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Identidade Pomerana
Uma Viagem Formativa Desvelando Conflitos Soterrados
Z
Gepech
Grupo de Estudos e Pesquisas sobre
Educação na Cidade e Humanidades
Identidade Pomerana
Uma Viagem Formativa Desvelando Conflitos Soterrados
Z
1ª Edição
Vitória
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Espírito Santo – IFES
2018
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CPI)
Biblioteca Nilo Peçanha do Instituto Federal do Espírito Santo – Campus Vitória
CDD 21 – 325.1098152
Elaborada por Marcileia Seibert de Barcellos – CRB-6/ES - 656
Capa e Editoração:
Swami Cordeiro Bérgamo
Imagem da Capa:
Obra artesanal de Kristian Wener Lima (2017), dedicada à sua professora Kellen de Souza Lima.
Produção e Divulgação:
Programa de Mestrado Profissional em Ensino de Humanidades (PPGEH)/ Ifes
Instituto Federal do Espírito Santo – Campus Vitória
LUCIANO TOLEDO
Pró-Reitor de Desenvolvimento Institucional
MÁRCIO ALMEIDA CÓ
Diretor de Ensino
Apresentação ................................................................................................. 10
Capítulo I
A viagem formativa ........................................................................................ 14
Santa Maria de Jetibá .................................................................................... 17
Capítulo II
O baú de viagem ............................................................................................ 22
Campo e Cidade; Rural e Urbano ......................................................................................... 23
Educação na Cidade ............................................................................................................. 25
Cultura e Identidade ............................................................................................................. 28
Enxaimel e o neo-enxaimel .................................................................................................. 32
Re-germanização ................................................................................................................. 39
Re-pomeranização ............................................................................................................... 40
Capítulo III
Desvelando os conflitos soterrados .............................................................. 50
Arquitetura estereotipada: turismo e a identidade de “fachada” ...................................... 51
Pela Cidade: trajeto e mapa urbanos .................................................................................. 64
Arquitetura tradicional pomerana: a casa antiga e o modo de vida .................................. 66
Pelo Campo: trajeto e mapa rurais ...................................................................................... 78
Arquitetura da produção: entre o agronegócio e a agricultura familiar ............................ 80
Considerações finais
Álbum de viagem ........................................................................................... 94
Referências .................................................................................................... 98
Se o arranjo da cidade e da urbanidade como um todo é, por si, um agente
educativo e investe na formação subjetiva de seus habitantes, torna-se
premente aprender a ler a grafia social inscrita nessa ordenação citadina.
IDENTIDADE POMERANA
Uma viagem formativa desvelando conflitos soterrados
2018
Apresentação
[ 10 ]
Assim, em busca de uma compreensão para uma “identidade de fachada”,
reflexiva e crítica sobre as inquietações vinculada a interesses turístico-
propostas, organizou-se este livro como econômicos; a casa tradicional
uma jornada ao saber, sendo o caminho a pomerana, vinculado ao modo de vida
se percorrer disposto em três capítulos: dos primeiros imigrantes que chegaram
1) a viagem formativa; 2) o baú de nesta região; por fim, a indústria do
viagem; 3) desvelando os conflitos agronegócio na forma de granjas
soterrados. Por fim, as considerações automatizadas que movimentam uma
finais compõem o álbum dessa viagem. cadeia produtiva ampla em
contraposição à agricultura familiar de
Assim, o capítulo I trata do material
camponeses com propriedade de
educativo, posto como uma viagem
pequeno ou médio porte.1 Sugere-se
formativa na concepção da Bildung.
ainda dois trajetos contra-hegemônicos:
Expõe ainda o território a ser explorado:
pela cidade e pelo campo.
Santa Maria de Jetibá. No capítulo II
organiza-se o referencial teórico central Trazer tal problematização torna-se
desta investigação sobre os temas: promissor na apreensão histórica da
cidade/campo e urbano/rural; educação identidade pomerana. Ao se materializar
na cidade; cultura e identidade; enxaimel nos diversos espaços de formação, pode
e neo-enxaimel; re-germanização e re- tornar-se mais uma proposta mediadora
pomeranização. O capítulo III consiste no a ser utilizada pelos atores sociais da
coração deste e-book. Nele são educação e da comunidade pomerana,
analisados três tipos de construção que até na formulação e prática de políticas
arrogam para si a identidade pomerana. públicas, visando à emancipação crítica
São eles: os prédios com “estilo do sujeito histórico.
germânico” (neo-enxaimel) que apontam
IDENTIDADE POMERANA
Uma viagem formativa desvelando conflitos soterrados
2018
A Viagem Formativa
O presente material apresenta-se como Berman (1984 apud SUAREZ, 2005) diz
uma viagem formativa, representada na que, para F. Schlegel, a lei da viagem é a
concepção da Bildung: da alteridade, isto é, o outro como chave
de apreensão de si. A formação cultural
O projeto da Bildung, de acordo com os
pensadores frankfurtianos, é realizar a traduz um aventurar-se de encontro com
meta da humanidade, qual seja, o pleno
desenvolvimento do indivíduo (em sua a alteridade; ao experimentar o diverso
totalidade). De acordo com a concepção
adorniana (1996), a Bildung não deveria
de si, o viajante tem a chance de voltar e
ser reduzida a uma simples educação no decifrar-se melhor, de modo mais pleno
sentido da padronização, da socialização,
elementos incompatíveis com a (SUAREZ, 2005).
autonomia, a experiência, a
emancipação. A Bildung, como
apropriação subjetiva da cultura, diz o Para o propósito deste estudo, orientar a
autor, só se legitima como exercício
crítico e autocrítico, de caráter elaboração do material educativo como
emancipador, indo além da
semiformação (ADORNO, 1996 apud
uma “viagem formativa” representa
MANFRÉ, 2009). propor uma experiência de sair de si, do
A partir dessa orientação, propõe-se, que existe de mais familiar, e visitar o
nesse e-book, uma incursão na cidade de outro, aquilo que é extraordinário, fora
Santa Maria de Jetibá na forma de uma do lugar comum do viver de cada
“viagem formativa”. Ao discutir o termo individualidade. Nesse sentido, adota-se
alemão Bildung, Suarez (2005) observa a compreensão de que
que ele se impõe a partir da segunda
A ‘grande viagem’ que caracteriza a
metade do século XVIII com um caráter Bildung não consiste em ir a um lugar
qualquer, não importa aonde, mas, sim, lá
bastante dinâmico, “[...] exprimindo, ao onde nos possamos formar e educar
(SUAREZ, 2005, p. 195).
[ 14 ]
No caso específico, a viagem formativa se estereotipado e plastificado como
opõe à redução da cultura a um produto produto turístico ou o que é identidade
mercadológico que engessa a identidade historicamente constituída pelo povo
pomerana ou a homogeneíza. pomerano.
Fonte: Google (2018). Disponível em: <encurtador.com.br/cfrGS>. Acesso em: 01 dez. 2018.
3Ditado popular pomerano que expressa a dificuldade de cada geração. Em pomerano: “For dai airste de
dood. For dai twaite dai nood. For dai drüre dat brood” (TRESSMANN, 2005, p. 74).
Santa Maria de Jetibá
Corona, 2012
O Baú de Viagem
Capítulo II
IDENTIDADE POMERANA
Uma viagem formativa desvelando conflitos soterrados
2018
O baú de viagem
[ 22 ]
Campo e Cidade, Rural e Urbano
[ 24 ]
Educação na Cidade
[ 25 ]
conflitos soterrados, a educação escolar O processo de intencionalidade e
pode ser construída como um sistematização, no qual o educador é
instrumento de luta contra-hegemônica, fundamental, na proposta da Educação
mas a favor das classes populares e de na Cidade, segundo Vasconcelos e Chisté
sua emancipação. (2018, p. 50), deve se ater
preliminarmente a algumas questões,
Nesse sentido, compreendemos que
educar na cidade pressupõe o como segue:
desvelamento de seus espaços, muitas
vezes configurados para reproduzir a
sociedade desigual em que vivemos.
Essas contradições precisam ser • Qual potencial
reveladas por meio de uma educação que transformador tem a
empodere os sujeitos e os impulsionem cidade?
a, coletivamente, criar meios de
transformar as condições de exploração • Que locais podem
em que estão hodiernamente problematizar o que
submetidos. (VASCONCELOS; CHISTÉ, está posto?
2018, p. 46).
• Que estratégias podem
Assim, o seu diálogo com a cidade, como ser pensadas nesses
espaços que contribuam
intencionalidade educativa, pressupõe com a problematização
que da realidade?
• Como pode a cidade
[...] Educação em seu sentido amplo contribuir com o
depreende processos de apropriação de processo de
conhecimentos diversos e pode ser
efetivada em variados locais. Assim,
humanização dos
consideramos que é possível educar em sujeitos?
diferentes espaços, sejam eles a escola, a
• Que lugares da cidade
rua, o museu, os monumentos históricos,
os prédios, as pinturas dos muros, os podem contribuir com o
parques ecológicos, as praças, as processo de
instituições bancárias, os postos de humanização?
saúde, os hospitais, os centros
comunitários, o comércio em geral, a • Como planejar a visita
igreja, etc. Basta para isso termos a a esses espaços?
intenção e condições objetivas para fazê-
lo (VASCONCELOS; CHISTÉ, 2018, p. 49- • Como dar
50). continuidade as
reflexões iniciadas na
Deste modo, cabe ao educador visita no espaço escolar?
desenvolver e estabelecer este olhar
sensível como uma opção político- Tal problematização revela a relação
pedagógica. Antes de tudo, cidade e educação a ser estabelecida.
Assim, a Educação na Cidade não propõe
[...] o educador deve contemplar a cidade,
pensar a cidade, extrair de cada espaço a tutela política do Poder Público para
dela as lições que possam dar mais vida
às pessoas, humanizar os cidadãos. Essas sua implementação. Ou seja, sua prática
são algumas chaves de leitura da cidade
e de seus espaços (CHISTÉ; SGARBI, está na postura (olhar) do professor e da
2015, p. 105).
professora ou da escola, através de seu
Projeto Político Pedagógico (PPP).
[ 26 ]
A proposta de Educação na Cidade, por oferecer, as reflexões possíveis de serem
exemplo, não exige que a Municipalidade levantadas diante da realidade
ou o Estado assine uma carta de historicamente constituída no espaço.
intenções formais para ser realizada. Portanto, trata-se de ver e extrair tudo o
que for capaz de instigar percepções e
A Educação na Cidade,11
inspirar transformações.
metaforicamente, pode ser vista como
um movimento de guerrilha, usando as É nesse horizonte que perpassam as
brechas do território para lançar análises sobre a identidade pomerana em
“ataques pontuais” e constantes, latentes Santa Maria de Jetibá e elabora-se a
de intencionalidade e sistematização, viagem formativa ao “visitar” as
com ações educativas contra- construções nela presentes, seja no
hegemônicas. campo ou na cidade.
11“A expressão Educação na Cidade é aquela que CNPq, reúne-se no Ifes (campus Vitória) e visa: 1)
se aproxima mais efetivamente da proposta do discutir as relações entre a cidade e a educação a
Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Educação na partir de áreas do conhecimento relacionadas
Cidade (GEPECH)”, conforme evidencia Eliana com as humanidades; 2) planejar, executar e
Kuster no prefácio do livro Educação na Cidade: avaliar formações de professores da educação
conceitos, reflexões e diálogos (MARTINELLI básica que contribuam com reflexões sobre os
FILHO; CÔCO; CHISTÉ; DELLA FONTE, 2018, espaços da cidade; 3) sistematizar materiais
p.13); obra resultante do trabalho deste grupo. O educativos que discutam e apresentem propostas
GEPECH, que integra uma das linhas pesquisa do educativas relacionadas com a cidade (GEPECH,
grupo “Artes Visuais, Literatura, Ciências e acesso em 26 jul. 2018).
Matemática: diálogos possíveis” cadastrado no
[ 27 ]
Cultura e Identidade
política emancipadora na visão preciso estar atento para não cair neste
[ 28 ]
precisa observar a contextualização Enquanto os demais animais são aquilo
histórica, as relações materiais de que são programados biologicamente a
manutenção e reprodução da vida dos serem, o que o ser humano é depende do
sujeitos desta localidade, em sua seu viver, do que ele produz para
condição singular e, ao mesmo tempo, satisfazer suas variadas necessidades e
vinculada a universalidade humana. de como produz, isto é, de todas as
relações que estabelece para realizar
Em sua forma geral, a identidade remete
essa produção (relação com a natureza,
para aquilo que dá distinção a uma
com outros seres humanos, com os
situação, a uma coisa, a uma instituição, a
instrumentos de trabalho, com o produto
uma pessoa ou grupo a ponto de
do trabalho etc.).
individualizá-los. Ao aprofundar essa
indicação, percebe-se que a identidade Sob essa lógica, a identidade remete à
remete para o que faz com que algo ou essa estrutura econômica. Aqui, porém,
alguém seja o que é. Por isso, vincula-se cabe seguir a observação de Karel Kosik:
ao debate da essência, ao elemento estrutura econômica não significa fator
nuclear que caracteriza o ser das coisas. econômico. Enquanto este remete para o
mundo limitado da propriedade, da
Longe de toda uma tradição que define a
renda e do dinheiro ou da posse, aquele
identidade de modo estático e
tem um sentido ontológico e aponta para
apriorístico, sugere-se pensar a
o “[...] homem no processo de produção e
identidade de um grupo humano a partir
reprodução da própria vida social”
de algumas contribuições marxistas. N’A
(KOSIK, 1995, p. 116).
ideologia alemã, Marx e Engels (2007)
insistem que viver é produzir as O processo de produzir e reproduzir a
condições e os meios para existir. Por sua vida e, assim, criar a sua identidade
isso, o modo como os seres humanos pessoal e coletiva tem como centro o
produzem esses meios não pode ser visto trabalho, ação tipicamente humana. Em
apenas como reprodução da sua contraste com o sentido corriqueiro de
existência física, mas como manifestação emprego ou profissão, o trabalho como
de suas vidas e, portanto, do que eles são categoria marxista diz respeito ao
em um dado momento:
“[...] processo de que participa o homem
e a natureza, processo em que o ser
Tal como os indivíduos exteriorizam sua humano, com sua própria ação,
vida, assim são eles. O que eles são impulsiona, regula e controla seu
coincide, pois, com sua produção, tanto intercâmbio material com a natureza. [...]
com o que produzem como também com Atuando assim sobre a natureza externa
o modo como produzem. O que os e modificando-a, ao mesmo tempo
indivíduos são, portanto, depende das modifica sua própria natureza” (MARX,
condições materiais de sua produção 1985, p. 211).
(MARX; ENGELS, 2007, p. 87).
[ 29 ]
O trabalho envolve uma dupla relação: O mundo humano ou cultural consiste no
conjunto das produções materiais e
com a natureza e com outro humano, pois simbólicas criadas pelo ser humano em
decorrência do seu trabalho. Nesse caso,
não se transforma a natureza o ser humano se coloca naquilo que ele
produz, isto é, ele se objetiva, coloca o
isoladamente. seu ser no produto. Portanto, toda
produção cultural traz a marca do
Nas Teses contra Feuerbach, Marx humano, materializa o nosso modo de
existir em um determinado momento, o
considera que a essência humana não é que produzimos e como produzimos
nossa vida (DELLA FONTE, 2018, p. 49).
abstrata nem está no indivíduo único.
A depender das relações sociais a riqueza
Nas suas palavras, “Em sua efetividade é
cultural produzida pode ser acessada por
o conjunto das relações sociais” (MARX,
todos ou destinada a determinados
1987, p. 162). Com essa afirmação, Marx
grupos. Em uma sociedade desigual, a
demarca que o ser do humano não é dado
classe social indica o lugar a partir do
antes do seu viver.
qual se produz a vida, se acessa o
Por seu turno, esse viver remete ao patrimônio cultural e se tem consciência
encontro do humano com duas desse processo.
alteridades: a natureza e o outro ser
A existência de classes sociais expressa
humano. Além disso, vincular o ser do
uma sociedade em conflito. Não se trata
humano ao conjunto das relações sociais
aqui de apontar costumes, modos
indica o caráter histórico do fazer-se
distintos de experimentar a sexualidade,
humano. O que é o ser humano é o que ele
modos diversificados de se vestir ou de
tem feito de si, o que e como tem
se alimentar, enfim, de formas de existir
construído o seu viver ao longo do tempo
distintas, mas que podem conviver,
ou durante um mesmo momento
complementar-se, enriquecer-se. A
histórico.
existência de classes sociais fala de
Nesse sentido, a identidade humana é contradições antagônicas:
dada por uma diversidade de modos de
[...] sociedades em que vigoram a
se tornar humano. Em outros termos, a propriedade privada fazem emergir
grupos cuja multiplicidade não
identidade é o que traz a singularidade de impulsiona o desenvolvimento
um grupo, em um determinado compartilhado. Aqui a diferença se torna
sinônimo de desigualdade. O diverso se
momento, ao produzir a vida (o modo de transforma no desigual, no
irreconciliável. Dessa maneira, instaura-
produção da vida), se relacionando com a se uma contradição antagônica entre
classes sociais. Entre elas, existe o
universalidade da humanidade em seu confronto e a incompatibilidade, pois,
para que uma possa se desenvolver, a
conjunto. outra precisa ser explorada. À riqueza de
uma corresponde a vida miserável da
Chama-se patrimônio cultural tudo o que outra (DELLA FONTE, 2016, p. 218).
[ 30 ]
Dessas considerações, podemos extrair Para superá-las, estabeleceram relações
alguns desdobramentos para este mais horizontais entre si a partir do
estudo: contexto rural (SCHMIDT, 2015, p. 31).
No decorrer da história, o povo
12 “As levas de imigrantes, após 1871, eram empresas, estavam destacados alguns pré-
provenientes de ações dos ‘armadores’, que requisitos. Entre eles, que os imigrantes fossem
constituíram empresas de imigração. [...] No agricultores (tolerava-se apenas 10% de não-
contrato firmado entre o governo provincial e as agricultores)” (THUM, 2009, p. 123).
[ 31 ]
Enxaimel e o Neo-enxaimel
13
Wittmann (2016) não se refere aos pomeranos.
Provavelmente os inclui no grupo de imigrantes
alemães.
[ 32 ]
Outro ponto a destacar, conforme a Por utilizar muita madeira, foi caindo em
contribuição de Wittmann (2016) sobre desuso. Assim, a partir da Baixa Idade
o enxaimel (Fachwerk), refere-se a sua Média, com a escassez de madeira, o
contextualização temporal e regional. A enxaimel (contemporâneo do Blockbau)
arquiteta urbanista observa que esta tornou-se hegemônico, mantendo-se
técnica, em seu princípio rudimentar, é assim até o século XVIII, mesmo
identificada desde o neolítico e está passando por variações (WEIMER, 2005
presente em várias partes do mundo. apud VEIGA, 2013, p. 77).
Mas, o conceito geralmente adotado para
Mesmo na Alemanha medieval, o
os estudos no Brasil refere-se à Idade
enxaimel teve sistemas distintos
Média europeia, quando vigoraram as
dependendo da região. Certamente, não
guildas.14
cabe aqui o aprofundamento técnico, mas
Até a Baixa Idade Média, a técnica de é necessário um registro mínimo para
construção predominante na Europa era uma melhor compreensão da aplicação
o Blockbau, que consistia na do neo-enxaimel no Brasil.
sobreposição de troncos roliços de
Assim, registra-se basicamente três
madeira desbastados em dois lados
sistemas construtivos de enxaimel
opostos e que eram encaixados nas
alemão (WEIMER, 2005 apud VEIGA,
extremidades (Figura 3).
2013):
14
As guildas eram corporações de ofício nas edificações somente a madeira (evitava-se cravo,
(associações) formadas por profissionais prego ou parafuso de metal em uma edificação
manufatureiros (alfaiates, sapateiros, pedreiros, Fachwerk). Caso usasse, isto não significaria que
ferreiros, etc.), visando defender seus respectivos deixaria de ser um Fachwerk, mas a “reputação” do
interesses. O seu surgimento está relacionado ao artesão poderia ser abalada, pois os ferreiros
renascimento comercial e urbano ocorrido na Europa pertenciam a outra guilda (WITTMANN, 2016).
durante a Baixa Idade Média. Nesse tempo, era usual
[ 33 ]
a) baixo-saxão (Niedersächsisch), ao norte (Figura 4): provavelmente o mais antigo e o
mais simples dos três sistemas, caracterizado por usar vários esteios, uns próximos dos
outros, sendo as portas e janelas inseridas exatamente no espaço entre estes esteios,
tendo pouca ou nenhuma escora (peças diagonais), de forma que o desenho na fachada da
casa lembra, às vezes, um tabuleiro de xadrez (como nas casas de Goslar);15
Figura 4– Sistema construtivo baixo-saxão e seu uso em casas na cidade de Goslar (Alemanha)
Fonte: a) Weimer (1994 apud VEIGA, 2013, p79); b) Veiga (2013, p.79).
Fonte: a) Weimer (1994 apud VEIGA, 2013, p. 80); b) Veiga (2013, p. 81).
15 Goslar é uma cidade da Alemanha localizada no distrito de Goslar, estado de Baixa Saxônia.
[ 34 ]
Figura 6 - Detalhe e uso em edificação dos encaixes Schübisches Weibel e Wilder Mann
Fonte: a) Weimer (2005 apud VEIGA, 2013, p. 81); e, b) Veiga (2013, p. 81).
c) franco (Frankisch), no sudoeste, incluindo a Alsácia (Figura 7): ocorre uma espécie de
fusão entre os dois sistemas anteriores, com mais escoras e estas podendo ser curvas ou
serem usados vários tipos de inclinações na mesma edificação, com ampla exploração
estética.
Fonte: a) Weimer (1994 apud VEIGA, 2013, p. 82); e, b) Veiga (2013, p. 83).
Weimer (2005 apud VEIGA, 2013), ao caracterizar cada um desses tipos de enxaimel,
registra que os imigrantes germânicos que chegaram ao Brasil no século XIX são oriundos
de locais onde era usual o enxaimel baixo-saxão. Assim, sendo este o modo de construir
casas que conheciam, aplicaram esta técnica primeiramente na construção de uma
habitação mais simples, de rápida elaboração. E, posteriormente, em uma casa definitiva.
Em ambas situações, ocorreram adaptações valendo-se dos materiais disponíveis.
[ 36 ]
com casas construídas em terreno Nesse contexto de re-germanização, o
próprio (em destaque), não mais neo-enxaimel apresenta-se como uma
geminadas em ruas estreitas. Dessa arquitetura artificial que, segundo Veiga
forma, o enxaimel passou a ser visto (2013), imita as formas do antigo
como um elo identitário ao passado enxaimel, mimetizando sua aparência,
medieval longínquo e idealizado. com pouco ou sem qualquer
compromisso com a fidelidade histórica.
Este movimento historicista da
Alemanha pode então ser considerado
uma primeira manifestação de uma Veiga (2013) revela que o neo-enxaimel
arquitetura neo-enxaimel, uma vez que o
enxaimel foi trazido novamente ao recria apenas o resultado visual do que
presente em função de seu valor estético
(VEIGA, 2013, p. 92).
seria a aplicação do enxaimel, sem
qualquer efeito estrutural. Mais que isso,
Assim, Veiga (2013) conclui que o neo-
em muitas situações, cria uma
enxaimel de Santa Catarina (1970-1980)
arquitetura Kitsch17 ou pastiche.18
não foi o primeiro caso que trouxe o
enxaimel como estética para o presente. Trata-se de uma “arquitetura de fachada”
E o que seria o neo-enxaimel? Aceita-se para a produção de uma “identidade de
aqui o entendimento adotado por Veiga fachada”:
(2013) para quem o
Nas cidades re-germanizadas não bastou
transformar o patrimônio autêntico19 em
mero objeto de contemplação ou de
neo-enxaimel está associado ao entretenimento. Foi-se além, criando
uma arquitetura Kitsch por natureza [...].
processo de implementação de O neo-enxaimel, chamado
uma política cultural que utiliza pejorativamente de enxaimelóide ou
enxaimeloso por seus opositores, não
o discurso de resgate da tem compromisso nenhum com a
veracidade histórica e nem se preocupa
identidade e da tradição em preservar ou perpetuar a antiga
germânica, valendo-se da técnica do enxaimel. Seus encaixes de
madeira são apenas de fachada,
arquitetura; porém, Veiga geralmente pregadas nas paredes,
criando um estilo e dando apenas um
evidencia o seu caráter político e efeito visual (VEIGA, 2013, p. 62, grifo do
comercial. autor).
17
Kitsch indica a ideia de uma estética inautêntica ou
de qualidade inferior. Por volta de 1860, o termo 19
Ao utilizar a expressão “patrimônio autêntico”,
original em alemão começou a ser usado no sentido Veiga (2013) refere-se ao patrimônio cultural,
atual. O verbo verkitschen, em alemão, significa notadamente arquitetônico, estabelecido em Santa
“[...] trapacear, receptar, vender alguma coisa no Catarina originalmente pelos imigrantes europeus
lugar do que havia sido combinado” (MOLES, 1975, que chegaram nessa região no século XIX,
p. 10 apud VEIGA, 2013, p. 123). constituído do encontro entre culturas (europeias e
18
brasileira) e a realidade material disponível neste
Pastiche, neste caso, referindo-se ao neo- tempo e lugar.
enxaimel, seria a imitação do efeito visual de uma
técnica construtiva com o intuito de se passar por
autêntico (VEIGA, 2013, p. 124).
[ 37 ]
Sobre a re-germanização20 ocorrida na sociedade local, a burguesia vinculada à
década de 1990 na paisagem urbana do atividade comercial e turística, em
município de Forquilhinha (SC), Gislon consonância com agentes políticos que
(2013) traz registros semelhantes: viabilizam tal propósito por meio de
políticas públicas que promovem uma
Essa imitação é conhecida como estilo
enxaimel (ou popularmente como “falso reinvenção falsa e estereotipada da
enxaimel”, “enxamelóide”, “enxaimel
fake”, “neo enxaimel”). Ela nada mais é cultura, aparentemente sem um
que uma construção em alvenaria
comum, que depois de concluída recebe
compromisso mais apurado com a
um tratamento na fachada para que se história, a cultura, o patrimônio e a
pareça com o sistema de encaixe alemão,
o enxaimel. Esse tratamento, na maioria identidade dos imigrantes e seus
das vezes, consiste em uma simples
pintura em forma de “X”, ou raramente, descendentes; além de desconsiderar
no uso de ripas de madeira aplicadas à
fachada, sem função estrutural. Essas outros sujeitos sociais de origem étnico-
construções são muito criticadas pela
sua artificialidade, tanto entre
cultural não germânica, mas que também
historiadores, quanto entre arquitetos constituem a vida no município.
(GISLON, 2013, p. 25).
20 Veiga (2013, p. 20) chama de re-germanização população local. Para Veiga, a re-germanização é
esta política cultural revivalista em Santa Catarina, um exemplo de invenção das tradições, conforme
especialmente entre anos 1970-1980, que traz denominou Hobsbawn (1997), “[...] uma vez que
determinadas características estéticas alusivas a uma certas características culturais, apresentadas como
ideia de germanidade ao presente. Porém, esta algo contínuo, foram forjadas, tendo sido trazidas à
acabou transmitindo uma falsa ideia de cidade do presente para atender uma nova função
germanidade, por criar uma imagem estereotipada depois de um longo período de interrupção”
(Kitsch) da imigração alemã e por induzir os (VEIGA, 2013, p. 21).
visitantes da cidade a crerem que estas
características seriam representativas de toda a
[ 38 ]
Re-germanização
21
Veiga (2013, p. 166, grifo nosso) chega a existência da Casa Pomerana ou não a tem como uma
mencionar Domingos Martins e Santa Maria de construção em enxaimel, tendo em vista que registra:
Jetibá em seu trabalho, como locais onde também “[...] um discurso de tradição estética/arquitetônica
“tem sido construído exemplares que imitam ou também se mostra como frágil, uma vez que na
remetem à estética do enxaimel”. Entretanto, alega época de estabelecimento destes imigrantes,
não dispor de informação sobre a existência nestes praticamente não se construiu casas de enxaimel”
locais de algum exemplar em enxaimel ou grande (VEIGA, 2013, p. 166).
quantidade dos mesmos. Parece desconhecer a
[ 39 ]
Re-pomeranização
22 Propõe-se o conceito de re-pomeranização, considerados todos como ‘alemães’, até mesmo pela
levando em consideração a especificidade dos literatura da área”.
artefatos extraídos da experiência constituída e
observada a partir de Santa Maria de Jetibá-ES. 24
É recorrente em várias eleições em Santa Maria de
Por certo, o termo sugerido busca na re- Jetibá que um determinado grupo político registre
germanização parte dos apontamentos para sua suas coligações com o nome de “Azul e Branco”
construção conceitual. Veiga (2013) faz uma (HILARIO..., [20--]) ou “Azul, Branco e Vermelho”
diferenciação ou uma subdivisão do processo da (TSE, 2004, 2016), remetendo a signos do povo
re-germanização, tendo uma forma pomerano, respectivamente, às cores das bandeiras
“mercadológica” e outra “com real objetivo de se do município e da Pomerânia (onde há um grifo
resgatar a história e as tradições”. Esta dualidade pintado em vermelho). Trata-se de um exemplo desta
configura um paradoxo passível de coexistência. apropriação no âmbito político eleitoral.
O que também pode ser considerado na
compreensão da re-pomeranização.
25
Destacam-se as igrejas Luteranas (IECLB e IELB ).
Mas, também, desde 2016, em Santa Maria de Jetibá,
23
Segundo Thum (2009, p. 141), as pessoas que Testemunhas de Jeová adotam encontros semanais e
ingressaram no Brasil como “Imigrantes Prussianos” impressos em pomerano. Mantêm o site JW.ORG
eram grupos culturais heterogêneos, que, (Jehovaas Tüügen, em pomerano) com materiais
posteriormente, foram “equivocadamente (vídeos, artigos, textos, cursos online etc.)
disponíveis em mais de mil idiomas, inclusive em
pomerano (grafia e dublagem).
[ 40 ]
(educadores/pesquisadores individuais condução exercida pelo protagonismo de
e instituições de ensino/pesquisa). lideranças desta comunidade, que atuam
(individualmente ou institucionalmente)
Certamente, todos esses elementos não
nas frentes ora citadas (econômico,
permanecem estanques, há momentos e
político, religioso, cultural comunitário e
pontos de contato. Atuam
científico-educacional).
independentes, em paralelo, imbricados
ou correlacionados. Conforme se Assim, não é um movimento com
estabelece algum grau de organização envolvimento direto de toda a
sobre pontos em comum, mesmo que comunidade pomerana. Por certo, muitos
eventualmente ou com laços mais soltos, agricultores que vivenciam diariamente
inclusive para além da esfera local o modo de vida do povo tradicional
(estadual, nacional e internacional), as pomerano não têm conhecimento do que
ações desses caracterizam-se como um está sendo discutido ou encaminhado
movimento – o movimento pomerano. como demanda do movimento pomerano
em suas frentes. O que não é uma
Esse movimento pomerano,
peculiaridade desse tipo de atuação
dialeticamente, integra e também
social no Brasil, mas é uma questão posta
caracteriza o processo da re-
para o próprio movimento.
pomeranização. Ele move e é movido,
com momentos de ascensão, estagnação Figura 8 - Cartaz do II PomerBR (2012)
26 O Programa de Educação Escolar Pomerana de Jetibá sobre o PROEPO datam 1991. Mas, este
(PROEPO) oficializa o ensino da língua pomerana foi efetivado apenas em 2005, primeiro como um
como educação intercultural bilíngue (pomerano projeto em cinco municípios (Laranja da Terra,
e português) nas escolas de alguns municípios do Domingos Martins, Pancas, Santa Maria de Jetibá
Espírito Santo. Os primeiros registros da e Vila Pavão). Após 2007, torna-se um programa
Secretaria Municipal de Educação de Santa Maria (KUSTER, 2015).
[ 41 ]
POMERBR,27 lei da cooficialização da Por outro lado, a pomeraneidade também
língua pomerana (Lei n.º 1136/2009), é resultado de uma construção histórica,
inclusão do povo pomerano na Política podendo passar por ressignificações
Nacional de Desenvolvimento (KRONE, 2014) inerentes ao seu tempo e
Sustentável dos Povos e Comunidades lugar. Um desses processos pode ser a
Tradicionais e no Conselho Nacional dos re-pomeranização, seja esta
Povos e Comunidades Tradicionais, constituindo-se como: a) política de
dentre outros. Isso é igualmente a re- reinvenção do passado (notadamente
pomeranização. quando reiterada, conduzida ou
instituída pelo poder público); e/ou b)
É importante distinguir pomeraneidade
possibilidade de (re)descobrir
da re-pomeranização. Esta última refere-
historicamente esse passado e
se a um processo histórico no qual seus
compreender criticamente sua própria
sujeitos possuem um engajamento, com
pomeraneidade.
diferentes graus de consciência sobre
este. A pomeraneidade, por sua vez, De fato, observando os estudos de Thum
considerando os estudos de Carmo Thum (2009) e Krone (2014), percebe-se um
(2009) e Evander Eloí Krone (2014), indicativo de que o processo da re-
expressa a relação com o ato de exercer, pomeranização também foi ou está sendo
mesmo inconscientemente, o modo de vivenciado em outras comunidades
vida pomerano ou vivenciar o “ser pomeranas no Brasil. Mas, certamente,
pomerano” presente no indivíduo ou na demarcada por suas trajetórias
coletividade de seu tempo. O elemento específicas.
característico mais evidente desta
Origens demarcatórias
pomeraneidade é a língua:
Quando a re-pomeranização torna-se
No processo cotidiano do uso da língua, o perceptível em Santa Maria de Jetibá? É
Pomerano é presente em todas as
situações sociais, sendo falado, qualitativo perceber a gênese da re-
conjuntamente, com o Português. Essa
situação demarca uma condição de pomeranização vendo-a brotar (talvez
pomeraneidade, no uso da linguagem,
da qual todos participam. É usada com
inconscientemente) durante a própria
mais frequência pelos mais velhos, com re-germanização. Deste modo, nota-se
menor frequência pelos mais novos,
compreendido por todos (THUM, 2009, que a re-germanização antecede a re-
p. 277, grifo nosso).
27 Em 2010, após diálogo entre as comunidades povo pomerano, pois dá visibilidade às ações que
pomeranas do Rio Grande do Sul e Espírito Santo, estão pulverizadas pelo Brasil afora. As pesquisas
iniciou esses encontros nacionais (PommerBR) e experiências compartilhadas pelos
que reúnem descendentes, pesquisadores, participantes do evento têm fortalecido a luta,
entusiastas e ativistas interessados na cultura e defesa e promoção da cultura e língua pomerana”
história do povo pomerano (KUSTER, 2015). Este (ibid., p. 70).
evento “[...] é um processo de empoderamento do
[ 42 ]
pomeranização, mas há fluídos de ambas Embora podendo incorrer em eventuais
nas mesmas. lacunas, convém apontar alguns itens
expressivos que representam iniciativas
Em Santa Maria de Jetibá, ainda durante
ou buscas pela valorização da cultura e
a re-germanização, verifica-se que há o
história do povo pomerano em Santa
interesse pela cultura do povo pomerano
Maria de Jetibá, num recorte de vinte
e o desejo genérico de sua valorização.
cinco anos (1975-2000). Confira:
Mas, como isso seria possível?
[ 43 ]
Embora importantes, todos estes fatos obter conquistas sociais [...]” (KRONE,
2014, p. 5).
não caracterizam o que está sendo
Krone (2014), em sua dissertação sobre
definido aqui como re-pomeranização.
a construção da pomeraneidade no
Então, diante deste imbricamento, como
extremo sul do Brasil, apresenta também
explicar as iniciativas de valorização da
uma contribuição possível de ser válida
cultura pomerana antes da re-
para Santa Maria de Jetibá:
pomeranização?
29Segundo Hartuwig (2011, p. 42), Carmo Thum imigrantes sob influência germânica. Assim, a
(2009) ao analisar a produção acadêmica sobre a cultura pomerana não foi apenas silenciada, mas
história da imigração no Brasil, encontra uma também depreciada, quando as narrativas e
versão oficializada e generalizante desta, que documentos oficiais forjam a língua pomerana
homogeneíza a cultura alemã como a cultura dos como dialeto.
[ 45 ]
Sobretudo, são simultaneamente ponto
Em síntese, a re-pomeranização
de confluências destas e de partida para
é um movimento semelhante à
a sua expansão, permitindo visualizar o
re-germanização voltado para
antes e o depois com nitidez.
cultura pomerana, tendo seu
Deste modo, validada pela insígnia da auge nas duas primeiras décadas
do século XXI em Santa Maria de
pesquisa científica e com registro oficial
Jetibá. Há elementos
em um dicionário etnolinguístico, dentro
estereotipados como
de uma sociedade constituída nas
mercadoria turística e sua
relações de poder do conhecimento
apropriação por frações
racional e letrado, a língua pomerana
políticas em seus projetos de
deixa definitivamente a pecha de dialeto. poder. Mas, há também outros
Este é um fato extremamente relevante componentes próprios do povo
na trajetória do povo pomerano. tradicional pomerano, por vezes
ressignificados ao modo de vida
De fato, este parece ser o elemento que
vigente de seus descendentes.
faltava para canalizar o sentimento Assim, a materialização das
pulverizado de “valorização do povo temáticas coletivas relacionadas
pomerano”. Como efeito, o ser pomerano à cultura pomerana, seja na
se vê respaldado perante o outro e a si esfera da sociedade civil ou
mesmo. como política pública, advém
desta comunidade e, em geral,
Trata-se de um potente catalisador da por intermédio tanto do
postura de contraestigmatização no movimento pomerano quanto
movimento pomerano. do grupo hegemônico local
vigente.
Deste modo, entende-se principalmente
Em outras palavras, como dito, a
o PROEPO e o Dicionário Pomerano
re-pomeranização pode se
(TRESSMANN, 2006) como pontos
constituir, dialeticamente, como:
impulsionadores ou disseminadores de
a) política de reinvenção do
um conjunto de ações para além do passado (notadamente quando
campo educacional e que integram a re- reiterada, conduzida ou
pomeranização. instituída pelo poder público);
e/ou b) possibilidade de
(re)descobrir historicamente
este passado, compreendendo-o
criticamente.
[ 46 ]
Anotações
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[ 47 ]
Em outras palavras, desvendar suas ruas e seus nomes, suas sedes
administrativas, os recortes de seus bairros, a concentração de sua
população, suas praças e parques, os monumentos públicos, suas formas
arquitetônicas, a localização de suas indústrias e fábricas, o seu ritmo do
trabalho, a sua condição ambiental-ecológica, seus lugares de encontros,
suas rotas de mobilidade, a sua distribuição da riqueza material e
simbólica e seus confrontos de classe.
IDENTIDADE POMERANA
Uma viagem formativa desvelando conflitos soterrados
2018
Desvelando conflitos soterrados
[ 50 ]
Arquitetura estereotipada
Turismo e a identidade de “fachada”
30Essa lei altera o Código Tributário, concedendo isenção de Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU)
para novas construções e reformas de prédios cujo projeto arquitetônico fosse aprovado e classificado de
“estilo germânico”, sendo assim objeto de averbação no Cadastro Imobiliário da Divisão de Tributação da
Secretaria Municipal de Finanças. Garante o benefício por um período de cinco anos a partir da expedição
do “habite-se” (prédios novos) ou do primeiro dia do exercício fiscal seguinte ao término da reforma
(prédios reformados e anteriormente cadastrados). Em situações que suscitem dúvidas sobre o estilo
arquitetônico da construção ou reforma, a lei possibilita ao poder Executivo Municipal constituir uma
comissão de “profissionais especializados” para classificar e julgar o caso em questão (SANTA MARIA DE
JETIBÁ, 1995e). Em 2009, tal benefício passou para dez anos, ainda em vigor (SANTA MARIA DE JETIBÁ,
2009). Porém, conforme Ofício n.º 890/2018/PMSMJ/SECGAB, consta a informação da Superintendência de
Tributação da Secretaria de Fazenda da Prefeitura Municipal de Santa Maria de Jetibá (PMSMJ) que
“nenhum contribuinte obteve a isenção de IPTU, para imóveis construídos, reformados em estilo germânico
que trata a Lei 270/1995” (SANTA MARIA DE JETIBÁ, 2018b). Esta situação é inusitada e intrigante. O efeito
da legislação santa-mariense não demonstra corresponder à mesma pujança estética da arquitetura neo-
enxaimel identificada nas cidades de Santa Catarina por Veiga (2013) e Gislon (2013).
[ 51 ]
A Mensagem nº 056/95 do Executivo que história arquitetônica estabelecida
encaminha para a Câmara Municipal o originalmente na região.
Projeto de Lei nº 055/95 (isenção de Foto 4 - Antiga Secretaria de Cultura, Esporte e
Turismo de Santa Maria de Jetibá
IPTU de imóveis em “estilo germânico”)
revela nitidamente a intenção de
constituir uma identidade cultural no
presente a partir da arquitetura:
ações voltadas para o turismo adquirem Foto 7 - Edificações re-germanizadas em Santa Maria
de Jetibá (2018)
mais autonomia e força enquanto projeto
político neste momento. Mesmo quando
a cultura (alemã ou pomerana) é
abordada, esta mantém um vínculo com
o interesse turístico. Há uma
naturalização da mercadorização das
manifestações culturais (materiais e
imateriais), assim recriadas ou reduzidas
a estereótipos palatáveis ao consumo. Foto: Swami C. Bérgamo, 2018.
32 Para preencher os tramos de madeira usava-se preenchidas com barro atirado com a mão,
a técnica de pau-a-pique do tipo sopapo, também formando assim paredes leves, com cerca de
conhecida como taipa de mão. Consiste em uma quinze centímetros de espessura (CORONA,
estrutura de varas de madeira entremeadas na 2012, p. 59; BUSS, 2018, p. 45).
forma de grade, amarradas entre si por cipós,
[ 56 ]
Foto 16 – Desvelando a arquitetura de fachada Uma outra edificação que também utiliza
o efeito dos tijolos visíveis em parte de
sua fachada é a sede administrativa da
Cooperativa Agropecuária Centro-
Serrana (COOPEAVI) (Foto 17), que
ocupa um local de destaque muito maior
Foto: Swami C. Bérgamo, 2018. no núcleo comercial da cidade, na
O detalhe do prédio em obras (Foto 16) avenida Francisco Schwartz. Em 2009, foi
revela a superficialidade das aplicações de realizada uma reforma neste prédio,
peças de fachada que caracteriza o neo- introduzindo o neo-enxaimel em suas
enxaimel (neste caso, com a imitação da características.
madeira e dos tijolos).
arquitetura do pastiche.
construídos em momentos
Foto 20 – Câmara Municipal de Santa Maria de Jetibá – ES (fundos)
próximos, em um contexto
econômico de prosperidade e em
inteira intensidade do
movimento de re-pomeranização
(SANTA MARIA DE JETIBÁ,
2012). Tais edificações
inspiraram-se na arquitetura da
casa pomerana (Pomerisch Huus,
Foto: Swami C. Bérgamo, 2016.
33A instalação de um espaço com essa finalidade desenvolvimento urbano. Certamente, poderia
é antiga em Santa Maria de Jetibá. As Leis do ter o deslocamento do núcleo comercial da cidade
Plano Plurianual nº 88/1991 (Prefeitura e para outro bairro, influenciando o fluxo de
Câmara) e 139/1993 (Prefeitura, Câmara e consumo e alterando o valor venal das
Fórum) já previam esta dotação, visando propriedades e imóveis. O grupo de comerciantes
“concentrar os serviços públicos municipais em localizados no Centro saiu vitorioso,
um único local, possibilitando o acesso da determinando o atual ponto da Praça dos Três
população e racionalizando o atendimento” Poderes. Esse processo representa um dos
(SANTA MARIA DE JETIBÁ, 1993). Porém, conflitos soterrados apontados como
ocorreu uma disputa quanto à sua instalação, possibilidade de pesquisa na história do
envolvendo interesses de grupos políticos e município. As atas das sessões da Câmara são
econômicos. Acreditava-se que a sua localização uma indicação de fonte interessante, bem como
era determinante na ocupação e no as Leis nº 409/1998 e 438/1999.
[ 58 ]
Foto 21 – Câmara de Santa Maria de Jetibá (frente) Maria de Jetibá, como anteriormente
apresentados.
[ 59 ]
Esta estética neo-enxaimel nas sedes dos auge. Em 2009, este foi inaugurado
Poderes municipais não é uma dentre as atividades comemorativas dos
exclusividade de Santa Maria de Jetibá. 150 anos da imigração pomerana no
Desde 1982, Blumenau-SC já tinha Espírito Santo. Em sua base, registra-se
adotado o neo-enxaimel na arquitetura em alto-relevo algumas cenas da
da nova Prefeitura (Foto 22), em igual trajetória das famílias dos imigrantes,
formato “caixotão”. narrando sua partida da Europa, chegada
na re-pomeranização.
34Em Santa Maria de Jetibá, existia um jornal 35 Trata-se do Monumento em Homenagem aos
homônimo. Em agosto de 2015, ao completar 150 anos da Chegada dos Imigrantes Pomeranos
seus 25 anos de existência, este alterou sua no Espírito Santo (28 de junho de 1859). A obra
denominação para Nova Notícia, embora foi concebida pelo artista plástico Geruelson
mantendo a contagem das edições e dos anos de Chaves Rodrigues e sua inauguração ocorreu em
publicação. 27 de junho de 2009, em cerimônia inserida nas
atividades comemorativas a esta data histórica,
conforme consta em sua placa inaugural.
[ 60 ]
Foto 25 – Representação do embarque dos pomeranos Este monumento também traz outro
no porto de Hamburgo
atributo da re-pomeranização. Diferente
de tempos anteriores, o simbólico desta
escultura oficial remete a uma imagem
coletiva e impessoal, não focalizando em
personalidades notórias.36 Mais do que
simular os primeiros imigrantes colonos,
Foto: Swami C. Bérgamo, 2018.
esta obra pode aproximar-se da
Foto 26 – Representação da chegada dos pomeranos realidade do pomerano mais humilde, em
em Vitória - ES
sua simplicidade autêntica, com sua
família.
Foto 29- Antiga casa pomerana na propriedade rural da família Schmidt (Alto Santa Maria)
B) Antiga sede da
Secretaria Municipal de Cultura
A) Composição
de edifícios
em neo-enxaimel
C) Efeito Kitsch
em prédio com neo -enxaimel
D) Sede da COOPEAVI
Fonte: Google (2018). Disponível em: < encurtador.com.br/hxFR7>. Acesso em: 01 dez. 2018.
Legenda:
(A) Pommerhaus Hotel.
(B) Edificação Pública em neo-enxaimel.
(C) Prédio em neo-enxaimel (efeito Kitsch).
(D) Sede da Coopeavi.
(E) Prefeitura Municipal (frente).
(F) Câmara Municipal (frente).
(G) Monumento do Imigrante Pomerano e Câmara Municipal.
(H) Monumento do Imigrante Pomerano e Prefeitura.
(I) Monumento do Imigrante Pomerano.
[ 65 ]
Arquitetura tradicional pomerana
A casa anti ga e o modo de vida
41Refere-se à casa construída pelos imigrantes pomeranos, com técnica enxaimel, sistema próximo ao
baixo-saxão, com adaptações impostas pela realidade material e climática existente no Espírito Santo.
Também chamadas de “antiga casa pomerana” ou “típica casa pomerana” ou simplesmente “casa
pomerana”.
42Sobre o comércio das casas tradicionais pomeranas em Santa Maria de Jetibá, encontra-se um registro
significativo e uma denúncia explícita sobre esta prática no livro de autoria de Bianca Aparecida Corona,
publicado em 2012, com o título Pomerisch Huss: a casa pomerana no Espírito Santo.
[ 66 ]
No início dos anos 2000, forte indicativo que é necessário
despertar indagações para refletir sobre
[...] se constatava escassez de bibliografia
sobre a tipologia arquitetônica a cidade atual e para onde ela segue. Uma
pomerana, assim como o descaso por sua
conservação. Mais que isso, também se cidade que nas últimas décadas vivencia
constatou uma destruição inescrupulosa
das casas pomeranas para obtenção do
uma intensa transformação econômica,
que se conhece como “madeira de que tem gerado diretamente alterações
demolição”, principal matéria-prima
para a confecção de móveis e objetos de no seu modo de reprodução material da
decoração que, atualmente, ocupam lutar
de destaque na arquitetura de interiores. vida e suas relações socioculturais. Nas
Essa descoberta iniciou uma verdadeira
“luta de conscientização” dentro das palavras de Corona (2012, p.17):
comunidades pomeranas do Espírito
Santo, ganhando repercussão nacional,
ganhando defensores, forjando
Semeia-se a
ferramentas de resistência, entre as
quais a presente obra que obteve o apoio redescoberta, a
imprescindível da Secretaria [Estadual] reaproximação do povo
de Cultura do Espírito Santo (CORONA, pomerano com sua
2012, p. 15-16). própria residência.
Estando Santa Maria de Jetibá no
contexto histórico da re-pomeranização, Portanto, é central saber: quais são as
a administração municipal adotou a características da arquitetura residencial
postura de apoiar a mobilização ocorrida pomerana em Santa Maria de Jetibá (ES)?
na comunidade pomerana contra a
Corona (2012, p. 47) registra que a
destruição das casas para o comércio da
organização da casa do imigrante
madeira de demolição (FERNANDES,
pomerano no Espírito Santo assemelha-
2009, p. 3-7).
se à organização da casa dos camponeses
Por outro lado, o poder público não pomeranos ainda na Europa, com
alterou sua legislação para estimular a influência inclusive na planta baixa de
manutenção da casa tradicional suas residências, da implantação até a
pomerana, seja no campo ou na cidade. relação com o seu entorno.
Por sua vez, a mobilização para impedir a
Isto posto, destaca-se as características
destruição da casa pomerana torna-se
gerais da casa pomerana no Espírito
também muito limitada, especialmente
Santo (CORONA, 2012, p. 53-73; BUSS,
na malha urbana, devido ao crescimento
2018, p. 43-47):
do mercado imobiliário.
[ 67 ]
a) Localização: a casa é construída ao Figura 11 - Esquema de implantação da casa do imigrante
pomerano
“pé do morro”, tendo vegetação ao
fundo, com a cumeeira paralela à
estrada, sempre depois de uma curva
(revelando-se aos poucos aos
passantes), objetivando não ser
avistado facilmente, percebendo com
antecedência a aproximação de
estranhos, garantindo a proteção da
família.
Fonte: Corona (2012).
b) Edificações do entorno: além da
casa principal, que pode ser c) Recursos naturais: a casa fica
geminada com outras destinadas aos próxima de uma fonte de água
filhos, há em seu entorno as seguintes potável (rio, lago, nascente, etc.),
edificações: o paiol (em geral foi a tendo aos fundos o pomar e a mata
primeira moradia da família e que (em geral, a Mata Atlântica ou
passa ter a função de depósito), o remanescente desta) e na frente um
forno à lenha (usado para assar pequeno jardim com flores e uma
principalmente pães e bolos), a horta (às vezes na lateral).
cozinha (as mais antigas são feitas
d) Sistema construtivo e planta baixa:
fora da casa, devido ao temor de
a casa pomerana é sempre
incêndios, pois usava fogão à lenha),
retangular, em tamanhos diversos,
o banheiro (destinado às
construída sobre pilotis (moleques)
necessidades fisiológicas, ficava fora
de sustentação, que elevam a casa
da casa, sendo um fosso coberto com
acima do chão, formando um porão
uma casinha de madeira com um
alto e aberto.43 Não possui corredor,
orifício no piso), um local para a
sendo a sala o ambiente central e os
criação de animais (curral,
demais cômodos estão dispostos em
chiqueiro ou galinheiro) e uma cerca
sua volta. Na parte frontal da sala, há
de lascas de madeiras ao redor da
o acesso à varanda retangular, que
casa.
43 Na Europa, o porão era fechado e erguido com material), proteção (dificultava o acesso de
pedras. No Brasil, essa foi uma solução animais selvagens ou peçonhentos) e higiene
encontrada pelos imigrantes para três (circulação de ar e evitar a umidade) (CORONA,
finalidades: armazenamento (madeira e outro 2012, p. 63-67; BUSS, 2018, p. 45).
[ 68 ]
fica comprimida entre dois quartos44 Figura 12 - Planta baixa da Casa Pomerana
44 Corona (2012) faz referência a um desses vermes, brocas, insetos e à umidade, sendo ideais
quartos (quando há uma porta de um deles para para o uso em fundações (mourões). Já nas
a varanda) como sendo o “quarto do namoro”. A esquadrias, varandas, tábuas do assoalho e
tradição vem dos tempos medievais, quando o tabeiras de telhado, era utilizado o Cedro (BUSS,
senhor feudal tinha o direito de desvirginar a 2018, p. 46).
noiva antes do casamento. Para evitar isso, existia
o quarto que permitia que o casal pudesse manter 46Taipa de mão consiste em uma estrutura de
contato íntimo antes do casamento: “Tudo era varas de madeira (ripas de palmeiras, galhos etc.)
feito de forma a entender que os pais não sabiam entremeadas na forma de gradeamento,
da visita do rapaz ao quarto da moça. Assim, amarrados com cipós e juçaras, preenchido de
independentemente da moça engravidar, barro atirado com as mãos, resultando em
armava-se uma cena de flagrante, para que, de paredes leves aproximas de 15 cm (CORONA,
toda a sorte, a notícia se espalhasse e chegasse 2012, p. 59; BUSS, 2018, p. 46).
aos ouvidos do senhor feudal, que perdia o
interesse pela jovem” (CORONA, 2012, p. 53). 47O adobe (tijolo cru) é um tijolo que não sofre
um processo de cozimento e é secado apenas ao
45Em Santa Maria de Jetibá, eram comuns a sol (CORONA, 2012, p. 60).
Graúna, Jacarandá e o Ipê. Eram resistentes aos
[ 69 ]
Em uma visão sistematizada e concisa, tradicional pomerana difere conforme as
Buss (2018, p. 47) expõe a elaboração de condições típicas de seu lugar, os sujeitos
um painel com o passo a passo do método construtores e o tempo.
construtivo da casa pomerana:
Em seus estudos sobre as construções
germânicas de Santa Catarina, Veiga
Método Construtivo da Casa Pomerana
(2013, p. 96) destaca a tradição no modo
01 Derrubada da mata e escolha do local;
como se constrói a estrutura de madeira
02 Extração e preparo das peças de madeira;
nesta técnica. Weimer (1994, p. 59 apud
Enterramento dos mourões seguindo
03
projeto do marceneiro (fundação da casa); VEIGA, 2013, p. 96-97) registra os
06
Estruturava-se as colunas sobre as vigas e na fundação (mourões); b) cada peça
as tramas de pau a pique;
recebia duas marcações, indicando a
Iniciava-se o encaixe das peças em
07 enxaimel, para receber as janelas, portas e parede à qual pertencia e a ordem que
outras aberturas;
ocupava dentro do tramado; c) após a
As vigas da cobertura eram assentadas
08 estrutura de madeira da parede estar
sobre as colunas;
pronta no solo, esta era desmontada,
Construía-se a estrutura da cobertura
09 normalmente em duas águas em estilo possibilitando a preparação das demais;
enxaimel;
d) montadas as estruturas de todas as
A cobertura era de tabuinhas de madeira
10 que eram presas na estrutura da paredes, estas são postas sobre a
cobertura;
fundação e constrói-se a estrutura do
11 Assentava-se o piso e o forro de madeira;
telhado; e) com a estrutura de madeira
Iniciava-se o fechamento das paredes em
12 finalizada, é realizada uma festa antes de
pau a pique ou tijolo cru;
concluir a casa; e, por fim, f) é feito a
Alisava-se o reboco e fazia-se o
13
revestimento com cal virgem; cobertura do telhado e o preenchimento
14
Instalação do lambrequim no beiral da das paredes.
cobertura e guarda-corpo na varanda;
15
Pintura das esquadrias e varandas da cor As variações ocorrem mesmo em
azul celeste;
unidades próximas dentro do próprio
Cerca de lascas de madeira com altura
16 entre um metro eram postas ao redor da município ou estado e, certamente, em
casa.
outras regiões do país (VEIGA, 2013, p.
Fonte: Buss (2018, p. 47).
100). É o que demonstra a Figura 13, na
Aqui retrata-se uma realidade mais
qual o item “a” traz o caso capixaba e os
usada no Espírito Santo, sobretudo em
demais apresentam referências gaúchas:
Santa Maria de Jetibá. Porém, a casa
[ 70 ]
Figura 13 - Plantas baixas e fachadas de casas pomeranas (Espírito Santo e Rio Grande do Sul)
[ 71 ]
Assim, a solidariedade e a cooperação emocionam, estabelecendo laços de afeto
recíproca constituíam a história do povo marcantes entre seus membros. Schmidt
pomerano desde sua chegada, em efeito (2015, p. 129), ao pesquisar sobre a
das condições materiais reais para a comida na cultura pomerana nos
manutenção e reprodução de sua municípios de Santa Maria de Jetibá e
existência. Itarana (ES), compartilha desta
compreensão, identificando que “[...] a
Com o decorrer do tempo, esse modo de
partir do trabalho também é possível
fazer coletivo ganha outras dimensões do
perceber a identidade dos pomeranos”.
cotidiano, fazendo-se presente na
Assim, a autora considera o trabalho um
derrubada da mata, abertura de estradas,
marcador da identidade pomerana,
mobilização pela a assistência religiosa,
especialmente o mutirão e as relações
organização de casamentos, realização
sociais e simbólicas que perpassam o
de festas, apoio aos ritos do
trabalho agrícola e a organização coletiva
funeral/sepultamento e a construção de
das festividades que são transpassadas
casas, paióis, templos, escolas, cemitérios
pela solidariedade e reciprocidade.
e centros comunitários. É o que
caracteriza o mutirão: Atualmente, identifica-se uma
diminuição desta solidariedade e
O mutirão ou ajuntamento é um
sistema de trabalho não assalariado reciprocidade entre o povo pomerano,
entre vizinhos e amigos que implica
reciprocidade. É uma prática comum especialmente entre as gerações mais
entre os pomeranos, principalmente no
período da colheita de café, capinas,
jovens. Mas, mesmo em proporções
roçados, construção de casas, paióis, menores, estas ainda ocorrem em
preparativos do casamento ou abertura
de estradas. Tal tarefa não é remunerada, algumas tarefas semelhantes às dos
mas espera-se dos vizinhos o mesmo
gesto de solidariedade quando for antepassados e outras diferentes
necessário. O dono da casa arca com o
almoço, café da tarde e, no final dos (SCHMIDT, 2015, p.178). Tendo o
trabalhos, costuma oferecer um pequeno
baile (TRESSMANN, 2005, p. 244, grifo
exemplo da festa do casamento
nosso) pomerano,48 uma tradição ainda muito
Embora o mutirão seja uma solução significativa, notam-se alterações nas
prática para lidar com as dificuldades relações laborais que envolvem a sua
imediatas de uma comunidade, esta realização.
envolve relações sociais e culturais que
[ 74 ]
Foto 30 – Memorial Pomerano Waiandt’s Huus “[...] se constitui em símbolo de
resistência e superação. [...] enfrentando
um sistema público cada vez mais
interessado na padronização das escolas
e em ranqueá-las por meio de resultados
de avalições externas” (ULRICH;
KOELER; FOERSTE, 2017, p. 154).
Schroeder
52
Entre o fim dos anos 1960 até o fim dos anos 1990, produziam alimentos de forma “alternativa” ao
era chamado de produtor alternativo os que convencional (GOUVEIA, 2018, p. 133).
[ 76 ]
Apesar de essa comunidade ser sobre a arquitetura tradicional da antiga
referência na produção agroecológica, a casa pomerana e sua relação estabelecida
maioria dos agricultores de Santa Maria historicamente com a vida desse povo.
de Jetibá ainda utiliza o modelo
Assim, o casamento e a casa pomerana
convencional (SANTA MARIA DE JETIBÁ,
são alguns exemplos utilizados para
2018c, s.p.). Esse tipo de produção
trazer a discussão sobre a modificação do
recorre ao uso de técnicas baseadas no
modo de vida e a reconfiguração da
modelo mecânico-químico-biológico da
identidade pomerana, a compreensão
Revolução Verde, como os insumos
dos limites de seus marcadores
químicos, agrotóxicos e sementes
identitários, o uso ideológico do discurso
geneticamente modificadas (GOUVEIA,
da valorização cultural e o risco de se
2018, p. 134).
adulterar a memória ou reduzir a cultura
Os conflitos entre as formas de produção de um povo a uma mercadoria em função
no campo na atual configuração de interesses comerciais. Por outro lado,
econômica em Santa Maria de Jetibá será dialeticamente, identificam-se
o tema abordado na próxima etapa da movimentos ou iniciativas de
viagem formativa. Por hora, após resistências às ações de mercadorização
concluir esse percurso, é posto guardar da cultura pomerana e de reinvenções do
nossos apetrechos e registros, refletindo passado.
[ 77 ]
Pelo campo
Trajeto e mapa rurais em Santa Maria de Jetibá (Alta Santa Mari a) 53
A) Mus eu da
Imigração Pomerana
Santa Maria de Jetibá
(Sede)
B) Produção agrícola em
Santa Maria de Jetibá
(campo)
Fonte: Google (2018). Disponível em: <encurtador.com.br/pqDOX>. Acesso em: 01 dez. 2018.
Legenda:
(A) Museu da Imigração Pomerana.
(B) Memorial Waiand’s Huus.
[ 79 ]
Arquitetura da produção
Entre o agronegócio e a agricultura famili ar
Isso posto, com as principais granjas e seus complexos produtivos em mente, inicia-se
esse trajeto atentos ao objetivo perseguido por Bergamin (2015, s.p.) em sua pesquisa:
“[...] compreender o processo de transformação de Santa Maria de Jetibá, que vai de um
longo período de penúria dos agricultores ao crescimento econômico recente”. Se é visível
tal mudança em favor do crescimento econômico, convém perguntar não somente como
este é gerado, mas também como ocorre a sua apropriação.
[ 80 ]
Os dados54 levantados pela Secretaria h) uma das maiores cartas de crédito
Municipal de Agropecuária de Santa para a agricultura do Estado em
Maria de Jetibá tem muito a dizer sobre o 2017;
quadro atual de prosperidade no i) abastece a Ceasa Vitória com 40% de
município (SANTA MARIA DE JETIBÁ, todas as hortaliças e 70% das
2018c, s.p.): folhosas comercializadas;
j) 37% da água potável que abastece a
a) maior Produto Interno Bruto (PIB)
Grande Vitória vem do Rio Santa
Agrícola do Espírito Santo e o 46º PIB
Maria da Vitória;
Agrícola Nacional;
k) possui uma das maiores coberturas
b) possui aproximadamente um total de
vegetais do ES, com cerca de 40% de
6.275 propriedades rurais;
mata nativa preservada.
c) 75% das propriedades possuem
áreas de até 10 hectares, menor que 1
Os dados mostram que a pequena e
modulo fiscal da região (18 hectares);
média propriedade (Foto 31) são
d) 65,5 % da população reside no campo
predominantes tendo como base a
e 34,5% na cidade;
agricultura familiar. A produção e
e) maior produtor de ovos do Brasil;
comercialização da hortifruticultura se
f) responde por 93,00% da postura
destaca no cenário estadual. Mas,
comercial de ovos de galinha do
segundo Bergamin (2015), nas atuais
Espírito Santo (aproximadamente
condições técnicas, a avicultura é, de
130 avicultores) e 98,43% da
longe, a principal atividade econômica do
produção de ovos de codorna do
município. Conforme a autora:
Estado (14 avicultores);
g) referência Estadual em Produção A estruturação de uma cadeia produtiva
altamente verticalizada,55 o elevado nível
Orgânica (aproximadamente 120 de incorporação tecnológica, as
condições de temperatura favoráveis, a
produtores), com uma produção proximidade de grandes centros
consumidores, a qualidade da mão de
estimada anual/2018 de 6 mil obra [força de trabalho] e expansão do
toneladas; mercado consumidor, contribuíram
diretamente para que a avicultura de
postura se tornasse uma atividade
54 As fontes utilizadas são diversas: APSAD-VIDA para gerar o produto final. Além das granjas, os
avicultores de Santa Maria de Jetibá são
– Associação de Produtores Santamarienses em
proprietários de fábricas de ração, classificadoras
Defesa da Vida e de frotas de caminhões que viabilizam o
transporte de matéria prima para produção de
AVES , IBGE , INCAPER , IDAF , CEASA , Banco do
ração e a distribuição dos ovos. Essa estratégia
Brasil, SICOOB , BANESTES e Sindicato dos
diminui os custos e amplia o controle das etapas
Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras
da produção. Além disso, negociam
Familiares de Santa Maria de Jetibá-ES.
coletivamente a compra de matérias-primas,
reduzindo também os custos (BERGAMIN, 2015).
55 É a estratégia que prevê que a empresa
produzirá internamente os insumos necessários
[ 81 ]
competitiva em Santa Maria de Jetibá hortaliças ocorre em pequenas
(BERGAMIN, 2015, p. 183). propriedades e assentada no trabalho
familiar (BERGAMIN, 2015, s.p.).
O elevado nível tecnológico alcançado, o
Na avicultura, mesmo os de pequena ou
melhor do país, refere-se à produção
média produção conseguiram sobreviver
industrial de ovos. Assim, além do
associando-se à COOPEAVI . Fundada em
melhoramento genético já utilizado, todo
1964, esta foi crescendo gradativamente
processo produtivo foi automatizado, da
e buscando soluções para questões
cria ao empacotamento dos ovos.
práticas, viabilizando a produção e o
Segundo Bergamin (2015), tais “[...]
comércio:
inovações tornaram a avicultura de
postura bastante atrativa para o capital”. Os relatos positivos sobre a importância
da estrutura que a COOPEAVI
Foto 31 – Granja de pequeno e médio porte em Santa disponibiliza são muitos, principalmente
Maria de Jetibá. dos avicultores (FERRARI; COSTA, 2014,
p. 89).
[ 83 ]
chegaram na região da atual Santa Maria quais sempre apresentaram severa
disciplina para o trabalho que os
de Jetibá. Como já vimos na seção diferenciava dos demais imigrantes
europeus. Tal ética tornou-se uma
anterior, trata-se da solidariedade e qualidade desse grupo humano que por
ser proveniente de uma província onde
cooperação recíproca, uma prática social não teve acesso a propriedade da terra e
já vivenciada com êxito pela comunidade, por não ter uma nação que o
representasse, encontrou na migração
presente em sua memória ancestral, para esse território uma possibilidade de
crescer economicamente por meio do
reivindicada diante da necessidade de trabalho. Além disso, a experiência com
atividades comerciais de um
superar uma dificuldade comum. Um determinado grupo de avicultores,
contribuiu para a estruturação de uma
traço da identidade pomerana ainda cadeia produtiva com elevado nível de
presente, mas alterado em consequência verticalização, que conferiu caráter
competitivo à atividade, mesmo em um
da mudança das condições materiais de contexto produtivo desfavorável
(BERGAMIN, 2015, s.p.).
manutenção e reprodução da vida.
É possível perceber a divisão social
Assim, as relações de socialização e presente no mundo do trabalho e o início
reciprocidade não são aplicadas de uma configuração classista,
igualmente por todos, mas há distinguindo-se em um grupo de pessoas
proximidade entre os grupos afins, que já que já acumulavam capital e know-how
possuem um recorte classista. Desse em atividades no ramo do comércio desta
modo, há avicultores que acumulam localidade, com condições de investir em
capital individual e proximidade classista tecnologia e na verticalização da
para se organizarem de uma forma produção avícola de postura.
própria, enquanto outros buscam uma
Por outro lado, a dimensão ética do
centralidade no cooperativismo. De
compromisso com o trabalho gera
outra maneira, os produtores da
resultados distintos dependendo da sua
agricultura familiar e os trabalhadores
condição na divisão social do trabalho: a)
rurais assalariados se articulam em
se é um camponês, dono de uma pequena
associações e sindicatos.
propriedade, trabalhando com sua
Outro aspecto cultural e identitário do família; b) se é um proletário assalariado
povo pomerano é apontado por contratado por uma empresa/
Bergamin (2015) em sua pesquisa. proprietário rural ou cooperativa; e, c) se
Refere-se ao que ela denominou de é uma cooperativa ou proprietário dos
“severa disciplina para o trabalho”. Esta meios de produção na avicultura de
integra os fatores imateriais que ajudam postagem.
a responder a sua pergunta-problema:
A situação prática destas relações no
Identificou-se como condicionante mundo do trabalho pode ser observada
imaterial a dimensão ética do trabalho
dos pomeranos e seus descendentes, os na seguinte descrição:
[ 84 ]
Como a produção de ovos é realizada Mas, na agricultura familiar, há uma
predominantemente em granjas de porte
grande, cujos proprietários são dupla exploração sofrida pelos
empresários do setor avícola, a mão de
obra [força de trabalho] empregada é trabalhadores rurais:
assalariada. Ao contratar essa mão de
obra assalariada, os avicultores
Para compensar o baixo nível de
preferem declaradamente os mecanização e também a intensa
descendentes de pomeranos, pois os subordinação da produção ao comércio,
consideram extremamente
esses agricultores se submetem a longas
comprometidos com o trabalho. jornadas de trabalho. Aquela valorização
Mesmo não sendo proprietários dos do trabalho que diferenciava o imigrante
meios de produção, esses trabalhadores
pomerano na colônia, permanece entre
desempenham suas funções como se as os seus descendentes, mas quem se
granjas lhes pertencessem, contribuindo apropria de grande parte do excedente
para o melhor desempenho da atividade
produtivo dos agricultores familiares são
(BERGAMIN, 2015, p. 183, grifo nosso).
os comerciantes. Apesar disso, esses
agricultores admitem que a partir da
Embora a indústria de produção de ovos, modernização da agricultura houve
melhora das condições de vida e
com sua automação e demais tecnologias ampliação dos rendimentos e nem de
adotadas, possua uma “reduzida longe preferem a vida pretérita
(BERGAMIN, 2015, p. 184).
capacidade de geração de empregos"
Apropriando-se da problematização de
(BERGAMIN, 2015, p. 182), a exploração
alguns elementos soterrados na relação
da força de trabalho pela mais-valia, em
do mundo do trabalho rural e sua relação
sua concepção marxista, não deixa de
com traços identitários do povo
ocorrer no processo produtivo.
pomerano em Santa Maria de Jetibá, cabe
Igualmente ocorre na agricultura, mas
conhecer mais sobre o processo de
nesta o trabalho é realizado pela família
automação da produção avícola, sem
que tem a posse de sua pequena
deter-se a conhecimentos técnicos
propriedade: “A atividade é, então,
específicos. Inicialmente, é importante
realizada por agricultores familiares e é a
observar a cadeia produtiva em sua
principal geradora de empregos em
amplitude. O fluxograma abaixo traz um
Santa Maria de Jetibá” (BERGAMIN, 2015,
modelo geral (Figura 15):
p. 184).
Figura 15 – Fluxograma da cadeia produtiva do ovo.
[ 85 ]
A produção automatizada (Figura 16) segue o mesmo fluxo; entretanto, as alterações
ocorrem principalmente nas etapas indicadas como produtores de ovos e processadores de
ovos: “Os galpões de Santa Maria contam com máquinas que recolhem ovos e esterco ou
abastecem as gaiolas com água e ração, sem a necessidade de mão de obra humana [força
de trabalho]” (SAFRAES, 2015, s.p.). Além da automação, os cuidados fitossanitários e o
manejo nutricional são essenciais para manter a qualidade da produção, demandando
também investimentos em tecnologia e conhecimento.
59 Na década de 1990, após intenso debate eficiente e sustentável) quando compara com o
interno e com registro de cisões no movimento de modelo de exploração patronal” (PICOLOTTO,
trabalhadores rurais (especialmente o MPA e o 2014, p. 81, grifo do autor).
MST), as entidades do sindicalismo trabalhista
(CUT , CONTAG e FETRAF ), em sua maioria, “[...] 60 “[...] as organizações sindicais de agricultores,
assumem o fortalecimento da agricultura [...] tendem a lançar acepções mais subjetivas,
familiar como centro de um projeto de ligadas à especificidade da família agricultora, ao
desenvolvimento rural para país. Para elas, a seu local de trabalho e de vida, à cultura local, à
agricultura familiar corresponde a um modelo produção de alimentos, à tradição, à diversidade,
de organização da agropecuária assentado em associando-a a um valor positivo, como
unidades familiares de produção, onde o grupo superação de uma condição de inferioridade
familiar, em geral, é proprietários dos meios de social que historicamente lhe foi atribuída. O
produção, planeja, gestiona e executa as sindicalismo [dos trabalhadores] procura
atividades produtivas e a força de trabalho é mostrar que a construção da ideia-força
predominantemente familiar. Este modelo é agricultura familiar seria resultado de lutas
considerado mais vantajoso social, econômico e políticas, culturais e morais por reconhecimento
ambientalmente (por ser mais democrático, social” (PICOLOTTO, 2014, p. 78, grifo do autor).
[ 87 ]
Considerando tais planos conflitantes, seus danos são encobertos com
evidencia-se em Santa Maria de Jetibá um campanhas publicitárias agradáveis, seus
processo de ocultação das contradições agentes políticos atuam na esfera estatal
estabelecidas no campo, especialmente para “flexibilizar” ou “desburocratizar” a
com a produção agrícola familiar legislação. Deste modo, a agricultura
orgânica, que só pelo fato de existir já põe torna-se crescentemente dependente da
em questão a produção convencional. indústria agroquímica, provocando uma
certa homogeneização das agriculturas
Como abordado no capítulo teórico, esta
mundiais e intensas agressões ao meio
é uma lógica que perpetua o processo
ambiente (BIANCHINI; MEDAETS, 2013,
iniciado com a Revolução Verde na
p. 1).
segunda metade do século XX. Enquanto
[ 88 ]
Além do processo produtivo e a da avicultura financiaram a confecção e
concepção ideológica, os signos instalação de uma escultura de uma
identitários da cidade também são galinha e seu ovo (Foto 32),61 num jardim
postos em disputa. A avicultura de Santa público, no núcleo comercial da cidade,
Maria de Jetibá, ao atingir o primeiro sem autorização formal do Executivo
lugar na produção de ovos do país e Municipal. Tal fato gerou uma certa
expandir sua atuação industrial (Figura polêmica nas redes sociais e ganhou os
17), alimenta um discurso público- noticiários de alguns jornais. Apesar das
ideológico de que a riqueza gerada por posições controversas, a estátua foi
este setor, mas fundamentalmente mantida para além do período do evento.
apropriada por alguns, seja considerada
Foto 32 – Estátua de galinha em Santa Maria de Jetibá
uma conquista de todos e para todos.
61 Esta escultura foi produzida pelo senhor reportam atividades do cotidiano camponês do
Adilson Geraldo Jajeski, morador do bairro Vila povo tradicional pomerano. Jajeski possui outras
Jetibá, em Santa Maria de Jetibá. Ele é conhecido habilidades laborais. Além de artesão, atua como
na cidade por seus cata-ventos de madeira, que pedreiro, carpinteiro, eletricista etc.
[ 89 ]
Se esta for a representação material da Por outro lado, há quem considere tudo
nova configuração econômica do isso perfeitamente justificado,
município, portanto política e ideológica, naturalizando a ideia que a estética da
não há de se surpreender que, em breve, cidade tenha sempre que se reconfigurar
pode ocorrer por toda a cidade obras ou em função de um potente produto
adornos semelhantes compondo a turístico, com a possibilidade de criar
paisagem em lixeiras, pontos de ônibus, novas narrativas e identidades.
praças, orelhões (hoje quase extintos),
Nessa linha ideológica, talvez possa
calçadas, edifícios públicos e privados,
ocorrer um encontro de projetos
dentre outros.
econômicos, aliando o agronegócio
Ou, ainda, em determinadas ocasiões (indústria avícola) e o turismo, outrora
(festivas, oficiais e corporativas), seja possibilidades incompatíveis.
possível ver funcionários do comércio ou
Sobre esse cenário hipotético, é possível
servidores públicos sendo induzidos a
levantar ainda algumas questões:
vestir fantasias de galináceos ou de ovos
enquanto executam suas atividades
laborais. Ou mesmo moradores, Existiriam roteiros turísticos
cotidiano. da galinha?
[ 90 ]
Anotações
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[ 91 ]
Ninguém pode entrar duas vezes no mesmo rio, pois quando nele se entra
novamente, não se encontra as mesmas águas, e o próprio ser já se
modificou. Assim, tudo é regido pela dialética, a tensão e o revezamento
dos opostos. Portanto, o real é sempre fruto da mudança, ou seja, do
combate entre os contrários.
Heráclito
Álbum de Viagem
Considerações finais
IDENTIDADE POMERANA
Uma viagem formativa desvelando conflitos soterrados
2018
Álbum de viagem
[ 94 ]
O álbum em nossas mãos traz edificações educativo (e-book), direcionado
que expressam aspectos históricos da especialmente aos docentes atuantes na
identidade pomerana. Os prédios com Educação Básica. Visualiza-se que este
“estilo germânico” (neo-enxaimel) que também possa ser utilizado na formação
apontam para uma “identidade de continuada do magistério. Assim, os
fachada”, vinculada a interesses próprios professores vivenciariam o
turístico-econômicos; a casa tradicional roteiro da viagem formativa proposta e
pomerana que se aproxima do modo de poderiam se inspirar, a partir da
vida dos primeiros imigrantes que especificidade de suas áreas de
chegaram a Santa Maria de Jetibá. Por conhecimento, a trabalhar aspectos
fim, a indústria do agronegócio na forma dessa discussão com os estudantes.
de granjas automatizadas que
Sabemos que sobre a identidade
movimentam uma cadeia produtiva
pomerana há muito ainda a ser discutido,
ampla em contraposição à agricultura
problematizado e aprofundado. Após a
familiar de camponeses com
chegada dessa viagem, muitas outras
propriedade de pequeno ou médio porte.
podem ser planejadas. Em um novo
Como se percebe, Santa Maria de Jetibá se papel, registram-se o desejo de novas
constitui de várias cidades sobrepostas, viagens:
pois estão presentes vários tempos
Política de imigração nacional no
simultaneamente em cada canto do Brasil e a ideologia do
espaço. São os vestígios de cada tempo embranquecimento.
que ainda estão presentes. Estes, por sua Colonização ou imigração
pomerana?
vez, possuem um vínculo histórico com o
“Boas vindas”: conflito com a
modo que as pessoas se relacionam com máquina do Império Brasileiro.
a natureza e entre si, em um processo Território em questão: conflito
dialético de manutenção da vida em entre imigrantes pomeranos e
indígenas.
sociedade. Ou seja, as relações de
Pomeranos entre a assimilação e o
produção e sua organização social. isolamento: são ou não são
brasileiros?
A discussão suscitada sugere que a atual Não há volta: a Pomerânia é aqui,
identidade pomerana não pode pois a terra natal não existe mais.
prescindir da referência de classes Programa de educação bilíngue:
limitações, desafios e
sociais e dos conflitos dentro do que hoje possibilidades.
se chama de povo pomerano. Movimento contemporâneo do
povo tradicional pomerano:
Essa problematização serviu de subsídio resistências, identidades e
antagonismos.
para a elaboração deste material
[ 95 ]
Cooficialização da língua Viajar deixa saudades e uma enorme
pomerana: políticas públicas e
vontade de continuar, de conhecer mais,
possibilidades.
de desvelar outros lugares próximos e
Memória mercadorizada: turismo
e marcas da germanidade distantes. Desperta novas ideias que faz
estereotipada.
querer transformar o mundo ao redor.
Trabalhadores rurais da
agricultura familiar lutando por A viagem deve ser plena, emancipadora,
direitos no campo.
autônoma e repleta de possibilidades e
O veneno nosso de cada dia: a
lógica do agronegócio versus a experiências. Certamente não seria assim
resistência pela vida na produção caso for reduzida a um simples roteiro
orgânica.
turístico, com diálogos padronizados,
“De volta ao progresso”: problemas
da ocupação, urbanização, relação lugares pré-concebidos (falsamente
centro/periferia, mobilidade e recriados) ou transformada em um mero
verticalização na cidade de Santa
Maria de Jetibá. momento de socialização.
A tentativa e o suicídio na
comunidade pomerana. Viajar é como uma vivência educacional.
Cuidar da saúde ou tratar da Se for parcelar, fragmentada, unilateral
doença: câncer, intoxicação, ou transformada em mercadoria, limita a
alcoolismo e traumatismos na
comunidade pomerana. visão e torna-se frustrante e vazia.
Problematizando o papel da
mulher na cultura pomerana. Espera-se que este estudo tenha
[ 96 ]
Referências
IDENTIDADE POMERANA
Uma viagem formativa desvelando conflitos soterrados
2018
Referências
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