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VI EPEGH
ENCONTRO DE PESQUISA NA GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
Organização
PET-HISTÓRIA USP
DPTO. DE HISTÓRIA/FFLCH-USP
São Paulo
2021
Copyleft © 2018 by Programa de Educação Tutorial da História USP (PET-História USP)
Esta publicação não tem fins lucrativos e está vedada sua reprodução para fins comerciais.
Capa
Diagramação
Revisão de diagramação
PET-História USP
[2021]
Av.Prof. Lineu Prestes, 338 – Butantã, São Paulo CEP 03178-200 – São Paulo – SP
Catalogação na Publicação
Serviço de Biblioteca e Documentação
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
Maria Imaculada da Conceição – CRB-8/6409
E56 Encontro de Pesquisa na Graduação em História (6. , 2018 : São Paulo, SP).
Anais [recurso eletrônico] : VI Encontro de Pesquisa na Graduação em História, 05 a 09
de novembro de 2018 / Organização: Maria
Cristina Cortez Wissenbach, Stella Maris Scatena Franco Vilardaga, Jorge
Luís da Silva Grespan. -- São Paulo : FFLCH/USP, 2021.
19.750 Kb ; PDF.
ISBN 978-65-87621-39-5
CDD 907
Sumário
Apresentação ..................................................................................................... 10
“Adornando as Bestas”: a figuração de animais em rituais de sacrifício na
cerâmica ática do século V a.C............................................................... 13
“Era barulho o silêncio”: poesia, vácuo de censura e resistência à
ditadura militar brasileira. ..................................................................... 32
“Eu uso telefone como todo mundo usa”: o celular no cotidiano das
pessoas com deficiência visual .............................................................. 41
A construção da visão sobre os povos indígenas em Minas Gerais pelos
relatos de August Saint Hilaire.............................................................. 61
A dialética em Hegel e Marx .......................................................................... 68
A expressão de "feminilidade" na obra "Guitarrista e duas figuras
femininas" de Marie Laurencin ............................................................. 76
A figura de Napoleão Bonaparte como indivíduo histórico-universal na
Filosofia da História de Hegel ............................................................... 92
A memória do Regime Militar do MAC-USP: "Entre Atos 1964/68" e "Um
dia terá que ter terminado: 1969/1974". .............................................. 108
A Monumentalidade como forma de afirmação do poder tirânico: o caso
do Templo de Hera no governo de Polícrates de Samos ................. 125
A Praga de Justiniano Reavaliana................................................................ 142
A Primeira Visitação do Santo Ofício à capitania de Pernambuco – o
processo crime de Felícia Tourinha..................................................... 157
A questão social na perspectiva da Doutrina da Segurança Nacional de
Golbery do Couto e Silva: a miséria como vulnerabilidade e o Bem
Estar em seu limite................................................................................. 166
Populismo, um conceito em movimento. ................................................... 179
Alianças e Casamentos Interdinásticos no Antigo Oriente Próximo - a
perspectiva egípcia nos séculos XIV-XIII a.C. ................................... 188
A representação da mulher no quadro interior com figuras femininas
(1936), de André Lhote .......................................................................... 200
Antonio Gramsci na transição democrática brasileira.............................. 210
As Paston Letters: “Worship”, “good lordship” e o sistema de serviço
honroso na Inglaterra do séc. XV ........................................................ 221
Aspectos da religiosidade grega nas apoikiai da Sicília e em suas metrópoles: o
caso de Gela e Lindos ............................................................................... 235
Bioarqueologia: um processo histórico ....................................................... 252
Cartas para Nelson: resistência e memória da Ditadura Militar
Brasileira .................................................................................................. 259
Cinema e ditadura militar o Brasil: o filme como forma de resistência . 276
Crítica de arte no feminino? Uma análise da produção de Aracy de
Amaral a partir do arquivo do IEB ..................................................... 286
Diário de Bitita: Carolina, a filha da pós-abolição e a personificação da
liberdade em cárcere ............................................................................. 300
Elementos para a Unidade: a escravidão no processo de independência
(1808-1824) .............................................................................................. 309
Emigração da Europa no século XIX: el breve panorama das causas e
consequências ......................................................................................... 321
Estudos de casos de defloramento na cidade de São Paulo (1860-
1870) ......................................................................................................... 339
Compartilhamento de experiências: O projeto Memórias da Luta
Antimanicomial...................................................................................... 362
Expedição Roncador-Xingu (1943-1948): a tensão entre integrar e
preservar os indígenas do Brasil Central ........................................... 373
Imagens da Idade Média: Análise de Materiais Didáticos de História da
Rede Pública de Ensino ......................................................................... 389
Imagens em sala de aula: o uso de pinturas históricas nos livros didáticos
do 7º ano do Ensino fundamental. ...................................................... 401
Memória e Imprensa: uso e apropriações da biografia de Sebastiana de
Mello Freire ............................................................................................. 418
O sexo feminino e o Echo das Damas: a luta pela emancipação feminina na
imprensa carioca no final século XIX .................................................. 440
Os amigos do riso: Philogelos e a piada na antiguidade.......................... 450
Relações de poder, diplomacia e cultura material: o caso do Peru-EUA, suas
motivações, desafios, desdobramentos e resultados ............................... 462
Caso Volkswagen: A intensa vigilância ao trabalhador (1964-1985) ............... 473
A vida paralela vendida pelas propagandas de cigarro: uma análise da
reinvenção pessoal e do escapismo da monotonia no ato de fumar
(em São Paulo e Rio de Janeiro do século XX)................................... 489
Os Cortejos Históricos Portugueses (1940 e 1947): nacionalismo e o
aparato cultural durante o Estado Novo............................................ 500
O persa nas fontes gregas: a alteridade na tragédia Os persas de Ésquilo
e nas representações iconográficas...................................................... 514
Os heróis e a morte: histórias do mundo antigo........................................ 524
Fronteiras criminais do Nazismo: lei e moral no discurso de Konrad
Morgen .................................................................................................... 537
Inês de Castro: relatos e narrativas de vida e morte ................................. 550
Historiografia urbana no IV Centenário do Rio de Janeiro: Coleção “Rio 4
séculos” e as representações da cidade .............................................. 563
A cooperativização no regime do Khmer Vermelho (1973-1975) ........... 588
O antifeminismo e o antissufragismo em publicações das revistas
ilustradas humorísticas “O Malho” e “Careta” (1917-1932) ........... 604
O correr do relógio francês em um Marrocos imóvel: tempo e
orientalismo em Pierre Loti .................................................................. 622
O projeto franquista para a América Latina e a apropriação cultural
pinochetista ............................................................................................. 635
A contribuição da experiência internacional ao anarquismo de
Buenaventura Durruti ........................................................................... 648
Visualidade e Poder: a atuação das imagens na construção política do
Principado de Augusto ......................................................................... 661
Os embaixadores do comércio de escravos na América Portuguesa:
diplomacia entre tensões e tradições (1795-1805) ............................. 682
Os espaços-tempo no Brasil dos séculos XVIII e XIX ............................... 691
Memórias da experiência religiosa de origem africana e afro-brasileira
em Taubaté nas últimas décadas do séc. XIX e no pós-abolição .... 720
O culto de Epona em Roma: estudo de caso dos altares dedicados à Epona
pelos Equites Singulares Augusti ............................................................ 732
Sérgio Buarque de Holanda e a mudança dada a visão dos
bandeirantes em seus escritos do período de Monções à Caminhos
e Fronteiras............................................................................................... 746
Apresentação
Graduação em História (EPEGH) é um evento que ocorre bienalmente, que tem como
finalidade possibilitar aos alunos da graduação um espaço para a apresentação de
seus respetivos trabalhos de pesquisa acadêmica, assim como a troca de experiência
10
norteadores, foi concebido um evento capaz de fornecer aos graduandos uma
experiência rica no que tange à pesquisa e ao convívio acadêmico. É pertinente
ressaltar que os resultados alcançados com a atividade foram satisfatórios, ao ponto
de mantermos uma periodicidade do evento, para que essa experiência fosse longa
e duradoura na vida universitária, como de fato tem sido.
Desse modo, foi dada aos alunos que apresentaram seus trabalhos a
oportunidade de manter registro dessa mesma apresentação por meio desta
publicação. Essa oportunidade se mostra valiosa uma vez que são poucas as
oportunidades de publicação de trabalhos para alunos de graduação.
Por fim, o sucesso em realizar essa última edição, contudo, só foi possível em
virtude do apoio que nos foi concedido por diferentes pessoas e entidades.
Agradecemos, primeiramente aos nossos três tutores que nos acompanharam nesses
dois anos desde o planejamento do evento até o lançamento dos Anais: Profa. Dra.
Maria Cristina Cortez Wissenbach; Profa. Dra. Stella Maris Scatena Franco e Prof.
Dr. Jorge Luís da Silva Grespan. Somos também imensamente gratos a todos os
estudantes de graduação, da USP e de outras instituições, que apresentaram seus
um todo. É importante também agradecer aos nossos colegas que já não mais são
11 VI EPEGH
bolsistas do Programa, cuja participação foi crucial para a organização e a realização
do evento. Aos alunos da pós-graduação, já mencionados anteriormente,
agradecemos por terem aceitado os convites de desempenhar o papel de mediadores
Esperamos que tenham uma boa leitura e que possam aproveitar os artigos
12
“Adornando as Bestas”: a figuração de animais em rituais de
sacrifício na cerâmica ática do século V a.C.
RESUMO: Este trabalho tem como objetivo entender o ritual de sacrifício animal
na perspectiva dos artesãos que produziam vasos de cerâmica áticos no século V
a.C., por meio da forma como eles figuravam animais. Muitas cenas deste tipo de
ritual foram figuradas em vasos cerâmicos por artesãos da região da Ática, mas a
bibliografia não é consistente quanto aos animais que nelas estavam presentes.
Nesse sentido, pretende-se analisar os animais escolhidos, como eram figurados e
também a forma de interação destes com outros elementos presentes nas cenas nos
vasos de cerâmica pintados.
PALAVRAS-CHAVE: Ritual de sacrifício animal; Figuração de animais; Vasos de
cerâmica áticos.
13 VI EPEGH
1. INTRODUÇÃO
Este trabalho tem como objetivo entender o ritual de sacrifício animal por
meio da perspectiva dos artesãos que produziam vasos de cerâmica pintados na
região da Ática no século V a.C. A figuração de animais será o principal meio para
compreender essa perspectiva, tendo em vista a inconsistência na bibliografia
frente não só às cenas da fase de “pré-sacrifício”, mas também quanto aos animais
presentes nelas no quesito da escolha dos mesmos, da forma de figuração e da
interação com os demais elementos da cena. Durante muito tempo, vasos cerâmicos
gregos que possuem cenas figurando o contexto mítico em sua estrutura receberam
muita atenção pelos estudiosos da área de estudos sobre a cerâmica antiga. No
entanto, em resposta a esse foco dominante em cenas míticas, nos últimos anos tem
aumentado a atenção dos estudiosos para cenas que figuram o cotidiano dos gregos
antigos (BUNDRICK, 2008: 283). Podemos dizer que o contexto ritual também faz
parte desse cotidiano figurado e muitos artesãos, principalmente os do século V
a.C., produziram inúmeros vasos com cenas de culto, inclusive de cenas que
figuram o ritual de sacrifício de animais.
2 Trato nesta pesquisa com as Cerâmicas Áticas (provenientes da região de mesmo nome) devido ao
seu número substancial tanto de peças, quanto das cenas de sacrifício que são estudadas neste
trabalho.
15 VI EPEGH
criadas com um pincel ao invés de um buril e por vezes ganhavam detalhes
pintados com verniz negro (COOK, 1997: 155).
Muitos vasos com cenas figurando o ritual de sacrifício animal foram
produzidos durante o século V a.C. Van Straten, em seu livro Hiera Kala: images
of animal sacrifice in Archaic and Classical Greece, apresenta um enorme catálogo
tanto de figurações de vasos de cerâmica quanto de relevos votivos relacionados ao
ritual. O estudioso, ao tratar dos vasos pintados, separa as cenas em três fases
distintas3: a fase de “pré-sacrifício”, que mostra animais vivos e inteiros em
variadas cenas do ritual; a fase de “sacrifício”, que mostra o animal sendo abatido;
e a fase de “pós-sacrifício”, onde não é mais possível identificar o animal na cena
(VAN STRATEN, 1995: 09-10). Para essa pesquisa, portanto, centralizarei apenas
em cenas de “pré-sacrifício”, e o foco será nos animais que estão figurados nelas,
tendo em mente que a bibliografia não é consistente em relação aos animais
escolhidos pelos artesãos, como estão figurados e como interagem com outros
elementos presentes nas cenas. A compreensão desses elementos se torna
importante para entender a perspectiva dos artesãos áticos do século V a.C. em
relação aos rituais de sacrifício animal.
As fases iniciais do ritual são bastante frequentes, demonstrando desde
figurações ricas em detalhes até imagens um pouco mais sintetizadas em que é
possível ver apenas o animal e algum condutor (Ibdem: 13). As cenas dessa fase
também podem ser divididas em duas formas: cenas em que há uma procissão
sacrificial (pompe4) e cenas em que rituais preliminares são realizados diante de
um altar (archestai5) (Idem). Mesmo que o foco da pesquisa seja a figuração de
animais, entender o que eram as procissões e também quais eram esses rituais
preliminares é fundamental para mapear elementos que estavam presentes no
cotidiano ritualístico na Antiguidade.
O livro de Van Straten, mesmo que ofereça riqueza de detalhes e explicações
ao tratar das figurações vasculares, aborda o assunto da escolha dos animais de
3 Uso aqui os termos “pré-sacrifício”, “sacrifício” e “pós-sacrifício”, tendo em mente que no original,
o autor utiliza-se das expressões “pre-killing”, “the killing” e “post-killing”.
4 Autores, como Walter Burkert (1985), usam os termos originais, pompe ou pompei.
5 Termo original utilizado por Gebauer (2002); mas também há o termo katarchestai, utilizado por
Ekroth (2014).
2. ANÁLISE DOCUMENTAL
Como poderíamos analisar essas figurações? Antes de tudo, os artesãos não
estavam preocupados com elementos técnicos do processo ritualístico, mas sim em
mostrar os elementos que eram mais importantes no ritual, tanto em termos de
estética quanto de simbolismo. A figuração do ritual era uma referência recorrente
do que deveria ser feito (LISSARRAGUE, 2012: 566). Nessa perspectiva, é
impensável deixar de questionar o que o artesão procurava figurar de mais
importante; os animais figurados podem entrar nesse contexto.
Para analisar as figurações, propõem-se três pontos a serem levados em
consideração: a cena e seu contexto; o animal como um todo; e a interação deste
6 Jameson (2014: 29), assim como Van Straten (1995) trazem tabelas de preços de vários animais
usados para o sacrifício.
7 Animais bovinos adultos custavam de 40 a 90 dracmas; animais ovinos e caprinos adultos
custavam de 10 a 17 dracmas; porcos custavam de 20 a 40 dracmas; por fim, os leitões que poderiam
custar até 3 dracmas.
17 VI EPEGH
com outros elementos presentes na cena. Como ressaltado acima, os dois tipos de
cenas, as procissões e os rituais preliminares no altar, devem ser levados em conta
frente a escolha do animal. Para isso, analisar a cena como um todo é fundamental
para contextualizar o animal. Em seguida, deve ser feita a descrição do tipo do
animal e de toda sua anatomia, sexo, como ele foi e/ou está figurado na cena,
tomando também como foco suas posições na cena, tendo como pressuposto que
uma imagem é um lugar, um espaço onde sinais ocorrem, posicionados de acordo
com os critérios espaciais – esquerda/direita, alto/baixo, na frente ou atrás
(DURAND, 1989: 120). Por fim, é preciso entender como o animal está interagindo
com os outros elementos da cena. Para tal, é importante descrever os gestos, os
movimentos das figuras humanas e dos animais, os objetos presentes na cena e que
tenham relação com os animais, assim como o ritual de sacrifício. Torna-se
extremamente relevante observar, por exemplo, se há uma corda no animal, se há
adornos, etc.
A primeira cena (Imagem 1), datada entre 500 e 450 a.C., é um lécito de
figuras negras e no vaso há a figuração de uma cena de procissão sacrificial. Da
esquerda para direita, a cena possui quatro figuras, sendo três figuras femininas e
uma figura animal. As figuras femininas estão de quíton e himation longo, com
cabelos presos e aparentam estar dançando. Provavelmente são Mênades em
contexto de uma procissão dionisíaca. Na cena podemos ver ramos de hera, muito
comum em cenas de figuras negras, principalmente as arcaicas (VAN STRATEN,
1995). As Mênades ocupam grande parte da cena, e parece que o foco está nelas.
No entanto, volto minha atenção para o animal. O mesmo é do tipo bovino,
mas como não é possível perceber seu sexo devido à sua disposição na cena (no
centro, atrás de uma Mênade), não posso afirmar se é um touro ou uma vaca. O
animal está voltado para a direção direita. Da cabeça à cauda: o animal possui
chifres, sua cabeça é grande e possui focinho, e há detalhes na feição do mesmo,
como olhos e orelhas. Há detalhes também bem definidos, destacando alguns
elementos como o ombro e pescoço. Sua cauda é longa, com ponta, e bem
característica do tipo do animal. O mesmo aparenta estar em movimento devido à
posição de seus membros dianteiros e não possui adornos. Aparentemente não há
19 VI EPEGH
traseiros estão bem detalhados e há detalhes dos ossos e do casco da besta. Uma
parte de sua cauda é perceptível logo no final, também sendo bastante
característica do tipo do animal. Devido à posição de suas patas e do contexto da
cena, a figura não sugere movi- mento. O sinal que restringe o animal que pode ser
visto é o fato do efebo estar segurando os chifres do mesmo; esse seria o sinal de
interação e reação do animal com os outros elementos da cena, sendo apresentada
aqui, também, a força do efebo.
Na terceira cena (Imagem 3) há um grande diferencial. A figuração se
encontra em uma cratera em sino de figuras vermelhas, datada entre 475-450 a.C.
Na cena são perceptíveis seis figuras vivas, sendo cinco em forma humana e uma
em forma animal. Da esquerda para direita temos um efebo com uma coroa de
louros, quíton e himation tocando flauta, novamente em um contexto musical. Em
seguida, um efebo assistente, o manipulador do animal, que está se ajustando para
segurar a besta pelo pescoço. O jovem também possui uma coroa de louros. Em
seguida há o que aparenta ser um sacerdote, homem barbado, usando quíton e
himation e em sua cabeça usa coroas de louros e está lavando as mãos numa bacia
de água lustral, o chérnips, que é um tipo de bacia com água trazida pelo assistente
para que o sacerdote lave suas mãos antes do sacrifício. Em seguida temos outro
efebo com coroa de louros e com quíton e himation. O mesmo se ocupa segurando
dois objetos: o primeiro é uma bacia de água lustral, chérnips, definida
anteriormente; com a mão direita segura o que a princípio aparenta ser uma
pátera, objeto utilizado no ritual para libações. Há na cena, também, uma figura
entronada que a princípio aparenta ser o deus Apolo devido a seus atributos
principais: ser efebo e estar segurando com o braço esquerdo um cajado de louros.
Outros elementos na cena podem identificar o deus, como a trípode délfica, por
exemplo (cf. LARSON, 2007: Cap. 07).
Em relação ao animal presente na cena, devido a imagem não estar muito
boa, o mesmo aparenta ser do tipo caprino, ou seja, um bode. A anatomia acaba
sendo um pouco difícil de caracterizar. No focinho percebe-se a presença de uma
barbicha. Outro ponto importante são os chifres. Não tem como perceber o chifre
totalmente, apenas um detalhe e o mesmo aparenta estar se projetando em direção
oposta à sua cabeça. Carneiros tem o chifre muito curvado e, quando crescem, ficam
21 VI EPEGH
preocupou tanto com a proporcionalidade nesse caso, ou que outros artesãos que
figuram carneiros menores estejam preocupados em trazer um ponto importante
que ocorria na realidade do ritual: muitos animais eram sacrificados
razoavelmente jovens (JAMESON, 2014: 217-8; EKROTH, 2014: 334).
A segunda cena é similar a anterior: Uma cena de pompe para archestai,
com três figuras, sendo duas humanas e outra animal. Da esquerda para direita
temos uma figura que aparenta ser um sacerdote. O mesmo usa quíton e himation
e segura em suas mãos ramos: na esquerda ramos de louro e na direita o que
aparenta ser uma coroa de louros, ou fitas, possivelmente para adornar a besta. A
segunda figura é um efebo com quíton curto e segura uma corda. Essa corda, que
prende o animal aparentemente é a interação entre ambos, assim como um sinal
de restrição. O efebo segura, com a mão esquerda, a corda e aponta com o braço
direito em direção ao sacerdote. O animal é do tipo bovino e usa adornos em seus
chifres. No resto da cena é possível ver pilares jônicos representando estruturas de
um templo, assim como na anterior.
O animal desta segunda cena é do tipo bovino. Da cabeça à cauda, é possível
ver seus chifres, e alguns detalhes que parecem ser adornos. Sua cabeça está
abaixada, o que muitos pesquisadores tendem a explicar como forma de acepção do
animal para seu sacrifício (cf. VAN STRATEN, 1995; BURKERT, 1985;
BURKERT, 1983). Há uma corda em seus chifres sendo segurada pela figura
humana, que demonstra, assim, um sinal de restrição e interação do animal com o
assistente. Suas orelhas são bem grandes e estão baixas. É um animal bem
musculoso e rígido, de pescoço grande, sendo assim um animal de grande porte. É
possível ver os detalhes dos ombros do animal. Outro ponto a se destacar é o fato
do animal estar em movimento, como o anterior, indo em direção a seu destino. O
animal está muito bem centralizado na cena, sendo possível ver todo o seu corpo.
Há detalhes perceptíveis de suas costelas. A cauda do mesmo é grande e
característica de um animal bovino. É possível ver suas genitálias e seu saco
escrotal, sinalizando ser um macho. Sendo assim, o animal é claramente um touro
pronto para seu sacrifício.
23 VI EPEGH
escolhidos pode estar ligado ao gosto do artesão ou oficina, além de aspectos mais
profundos do culto. Tomo como exemplo a Imagem 3, apresentada anteriormente,
que mostra a cena de um bode pronto para ser sacrificado e na mesma cena temos
um deus, nesse caso Apolo, figurado. Interpreto aqui a intenção do artesão de
mostrar um aspecto do culto de Apolo com um pouco mais de profundidade. Mesmo
que a escolha dos animais para certos deuses ainda seja um grande debate,
inscrições afirmam que deuses como Apolo favoreciam em seu culto muitas vezes
animais do tipo caprino (RICHTER, 1972: 426-7, apud JAMESON, 2014: 215).
25 VI EPEGH
bode pelo pescoço, outro elemento que indica um sinal de restrição do animal por
meio da ação de outro elemento da cena. Outro sinal de restrição do animal, agora
como um objeto, se encontra na segunda cena da Imagem 4. Na mesma, atada aos
chifres do animal, pode ser vista uma corda que é puxada pelo assistente do ritual.
Algumas outras figurações mostram muitas vezes esse elemento, sendo perceptível
a intenção do artesão de mostrar outras características desse sinal de restrição.
Enquanto que na Imagem 1, o animal ia para seu sacrifício sozinho, onde o
artesão não teve a intenção ou preocupação de sinalizar elementos restringindo o
animal, nas demais figuras podem ser vistos esses sinais. Van Straten (1995: 100-
1) ressalta que, diferentemente da tradição literária, em que aparentemente os
animais iam por livre vontade ao seu sacrifício, na maioria das cenas de cerâmicas
pintadas esses detalhes de restrição animal eram mais perceptíveis.
Por fim, considerando que estas são propostas parciais, é importante notar
que muitos elementos devem ser levados em conta nas cenas de rituais de sacrifício
em que aparecem animais figurados. Muitos destes elementos ganham pouco
destaque em outras bibliografias que tratam do assunto. Analisar estes animais
figurados é entender, mais profundamente, estes últimos como importantes
elementos presentes neste tipo de prática, sendo assim possível esboçar o
significado do ritual de sacrifício animal para os artesãos que figuravam estes tipos
de cena em vasos de cerâmica áticos.
COOK, R.M. Greek Painted Pottery. 3rd Edition. Oxford: Routledge, 1997.
LARSON, Jennifer. Ancient Greek cults: a guide. New York: Routledge, 2007.
27 VI EPEGH
LISSARRAGUE, François. Figuring Religious Ritual. In: SMITH, Tyler J.;
PLANTZOS, Dimitris (Ed.). A Companion to Greek Art. United Kingdom: Blackwell
Publisshing Ltd. 2012.
VAN STRATEN, Folkert T. Hiera kalá: images of animal sacrifice in archaic and
classical Greece. Leiden: E.J. Brill, 1995.
TROY, Lana. “Religion and Cult during the Time of Thutmose III”. In: CLINE, Eric
H.; O’CONNOR, David (Orgs.). Thutmose III: A New Biography. Ann Arbor: The Michigan
University Press, 2006. p. 123- 182.
29 VI EPEGH
CP10754. Fonte:
https://www.beazley.ox.ac.uk/XDB/ASP/recordDetailsLarge.asp?recordCount=1&i
d={CA9F09DD-A08A-4DA6-814E
5F862291CDC9}&fileName=IMAGES100%2F202%2F202233%2EB2%2F&return
Page=&start=0
31 VI EPEGH
“Era barulho o silêncio”: poesia, vácuo de censura e
resistência à ditadura militar brasileira.
1Licenciado e Bacharel em História pelo Centro Universitário Fundação Santo André, mestrando
pelo Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade de São Paulo.
marcuscardoso@usp.br
33 VI EPEGH
Para fazer essas discussões e análises, foi utilizada a base teórica sobre
literatura e história que se encontra no livro Literatura e Sociedade, de Antônio
Candido. Nela, encontra-se uma reflexão sobre criação literária e como ela está
amalgamada com o meio social em que foi produzida, estando impedida de fugir de
suas amarras temporais e espaciais (CANDIDO, 2014). Em sua obra, o autor
discorre que duas questões devem sempre ser feitas e, necessariamente,
encontrarem- se: Qual a influência exercida pelo meio social sobre a obra? E qual a
influência exercida pela obra de arte sobre o meio? Desta forma, segundo Candido,
é possível chegar a uma análise dialética do objeto de estudo. Toda obra de arte (e
nesse caso, a obra poética), parte e fala sobre as tensões e dicotomias da época em
que foi escrita. Então, sob essa visão, mesmo uma obra que se ambienta num futuro
distante, distópico ou utópico, se direciona a questões do momento em que foi
produzida: o presente do autor.
Outra obra seminal para compreender a relação entre literatura e história,
que faz parte da espinha dorsal deste trabalho de pesquisa, foi o livro A palavra
perplexa: Experiência histórica e poesia no Brasil nos anos 1970, da historiadora
Beatriz Vieira, em que desenvolve a relação específica entre poesia e História,
aprofundando a riqueza da utilização de obras literárias (e a poesia, especialmente)
como fontes históricas. Segundo Vieira, deve-se levar em consideração o eu-lírico
como forma principal de análise dos poemas, pois é através dele que o poeta se
expressa e constrói o discurso poético, como é visto no trecho.
35 VI EPEGH
Expresso, nesse trecho, temos a representação de uma forma coercitiva
policial aplicada contra os opositores do novo regime, e que cala: pois sufocar é
sempre esse ato de não permitir que se fale ou respire. Contando, também, que a
meta de quem sufoca é a morte do que está sendo sufocado. O inquérito policial-
militar é uma referência bastante pontual e, novamente, te transfere para o tempo
e espaço em que foi concebido o poema, pois, como escreve Sônia Regina Mendonça
e Virgínia Maria Fontes:
37 VI EPEGH
Vale esclarecer que a Censura no Brasil já existia antes do regime militar,
mas não possuía um viés policialesco. Nesse sentido, era uma profissão, até certo
ponto, glamourizada, atraindo intelectuais e pessoas altamente gabaritadas para
exercer tal função. Como explica Carlos Fico:
39 VI EPEGH
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CÂNDIDO, Antônio. Literatura e Sociedade. 13ª ed. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul,
2014.
FICO, Carlos. Versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar. São Paulo:
ANPUH/Humanitas, 2004.
GULLAR, Ferreira. Dentro da noite veloz. 6ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2013.
41 VI EPEGH
1. INTRODUÇÃO
Este artigo é fruto do trabalho final da disciplina de Introdução à Cultura
Material, oferecida pelo Museu Paulista, que teve como proposta realizar um
laboratório de estudos sobre o celular enquanto objeto de cultura material. Para
tanto, tentamos entender o celular como artefato, ou seja, objeto circunscrito às
relações de produção, sua apropriação e ressignificação por usuários cegos e de
baixa visão.
O celular aparece como artefato particularmente representativo de
transformações sociais na medida em que representa uma mudança profunda nos
meios de telecomunicação: durante os anos 1970, os celulares não aparecem como
objetos portáteis e móveis, mas como modo de comunicação voltado ao interior dos
carros. Na década seguinte, a portabilidade e mobilidade passam a qualificar o
artefato, o que amplia as possibilidades de relação com a forma de comunicação
nascente.
Ao longo dos anos 1990 uma segunda geração de celulares entra em
circulação. A miniaturização e a incorporação de mais funções, como mensagens de
texto e agenda telefônica, consolidam as relações pautadas no transporte constante
do aparelho móvel e permitem customizações do objeto a partir de demandas mais
particulares, mesmo circunscritas a determinado plano de ação. Em contrapartida,
tal processo estabeleceu fatores limitantes, como botões e telas pequenas, que
dificultam seu uso por pessoas cegas ou com baixa visão (GOGGIN, 2010).
Junto à miniaturização (SILVA, 2010) houve também um processo que o
tornou um aparelho dotado de uma visualidade cada vez maior: do início dos anos
2000 para os dias atuais em detrimento de telas maiores. A partir de 2007, surgem
os aparelhos de tipo smartphone. Trata-se de uma nova etapa do processo de
miniaturização e portabilidade, não mais do telefone, mas agora do computador.
Com isso, o celular deixou de ser um aparelho para ligações de voz e se tornou uma
tecnologia cultural central (GOGGIN, 2010). Nesse processo, os aparelhos
passaram a conter um número mínimo de teclas e concentram maioria de suas
funções no que é chamado touch screen.
Apesar de sua progressiva incorporação e agência nas relações sociais,
poucos são os levantamentos sistemáticos acerca deste objeto. Dentre os trabalhos
43 VI EPEGH
O acesso à informação, espaço ou produto diz respeito às barreiras – físicas,
sociais ou de comunicação – e como derrubá-las, visando acesso democrático e
igualitário, independente das características pessoais. Portanto, a acessibilidade
não deve existir para suprir uma necessidade específica, mas sim para que as
diferenças entre sujeitos não constituam desvantagens.
No Brasil, há 207,7 milhões de pessoas, das quais 45,6 milhões têm algum
tipo de deficiência. A deficiência visual, a mais comum, atinge 6,5 milhões
(FUNDAÇÃO DORINA, [s.d.]). Pensando nesses dados, deveríamos questionar o
padrão de normalidade imposto, ampliar nosso entendimento sobre a diversidade
e enxergar a deficiência nas barreiras impostas às pessoas. Afinal, há
aproximadamente duas pessoas com deficiência em cada dez, com os mesmos
direitos de qualquer outro cidadão. Não faz sentido considerar grupos tão
numerosos como exceção, nem ver nessas pessoas uma falta que é simplesmente
uma expectativa social.
Nesse artigo, o enfoque recairá sobre as pessoas com deficiência visual. Para
tanto, é necessário esclarecer que os graus de visão abrangem um amplo espectro
de possibilidades. O termo deficiência visual não significa, necessariamente, total
incapacidade de ver. Pelo contrário, compreende desde pessoas com cegueira, perda
total da visão ou ausência de projeção de luz, até aquelas com baixa visão, que
seria:
1. BASES TEÓRICAS
Vivemos todos em um mundo material. Nosso corpo é material, e interagimos
a todo instante com o material que nos cerca e compõe nosso ambiente. O material
representa, é discurso (HODDER, 1982). Se durante o século XIX os objetos foram
entendidos dentro da sociologia como um mero receptáculo sobre o qual a sociedade
se projeta ou materializa (LATOUR, 1993), agora passam a ser considerados
também como agentes, isto é, construtores dessa sociedade que não se forma num
vácuo imaterial. Nesse sentido, a Teoria Ator-Rede do antropólogo francês Bruno
Latour serve como uma maneira de se interpretar o social não como uma explicação
das ações humanas, mas como algo a ser explicado através do conjunto das diversas
entidades humanas e materiais em redes de associação (LATOUR, 2005).
Como, então, olhar para essa materialidade? Existe a necessidade de se
começar pelo básico: a morfologia do objeto. Entender sua forma e composição abre
as possibilidades de se pensar as escolhas técnicas realizadas por seus produtores
e os aspectos sociais que estão envolvidos nisso (SCHIFFER; SKIBO, 1997). A
partir desta morfologia, podemos pensar de quais maneiras é possível a interação
com aquele objeto e se a tecnologia envolvida em sua obtenção ou produção acaba
por torná-lo uma prótese, isto é, uma extensão do corpo do usuário. Desta forma,
pretendemos apreender as maneiras pelas quais o elemento humano molda seu
comportamento e seu arcabouço simbólico através do contato com o elemento não-
humano. Dentre elas, ressaltamos o entendimento do objeto como sendo dotado de
45 VI EPEGH
um valor de uso na sociedade em que circula (MENEZES, s/d). A partir da
morfologia e do seu impacto com o usuário e da mudança comportamental e
simbólica deste último, podemos então tentar construir a rede de ações que
compõem essa interação.
Dentre os itens da cultura material com os quais interagimos, foi escolhido o
celular como objeto de estudo. Os celulares, segundo S. R. Silva (2010), modificam
de maneira multifacetada o cotidiano dos indivíduos com que interagem e
constituem parte importante de um estilo de vida, uma maneira de estar no mundo
– mediada pela tecnologia – cada vez mais característica da cultura
contemporânea.
2. METODOLOGIA
47 VI EPEGH
o registro das entrevistas foi submetido a uma perspectiva que se aproxima em
grande medida das metodologias presentes nos estudos que se utilizam da História
Oral como fonte. Compreendemos a fala do entrevistado como relato, segundo a
concepção de Portelli (1996, p.7), atendendo ao anseio por uma metodologia que
fosse promotora do ponto de vista do entrevistado, levando em conta que a sua
forma de compreender, significar e expressar a sua relação com o objeto é também
uma dimensão fundamental dessa própria relação. O relato, portanto, compreende
as intenções da pesquisa de captar a complexidade das relações entre as pessoas e
os objetos de Cultura Material. Ele ajuda na demonstração das redes simbólicas,
gestuais, físicas e sociais que envolvem tanto o objeto quanto o usuário.
3. ANÁLISE MORFOLÓGICA
Para a análise morfológica foi escolhido como objeto a ferramenta de
acessibilidade pertencente ao celular, ou seja, o sistema que já vem da formatação
de fábrica. No sistema operacional Android a ferramenta é o TalkBack, este
permite um amplo uso pelo portador do celular: desde realizar ligações, nas quais
a ferramenta auxilia na discagem dos números indicando qual a pessoa está
apertando e confirmando se é esse mesmo o número desejado, até como leitor de
tela, jornal, etc. A ferramenta de acessibilidade do Android foi analisada com base
nos sete princípios do desenho universal (GABRILLI, 2016), sendo eles:
1) uso equitativo: a existência de uma ferramenta de acessibilidade intrínseca
ao celular permite a utilização do aparelho pelo vidente e pelo cego ou deficiente
visual de forma equivalente, ou seja, equitativo.
2) flexibilidade de uso: a possibilidade de configuração do TalkBack garante
uma adaptabilidade ao ritmo do usuário, flexibilizando o uso.
3) uso simples e intuitivo: pela característica do Android de ser um sistema
operacional livre não existe um padrão bem definido para as montadoras de
celular, o que dificulta a primeira configuração para o usuário não vidente,
exigindo uma ajuda.
4) informação perceptível: o TalkBack é a ferramenta mais importante para
esse princípio, já que ela comunica o usuário sobre o que aparece na tela.
49 VI EPEGH
4. ANÁLISE DAS ENTREVISTAS
Tendo em mente as premissas adotadas nesta pesquisa, a análise das
entrevistas proporcionou uma rica fonte de informações sobre o celular enquanto
objeto de cultura material e como tal, parte constituinte de uma dita sociedade.
Neste sentido, o seu uso e por que não dizer, os usos que o grupo de análise
entrevistado faz deste objeto, bem como as interpretações acerca dele e o seu
alcance no cotidiano dessas pessoas proporcionaram para este trabalho uma
análise ampla, que extrapola a materialidade e a interação física entre pessoa e
objeto e chega a problematizar o seu lugar em uma sociedade cada vez mais
conectada e vinculada à tecnologia.
Não, não tive dificuldade, porque se você tem uma boa visão e na época eu
tinha. Então, eu não tinha dificuldade nenhuma com ele [...] Hoje eu tenho
mais porque é um aprendizado! É você, é como se estivesse começando tudo
novamente. Tem que aprender novamente. [...] Até 62 anos, eu enxergava
e lia tudo muito bem! Então, eu mexia no celular tranquilamente! Hoje, eu
já tenho dificuldade porque você já tem medo de mexer é, e apagar alguma
coisa que é importante, entendeu? (Entrevista 8, Anexo 10 do trabalho
completo, p. 103)
51 VI EPEGH
Voltamos então ao plano de ação anteriormente sugerido. Seria o celular um
objeto destinado puramente à comunicação? De que forma a nova geração, o
smartphone, supera a categoria de telefone portátil? Entre os entrevistados,
muitos mencionam o celular em comparação aos computadores, seja realizando
funções que já eram praticadas no computador, seja facilitando para que estas
atividades se desenvolvam. O Entrevistado 6, por exemplo, comenta:
5.4. Aplicativos
Notou-se também que muitos usuários relatam utilizar o celular para
diversas atividades do cotidiano, como despertar, definir cores de roupas, assistir
TV, ouvir rádio, ler jornal, pegar ônibus, ler informações de preço no supermercado,
acessar redes sociais, pedir um táxi, ler notas de dinheiro, fazer transações
financeiras, marcar o ciclo menstrual, entre outros. A quantidade de atividades
relatadas nos levou a um assunto muito presente nas entrevistas: os aplicativos. É
através deles que a estrutura física do celular e as funções pré-dispostas em
recursos rígidos como o fone, o gravador ou a câmera extrapolam suas
potencialidades. Instalar um aplicativo é acoplar uma função, é proporcionar que,
através da internet, possam-se realizar atividades que não estão descritas no script
de um simples telefone móvel.
Sobre o assunto, destacam-se aqui alguns elementos a serem observados. O
primeiro são as funções que estes aplicativos cumprem. Pudemos perceber que eles
integram ao celular atividades do cotidiano, que poderiam ser feitas por outros
objetos, como é o caso do aparelho de GPS que foi substituído por aplicativos como
o Google Maps.
Em segundo lugar percebe-se o uso de aplicativos para aprimorar funções já
proporcionadas pelo celular, como é caso da Entrevistada 2: “Essa lupa que eu
estou te falando é um aplicativo que eu baixei, que é melhor do que a do celular [...]
Então tem sim, tem a voz da... tem várias vozes, tem voz feminina e tem
voz masculina. Eu prefiro a voz feminina... [...] tem a voz da Luciana, do
Felipe, que é masculino. Tem outras vozes, tem outros nomes, tem a voz
que você achar melhor para seus ouvidos, vamos se dizer assim (Entrevista
15, p.5).
53 VI EPEGH
3 ao afirmar “eu acredito que tem que ser personalizado porque cada pessoa tem
seu grau de dificuldade visual” (Entrevista 3, Anexo 5, p.57). Assim, a ausência de
um padrão único dentre o grupo analisado reforça a necessidade de adaptação do
aparelho a demandas particulares.
Tal personalização, contudo, não garante por si uma inserção integral da
pessoa cega e de baixa visão nos meios digitais. Frente às problemáticas
apresentadas, o plano visual dos aparelhos celulares associado à abordagem
vidente de alguns aplicativos voltados ao grupo analisado constituem, por vezes,
empecilhos na medida em que reforçam a ideia de deficiência e normalidade. O
Entrevistado 4 aponta as limitações na afirmação de que certos aplicativos propõe
substituir a visão do usuário, como o BeMyEyes.
5.6. O Significado
O último elemento que podemos mencionar é a abrangência de sentidos que
é atribuído ao celular e o seu significado. Dentre as 15 pessoas que foram a base
desta pesquisa, no que entendemos como a compreensão da relação pessoa-objeto,
pudemos notar que o celular tem grande relevância, seja como tecnologia assistiva,
como já foi dito, seja como parte constituinte de um mundo conectado aos meios
eletrônicos. Dentre as impressões apresentadas ao final das entrevistas algumas
categorias podem ser abstraídas. A primeira delas é que o celular seria o mediador
da relação destas pessoas com outras (Entrevista 12, Anexo 14, p.133), ou até
mesmo com o que é chamado pelos entrevistados de “mundo” (Entrevista 2, Anexo
4, p.53) ou “mundo virtual” (Entrevista 5, Anexo 7, p.86). A segunda é de que um
grande número deles mencionou o celular como um objeto acoplado ao seu próprio
corpo, estando presente em todos os momentos do dia-a-dia, não saindo de casa sem
ele (Entrevista 14, Anexo 16, p.144). Ainda atrelado a esta ideia, o celular é
apresentado como sendo “tudo” e, neste sentido, gerando dependência, seja pelas
informações ali contidas (Entrevista 15, Anexo 17, p.151), seja por abranger um
grande número de funções no dia-a-dia. Segundo a Entrevistada 8 (Anexo 10,
p.103) “Você fica dependente! Parece que você não sabe fazer nada sem ele… [sem]
o celular” ou o Entrevistado 1:
5. CONCLUSÃO
A partir da análise morfológica do objeto e das entrevistas, percebemos o
celular enquanto artefato essencialmente personalizável. Seu script pressupõe
possibilidades diversas de transformação e acoplamento de funções e, dessa forma,
a particularidade dos smartphones reside na viabilização de certas demandas
sociais e individuais. Na relação analisada, a customização aparece como
ferramenta de acessibilidade na medida em que promove a incorporação de
demandas apartadas dos excludentes padrões de normalidade.
Uma vez que as relações entre usuário e aparelho não são determinadas
universalmente, mas se inserem em uma rede dotada de atores plurais (LATOUR,
2005), as formas de estímulos e apropriações não são uniformes e se associam ao
espaço de cada um dos atores dentro da sociedade.
Pensando, portanto, o aparelho celular enquanto artefato potencialmente
apropriado de formas particulares (MILLER, 2000), o usuário atua enquanto
define um programa de ação próprio, escolhendo aplicativos, os incorporando à
formatação desejada e ativando ou não as ferramentas de acessibilidade. O
aparelho atua, por sua vez, na medida em que, por exemplo, condiciona
determinados movimentos de memória corporal.
Cabe ainda destacar que o plano de ação visual dos smartphones constitui
uma problemática central na medida em que o uso que os entrevistados cegos e
com baixa visão fazem do aparelho e suas impressões a respeito dos limites que os
recursos de acessibilidade apresentam demonstram os problemas de um universo
voltado para o padrão de normalidade socialmente constituído. Desde as
configurações presentes no aparelho àquelas incorporadas e voltadas
especificamente a pessoas cegas e com baixa visão, o uso efetivo do celular e suas
potencialidades depende de uma combinação entre instalação de softwares,
aplicativos diversos e, ainda em alguns casos, auxílio de uma pessoa vidente.
55 VI EPEGH
A possibilidade de pensar o telefone como tecnologia assistiva a partir da
ação do usuário indica, por fim, a importância de pensar as relações de cultura
material em sua pluralidade. A “contradição” entre o aparelho celular,
predominantemente visual, e seu uso por pessoas cegas e de baixa visão aparece
apenas de forma aparente quando reconhecemos a agência de ambos os atores no
sentido de uma personalização, mesmo limitada, às demandas individuais do
usuário e no condicionamento, pelo aparelho, às novas formas de sociabilidade
reconhecidas nas entrevistas.
57 VI EPEGH
Domicílios Contínua - PNAD Contínua. s/d. Disponível em:
<https://www.ibge.gov.br/estatisticas-novoportal/sociais/trabalho/17270- pnad-
continua.html?=&t=o-que-e>, Acesso em: 10 jun. 2018.
LYONS, D.; CASEY, J. It's a material world: the critical and on-going value of
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Archaeology, vol. 48, no. 5, 2016. p. 609-627.
__________. História a partir das coisas: tendências recentes nos estudos de cultura
material. Anais do Museu Paulista. vol. 4, 1996, p. 268-282.
ROWLAND, W. Nothing about us without us: inside the disability rights movement
of South Africa. Pretoria: University of South Africa, 1981.
SILVA, S. R. Estar no Tempo, Estar no Mundo: a vida social dos telefones celulares
em um grupo popular. Tese de doutoramento em antropologia social apresentada à
Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2010.
59 VI EPEGH
LISTA DE TABELAS
61 VI EPEGH
O objetivo do atual artigo “A construção da visão sobre os povos indígenas
em Minas Gerais pelos relatos de August Saint Hilaire” busca investigar e
compreender o século XIX a partir de algumas obras do viajante August Saint
Hilaire. Homem nascido em 4 de outubro de 1779 em Orleans, centro-norte da
França, além de sua colaboração para a História era também um botânico e
naturalista pertencente ao primeiro grupo de viajantes vindos da Europa para
realizarem suas pesquisas de exploração no Brasil Colônia, durante os anos de
1816 a 1822, período no qual a corte portuguesa estava instalada no país, na cidade
do Rio de Janeiro. A partir desses relatos buscamos entender um pouco melhor
sobre a construção dessa imagem eurocêntrica dos povos indígenas que habitavam
a região do Sertão da Farinha Podre, na segunda metade do século XIX.
Quando buscamos pesquisas que tratam da relação entre História e
Questões Indígenas podemos perceber que esse é um assunto que têm se
desenvolvido bastante no âmbito acadêmico brasileiro, e isso ocorre devido ao
esforço de pesquisadores de diferentes áreas que se colocam à disposição para
perceber os intercâmbios intelectuais. Com isso, os pesquisadores de História
Colonial e Imperial no Brasil são capazes de elucidar momentos e recuperar
agentes históricos diversos, o que permite a elaboração de uma história plural,
perpassando assim a ideia de um povo indígena submisso e sim como sujeitos
históricos produtores da sua própria história, e assim, cada vez mais tornando a
história carregada de tensões e problemas sociais.
Com a realização destas visitas ao Brasil, Saint’Hilaire nos deixou algumas
obras publicadas sobre o cenário brasileiro contando como era a vida e as pessoas
em meados de 1800. Suas viagens perpassam por Minas Gerias, Rio de Janeiro,
Goiás, Espírito Santo, Porto Alegre, entre outras regiões do Brasil, tornando-o
assim um europeu que conhecia muito bem as paisagens, uma parcela da
população, a forma de governo e outras características que eram marcantes no
Brasil.
Por verificar a escassez no que se refere a pesquisas acerca da temática
indígena, principalmente, em contextos regionais, é necessário dialogar e entender
de que modo às relações textuais existentes na historiografia até então, verificando
que as pesquisas já realizadas que utilizam dessa temática como objeto de estudo
2 Johann Baptist Emanuel Pohl, chegou ao Brasil como encarregado da parte de mineralogia,
assumindo depois a de botânica. Desligou-se da expedição e empreendeu uma viagem de quatro
anos pelo interior do Brasil, atravessando o Rio de Janeiro, Minas Gerais e Goiás. De sua viagem
publicou “Viagem no Interior do Brasil”. Empreendida nos anos de 1817 a 1821 e publicada por
Ordem de Sua Majestade o Imperador da Áustria Francisco Primeiro.
63 VI EPEGH
povos aqui encontrados, demonstrando o choque cultural entre o Sertão e as áreas
mais ao sul e litoral do país.
Tendo como base algumas perspectivas fundamentais para o
desenvolvimento do conhecimento histórico, enquanto análise das relações
políticas, sociais e culturais a partir de espaço de tempo e lugar determinado. Uma
figura que nos ajuda a descodificar essa criação e representação é o Historiador
Roger Chartier, a parte do imaginário temos como referência as obras do filósofo e
historiador Bronislaw Baczko, e da historiadora Sandra Jatahy Pesavento. Para
compreensão um pouco mais a fundo no conceito de etnogênese, as obras de Miguel
Bartolemé Guillaume Boccara. Portanto, temos assim algumas bases para
conseguirmos entender como a percepção de uma imagem eurocêntrica foi
construída desses povos indígenas presentes na região das Minas e das Gerais
durante a segunda metade do século XIX, para assim podermos entender e essa
representação continua se perpassando até os dias de hoje, formando assim, uma
relação de pré-conceitos já estabelecidos e resistência dos povos indígenas, visto
que nem sempre a historiografia se preocupou em utilizar dessa combinação como
objeto de estudo e análise.
Quando passa pela região hoje marcada como Triângulo Mineiro o viajante
nos apresenta a seguinte visão,
Não se imagine que toda esta população seja composta de homens de côr.
Na verdade, no caminho de S. Paulo a Goyaz atravessei aldeias de índios
mestiços dependentes do território de Araxá; mas a maior parte dos
habitantes •deste julgado é de brancos. (SAINT’HILARIE,1975: 205)
Podemos por este trecho identificar uma parcela da população e como ela se
formava na sociabilização de várias etnias. Quando os viajantes nos apresentam
suas ideias, uma leitura crítica tem de ser feita e é nesse instante que casamos a
história dos viajantes com a história oficial, causando assim o que chamamos de
choque de cultura. A partir das descrições de Saint’Hilarie podemos perceber como
o estereótipo indígena é marcado como inferior ao europeu, não que o viajante faça
essa comparação, mas entendendo o padrão de beleza europeu da época, é visível a
presença de um julgamento pelo desconhecido formado pelas índias e índios
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Durante a produção acadêmica existe uma possibilidade de se orientar por
diversos caminhos, o destino que seguimos é de como essa construção da imagem e
representação se formou durante anos e continua se perpassando baseada em uma
historiografia básica voltada para o ensino eurocêntrico seguindo seus métodos e
análises, causando assim uma desvalorização dos nativos presentes no Sertão da
Farinha Podre.
Desta forma, acredito que podemos avistar um novo horizonte baseado em
um novo método de análise dessas fontes, ou melhor dizendo, desses relatos que
nos são apresentados e já discutidos exaustivamente podemos encontrar muitas
características diferentes do que já vemos. Quando entendemos que os povos
indígenas foram criados culturalmente diferentes dos povos europeus, podemos
entender o choque causado no encontro dessas duas culturas. Um estranhamento
nas vestes, no trabalho, na religião são os pontos mais gritantes entre as duas
culturas.
Sendo assim, podemos concluir que as influências europeias são tão
marcantes em nosso país, que até hoje reproduzimos falas marcadas por
preconceitos e xenofobia com nossos próprios povos nativos, classificando-os como
preguiçosos, “vermelhos”, incapazes, entre outros pelo simples fato de os princípios
orais serem outros.
65 VI EPEGH
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
SAINT-HILARIE, Auguste de. Viagem às nascentes do Rio São Francisco e pela
província de Goyas. Trad. Clado Ribeiro de Lessa. 2 vols. São Paulo; Companhia Editora
Nacional, 1937. (1847).
CARNEIRO DA CUNHA, Manuela (org). História dos Índios no Brasil. São Paulo:
Cia das Letras/Fapesp, 1992
. Sobre as penas do gavião mítico: história e cultura entre os Kayapó. Tellus, n.22,
p.133-154, jun. 2012
67 VI EPEGH
A dialética em Hegel e Marx
Deve-se colocar uma ordem nessa dominação das ideias, demonstrar uma
conexão mística entre as ideias sucessivamente dominantes... (o que é
possível porque essas ideias, por meio de sua base empírica, estão
realmente em conexão entre si e porque, concebidas como meras ideias, se
tornam autodiferenciações, diferenças estabelecidas pelo pensamento.
(ENGELS & MARX, 2007, p. 50.)
Embora na referida edição deste texto esteja indicado que Marx pensou em
usar a palavra “lógica” ao invés de místico, o sentido se sustenta como algo
substancialmente fora de sua “base empírica”, cujo estabelecimento se dá “pelo
pensamento”. E nesse sentido é possível entender o “envoltório místico “de Hegel
como aquilo que tem o seu fundamento no “pensamento”, desconectando-se da
materialidade, em relação a qual as ideias dominantes não são, para Marx, “mais
do que a expressão ideal das relações materiais dominantes” (ENGELS & MARX,
2007, p. 47).
Podemos assim estabelecer uma primeira diferença entre os autores quanto
ao modo como relacionam o Ideal, o espiritual, no sentido daquilo que não é
material, com a materialidade: Se em Hegel a história não é senão a “obra de Deus”,
uma teodiceia , no sentido de um progressivo caminho da universalidade por meio
das particularidades, em Marx ela aparece como “nada mais do que o suceder-se
de gerações distintas, em que cada uma delas explora os materiais, os capitais e as
forças de produção a ela transmitidas pelas gerações anteriores”. No primeiro, o
Particular está a serviço do Universal, os acontecimentos empíricos se concatenam
por meio do místico, fora da materialidade, ao passo que no segundo, a história
69 VI EPEGH
apresenta-se na sua materialidade, isto é, os fatos se concatenam por meio de uma
materialidade que lhes sustenta. Assim, em suma, há um movimento em Hegel do
ideal para o material, de cima para baixo, e em Marx o oposto, de baixo para cima.
A partir dessa primeira constatação, tentarei compreender primeiramente
como Hegel apresenta a dialética no texto A Razão na História, para depois tentar
localizar nos textos de Marx como esse se apropriou da dialética idealista
hegeliana, para que possamos apontar algumas diferenças e semelhanças entre as
dialéticas no final de nosso pequeno estudo.
71 VI EPEGH
(HEGEL,1995, p. 78.). O modo pelo “qual um encontra no outro a sua satisfação” é
por meio de uma igualdade jurídica, na qual todos são efetivamente iguais e livres.
Isso acontece, para Hegel, na emergência da sociedade burguesa.
Diante desta sumária exposição sobre a dialética idealista, podemos
perceber que ela se caracteriza primeiramente como uma oposição contraditória,
dentro da qual o aspecto positivo predomina, isto é, o Universal sobre o particular.
A natureza idealista desta dialética consiste, como vimos a partir de Marx, no seu
elemento místico, aquilo que não se fundamenta na materialidade. No caso, a
própria ideia de um “sujeito autodeterminante” é o cerne disso, o que encontramos
na definição de Espírito de Hegel, o sujeito da História Universal, que é a história
de como no fim das coisas o universal predomina sobre o particular, o positivo sobre
o negativo.
Agora, buscaremos compreender o modo como Marx se serve da dialética
para analisar o capitalismo para que possamos perceber semelhanças e diferenças
para com a dialética idealista hegeliana.
75 VI EPEGH
A expressão de "feminilidade" na obra "Guitarrista e duas
ARTISTAS
São inúmeros os desafios no estudo de uma história da arte que se
desenvolve a partir de uma personagem feminina dentro de um universo onde,
mesmo na modernidade, os espaços destinados às mulheres eram restritos ou
determinados. Esses espaços são descritos pela historiadora Griselda Pollock, em
relação ao século XIX europeu - período de deflagração do modernismo a partir do
movimento impressionista -, em seu livro “Vision and Difference: Femininity,
Feminism and the Histories of Art”, e são esclarecedores sobre a estrutura na qual
estava pautada a produção artística, que permaneceu influente nas primeiras
décadas do século XX, na qual floresceu a produção de Marie Laurencin:
77 VI EPEGH
discursos e práticas da história da arte em si mesma. Pollock desenvolve no
decorrer do livro que, no estudo das mulheres pintoras, não é possível ignorar o
fato de que os terrenos da prática artística e da história da arte são estruturados
dentro e fora de relações de poder baseadas no gênero. Sendo assim, é comum a
proposição de uma nova teoria de arte na historiografia voltada para pensar as
mulheres artistas, justamente pelo entendimento de que a maneira tradicional de
se fazer história da arte foi estruturada conceitualmente a partir de visões sobre a
arte masculina genializada. “To discover the history of women and art is in part to
account for the way art history is written … the way women artists are recorded is
crucial to the definition of art and artist in our society.” (Parker; Pollock, 1981)
Em diálogo com Linda Nochlin, Pollock aponta para sua proposta de uma
mudança de paradigma, que se daria a partir da insuficiência do modo padrão de
explicação para o estudo das mulheres dentro da arte. Pollock, ao comentar a
concepção de Nochlin, alerta para a necessidade da criação de um novo método de
análise textual, além de uma crítica à noção do belo e à genialização do autor,
corroborando argumentos que marginalizam as mulheres dentro da arte - o que
diferencia arte feminina e masculina a partir da menor capacidade artística do
primeiro sob o segundo, desconsiderando-se a rede complexa de fatores contextuais
determinantes provocadores dessas diferenças.
Tamar Garb, em uma reflexão sobre a emancipação da mulher enquanto
artista no século XIX, coloca a inexistência da genialidade feminina enquanto
sistematicamente limitada pela estrutura social: “Genius cannot develop without
culture; it is high culture which the State refuses to women and which it owes
them.” (GARB, 1994: p.175).
No questionamento sobre a influência do gênero na produção artística, Linda
Nochlin em “Porque não houve grandes mulheres artistas?” refuta construções de
arte sectarizadas também em questões temáticas: “De qualquer forma, a mera
escolha por determinado tema, ou a restrição por determinados assuntos, não pode
equiparar-se a um estilo, muito menos a um estilo feminino quintessencial.”
(NOCHLIN, 1971: p.6). Nochlin ainda destaca uma contradição na atribuição de
um rótulo de arte feminina:
Além da limitação que esse rótulo impõe às mulheres, Nochlin aponta outra
contradição no sentido de que, se esta arte também fosse propriamente e
exclusivamente feminina, obras de artistas homens - ela fala especificamente sobre
Jan Steen, Chardin, Renoir e Monet - não abordariam temas como as crianças e a
vida doméstica. Ao reavaliar mitos e colocar novas questões a respeito dos grandes
pintores, a autora acredita que seria possível compreender essas divergências de
representatividade dentro da arte, pensando, “por exemplo, de quais classes sociais
era proveniente a maior parte dos artistas em diferentes momentos históricos,
quais castas e subgrupos.” (NOCHLIN, 1971: p.17). As questões que a autora
desenvolve no texto levam à conclusão que “a situação total do fazer arte, tanto no
desenvolvimento do artista como na natureza e qualidade do trabalho como arte,
acontece em um contexto social, são elementos integrais dessa estrutura social e
são mediados e determinados por instituições sociais específicas e definidas”
(NOCHLIN, 1971: p.20). Assim, ao pensar as mulheres na arte, é necessário
compreender tanto as condições de crescimento da artista, quanto às relações
estabelecidas entre sua produção e o ambiente artístico ao seu redor, entendendo
a crítica de arte, seus relacionamentos pessoais e profissionais enquanto fatores
que afetam sua produção.
Em relação à modernidade e à desigualdade de gênero que vai além da
categorização da arte enquanto feminina ou masculina, Mary Jo-Bonnet diz: “Une
chose est sûre, en tout cas: la modernité réactive les oppositions de sexe et de genre,
au lieu de les résorber comme on aurait pu s'y attendre avec l'évolution du statut
entre les sexes tendant vers l'égalité.” (BONNET, 2006: p.28).
A visão da autora é a de que, apesar de uma esperada tendência à
equalização de gênero na modernidade, ocorre o processo inverso em relação ao
lugar em que as mulheres ocupam. A escritora ainda fala sobre a aceitação da
mulher na modernidade, e diz, sobre os espaços destinados ao feminino: “C'est par
le biais du couple, et du mariage, c'est- à-dire des liens avec des hommes d'avant-
garde que les femmes sont acceptées sur les territoires du masculin” (BONNET,
79 VI EPEGH
2006: p.45). Nesse sentido, é possível observar uma continuidade tanto no que diz
respeito ao lugar da mulher dentro da sociedade, quanto na vida artística.
Pautando-se nessa discussão, ao tratar de uma personagem caracterizada e
diferenciada pela sua estética “feminina”, é necessário entender os atributos do
feminino no período, e, além disso, a formação da artista enquanto ser social
inserido em um contexto em transformação, mas que corrobora concepções do
passado sobre o lugar da mulher, principalmente dentro da arte.
2. DA ARTISTA
Marie Laurencin, nascida no ano de 1883 em Paris e vinda de uma família
não muito abastada, iniciou sua carreira artística como pintora de porcelana em
Sèvres, e em seguida estudou artes na L'Académie Humbert onde se especializou
na pintura à óleo e conheceu o pintor Georges Braque.
A partir de sua relação com o pintor, a artista foi inserida no grupo de
artistas que frequentavam o Bateau Lavoir, estúdio de Pablo Picasso em
Montmartre, e sede da construção de uma estética que seria entendida,
posteriormente, como cubismo. Laurencin, apesar de desenvolver uma estética
inteiramente própria, foi - e é frequentemente - relacionada ao cubismo enquanto
uma das únicas mulheres inseridas no movimento, e seu papel dentro dele foi
canonizado a partir da construção de paradigmas que, a partir de discursos
contemporâneos e historiográficos, se consolidaram enquanto indissociáveis à
figura da artista.
O ano de 1907 foi marcante para a carreira e vida de Laurencin, que foi
introduzida no cenário da pintura a partir de sua participação no Salão dos
Independentes, e posteriormente no Salão de Outono. No mesmo ano, a artista
conhece Guillaume Apollinaire, com quem inicia seu caso amoroso que duraria 7
anos, cujo relacionamento rendeu inúmeras declarações amorosas na produção do
poeta.
A relação de Laurencin com o poeta, assim como com outros artistas do
período, colocou sobre ela o papel de inspiração da ação vanguardista, no sentido
de atribuir à sua imagem a figura de musa. Essa visão é eternizada a partir de um
pintor da época, Henri Rousseau, que em seu quadro “La muse inspirant le poete”,
81 VI EPEGH
em Paris, que atingiu também o grupo dos cubistas, levando à separação de alguns
de seus membros e à morte de Apollinaire.
Em sua volta a Paris, Laurencin foi responsável, além de seus quadros, pela
produção de uma série de ilustrações - a mais conhecida para a edição de 1930 de
“Alice no país das Maravilhas” de Lewis Caroll, considerada uma de suas grandes
obras de arte. Também, pelos cenários dos “Les Biches” da companhia Ballets
Russes de 1924 sob a direção de Serge Diaghilev, e ainda pela Comédie Française
de 1928.
Além disso, compõe a “Société des femmes artistes modernes” (FAM) ao lado
de artistas como Suzanne Valadon e Suzanne Duchamp, associação que foi criada
em 1931 por Marie-Anne Camax-Zoegger para a exposição de arte exclusivamente
feminina em salões anuais, que duraram até 1938. Neste meio tempo, Laurencin
pintou o quadro fonte desse trabalho. A criação da associação, segundo Mary-jo
Bonnet, contribuiu para juntar as forças entre as artistas mulheres do período para
mostrarem seu trabalho ao público:
“Dans le climat de double morale esthétique qui régnait alors, c’est un tour
de force d’avoir réussi à montrer ces œuvres au public, en constituant une
sorte de force collective qui atteste d’une réalité, d’une vitalité et d’un
regard autre qui a également droit de cité” (BONNET, 2006: p.45)
83 VI EPEGH
da artista já estava consolidada no país, como veremos a partir de discursos
importados de sua terra natal.
85 VI EPEGH
Pensamento e Arte (SP) escreve uma matéria sobre Marie Laurencin em
decorrência de sua morte, que evidencia essa visão sobre ela: “Culta, viajada, tendo
participado dos debates não só dos cubistas como dos abstracionistas, permanece
sempre ela mesma - encantadoramente feminina sempre!”.
O estigma da feminilidade que permeia toda a obra e vida de Laurencin foi
produzido a partir de discursos fundamentados por um modo de visão legitimado,
uma vez que estes são historicamente atribuídos ao masculino. É fundamental
perceber que eles evidenciam, em uma maior medida, o pensamento e as
características dos críticos, teóricos e literários homens do período, e em menor
medida as intenções da artista.
Atribuir a esses discursos um caráter historiográfico, como já vimos com
Pollock e Nochlin, é pensar de maneira simplista uma rede complexa de intenções
que compreendem o contexto e a arte de Laurencin, ao mesmo tempo que tentar
encaixá-la dentro do cânone modernista tradicional é reforçar as disparidades
entre a arte masculina e a arte feminina, uma vez que os padrões estéticos
valorizados foram produzidos por homens.
87 VI EPEGH
As personagens da pintura - assim como o fundo - tomam forma a partir das
pinceladas evidentes, sem um contorno marcado e com camadas de cores que se
sobrepõem e se espalham como manchas que compõem o campo pictórico. Trata-se
de uma cena ao ar livre, onde, além da paisagem e das personagens, pode-se
observar um elemento decorativo: um vaso branco à esquerda da guitarrista que
se encontra sombreado em cinza, cor que se estende até a ponta esquerda do quadro
e em sentido vertical - onde, no canto superior, se transforma em preto,
contrastando com a paisagem colorida e geométrica à direita do quadro. Na Revista
“O Cruzeiro” em 1936 - dois anos após a pintura do quadro, e antes de sua doação
ao Masp - em reportagem sobre a residência do casal Reis Júnior e Béatrix Reynal,
são descritas características da pintura de Laurencin que podem ser extraídas da
obra “Guitarrista e duas Figuras Femininas”, apresentada em seu nome em
francês - “Guitaristes Espagnoles”: “A exótica Marie Laurencin, que não se filia a
escola nenhuma, revela com “Guitaristes Espagnoles” o encanto do seu colorido, a
suavidade harmoniosa das suas tonalidades claras.”.
Além da composição formal, o tema da reunião musical ao ar livre presente
em “Guitarrista e Duas Figuras Femininas” pode ser relacionado com obras de
grandes pintores como Concerto campestre (1510) de Giorgione. Esse diálogo
demonstra o conhecimento que Laurencin tinha em relação à arte, e o seu interesse
em recriar esses temas à sua maneira - dentro de uma estética própria e resistente
em um ambiente onde o valorizado se aproximava do moderno, que remetia ao
masculino.
4. CONCLUSÃO
A expressão da “feminilidade”, colocada entre aspas pela discussão de gênero
e integrada à Laurencin pela construção histórica, no quadro “Guitarrista e Duas
Figuras Femininas”, se deu a partir do desenvolvimento da personalidade da
artista - que, em meio ao socialmente estimado, se tornou singular. A valorização
do compreendido por “feminino” se daria longe da consagração modernista da arte
masculina, o que não fez com que a artista mudasse sua perspectiva sobre a pintura
e sobre a vida.
89 VI EPEGH
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
APOLLINAIRE, G. “Les Peintres cubistes: Méditations esthétiques.” Collection
Savoir, 1980(1965), Hermann, 293 rue Lecourbe, 75015 Paris.
BONNET, M.. “Les Femmes artistes dans les avant-gardes”, Odile Jacob, 2006.
Carioca (RJ) - 1935 a 1954 - Ano 1942, Edição 00376, História de uma grande pintora
Maria Laurencin: Disponível: http://memoria.bn.br Acesso em: 25 out. 2018
LAURENCIN, M. Le carnet des nuits. Genève: P. Cailler, 1956. 98p., il. (Collection
ecrits et documents de peintres, 1).
__________. “Guitarrista e duas figuras femininas”, 1934, Óleo sobre tela, 50.5x
61.5cm
NOCHLIN, L. Por que não houve grandes mulheres artistas? (1971), trad. Juliana
PARKER; POLLOCK. Old Mistresses; Women, Art and Ideology, London, Routledge &
Kegan Paul, 1981, reprinted Pandora Press, 1986, 3.
POLLOCK, G. Vision and Difference: Femininity, Feminism and the Histories of Art,
by Griselda Pollock. London: Rutledge, 1988 Vacaro, São Paulo: Ed. Aurora, 2016.
Marie Laurencin, “Guitarrista e duas figuras femininas”, 1934, Óleo sobre tela,
50.5x 61.5cm.
91 VI EPEGH
A figura de Napoleão Bonaparte como indivíduo histórico-
RESUMO: O filósofo Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770 – 1831) possui uma das
mais notáveis obras filosóficas já escrita na história do Ocidente, despertando o
interesse de grandes estudiosos e críticos durante o século XIX. O presente artigo
busca estabelecer uma crítica ontológica, a partir do instrumental analítico
apresentado por György Lukács (1885-1971), em sua Ontologia, da visão hegeliana
sobre função social de Napoleão Bonaparte (1769-1821) em sua política de
expansão econômica, social e ideológica. Desse modo, objetivamos apreender,
primeiramente, qual o lugar ocupado pelo conceito de indivíduo histórico-
universal, que são, para o filósofo, indivíduos que potencializam tendências sociais
presentes no processo histórico e que em cujos fins particulares contém a vontade
do espírito universal. Em segundo lugar, como a figura de Napoleão é edificada
junto a esse complexo de conceitos filosóficos.
PALAVRAS-CHAVE: Filosofia da História de Hegel; Ontologia do ser social;
Indivíduo histórico-universal; Napoleão Bonaparte.
95 VI EPEGH
ela é um processo de mudanças que interfere cotidianamente na vida dos
indivíduos.
Há também uma grande transformação qualitativa quanto ao modo em que
as guerras eram travadas, considerando que as guerras absolutistas eram
marcadas por conflitos entre pequenos exércitos mercenários. Com a Revolução
Francesa, a República Francesa foi obrigada a criar exércitos de massa para se
defender das ofensivas contrarrevolucionárias. Para tal, fora necessário a criação
de propagandas.
Lukács mostra então que o impacto de todas essas transformações reside no
fato de que se criaram possibilidades concretas para que os homens apreendessem
a si mesmos como seres historicamente determinados. O filósofo húngaro conclui,
portanto, que após a Revolução Francesa surgiu a necessidade de estabelecer uma
concepção que demonstrasse a necessidade histórica da Revolução, que, nas
palavras do autor, “apresentasse provas de que está fora o apogeu de um
desenvolvimento histórico longo e gradual, e não um súbito obscurecimento da
consciência da humanidade, uma cataclísmica ‘catástrofe natural’ da história da
humanidade” (LUKÁCS, 2011: 43). Ocorre, assim, uma mudança imprescindível
na visão do progresso em relação ao Iluminismo. Segundo Lukács:
É nessa direção que Hegel indica que se se deve distinguir o fato de que sei
com o que eu sei, na autoconsciência esse procedimento não é necessário, pois, o
espírito conhece a si mesmo, ele é o juiz de sua própria natureza ao mesmo tempo
que ao voltar para si, ele se reproduz. Portanto, “pode-se dizer que história
universal é a representação do espírito no esforço de elaborar o conhecimento de
que ele é em si mesmo” (HEGEL, 2008: 24). Da mesma forma que a semente possui
em si, inicialmente, todas as características da árvore, como sabores e as formas,
de modo que processualmente os desenvolve, os primeiros traços do espírito contém
97 VI EPEGH
toda a sua história. É por isso que Hegel afirma que “a história universal é o
progresso na consciência da liberdade” (HEGEL, 2008: 25). Hegel mostra que,
enquanto a liberdade é um conceito interior, os meios de sua realização são
exteriores. Nesse sentido, ele se volta para as ações dos homens, suas necessidades,
paixões, interesses, caráter e talentos como força para realização de interesses.
99 VI EPEGH
refletir sobre uma nova tese de Hegel sobre os heróis: a astúcia da razão. Nessa
direção, Hegel afirma que:
101 VI EPEGH
porque possuem em sua essência, em seus anseios, laços estreitos com a tarefa
histórica que eles têm de realizar.
So far we have seen that in all imitations of the French only half the
example is ever taken up. The other half, the noblest part, is left aside:
liberty of the people; popular participation in elections; governmental
decisions taken in the full view of the people; or at least public exposition,
for the insight of the people, of all the reasons behind such measures.
(HEGEL, 1984: 151)
Portanto, podemos afirmar, novamente, que Hegel não está preocupado com
o indivíduo específico, mas sim com o princípio histórico-universal que busca se
realizar em tal indivíduo e em um momento particular do tempo, usando-o como
instrumento para seus próprios fins. Mas o mérito do grande homem, do indivíduo
histórico- universal é justamente expressar a vontade absoluta, de modo que todos
reúnem em torno de si a sua bandeira. Foi assim que Teseu fundou o Estado de
Atenas e é assim que Hegel enxerga o expansionismo Napoleônico.
De fato, vemos que essas esperanças que Hegel nutria não eram infundadas.
Ao adentrar na questão da Alemanha durante a época de Napoleão, observamos
que não havia nenhuma tendência revolucionária, apesar de algumas tensões
sociais. No decorrer da Revolução Francesa, os prussianos observaram com
interesse as transformações na França, no entanto, ao serem invadidos, saqueados
e reorganizada, as opiniões ficaram mais divididas. É bastante claro, porém, que
após todas essas tensões a Alemanha surgiu sob uma nova forma e o Sacro Império
Romano sucumbiu definitivamente. Jacques Droz, historiador francês e
especialista na história germânica, ressalta que um ponto importante foi que com
a derrota dos Aliados pelas tropas napoleônicas, fora assinado o Tratado de
103 VI EPEGH
Lunéville (1801). O tratado buscava realizar uma racionalização dos territórios e
uma secularização dos bens eclesiásticos. Observamos, assim, que a expansão
Napoleônica é impactante justamente porque ela recebe apoio da maior parte da
população alemã, bem como da intelectualidade. Isso se dá, como vimos, pela
situação particular da Alemanha no momento da invasão e do papel da imprensa.
Podemos, com isso, melhor entender a atribuição de indivíduo histórico-universal
empregada por Hegel ao trabalhar a figura de Bonaparte. Napoleão é o homem
capaz de catalisar as tendências sociais colocadas no processo histórico e, através
de suas ações, realizar o desígnio do espírito universal. Napoleão tornava- se,
assim, o grande herói romântico do período. O historiador Eric J. Hobsbawm
afirma que em determinada época nenhuma sala da classe média estava completa
sem que houvesse a presença de seu busto, de modo que ele busca explicar uma
construção de um mito em torno da figura do Imperador.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A presente pesquisa buscou, portanto, a determinação histórica do
pensamento de Hegel, de modo a revelar as conexões e desconexões de sua filosofia
com a realidade. Foi imprescindível, dessa forma, o estudo da chamada via
prussiana de objetivação de capital, na medida que as conclusões das análises
proporcionaram a apreensão das raízes do idealismo alemão, cujo maior expoente
foi nada menos que Hegel. Vimos também a ascensão de uma consciência histórica,
em solo alemão, que palpita na literatura, na filosofia e nos meios intelectuais
muito devido as condições particulares alemãs. Adentramos, então, na obra
Filosofia da História, situando-a no conjunto filosófico do autor e desenvolvendo
seus preceitos filosóficos. A apreensão do lugar ocupado pelo conceito de indivíduo
histórico-universal foi de extrema importância para a conclusão da pesquisa, pois,
vimos que Hegel enxergava Napoleão Bonaparte tal. Napoleão surge em sua obra,
portanto, como um indivíduo capaz de catalisar as tendências sociais que estão
presentes no processo histórico. Foi importante, neste ponto, situarmos o
pensamento de Hegel como pertencente a uma tendência histórica existente em
seu presente, de modo que podemos afirmar a hipótese de que ele não foi o único a
enxergar em Napoleão uma grandiosidade ímpar, mas foi o único, entretanto, que
105 VI EPEGH
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FONTES
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. A fenomenologia do espírito. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2014.
OBRAS
BONAPARTE, Napoleão. Sobre a guerra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2016.
HOBSBAWM, Eric J. A era das revoluções: 1789-1848. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
2014.
_________. Para Uma Ontologia Do Ser Social II. São Paulo, Boitempo, 2013.
__________. Prolegômenos para uma ontologia do ser social. São Paulo, Boitempo,
2010; The Young Hegel. Pontypool, UK, Merlin Press, 1975.
MARX, Karl. Crítica da filosofia do direito de Hegel. São Paulo: Boitempo, 2013.
RAGO FILHO, Antonio. A Crítica ao Idealismo: política e ideologia, in: NETTO, José
Paulo (Org.). Curso Livre Marx-Engels. São Paulo, Boitempo, 2015.
107 VI EPEGH
A memória do Regime Militar do MAC-USP: "Entre Atos
2Memória se constitui como uma construção cultural livre e a história possui um método científico
resultado de uma operação intelectual, de acordo com Marcos Napolitano (2015). Contudo nenhuma
das duas representam de fato a “verdade”, porém, a historiografia possui maior arcabouço teórico.
109 VI EPEGH
firmou como crítica àquele governo e posicionou a sociedade como vítima de todas
as atrocidades cometidas pelos militares. Essa memória construída teve bases de
legitimação na mídia, no campo artístico, em universidades e instituições políticas
ideológicas, também em museus. A pesquisa em questão tem como objetivo
investigar a memória hegemônica no último item: o espaço de museu, em
específico, museu de arte.
O museu escolhido para a investigação foi o Museu de Arte Contemporânea
da Universidade de São Paulo (MAC-USP) que elaborou em 2010-2011 uma série
de exposições de arte sobre o período do regime militar: “Entre Atos 1964/68” e
“Um dia terá que ter terminado 1969/74”. A realização dessas exposições foi
estimulada por uma iniciativa da Fundação Bienal de São Paulo com o lançamento
da 29ª Bienal de Arte de São Paulo, que trazia consigo a temática “Arte e Política”.
A Bienal criou uma rede de colaboração entre instituições culturais que
mobilizassem atividades relacionadas à temática proposta. Também parte-se da
hipótese que com o avanço revisionista ideológico e historiográfico sobre o regime
militar somados ao fato de que no ano de 2010 tramitava no Congresso Nacional a
lei que colocaria em voga a Comissão Nacional da Verdade. Percebe-se que a
relação da memória com o regime militar estava a todo vapor no período das
exposições.
De maneira que, a temática que envolve “arte e política” em um sentido
amplo, dialoga muito com o histórico do museu estudado. O MAC foi fundado em
1963, um ano anterior ao golpe, quando a coleção de Ciccillio Matarazzo e Yolanda
Penteado doaram a coleção do antigo Museu de Arte Moderna à Universidade de
São Paulo. A sua primeira sede se localizou no terceiro andar do prédio da Bienal
de São Paulo, tendo como seu primeiro diretor, o professor de História da Arte
Walter Zanini3, que se configurou como um componente de peso na história do
3Walter Zanini foi professor, historiador, crítico de arte e curador, e também ocupou o cargo de
primeiro diretor do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo. Sua gestão
marcou a história do museu por contribuir para abertura de um diálogo entre as obras modernas
presentes no acervo com as obras compostas por novas mídias. Sua política museológica exercida
no MAC favoreceu tal junção de acervos e possibilitou ao museu a adesão dessas obras de caráter
111 VI EPEGH
isso, foram utilizadas as plantas expográficas, fotografias, folders, textos da
diretoria, textos curatoriais e listas de obras. Contudo, faz-se necessário pontuar
que este artigo trata somente da primeira etapa da metodologia de pesquisa, que
consiste em desvendar o discurso curatorial, para depois ser conferido a base de
leituras sobre história, memória e museu. Contudo, até o momento da redação
deste artigo, pode-se ter uma ideia da memória construída nas exposições.
A exposição “Entre Atos 1964/68” foi realizada na sede da Cidade
Universitária da Universidade de São Paulo do dia 25 de janeiro até o dia 2 de
fevereiro de 2011. Essa mostra recortou os quatro anos iniciais do regime militar e
contou com artistas como Ivan Serpa, Marcelo Nitsche, Waldemar Cordeiro,
Antonio Roberto Aguilar, Amélia Toledo, Mira Schendel e Claudio Tozzi. Sua
curadoria foi dividida em três partes: “Figura”, “Gesto” e “Plano”. A exposição era
composta de quatro galerias de tamanhos diferenciados, sendo que as duas do
início do prédio eram da repartição “Figura” e as duas outras no fundo da exposição
sendo para “Plano” e “Gesto”.
As nomenclaturas que guiam o espaço expositivo e também a curadoria de
obras, de acordo com o texto curatorial apresentado tanto na exposição como no
folder, dizem a respeito de movimentos atrelados a correntes artísticas. Em um
recorte de 64 até 68, onde se encontra a transição de uma arte abstrata e
neoconcreta para o retorno de uma arte figurativa (JAREMTCHUK, 1999, p.38).
Porém, não seria uma arte figurativa qualquer, de acordo com Paulo Reis, mas sim
uma figuração muito influenciada pelas vanguardas internacionais que
realizavam uma figuração artística mais engajada e atrelada ao realismo social
(REIS, 2005, p.80). Então, percebeu-se que nesta exposição o movimento em
relação às obras estavam restritas a esse momento de transição artística possível
de se observar no acervo do museu. Em um movimento contrário à linha de
acontecimentos das correntes artísticas, as curadoras do MAC iniciaram a
exposição com as obras figurativas no seu início. Onde era possível encontrar obras
com muita temática de violência e de referências contextuais.
113 VI EPEGH
exposições realizadas no MAC no período recortado pela exposição, que contava
com mostras do “Di Cavalcanti”, “Evandro Carlos Jardim”, “Oficina
Pernambucana” e “Cubistas e Futuristas”. A segunda vitrine obteve o enfoque em
fotografias dos eventos promovidos pelo museu, com a Jovem Gravura Nacional e
Jovem Arte Contemporânea. A terceira vitrine, foram expostos os catálogos desses
eventos do museu, contando também com o Jovem Desenho Nacional. Acredita-se
que o posicionamento desse material na repartição de “Plano”, está muito atrelado
com a sua produção exposta que caminhou mais na vertente do neoconcreto. Pois,
o neoconcretismo não rompia com a forma artística de maneira abrupta, e isso era
visto nessas edições dos eventos promovidos pelo MAC. A radicalização da forma
artística não era tão presente nas edições iniciais desses eventos, de acordo com
Daria Gorete Jaremtchuk (1999, P. 44).
A repartição de “Gesto” o movimento artístico destacado foi o abstracionismo
em principalmente no suporte de papel, contudo também se encontrava madeira.
As obras estavam dispostas com molduras e vidros, também foi possível observar
que a cor não se fez muito presente nesta repartição. “O poço” (1967/1969) de
Amélia Toledo foi o objeto artístico escolhido para ficar posicionado no fundo da
galeria com um enfoque de luz. Contudo, apesar do destaque dado a obra pela
curadoria, outro ponto chamou a atenção na análise realizada pela pesquisa, que
foi a natureza das obras que compunham as paredes, predominantemente de papel
e cores frias, a autoria das obras em sua grande maioria -16 artistas de 20 em um
total – foram contemplados com algum prêmio aquisição do museu. O que
possivelmente indicava uma curadoria com a pretensão de destacar o seu acervo
diverso e que o MAC abraçava diversas formas artísticas. Em “Gesto” o nome dado
a repartição não se faz uma alusão direta a um movimento artístico bem definido
como visto em “Figuras” e “Plano”, pode-se refletir que este nome pode estar
atrelado aos gestos abstratos presentes nas obras ou também, uma referência a
Néstor Garcia Canclini (2015) que faz referência ao gesto artístico de realizar
rupturas, com a finalidade de quebrar com padrões ou modos convencionais, porém
115 VI EPEGH
uma ideia que o período inicial do regime militar foi sem violência, rompe-se com
a chamada “ditabranda”5 que caracteriza os primeiros anos do governo militar e
que compõe a narrativa da memória hegemônica. Logo no início da exposição, é
possível observar que obras em sua interpretação demonstram o contrário. A
memória hegemônica foi construída para creditar toda violência no pós-AI-5.
Contudo, ao destacar formas de violência no discurso curatorial, colaborou-se
também para uma narrativa da “sociedade vítima”, não inserindo no discurso uma
crítica a participação de setores sociais na instauração do regime autoritário, ponto
que contribui para um endossamento da memória hegemônica. Então percebe-se
que a memória da exposição em relação ao período não se fez totalmente em
alinhamento de uma legitimação da memória hegemônica, apesar de certos
conteúdos se relacionarem com a mesma. Em relação a memória construída do
MAC, a narrativa curatorial compõe um percurso que condiz com a fase que o
museu se encontrava: seu início. A aparição tímida do histórico do museu na
exposição revela muito de um museu que estava começando a se estruturar.
Também, a exposição de um acervo composto por formas ditas mais tradicionais,
possibilitam a interpretação de uma instituição capaz de abraçar muitas formas
artísticas.
A segunda exposição da série “Um dia terá que ter terminado 1969/74”
ocorreu no prédio da Fundação Bienal de São Paulo no Ibirapuera do dia 2 de
outubro de 2010 até o dia 7 de agosto de 2011. A mostra recortou os cinco anos após
a instauração do Ato Institucional nº 5 (AI-5), o que demarca o auge do governo de
exceção. Alguns artistas presentes nessa exposição eram: Artur Barrio, Mira
Schendel, Carlos Zílio, Sérgio Ferro, Paulo Herkenhoff, Regina Silveira e
Waldemar Cordeiro. Essa exposição foi realizada por um tempo em concomitância
com a 29ª Bienal de São Paulo, que ocorria no mesmo prédio, contudo o MAC se
instalava no terceiro andar. A 29ª Bienal ocorreu do dia 25 de setembro a 12 de
5Termo utilizado por Marcos Napolitano em “1964: História do Regime Militar Brasileiro”.
NAPOLITANO, Marcos. 1964. A história do regime militar brasileiro. São Paulo: Contexto, 2014.
117 VI EPEGH
(1973), “Fotografia experimental polonesa” (1974), “Prospectiva 74” (1974) entre
outras exposições.6
O que pode-se inferir da memória construída nesta parte inicial da exposição
sobre o regime militar, recaiu de certa forma na obra de Ferro, que abriu a
possibilidade de duas interpretações sobre a obra, a posição e a escolha curatorial
da mesma. A obra em seu conteúdo realiza uma alusão ao assassinato de Carlos
Marighella que demarcou a desestruturação da guerrilha urbana e também a
repressão em 1969 contra os guerrilheiros (NAPOLITANO, 2017, p. 121). Assim, a
obra demarca a construção da memória do regime como um período violento e
repressivo. Também, traz à tona na exposição que inseridos neste recorte da
ditadura, os atores envolvidos neste período se destacam os guerrilheiros e os
agentes do governo em luta contra os mesmos.
Em relação a memória construída do MAC no percurso curatorial, tanto a
diversidade de suportes como as vitrines da primeira galeria, denunciam um
destaque institucional no período. Pois, a disposição das obras que compunham
uma parede com uma diversidade de suportes uma possível explicação para este
critério de escolha se baseia em expor a diversidade do acervo do MAC, uma vez
que a maioria das obras nesta parte da exposição foi composta por prêmios
aquisição de alguma Jovem Arte Contemporânea (22 obras presentes – 20 delas
eram prêmios aquisição). As vitrines, por sua vez, indicam para a memória que o
MAC obteve um papel ativo, mesmo inserido no contexto mostrado pela obra de
Ferro.
A segunda galeria expositiva tomava um espaço maior e também continha
vitrines posicionadas no centro da mesma. Observou-se que o suporte
predominante nesta galeria foi o papel, tanto nas paredes como nas vitrines.
Contudo, destacaram-se através da análise curatorial obras que diziam a respeito
dos atores históricos da época do regime militar, como foi visto nas obras de Carlos
6 A obra de Carolina Amaral Aguiar “Videoarte no MAC-USP: o suporte das ideias nos anos 1970”
(2007) no capítulo III é possível ter acesso a uma súmula de alguns desses eventos citados. AGUIAR,
Carolina Amaral de. Vídeoarte no MAC-USP: o suporte de ideias nos anos 1970. São Paulo, 2007.
7 REGINA Silveira. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo:
Itaú Cultural, 2019. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa8084/regina-
silveira>. Acesso em: 15 de Jan. 2019. Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7
119 VI EPEGH
grande massa a ser manipulada, principalmente na época pelas mídias liberais
muito presente na época do regime.8
Artur Barrio, por usa vez, foi contemplado na exposição com duas de suas
produções. Ressalta-se aqui que tanto Barrio como Zílio, obtiveram obras expostas
também na 29ª Bienal que acontecia no mesmo prédio de “Um dia terá que ter
terminado”, então infere-se que os visitantes já tivessem tido um primeiro contato
com obras dos artistas. As obras presentes na exposição do MAC eram o registro
de uma performance em sequências de fotografias, na obra “Seis movimentos”
(1974) e uma vídeo-arte exibida em um pequeno televisor
“Sit....Cidade....y.....Campo...” (1970). A obra “Seis movimentos” retratou em
fotografias os seis passos de como cortar uma tela com a tesoura,9 o assunto
referente a obra diz mais a respeito as questões do “fazer artístico”, uma vez que
retoma uma crítica da estética artística. A obra “Sit....Cidade....y.....Campo...” foi
composta de um registro fotográfico de bengalas de pão amarradas como se fossem
dinamites, cada registro fotográfico se encontrava em um local diferenciado. As
fotos foram expostas em formato de vídeoslides e a interpretação desta obra,
inserida no contexto da exposição, retoma dois pontos interessantes abordadas na
mesma: a variação do suporte artístico, que no caso de Barrio está muito atrelada
a radicalidade, e também a guerrilha armada. Sobre a radicalidade artística de
Barrio, nesta obra em específico, Barrio não ousou tanto como fez em “Trouxas
ensanguentadas”10, contudo o artista utilizou de material orgânico para realizar
8 A classe média anterior ao golpe de 1964 com sua relativa ascensão social se viu ameaçada pela
crise econômica e pelos movimentos que organizavam os proletários e camponeses pela luta por
melhores condições de vida. Porém, a classe média sentiu sua posição social ameaçada, em
decorrência desses fatores citados, sendo assim, uma classe que foi muito suscetível aos discursos
anticomunistas da imprensa e de outras entidades civis e religiosas, que davam margem a ideia de
que os comunistas destruiriam a civilização cristã, a hierarquia considerada natural e liberdade
individual. (NAPOLITANO, 2017, p. 48)
9 Alusão a obra de Lygia Clark “Caminhando” em que a artista corta a faixa de Moebius.
10 A obra de Barrio, para Artur Freitas, foi a soma de duas ações do artista que ocorreram no Salão
Bússola no Museu de Arte Moderna no Rio de Janeiro (1969) e outra na mostra artística chamada
Do Corpo a Terra em Belo Horizonte (1970). A primeira ação que compunha Trouxas
ensanguentadas foi denominada de
“Situação…ORHHHHHHH…ou…5000…T.E…em.........N.Y...City......” no qual apresentou dois
objetos-trouxa-sacos recheados de lixo - que ficavam cercados de outros detritos no espaço do salão.
Esta situação composta por Barrio, convidava o espectador a participar da obra ao contribuir com
mais lixo. Como finalização para essa primeira ação, o artista mergulhou no lixo que compunha sua
obra e inseriu dentro dos objetos- trouxa, carne crua. Feito isso, Barrio carregou os seus dois objetos-
trouxa com mais um punhado de lixo para fora do museu para consagrá-las como esculturas,
realizando assim, uma ação irônica referente a monumentalizarão de esculturas públicas. Por sua
vez, a segunda ação de Barrio, intitulada “Situação T/T,1” foi composta de três ações: a confecção
dos objetos-trouxa com carne crua, ossos, barro, espuma, etc, a segunda parte se concretizou com o
abandono desses 14 objetos-trouxa confeccionados num córrego em Minas Gerais. A terceira parte
se compôs do registro fotográfico da reação dos espectadores perante aos objetos-trouxas (FREITAS,
2013, p. 116- 155). Nota-se que esta obra composta por Barrio quebrou muitas barreiras estéticas
da arte, assim como denotou uma forte crítica ao espaço institucionalizado da arte. Porém, a obra
de Barrio ainda vai um pouco além de paradigmas artísticos, como também trouxe consigo uma
crítica social e política explícita, ao compor os seus objetos artísticos de matéria orgânica e deixá-
los em locais periféricos, ademais a associação direta que era possível realizar com os objetos-
trouxas e a violência militar.
Ressalta-se que a segunda ação de Barrio “Situação T/T,1” estava presente na 29ª Bienal de São
Paulo. De maneira que possibilita a interpretação do MAC compor em conjunto com a Bienal, por
um período de tempo, uma relação em referência aos nomes mais “famosos” da cultura engajada.
Não só Barrio, havia também artistas como Nelson Leirner, Antonio Dias, Amélia Toledo, Carlos
Zílio. Não restrita somente a “Um dia terá que ter terminado” mas também com “Entre Atos”.
11 Disponível em: https://acervofolha.blogfolha.uol.com.br/2018/04/20/1968-quarta-bomba-impacto-
121 VI EPEGH
inserção fosse possibilitada nessa rede comunicativa autônoma (SAYÃO, 2014, p.
245). Como resultado dessa conexão de artistas com o MAC foram realizadas
exposições tais como “Seis Artistas Conceituais” (1973) e “Prospectiva’74” (1974)
(SAYÃO, 2014, p. 245-246).
Referente a construção cenográfica, apesar do uso de cores brancas nas
paredes se manter nesta exposição, o sentido atribuído na composição do espaço se
difere de “Entre Atos”. O auto contraste realizado pelas paredes com o chão e o teto
escuros, possibilitou uma interferência visual muito apelativa à exposição, ainda
mais se levar em consideração, o recorte temporal do período da ditadura,
conhecido como “anos de chumbo”.
Diferente do que foi visto na primeira exposição da série, em “Um dia terá
que ter terminado” houve um movimento mais intenso de retomada histórica do
museu no período da ditadura com o grande painel de fotografias que recepcionam
os visitantes12, as vitrines da primeira galeria, a obra de Ferro e sua carta, sem
contar que a exposição continha muito mais texto explicativos. Também houve
muito mais frequência sobre as edições da Jovem Arte Contemporânea nesta
exposição do que a primeira da série. Este movimento curatorial acredita-se estar
relacionado com o espaço da Bienal, que carregava consigo uma carga histórica do
museu, onde teria sido palco de todos aqueles eventos mostrados13. Assim, denota-
se que o conjunto cenográfico em adição de uma maior composição visual
preocupada em retomar a história do museu compõe uma narrativa curatorial que
destaca o papel do museu em um período altamente repressivo, considerando que
o MAC a essa altura, já possuía mais “maturidade” como instituição museal e
assim mais relevância em paradoxo com um momento muito atrelado a censura e
repressão promovidas pelo Estado.
12 As fotos dessa composição, pelo que foi possível observar nas fotografias consultadas, eram
fotografias dos eventos do MAC, tais como a preparação das JACs, registro do espaço na época e
destaque para algumas reproduções de obras, algumas iguais as fotografias colocadas no folder.
13 A primeira sede do MAC foi o terceiro andar do prédio da Fundação Bienal (AGUIAR, 2007, p.79)
123 VI EPEGH
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
REIS, Paulo Roberto de Oliveira. Exposições de arte: vanguarda e política entre anos
1965 e 1970. Tese de doutorado, Paraná: Universidade Federal do Paraná, 2005.
SAYÃO, Bruno. Arte Postal no MAC USP: Precedentes da XVI Bienal de São Paulo.
Colóquio Histórias da Arte em Exposições - Anais: Comunicações. In: MODOS: História
da arte: modos de ver exibir e compreender, 2014.
de Samos
ALINE PORFIRIO1
RESUMO: Em vista dos estudos sobre o uso do culto religioso como artifício político
de governos tirânicos; juntamente com a análise de casos nos quais a
monumentalização de edifícios religiosos também foi utilizada por estes
governantes com o intuito de fortalecer seu poder, esta pesquisa tem como objetivo
principal analisar como Polícrates, tirano de Samos de 532 a 522 a.C,
aproximadamente, utilizou o culto à Hera, deusa de extrema importância para a
polis de Samos, e da monumentalização do seu santuário como forma de criar uma
base de apoio para o seu governo.
PALAVRAS-CHAVE: Monumentalidade; Samos; Tirania; Arqueologia;
Arquitetura.
É provável que a primeira forma política adotada por esses jônios tenha sido
monarquia. Nesse sentido entende-se que os reinados tenham durado até o século
VIII a. C. Depois disso o governo se dá principalmente pelos geomoroi, sendo este
um governo oligárquico hereditário formado por donos de terra como já indica o
nome que pode ser traduzido como “land-sharers” (SHIPLEY, 1987, p. 39). Essa
aristocracia jônica é marcada por ser descendente dos primeiros colonos da ilha.
No século VII o governo dos geomoroi só foi interrompido pelo governo do
tirano Demoteles. Entretanto, este foi morto e sucedido novamente pela
aristocracia. Essa forma de governo foi alterada novamente com o fim da batalha
O TIRANO
Essencialmente, tirano é aquele que usurpa o poder dos que legalmente
teriam esse direito (MOSSÉ, 1984, p. 173). Aristóteles considera os tiranos jônicos
como uma particularidade, pois estes surgem em sua maior parte de “famílias
notáveis” (Aristóteles, 1310b, 28-30).
A historiografia tinha duas leituras para a tirania grega. A primeira é que
a tirania é uma forma de governo temporária e transitória para a democracia.
Sendo assim, segundo essa leitura, a tirania tinha como função ajustar a polis para
o recebimento de uma forma de governo superior, a democracia. Essa leitura
apresenta dois principais erros, o primeiro é que ele tem em mente a história de
Atenas, colocando esta como um paradigma para outras polis. Ao estudar outras
polis é possível ver que essa estrutura nem sempre se aplica. Convém apresentar
o segundo erro após a apresentação da outra leitura de tirania.
Além dessa visão de tirania como uma etapa transitória, a outra ideia
considera a tirania como a pior forma de governo. Essa interpretação segue até
2Batalha essa que podemos localizar nos primeiros anos após a fundação de Perinto como colônia
de Samos, aproximadamente 602 a.C
127 VI EPEGH
hoje, a palavra tirania tem uma grande carga negativa. Porém essa visão, assim
como a anterior, pode ser justificada pela hegemonia de fontes escritas
atenocêntricas (CONDILO, 2008, p. 63). Essas fontes atenienses apresentam a
tirania de forma negativa com o intuito de justificar as escolhas da polis feitas nos
séculos V e IV (FLORENZANO, 2011, p. 42). Ao estudar tirania é necessário ter
em mente que o autor da fonte possui uma interpretação negativa dessa forma de
governo.
Uma constante interpretação é a de que o surgimento do tirano se dá em um
contexto de crescimento comercial e marítimo. Dessa forma, o tirano surge como
representante dos mercados e marinheiros. Porém existem visões diferentes, como
a de Claude Mosse (1984, p. 165) que credita esse surgimento mais ao
fortalecimento do poder naval do que ao comércio marítimo. Já para Condilo a
tirania surge em “comunidades prósperas economicamente e isto fez com que
houvesse um fortalecimento do poderio naval” (2008, p. 26).
Além da explicação que relaciona a tirania com o comércio e poderio naval,
há ideias que relacionam o surgimento do tirano com as reformas hoplitas. As
reformas hoplitas ocorreram em decorrência das inovações técnicas, com a
utilização do bronze as lanças se tornando mais leves e capazes de serem usadas
em lançamentos. Além dessa mudança técnica houve uma mudança tática, a partir
desse momento passou-se a utilizar o modelo de falange. Nesse modelo os
guerreiros ficam numa formação em que o escudo de um protege o outro, sendo
necessário que todos andem em harmonia.
Considerando essa reforma, o tirano teria surgido como um representante
dos hoplitas. Nesse momento é importante lembrar que os hoplitas eram em sua
grande parte formados pela classe popular. Porém Condilo (2008, p. 29) questiona
essa ideia, pois isso é acreditar que os guerreiros da falange possuíam uma
consciência de classe
Feito todos esses adendos às explicações clássicas para o surgimento da
tirania, Camila Condilo acredita que esse sistema de governo surgiu com o
129 VI EPEGH
governo começa provavelmente em 532 e se encerra em 522 devido ao seu
assassinato por Oretes de Sardes.
Mesmo com o desejo de sucessão direta de seu pai, aparentemente entre o
governo de Aiakes e de Polícrates houve um intervalo no qual o governo esteve em
mãos do geomoros. E por esse motivo foi necessário que Polícrates articulasse um
golpe3, para isso ele contou com a ajuda dos seus dois irmãos, Pantagnoto e Syloson
II. Porém após conquistar o poder na ilha, Polícrates assassina o primeiro e expulsa
o segundo, tornando- se o único senhor de Samos.
Polícrates é tido como o primeiro homem, além de Minos de Cnossos, a
querer se tornar rei dos mares e tomar posse de todas as ilhas da Jônia. Em
Heródoto essa visão do tirano sâmio como homem ambicioso é bem aproveitada,
não só no modo da sua morte, como também em uma pequena história contada pelo
autor na qual o faraó Amásis aconselha Polícrates a tomar cuidado com suas
ambições para que os deuses não o punam, de forma que seria aconselhável para o
tirano se livrar de algo de extrema importância para ele. O tirano decide, então,
por jogar seu anel ao mar, porém alguns dias depois os cozinheiros encontram
dentro de um peixe o anel de seu senhor. Dessa forma, Polícrates pensa que esse é
um sinal divino e volta a acreditar na sua magnitude e nas suas ambições. Por
sinal, é sua ambição que o leva à morte, segundo as versões de Heródoto. Essa
pequena história serve-nos para perceber a visão que Heródoto tem do tirano.
Porém esse juízo de valor pode ser justificado pelo simples motivo do autor utilizar
fontes com visão ateniense que vê a tirania de forma pejorativa em oposição à
democracia (CONDILO, 2008, 65).
Foi durante o governo de Polícrates que Samos teve seu ápice de
prosperidade, tendo o tirano 100 pentecontarchos e 1000 arqueiros à sua
disposição. Essa prosperidade se deve à política de pirataria praticada pelo tirano;
porém, a força naval sâmia se dá anteriormente ao governo de Polícrates por conta
da importância dada pelos geomoroi ao comércio marítimo.
A prosperidade no período de Polícrates não se deu somente no quesito
comercial e marítimo. É possível ver uma valorização das artes. A grande
3Durante a pesquisa surgiram dúvidas, que permaneceram sem respostas, sobre o uso da palavra
golpe no caso de Polícrates, já que seu pai foi governante antes dele.
ALINE PORFIRIO 130
quantidade de achados esculturais de mármores, torsos e fragmentos de estátuas
na Via Sacra podem indicar que Samos teve uma importante escola de escultores
no sexto século (KYRIELEIS, 1993, p. 118),
Por conta da não aceitação dos governos tirânicos por parte da aristocracia
sâmia foi necessário para Polícrates criar uma base de governo com apoio da classe
mais baixa, no demos. E é a partir dessa necessidade que essa pesquisa pretende
estudar o uso por Polícrates do culto de Hera e da monumentalização do seu templo
como forma de criar uma base de apoio para o seu governo.
O URBANISMO DE POLÍCRATES
Heródoto justifica a significância de Samos para a sua narrativa por conta
de três das suas obras arquitetônicas: o túnel de Eupalinos; um novo cais com
quebra mar e o Heraion de Samos. Porém o autor não dá a autoria de tais obras
para Polícrates, essa associação é encontrada em Aristóteles, no seguinte texto:
131 VI EPEGH
Polícrates como sendo responsável pelas três obras. A primeira delas, o túnel de
Eupalinos, que teria sido projetado por este, foi construído em cerca de 530 a.C
(WAERDEN, 1968, p. 82). Nessa época, além da intensificação das atividades
comerciais, mercantis e marítimas, a polis sâmia também contava com um
crescimento demográfico. Desta forma foram necessárias novas medidas que
assegurassem o bem-estar de todos na ilha.
Dentre as medidas necessárias, a de maior significância arquitetônica foi o
Túnel de Eupalinos (Figura 2). Além de assegurar o fornecimento de água para
uma parcela maior da população, esse túnel também foi criado com a intenção de
ser usado como uma opção de fuga em momento de guerra. Essa última função
poderia ser de utilidade para Samos, já que a polis começava a se consagrar como
uma potência marítima.
Ao contrário do caso do aqueduto de Eupalinos, temos poucas informações
sobre a outra grande construção de Samos, o molhe do porto, também chamado de
quebra-mar. Construído abaixo do mar, com uma profundidade de 35 metros e
comprimento de 300 metros. Por último, a terceira grande obra citada por Heródoto
é o grande Templo de Hera.
O TEMPLO DE HERA
Embora seja tido por Heródoto como o maior dos santuários gregos já visto,
o Heraion de Samos recebeu somente uma breve menção por Pausânias. E além do
grande Templo de Hera e do antigo altar nenhuma das outras estruturas do
santuário são citados em fontes antigas (KYRIELEIS, 1993, p. 99).
O santuário (Figura 3) está conectado à asty de Samos por uma via sacra, a
distância do território sagrado para a cidade era de quatro quilômetros. O
santuário era provavelmente acessado por outros povos via mar, antes mesmo na
instauração de uma polis na ilha. O santuário está em uma região de solo fértil e
pantanoso. Essa característica torna difícil a escavação do local, uma vez que a
presença de água interfere, sendo necessária uma constante retirada de excedente
líquido. Porém esse solo pantanoso ajuda na conservação de material orgânico,
tornando o Heraion um dos poucos sítios com uma abundância de oferendas em
madeira.
133 VI EPEGH
finalização da construção do seu grande templo, tendo morrido oito anos depois,
em 522 a.C.
O que vemos hoje é somente uma coluna restante, mas esta é da construção
romana, que também não foi concluída. Dada essa interrupção da construção, a
estátua de culto foi levada para um templo a oeste. Este templo esteve de pé até o
século IV d. C. No século V uma igreja cristã foi construída ao lado do templo
romano, sendo constituída de spolia desse.
O CULTO DE HERA
Segundo a mitologia sâmia, Hera nasceu na ilha, embaixo de um pimenteiro-
silvestre (KYRIELEIS, 1993, p. 106-107). Por conta desse mito Hera é considerada
a deusa patrona de Samos. Uma vez por ano acontecia na ilha a Toneia, festival
onde a imagem de Hera era envolta em ramos de pimenteiro-silvestre e levada ao
mar para receber um banho.
Uma boa fonte para o estudo do culto de Hera são as oferendas votivas
encontradas no santuário. Segundo Kyrieleis (1993, p. 112), foram encontradas em
torno de 40 miniaturas de barco de madeira (Figura 1), todas elas com o mesmo
formato e características. O autor acredita que esses barcos foram feitos
exclusivamente para o Heraion e era um objeto utilizado em rituais. A
exclusividade pressuposta por Kyrieleis vem do fato que o barquinho poderia ter
sido feito de outro material, como bronze e pela ausência desse tipo de barco em
outros lugares. Porém, acredito eu que nesse momento se faz importante lembrar
que poucos sítios são capazes de conservar madeira, então pode ser que esse objeto
não fosse exclusivo de Samos, mas sim só sobreviveu aos tempos atuais em Samos
devido ao solo pantanoso do santuário, que tem a capacidade de conservar
materiais orgânicos como a madeira.
A presença desses barcos no santuário, e em moedas; a disposição do altar
virado para o mar; conjuntamente com a ação de banhar a imagem da deusa no
mar indicam que a deusa tem uma ligação forte com o mar para os sâmios. O que
é conveniente já que por um grande período os sâmios tiveram uma poderosa frota
marítima e um comércio marítimo bem presente.
135 VI EPEGH
CONCLUSÃO
Nesse momento é importante lembrar que o conceito de monumental para a
arquitetura é o de um edifício que ultrapassar em escala e elaboração o necessário
para o exercício do que se propõe (TRIGGER, 1990, p. 119). A monumentalização
do Templo não só criava a imagem de um governante preocupado com a religião e
o culto da polis, mas também era uma forma de escancarar que Polícrates tinha
poder o suficiente para cuidar da gestão de mão de obra e recursos da realização
de uma obra monumental.
E esse gasto excessivo que chamamos de consumo conspícuo. Este é o oposto
da “lei do mínimo esforço”. E nesse caso o consumo conspícuo é o responsável por
tornar o espaço um local de manifestação de poder. Ainda mais se tratando de uma
obra arquitetônica monumental, que é idealizada para durar por muito tempo.
Esse controle de energia que exige o consumo conspícuo que é a maior
demonstração de poder.
A decisão de Polícrates por monumentalizar o Templo de Hera fazia parte
de uma estratégia para a criação da sua base de poder. Assim, Polícrates utilizou
da religião de forma política. Para Trabulsi (1984, p. 78) é comum utilizar o político
e o ideológico de forma conjunta, ainda mais no período Arcaico quando não há uma
nítida separação entre essas duas esferas. Em oposição à individualidade
aristocrática, as obras arquitetônicas promovidas por Polícrates o colocou como
elemento de construção da identidade da polis.
Durante a realização de leituras para essa pesquisa foi possível notar que
existem escassas informações sobre o início da tirania em Samos. Muitos creditam
esse início a Polícrates, mas antes dele houve o seu pai, Aiakes também tirano
(WHITE, 1954, p. 14). Segundo a autora, muito do que é creditado a Policrates foi
feito no reinado do seu pai. Foi realizado um estudo, por Buschor, que estima o
tempo de construção do túnel de Eupalinos, que seria pelo menos quinze anos. Há
certeza que a túnel terminou cerca de 525-524, sendo assim, não seria possível que
Polícrates tenha iniciado essa construção, já que da sua posse até a finalização do
túnel temos um período de apenas sete anos.
A monumentalização do Templo de Hera não foi uma ideia original de
Polícrates se considerarmos que o seu pai, Aiakes, promoveu a construção do
137 VI EPEGH
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARISTÓTELES. Política. Tradução de António Campelo Amaral e Carlos de
Carvalho Gomes. Lisboa: Vega, 1998.
139 VI EPEGH
LISTA DE IMAGENS
141 VI EPEGH
A Praga de Justiniano Reavaliana
143 VI EPEGH
de Justiniano foi de fato mortífera, mas em uma escala menor e mais fragmentada
do que este valor sugere, e se baseia tanto em obras historiográficas quanto em
trabalhos paleopatológicos, além de usar de evidências primárias, principalmente
traduções de textos escritos. No entanto, não será fornecido um número
alternativo, visto que além da pluralidade de interpretações possíveis para nossas
evidências escritas, qualquer estimativa terá de ser atualizada em poucos anos
graças ao influxo constante de novos estudos genéticos, com uso de tecnologias
pouco exploradas até o momento.
2 Ressaltamos que a metáfora de onda só se aplica à primeira aparição da Praga, que se desloca de
Pelusium, no Egito, como uma onda em torno do Mediterrâneo. Entretanto, depois desta primeira
onda a Praga já se encontrava “armazenada” em populações de roedores, tornando o padrão das
aparições subsequentes muito mais complexo, e incompatível com esta metáfora.
JÚLIO MATZENBACHER ZAMPIETRO 144
4.29) Apesar de se referir à morte de diversos membros de sua família e de servos
por conta da Praga, Evágrio também não nos fornece estimativa da mortalidade da
doença.
Neste sentido, o relato de Procópio pode ser-nos mais útil. Isto porque além
de corroborar as descrições de Agátias e Evágrio, de uma Praga que praticamente
ignorava alguns lugares enquanto atingia outros com força (PROCÓPIO, 1914:
2.22), um ponto que será abordado novamente na próxima seção, Procópio também
nos fornece números quanto à mortalidade da doença em Constantinopla. Logo de
início o autor afirma, em sua História das Guerras, que a doença chegou muito
perto de aniquilar toda a humanidade, (PROCÓPIO, 1914: 2.22) e em momento
posterior afirma que a Praga durou cerca de quatro meses, em que houve dias em
que os mortos ultrapassaram a marca das 10.000 pessoas em Constantinopla.
(PROCÓPIO, 1914: 2.23) Apesar de não nos dar um número geral, estas
estimativas de Procópio nos levariam a crer que mais da metade da população da
cidade pereceu desta primeira onda da Praga.
João do Éfeso, por outro lado, nos fornece um número geral.3 João afirma
não só que em certos dias 16.000 corpos eram retirados das ruas de Constantinopla
como também que as contagens de corpos cessaram quando se atingiu a cifra de
230.000 pessoas mortas. O autor estima que algo em torno de 300.000 pereceram
graças à Praga (ZUQNIN CHRONICLE, 1999: 104). É a partir principalmente das
estimativas de Procópio e João que historiadores modernos defendem que a Praga
de Justiniano foi um evento de mortalidade sem precedentes.
Entretanto, estes dois relatos apresentam problemas incontornáveis. Em
primeiro lugar, os dois conjuntos de números são incompatíveis com as estimativas
atuais da população de Constantinopla para o período, de algo em torno de 400.000
habitantes (WHITTOW, 1996: 56). Confiar cegamente na contagem de João, por
exemplo, seria afirmar que algo em torno de 75% da população da cidade pereceu
em poucos anos. Em segundo lugar, Procópio não nos informa como obteve seus
números, enquanto João afirma que havia pessoas contando os corpos que
passavam por portões, encruzilhadas, e portos da cidade (ZUQNIN CHRONICLE,
3Seu relato não foi preservado como documento próprio, mas sim em forma de crônicas de outros
autores. Neste ensaio, será utilizada a versão de seu relato preservada na Zuquin Chronicle, datada
do fim do século VIII.
145 VI EPEGH
1999: 104). No entanto, não é descrito um método para unificar estas contagens de
modo que nenhum corpo fosse contado mais de uma vez, e é provável que os
números destes autores sejam exagerados.
Um terceiro problema é a presença de artifícios retóricos nestes dois
documentos. O relato de João do Éfeso é repleto de mensagens morais e de eventos
sobrenaturais. O autor compara a Praga a uma espremedeira para se produzir
vinho, em que as uvas seriam seres humanos, esmagados pela ira divina (ZUQNIN
CHRONICLE, 1999: 94). Além disso, são descritos barcos de cobre tripulados por
figuras negras sem cabeça, indo em direção a locais que posteriormente seriam
atingidos pela Praga (ZUQNIN CHRONICLE, 1999: 96), e é notável como em
diversos momentos aqueles que tentaram lucrar com as mortes causadas pela
doença foram imediatamente punidos por Deus, atingidos pela peste (ZUQNIN
CHRONICLE, 1999: 97-98, 109-111).
Já o relato de Procópio sobre a Praga não apresenta, por si só, grandes
problemas. Entretanto, ao se comparar sua descrição da Praga a outros de seus
escritos, é possível notar padrões retóricos que tendem a aumentar a magnitude
dos eventos descritos pelo autor. Em sua História Secreta, por exemplo, Procópio
descreve as consequências das conquistas de Belisário em nome de Justiniano, e
afirma que seria raro encontrar uma viva alma ao se viajar pela Líbia, e que um
cenário ainda pior era encontrado na Itália (PROCÓPIO, 1935: 18.5, 18.13). É
notável também a coincidência de como Justiniano é retratado nesta obra, como
um demônio em forma humana (PROCÓPIO, 1935: 18.1), e a descrição de outros
demônios em forma humana que supostamente teriam espalhado a Praga
(PROCÓPIO, 1914: 2.22). Por fim, Procópio afirma, por exemplo, que em 526 um
terremoto teria matado 300.000 pessoas em Antioquia (PROCÓPIO, 1914: 2.14),
uma cifra tão improvável quanto as estimativas de João analisadas acima.
Um último ponto é a recorrência deste tipo de relato apocalíptico na
literatura do século VI. Para efeito de comparação, o texto de Pseudo- Josué, o
Estilita, descreve uma grande fome seguida de uma peste na cidade mesopotâmica
de Edessa, nos anos 500-501 (PSEUDO-JOSUÉ, 2000: 43-45). Assim como os
relatos de Procópio e João da primeira aparição da Praga de Justiniano, o relato de
Josué afirma que havia corpos em todas as ruas da cidade, em uma quantidade
3. ARQUEOLOGIA E EPIDEMIOLOGIA
Em primeiro lugar, é necessário notar que evidências arqueológicas por si só
não nos dão evidências concretas da Praga, exceto quando é possível aplicar sobre
elas estudos paleopatológicos, foco da próxima seção. Além disso, é fato notório que
a arqueologia nos fornece apenas indícios do que aconteceu, e não as causas desses
acontecimentos, que podem ser obtidas de modo mais eficiente por meio de
documentos escritos. Para ambos os problemas, a união de evidências
arqueológicas e evidências escritas pode nos fornecer respostas mais satisfatórias
a perguntas que de outro modo só poderiam ser respondidas especulativamente.
O relato de Evágrio, abordado acima, afirma que em uma mesma cidade
algumas regiões eram gravemente afetadas, enquanto outras passavam
praticamente ilesas (EVÁGRIO, 2000: 4.29). Isto é corroborado com evidências de
que ratos evitam certas áreas urbanas, como aquelas próximas a ferreiros e ao
barulho alto e intermitente de seu ofício, o que faz com que nestas partes das
cidades menos casos de praga apareçam. Já açougues atraem roedores, e é mais
4A única referência a números ocorre quando o autor fala que pouco mais de cem corpos saíam de
um dos hospitais de Edessa diariamente.
147 VI EPEGH
comum encontrar casos de praga em suas proximidades5 (McCORMICK, 2015:
342). Além disso, ratos também evitam ruas largas e com muito movimento, uma
característica comum em cidades clássicas planejadas (McCORMICK, 2003: 17-
18).
Enquanto estabelecimentos como ferreiros eram relativamente comuns em
cidades da época, não podemos afirmar que cidades clássicas planejadas fossem a
norma (CAMERON, 2012: 152). É certo que existiam cidades como Gerasa e
Samaria, com ruas de 11 e 22 metros de largura respectivamente (BROSHI, 1977:
234-235), e que grandes centros urbanos como Jerusalém e Damasco também
possuíam estas características (WICKHAM, 2005: 619-620). Entretanto, as cidades
da Antiguidade Tardia tinham, via de regra, casas e estabelecimentos comerciais
ocupando seus antigos espaços abertos, como ágoras e fóruns, e suas antes largas
vias (KENNEDY, 1985) (CAMERON, 2012: 146- 167) (WICKHAM, 2005: 591-692).
Mesmo evidências escritas indicam o desaparecimento do planejamento clássico
nas cidades, como a descrição que Agátias faz de Constantinopla, uma cidade em
que no século VI já era raro encontrar locais abertos (AGÁTIAS, 1975: 5.3.6). Deste
modo, a incidência fragmentada da Praga em uma mesma cidade provavelmente
se deve à presença ou ausência de estabelecimentos como ferreiros e açougues.
Já os relatos de Agátias, Evágrio, e Procópio, que afirmam que a Praga
atingiu algumas cidades e não outras, são corroborados pela ideia de que o clima
local adiciona variáveis à epidemiologia da doença, pois a reprodução de pulgas,
vetores do Y. pestis, é afetada pela temperatura ambiente. Em um ambiente em
que o microclima se modifica a cada poucos quilômetros (SALLARES, 2007: 256)
(HORDEN & PURCELL, 2000:9-25), torna-se comum que cidades próximas sejam
afetadas de maneiras distintas pela doença. Mesmo catástrofes naturais
modificam estes efeitos, e é notável que enquanto Antioquia foi destruída diversas
vezes em momentos anteriores à Praga, e provavelmente nesta cidade a doença foi
um fator catalisador de declínio, nas cidades próximas de Epifânia e Bosra as
escavações indicam prosperidade econômica durante todo o século VI
(STATHAKOPOULOS, 2000: 261). Já na Bretanha de meados do século VII,
5. CONCLUSÃO
Alguns pontos finais. Em primeiro lugar, é necessário ressaltar que o
presente ensaio não teve como objetivo defender a inexistência da Praga de
Justiniano, mas sim colocar em dúvida estimativas de sua mortalidade, em
especial as que vêem na Praga um conjunto catastrófico de eventos e que se
8Hoje considera-se que ao todo existiram três pandemias de Y. pestis. A primeira, enfoque deste
ensaio, é conhecida como Praga de Justiniano. A segunda, mais conhecida pelo público em geral, é
a Peste Negra, e a terceira não recebeu um nome distinto, sendo conhecida apenas por Terceira
Pandemia. Apesar das datas fornecidas, a Peste Negra teve aparições recorrentes até o século XIX,
e a Terceira Pandemia só foi oficialmente considerada erradicada em 1959.
151 VI EPEGH
utilizam de comparações com a Peste Negra para corroborar seu ponto. Como
apontado acima, os documentos escritos a que temos acesso se utilizam de artifícios
retóricos para descrever um conjunto de eventos que, apesar de traumático, não
causou a devastação relatada. Isto é corroborado pelas evidências arqueológicas,
que mostram um cenário fragmentado, com declínio urbano apenas em algumas
regiões do antigo Império Romano. Por fim, as diferenças genéticas entre cada
pandemia, mesmo entre cada onda da Praga, são grandes o suficiente para gerar
dúvidas quanto à validade de comparações com a Peste Negra. Isto, aliado ao fato
de que fatores como clima podem afetar como a Praga age localmente (SALLARES,
2007: 256), torna necessário um estudo mais detalhado das ocorrências da doença,
que nos levará a números mais concretos e confiáveis (McCORMICK, 2015).
Um último ponto relevante é que a Praga de Justiniano não ocorreu em
isolamento. Não só suas aparições foram contemporâneas a guerras, terremotos, e
outros eventos de grande mortalidade, como também outras doenças não
desapareceram no período. É possível, por exemplo, que algumas ocorrências da
Praga fossem acompanhadas de surtos de varíola (SALLARES, 2007: 274). Este é
um fator que complica ainda mais qualquer tipo de estimativa para a mortalidade
do Y. pestis antigo. Portanto, como argumentou-se ao longo de todo o ensaio, não
podemos dizer que “fundamentalmente tudo que sabemos sobre a Praga de
Justiniano é consistente com a conclusão de que sua mortalidade levou metade da
população [atingida]” (HARPER, 2017: 234).
FONTES PRIMÁRIAS
FONTES SECUNDÁRIAS
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of Mediaeval Studies, 1999.
1Licenciada e Bacharel em História pelo Centro Universitário Fundação Santo André, mestranda
pelo Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade de São Paulo,
garcianicolli@gmail.com
157 VI EPEGH
“E, se houve um universo feminino por excelência, lugar onde as mulheres
eram sabias, dominavam os códigos e se uniam quase em “confraria” para
enfrentar as mazelas do cotidiano, este foi o campo das práticas mágicas.”
(VAINFAS, 1997: 139).
A partir de um interesse por esse campo das práticas mágicas e das mazelas
cotidianas de mulheres do período colonial, construiu-se a monografia de conclusão
de curso, originalmente intitulada Trópico de Jezabel: resistências e rebeldias de
mulheres bruxas na primeira visitação do Santo Ofício, apresentada à banca
examinadora do curso de licenciatura e bacharelado em História, da Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras do Centro Universitário Fundação Santo André, sob
orientação da Prof.ª Dr.ª Lilian Lisboa Miranda.
A bula papal 16 de julho de 1547 autorizou a abertura definitiva de
Tribunais do Santo Ofício da Inquisição no reino lusitano, sob jurisdição da Coroa
e sem interferência de Roma. São criados Tribunais em Lisboa, Coimbra, Évora,
Lamego, Tomar e Porto e, logo, a atuação do Santo Ofício chega até as terras
coloniais. Em 1591 chega às capitanias do nordeste da colônia, Heitor Furtado de
Mendonça, inquisidor responsável pela primeira visitação do Santo Ofício em
terras brasileiras. Mendonça visitou a Bahia entre 1591 e 1593 e Pernambuco,
Itamaracá e Paraíba entre 1593 e 1595. Dessa primeira visitação foram produzidos
nove livros, entre denunciações, confissões e ratificações. De todo esse conjunto de
documentos inquisitoriais, somente quatro livros foram publicados, os livros de
confissões e denunciações da Bahia e de Pernambuco (VAINFAS, 1997: 4).
O primeiro capítulo analisa duas confissões retiradas do livro de Confissões
da Bahia,2 onde Catharina Frois e Guiomar de Oliveira vão perante a mesa
inquisitorial confessar seus crimes contra a fé e suas ligações com duas bruxas,
Maria Gonçalves Cajada e Antônia Fernandes. Ambas portuguesas degredadas, as
bruxas já haviam passado pela mão do Santo Ofício no reino, e caem nas graças de
Heitor Furtado de Mendonça em terras brasílicas, mas nada é suficiente para tirá-
las do caminho da bruxaria.
2Primeira Visitação do Santo Officio às partes do Brasil: Pelo licenciado Heitor Furtado de
Mendonça. Confissões da Bahia 1591-1592. São Paulo: Sociedade Capistrano de Abreu, Série
Eduardo Prado, 1922. P. 68 e 76. Acesso em: <https://archive.org/details/primeiravisita00sociuoft>
161 VI EPEGH
Felícia é sincrética, um exemplo do que era a religiosidade popular na colônia
portuguesa da América, uma religiosidade em que havia uma forte mistura de
crenças e religiões. Felícia é uma pessoa que carrega, em si e em sua posição, muito
do que foi a trajetória comum de muitos dos habitantes da América portuguesa.
Filha de um clérigo e uma preta forra, Felícia expressa sua religiosidade de forma
diversa, incorporando elementos do que conhece, colocando nas suas práticas todo
o sincretismo religioso próprio do momento em que vive e de sua própria existência.
A obsessão pela presença demoníaca que surge e que impulsiona a
Inquisição do período moderno esteve estritamente ligada à criação de um
estereótipo anticristão, uma espécie de arquétipo humano do mal, que as bruxas
materializaram. Na América portuguesa no século XVI, as delimitações entre
imaginário e real não eram nítidas, portanto, não se pode separar a religiosidade
das vivências sociais cotidianas, porque estes aspectos estão estritamente
vinculados, numa relação de constante diálogo. Os feitiços de Felícia são
importantes, nesse sentido uma vez que permitem tornar inteligível a intensa
relação estabelecida entre religiosidade e vivência cotidiana.
A Inquisição no reino lusitano perseguiu não somente as heresias religiosas,
mas também as heresias políticas. Tendo um viés bastante econômico, a atuação
do Santo Ofício na América portuguesa colonial foi uma fábrica de hereges, criando
e buscando culpados para acumular riquezas através do confisco de bens de
condenados, acusando de judaísmo comerciantes cristão-novos e estabelecendo um
monopólio ultramarino pela coroa portuguesa. A Inquisição então deixou de ser um
mecanismo de controle da Igreja para se tornar também um mecanismo de controle
e de dominação da Coroa portuguesa, tanto na própria metrópole quando nos
domínios coloniais.
A Inquisição causa na sociedade um efeito de bipolarização maniqueísta,
transformando tudo numa divisão entre bem e mal, certo e errado, sagrado e
profano, etc. Não é diferente com as pessoas, dividindo-as entre boas e más, sendo
esta última característica de exclusividade das mulheres, visto que estas eram
mais propensas ao pecado e a impureza do espírito desde Eva. Essa bipolarização
qualifica as características e a população masculina, desvalorizando, assim, as
femininas.
163 VI EPEGH
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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e Pierre Bourdieu. Perspectiva. Florianópolis, v.21, n.01, jan./jun.2003, p. 121-149.
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University Press, 2006. p. 123- 182.
165 VI EPEGH
A questão social na perspectiva da Doutrina da Segurança
de São Paulo.
171 VI EPEGH
Goering, “mais canhões e menos manteiga”, o General reconhece que não há como
fugir de uma certa necessidade de sacrificar o Bem-Estar em proveito da
Segurança.
Entretanto, a própria Segurança seria ameaçada caso não houvesse o
mínimo de Bem Estar. Faz-se então o imperativo: Sacrificar o Bem-Estar até certo
ponto que não sacrifique também a própria segurança – e segue argumentando –
A segurança estrutura-se, pois não pode deixar de estruturar-se, sobre uma base
irredutível de bem-estar econômico e social, nível abaixo do qual se ofenderá a
própria capacidade de luta (SILVA, 1967, p. 14). Em seu Planejamento Estratégico,
Golbery aponta que o planejamento orientado para o Bem Estar e a justiça social
poderia destinar, de um total sempre limitado de capital disponível, maior volume
de investimentos aos setores que mais diretamente interessasse àquele binômio
[de Segurança e Desenvolvimento].” (SILVA, 1979, p. 25).
Pensando em um cenário descrito de guerra global, deve-se atentar ao fato
de que uma miséria social poderia ser considerada uma vulnerabilidade do país.
Tal como foi citado, em que os campos político, econômico, psico-social e militar
poderiam ser alvos da política despótica de regimes totalitários, o fator da miséria
e pouco desenvolvimento social poderiam proporcionar um plano de ação do bloco
soviético no Brasil.
Na obra de Couto e Silva, é argumentado que a adesão ao bloco ocidental
viria acompanhada da negação e do combate contra tudo aquilo que seria
proveniente dos regimes do bloco oriental. Observa- se nos últimos tópicos tratados
por Golbery em Geopolítica do Brasil, denominados O Ocidente precisa do Brasil e
O Brasil depende do Ocidente que a América é colocada, diante o cenário mundial,
como frágil e suscetível às ameaças comunistas. Ele lista alguns motivos que
acarretariam em tal fragilidade, são eles: as fraquezas econômicas, a imaturidade
política e o baixo nível cultural. Esses são fatores que expõem a região à infiltração
e à subversão à distância (SILVA, 1967, p. 219-250).
O autor nega o projeto do inimigo soviético, que arroga para si o título de
“campeã da justiça social e das verdadeiras liberdades do homem”, mas, que na
verdade seria, para Golbery, o “imperialismo expropriador de bens e escravizador”
(SILVA, 1979, p.18-19). Percebemos, portanto, que, na visão da DSN, as questões
173 VI EPEGH
antagonismos internos e externos, etc. Neste excerto, observamos que o General
argumenta que nem todo o planejamento de Segurança Nacional deveria se apoiar
principalmente no campo militar.
Em tais circunstâncias, para o planejamento do fortalecimento do Potencial
Nacional, o campo dominante será, por certo, o econômico, dadas as dificuldades
não só conjunturais mas sobretudo de base estrutural com que luta o país nesse
particular, ressentindo-se daí o bem-estar social do povo, aguçando-se os conflitos
entre classes e entre grupos diversos e avultando os antagonismos entre regiões
distintas, entre as cidades e os campos, entre as elites e as massas. [...] O poder
militar será uma irrisão ante os perigos que dia a dia se acrescem [...]. (SILVA,
1979, p. 118)
Nota-se que na segunda parte do livro Planejamento Estratégico, Golbery
apresentou como bibliografia complementar obras relacionadas à economia e à
questão social. Dentre elas estão a Teoria geral da ocupação, o interesse e o
dinheiro de John M. Keynes, e de algumas obras que comentam este autor: A
revolução keynesiana de Lawrence R. Klein e Introdução à Keynes de Raul
Prebitsch. Além disso, ele elenca uma bibliografia sobre desenvolvimento
econômico e social. Essas referências deverão ser investigadas para fins de melhor
compreensão sobre a interpretação Golbery do Couto e Silva dos conceitos de
“miséria”, “Bem Estar” ou “vulnerabilidade” que são mencionados ao longo de sua
obra. Além disso, deverão ser investigadas divergências e incompatibilidades que
o mesmo possui com a teoria keynesiana. Deverá ser feito um exame comparativo
atento entre as ideias dos dois autores a fim de se compreender como as questões
sociais eram encaradas nas décadas de 1950 e 1960 no Brasil, e se elas poderiam
(e como poderiam) estar relacionadas à atuação política de Golbery no mesmo
período, que desembocaria em uma significativa contribuição para o golpe de 1964.
DOCUMENTOS UTILIZADOS
SITES CONSULTADOS
175 VI EPEGH
___________. LEI N. 785 DE 20 DE AGO. DE 1949.. Disponível em
<http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1940-1949/lei-785-20-agosto-1949-363936-
publicacaooriginal-1-pl.html>.
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177 VI EPEGH
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Conjuntura Global, vol. 5 n. 3, set./dez, 2016, pp. 537-565.
GUSTAVO NAZARIO2
1 Este artigo é fruto de pesquisa realizada com apoio da FAPESP (Bolsa de Iniciação Científica).
2 Graduando em História pela Universidade de São Paulo (USP).
179 VI EPEGH
1. INTRODUÇÃO
Inicialmente, é possível afirmar que o populismo é um conceito sem uma
formulação exata, muito devido pela variedade de ocorrências históricas do que se
chama de populismo, resultando em uma diversidade de abordagens, mas também
por certa negligência nos estudos que apenas a partir dos anos 80 passaram a
encarar esse fenômeno de frente, com rigor crítico e a partir de uma nova
abordagem metodológica que será discutida mais abaixo.
Na sua abordagem clássica, segundo Worsley (1973), o populismo é estudado
na grande maioria das vezes por meio de três formatos: como um fenômeno de
origem social, como uma forma de governo ou como uma ideologia específica.
Porém, para que ele ocorra em qualquer uma dessas formas, Francisco Weffort
(1978) defende que o populismo precisa primeiro, de uma massificação de amplas
camadas da sociedade que desvincula os indivíduos de seus quadros sociais de
origem e os reúne na massa, relacionados entre si por uma sociabilidade periférica
e mecânica; segundo, de uma perda da representatividade e da exemplaridade da
classe dirigente; e por último, da presença de um líder dotado de carisma de
massas. Contudo, é possível afirmar que certos pontos dessa abordagem clássica
foram superados, principalmente o que concerne à questão da manipulação das
massas por meio de uma líder carismático, que será abordado neste tópico.
Sendo assim, começaremos a exposição tratando dos sentidos que o
populismo assume ao longo da história. Demonstraremos, também, que mesmo
com grande esforço por parte dos acadêmicos de entenderem o fenômeno e
descrevê-lo, no meio popular o termo é usado constantemente, sem qualquer rigor
metodológico, porém, consciente de suas intenções, já que se há uma constante,
atualmente, em relação ao termo é seu uso para desqualificar o outro.
181 VI EPEGH
demagógicas. Um parlamentar liberal, lamentando os resultados das eleições de
1945 para seu partido, a UDN, dá os seguintes conselhos sobre o tratamento dado
pelos políticos aos eleitores: “evite por todos os meios obrigar o povo a refletir. A
reflexão é um trabalho penoso a que o povo não está habituado. Dê-lhe sempre
razão. Prometa-lhe tudo o que ele pede e abrace-o quanto puder” (Apud:
WEFFORT, 1978, p.24).
Fica claro que a definição liberal leva em conta apenas aspectos exteriores
do fenômeno, como a demagogia e o apelo emocional. Jorge Ferreira ressalta o
mesmo ao afirmar que:
183 VI EPEGH
torna-se mais evidente se observarmos o fato de autor criticar a versão liberal do
populismo, que o explica como sendo a manipulação e a demagogia dos líderes junto
à ignorância e ao atraso das massas, e depois dizer que o povo “será manipulado
soberanamente por Getúlio Vargas durante 15 anos” (WEFFORT, 1978, p. 51),
além de não passar de “massa de manobra” (WEFFORT, 1978, p. 32).
Otavio Ianni, autor do O colapso do populismo no Brasil (1971), dedica-se ao
populismo também em virtude do Golpe de 1964, considerando-o como uma parte
importante para o entendimento deste. Para o autor o populismo seria um modelo
de desenvolvimento que surge no processo de transição de uma sociedade agrária
para uma urbano-industrial. Esse desenvolvimento é baseado numa proposta de
conciliação de classes, hegemonizado pela burguesia industrial e conduzido pelo
intervencionismo estatal e pelas lideranças carismáticas, por exemplo, Getúlio
Vargas. Os trabalhadores colhem benefícios econômicos e políticos, porém nada de
substancial. De modo geral, como coloca Daniel Aarão Reis, os trabalhadores são
galvanizados e instrumentalizados, não têm voz, e sua inconsciência é devida à
ação das lideranças carismáticas, à cumplicidade dos pelegos, e ao atraso do
camponês que migra para os centros urbanos (REIS, 2001).
Já no fim dos anos 70 e início dos 80, há uma grande insatisfação com o uso
do conceito de populismo, o que dá início a um esforço mais sistemático de
entendimento do fenômeno. Ao contrário das interpretações já citadas,
amplamente baseadas nas ideias de Gramsci, as novas propostas sofriam
influência das recém-chegadas obras de E. P. Thompson no Brasil (GOMES, 2001,
p.44). Nesse novo modo de pensar o populismo, Angela de Castro Gomes sai na
frente, com seu livro A invenção do trabalhismo (1988). Nessa obra, a autora irá
contrapor vários argumentos usados pelas interpretações anteriores do populismo,
principalmente nas questões da manipulação e da ideia teleológica do
desenvolvimento da classe trabalhadora. Angela propõe que a relação Estado-
classe trabalhadora é sim uma relação marcada pela desigualdade de poder, porém
os trabalhadores não são objetos passivos diante de um Estado todo-poderoso. Ou
seja, não há manipulação como nas propostas anteriores, pois há uma classe
trabalhadora ativa, em constante interlocução com o Estado, formando um “pacto
trabalhista”. Outro ponto de ruptura proposto pela autora é o relacionado ao
4. CONCLUSÃO
Deste modo, a partir do panorama historiográfico feito é possível enxergar
que o populismo não foi vencido pelo desenvolvimento da sociedade. Continua
presente na política brasileira, que ainda preserva resquícios da dependência de
lideranças fortes e da ausência de instituições formais que possam representar os
interesses sociais de maneira impessoal e não clientelista. Ou seja, as teses sobre
a possível superação do populismo pela sociedade brasileira, surgidas
principalmente no final dos anos 60, não se sustentam. O populismo como
fenômeno político continua latente nas sociedades modernas.
Considera-se a atualização do termo populismo em neopopulismo e a
necessidade de retomada dos debates sobre o tema de fundamental importância
porque a política na sociedade moderna oferece condições ideais para o sucesso de
neopopulistas. O que são a midiatização das esferas públicas e a personalização
das campanhas políticas para ficar em apenas dois exemplos, senão elementos
favoráveis ao surgimento do neopopulismo? Ocorrências históricas em vários
países latino- americanos nos anos 80 e 90 têm desmentido a tese do processo de
evolução contínua da organização política. Apesar da consolidação do Estado
185 VI EPEGH
nacional, a cultura política personalista e a incapacidade das elites em atender
demandas sociais, somadas às condições citadas anteriormente, têm recriado as
condições sociais necessárias para os fenômenos neopopulistas, em uma espécie de
movimento pendular da história.
A crise que propicia o sucesso das propostas e lideranças neopopulistas
deixou de ser gerada por transformações sociais profundas; trata-se de uma crise
da capacidade de representação das elites, que chegaram ao poder através do voto
popular, em função do não-cumprimento de muitas das promessas da democracia.
Em especial, a promessa do atendimento às demandas populares emergenciais. O
neopopulismo tem se legitimado pela descrença que atinge as massas em relação à
política e à democracia, ele beneficia-se do desgaste da imagem do Estado, dos
partidos políticos e das lideranças tradicionais; o que acaba beneficiando as
lideranças marginais que defendem soluções inovadoras definindo-se como
contrárias ao sistema vigente, ou como “apolíticos”, como o presidente Jair
Bolsonaro. É uma forma que as massas encontram para demonstrar insatisfação
com a moderna democracia — portanto, não se trata de massas passivas e
manipuláveis, mas agentes da história. Por conta disso, tão importante quanto
rediscutir os aspectos do debate clássico sobre o populismo no Brasil é permitir que
se coloque o tema — atualizado — como objeto de novos estudos.
187 VI EPEGH
Alianças e Casamentos Interdinásticos no Antigo Oriente
RESUMO: Este artigo possui o objetivo de apresentar parte dos resultados obtidos
com a pesquisa intitulada “Alianças e casamentos interdinásticos no Antigo
Oriente Próximo – A perspectiva egípcia nos séculos XIV- XIII a.C.”. A pesquisa se
propõe a analisar as cartas de Amarna (escritas na segunda metade do século XIV
a.C.) trocadas entre o Egito e alguns reinos do Antigo Oriente Próximo junto de
algumas fontes egípcias do período de Ramsés II (1279-1213 a.C.) a fim de delinear
a perspectiva faraônica sobre os casamentos interdinásticos em relação às
perspectivas dos outros reis asiáticos e as implicações dessa prática para o faraó.
PALAVRAS-CHAVE: Egito Antigo; Casamentos diplomáticos; Cartas de Amarna;
Ramsés II; Antigo Oriente Próximo.
3Todas as cronologias referentes ao Egito e reinados faraônicos foram retiradas da obra de Ian
Shaw, The Oxford History of Ancient Egypt (SHAW, 2000: 480-489).
189 VI EPEGH
enviada ao Egito com uma comitiva de servas e seu dote. O faraó mandava, em
retorno, presentes e o dom nupcial para seu novo sogro. Ao chegar no Egito, a
expectativa do rei estrangeiro era a de que sua filha, ao casar-se com o faraó, se
tornaria a rainha daquele reino. Entretanto, quando chegavam à corte egípcia, as
princesas passavam a integrar o “harém” egípcio, unindo-se a uma multidão de
mulheres reais estrangeiras, aparentemente sem o papel de destaque esperado por
seus pais – o que gerou tensões e conflitos entre o faraó e os outros Grandes Reis.
Ao longo da pesquisa, apesar de ter sido possível analisar os critérios
internos culturais egípcios para compreensão da perspectiva faraônica somente
pelas cartas de Amarna, houve a necessidade de analisar algumas fontes
propriamente egípcias para que, assim, fosse possível analisar como o faraó
representava os casamentos interdinásticos e sua própria imagem não apenas para
o exterior, mas sim também para o interior de seu reino. É somente no reinado de
Ramsés II (c. 1279-12130 a.C.) que encontramos esse tipo de fonte sobre essa
questão, além de, novamente, fontes extra-egípcias (como as cartas de Amarna)
sobre os casamentos entre os Grandes Reis.
Sobre as fontes extra-egípcias, há o rascunho de duas cartas escritas em
cuneiforme e em língua hitita que foram trocadas entre a rainha hitita Puduhepae
Ramsés II. Elas tratam sobre o casamento de uma das filhas da rainha com o faraó
e o processo de negociação de presentes, dote e da ida da princesa ao Egito
(MIEROOP, 2007: 223). Já as fontes propriamente egípcias abrangem algumas
estelas comemorativas, fragmentos de papiro e uma estátua, as quais representam
esse mesmo caso de matrimônio (FISHER, 2013: 78-103). A partir delas, podemos
analisar como foi retratada a comemoração desse casamento e a representação da
princesa hitita após o matrimônio nas fontes egípcias (o que não encontramos no
período dos reinados de Amenhotep III e Akhenaton).
A principal fonte egípcia em questão é a estela conhecida como “A Estela de
Casamento”, devido ao seu bom estado de conservação. Ela se encontra atualmente
em Abu Simbel, associada ao Grande Templo de Ramsés II, e trata do casamento
entre a princesa hitita e Ramsés II, no seu 34º ano de reinado. A estela possui a
representação sobre o evento tanto em imagens como em texto. O corpo textual da
estela apresenta continuidades com os encontrados nas estelas em Elefantina,
2. OBJETIVOS
Os principais objetivos da pesquisa consistem em: 1) compreender qual era
a perspectiva faraônica sobre os casamentos interdinásticos nas cartas de Amarna
a partir da cultura egípcia e das interações do faraó com o exterior e nas fontes
propriamente egípcias, analisando as particularidades da representação faraônica
e do matrimônio em contexto egípcio; 2) analisar os casamentos diplomáticos e seus
significados e implicações para o faraó; 3) investigar as possibilidades dos destinos
das princesas estrangeiras quando era consolidado o matrimônio e chegavam à
corte faraônica, integrando o “harém” egípcio e tendo seus paradeiros
desconhecidos para os reis que as enviavam.
se referir aos itens trazidos com a princesa), “esposa real” (ḫ mt nswt, ) etc.
O termo nmt nsw é muito importante para pensarmos na análise da Estela
de Casamento, assim como no caso das cartas hititas, uma vez que era esperado
por Puduhepa e Hattusili III (e por todos os Grandes Reis nas cartas de Amarna
nas negociações matrimoniais com o faraó) que sua filha se tornasse a rainha do
Egito, e não uma esposa secundária, sem papel relevante. A análise desse termo é
4A oportunidade foi concedida por uma bolsa estágio de pesquisa no exterior (BEPE) pela FAPESP
(processo nº 2018/11390-8).
193 VI EPEGH
essencial na medida em que ele nos fornece pistas para o entendimento do faraó
sobre sua nova esposa estrangeira e se essa compreensão era conflituosa ou não
com a relação de igualdade estabelecida com um rei estrangeiro, com o desejo da
corte hitita acordado por Ramsés II e sobre sua concepção geral em relação a sua
nova esposa.
195 VI EPEGH
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199 VI EPEGH
A representação da mulher no quadro interior com figuras
RESUMO: André Lhote (França, 1885 – 1962) foi escultor, pintor, crítico e
educador. Preocupado não apenas com o ato de pintar, mas também com as teorias
que o pintar envolvia, Lhote realizou ampla produção escrita, incluindo textos
críticos, livros sobre aspectos da produção das vanguardas e tratados sobre
pintura, paisagem e figura. Ele está presente no acervo do Museu de Arte de São
Paulo Assis Chateaubriand (MASP) com duas obras que expõe dois momentos
distintos de seu percurso como artista. O presente artigo propõe o estudo específico
de um desses quadros, Interior com figuras femininas de 1936, acerca da
representação feminina que ele veicula e em face da escassez de trabalhos em
português sobre o artista e a pintura. O princípio de que a obra pictórica possui
sua própria linguagem, a ser compreendida e relacionada com a bibliografia e Þcom
textos escritos pelo próprio Lhote, guia metodologicamente o trabalho. Dessa
forma, é possível desvendar características e tendências de sua pintura, tanto nas
interlocuções que estabelece juntamente aos movimentos artísticos com os quais
dialogou quanto na originalidade de seus trabalhos.
PALAVRAS-CHAVE: André Lhote; Arte moderna; França; Representação da
mulher.
2 No original: “C’est un immense sentiment de libération qu’éprouve l’artiste lorsqu’il a précisé par
des mots le sens de ses trouvailles plastiques.”
3 Todas as informações biográficas foram consultadas em LHOTE, André. A. Lhote: rétrospective .
tela, 139 cm × 375 cm (55 in × 148 in), Museum of Fine Arts, Boston.
201 VI EPEGH
distanciamentos com quem considera os principais cubistas (a saber, Picasso e
Braque). Ele escreve sobre Lhote em tal contexto:
5 No original: “Lhote, who had already established a certain independent reputation, mixed
cautiously in Cubist circles, but from 1911 onwards was generally referred to as a Cubist, although
his somewhat academic style often gained him exemption from the unfavourable criticism directed
at the other painters.”
6 A abordagem da arte por André Lhote atraiu grande audiência, tendo o artista proferido seus
cursos e conferências extensivamente na França, bem como na Bélgica, Inglaterra, Itália, Egito e
Brasil.
7 De tal percepção vem a proposta de estudar, em conjunto, uma de suas obras pictórica e parte de
sua produção escrita.
8 No original: “(...) in his teaching and writing established himself as the official academician of
Cubism. (...) Lhote’s transformation of the intuitive classicism of Cubism into a system of stringent
rules produced works whose obvious lucidity of structure and color were eminently suitable to the
expansion of their style into the realm of decorative arts.”
9 O jornal carioca Correio da Manhã se referiu a Lhote dessa forma ao anunciar a estadia do pintor
por três meses no Rio de Janeiro, onde deu aulas coletivas e individuais de pintura aperfeiçoada.
In: André Lhote ensinará no Rio. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, p. 11, 13 jul. 1952.
203 VI EPEGH
Nesse sentido, parte-se dos escritos de Christopher Green sobre Cubismo e
sobre a arte francesa da primeira metade do século XX. Diferente de seu orientador
Golding, que situa a obra de Lhote tendo como ponto de partida aqueles que ele
considera "the major Cubists" (GOLDING, 1988: 196), e de Rosenblum, que dá
prioridade para o entendimento de sua obra escrita, bem como de suas
repercussões, Green parece buscar um entendimento das diferentes formas de
cubismo em disputa, por assim dizer, aproximando-se mais do objetivo da presente
proposta de compreender o cânone - nesse caso, por meio daquilo que ficou fora
dele.
Entende-se, aqui, pintor e obra como objetos de análise dentro do complexo
sistema social, econômico e, por que não, acadêmico no qual estavam inseridos
quando do momento de produção. Green dá relevância, portanto, ao círculo
artístico-social com o qual Lhote conviveu, bem como à recepção dele em seu
próprio período.
Embora suas observações sobre a inserção de Lhote em tais círculos remeta
à década de 1910 – período anterior, portanto, às fontes primárias que serão
analisadas conjuntamente a seguir –, é importante entendê-las e mobilizá-las para
rediscutir a noção do cubismo como algo hermético e restrito, bem como para não
se incorrer no erro de classificar a obra do acervo do MASP e a produção escrita de
Lhote limitando-as aos princípios de alguma teoria específica e excludente. De
acordo com ele, no livro Cubism and its enemies: modern movements and reaction
in French art, 1916-1928,
A contribuição de André Lhote como um Cubista não foi tão notável, mas
(...) ele esteve entre os apoiados por Léonce Rosenberg, o comerciante que
substituiu o exilado D.-H. Kahnweiler como o patrocinador do cubismo
parisiense de 1915. Ele esteve próximo de membros do círculo cubista
como Juan Gris e Gino Severini em 1916-17, e fez pinturas cujas
avançadas credenciais cubistas na época teriam sido inquestionáveis.”
(GREEN, 1978: 8, tradução própria)10
10No original: “André Lhote contribution as a Cubist had not been as noticeable, but (...) he had
been among those supported by Léonce Rosenberg, the dealer who replaced the exiled D.-H.
Kahnweiler as the sponsor of Parisian Cubism from 1915. He had been close to such members of
the Cubist circle as Juan Gris and Gino Severini in 1916-17, and had made paintings whose
advanced Cubist credentials at that time would have been unquestioned.”
11 O livro traz oito textos da autoria de Lhote de 1919 a 1948, três deles inéditos quando da
publicação, sendo que a primeira compilação foi realizada postumamente pela editora Hermann. É
importante levar em conta as distâncias históricas da escrita dos diferentes textos que compõem o
livro para que se possa entender seus objetivos. Vários aspectos, ainda assim, os perpassam todos,
como a defesa da reflexão teórica de artistas e a conciliação entre o moderno e o classicizante na
pintura.
12 De autoria de Lhote, pode-se citar L’art moderne, escrito também em 1948.
205 VI EPEGH
possível identificar ainda que a bidimensionalidade da construção das figuras
femininas desafia os tradicionais recursos ilusionistas ao mesmo tempo em que
denota um retorno aos modelos mediterrâneos - assim como faz, em Interior com
figuras femininas, o arco que define o ambiente interior no qual as figuras estão
inseridas. Ademais, esses dois aspectos da pintura de Lhote parecem fazer
referência à Pierre Puvis de Chavannes:
A localização geográfica genérica, as colunas clássicas, os tons suaves, as
figuras femininas rígidas, idealizadas, descobertas13. Em Interior com figuras
femininas, porém, a presença do arco entrelaça o clássico e o moderno ao ser
pintado de acordo com uma técnica de torção dos planos que, juntamente com a
variação tonal do alaranjado de sua parte interna, dá a ele profundidade.
Os traços das cinco mulheres são cada vez mais simples conforme a
perspectiva avança, até que a figura feminina mais distante do primeiro plano é
definida apenas pelo contorno. Considero que isso tem relação com os diálogos
entre paisagem e figura, construídos e reformulados no decorrer da História da
Arte e pelo próprio Lhote em seus dois tratados, Traité de la figure e Traité du
paysage, ao ler a pintura de paisagem em termos do corpo humano. Com isso, ele
ativa um velho tropo renascentista ao afirmar que a figura humana dá a medida
de toda atividade pictórica (BENJAMIN, 1993: 312-314): "Toda a paisagem é
modelada como um corpo humano, pois o homem continua sendo o protótipo da
criação artística" (LHOTE apud. BENJAMIN, 1993: 312, tradução própria)14,
sendo a palavra homem usada como sinônimo de figura humana.
Analogias entre a figura humana e a paisagem apareceram na crítica
francesa bem antes disso: em livro publicado em 1859, consta que Baudelaire a
invocou em referência a Corot, pintor identificado ao realismo francês, escrevendo:
"ele é um dos raros, talvez o único, que manteve um profundo senso de construção...
e, se alguém pode comparar a composição de uma paisagem com a estrutura
13 Ver, por exemplo: Pierre Puvis de Chavannes, Le Bois sacré cher aux arts et aux muses, 1884.
Óleo sobre tela, 460 × 1 040 cm. Musée des beaux-arts de Lyon.
14 No original: “Lhote's closing metaphor reads the painting of the landscape in terms of the human
body. While his exaltation of the ‘irrational’ within the simile of the landscape-body seems to
address Surrealism (and perhaps even the paintings of Dali), Lhote activates an old Renaissance
trope in claiming that the human figure gives the measure of all painterly activity: ‘The whole
landscape is modeled like a human body, for man remains the prototype of artistic creation’.”
15 No original: “Analogies between the human figure and the landscape had appeared in French
criticism well before this: Baudelaire, for example, invoked it in reference to Corot, writing, ‘he is
one of the rare ones, perhaps the only one, who has kept a profound sense of construction . . . and,
if one may compare the composition of a landscape to the human frame, who always knows where
to place the bones, and what dimension they should be given’.”
16 No original: “A suggestive aspect of identifying the figure with the land is the possibility, implied
in Lhote's remarks quoted above, that the landscape is gendered female relative to the activity of
the (male) painter. The corollary here is a transference of the artist's desire between the female
body as the archetypal object of painting, and the landscape (woman evidently being figured,
according to the patriarchal metaphor, as forming the body of Nature).”
17 No original: "The young Lhote wrote, for example: 'I would like to be able to model my landscape
like a figure, manage to transform the succession of silhouettes and their ranking by means of
contours. It's all in establishing the continuity of the planes. All of Cezanne's efforts aimed at that'."
18 Paul Cézanne, O grande pinheiro, 1890 - 1896. Óleo sobre tela, 85.5x92.5 cm. Museu de Arte de
20 Segundo o autor, "Lhote e um grande número de pintores como ele, que foram referidos como
'cubistas', na realidade somente compartilharam dos aspectos mais superficiais do estilo e os
utilizaram para criar um academicismo atualizado." No original: "Lhote and a large number of
painters like him, who were referred to as 'Cubist', had really only seized on the most superficial
aspects of the style and were using them to create an up-to-date academicism". (GOLDING, 1988:
196)
André Lhote ensinará no Rio. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, p. 11, 13 jul. 1952
. Cubism in the shadow of war: the avant-garde and politics in Paris 1905-
1914. New Haven; London: Yale University Press, 1998.
. et al. Leger and Purist Paris. London: Tate Gallery, 1970. (catálogo de
exposição)
. Cubism and its enemies: modern movements and reaction in French art,
1916-1928. New Heaven; London: Yale University Press, 1978.
POLLOCK, G. Differencing the canon: Feminism and the writing of art's histories.
Routledge, 2013.
209 VI EPEGH
Antonio Gramsci na transição democrática brasileira
RESUMO: Apresento neste artigo meu projeto de Iniciação Científica em que busco
investigar as diferentes apropriações e mobilizações do pensamento de Antonio
Gramsci por intelectuais brasileiros/as, em meio ao processo de transição
democrática das décadas de 70 e 80. Mais do que apresentar resultados e
conclusões, procuro introduzir a pesquisa recém-iniciada, parte integrante de uma
agenda mais ampla de investigações sobre os usos de Gramsci pelos brasileiros
para interpretar a realidade nacional.
PALAVRAS-CHAVE: Antonio Gramsci; transição democrática; redemocratização;
intelectuais; ditadura militar.
APRESENTAÇÃO
Ainda que Antonio Gramsci seja bastante conhecido, convém tecer algumas
breves notas sobre sua vida e obra. Gramsci nasceu em 22 de janeiro de 1891 na
Sardenha, ilha italiana onde residiria até finalizar os estudos básicos. Sua família
sofria com problemas financeiros, acentuados pela prisão de seu pai em 1897, o que
teria levado o pequeno Antonio a trabalhar por dois anos em uma repartição fiscal
sarda (cf. ROSENGARTEN, 2018).
Anos mais tarde, entre 1908 e 1911, Gramsci, ainda na Sardenha, morou
com seu irmão mais velho Gennaro, então membro do Partido Socialista Italiano
(PSI). Por influência do irmão, Antonio Gramsci começou a se interessar por
política e a frequentar círculos socialistas. Também nessa época publica seu
primeiro artigo no jornal diário L’Unione Sarda e tem seus primeiros contatos com
a obra de Marx (cf. IGS, 2018).
Em outubro de 1911, Gramsci consegue uma bolsa de estudos na
Universidade de Turim, ingressando no curso de Letras. Na cidade de Turim,
conhece militantes socialistas e comunistas, como Palmiro Togliatti, futuro
secretário geral do Partido Comunista Italiano (PCI) e editor das primeiras
publicações dos Cadernos do Cárcere, escritos por Gramsci anos mais tarde na
213 VI EPEGH
tornaria cada vez mais conhecido mundialmente, dadas as contribuições
valiosíssimas de seus escritos (cf. ROSENGARTEN, 2018).
"GRAMSCI DO BRASIL"
As primeiras menções a Antonio Gramsci no Brasil datam do final da década
de 1920 no jornal socialista La Difesa, editado por italianos radicados no país
(SECCO, 2002, p. 13). São notícias de sua prisão e condenação pelos fascistas. Seu
nome era conhecido por parte da esquerda italiana exilada no Brasil, mas pouco se
sabia de fato sobre ele. Em 1933 uma menção mais incisiva: G. Rosini, trotskista
italiano que vivia em São Paulo, denuncia num artigo a situação dramática vivida
por Gramsci na prisão, inclusive reproduzindo o diagnóstico do médico Umberto
Arcangeli, que o examinou no cárcere no mesmo ano (ibidem, p. 15).
215 VI EPEGH
sobre Gramsci4.
O Brasil acompanhou essa tendência (ainda que a edição crítica de
Gerratana nunca tenha sido lançada por aqui). As décadas de 1970 e 1980 assistem
a um aumento expressivo dos estudos gramscianos no país e com eles a uma plena
utilização de seu léxico característico. Entre 1975 e 1984 “foram várias dezenas de
artigos brasileiros sobre Gramsci, inúmeros excertos e coletâneas da sua obra e
diversos textos e livros traduzidos sobre seu pensamento, além da reedição dos
volumes dos Quaderni, publicados em 1966-68 e de algumas teses acadêmicas.”
(SECCO, 2002, p. 46).
Tal como no plano internacional, também a autoridade intelectual e política
de Gramsci seria objeto de disputa nessas décadas por duas diferentes tendências
mais gerais: i) Gramsci como teórico e político “comunista” no sentido da
Internacional e ii) Gramsci como teórico e político de uma “nova esquerda” (MUSSI,
2018, p. 1). Mas a influência do marxista sardo também seria sentida na própria
teorização sobre as transformações econômicas e sociais de nosso país (incluindo o
golpe militar de 1964):
“[...] as transformações políticas e a modernização econômico- social no
Brasil foram sempre efetuadas no quadro de uma “viaprussiana”, ou seja, através
da conciliação entre frações das classes dominantes, de medidas aplicadas “de cima
para baixo” com a conservação essencial das relações de produção atrasadas (o
latifúndio) e com a reprodução (ampliada) da dependência ao capitalismo
internacional; [...] Mas essa modalidade de “via prussiana” (Lênin, Lukács) ou de
“revolução- restauração” (Gramsci) encontrou seu ponto mais alto no atual regime
militar, que criou as condições políticas para a implantação em nosso País de uma
modalidade dependente (e conciliada com o latifúndio) de capitalismo monopolista
de Estado, radicalizando ao extremo a velha tendência a excluir tanto dos frutos
do progresso quanto das decisões políticas as grandes massas da população
nacional.” (COUTINHO, 1979, p. 41-42)
Cabe ressaltar que no período, o léxico gramsciano também foi tomado como
4 ParaSecco, a edição de 1975 propiciou usos bastante múltiplos, tais como “legitimar aproximações
com diversas correntes políticas, como o trotskismo, maoísmo, social-democracia liberalismo e até,
nos anos 1990, um ‘gramscismo de direita’ (sic)” (SECCO, 2002, p. 37).
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A compreensão da “tradução” do pensamento de Gramsci pela
intelectualidade brasileira é parte da compreensão da história de nossa
intelectualidade. Mas não é só isso. Acompanhando as reflexões de Portantiero (cf.
1983), para quem a apropriação da obra política e intelectual de Gramsci é
frequentemente relacionada às aspirações e necessidades políticas dos diferentes
grupos que o fazem, temos um desdobramento importante: compreender os
intelectuais gramscianos brasileiros é também compreender parte das aspirações
políticas concretas presentes no nosso país. Ultrapassa, portanto, os círculos
especializados e restritos da academia.
Para tanto, é necessário compreender as circunstâncias imediatas em que os
textos que mobilizaram o léxico gramsciano para interpretar o Brasil foram
escritos, além da análise das intenções políticas da intelectualidade que produziu
tais textos. Muitos dos que conceberam o Brasil sob lentes gramscianas foram
membros de partidos ou movimentos políticos - e à época da crise da ditadura
militar a preocupação com a construção de uma sociedade democrática era latente.
Um outro aspecto, mais contemporâneo, motiva minha pesquisa.
Considero necessária a compreensão da recepção de Gramsci no Brasil para além
das formulações simplistas e inverossímeis que alguns setores hoje ligados ao
217 VI EPEGH
governo Bolsonaro têm advogado. Refiro-me à suposta existência do “gramscismo”,
entendido como um “negócio tremendamente maquiavélico”, um suposto plano
bolado por Gramsci nos anos do cárcere para “amestrar o povo para o socialismo
antes de fazer a revolução. Fazer com que todos pensassem, sentissem e agissem
como membros de um Estado comunista enquanto ainda vivendo num quadro
externo capitalista.” (CARVALHO, 1994, p. 31).
Conquanto se possa facilmente afirmar o pouco rigor da leitura de Gramsci
destes setores, em especial de Olavo de Carvalho, alçado a uma espécie de Rasputin
do Governo Federal, suas formulações fictícias têm influenciado concretamente; a
nomeação do Ministro das Relações Exteriores foi por indicação de Carvalho (cf.
FOLHA DE SÃO PAULO, 2018). O novo chanceler, Ernesto Araújo, também
partilha da infundada ideia de que há uma conspiração do “marxismo cultural”
para a destruição do Ocidente (cf. ARAÚJO, 2018).
CARVALHO, O. de. Sto. Antonio Gramsci e a salvação do Brasil. in: Nova Era e a
Revolução Cultural: Fritjof Capra e Antonio Gramsci, 1994. Disponível em:
<http://www.olavodecarvalho.org/livros/ negramsci.htm> Acesso em 30 jan 2019.
MELLO, P. C. Novo chanceler, Ernesto Araújo foi indicado por Olavo de Carvalho.
Folha de S. Paulo, São Paulo, 14 nov. 2018. Disponível em:
219 VI EPEGH
<https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2018/11/novo-chanceler- ernesto-araujo-foi-
indicado-por-olavo-de-carvalho.shtml> Acesso em: 30 jan. 2019.
SECCO, L. Gramsci e o Brasil: recepção e difusão de suas idéias. São Paulo: Cortez
Editora, 2002.