
Rhoikos. Nessa escavação também foram descobertos: os edifícios romanos
próximos ao grande templo e um grupo de edifícios ao norte.
Não existem vestígios materiais que comprovem a existência de uma via de
acesso da ásty para o santuário anterior à Via Sacra. Por conta disso, embora não
fosse um santuário pan-helênico, Diniz (2011, p. 74) considera a possibilidade de
no princípio o Heraion ter sido utilizado pelas comunidades vizinhas, com acesso
via mar. Dessa forma, a autora acredita que a construção do hekatompedon e da
Via Sacra em VII foi uma forma da polis se apropriar do santuário. Essa
apropriação poderia ter como objetivo fortificar a polis, dado que esse era um
momento importante para Samos por conta do crescimento dos seus contatos no
Egeu.
Em torno de 550 a.C. o Templo de Rhoikos e Theodoros teve sua estrutura
abalada, devido às condições geográficas do local, um solo pantanoso que não
estabiliza muito bem as construções. E é como um substituto desse templo de
Rhoikos que Polícrates, em 530 a.C., começa a construção do Grande Templo de
Hera, 40 metros mais a oeste do que o antigo templo (KYRIELEIS, 1993, p. 100).
Nesse período também são erigidos ao sul dois novos templos. Polícrates não viu a

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finalização da construção do seu grande templo, tendo morrido oito anos depois,
em 522 a.C.
O que vemos hoje é somente uma coluna restante, mas esta é da construção
romana, que também não foi concluída. Dada essa interrupção da construção, a
estátua de culto foi levada para um templo a oeste. Este templo esteve de pé até o
século IV d. C. No século V uma igreja cristã foi construída ao lado do templo
romano, sendo constituída de spolia desse.

O CULTO DE HERA
Segundo a mitologia sâmia, Hera nasceu na ilha, embaixo de um pimenteiro-
silvestre (KYRIELEIS, 1993, p. 106-107). Por conta desse mito Hera é considerada
a deusa patrona de Samos. Uma vez por ano acontecia na ilha a Toneia, festival
onde a imagem de Hera era envolta em ramos de pimenteiro-silvestre e levada ao
mar para receber um banho.
Uma boa fonte para o estudo do culto de Hera são as oferendas votivas
encontradas no santuário. Segundo Kyrieleis (1993, p. 112), foram encontradas em
torno de 40 miniaturas de barco de madeira (Figura 1), todas elas com o mesmo
formato e características. O autor acredita que esses barcos foram feitos
exclusivamente para o Heraion e era um objeto utilizado em rituais. A
exclusividade pressuposta por Kyrieleis vem do fato que o barquinho poderia ter
sido feito de outro material, como bronze e pela ausência desse tipo de barco em
outros lugares. Porém, acredito eu que nesse momento se faz importante lembrar
que poucos sítios são capazes de conservar madeira, então pode ser que esse objeto
não fosse exclusivo de Samos, mas sim só sobreviveu aos tempos atuais em Samos
devido ao solo pantanoso do santuário, que tem a capacidade de conservar
materiais orgânicos como a madeira.
A presença desses barcos no santuário, e em moedas; a disposição do altar
virado para o mar; conjuntamente com a ação de banhar a imagem da deusa no
mar indicam que a deusa tem uma ligação forte com o mar para os sâmios. O que
é conveniente já que por um grande período os sâmios tiveram uma poderosa frota
marítima e um comércio marítimo bem presente.

ALINE PORFIRIO 134


Outro elemento frequentemente encontrado no santuário são sementes de
papoula e romã, além de representações de romã em cerâmica. A romã, fruta com
muitas sementes, pode nos remeter à fertilidade. Outro elemento do santuário que
pode remeter à fertilidade é o próprio local. Como já dito, o Heraion está em local
de solo pantanoso, condição também ligada à fertilidade. Sendo então essa mais
uma característica da deusa Hera políade de Samos.
A análise da quantidade das oferendas votivas presentes no santuário
possibilita que descubramos as classes frequentadoras do local sagrado. Para tal
iremos utilizar dois principais tipos de oferendas, miniaturas de cavalo e de gado.
O cavalo também foi para os gregos um animal de luxo, andar de cavalo era uma
atividade voltada para a aristocracia. Já o gado é ligado à vida do campo, à pobreza.
Antes de apresentar a análise quantitativa é importante dizer que o cavalo também
é um elemento bastante presente ao que se diz respeito à Hera em Samos, não há
em outro santuário uma presença tão grande de arreios (DINIZ, 2011, p. 34).
As representações de gado foram predominantes no santuário entre os
séculos IX e VIII, porém a partir do século VIII já começa a haver uma
predominância maior dos cavalos, principalmente a partir de 750 a.C e
consequentemente com isso há uma queda brusca nas miniaturas de gado.
Segundo Diniz (2011, p. 34-35) há novamente uma queda de oferendas vinda da
aristocracia no santuário sâmio. A autora supõe que essa queda pode ser indício de
que a aristocracia não dá mais importância para a ostentação de oferendas ou pode
indicar falta de recursos. Porém imaginamos que outra possibilidade de
interpretação para essa queda durante o reinado de Polícrates é a associação do
tirano com o santuário, dessa forma a aristocracia não vê mais o local como
adequado para as suas oferendas.
Importante lembrar que os governos tirânicos quando assumem o poder
tornam-se responsáveis pelo culto. Dessa forma o tirano tem a chance de fortalecer
a religião da deusa políade, já que para ele não convém o culto privado de
antepassados, prática comum dentro da aristocracia. Podemos então concluir que
a decisão de Polícrates de monumentalizar o Templo de Hera não alterou somente
a arquitetura, mas também quem frequentava o santuário e fortaleceu o culto
público de Hera.

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CONCLUSÃO
Nesse momento é importante lembrar que o conceito de monumental para a
arquitetura é o de um edifício que ultrapassar em escala e elaboração o necessário
para o exercício do que se propõe (TRIGGER, 1990, p. 119). A monumentalização
do Templo não só criava a imagem de um governante preocupado com a religião e
o culto da polis, mas também era uma forma de escancarar que Polícrates tinha
poder o suficiente para cuidar da gestão de mão de obra e recursos da realização
de uma obra monumental.
E esse gasto excessivo que chamamos de consumo conspícuo. Este é o oposto
da “lei do mínimo esforço”. E nesse caso o consumo conspícuo é o responsável por
tornar o espaço um local de manifestação de poder. Ainda mais se tratando de uma
obra arquitetônica monumental, que é idealizada para durar por muito tempo.
Esse controle de energia que exige o consumo conspícuo que é a maior
demonstração de poder.
A decisão de Polícrates por monumentalizar o Templo de Hera fazia parte
de uma estratégia para a criação da sua base de poder. Assim, Polícrates utilizou
da religião de forma política. Para Trabulsi (1984, p. 78) é comum utilizar o político
e o ideológico de forma conjunta, ainda mais no período Arcaico quando não há uma
nítida separação entre essas duas esferas. Em oposição à individualidade
aristocrática, as obras arquitetônicas promovidas por Polícrates o colocou como
elemento de construção da identidade da polis.
Durante a realização de leituras para essa pesquisa foi possível notar que
existem escassas informações sobre o início da tirania em Samos. Muitos creditam
esse início a Polícrates, mas antes dele houve o seu pai, Aiakes também tirano
(WHITE, 1954, p. 14). Segundo a autora, muito do que é creditado a Policrates foi
feito no reinado do seu pai. Foi realizado um estudo, por Buschor, que estima o
tempo de construção do túnel de Eupalinos, que seria pelo menos quinze anos. Há
certeza que a túnel terminou cerca de 525-524, sendo assim, não seria possível que
Polícrates tenha iniciado essa construção, já que da sua posse até a finalização do
túnel temos um período de apenas sete anos.
A monumentalização do Templo de Hera não foi uma ideia original de
Polícrates se considerarmos que o seu pai, Aiakes, promoveu a construção do

ALINE PORFIRIO 136


Templo de Theodoro e Rhoikos. O Templo de Polícrates possuía dimensões
parecidas com seu antecessor, a única diferença é que ele esteve um pouco mais
para oeste. Utilizando-se das bases das colunas do Templo de Theodoro e Rhoikos
para a construção do novo (WHITE, 1954, p. 13). Essa continuidade do trabalho de
Aiakes por seu filho Polícrates afirma a existência de uma tradição tirânica em
Samos. Dessa forma concluímos que Polícrates, ainda que de maneira não-
original, promoveu a monumentalização do Templo de Hera como forma de
demonstrar e afirmar seu poder. Porém o plano para a criação de base de governo
de Polícrates não conta só com exibição do consumo conspícuo exigido para a
realização de um edifício com dimensões tão monumentais. Ele conta também com
a imagem do tirano associada com o templo e com o culto de Hera, principalmente
se considerarmos o caráter políade da deusa. Dessa forma Polícrates se coloca como
uma figura que está presente no templo assim como a deusa, e, ao promover a
construção e renovação do seu santuário, Polícrates se apresenta como um
renovador não apenas do edifício, mas de toda a pólis.

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139 VI EPEGH
LISTA DE IMAGENS

Figura 1 - Oferendas de miniaturas de barcos (TSAKOS e VIGLAKI SOFAINOU,


2012, p. 109).

Figura 2 - Túnel sob o Monte Kastro (KIENAST, 1995, p. 169).

ALINE PORFIRIO 140


Figura 3 - Planta do Heraion (DINIZ, 2011, p. 77)

141 VI EPEGH
A Praga de Justiniano Reavaliana

JÚLIO MATZENBACHER ZAMPIETRO1

RESUMO: A questão da mortalidade da Praga de Justiniano (541-750 EC) tem


levado a conclusões divergentes na literatura especializada recente. Este tema é
essencial para a compreensão do período, visto por muitos historiadores como um
período de declínio, uma visão que pode ser corroborada ou desafiada a partir de
estimativas quanto à mortalidade da Praga. Por meio do estudo de documentos
escritos, de relatórios arqueológicos, e de evidências paleopatológicas, foi possível
chegar à conclusão de que estimativas catastróficas para a mortalidade da praga
possuem graves problemas em sua base argumentativa. Além disso, conclui-se
também que para que o campo de estudos chegue a conclusões mais satisfatórias
será necessário aguardar pelo aumento no número de estudos de paleopatologia
relacionados ao tema.
PALAVRAS-CHAVE: Antiguidade Tardia; Arqueologia; Paleopatologia.

1 Aluno de graduação em História pela Unicamp.


JÚLIO MATZENBACHER ZAMPIETRO 142
1. INTRODUÇÃO
Um tema muito abordado, mas pouco aprofundado pela maioria dos
estudiosos da Antiguidade Tardia, é a Praga de Justiniano, que surgiu em 541 e
reapareceu de maneira recorrente até 747-750 da Era Comum. Dentro deste tema
há, dentre outros, três grandes debates: a) qual o patógeno causador da doença, b)
qual a origem deste patógeno, e c) qual sua mortalidade, e o que pode ter acarretado
desta mortalidade. A primeira linha de pesquisa se encontra próxima de um
consenso, com grande convergência entre descrições literárias e estudos biológicos,
que nos levam a crer que a culpada por esta série de eventos é a bactéria Yersinia
pestis, mesmo agente causador da Peste Negra no século XIV. (SALLARES, 2007:
237-238) (McCORMICK, 2015: 342-343)
Em contrapartida, a origem da Praga se mostrou esquiva por algumas
décadas, mas estudos recentes têm demonstrado com cada vez mais clareza que o
agente patológico da Praga surgiu no Oriente, chegando ao Império Bizantino
através de rotas comerciais que passavam pelo Mar Vermelho. (WAGNER et al.,
2014: 313) (SUSSMAN, 2015: 326, 346) Deste modo, resta-nos a terceira linha de
pesquisa.
Trabalhos que fazem referência à Praga de Justiniano existem desde o
século XIX, mas o debate acerca de sua mortalidade se tornou mais ativo apenas
nas últimas décadas, e ainda não produziu um consenso. (STATHAKOPOULOS,
2004)(HORDEN, 2005) Enquanto alguns historiadores classificam a Praga como
um fator catastrófico para a época, (CAMERON, 2012: 113-114)(SARRIS, 2011:
159)(HARPER, 2017: 234) outros chegam a afirmar que ela teve pouco efeito real
sobre a população e economia bizantinas. (WHITTOW, 1996: 66-67)(WICKHAM,
2005: 548- 549). Há também uma série de trabalhos que retiram o protagonismo
da Praga neste período, vendo-a como um fator importante mas secundário para
as mudanças econômicas e demográficas observadas no período. (WARD-
PERKINS, 2005) (STATHAKOPOULOS, 2007)
Uma alegação comum entre defensores de uma catástrofe é que a Praga de
Justiniano teve uma taxa de mortalidade comparável à da Peste Negra, que
historiadores modernos afirmam ser algo em torno de 50-60% da população.
(HARPER, 2017: 234) O presente trabalho apresenta razões para crer que a Praga

143 VI EPEGH
de Justiniano foi de fato mortífera, mas em uma escala menor e mais fragmentada
do que este valor sugere, e se baseia tanto em obras historiográficas quanto em
trabalhos paleopatológicos, além de usar de evidências primárias, principalmente
traduções de textos escritos. No entanto, não será fornecido um número
alternativo, visto que além da pluralidade de interpretações possíveis para nossas
evidências escritas, qualquer estimativa terá de ser atualizada em poucos anos
graças ao influxo constante de novos estudos genéticos, com uso de tecnologias
pouco exploradas até o momento.

2. RELATOS ESCRITOS E RETÓRICA


A base escrita principal para o catastrofismo quanto à Praga de Justiniano
é composta do relato de quatro autores antigos: Procópio de Cesareia (500-565),
João do Éfeso (507-586), Agátias (536-582), e Evágrio (536-590). Enquanto os dois
primeiros falam da primeira onda da Praga em Constantinopla, o terceiro fala de
uma segunda aparição, em 558/562, e o último concentra seu relato na quarta
ocorrência da Praga na cidade de Antioquia, na última década do século VI. 2
Começaremos por Agátias. O autor aponta que em 557 houve um grande
terremoto em Constantinopla, sucedido, alguns anos mais tarde, pela segunda
aparição da Praga. (AGÁTIAS, 1975: 5.3.1-3) Apesar de não nos fornecer
estimativas quanto à mortalidade da Praga, de seu relato podemos extrair duas
informações principais: em primeiro lugar, a doença jamais desapareceu por
completo após a primeira onda, e se deslocava de uma cidade a outra; (AGÁTIAS,
1975: 5.10.1-4) em segundo, a cidade de Constantinopla passou por diversos tipos
diferentes de desastre natural neste período, e não apenas pela Praga.
Em um relato posterior ao de Agátias, se referindo a uma ocorrência da
Praga em 592-593 em Antioquia, Evágrio corrobora a ideia de que ela se deslocou
de um lugar a outro. Ao mesmo tempo, ele nos informa de que dentro de uma
mesma cidade era possível que alguns bairros fossem severamente atingidos,
enquanto outros passavam praticamente ilesos pela doença. (EVÁGRIO, 2000:

2 Ressaltamos que a metáfora de onda só se aplica à primeira aparição da Praga, que se desloca de
Pelusium, no Egito, como uma onda em torno do Mediterrâneo. Entretanto, depois desta primeira
onda a Praga já se encontrava “armazenada” em populações de roedores, tornando o padrão das
aparições subsequentes muito mais complexo, e incompatível com esta metáfora.
JÚLIO MATZENBACHER ZAMPIETRO 144
4.29) Apesar de se referir à morte de diversos membros de sua família e de servos
por conta da Praga, Evágrio também não nos fornece estimativa da mortalidade da
doença.
Neste sentido, o relato de Procópio pode ser-nos mais útil. Isto porque além
de corroborar as descrições de Agátias e Evágrio, de uma Praga que praticamente
ignorava alguns lugares enquanto atingia outros com força (PROCÓPIO, 1914:
2.22), um ponto que será abordado novamente na próxima seção, Procópio também
nos fornece números quanto à mortalidade da doença em Constantinopla. Logo de
início o autor afirma, em sua História das Guerras, que a doença chegou muito
perto de aniquilar toda a humanidade, (PROCÓPIO, 1914: 2.22) e em momento
posterior afirma que a Praga durou cerca de quatro meses, em que houve dias em
que os mortos ultrapassaram a marca das 10.000 pessoas em Constantinopla.
(PROCÓPIO, 1914: 2.23) Apesar de não nos dar um número geral, estas
estimativas de Procópio nos levariam a crer que mais da metade da população da
cidade pereceu desta primeira onda da Praga.
João do Éfeso, por outro lado, nos fornece um número geral.3 João afirma
não só que em certos dias 16.000 corpos eram retirados das ruas de Constantinopla
como também que as contagens de corpos cessaram quando se atingiu a cifra de
230.000 pessoas mortas. O autor estima que algo em torno de 300.000 pereceram
graças à Praga (ZUQNIN CHRONICLE, 1999: 104). É a partir principalmente das
estimativas de Procópio e João que historiadores modernos defendem que a Praga
de Justiniano foi um evento de mortalidade sem precedentes.
Entretanto, estes dois relatos apresentam problemas incontornáveis. Em
primeiro lugar, os dois conjuntos de números são incompatíveis com as estimativas
atuais da população de Constantinopla para o período, de algo em torno de 400.000
habitantes (WHITTOW, 1996: 56). Confiar cegamente na contagem de João, por
exemplo, seria afirmar que algo em torno de 75% da população da cidade pereceu
em poucos anos. Em segundo lugar, Procópio não nos informa como obteve seus
números, enquanto João afirma que havia pessoas contando os corpos que
passavam por portões, encruzilhadas, e portos da cidade (ZUQNIN CHRONICLE,

3Seu relato não foi preservado como documento próprio, mas sim em forma de crônicas de outros
autores. Neste ensaio, será utilizada a versão de seu relato preservada na Zuquin Chronicle, datada
do fim do século VIII.
145 VI EPEGH
1999: 104). No entanto, não é descrito um método para unificar estas contagens de
modo que nenhum corpo fosse contado mais de uma vez, e é provável que os
números destes autores sejam exagerados.
Um terceiro problema é a presença de artifícios retóricos nestes dois
documentos. O relato de João do Éfeso é repleto de mensagens morais e de eventos
sobrenaturais. O autor compara a Praga a uma espremedeira para se produzir
vinho, em que as uvas seriam seres humanos, esmagados pela ira divina (ZUQNIN
CHRONICLE, 1999: 94). Além disso, são descritos barcos de cobre tripulados por
figuras negras sem cabeça, indo em direção a locais que posteriormente seriam
atingidos pela Praga (ZUQNIN CHRONICLE, 1999: 96), e é notável como em
diversos momentos aqueles que tentaram lucrar com as mortes causadas pela
doença foram imediatamente punidos por Deus, atingidos pela peste (ZUQNIN
CHRONICLE, 1999: 97-98, 109-111).
Já o relato de Procópio sobre a Praga não apresenta, por si só, grandes
problemas. Entretanto, ao se comparar sua descrição da Praga a outros de seus
escritos, é possível notar padrões retóricos que tendem a aumentar a magnitude
dos eventos descritos pelo autor. Em sua História Secreta, por exemplo, Procópio
descreve as consequências das conquistas de Belisário em nome de Justiniano, e
afirma que seria raro encontrar uma viva alma ao se viajar pela Líbia, e que um
cenário ainda pior era encontrado na Itália (PROCÓPIO, 1935: 18.5, 18.13). É
notável também a coincidência de como Justiniano é retratado nesta obra, como
um demônio em forma humana (PROCÓPIO, 1935: 18.1), e a descrição de outros
demônios em forma humana que supostamente teriam espalhado a Praga
(PROCÓPIO, 1914: 2.22). Por fim, Procópio afirma, por exemplo, que em 526 um
terremoto teria matado 300.000 pessoas em Antioquia (PROCÓPIO, 1914: 2.14),
uma cifra tão improvável quanto as estimativas de João analisadas acima.
Um último ponto é a recorrência deste tipo de relato apocalíptico na
literatura do século VI. Para efeito de comparação, o texto de Pseudo- Josué, o
Estilita, descreve uma grande fome seguida de uma peste na cidade mesopotâmica
de Edessa, nos anos 500-501 (PSEUDO-JOSUÉ, 2000: 43-45). Assim como os
relatos de Procópio e João da primeira aparição da Praga de Justiniano, o relato de
Josué afirma que havia corpos em todas as ruas da cidade, em uma quantidade

JÚLIO MATZENBACHER ZAMPIETRO 146


que tornou necessária a reutilização de cemitérios antigos, que ainda assim não
foram suficientes. O autor nos fornece poucos números,4 mas este cenário é muito
semelhante ao descrito por João do Éfeso, que afirma que valas comuns foram
abertas na parte externa de Constantinopla para que mais de 70.000 pessoas
fossem colocadas em cada uma (ZUQNIN CHRONICLE, 1999: 108).
As coincidências nas descrições destes autores nos mostram o quão comuns
eram eventos de grande mortalidade, e como suas testemunhas relataram estes
eventos de modo semelhante, com construções retóricas que via de regra
aumentavam sua magnitude. É notável como a maioria dos relatos da Praga,
mesmo aqueles não abordados aqui, se refere à sua ocorrência em cidades
(KENNEDY, 2007: 90), apesar de sabermos que ela também atingiu o campo
(LITTLE, 2007: 12). Levando-se em conta estes fatos, torna-se difícil afirmar,
baseando-se apenas em documentos escritos, qual a verdadeira mortalidade da
Praga de Justiniano. Nos voltaremos agora à análise de evidências arqueológicas.

3. ARQUEOLOGIA E EPIDEMIOLOGIA
Em primeiro lugar, é necessário notar que evidências arqueológicas por si só
não nos dão evidências concretas da Praga, exceto quando é possível aplicar sobre
elas estudos paleopatológicos, foco da próxima seção. Além disso, é fato notório que
a arqueologia nos fornece apenas indícios do que aconteceu, e não as causas desses
acontecimentos, que podem ser obtidas de modo mais eficiente por meio de
documentos escritos. Para ambos os problemas, a união de evidências
arqueológicas e evidências escritas pode nos fornecer respostas mais satisfatórias
a perguntas que de outro modo só poderiam ser respondidas especulativamente.
O relato de Evágrio, abordado acima, afirma que em uma mesma cidade
algumas regiões eram gravemente afetadas, enquanto outras passavam
praticamente ilesas (EVÁGRIO, 2000: 4.29). Isto é corroborado com evidências de
que ratos evitam certas áreas urbanas, como aquelas próximas a ferreiros e ao
barulho alto e intermitente de seu ofício, o que faz com que nestas partes das
cidades menos casos de praga apareçam. Já açougues atraem roedores, e é mais

4A única referência a números ocorre quando o autor fala que pouco mais de cem corpos saíam de
um dos hospitais de Edessa diariamente.
147 VI EPEGH
comum encontrar casos de praga em suas proximidades5 (McCORMICK, 2015:
342). Além disso, ratos também evitam ruas largas e com muito movimento, uma
característica comum em cidades clássicas planejadas (McCORMICK, 2003: 17-
18).
Enquanto estabelecimentos como ferreiros eram relativamente comuns em
cidades da época, não podemos afirmar que cidades clássicas planejadas fossem a
norma (CAMERON, 2012: 152). É certo que existiam cidades como Gerasa e
Samaria, com ruas de 11 e 22 metros de largura respectivamente (BROSHI, 1977:
234-235), e que grandes centros urbanos como Jerusalém e Damasco também
possuíam estas características (WICKHAM, 2005: 619-620). Entretanto, as cidades
da Antiguidade Tardia tinham, via de regra, casas e estabelecimentos comerciais
ocupando seus antigos espaços abertos, como ágoras e fóruns, e suas antes largas
vias (KENNEDY, 1985) (CAMERON, 2012: 146- 167) (WICKHAM, 2005: 591-692).
Mesmo evidências escritas indicam o desaparecimento do planejamento clássico
nas cidades, como a descrição que Agátias faz de Constantinopla, uma cidade em
que no século VI já era raro encontrar locais abertos (AGÁTIAS, 1975: 5.3.6). Deste
modo, a incidência fragmentada da Praga em uma mesma cidade provavelmente
se deve à presença ou ausência de estabelecimentos como ferreiros e açougues.
Já os relatos de Agátias, Evágrio, e Procópio, que afirmam que a Praga
atingiu algumas cidades e não outras, são corroborados pela ideia de que o clima
local adiciona variáveis à epidemiologia da doença, pois a reprodução de pulgas,
vetores do Y. pestis, é afetada pela temperatura ambiente. Em um ambiente em
que o microclima se modifica a cada poucos quilômetros (SALLARES, 2007: 256)
(HORDEN & PURCELL, 2000:9-25), torna-se comum que cidades próximas sejam
afetadas de maneiras distintas pela doença. Mesmo catástrofes naturais
modificam estes efeitos, e é notável que enquanto Antioquia foi destruída diversas
vezes em momentos anteriores à Praga, e provavelmente nesta cidade a doença foi
um fator catalisador de declínio, nas cidades próximas de Epifânia e Bosra as
escavações indicam prosperidade econômica durante todo o século VI
(STATHAKOPOULOS, 2000: 261). Já na Bretanha de meados do século VII,

5 Aqui, nos referimos a instâncias de peste bubônica de modo geral.


JÚLIO MATZENBACHER ZAMPIETRO 148
enquanto alguns monastérios perderam quase todos os seus moradores, outros
locais, como Canterbury, foram pouco atingidos (MADDICOTT, 2007: 178-179).
A noção de prosperidade e declínio econômico também deve ser analisada
com cautela. Por si só as modificações urbanas descritas acima não pressupõem
declínio, seja ele econômico ou demográfico, mas indicam apenas uma mudança no
modo de se ver e usar os espaços públicos disponíveis (KENNEDY, 1985). É certo
que observa-se declínio real na urbanização de algumas regiões específicas no
período analisado, mas não se pode explicar esta redução fazendo uma mera alusão
à Praga, como fazem alguns autores modernos (WICKHAM, 2005: 608-609)
(SARRIS, 2011: 159). O exemplo de Antioquia, mencionado acima, é ilustrativo,
visto que esta cidade passou por uma peste em 5006 (PSEUDO-JOSUÉ, 2000: 46),
um incêndio em 525, um terremoto em 526, outra peste em 528, e um saque por
persas invasores em 540 (CAMERON, 2012: 157). Além disso, o século VI é
especialmente marcado pela incidência de terremotos relatados em fontes
literárias, além de guerras contra mouros, persas, e ostrogodos,7 fatores que
certamente influenciaram qualquer declínio observado em escavações.
Por fim, as evidências estudadas até o momento, sejam elas escritas ou
arqueológicas, são pertinentes apenas a áreas urbanas. Esta população não era
maioria no período, consistindo menos de 20% da população total das regiões
atingidas pela Praga, com exceção de áreas muito povoadas, como a província do
Egito (BROWN, 2012: 11). Deste modo, o estudo da peste tem a se beneficiar muito
mais com estudos da arqueologia rural e de como a organização desta população
poderia modificar a epidemiologia da doença. Por outro lado, atualmente a linha
de estudo mais promissora tem sido a paleopatologia, e é a trabalhos deste tipo, e
estudos genéticos do Y. pestis de modo geral, que nos voltaremos agora.

4. PALEOPATOLOGIA E ESTUDOS GENÉTICOS


Até poucas décadas atrás, poucoounadahaviasidofeitoemrelação à
paleopatologia da Praga de Justiniano. Dionysios Stathakopoulos, em artigo de

6 Deve-seressaltar de que este não é uma aparição precoce da Praga de Justiniano.


7O sucesso romano nestas empreitadas militares leva a crer que principalmente a primeira onda
da Praga de Justiniano não pode ter sido tão destrutiva quanto alguns autores a consideram.
149 VI EPEGH
2000, afirma que esta é uma área promissora, mas sobre a qual pouco havia sido
feito até aquele momento (STATHAKOPOULOS, 2000: 274). Desde então, estudos
de paleopatologia têm sido conduzidos com cada vez mais frequência, nos
permitindo chegar, por exemplo, a um grau de certeza maior não só com relação ao
agente patológico da Praga, que hoje temos grande confiança de ser a bactéria
Yersinia pestis, como também com relação à origem desta bactéria, como apontado
acima (McCORMICK, 2015: 342-343) (SUSSMAN, 2015: 326, 346).
Atualmente, dois trabalhos são de especial importância para o entendimento
da Praga de Justiniano. O primeiro é uma análise de restos mortais encontrados
em um cemitério na vila de Altenerding, na atual Alemanha. Este cemitério foi
utilizado por alguns séculos, que incluem aqueles nos quais a Praga de Justiniano
atuou, e apesar de não ter sido feito um estudo de inumações por período de tempo,
foi encontrado DNA de Y. pestis em dois corpos sepultados neste local
(McCORMICK, 2016:1008). Em uma vila próxima, Aschheim, também foram
encontradas amostras de Y. pestis em diversas pessoas enterradas em seu
cemitério (WIECHMANN & GRUPE, 2005) (HARBECK, 2013). Nesta segunda vila
um trabalho mais elaborado foi realizado, e através do uso de estimativas do
número de habitantes neste período e da quantidade de mortos em meados do
século VI, chegou-se à conclusão de que algo em torno de 35- 53% da população
local teria perecido durante a primeira onda da Praga, uma estimativa próxima à
mortalidade da Peste Negra (McCORMICK, 2015: 354-355).
No entanto, este paralelo entre a Praga de Justiniano e a Peste Negra,
apesar de tentador, é problemático. Apesar de duas sequências de DNA
encontradas nas amostras de Y. pestis de Aschheim estarem relacionadas a fatores
de virulência (WAGNER, et al., 2014: 324), este DNA como um todo é apenas 96-
98% compatível com o DNA moderno de Y. pestis (WIECHMANN & GRUPE, 2005:
48). Este é um indício de que a espécie Y. pestis não é uma entidade monolítica,
fixa através do tempo e da geografia; muito pelo contrário: é possível notar
diferenças no DNA da bactéria mesmo entre cada aparição da Praga, sendo a
análise destas diferenças um caminho promissor para a datação precisa de
diferentes aparições (McCORMICK, 2015: 343). Um exemplo destas diferenças
pode ser observado em um estudo recente, em que foram encontradas dezessete

JÚLIO MATZENBACHER ZAMPIETRO 150


cepas diferentes de Y. pestis na China, variando mesmo em seus fatores de
virulência (GAGE & KOSOY, 2005: 512).
É possível observar as mudanças causadas por alguns séculos de hiato entre
aparições da Praga ao se comparar a Peste Negra (1347-1351) com a Terceira
Pandemia (iniciada em 1855).8 A primeira se espalhou muito mais rapidamente do
que a segunda, mesmo com a existência, ao fim do século XIX, de meios de
transporte muito mais rápidos do que aqueles existentes na Europa do século XIV
(SLACK, 2012). Além disso, a cepa medieval da bactéria possui maior capacidade
de reprodução do que a cepa moderna (SALLARES, 2007: 281).
A primeira vez em que o ser humano entrou em contato com a cepa
causadora da Terceira Pandemia foi em torno do século XIV, coincidindo com a
eclosão da Peste Negra (SUSSMAN, 2015: 343). Este achado é compatível com um
estudo recente que indica que as cepas de Y. pestis ligadas à Praga de Justiniano
não possuem representante moderno, o que quer dizer que esta espécie está
extinta, ou ao menos presente apenas entre populações de roedores (WAGNER et
al., 2014: 322-323). A cepa causadora da Praga de Justiniano é, portanto, uma
parente distante daquela causadora das demais pandemias, e é possível mesmo
que o Y. pestis antigo não causasse o tipo pneumônico de infecção, comum em
pandemias posteriores (HARPER, 2017: 223-224). Esta distância genética não
pode ser ignorada, e estudos da mortalidade da Praga de Justiniano devem evitar
basear sua argumentação em comparações indevidas com a Peste Negra, oito
séculos posterior à primeira pandemia.

5. CONCLUSÃO
Alguns pontos finais. Em primeiro lugar, é necessário ressaltar que o
presente ensaio não teve como objetivo defender a inexistência da Praga de
Justiniano, mas sim colocar em dúvida estimativas de sua mortalidade, em
especial as que vêem na Praga um conjunto catastrófico de eventos e que se

8Hoje considera-se que ao todo existiram três pandemias de Y. pestis. A primeira, enfoque deste
ensaio, é conhecida como Praga de Justiniano. A segunda, mais conhecida pelo público em geral, é
a Peste Negra, e a terceira não recebeu um nome distinto, sendo conhecida apenas por Terceira
Pandemia. Apesar das datas fornecidas, a Peste Negra teve aparições recorrentes até o século XIX,
e a Terceira Pandemia só foi oficialmente considerada erradicada em 1959.
151 VI EPEGH
utilizam de comparações com a Peste Negra para corroborar seu ponto. Como
apontado acima, os documentos escritos a que temos acesso se utilizam de artifícios
retóricos para descrever um conjunto de eventos que, apesar de traumático, não
causou a devastação relatada. Isto é corroborado pelas evidências arqueológicas,
que mostram um cenário fragmentado, com declínio urbano apenas em algumas
regiões do antigo Império Romano. Por fim, as diferenças genéticas entre cada
pandemia, mesmo entre cada onda da Praga, são grandes o suficiente para gerar
dúvidas quanto à validade de comparações com a Peste Negra. Isto, aliado ao fato
de que fatores como clima podem afetar como a Praga age localmente (SALLARES,
2007: 256), torna necessário um estudo mais detalhado das ocorrências da doença,
que nos levará a números mais concretos e confiáveis (McCORMICK, 2015).
Um último ponto relevante é que a Praga de Justiniano não ocorreu em
isolamento. Não só suas aparições foram contemporâneas a guerras, terremotos, e
outros eventos de grande mortalidade, como também outras doenças não
desapareceram no período. É possível, por exemplo, que algumas ocorrências da
Praga fossem acompanhadas de surtos de varíola (SALLARES, 2007: 274). Este é
um fator que complica ainda mais qualquer tipo de estimativa para a mortalidade
do Y. pestis antigo. Portanto, como argumentou-se ao longo de todo o ensaio, não
podemos dizer que “fundamentalmente tudo que sabemos sobre a Praga de
Justiniano é consistente com a conclusão de que sua mortalidade levou metade da
população [atingida]” (HARPER, 2017: 234).

JÚLIO MATZENBACHER ZAMPIETRO 152


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JÚLIO MATZENBACHER ZAMPIETRO 156


A Primeira Visitação do Santo Ofício à capitania de

Pernambuco – o processo crime de Felícia Tourinha

NICÓLLI DE LIMA GARCIA1

RESUMO: De suma importância para a colônia portuguesa, a Capitania de


Pernambuco foi uma das quatro que esteve na 1ª Visitação do Santo Ofício. No dia
28 de janeiro de 1594, uma denúncia contra Felícia Tourinha é feita, acusada por
crime de feitiçaria. A pesquisa busca compreender a importância de tal região para
a metrópole, assim como entender o sistema inquisitório português e como este se
constituiu contra Felícia Tourinha. Analisando outras duas confissões de crime de
feitiçaria, busca-se entender a importância das práticas mágicas para o cotidiano
feminino colonial, como as práticas realizadas por Felícia refletem o sincretismo
religioso próprio da colônia e como a Inquisição tem seus limites para além do
campo religioso, mas um papel político e social.
PALAVRAS-CHAVE: Capitania de Pernambuco; inquisição; feitiçaria; bastardo;
relações de serviço.

1Licenciada e Bacharel em História pelo Centro Universitário Fundação Santo André, mestranda
pelo Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade de São Paulo,
garcianicolli@gmail.com
157 VI EPEGH
“E, se houve um universo feminino por excelência, lugar onde as mulheres
eram sabias, dominavam os códigos e se uniam quase em “confraria” para
enfrentar as mazelas do cotidiano, este foi o campo das práticas mágicas.”
(VAINFAS, 1997: 139).

A partir de um interesse por esse campo das práticas mágicas e das mazelas
cotidianas de mulheres do período colonial, construiu-se a monografia de conclusão
de curso, originalmente intitulada Trópico de Jezabel: resistências e rebeldias de
mulheres bruxas na primeira visitação do Santo Ofício, apresentada à banca
examinadora do curso de licenciatura e bacharelado em História, da Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras do Centro Universitário Fundação Santo André, sob
orientação da Prof.ª Dr.ª Lilian Lisboa Miranda.
A bula papal 16 de julho de 1547 autorizou a abertura definitiva de
Tribunais do Santo Ofício da Inquisição no reino lusitano, sob jurisdição da Coroa
e sem interferência de Roma. São criados Tribunais em Lisboa, Coimbra, Évora,
Lamego, Tomar e Porto e, logo, a atuação do Santo Ofício chega até as terras
coloniais. Em 1591 chega às capitanias do nordeste da colônia, Heitor Furtado de
Mendonça, inquisidor responsável pela primeira visitação do Santo Ofício em
terras brasileiras. Mendonça visitou a Bahia entre 1591 e 1593 e Pernambuco,
Itamaracá e Paraíba entre 1593 e 1595. Dessa primeira visitação foram produzidos
nove livros, entre denunciações, confissões e ratificações. De todo esse conjunto de
documentos inquisitoriais, somente quatro livros foram publicados, os livros de
confissões e denunciações da Bahia e de Pernambuco (VAINFAS, 1997: 4).
O primeiro capítulo analisa duas confissões retiradas do livro de Confissões
da Bahia,2 onde Catharina Frois e Guiomar de Oliveira vão perante a mesa
inquisitorial confessar seus crimes contra a fé e suas ligações com duas bruxas,
Maria Gonçalves Cajada e Antônia Fernandes. Ambas portuguesas degredadas, as
bruxas já haviam passado pela mão do Santo Ofício no reino, e caem nas graças de
Heitor Furtado de Mendonça em terras brasílicas, mas nada é suficiente para tirá-
las do caminho da bruxaria.

2Primeira Visitação do Santo Officio às partes do Brasil: Pelo licenciado Heitor Furtado de
Mendonça. Confissões da Bahia 1591-1592. São Paulo: Sociedade Capistrano de Abreu, Série
Eduardo Prado, 1922. P. 68 e 76. Acesso em: <https://archive.org/details/primeiravisita00sociuoft>

NICÓLLI DE LIMA GARCIA 158


De todos os procedimentos punitivos utilizados pelo Santo Ofício, o degredo
foi o mais utilizado. Mais simbólico do que prático, o degredo para além de um
processo de purificação dos pecados cometidos pelo acusado, onde se exila para se
expurgar do mal, o degredo também é um mecanismo de defesa da ordem religiosa
e social. Todo acusado pelo tribunal representa uma perturbação, uma desordem
social, e para manter o fortalecimento da unidade social, religiosa e política do
reino, se coloca à margem, se “joga fora” da sociedade aquele que personifica essa
desordem. O degredo também é interessante para a Coroa portuguesa, sendo um
elemento indispensável na ação colonizadora, que precisava de colonos portugueses
em terras americanas, os degredados somavam uma parcela importante da
população colonial.
Figuras bastante conhecidas pela historiografia, ambas as bruxas, Maria
Cajada e Antônia Fernandes, encarnam o papel estereotipado de bruxa demoníaca,
figura muito bem conhecida pelo imaginário europeu.
O segundo capítulo, principal nesta apresentação, trata de uma denúncia de
1594, em Olinda, Pernambuco, em que Domingas Jorge denuncia práticas de
feitiçaria cometidas por Felícia Tourinha3. Este documento foi retirado do Arquivo
Nacional Torre do Tombo em Lisboa e trata-se de um manuscrito que aborda todo
o processo crime de Tourinha, desde a acusação até a sentença. Este documento foi
inteiramente transcrito e editado semi-diplomaticamente para a realização do
trabalho. Tanto a figura de Felícia quanto seus feitiços destoam completamente do
estereótipo de bruxa das mulheres citadas no capítulo primeiro.
Heitor Furtado de Mendonça, Desembargador real e Capelão del rei, que
exercia, também, o cargo de Deputado do Santo Ofício, desembarcou na Bahia em
9 de junho de 1591. Em sua comitiva vieram o notário Manoel Francisco, um
meirinho de nome Francisco Gouvea, e contaram ainda com a ajuda de autoridades
eclesiásticas locais (VAINFAS, 1997: 7). O bispo Antônio Barreiros da Bahia,
posteriormente, em Olinda, por motivos de doença, é afastado dos processos e
substituído por um jesuíta, Padre Vicente Gonçalves (MELLO, 1991: 372).
Pernambuco era considerada o maior pólo econômico da colônia durante os
séculos XVI e XVII, possuindo mais de 100 engenhos de produção de açúcar,

3 Arquivo Nacional Torre do Tombo, Inquisição de Lisboa, proc. Nº 01268.


159 VI EPEGH
espalhados por uma região que se estende da antiga Vila de Igaraçu até o rio São
Francisco. Esta Capitania foi palco de expressi- vas ações portuguesas que
resultaram na instalação de espaços urbanos na maioria das vezes de pequeno
porte, à maneira de um povoado ou vila, carregando um elemento definidor das
intenções colonizadoras: o engenho, fazendo desta Capitania a mais próspera
economicamente da região Nordeste e mesmo do Brasil seguindo apenas a
Capitania de São Vicente (OLIVEIRA, 2008).
Margeando a costa marítima, encontramos a Vila de Olinda. A maturidade
urbana da vila adveio da vontade política na criação de um espaço. A posição
estratégica para defesa militar e a similaridade da sua geografia fez de Olinda a
“cabeça” da Capitania, a sede política e administrativa de Pernambuco. Por esse
motivo, a Vila aparece em situação privilegiada. No interior, o açúcar, grande
riqueza do período, era produzido nos engenhos, principalmente na várzea do
Capibaribe, região de maior produção mundial. Devido à intensa movimentação
açucareira, o porto de Recife era considerado o mais importante da América
portuguesa. De fato, Olinda, enquanto sede da Capitania, apresenta uma situação
urbana bem superior às demais em termos de desenvolvimento, gozando de uma
infra-estrutura generosa dentro do contexto colonial (OLIVEIRA, 2008).
Funcionando como uma rede, um sistema colonial em que cada uma exerce
seu papel, a urbe das vilas contribuíam com o que tinham de mais proveitoso, seja
a produção do açúcar, seja a disseminação religiosa, seja na articulação territorial
ou proteção da colônia em seu sentido mais amplo, indicando que não apenas o
engenho, enquanto elemento significativo da economia e comércio colonial, mas a
própria urbe pode ser sintetizada como a razão de ser da gênese da colônia
brasileira (OLIVEIRA, 2008).
A importância portuária de Recife deve-se, contudo, à produção dos
engenhos instalados em torno de Olinda, obviamente devido à sua conotação
política. Funciona mesmo como um sistema: produção (engenho) – administração
(“cidade”) – comércio (porto) (OLIVEIRA, 2008).
Voltando ao processo de Felícia Tourinha, a primeira acusação feita contra
ela, em 28 de janeiro de 1594, por Domingas Jorge Ferreira, acusa Felícia de ter
praticado feitiçaria há aproximadamente nove ou dez anos, quando ambas estavam

NICÓLLI DE LIMA GARCIA 160


presas na cadeia pública de Olinda. Felícia era filha de um clérigo, João Tourinho,
e uma preta forra, Antônia Vaz. Tinha aproximadamente trinta e cinco anos no
momento da denúncia e era casada com Gaspar de Paiva, homem sem ofício.
Mestiça, pobre, e segundo o que consta no processo, de saúde debilitada.
Aproximadamente um ano depois da acusação, Mendonça manda prender
Tourinha.
A presença do Tribunal do Santo Ofício gerava entre a população um clima
de insegurança e de intimidação. Todos poderiam ser alvo da ação do Tribunal.
Diante dos crimes contra a fé, as tensões existentes no corpo social encontravam
espaço e se materializavam em denúncias entre inimigos e desafetos. O clima de
desconfiança, insegurança e medo ajudava na manutenção do Santo Ofício como
um instrumento disciplinador dos colonos, de seus corpos e suas almas. A
população buscaria estar mais próximo do perfil de “bom cristão” (REIS, 2011: 2),
na tentativa de fugir das garras da Inquisição, mesmo que isso implicasse
denunciar vizinhos, amigos e conhecidos.
O feitiço realizado por Felícia, as práticas de lançamentos de sorte e de
adivinhação, tinham como propósito a busca de um controle maior dos destinos
individuais, em meio a um mundo de incertezas e de precariedades. Práticas dessa
natureza não foram exclusividade da sociedade colonial quinhentista, mas elas
também estiveram bastante presentes fora do universo colonial no período
moderno (REIS, 2011). Por meio das práticas de adivinhação e do lançamento de
sortes, Felícia busca manipular seu destino, modificar uma possível ordem natural
dos acontecimentos. A feitiçaria, muitas vezes de cunho ofensivo, também poderia
ser utilizada para fins defensivos, com o intuito de proteger e guardar seus
praticantes, poderia ser usada para amenizar problemas e dificuldades pessoais
nos espaços onde ela estava inserida (SOUZA, 1986: 194).
Diferentemente das outras bruxas que foram objeto de análise da pesquisa
que, mesmo em terras americanas, ainda carregam muito do estereótipo de bruxa
europeia, anticristã, demoníaca e malfeitora, com práticas ligadas ao pacto
diabólico, Felícia Tourinha tem em suas prá- ticas muito da religiosidade que se
forma no período colonial com fortes elementos provenientes do cristianismo. Ao
evocar São Pedro e São Paulo, ao mesmo tempo em que evoca diabos, a prática de

161 VI EPEGH
Felícia é sincrética, um exemplo do que era a religiosidade popular na colônia
portuguesa da América, uma religiosidade em que havia uma forte mistura de
crenças e religiões. Felícia é uma pessoa que carrega, em si e em sua posição, muito
do que foi a trajetória comum de muitos dos habitantes da América portuguesa.
Filha de um clérigo e uma preta forra, Felícia expressa sua religiosidade de forma
diversa, incorporando elementos do que conhece, colocando nas suas práticas todo
o sincretismo religioso próprio do momento em que vive e de sua própria existência.
A obsessão pela presença demoníaca que surge e que impulsiona a
Inquisição do período moderno esteve estritamente ligada à criação de um
estereótipo anticristão, uma espécie de arquétipo humano do mal, que as bruxas
materializaram. Na América portuguesa no século XVI, as delimitações entre
imaginário e real não eram nítidas, portanto, não se pode separar a religiosidade
das vivências sociais cotidianas, porque estes aspectos estão estritamente
vinculados, numa relação de constante diálogo. Os feitiços de Felícia são
importantes, nesse sentido uma vez que permitem tornar inteligível a intensa
relação estabelecida entre religiosidade e vivência cotidiana.
A Inquisição no reino lusitano perseguiu não somente as heresias religiosas,
mas também as heresias políticas. Tendo um viés bastante econômico, a atuação
do Santo Ofício na América portuguesa colonial foi uma fábrica de hereges, criando
e buscando culpados para acumular riquezas através do confisco de bens de
condenados, acusando de judaísmo comerciantes cristão-novos e estabelecendo um
monopólio ultramarino pela coroa portuguesa. A Inquisição então deixou de ser um
mecanismo de controle da Igreja para se tornar também um mecanismo de controle
e de dominação da Coroa portuguesa, tanto na própria metrópole quando nos
domínios coloniais.
A Inquisição causa na sociedade um efeito de bipolarização maniqueísta,
transformando tudo numa divisão entre bem e mal, certo e errado, sagrado e
profano, etc. Não é diferente com as pessoas, dividindo-as entre boas e más, sendo
esta última característica de exclusividade das mulheres, visto que estas eram
mais propensas ao pecado e a impureza do espírito desde Eva. Essa bipolarização
qualifica as características e a população masculina, desvalorizando, assim, as
femininas.

NICÓLLI DE LIMA GARCIA 162


Felícia Tourinha procura passar uma imagem de moça simples e ignorante,
segundo as descrições que nos dão o inquisidor e o notário, mas ao longo do
processo, se mostra esperta e astuta nas tentativas de se desvencilhar das culpas,
buscando ludibriar o inquisidor e se inocentar, utilizando à seu favor as próprias
características que o inquisidor enxerga: se fazendo de mulher simples, ingênua e
ignorante para, assim, fugir da condenação. Por fim, pede perdão e misericórdia.
Reconhecendo suas culpas, renegando seus pecados, Felícia jura se submeter à
Igreja e suas autoridades, ser obediente e fiel a fé católica. Abjuração que talvez
não a tenha impedido de continuar praticando feitiçaria, uma vez que muito
provavelmente continuaria a viver imersa em um cotidiano de dificuldades,
incertezas e marginalização.
A documentação inquisitorial, extremamente rica nas descrições e
narrativas que fez de episódios da vida dos denunciados e acusados nos permite
conhecer mais profundamente as práticas e vivências cotidianas da população
colonial. Se hoje sabemos os nomes dessas mulheres, podemos conhecê-las um
pouco melhor (mesmo que através das palavras de inquisidores), e podemos
entender seu papel dentro da sociedade colonial, foi pela misoginia e pela
perseguição sofrida em nome da fé cristã.

163 VI EPEGH
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165 VI EPEGH
A questão social na perspectiva da Doutrina da Segurança

Nacional de Golbery do Couto e Silva: a miséria como

vulnerabilidade e o Bem Estar em seu limite1

LETICIA MARIA DE ALCÂNTARA NOGUEIRA2

RESUMO: A Escola Superior de Guerra foi a instituição encarregada de estudos


sobre a segurança nacional. Nessa mesma instituição, atua como adjunto o general
Golbery do Couto e Silva. O General, que foi um nome de peso na articulação
intelectual para o golpe de 1964, tem parte relevante de sua produção teórica
reunida em conferências e palestras na ESG. Essas palestras e conferências tratam
sobre diretrizes que deveriam ser estabelecidas para a Segurança Nacional. Nessas
mesmas diretrizes, podemos identificar o dilema sobre a relação de prioridade
entre a Segurança e o Bem Estar social.
PALAVRAS-CHAVE: Segurança Nacional; bem estar; guerra fria; questão social;
Golbery do Couto e Silva.

1 Artigo proveniente da pesquisa financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico


e Tecnológico (CNPq) e orientada pela Profa. Dra. Elizabeth Cancelli.
2 Graduanda em História na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade

de São Paulo.

LETICIA MARIA DE ALCÂNTARA NOGUEIRA 166


1. INTRODUÇÃO: O GENERAL E OS ESTUDOS TEÓRICOS NA

ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA


Não é raro encontrar em livros de história do Brasil contemporâneo menções
sobre o general Golbery do Couto e Silva: trata-se de uma personagem histórica
que teve considerável relevância no curso do golpe de 1964. Obras como 1964: A
conquista do Estado do historiador e cientista político, René Armand Dreifuss,
explicitam o papel de liderança de grupos de estudos e o de sustentação intelectual
que o General teve durante sua atividade conspiratória no Instituto de Pesquisa e
Estudos Sociais (DREIFUSS, 1981). Também é bem conhecido o fato de que
Couto e Silva foi o primeiro chefe do Serviço Nacional de Informações (SNI), criado
em 1964 durante o governo de Humberto Castelo Branco e ocupou o cargo de
ministro-chefe da Casa Civil no governo de Ernesto Geisel.
Todavia, deve-se lembrar que as elaborações teóricas e a atuação política de
Golbery não começaram com o IPES: além do cargo de chefe do Conselho de
Segurança Nacional em 1961 durante o governo Jânio Quadros, as conferências e
palestras sobre o moderno conceito de Segurança Nacional mais difundidas de
Couto e Silva são, principalmente, da década de 1950. Foi na década de 50 que
Couto e Silva atuou como adjunto do Departamento de Estudos da Escola Superior
de Guerra (ESG) (CPDOC/FGV, 2019). A análise da produção teórica e a
investigação sobre a trajetória do General nos permite localizá-lo no debate sobre
a modernização do conceito de Segurança Nacional e nas consequentes implicações
políticas e sociais dessa atualização do conceito.
A Escola Superior de Guerra é uma instituição fundamental para o
entendimento sobre a atuação de Golbery do Couto e Silva. É na ESG que são
realizadas, em sua maioria, as conferências compiladas em Geopolítica do Brasil,
obra organizada em 1967, e Planejamento Estratégico, organizada em 1955. A ESG
foi criada pelo decreto de nº 25.705 de 22 de outubro de 1948 e organizada pela lei
de nº 785, de 20 de agosto de 1949. Esta última lei indica que a ESG seria destinada
“a desenvolver e consolidar os conhecimentos necessários para o exercício das
funções de direção e para o planejamento da segurança nacional” (BRASIL, 1949).
É com razão, portanto, que a instituição pode ser apontada como um locus de
produção e difusão de estudos geopolíticos (NASCIMENTO, 2016, p. 9). Um
167 VI EPEGH
exemplo prático da orientação da segurança nacional por parte da ESG foi quando
a instituição apresentou um projeto de lei que tomou o número de 176, enviado ao
Congresso Nacional em 1955. Este projeto buscava a reformulação de alguns
pontos na constituição do Conselho de Segurança Nacional, órgão responsável por
orientar o presidente da República nas decisões que tangenciam à Segurança
Nacional (ARQUIVO NACIONAL, 1961, p 135-139). Esta atuação mostra que a
ESG não só estava encarregada de estudos e produção teórica sobre a segurança
nacional, mas também de elaboração de diretrizes políticas para a Segurança
Nacional no Brasil.
E como a produção teórica dentro da Escola Superior de Guerra pôde ser
traduzida em direções e planejamento para uma política de Segurança Nacional?
Um primeiro ponto é sobre como se deu a circulação dessas ideias. Sobre isso,
modifiquemos a questão: para que público foram direcionadas essas conferências e
palestras de Golbery sobre o conceito de Segurança Nacional na ESG? O público da
ESG é formado por seus “estagiários”. Este grupo de estagiários é especificado na
lei nº 785: seriam membros Forças Armadas que tivessem comprovada experiência
e aptidão e um público civil de notável competência e atuação relevante na
orientação e execução da política nacional (BRASIL, 1949). A lei que organiza a
Escola Superior de Guerra, portanto, delimitou um público que poderia levar a cabo
a consecução de diretrizes formuladas na ESG. Em 1966, publicando um artigo
sobre o pensamento da Escola Superior de Guerra nos Cadernos Brasileiros, o
general Umberto Peregrino, diretor da Biblioteca do Exército entre 1950 e 1960,
afirmou que que as instituições militares atuariam como órgãos de planejamento
(PEREGRINO, 1966, p. 29).
Por isso a ESG pode ser entendida como uma instituição voltada à formação
de elites, tal como é colocado pelo cientista político Shiguenoli Miyamoto: um dos
cuidadosos critérios da ESG ao convidar seus futuros alunos – denominados
estagiários – sempre foi selecionar elementos que hierarquicamente já ocupavam
cargos elevados (MIYAMOTO, 1995, p. 106). Também os cursos de extensão da
ESG, que eram promovidos por delegacias regionais e realizados anualmente a
partir de 1962, tinham um público muito bem delimitado: era exigido que os
candidatos tivessem um diploma universitário e esperava-se que este público

LETICIA MARIA DE ALCÂNTARA NOGUEIRA 168


estivesse ligado aos setores empresarial, industrial ou acadêmico (MIYAMOTO,
1995, p. 107).
É nessa instituição que vão surgir estudos geopolíticos e estratégicos
levando em consideração condições específicas do Brasil. Nos estudos de Golbery,
vimos que a seleção e hierarquização de princípios em um campo estratégico seriam
definidas como uma doutrina (SILVA, 1979, p.360-366). Dada a especificidade dos
estudos, vinculados à realidade brasileira, juntamente às funções atribuídas à
Escola pela Lei nº 785, faz-se possível a afirmação, como no trabalho de Luís Felício
Nascimento, que a Escola Superior de Guerra era encarregada do desenvolvimento
de uma Doutrina de Segurança Nacional (NASCIMENTO, 2016, p. 9).
Um aspecto importante a ser salientado é sobre a escolha da obra de Couto
e Silva como norte para as análises sobre a Doutrina de Segurança Nacional. O
General é comumente descrito pela historiografia como responsável pela
organização de um panorama teórico das diretrizes tomadas pela ESG
(NASCIMENTO, 2016, p. 26; MIYAMOTO, 1995, p. 77; MUNDIM, 2007, p. 116).
Durante a leitura de Golbery foi possível desenvolver noções sobre o vínculo entre
a modernização do conceito de Segurança Nacional e as políticas sociais.

2. EXTRAVASAMENTO: O MODERNO CONCEITO DE

SEGURANÇA NACIONAL E A GUERRA TOTAL


A Escola Superior de Guerra e a produção teórica do general Golbery do
Couto e Silva não estão suspensas no ar: a fundação da ESG em 1949 é comumente
associada ao fim da Segunda Guerra Mundial e ao advento da Guerra Fria. Assim,
para o entendimento a respeito da necessidade de modernização do conceito de
Segurança Nacional durante as décadas de 50 e 60, é preciso ater-se à descrição
exaustiva sobre o que é a guerra total nas obras de Couto e Silva.
Tanto em Geopolítica do Brasil como em Planejamento Estratégico, notamos
a descrição da Guerra Fria como um cenário que o General denomina como guerra
total. Ela não só é descrita como total, também como global e permanente (SILVA,
1967, p. 9). Essas três características mostram que a guerra atual não deveria mais
ser encarada como as guerras anteriores, tal como as guerras de nações, uma vez
que agora o conceito de guerra deveria ser ampliado. A guerra seria total, pois ela
169 VI EPEGH
não seria estrita ao âmbito militar, mas também aos campos psico- social,
econômico e político. Ela seria permanente pois trata-se de um extravasamento da
guerra em todos as esferas da vida, de tal forma que não se sabe onde acaba a paz
ou onde começa a guerra. A guerra ainda é global pois espalha-se para todos os
continentes, não se restringindo a determinados territórios como eram as guerras
de nações (SILVA, 1967, p.24). O General conclui que a Guerra Fria não possui
fronteiras precisas, não possuindo tempo, espaço ou área específica para sua
atuação.
Sobre isso, Couto e Silva alerta em um de seus textos Aspectos Geopolíticos
do Brasil, de 1952, sobre a intensificação do problema elencado por Thomas Hobbes
sobre a insegurança. Uma vez que a sociedade se encontra agora dilatada, ela
enfrentaria agora um “Super Leviatã”, uma insegurança generalizada que
envolveria guerras civis e guerras subversivas. Para o autor, a Guerra Fria
inclusive levaria a um dilema entre a escolha da Segurança e a Liberdade,
pensando na ameaça que se apresenta à toda humanidade (SILVA, 1967, 9-12).
Alterada a natureza das guerras na segunda metade do século XX, para
teóricos da ESG como Golbery do Couto e Silva seria imprescindível a
modernização do conceito de Segurança Nacional. Aliás, o entendimento de uma
guerra que extravasa para todas as esferas da vida implica na ideia de que
estratégias de guerra deverão ser elaboradas para diversas áreas. Seguindo o
pensamento deste autor, as estratégias de guerra também deveriam pensar sobre
o campo político, psico-social e econômico.
Assim, o General determina que na cúpula de Segurança Nacional deverá
existir uma Estratégia – chamada também como a Grande Estratégia ou
Estratégia Geral – que seria uma arte de competência exclusiva do governo,
coordenando todas as atividades políticas, econômicas, psicossociais e militares
para o cumprimento de Objetivos Nacionais (SILVA, 1967, p.25). Os chamados
Objetivos Nacionais referem- se àquilo que diz a respeito sobre a sobrevivência de
um Estado-Nação no tempo e no espaço, sua autonomia em relação aos demais, e o
desenvolvimento econômico e social (SILVA, 1967, p. 11).
A respeito disso, Golbery do Couto e Silva em sua obra Planejamento
Estratégico, afirma que a complexidade da realidade exige um pensamento

LETICIA MARIA DE ALCÂNTARA NOGUEIRA 170


planificado. Ele lança mão da argumentação de Karl Manheim em Liberdade e
Planificação para argumentar que a estratégia deve ser voltada à
multidimensionalidade dos fatos, sendo inadequado um pensamento linear para
este novo cenário (SILVA, 1979,p. 21). Há, portanto, uma argumentação
consistente no discurso de Golbery durante as décadas de 50 e 60 da necessidade
de uma atuação da Segurança nos vários campos da realidade.
Vale ressaltar que os quatro campos (econômico, psicossocial, militar e
político) são vistos como suscetíveis às ameaças externas de uma crueza despótica
da política de poder, ou seja, daqueles que são vistos como regimes totalitários,
representado pela União Soviética. Sendo assim, a Segurança Nacional
necessitaria de um planejamento específico, voltado à planificação geral, de tal
modo que as atividades do Estado sejam racionalizadas (SILVA. 1979, p. 26).

3. DESDOBRAMENTO: O DILEMA DA RELAÇÃO ENTRE

SEGURANÇA NACIONAL E O BEM ESTAR NACIONAL

A definição sobre a guerra total possibilita a compreensão da problemática


da relação entre Bem Estar e Segurança. Isso porque frente à interpretação de uma
realidade intermediada pela guerra total é esperado que a Segurança seja um
discurso crucial para a interpretação de problemáticas que passava o país. Deve-
se acrescentar que a modernização do conceito de Segurança Nacional é
contemporânea ao debate intelectual no bloco ocidental de apelo
desenvolvimentista. É nesse período em que há a ideia de que o desenvolvimento
econômico e industrial traria consigo a liberdade e a solução de questões sociais,
mesmo que isso fosse conquistado a partir de regimes de força (CANCELLI, 2017,
p. 83).
A ideia exposta acima também se reflete em Geopolítica do Brasil e
Planejamento Estratégico de Golbery do Couto e Silva. Essa ideia terá importância
no dilema trabalhado entre Bem Estar e Segurança Nacional. Em Geopolítica do
Brasil, observamos a argumentação de que a Segurança é um parâmetro
inelutável, uma necessidade frente a realidade de “totalização da guerra”, no qual
seria necessária a integração de todo o esforço nacional. Ao citar o slogan de

171 VI EPEGH
Goering, “mais canhões e menos manteiga”, o General reconhece que não há como
fugir de uma certa necessidade de sacrificar o Bem-Estar em proveito da
Segurança.
Entretanto, a própria Segurança seria ameaçada caso não houvesse o
mínimo de Bem Estar. Faz-se então o imperativo: Sacrificar o Bem-Estar até certo
ponto que não sacrifique também a própria segurança – e segue argumentando –
A segurança estrutura-se, pois não pode deixar de estruturar-se, sobre uma base
irredutível de bem-estar econômico e social, nível abaixo do qual se ofenderá a
própria capacidade de luta (SILVA, 1967, p. 14). Em seu Planejamento Estratégico,
Golbery aponta que o planejamento orientado para o Bem Estar e a justiça social
poderia destinar, de um total sempre limitado de capital disponível, maior volume
de investimentos aos setores que mais diretamente interessasse àquele binômio
[de Segurança e Desenvolvimento].” (SILVA, 1979, p. 25).
Pensando em um cenário descrito de guerra global, deve-se atentar ao fato
de que uma miséria social poderia ser considerada uma vulnerabilidade do país.
Tal como foi citado, em que os campos político, econômico, psico-social e militar
poderiam ser alvos da política despótica de regimes totalitários, o fator da miséria
e pouco desenvolvimento social poderiam proporcionar um plano de ação do bloco
soviético no Brasil.
Na obra de Couto e Silva, é argumentado que a adesão ao bloco ocidental
viria acompanhada da negação e do combate contra tudo aquilo que seria
proveniente dos regimes do bloco oriental. Observa- se nos últimos tópicos tratados
por Golbery em Geopolítica do Brasil, denominados O Ocidente precisa do Brasil e
O Brasil depende do Ocidente que a América é colocada, diante o cenário mundial,
como frágil e suscetível às ameaças comunistas. Ele lista alguns motivos que
acarretariam em tal fragilidade, são eles: as fraquezas econômicas, a imaturidade
política e o baixo nível cultural. Esses são fatores que expõem a região à infiltração
e à subversão à distância (SILVA, 1967, p. 219-250).
O autor nega o projeto do inimigo soviético, que arroga para si o título de
“campeã da justiça social e das verdadeiras liberdades do homem”, mas, que na
verdade seria, para Golbery, o “imperialismo expropriador de bens e escravizador”
(SILVA, 1979, p.18-19). Percebemos, portanto, que, na visão da DSN, as questões

LETICIA MARIA DE ALCÂNTARA NOGUEIRA 172


sociais e da liberdade seriam negadas em regime soviético. O próprio discurso
socialista seria, dentro desta lógica, inviável. Assim, ele afirma que a vitalidade e
o poder de criação no mundo democrático deve se dar com o soerguimento de povos
subdesenvolvidos a um nível social elevado de bem-estar, de riqueza e de progresso.
(SILVA, 1967, p. 248).
Vale ressaltar que, dentro das referências teóricas de Golbery sobre o
Ocidente está Arnold Toynbee. Toynbee expõe em sua obra O Mundo e o Ocidente
o movimento histórico em que a civilização ocidental vê suas armas apropriadas
pelos orientais constantemente. Na Rússia, este movimento começa a partir do
século XVIII, com o czar Pedro, o Grande. As tecnologias bélicas eram incorporadas
ao oriente para conter a expansão ocidental em direção ao leste. Por fim, em 1917,
a Rússia apropria-se de uma arma não material, mas ideológica, contra o ocidente:
o marxismo. O Marxismo, criado por ocidentais, é descrito como uma “heresia” que
aponta as vulnerabilidades e contradições do Ocidente, tal como é o caso da
incompatibilidade dos valores cristãos e a desigualdade (TOYNBEE, 1955, p.251-
259). Logo, dentro das próprias referências teóricas, já existem elementos que
mostram problemas sociais como uma vulnerabilidade frente a uma arma
ideológica.
O discurso do conflito entre as civilizações é um ponto que vale a pena ser
investigado no que diz a respeito da vulnerabilidade. Como afirmado
anteriormente, o desenvolvimento e o planejamento econômico são questões
priorizadas, mas há observações de Golbery que mostram que essa urgência conflui
a um combate contra o ressentimento de um Bem-Estar social do povo, aguçando-
se os conflitos entre classes e entre grupos diversos (SILVA, 1979, p. 118).
Outro ponto que merece ser investigado na pesquisa é sobre a compreensão
de Couto e Silva sobre o “subdesenvolvimento” e o papel do desenvolvimento
econômico no planejamento estratégico. A partir da leitura das conferências de
Golbery, nota-se que o General salienta a prioridade do campo econômico em
“tempos de paz” ou em prazos normais. Podemos observar, no trecho abaixo,
pontuações do mesmo autor sobre a variação de campos dominantes conforme as
mudanças de conjuntura (noção de dominância e criticidade), e sobre o
subdesenvolvimento como fator de vulnerabilidade que possibilita o argumento de

173 VI EPEGH
antagonismos internos e externos, etc. Neste excerto, observamos que o General
argumenta que nem todo o planejamento de Segurança Nacional deveria se apoiar
principalmente no campo militar.
Em tais circunstâncias, para o planejamento do fortalecimento do Potencial
Nacional, o campo dominante será, por certo, o econômico, dadas as dificuldades
não só conjunturais mas sobretudo de base estrutural com que luta o país nesse
particular, ressentindo-se daí o bem-estar social do povo, aguçando-se os conflitos
entre classes e entre grupos diversos e avultando os antagonismos entre regiões
distintas, entre as cidades e os campos, entre as elites e as massas. [...] O poder
militar será uma irrisão ante os perigos que dia a dia se acrescem [...]. (SILVA,
1979, p. 118)
Nota-se que na segunda parte do livro Planejamento Estratégico, Golbery
apresentou como bibliografia complementar obras relacionadas à economia e à
questão social. Dentre elas estão a Teoria geral da ocupação, o interesse e o
dinheiro de John M. Keynes, e de algumas obras que comentam este autor: A
revolução keynesiana de Lawrence R. Klein e Introdução à Keynes de Raul
Prebitsch. Além disso, ele elenca uma bibliografia sobre desenvolvimento
econômico e social. Essas referências deverão ser investigadas para fins de melhor
compreensão sobre a interpretação Golbery do Couto e Silva dos conceitos de
“miséria”, “Bem Estar” ou “vulnerabilidade” que são mencionados ao longo de sua
obra. Além disso, deverão ser investigadas divergências e incompatibilidades que
o mesmo possui com a teoria keynesiana. Deverá ser feito um exame comparativo
atento entre as ideias dos dois autores a fim de se compreender como as questões
sociais eram encaradas nas décadas de 1950 e 1960 no Brasil, e se elas poderiam
(e como poderiam) estar relacionadas à atuação política de Golbery no mesmo
período, que desembocaria em uma significativa contribuição para o golpe de 1964.

LETICIA MARIA DE ALCÂNTARA NOGUEIRA 174


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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LETICIA MARIA DE ALCÂNTARA NOGUEIRA 178


Populismo, um conceito em movimento1.

GUSTAVO NAZARIO2

RESUMO: Neste artigo, pretendo debater o conceito de populismo ao longo dos


anos no Brasil, passando pelo debate clássico sociológico dos anos 60 e 70, fazendo
a crítica desse por meio da historiografia, que no começo dos anos 80 ganhou fôlego
ao estudar tal fenômeno através das ideias E. P. Thompson. Tendo consciência da
dificuldade que há no trato do populismo, propomos também uma atualização do
termo, procurando inseri-lo no debate político a partir dos anos 90, levando em
conta os novos fenômenos que acontecem no país. Dessa forma, tão importante
quanto rediscutir os aspectos do debate clássico sobre o populismo no Brasil é
permitir que se coloque o tema — atualizado — como objeto de novos estudos.
PALAVRAS-CHAVE: Populismo; Brasil; Democracia; Massas; História política.

1 Este artigo é fruto de pesquisa realizada com apoio da FAPESP (Bolsa de Iniciação Científica).
2 Graduando em História pela Universidade de São Paulo (USP).
179 VI EPEGH
1. INTRODUÇÃO
Inicialmente, é possível afirmar que o populismo é um conceito sem uma
formulação exata, muito devido pela variedade de ocorrências históricas do que se
chama de populismo, resultando em uma diversidade de abordagens, mas também
por certa negligência nos estudos que apenas a partir dos anos 80 passaram a
encarar esse fenômeno de frente, com rigor crítico e a partir de uma nova
abordagem metodológica que será discutida mais abaixo.
Na sua abordagem clássica, segundo Worsley (1973), o populismo é estudado
na grande maioria das vezes por meio de três formatos: como um fenômeno de
origem social, como uma forma de governo ou como uma ideologia específica.
Porém, para que ele ocorra em qualquer uma dessas formas, Francisco Weffort
(1978) defende que o populismo precisa primeiro, de uma massificação de amplas
camadas da sociedade que desvincula os indivíduos de seus quadros sociais de
origem e os reúne na massa, relacionados entre si por uma sociabilidade periférica
e mecânica; segundo, de uma perda da representatividade e da exemplaridade da
classe dirigente; e por último, da presença de um líder dotado de carisma de
massas. Contudo, é possível afirmar que certos pontos dessa abordagem clássica
foram superados, principalmente o que concerne à questão da manipulação das
massas por meio de uma líder carismático, que será abordado neste tópico.
Sendo assim, começaremos a exposição tratando dos sentidos que o
populismo assume ao longo da história. Demonstraremos, também, que mesmo
com grande esforço por parte dos acadêmicos de entenderem o fenômeno e
descrevê-lo, no meio popular o termo é usado constantemente, sem qualquer rigor
metodológico, porém, consciente de suas intenções, já que se há uma constante,
atualmente, em relação ao termo é seu uso para desqualificar o outro.

2. O SENTIDO DO TERMO POPULISMO


Como dito acima, o sentido que o termo populismo passou a ser utilizado ao
longo da história assumiu uma carga negativa não só no discurso político, mas
também no popular. Para Angela de Castro Gomes (GOMES, 2001), no âmbito
político, aqueles que são taxados de populista são ligados a ações como:

GUSTAVO NAZARIO 180


manipulação do povo, “retórica fácil”, mau- caratismo e não cumprir de promessas.
O tom negativo não se limita apenas ao político, mas ao fenômeno como um todo,
já que esses políticos não se elegeriam sem eleitores que não saberiam votar ou que
sempre se comportariam de maneira dependente, como se estivessem à espera de
um “salvador da pátria”.
Contudo, no início do século XX, lembra Jorge Ferreira em seu livro O
populismo e sua história (FERREIRA, 2001), ser considerado populista no Brasil
era um elogio. Através de pesquisas em jornais da época, o autor encontrou
algumas menções a “populismo” e “populista” em sentido positivo, utilizadas em
discursos dos próprios políticos. Populista, nesse período, era aquele que era
próximo do povo, que ouvia sobre seus problemas e conseguia entendê-los. Porém,
quando os populistas começam a ganhar espaço na política, vencendo eleições
contra liberais e conservadores, o conceito passa a receber uma conotação
pejorativa.
Indo para os contornos latino-americanos, politicamente, o populismo
encontrou uma certa funcionalidade ao servir de alternativa à “onda comunista”.
Para Maria Helena Capelato (CAPELATO, 2001) nas primeiras décadas do século
XX, o populismo representava a promessa de um Estado forte e personalista, aliado
a uma legislação social e a uma liderança carismática, que tinha o objetivo de
combater o perigo do comunismo no continente. Essa alternativa, então, foi
adotada como uma espécie de barreira contra a entrada do comunismo em países
como México e Argentina, principalmente após a Revolução Russa de 1917.
Após a ameaça do comunismo, a presença de lideranças carismáticas não
ligadas às elites políticas tradicionais à frente do Estado deu início a um mal-estar
entre esses atores políticos, já que os populistas ameaçavam os interesses dessas
elites. Foi, então, nesse momento que o conceito de populismo passou a receber um
tom negativo na esfera política e no senso comum. O resultado foi uma
demonização dos populistas, que terminou moldando a visão liberal, defendida por
políticos que faziam parte do status quo combatido pelo discurso populista, a partir
dos anos 40 no Brasil.
Na visão liberal, o populismo é um fenômeno vazio de conteúdo, sobre o qual
a população seria incapaz de distinguir entre propostas ditas sérias e propostas

181 VI EPEGH
demagógicas. Um parlamentar liberal, lamentando os resultados das eleições de
1945 para seu partido, a UDN, dá os seguintes conselhos sobre o tratamento dado
pelos políticos aos eleitores: “evite por todos os meios obrigar o povo a refletir. A
reflexão é um trabalho penoso a que o povo não está habituado. Dê-lhe sempre
razão. Prometa-lhe tudo o que ele pede e abrace-o quanto puder” (Apud:
WEFFORT, 1978, p.24).
Fica claro que a definição liberal leva em conta apenas aspectos exteriores
do fenômeno, como a demagogia e o apelo emocional. Jorge Ferreira ressalta o
mesmo ao afirmar que:

“liberais e autoritários, de direita ou de esquerda, diagnosticaram que os


males do país provêm de uma relação desigual, destituída de reciprocidade
e interlocução: há uma sociedade civil incapaz de auto-organização,
‘gelatinosa’ em algumas leituras, e uma classe trabalhadora ‘débil’, impõe-
se um Estado que, armado de eficientes mecanismos repressivos e
persuasivos, seria capaz de manipular, cooptar e corromper” (FERREIRA,
2001, p.62).

Ou seja, para Ferreira, o resultado desse processo, que consolidará o conceito


dominante de populismo no Brasil, foi uma tendência em culpar o Estado e vitimar
a sociedade. É assim que o conceito de populismo inicia sua trajetória acadêmica
no Brasil, transformando-se a partir dos anos 50 em objeto de pesquisa das
Ciências Sociais brasileiras. Segue sua trajetória até meados dos anos 60, quando
o golpe militar colapsa a chamada “democracia populista”. É nesse momento que
estudiosos, como Otavio Ianni e Francisco Weffort, começam a encarar o conceito
como uma possível fonte de explicação para o Golpe Civil-Militar.
Com o fim das ditaduras militares na América Latina e, consequentemente,
o ressurgimento das democracias, as eleições transformaram-se novamente em
instrumento de manifestação do descontentamento das massas em relação às elites
políticas tradicionais. As lideranças carismáticas, voltam à cena com suas
promessas de solução fácil para todos os problemas. Essas lideranças, não
necessariamente nascidas de transformações sociais profundas, passaram a ser
chamadas de “neopopulistas”. Apesar da importância da discussão histórica sobre

GUSTAVO NAZARIO 182


o uso do conceito de populismo como categoria explicativa da política brasileira,
falta ao livro de Jorge Ferreira uma aproximação das características do populismo
com o neopopulismo, e uma análise mais aprofundada deste último.

3. ESTUDOS SOBRE O CONCEITO


Os estudos sobre o populismo no Brasil podem ser acompanhados com o
passar das décadas durante o século XX, iniciando-se nos anos 50 e chegando até
os dias atuais. As primeiras formulações sobre o populismo no Brasil tiveram como
base a teoria da modernização. Em meados dos anos 50 um grupo de intelectuais,
chamado de Grupo de Itatiaia, fora patrocinado pelo Ministério da Agricultura
para que debatesse sobre os problemas políticos do país. Um dos problemas
identificados na política foi o surgimento do populismo, que não sofrera um estudo
a fundo por parte dos intelectuais, mas que influenciaram inúmeras formulações
que seguiram. Para o Grupo, segundo Angela de Castro Gomes (GOMES, 2001,
p.22), em primeiro lugar, o populismo era uma política de massas, ligada à
modernização da sociedade, principalmente no tocante aos trabalhadores rurais
que vão aos centros urbanos e não têm consciência de classe. Em segundo lugar, o
populismo estaria ligado a uma classe dirigente que perdera sua
representatividade e para reconquistá-la necessitaria do apoio das massas. Por
último, devido a inconsistência das massas, a figura do líder populista, cheio de
carisma e capacidade de mobilizar pessoas, completaria o fenômeno.
Para Jorge Ferreira (2001, p.74), o golpe civil-militar de 1964 fará com que
nos anos 60 o populismo torne-se parte da explicação para a incapacidade de ação
do movimento operário e sindical diante do ataque da direita civil-militar. Nesse
contexto político, Francisco Weffort publica uma série de artigos, que mais tarde
seriam reunidos no livro O populismo na política brasileira (1978). Nele, Weffort
mantém-se ligado às reflexões conceituais da época, principalmente no que diz
respeito à modernização e às massas camponesas recém proletarizadas, porém em
certos aspectos sua interpretação avança. O populismo apresentado no livro segue
três premissas centrais, repressão, manipulação e satisfação, que acabam deixando
o fenômeno ambíguo, já que pode ser uma interlocução entre Estado e classe
trabalhadora, ou manipulação do Estado diante das massas. Essa ambiguidade

183 VI EPEGH
torna-se mais evidente se observarmos o fato de autor criticar a versão liberal do
populismo, que o explica como sendo a manipulação e a demagogia dos líderes junto
à ignorância e ao atraso das massas, e depois dizer que o povo “será manipulado
soberanamente por Getúlio Vargas durante 15 anos” (WEFFORT, 1978, p. 51),
além de não passar de “massa de manobra” (WEFFORT, 1978, p. 32).
Otavio Ianni, autor do O colapso do populismo no Brasil (1971), dedica-se ao
populismo também em virtude do Golpe de 1964, considerando-o como uma parte
importante para o entendimento deste. Para o autor o populismo seria um modelo
de desenvolvimento que surge no processo de transição de uma sociedade agrária
para uma urbano-industrial. Esse desenvolvimento é baseado numa proposta de
conciliação de classes, hegemonizado pela burguesia industrial e conduzido pelo
intervencionismo estatal e pelas lideranças carismáticas, por exemplo, Getúlio
Vargas. Os trabalhadores colhem benefícios econômicos e políticos, porém nada de
substancial. De modo geral, como coloca Daniel Aarão Reis, os trabalhadores são
galvanizados e instrumentalizados, não têm voz, e sua inconsciência é devida à
ação das lideranças carismáticas, à cumplicidade dos pelegos, e ao atraso do
camponês que migra para os centros urbanos (REIS, 2001).
Já no fim dos anos 70 e início dos 80, há uma grande insatisfação com o uso
do conceito de populismo, o que dá início a um esforço mais sistemático de
entendimento do fenômeno. Ao contrário das interpretações já citadas,
amplamente baseadas nas ideias de Gramsci, as novas propostas sofriam
influência das recém-chegadas obras de E. P. Thompson no Brasil (GOMES, 2001,
p.44). Nesse novo modo de pensar o populismo, Angela de Castro Gomes sai na
frente, com seu livro A invenção do trabalhismo (1988). Nessa obra, a autora irá
contrapor vários argumentos usados pelas interpretações anteriores do populismo,
principalmente nas questões da manipulação e da ideia teleológica do
desenvolvimento da classe trabalhadora. Angela propõe que a relação Estado-
classe trabalhadora é sim uma relação marcada pela desigualdade de poder, porém
os trabalhadores não são objetos passivos diante de um Estado todo-poderoso. Ou
seja, não há manipulação como nas propostas anteriores, pois há uma classe
trabalhadora ativa, em constante interlocução com o Estado, formando um “pacto
trabalhista”. Outro ponto de ruptura proposto pela autora é o relacionado ao

GUSTAVO NAZARIO 184


movimento operário; nele, com a Revolução de 30 não haveria um “desvio” do
processo histórico de construção de classe, já que não há um percurso prévio a ser
seguido, assim a autora rompe com a visão teleológica marxista-leninista presente
nos estudos anteriores do assunto.
A partir dos anos 90, inicialmente em outros países latino- americanos, abre-
se espaço para uma nova matriz de análise sobre as recentes ocorrências
populistas. Em função das diferenças que existem entre esse novo fenômeno e as
experiências anteriores, ele passa a ser chamado de neopopulismo. Nesse tipo de
abordagem predomina a tese de persuasão das massas por uma liderança
carismática. A ideia original de opressão não se aplica mais por se tratar de
ocorrências em democracias e a manipulação, por não ser absoluta, dá lugar à
persuasão. O neopopulismo é, para Gomes, beneficiado por uma “personalização da
política”, própria das sociedades que alimentam uma “autonomização” da
personalidade individual.

4. CONCLUSÃO
Deste modo, a partir do panorama historiográfico feito é possível enxergar
que o populismo não foi vencido pelo desenvolvimento da sociedade. Continua
presente na política brasileira, que ainda preserva resquícios da dependência de
lideranças fortes e da ausência de instituições formais que possam representar os
interesses sociais de maneira impessoal e não clientelista. Ou seja, as teses sobre
a possível superação do populismo pela sociedade brasileira, surgidas
principalmente no final dos anos 60, não se sustentam. O populismo como
fenômeno político continua latente nas sociedades modernas.
Considera-se a atualização do termo populismo em neopopulismo e a
necessidade de retomada dos debates sobre o tema de fundamental importância
porque a política na sociedade moderna oferece condições ideais para o sucesso de
neopopulistas. O que são a midiatização das esferas públicas e a personalização
das campanhas políticas para ficar em apenas dois exemplos, senão elementos
favoráveis ao surgimento do neopopulismo? Ocorrências históricas em vários
países latino- americanos nos anos 80 e 90 têm desmentido a tese do processo de
evolução contínua da organização política. Apesar da consolidação do Estado

185 VI EPEGH
nacional, a cultura política personalista e a incapacidade das elites em atender
demandas sociais, somadas às condições citadas anteriormente, têm recriado as
condições sociais necessárias para os fenômenos neopopulistas, em uma espécie de
movimento pendular da história.
A crise que propicia o sucesso das propostas e lideranças neopopulistas
deixou de ser gerada por transformações sociais profundas; trata-se de uma crise
da capacidade de representação das elites, que chegaram ao poder através do voto
popular, em função do não-cumprimento de muitas das promessas da democracia.
Em especial, a promessa do atendimento às demandas populares emergenciais. O
neopopulismo tem se legitimado pela descrença que atinge as massas em relação à
política e à democracia, ele beneficia-se do desgaste da imagem do Estado, dos
partidos políticos e das lideranças tradicionais; o que acaba beneficiando as
lideranças marginais que defendem soluções inovadoras definindo-se como
contrárias ao sistema vigente, ou como “apolíticos”, como o presidente Jair
Bolsonaro. É uma forma que as massas encontram para demonstrar insatisfação
com a moderna democracia — portanto, não se trata de massas passivas e
manipuláveis, mas agentes da história. Por conta disso, tão importante quanto
rediscutir os aspectos do debate clássico sobre o populismo no Brasil é permitir que
se coloque o tema — atualizado — como objeto de novos estudos.

GUSTAVO NAZARIO 186


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICA

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187 VI EPEGH
Alianças e Casamentos Interdinásticos no Antigo Oriente

Próximo - a perspectiva egípcia nos séculos XIV-XIII a.C.1

ANDRÉ SHINITY KAWAMINAMI2

RESUMO: Este artigo possui o objetivo de apresentar parte dos resultados obtidos
com a pesquisa intitulada “Alianças e casamentos interdinásticos no Antigo
Oriente Próximo – A perspectiva egípcia nos séculos XIV- XIII a.C.”. A pesquisa se
propõe a analisar as cartas de Amarna (escritas na segunda metade do século XIV
a.C.) trocadas entre o Egito e alguns reinos do Antigo Oriente Próximo junto de
algumas fontes egípcias do período de Ramsés II (1279-1213 a.C.) a fim de delinear
a perspectiva faraônica sobre os casamentos interdinásticos em relação às
perspectivas dos outros reis asiáticos e as implicações dessa prática para o faraó.
PALAVRAS-CHAVE: Egito Antigo; Casamentos diplomáticos; Cartas de Amarna;
Ramsés II; Antigo Oriente Próximo.

1 Agência Financiadora: FAPESP (processo nº 2016/22412-7)


2 Graduando em História. E-mail institucional para contato: andre.kawaminami@usp.br.

ANDRÉ SHINITY KAWAMINAMI 188


1. AS CARTAS DE AMARNA E AS FONTES RAMÉSSIDAS
As cartas de Amarna consistem nas correspondências trocadas entre o Egito
e reinos aliados e subalternos no Oriente Próximo durante a segunda metade do
século XIV a.C. Elas foram escritas sobre tabletes de argila (em cuneiforme, língua
acadiana) e foram descobertas em 1887, no sítio de Tell el-Amarna (antiga cidade
de Akhetaten), no Egito. São cerca de 400 documentos epistolares em diferentes
estados de conservação (PFOH, 2016: 30). Os faraós que aparecem nessas cartas
são Amenhotep III (c. 1390-1352 a.C.) e seu filho sucessor Amenhotep IV,
posteriormente conhecido como Akhenaton (c. 1352-1336 a.C.)3.
A correspondência amarniana foi dividida em duas partes principais: o
conjunto menor (cerca de 10% de todas as cartas) é entendido como as
correspondências internacionais, trocadas entre os reis do Egito, Babilônia,
Assíria, Mitani e Hatti. O conjunto maior (aproximadamente 90% das cartas)
representa aquelas endereçadas ao faraó ou aos seus alto-oficiais por reis
subordinados ao Egito na região do Levante (MORAN, 1992: xiv). As cartas
analisadas nesta pesquisa fazem parte do grupo das correspondências
internacionais (especificamente as cartas EA 1, 2, 3, 4, 5, 12, 19, 20, 21, 23, 24, 26,
27, 28, 29 e 31).
No período em que as cartas foram trocadas, alguns reis do Antigo Oriente
Próximo se reconheciam como uma espécie de irmandade, como iguais, conhecida
pela nomenclatura moderna como “O Clube dos Grandes Poderes”. Os “Grandes
Poderes” envolviam os “Grandes Reis” (Sharru rabû) – que eram aqueles dos reinos
envolvidos nas correspondências internacionais (COHEN & WESTBROOK, 2000:
6-7). Esses reis trocaram correspondências que trataram da firmação de alianças
políticas, trocas de presentes e casamentos interdinásticos.
Ao analisarmos as cartas de Amarna, é possível notar que a prática dos
casamentos era entendida de diferentes formas por cada Grande Rei. Apesar do
pressuposto reconhecimento entre eles como iguais, o faraó se casava com muitas
princesas estrangeiras, mas não enviava uma princesa egípcia em retorno para
outro rei. Após a consolidação do acordo matrimonial, a princesa estrangeira era

3Todas as cronologias referentes ao Egito e reinados faraônicos foram retiradas da obra de Ian
Shaw, The Oxford History of Ancient Egypt (SHAW, 2000: 480-489).
189 VI EPEGH
enviada ao Egito com uma comitiva de servas e seu dote. O faraó mandava, em
retorno, presentes e o dom nupcial para seu novo sogro. Ao chegar no Egito, a
expectativa do rei estrangeiro era a de que sua filha, ao casar-se com o faraó, se
tornaria a rainha daquele reino. Entretanto, quando chegavam à corte egípcia, as
princesas passavam a integrar o “harém” egípcio, unindo-se a uma multidão de
mulheres reais estrangeiras, aparentemente sem o papel de destaque esperado por
seus pais – o que gerou tensões e conflitos entre o faraó e os outros Grandes Reis.
Ao longo da pesquisa, apesar de ter sido possível analisar os critérios
internos culturais egípcios para compreensão da perspectiva faraônica somente
pelas cartas de Amarna, houve a necessidade de analisar algumas fontes
propriamente egípcias para que, assim, fosse possível analisar como o faraó
representava os casamentos interdinásticos e sua própria imagem não apenas para
o exterior, mas sim também para o interior de seu reino. É somente no reinado de
Ramsés II (c. 1279-12130 a.C.) que encontramos esse tipo de fonte sobre essa
questão, além de, novamente, fontes extra-egípcias (como as cartas de Amarna)
sobre os casamentos entre os Grandes Reis.
Sobre as fontes extra-egípcias, há o rascunho de duas cartas escritas em
cuneiforme e em língua hitita que foram trocadas entre a rainha hitita Puduhepae
Ramsés II. Elas tratam sobre o casamento de uma das filhas da rainha com o faraó
e o processo de negociação de presentes, dote e da ida da princesa ao Egito
(MIEROOP, 2007: 223). Já as fontes propriamente egípcias abrangem algumas
estelas comemorativas, fragmentos de papiro e uma estátua, as quais representam
esse mesmo caso de matrimônio (FISHER, 2013: 78-103). A partir delas, podemos
analisar como foi retratada a comemoração desse casamento e a representação da
princesa hitita após o matrimônio nas fontes egípcias (o que não encontramos no
período dos reinados de Amenhotep III e Akhenaton).
A principal fonte egípcia em questão é a estela conhecida como “A Estela de
Casamento”, devido ao seu bom estado de conservação. Ela se encontra atualmente
em Abu Simbel, associada ao Grande Templo de Ramsés II, e trata do casamento
entre a princesa hitita e Ramsés II, no seu 34º ano de reinado. A estela possui a
representação sobre o evento tanto em imagens como em texto. O corpo textual da
estela apresenta continuidades com os encontrados nas estelas em Elefantina,

ANDRÉ SHINITY KAWAMINAMI 190


Aksha, Karnak (em uma versão integral e em outra resumida) e Amara West.
Acima do texto principal em hieróglifo, temos a representação de Ramsés II com os
deuses Seth e Ptah-Tatenen (lado esquerdo da imagem) e a princesa e o rei hitita
(lado direito da imagem) (PETERS-DESTÉRACT, 2003: 377). O desenho da estela
foi feito por Richard Lepsius, em sua obra Denkmäler aus Aegypten und
Aethiopien de 1897 (Conf. “Imagem 1”).

2. OBJETIVOS
Os principais objetivos da pesquisa consistem em: 1) compreender qual era
a perspectiva faraônica sobre os casamentos interdinásticos nas cartas de Amarna
a partir da cultura egípcia e das interações do faraó com o exterior e nas fontes
propriamente egípcias, analisando as particularidades da representação faraônica
e do matrimônio em contexto egípcio; 2) analisar os casamentos diplomáticos e seus
significados e implicações para o faraó; 3) investigar as possibilidades dos destinos
das princesas estrangeiras quando era consolidado o matrimônio e chegavam à
corte faraônica, integrando o “harém” egípcio e tendo seus paradeiros
desconhecidos para os reis que as enviavam.

3. METODOLOGIA E ANÁLISE DE RESULTADOS


O modo pelo qual as fontes estão sendo analisadas é a análise de discurso,
juntamente com uma abordagem voltada para os aspectos histórico, cultural e
antropológico, observando as relações e estruturas de parentesco, os padrões de
comportamentos dos Grandes Reis e as questões de reciprocidade relativas à
prática matrimonial.
Para a análise de discurso, a linguagem não é transparente. Ela não busca
encontrar apenas o que um texto quer dizer, e sim como o texto “significa” em si.
Assim, ele não é tratado apenas como uma ilustração da realidade. Esse método
produz um conhecimento a partir do próprio texto, porque o vê como tendo uma
materialidade simbólica própria e significativa; ou seja, ela o concebe em sua
discursividade (ORLANDI, 1999: 17-18). Assim, esse método não se limita a
simples interpretação do texto; ele trabalha seus limites e seus mecanismos como
parte dos processos de significação.
191 VI EPEGH
Já a abordagem voltada para o aspecto antropológico é essencial para
compreender as relações entre os Grandes Reis, principalmente sobre a prática
matrimonial e suas questões adjacentes. Esta abordagem permite compreender as
diferentes culturas com um olhar histórico e antropológico e busca os significados
das ações dos sujeitos a partir de suas próprias culturas (ALMEIDA, 2012: 157).
Além da essência da prática em si, o olhar antropológico também nos
permite compreender a questão da reciprocidade e dos status dos reis. Os Grandes
Reis, apesar de contestarem a postura do faraó de não conceder uma princesa
egípcia para se casar com eles, fornecem suas filhas em matrimônio ao rei egípcio
em troca de presentes. Para eles, é possível pensar que eles se enxergavam como
superiores em relação ao faraó com essa atitude, pois eles se tornariam seus sogros,
estabelecendo, assim, uma hierarquia de parentesco. Em contrapartida, para o
faraó, casar-se com princesas estrangeiras e não dar uma egípcia em retorno
poderia atestar sua superioridade, uma vez que, sendo ele superior aos demais no
entendimento da cultura egípcia, não deveria a alguém uma princesa (que fazia
parte da sua realeza). Isso mostra como os Grandes Reis estavam em constantes
conflitos entre eles em relação aos seus status, mesmo com a reciprocidade e
igualdade estabelecidas em teoria.
Sobre a importância da análise dos termos de parentesco, há um consenso
sobre ela pelos estudiosos. Para Rede, “isolar os vocábulos, ordená-los em sistemas
coerentes segundo os critérios autóctones, observar suas articulações e, enfim,
tentar uma classificação geral dos diversos tipos de terminologia” é muito
importante para que possamos compreender uma estrutura de parentesco e a
própria estrutura social envolvida nela (REDE, 2007: 60). Além disso, o parentesco
é uma forma de imposição de uma ordem cultural sobre uma sociedade e, às vezes,
aparece em algumas como o único fator social estruturante (PARKIN, 1997: 3).
Devemos pensar no parentesco não apenas como um princípio de
classificação e organização social, mas também como uma linguagem mais ou
menos ideológica e manipulada. Esse sistema serve como uma chave de
interpretação social e ele próprio preside a formação de grupos sociais e a
organização das relações entre eles mesmos.

ANDRÉ SHINITY KAWAMINAMI 192


Para se referirem uns aos outros nas cartas, os reis utilizavam termos como
“Grande Rei” e terminologias de parentesco. Portanto, durante a pesquisa, deu-se
uma atenção especial para a análise e estudo de alguns termos neles mesmos, ou
seja, tentou-se compreender os seus significados para aquelas culturas envolvidas,
naquele contexto histórico em específico e suas particularidades, como “irmão”
(ŠEŠ), irmandade (ahhutum), “grande rei” (LUGAL GAL), “presente” (šulmum),
“casamento” (ahazum), “dom nupcial” (terḫ atu), “sogro” (emum) etc.
No caso das estelas egípcias, também foram tomados os cuidados específicos
para a análise dos textos e dos termos em egípcio, tanto sobre parentesco como
alguns termos-chave. Para o tratamento das fontes egípcias, foi possível trabalhar
durante o período de um mês sob a supervisão do egiptólogo Damien Agut, da
equipe de pesquisa HAROC (Histoire et Archéologie de l’Orient Cunéiforme) na
Maison d’Archéologie et Éthnologie René Ginouvès (MAE), em Nanterre, /na
Université Paris X4. Dessa forma, foi possível analisar os termos específicos com
embasamento lexicográfico e ass fonte de forma contextual, compreendendo as
problemáticas do local onde as estelas foram encontradas, seus materiais,
iconografia e suas particularidades. O trabalho se concentrou nas estelas de Abu
Simbel e outra estela que trata do mesmo casamento (em uma versão resumida)
localizada em Karnak.
Alguns dos termos significativos trabalhados foram, por exemplo, “países

rebeldes” (ḫ ȝ swt bštwt, , utilizado para também se referir ao reino hitita


– o que desconsidera a relação de paridade estabelecida entre o faraó e a corte de

Hatti nas negociações do matrimônio), “tributos/presentes” (jnw, , para

se referir aos itens trazidos com a princesa), “esposa real” (ḫ mt nswt, ) etc.
O termo nmt nsw é muito importante para pensarmos na análise da Estela
de Casamento, assim como no caso das cartas hititas, uma vez que era esperado
por Puduhepa e Hattusili III (e por todos os Grandes Reis nas cartas de Amarna
nas negociações matrimoniais com o faraó) que sua filha se tornasse a rainha do
Egito, e não uma esposa secundária, sem papel relevante. A análise desse termo é

4A oportunidade foi concedida por uma bolsa estágio de pesquisa no exterior (BEPE) pela FAPESP
(processo nº 2018/11390-8).
193 VI EPEGH
essencial na medida em que ele nos fornece pistas para o entendimento do faraó
sobre sua nova esposa estrangeira e se essa compreensão era conflituosa ou não
com a relação de igualdade estabelecida com um rei estrangeiro, com o desejo da
corte hitita acordado por Ramsés II e sobre sua concepção geral em relação a sua
nova esposa.

4. RESULTADOS E CONCLUSÕES PARCIAIS


O estudo da perspectiva faraônica sobre os casamentos interdinásticos nos
oferece algumas interpretações sobre essa prática, a figura do faraó e destaca a
complexidade de diferentes fenômenos em jogo nas interações do rei egípcio com os
reis do Oriente Próximo quando estava acordada uma relação de igualdade entre
eles. A visão de supremacia egípcia sobre os estrangeiros por vezes tentou se
adaptar e/ou se manteve, de forma que gerou tensões entre os reis envolvidos,
explicitando as peculiaridades das políticas faraônicas.
As tensões e o posicionamento dos faraós sobre os matrimônios nos
permitem compreender um pouco das motivações dos reis egípcios envolvidos: eles
poderiam entender o envio de princesas estrangeiras como uma forma de tributo;
poderiam entender que não enviar uma princesa egípcia em retorno era uma forma
de manutenção da visão egípcia de supremacia frente os outros reinos; e também
poderiam entendê-la como uma forma de conter os casamentos entre os Grandes
Reis que não fossem com o faraó, assegurando o fortalecimento de alianças entre
os reinos com o Egito e não entre eles.
A questão do parentesco nos auxilia de maneira extremamente significativa
para compreender as relações de paridade entre os Grandes Reis e suas questões
adjacentes como um todo. Com o método da análise de discurso e a abordagem
antropológica, é possível analisar as fontes de forma contextual, fugindo de leituras
puramente textuais e possibilitando compreender as fontes nelas mesmas e seus
próprios sistemas culturais e de significação das relações de parentesco.
Analisar os critérios internos culturais egípcios para compreensão da
perspectiva faraônica sobre a prática dos casamentos é possível pela análise das
fontes selecionadas e elas nos fornecem muitas informações sobre as tensões
existentes na visão cultural egípcia sobre ela mesma e dela em relação à uma
ANDRÉ SHINITY KAWAMINAMI 194
cultura estrangeira. Ademais, elas nos permitem compreender as características
da política dos faraós e como elas se adaptaram e/ou se mantiveram em um
contexto de pressuposta igualdade com os Grandes Reis para manter um fluxo de
trocas de presentes, de casamentos diplomáticos e alianças com os reis do Antigo
Oriente Próximo.

195 VI EPEGH
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ANDRÉ SHINITY KAWAMINAMI 198


LISTA DE IMAGENS

Imagem 1: A Estela de Casamento. General Research Division, The New York


Public Library. “Neues Reich. Dynastie XIX. Abusimbel [Abû Sunbul]: a.
Felsenstele links neben dem grossen Tempel; b. Basis einer Statue.” New York
Public Library Digital Collections. Disponível em: http://digitalcollections.
nypl.org/items/510d47d9-59d7-a3d9-e040-e00a18064a99. Acesso em: 26 jan. 2019.
Domínio público da Biblioteca Pública de Nova York (NYPL ID: b14291191).

199 VI EPEGH
A representação da mulher no quadro interior com figuras

femininas (1936), de André Lhote

BÁRBARA DINIZ GONÇALVES1

RESUMO: André Lhote (França, 1885 – 1962) foi escultor, pintor, crítico e
educador. Preocupado não apenas com o ato de pintar, mas também com as teorias
que o pintar envolvia, Lhote realizou ampla produção escrita, incluindo textos
críticos, livros sobre aspectos da produção das vanguardas e tratados sobre
pintura, paisagem e figura. Ele está presente no acervo do Museu de Arte de São
Paulo Assis Chateaubriand (MASP) com duas obras que expõe dois momentos
distintos de seu percurso como artista. O presente artigo propõe o estudo específico
de um desses quadros, Interior com figuras femininas de 1936, acerca da
representação feminina que ele veicula e em face da escassez de trabalhos em
português sobre o artista e a pintura. O princípio de que a obra pictórica possui
sua própria linguagem, a ser compreendida e relacionada com a bibliografia e Þcom
textos escritos pelo próprio Lhote, guia metodologicamente o trabalho. Dessa
forma, é possível desvendar características e tendências de sua pintura, tanto nas
interlocuções que estabelece juntamente aos movimentos artísticos com os quais
dialogou quanto na originalidade de seus trabalhos.
PALAVRAS-CHAVE: André Lhote; Arte moderna; França; Representação da
mulher.

1Estudante de graduação em História pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), com


ênfase em História da Arte e Patrimônio Histórico e Cultural. O trabalho é parte da Iniciação
Científica intitulada “André Lhote e a obra Interior com figuras femininas, de 1936”, realizada sob
orientação do Prof. Dr. Gabriel Ferreira Zacarias e com financiamento do programa FAEPEX –
Unicamp.

BÁRBARA DINIZ GONÇALVES 200


É um imenso sentimento de libertação que o artista experimenta quando
ele explicita em palavras o sentido de suas descobertas plásticas. (LHOTE,
1967: 28-29, tradução própria)2

Nascido no ano de 1885 em Bordeaux, André Lhote3, nesta mesma cidade e


com apenas sete anos, iniciou seu aprendizado sobre escultura em madeira no
ateliê de um fabricante de móveis. Um ano depois, na École des Beaux–Arts de
Bordeaux, ele deu prosseguimento aos estudos sobre escultura decorativa – que
influenciariam sua posterior produção escrita e pictórica – e começou a pintar
regularmente.
Com 20 anos de idade, Lhote abandonou o ateliê de escultura e a casa de
seus pais com o objetivo de dedicar-se exclusivamente à pintura e, ao conhecer
Gabriel Frizeau, único colecionador de pinturas modernas de Bordeaux, entrou em
contato com a paleta de cores e com o estilo de Gauguin através do quadro D'où
Venons Nous / Que Sommes Nous / Où Allons Nous4. Foi recebido no Salão de
Outono (1907) e expôs no Salão dos Independentes e no Salão dos Recusados de
Bordeaux (1908) e, em 1910, realizou sua primeira exposição particular na Galerie
Druet, já na cidade de Paris. Do ano de 1911 em diante, cresceu a relevância das
pesquisas estruturais que o levaram ao envolvimento com o Cubismo, com a
Section d’Or em 1912 e com o Cubismo Sintético em 1917, ao retornar de seus
deveres militares na Primeira Guerra Mundial. Segundo John Golding, embora
muitos dos pintores mais envolvidos com a Section d’Or estivessem trabalhando na
época com linguagens cubistas, a escolha do título para a exibição do grupo indica
insatisfação com o termo Cubismo aplicado aos seus trabalhos e pode ter
pretendido implicar que as pinturas exibidas tinham uma base mais racional
(GOLDING, 1988: 15- 16).
John Golding foi historiador da arte e curador britânico, conhecido como
grande autoridade em Picasso. No livro baseado em sua tese de 1958, Cubism: a
history and an analysis, 1907-1914, ele trata brevemente de Lhote e de outros
pintores envolvidos nos círculos cubistas em suas relações, aproximações e

2 No original: “C’est un immense sentiment de libération qu’éprouve l’artiste lorsqu’il a précisé par
des mots le sens de ses trouvailles plastiques.”
3 Todas as informações biográficas foram consultadas em LHOTE, André. A. Lhote: rétrospective .

Lyon: Musée de Lyon, 1966. pp. 1-3.


4 Paul Gauguin. D'où Venons Nous / Que Sommes Nous / Où Allons Nous . 1897– 1898. Óleo sobre

tela, 139 cm × 375 cm (55 in × 148 in), Museum of Fine Arts, Boston.
201 VI EPEGH
distanciamentos com quem considera os principais cubistas (a saber, Picasso e
Braque). Ele escreve sobre Lhote em tal contexto:

Lhote, que já havia estabelecido uma certa reputação independente, se


misturou cautelosamente em círculos Cubistas, mas de 1911 em diante foi
de modo geral referido como um cubista, embora o seu estilo de alguma
forma acadêmico frequentemente deu a ele isenção do criticismo
desfavorável dirigido aos outros pintores. (GOLDING, 1988: 12-13,
tradução própria) 5

A partir dessa constatação, ressalta-se a “diversidade de referências que o


movimento cubista integrou” (COTTINGTON, 2000: 7) nesse período, a qual
categorizações fechadas não dão conta de elucidar. Para efeitos de análise, porém,
não deixa de ser importante a divisão dos cubistas entre dois grupos, feita em 1998
por David Cottington. Enquanto o que podemos chamar de grupo cubista “de
Salão”, de cuja proposta aproxima-se a obra de Lhote, mobilizava temas
reconhecíveis através de uma forma plástica que captava a atenção e, assim,
dirigia- se a um público amplo, o grupo cubista “de Galeria”, cujos principais
expoentes são Picasso e Braque, apresentava-se em aparente escala restrita e tinha
como espectadores pequenos grupos de clientes que iam ao estúdio do artista ou à
galeria dos negociantes de arte. Ambos, de maneiras diferentes, revelam como as
vanguardas estavam fortemente assentadas na dinâmica política, social e
econômica, nesse caso, da Paris do início do século XX.
A partir de então, Lhote seguiu sua carreira professando cursos e
conferências6 e realizando, além das obras pictóricas, vasta produção escrita,
incluindo tratados e teorizações sobre pintura e, por 23 anos, textos críticos na
revista Nouvelle Revue Française. Em 1922, o artista fundou a Académie
Montparnasse na França, uma escola de arte que passou a estar presente no Brasil
com uma filial aberta no Rio de Janeiro. Na bibliografia, como já foi brevemente
introduzido, as interpretações acerca de tal lugar ocupado por Lhote na história da

5 No original: “Lhote, who had already established a certain independent reputation, mixed
cautiously in Cubist circles, but from 1911 onwards was generally referred to as a Cubist, although
his somewhat academic style often gained him exemption from the unfavourable criticism directed
at the other painters.”
6 A abordagem da arte por André Lhote atraiu grande audiência, tendo o artista proferido seus

cursos e conferências extensivamente na França, bem como na Bélgica, Inglaterra, Itália, Egito e
Brasil.

BÁRBARA DINIZ GONÇALVES 202


arte moderna e especificamente do cubismo - considerando suas múltiplas
referências - são diversas e nem sempre concordantes. A hipótese aqui sugerida
para explicar tais desconcertos é de que as variadas atividades exercidas por ele
dentro do campo artístico, cujos produtos parecem situá-lo fora do que se
convencionou relacionar às características canônicas da arte moderna, podem ter
gerado diferenças interpretativas dependendo do objeto para o qual se está olhando
- produção pictórica, escrita teórica ou aulas proferidas7. Robert Rosenblum,
historiador e curador de arte norte-americano conhecido por suas inovações
curatoriais de inclusão de trabalhos não canônicos, ao analisar o papel do cubismo
na criação de um original idioma pictórico que permitiria o surgimento de novas
expressões artísticas posteriores, escreve que André Lhote,

(...) em seu ensino e escrita, estabeleceu-se como o acadêmico oficial do


cubismo. (...) A transformação de Lhote do classicismo intuitivo do cubismo
em um sistema de regras precisas produziu obras cuja óbvia lucidez de
estrutura e cor eram eminentemente adequadas à expansão de seu estilo
no campo das artes decorativas. (ROSENBLUM, 1982: 182, tradução
própria)8

O acadêmico oficial do cubismo (ROSENBLUM, 1982: 182), um grande


pedagogo da pintura9 ou uma figura periférica (GOLDING, 1988: 195) que de
maneira apenas formalista, generalista e superficial esteve ligada ao movimento:
as múltiplas definições que tal controversa figura suscita por diferentes agentes e
contextos, quando analisada dentro de um trabalho historiográfico, levanta uma
problemática mais relevante do que a defesa de quem é mais ou menos importante.
Esta diz respeito às disputas e aos múltiplos aspectos envolvidos na construção e
na consolidação de cânones, para as quais parece ser uma forma de acesso
relevante o estudo das formas de inserção de André Lhote nos círculos de arte
moderna de seu próprio tempo e na posterior literatura sobre o período.

7 De tal percepção vem a proposta de estudar, em conjunto, uma de suas obras pictórica e parte de
sua produção escrita.
8 No original: “(...) in his teaching and writing established himself as the official academician of

Cubism. (...) Lhote’s transformation of the intuitive classicism of Cubism into a system of stringent
rules produced works whose obvious lucidity of structure and color were eminently suitable to the
expansion of their style into the realm of decorative arts.”
9 O jornal carioca Correio da Manhã se referiu a Lhote dessa forma ao anunciar a estadia do pintor

por três meses no Rio de Janeiro, onde deu aulas coletivas e individuais de pintura aperfeiçoada.
In: André Lhote ensinará no Rio. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, p. 11, 13 jul. 1952.
203 VI EPEGH
Nesse sentido, parte-se dos escritos de Christopher Green sobre Cubismo e
sobre a arte francesa da primeira metade do século XX. Diferente de seu orientador
Golding, que situa a obra de Lhote tendo como ponto de partida aqueles que ele
considera "the major Cubists" (GOLDING, 1988: 196), e de Rosenblum, que dá
prioridade para o entendimento de sua obra escrita, bem como de suas
repercussões, Green parece buscar um entendimento das diferentes formas de
cubismo em disputa, por assim dizer, aproximando-se mais do objetivo da presente
proposta de compreender o cânone - nesse caso, por meio daquilo que ficou fora
dele.
Entende-se, aqui, pintor e obra como objetos de análise dentro do complexo
sistema social, econômico e, por que não, acadêmico no qual estavam inseridos
quando do momento de produção. Green dá relevância, portanto, ao círculo
artístico-social com o qual Lhote conviveu, bem como à recepção dele em seu
próprio período.
Embora suas observações sobre a inserção de Lhote em tais círculos remeta
à década de 1910 – período anterior, portanto, às fontes primárias que serão
analisadas conjuntamente a seguir –, é importante entendê-las e mobilizá-las para
rediscutir a noção do cubismo como algo hermético e restrito, bem como para não
se incorrer no erro de classificar a obra do acervo do MASP e a produção escrita de
Lhote limitando-as aos princípios de alguma teoria específica e excludente. De
acordo com ele, no livro Cubism and its enemies: modern movements and reaction
in French art, 1916-1928,

A contribuição de André Lhote como um Cubista não foi tão notável, mas
(...) ele esteve entre os apoiados por Léonce Rosenberg, o comerciante que
substituiu o exilado D.-H. Kahnweiler como o patrocinador do cubismo
parisiense de 1915. Ele esteve próximo de membros do círculo cubista
como Juan Gris e Gino Severini em 1916-17, e fez pinturas cujas
avançadas credenciais cubistas na época teriam sido inquestionáveis.”
(GREEN, 1978: 8, tradução própria)10

No que diz respeito às fontes primárias, um dos argumentos defendidos por

10No original: “André Lhote contribution as a Cubist had not been as noticeable, but (...) he had
been among those supported by Léonce Rosenberg, the dealer who replaced the exiled D.-H.
Kahnweiler as the sponsor of Parisian Cubism from 1915. He had been close to such members of
the Cubist circle as Juan Gris and Gino Severini in 1916-17, and had made paintings whose
advanced Cubist credentials at that time would have been unquestioned.”

BÁRBARA DINIZ GONÇALVES 204


André Lhote em Les invariants plastiques (1967), livro escolhido para adentrarmos
os escritos do artista por conta de seu caráter de compilação11, é que a forma é o
suporte indestrutível de uma cor perecível. Tal argumento diz respeito ao sistema
de regras de acordo com o qual haveria conjugação da forma, arquitetura
preliminar da pintura, com a cor, que seria perecível na ausência da estrutura do
desenho. Lhote trata desse tema com especial atenção no texto de 1948 intitulado
A la recherche des invariants plastiques, no qual ele expõe uma leitura própria da
história da arte que pode ser identificada também em diversos escritos sobre arte
do período, tanto de Lhote12 quanto de outros autores.
Essa leitura passa por uma filosofia da história cíclica no que concerne à
inovação nas artes. Isso explicaria, por exemplo, o retorno ao primitivo. As
invariantes referem-se a formas elementares que estariam presentes em
absolutamente todos os trabalhos plásticos. Em tal artigo ele escreve, ainda, que
há três invariantes principais, as quais devem ser dispostas na tela segundo as
necessidades do ritmo: o desenho, ou sinal expressivo, que existiu antes de
qualquer cor ou modelo; a cor, ou oposição de tons quentes e frios; la valeur, ou a
oposição de tons claros e escuros (LHOTE, 1967: 89).
A forma como suporte indestrutível já pode ser identificada no quadro
Interior com figuras femininas, pintado em 1936. Nele, uma profusão de ângulos
retos limita as áreas de cor e estrutura geometricamente as cinco figuras
femininas, cuja rigidez das poses e simplificação dos traços faciais evidenciam
conceitos escultóricos. Estes remetem à série de pinturas de base escultórica
realizadas por Picasso entre 1905 e 1906, antes do Cubismo, como por exemplo o
esboço em óleo sobre papelão de 1906 também presente no acervo do MASP e
intitulado Toalete (Fernande).
Com a proeminência de uma paleta de cores terrosas e de poses rígidas, ele
reforçava a imagem da mulher forte e enraizada na terra. No esboço de Picasso, é

11 O livro traz oito textos da autoria de Lhote de 1919 a 1948, três deles inéditos quando da
publicação, sendo que a primeira compilação foi realizada postumamente pela editora Hermann. É
importante levar em conta as distâncias históricas da escrita dos diferentes textos que compõem o
livro para que se possa entender seus objetivos. Vários aspectos, ainda assim, os perpassam todos,
como a defesa da reflexão teórica de artistas e a conciliação entre o moderno e o classicizante na
pintura.
12 De autoria de Lhote, pode-se citar L’art moderne, escrito também em 1948.

205 VI EPEGH
possível identificar ainda que a bidimensionalidade da construção das figuras
femininas desafia os tradicionais recursos ilusionistas ao mesmo tempo em que
denota um retorno aos modelos mediterrâneos - assim como faz, em Interior com
figuras femininas, o arco que define o ambiente interior no qual as figuras estão
inseridas. Ademais, esses dois aspectos da pintura de Lhote parecem fazer
referência à Pierre Puvis de Chavannes:
A localização geográfica genérica, as colunas clássicas, os tons suaves, as
figuras femininas rígidas, idealizadas, descobertas13. Em Interior com figuras
femininas, porém, a presença do arco entrelaça o clássico e o moderno ao ser
pintado de acordo com uma técnica de torção dos planos que, juntamente com a
variação tonal do alaranjado de sua parte interna, dá a ele profundidade.
Os traços das cinco mulheres são cada vez mais simples conforme a
perspectiva avança, até que a figura feminina mais distante do primeiro plano é
definida apenas pelo contorno. Considero que isso tem relação com os diálogos
entre paisagem e figura, construídos e reformulados no decorrer da História da
Arte e pelo próprio Lhote em seus dois tratados, Traité de la figure e Traité du
paysage, ao ler a pintura de paisagem em termos do corpo humano. Com isso, ele
ativa um velho tropo renascentista ao afirmar que a figura humana dá a medida
de toda atividade pictórica (BENJAMIN, 1993: 312-314): "Toda a paisagem é
modelada como um corpo humano, pois o homem continua sendo o protótipo da
criação artística" (LHOTE apud. BENJAMIN, 1993: 312, tradução própria)14,
sendo a palavra homem usada como sinônimo de figura humana.
Analogias entre a figura humana e a paisagem apareceram na crítica
francesa bem antes disso: em livro publicado em 1859, consta que Baudelaire a
invocou em referência a Corot, pintor identificado ao realismo francês, escrevendo:
"ele é um dos raros, talvez o único, que manteve um profundo senso de construção...
e, se alguém pode comparar a composição de uma paisagem com a estrutura

13 Ver, por exemplo: Pierre Puvis de Chavannes, Le Bois sacré cher aux arts et aux muses, 1884.
Óleo sobre tela, 460 × 1 040 cm. Musée des beaux-arts de Lyon.
14 No original: “Lhote's closing metaphor reads the painting of the landscape in terms of the human

body. While his exaltation of the ‘irrational’ within the simile of the landscape-body seems to
address Surrealism (and perhaps even the paintings of Dali), Lhote activates an old Renaissance
trope in claiming that the human figure gives the measure of all painterly activity: ‘The whole
landscape is modeled like a human body, for man remains the prototype of artistic creation’.”

BÁRBARA DINIZ GONÇALVES 206


humana, ele sempre sabe onde colocar os ossos, e que dimensão eles devem receber"
(BAUDELAIRE apud. BENJAMIN, 1993: 312, tradução própria)15.
Um aspecto sugerido pelas observações é de que a paisagem é de gênero
feminino em relação à atividade do pintor, no masculino. O corpo feminino é
colocado, assim, como o objeto arquetípico da pintura, como um modelo ou padrão
genérico passível de ser reproduzido em simulacros ou objetos semelhantes. Isso se
mostra de forma direta como no quadro que está sendo analisado ou de forma
indireta, como formando o corpo da natureza (BENJAMIN, 1993: 314)16. Na virada
do século, Lhote escreveu:

Eu gostaria de ser capaz de modelar minha paisagem como uma figura,


conseguir transformar a sucessão de silhuetas e sua classificação por meio
de contornos. É tudo para estabelecer a continuidade dos planos. Todos os
esforços de Cézanne visavam a isso. (LHOTE apud. BENJAMIN, 1993:
314, tradução própria)17

Cézanne é referência constante nos escritos teóricos de Lhote. Tanto suas


pinturas de paisagens, como a do acervo do MASP18, quanto de figuras humanas
femininas, com destaque às várias banhistas que novamente são representadas de
forma entrelaçada com a natureza19, possuem tais contornos fortes e definidos.
Em vez de uma paisagem propriamente dita, porém, o que existe em relação
orgânica com a “sucessão de silhuetas” das figuras femininas é uma conjunção de
padrões abstratos, com presença de listras, espirais e curvas. Isso constitui uma
elaboração própria de Lhote, possivelmente relacionada ao que John Golding

15 No original: “Analogies between the human figure and the landscape had appeared in French
criticism well before this: Baudelaire, for example, invoked it in reference to Corot, writing, ‘he is
one of the rare ones, perhaps the only one, who has kept a profound sense of construction . . . and,
if one may compare the composition of a landscape to the human frame, who always knows where
to place the bones, and what dimension they should be given’.”
16 No original: “A suggestive aspect of identifying the figure with the land is the possibility, implied

in Lhote's remarks quoted above, that the landscape is gendered female relative to the activity of
the (male) painter. The corollary here is a transference of the artist's desire between the female
body as the archetypal object of painting, and the landscape (woman evidently being figured,
according to the patriarchal metaphor, as forming the body of Nature).”
17 No original: "The young Lhote wrote, for example: 'I would like to be able to model my landscape

like a figure, manage to transform the succession of silhouettes and their ranking by means of
contours. It's all in establishing the continuity of the planes. All of Cezanne's efforts aimed at that'."
18 Paul Cézanne, O grande pinheiro, 1890 - 1896. Óleo sobre tela, 85.5x92.5 cm. Museu de Arte de

São Paulo Assis Chateaubriand.


19 Ver por exemplo: Paul Cézanne, Les grandes baigneuses, 1898-1905. Óleo sobre tela, 127,2 x

196,1 cm. National Gallery, Londres.


207 VI EPEGH
chama de up-to-date academicism20, ou um academicismo atualizado. Com isso, ele
reinterpreta as inovações pictóricas de Picasso e Braque do início do século, como
a construção da pintura em termos de uma grade ou estrutura linear, a fusão de
objetos com o meio envolvente e a combinação de elementos abstratos e
representacionais na mesma imagem. Na tela de Braque Baigneuse (Le Grand Nu)
de 1908, por exemplo, a figura feminina se situa num fundo não-identificável, cujas
formas e cores são mobilizadas de forma apenas a indicarem profundidade. Em
Interior com figuras femininas, Lhote não abre mão, porém, do ar clássico da
tendência decorativa, revelada também pela predominância das cores rosa, verde
e das complementares azul e laranja.
A constituição das figuras femininas, portanto, é central aos conceitos
pictóricos da obra, carregando consigo referências variadas e reinterpretações
próprias da História da Arte. Tais conceitos, quando lidos em conjunto com outras
fontes primárias e com a revisão historiográfica, permitem uma compreensão mais
ampla das pinturas e de seus agentes em seu próprio tempo do que as narrativas
canônicas são capazes de abarcar. Sem esse procedimento, é perigoso incorrer no
erro de classificar o quadro, restringindo-o a algum movimento artístico específico
que não daria conta de resumi-lo, ou de naturalizar formas de representação, como
as da mulher. Se Lhote escreveu sobre o “imenso sentimento de libertação que o
artista experimenta quando ele explicita em palavras o sentido de suas descobertas
plásticas” (LHOTE, 1967: 28- 29, tradução própria), retomar sentimentos de
libertação e analisar historicamente descobertas é relevante - e igualmente
satisfatório.

20 Segundo o autor, "Lhote e um grande número de pintores como ele, que foram referidos como
'cubistas', na realidade somente compartilharam dos aspectos mais superficiais do estilo e os
utilizaram para criar um academicismo atualizado." No original: "Lhote and a large number of
painters like him, who were referred to as 'Cubist', had really only seized on the most superficial
aspects of the style and were using them to create an up-to-date academicism". (GOLDING, 1988:
196)

BÁRBARA DINIZ GONÇALVES 208


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ADAMSON, N. To regenerate painting: letters, 1934-48, between Jean Bazaine and
Andre Lhote. Burlington magazine, v. 150, n. 1262, p. 312- 321, 2008.

André Lhote ensinará no Rio. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, p. 11, 13 jul. 1952

BAUDELAIRE, C. "Salon de 1859". In Curiosités esthetiques. Paris: 1885.

BENJAMIN, R. The decorative landscape, fauvism, and the arabesque of


observation. The Art Bulletin, v. 75, n. 2, p. 295-316, 1993.

COTTINGTON, D. Cubismo. Lisboa: Editorial Presença, 2000.

. Cubism in the shadow of war: the avant-garde and politics in Paris 1905-
1914. New Haven; London: Yale University Press, 1998.

GOLDING, J. Cubism: a history and an analysis, 1907-1914. Cambridge: BelKnap,


1988.

. et al. Leger and Purist Paris. London: Tate Gallery, 1970. (catálogo de
exposição)

GREEN, C. Art in France, 1900-1940. London: Yale University Press, 2003.

. Cubism and its enemies: modern movements and reaction in French art,
1916-1928. New Heaven; London: Yale University Press, 1978.

LHOTE, A. André Lhote. Madrid: Fundación Mapfre, 2007. (catálogo de exposição)

. Les invariants plastiques. Paris: Hermann, 1967.

. Traité de la figure: cent douze reproductions dont huit en couleurs. Paris:


Floury, 1950.

. Traité du paysage. 4e ed. Paris: Floury, 1948.

POLLOCK, G. Differencing the canon: Feminism and the writing of art's histories.
Routledge, 2013.

ROSENBLUM, R. Cubism and twentieth-century art. New YorK: Abrams, 1982.

209 VI EPEGH
Antonio Gramsci na transição democrática brasileira

IGOR MATTOS MARQUEZINE1

RESUMO: Apresento neste artigo meu projeto de Iniciação Científica em que busco
investigar as diferentes apropriações e mobilizações do pensamento de Antonio
Gramsci por intelectuais brasileiros/as, em meio ao processo de transição
democrática das décadas de 70 e 80. Mais do que apresentar resultados e
conclusões, procuro introduzir a pesquisa recém-iniciada, parte integrante de uma
agenda mais ampla de investigações sobre os usos de Gramsci pelos brasileiros
para interpretar a realidade nacional.
PALAVRAS-CHAVE: Antonio Gramsci; transição democrática; redemocratização;
intelectuais; ditadura militar.

1 Graduado em Ciências Sociais e estudante do curso de História na Faculdade de Filosofia, Letras


e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Pesquisa de Iniciação Científica em andamento
sob orientação da pós-doutoranda Daniela Xavier Haj Mussi.

IGOR MATTOS MARQUEZINE 210


1. INTRODUÇÃO
As atividades intelectuais em contextos de perseguição política são
sobremaneira influenciadas pela ordem do dia - bem o sabem os que se propõem a
produzir pensamento social sob tais condições. No Brasil da segunda metade da
década de 70 não poderia ser diferente: apesar da vagarosa abertura no regime
militar, já insinuada a esta altura, as prisões e os desaparecimentos não cessaram,
tornando no mínimo preocupante, para os intelectuais brasileiros, produzir escritos
políticos sobre a vindoura redemocratização do país. Era preciso, contudo, encarar
o desafio de pensar a transição democrática, ainda que sob aquela atmosfera
asfixiante. Interessam-me, em minha investigação, aqueles que naquele tempo
mobilizaram noções propostas por Antonio Gramsci como lentes interpretativas,
tanto para o problema imediato da redemocratização, quanto para a compreensão
dos processos históricos e sociais brasileiros anteriores.
A pesquisa recém-iniciada integra a agenda de investigações proposta pela
cientista política Daniela Mussi2 no IX Colóquio Internacional Marx-Engels,
ocorrido em julho de 2018 na Unicamp (cf. MUSSI, 2018b). É parte, portanto, de
um esforço coletivo mais amplo de compreensão da absorção e da mobilização do
pensamento de Gramsci por brasileiros para interpretar a realidade nacional. A
partir de meados da década de 1960 progressivamente foi se sedimentando um
terreno comum de debates gramscianos no Brasil, uma espécie de “Gramsci à
brasileira”, que se renova e se fertiliza até hoje. O recorte temporal de minha
pesquisa décadas de 70 e 80 contempla um momento em que o campo brasileiro de
ideias gramscianas já se encontra estabelecido, suscitando tanto debates de
natureza teórica, sobre questões interpretativas e metodológicas da História de
nosso país, como de natureza política, sobre o problema da construção de uma
democracia brasileira após o fim do regime militar.
Cabe desfazer dois possíveis mal-entendidos: a agenda coletiva de pesquisa
e também o meu trabalho não tratam dos estudos brasileiros sobre as ideias de
Gramsci em si, mas sim da “tradução” de seu pensamento para compreensão da
realidade brasileira. O processo investigativo passa, portanto, pela recuperação

2Pós-doutoranda do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo (CAPES-


PNPD).
211 VI EPEGH
filológica das ocasiões desta “tradução”3 brasileira do marxista sardo. Ao mesmo
tempo, os trabalhos não procuram uma mera enumeração de referências a Antonio
Gramsci por brasileiros, mas sim refletem as maneiras pelas quais o léxico
gramsciano foi mobilizado, encontrando eventualmente divergências, semelhanças
e usos originais deste léxico no terreno comum de interpretações gramscianas de
nosso país.

2. ANTONIO GRAMSCI – BIOGRAFIA (1891-1937): BREVE

APRESENTAÇÃO
Ainda que Antonio Gramsci seja bastante conhecido, convém tecer algumas
breves notas sobre sua vida e obra. Gramsci nasceu em 22 de janeiro de 1891 na
Sardenha, ilha italiana onde residiria até finalizar os estudos básicos. Sua família
sofria com problemas financeiros, acentuados pela prisão de seu pai em 1897, o que
teria levado o pequeno Antonio a trabalhar por dois anos em uma repartição fiscal
sarda (cf. ROSENGARTEN, 2018).
Anos mais tarde, entre 1908 e 1911, Gramsci, ainda na Sardenha, morou
com seu irmão mais velho Gennaro, então membro do Partido Socialista Italiano
(PSI). Por influência do irmão, Antonio Gramsci começou a se interessar por
política e a frequentar círculos socialistas. Também nessa época publica seu
primeiro artigo no jornal diário L’Unione Sarda e tem seus primeiros contatos com
a obra de Marx (cf. IGS, 2018).
Em outubro de 1911, Gramsci consegue uma bolsa de estudos na
Universidade de Turim, ingressando no curso de Letras. Na cidade de Turim,
conhece militantes socialistas e comunistas, como Palmiro Togliatti, futuro
secretário geral do Partido Comunista Italiano (PCI) e editor das primeiras
publicações dos Cadernos do Cárcere, escritos por Gramsci anos mais tarde na

3 A noção gramsciana de “tradução” é complexa, possuindo diversos outros sentidos além do


utilizado aqui. Neste momento, sugiro a consideração simples de que para Gramsci “traduzir” não
é meramente um fazer linguístico, mas também um fazer cultural e político; não se trata apenas de
encontrar palavras semelhantes entre diferentes línguas naturais, mas de tornar inteligíveis
paradigmas culturais entre culturas, levando em conta as especificidades históricas, culturais e
linguísticas nacionais. Em meu trabalho procuro reconhecer as “traduções” brasileiras dos conceitos
gramscianos. Para outros sentidos da noção de “tradução” em Gramsci (e também a noção por vezes
coincidente de “tradutibilidade”), sugiro a consulta dos respectivos verbetes no Dicionário
Gramsciano.

IGOR MATTOS MARQUEZINE 212


prisão. Em 1915, Gramsci já é um membro destacado do PSI, passando a escrever
com frequência para o jornal do partido, o Avanti!. Seus anos como jornalista e
militante socialista o tornam conhecido na Itália, tanto pelos escritos críticos, como
pela atuação política junto aos trabalhadores turineses.

A Revolução de Outubro em 1917 na Rússia exerceria uma importante


influência sobre o jovem Gramsci. Talvez não seja exagerado afirmar que o
acontecimento despertou nele a paixão revolucionária. Os diversos artigos escritos
por Gramsci sobre o acontecimento e sua atuação política nos anos 1919 e 1920 na
Itália, nos acontecimentos que ficariam conhecidos como “Biênio Vermelho”,
demonstram sua adesão à revolução social. Estes dois anos assistiram o norte
italiano tomado por greves, conselhos de fábrica, manifestações operárias, criação
de sindicatos e ocupações de plantas fabris. Ainda em 1919, Gramsci junto com
outros socialistas e comunistas funda o jornal L'Ordine Nuovo, dedicado a
publicações revolucionárias. Em 1921 há a uma cisão do PSI, da qual Gramsci
participa, originando o Partido Comunista Italiano (cf. ROSENGARTEN, 2018).
A reação às inquietações operárias do Biennio Rosso, porém, seria brutal:
em outubro de 1922 os fascistas liderados por Benito Mussolini ascendem ao poder
na Marcha sobre Roma. Nesta época, contudo, Gramsci morava em Moscou como
membro da delegação italiana do Partido Comunista. Em 1924, ele é eleito para a
Câmara dos Deputados, retornando à Itália. Nessa época também se torna
Secretário Geral do PCI. A repressão e a violência fascistas, no entanto, vão
progressivamente dificultando a atuação dos oposicionistas e em 8 de novembro de
1926 Antonio Gramsci é preso pelo regime (cf. IGS, 2018).
Gramsci ficará prisioneiro do fascismo até 1937, morrendo poucos dias
depois de sua libertação. Nos anos de cárcere sua saúde, já problemática desde os
primeiros anos de vida, se deteriora profundamente. Em 1929 ele consegue
permissão para ler e escrever na prisão, iniciando estudos em cadernos escolares e
redigindo cartas para seus familiares. O revolucionário sardo logra escrever trinta
e três cadernos, nos quais desenvolve reflexões dos mais variados temas, passando
pela política, pedagogia, história, literatura, cultura, além de realizar exercícios de
tradução. Tais cadernos seriam reunidos e publicados postumamente por Palmiro
Togliatti sob o nome de “Cadernos do Cárcere”. O pensamento de Gramsci se

213 VI EPEGH
tornaria cada vez mais conhecido mundialmente, dadas as contribuições
valiosíssimas de seus escritos (cf. ROSENGARTEN, 2018).

3. GRAMSCI EM NOSSO PAÍS: DO "GRAMSCI NO BRASIL" AO

"GRAMSCI DO BRASIL"
As primeiras menções a Antonio Gramsci no Brasil datam do final da década
de 1920 no jornal socialista La Difesa, editado por italianos radicados no país
(SECCO, 2002, p. 13). São notícias de sua prisão e condenação pelos fascistas. Seu
nome era conhecido por parte da esquerda italiana exilada no Brasil, mas pouco se
sabia de fato sobre ele. Em 1933 uma menção mais incisiva: G. Rosini, trotskista
italiano que vivia em São Paulo, denuncia num artigo a situação dramática vivida
por Gramsci na prisão, inclusive reproduzindo o diagnóstico do médico Umberto
Arcangeli, que o examinou no cárcere no mesmo ano (ibidem, p. 15).

As décadas de 1930, 1940 e 1950 se seguiram com mais algumas alusões a


Gramsci, num movimento crescente de difusão de seu nome e atividades políticas,
mais que de suas atividades intelectuais. Na década de 1960 se inicia a publicação
das obras do marxista sardo no país, ocorrendo então o primeiro momento, ainda
incipiente, em que se convenciona um campo comum de interpretações
gramscianas do país em torno do conceito de “hegemonia”. É preciso, então,
estabelecer a diferença entre a presença de “Gramsci no Brasil” nas décadas
anteriores e o “Gramsci do Brasil”, que despontaria nessa década de 1960 (MUSSI,
2018b, p. 1). Importa notar que os objetos de investigação da agenda coletiva de
pesquisa são os momentos gramscianos do Brasil, ou seja, da conformação, a partir
da década de 1960, dum terreno comum de debates gramscianos para interpretar
o país.
Ainda em formação, este campo de debates se relacionava diretamente com
a preocupação da intelectualidade brasileira em compreender o golpe militar de 64:
o léxico gramsciano foi mobilizado para pensar questões como a debilidade da
hegemonia da burguesia brasileira e também a dificuldade da hegemonia cultural
da intelectualidade de esquerda em superar seus círculos restritos (MUSSI, 2018a,
p. 112). O uso do conceito de “hegemonia” em termos gramscianos, contudo, não

IGOR MATTOS MARQUEZINE 214


era restrito aos meios acadêmicos; também o Partido Comunista (PCB) o usaria
com frequência crescente, em consonância com suas aspirações políticas de
“acumulação de forças” e construção de uma hegemonia proletária (SECCO, 2002,
p. 29). Estes momentos apenas marcam o início daquilo que ocorreria com
verdadeira força na década seguinte: o interesse pelas ideias de Antonio Gramsci
no Brasil se tornaria imenso.

4. "GRAMSCI À BRASILEIRA" NAS DÉCADAS DE 70 E 80

No ano de 1948 na Itália, a editora Einaudi lançou os Cadernos do Cárcere


sob orientação de Palmiro Togliatti, publicação posteriormente conhecida como
“edição temática”. Togliatti alterou a ordem dos escritos gramscianos, agrupando-
os por tema, misturou notas redigidas em momentos distintos, suprimiu passagens
que considerava comprometedoras para Gramsci, deixou de publicar alguns dos
cadernos e escreveu um prefácio aproximando Gramsci da política oficial da
Internacional Comunista stalinizada. Tais fatores da edição temática contribuíram
para apropriações problemáticas do pensamento de Gramsci ao induzir
determinadas leituras, ao ofuscar o caráter essencialmente fragmentário dos
escritos do cárcere e ao enfatizar aspectos filosóficos e culturais, em detrimento de
outros (BIANCHI, 2018, p. 36-39).
A edição temática deu origem à primeira publicação dos Cadernos do
Cárcere no Brasil, ainda na década de 1960. Os problemas da edição togliattiana
foram mantidos, é claro. O ambiente sufocante proporcionado pela ditadura militar
brasileira, acentuado com a decretação do Ato Institucional nº 5 em 1968,
proporcionou a ainda tímida recepção de Gramsci no país (ibidem, p. 41).
Em 1975 na Itália foi publicada a indispensável edição crítica dos Cadernos
do Cárcere por Valentino Gerratana, também pela editora Einaudi. A nova
publicação restaurava o caráter fragmentário dos escritos, trazia-os todos (com
exceção dos cadernos de tradução) em ordem cronológica e abandonava diversas
das modificações intencionais de Togliatti (ibidem, p. 42). As novas possibilidades
proporcionadas pela edição crítica levaram a novas apropriações múltiplas do
pensamento contido nos Cadernos, motivando um afluxo cada vez maior de estudos

215 VI EPEGH
sobre Gramsci4.
O Brasil acompanhou essa tendência (ainda que a edição crítica de
Gerratana nunca tenha sido lançada por aqui). As décadas de 1970 e 1980 assistem
a um aumento expressivo dos estudos gramscianos no país e com eles a uma plena
utilização de seu léxico característico. Entre 1975 e 1984 “foram várias dezenas de
artigos brasileiros sobre Gramsci, inúmeros excertos e coletâneas da sua obra e
diversos textos e livros traduzidos sobre seu pensamento, além da reedição dos
volumes dos Quaderni, publicados em 1966-68 e de algumas teses acadêmicas.”
(SECCO, 2002, p. 46).
Tal como no plano internacional, também a autoridade intelectual e política
de Gramsci seria objeto de disputa nessas décadas por duas diferentes tendências
mais gerais: i) Gramsci como teórico e político “comunista” no sentido da
Internacional e ii) Gramsci como teórico e político de uma “nova esquerda” (MUSSI,
2018, p. 1). Mas a influência do marxista sardo também seria sentida na própria
teorização sobre as transformações econômicas e sociais de nosso país (incluindo o
golpe militar de 1964):
“[...] as transformações políticas e a modernização econômico- social no
Brasil foram sempre efetuadas no quadro de uma “viaprussiana”, ou seja, através
da conciliação entre frações das classes dominantes, de medidas aplicadas “de cima
para baixo” com a conservação essencial das relações de produção atrasadas (o
latifúndio) e com a reprodução (ampliada) da dependência ao capitalismo
internacional; [...] Mas essa modalidade de “via prussiana” (Lênin, Lukács) ou de
“revolução- restauração” (Gramsci) encontrou seu ponto mais alto no atual regime
militar, que criou as condições políticas para a implantação em nosso País de uma
modalidade dependente (e conciliada com o latifúndio) de capitalismo monopolista
de Estado, radicalizando ao extremo a velha tendência a excluir tanto dos frutos
do progresso quanto das decisões políticas as grandes massas da população
nacional.” (COUTINHO, 1979, p. 41-42)
Cabe ressaltar que no período, o léxico gramsciano também foi tomado como

4 ParaSecco, a edição de 1975 propiciou usos bastante múltiplos, tais como “legitimar aproximações
com diversas correntes políticas, como o trotskismo, maoísmo, social-democracia liberalismo e até,
nos anos 1990, um ‘gramscismo de direita’ (sic)” (SECCO, 2002, p. 37).

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importante ponto de apoio para pensar o problema da transição democrática que
já se insinuava (BIANCHI, 2016, p. 124). O texto de Carlos Nelson Coutinho (1979,
p. 44) já citado concebe a possibilidade de que as forças populares brasileiras neste
período de crise da ditadura militar possam progressivamente acumular e manter
posições na “sociedade civil”, optando, portanto, pela “guerra de posição” para a
redemocratização do país (os termos entre aspas são conceitos propostos por
Gramsci). Entre diversos trabalhos importantes de interpretação gramsciana do
Brasil no período, cito: “Liberalismo e Sindicato no Brasil” de Luiz Werneck Vianna
(cf. 1976); “Notas sobre a questão cultural no Brasil” de Carlos Nelson Coutinho
(cf. 1977); “Cultura e democracia no Brasil” de Carlos Nelson Coutinho (cf. 1979b);
“Os intelectuais e a organização da cultura no Brasil” de Carlos Nelson Coutinho
(cf. 1981); “Considerações sobre o nacional-popular” de Marilena Chauí. (cf. 1983).

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A compreensão da “tradução” do pensamento de Gramsci pela
intelectualidade brasileira é parte da compreensão da história de nossa
intelectualidade. Mas não é só isso. Acompanhando as reflexões de Portantiero (cf.
1983), para quem a apropriação da obra política e intelectual de Gramsci é
frequentemente relacionada às aspirações e necessidades políticas dos diferentes
grupos que o fazem, temos um desdobramento importante: compreender os
intelectuais gramscianos brasileiros é também compreender parte das aspirações
políticas concretas presentes no nosso país. Ultrapassa, portanto, os círculos
especializados e restritos da academia.
Para tanto, é necessário compreender as circunstâncias imediatas em que os
textos que mobilizaram o léxico gramsciano para interpretar o Brasil foram
escritos, além da análise das intenções políticas da intelectualidade que produziu
tais textos. Muitos dos que conceberam o Brasil sob lentes gramscianas foram
membros de partidos ou movimentos políticos - e à época da crise da ditadura
militar a preocupação com a construção de uma sociedade democrática era latente.
Um outro aspecto, mais contemporâneo, motiva minha pesquisa.
Considero necessária a compreensão da recepção de Gramsci no Brasil para além
das formulações simplistas e inverossímeis que alguns setores hoje ligados ao

217 VI EPEGH
governo Bolsonaro têm advogado. Refiro-me à suposta existência do “gramscismo”,
entendido como um “negócio tremendamente maquiavélico”, um suposto plano
bolado por Gramsci nos anos do cárcere para “amestrar o povo para o socialismo
antes de fazer a revolução. Fazer com que todos pensassem, sentissem e agissem
como membros de um Estado comunista enquanto ainda vivendo num quadro
externo capitalista.” (CARVALHO, 1994, p. 31).
Conquanto se possa facilmente afirmar o pouco rigor da leitura de Gramsci
destes setores, em especial de Olavo de Carvalho, alçado a uma espécie de Rasputin
do Governo Federal, suas formulações fictícias têm influenciado concretamente; a
nomeação do Ministro das Relações Exteriores foi por indicação de Carvalho (cf.
FOLHA DE SÃO PAULO, 2018). O novo chanceler, Ernesto Araújo, também
partilha da infundada ideia de que há uma conspiração do “marxismo cultural”
para a destruição do Ocidente (cf. ARAÚJO, 2018).

Ora, é preciso depurar a absorção das ideias de Antonio Gramsci pela


intelectualidade brasileira das teorias conspiratórias tão em voga hoje em dia.
Compreender com critérios de objetividade histórica a conformação de nosso
“Gramsci à brasileira” é também um esforço político de nossa atualidade. Afinal,
as atividades intelectuais em contextos de perseguição política são sobremaneira
influenciadas pela ordem do dia…

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